Anais do IV Congresso Internacional
História, Regiões e Fronteiras (CIHRF)
- VOLUME 2 -
Gizele Zanotto (OrG.)
Edição PPGH/UPF
Passo Fundo/RS - 2018
[2]
FICHA TÉCNICA
Organização do volume: Gizele Zanotto
Editoração: Gizele Zanotto
Imagem de capa: Daniel Confortin
Disponível no formato eletrônico.
ISS 2318-6208
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Anais do IV Congresso Internacional
História, Regiões e Fronteiras (CIHRF)
- Volume 2 -
Gizele Zanotto (OrG.)
Passo Fundo/RS – novembro de 2018
[4]
Paula Rafaela da Silva (PUCRS)
Paulo César Carbonari (CDHPF/IFIBE)
Paulo Pinheiro Machado (UFSC)
Renilda Vicenzi (UFFS)
Ronaldo Bernardino Colvero (UNIPAMPA)
Silvana Winckler (UNOCHAPECÓ)
Thaís Janaina Wenczenovicz (UERGS)
COMISSÃO CIENTÍFICA
Airton Adelar Mueller (UNIJUI)
Alisson Droppa (UNICAMP)
Ancelmo Schörmer (UNICENTRO)
André Luiz Faisting (UFGD)
Aristeu E. Machado Lopes (UFPel)
Arlene Renk (UNOCHAPECÓ)
Artur Henrique Franco Barcelos (FURG)
Cândido Moreira Rodrigues (UFMT)
Cláudia M. Mattos Brandão (UFPel)
Daniéle Xavier Cali (UFSM / AHMSM)
Darlan De Mamann Marchi (UFPel)
Denize Grzybovski (UPF)
Dhion Carlos Hedlund (FURG)
Dilceu Roberto Pivatto Junior (UFRGS)
Eliane Cristina Deckmann Fleck (UNISINOS)
Esio Francisco Salvetti (CDHPF/IFIBE)
Eunice Sueli Nodari (UFSC)
Glaucia Vieira Ramos Konrad (UFSM)
Gustavo Biasoli Alves (UNIOESTE)
Humberto José da Rocha (UFFS)
Ianko Bett (MMCMS)
Janilton Fernandes Nunes (UNIPAMPA)
Joana Bosak de Figueiredo (UFRGS)
Luciana da Costa de Oliveira (IFRS)
Luísa Kuhl Brasil (PUCRS)
Marcelo Vianna (UNISINOS)
Maria Emília Bottini (URI/Erechim)
Marlon Borges Pestana (FURG)
Marluza Marques Harres (UNISINOS)
Marta Rosa Borin (UFSM)
Mauro Dillmann (UFPel)
Melina Kleinert Perussatto (UFFS)
Patricia A. Fogelman (Universidad de Buenos Aires)
COMISSÃO ORGANIZADORA
Adelar Heinsfeld (UPF)
Alessandro Batistella (UPF)
Ana Luiza Setti Reckziegel (UPF)
Gerson Luís Trombetta (UPF)
Gizele Zanotto (UPF)
Ironita A. Policarpo Machado (UPF)
Felipe Cittolin Abal (UPF)
Janaína Rigo Santin (UPF)
João Carlos Tedesco (UPF)
Jacqueline Ahlert (UPF)
Luíz Carlos Tau Golin (UPF)
Marcos Gerhardt (UPF)
Mário Maestri (UPF)
Rosane Márcia Neumann (UPF)
Jenny González Muñoz (UPF)
Discentes
Andreia Aparecida Piccoli (UPF)
Andre de Souza Pereira (UPF)
Augusto Diehl Guedes (UPF)
Caroline da Silva (UPF)
Djiovan Vinícius Carvalho (UPF)
Jonas Balzan (UPF)
Waleska Sheila Gaspar (UPF)
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Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208
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SUMÁRIO
Modernidade e história do tempo presente: algumas reflexões pertinentes ao “cadeião” de Londrina – PR
680
Kawanni dos Santos Gonçalves
Biopoder e discurso: uma análise história do período ditatorial brasileiro
686
Laís Franciele de Assumpção Wagner e Lucas Dalmora Bonissoni
A instalação de grupos norte-americanos no setor industrial do Brasil e o onopólio das subsidiárias de
energia elétrica e telefonia
696
Lauren dos Reis Bastos
A atuação internacional nos conflitos na antiga Iugoslávia e a resistência do Kosovo
700
Leonardo Pires da Silva Bellanzon
Nacionalismos e genocídio – o fim da Iugoslávia
706
Leonardo Pires da Silva Bellanzon
Homossexualidade e representação: análise de uma reportagem da revista Veja da década de 1970
715
Leonardo da Silva Martinelli
História e imprensa: algumas propostas teóricas de análise a partir da revista Veja
724
Leonardo da Silva Martinelli
A Rio Pardo colonial: a formação de suas praças e estrutura urbana inicial
731
Lucas Lopes Cunha
Brasil x Argentina: uma proposta de análise da rivalidade durante a década de 1970
740
Luciano Anderson Breitkreitz
A elite política passofundense entre 1945 e 1989: uma proposta de estudo
749
Luiz Alfredo Fernandes Lottermann
O Piauí em esforço de guerra: mobilização patriótica e Guarnição da Província 1864-1866
755
Marcelo Cardoso
Mudanças socioambientais provocadas pela modernização da agricultura no norte do Rio Grande do Sul:
1950-1970
764
Marcos Paulo de Oliveira Junior
Pós-Abolição em Palmas/PR: trabalho e interação social (1888-1900)
774
Maria Claudia de Oliveira Martins
Evasão e elisão fiscal: um problema socioeconômico
783
Maria Elena Amaral Ferreira Bueno e Adriana Margarida Mignoni
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A estética do frio, um novo recorte de fronteira
793
Maria Goreti Betencourt
O controle da subjetividade cultural e dos direitos humanos: o “cidadão” e o “mercado”
803
Mariana Chini e Joline Picinin Cervi
"Eu sei tudo”: a figura feminina na sua primeira edição
809
Marília Guaragni de Almeida
A construção da identidade friulana na Itália e no Brasil (RS)
817
Marinilse Marina Busato
Remanescentes da cultura negra em São Luiz Gonzaga-RS: trajetória e memórias do Clube Recreativo
Imperatriz
827
Marisete de Mattos Morais
O casamento e suas representações na fotografia: Relações sociais, poder e transformações
838
Maristela Piva e Janaína Rigo Santin
Museu Municipal de Três Arroios: a narrativa da história na exposição de longa duração
847
Fabíola Pezenatto, João Paulo Corrêa e Maurício da Silva Selau
O início da década de 1960 e a formação do Sindicato Dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo: quem
são os primeiros associados?
858
Milena Moretto
Arquitetura e patrimônio: intervenções contemporâneas em edifícios históricos
864
Monique Villani e Gerson Luís Trombetta
(De)Colonialidade do Saber no Campo dos Estudos Organizacionais: possibilidades identificadas no
panorama da produção científica brasileira
873
Nadiesca Manica dos Santos, Priscila Sampaio de Moraes, André da Silva Pereira e Denize Grzybovski
A metodologia de ensino marista na formação de “bons cristãos e virtuosos cidadãos” – Passo Fundo
(1906-1950)
885
Natália Carla Vanelli
Escravidão: a realidade pós-abolição e o caso dos “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil”
891
Pamela De Almeida Araújo e Maira Angelica Dal Conte Tonial
Biopoder x empresas transnacionais : a ingerência na soberania dos estados
896
Pamela De Almeida Araújo e Maira Angelica Dal Conte Tonial
Do direito terreno ao divino sobre a terra: A Relação do Movimento Dos trabalhadores Sem Terra e a
Pastoral da Terra na Região Sudoeste do Paraná
Pâmela Pongan
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904
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A disputa pela terra e os conflitos fundiários na região Sudoeste do Paraná
910
Paola Nahuana Grazzi Torres e Pâmela Pongan
Hipátia de Alexandria: busca filosófica e liberdade
918
Paola Rezende Schettert
A colônia Getúlio Vargas/RS através da análise fotográfica
925
Patricia Lilian Mokfa
Processos crimes de infanticídio: uma proposta de abordagem historiográfica
937
Paula Ribeiro Ciochetto
O Die Serra Post, as fontes em língua alemã e o estudo da história dos colonos da região serrana do Rio
Grande do Sul na primeira metade do século XX
944
Paulo Adam
As contradições no processo de Reassentamento dos Afogados do Passo Real na década de 1980
950
Pedro Vicente Stefanello Medeiros
A Ferrovia do Trigo como Patrimônio Cultural
957
Renan Pezzi
As comemorações do 25 de julho de 1956, no Rio Grande do Sul
965
René Ernaini Gertz
A Revista Veja e o Plebiscito de 1993
977
Roberto Biluczyk
O processo migratório da Região do Vale do Rio do Peixe/SC: características da frente pioneira de
colonização
985
Roberto Carlos Rodrigues
Perspectivas sobre o conceito de poder em administração: Análise Sistemática de Artigos Empíricos
(1990-2018) e Uma Proposta de Definição Abrangente
993
Rodolfo Henrique Cerbaro e André da Silva Pereira
A imigração italiana pelos braços das mulheres imigrantes
1004
Rodrigo Paste Ferreira
A Biblioteca do Brigadeiro Silva Paes: práticas médico-cirúrgicas no sul da américa portuguesa
setecentista
1010
Rogério Machado de Carvalho
Análise iconográfica das ações cívico-sociais do Exército na Fronteira Brasil/Argentina na década de
1970
Ronaldo Zatta e Ismael Antônio Vannini
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1020
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Representações em jogo: a Segunda Guerra Mundial e suas forças armadas em conflito, na franquia de
jogos digitais Call Of Duty
1028
Ruggiero Moreira
O processo de emancipação de São Miguel das Missões na década de 1980: o patrimônio em disputa
1037
Sandi Mumbach
Ataque a guarnição de São José do Norte
1049
Santa Giovana Mendes Giordani
A imigração numa perspectiva dos direitos fundamentais e os processos de inserção na sociedade
1057
Silvana de F. M. da Silva
A conquista da Terra Indígena Toldo Chimbangue
1066
Silvana Winckler e Arlene Renk
Contexto político jurídico brasileiro da implementação dos assentamentos na Fazenda Annoni (1970 a
1990)
1073
Simone Lopes Dickel
A essência da arquitetura está no kitsch?
1085
Tábara Varissa Petry
A influência do processo de internacionalização da agricultura brasileira na expansão da fronteira
agrícola
1092
Tiago Dalla Corte
Migração italiana e alemã: o caso da Comunidade de Boa Esperança- Crissiumal/ RS
1099
Tiara Cristiana Pimentel dos Santos e Ronaldo Bernardino Colvero
Túneis do tempo. Paleotoca de Xaxim, produto da megafauna regional
1109
Valdirene Chitolina
Mecanismos de coerção no Contestado: uma análise sobre a organização política dos redutos
1124
Vanderlei Cristiano Juraski
Na disputa das memórias: a caracterização dos objetivos da luta armada na memória de seus militantes
(1968 – 1972)
1136
Vinícius de Oliveira Masseroni
Vargas e o mundo rural: um olhar sobre os discursos (1930-1945)
1149
Vitória Comiran
O desespero epistemológico em Fernando Pessoa: uma análise historiográfica
1156
Vitória Ulinoski Moch
O Juizado de Paz e a sua atuação em Santa Maria (1830-1850)
Viviane Siqueira Alves
[9]
1166
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Cartas e diários no teatro de operações: o cotidiano da guerra contra o Paraguai no Rio Grande do Sul
1174
Wagner Cardoso Jardim
História, política e escrita epistolar: a correspondência de Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto (FrançaBrasil, 1894)
1186
Waleska Sheila Gaspar
A Bacia Platina nas primeiras quatro décadas do século XVI: descoberta e representação europeia
1197
Yúri Batista da Silva
“Aqui jaz”: Cemitério Vera Cruz e a devoção a Maria Elizabeth
1207
Francielle Moreira Cassol
Do templo ao camelódromo: O kitsch e a construção do imaginário religioso oriental no Brasil
1217
Daniel Confortin
A análise interdisciplinar entre direito e economia: uma perspectiva do trabalho escravo no Brasil e suas
consequências econômicas
Augusta Agne Feldmann e Lisiane Zuchetto
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1230
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Modernidade e história do tempo presente:
algumas reflexões pertinentes ao “cadeião” de Londrina – PR
Kawanni dos Santos Gonçalves1
Resumo: Inaugurada em 1939, a antiga cadeia pública de Londrina (no Paraná) – ou o “Cadeião” – esteve
ativa por mais de cinquenta anos, sendo totalmente desocupada em 1994. Em seguida, o espaço ficou
abandonado por anos até ser revitalizado e transformar-se, desde 2014, no Sesc Cadeião Cultural. Londrina
tornou-se município, oficialmente, em 1934. A cadeia pública, portanto, acompanhou o desenvolvimento da
cidade desde meados (e no decorrer) do século XX; hoje, ressignificada em patrimônio local. Objetiva-se, em
longo prazo, estudar a circularidade dos discursos que envolveram o Cadeião enquanto esteve ativado. Para
tanto, faz-se necessário contextualizar esse período, inclusive no campo historiográfico. Desse modo, o
presente artigo visa relacionar concepções de modernidade – tal como dos autores Walter Benjamin e
Marshall Berman – e considerações acerca da História do Tempo Presente – a partir de Agnès Chauveau,
Philippe Tétard e Henry Rousso, por exemplo. Afinal, “a instituição prisional surge como um símbolo e uma
esperança de modernidade” (DORES, 2003), discurso ratificado, de fato, na inauguração do Cadeião.
Abordar-se-á, igualmente, noções relacionadas ao conceito de território – imprescindível para a posterior
compreensão da especificidade das fronteiras estabelecidas pela instituição prisional na área central do
município de Londrina.
Popularmente conhecida como “Cadeião”, em 1939, inaugurou-se, em madeira e através de custeio
comunitário, a antiga cadeia pública de Londrina (Paraná). Dois anos depois, passou à alvenaria e
permaneceu ativa por mais de cinquenta anos. Elaborada em período de vultosas expectativas de progresso, a
cadeia foi totalmente desocupada em decorrência de suas “condições desumanas” em janeiro de 1994.
Construída com capacidade para sessenta detentos, o espaço abrigou mais de duzentos presos na década de
1980. Apesar de seus longos anos em funcionamento, prevaleceram memórias de dor e sofrimento; de fato,
muitos londrinenses desejavam a demolição do prédio, ação que chegou a ser iniciada – mas rapidamente foi
interrompida – no ano de sua desocupação. Entretanto, por vinte anos o prédio esteve abandonado,
aguardando a concretização de inúmeros projetos que não se desenvolveram até que, em 10 de dezembro de
2014, em comemoração ao aniversário dos oitenta anos de Londrina, o Serviço Social do Comércio (Sesc)
inaugurou o “Sesc Cadeião Cultural” a partir de um projeto de revitalização da antiga cadeia pública. Além da
manutenção da estrutura original do prédio, o Sesc manteve “Espaços Memória” no local, como o piso
original, duas celas, alguns escritos na parede original, enfim, trilhas da antiga cadeia. No cotidiano, o espaço
é um centro cultural com diversas atividades e serviços oferecidos pelo grupo, como teatro, cinema, oficinas
artísticas, aulas de instrumentos musicais, entre outros.
Oficialmente, Londrina tornou-se município em 1934. Portanto, o Cadeião acompanhou o
desenvolvimento da cidade desde meados (e no decorrer) do século XX; hoje, ressignificada em patrimônio
local. Objetiva-se, em longo prazo, estudar a circularidade dos discursos que envolveram o Cadeião enquanto
esteve ativado; em última instância, as sociabilidades (e fronteiras) da cadeia pública, a dinâmica desse
espaço ainda estigmatizado. Para tanto, faz-se necessário contextualizar esse período, inclusive o campo
historiográfico no qual nos inserimos. Desse modo, o presente artigo visa, brevemente, relacionar
considerações acerca da História do Tempo Presente – a partir de Agnès Chauveau, Philippe Tétard e Henry
Rousso, por exemplo – e concepções acerca da Modernidade – tal como dos autores Marshall Berman,
Reinhart Koselleck, e Walter Benjamin. Abordar-se-á, igualmente, noções relacionadas ao conceito de
território – imprescindível para a posterior compreensão da especificidade das fronteiras estabelecidas pela
cadeia pública na área central do município de Londrina.
Bolsista CAPES (2018). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC), na linha de pesquisa Linguagens e Identificações, sob a orientação do Prof. Dr. Emerson César de Campos. Especialista em
Patrimônio e História pela Universidade Estadual de Londrina (2018) e graduada em História pela mesma Universidade (2017). E-mail:
kawannisg@gmail.com.
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Histórias do Tempo Presente
Em meados do século XX, a herança dos Annales ampliou as possibilidades de problemas, de
abordagens e de objetos na História — consoante o medievalista francês Jacques Le Goff. Desse modo, novos
também eram os desafios dos historiadores. Experenciávamos o breve século XX, e já entre os anos 1950 e
1970, embora timidamente, a historiografia contemporânea estendeu-se aos anos muito próximos, a um
passado recente:
[...] o historiador é cada vez mais parte integrante do contemporâneo — porque a
força da história passadista, factual e historicista se esfumaça diante de uma
demanda social insistente, resolutamente ancorada no presente e no modo
“interpretativo”. Em sua intervenção pública, a história, como a medicina ou a
ciência da ecologia, é um fator de compreensão do presente e vetor de opinião para
o corpo social. (CHAUVEAU; TÉTARD, 1999, pp.35-36).
A história do tempo presente institucionaliza-se em 1978, com a criação do Instituto de História do
Tempo Presente (IHTP) em Paris, por François Bedárida. Houve bastante resistência em considerar o tempo
presente como objeto da História. Mas, afinal, a historiografia sempre disserta a respeito de determinado
presente, seja referente a um passado longínquo ou a um passado recente. O que singulariza aquela
historiografia é que
[...] tiene por objeto los acontecimentos o fenómenos sociales que constituyen
recuerdos de al menos uma de las generaciones que comparten um mismo presente
histórico, pone al descubierto las relaciones complejas y conflictivas de um
presente que, encuanto passado muy reciente, se historiza a sí mismo. En este
nuevo género historiográfico, la cuestión de la memoria trasvasa todas las
dimensiones del problema de lo histórico y, en lo que a la dimensión temporal
importa, relaciona el tempo de la memoria com el tempo de la historia.
(MUDROVCIC, 2013, p.81).
Nesse contexto, duas críticas que se estabeleceram dizem respeito à proximidade do autor com relação ao
tema — e sua parcialidade —, e ao próprio estudo do presente, no qual uma história imediata, por exemplo,
se confundiria com jornalismo.
Com relação à primeira crítica, a parcialidade é sempre preocupação do historiador, independente do
tema ou período abordado, é critério de cientificidade. Quando trabalhamos nosso presente, devemos ser
mais atentos no exercício de “recuo” das subjetividades na análise de um objeto. Além disso, reconhecer que
jamais seremos imparciais é também um modo de estabelecer limites e reforçar o rigor e a seriedade
intelectuais necessários ao trabalho acadêmico: Nem por isso o perigo deve proibir uma reflexão (...). Uma
história serena não significa uma história asséptica (...): assumir a subjetividade é meio caminho andado
para controlá-la. (SIRINELLI, 1991 apud CHAUVEAU; TÉTARD, 1999, p.29).
Quanto à segunda crítica, o historiador não se reduz à explanação dos fatos ou mesmo à análise do
cotidiano, como os jornalistas o fazem. Buscamos as percepções e as condições históricas, observadas a longo
ou médio prazo, nas quais e pelas quais os fenômenos se desenvolvem. Enfim, o objetivo do historiador é
fornecer bases explicativas razoáveis, plausíveis, ao recorte de suas temáticas e temporalidades, o que o
historiador do tempo presente também realiza. A despeito da provisoriedade de nossas hipóteses,
[...] tais explicações plausíveis são uma grande contribuição ao cenário
desordenado de acontecimentos do tempo presente. Mesmo com todas as carências
evidentes, uma primeira sistematização desse emaranhado de acontecimentos e de
informações pode constituir um ponto de partida mais qualificado para futuras
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análises, não só de cunho histórico, o que configura outra função da História do
Tempo Presente. (PADRÓS, 2004, p. 204).
Mencionamos o breve século XX; os fenômenos que ocorreram em âmbito nacional e mundial,
conforme indicados na citação anterior, demandavam esclarecimentos, sobretudo as guerras mundiais, as
ditaduras latino-americanas e o advento da URSS. Henry Rousso (2016, p.19), um dos participantes do
IHTP, inclusive explicita que essa historiografia se acha em todo lugar em que o passado recente deixou
marcas a ferro quente, nos corpos, nos espíritos, nos territórios, nos objetos. Além disso, François Hartog,
estudando o modo como lidamos com nossas categorias temporais – passado, presente e futuro –, advoga
que, sobretudo no último terço do século XX, há um presentismo2 adjacente à sociedade contemporânea. Por
sua vez, para o historiador Rousso (2016), o que delimita o presente de determinada sociedade é sua última
catástrofe. Nesse sentido, para esse autor,
O passado tornou-se assim uma matéria sobre a qual se pode, ou mesmo se deve,
constantemente agir para adaptá-lo às necessidades do presente. Ele é doravante
um campo de ação pública. A exigência da verdade própria da atividade histórica
transformou-se em exigência social de reconhecimento, em políticas de reparação,
em discursos de desculpa e “arrependimento” em relação às vítimas das últimas
catástrofes recentes. Foi nesse contexto que se desenvolveu uma nova história do
tempo presente, chamada, logo depois de instituída, a responder aos desafios da
amnésia de um passado próximo enunciado em sua versão mortífera, às
necessidades da reparação que exige muita perícia, às exigências de um discurso
onipresente sobre a memória [...]. (ROUSSO, 2016, p.30).
Henry Rousso, a partir de suas considerações, remete a historiografia do tempo presente a eventos de
grandes e trágicas repercussões que, sem dúvida, marcaram profundamente o cenário do século XX.
Entretanto, nessa perspectiva, como o Cadeião de Londrina poderia ser inserido? Trata-se, afinal, de um
espaço cujas memórias ainda ressoam nas gerações presentes. O presente artigo, desse modo, visa aproximar
a ideia da última catástrofe às considerações acerca de nossa própria modernidade. Autores como Marshall
Berman, Reinhart Koselleck e Walter Benjamin trazem reflexões pertinentes para a elaboração desse sentido.
Modernidade ontem, hoje e amanhã
Segundo o sociólogo António Pedro Dores, a instituição prisional é produto da modernidade e
representa um movimento de civilização em relação a políticas racionalistas e humanistas:
Refúgio de ressocialização para aqueles que ponham em causa as regras de
civilidade que permite a vida urbana e em sociedade; garantia de igualdade formal
no tratamento de toda a transgressão e de todo o transgressor, através de um
sistema de transformação em tempo de prisão da culpa abstracta dos crimes
cometidos em concreto; espaço de investimento filantrópico e de espírito de
solidariedade para com os seres humanos caídos, digamos assim. (DORES, 2003,
p.26).
De fato, localizado no centro da cidade de Londrina, ao final da Rua Sergipe – caracterizada por conter casas
de tolerância e prostituição noturna em meados do século XX –, o Cadeião foi inaugurado como símbolo do
progresso em Londrina — conforme noticiou a imprensa:
HARTOG, F. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução de Andréa S. de Menezes, Bruna Breffart,
Camila R. Moraes, Maria Cristina de A. Silva e Maria Helena Martins. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
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Com a presença do capitão Fernandes Flores, chefe de polícia do estado, será
inaugurada hoje às 14 horas a cadeia pública de Londrina. O prédio, que no gênero
é um dos melhores do estado, será um atestado de nosso progresso e dos
sentimentos de humanidade do nosso povo; pois foi este, pelos expoentes do
comércio e da indústria local que, de fato, atendendo ao apelo do tenente Luiz dos
Santos, forneceu dinheiro e materiais para a construção do edifício. (Paraná Norte,
22. dez. 1939 apud PELLEGRINI, 2014, p.22, grifo nosso).
Anos depois de sua desativação, todavia, enquanto o prédio da cadeia estava abandonado, indagou
um consultor de vendas ao jornal Folha de Londrina:
[...] como pessoas de bom nível cultural podem querer restaurar um lugar que só
recebeu tristezas e causou problemas a muitas vidas, dizendo que aquilo é um
patrimônio histórico? Não conheço ninguém que vai ter saudades do Cadeião.
Vamos demolir aquilo que é um atraso para aquela região da cidade. (Folha de
Londrina3, s/p, 06. set. 2008, grifo nosso).
A exemplo dos problemas que envolveram a antiga cadeia pública de Londrina, outros presídios do
país apresentam situações semelhantes de péssima infraestrutura e superlotação, além de denúncias de
maus-tratos. O Brasil, atualmente, contém uma das maiores populações carcerárias do mundo. Entretanto,
não é preciso transitar de símbolo de esperança a símbolo da barbárie para compreendermos a contradição
inerente às modernas instituições prisionais: sua própria existência significa que outras instituições, como a
escola ou o estado social, já falharam. (DORES, 2003). Para os autores Berman, Koselleck, e Benjamin,
contradição é um termo definidor dos tempos modernos.
Filósofo estadunidense e marxista, Marshall Berman (1986, p.14) define modernidade como um tipo
de experiência vital partilhada pelos seres humanos, hoje, em termos globais:
A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e
raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se
dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal,
uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente
desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia.
O autor divide, então, a história da modernidade em três fases – congruente às três fases do
capitalismo, possivelmente em decorrência de sua formação marxista. A primeira fase, entre os séculos XVI e
XVIII, não há consciência de uma comunidade moderna; trata-se do início de uma experiência particular
própria da modernidade. A segunda fase, transitória, inicia-se com a Revolução Francesa e suas
reverberações, referindo-se ao público do século XIX. Finalmente, no século XX, temos a terceira fase, na
qual há uma cultura mundial do modernismo, grosseiramente, em termos quantitativos e qualitativos.
Berman argumenta que, no decorrer dessas fases, o turbilhão de fenômenos e essa vida radicalmente
contraditória na sua base das sociedades modernas nos desconectaram do passado ou de nossas raízes. À
semelhança do filósofo, o historiador alemão Koselleck (apud DUARTE, 2012), estudando a história das
relações com o tempo na cultura alemã, constata uma nova experiência temporal no período entre 1750 e
1850, ou seja, no período de consolidação da segunda fase da modernidade. Segundo Koselleck, a era
moderna, e as transformações que introduz de modo acelerado, distancia experiência (passado) e expectativa
(futuro) progressivamente. Se até meados do XVIII, o futuro se assemelharia ao passado – a ponto de
conceber-se uma historia magistral vitae –, na modernidade ulterior há a emergência não de um futuro
passado, mas de um
CALVI, Lucas. Folha De Londrina, Londrina, 06
<http://www.folhadelondrina.com.br/opiniao/cartas-653929.html>.
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[ 14 ]
set.
2008.
Folha
Opinião,
Cartas.
Disponível
em:
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[...] futuro aberto, indeterminado e indeterminável pelas experiências passadas, o
passado cessou de “ensinar”. A radicalidade do futuro, vivido no presente como
aceleração, separou as dimensões do tempo, anulando a utilidade da experiência
passada. (DURTE, 2012, p.74).
Os diversos acontecimentos da modernidade tornaram sua característica a sensação de surpresa, de
ruptura da continuidade. Denota essa nova experiência temporal, para Koselleck, o próprio conceito de
progresso, em que se deixa manifestar uma certa determinação do tempo, transcendente à natureza e
imanente à história. (KOSELLECK, 2006, apud DUARTE, 2012, 74). Há, no conceito de progresso, a ideia de
desenvolvimento progressivo em relação ao futuro. No campo da historiografia, Koselleck considera as
filosofias utópicas da história, nos séculos XIX e XX, como uma tentativa dissimulada de neutralização e
despolitização da existência, baseada em uma visão utópica da vida social como inerentemente pacífica.
(DUARTE, 2012, 82). Assim, no campo da filosofia da história, Koselleck explicita a contradição da
modernidade. A crítica do historiador alemão reside na pretensão de neutralidade dos discursos
historiográficos legitimadores de determinados movimentos políticos desses períodos. Koselleck (DUARTE,
2012, 83) denunciava o caráter ideológico arbitrário e o potencial totalitário dessas filosofias que, para o
autor, foram vetores da crise sociopolítica europeia a partir da Revolução Francesa, culminando em regimes
totalitários. Em síntese, da crise experenciada na modernidade.
Crítico literário, o judeu-alemão Walter Benjamin (1892-1940), no início do século XX, alertava para
a fragilidade na crença do progresso. Em 1940, em suas teses Sobre o conceito de história, a partir de sua
característica linguagem metafórica, destaca-se a nona tese com o quadro Angelus Novus, de Paul Klee
(pintor e poeta suíço, naturalizado alemão; 1879-1940). Na descrição metafórica do anjo da história,
Benjamin (1987, p.226) traça suas perspectivas a respeito do Progresso:
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força
que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o
futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos de progresso.
Benjamin, portanto, tece críticas à obtusa fé no progresso técnico e econômico do capitalismo que, para o
autor, não significa progresso social. Ao contrário, para Benjamin o progresso ameaça a humanidade – por
isso o amontoado de ruínas que cresce até o céu – e implica na concepção homogênea, vazia e mecânica do
tempo histórico, própria do historicismo. (LÖWY, 2002, p. 205).
Desse modo, traçam-se críticas à perspectiva idealizada e acrítica do progresso na modernidade. As
distopias – como a obra Admirável mundo novo (1932), do escritor britânico Aldous Huxley (1894-1963) –
contrapõem-se às utopias. Portanto, evoca-se também um pessimismo em relação aos tempos modernos. No
entanto, não se trata de um pessimismo fatalista, mas, em alguma medida, revolucionário. Marshall Berman,
por exemplo, constrói suas concepções a partir de Marx e Nietzche, cujas vozes compartilham, segundo o
filósofo,
sua rápida e brusca mudança de tom e inflexão [...] na tentativa de expressar e
agarrar um mundo onde tudo está impregnado de seu contrário, um mundo onde
“tudo o que é sólido desmancha no ar”. [...]. É uma voz que conhece a dor e o
terror, mas acredita na sua capacidade de ser bem sucedida.[...]. Irônica e
contraditória, polifônica e dialética, essa voz denuncia a vida moderna em nome
dos valores que a própria modernidade criou, na esperança – não raro
desesperançada – de que as modernidades do amanhã e do dia depois de amanhã
possam curar os ferimentos que afligem o homem e a mulher modernos de hoje.
(BERMAN, 1986, pp.21-22, grifo nosso).
De fato, a modernidade caracteriza-se por vozes que denunciam a vida moderna em nome dos
valores que a própria modernidade criou.
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À semelhança de Berman, Benjamin igualmente descende dos pensamentos de Marx e Nietzche,
embora revogando algumas de suas prerrogativas. Não abordaremos no presente artigo o desenvolvimento,
bastante particular, do pensamento benjaminiano. Michael Löwy, em Walter Benjamin: aviso de incêndio, o
faz prodigiosamente. Interessa ressaltar que, para Walter Benjamin (1987, p. 226), o anjo da história, ao
invés de perceber no passado simplesmente uma cadeia de acontecimentos, deve ver uma catástrofe única,
que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Nesse sentido, o autor
aproxima a ideia de progresso à ideia de catástrofe. Essa consciência, portanto, possibilita a ruptura da
continuidade desse progresso destrutivo próprio da modernidade. Por isso, segundo Benjamin, o dever de
escovar a história a contrapelo, ou seja, visibilizar na historiografia que
a tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na
verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que
corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é
originar um verdadeiro estado de exceção [...]. (BENJAMIN, 1987, pp. 225-226).
Considerações finais
As peculiaridades próprias aos tempos modernos, conforme dissertamos, de fato, se espelham em
inúmeras narrativas envolvendo o Cadeião de Londrina, sobretudo no contexto da díade barbárie/civilização.
Nesse processo, é essencial pensar, conforme dissertam Haesbaert e Limonad, O território em tempos de
globalização (2007). Ou seja, considerar uma nova identidade sócio-territorial própria da modernidade. Os
autores distinguem três possibilidades de abordagens da concepção de território conforme a dimensão social
priorizada – não exclusiva, uma vez que tais dimensões fundem-se em certa medida: jurídico-política (a
partir de concepções de Estado-nação, fronteiras políticas e limites político-administrativos), culturalista
(considerando-se lugar e cotidiano, identidade e alteridade social, cultura e imaginário) e econômica
(discorre-se na esteira da divisão territorial do trabalho, das classes sociais e das relações de produção).
(HAESBAERT; LIMONAD, 2007, p.45). Sem aprofundar as discussões no presente artigo, a longo prazo,
interessa a dinâmica da abordagem culturalista para refletir esse espaço estigmatizado da cadeia pública.
Em linhas gerais, a empatia da História não deve favorecer os dominadores, mas os dominados; e sua
narrativa deve estar a serviço da emancipação das classes oprimidas. (LÖWY, 2002, p.2001). Ou seja, o
judeu-alemão Walter Benjamin – que se suicida em 1940, na iminência de sua fuga da França para a
Espanha – conclama, em certa medida, a politização explícita da historiografia em favor da ruptura de um
progresso sociopolítico destrutivo da humanidade. Não é essa, também, a proposta da História do Tempo
Presente? Desse modo, compreender a modernidade enquanto nossa última catástrofe é essencial para a
compreensão de fenômenos próprios dessa modernidade a respeito dos quais a historiografia do tempo
presente disserta.
Referências
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: ______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras, 1986.
CHAUVEAU, Agnès; TÉTARD, Philippe. Questões para a história do presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 7-37.
DORES, António Pedro. Modernização das prisões. In: Prisões na Europa - um debate que apenas começa, Oeiras, Celta
Editora, 2003. pp.25-32.
DUARTE, João de Azevedo e Dias. Tempo e crise na teoria da modernidade de Reinhart Koselleck. História da
Historiografia, n. 8, 2012, pp.70-90.
HAESBAERT, Rogério; LIMONAD, Ester. O território em tempos de globalização. In: Etc..., Espaço, Tempo e Crítica,
Niterói, UFF, v. 1, n. 2, pp. 39-52, ago. 2007.
LOWY, Michael. A filosofia da história de Walter Benjamin. In: Estudos avançados, v.16, n.45, 2002, pp.199-206.
MUDROVCIC, María Inés. Cuando la Historia se encuentracom el presente a lo que queda del “passado histórico”. In:
______; RABOTNIKOF, Nora (coordinadoras.). Em busca del passado perdido. Temporalidad, historia y memoria.
México: Siglo XXI Editores, 2013. pp. 66-87.
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PADRÓS, Enrique Serra. Os desafios na produção do conhecimento histórico sob a perspectiva do Tempo Presente. In:
Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, pp. 190- 223, jan./dez. 2004.
PELLEGRINI, Domingos. A arte da transformação. Curitiba: Sesc-PR, 2014.
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho.
Rio de Janeiro: FGV, 2016.
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Biopoder e discurso:
uma análise história do período ditatorial brasileiro
Laís Franciele de Assumpção Wagner1
Lucas Dalmora Bonissoni2
Resumo: Foram cerca de 20 longos anos que perdurou o período de ditadura militar no Brasil. Durante
todo esse período houve diversos acontecimentos e atitudes que foram utilizados a fim de justificar uma
“revolução”, ocorrida, sobretudo com argumentos de defesa do Brasil à implementação do comunismo. Este
período que teve início na década de 1960 e foi caracterizado pela utilização da violência, repressão e
suspensão de direitos civis por parte do Estado que adotou posição intolerante contra aqueles que não
aceitaram as medidas autoritárias estatuídas. Durante todo o período ditatorial, o governo utilizou de
discursos autoritários, os quais tentaram demonstrar que se estaria tentando salvar o país e, por esta razão,
justificava-se a tortura e morte de diversas pessoas, pois seria necessário que alguns “traidores” fossem
mortos para que a sociedade brasileira pudesse sobreviver. Na época utilizava-se de diversas formas de
políticas para controlar e censurar atos que fossem em desfavor ao que se tentava programar como verdades
pelos ditadores militares. Diante deste cenário, o presente trabalho buscará analisar, primeiramente o
conceito de biopoder, que na ótica de Michel Foucault, se define principalmente de duas formas
correspondendo, primeiramente numa análise anátomo-política do corpo e, na segunda concepção, como
uma biopolítica da população. Enquanto a primeira diz respeito aos dispositivos disciplinares que são
utilizados no interior de instituições, tais como escola, hospital, prisão etc., e são encarregados
principalmente de extrair do corpo a força produtiva, o qual se dá através de controles, como do tempo e do
espaço. Já a segunda, a biopolítica da população é voltada principalmente a sistemas de regulação das
massas, que, utilizando-se de estratégias de governança, através dos diversos saberes, permitem gerir
situações voltadas a diversos aspectos, tais como a migração, epidemia, saúde, etc. O presente artigo também
buscará focar na análise de Foucault sobre a política, o discurso e a verdade e o poder, além da problemática
dos argumentos utilizados à época, evidenciando a extrapolação da lógica para as relações sociais. Ao final do
artigo buscar-se-á discutir os desenvolvimentos contemporâneos das tecnologias do discurso e do poder,
buscando focar em como o conceito de biopoder e a análise histórica ditatorial permite auxiliar na
compreensão das formas atuais de governo. Por esta razão que a hipótese deste trabalho está na verificação
dos discursos e das “verdades” que foram construídas com o intuito que os brasileiros viessem a aceitar
referidas atitudes por entender que o Brasil precisaria ser salvo do comunismo. Por esta razão que as
concepções trazidas por Michel Foucault são imprescindíveis para a compreensão destas “verdades”
estatuídas na época da Ditadura Militar.
INTRODUÇÃO
Foram cerca de 20 longos anos que perdurou o período de ditadura militar no Brasil. Durante todo
esse período houve diversos acontecimentos e atitudes que foram utilizados a fim de justificar uma
“revolução”, ocorrida, sobretudo com argumentos de defesa do Brasil à implantação do comunismo.
O presente trabalho objetiva num primeiro momento levantar e analisar os acontecimentos
históricos ocorridos em especial em abril de 1964 no Brasil, em que houve a violação da Constituição e o
presidente João Goulart legalmente eleito foi deposto, tendo então os militares assumidos o poder.
1 Advogada. Mestranda em Direito com linha de pesquisa na área de Relações Sociais e Dimensões do Poder pela Universidade de Passo
Fundo – UPF. Especializanda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Especialista
em Direito Tributário e Empresarial pela Faculdade Meridional – IMED, 2012. Bacharel em Direito pela Universidade de Passo Fundo –
UPF, 2010. E-mail: laisfranciele.a.w@gmail.com
2 Mestrando em Direito pela Universidade Passo Fundo (UPF), vinculado à linha de pesquisa Relações Sociais e Dimensões do Poder, email: lucasdbonissoni@hotmail.com
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Este período que teve início na década de 1960 foi caracterizado pela utilização da violência,
repressão e suspensão de direitos civis por parte do Estado que adotou posição intolerante contra aqueles
que não aceitaram as medidas autoritárias estatuídas.
Constata-se que após ser instaurada a ditadura no Brasil, o discurso inicial contra o comunismo
passou a ter um novo rumo, através de um discurso para justificar a intervenção militar diante do então
perigo comunista.
Muitas medidas foram tomadas pelo Governo militar, tais como a vigilância e a censura dos órgãos
de informação que apenas poderiam narrar às ameaças iminentes do comunismo e a necessidade da
intervenção militar como estratégia política para evitar este acontecimento.
Diante deste cenário histórico dentro da ditadura militar, em especial o marco de abril de 1964, o
presente trabalho buscou analisar e conceituar o biopoder, na ótica de Michel Foucault.
Para o autor o biopoder se define principalmente de duas formas: a primeira como uma análise
anátomo-política do corpo e, na segunda concepção, como uma biopolítica da população.
Enquanto a primeira diz respeito aos dispositivos disciplinares que são utilizados no interior de
instituições, tais como escola, hospital, prisão etc., e são encarregados principalmente de extrair do corpo a
força produtiva que se dá através de controles, como do tempo e do espaço; a segunda, biopolítica da
população é voltada principalmente a sistemas de regulação das massas, que, utilizando-se de estratégias de
governança, através dos diversos saberes, permitem gerir situações voltadas a diversos aspectos.
O presente artigo também buscou focar na análise de Foucault sobre o poder em relação à política, o
discurso e a verdade, além da problemática dos argumentos utilizados à época, evidenciando a extrapolação
da lógica para as relações sociais.
Ao final do trabalho busca-se discutir os desenvolvimentos contemporâneos das tecnologias do
discurso e do poder, buscando focar em como o conceito de biopoder e a análise histórica ditatorial permite
auxiliar na compreensão das formas atuais de governo.
1. O Discurso que antecedeu o Golpe de 1964
Dentre diversos fatores ocorridos em anos que antecederam o deposto do presidente João Goulart
em 1964, o presente trabalho se limitará a apenas alguns pontos específicos, em especial os fatos ocorridos
em março e abril de 1964.
Na época o Brasil estava enfrentando uma série crise econômico e política. Segundo Miranda, João
Goulart apenas retomou os poderes plenos em janeiro de 1964 em que se restabeleceu o presidencialismo,
tendo o parlamentarismo durado menos que um ano (2014, p. 481) e, diante das diversas dificuldades em
governar, considerando não obter o apoio necessário no parlamento, o presidente Jango passou a percorrer
com uma série de comícios públicos, com argumentos mais reformistas. (2014, p. 483).
Um de seus principais discurso foi o que ocorreu em 13 de março de 1964 na Central do Brasil, em
que, dentre outras demandas, frisou principalmente a necessidade da reforma agrária, entre outros. Em seu
discurso, através dos trechos abaixo selecionados, é possível perceber este cunho reformista, pois se utiliza de
argumentos democráticos a fim de frisar a necessidade de uma reforma de base:
[...] Aqui estão os meus amigos trabalhadores, vencendo uma campanha de
terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou
perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu
presidente, na presença das mais significativas organizações operárias e
lideranças populares deste país.
Chegou-se a proclamar, até, que esta concentração seria um ato atentatório ao
regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse a dona da
democracia, e a proprietária das praças e das ruas. Desgraçada a democracia se
tiver que ser defendida por tais democratas.
[...]
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Perdem seu tempo os que temem que o governo passe a empreender uma ação
subversiva na defesa de interesses políticos ou pessoais; como perdem
igualmente o seu tempo os que esperam deste governo uma ação repressiva
dirigida contra os interesses do povo. Ação repressiva, povo carioca, é a que o
governo está praticando e vai amplia-la cada vez mais e mais implacavelmente,
assim na Guanabara como em outros estados contra aqueles que especulam
com as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo e que sonegam
gêneros alimentícios e jogam com seus preços.
[...]
Essa Constituição é antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio -econômica
já superada, injusta e desumana; o povo quer que se amplie a democracia e que
se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja
acessível a todos; que a todos seja facultado participar da vida política através
do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder
econômico nos pleitos eleitorais e seja assegurada a representação de todas as
correntes políticas, sem quaisquer discriminações religiosas ou ideológicas.
[...]
O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é “progresso com justiça, e
desenvolvimento com igualdade”.
[...]
Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária. Sem
emendar a Constituição, que tem acima de dela o povo e os interesses da
Nação, que a ela cabe assegurar, poderemos ter leis agrárias honestas e bemintencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais
profundas.
[...]
Como garantir o direito de propriedade autêntico, quando dos quinze milhões
de brasileiros que trabalham a terra, no Brasil, apenas dois milhões e m eio são
proprietários? [...] 3
Da análise das partes selecionadas do discurso de Jango na Central do Brasil, é possível compreender
a extensão da reforma de base pretendida pelo presidente João Goulart, o qual pretendia reformas
consideráveis na Constituição.
Além da reforma de base consubstanciada principalmente pela reforma agrária, João Goulart
também argumentava na reforma democrática na participação do povo permitindo o voto a todas as pessoas
maiores de 18 anos, incluindo as analfabetas.
Neste ponto em questão, é importante ressaltar que a ideia trabalhada pelo presidente não foi bem
vista, pois, a aprovação da possibilidade de voto dos analfabetos seria um meio fraudulento que possibilita a
estelionatários políticos angariar votos em cima dos desfavoráveis. A real reforma de base democrática
deveria conceder a todos os brasileiros o acesso às Escolas.
Miranda destaca, no que se refere à análise jornalística da reforma de base proposta por João
Goulart, foi possível constatar a forma como seu discurso era visto, para o Diário de Notícias, a discussão
sobre a reforma de base, servia como mera camuflagem e corresponderia a uma ameaça à democracia e à
Constituição, como forma de um projeto de legalização de um partido comunista. Já o jornal Tribuna da
Imprensa interpretou esta tentativa de reforma de base como um verdadeiro ato falso a esconder o real
desejo de ditatorial de Jango o qual pretendia fechar o Congresso Nacional e abrir os caminhos ao
comunismo. (2014, p. 486).
3
Discurso de Jango, na Central do Brasil.
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No entanto, o Correio de Notícias, sempre se manteve na cautelaridade, afirmando que nenhum ato
concreto contra a legalidade foi tomado pelo governo e por esta razão não justificaria o pânico antecipado.
(MIRANDA, 2014, p. 491) Já o Jornal Última Hora ressaltou que o comício de Jango nada mais deixou claro
o plano de governo o qual já havia falado desde sua eleição e que em nenhum momento em seu comício
deixou claro a vontade em fechar o Congresso ou impor as medidas que entende necessário através de meios
ilegais (MIRANDA, 2014, p. 491)
Daí já é possível extrair a ideia – através da imprensa, em sua maioria – a polarização do discurso de
Jango indo desde a ideia de um discurso coerente com seu plano de governo, dentro da legalidade e com
cautela – Última Hora e Correio de Notícias –, bem como com um discurso golpista e esquerdista, com
propósitos comunistas e contrários à legalidade e democracia – Tribuna da Imprensa e Diário de Notícias.
E este fato se dá, principalmente porque em 04 de outubro de 1963 o
[...] Presidente enviou ao Congresso pedido de autorização para decretar o Estado
de Sítio. A comoção foi enorme e a oposição à medida reuniu quase a unanimidade
das forças políticas. O episódio é revelador das dificuldades encontradas por
Goulart para manter sua política “equilibrista”. À esquerda e à direita, ninguém
entendeu o objetivo do governo, cada lado achando que o Estado de exceção
representaria um golpe perpetrado pelo grupo oposto. Vendo-se isolado, o governo
não teve alternativa senão recuar e retirar o pedido. A confusão e incerteza
reinantes aumentaram o temor dos anticomunistas, cada vez mais preocupados
com a movimentação dos setores esquerdistas. (MOTTA, 2000, p. 317).
Diante disso, após o discurso feito na Central do Brasil, onde resta cristalino sua propensão ao
comunismo, principalmente quando se refere aos dizeres “Desgraçada a democracia se tiver que ser
defendida por tais democratas”, merece atenção especial, porquanto, os anticomunistas se
autodenominavam de democratas e se autointitulavam defensores da democracia, não aceitando ideias
comunistas.
Na época, diversos acontecimentos que sucederam ao discurso de João Goulart que contribuiu para
que os opositores do presidente viessem a reforçar a tese de que ele agiria contra a legalidade, aumento
aliados que vieram a se opor ao Jango, os quais antes o defendiam. (MIRANDA, 2014, p. 489-490)
Diante das especulações acerca da possibilidade do presidente João Goulart estar tramando um
golpe para fechar o Congresso, opositores passaram a se reunir em manifestações, tendo se destacado a
Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que ocorreu em 19 de março de 1964, em São Paulo:
A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi o “comício da Central” do lado
conservador, ou seja, se constituiu em evento altamente impactante no que tange à
mobilização antiesquerdista. Sua preparação, por sinal muito cuidadosa, reuniu
toda a elite paulistana em verdadeira frente anticomunista e antiGoulart, que
conseguiu levar para a região da Praça da Sé enorme massa humana. (MOTTA,
2000, p. 326)
Constata-se que a reunião de grupos da Marcha da Família ocorreu contra o comunismo que estava
correndo o risco de ser implantado no Brasil. Segundo, Motta, embora o presidente João Goulart ficasse na
corda bamba entre a direita e a esquerda, eram evidentes suas tendências ao comunismo e o risco estava cada
vez mais evidente após o comício feito uma semana antes no Rio de Janeiro. (2000, p. 311-312).
Pode-se destacar no discurso lançado na Marcha da Família que o povo que se reuniu lutava contra
os ideais ideológicos comunistas, referindo o mal dos “vermelhos” ao convívio da família brasileira:
Povo do Brasil,
A Pátria, imensa e maravilhosa, que Deus nos deu, está em extremo perigo. (...)
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Deixaram infiltrar-se no corpo da Nação, na administração, nas Fôrças Armadas e
até nas nossas igrejas os servidores do poder totalitário, estrangeiro e devorador.
Não defendemos a nossa casa enquanto era tempo, quando era fácil, e, agora, as
fôrças do mal, da mentira e da demagogia ameaçam a própria vida da família
brasileira.
Mas hoje, na praça pública, no dia da família, essa multidão imensa veio,
espontâneamente, responder ao chamado das mulheres brasileiras (...).
Reformas, sim, nós as faremos, a começar pela reforma da nossa atitude.
De hoje em diante os comunistas e seus aliados encontrarão o povo de pé. (...)
Fiéis às nossas religiões, fiéis à nossa Constituição, fiéis à nossa pátria construiremos o Brasil autêntico, livre, forte e feliz.
Com Deus, pela Liberdade, marchemos para a salvação da Pátria! (MOTTA, 2000,
p. 327)
Diante de todo este cenário de incertezas e polarização política, começou uma forte corrente
favorável à derrubada do Presidente João Goulart, sendo que todas as condições estavam postas e as pessoas
preparadas para isso, no entanto, faltava apenas uma fagulha para que tudo viesse á tona e, segundo Motta,
ela veio uma semana após a Marcha da Família e se deu pela “revolta dos marinheiros” o qual convenceu os
oficiais para a necessidade de existência de um processo revolucionário. (2000, p. 329-330)
Neste ponto em específico, é imperioso ressaltar que para os militares e a imprensa, a solução dada
pelo presidente em conjunto com o ministro da Marinha, tendo liberado os marinheiros presos, representou
uma verdadeira afronta à hierarquia militar, tendo sido sondado a possível infiltração dos comunistas para a
eclosão da revolta dos marinheiros.
Segundo o Diário de Notícias e a Tribuna da Imprensa, as reivindicações dos marinheiros foram
criminosamente coordenadas pelo Executivo a fim de desestabilizar das Forças Armadas, correspondendo a
um verdadeiro desrespeito às normas, à legalidade e ao regime constituído. (MIRANDA, 2014, p. 503-504).
A situação como foi resolvida pelo Executivo evidenciou, ao menos aos anticomunistas, como um ato
atentatório à hierarquia militar, considerando que os marinheiros rebeldes deveriam ter recebido a correta
disciplina, não tendo sido feito, logo referido fato serviu para desestabilizar o aparato militar, dando forças à
teoria conspiratória de que João Goulart resistiria e implantaria o comunismo no Brasil.
Nesse sentido, Miranda ressalta que a mídia deteve importância significativa na interpretação dos
fatos ocorridos:
O Correio da Manhã, mesmo sem fazer menção aos comunistas, também
condenou a interferência de civis na solição de um caso militar e exigiu uma postira
rigorosa do presidente João Goulart. Não cabia a ele analisar se as reinvidicações
dos marinheiros eram justas ou não, mas sim manter-se fiel à Constituição e
restabelecer imediatamente a autoridade e a disciplina que eram os sistentáculos
do regime e da nação (CM, 29/03/1964, p. 6). (2014, p. 504)
Ainda, no dia 30 de março de 1964, João Goulart procedeu com um novo discurso feito na festa de
posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos, em que salientou que o problema maior estaria na
minoria privilegiada e que a reforma que pretendia fazer era perfeitamente constitucional e dentro da
legalidade e o eram a fim de beneficiar o povo. Relatou que a constituição não era intocável e que não iria
permitir a desordem em nome da ordem. (MIRANDA, 2014, p. 505-506)
Referido discurso de João Goulart foi o verdadeiro estopim, pois deixou claro que seus ideais
comunistas seriam, mais cedo ou tarde, implantado sob o argumento de uma justiça social equilibrada e
justa, que seria uma evolução legislativa na medida em que a própria sociedade estava avançando para
referido objetivo, quando na verdade a massa maioria, ao que parece, pela Marcha da Família, quer era
contra as ideias de esquerda.
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Após o discurso feito por João Goulart no dia 30 de março, os jornais começaram a pressionar,
enquanto o jornal Última Hora, por exemplo, que requeria que o Congresso tomasse parte na votação das
reformas de base, o Diário de Notícias, ainda estava apontando a necessidade de restabelecimento da ordem
e da disciplina militar, como porta de saída do presidente, precipitando, assim, o movimento golpista.
(MIRANDA, 2014, p. 507).
E, enfim, no dia 31 de março eclodiu-se o golpe militar, o qual foi provocado em decorrência da
necessidade de intervenção contra o comunismo. A partir da análise do discurso exarado após o ato golpista
resta cristalino que ele se deu no sentido de resguardar o Estado e o povo do comunismo:
Agora é a Nação tôda de pé, para defender as suas Fôrças Armadas, a fim de que
estas continuem a defendê-la dos ataques e das insídias comunistas. Neste grave
momento da História, quando os brasileiros, patriotas e democratas, vêem que não
é mais possível contemporizar com a subversão, pois a subversão partindo do
Govêrno fatalmente conduziria ao “Putsch” e à entrega do País aos vermelhos,
elevemos a Deus o nosso pensamento, pedindo-lhe que proteja esta Pátria Cristã,
que a salve da Guerra fratricida e que a livre da escravidão comuno-fidelista1.
A virilidade do movimento cívico que reinstalou o império da lei e da liberdade no
País, que demonstrou a aversão do povo brasileiro à comunização, que repudiou a
agitação e a opressão, repercutiu de modo intenso em todo o mundo.
O II Exército (...) acaba de assumir atitude de grave responsabilidade com o
objetivo de salvar a Pátria em perigo, livrando-a do jugo vermelho. É que se tornou
por demais evidente a atuação acelerada do Partido Comunista para a posse do
poder, partido agora mais do que nunca apoiado por brasileiros mal avisados que
nem mesmo têm consciência do mal que se está gerando.
O IV Exército (...) cumpre o importante dever de manifestar sua solidariedade aos
companheiros da 4a Região Militar e 4ª Divisão de Infantaria (...). Não seria
possível que a evidência de uma infiltração comunista insólita e consentida pelo
Governo, culminada com os lamentáveis acontecimentos do dia 26 próximo
passado, deixasse de provocar a revolta generalizada a que estamos assistindo (...).
Rio-grandenses, brasileiros! Eu não poderia nesta hora fugir ao meu dever. Frente
à ameaça clara e aberta de intervenção, cujo processo está em marcha, só tenho um
caminho: incorporar-me àqueles que, em todo o Brasil, lutam para restaurar a
Constituição e o direito, livrando a nossa pátria de uma agitação comunista!
Atendendo à geral e angustiosa expectativa do Povo Brasileiro, que via a marcha
acelerada do comunismo para a conquista do Poder, as Forças Armadas acudiram
em tempo, e evitaram se consumasse a implantação do regime bolchevista em
nossa Terra. (...) Ao rendermos graças a Deus, que atendeu as orações de milhões
de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares que se
levantaram em nome dos supremos interesses da Nação! (MOTTA, 2000, p. 333334)
Assim, com o Ato Institucional n. 1, de 09 de abril de 1964, editado pelos Comandantes e Chefe do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sob o fundamento de uma revolução necessária, se investiram no
Poder Constituinte no intuito de destituir os poderes próprios do presidente João Goulart, assumindo o
poder até que novas eleições fossem feitas através do Congresso:
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O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa,
representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no
momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão
decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o
governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela
revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo
governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o
exercício do Poder no exclusivo interesse do Pais. Para demonstrar que não
pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a
Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos
poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de
restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas
destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado
não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para
reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa,
resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas
aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional. (BRASIL, Ato
Institucional n. 1, 1964, grifo nosso)
Assim, com um argumento de revolução vencedora e sobre tudo sob o pretexto de salvar a pátria do
Comunismo, é que se justificou o golpe de abril de 1964 pelas forças armadas.
A partir e então, diversas outras medidas foram tomadas pelos presidentes em exercício durante a
ditadura militar. Aparentemente o golpe de 1964 foi clamado pelo pela maior parte do povo brasileiro com
evidente receio de que o presidente democraticamente eleito, João Goulart fosse implantar o comunismo no
Brasil.
O período ditatorial acabou perdurando por cerca de 20 anos e, diversos atos institucionais foram
editados, sempre sob o pretexto anticomunista. Daí, como já sabemos, passou-se a censura aos meios de
comunicação, diversas prisões foram efetuadas com o intuito de combate aos traidores comunistas que
estariam tramando contra o país, justificando assim diversos atos atentatórios contra o ser humano e sua
dignidade, a perseguição e a repressão eram justificadas para evitar a subversão da ordem estabelecida.
Diante disso é possível compreender que durante todo o período ditatorial, o governo utilizou de
discursos autoritários, sob o argumento de uma falsa democracia ocorrida após a “revolução vencedora”, os
quais tentaram demonstrar que se estaria tentando salvar o país e, por esta razão, justificava-se a tortura e
morte de diversas pessoas, pois seria necessário que alguns “traidores” fossem mortos para que a sociedade
brasileira pudesse sobreviver. Na época utilizava-se de diversas formas de políticas para controlar e censurar
atos que fossem em desfavor ao que se tentava programar como verdades pelos ditadores militares.
Assim, através de argumentos sofistas, cada vez mais os direitos e liberdades do cidadão eram
ceifados. O que no início poderia parecer uma intervenção justa para a sociedade brasileira, para salvar a
pátria do comunismo iminente, passou ao longo do período ditatorial a se tornar um verdadeiro pesadelo da
teoria da conspiração, tirando a paz e o sossego de muitos brasileiros.
2.
Análise do discurso à luz da teoria do biopoder de Michel Foucault
A hipótese deste trabalho está na verificação dos discursos e das “verdades” que foram construídas
com o intuito que os brasileiros viessem a aceitar referido golpe militar de 1964 por entender que o Brasil
precisaria ser salvo do comunismo.
Por esta razão que as concepções trazidas por Michel Foucault são imprescindíveis para a
compreensão destas “verdades” estatuídas na época da Ditadura Militar.
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Segundo Cavalcanti, o discurso que desencadeou a deposição de João Goulart, já estava sendo
utilizada muito tempo antes à data do golpe, em abril de 1964, demonstrando o quanto o discurso e a
disseminação da “verdade do perigo comunista” tomou tamanha proporção a justificar um golpe militar e,
um dos principais fenômenos da extrapolação do discurso do perigo comunista foi à instauração do medo,
que até o golpe militar era voltado à própria implantação do Comunismo no país, mas que após o golpe,
manteve-se o mesmo fenômeno do medo, embora com foco voltado para os próprios governantes ditatoriais
que agiam repressivamente contra os “traidores” da pátria. (2015, p. 14)
No que se refere ao conceito de biopoder, Foucault o conceitua como uma
[...] série de fenómenos que me parece bastante importante, a saber, o conjunto dos
mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas
características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa
estratégia política, numa estratégia geral de poder. Em outras palavras, como a
sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, voltaram a
levar em canta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui urna
espécie humana. É em linhas gerais o que chamo, o que chamei, para lhe dar um
nome, de biopoder. Então, antes de mais nada, um certo número de proposições,
por assim dizer, proposições no sentido de indicações de opção: não são nem
princípios, nem regras, nem teoremas. (FOUCAULT, 2008, p. 03)
Em A filosofia analítica da política, de 1978, o autor já trabalhava a ideia de que regimes totalitários
nada mais seriam do que a radicalização de mecanismos políticos os quais já estariam presentes na
modernidade, mas que utilizariam do aparato militar como instrumento instrumentos de repressão a fim de
dispor de um verdadeiro controle disciplinar, com o intuito permanente de adestrar os corpos humanos
através dos mais variados meios de subjetivação de poder. (FURTADO, CAMILO, 2016, p. 37).
Este ponto chama a atenção como um dos mecanismos de poder trabalhados por Foucault na obra
Vigiar e punir em que o autor trabalha na descrição de alguns mecanismos disciplinares que se dedicam a
repartir os espaços, ordenar os indivíduos, com o intento de treiná-los e os mantendo sob permanente
vigilância.
Na mencionada obra, o filósofo refere à necessidade de vigiar, como forma de disciplina hierárquica:
O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um
aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em
troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se
aplicam. Lentamente, no decorrer da época clássica, são construídos esses
“observatórios” da multiplicidade humana para as quais a história das ciências
guardou tão poucos elogios. Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes,
dos feixes luminosos, unida à fundação da física e da cosmologia novas, houve as
pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem
ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um
saber novo sobre o homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para
utilizá-lo. (FOUCAULT, 1999, p. 196)
Na obra o autor trabalha de forma extensiva diversos mecanismos disciplinares de vigilância,
treinando, de certa forma, através do medo de punição, os corpos humanos para uma constante obediência.
Este fato resta evidente no golpe militar e em todo tempo que perdurou a ditadura militar, pois através de
atos de repressão e vigilância constante o Estado adestrava seu povo contra o comunismo e empregava o
medo nas pessoas de tomarem atitudes e serem considerados traidores da nação, casos em que seriam
severamente punidos.
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Veja-se que esta vigilância constante se justificava como forma de controle e poder, pois os corpos
obedientes, punidos se fosse preciso, atuariam como força produtiva à serviço do governo e, nestes casos, não
apresentariam perigo àqueles de detivessem o poder, pois assim ocorreu no marco ditatorial, sob o prisma de
um discurso autoritário contra o comunismo, o governo militar utilizava-se da vigilância e punição para
manter o controle e o poder, através de discursos que implantavam o medo de serem considerados traidores
e, portanto, serem punidos como tais.
Segundo Jean Delumeau, o medo é caracterizado diante de uma situação de ameaça, que não só
ocorre contra indivíduos, mas também contra toda a coletividade, ou seja, ao estudar os discursos e as
práticas que emitiam signos de perigo e de ameaça associados às esquerdas, é possível compreender os
desdobramentos políticos que o medo desempenhou no período em estudo. (CAVALCANTI, 2015, p. 15-16)
A produção desse sentimento concorreu para legitimar projetos, justificar práticas e direcionar
políticas de Estado, pois o discurso da necessidade de combater o inimigo foi justificado pelo temor de que as
forças de esquerda triunfassem no país, concorrendo para legitimar, por conseguinte, a intervenção militar.
Daí que permite a compreensão de que
[...] a história do que foi dito é refazer, em outro sentido, o trabalho da expressão:
retomar enunciados conservados ao longo do tempo e dispersos no espaço, em
direção ao segredo interior que os precedeu, neles se depositou e aí se encontra (em
todos os sentidos do termo) traído. Assim se encontra libertado o núcleo central da
subjetividade fundadora, que permanece sempre por trás da história manifesta e
que encontra, sob os acontecimentos, uma outra história, mais séria, mais secreta,
mais fundamental, mais próxima da origem, mais ligada a seu horizonte último.
Essa outra história que ocorre sob a história, que se antecipa (FOUCAULT, 1987, p.
140)
Nessa linha de raciocínio, através da temática do biopoder é possível compreender que Foucault
percorre duas linhas de forças envolvidas na produção de subjetividades do poder, que no caso do golpe e no
período que perdurou a ditadura militar pode ser enquadrado da seguinte maneira:
Enquanto que de um lado está o poder totalizante que criou aparatos estatais os quais foram capazes
de governar populações através de um discurso de medo e vigilância constante; de outro lado este poder era
complementado através de técnicas individuais, consistentes na punição de pessoas que seriam consideradas
traidoras, cujas práticas eram destinadas a dirigir as pessoas de modo permanente.
A análise histórica e as técnicas de poder em relação ao biopoder trabalhado por Foucault se torna de
grande relevância para a compreensão da sociedade atual, pois permite evidenciar a ação das duas linhas de
forças mencionadas acima, bem como que um dos principais mecanismos de constituição e manutenção dos
regimes ditatoriais é o medo, dado através de discursos, o que constitui um dos elementos mantenedores das
relações políticas e sociais nas ditaduras.
CONCLUSÃO
Com o presente trabalho, é possível concluir que os fatos históricos narrados pela ditadura militar e o
estudo das técnicas de poder do discurso e do biopoder na concepção foucaultiana, permitem retirar dos
conhecimentos e das técnicas de manipulação utilizadas pelos militares, um aparato discursivo embasado no
medo.
Este aparato deu início principalmente na Marcha da Família, após o discurso de João Goulart na
Central do Brasil, ambos em março de 1964, em que no discurso do presidente, deixou claro suas ideologias
comunistas.
Embora em seu discurso não reste claro a forma como o presidente João Goulart iria proceder, pois
em nenhum momento expressa nitidamente que a forma adotada iria contra a legalidade, as forças opostas
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ao pensamento comunista se antecederam ao que eles acharam que seria um golpe por parte do próprio
presidente, o que, na concepção dos militares, justificou a intervenção militar como uma revolução
vencedora.
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REFERÊNCIAS
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.htm. Acesso em out/2018.
CAVALCANTI, Erinaldo Vicente. O medo em cena: a ameaça comunista na ditadura militar (Caruaru, PE 1960-1968). 2015. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1987.
______. Segurança, território, população. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2008.
______. Vigiar e Punir, nascimento da prisão. 20 ed. Editora Vozes: Petrópolis, 1999.
FURTADO, Rafael Nogueira Furtado. CAMILO, Juliana Aparecida de Oliveira. O Conceito de Biopoder no
Pensamento de Michel Foucault. In Revista Subjetividades, Fortaleza, 16(3):34-44, dezembro, 2016.
GOULART,
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Disponível
em:
<http://www.ebc.com.br/cidadania/2014/03/discurso-de-jango-na-central-do-brasil-em-1964>. Acesso em
out/2018.
MIRANDA, Mario Angelo Brandão de Oliveira. Povo, democracia e legalidade nas linguagens políticas do
Brasil (1945-1964) e do Chile (1938-1973) no contexto das experiências democráticas de massa. 2014. Tese
(Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964).
2000. Tese (Doutorado em História Econômica), Universidade de São Paulo – USP, São Paulo.
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A instalação de grupos norte-americanos no setor industrial do Brasil e o
monopólio das subsidiárias de energia elétrica e telefonia
Lauren dos Reis Bastos1
Resumo: O presente artigo é parte integrante de um projeto de dissertação de Mestrado, e tratará sobre
duas empresas norte-americanas, cujos investimentos foram efetivados no Brasil e, principalmente no Rio
Grande do Sul, a partir de 1920. Tem por objetivo analisar o monopólio criado pela American Foreign Power
Company, nos domínios da energia elétrica, bem como pela International Telegraph and Telephone, no
âmbito da telefonia. Igualmente, serão verificadas as condições que permitiram as respectivas instalações no
setor industrial do Brasil, as negociações, convênios e mediações estabelecidas com o governo estadunidense,
a fim de que os referidos grupos empresariais tivessem a mobilidade necessária no cenário político regional.
Palavras-chave: American Foreign Power Company. International Telegraph & Telephone. Empresas.
Estados Unidos. Rio Grande do Sul.
Abstract: This article is an integral part of a master's thesis project, and will deal with two US companies,
whose investments were made in Brazil and, especially in Rio Grande do Sul, from 1920. It aims to analyze
the monopoly created by the American Foreign Power Company, in the domains of electric energy, as well as
by the International Telegraph and Telephone, in the scope of telephony. Likewise, the conditions that
allowed the respective facilities in the industrial sector of Brazil, the negotiations, agreements and
mediations established with the US government will be verified, so that the said business groups had the
necessary mobility in the regional political scene.
Keywords: American Foreign Power Company. International Telegraph & Telephone. Companies. United
States. Rio Grande do Sul.
INTRODUÇÃO
O governo de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul se notabilizou pela sua ideologia políticopartidária, movimentos sociais e atos de cunho nacionalista, que exigiram do governo federal uma maior
flexibilidade e diplomacia junto ao governo estadunidense e empresas estrangeiras aqui instaladas.
Logo no principiar do século XIX, o desenvolvimento tardio da indústria brasileira exigiu uma
movimentação dos entes federais, a fim de propiciar autonomia e progresso ao recém-nascido setor
industrial. Isso não seria possível sem os recursos indispensáveis da energia elétrica e telefonia, que
auxiliaram o crescimento interno, trazendo investimento e técnicas modernas para os setores. As empresas
que aqui se estabeleceram encontraram facilidades na realização dos contratos de concessão com os governos
estaduais, além de vantagens para expansão do serviço, que contava com produção, distribuição e
transmissão de energia e comunicação.
Asseguradas com um prazo de mais de 30 anos para exploração dos setores, a American & Foreign
Power Company e a International Telegraph & Telephone começaram a sofrer interferências,
principalmente no estado do Rio Grande do Sul, após constatação da deficiência do serviço prestado, que
sofria com apagões, racionamentos, interrupção das linhas e material obsoleto. Ademais, apesar da falta de
investimento posterior e solicitações de financiamentos públicos, os lucros remetidos às empresas matriz,
localizadas nos Estados Unidos, ainda eram significativos, situação que chamou atenção de diversos políticos
e gestores.
As atividades, portanto, começaram a ser contestadas, situação que culminou nos já citados atos do
governador, que encampou a concessão, retomou o serviço e expropriou o patrimônio, indenizando-os ao
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Bolsista da Fundação Universidade de Passo
Fundo. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Advogada. Contato pelo e-mail lreisbastos@gmail.com
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valor que julgava correto. Antes da efetivação de todas essas situações, os contextos sociais estadunidense e
brasileiro favoreceram a chegada das empresas, influenciaram na permanência e exploração dos serviços e
foram fatores determinantes na tomada de decisão do governador.
1. O CONTEXTO HISTÓRICO E EXPANSÃO DO MERCADO ESTADUNIDENSE
Os aspectos internos da política e economia estadunidense foram determinantes para a chegada das
empresas estrangeiras no setor de serviços públicos da América Latina e, especificamente do Brasil e Rio
Grande do Sul, então indispensável fazer uma breve contextualização do momento histórico atravessado
pelos Estados Unidos entre o final do século XIX e início do século XX.
O ponto de partida consiste na chegada de aproximadamente 4 milhões de imigrantes, entre os anos
de 1869 até 1892 (BANDEIRA, 2005, p.42). O movimento nos portos impulsionou o crescimento
demográfico, que aliados à constante evolução do capitalismo industrial e bancário, promoveram o
desenvolvimento da nação e de novas formas de organização econômica, cujas atividades passaram a contar
com grandes empresas e trustes, detentores de uma parcela significativa do mercado interno. Wall Street
passou a contar com um governo à parte, que não se contentou apenas com o limite territorial do próprio
país, mas passou a exigir da administração pública uma posição mais enérgica com relação ao comércio
exterior e à expansão dos negócios.
Analisando a solicitação dos grupos comerciais e verificando a possibilidade de crescimento externo,
do alargamento simbólico de sua soberania e de controle sobre as empresas, o governo estadunidense
promoveu a expansão do mercado ao mesmo tempo em que limitou a atuação interna dos monopólios e
trustes. A concentração do poder junto aos grandes grupos, se tornou fato preocupante, à medida em que
ocorreu a estagnação do livre comércio interno, a imposição de preços elevados e a falta de opção do
consumidor, que se via obrigado a participar do jogo proposto pelos grandes grupos (SZMIDT, 2011, p. 52).
Assim, diante do quadro que se apresentava internamente, o governo dos Estados Unidos sancionou
em 1890 a lei Sherman Act, que impôs diversas medidas para assegurar a ampla concorrência e livre
comércio, restringindo a atividade interna dos trustes, monopólios e limitando a concentração de poder
econômico. Por conseguinte, fundamental acrescentar que as diretrizes ideológicas que o governo
estadunidense alimentava, também justificavam a expansão almejada, pois não havia convicção maior que o
Destino Manifesto, “tendência para o messianismo nacional, que marcou a formação e impregnou a cultura
do povo americano” (BANDEIRA, 2005, p. 27).
A ideologia foi primeiramente construída pelos cerca de 9 milhões de judeus que imigraram para os
Estados Unidos, no período compreendido entre os anos de 1883 até 1914. O pensamento puritano
transformou a América em terra prometida, povoada por predestinados eleitos por Deus, com o intuito de
propagar suas leis de maneira justa e igualitária. A união dos diversos povos que desembarcaram nos Estados
Unidos e as suas qualidades cristãs fomentaram o sentimento de grandeza e superioridade, que formou a
identidades da nação. Convictos dessa ideia e fielmente absortos em sua predestinação no novo mundo, os
governantes posteriores fizeram disso seus projetos de administração e expansão territorial, encontrando
uma legitimação para não aceitar normas ou qualquer disposição referente ao Direito Internacional.
(BANDEIRA, 2005, p. 28-29).
Não bastasse todo o conjunto interno desenhado, a atmosfera internacional facilitou o avanço
estadunidense, pois o término da primeira guerra mundial e a consequente derrocada das principais
potências europeias, levou à reorganização geopolítica do globo. A inserção e crescimento de nações que
ainda possuíam fôlego econômico, foi substancial para impulsionar o comércio exterior, cenário que
possibilitou aos Estados Unidos mais visibilidade e crescimento internacional, tanto no âmbito econômico
quanto político, permitindo-os delegar sua soberania a diversas instituições, que passam a contar com um
cheque em branco frente ao cenário internacional (BANDEIRA, 2005, p. 29).
A convergência de interesses, e a soma de todos os ingredientes mínimos acima expostos, contribuiu
para o lançamento dos grupos ao mercado externo, procurando principalmente a expansão na América
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Latina, cujo território apresentava baixo desenvolvimento industrial, possuindo apenas uma rede limitada de
comércio com a Europa.
2. AS EMPRESAS: AMFORP E IT&T
A referida expansão, portanto, “contemplou” o Brasil com o aporte de empresas dispostas a investir
capital nos diversos ramos industriais e de serviços que se encontravam em uma lenta evolução, estagnando
qualquer perspectiva de desenvolvimento nacional. Tencionando reverter a situação apresentada, os serviços
que mais receberam investimentos estrangeiros, foram os setores de energia elétrica e comunicação, com o
aporte de empresas como a American & Foreign Power Company (AMFORP) e a International Telegraph &
Telephone (IT&T), respectivamente, que constituíram subsidiárias para atuação, a partir de grupos
empresariais de nacionalidade estadunidense.
Diante da formação das subsidiárias, fundamental discorrer acerca da natureza e do histórico
jurídico da formação dessas empresas. A AMFORP foi criada em 1924, com o intuito de gerenciar os
investimentos externos, que há muito já estavam sendo efetivados na América Central, pelo grande grupo da
General Electric a qual ela pertencia, bem como para adquirir empresas menores, que anteriormente tinham
uma produção e distribuição “independente” de energia, mas que após a aquisição, passaram a integrar o
todo (FERREIRA, SILVA, SIMONINI, 2012, p. 3).
Assim, a constituição externa da principal responsável pela energia elétrica do país era incluía a
General Electric, matriz e razão da Electric Bond & Share, subsidiária responsável pela eletrificação,
transportes, além de demais serviços como fornecimento de água e gás. Consoante já referido, após o maciço
investimento realizado na América Latina, restou formada a subsidiária AMFORP, que por sua vez adquiriu
diversas outras pequenas concessionárias de serviços para produzir e distribuir energia, dando andamento à
monopolização do setor.
O início de suas atividades no Brasil ocorreu a partir de 1920, embora os investimentos na América
Central fossem anteriores, pois já em 1917 a Bond & Share fixou suas bases no Panamá (FERREIRA, 2012, p.
4). Dez anos após começou a adquirir algumas concessionárias brasileiras, em uma sucessão (trocar termo –
braços) de pessoas jurídicas, com diferentes registros e regiões de atuação, mas todas com a mesma
finalidade e sob os olhares atentos da AMFORP. O princípio da subsidiariedade era necessário à medida em
que o número de aquisições aumentava e o dever de acompanhar diretamente as atividades crescia,
mantendo o caráter de subordinação à empresa matriz.
No Rio Grande do Sul, a AMFORP veio a adquirir em 1927, a Companhia de Energia Elétrica Riograndense (CEERG), com atuação exclusiva em Porto Alegre e região metropolitana, assim como a The Riograndense Light & Power Syndicate, em 1930, que operava na cidade de Pelotas. Juntas, as empresas
pertencentes à General Electric, com a gerência da AMFORP, controlavam cerca de 70% da capacidade de
energia elétrica no país (SILVA, 2015, p. 81).
Para compreensão da atuação da AMFORP, necessário verificar que apesar das várias razões sociais e
pessoas jurídicas por ela utilizada, a sua apresentação perante os consumidores se dava exclusivamente
através do nome da companhia adquirida, ou seja, o grupo mantinha o status “nacional” da empresa
subsidiária, que prestaria o serviço direto ao consumidor.
O nome da AMFORP, seu logotipo e slogan originais raramente apareciam no contexto brasileiro,
demonstrando a intenção de ocultar sua origem, bem como sua subserviência e convergência com os
interesses nacionais, para que não despertasse no brasileiro, seja o consumidor ou a própria classe política,
um sentimento negativo de apropriação indevida ou até mesmo inflames nacionalistas que pudessem
prejudicar o trabalho aqui realizado (FERREIRA, 2013, p. 7).
Por conseguinte, a implementação estrangeira no setor de comunicações e traduz de maneira mais
simples, no que concerne à constituição das empresas e gerenciamento do serviço. O setor era conduzido
pela IT&T, que pertencia a um dos maiores trustes dos Estados Unidos, o Grupo Morgan, que juntamente
com outros impérios financeiros, serviu de pretexto para o já citado Sherman Act (SILVA, 2015, p. 85).
Quando do início de suas atividades no Brasil, a empresa instalou a Companhia Telefônica Nacional (CTN),
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no ano de 1927 para atuação no Rio Grande do Sul, com funcionamento semelhante ao que já estava
acontecendo na Companhia Telefônica Brasileira, atuante no Rio de Janeiro e em São Paulo, subsidiária de
um grupo Canadense.
Embora de uma trajetória mais simples do que aquela verificada pela AMFORP, a IT&T foi
igualmente questionada no que se refere à prestação de seus serviços e remessa de lucros. As duas
concessionárias estavam sendo alvo de diversas reclamações dos consumidores, que eram alvo constante de
apagões, racionamentos de energia e contavam com precário serviço telefônico, com redes e instalações
obsoletas.
O descontentamento, que afetava igualmente a classe política, estava pautado desde o governo dos
interventores estaduais, motivando discursos na Assembleia Constituinte em 1947, além da formação de
comissões e grupos de trabalho com o intuito de analisar e fiscalizar a atuação das companhias. Por
consequência, a deficiente prestação do serviço levou o governo gaúcho ao maior ato nacionalista já
realizado, encampando sua concessão, retomando os serviços do setor e indenizando ao valor que acreditava
ser justo.
Esses atos exigiram do governo federal uma destreza e diálogo com o governo dos Estados Unidos,
que aliaram as medidas à ideia nacionalista e comunista, pelas quais faziam oposição ferrenha. Todavia,
esses atos do executivo foram motivados pelas circunstâncias vinculadas ao contrato de concessão, bem
como à insatisfação que se apresentava há anos nos diversos espaços da sociedade, sendo interrompida por
Leonel Brizola que assumiu a responsabilidade pelos atos e posterior prestação dos serviços pelo próprio
governo estadual.
CONCLUSÃO
Diante disso, podemos concluir que as companhias estadunidenses tiveram o incentivo necessário,
tanto do próprio governo onde foram constituídas, quanto do governo brasileiro, onde estavam estabelecidas
as subsidiárias e de onde receberam todo o incentivo para exploração dos serviços. Inegável que trouxeram
inúmeras vantagens e contribuíram para o desenvolvimento do setor industrial, com suas várias pessoas
jurídicas e se espalhando por todo o território nacional, comprometendo-se com as diretrizes e planos de
eletrificação, construindo as ferramentas necessárias para patrocinar o desenvolvimento do país.
Restou claro de que as companhias procuraram fazer grandes investimentos assim que aqui
chegaram, sendo interrompidas essas aplicações após a crise de 1929 havida nos Estados Unidos e que
tiveram consequências em todo o globo, com maior ou menor influência. Após a constituição de todas as
subsidiárias, com o prazo de contrato e a confiança estatal asseguradas, a exploração das concessões
prosseguiram até o decaimento dos serviços e a encampação dos mesmos.
A natureza jurídica das companhias e os contextos sociais que proporcionaram suas instalações, são
fatores indispensáveis para o entendimento dos atos de encampação realizados pelo governador Leonel
Brizola.
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A atuação internacional nos conflitos na antiga Iugoslávia
e a resistência do Kosovo
Leonardo Pires da Silva Bellanzon1
Resumo: Os conflitos internos da República Socialista Federativa da Iugoslávia, no contexto da crise do
socialismo no Leste da Europa, somados à crise política e econômica a que país estava submetido levaram-no
a se desintegrar formando novos países independentes na Península Balcânica. No processo de
independência das repúblicas que compunham a Federação houve o desencadeamento da Guerra da Bósnia,
considerado o conflito mais violento na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em que
nacionalistas da Sérvia e da Croácia promoveram um massacre contra bósnios muçulmanos. A intervenção
internacional para a pacificação do conflito foi feita por intermédio de organismos como a Organização das
Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que, entre outras ações,
enviaram tropas para as chamadas “zonas de segurança”, estabelecidas em regiões do território bósnio com o
objetivo de proteger a população muçulmana da violência a ela dispensada. O Kosovo, assim como a região
de Vojvodina, no norte na Sérvia, conquistou sua autonomia, mas, encontrou resistência do governo
iugoslavo quanto à sua independência resultando em tensões e conflitos naquela região. Com a colaboração
da ONU e da OTAN intervindo nos conflitos e nas negociações de paz, a resistência kosovar levou a então
província a declarar sua independência em 2008. Contudo, o reconhecimento do Kosovo ainda é limitado,
uma vez que a Sérvia não o considera um país, mas, apenas uma província autônoma. Este trabalho busca
analisar os conflitos que envolveram toda a região da antiga Iugoslávia durante a segunda metade da década
de 1990 e o início dos anos 2000, bem como a resistência e luta por autodeterminação e independência do
povo kosovar e ainda observar alguns aspectos da forma como a comunidade internacional reagiu aos
conflitos da região e como se deu a sua atuação no processo de pacificação.
Contexto político-social da Iugoslávia das décadas de 1980 e 1990
A Iugoslávia Socialista foi estabelecida ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, na região dos
Balcãs, no sudeste da Europa. A federação era composta pela união das repúblicas da Eslovênia, Croácia,
Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Montenegro, Macedônia e Kosovo. A crise do socialismo no Leste da Europa,
juntamente com as crises internas da Iugoslávia, levaram o país à desintegração no início da década de 1990
(KIRKPATRICK, 2007). Os conflitos étnicos e religiosos protagonizados por sérvios, croatas e bósnios,
durante o processo de independência da Bósnia-Herzegovina, resultaram na promoção de uma limpeza
étnica contra a população muçulmana daquele país. O confronto mais expressivo no processo de
desintegração da Federação Socialista, foi a Guerra da Bósnia, considerada como o mais violento conflito na
Europa desde o fim da Segunda Guerra (1939 – 1945).
A década de 1980, na Iugoslávia, foi marcada pelo agravamento de uma crise econômica iniciada em
meados da década anterior e pelo ressurgimento de tensões motivadas por sentimentos nacionalistas. Em
1980, foi aprovada uma constituição que tinha entre seus objetivos unificadores, promover a rotatividade
entre os governantes da Iugoslávia, para garantir que todas as repúblicas – ou etnias – tivessem um
representante à frente da administração do país a cada período legislativo. Entretanto, sem a figura de Josip
Broz Tito, presidente e principal líder iugoslavo que faleceu naquele mesmo ano, e com a economia iugoslava
se deteriorando os desejos de independências se intensificaram.
Os sérvios, com presença expressiva também na Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Croácia, se
mostraram o grupo mais radical na expressão de seu nacionalismo. Com o desejo de formar a “Grande
Sérvia” - projeto expansionista que pretendia transformar em território de domínio sérvio grande parte da
Graduado em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História (PPH)
da mesma universidade, na linha de História Política.
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região que compunha a Iugoslávia - não aceitavam que as demais repúblicas da federação se tornassem
independentes. Entretanto, não houve objeção dos sérvios, tampouco das demais nacionalidades, quando,
em 1991, a Macedônia proclamou a sua emancipação após referendo realizado com a população, e sem
conflitos. Em junho daquele ano a Eslovênia conseguiu separar-se da Iugoslávia por meio de um breve
enfrentamento armado, mas sem muitas perdas humanas. A Croácia declarou a sua independência no
mesmo período em que a Eslovênia, porém a resistência sérvia foi maior e mais incisiva, contando com o
apoio da comunidade servo-croata, o que resultou em um conflito que só teve seu encerramento seis meses
depois, no décimo quarto pedido de cessar-fogo da comunidade internacional (ALVES, 2013).
Naquele momento das tensões nos Bálcãs, acredita-se que a interferência internacional, na tentativa
de resolver o conflito, acabou por acentuar a violência desencadeada pelos sentimentos nacionalistas e
desejos de controle sobre áreas do território da antiga Iugoslávia (WOODWARD, 2008). Nos meses que se
seguiram, houve o estabelecimento da República Srpska, na região da Bósnia-Herzegovina onde a presença
de sérvios era maciça. A milícia sérvia presente em território bósnio contava com o apoio de milícias
montenegrinas e do exército iugoslavo, da mesma forma, forças paramilitares croatas também se fizeram
presentes nas regiões da Bósnia onde aquele grupo era maioria, enquanto os bósnios, sem armamento
equivalente e sem contingente suficiente, estavam encurralados (BOSE, 2007). Segundo a antropóloga
Andréia Carolina Schvatz Peres (2011), calcula-se que vinte mil mulheres e meninas bósnias tenham sido
violentadas sexualmente. Muitas delas eram mantidas presas quando engravidavam, para que não
abortassem e assim os soldados garantiam a descendência sérvia ou croata, e com o assassinato dos homens
bósnios, reduziriam o índice de natalidade do grupo bosníaco. Este termo foi empregado posteriormente
para diferenciar bósnios de outras religiões, dos bósnios muçulmanos.
Este trabalho realiza apontamentos acerca da atuação internacional para a pacificação do conflito,
bem como a resistência do Kosovo, província sérvia cuja maioria da população é de origem albanesa e
também sofreu repressões ao longo do período de desintegração da antiga federação iugoslava. A pesquisa é
realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) –
Código de financiamento 001.
A atuação internacional
Deve-se observar que uma das primeiras medidas tomadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNU), logo após a eclosão dos conflitos de independência da Eslovênia e da Croácia, foi a emissão da
Resolução 713, em 25 de setembro de 1991, que versava sobre o embargo à Iugoslávia.
[...] de acordo com o capítulo VII da Carta das Nações Unidas, todos os Estados
devem, com o propósito de estabelecer a paz e a estabilidade na Iugoslávia,
implementar imediatamente um embargo geral e completo a todas as remessas de
armamentos e equipamento militar a Iugoslávia até decisão em contrário do
Conselho de Segurança, precedida de consulta entre o Secretário-Geral e o Governo
da Iugoslávia.
A intenção era criar condições para que a Iugoslávia conseguisse resolver seus problemas internos,
no que tangia às questões das independências e conflitos nacionalistas. A mesma Resolução apelava para que
não houvesse interferência de outros países nos conflitos iugoslavos, pois o CSNU entendia que a situação
deveria ser resolvida pela própria federação, por se tratar de um problema interno.
Por meio da Conferência Internacional para a Antiga Iugoslávia (em inglês, The International
Conference on the Former Yugoslavia - ICFY), foi elaborado pela Comunidade Europeia juntamente com a
ONU o plano Vance-Owen, proposto em janeiro de 1993 e que definia a divisão do Estado bósnio em nove
cantões, três para cada nacionalidade, e com Sarajevo sendo um distrito internacionalmente administrado
(GUIMARÃES, 2012). Bosníacos e bósnios croatas aceitaram a proposta do plano, pois receberiam mais
território do que possuíam naquele momento, mas por serem obrigados a abrir mão de partes dos territórios
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sob seu domínio, os servo-bósnios se opuseram ao plano. A partir daí houve a intensificação do conflito.
Bósnios croatas tentaram dominar os territórios que seriam seus, de acordo com o plano Vance-Owen,
realizando a expulsão das demais etnias destas regiões e os servo-bósnios aumentaram a ofensiva no enclave
bosníaco de Gorazde (APOSTOLOVA, 1994).
Segundo Karin Von Hippel (2004), a Força de Paz das Nações Unidas (em inglês United Nations
Peace Force – UNPROFOR) inicialmente instalada na Croácia para a desmilitarização das milícias locais,
durante o processo de independência, teve tropas deslocadas para a Bósnia em meados de 1992. A princípio,
a tarefa da UNPROFOR era apenas a manutenção de ajuda humanitária e observação das forças
combatentes, mantendo-se imparcial.
No início de 1995, os servo-bósnios demonstraram os primeiros sinais de seu enfraquecimento,
tendo sob seu comando uma área territorial maior do que podiam administrar. Contribuindo ainda para a
redução da força da República Srpska, os bosníacos, com o apoio dos bósnios croatas, aumentaram seu poder
bélico e assim passaram a enfrentar e combater as forças servo-bósnias (WOODWARD, 2008). Nesse
processo, o comandante Ratko Mladic organizou uma ofensiva às zonas de segurança de Zepa, Gorazde e
Srebrenica em julho daquele ano. Apenas Gorazde não foi tomada na investida, enquanto Zepa e Srebrenica
foram dominadas pelos servo-bósnios de Mladic (ALVES, 2013). No dia 11 de julho, as forças da República
Srpska promoveram o massacre de Srebrenica, que deixou aproximadamente oito mil homens e meninos
muçulmanos mortos. Em agosto de 1995, o CSNU autorizou a OTAN a bombardear posições da República
Srpska, no que ficou conhecido como Operação Força Deliberada. No dia 30, a região de Gorazde foi
bombardeada para impedir que Mladic a tomasse, e o resultado alcançado foi o esperado: o comandante
abriu mão da localidade (ALVES, 2013).
João Marques de Almeida (2003), afirma que a autoridade nas questões de segurança foi passada da
ONU para a OTAN em 20 de dezembro de 1995. A Força de Implementação (IFOR) estabelecida pela
organização contou com 60 mil homens que substituiriam a UNPROFOR, e no âmbito da segurança pública,
seria a última autoridade na interpretação e prática de assuntos militares, sem interferência de civis nas
decisões táticas.
A ação da OTAN na Bósnia-Herzegovina teve, entre seus objetivos, ajudar o país a estruturar-se nas
questões de defesa. A SFOR, além da manutenção da paz, ajudou na criação das forças armadas bósnias e na
formulação de uma política de segurança nacional (ALMEIDA, 2003). No que tangia a questões
humanitárias, a OTAN ajudou na atuação da ACNUR, que foi muito delicada. Estimava-se que no início de
1996 havia um milhão e duzentos mil refugiados na Bósnia, e o Tratado de Paz garantia-lhes o direito de
retornar às suas casas, contudo havia muito ressentimento por partes dos grupos étnicos do país (BIEBER;
GALJIAS; ARCHER, 2014). Antes da Guerra, na Bósnia-Herzegovina, esses grupos conviviam pacificamente
e os casamentos interétnicos eram comuns. Com o ódio incitado durante o conflito, as relações entre os
grupos tornaram-se hostis. A paz e a segurança foram reestabelecidas na Bósnia-Herzegovina, os refugiados
tiveram seu direito de regresso garantido, construíram-se novas instituições políticas e as atividades
administrativas foram retomadas, entretanto, o país ainda almeja alcançar o principal objetivo do Acordo de
Dayton: a construção de uma Bósnia multiétnica, democrática e desenvolvida
O caso do Kosovo
O Kosovo foi libertado do domínio do Eixo, durante a Segunda Guerra Mundial, no outono de 1944, pelos
Partisans, mas, a população albanesa sofreu retaliação e foi criada uma administração interina cujos postos
foram ocupados por sérvios e montenegrinos, grupos minoritários na região. Em 1945, a recém-criada
assembleia do Kosovo e Metohjia aprovou uma resolução que reincorporava o território à Sérvia, com a
garantia de que haveria apoio econômico, político e cultural do governo popular da Iugoslávia. No mesmo
ano o Kosovo e a região de Vojvodina se tornaram províncias autônomas com direito a 25 cadeiras no
parlamento da federação, 15 para Vojvodina e 10 para o Kosovo (BISERKO, 2012). A política de fraternidade
e união entre os povos da Iugoslávia parecia funcionar para os outros grupos nacionais, Sonja Biserko (2012)
aponta que para o Kosovo e a população albanesa a situação não havia mudado. Os albaneses kosovares não
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acreditavam que uma Iugoslávia unificada lhes daria emancipação e eles continuariam sendo um símbolo de
dominação eslava, sobretudo sérvia. Ainda segundo Biserko, a população albanesa era vista com
desconfiança pelas autoridades porque poderiam ser uma espécie de espiões buscando informações para a
“pátria mãe” e, portanto, eram naturalmente suspeitos do que quer que fosse.
Pela constituição de 1974, Kosovo e Vojvodina foram estabelecidos como constituintes da federação
iugoslava e passaram a ter quase o mesmo status que as demais repúblicas que a constituíam. A partir de
1978 o nacionalismo kosovar se intensificou com a celebração do centenário do que seria o surgimento da
nação albanesa. Com o estreitamento dos laços culturais do Kosovo com a Albânia, os sérvios da região
sentiram-se subjugados, uma vez que eram os kosovares que decidiriam e conduziriam as relações políticas
da província. Àquela altura, as diferenças linguísticas também se tornaram um empecilho, afinal, muitos
sérvios jamais haviam aprendido albanês e isso fez com que muitos deles se mudassem do Kosovo
(PAVLOVIC, 2009). A partir de 1982, os meios de comunicação sérvios passaram a demonizar os kosovares,
acusando-os de terrorismo, estupro etc. Sonja Biserko (2012) aponta que a mídia sérvia foi responsável pela
incitação a uma histeria coletiva contra os kosovares justificando uma onda de violência contra os habitantes
do Kosovo de origem albanesa.
Durante o período de desintegração da Iugoslávia, as questões a respeito do povo kosovar e seus
desejos de independência foram deixados de lado pelo governo central da Iugoslávia. O Kosovo declarou sua
independência no final de 1990 e seu primeiro presidente foi o pacifista Ibrahim Rugova. Jasminka Udovicki
e James Ridgeway (2000), afirmam que após a independência houve um período de resistência “nãoviolenta” no Kosovo que durou até 1997. Segundo Jeanne Kirkpatrick (2007), isso se deveu ao fato de que as
atenções da Sérvia e da comunidade internacional se voltaram para os conflitos na Bósnia e toda energia e
esforços foram direcionados para a região, retirando a questão do Kosovo de suas agendas imediatas. Para
Biserko (2012) e Kirkpatrick (2007) as hostilidades sérvias contra o Kosovo foram retomadas em 1995, após
o acordo de paz de Dayton, que colocou fim à Guerra da Bósnia. Isso porque tal acordo não incluiu a questão
do Kosovo em seus debates, para que assim não dificultasse a negociação com o líder sérvio, Slobodan
Milosevic, uma vez que a prioridade era o fim do conflito na Bósnia-Herzegovina.
Em outubro de 1998, houve uma reunião entre os ministros de defesa do Conselho do Atlântico
Norte, que autorizaram ataques aéreos à Iugoslávia, na intenção de pressionar Milosevic a cumprir as
exigências das Resoluções nº 1160 e nº 1199, que estabeleciam as medidas pacificadoras citadas. Aguilar
(2003) afirma que a ofensiva teve efeito e Milosevic estabeleceu um acordo com o representante
estadunidense Richard Holbrooke, autorizando a interrupção dos ataques do exército iugoslavo no Kosovo e
o estabelecimento de uma missão de observação da OSCE (Organization for Security and Co-operation in
Europe) para a certificação de que o acordado estaria sendo cumprido. Aos poucos, milhares de refugiados
retornaram ao Kosovo e o Exército de Libertação do Kosovo (ELK) se desestabilizou após os conflitos com o
exército iugoslavo, ocorridos naquele mês (BISERKO, 2012).
A elite política sérvia estava descontente com os acordos de Milosevic e receberam o acordo entre ele
e Holbrooke com histeria, acusando-o de vender o Kosovo para permanecer no poder. A crítica mais feroz
entre os políticos sérvios veio do presidente do Partido Democrata Sérvio, Vojislav Kostunica, que afirmou
que o acordo Milosevic-Holbrooke deixaria o Kosovo fora do sistema legal da República Federal da
Iugoslávia, podendo ser interpretado como alta traição. Em contrapartida, havia aqueles que apoiavam o
acordo e acreditavam que ele poderia garantir a unidade da Sérvia e da Iugoslávia, além de prevenir a
federação de intervenção internacional, o que poderia desestabilizar o país politicamente (BISERKO, 2012).
No começo de 1999, mesmo com o acordo Milosevic-Holbrooke e as sanções da ONU contra a
Iugoslávia, as hostilidades e a violência ainda estavam presentes no Kosovo. O exército iugoslavo continuava
a invadir vilas e cidades kosovares matando os homens, estuprando as mulheres e espalhando o terror
(KIRKPATRICK, 2007). Uma reunião para negociar o estabelecimento da paz no Kosovo foi organizada em
Rambouillet, na França, em fevereiro de 1999. Estiveram presentes os representantes da Grã-Bretanha,
França, Estados Unidos, União Europeia, Rússia e da OSCE, que havia enviado observadores ao território
kosovar. Da mesma maneira foram convidados a OTAN, líderes kosovares albaneses e o presidente
Milosevic, que enviou um representante. O líder sérvio não se fez presente, porque como afirma Jeanne
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Kirkpatrick (2007), a OTAN estava em descrédito para ele. A autora cita três motivos pelos quais Milosevic
duvidava que a OTAN empregasse uma ofensiva por meio de ataques aéreos, como havia alertado que faria:
A organização não havia pressionado a Iugoslávia para que comparecesse à reunião como havia feito anos
antes, durante as negociações de Dayton, que puseram fim à Guerra da Bósnia; a OSCE ainda contava com
observadores civis desarmados em território kosovar, e para Milosevic a organização nãos os colocaria em
risco bombardeando o território; por fim, o presidente Clinton estava relutante em enviar tropas terrestres ao
Kosovo. Depois de semanas de debate, o acordo de Rambouillet falhou e não houve negociação de paz.
Esgotadas as tentativas de negociação, só restava uma única tentativa de estabelecer a paz: a guerra.
Os EUA e a OTAN concordaram em dar suporte ao Kosovo fornecendo armamento e empenhando ofensivas
contra o exército iugoslavo, da mesma forma que haviam feito com a Croácia e a Bósnia no início da década
de 1990. Havia a preocupação de que o envio de tropas para o Kosovo significasse a invasão de um Estado
soberano – no caso, a Iugoslávia – mas, o Grupo de Contato 2 havia decidido em Rambouillet que se fosse
para proteger os kosovares, não seria invasão. “A campanha nacionalista de Milosevic havia se tornado um
chocante reino de terror direcionado aos kosovares civis, incluindo crianças” (KIRKPATRICK, 2007, p.258).
Os bombardeios à região se iniciaram no final de março de 1999, ativando o que ficou conhecido
como Operação Força Aliada. Por mais de setenta dias diversos pontos da região foram castigados pelos
bombardeios da OTAN, incluindo a capital sérvia, Belgrado, a kosovar, Pristina, e a montenegrina,
Podgorica. Os ataques realizados tanto por aviões, quanto por mísseis disparados por navios posicionados no
Mar Adriático, atingiram alvos estratégicos, como prédios da administração do governo. Estradas, ferrovias e
aeroportos foram destruídos pelos ataques. Milhares de pessoas foram mortas e outras tantas fugiram da
região e apesar da violenta ofensiva a Iugoslávia continuava resistindo. Milosevic conquistou o poder a partir
do discurso em defesa das minorias sérvias, dessa forma, sabia que a mobilização da opinião pública poderia
ser um trunfo a seu favor e sua estratégia foi tentar sensibilizar a opinião pública internacional. A
propaganda sérvia tratou de mostrar ao mundo os erros dos ataques da OTAN, como imagens de civis mortos
em ataques aéreos e bombardeios e o problema dos refugiados, causado pela guerra em território sérvio e
kosovar (AGUILAR, 2003).
Após o fim da guerra no Kosovo, as ações de intervenção internacional foram no sentido de prover o
mínimo de estabilidade política, econômica e social para a região. Os organismos presentes no Kosovo
trataram de questões como garantir a retomada da autonomia da então província, estabelecer termos e
regulamentação para que a economia e a política pudessem caminhar também de forma autônoma, da
mesma forma que a justiça. Outro esforço foi no sentido de tornar viável a coexistência de outros grupos
étnico/nacionais, como sérvios e montenegrinos, no território kosovar. Esse foi um objetivo que sempre
esteve presente nas intervenções internacionais nos países da antiga Iugoslávia, uma vez que, ancestrais ou
produzidos na contemporaneidade, os ódios entre os grupos nacionais que compuseram a Iugoslávia, de fato
existiram. Em fevereiro de 2008, o Kosovo declarou sua independência da Sérvia, contudo a minoria sérvia
boicotou a declaração. Mais de cem países, como Alemanha, Itália, França, Croácia e Montenegro já
reconheceram sua independência, entre as exceções estão a Sérvia, a Rússia e o Brasil.
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Nacionalismos e genocídio – o fim da Iugoslávia
Leonardo Pires da Silva Bellanzon1
Resumo: Historicamente uma parte significativa dos povos que fizeram parte da antiga Iugoslávia em seu
período socialista (1945-1991), possui uma mesma origem étnica: são eslavos. Contudo, ao longo de sua
história aquela porção da península balcânica, no sudeste da Europa, esteve sob o domínio de diversos povos
e impérios que contribuíram para a formação cultural das populações locais, influenciando nas religiões
praticadas, nos costumes e nos idiomas, acentuando as diferenças entre os grupos nacionais. Quando a
federação socialista da Iugoslávia se formou, povos que não se reconheciam como uma mesma nação tiveram
suas autonomias suprimidas em favor de interesses supranacionais, que buscaram manter coesa a federação
que congregava os povos da Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Kosovo, Montenegro e
Macedônia. Sob o comando do Marechal Tito, líder político que governou o país desde sua formação até sua
morte, em 1980, as diferenças e agitações nacionalistas foram administradas. Ao longo da década de 1980, os
sentimentos nacionalistas voltaram a dar o tom das relações entre as repúblicas iugoslavas gerando conflitos
que levaram o país à sua desintegração na década de 1990. Juntamente com as declarações de independência
veio a escalada da violência na região que fez ressurgir a perseguição a grupos específicos, trazendo à cena
dos conflitos políticos europeus o genocídio. Este trabalho discute elementos acerca dos nacionalismos, da
violência, do genocídio e da reorganização geopolítica naquela região europeia, na última década do século
XX.
Palavras-chave: Nação; Nacionalismos; Iugoslávia; Conflitos.
Os conceitos de Nações e Genocídio e o nacionalismo na Iugoslávia dos anos 1990
Ao longo da década de 1990 diversos conflitos de caráter político, religioso ou étnico, nos permitiram
observar algumas mudanças na organização do espaço geopolítico de alguns países e regiões ao redor do
globo. No sudeste europeu, a região dos Bálcãs foi um dos palcos desses conflitos que geraram guerras civis,
resultando na emergência de seis novos Estados soberanos, a partir da dissolução da República Federativa
Socialista da Iugoslávia, entre eles a Bósnia-Herzegovina.
O território faz fronteira com a Croácia, a Sérvia e com Montenegro e, apesar de sua proximidade
com o Mar Adriático, não possui costa marítima. A diversidade étnico-cultural da região permitiu que
diversos povos coabitassem a Bósnia, resultando em uma miscigenação de sua população. O idioma bósnio
tem grande proximidade com o croata e com o sérvio, sendo todas línguas eslavas, bem como o grupo étnico
que deu origem às nações balcânicas. Contudo, essa particularidade em relação a seus vizinhos, foi também o
principal motivo dos conflitos ocorridos após sua independência. As diferenças entre os principais grupos da
região, como religião e nacionalidade, foram acentuadas como medida de reafirmação das individualidades
de cada grupo. A pesquisa é realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001.
Conforme sugere Eric Hobsbawm (2013), as definições dos conceitos de nações e nacionalismos se
originaram por volta do século XVIII e, ao longo do tempo, sofreram modificações de acordo com o momento
histórico e o contexto em que se inseriram. Ao longo do século XX, os mapas geopolíticos de todos os
continentes, se modificaram. Colônias se tornaram independentes, reinos e impérios se dissolveram
permitindo o surgimento de novos Estados, países que se reagruparam em uma única federação, federações
se desintegraram, e muitas dessas situações tiveram como principal motivador os nacionalismos. O
surgimento de novas nações e os sentimentos nacionalistas que permitiram às suas populações reconhecer-se
Graduado em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História (PPH)
da mesma universidade, na linha de História Política.
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enquanto tal viabilizou, por exemplo, aos países colonizados, a luta por sua autonomia e independência. O
nacionalismo exacerbado e muitas vezes motivado pelo ódio inter-étnico promoveu conflitos e massacres a
populações inteiras. Na década de 1990, a Europa foi palco destes massacres e vimos ressurgir os campos de
trabalho forçado, de estupro, a promoção do genocídio e limpeza étnica (AGUILAR, 2003; ALVES, 2013).
Nos Balcãs, populações que haviam convivido de forma relativamente pacífica por mais de trinta anos, sob o
estandarte de um mesmo Estado, declararam guerra umas às outras em defesa de um território nacional,
buscando estabelecer a primazia de sua nação e sua superioridade sobre as demais.
Se considerarmos idioma, religião e cultura como promotores de uma consciência “nacional”, o que
leva um suíço francófono católico a se identificar com um protestante de língua alemã e se reconhecerem
como uma mesma nação suíça? Se território – um Estado – for levado em consideração, por que esse
sentimento não foi desenvolvido entre bósnios e sérvios, na antiga Iugoslávia, ou entre tutsis e hutus em
Ruanda? Partindo de uma discussão teórica sobre as definições dos termos “nação” e “nacionalismo”,
buscaremos observar o que apontam historiadores representativos acerca do assunto e pensar o caso da
Iugoslávia, considerando o que pode ser aplicado a este caso e os pontos que convergem ou divergem
daqueles apontados pelos autores analisados.
Em 1945, com o fim da Segunda Guerra, por meio da recém-fundada Organização das Nações
Unidas, os Aliados instituíram um tribunal militar internacional, na cidade de Nuremberg, na Alemanha,
para julgar os crimes cometidos pelos nazistas contra a humanidade. Embora a ideia de soberania de um
Estado impedisse que outros países interferissem em questões internas e no tratamento dispensado a seus
cidadãos, as lideranças europeias e estadunidenses passaram a considerar que este tratamento também fosse
um indicador de como aquela nação se comportaria em relação a seus vizinhos. Gradativamente, o tribunal
de Nuremberg passou a enfraquecer a couraça do Estado, ao levar a julgamento autoridades europeias por
crimes cometidos contra seus próprios cidadãos, deixando implícito a possíveis futuros perpetradores de
atrocidades que já não lhes caberia como defesa o apoio de seus governos ou as fronteiras de suas nações.
Raphael Lemkin, advogado judeu polonês, foi o principal responsável pela campanha para que o
termo “genocídio” fosse incorporado ao vocabulário dos promotores de Nuremberg e assim disseminá-lo e
empregá-lo no direito internacional. Até aquele momento (1946), o termo utilizado era “crimes contra a
humanidade”, que havia sido utilizado para condenar os turcos, durante a Primeira Guerra, pelo
aniquilamento da população armênia. Lemkin, que perdera parte de sua família no Gueto de Varsóvia e em
campos de concentração nazistas, durante a perseguição aos judeus, empenhava-se em popularizar o termo
para que o crime fosse caracterizado e assim proibi-lo. Ao falar sobre os esforços do advogado polonês,
Samantha Power (2004) escreve:
A guerra, obviamente, matou mais indivíduos na história que o genocídio e também
deixa os sobreviventes permanentemente marcados. Mas Lemkin argumentou que
quando um grupo era alvo de genocídio – sendo efetivamente destruído em sua vida
física ou cultural – a perda era irreparável. Mesmo os indivíduos que sobrevivem ao
genocídio ficam para sempre destituídos de uma parte inestimável de sua identidade.
Em fins de 1946, em uma das primeiras reuniões da Assembleia Geral da ONU, enquanto Raphael
Lemkin tentava efetivar seu projeto de incorporação da palavra genocídio ao vocabulário jurídico, uma
alternativa ao termo foi proposta por alguns participantes, sendo substituído por “extermínio”. Contudo, com
a insistência de Lemkin e com o apoio que já havia angariado, a proposta foi rejeitada, pois se acreditava que
a definição do advogado polonês era mais abrangente e indicava a destruição cultural separadamente da
destruição física dos grupos humanos, impelindo os Estados a reagirem antes que tal processo de destruição
fosse concluído. Em dezembro, uma resolução foi aprovada por unanimidade condenando o genocídio como
a negação do direito de existência a grupos inteiros, que revolta a consciência da humanidade e é contrária à
lei moral e ao espírito e objetivos da ONU.
O Comitê Jurídico da ONU realizou a Convenção do Genocídio em agosto de 1948, em Genebra, na
Suíça. Lemkin esteve presente e continuou sua campanha para ver formalizadas as diretrizes que tipificavam
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o crime. O rascunho aprovado na ocasião e submetido à Assembleia da Geral, foi aprovado no dia nove de
dezembro daquele ano e definia como genocídio:
Qualquer um dos seguintes atos cometidos com o intuito de destruir, no todo ou em
parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, dos seguintes modos:
A.
Matando membros do grupo;
B.
Causando grave dando físico ou mental aos membros do grupo;
C.
Infligindo deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para
acarretar sua destruição física no todo ou em parte;
D.
Impondo medidas destinadas a impedir nascimentos no grupo;
E.
Transferindo à força crianças do grupo para outro grupo. (POWER, 2004.
p.83)
A partir de então, a interferência dos países signatários da convenção, caso algum Estado estivesse
permitindo ou promovendo genocídio contra a sua população, tornou-se uma exigência. Estes países ficaram
responsáveis por tomar providências para prevenir, suprimir e punir o crime. Aquela convenção tornou-se a
primeira ocasião em que a ONU adotou um tratado de direitos humanos.
Samuel Guimarães (2008) conceitua nacionalismo, afirmando que a ideia de superioridade de uma
nação sobre outras tem origem na concepção de que divindades teriam escolhido um povo – nação – como
eleito. É o caso do povo judeu, por exemplo, cujas consequências políticas são observadas até o hoje no
Oriente Médio. Outro exemplo, citados por Guimarães, é o caso japonês, em que o Imperador era
considerado Filho do Sol e, portanto, o elo entre o povo japonês e uma divindade suprema. Contudo, Eric
Hobsbawm (1995) chama a atenção para a dissociação da identificação de grupos da ideia de nacionalismo,
para que não se confundam os termos.
Ao trabalhar diretamente com os conceitos de nação e nacionalismo, Hobsbawm (2013) acredita que
as tentativas de definições dos termos “nação” e “nacionalismo”, são insatisfatórios, sobretudo quando são
simplificados como questões relativas apenas a idioma ou etnia, ou em uma combinação de critérios como
idioma, território, história e traços culturais comuns. Para o autor, o que define esses conceitos é algo mais
complexo e dinâmico que isso e afirma não considerar “nação” como uma entidade social originária ou
imutável, mas como algo pertencente a um período particular e historicamente recente. Concorda com as
ideias de Ernest Gellner, ao associar o surgimento de nações à existência de um Estado-nação e considera
que são os Estados que formam as nações e os nacionalismos, e não o contrário, porém, o já citado caso do
povo judeu é uma exceção a este modelo, uma vez que o nacionalismo judaico já se colocava como elemento
identitário, mesmo com a diáspora judaica e antes do estabelecimento de um Estado judaico - Israel.
Hobsbawm (2013) comenta ainda que as nações surgem no contexto de um estágio particular de
desenvolvimento econômico e tecnológico.
(...) as nações são, do meu ponto de vista, fenômenos duais, construídos
essencialmente pelo alto, mas que, no entanto, não podem ser compreendidas sem
ser analisadas de baixo, ou seja, em termos das suposições, esperanças,
necessidades, aspirações e interesses das pessoas comuns, as quais não são
necessariamente nacionais e menos ainda nacionalistas. (2013, p.19).
O autor vê a constituição do termo “nação” como dual, por acreditar que as ideologias oficiais do
Estado não são, necessariamente, representações daquilo que está na mente dos cidadãos e que suas
identidades nacionais não se esgotam em si mesmas, mas advêm de um conjunto de outras identificações que
estruturam o ser social, e afirma acreditar ainda que os fatores que implicam na identificação nacional
podem mudar e se deslocar no tempo e no espaço (HOBSBAWM, 2013).
No tocante às manifestações nacionalistas do século XX, Hobsbawm acredita que houve em todo o
mundo um avanço do princípio da nacionalidade e que o apelo por uma comunidade imaginária da nação
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parece ter conquistado algum espaço. Na primeira metade desse século, sobretudo em razão das regiões
colonizadas, os movimentos por libertação e independência nacional, foram os principais agentes de
emancipação política de diversos países. Os movimentos observados ao final do século XX são
essencialmente separatistas e, portanto, buscam acentuar as diferenças étnicas, linguísticas e religiosas.
Entretanto, Hobsbawm (2013) atribui aos governos socialistas, principalmente no pós-Segunda Guerra, o
sucesso em governar países multiétnicos, limitando em seu interior os efeitos do nacionalismo, como foi o
caso da Iugoslávia socialista, sob o comando do Marechal Josip Broz Tito. Todavia, não podemos deixar de
considerar o caso da Espanha, cuja unidade multinacional foi mantida pelo governo cristão de direita do
General Francisco Franco e se manteve por mais de três décadas.
A revolução na Iugoslávia obteve êxito evitando que as nacionalidades no interior
de suas próprias fronteiras se massacrassem entre si, por um longo tempo das suas
histórias, e, apesar de essa conquista estar hoje infelizmente se desagregando, as
tensões nacionais, pelo final de 1988, ainda não tinham levado a uma única
fatalidade. (HOBSBAWM, 2013, p.239).
Michael Löwy (2000), assim como Hobsbawm, faz sua análise sobre o nacionalismo e o
internacionalismo a partir de uma perspectiva marxista. Afirma que o nacionalismo possuiu um caráter
paradoxal ao longo do século XX: serviu ao imperialismo e às forças reacionárias permitindo as investidas da
Primeira e da Segunda Guerra e justificando, como aparato ideológico, o massacre de armênios e judeus.
Contudo, teve papel de elevada importância no processo de libertação nacional e independência de povos
colonizados e, também, contribuiu para que alguns processos de revolução socialista ganhassem o apoio das
massas, como foi o caso da Iugoslávia.
Reconhece as dificuldades em se definir o que é nacionalismo e aponta, entre outras visões, a
proposta de Otto Bauer, onde cada nação possui um caráter nacional específico, sendo esta, antes de
qualquer coisa, “o produto de um destino histórico comum. (...) a nação não é apenas uma cristalização de
acontecimentos do passado, um ‘pedaço solidificado de história’, mas também ‘o produto jamais acabado de
um processo contínuo’.”. (LÖWY, 2000, p.77).
Corroborando o que diz Bauer, Löwy afirma que uma nação não pode ser definida apenas a partir de
critérios objetivos, mas fatores subjetivos, condições históricas, como perseguições, opressões e
discriminações também são importantes e devem ser considerados, embora apenas uma comunidade que
partilhe desses fatores pode ou não, se definir como uma nação.
Sobre o avanço dos nacionalismos no século XX, o autor afirma que uma análise possível é a de que
“o nacionalismo é uma ideologia burguesa e sua influência sobre as massas é uma das formas principais que
a dominação ideológica da burguesia toma nas sociedades capitalistas” (LÖWY, 2000, p.85). Entretanto,
reconhece que embora válida, essa afirmação não é suficiente para explicar a atração do nacionalismo. Para
se pensar em uma possibilidade menos reducionista, Löwy acredita que deva se levar em consideração as
condições materiais concretas e as tendências irracionais, como fanatismo religioso ou fascismo, pois
considera o nacionalismo uma ideologia irracional, uma vez que esta não consegue apontar um critério
racional que justifique a proeminência de uma nação sobre outras. Completa sua argumentação afirmando
ainda que
com muita frequência o nacionalismo não repousa sobre nenhuma realidade
histórica e cultural e simplesmente serve de ideologia oficial para Estados mais ou
menos artificiais, cujas fronteiras são o produto ocidental da colonização e/ou da
descolonização. (LÖWY, 2000, p.86).
Ernest Gellner (1997) inicia seu livro afirmando: “Fundamentalmente, o nacionalismo é um princípio
político que argumenta que deve haver congruência entre a unidade nacional e a política”. (GELLNER, 1997,
p.13). Para o autor, tal princípio pode ser violado quando, por interesses divergentes, os limites políticos e
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geográficos de um Estado não incluem toda a população que se identifica como uma mesma nação, ou
quando este Estado abriga igualmente uma comunidade nacional e outros grupos menores que não se
encaixam naquela comunidade. Há ainda a possibilidade de diversas nações coabitarem um mesmo Estado
de forma que nenhuma delas possa se definir como nação principal. Assim, o nacionalismo seria um ideário
de legitimidade política, cujo objetivo seria a estabilidade interna de um Estado, e que afirmaria que os
limites étnicos não deveriam se contrapor aos políticos (GELLNER, 1997). Gellner acredita que não há
espaço no mundo para que todos os grupos que se compreendem como nações, se autodeterminem como
unidades políticas autônomas e independentes.
O Estado tem legitimidade para manter a ordem social e possui agentes oficiais para garanti-la, como
a polícia e os tribunais. Segundo o autor, o problema do nacionalismo não surge em sociedades
desestatizadas, o que significaria que sem um Estado que determine os limites políticos do território, não há
reinvindicações nacionalistas por parte daqueles que habitam tal região. O surgimento dos nacionalismos
não teria ocorrido por ausência dessa unidade política ou por sua questionável legitimidade ou existência, e
sim pela sua presença e manifestação, com o poder centralizado, e por imposições políticas e morais como
norma. As nações, assim como os Estados, seriam uma possibilidade e não uma necessidade humana
universal e que o Estado teria surgido sem a ajuda da nação (GELLNER, 1997). Para que uma comunidade,
que eventualmente tenha se identificado como nação, se formasse e se mantivesse, Gellner apresenta duas
possibilidades de elementos catalisadores: a adesão voluntária, a identificação e a solidariedade, ou o medo e
a coerção.
O nacionalismo teria formado as nações, pois a partir do agrupamento e do desenvolvimento de uma
cultura comum, aqueles indivíduos teriam optado por conviver apenas com seus pares. Contudo essa nova
cultura comum ao grupo, seria resultado de uma compilação de elementos culturais herdados historicamente
(GELLNER, 1997). O autor acredita que nesse ponto seria possível “reviver” línguas mortas, inventar
tradições que restaurem essências originais completamente fictícias, e para ele o nacionalismo consiste da
imposição de uma cultura desenvolvida em detrimento de outras, o que implica na difusão de um idioma
mediado pela escola, revisto academicamente e que atenda a uma estrutura e conjunto de regras definidos
burocraticamente. Embora Gellner acredite que os nacionalistas neguem esse panorama de sobreposição de
culturas, ele afirma que, de fato, é o que se observa.
Benedict Anderson (2008) aponta que embora o nacionalismo tenha grande influência sobre o
mundo moderno, são escassas as teorias plausíveis sobre o assunto e não são suficientes, pois considera os
termos “nação, nacionalidade e nacionalismo” de difícil definição. Nem mesmo Hugh Seton-Watson,
considerado por Anderson o autor do melhor e mais abrangente texto sobre nacionalismo, consegue definir
de forma categórica os termos citados, mas acredita que o fenômeno existiu e continua a existir
(ANDERSON, 2008). Anderson parte da ideia de que nacionalidade e nacionalismo são produtos culturais
específicos e que é preciso que se compreenda sua origem histórica e suas transformações ao longo do tempo.
O autor propõe o significado de nação como “comunidade política imaginada”, que é limitada e ao
mesmo tempo soberana. É imaginada porque os indivíduos pertencentes a uma mesma nação jamais
conhecerão a totalidade de seus companheiros, mas ainda sim, reconhecem a comunhão existente entre eles.
Essa comunidade é limitada, pois, segundo Anderson, até mesmo a maior das nações possui fronteiras
finitas, para além das quais haverá outras nações. Esse grupo, que eventualmente se percebe enquanto nação
é imaginado como comunidade porque independente da hierarquia e desigualdade presentes nela, “a nação
sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal.” (ANDERSON, 2008, p.34).
No estabelecimento de estruturas organizadas como os estados nacionais, Anderson afirma que
enquanto estes são novos e históricos, as nações a que eles dão expressão política são originadas em um
passado imemorial, desta forma o nacionalismo não estaria alinhado a uma ideologia política, mas aos
grandes sistemas culturais que o precederam. Entre os elementos que levaram essas comunidades a se
agregar, o autor cita o idioma, sobretudo quando associado a uma cultura religiosa, como o cristianismo que
promoveu a difusão do latim no mundo cristão e islamismo que fez o mesmo com o árabe no mundo
muçulmano; os reinos dinásticos, que contribuíram na medida em que a sociedade organizada sob esta forma
de governo se reconhecia como parte do sistema; e a concepção da temporalidade em que a cosmologia e
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a história se confundem, e as origens do mundo dos homens são essencialmente as mesmas (ANDERSON,
2008). Contudo, com o declínio dessas convicções apresentadas por Anderson, o Capitalismo –
principalmente o editorial – emerge como fator responsável pela clivagem entre cosmologia e história.
O fim da Iugoslávia
Como resultado da crise econômica da segunda metade da década de 1970, no início dos anos 1980 o
índice de desemprego na Iugoslávia aumentou, e consequentemente houve queda no consumo e na produção
interna. No campo internacional, a Federação perdeu acesso a recursos financeiros disponíveis no mercado
internacional e viu sua dívida externa aumentar, sem que tivessem recursos para saldar seus compromissos.
A alternativa foi o corte de subsídios com o consequente aumento dos preços e da inflação.
A Comunidade Europeia e as organizações internacionais comportaram-se de
modo desastroso ao impor cronogramas de pagamentos e políticas de austeridade,
que levaram o país à beira do colapso. As medidas financeiras impostas pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI) e a pressão do Ocidente obrigaram o governo a
aplicar algo em torno de 1/5 das receitas totais do país para pagamento de sua
dívida internacional. Os salários reais caíram 40% entre 1978 e 1983, e oscilaram
neste patamar no restante da década [...] Bancos e fábricas fecharam, greves e
passeatas tornaram-se rotina em todo o país. O governo ficou sem condições
inclusive de pagar seus soldados, acabando com sua última tentativa de manter o
federalismo. (AGUILAR, 2003, p.72).
Diante desta situação a Iugoslávia foi perdendo importância no cenário europeu. Sua posição
estratégica e sua função de “ponte” entre os blocos comunista e capitalista foram perdendo força na mesma
medida em que o próprio comunismo se enfraquecia no Leste Europeu. Jeanne Kirkpatrick (2007) afirma
que a queda dos regimes comunistas da Europa revelou oportunidades de autodeterminação por parte dos
vizinhos da Iugoslávia, na porção oriental do continente europeu, o que aos poucos encorajou os desejos
nacionalistas das repúblicas da Federação. Especialmente para o povo sérvio, que sempre manteve vivo o
desejo expansionista de formar a “Grande Sérvia”. A crise econômica acentuou as diferenças entre as
províncias mais ricas e as mais pobres, não havia um líder que, como Tito, conseguisse manter a federação e
nem uma ideologia que mantivesse a união. Esses pontos, levantados por Sérgio Aguilar (2003), somados aos
sentimentos nacionalistas dos povos de cada república que formava a Iugoslávia, levou alguns observadores a
crerem que a desintegração seria inevitável.
Slobodan Milosevic foi uma das figuras mais marcantes naquele momento da história da Iugoslávia,
por expressar abertamente seu nacionalismo. Político comunista sérvio e defensor de sua etnia, em duas
ocasiões, em 1987 e em 1988, quando líder do Partido Comunista Sérvio, hostilizou a comunidade albanesa
do Kosovo. No primeiro momento, durante uma manifestação que acontecia na região, dirigiu-se aos sérvios
dizendo que jamais alguém iria maltratá-los, em alusão aos albaneses kosovares (AGUILAR, 2003) no ano
seguinte prometeu que faria a Sérvia unificada novamente, retirando a autonomia do Kosovo e de Vojvodina,
e controlando os votos das duas províncias (KIRKPATRICK, 2007). Eleito presidente da Sérvia em 1989,
Milosevic passou a controlar a mídia e a fazer propaganda contra croatas, agitando os nacionalistas daquela
república, como o político e ex-Partisan, Franjo Tudjman. Ao assumir a presidência da Croácia, em 1990,
Tudjman também passou a hostilizar os sérvios que viviam em seu país, expulsando-os da polícia e da
administração civil, sob a justificativa de que estes cidadãos poderiam representar alguma ameaça à Croácia,
com o projeto da “Grande Sérvia”. A partir de 1987 a Eslovênia também passou a demonstrar seu desejo de
independência, afirmando que a situação da república estaria melhor fora da Federação Iugoslava. Tais
demonstrações também podiam ser observadas na Bósnia-Herzegovina e na Macedônia, apenas Montenegro
não se opunha a manter-se unido à Sérvia.
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A partir de 1990 as tensões se acirram e iniciam-se os processos de independência. Em fevereiro
daquele ano, o partido comunista esloveno se emancipa da Liga da Iugoslávia e nas eleições, o presidente do
Partido Democrata Cristão, Lojze Peterle, torna-se o Primeiro-Ministro, enquanto o comunista Milan Kucan
assume a presidência do país. Diante da recusa de Belgrado – capital da Sérvia e sede do governo Iugoslavo em reconhecer a soberania da república eslovena, Peterle e Kucan convocam um referendo para saber se a
população era a favor de uma Eslovênia “soberana e independente”. Mesmo proibido pela Iugoslávia, o
referendo ocorreu em dezembro de 1990 e o “sim” teve 88,5% dos votos. A independência foi marcada para
25 de junho de 1991. Na tentativa de impedir que isso acontecesse, a Sérvia entra em guerra com a Eslovênia,
mas devido a pouca presença de sérvios naquela república, o conflito durou apenas dez dias e teve um saldo
de 45 mortes, sendo a maioria por parte do exército iugoslavo.
Jacques Sémelin (2009) analisa como o nacionalismo extremo, observado nos Bálcãs, foi sendo
construído e disseminado, e a maneira como os bósnios, especialmente os muçulmanos, foram sendo
classificados como inimigos dos sérvios e dos croatas, por meio de uma propaganda xenofóbica. A ideologia
contida em discursos que intencionalmente bestializavam o grupo que se pretendia dominar – os bósnios –
pode ser compreendida como um elemento que impulsionou o massacre. A concepção de identidade dá-se
pela percepção da diferença, por isso, embora sejam povos eslavos, os croatas, sérvios e bósnios ainda hoje se
considerem grupos distintos. A influência das culturas romana, bizantina e árabe; o catolicismo romano, o
cristianismo ortodoxo e o islamismo, são elementos que construíram as identidades daqueles grupos e que os
diferencia de forma objetiva. O autor afirma ainda que Freud acreditava que embora os homens fossem
semelhantes, haveria neles uma necessidade de se exagerar a importância de pequenas diferenças, e que
acabaria por gerar hostilidade (SÉMELIN, 2009).
A análise que Sémelin (2009) faz da construção do “inimigo”, afirma que por meio de um discurso
inicial sugere-se que determinado grupo seria o motivo do flagelo de uma nação. Pouco a pouco esse discurso
se encorpa e encontra respaldo na população, de modo geral, fazendo com o que o “indesejável” seja
facilmente identificado e rejeitado, aumentando a hostilidade e justificando a violência empregada contra
esse grupo, por aqueles que incorporam o discurso. O ápice desse processo é quando a eliminação física desse
grupo passa a ser apreendida como uma medida necessária para uma limpeza ou purificação da nação.
Aqueles que se pretendiam neutros, não apoiando o discurso de ódio contra determinados grupos, tampouco
se manifestando em defesa destes, acabam se tornando coniventes com a situação, logo, possuem sua parcela
de culpa por permitir que tais medidas sejam aplicadas. Assim como os judeus foram estigmatizados na
Alemanha nazista e considerados indesejados e passíveis de eliminação física, religiosa e cultural, os bósnios
também o foram, por parte da Sérvia nacionalista, da década de 1990.
O modelo de processo utilizado pela Eslovênia foi seguido nas demais repúblicas. Em fevereiro de
1990 a Croácia realizou a eleição presidencial que levou Franjo Tudjman ao poder. A Igreja Católica apoiou a
União Democrática Croata, partido do presidente eleito, e a diáspora croata nos Estados Unidos e no Canadá,
também ajudou a financiar a campanha. Como a presença de sérvios era mais significativa nesta república, a
resistência também foi maior. Os sérvios da região da Krajina, na fronteira com a Bósnia, proclamaram-se
região autônoma através de plebiscito e a região passou a ser protegida por uma milícia que expulsou a
polícia croata da região. Warren Zimmermann, embaixador dos Estados Unidos, observou que a hostilidade
croata aos sérvios era sistemática e com conivência das autoridades omissas, desta forma o embaixador
recomendou que Washington não atendesse ao pedido de assistência técnica da polícia de Zagreb, capital da
Croácia, para não aumentar o poder de repressão croata (ALVES, 2013). Em maio de 1991, a Croácia
organizou referendo e 92% dos votos foram a favor da separação total da federação. A Comunidade
Econômica Europeia (CEE) tentou intervir e pediu para que a Croácia e a Eslovênia adiassem em três meses
suas independências, alegando que o próximo presidente da Iugoslávia seria um croata, segundo o sistema de
rodízio de etnias no poder da federação, mas o pedido não foi atendido e a Croácia proclamou sua
independência junto com a Eslovênia em junho de 1991.
Branislav Radeljic (2012) afirma que a mídia local e internacional encorajou e apoiou os conflitos
internos da Iugoslávia, colaborando para a representatividade de croatas e eslovenos no desejo de conquistar
suas independências. Apesar de a Sérvia estar diretamente envolvida no conflito, a mídia local não produzia
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notícias com as mesmas informações e teor que a mídia ocidental. Isso porque havia o controle da mídia, por
Milosevic. A religião como fator a ser considerado no processo de desmembramento, pode ser observada a
partir do momento em que as igrejas tornam-se uma importante ferramenta de propaganda nacionalista,
afirma o autor. A Igreja Ortodoxa Sérvia apoiava abertamente o expansionismo sérvio, enquanto a Igreja
Católica, com forte presença na Eslovênia e a na Croácia, foi fundamental na defesa dos interesses desses
países. O Vaticano foi responsável por levar muitos países ocidentais a reconhecerem essas independências
A agitação dos servo-croatas aumentava e a Guarda Nacional Croata não conseguiria conter a
situação devido às suas deficiências de treinamento e equipamento. O Exército iugoslavo já tinha sido
orientado a invadir as regiões sérvias da Croácia e em resposta, o presidente Tudjman mobilizou o país para a
“Guerra de Libertação”. O conflito durou seis meses e teve quatorze pedidos de cessar-fogo por parte da
comunidade internacional, o último sendo efetivamente assinado em 3 de janeiro de 1992. A Macedônia foi o
primeiro país da Iugoslávia a declarar independência sem conflitos, em 8 de setembro de 1991, seguido por
Montenegro, no início do século XXI. Os macedônios não eram separatistas, mas o nacionalismo da
Eslovênia e da Croácia fez com que, em 1990, o presidente macedônio Kiro Gligorov também ameaçasse
deixar a federação, o que de fato ocorreu no ano seguinte.
Em todo o processo de desintegração da Iugoslávia, o conflito mais violento aconteceu na BósniaHerzegovina. Localizada na região central da Iugoslávia, a república apresentava a interação social que Tito
teria desejado para toda a Iugoslávia. Mesmo com a variada composição étnico-religiosa de sua população, os
grupos mais expressivos conviviam sem grandes problemas, e ao contrário das demais repúblicas da
federação, croatas, sérvios e bósnios não viviam em regiões definidas, mas coabitavam as mesmas aldeias,
localidades e cidades. A convivência pacífica permitiu inclusive os casamentos interétnicos e nem mesmo o
reconhecimento da “nacionalidade muçulmana” estimulou a segregação identitária, apenas garantiu os
mesmos direitos indistintamente a todos os cidadãos da Bósnia-Herzegovina.
Quando em 1990 houve o estabelecimento do pluralismo partidário, formaram-se três grandes
partidos baseados nas nacionalidades e remanescentes políticos comunistas juntaram-se ao Partido Social
Democrata, único partido supranacional. Nas eleições parlamentares em novembro daquele ano, cada etnia
representada por cada um dos três partidos teve o montante de votos relativo à quantidade de eleitores
bósnios muçulmanos, sérvios e croatas. Em dezembro, seguindo o esquema rotativo, Alija Izetbegovic, bósnio
e muçulmano sunita, assume a presidência da federação. Foi o suficiente para que radicais nacionalistas
sérvios e croatas alardeassem a possibilidade de a Bósnia-Herzegovina transformar-se em um cantão
islâmico na Europa. Apesar de os sérvios já estarem preparados para a ruptura, muçulmanos e croatas ainda
aparentavam estar unidos. Dada a situação, com o avanço dos sérvios para defender a República de Krajina
na Croácia, cruzando o território bósnio, Izetbegovic declarou que defenderia a soberania da BósniaHerzegovina. Em outubro de 1991 o parlamento aprovou um memorando sobre independência da república e
o reconhecimento de sua soberania e desligamento da Iugoslávia, O plebiscito para oficializar a decisão dos
bósnios ocorreu entre fevereiro e março de 1992 e foi boicotado pela comunidade sérvia, mesmo assim em 4
de março a independência da Bósnia-Herzegovina foi declarada. Ao final daquele mês a comunidade sérvia
que estava reunida em Pale, cidade a dez quilômetros da capital Sarajevo, proclamou a “entidade nacional
sérvia”, a República Srpska, vinculada ao que restara da Iugoslávia (Sérvia e Montenegro).
Em 6 de Abril a Comunidade Europeia reconheceu a independência da Bósnia. No mesmo dia, os
sérvios instalados nas montanhas ao redor da capital da Bósnia-Herzegovina, comandados por Radovan
Karadzic, atacaram a cidade. Embora já ocorressem outros episódios violentos pelo país, um dos mais
marcantes foi o cerco a Sarajevo que durou de 5 de abril de 1992 a 29 de fevereiro de 1996 e teve como saldo
14 mil mortes, entre elas, estima-se que 1.500 crianças morreram. Ao mesmo tempo, em todo o país, era
realizada uma “limpeza étnica”, ou seja, a eliminação dos não sérvios. Em maio de 1992 a Organização das
Nações Unidas acolheu a Bósnia-Herzegovina, a Croácia e a Eslovênia como membros, e interveio
humanitariamente no conflito com o envio de tropas da Força de Proteção das Nações Unidas (UNPROFOR).
O ataque das milícias sérvias à Bósnia-Herzegovina foi apoiado por Milosevic e pelo exército sérvio, algum
tempo depois de a guerra haver iniciado os croatas que apoiavam os bósnios, recuaram e voltaram a repensar
a divisão da Bósnia entre Croácia e Sérvia.
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A imprensa internacional noticiava e veiculava imagens da Guerra da Bósnia. Fotos de pessoas
desnutridas e maltratadas como os judeus durante o Holocausto. Jornais e agências de notícias denunciavam
campos de concentração semelhantes aos utilizados pelos nazistas durante a Segunda Guerra. “A maioria dos
centros de suplício, estupros e massacre eram mantidos por paramilitares sérvios. Mas havia também
campos croatas de concentração de muçulmanos.” (ALVES, 2013). Em maio de 1993, a ONU criou o Tribunal
Internacional para a Antiga Iugoslávia, em Haia, nos Países Baixos. Durante a Guerra da Bósnia, o estupro
sistemático de muçulmanas adquiriu um sentido mais perverso, o que levou o Tribunal Penal Internacional a
tipificar estupros coletivos como crimes de guerra.
O Massacre de Srebrenica também foi um episódio marcante daquela guerra. A ONU havia criado
áreas de segurança para proteger a população que vinha sendo atacada pelos nacionalistas de Karadzic. As
cidades de Srebrenica, Zepa e Gorazde, eram enclaves muçulmanos no território da chamada República
Srpska, onde os soldados das tropas internacionais deveriam proteger a população de possíveis tentativas de
invasão. No dia 11 de Julho de 1995, comandados pelo general Ratko Mladic, os sérvios invadiram Srebrenica
ceifando a vida de mais de 8 mil homens e meninos, a maioria com tiro a queima roupa e na nuca (ALVES,
2013). O episódio foi reconhecido como o primeiro caso de Genocídio na Europa desde o Holocausto. Em 30
de Agosto de 1995 a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) realizou uma ofensiva contra os
sérvios na região de Sarajevo, através de bombardeio e pediu a Mladic que retirasse suas tropas e
armamentos da região. Em 5 de outubro foi assinado um cessar fogo e em novembro, Bósnia-Herzegovina,
Sérvia e Croácia, assinaram o Acordo de Dayton que pôs fim à Guerra da Bósnia. O resultado final foi
aproximadamente 100 mil bósnios, sérvios e croatas mortos e 2 milhões de refugiados.
O mapa geopolítico dos Bálcãs passou a contar com cinco novas repúblicas independentes após a
desintegração da Iugoslávia: Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Iugoslávia e Macedônia. O processo de
estabelecimento desses novos países custou milhares de vidas sacrificadas em função de ideologias
nacionalistas. Em 2003 a Iugoslávia extinguiu definitivamente o antigo nome e passou a ser uma federação
de duas repúblicas, Sérvia e Montenegro. (HASTEDT, 2004). Em junho de 2006, em referendo popular, foi
decidido por mais uma separação passando a existir a República da Sérvia e a República de Montenegro.
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Homossexualidade e representação:
análise de uma reportagem da revista Veja da década de 1970
Leonardo da Silva Martinelli1
Resumo: O presente estudo é uma análise de uma reportagem na revista Veja, de 1972, sobre a
homossexualidade, que tem como eixo condutor um evento ocorrido em Minas Gerais: o “Primeiro Simpósio
Sobre Homossexualismo”, relatado pelo periódico. Busca-se analisar a representação da homossexualidade
nesta edição atrelada ao contexto que a censura impôs em defesa da “moral e os bons costumes” e as vozes
acionadas para argumentar sobre o tema. Parte-se de uma análise cultural a partir da categoria gênero para
lançar o olhar sobre a questão. Metodologicamente apoia-se na análise de conteúdo temático para pensar a
imprensa, seus usos e potenciais nas (re)apropriações das representações coletivas partilhadas na sociedade.
O objetivo geral a partir desta discussão é compreender a representação e posicionamento dado pela revista,
nesta edição, à homossexualidade.
Palavras-chave: Homossexualidade, gênero, ditadura, revista Veja.
Considerações iniciais
O presente estudo é uma análise de uma reportagem na revista Veja, de 1972, sobre a
homossexualidade, que tem como eixo condutor um evento ocorrido em Minas Gerais: o “Primeiro Simpósio
Sobre Homossexualismo”, relatado pelo periódico. Num período de censura e repressão a homossexualidade
que ameaçava a “moral e bons costumes”, a revista Veja informou aos leitores sobre o tema e, de modo geral,
positivamente nesta edição. Fato que não assinala um posicionamento geral da revista mantido ao longo dos
anos a respeito da questão homossexual, que oscilou no período civil-militar, e teve reduzidas representações
que não destacaram o sujeito de forma estigmatizante. No entanto, irá ser discutida parte da seção
“Comportamento” que trouxe o tema em pauta. O objetivo geral é, a partir desta discussão, compreender a
representação e posicionamento dado pela revista, nesta edição, à homossexualidade.
Parte-se de uma análise cultural a partir da categoria gênero para lançar o olhar sobre esta
sexualidade. Metodologicamente apoia-se na análise de conteúdo temático para pensar a imprensa, seus usos
e potenciais nas (re)apropriações das representações coletivas partilhadas na sociedade. Atenta-se aos
significados da mensagem e como este dizer torna representativo um não dito (silenciamentos) ou um dito
nas estrelinhas que é analisado concomitantemente. O leitor verá que o texto foi dividido apresentando,
inicialmente, elementos conceituais que embasarão o olhar lançado, seguindo a análise propriamente dita.
Entre o dizer e o como dizer
As sociedades e grupos sociais são organizados a partir das concepções culturais que integram os
valores e saberes dos distintos povos. Com base neste sistema define-se o que é correto e errado; bom e ruim;
normal e anormal; o tolerável e o intolerável. As sexualidades, da mesma forma, foram construídas a partir
de determinados entendimentos compondo um discurso que busca regular a vida dos sujeitos. Os saberes
científicos e jurídicos, criados à sombra deste mesmo discurso, conferiram um grau de inteligibilidade a
determinadas práticas e expressões sexuais relegando as demais à marginalidade. Criou-se, assim, uma
heteronormatividade que investe nos corpos sexuados a fim de moldá-los de acordo com o modelo binário
preconizado. Tal tentativa – um determinismo cultural externo – longe de corresponder ao intento, deixa
Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo (2016) e mestrando em História na mesma instituição. Bolsista Capes. Email: leonardos.martinelli@gmail.com
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evidentes as lacunas e sujeitos que ultrapassam estas fronteiras e lançam seu desejo afetivo-sexual a pessoas
de mesmo sexo/gênero. Por isso, pensar as homossexualidades exige a compreensão do processo de longa
duração no qual foi inscrita e atentar as oscilações espaciais e temporais constituintes dessa historicidade. Ao
mesmo tempo, atua na elaboração de representações sobre a mesma, intensificada pela imprensa e os usos
que os sujeitos sociais dela fazem.
Para Joan Scott (1995, p. 96) “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas
diferenças percebidas entre os sexos” e “gênero é uma forma primária de dar significado às relações de
poder”. Judith Butler (2017) com sua teoria da performatividade do gênero complementa este saber ao dizer
que o gênero é construído sobre um sexo, mas que não se apresenta sempre da forma esperada e não é
estático. Este entendimento nos possibilita lançar olhares múltiplos sobre a questão e analisar os
mecanismos reguladores que, insistentemente, tentaram padronizar as sexualidades não hegemônicas.
No processo de longa duração percebe-se a aversão à homossexualidade, vista inicialmente como
uma prática abominável pelo conjunto de leis hebraicas que compôs a base do emergente cristianismo.
Posteriormente, tal “mal” foi ampliado aos sujeitos homossexuais sendo punidos de forma severa,
criminalizados. Se em determinados momentos históricos foi permitida, com o passar do tempo à repressão a
mesma ampliou-se consideravelmente variando de acordo com a legislação de cada território. No Brasil,
“herdeiro” do cristianismo, tal concepção depreciativa das relações homossexuais foi – e ainda é –
preservada e reproduzida com momentos de menor e maior intensidade, como no período da ditadura civilmilitar.
Nestes governos de caráter autoritário, reprimiram-se as homossexualidades, termo entendido
conforme James Green e Renan Quinalha (2015, p. 11), que englobava não somente os gays, mas também
demais sujeitos como lésbicas, travestis, transexuais, dentre outros. Ocorreram vários tipos de violência a
estes sujeitos, mas também se censurou a imprensa. Apresentar o tema de maneira positiva era visto como
uma ameaça à protegida “moral e bons costumes” (COWAN, 2015). Mesmo sob o perigo de reportar temas do
tipo, os veículos de imprensa apresentaram informações e mensagens sobre os mesmos. Os mais explícitos
tinham grandes chances de ser apreendidos. Os mais contidos não se isentavam deste temor, no entanto,
poderia escapar desse olhar de vigilância caso a visibilidade da matéria não fosse ampliada, ou os censores
julgassem como inofensiva.
A reportagem analisada trata-se de uma publicação da revista Veja do ano de 1972, edição 203, que
apresentou em parte da seção “Comportamento” o tema que iria abordar sob o título “Homossexualismo”. O
termo referia-se a sujeitos que eram vistos como doentes por estarem em desacordo com aquilo que se
acreditava ser o “normal” – a heterossexualidade. Era uma terminologia bastante usual no período e
considerada uma doença pelos saberes médico-legais. A seção em questão é uma das que costumou trazer
temáticas voltadas ao comportamento e atualidades da época, juventude, modernidade. É preciso destacar
que a seção não fez parte de todas as edições, embora descontínua, tinha uma frequência considerável, com
pequenos hiatos. Em uma lauda, dimensão considerável tratando-se do tema e espaço concedido à
reportagem, Veja discute o chamado “Primeiro Simpósio sobre Homossexualismo” realizado em Belo
Horizonte.
A imprensa é um recurso bastante profícuo ao disseminar mensagens, informações e representações
sobre aquilo que reporta. Trazendo do espectro social os elementos com os quais constrói e elabora a edição,
possibilita aos leitores um contato diversificado de temáticas e proporciona novas informações aos que já
sabiam sobre o reportado, mas também informando aos que não sabiam do ocorrido, e a sua maneira. Neste
aspecto, difunde representações que são (re)apropriadas de distintas maneiras pelos leitores a partir daquilo
que foi divulgado. Nota-se que estes entendimentos não são estáticos, mas imersos num universo de
circularidade cultural2 que pluraliza as compreensões e acentua ou reconstrói as representações desses
sujeitos.
O conceito de representação é utilizado conforme Roger Chartier (1991, p. 183) que a entende como
coletivas e criadas no mundo social, por isso, considera “estas representações coletivas como as matrizes de
2
Entendida conforme GINZBURG, 2006.
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práticas construtoras do próprio mundo social”. Junto a esta contribuição podemos citar a distinção que
Sandra Jovchelovitch realiza a respeito do que chama de representações sociais na esfera pública e da esfera
pública. As representações na esfera pública são entendidas como representações sociais na sociedade.
Estas, através dos meios de comunicação são selecionadas, criam-se narrativas e, por conseguinte,
representações da esfera pública que se direcionam a realidade dos sujeitos interconectando-se –
representações na esfera e da esfera pública, pois para a autora, a ação destes veículos “informam e formam a
esfera pública” (JOVCHELOVITCH, 2000, p. 86). Aliando estas duas dimensões do conceito, voltadas à
imprensa, desenvolve-se a análise.
Diante da parcialidade de toda fonte, torna-se necessário situá-la ao seu contexto de produção e
circulação atrelado a escala ampla no qual está inscrita. Por isso, é preciso “produzir uma análise que busque
surpreendê-la [imprensa] na complexidade de suas articulações e desfazer o mito de sua objetividade”, para
tanto, prosseguem as autoras, “supõe uma atitude crítica frente à memória por ela instituída e fazer emergir
de nossos trabalhos outras experiências, vozes e interpretações, que deem visibilidade a outras histórias e
memórias” (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 260).
Perseu Abramo (2016) ao pensar a grande imprensa destacou padrões de manipulação que a mesma
faz uso ao publicar suas informações. Esses padrões integram estratégias possíveis que propiciam distintas
interpretações em detrimento desta maneira de reportar. Ao pensar a construção de representações pela
imprensa verifica-se a versatilidade com que podem ser compreendidas a partir da escolha da maneira de
dizer pelos veículos de informação. Os padrões apontados pelo autor são: ocultação, fragmentação, inversão
e indução. A partir dos mesmos é possível refletir a respeito da própria elaboração do que foi publicado e não
somente da publicação em si. O entendimento e a capacidade de decodificação modificam-se a partir destes
conhecimentos. No entanto, nem todos os leitores consideram essas possibilidades de forma premeditada,
constante, ou têm o domínio e habilidades para fazê-la. Nesse sentido, múltiplas leituras e interpretações são
possíveis. Eis que uma delas é apresentada e analisada a seguir.
A homossexualidade em discussão
De forma explícita e clara, o título que foi apresentado em parte da seção “Comportamento” do dia 27
de julho de 1972 ganhou destaque. Sem rodeios ou jogos de linguagem, anunciava objetivamente a discussão
que seria apresentada: “Homossexualismo”. Tema polêmico e vigiado pela censura, era uma das razões para
apreender periódicos, proibi-los, tudo em defesa da preservação da “moral e bons costumes”. Esta faz parte,
também, das construções culturais criadas pelos grupos sociais, logo não é universal, mas circunscrita a
determinados povos e ao compartilhamento destes saberes com demais. A cultura, então, permite
compreender como esses entendimentos foram construídos.
“A história cultural, tal como a entendemos” pontua Roger Chartier (1990, p. 17), “tem por principal
objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada, dada a ler”. E a imprensa auxilia nessa atividade, falando de uma realidade e ao mesmo
tempo tornando-a narrativa e direcionando novamente aos sujeitos. Situações que estão interconectadas.
Com as devidas proporções, assemelhasse, em parte, ao “círculo hermenêutico” proposto por Paul Ricoeur a
respeito da narrativa na operação historiográfica, elaborada numa fase intermediária entre o sujeito que
escreve e o leitor a quem se destina (BARROS, 2011).
Em meio a esta narrativa jornalística elaborada por Veja e difundida ao público consumidor, verificase, inicialmente, o enunciado que apresentou a questão:
Para um grupo de beatas, era uma nova tentação de Belzebu, para arruinar a moral
da tradicional família mineira. Para parte da população da cidade, era um assunto
escabroso demais para ser debatido em público. Para estudantes da Universidade
Federal de Minas Gerais, não houve divulgação suficiente, senão haveria um
público bem maior (VEJA, n. 203, p. 62).
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As primeiras palavras que introduzem o tema são negativas. Primeiro, a menção as beatas e a
Belzebu, cuja homossexualidade está intimamente associada à ideia de algo ruim, coisa do demônio, um mal.
Tal entendimento é representativo de uma ideologia dominante que vê a heterossexualidade como o modelo
natural, criado por Deus, portanto, o “correto”. A afronta a este modelo, pela homossexualidade, seria algo do
“mal”, para desviar as pessoas do caminho “certo” contrariando os mandamentos atribuídos a Deus. Não
obstante, a prática sexual era chamada de sodomia em referência a uma interpretação do texto bíblico que
associa o ato como causa à punição divina que teria caído sobre as cidades de Sodoma e Gomorra. Desta
forma, este discurso tem sido reproduzido através do tempo e quando não utilizado nestas palavras,
manifesta-se pelo uso de outros termos e interpretações também depreciativas. Esse entendimento cristão
ajudou a construir as bases das sociedades ocidentais, portanto, esteve – e está – presente na mentalidade
das pessoas, sujeito a (re)construções e olhares plurais. Por isso, “ao longo da história do pensamento
ocidental, sempre que o Cristianismo deixa marcas de sua influência, está presente a crença no diabo”
(NOGUEIRA, 2002, p. 8).
O segundo argumento trazido pela revista menciona a magnitude do tema que, naquele momento,
não era receptivo, mas “escabroso”. Tornava visível o fato de que não se podia falar sobre. Quando muito,
neste caso, a partir de uma forma não encorajadora. É preciso recordar que esta sexualidade era vista como
um desvio pelos saberes médico-legais, logo, falava-se de “doentes”. O último argumento trazido informa da
participação no evento que é descrito posteriormente: “Primeiro Simpósio Sobre Homossexualismo”.
Constata-se, de imediato, a limitação do evento. Pouca divulgação, poucos participantes, imprimindo um
sentido de fracasso.
De acordo com as informações divulgadas, trinta pessoas estavam presentes, das quais a maioria
estudantes de medicina, além de um endocrinólogo, psicólogo, padre e líder espírita. A menção aos presentes
revela as áreas do saber em torno das quais o tema foi discutido, ou seja, a medicina e a religião. Ainda, a fala
de um homossexual no evento limitou-se, de acordo com a revista, a um sujeito. De maneira sarcástica, diz:
“Dos 4% de homossexuais que, segundo estimativas, existem no mundo, só um indivíduo se manifestou”.
Mas prossegue, informando de que sujeito se tratava: “Pedindo anonimato por ser casado e pai de três filhos,
um senhor circunspecto confessou ser homossexual e ter vindo ali a procura de apoio religioso para a sua
condição, pois o desprezo público já lhe era indiferente” (VEJA, n. 203, p. 62).
A revista cita um homossexual confesso que parece ter se manifestado no evento. Não está claro se
algum representante de Veja esteve no evento ou se soube do fato. Contudo, o drama pessoal não foi
escondido, tratando-se de um sujeito casado que vivia uma relação com a esposa, tinha filhos e por essa razão
pediu pela discrição. A busca era por apoio espiritual, pois o estigma social “lhe era indiferente”. Isto assinala
duas questões importantes para pensar: a primeira é que mesmo numa relação heterossexual ainda sofria
“desprezo”, ou seja, sua sexualidade ou a expressão da mesma não estava escondida – e nem poderia fazê-lo
– mas visível; a segunda é que devido a sua “condição” e não se sentindo bem consigo mesmo, precisava de
apoio e o faz em direção à religião. Este termo utilizado pela revista relaciona a homossexualidade a um
estado, uma condição de ser homossexual. E como foi destacada, esta condição para grande parte das pessoas
e pelos saberes médico-jurídicos, era de um sujeito que tinha uma patologia. Como poderia estar bem se
mesmo inserido dentro da heteronormatividade – casado, pai de família como preconizava a “moral e os
bons costumes” – ainda sofria estigma? Como viver sua homossexualidade – tinha o entendimento de sê-lo –
numa sociedade discriminatória? A quem recorrer numa situação como esta para buscar conforto espiritual,
emocional? Dilema que, possivelmente, muitos tiveram que enfrentar (e ainda enfrentam).
Sobre as ideias suscitadas no evento, Veja explicita o cenário de discussões: “Com intensa
participação de todos os presentes, o simpósio foi um autêntico campo de batalha verbal em que estatísticas,
provas de laboratório, teorias científicas e doutrinas religiosas eram brandidas como armas” (VEJA, n. 203,
p. 62). Nota-se o campo de disputas no qual as questões que envolvem a sexualidade e, especialmente, a
homossexualidade, estão inseridas. Deve-se atentar que os sujeitos presentes acionam diferentes saberes e
teorias aos quais estão vinculados para compreender o objeto.
Na sequência, Veja destaca as tentativas de um psiquiatra brasileiro em reorientar o homossexual
para a heterossexualidade através de tratamento por eletrochoque e analítico. No entanto, nas palavras do
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psiquiatra citado na reportagem, “o tratamento psicanalítico, mesmo prolongado, está quase sempre fadado
ao fracasso”. Traz informações, também, de como o procedimento era realizado e o abandono deste método
por profissionais da Europa e Estados Unidos, inferindo ser algo ultrapassado, cujos centros tidos como
modelo, citados acima, já não consideravam este tratamento. Mas sim, “essa terapia é substituída
modernamente pela integração do homossexual ao seu meio ambiente, respeitando suas escolhas eróticas e
destruindo seu conflito neurótico com uma sociedade hostil ao seu comportamento”. A menção a “escolhas
eróticas”, ideia que é rejeitada atualmente, contradiz-se com a “condição” citada mais acima. Se o sujeito era
assim, vinculado a um estado de ser tido como doentio não teria a possibilidade de escolha, apenas aderir ou
não a esses desejos.
Contudo, nos meandros da década de 1970, bem como em outras temporalidades, a ideia da
homossexualidade como “sem-vergonhice”3 também se fazia presente, atrelada a outras representações.
Possivelmente uma mescla entre as representações em constante circulação na esfera pública. Ampliando
positivamente o olhar a questão, cita Freud que diz: “O homossexualismo é uma variante válida da
sexualidade, com muitos de seus representantes dotados de alta cultura e profundo senso ético” (VEJA, n.
203, n. 62).
As disparidades entre as próprias colocações podem ser verificadas na fala do diretor do Instituto
Brasileiro de Informação e Parapsicologia que, segundo Veja, era entidade promotora do evento. No entanto,
a revista diz que o autor falou como presidente da Associação dos Jornalistas Espíritas de Minas Gerais.
Talvez, um posicionamento que não poderia ser tomado por um membro do grupo promotor ou assinalasse a
participação em outros grupos; ainda, pode ter sido uma relação estabelecida pelo argumento que apresenta,
vinculando-o, desta forma, ao grupo religioso. Em sua fala, destaca:
Para o espiritismo, o homossexualismo não é uma anormalidade nem deve ser
condenado. O homossexual não deve procurar experiências heterossexuais, pois
irão desequilibrá-lo ainda mais. A união de duas pessoas que se amam, sejam elas
hetero ou homossexuais, é a manifestação de Deus nos seres humanos (VEJA, n.
203, p. 62).
Não se limitando a esta arguição acrescenta em tom encorajador aos homossexuais, vítimas “de uma
falsa moral e uma falsa ética social a lutarem pela sua própria libertação” (VEJA, n. 203, p. 62).
Posicionamento positivo em relação à homossexualidade, embora tido como aversivo pela preocupação
constante dos setores de vigilância com este explícito ou implícito estímulo. Tal ideia é desenvolvida por
Benjamin Cowan ao frisar o aspecto “subversivo” associado à homossexualidade que, em suas pesquisas,
permitem verificar a preocupação dos setores dirigentes com estas sexualidades dissidentes no período civilmilitar. Para o autor, esta questão é resultado de sua comparação aos ideais comunistas de revolução no qual
a homossexualidade faria parte da derrubada dos valores morais instituídos, sendo, portanto, ameaçadora ao
projeto político-social protegido pelos governantes do período civil-militar, e tão prejudicial quanto os
“inimigos” comunistas (COWAN, 2015).
Sob os olhares vigilantes dos governantes, e ainda, com a conivência dos sujeitos sociais, a
homossexualidade esteve sob constante monitoramento. Devido ao entendimento partilhado da
heterossexualidade naturalizada e até divinizada no discurso fundador judaico-cristão, componente do
discurso dominante, criou-se o pano de fundo da construção desta moralidade. Os que infligiam a ordem
estabelecida deviam ser controlados. Mesmo assim, nem a censura, tampouco os mecanismos repressivos
foram capazes de extinguir esta sexualidade ao longo da história. Quando muito, silenciá-la de uma memória
oficial, “coesa”. Visíveis ou não, estes sujeitos existiam.
É indagador que uma argumentação positiva tenha sido expressa, em 1972. E ainda, apresentou um
entendimento religioso que relativizava os preceitos cristãos hegemônicos no país e disseminados pelos
intérpretes da fé. Uma manifestação de respeito, apoio, desqualificando o aspecto pejorativo atribuído por
3
Confira FRY; MACRAE, 1985.
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muitos e apresentando um entendimento que preconizou pelo “amor de Deus” as relações homossexuais,
além de um estímulo para “libertação”, como destacou o presidente da Associação de Jornalistas Espíritas.
Dando ensejo a relação homossexual há, ao centro da reportagem, uma imagem de dois sujeitos de
mãos dadas andando pela rua. A imagem apresenta ambos vestidos em conformidade com as roupas
designadas culturalmente como masculinas ou para homens. No entanto, não há informações aos leitores se
a imagem foi no evento, se a mesma registra algo que ocorreu no Brasil ou se é do exterior, que se considera
mais provável. Logo abaixo, uma legenda: “Homossexuais: compreensão”, reiterando um elemento positivo
em relação à homossexualidade, ilustrada pela imagem.
Outro elemento de discussão foi quanto às causas da homossexualidade. Nesta reflexão o médico
endocrinólogo da UFMG destacou que as questões relacionadas à endocrinologia não eram as causas desta
sexualidade. Ao que a revista complementou dizendo que alguns estudos nos Estados Unidos e países da
Europa verificaram a falta de hormônios que poderia estar relacionada a esta condição. No entanto, a revista
Veja, falando em nome do médico, informou que estes estudos ainda eram pouco conclusivos e
apresentavam fragilidades, logo, deveriam ser tratados com cautela (VEJA, n. 203, p. 62).
As tentativas de descobrir as causas da homossexualidade levaram vários especialistas a debruçaremse sobre esta questão, mas resultados definitivos ou aproximados, ainda eram pouco creditados. Mais do que
saber as razões que levam os sujeitos a sentirem esta atração pelo mesmo sexo/gênero, carecem de um
questionamento do porquê de não poder expressar esta sexualidade. Para isso, seria preciso reconstruir os
pilares de sustentação de determinados saberes de forma crítica e inteligível. A passos lentos, mas contínuos,
os mesmos já podiam ser vistos no horizonte, ou seja, mesmo que em número reduzido, havia aqueles que
comungavam de representações e entendimentos mais coerentes e não discriminatórios inclusive por meio
de idiossincrasias religiosas.
Ronaldo Canabarro destaca o esforço de distintas áreas do saber em encontrar respostas a respeito
da homossexualidade que, em muitos casos, focam-se apenas na descoberta. A passagem a seguir pode
esclarecer ainda mais essa questão.
De um lado, um número expressivo de essencialistas busca incessantemente a
“verdade sobre o sexo” que estaria escondida pelos meandros da Biologia,
Psiquiatria, Sexologia, Genética e tantas outras disciplinas do saber. De outro,
culturalistas, estruturalistas e pós-estruturalistas promovem incontáveis debates
sobre os discursos e suas produções político-somáticas. Em meio a tudo isso, há
pessoas, suas identidades (ou a ausência delas) e suas histórias (CANABARRO,
2015, p. 13 – grifo do autor).
A revista demonstrando um conhecimento ampliado a respeito tema citou um livro que diz não ter
sido mencionado no evento. Tratava-se da obra O sexo equívoco de Martin Hoffman e Evelyn Hooker;
exemplar que havia tradução em português. De acordo com Veja, os autores “advoga[vam] a adoção, pelos
Estados Unidos, de uma legislação liberal com referência aos homossexuais, como a aprovada na Inglaterra e
na Alemanha há poucos anos” (VEJA, n. 203, p. 62). É preciso destacar que a legislação e o tratamento dado
aos homossexuais tiveram variações, mas oscilantes num padrão geral estigmatizante e pejorativo.
Singularidades que compõem o aparato cultural de cada grupo social e podem ser verificadas em espaços
diferentes.
No entanto, um levante representativo do início do movimento homossexual nos Estados Unidos
ocorreu em 1969, com a revolta de Stonewall. Os homossexuais enfrentaram os policiais no bar que
costumavam frequentar, cansados das repressões, ampliadas pelo fato de sua sexualidade. A partir daí, o
movimento começa a se ampliar, torna-se público e espalha-se pelo mundo. Mesmo assim, leis punitivas em
decorrência de sua homossexualidade ainda eram vigentes.
As conquistas que asseguraram melhores condições aos homossexuais se deram aos poucos, assim
como a maioria das reivindicações sociais normalmente o são. Sob lutas, enfrentamentos, visibilidade,
militâncias é que determinadas representações passam a se colidir de forma mais intensa, como as que dizem
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respeito às sexualidades dissidentes. A comparação a estes países europeus deve-se a posturas mais coerentes
tomadas, que no momento, pelos exemplos citados, são exemplos favoráveis a causa homossexual.
Destacando um trecho do “Relatório Wolfenden” da Inglaterra, Veja destaca a retirada de
penalidades a “adultos que consintam de livre vontade e em lugares fechados na prática do
homossexualismo”. A Inglaterra que já punira personalidades como Oscar Wilde por sua homossexualidade,
agora, abria caminho para uma aceitação. Serem permitidas relações homossexuais num espaço privado
reforça o idealismo do comportamento vitoriano. No entanto, como seria a visibilidade pública de dois
sujeitos homossexuais? Se a prática poderia ser aceita desde que escondida, e as demais expressões desta
sexualidade? Que a relação sexual já era realizada com ou sem restrições parece irrefutável. Mesmo assim, o
sentido dado à mensagem, que carece de maiores reflexões, cumpre o papel de informar e o faz
positivamente. A analogia do destaque aos países europeus, em parte, parece ser contraditória. Se o
movimento homossexual ganhou destaque nos Estados Unidos, significou que o mesmo havia deixado à
dianteira e devia agora seguir o exemplo de outros. Ou quiçá, seguir em favor do movimento que lá floresceu.
Pois como destacou Veja, é uma forma de diminuir a “discriminação nos empregos e elimina[r] os policiais
venais e a prostituição masculina de que são vítimas os homossexuais americanos” (VEJA, n. 203, 62).
Acionando novamente a questão religiosa para desenvolver sua exposição, Veja reforça a fala do
sujeito que não se identificou e que havia ido a procura de apoio religioso ao evento. Teria dito: “Desejo
encontrar um caminho para salvar minha alma perante Deus”. Fala que assinala o discurso cristão de
salvação conquistado seguindo os preceitos bíblicos e dos intérpretes da fé em detrimento de um
comportamento e sexualidade que se opõe ao discurso. Se não estava em conformidade com aquele modelo,
estaria fadado ao inferno? Ao lugar dominado pelo tentador Belzebu mencionado pelo possível dizer das
beatas que iniciou esta reportagem? Tal ideia presente no imaginário das pessoas poderia ser perturbadora,
mas talvez, seus desdobramentos sociais tivessem maior desconforto do que uma preocupação a posteriori.
Atenta-se ao fato de que mesmo inserido na heteronormatividade, enfrentava esses problemas sociais. Era
visto como diferente e por esta razão, tratado de forma distinta. Reconhecia-se como homossexual, ao passo
que este desconforto viria do estigma dos demais que, mesmo sendo casado e tendo filhos, era identificado
como homossexual. Quê sua família dizia sobre isso? Possuía um comportamento mais feminino? Quais
razões levaram a este estigma? Indícios que seu próprio entendimento de ser homossexual e buscar ajuda
naquele espaço específico indicam tratar-se de um sujeito informado.
Um sacerdote destacou:
É urgente a solução do problema em nossas casas, em nossos escritórios, em nossos
centros de ensino. Se uma sociedade condena o homossexual, nós devemos criar
para ele uma sociedade de que ele precisa para sobreviver: uma sociedade que
tenha misericórdia e lhe restitua seus direitos de integrar-se numa comunidade e
de colaborar para ela com seus talentos. Não basta respeitar o homossexual.
Precisamos abrir-lhe perspectivas que o tirem de sua condição de repulsa e de
inferioridade (VEJA, n. 203, p. 62).
No trecho citado, verifica-se uma representação, em parte, positiva ou condescendente com os
homossexuais. Mesmo manifestando-se desta forma, o padre jamais contrariaria os princípios e
fundamentos basilares do catolicismo por ele representado. Dizer que a relação homossexual é igual a
heterossexual contraria os valores desta crença milenar e desdobra-se sobre os princípios da doutrina que
também teriam que ser revistos. Mas não o faz desta maneira, pois além das críticas, receberia prováveis
punições perante os seus pares. Difundindo suas palavras de apoio sentimental no intuito de acalmar um
sujeito que buscava por ajuda, destaca a “misericórdia” que se deveria ter para com estas pessoas, bem como
a necessidade de sua aceitação na sociedade. Palavras que denotam certa piedade para com estes sujeitos,
embora um entendimento tendencialmente positivo, tendo em vista que muitos sujeitos faziam questão de
rejeitar de forma explícita. No entanto, Veja destaca que o mesmo fala de forma particular e não em nome da
Igreja. Ou seja, as responsabilidades são de total responsabilidade do mesmo e não um posicionamento da
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instituição religiosa, que jamais questionou – ou questiona – a relação heterossexual vista como natural e
divina.
A fala do sacerdote esclarece, também, uma ideia bastante comum entre os membros do clero
católico: sujeito e ato para a Igreja eram coisas distintas. Num passado não tão distante, a sodomia (relação
sexual entre pessoas de mesmo sexo) era julgada e condenada pelos clérigos do Tribunal da Santa Inquisição.
O pecado “nefando” que estes sujeitos estavam cometendo perante os olhos da Igreja era uma ameaça, digno
de inquérito. Mesmo os homossexuais possuindo uma expressão sexual e identitária particular que os
diferenciava dos demais, a mesma não parecia ser algo de igual proporção de vigilância como a cópula em si. 4
A palavra que nomeia este sujeito – não apenas o ato –, criada no século XIX, como nos lembra Foucault
(1988), caracteriza de forma mais pontual um determinado sujeito que passa a ser analisado pelas ciências
médicas. Nesta reportagem foi a terminologia utilizada, “homossexualismo”, trazendo representações
negativas construídas por esta mesma área no imbricativo com os discursos cristãos propagados que
adquirem credibilidades distintas. No entanto, as idiossincrasias dentro deste universo religioso são
múltiplas.
Como destacou o antropólogo Clifford Geertz (2015) trazendo o exemplo de Gilbert Ryle a respeito da
piscadela, analisando-a como categoria cultural, pode-se estender tal teia de conexões as interpretações 5 dos
textos bíblicos – e narrativas jornalísticas – e as próprias reapropriações dos leitores que poderiam significar
e ressignificar as representações coletivas. Deve-se atentar a compreensão deste dizer no contexto em que foi
emitido e publicizado. Tais espaços também acarretam certo controle do conteúdo da mensagem reportada.
E, por conseguinte, da circularidade das representações na esfera pública e da esfera pública como sinaliza
Jovchelovitch (2000).
Considerações finais
Pensar a homossexualidade no período da ditadura civil-militar requer considerar os mecanismos
historicamente construídos de repressão e que, neste período, como salienta Renan Quinalha (2017), foram
ampliados com um projeto de censura específico por meio de um controle exercido pela política sexual. Ao
mesmo tempo em que havia aversão a estes sujeitos tidos como “subversivos”, falava-se deles em razão da
visibilidade que os homossexuais conquistam a partir da contracultura e do movimento norte-americano que
se difunde. Isso “força” a imprensa, demais sujeitos e órgãos governamentais a voltar atenção específica a
este grupo. Por isso, dada a conjuntura, era um assunto que possivelmente se fazia presente nas conversas
interpessoais, especialmente nos grandes centros que recebiam este público que migrava para a cidade. Em
decorrência disso, reúnem-se membros de campos distintos do saber preocupados em pensar e refletir a
respeito destas transformações. Belo Horizonte ganha dimensão ampliada por ser o local que sedia a
realização do evento. Mesmo com pouca participação, segundo informou a revista, a discussão foi
empreendida com os sujeitos que lá estiveram. Os mesmos eram integrantes da área da medicina e religião
(católicos e espíritas) que representam polos distintos, haja vista que os graus de cientificidade e
inteligibilidade acionados são completamente distintos. As vozes explícitas que tiveram espaço na
reportagem para arguir sobre a homossexualidade partiu de um psiquiatra, além de uma frase do conhecido
Freud. Do grupo religioso duas vozes foram expressas por um espírita e um padre. O homossexual também
destaca seu posicionamento que se aproxima a busca espiritual e de conforto expressa pelas doutrinas
religiosas.
A representação da homossexualidade, nesta reportagem, revela o universo ambíguo do contexto
social dos anos 1970 em que representações coletivas divergentes contrastavam-se com reelaborações e
entendimentos plurais. Sob um controle vigilante dos órgãos de censura, não se podia falar de qualquer
Ver o trabalho de Luiz Mott a respeito da ideia de desperdiçar sêmen: MOTT, 2001.
Carvalho chama atenção ao significado que Geertz destaca como algo único dentro de um sistema cultural que irá interpretar tais
questões a partir desta lente, ao passo que Chartier aponta para os diversos significados mesmo numa dada cultura, resultado de
tensões entre representações. Cf. CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. O conceito de representações coletivas segundo Roger
Chartier. Diálogos, Maringá, DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1, p. 143-165, 2005.
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assunto, especialmente sobre questões políticas e morais. No entanto, o fato desta reportagem ter sido
publicada nos permite apresentar algumas hipóteses. A primeira se refere à forma com que foi iniciada a
reportagem acionando elementos do imaginário e relembrando de sua associação ao mal, as coisas ruins.
Numa primeira leitura, uma conotação pejorativa, portanto, possível de ser publicada.
Um segundo aspecto que se distancia dessa questão é pontuado pelos saberes médico-legais,
especialmente a psicologia. Há o enaltecimento da palavra “fracasso” quando discute as tentativas de retorno
ou alinhamento à heterossexualidade. Destaca-se o fato de não ser possível conquistar os resultados
desejados, ao contrário, tal empreendimento já estava desacreditado em países como Estados Unidos e na
Europa que conferem um status hierárquico e de valoração a argumentação. A ilustração de dois sujeitos de
mãos dadas no centro da reportagem e uma legenda simpatizante indica um modo positivo de encarar a
homossexualidade. É preciso considerar tais questões dentro de seu próprio contexto, pois os argumentos
utilizados na construção da reportagem não estão desconectados, mas atrelados, e no todo, apresentam a
representação da revista Veja sobre o acontecimento. No entanto, não se deve tomar uma única edição como
base para um posicionamento geral da revista ao longo da ditadura civil-militar, pois muitas outras edições
assinalam menções e representações dos homossexuais de forma negativa. Por outro lado, a análise exposta
sinaliza possíveis lacunas que a censura à imprensa não conteve.
Referências
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São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2016.
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CANABARRO, Ronaldo. Fazendo Travestis: Identidades transviadas no jornal Lampião da Esquina (1978-1981).
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Passo Fundo, Passo
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CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. O conceito de representações coletivas segundo Roger Chartier. Diálogos,
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Fonte
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História e imprensa:
algumas propostas teóricas de análise a partir da revista Veja
Leonardo da Silva Martinelli1
Resumo: O presente ensaio propõe uma reflexão sobre a relação entre História e imprensa discutindo
especialmente algumas propostas teóricas de análise para as revistas. O olhar será direcionado a revista Veja
atentando para as representações que são construídas e divulgadas para o público consumidor. A partir de
uma breve historicidade das revistas no Brasil serão pontuadas possibilidades de análise que contribuam no
entendimento das mensagens reportadas valendo-nos das contribuições de autores como Pierre Bourdieu,
Roger Chartier, Sandra Jovchelovitch, dentre outros.
Palavras-chave: Representação, imprensa, revista Veja.
Considerações iniciais
Neste ensaio serão discutidas algumas propostas teóricas de análise da imprensa, em especial das
revistas, a partir de reflexões que tem como eixo condutor a semanal Veja. A proposta visa articular alguns
recursos disponíveis desses periódicos e suas potencialidades na elaboração de reportagens e possibilidades
de leitura. Parte-se da ideia de Jovchelovitch de que as reportagens constroem representações a respeito
daquilo que publicam e permitem interfaces com outras representações influenciando no desenvolvimento
das relações sociais. Tais questões são pensadas numa análise direcionada a revista Veja.
Veja e o cenário de revistas no Brasil
Um dos papéis desempenhados pela imprensa nas sociedades e grupos sociais se dá por meio da
informação, formando e/ou transformando as ideias daqueles que nela estão inseridos ou dela comungam.
Desde as transformações no século XV ocasionadas pelo surgimento da prensa a recepção das mensagens se
tornou mais dinâmica. Se antes eram centradas na oralidade ou nos manuscritos, a partir daí passam a
apresentar-se de distintas formas com a ampliação do acesso ao mesmo conteúdo, pois anteriormente os
copistas imprimiam suas especificidades ao material.
As relações estabelecidas entre os sujeitos com os impressos no espectro social permitem
compreender parte de sua realidade, pois sua produção se volta para o mesmo universo em que foi
produzida. Nesse sentido, as notícias selecionadas bem como a maneira de reportá-las incidem na construção
ou reelaboração das formas de pensar que irão influenciar os leitores e aqueles que mantêm um contato com
tais materiais ou ideias. Por sua subjetividade e estar vinculada a interesses específicos dos proprietários ou
do órgão que a administra, a imprensa foi deixada de lado pelos historiadores. Somente
com
as
transformações advindas com a “Nova História” quando os paradigmas historiográficos passaram a ser
questionados juntamente com a objetividade das fontes é que pode ser incluída. O entendimento de que
nenhuma fonte é neutra devendo, portanto, ser tratada desta forma possibilitou a inclusão de novos
materiais ao ofício. Permitiu maior liberdade ao profissional da História ao dispor de inúmeras
possibilidades no exercício de sua função. Nesse contexto, a imprensa passou a ser utilizada demonstrando
as potencialidades de análises e compreensão das relações sociais.
As revistas integram esses veículos de imprensa e proporcionam análises diferenciadas em razão do
aparato construtivo e valorativo que apresentam. De acordo com Ana Luiza Martins (2001, p. 40), as revistas
Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo (2016) e mestrando em História na mesma instituição. Bolsista Capes. Email: leonardos.martinelli@gmail.com
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eram moda na Europa no século XIX. Ao longo dos anos transformaram-se de acordo com as necessidades e
contexto social introduzindo características e formatos que atendiam ao público consumidor. Diferente dos
jornais, que tendem a ter circulação diária, as revistas circulam com um espaçamento maior de tempo,
havendo semanais, quinzenais, mensais, semestrais ou anuais, por exemplo. O formato encadernado e suas
diversificações segmentárias permitiram a escolha de temáticas específicas voltadas a determinados grupos
sociais. A utilização de ilustrações que ampliam as possibilidades de entendimento das mensagens aliadas ao
dinamismo dos recursos técnicos a torna atrativa.
A revista Veja surgiu em 1968 durante o governo civil-militar brasileiro trazendo uma proposta
inovadora em seu formato. Era uma revista semanal de informação que ingressava no mercado brasileiro
inspirada em modelos internacionais e pertencente ao Grupo Abril. Na época, somava-se a outras do mesmo
grupo como Cláudia e Realidade.
Segundo Thomaz Souto Corrêa (2012 p. 207), as revistas são divididas no mundo em dois blocos:
as revistas de consumo, destinadas ao grande público, que são vendidas em bancas
e em outros pontos de varejo e por assinaturas; e as especializadas, que em sua
maioria são gratuitas, chegam a seus leitores por mala direta e tratam de temas que
interessam a segmentos específicos de grupos de profissionais.
Veja está inserida nas revistas de consumo, num formato que alia os suportes imagéticos e textuais.
No entanto, o perfil textual sobressai. Em seus primeiros anos de circulação a dificuldade de aceitação no
mercado brasileiro fez os proprietários cogitarem seu fechamento. A relutância teria sido manifestada pelo
filho do sócio majoritário, Roberto Civita, que segundo Corrêa (2012, p. 220) dizia ao pai: “Me dá mais três
meses”.
Mantendo-a no mercado, Veja posteriormente alcançou grande público a partir de transformações
realizadas com o passar do tempo. Trazia assuntos diversos em seções que indicavam temáticas específicas
como “Brasil” (em sua maioria assuntos políticos); ou “Comportamento”, “Vida Moderna” e “Gente”
(questões voltadas à cultura e modernidade). Não era ortodoxa essa divisão, no entanto, de modo geral,
contemplava temáticas que tendiam a uma abordagem específica. Possivelmente destinadas a leitores que
preconizavam também por esses assuntos, encontrando-os nestas seções. As mesmas variaram ao longo dos
anos, sendo introduzidas novas, enquanto outras substituídas e/ou incorporadas em algumas edições.
Como a revista circulava semanalmente não informava os leitores com a mesma rapidez que os
jornais diários. Assim, havia vários assuntos da semana que poderiam ser tratados. A elaboração das
reportagens e apuração dos acontecimentos possibilitava um espaço de tempo maior para debruçar-se sobre
os eventos. Conforme Gabriel García Márquez citado por Marília Scalzo (2014, p. 13): “A melhor notícia não é
a que se dá primeiro, mas a que se dá melhor”. Nesse intento, a circulação semanal pode ser de grande valia
quando bem elaborada.
Scalzo (2014, p. 14) chama a atenção a um elemento das revistas que precisa ser discutido: seu
caráter “educador”. Segundo a autora, as revistas auxiliaram na formação de parcela dos leitores por
possibilitar acesso a informações que não eram possíveis através de outros meios. A partir de tal
consideração cabe questionar sua influência sobre os leitores e o ideal de educar que nos parece perigoso de
ser utilizado desta maneira.
É notório o fato desses veículos trazerem informações aos consumidores que passam a entrar em
contato com ideias e notícias das quais podiam não ter acesso. No entanto, ao direcionar nosso olhar sobre
este semanário (Veja), não vemos sua ação como algo educador sobre os leitores, tendo em vista que esse
processo não se dá pela simples aquisição de conhecimento, mas por sua reflexão crítica. Gramsci (2001)
chama a atenção para a ideologia partidária presente nos discursos que nos permite atentar ao papel dos
veículos de informação e os direcionamentos dados enfatizando enfoques nas notícias em detrimento de
outros. As matérias são organizadas e selecionadas de modo a conferir legitimidade ao conteúdo reportado
transparecendo objetividade àquilo que está sendo informado. Esse educar mais parece a formação e
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construção de um habitus, como assinala Pierre Bourdieu (1989; 2007), o qual será enfatizado adiante ao
discutir os entendimentos das mensagens reportadas pelos leitores.
Nesse sentido, a revista não é entendida como uma forma de educar, pois tal processo pela ação da
imprensa tende a direcionar os leitores a observarem os acontecimentos e notícias sob a lente fornecida por
esse periódico. E aqui é necessário frisar a diferença entre informação e conhecimento. Educar pressupõe o
desenvolvimento de habilidades e competências capazes de significar as informações e torná-las úteis e
utilizáveis em distintas situações apreendidas através de um processo pedagógico. Parece-nos inapropriado
pensar a imprensa enquanto cumpridora desse papel. Diante das disparidades com que a imprensa reporta
os mesmos acontecimentos quando comparados, muitas vezes parece que estamos diante de situações
distintas pela forma como apresentam as informações. Em síntese, trata-se de abordagens que são pautadas
por visões de mundo diferentes que condicionam e direcionam o olhar do leitor. A revista Veja é um
exemplo, mas não o único, tendo em vista que os demais periódicos também usam e partem de princípios
semelhantes.
Voltando a falar da revista é preciso destacar a segmentação no mercado. Isso ocorre devido ao
direcionamento e a finalidade a que se destina. É uma estratégia que se volta necessariamente ao público alvo
concorrendo com outras revistas de mesmo perfil. Veja foi a primeira semanal de informação, no entanto,
logo foram criadas outras que lhe faziam concorrência como IstoÉ e Época.
As revistas, quando criadas, carregam consigo as utopias de seus idealizadores que veem nelas os
benefícios que trariam a população e/ou negócio empresarial. Muitas correspondem a esta expectativa
enquanto outras decaem vertiginosamente não conquistando a empatia do público leitor. A história de
muitas revistas ocorreu entre estes extremos, com momentos de auge, prestígio, ao passo que outras sequer
chegaram a esta fase. A aceitação ou não do tipo de revista decorre das próprias questões do contexto em que
está inserida e no qual deve ajustar-se. Fazer uma revista onde um número reduzido de pessoas tem interesse
em adquiri-la é inviável se a proposta empresarial visar – e normalmente o é – o lucro. Nesse sentido, as
mesmas devem adaptar-se continuamente no intuito de manter-se no mercado.
Outra medida que ampliou as possibilidades de contato com as revistas se deu com o advento da
internet e sua posterior difusão. A revista Veja possui um acervo no site do Grupo Abril que permite o acesso
às edições desde as iniciais até as mais recentes mediante cadastro. Tal mecanismo difunde as mensagens a
um público de leitores que tem interesse em ler a revista, embora não a adquiram fisicamente. Essa
influência sobre os diferentes grupos sociais de leitores amplia a adesão aos valores e representações criadas
e publicadas por esse veículo de imprensa.
A utilização pela mídia dos recursos digitais promove sua imagem pela publicidade compartilhada
nas redes sociais, bem como das notícias e discussões emitidas. Porém, ao mesmo tempo em que amplia sua
divulgação corre os risco dessa imagem não ser positiva, uma vez que nesse meio as discussões entre as
distintas interpretações são colocadas a par num ambiente de divergências. O resultado pode ser profícuo
tendo em vista que o aprendizado resultado de discussões pautadas numa argumentação racional
potencializam os entendimentos podendo concordar ou não com a mensagem e o posicionamento tomado.
Nesses espaços é criada outra possibilidade para compreender as mensagens reportadas que se ampliam
novamente para os diversos leitores, e não apenas “o sujeito” a quem a revista Veja se destina.
As mensagens nas diversas formas que se apresentam promovem a difusão de conteúdos que são
significados. Essa operação permite a construção de representações a respeito dos inúmeros temas cujo
alimento intelectual é partilhado pelos sujeitos que estiveram em contato com esses materiais. Portanto, as
representações são elementos constituintes das relações sociais e compreendê-las em suas interconexões
atreladas a ação da imprensa na esfera pública permite maiores entendimentos da realidade de cada época.
A construção de representações pela imprensa
Representações são imagens, símbolos, significados que nos vem à mente quando entramos em
contato com componentes que exigem uma capacidade de abstração para entender a mensagem implícita ou
até mesmo explícita apresentada. Roger Chartier (1991, p. 183) assinala que as representações coletivas são
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criadas no mundo social e se destinam a ele, ou seja, retornam novamente para o espectro social no qual
foram gestadas mantendo esta vinculação e permitindo a própria construção da realidade.
Os sujeitos constroem representações que assumem um significado e que são partilhadas com os
demais. Essa diversidade é resultante da ação de forças mobilizadoras que possibilitam variações e/ou
transformações na maneira como essas representações coletivas são criadas, percebidas e legitimadas
socialmente.
A imprensa também age como construtora/criadora de representações sobre os diversos temas que
aborda e apresenta-os de determinada forma que reforça a objetividade. A notícia reportada aparece de
modo a convencer o leitor de que aquilo que está sendo informado foi assim ou deve ser entendido daquela
maneira. É um posicionamento do periódico que vai ao encontro dos anseios e interesses dos proprietários,
reconhecidos e/ou (re)apropriados pelos consumidores. A valoração que o veículo de comunicação terá, em
parte, advém desses elementos.
Sandra Jovchelovich (2000) ao discutir representação realiza uma distinção entre as representações
sociais na esfera pública e representações sociais da esfera pública. As primeiras seriam aquelas do espectro
social partilhadas pelos sujeitos nos espaços públicos. Ao passo que as representações sociais da esfera
pública seriam as construídas e difundidas pela imprensa dos espaços públicos. Dois exemplos distintos que
apesar de estreitamente vinculados podem não corresponder um ao outro.
As representações divulgadas pela imprensa podem ser aquelas partilhadas por determinados grupos
sociais, sejam hegemônicos ou não, ou ainda, podem ser criadas outras representações que ao serem
publicadas irão se contrapor a representação que os leitores têm. No entanto, é preciso pontuar a diferença
entre os entendimentos das mensagens decorrentes das múltiplas possibilidades de reapropriação e
apreensão.
A capacidade dos leitores de decodificar a mensagem é resultado de um esforço que vai além do
conteúdo manifesto. Nesse sentido, haverá leitores que irão compreender a mensagem preconizada pelo
redator e outros que buscarão comparar o explícito com o implícito para analisar as reportagens. Logo, terão
outro entendimento. Essa questão reitera o elemento de circularidade cultural – como exemplificado por
Carlo Ginzburg (2006) – em que a compreensão das mesmas reportagens se dará de maneira distinta entre
os sujeitos que, por sua vez, irão significar as palavras e mensagens a partir de suas experiências ou, dito de
outra forma, devido ao seu capital cultural – utilizando a expressão de Bourdieu (2007).
Problema de que se ocupou também Chartier (1990) ao considerar também em suas análises as
práticas de leitura e maneiras de apropriação dos escritos ao invés de unicamente a forma como os textos se
apresentavam. Sendo assim, a assertiva do autor quanto à história cultural nos fornece as bases para
compreender a sociedade: “A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objetivo identificar
o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada,
dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 17).
Portanto, a partir da imprensa é possível perceber como as representações são construídas e como a
mesma é dada a ler. Nesse sentido, as reportagens não são tomadas unicamente em seu sentido informativo,
mas também como recursos que ao mesmo tempo em que estabelecem a conexão entre notícia e leitor
constroem representações sobre as temáticas publicadas. Frente a isso, é necessário destacar a construção de
visões de mundo que a imprensa difunde e que influenciará o grupo que mantém contato com tais impressos,
a exemplo da revista Veja.
Veja direciona-se a um público específico da sociedade, classe média ou superior. Nesse sentido, uma
vez que esse público seja delimitado as matérias reportadas irão se circunscrever as características e estilo de
vida desse grupo. A aproximação entre esses elementos acarreta uma maior aceitação dada a
representatividade que é reconhecida por meio da revista. Entretanto, essa questão precisa ser pontuada.
As notícias divulgadas por Veja tendem a manter uma relação estreita com a realidade social de seus
leitores. Contudo, a revista não apenas reforça uma representação social desse grupo a respeito dos temas de
que trata, mas também corrobora e alimenta esse tipo de representação. Essa ideia é melhor compreendida a
partir das contribuições de Pierre Bourdieu, especificamente a partir da ideia de habitus.
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De acordo com Bourdieu (2007; 1989), habitus é uma incorporação das estruturas sociais pelos
sujeitos num determinado contexto, que irão interiorizar e reproduzir esses elementos. No entanto, essa
reprodução pode não ser homogênea, mas irá se operar a partir de um modelo pré-estabelecido do qual os
integrantes fazem parte e comungam. Nesse sentido, opiniões e visões de mundo serão partilhadas pelo
grupo em razão desse habitus, construindo uma teia de sujeitos que se posicionarão de forma semelhante aos
demais por sentirem-se integrantes do grupo e compactuarem com as mesmas ideias.
A partir do exposto, entende-se que a revista Veja contribuiu para a formação do habitus de seu
público leitor na medida em que o alimenta através das mensagens divulgadas e representações construídas.
Essa ação constante pouco a pouco delimitou um grupo que se distingue dos demais em função desse olhar
semelhante direcionado aos posicionamentos tomados frente à realidade do qual o periódico ajuda a
expressar.
Nesse sentido, as contribuições de Chartier e Jovchelovich parecem pressupor uma circularidade de
recepção das mensagens reportadas em que as representações coletivas entram em contato com outras
representações que são construídas pela imprensa. A legitimidade pretendida de impor umas sobre as
demais acentua as relações de poder engendradas nesse movimento. Ressalta Chartier (2011, p. 23): “As
representações possuem uma energia própria, e tentam convencer que o mundo, a sociedade ou o passado é
exatamente o que elas dizem que é”.
Percebe-se que Veja se coloca como portadora de um determinado discurso e apresenta-o a seus
leitores, embora o entendimento e concordância com o que está sendo dito passa pelo crivo do julgamento
pessoal e suas relações. Portanto, Veja toma partido dos assuntos publicados ao passo que este fator não se
limita a intenção preconizada estando imersa no quadro circular de recepção que pluraliza as compreensões
e adesão.
Somado a estas questões é necessário ressaltar as estratégias e técnicas que os veículos de imprensa
podem utilizar fazendo com que a informação divulgada, da forma como foi construída, conduza o leitor a
uma dada interpretação. Tal discussão foi destacada por Perseu Abramo em Padrões de manipulação na
grande imprensa (2016), no entanto, tais componentes podem ser estendidos e analisados sobre outros
veículos de imprensa.
A questão que se coloca é referente à realidade apresentada pela imprensa. Abramo (2016, p. 37-38 –
grifo do autor) chama a atenção para situações em que a mesma é distorcida como pode ser observado em
sua fala: “É uma realidade artificial, não-real, irreal, criada e desenvolvida pela imprensa e apresentada no
lugar da realidade real”. Logo, a realidade é representada pela imprensa assumindo dimensões que irão
variar. Tomemos o exemplo de um acontecimento em que um sujeito qualquer presencia. O fato ganha
destaque e é reportado pela imprensa. Se este mesmo sujeito ler a notícia irá verificar as ênfases que foram
dadas podendo ou não corresponder ao ocorrido. Mesmo considerando a olhar interpretativo e subjetivo do
sujeito que foi direcionado ao momento em si. A mesma matéria quando lida por outro leitor distante do
ocorrido que recebe esta informação pelo periódico irá ter outro entendimento sobre o acontecimento. Se
compararmos, ainda, com outros veículos de informação iremos constatar a diferença no modo como
apresentam o ocorrido. Isso é demonstrativo das singularidades que cada periódico imprime a reportagem e
a manipulação da realidade pode ser um dos recursos utilizados, portanto, deve-se ter cautela na realização
da análise.
De acordo com Abramo (2016, p. 39), não é esporádica a manipulação que a imprensa realiza
podendo ser mais incisiva sobre algumas matérias e não sobre outras; e não é exclusiva de um periódico, no
entanto, tal prática pode ser observada por meio da análise dos padrões elencados.
Os padrões de manipulação que se referem à imprensa e que podem ser utilizados para análise das
publicações, conforme Abramo (2016, p. 40-50), são os seguintes:
•
Padrão de ocultação: É aquele em que a notícia ou fato não aparece noticiado pela imprensa, é
ocultado como se não merecesse estar na pauta.
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•
•
•
Padrão de fragmentação: Ocorre quando o fato entra na pauta da reportagem, mas passa por
uma seleção que decide quais elementos publicar podendo ainda estar descontextualizados
produzindo outra interpretação.
Padrão de inversão: Essa prática inverte o essencial da matéria tornando-o secundário e esse
processo pode apresentar-se de distintas maneiras que conforme o autor são: a) Inversão da
relevância dos aspectos; b) Inversão da forma pelo conteúdo; c) Inversão da versão pelo fato
citando dois extremos: frasismo e o oficialismo e d) Inversão da opinião pela informação.
Padrão da indução: É o resultado das manipulações que induzem o leitor a apreensão de uma
realidade criada não condizente com a realidade.
Deve-se destacar que além destes padrões o autor cita outro referente aos meios televisivos e rádio o
qual não será mencionado em razão da delimitação da revista Veja como objeto de análise para conduzir este
ensaio reflexivo sobre as possibilidades teóricas de análise para os impressos.
Nesse sentido, a imprensa nos oferece várias possibilidades de compreender as relações sociais. Ao
mesmo tempo em que divulga informações sobre a vida social, estas retornam para o mesmo espaço em que
foram produzidas gerando novas associações entre os sujeitos significando suas representações.
Representações partilhadas que integram os agentes e que posteriormente recriam ou publicam-nas através
da imprensa.
As revistas, especialmente, são veículos de informação que dispõem de uma vasta gama de técnicas
que permitem criar vários tipos de representações a cerca das temáticas abordadas. Aliando textos e imagens
com uma diagramação mais flexível em contraponto com outros tipos de periódicos maximiza a mensagem
pretendida. É um recurso diferenciado que demonstra ser uma fonte de pesquisa muito profícua.
Considerações finais
Nesta discussão buscou-se demonstrar alguns elementos que são fundamentais para compreender a
ação da imprensa na sociedade. Os veículos de imprensa são muito profícuos para realizar análises históricas
na medida em que nos colocam a par de informações sobre uma determinada realidade sendo que a mesma
foi reportada aos sujeitos do período em questão. Isso permite avaliar as duas situações históricas no qual
está inscrita. Somado aos diversos temas que suscitam pesquisas torna-se de grande valia e nos abre diversas
possibilidades.
Como propulsora para empreender esta reflexão a revista Veja permitiu que se observassem alguns
aspectos que são necessários para entender o papel da imprensa e que devem ser considerados quando se
utiliza este tipo de fonte. Desta forma, realizou-se uma discussão teórica apontando possibilidades de pensar
e analisar a imprensa considerando as particularidades inerentes ao fazer jornalístico, mas também a
influência desses escritos sobre os leitores.
Assim como analisado, as representações criadas e/ou construídas pela imprensa entram em contato
com as representações coletivas dos sujeitos que podem se contradizer e resultar no surgimento de novas.
Nesse aspecto, a recepção das mensagens divulgadas imersa num discurso que legitima a fala da revista a
respeito dos assuntos tratados se remete aos consumidores que irão se (re)apropriar de tais significados de
maneiras distintas. Embora aos poucos se possa verificar a delimitação de um grupo específico que
compartilha destas visões de mundo.
Mais do que algo unilateral, a circularidade que permite essa pluralidade de significações deve ser
compreendida dentro desta vasta teia de relações sociais mantidas através de relações de poder. Partindo das
contribuições de Bourdieu entende-se que essa conexão opera por meio de uma luta simbólica engendrada
no interior desse sistema que pretende impor uma determinada representação sobre as demais. Reitera-se o
papel da imprensa nesse universo conforme destaca Bourdieu (1989, p. 15): “O que faz o poder das palavras e
das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e
daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”.
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Nesse sentido, a revista Veja enquanto veículo de informação contribui para a construção de
determinadas representações que irão manifestar-se a partir das suas publicações. Essa influência irá
distinguir e delimitar as fronteiras de outros grupos. Por isso, como salienta Marialva Barbosa (2007, p. 153),
“conseguir audiência é sempre conseguir poder”. E a valoração por essa aquisição é notória do prestígio
conferido pelos leitores, que, uma vez que estejam em contato com tais materiais, lentamente irão incorporar
o habitus desse grupo.
Por isso, pensar a imprensa em suas múltiplas faces permite que se possa compreender o universo
em que as relações sociais são estabelecidas verificando as estratégias utilizadas para reportar as notícias e
informações. As possibilidades teóricas aqui apontadas podem servir como base para ampliar os olhares que
são direcionados a esses impressos, independente do tema e enfoque atribuído a cada pesquisa. História e
imprensa são, portanto, áreas que permitem um diálogo bastante profícuo e que demandam grande atenção.
Referências
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imprensa. 2. ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2016.
BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Tradução de Daniela Kern; Guilherme J. F.
Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.
_____. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela
Galhardo. Lisboa: DIFEL, 1990.
_____. Defesa e ilustração da noção de representação. Tradução de André Dioney Fonseca e Eduardo de
Melo Salgueiro. Fronteiras, Dourados, MS, v. 13, n. 24, p. 15-29, jul./dez. 2011.
_____. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191, jan./abr. 1991.
CORRÊA, Thomaz Souto. A era das revistas de consumo. In: MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de
(Org.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 207-232.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001.
JOVCHELOVITCH, Sandra. Representações Sociais e Esfera Pública: A construção simbólica dos espaços
públicos no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revista: Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de República, São
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SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2014.
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A Rio Pardo colonial:
a formação de suas praças e estrutura urbana inicial
Lucas Lopes Cunha1
Resumo: O artigo pretende trabalhar a formação de duas praças na cidade de Rio Pardo, no Rio Grande do
Sul, através do urbanismo colonial português. Por ter sido colonizada inicialmente por portugueses e
brasileiros atuantes no exército dos Dragões, o núcleo urbano de Rio Pardo se origina com a construção da
fortaleza Jesus, Maria, José para defender o território português das tentativas de ataques espanhola e
indígenas. A ocupação do mesmo espaço pelos familiares desses militares e a posterior chegada de algumas
famílias açorianas consolidou o desenho português na escolha dos espaços públicos da cidade. A abertura e
nomenclatura das ruas estava de acordo com o que exigia as Ordenações Reais, além da construção dos
prédios institucionais, que ao redor do sítio da praça eram construídos. O crescimento demográfico da
freguesia impulsionou sua expansão e novos espaços foram escolhidos para edificar praças, igrejas e casas
comerciais, permanecendo o hábito português e preservando a semelhança com freguesias e vilas do restante
da colônia.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como finalidade analisar o contexto de ocupação da cidade de Rio Pardo, Rio
Grande do Sul, na metade do século XVIII e a formação de sua estrutura urbana inicial, enfatizando o espaço
da praça com irradiadora urbana dentro do colonialismo português. Para tal estudo, se utilizou de leituras de
autores clássicos da história do Rio Grande do Sul, de Rio Pardo, do urbanismo colonial português, e do
urbanismo em solo brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Praças, Rio Pardo, Urbanismo Colonial.
As origens do povoamento da Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul estão remotas ao período
aurífero vivido pela população colonial brasileira da época. É uma consequência da irracionalidade do povo
que ao deixar que cultivar trigo e passar a alimentar-se apenas de carne, o fez em números exagerados e
quase extinguiu o gado existente nas pradarias ao longo do rio São Francisco2
Guiados por esta situação, os lagunenses receberam, por volta de 1720, ordens de avançar em direção
ao sul ocupando os campos do Tramandaí, como eram conhecidas as pradarias do nordeste rio-grandense
(WEIMER, 2004), iniciando, então, o povoamento da área que até então era considerada inútil.
Em 1740, Jerônimo Dorneles de Menezes e Vasconcelos recebe sua carta de sesmaria, que delimitava
sua propriedade as proximidades do Guaíba. A tendência era, vinte após a saída de Laguna, seguir ocupando
a margem leste do território.
A ocupação das terras indígenas, a rivalidade fronteiriça com a Espanha e a perda de Colônia do
Santíssimo Sacramento para os mesmos castelhanos em 1735, obriga Portugal a tomar medidas mais sérias a
fim de proteger seus domínios. E neste contexto é ordenada a construção do forte de Rio Grande, como
explica Weimer:
“A conquista, em 1735, da Colônia do Sacramento pelos castelhanos também
exigia uma ação militar efetiva. O comandante José da Silva Paes que fora
encarregado de construir um sistema de fortificações para proteger a vila do
Mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Maria, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
2 Para Weimer (2004) “o redobrado consumo destes animais alertou para sua extinção e este foi um dos motivos que levou a coroa
portuguesa a tomar atitudes mais drásticas, no sentido da anexação dos campos sulinos que haviam se povoado com gado de raça
franqueira, que havia sido introduzido através das missões jesuíticas.” (p. 94)
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Desterro foi mandado com sua esquadra ao sul com o tríplice encargo de
reconquistar a Colônia do Sacramento, expulsar os espanhois que haviam se
estabelecido em Montevidéu e construir um forte em Rio Grande.”
(WEIMER, 2004, p. 95)
A ajuda enviada pelo governador paulista para dar apoio aos militares se constituiu em um núcleo
urbano que viria formar a vila de Rio Grande, que segundo Weimer (2004), “se constituiria num erro
estratégico, porque o tornava vulnerável”. Cristóvão Pereira de Abreu e seus homens se estabelecem na
península entre a lagoa e o mar e, quando foi fundada a paróquia de São Pedro de Rio Grande, ele recebe
ordens de avançar para ocupar as margens do canal da lagoa dos patos.
Depreende-se, então, que a ordem da construção de um forte em Rio Grande é a gênese do
povoamento no local. As origens da Vila de Rio Grande estão intimamente ligadas ao militarismo português e
seu desejo de manter o território.
Leonardo Marques Hortencio e Maturino Santos da Luz, em artigo apresentado no ano de 2011
apresentam também outras circunstâncias pelas quais o território do Rio Grande foi colonizado. Segundo os
autores:
“Para garantir a posse de Colônia e para explorar os rebanhos de gado, para
abastecer especialmente Minas Gerais, Portugal incentiva a ocupação do
território litorâneo situado entre Laguna e Colônia. Assim, são colonizadas as
faixas entre as lagoas e o oceano, e, posteriormente, uma linha perpendicular
à primeira, da foz do Jacuí até Rio Pardo.” (HORTENCIO, LUZ, 2011, p. 3)
Para os autores, a briga pela posse e posterior defesa da Colônia do Sacramento e a exploração do
gado xucro, que primeiramente foi criado nos primeiros aldeamentos jesuíticos e depois se debandou após as
invasões bandeirantes, motiva Portugal a incentivar a colonização do continente de Rio Grande, que
receberia então moradores de São Paulo, Laguna, Rio de Janeiro e de Colônia do Sacramento.
Posterior a esses movimentos colonizatórios, surge outro grupo candidato a colonização e expansão
do território gaúcho: os ilhéus de Açores, os Açorianos.
A primeira tratativa de enviar casais açorianos à Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul
remonta ao ano de 1738, quando “o Conselho Ultramarino português dirigiu-se ao rei, sugerindo que casais
das ilhas fossem ao Presídio do Rio Grande de São Pedro” (TORRES, 2004), como mostra a transcrição
disposta em Torres (2004):
“[...] visto se achar estabelecida a fortificação do Rio Grande de São Pedro
que V. Majestade se sirva querer tomar a última resolução nas consultas que
o Conselho tem posto na real presença de V. Majestade para os transportes
dos casais das ilhas para o mesmo estabelecimento, porque só por este meio
se poderá evitar a grande despesa que precisamente se há de fazer com os
transportes dos mantimentos do Rio de Janeiro por falta de cultivadores que
naquelas vastíssimas terras os fabriquem, além de ficarem, estes, também
igualmente servindo para a sua necessária defesa, e ser do interesse do
Estado acrescentarem-se o número de povoadores, o que para crescer
consideravelmente as rendas reais do mesmo Estado, assim nos dízimos das
terras que cultivarem como também nos direitos das alfândegas dos gêneros
a que precisamente hão de dar consumo, matéria esta que se faz digna da
alta e grande compreensão de V. Majestade.”(COLEÇÃO de documentos de
José da Silva Paes, 1949 apud TORRES, 2004)
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Podemos observar na citação acima mais de uma justificativa para a emigração dos ilhéus dos
Açores: a agricultura, para o cultivo dos mantimentos, visando evitar despesas com o transporte dos mesmos
do Rio de Janeiro ao à Vila de Rio Grande; a defesa do território do Continente, de domínio português, mas
frequentemente ameaçado por investidas castelhanas; a vontade de ter aumentadas as rendas reais do
Estado, através do crescimento demográfico da Vila; e por último e intimamente ligado aos três, temos o
fortíssimo interesse do Estado de aumentar consideravelmente a população da Vila. Este último que seria a
força motriz por trás dos demais anteriormente citados, por propiciar um contingente cada vez maior,
elevando-se sucessivamente e aumentando a força produtora do Continente.
Segundo o mesmo autor:
“O aspecto mais destacado que impulsionou a colonização açoriana no sul do
Brasil deveu-se à pressão demográfica e à concentração territorial, associada
a um fraco crescimento econômico das ilhas. Além disso, o arquipélago foi
assolado por vulcanismo, abalos sísmicos e cataclismas que deixaram
apreensiva a população.” (TORRES, 2004)
Os infortúnios naturais que assolavam a ilheta motivaram as inscrições dos casais para a viagem e
impulsionaram a vinda de milhares de açorianos ao Continente de Rio Grande.
A chegada dos açorianos a Rio Pardo é datada de 1753:
“Fracassado o intento de por em prática o tratado, e tendo os açorianos
destinados ao Rio Grande do Sul chegado em 1753, a solução foi assentá-los
nas regiões já ocupadas e na colonização da margem norte do rio jacuí.”
(HORTENCIO. LUZ, 2011, p. 8)
E sobre o surgimento de Rio Pardo é citado pelos autores de tal maneira que:
“Foi neste contexto de ocupação do vale do Jacuí que surgiu Rio Pardo, a
partir da fundação da Fortaleza Jesus, Maria e José (1753), consequência do
Tratado de Madrid. Com isso, Rio Pardo passou a ser centro logístico de
operações militares portuguesas no processo que se iniciava de delimitação
de fronteiras e da ocupação da área das Missões.” (HORTENCIO. LUZ, 2011,
p. 9)
Ao falarem sobre os primórdios da civilização riopardense, os autores destacam a importância de
uma fortaleza militar na região para com o povoamento. Assim como aconteceu na Vila de Rio Grande, a
Freguesia de Nossa Senhora do Rio Pardo é fruto de uma base militar, primeiramente construída para
realização da defesa do território português e materializada na figura da fortaleza, por onde se estruturou os
princípios de Rio Pardo.
É importante salientar, ainda sobre a ocupação do espaço de Rio Pardo e a construção da fortaleza,
que dentro de um período litigioso entre as Coroas, o Tratado de Madri, assinado em 1750 propicia a ereção
da base militar. A partir do tratado, Gomes Freire de Andrade é escolhido para fazer a demarcação das novas
terras portuguesas e espanholas, e para isso ele ordena a construção de dois depósitos avançados, um em
Santo Amaro e outro em Rio Pardo. Essa ordem parte ainda no ano de 1751, e os depósitos serviriam para
guardar mantimentos e munição durante o inverno. Pela sua localização, logo recebe ordens para tornar-se
uma fortaleza, o que acontece em meados do ano de 1752.
Para Macedo (1972), os primeiros açorianos assentado em Rio Pardo foram:
“Alojados na rua velha, entre os arroios do Couto e Diogo Trilha, próximo de
um destacamento dos Dragões ali sediado para a defesa dos acessos por terra
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ao Alto da Fortaleza, do qual distava cinco quilômetros.” (MACEDO, 1972, p.
36)
Vemos então dois modelos de colonização em Rio Pardo. O militar, através da Fortaleza Jesus, Maria
e José e o açoriano, em localidades que hoje fazem parte do bairro de Ramiz Galvão.
“O assentamento inicial da população, entretanto, se dá longe do forte, na
atual Vila de Ramiz Galvão. Posteriormente, começa a se formar o centro
definitivo da povoação, no divisor de águas, atual Rua Andrade Neves. Com a
invasão espanhola em Rio Grande, o centro se desloca para a área ao redor
da praça da atual Igreja Matriz, mais próxima da Fortaleza, por questões de
segurança. Assim, a estrutura urbana definitiva se configura, definindo o
centro histórico – atual pólo turístico da cidade.” (HORTENCIO. LUZ, 2011,
p. 20)
Como foi compreendido a partir da citação acima, o centro da cidade remodela-se transferindo-se
para o entorno da fortificação, mas ao analisarmos a planta da Fortaleza Jesus, Maria e José, percebemos que
esse centro pode ter sido – com uma parcela enorme de chance -, enviado para o interior da fortificação,
onde possivelmente se localiza hoje a Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário, a praça desta igreja e uma
mixórdia de casas de diferentes modelos arquitetônicos e idades dispares.
Para sustentar devidamente essa afirmação, devemos identificar e analisar alguns aspectos presentes
na historiografia que aborda o tema: Observando a figura 1, que é uma imagem da planta da Fortaleza Jesus,
Maria e José, percebemos que a praça de armas representada na planta pela letra “A” está à frente da igreja,
representada no mesmo local pela “C”, onde, segundo Laytano:
“Os fieis cumpriam as suas devoções na Ermida da Sagrada Família, que
existia, desde 1753, no Alto da Fortaleza, conforme tradição em Rio Pardo
que fala da ermida junto do templo de Jesus, Maria, José, na zona do forte
do mesmo nome.” (LAYTANO, 1946)
Figura 1
Fonte: Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial (REIS FILHO, 2000)
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A citação de Dante de Laytano aqui transcrita mostra que em período anterior à invasão castelhana
em Rio Grande, Rio Pardo já possuía uma atividade religiosa, composta e praticada nesta ermida, ereta desde
1753.
Apropriando-nos de um trecho de Weimer (2004), compreendemos que:
“Desta aproximação entre colonizadores e indígenas surgiram os primeiros
aldeamentos mestiços, como as tradicionais formas de aldeias indígenas em
meio à qual era erigida uma cruz e uma igreja.” (WEIMER, 2004, p. 74)
Este “meio” que está presente na citação do autor, transforma-se depois em centro de diversas
povoações, cada uma com características próprias, mas contendo, com bastante frequência, a confrontação
da igreja com um largo:
“Se a tradição medieval exigia a confrontação da igreja com um largo, a
forma como se procedeu a este contato, veio a valorizar ainda mais esta
solução que atribuía destaque plástico ao templo [...]” (WEIMER, 2004, p.
74)
A partir destes aspectos, podemos entender as materializações da igreja e da praça como espaços
centrais urbanos de uma povoação, como constata Júnia Marques Caldeira:
“Na antiguidade greco-romana, a praça era o espaço urbano mais
importante, o que também vai acontecer nas praças das primeiras cidades
coloniais brasileiras. Nela se encontram todos os edifícios administrativos e
cívicos: a casa da redenção, câmara, cadeia, praça do pelourinho. É ela o
centro irradiador da cidade.” (CALDEIRA, 2007, p. 11)
É provável, então, a partir destes estudos realizados, que a transferência do centro urbano de Rio
Pardo, que crescia linearmente em um ponto alto da cidade, hoje conhecido como Rua Andrade Neves, tenha
acontecido para dentro da fortificação, pelo já conhecido motivo da invasão castelhana em Rio Grande, em
1763, tornando o clima inseguro aos arredores de Rio Pardo. E tendo acontecido desta maneira, propiciou no
local um crescimento de residências e populacional, além de comercial, sendo ligado diretamente mais tarde
com o antigo centro da cidade, pela rua popularmente conhecida como Rua da Ladeira.
A FORMAÇÃO DAS PRAÇAS NO BRASIL COLONIAL E NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA
DO ROSÁRIO DE RIO PARDO
A partir dos escritos acima, podemos começar a tratar das primeiras praças de Rio Pardo e traçar um
parâmetro para suas formações. Tendo em vista que somente duas praças são estudadas, as praças Dr.
Protásio Alves, situada a frente da Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário e a Dr. Pedro Alexandrino de
Borba, localizada a frente da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis.
Tomando a colonização da cidade como embasamento, seus primeiros povoadores e seu traçado
urbano característico, conseguiremos ao menos levantar uma hipótese sobre a formação da primeira praça
citada.
Analisando uma transcrição presente em SANTOS (2001), contextualizaremos o fato ordenado para
o Ceará Grande com o ocorrido em Rio Pardo. Diz o seguinte:
“[...] e na sua praça hei de fazer levantar o pelourinho, assinando-lhe área
suficiente e também para todos os edifícios públicos, como seja para a igreja,
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que sirva para matriz, em que se louve a Deus, casa da Câmara, cadeia e
açougue, e mais oficinas públicas e para habitação de cada um dos seus
moradores em particular, alinhando as ruas que há de ter, e os quadrados
das suas casas com igualdade.” (REVISTA do instituto apud SANTOS, 2001,
p. 57)
Observando a transcrição percebemos a ligação existente entre a praça e as principais edificações da
cidade. Dentre elas, destaca-se a igreja, sendo Matriz ou simples capela.
Caldeira (2010) explica como aconteceu nas cidades portuguesas, o novo processo de urbanização, e
que foi herdado pelas colônias portuguesas na América:
“[...] com o processo de valorização estética da praça, muitas cidades tiveram
a oportunidade de associar às intervenções a reconstrução de edifícios
institucionais e religiosos, como Casas de Câmara, Igrejas Matrizes e
Misericórdias (hospitais).” (CALDEIRA, 2010, p. 25)
Complementando esta explicação, podemos citar Rossa (2001):
“Os ‘rossios’, ‘terreiros’ ou ‘largos’ junto às portas das cidades, por regra
sempre exteriores [...], foram gradualmente reformados em praças onde
frequentemente se construiu de novo a casa da Câmara, o quase inseparável
açougue e se ergueu o pelourinho. São espaços, equipamentos ou instituições
velhos com novo significado, atribuições e poder, símbolos de um Estado já
bem enraizado.” (ROSSA apud CALDEIRA, 2010, p. 25)
No caso de Rio Pardo foi desta maneira que se deu, a partir da instalação da fortaleza, quando foi
erigida a Ermida da Sagrada Família para que os soldados e seus familiares instalados no local, pudessem
realizar suas orações e cultos católicos. A praça das armas, da qual já falamos em momento anterior,
localizava-se, segundo a planta de 1754, a frente da ermida, ou como está registrada na planta, a frente da
igreja. Segundo a mesma autora:
“A configuração dos espaços de caráter religioso aparece na formação dos
chamados largos, terreiros, adros e campos. Simbolizam a presença das
diversas ordens religiosas existentes no contexto urbano português e que
desempenharam um papel importante na colonização brasileira.”
(CALDEIRA, 2010, p. 29)
A presença destas ordens religiosas presentes em todos os momentos da colonização portuguesa
mostra a ligação do Reino com a igreja católica, a dependência moral da população inteira e a participação da
igreja nos processos de colonização, seja pela catequese dos povos indígenas nos primórdios da colonização,
seja pela importância na urbanização, onde exibia-se imponente perante outras edificações que estruturavam
o núcleo urbano. Weimer (2004) descreve o primeiro movimento urbanizatório de Rio Grande da maneira
que “em lugar de destaque estava implantada a igreja com um alargamento fronteiro”. Trata-se, portanto, da
igreja sendo confrontada pelo espaço que originaria uma praça. Da mesma maneira ocorreria em Rio Pardo.
A ereção da fortaleza e a ermida que nela estava, juntamente com a praça das armas a sua frente, constituemse do urbanismo português, caracterizado na cidade por dois movimentos, o militar e o açoriano.
Segundo o pesquisador Luiz Carlos Schneider, que categorizou os momentos da evolução urbana
riopardense em fases:
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“Esta fase (a primeira) vai de 1750 a 1809: há forte influência portuguesa na
arquitetura. Surgem a fortaleza, o Solar do Almirante Alexandrino –
primeiro sobrado da povoação -, a Casa da pólvora, a Capela de Santo
Ângelo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário, a Igreja São Francisco, a Capela
de São Nicolau, o porto e alguns espaços públicos como a Praça da Matriz.”
(SCHNEIDER apud VOGT, ROMERO, 2010, p. 33)
Portanto, essa declaração de Schneider afirma que a Igreja Nossa Senhora do Rosário e sua
respectiva praça são da mesma época, reforçando a hipótese do surgimento das duas. No caso de Rio Pardo,
como não houve um prévio planejamento, a praça é o marco zero da ocupação, e dentro dos costumes
urbanísticos coloniais portugueses, confrontava a Ermida da Sagrada Família, primeiro templo existente,
dentro dos limites da fortaleza.
A forma como surgiu o largo da Igreja São Francisco não é diferente. Para falar da construção desta
igreja, devemos retroceder à construção da primeira igreja Matriz da cidade, inaugurada em 1779. Vejamos
Macedo:
“A Matriz naquela data inaugurada era uma construção bastante rústica, de
taipa de barro, que deveria servir a toda população, como de fato durante
muitos anos ainda serviria, apesar do estado de ruínas bem cedo constatado
pelos fieis que começavam a se organizar em irmandades.” (MACEDO, 1972,
p. 31)
As irmandades atuantes em Rio Pardo nos fins do século XVIII eram as seguintes: os Confrades do
Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores e a Ordem Terceira de São Francisco. Segundo o mesmo
autor, as duas primeiras congregavam dos mesmos irmãos, por isso eram inseparáveis. A última é provável
que tenha se estabelecido no estado a partir da chegada de Cristóvão Pereira de Abreu, ao que foi criada uma
irmandade na localidade de Porto do Dornelles. Cita o autor:
“Parece não restar dúvida de que essa imagem (a de São Francisco das
Chagas) era a mesma em torno da qual se organizara a Irmandade no Porto
do Dornelles com o pessoal de Cristóvão Pereira de Abreu.” (MACEDO, 1972,
p. 32)
A partir da transferência da imagem de São Francisco das Chagas para Rio Pardo, será estimulada a
criação de uma Irmandade para a veneração do Santo, como diz Macedo (1972):
“Funcionava apenas há seis anos (a Matriz) quando recebeu uma imagem de
São Francisco das Chagas que, segundo a notícia, teria estimulado a criação
da Ordem Terceira, ou teria sido solicitada pelos fieis que desejavam criar
essa Ordem.” (MACEDO, 1972, p. 31)
O arcediago Vicente Zeferino Dias Lopes narra este episódio, ocorrido nos finais do século XVIII:
“Tendo sido depositada na Matriz de Rio Pardo uma grande imagem de São
Francisco das Chagas mandada sair do porto por alguns Terceiros de Viamão
e de outros lugares que para ali se saíram mudados, solicitaram a criação de
uma Ordem Terceira a qual lhes foi concedida por provisão de D. José
Joaquim Faustino Mascarenhas Castello Branco, de 17 de outubro de 1785; e
por ocasião de sua inauguração o vigário Fernando José de Mascarenhas
Castello Branco designou um altar especial na mesma Matriz e nele se
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colocou a imagem.” (EMENTÁRIO eclesiástico do Rio Grande do Sul desde
1737, do. n° 13 apud MACEDO, 1972, p. 32, 33)
A criação da Ordem Terceira em Rio Pardo tem, portanto, uma ligação com a mesma Ordem do Porto
do Dornelles, local onde a imagem esteve por vinte anos antes de ser enviada à Rio Pardo. Em Porto do
Dornelles ela motivou a criação da Ordem, da mesma maneira que aconteceu em Rio Pardo, após a sua
chegada.
A construção de um templo para a nova Ordem presente na cidade é requerida pelos membros desta
no mesmo período em que os confrades do Senhor dos Passos requerem um templo também. Não se sabe ao
certo a data em que a Ordem Terceira faz este requerimento, mas presume-se que seja em um momento
próximo do requerimento feito pelos confrades, em 1797. Sobre isso, comenta o autor:
“Pela mesma época a Ordem Terceira de São Francisco deve ter tratado de
mudar-se da Matriz, porque em 1802 davam início ‘à execução de uma
Capela num terreno doado por Antônio Borges Coelho’, doação esta
confirmada e revalidada por provisão régia de 26 de junho de 1810.”
(MACEDO, 1972, p. 41, 42)
Em 1812 o templo é inaugurado e logo iniciam as realizações das missas aos domingos e demais
festividades, no entanto, as obras ainda não tinham cessado, o que significa que a igreja ainda estava em fase
de construção, como nos mostra Macedo (1972):
“No entanto, o período dentro do qual foi iniciada a construção desta capelamor podemos classificar como o primeiro da vida daquele templo. O espaço
que vai do ano de 1802, data da doação do terreno, a 1812, ano em que é
inaugurado e nêle se inicia a celebração de missa aos domingos, devemos
entender como a primeira fase da vida da igreja. Ainda inacabada estava
quando recebeu as célebres imagens de madeira que ainda lá se encontram.”
(MACEDO, 1972, p. 42)
Ao fazer uma análise das ruas que cercam a Igreja São Francisco, Weimer (2004) explica que “parece
ter sido a primeira ampliação do povoado” (p. 100). Sobre a expansão, é provável que tenha acontecido após
a expulsão dos castelhanos em Rio Grande, no ano de 1776, quando irradiados por uma aura de segurança
decidiram se afastar da fortaleza.
Hortencio e Luz (2011) tratam da igreja como sendo consequência da praça. “Iniciada em 1802
(Capela São Francisco das Chagas), em um dos lados de uma praça criada para recebê-la, e inaugurada em
1812.” (p. 16).
Diferente da Igreja Nossa Senhora do Rosário, construída em local onde se encontrava a Ermida da
Sagrada Família e posteriormente a primeira Igreja Matriz, é provável que a Igreja São Francisco tenha tido
um prévio planejamento espacial, levando em conta a sua praça localizada em sua frente e como disse o
autor. Pegando a primeira igreja como exemplo, vimos que sua praça é consequência da ereção dos templos
que ali foram edificados, inexistindo um planejamento direto entre ela e a praça, diferentemente da segunda,
onde a praça foi construída para receber o templo. E a fim de estipular um período para sua construção,
podemos dizer com certa segurança que se não for do último ano do século XVIII, ela é dos dois primeiros
anos do século XIX.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALDEIRA, Júnia Marques. A praça brasileira, trajetória de um espaço urbano: origem e modernidade.
(tese de doutorado). Campinas, 2007.
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COSTA, Adriana Schwindt da. Patrimônio histórico e cultural em territórios urbanos: um estudo acerca do
conjunto edificado da área central da cidade de Rio Pardo – RS. (dissertação de mestrado). Santa Cruz do
Sul, 2006.
HORTENCIO, Leonardo Marques. LUZ, Maturino Santos da. A influência da imigração portuguesa na
criação das freguesias no século XVIII no Rio Grande do Sul: o caso de Rio Pardo. (artigo acadêmico). Rio
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LAYTANO, Dante de. Guia histórico de Rio Pardo. Porto Alegre, 1979.
MACEDO, Francisco Riopardense de. Rio Pardo, a arquitetura fala da história. Porto Alegre, 1972.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo, 2000a.
__________. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial: recursos para a renovação do ensino de
História e Geografia do Brasil. (artigo acadêmico). Brasília, 2000b.
ROBBA, Fábio. MACEDO, Sílvio Soares. Praças brasileiras. São Paulo, 2002.
SANTOS, Paulo Ferreira. Formação de cidades no Brasil colonial. Rio de Janeiro, 2001.
SCHNEIDER, Luiz Carlos. Patrimônio arquitetônico-urbanístico e evolução urbana: um estudo da área
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Sul, 2001.
TORRES, Luiz Henrique. A colonização açoriana no Rio Grande do Sul (1752-63). (artigo acadêmico). Rio
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VOGT, Olgário Paulo. ROMERO, Maria Rosilane Zoch (orgs.). Uma luz para a história do Rio Grande, Rio
Pardo 200 anos: Cultura, arte e memória. Santa Cruz do Sul, 2010.
WEIMER, Günter. Origem e evolução das cidades rio-grandenses. Porto Alegre, 2004.
_____. (org.) Urbanismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1992.
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Brasil x Argentina: uma proposta de análise da
rivalidade durante a década de 1970
Luciano Anderson Breitkreitz1
Resumo: Se há um consenso entre brasileiros e argentinos, é que sim, nós discordamos em praticamente
tudo. É bem provável que não sejamos tão diferentes quanto o imaginário popular nos indica. Possivelmente
nossas diferenças estão muito mais em um imaginário popular e em um âmbito de coletividade do que na
individualidade de cada brasileiro ou argentino. Nossas diferenças parecem estar muito mais no campo das
intensões do que propriamente no campo das ações, e esta é uma realidade que é bastante perceptível.
Mesmo que ambos os países disputem a hegemonia econômica, política, e até mesmo bélica em alguns
momentos, é necessário destacar que os dois países sempre deixaram transparecer a muito mais as suas
semelhanças do que as suas diferenças. A Copa do Mundo é a maior competição do futebol e reúne os
principais atletas e seleções. Centenas de profissionais de comunicação se envolvem no processo de cobertura
jornalística inundando de informações os receptores apaixonados, ou não, pelo esporte bretão. A ampla
cobertura da imprensa sobre a Copa do Mundo de 1978 traz diferentes abordagens do evento, que deixa
transparecer a rivalidade existente entre as seleções participantes, e dentre todos os clássicos do futebol
mundial, um deles nos prende a atenção: Brasil X Argentina. É papel do historiador aproximar notícias
esportivas de fatos relevantes que aconteciam fora do campo de futebol. Como já foi citada em uma ampla
bibliografia, a rivalidade entre Brasil e Argentina não começou no futebol, o esporte apenas absorveu os
atritos sociais e políticos. Durante a realização da Copa do Mundo de 1978, os dois países passavam por um
período de ditadura política. Nos dois países estavam instaurados governos militares e sem eleições diretas
para presidente. Também é necessário considerar que no período a ser estudado, o governo militar exercia
uma forte censura à mídia, e a solução encontrada por muitas empresas de comunicação era se associar ao
governo militar para manter suas atividades.
Se há um consenso entre brasileiros e argentinos, é que sim, nós discordamos em praticamente tudo.
É bem provável que não sejamos tão diferentes quanto o imaginário popular nos indica. Possivelmente
nossas diferenças estão muito mais em um imaginário popular e em um âmbito de coletividade do que na
individualidade de cada brasileiro ou argentino. Nossas diferenças parecem estar muito mais no campo das
intensões do que propriamente no campo das ações, e esta é uma realidade que é bastante perceptível.
Mesmo que os países disputem a hegemonia econômica, política, e até mesmo bélica em alguns momentos, é
necessário destacar que os dois países sempre deixaram transparecer a muito mais as suas semelhanças do
que as suas diferenças.
Fazendo um trocadilho com o esporte, o pontapé inicial pode ser dado no futebol. Na verdade a ideia
de utilizar futebol como objeto de pesquisa histórica é pouco comum, porém, está longe de ser inédita 2.
Também consideramos que a rivalidade, não apenas no futebol, mas em diversos âmbitos sociais, como por
exemplo na política, também já foi alvo de muito estudo 3, mesmo assim, cabe neste momento, um
aprofundamento de algumas questões relativas ao futebol e a rivalidade, bem como a maneira que serão
abordadas neste trabalho.
De fato, o futebol, como a maioria dos esportes, é excelente terreno para a construção e confrontação
de juízos sobre a nação. E é justamente porque os esportes se constituem em “domínio menor” da sociedade
que apresentam enorme abertura às mais diversas apropriações ideológicas. Tratando-se da atuação da
seleção brasileira de futebol, chega a ser impressionante o modo como se passa, sem nenhuma mediação
1 Cronista Esportivo e Docente. Graduado em Comunicação Social (UPF), Mestre em História Regional (UPF) e Doutorando em História
Regional (UPF).
2 FILHO, Mário. O Negro no Futebol Brasileiros. Mauad X. 1947.
GALEANO, Eduardo. O Futebol ao Sol e à Sombra. L&MPoket. 1995.
3 FOER, Franklin. Como o Futebol Explica o Mundo. Jorge Zahar Editor. 2004.
KUMPER, Saimon. Football Against the Enemy. The times. 1994.
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considerável, da avaliação do time para a avaliação do povo. As vitórias da seleção nacional evidenciam a
capacidade do povo brasileiro, enquanto as derrotas são nada menos que denúncias de sua indigência.
O futebol, em si, já pode ser analisando enquanto objeto de uma pesquisa histórica, FRANCO
JÚNIOR (2007) associa o surgimento do futebol na Inglaterra com a realidade histórica que o país
vivenciava. Para o autor é impossível dissociar o surgimento do futebol com a revolução industrial, já que
ambos baseiam-se na competição, secularização, produtividade, igualdade de chances, supremacia dos mais
hábeis, especialização de funções, qualificação de resultados e fixação de regras.
FRANCO JÚNIOR (2007) cita o historiador Robert Levine ao definir o esporte como uma “metáfora
da dinâmica social”, pois a regulamentação do esporte faz parte de um processo que visa dominar o corpo,
submetendo-o a um poder socialmente instalado. Desta forma surgem o capitão do time, o presidente do
clube, o representante da federação, conselho disciplinar e confederação, constituindo micro-sociedades à
imagem e semelhança da macro-sociedade que as cria e acolhe.
WISNIK (2008, p. 75-76), considera essencial entender que, ao dar forma lúdica ao mito da
concorrência universal, o futebol criou o campo simbólico onde essa concorrência muda de sentido em dois
aspectos. O primeiro no campo social, já que é apropriada por agentes que não teriam oportunidade no
campo da competição econômica (operários ingleses ou brasileiros pobres, por exemplo). O segundo no
campo simbólico, já que a concorrência se dá em código corporal e não verbal, irradiante de sentidos não
determinados, desfrutando de um estatuto correspondente ao da autonomia da obra de arte.
ALVES (2006 p.33 a 37) expõe o futebol sob o ponto de vista do torcedor, onde sua a maior
motivação por apoiar incondicionalmente um time está no prazer de ver o adversário derrotado. Ele propõe
uma analogia entre o futebol e o sadismo, onde a maior alegria do torcedor é, de alguma maneira, humilhar o
oponente. O autor faz uma reflexão sobre o cotidiano de qualquer pessoa, que se diverte com o sofrimento
alheio, citando como exemplo a televisão, onde os desenhos animados têm no seu ápice e ponto mais
engraçado quando o vilão “quebra a cara”, mas não de forma definitiva, já que na cena seguinte ele está
completamente reestruturado para novamente fazer o espectador se divertir com o mesmo mecanismo.
Esta lógica é aplicada inteiramente ao futebol, onde o torcedor busca matar moralmente o
adversário, mas tendo consciência que na rodada seguinte ele vai estar completamente recuperado para ser
novamente alvo do ataque e da diversão.
Se, por um lado, o prazer de superar um adversário é uma das grandes forças atrativas no futebol,
por outro, a derrota torna-se um grande martírio. A rivalidade, independente do resultado em campo, exerce
uma influência direta no cotidiano das pessoas e na sua autoestima, se referindo a questões que extrapolam o
campo. Uma derrota em um clássico, por exemplo, e é o caso de Brasil e Argentina, define o rumo iniciado e
norteado nos bastidores das seleções.
Ao utilizar o futebol como um conceito de guerra simbólica, baseado em FRANCO JUNIOR, (2007 –
P. 235 a 237) considera-se que toda a sociedade consente alguma forma de violência considerada legítima
(prisão, tortura, execução, sacrifício) para controlar violências ilegítimas (roubo, coação, assassinato). Se
muitas culturas aceitaram ou aceitam a ideia de sacrifício ritual de alguns indivíduos, todas concordam
explicita ou implicitamente com a ideia da guerra como sacrifício coletivo. A morte de certo numero de
pessoas, oferecidas aos deuses ou à sociedade, significa a sobrevivência das outras. A guerra é síntese e ápice
dessa crença. Se a guerra, conforme a célebre definição de Carl Von Clausewitz, é “continuação – ou
prevenção – da política por outros meios”, talvez não seja casual que nas culturas hindus, islâmicas e
judaicas, que aceitam o sacrifício ritual, o futebol não tenha a mesma difusão que no Ocidente Cristão.
Futebol é guerra simbólica. A linguagem usada nele tem expressões significativas, como “matar a
bola”, “matar a jogada” ou “matar o jogo”. O jogador encarregado de fazer a maior parte dos gols é o
“artilheiro”, o “matador”. O representante do time junto ao árbitro é conhecido por uma patente militar, “o
capitão”. Certos futebolistas, devido a disposição em campo ganham o apelido de “guerreiro”, outros devido a
sua força física são chamados de “tanque”. A própria partida é o “confronto”, o “duelo”, o “embate”. É o
treinador que, como um general, mantém a tropa em boas condições de vencer. É ele quem determina as
regras ao grupo, quase sempre enfatizando as virtudes militares da camaradagem e disciplina, mantendo a
equipe unida na concentração (termo de sentido militar). O treinador, da mesma forma que o general, é
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quem define a tática a ser empregada. É aquele que escolhe a disposição de seus homens no terreno de jogo e
as ações conjuntas que eles devem executar pra melhor defender e atacar (mais uma vez, vocábulos
militares). Na formulação mais elementar, o futebol é o jogo no qual quem está com a bola ataca, quem não
está se defende. O dado fundamental é a ocupação neste espaço.
Analisando o futebol como uma guerra simbólica, não é de surpreender que uma das principais
rivalidades do esporte mundial, seja entre Brasil e Argentina. Pode-se entender que, as divergências entre os
dois países, acabe convergindo para uma solução simbólica entre as seleções dos dois países. Brasil e
Argentina tem um histórico de aproximação e afastamento bastante constante no âmbito político, que pode
ser observado desde o processo de formação dos dois países.
CERVO (1994, P.14) entende que as relações internacionais são orientadas por dois sistemas de
determinação, nos quais se localiza parte da explicação desejada, inicialmente aquele que age na origem
correspondente a determinadas forças históricas que são fatores de propulsão de acontecimentos, o sistema
da causalidade, e aquece que age no fim correspondente aos desígnios, ambições, objetivos e metas que as
sociedades, os Estados e suas lideranças consignam como incumbências da política, o sistema de finalidade.
RECKZIEGEL (1996), considera que a característica maior do relacionamento brasileiro-argentino,
mesmo que intercalado por momentos de amizade, ou até mesmo certa indiferença, foi o constante estado de
rivalidade. Muitas vezes não oficialmente declarado, o antagonismo permeou essas ligações na medida em
que suscitou desconfianças e prevenções mútuas. Esse contexto de rivalidade foi animado, antes de qualquer
coisa, pela pretensão de liderarem as nações do bloco sul-americano, ou seja, pelo desejo de hegemonia
regional. (P.30).
Procurando as raízes dessa disputa, RECKZIEGEL (1996) se reporta, ao século XIX, pois ao longo
dele, o Império brasileiro e os governos argentinos manobraram em busca de influência junto aos pequenos
Estados limítrofes, notadamente o Uruguai, Paraguai e Bolívia:
Observamos, já em 1820, o choque entre os dois países pela posse da
Cisplatina; em 1852, o Brasil moveria guerra contra o ditador portenho Rosas,
acusado de tentar restabelecer o Vice-Reinado do Prata, espécie de condomínio
regional, liderado pela Argentina e que incluía Paraguai, Uruguai e Bolívia (...)
Um outro episódio nas relações Brasil-Argentina , no final do século XIX,
configurar-se-ia na disputa pelo território de Palmas de Missiones. O rumoroso
caso, que envolveu dois renomados chanceleres, Zeballos e visconde de Rio
Branco, acabou sendo arbitrado pelos Estados Unidos, que se pronunciaram
favoravelmente ao Brasil (...) Os atritos entre os dois países voltaram a ocorrer
no início do século XX, evidenciando um dos momentos de maior tensão nessa
relação. Os incidentes iniciaram-se em 1906, com as acusações constantes do
ministro do Exterior argentino, Zeballos, a respeito do que ele considerava
armamento excessivo da Marinha brasileira, o que viria a contrariar o princípio
de equivalência naval entre as duas nações. Zeballos não poupava críticas ao
militarismo e ao imperialismo brasileiros. Note-se aí que o chanceler argentino
nada fazia de original uma vez que essas posturas já haviam sido invocadas no
século anterior por Alberti, um intérprete do ódio e da desconfiança ao Brasil,
(Reckziegel P. 31 e 32).
Contudo, dentre os fatos que mais chamam a atenção (RIECKZIEGEL 1996) nas relações de
rivalidade entre o Brasil e a Argentina, um em especial é considerado o ápice nessas relações de conflito: No
ano de 1908, no episódio do telegrama n° 9, quando a chancelaria Argentina interceptou um telegrama
cifrado de Rio Branco à delegação brasileira no Chile; tendo-o decifrado, mandou publicá-lo na imprensa
portenha de forma deturpada, dando-lhe caráter de intriga contra a Argentina. Rio Branco, respondeu
publicando o Código Diplomático Brasileiro e o texto original do telegrama para demonstrar que a versão
divulgada na Argentina fora falsa. Consequentemente. Em comentário sobre o acontecido, Rio Branco diria
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depois: “Mais do que nunca é preciso que nos ponhamos em estado de defesa contra esse vizinho, desde que
loucos como Zeballos ali podem agitar a opinião”. (P. 32 e 33).
Na década de 1940, surgiria um outro foco de tesão entre Brasil e Argentina, cujo ponto-chave eram
as pretensões imperialistas dos Argentinos. Em 1943, um Grupo de Oficiais Unidos (GOU), sob a liderança de
Juan Domingo Perón, lançou um manifesto no qual especificava que seu objetivo era a formação de um bloco
de regimes, semelhante ao dos países hispano-americanos vizinhos, a fim de isolar o Brasil e de combater a
influência norte-americana na região. RECKZIEGEL (1996. P. 35) cita uma passagem do documento: “uma
vez que o Brasil caia, o continente sul-americano será nosso”, alusão inconfundível ao entrave que o Brasil
representava aos planos hegemônicos argentinos. Essas intenções, contudo, tiveram de ser contidas,
especialmente em função da Guerra Mundial, que obrigou a Argentina a estabelecer relações comerciais com
o Brasil de forma mais intensa uma vez que suas fontes tradicionais de importação da Europa estavam
bloqueadas.
Contudo, não pode-se analisar a rivalidade entre Brasil e Argentina somente a através dos meios
oficiais, sejam políticos ou diplomáticos. RECKZIEGEL (1996. P. 36), lembra que em alguns períodos, a
diplomacia oficial esforçava-se para manter as relações governamentais em níveis amistosos, seguindo a
tática inaugurada por Rio Branco. Para demonstrar esse procedimento, parece-nos adequada a expressão
harmonia oficial, utilizada por Hilton (1983), que sugere a existência de questões que ocorriam à margem das
relações diplomáticas propriamente ditas.
A década de 1950, por exemplo, inaugura um novo capítulo na história da rivalidade BrasilArgentina. Os anos que coincidiram com os mandatos de Vargas e de Perón seriam de uma tensão tão
exacerbada que, talvez, somente encontrem similaridade na época de Rio Branco e de Zaballos.
Numa primeira análise, esse período se apresentaria para as relações entre ambos os países como de
aparente simetria. De um lado, os dois passaram a dispor dos requisitos básicos que lhe permitiram rápidos
processos de industrialização, ou seja, manterem fortes vínculos de dependência com o sistema
internacional. Tanto Brasil quanto Argentina, foram capazes de realizar um processo de substituição de
importações durante a década de 1930 que, se mantido em um longo prazo poderia conduzir a uma
transformação estrutural em suas economias. Por outro lado, ambos se viram direta ou indiretamente,
envolvidos na inserção da América Latina em um projeto político internacional; no que se refere ao aspecto
político, a orientação populista-nacionalista e a estrutura pareciam também aproximá-los. Evidentemente,
essa similitude político-ideológica dos governos Vargas e Perón não significou, de forma alguma o abandono
de uma postura competitiva entre as nações. RECKZIEGEL (1996. P. 38) esclarece que ao lado das
semelhanças, haviam diferenças fundamentais, sobretudo no que diz respeito à direção dada à política
externa de cada governo.
FROTA (1991) ao discutir as relações entre Brasil Argentina, considera a origem da rivalidade tem
origens no século XV, remetendo a um período histórico anterior, inclusive, ao chamado descobrimento do
Brasil, em 1500. Nos anos finais de 1400, quando Espanha e Portugal discutiam a divisão das terras
localizadas a oeste da Europa:
Quando – no século XV – Portugal e Espanha iniciaram o ciclo expansionista
dos descobrimentos, os interesses das duas coroas geraram conflitos,
procurando as suas diplomacias resolver as questões jurídicas através dos
respectivos títulos das possessões descobertas. Recorreu-se às bulas papais
como a “Inter Coetera” (1493), pela qual, o meridiano divórcio de cem léguas a
oeste de Cabo Verde, estabelecida limites entre as possessões lusas e
espanholas. Pelo Tratado de Tordesilhas (1494), ficou estabelecida a medida de
370 léguas a oeste da linha traçada anteriormente. Assim, quando Cabral
chegou ao Brasil, já eram portuguesas as terras descobertas. As correntes
colonizadoras lusas não tardaram a encontrar resistência por parte de corrente
espanhola, que efetuava também a ocupação do seu espaço territorial.
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Descoberto o rio da Prata pelos espanhóis, o rei português, D. João III, dividiu
o seu domínio em doze Capitanias Hereditárias dentro de uma estratégia inicial
de contenção de espaço geopolítico. A implementação dessa estratégia já
evidenciava os desígnios de incorporação daquele rio ao território português.
Os interesses brasileiros no rio da Prata, no século XIX, representaram a
continuidade da política portuguesa, cuja expansão em direção ao Prata foi
assinalada com a fundação da Colônia do Sacramento. Os efeitos dessa política,
contudo, só se fizeram notar em toda a sua extensão, após o período de ruptura
da união das duas coroas peninsulares, iniciado sob Felipe II. (FROTA P.23)
O período do Brasil Colônia também nos mostra algumas situações bastante relevantes, que ajudam
a fomentar a rivalidade entre os dois países, e em alguns momentos com tentativas bastante evidentes de
impor a soberania de Portugal às terras que pertenciam aos espanhóis. FROTA (1991). Desta, em especial o
período em que a Coroa Portuguesa transferiu-se para o Rio de Janeiro:
Com a invasão napoleônica na Península Ibérica, deu-se a transferência da
corte portuguesa e a elevação do Brasil à condição de Reino Unido de Portugal
e Algarves (1808 – 1821). A situação brasileira com essa transformação, foi
ímpar no panorama americano de então. Instalada a Corte no Rio de Janeiro,
foi encaminhado ao Cabildo de Buenos Aires um pedido do exame da
conveniência de que a infanta de Espanha, Carlota Joaquina, fosse
reconhecida... “como cabeça do governo no Rio de Janeiro e a seu marido como
protetor natural dos direitos do rei espanhol”. O Cabildo, habilmente negou
tais pretensões, preferindo manter-se fiel ao rei da Espanha.
Tentativa similar deu-se mais tarde com a volta de D. João VI a Portugal. A
ocupação portuguesa da Banda Oriental contrariava a Espanha, assim num ato
de “doble fundo”, reconheceu-se as Províncias Unidas do Rio da Prata, ou seja,
desejou-se legitimar a forma de anexar, reconhecendo-se a identidade da nova
nação. Foram as ambições territoriais lusas que levaram a Espanha a preparar
a expedição capitaneada por D. Pedro de Mendoza (1953). Deu-se então a
primeira fundação de Buenos Aires, numa tentativa de impedir a fixação
portuguesa no Prata. As lutas e rivalidades na região foram, pois, o produto da
confrontação luso-espanhola pelo controle desse ponto chave na América do
Sul. (FROTA P. 24 e 25).
Contudo, não há como dissociar a influência dos fatores geopolíticos nas relações Brasil e Argentina.
Em relação às políticas externas dos dois países, sempre houve um país que buscou a manutenção do
equilíbrio na balança de poder entre Brasil e Argentina.
FROTA (1991) nos traz o exemplo do caso ocorrido no ano de 1908, quando o secretário norteamericano Root propôs ao Brasil a divisão de seu couraçados com a Argentina, negando-se Rio Branco a
considerar tal proposta. Ao contrário dos desejos norte-americanos, no ano seguinte, o parlamento brasileiro
aprovou uma resolução pela qual acrescentaria além dos três navios já encomendados, um dreadnought e um
cruzador a cada 3 anos, além de destroieres, submarinos e um total de oito dreadnought.
As rivalidades impediriam a formação de um bloco dos neutros atuando contra os interesses norteamericanos. A linha de política exterior norte americana para com a Argentina não foi mais dura, em função
do alvorecer da 1ª. Guerra Mundial, Pelo seu lado, a Argentina Retribuiria com animosidade a essa política.
A atuação política exterior brasileiro-argentina, no curso da primeira metade do século XX, foi marcada por
acontecimentos fundamentais para sua compreensão. No plano externo, tivemos a Primeira Grande Guerra,
a crise mundial, e a Segunda Grande Guerra; no plano regional, a guerra do Chaco, a questão do ABC e, no
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plano interno, a subida de Getúlio Vargas e de Peron ao poder. As rivalidades entre Brasil e Argentina
continuaram existindo, sendo um dos fatores de peso nas respectivas estratégias de política exterior de
ambos os países. (FROTA P. 55 e 56).
Contudo, houve um período especial nas relações de divergências entre o Brasil e Argentina ficaram
um pouco mais evidente. A década de 1970, em que os dois países tinham como sistema de governo ditaduras
comandadas por militares, as duas nações também passaram por período bastante conturbados. No âmbito
do futebol, o Brasil em 1970 conquistava a Tricampeonato Mundial, no que foi destacada pela mídia nacional
como uma das maiores seleções de todos os tempos. Mas foi neste período que a Argentina ascendeu para o
cenário futebolístico mundial, não apenas promovendo uma Copa do Mundo em seu território, mas também
conquistando seu primeiro título, e desta forma ameaçando quebrar a hegemonia que o Brasil havia
conquistado na América do sul desde 1958.
O aumento na rivalidade entre os dois países não se refletiu apenas dentro de campo MELLO (1996
P.145 e 146), enfatiza que a rivalidade entre Brasil e Argentina na década de 1970 atingiu, sua máxima
intensidade com o conflito político-diplomático que teve como ponto focal o problema da compatibilização
das represas de Itaipu e Corpus. A acirrada polêmica entre as potências desenvolveu-se em dois níveis
distintos: um ostensivo e oficial, o outro camuflado e oficioso. O primeiro dizia respeito aos óbices técnicos e
diplomáticos que envolviam a construção de ambas as represas em um rio internacional contíguo e de curso
sucessivo; o segundo, abrangia uma dimensão estratégica e geopolítica com repercussões no equilíbrio de
poder regional.
De acordo com a posição da diplomacia argentina, o empreendimento brasileiro-paraguaio, situado a
montante do rio Paraná, deveria estar subordinado a um mecanismo de consultas prévias entre as partes
interessadas como forma de evitar prejuízos sensíveis e permanentes à futura hidrelétrica de Corpus, um
projeto argentino-paraguaio a ser edificado 200 quilômetros a jusante de Itaipu, no trecho fluvial
pertencente em condomínio aos dois países.
MELLO (1996 P.148) destaca que os argentinos temiam também que a compatibilização com Itaipu
resultasse em prejuízos insanáveis à rentabilidade econômica de Corpus, que com isso perderia seu poder
compensador como uma das peças-chave do tabuleiro platino. O valor estratégico de Corpus estava
exatamente em seu papel de contrapeso à presença de Itaipu: o projeto binacional argentino-paraguaio
poderia reequilibrar parcialmente a balança de poder e neutralizar relativamente a preponderância brasileira
no Paraguai por meio do incremento da parceria argentina com o país guarani, que retomaria a
pendularidade política em relação aos poderosos vizinhos.
Candeas (2005) avalia que as aproximações entre Argentina e Brasil ocorreram até os anos 70 de
forma irregular – perpassando regimes tão diversos como os de Urquiza, Mitre, Roca, Sáenz Peña, Justo,
Perón e Frondizi – e se intensificaram desde os anos 80 – passando igualmente por governos tão díspares
como os de Videla, Alfonsín, Menem, Duhalde e Kirchner. Essa constatação sugere que a natureza do
relacionamento com o Brasil passou de conjuntural a estrutural, independentemente do regime político
(ditadura, democracia) ou da situação econômica (inflação, crise, estabilidade, crescimento). Por outro lado,
é evidente que o aprofundamento da democracia e do desenvolvimento econômico fortalece estruturalmente
a relação bilateral, no sentido de maior integração. Porém, o autor também destaca que no período de 1962 a
1979 há um momento onde a rivalidade acaba ficando mais evidente. O “espírito de Uruguaiana”, que se
tratava de uma cooperação mútua expressa na Declaração de Uruguaiana assinada pelos presidentes Jânio
Quadros e Arturo Frondizi em 1961, não sobrevive ao ciclo de regimes militares na Argentina e no Brasil.
Ainda durante as presidências civis de Guido (1962-1963) e Arturo Illia (1963-1966), aprofunda-se o clima de
convulsão política com hostilidades entre as próprias Forças Armadas. A Argentina, dominada por setores de
direita, aprofunda o alinhamento com os Estados Unidos: condena Cuba, envia navios para a quarentena
estabelecida na questão dos mísseis e apoia a intervenção na República Dominicana. Apesar disso, o
nacionalismo conserva elementos da “autonomia heterodoxa”:
Certamente não é o único ponto de atrito entre a diplomacia de Brasil e Argentina, como pode ser
visto anteriormente, mas a questão de Itaipu é uma questão central na relação entre os dois países. O
interesse estratégico na região onde se localizada a hidrelétrica de Itaipú é de longa data, como relata Lopes
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(2013), que destaca que desde a chegada à América pelos europeus, a região da Bacia hidrográfica do Rio da
Prata sempre foi considerada estratégica para o desenvolvimento de toda a região; a bacia possui a segunda
maior extensão territorial de toda a América Latina (com mais de três milhões de km quadrados), atrás
somente da bacia amazônica; os principais rios da bacia são: o Paraná, Paraguai e o Uruguai, sendo que todos
esses nascem em território brasileiro e convergem na fronteira uruguaio-argentina. Na região vivem mais de
80 milhões de pessoas, divididos entre os cinco países que compõem a bacia: Argentina, Bolívia, Brasil,
Paraguai e Uruguai. O Paraguai é o único país no qual 100% do território nacional está inserido na macro
região da bacia, sendo esse percentual na Argentina de 37%, na Bolívia 19%, no Brasil 17% e no Uruguai 80%.
Apesar da totalidade do território Paraguaio pertencer à macro região, os dois eixos de poder são da
Argentina e do Brasil. enorme potencial energético da bacia também é de extrema importância.
Formada pelas sub-bacias dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai e por seus respectivos afluentes, o Rio
da Prata é de fundamental importância para toda a bacia, pois é um estuário fruto do encontro dos rios
Paraná e Uruguai com o Oceano Atlântico; tem mais de 300 km de comprimento, largura que chega a 200
km e descarga média de 23.300 m3 por segundo, perdendo na América do Sul somente para a do Amazonas.
Importante notar que a maior parte da população argentina vive na região conhecida como vertente
atlântica, inclusive Buenos Aires está às margens do Rio da Prata. O Paraguai inteiro é influenciado pelos
seus grandes rios; além de seu território estar inserido sob um dos maiores aquíferos do mundo, o Guarani, o
país está dividido ao meio pelo Rio Paraguai, que além de delimitar parte da fronteira com o Brasil ao
nordeste e a Argentina ao sudeste, atravessa a capital Assunção e divide o território nacional em duas partes:
oriental e ocidental.
Os conflitos bilaterais, causados majoritariamente por questões fronteiriças, foram se intensificando
e na década de 1960 foi constituída a Comissão Mista de Limites e Caracterização da fronteira BrasilParaguai; então o governo brasileiro passou a cogitar a realização de obras do aproveitamento hidrelétrico no
Salto Grande de Sete Quedas, o que a princípio desagradou o governo Paraguaio. Diante da impossibilidade
do consenso através da comissão e a iminência de mais um conflito armado entre Brasil e Paraguai,
negociações diplomáticas foram iniciadas e uma reunião entre os ministros das Relações Exteriores de
ambos os países ocorreu em Porto Presidente Stroessner e Foz do Iguaçu, nos dias 21 e 22 de Junho de 1966,
o resultado dessa reunião foi uma ata que ficou conhecida como Ata de Iguaçu.
Uma vez que a área de litigio seria alagada, o litigio deixa de existir. O que a ata também estabelece,é
que nem Brasil, nem Paraguai podiam se aproveitar dos recursos de forma unilateral. Além disso, toda a
energia elétrica que eventualmente fosse produzida na região seria igualitariamente dividida em partes iguais
para os dois países.
Claro que havia muitos aspectos por trás da ata e da ideia de Itaipu, desde questões práticas, como
necessidade de aumentar o potencial elétrico do Brasil e Paraguai, seja para ampliar a preponderância
Brasileira sob o Paraguai e consequentemente sob toda a Bacia do Prata, entretanto o chanceler Gibson
Barboza afirmava que o principal motivo era encerrar um conflito fronteiriço entre Brasil e Paraguai na
região conhecida como Sete Quedas. Apesar da Ata das Cataratas ter diminuído os conflitos fronteiriços
naquele momento, já não dava mais todas as respostas necessárias para encerrar definitivamente, e o
questionamento em relação de onde seria exatamente a fronteira continuava sendo feito pelo Paraguai.
Obviamente, ao perceber essa aproximação do Paraguai com o Brasil e as futuras intenções e
possibilidades propiciadas pelo aproveitamento hidrelétrico, a Argentina não reagiu bem e tentou de diversas
formas cancelar ou ao menos ter algum grau de ingerência acerca disso. Como se sabe, a partir de meados do
séc. XIX, a história das relações bilaterais de Argentina e Brasil foi marcada por intensas disputas de poder
sobre a região.
Foram muitas as hipóteses alarmistas defendidas por Buenos Aires, a mais conhecida era de que
Buenos Aires iria submergir; mas havia outras como que parte do território argentino e do Cone Sul viraria
um grande deserto, que o lago Itaipu seria assoreado em questão de meses, etc. Por vezes a campanha contra
da Argentina atrapalhou no financiamento do projeto, por parte do Banco Mundial, bem como na
credibilidade internacional do projeto.
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A Argentina firmara com o Paraguai o Tratado para a construção da usina hidrelétrica de Corpus, nos
mesmos moldes de Itaipu (a Argentina acreditava que o empreendimento seria capaz de reequilibrar a
balança de poder e neutralizar a preponderância brasileira); temia que a geração de energia de Corpus fosse
comprometida, dependendo da altura da barragem e da água liberada, produzindo um enorme prejuízo
financeiro. Além disso, do ponto de vista geopolítico o Governo Argentino temia que Itaipu desenvolvesse e
influenciasse a região de tal forma que o frágil nordeste argentino, região de missiones, virasse um satélite
brasileiro, assim como as regiões paraguaias limítrofes com o Brasil (MELLO, 1996). Brasil e Paraguai
tiveram que se utilizar de vários instrumentos diplomáticos e jurídicos, com muita habilidade e sutileza, para
não criar uma crise política na região e conseguir dar continuidade ao projeto, diante das investidas
contrárias da Argentina. Pelo fato do Rio Paraná ser um elemento importante na bacia do Prata, ficou
acordado entre as três partes que Brasil e Paraguai informariam previamente a Argentina acerca das decisões
e possíveis intervenções na região; aspecto esse em acordo ao Tratado da Bacia do Prata, proposto pela
Argentina e assinado por todos os países que compõem a Bacia.
A construção de uma usina hidrelétrica tão próxima a gigante Itaipu traria consigo algumas
implicações técnicas. O represamento e o controle artificial do fluxo de águas, feitos por Itaipu, poderiam
afetar diretamente o potencial gerador de Corpus, que fica a jusante de Itaipu, e de acordo com especialistas
argentinos a usina só seria economicamente viável com uma cota de água entre 105 e 115 metros acima do
nível do mar; o fato das águas do Rio Paraná serem águas internacionais que compõem a macrorregião da
Bacia do Prata implica na posição argentina de defesa do princípio de indivisibilidade dos recursos naturais
compartilhados regulamentado pelo direito internacional. Todos esses argumentos foram largamente
utilizados pela diplomacia Argentina que sustentava o princípio de consulta prévia acerca de Itaipu, ou seja,
todos os passos a serem tomados por Brasil e Paraguai relativos à Itaipu deveriam passar por uma consulta
prévia da Argentina. O Brasil alegava que esse princípio restringiria a sua soberania, uma vez que todas as
decisões deveriam ser submetidas ao julgamento de outro Estado. E juridicamente alegava que não havia
qualquer impedimento para a utilização dos rios no trecho sob sua jurisdição, a menos que seu uso pudesse
causar grandes danos em territórios alheios, o máximo que a diplomacia brasileira se dispunha a fazer era a
facilitação na obtenção de informações e uma cota máxima de 100 metros.
O conflito entre Argentina e Brasil, que se agravara após a assinatura do Tratado de Itaipu e a
consumação do projeto de Corpus, ganhava ares militar com demonstrações de poder pelas forças armadas e
constantes debates acalorados pelas impressas locais, dentro das possibilidades, visto que a censura barrava
grande parte das opiniões e/ou informações que não lhes eram interessantes; importante ressaltar que nesse
período, ambos os países consideravam a possibilidade de desenvolverem tecnologias capazes de
futuramente produzir armas nucleares, fator esse que contribuiu ainda mais para a possibilidade de haver
um confronto armado.
A necessidade argentina de produzir mais energia para crescer economicamente era real e não há
dúvidas de que uma usina como Corpus contribuiria de forma determinante para tal fim; entretanto, diante
de todo o histórico de conflitos e a oposição Argentina declarada à Itaipu, é possível afirmar que as
convicções e necessidades geopolíticas influenciaram mais que a necessidade econômica na elaboração do
projeto. Itaipu, sem nenhuma ingerência Argentina seria, portanto, o golpe decisivo para a consolidação da
preponderância brasileira sob o Paraguai, além de possibilitar ao Brasil o apossamento da água requerida
pelos projetos argentinos e imiscuir-se no Uruguai, país até então considerado como integrante da área de
influência de Buenos Aires.
Lopes (2013) avalia que com um posicionamento mais equânime diante do impasse, a Argentina, em
Março de 1977, propõe a negociação acerca do aproveitamento hidrelétrico da região de forma tripartite
(Argentina, Brasil e Paraguai). O Brasil não aceita, uma vez que considera um retrocesso, por estar incluso o
princípio da consulta prévia, então o chanceler Azeredo da Silva afirma que aspectos referentes às cotas de
Itaipu devem ser decididos entre Brasil e Paraguai e àqueles referentes às cotas de Corpus, entre Argentina e
Paraguai, com a prerrogativa que nenhum dos empreendimentos cause inundação ou destruição em
território alheio, e mais uma vez argumenta que é simplesmente uma questão de soberania.
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Para Bandeira, (1993, P. 236), o que, na realidade, o Governo de Videla pretendeu, consciente de que
a relação de poder com o Brasil, na Bacia do Prata era desfavorável à Argentina, foi aumentar sua capacidade
de negociação e, de certo modo, impor uma política de equilíbrio. Assim, durante a VIII Reunião dos
Chanceleres da Bacia, em Brasília (7 a 9 de dezembro de 1976), o Almirante Cezar Augusto Guzetti, na
qualidade de Ministro das Relações Exteriores e Culto, propôs uma negociação global entre os dois países,
sobre as diversas questões do seu relacionamento bilateral, entre as quais, segundo indicou, o comércio, a
construção da ponte sobre o rio Iguaçu, os transportes marítimos (fretes), a cooperação técnica, inclusive no
campo nuclear, a pesca e o trigo, bem como o aproveitamento hidrelétrico dos rios Uruguai (Garavi, San
Pedro e Roncador) e Paraná (Corpus e Itaipu). Azeredo da Silveira aceitou discutir todos os pontos, exceto o
do aproveitamento do rio Paraná, sob a alegação de que se tratava de uma decisão de Governo e não da
Chancelaria. O clima para o diálogo, entretanto, não se restabeleceu.
Brasil e Argentina se olharam com profunda suspeita. As acusações mútuas de manter "interesses"
imperialistas em ambos os lados da fronteira levaram a "hipóteses nacionais de conflito" que, ao longo do
tempo, provaram nunca se concretizar. Tantas suspeitas, às vezes fundadas, muitas outras vezes, apenas
imaginárias, levaram, no entanto, a que as duas nações se envolvessem em disputas estéreis e se tornassem
absorvidas pelo isolamento mútuo. O Brasil e a Argentina, os dois maiores e mais importantes países da
América do Sul, foram vistos durante toda a sua história como rivais quando, de fato, seu único destino
possível é seria parceria para um desenvolvimento mútuo. Separado, a história ensina e demonstra, eles
foram uma presa fácil para os projetos de turno imperiais e sua capacidade de interagir com as grandes
potências foi escassa se não fosse nula. Se, como resultado dessa fútil suspeição, as duas nações
proclamassem ofensas e até danos, hoje é urgente rejeitá-las, lançando no esquecimento velhas
"escaramuças" da história. Retornando ao exemplo da França e da Alemanha, que forjaram a Europa
unificada, infligiram terríveis danos uns aos outros e ainda assim esqueceram-se de dar lugar à única
possibilidade que lhes deu história: realizar a unidade européia.
Contudo, diferentemente do que aconteceu na Europa, os dois maiores países da América do Sul, que
viram na década de 1970 uma profunda superfície de atrito, partiram para a década de 1980, a exemplo do
contexto sócio/cultural global, um esforço de aproximação mútua. Esforço que ao longo das décadas
mostrou-se ineficaz, entre outros fatores pelo desconhecimento mutuo e pelo sentimento de rivalidade já
enraizado nas teias de representações das sociedades dos dois países.
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Continente nas relações Argentina – Brasil (1932 – 1992). Brasília, Editora Ensaio, 1993.
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Brasileira de Política Internacional (I). 178-213, 2005
CERVO, Amado Luiz (org). O desafio Internacional: a política exterior do Brasil dos anos de 1930 a nossos
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FRANCO JUNIOR, Hilário. A Dança dos Deuses: Futebol, Cultura e Sociedade. São Paulo: Companhia das
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FROTA, Luciara Silveira de Aragão e. Brasil Argentina: Divergências & Convergências. Centro Gráfico do
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MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Argentina e Brasil: A Balança de Poder no Cone Sul. Annablume Editora.
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RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. O pacto do ABC: AS relações Brasil – Argentina na década de 1950. EDIUPF,
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WISNIK, José Miguel. Veneno Remédio: O Futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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A elite política passofundense entre 1945 e 1989:
uma proposta de estudo
Luiz Alfredo Fernandes Lottermann1
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar o perfil da elite política (prefeitos e vereadores) do
município de Passo Fundo através do método prosopográfico. Elite essa que, segundo Gatti, “estava
diretamente ligada à economia e constituía-se assim, de fazendeiros, comerciantes, médicos e advogados.”
(GATTI, 2008, p.16). Pretende-se aqui aferir dados e características como partido político, profissão, grau de
instrução, filiação, idade, local de nascimento, sexo, classe social, etnia, religião e etc. Desse modo, buscar-seá compreender, por meio do estudo coletivo de suas vidas, compreender seus interesses, ações políticas,
ideologias e discursos. Entende-se que elite consiste naquelas pessoas que ocupam cargos chave, o topo, na
estrutura de poder ou de distribuição de recursos. Nesse sentido, têm-se essas pessoas como os dirigentes, os
abastados, os privilegiados, grupos que dispõe de poderes, influência e privilégios (HEINZ, 2006, p. 7).Para
tanto, será utilizado o método prosopográfico ou biografias coletivas que, segundo Flávio Heinz (2006, p.9):
“A prosopografia, ou o método das biografias coletivas, pode ser considerado um método que utiliza um
enfoque de tipo sociológico em pesquisas históricas, buscando revelar as características comuns
(permanentes ou transitórias) de um determinado grupo social em dado período histórico. As biografias
coletivas ajudam a elaborar perfis sociais de determinados grupos sociais, categorias profissionais ou
coletividades históricas, dando destaque aos mecanismos coletivos – de recrutamento, seleção e de
reprodução social – que caracterizam as trajetórias sociais (e estratégias de carreira dos indivíduos)”. Através
do estudo coletivo das biografias dos atores da política do município, será possível, então, identificar e
analisar seus interesses, discursos, ideologias, ações e posições políticas. Bem como, tentar responder a
questões fundamentais: “quem são?; de onde vêm?; o que fazem?; como pensam?” (HEINZ; CODATO, in:
CODATO: PERISSINOTO orgs, 2015, p. 256). O estudo procurará analisar o perfil das elites, verificando se
houve ou não mudanças significativas ao longo do tempo.
Pretende-se aqui estudar o perfil das elites políticas do município de Passo Fundo entre 1945 e 2016.
Elite essa que, segundo Gatti, “estava diretamente ligada a economia e constituía-se assim, de fazendeiros,
comerciantes, médicos e advogados.” (GATTI, 2008, p.16). Para Flávio Heinz, a elite consiste naquelas
pessoas que ocupam cargos chave, o topo, na estrutura de poder ou de distribuição de recursos. Nesse
sentido, têm-se essas pessoas como os dirigentes, os abastados, os privilegiados, grupos que dispõe de
poderes, influência e privilégios (HEINZ, 2006, p. 7). Ainda, define as elites como produto de uma seleção
social ou intelectual (CHARLE, 1994, p.46, apud: HEINZ, 2006, p. 8).
Para Busino, elite faz referência a uma
minoria que dispõe, em uma sociedade determinada, em um dado momento, de
privilégios decorrentes de qualidades naturais valorizadas socialmente (por
exemplo, a raça, o sangue etc.) ou de qualidades adquiridas (cultura, méritos,
aptidões etc.). O termo pode designar tanto o conjunto, o meio onde se origina a
elite (por exemplo, a elite operária, a elite da nação) quanto os indivíduos que a
compõem, ou ainda a área na qual ela manifesta sua preeminência. (BUSINO,
1992, p. 9, apud: HEINZ, 2006, p. 7).
O intervalo temporal aqui proposto contempla o chamado “período democrático” entre 1945 e 1964,
em que se situam os governos democraticamente eleitos entre a queda do presidente Getúlio Vargas, após a
ditadura do Estado Novo e o golpe militar de 1964; os mais de vinte anos de governos militares, entre 1964 e
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Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo.
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1985; bem como as eleições municipais que ocorreram com o processo de redemocratização do país entre
1985 e 1989.
Considerando os períodos destacados anteriormente, buscar-se-á, então, aferir informações quanto a
partido político, grau de instrução, local de nascimento, filiação, religião gênero, média de idade e ocupação
profissional e etc. dos prefeitos e vereadores de Passo Fundo.
Trata-se de conhecer as propriedades sociais mais requisitadas em cada grupo sua
valorização ou desvalorização através do tempo; conhecer a composição dos
capitais ou atributos cultural, econômico ou social, e sua inscrição nas trajetórias
dos indivíduos; enfim, conhecer os modelos e/ou estratégias empregados pelos
diferentes membros de uma elite para alicerçar uma carreira exitosa e socialmente
ascendente ou, em outros casos, evitar - mediante mecanismos de reconversão
social - um declínio ou uma reclassificação social muito abrupta. (HEINZ, 1998,
in: HEINZ, 2006, p.09)
Através do estudo coletivo das biografias dos atores da política do município, será possível, então, identificar
e analisar seus interesses, discursos, ideologias, ações e posições políticas. Bem como, tentar responder a
questões fundamentais: “quem são?; de onde vêm?; o que fazem?; como pensam?” (HEINZ; CODATO, in:
CODATO: PERISSINOTO, 2015, p. 256). O estudo procurará analisar o perfil das elites, verificando se houve
ou não mudanças significativas ao longo do tempo.
Justificativa e revisão historiográfica:
Passo Fundo tornou-se município em 1857 ao se desmembrar de Cruz Alta, instaurando sua Câmara
de Vereadores. Até o ano de 1930 a cidade foi governada por intendentes, ora eleitos, ora nomeados para o
cargo. Entre os anos de 1931 e 1936 os prefeitos municipais passam a ser eleitos. Com o advento do Estado
Novo (1937-1945), os mandatários municipais passaram a ser indicados pelo interventor estadual, que por
sua vez era nomeado pelo governo federal (GATTI, 2008, p.16).
Situada no Planalto Médio gaúcho, Passo Fundo na década de 1940, já era um polo
regional desenvolvido. Dividido em oito municípios, contava com expressivo
potencial educacional, comercial, agrícola, industrial servido por extensa malha
rodoviária e ferroviária, estrutura administrativa e moderno sistema de
urbanização, distinguindo-se entre os demais municípios da região, razão pelo qual
era denominado pela imprensa de Metrópole da Serra. (BENVEGNÚ, 2006, p.17).
Durante o período democrático, diversos partidos surgiram no município: Partido Social
Democrático (PSD), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), União Democrática Nacional (UDN), Partido
Libertador (PL), Partido de Representação Popular (PRP), dentre outros. Entretanto, apenas os três
primeiros concentravam maior força eleitoral e estavam no centro da disputa política local. Tendo em vista
os diferentes partidos políticos que figuraram entre 1945 e 1964, é necessário que se faça o cruzamento das
características dos políticos passofundenses com os partidos políticos, tentando definir um padrão das
lideranças de cada agremiação.
Com o Golpe Militar de 1964, o governador do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, transfere
temporariamente a sede do governo estadual para o quartel da Brigada Militar em Passo Fundo, colocando o
município centro político do estado. Durante a Ditadura, entra em vigor o Ato Institucional número 2 (AI 2),
que, dentre outras medidas, extinguia os partidos políticos: “A legislação partidária forçou na prática a
organização de apenas dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), agrupando os partidários do
governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), reunindo a oposição.” (FAUSTO, 2018, p. 262).
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Nesse sentido, será estudado também o realinhamento das lideranças políticas de Passo Fundo após o
estabelecimento do bipartidarismo.
Não há estudos sobre o panorama político do município durante o Regime Militar e o pósredemocratização. Contudo, este estudo permitirá abordar, pelo menos brevemente, a conjuntura política da
cidade nos períodos. Bem como, a partir da reabertura política com a queda do Regime Militar, estabelecer o
comportamento da elite política diante do novo cenário.
Tendo o município de Passo Fundo como centro regional do Planalto Médio, há que se situar a
pesquisa nos termos da História Regional. Martins (2009) define: “A História Regional é a que vê o lugar, a
região e o território como a natureza da sociedade e da história, e não apenas o palco imóvel onde a vida
acontece”.
Em se tratando de história regional “não se pode perder de vista o fato de que o âmbito regional
possui uma história própria, um conjunto de relações sociais delimitadas, um espaço de memória, de
formação de identidades e de práticas políticas específicas” (RECKZIEGEL, 1999, p.19). Entretanto, não se
pode perder a noção de que, apesar de poder apresentar características específicas, o a dimensão regional
está inserida em um contexto mais amplo. “O que se pretende afirmar, enfim, é que a dita história regional
tem, simultaneamente, características universais e particulares.” (RECKZIEGEL, 1999, 21). Deve-se
portanto, buscar entender quais as características universais que se replicam no âmbito regional e quais são
aquelas que tornam o regional particular.
O estudo das elites pelo método prosopográfico permite conhecer as características comuns e
divergentes do referido grupo ao longo do período proposto. Tal estudo ainda não foi realizado para
investigar a parcela dirigente da política passofundense. Segundo Flávio Heinz e Adriano Codato (in:
CODATO; PERISSINOTO, 2015, p.249):
Sabe-se que estudos sobre elites podem iluminar transformações históricas de uma
dada sociedade. Mais concretamente, podem nos dizer algo sobre essas mudanças
se tomarmos as variações nos perfis das classes dirigentes como uma proxy de
processos bem mais amplos, tais como a entrada e saída de grupos e classes do
restrito círculo das elites políticas, os movimento de mobilidade social e
substituição geracional, as transformações dos prestígios relativos dos diferentes
ofícios ao longo do tempo, a densidade dos aparelhos de representação
(legislativos, partidos) e a operação dos seus respectivos filtros institucionais (...).
A pesquisa possibilitará estabelecer o perfil da elite política de Passo Fundo: profissões, gênero,
ideologia, partido político, crença religiosa, etnia, classe social e etc. e suas transformações ao longo do
tempo. Trata-se, com isso, de investigar o sentido das ações políticas, ter informações a respeito da sua
mobilidade social, bem como auxiliar a desvendar os motivos da mudança (ou não mudança) ideológica ou
cultural, e caracterizar a estrutura da sociedade e suas movimentações (STONE, 1981, p.45-46, apud HEINZ,
2006, p. 9).
A importância analítica dada ao estudo das propriedades e das trajetórias coletivas
de um conjunto de agentes pressupõe um esquema interpretativo do mundo social.
Esse esquema deriva, por sua vez, de dois princípios subjacentes: em primeiro
lugar, o foco em agregados concretos de indivíduos, historicamente situados, é
central para se entender o funcionamento do mundo social (no lugar de grandes
abstrações teóricas como “classe social”, por exemplo); em segundo lugar, seus
atributos, enquanto grupo, são relevantes para explicar tanto seus comportamentos
efetivos (opções, decisões concretas, disposições subjetivas), como a configuração
assumida pelas instituições (“Estado”, “regime político”, etc.). (HEINZ; CODATO,
in: CODATO; PERISSINOTO orgs, 2015, p. 269)
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Estudo este que precisa ser realizado, visto que, para a elite política local, encontram-se apenas
dados dispersos e bibliografias do tipo who’s who, que podem ser utilizados como fontes para esta pesquisa,
entretanto não trazem reflexões sobre os dados. Justifica-se, portanto, pela possibilidade de analisar mais a
fundo os caminhos da política municipal, identificando rupturas e permanências nas características da classe
dirigente. Características estas que podem variar, condicionadas ao contexto político nacional, estadual e
municipal.
Objetivos
Analisar o perfil da elite política passofundenses no período em foco.
Compreender as ações, interesses e discursos da elite política de Passo Fundo no período proposto.
Evidenciar as transformações e permanências das características da elite política do município.
Fontes de Pesquisa e metodologia
Ao longo da pesquisa pretende-se utilizar como fontes jornais, necrológios, anais da Câmara de
Vereadores.
Para alcançar os objetivos da pesquisa será utilizado o método prosopográfico, ou biografias
coletivas, que pode ser considerado
um método que utiliza um enfoque de tipo sociológico em pesquisas históricas,
buscando revelar as características comuns (permanentes ou transitórias) de um
determinado grupo social em dado período histórico. As biografias coletivas
ajudam a elaborar perfis sociais de determinados grupos sociais, categorias
profissionais ou coletividades históricas, dando destaque aos mecanismos coletivos
– de recrutamento, seleção e de reprodução social – que caracterizam as trajetórias
sociais (e estratégias de carreira dos indivíduos). (HEINZ, 2006, p. 09)
A prosopografia é então a busca por características comuns na história de determinados grupos da
sociedade. Assim, o método “parte do pressuposto de que é possível interpretar condicionantes sociais a
partir de dados empíricos recolhidos das biografias de indivíduos do grupo que se quer estudar.” (VARGAS,
p. 136, in: SOARES; SILVA, 2017, p.136).
O método consiste em delimitar o universo a ser pesquisado, estabelecendo um conjunto de questões
padronizadas sobre a vida dos atores estudados (STONE, 1981, p. 45-46, apud HEINZ, 2006, p. 09).
Contudo,
a prosopografia não se resume à produção de tabelas de frequência com
informações sócio-profissionais e de carreira sobre agentes políticos do passado, a
partir de dados pré-construídos, mas à produção de uma base de dados que, em
boa medida, reúna um conjunto de evidências fabricadas pelo pesquisador, isto é,
informações que reconheçam o aspecto lacunar do perfil produzido como
estruturado socialmente. E que busque superar esse aspecto com pesquisa
documental minunciosa. (HEINZ; CODATO, in: CODATO; PERISSINOTO orgs,
2015, p. 253)
O método das biografias coletivas possibilita estender a análise de elites políticas e outros grupos em
períodos de tempo mais distantes do presente, possibilitando ganhos explicativos no que se refere a padrões
de comportamento político. (HEINZ; CODATO, in: CODATO; PERISSINOTO, 2015, p. 251).
Os jornais O Nacional e Diário da Manhã serão utilizados. Embora a partir de 1950 a imprensa
brasileira tenha passado por algumas transformações, de “jornal de opinião” para “jornal de informação”, os
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grupos jornalísticos citados continuaram com características políticas. É claro, representavam os ideários de
seus proprietários. “Devemos ter em mente que os jornais, e igualmente os jornalistas, apesar desta
roupagem de imparcialidade e verdade que nos passam cotidianamente”. (KARAWEJCZYK, 2010, p. 143)
O Nacional foi fundado em 1925, por Theófilo Guimarães. A partir da década de 1940 passou ao
controle de Múcio de Castro, de postura republicana e trabalhista. Na década de 1960, Castro rompe com o
Partido Trabalhista Brasileiro e adere ao Movimento trabalhista Renovador, e passa a utilizar o periódico
como instrumento de oposição ao PTB e ao trabalhismo (BENVEGNÚ, 2006, p.19).
O jornal Diário da Manhã era de propriedade do jornalista e político Túlio Fotoura, estreitamente
ligado a Nicolau de Araújo Vergueiro. Também de ideal republicano. Em 1945, Fontoura ingressou no PSD. O
jornal marcou forte oposição ao trabalhismo e a Getúlio Vargas. O jornal foi alvo de “conflituosos
acontecimentos em 1954”, após a morte de Getúlio (BENVEGNÚ, 2006, p.19).
Os jornais oferecem algumas vantagens quando utilizados como fontes históricas, tais como: a
periodicidade (constituem-se como arquivos do cotidiano); e a possibilidade de inserção do fato num
contexto histórico mais amplo (ZICMAN, 1985, p.90). A mesma autora ainda alerta:
Por outro lado devemos lembrar que na Imprensa a apresentação de notícias não é
uma mera repetição de ocorrências e registros mas antes uma causa direta dos
acontecimentos, onde as informações não são dadas ao azar, mas ao contrário
denotam as atitudes próprias de cada veículo de informação, todo jornal organiza
os acontecimentos e informações segundo seu próprio “filtro”. (ZICMAN, 1985,
p.90)
Complementando Zicman, “Também não se deve esquecer da ilusão de transparência, verdade e
objetividade que a linguagem jornalística impõe ao nosso imaginário e, assim, deve-se ficar atento a esse
ponto, ao incorporar qualquer matéria de um periódico no corpus documental de uma pesquisa.”
(KARAWEJCZYK, p. 143, 2010). Portanto, a análise crítica do jornal como fonte se faz necessária em virtude
do provável direcionamento político e ideológico presente nos escritos.
Há também a possibilidade de se utilizar algumas referências bibliográficas, tais como o livro
CÂMARA Municipal de Passo Fundo 1857 - 1988. Galeria de ex-vereadores de 1947 a 1988. Passo Fundo:
Berthier, 1988., disponível tanto no Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, como no acervo da Câmara
Municipal de Vereadores. O arquivo da casa legislativa do município conta ainda com alguns outros
trabalhos do tipo who’s who. Essas referências contêm dados preciosos para a efetivação da pesquisa, pois
contém diversos dados biográficos dos vereadores eleitos e suplentes de todas as legislaturas até o ano de
1988.
Considerações finais
A pesquisa prosopográfica aqui proposta possibilitará então que se conheça o perfil das elites
políticas do município de Passo Fundo. Espera-se comprovar que esta elite é composta por homens brancos,
com maioria de profissionais liberais e políticos profissionais, basicamente pertencentes às classes médias e
altas. Bem como, buscará evidenciar se houve ou não alteração nas características da elite com a passagem
das diferentes conjunturas políticas nacionais, estaduais e municipais, explicando de que forma essas
mudanças ou permanências se dão.
Referências bibliográficas
BENVEGNÚ, Sandra Mara. Décadas de poder. O PTB e a ação política de César Santos na metrópole da
Serra. 1945-1967. Dissertação de mestrado defendida em Passo Fundo: 2006.
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ZICMAN,
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O Piauí em esforço de guerra:
mobilização patriótica e Guarnição da Província 1864-1866
Marcelo Cardoso1
Resumo: Este artigo analisa a mobilização e guarnição no período da guerra entre o Império do Brasil e a
República do Paraguai de 1864 a 1866 na província do Piauí. Quando teve início o conflito as Províncias do
império enviam forças armadas disponíveis para o campo de luta. O Piauí em 1865 manda todo o Corpo de
Guarnição de 1ª linha e Companhia de Polícia, ficando no primeiro momento o policiamento e guarnição
sendo feito por destacamentos de guardas nacionais. Nesse sentido é importante analisar a política imperial
de mobilização de homens para o “teatro de guerra” e a efervescência de patriotismo na província. A
metodologia do trabalho foi a pesquisa e análise de fontes bibliográficas, periódicos, relatórios de presidentes
de província. Há importantes trabalhos sobre a Guarda Nacional, Exército e Corpo de Polícia que indicam a
organização do Estado imperial no Brasil no período. No trabalho prioriza-se o viés de uma “História Militar”
que não reduz a compreensão das instituições militares a fenômenos sociais que a determinariam, mas busca
fazer uma reflexão sobre a interação entre forças armadas e sociedade.
Palavras-chave: História, Guerra, Piauí, mobilização, Guarnição.
Introdução
Este trabalho estuda o esforço de guerra na província do Piauí a partir da mobilização de homens e
instituições para lutar contra a república do Paraguai em 1865. Os quem não foram à guerra, lutar no campo
de batalha, partilhavam do esforço para mantê-la na província com doações e gestos patrióticos. Nesse
sentido, busca-se analisar a reorganização do Estado 2 imperial no Piauí, perante a situação que ficou a
província, quando foram as duas principais instituições da Força Pública mobilizadas para a campanha no
sul. Essa análise espelha-se na nova abordagem da história militar brasileira que é produzida da interação
entre forças armadas e sociedade3.
A guerra entre o império do Brasil e a República do Paraguai veio provocar um afloramento do
sentimento de pátria que atingiu todas as províncias do império e contribuiu para a fortalecimento do Estado
nacional brasileiro4. Esse sentimento foi provocado pela tensão existente na região do Prata, repassada pelo
governo central as províncias. No Piauí era feita pelos dirigentes do poder local que recebiam do governo
central pedidos de força para a guerra. Os periódicos em circulação na província auxiliavam na divulgação
das ideias de defesa da pátria, convocando o povo para cumprir o dever patriótico.
Os primeiros anos da guerra foram selecionados para compor esta análise porque estão marcados
mais intensamente pelos chamados de defesa da pátria, na acepção mais próxima, que o termo foi utilizado
Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, Área de Concentração: História,
Poder e Cultura; na Linha de Pesquisa: Fronteira, Política e Sociedade. Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí
(UFPI), Especialista em Metodologia da Pesquisa e do Ensino de História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e Graduado em
História (Licenciatura) (UESPI). E-mail: macaseixa@hotmail.com
2 Aqui emprega-se a ideia de Estado segundo a acepção feita por Fernando Catroga (2011, p.7) como dimensão institucionalizada do
poder sobre uma população concreta e sobre um determinado território que traça seus limites face ao estranho e extingue as fronteiras
no seu interior. Nesse sentido faz necessário deter o monopólio da violência e do direito.
3 CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2004. Nesse
sentido complementa-se que é consenso nos estudos atuais de história militar que “militares brasileiros não se encontram isolados da
sociedade abrangente, embora possam guardar uma relativa autonomia em alguns aspectos e épocas específicas” (CASTRO;
IZECKSOHN; KRAAY, 2004, p.12). O que torna complicado tratar a história militar como estando desligada da história mais ampla da
sociedade de onde soldados e oficiais são recrutados.
4 Sobre o assunto Catroga (2011) diz que “coube à <<nação>> fazer a ponte entre o <<Estado>> e a <<pátria>>, tarefa que terá a sua
objetivação maior no Estado-nação moderno”. Essa transformação teria como passos debates acerca do conceito de pátria e nação que
não confunde-se com o de Estado. Nesse sentido diria que “os conceitos de pátria e de nação têm origem e significados diversos – o
primeiro pressupõe o acto de concepção, enquanto o segundo indica o de nascimento. Mas é um facto que eles acabaram por se cruzar.
Na modernidade, a nação está na pátria, mas exige um território (real ou imaginário) e uma população”. (CATROGA, 2011, p. 16-17)
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no século XIX quando foi distinguida do nacionalismo e definida como uma “ideologia do sentimento” 5.
Nesse entendimento, a pátria é desenhada como mátria ou seja “como mãe, a pátria transubstancia a
<<população>> numa fratria de com-patriota, na qual os <<irmãos>>, os <<patrícios>>, são incitados a
reconhecerem-se como <<filhos da pátria>> e, portanto, a aceitarem, em nome da honra e do juramento,
sacrificar-se pela <<mãe comum a todos>> (Cícero)”6.
É comum no início de batalhas, como forma de encorajamento, a apelação que ecoa da ideia pregada
de pátria. Esse foi o uso feito na batalha de Salamina quando defendeu-se o avanço dos gregos em nome da
patria “Avante, filhos dos Gregos, libertai a vossa Pátria, libertai os vossos filhos e as vossas mulheres, os
santuários dos deuses dos vossos pais e os túmulos dos vossos antepassados: a luta, hoje, é por tudo isto!” 7.
A Província vai à guerra em defesa da pátria
O Paraguai da década de 1860 vinha ressentindo-se cada vez mais do diminuto papel que lhe era
reservado em assuntos internacionais, nutria um desejo nacional de potência, vinha amparado em sucessos
econômicos e grande contingente militar 8. Existiam problemas não resolvidos com limites externos nas
fronteiras brasileira, argentina e boliviana que aumentavam as dificuldades da navegação em especial no
Mato Grosso9.
Para complementar o quadro favorável ao conflito, Francisco Solano López, estava determinado a
marcar presença nos rumos dos acontecimentos regionais. Entedia necessário fazer frente às intervenções
imperialistas de Brasil e Argentina perante os estados menores, Uruguai e Paraguai. A tentativa era a
construção de um terceiro Estado resultante da união de Uruguai, Paraguai, Corrientes, Entre-Ríos e
missões rio-grandense que tivesse condições de impor-se perante os grandes10. Sobre o assunto afirma Johny
Santana de Araújo que o Paraguai “buscava ter voz ativa na problemática do Prata e participar das grandes
decisões”11.
A guerra mediada por Paraguai inimaginável na avaliação feita por Brasil e Argentina fazia os anseios
desse Estado não vir ter peso na política externa, quase sempre eram desqualificados. No entanto, López
“agia por si, tanto é que, ao atacar os dois países, não foi em socorro dos blancos, e essas atitudes, que
desnortearam diplomatas e políticos de então, são hoje mais compreensíveis” 12.
O rompimento das relações diplomáticas, entre o império brasileiro e o governo Uruguaio, provocado
pelo incidente entre navios da Marinha Imperial e da Marinha Uruguaia foi razão para agravar a crise na
região quando o governo paraguaio protestou estabelecendo uma condenação formal de qualquer ação
intervencionista do Brasil13. A intervenção brasileira na República Oriental teve como consequências por
parte do governo paraguaio a captura do vapor brasileiro, Marquês de Olinda, que dirigia pelo Rio Paraguaio
em direção a Mato Grosso. No dia 13 de dezembro o Governo Paraguaio declarou guerra ao Brasil, em 26
CATROGA, Fernando. Ensaio republicano. p. 10. Fundação Francisco Manuel dos Santos. Lisboa, Portugal. 2011.
Idem.
7 Idem.
8 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil.p.120. Editora Universidade de Brasilia. 2002. Ainda
sobre o fortalecimento militar do Paraguai Johny Santana de Araújo diz que Solano Lopes ao retornar ao seu país de viagem à Europa
onde fez contato com empresas de armamentos e tomou contato com ideias do imperador Napoleão III onde despertou “as glorias
militares do passado”. Isso fez como que “ao retomar ao seu país, levou ao extremo as preocupações com o fortalecimento militar do
Paraguai, inicialmente intensificando os projetos de defesa que o presidente anterior havia iniciado; e, ao mesmo tempo, aumentando os
efetivos do exército paraguaio, tendo conseguido, em dois anos, reunir 80 a 100.000 homens, equipados com fuzis e com uma boa
artilharia”. (ARAÚJO, 2009, p. 28)
9 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil.p.121. Editora Universidade de Brasilia. 2002.
10 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil.p.121. Editora Universidade de Brasilia. 2002.
11 ARAÚJO, Johny Santana de. BRAVOS DO PIAUÍ! ORGULHAI-VOS. SOIS DOS MAIS BRAVOS BATALHÕES DO IMPÉRIO: a
propaganda nos jornais piauienses e a mobilização para a guerra do Paraguai (1865-1866). p.29. TESE (Doutorado). Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História. Niterói, 2009.
12 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil.p.121. Editora Universidade de Brasilia. 2002.
13 ARAÚJO, Johny Santana de. BRAVOS DO PIAUÍ! ORGULHAI-VOS. SOIS DOS MAIS BRAVOS BATALHÕES DO IMPÉRIO: a
propaganda nos jornais piauienses e a mobilização para a guerra do Paraguai (1865-1866). p.33. TESE (Doutorado). Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História. Niterói, 2009.
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início o ataque e invasão da província de Mato Grosso. No início de 1865 a guerra contra o Paraguai estava
certa, mas acreditava-se que seria rápida como diz Araújo:
[..]grande parte da população brasileira vislumbrava a possibilidade de um conflito
com o Paraguai e tinha como primeira impressão de que seria uma guerra rápida.
Acreditava-se que o exército brasileiro retornaria coberto de glórias, concepção
fortemente reforçada pela idéia de recuperação da honra e do território invadido 14.
A guerra do Paraguai estendeu-se até 1870, durando cerca de 5 anos, marcados pela luta travada
contra, principalmente, Solano Lopes. O conflito deixou marcas nos países envolvidos e outras mais fortes na
região do Prata. Exemplo disso ocorreu na cidade de Rosario (Argentina) quando o povo “arrancou o escudo
de armas do Consulado Paraguayo, arrastou o pelas ruas, e, depois de espingardeado juntamente com a
effigie de Lopez, foi tudo atirado ao rio”15. Essa revolta era muito mais contra a afronta do ditador na região.
Em Rosário, em ata, pelos influentes, a manifestação foi declarada como tendo a intenção de
“quebrar o signal da nefanda autoridade de Lopez, e não o symbolo de uma nacionalidade irmã”16. O
sentimento de revolta, amor e defesa a pátria pode bem aplicar-se ao que sentiu o povo brasileiro quando
sentiu sua honra ameaça pela captura do vapor brasileiro “Marquês de Olinda”. Nesse sentido era necessário
mobilizar as províncias e ir à guerra em defesa da honra da pátria.
Em 1931 Anísio Brito publicou a obra intitulada “Contribuição do Piauí na Guerra do Paraguai” nas
primeiras páginas do trabalho destaca o despertar da consciência de nacionalidade provocada pela explosão
de sentimentos nativistas, como pela repulsa às invasões estrangeiras que teriam contribuído na preparação
para a independência. Nesse conjunto destaca as agitações do período da regência e coloca no topo destas
agitações “a do Prata, alheia, estranha, é verdade, para nós, e não entraríamos, na – vida dos vizinhos -, se
não nos determinassem muitas e fataes circunstancias” 17.
No dia 12 de julho de 1865 o presidente Franklin Américo de Menezes Doria dirigia-se aos membros
da Assembleia Legislativa Provincial a fim de relatar as situações que ocorriam no império e província. A
primeira mensagem a ser transmitida era a notícia da boa saúde do Imperador e da “Augusta família
Imperial”, abria ressalvas acerca do casamento da princesa, “a srª dona Isabel, com o príncipe, o sr. Dom
Luiz Philippe, Conde d’Eu”18. A notícia que abre a mensagem do presidente, dando ênfase ao bem-estar da
família Imperial, deixa entrever uma preocupação comum à elite dirigente do império qual seja vigor do
Estado imperial.
O presidente da província, com relação a política externa, lembrava a vitória alcançada pelas armas
imperiais contra o Estado Oriental do Uruguai que havia sido encerrada com o convênio de 20 de fevereiro.
Seguia o relatório informado sobre outra guerra provocada pelo “insólito e bárbaro” procedimento do
presidente da república do Paraguai. Era exaltado o patriotismo do país em relação a “grande luta
internacional” para vingar os “ultrajes feitos a nossa soberania e os danos que nos têm sido causados pela
perversidade de Solano Lopez”19. Sobre a mobilização que vinha ocorrendo nas províncias do Império
informava que:
[...]Como por encanto, as províncias têm regorgitado com centenas e centenas de
voluntários da pátria, os quais briosamente correm aos campos da peleja.
Relativamente, já não é pouco talvez o que ella tem feito. Central, pouco populosa,
Idem.
LIGA E PROGRESSO. p.4. Número 98. Anno IV. Theresina, Quarta-feira, 7 de junho de 1865. Disponível em
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso: 14.10.2018.
16 Idem.
17 ANÍSO BRITTO. Contribuição do Piauhy na guerra do Paraguay. P.4. Imprensa Official. Theresina. 1931.
18 PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província Franklin de Américo de Menezes Doria à Assembleia Legislativa. 12 de julho de
1865.
19 PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província Franklin de Américo de Menezes Doria à Assembleia Legislativa. 12 de julho de
1865.
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pobre, tão avezada aos hábitos da guerra como a que for menos afeita a eles, temos
visto, não obstante, muitos de seus filhos, abandonando casa, família e haveres,
virem de todos os pontos, talvez de longas léguas, até esta capital se oferece em
defesa da nação20.
A história sobre o assunto desta guerra foi registrada pelo padre Joaquim Chaves em obra intitulada
“O Piauí na Guerra do Paraguai” que relata os primeiros episódios dizendo que “o Brasil se levantará como
um só homem para lavar a afronta que a falsa fé acaba de receber do Paraguai; e o governo Imperial saberá
cumprir com os deveres de sua missão” 21 e continua:
[...]apesar da importância destas notícias, não há razão para que o espirito público
se sobressalte. O Império dispõe de bastante força e conta com o patriotismo de
todos os brasileiros para que fique à mercê de qualquer governo, por mais fraco que
seja, que se lembre de provocar-lhe os brios.”22
As medidas imediatas tomadas pelo império contra o Paraguai chegam às mãos do governo
provincial, constando de circular do Ministério dos Negócios da Justiça, no dia 26 de dezembro de 1864 e
continham autorização para aumentar o número de praças do Exército e Armada, criar corpos de voluntários
que “em auxílio dos mesmos Exército e Armada pugnem pela desafronta da honra nacional nas repúblicas do
Uruguai e Paraguai”23, a recomendação era ativar o recrutamento na província para o fim indicado e que
fosse apelando para “o patriotismo do povo, tão interessado como o governo imperial em sustentar a
dignidade do país, promova a organização de alguns daqueles corpos” 24. Nota-se que a ênfase era garantir
homens para a guerra seja pelo patriotismo, senão pela força do recrutamento sob argumento de pugnar pela
honra e dignidade do país.
Em 22 de fevereiro o presidente recebeu ordem do governo imperial para fazer marchar com toda a
brevidade o corpo de guarnição que no dia 10 do mês de março já marchava em estado quase completo
contando de 20 oficiais e 310 praças, com 3 médicos e um farmacêutico do corpo de saúde do exército 25. A 11
de abril foi a Companhia de Polícia, que por intermédio de seu comandante interino ofereceu-se ao
presidente da província para tomar parte na guerra, contando de 3 oficiais e 80 praças26.
O fato oficial é que em 1865 o presidente da província do Piauí, em pouco mais de 2 meses, contava
que haviam partido para a campanha do Sul 814 homens, sendo 475 voluntários da pátria 27. Assim como
estas outras manifestações de esforço na província do Piauí iriam surgir no início da guerra para lutar ou
apoiar os que estavam no campo de batalha contra a desafronta à nação, em defesa da honra vilipendiada.
Nem todos vão a guerra, mobilização e manifestação patriótica
Quando a notícia da guerra com o Paraguai se espalhou houve grande mobilização, a velha prática do
recrutamento forçado utilizado como mecanismo de controle social e para engrossar as linhas da força do
exército durante as guerras não foi necessária 28. No início da guerra houve uma grande quantidade de
voluntários que se apresentaram para defender a pátria, uma das razões que teria levado ao alistamento
espontaneamente foi a confiança em “[...]uma guerra curta e rápida, como foram, desde a década de 1850, as
Idem.
JOAQUIM CHAVES. O Piauí na Guerra do Paraguai.p.7. Cadernos Históricos 4. Da Academia Piauiense de Letras.
22 Idem.
23 Idem.
24 JOAQUIM CHAVES. O Piauí na Guerra do Paraguai.p.8. Cadernos Históricos 4. Da Academia Piauiense de Letras.
25 Idem.
26 PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província Franklin de Américo de Menezes Doria à Assembleia Legislativa. 12 de julho de
1865.
27 PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província Franklin de Américo de Menezes Doria à Assembleia Legislativa. 12 de julho de
1865.
28 KRAAY, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Brasil Imperial. Diálogos. DHI/UEM. v.3. 1999.
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intervenções brasileiras no Prata”29, com o passar do tempo iam surgir críticas sobre a duração do conflito
que havia se tornado uma “luta de posições, em 1866” e poderia causar a ruína do país, somava-se as
reclamações oriundas da retomada da prática do recrutamento forçado30.
Um fator que Contribuiu de forma decisiva para grande número de voluntários foram as
“convocações que exaltavam o patriotismo” realizadas por meio da divulgação na impressa com destaque em
Teresina os jornal A imprensa, Liga e Progresso e O Piauhy e por meio da propaganda oficial do governo
Imperial e Provincial31. Essa impressa de caráter oficial não era unânime no império, sofrendo dos partidos
de oposição duras críticas que eram dissipadas ao público por seus veículos de comunicação.
Destaca-se no império o periódico liberal e oposicionista Diário do Povo32 que logo iria denunciar a
violência cometida no recrutamento e nas designações para a guerra. A impressa como divulgadora das ideais
do governo, com caráter oficial, bem como a de oposição não era uma particularidade do Império do Brasil.
Nesse sentido mostra Mariana Peréz em “Poder polítco y prensa política: entre la libertad de imprenta y el
control de la opinión (Entre Ríos, 1862-1870)” que na américa hispânica, a província Entre-Ríos, mantinha
uma imprensa com característica diversa e intenso debate público 33.
Em 7 de janeiro de 1865 o decreto imperial nº 3371 criava corpos com a denominação de voluntários
da Pátria34, para o serviço de guerra, em circunstâncias extraordinárias, estabelecendo as condições e fixava
as vantagens que lhes ficava competido. Em sintonia com a determinação imperial, o presidente da província
do Piauí, Dr. Franklin Américo de Menezes Dória, em 1º e em 24 de fevereiro de 1865 enviou ofícios aos
comandantes superiores instalando-lhes o alistamento de voluntários em todos os batalhões da Guarda
Nacional estacionados na capital e no interior. A aceitação de homens no início, prontos a ir à guerra foi
tamanha, que “em Teresina, aberto o voluntariado na Secretaria Militar do Palácio da Presidência, choveram
as inscrições”35.
O periódico “Liga e progresso” informava o embarque da Companhia de Polícia da província do
Piauí para a guerra “na manhã do dia 11 do mez próximo passado teve lugar, com a solenidade possível, o
embarque, no Urussuhy, do corpo policial desta província com destino ao sul composto de 80 praças de pret,
um tenente comandante e dous alfres” 36. Era lembrado no jornal que o número de praças que existia na
Companhia Policial, a pouco meses, era de 56 e achavam-se destacados em várias partes da província “d’onde
vierão com toda pressa, em virtude de ordem da presidência” 37. O comandante efetivo era o major Antonio
Joaquim de Lima e Almeida que não marchou junto por se achar licenciado pela Assembleia Provincial indo
em seu lugar o comandante interino, Manoel Hilario da Rocha. O presidente, sobre o esperado do Piauí em
termos de patriotismo em prol da guerra, dizia:
DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai.p.264. Francisco Fernando
Monteoliva Doratioto. São Paulo: companhia das letras, 2002.
30 Sobre o recrutamento em tempo de paz é necessário compreender tal prática no Brasil para além da violência empreendida por um
Estado forte contra uma população frágil, mas como um sistema “onde contribuiu o Estado, a classe de senhores de terras e escravos e
boa parte dos pobres livres, e da qual cada participante tirou benefícios significativos” (KRAAY,1999, P.115). Em tempo de guerra a
prática era intensificada, dada a necessidade de expansão militar, gerando dúvidas sobre quem seria recrutado.
31 ARAÚJO, Johny Santana de. BRAVOS DO PIAUÍ! ORGULHAI-VOS. SOIS DOS MAIS BRAVOS BATALHÕES DO IMPÉRIO: A
propaganda nos jornais piauienses e a mobilização para a guerra do Paraguai 1865-1866. p. 19. Tese. (Doutorado). Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2009.
32 DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai.p.270. Francisco Fernando
Monteoliva Doratioto. São Paulo: companhia das letras, 2002. A crítica da opinião pública acerca da guerra ia aumentar não só no
Brasil, mas também em países que compuseram a Tríplice Aliança na Guerra contra o Paraguai. Conforme María Victoria Baratta “ [...]
la contenda despertaria crescientes críticas em la opinión pública y resistencias armadas importantes” (BARATTA,2014, P.99).
33 PÉREZ, Mariana. Poder político provincial y prensa política: entre la libertad de imprenta y el controle de la opinión ( Entre Ríos,
1862-1870). Quinto Sol. 22, n 3, septiembre-diciembre 2018.
34 Os Corpos de Voluntários da pátria foram criados devido a dificuldade que o governo imperial encontrou no primeiro momento para
mobilizar os guardas nacionais para a guerra. Nesses corpos podiam alistar-se voluntariamente os cidadãos entre dezoito e cinquenta
anos para servir no exército que tinha como incentivo do governo o soldo normal dos soldados das forças regulares de quinhentos réis
diários e ainda “uma gratificação de 300 mil réis ao darem baixa no final da guerra. Nesse momento os voluntários teriam direito, ainda,
a terras, na extensão de 49500 metros quadrados, nas colônias militares e agrícolas existentes em diferentes pontos do Brasil”
(DORATIOTO, 2002, P. 114) dentre outras vantagens.
35 JOAQUIM CHAVES. O Piauí na Guerra do Paraguai.p.9. Cadernos Históricos 4. Da Academia Piauiense de Letras.
36
LIGA E PROGRESSO. P.4. Número 95, ano IV. Theresina. Sabbado 06 de maio de 1865. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018. Ver ainda Dissertação de mestrado que trata da organização e
disciplina do Corpo de tropa Policial da província do Piauí (1835-1865) por Marcelo Cardoso (CARDOSO, 2018, p. 57)
37 Idem.
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S. exe. O sr. dr. Doria desejoso de ver o Piauhy, guardadas as proporções, ao lado
de suas irmãs, que mais se hão destinguido pelos sentimentos de patriotismo, tem
envidado todos os seus esforços para ver realizado tão nobre empenho, já dirigindo
a sua palavra authorizada, já offirias do aos comandantes superiores dos
municípios e correspondendo-se particularmente com as pessoas mais gradas da
província afim de prestarem-lhe toda a cooperação possível.38
A demonstração inicial de patriotismo da província do Piauí contava com o esforço dos comandantes
para mobilizar as “pessoas mais gradas da província” a ajudar no que fosse possível. Logo no primeiro
momento elevou-se, em pouco tempo, o efetivo do Corpo Policial de 55 homens para cerca de 80 praças que
estavam preparados para o embarque rumo ao Sul. Essa era “uma prova bem significativa da atividade e
energia que tem desenvolvido”39 o presidente da província do Piauí que diz “Se o Piauhy mais não fizer não é
certamente por falta de iniciativa da autoridade” 40.
Nem todos vão a guerra, na ausência do corpo de guarnição e da Companhia de Polícia, e em virtude
do art. 87 § 1º da lei nº 602, o presidente Franklin de Américo de Menezes Doria destacou 255 guardas
nacionais para a guarnição da província do Piauí. Essa medida era possível devida às alterações feitas pela lei
de 1850 que reforçava o caráter policial da Guarda Nacional, permitia que ficasse em tais circunstâncias
subordinada à autoridade policial mais graduada. A mesma lei definia a participação da milícia no serviço
ordinário e de destacamento quando não houvesse tropa de linha e de polícia para serviços ordinários41.
O número de guarda nacionais para o serviço de policiamento em 1865 foi elevado para 305,
distribuídos da seguinte forma: na capital 200, na cidade de Parnahyba 30, na cidade de Oeiras 20, na villa
do Príncipe Imperial 20, na vila da Independência 10, na vila de Barras 7, na vila de S. Gonçalo 7, na vila de
Jerumenha 7, na vila de Jaicos 4 e ainda informa que “Além d’estes destacamentos conservo um de 6 praças,
na vila de Piracuruca, e outro de 5, na de S. Raimundo Nonato, subindo portanto o total dos guardas
destacados a 318”42. Esse foi o efetivo da Guarda Nacional 43 que ficou fazendo a guarnição e o policiamento
na ausência do Corpo de Polícia e força de 1ª linha do Exército.
Havia os que não tinham ido à guerra, mas que estavam envolvidos pelo sentimento de patriotismo
cooperando como podiam. Assim fez jovem e inteligente tenente Antonio Alvez de Noronha que “de hum
caracter sisudo e bastante honesta” iniciou na capital Teresina o voluntariado de homens para a Polícia
urbana44. Especial louvores foi dada a iniciativa, cognominada de “tão patriótica idéia” que contou com o
empenho, para seu melhor resultado, dos que não haviam partido para o Sul.
Em 3 de abril de 1865 era noticiado que “a semelhança do que tem feito em outras partes, grande
número de cidadãos de todas as classes offerecerão se para policiar a cidade na ausência das tropas, em
Idem.
LIGA E PROGRESSO. P.4. Número 95, ano IV. Theresina. Sabbado 06 de maio de 1865. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018.
40 Idem. p.4
41 FERTING, André. Clientelismo político em tempos belicosos: a Guarda Nacional da Província do Rio Grande do Sul na defesa do
Império do Brasil (1850-1873).p.136-137. Santa Maria. Ed. da UFSM, 2010. Nesse mesmo trabalho o autor exemplifica os serviços
ordinários de guarnição desempenhados pelos guardas nacionais como sendo “escolta de presos, vigiar remessas de dinheiro
pertencentes ao Império” (FERTING, 2010,p. 137).
42 PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província Franklin de Américo de Menezes Doria à Assembleia Legislativa. 12 de julho de
1865.
43 Jeanne Berrance de Castro destaca o serviço na Guarda Nacional com o fim de preservar a tranquilidade pública que podia ser dentro
ou fora do município, porém quando fora estava limitada aos motivos de “insuficiência de tropa de Polícia e de Linha, na escolta de
dinheiro ou valores da Nação, na condução de presos” (CASTRO, 1977, P. 37-38) dentre outras excepcionalidades. No início da
mobilização para a guerra foi cogitada a possibilidade de mobilizar esta força para completar o efetivo do Exército que ia ao Sul, porém
apesar de numerosa “não se traduzia em força militar real, pois os guardas nacionais, embora considerados auxiliares do Exército em
caso de guerra, eram despreparados para o combate” (DORATIOTO, 2002, p. 112). Essa força limitava-se a fazer serviços internos nas
províncias em auxílio ao policiamento.
44
LIGA E PROGRESSO. P.4. Número 93, ano IV. Theresina. Quarta-Feira 19 de abril de 1865. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018.
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auxilio à guarda nacional destacada”45 que não supria todas as necessidades do serviço. Os voluntários que
desde 18 de março daquele ano faziam o policiamento urbano contavam um número de oitenta igual ao que
foi formado na Companhia Policial para marchar à guerra.
O jornal “Liga e Progresso” acrescentava em outras edições acerca da polícia urbana de Teresina,
capital da província, informando que o número dos cidadãos “tão patrioticamente se tem oferecido para
policiar a cidade, durante a noite, vai sendo consideravelmente aumentado” 46. Nesse sentido justificava aos
leitores a satisfação em publicar tais fatos porque “[...]não so levamos ao conhecimento publico, actos tão
dignos de louvores, como rendemos ao mesmo tempo uma grata homenagem ao patriotismo de tão
prestimosos cavalheiros, que se fazem credores da maior estima e respeito dos seus cidadãos” 47.
O sentimento de patriotismo aflora de várias formas na província do Piauí. As “ofertas patrióticas”
feitas pelos que não foram a guerra, mas compreendiam a importância da ação imperial, estava presente nas
diversas autoridades. Assim fez o dr. Juiz de direito da comarca de Príncipe Imperial, Joaquim Pires
Gonsalves da Silva, que ofereceu 15% dos seus vencimentos para as despesas extraordinárias do estado
enquanto durasse a guerra48.
Joaquim Pires Gonçalves da Silva também tomou iniciativa de abrir subscrição no seu município
entre os cidadãos para ajudar nas despesas da guerra tendo formado uma lista que completou 32 nomes de
cidadãos que doaram donativos para as despesas da guerra na comarca de Príncipe Imperial, consta
completa no periódico analisado, e totaliza a arrecadação de 885$000 reis49. Estes atos de patriotismo eram
elogiados e divulgados como deixa entrever os dizeres no jornal que “S. exe. O sr. presidente agradeceu não
só a oferta, como louvou o patriótico serviço que o dicto juiz de direito prestou agenciando a subscripção-e
também agradeceu aos subscritos”50.
Em 27 de abril de 1865 foi organizada uma sociedade beneficente, inaugurada no palácio da
presidência, tinha como finalidade proporcionar as famílias dos piauienses que se alistassem voluntários da
pátria um seguro meio de subsistência “garantindo-lhes o pão quotidiano”51. Na sociedade beneficente foram
aclamados como membros das comissões as seguintes pessoas: “presidente honorário – O exm. Sr. dr.
Franklin Americo de Menezes Doria” e para Commissão Central o “Presidente- o sr. major Joze de Araújo
Costa”, secretário – o sr. capitão Raimundo Theotonio da Morada, “Thesoureiro – o sr. Antonio Gomes de C”
dentre outros componentes.
A comissão de uma sociedade patriótica na vila de Barras, composta dos senhores, dr juiz de direito
Candido Gil Castelo Branco, promotor público Manoel Rufino de Sousa e professor David Moreira Caldas fez
uma oferta patriótica quando “acaba de remeter ao presidente da província, em nome da mesma sociedade, a
quantia de 200$ reis para auxílio do fardamento dos voluntários da dita villa, os quais, a 12 de março ultimo
irão em numero de 41”52 os redatores do jornal completavam ao dizer que os atos patrióticos pesavam sem
comentários e traziam em si o mérito real dos que o praticam.
Outros Oferecimentos Patrióticos feitos por cidadãos da província seguem abaixo para avaliar o
quanto a dita guerra veio a envolver cada pedaço do território do Piauí que havia homens ligados a nação
integrados em um só corpo pela guerra que não exigia apenas o esforço daqueles que foram lutar no campo
de batalha, mas dos que aqui ficavam prontos a sacrificar-se para restituir a honra ameaçada.
45 LIGA E PROGRESSO. P.3. Número 94, ano IV. Theresina. Segunda-Feira 3 de abril
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018.
46
LIGA E PROGRESSO. P.4. Número 93, ano IV. Theresina. Quarta-Feira 19 de abril
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018.
47 Idem.
48
LIGA E PROGRESSO. P.4. Número 95, ano IV. Theresina. Sabbado 06 de maio
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018.
49 Idem.
50 Idem.
51 Idem.
52
LIGA E PROGRESSO.Theresina. Anno IV. Numero 94. Segunda-Feira. 1 de maio
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso 14.10.2018.
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de
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Disponível
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em:
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–S Exc. o Sr. Franklin Doria, ofereceu 1:000$ reis, deduzido de seus ordenados,
para as urgências do estado.
Os Srs. Inspecto da tesouraria geral, capitão Fernando da Costa Frere, tesoureiro,
coronel Thomaz d’Aquino Ozorio, dr. Procurador fiscal e os demais empregados
d’aquella repartição offereceram 10% de seus ordenados.
- O sr. dr. Newton Cesar Burlamaque ofereceu 10% dos seus vencimentos como
engenheiro geral e provincial até a conclusão da guerra.
O sr. dr. Juiz de direito da comarca, Antonio de Souza Mendes Junior, também
ofereceu 10% de seus ordenados.
-O sr. coronel comandante superior da guarda nacional do município das Barras,
Francisco Feliz Correia, offereceu-se a machar para o serviço da guerra com todos
os seus subalternos.
-O sr. coronel comandante superior da guarda nacional da Parnaiba, ofereceu-se
para o mesmo fim com todos os seus superiorados que o quiserem acompanhar.
-O sr. capitão da guarda nacional Antonio José de Araújo Bacellar ofereceu 100$
reis para as despesas da guerra, e ao mesmo tempo prestou-se gratuitamente a
comandar o destacamento da guarda nacional d’esta capital.
-O sr. alferes Abilio Cesar Ribeiro oficialmente ofereceu-se grátis para comandar o
destacamento da guarda nacional da cidade da Parnahiba, assim como a concertar
a sua custa 20 armas pertencentes aquele destacamento.
-Os srs Firmino Alves dos Santos e companhia offereceram 300 para as despesas da
guerra.
-O sr. dr. Constantino Luiz da Silva Moura ofereceu 15% de seus vencimentos de
médico contractado para o serviço da guarnição d’esta capital.
-Os srs. Capitão Joaquim de Lima e Castro e alferes Bemjamim José Teixeira, além
de 10% de seus ordenados de empregados públicos, offereceram-se gratuitamente a
fazer o serviço relativo a suas patentes, no destacamento da guarda nacional d’esta
capital, quando desocupados53.
Fica a entrever que todos deveriam em nome da pátria doar algo e o bem mais valioso, último, seria a
vida. No caso dos mais humildes, nutridos do sentimento de patriotismo, não houve resistência, iriam ser os
primeiros a ser sacrificados em nome da pátria. Aos que não entediam a razão do sacrifício, por algum
motivo, coube a resistência que não é improvável ter existido no momento inicial que os anos seguintes iriam
marcar com mais nitidez. Essa é outra verdade da história que acabo de narrar, a história do não patriotismo,
após o clamor inicial da grande mobilização feita pelos dirigentes do poder central e provincial a resistência
ia ficar mais nítida.
Considerações Finais
A guerra do Paraguai com Brasil contribuiu para amalgamar o Estado Nacional por meio da
institucionalização do poder central sobre a população e o território. Fortaleceu o sentimento de união e luta
em prol de uma causa comum, tida como justa e digna pela elite dirigente, terminando por integrar as
diversas províncias entre si e os homens dentro destas unidades provinciais. As consequências foram a
extinção de fronteiras no interior do Estado e a definição de limites com Estados vizinhos.
A ordem do dia era mobilizar todos a ponto de envolverem-se na guerra em nome da pátria. As
ordens vinham do poder central, chegavam ao presidente da província, iam repassadas à lideranças locais
encarregadas de arregimentar as forças. Esse esforço de mobilização contava com o auxílio da imprensa
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http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso 14.10.2018.
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Segunda-Feira. 27
de
março
de
1865.
Disponível
em:
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Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS
periódica na propagação das causas da guerra, na mobilização, doações patrióticas e informações de quem
partia para a luta.
A historiografia sobre o tema na província do Piauí durante algum tempo incorporou os discursos
dos periódicos e falas das autoridades que enalteciam o patriotismo dos voluntários no conflito. Existe, no
entanto, uma produção que visa fazer uma revisão desta interpretação considerando que houve resistência
variadas em ir à guerra. A elite buscava fazer ofertas patrióticas, quando não mobilizar para a guerra, os que
não tinham nada a oferecer buscavam outras formas de resistência.
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http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018.
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http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018.
LIGA E PROGRESSO.Theresina. Anno IV. Numero 90. Segunda-Feira. 27 de março de 1865. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso 14.10.2018.
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Mudanças socioambientais provocadas pela modernização da agricultura no
norte do Rio Grande do Sul: 1950-1970
Marcos Paulo de Oliveira Junior1
Resumo: A pesquisa busca compreender as transformações socioambientais, pós-introduzidas pela
modernização da agricultura no Norte do Rio Grande do Sul, onde atualmente se encontram os municípios
de Carazinho, Não me-Toque. Esse recorte regional está articulado com o processo global de transformações
da agricultura e precisa ser compreendido nesse contexto. O recorte temporal começa um pouco antes do
auge da modernização da agricultura na região, que ocorreu por volta de 1960 e se estendeu até os anos de
1970. A pesquisa emprega os referenciais conceituais e metodológicos da História Ambiental e utiliza como
fontes: mapas de agrimensores, jornais. Conclui-se, preliminarmente, que as principais mudanças
socioambientais foram o desmatamento para abertura de novas áreas agrícolas e a contaminação do meio
ambiente pelo uso de agroquímicos.
Palavras-chave: Socioambiental. Modernização. Agricultura.
1. Introdução
O presente artigo tem como objetivo compreender as transformações socioambientais, introduzidas
pela modernização da agricultura, transformações essas analisadas desde sua origem, o seu impacto, tendo
por base de que qualquer atividade que o homem exerça no meio ambiente provocará um
impacto ambiental. Esse impacto, no entanto, pode ser positivo ou não. Infelizmente, na grande maioria
das vezes, os impactos são negativos, acarretando degradação e poluição do ambiente.
Por questões metodológicas, este artigo será organizado em três subdivisões. Na primeira, pretende-se
compreender como se deu as primeiras transformações socioambientais na região. Na segunda, buscar-se-á
justificar a opção metodológica de analisar como o processo de modernização foi chegando até esse colono e
pequeno agricultor. E na terceira buscamos identificar os impactos ambientais que essas mudanças
socioambientais causaram na região.
1.1 As transformações socioambientais antes do processo de modernização
Impactos socioambientais são alterações sofridas no meio ambiente e que foram provocadas por
determinadas ações ou atividades, impactando sobre a qualidade de vida, a saúde humana, a economia
urbana e modificar ainda mais o meio ambiente e os ambientes construídos. Os impactos socioambientais
têm origem na atividade humana. A principal vilã socioambiental é a indústria, que utiliza recursos naturais e
despeja resíduos e poluentes nos meio ambientes.
Nosso recorte temporal O recorte temporal começa um pouco antes do auge da modernização da agricultura
na região, que ocorreu por volta de 1960 e se estendeu até os anos de 1970, e regional se delimita onde
atualmente se encontra os municípios de Carazinho e Não-me-toque, que até os dias de hoje a agricultura é
uma das principais atividades econômicas da região. Quando falamos em região é sempre algo complexo e
necessário, ela não é predefinida nem juridicamente, nem economicamente, nem mesmo naturalmente, ela
será sempre um recorte, ou seja, a separação de uma parte dentro de um todo maior, que dependerá sempre
da problemática que se pretende analisar.
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF), na linha de pesquisa: Espaço,
Economia e Sociedade. Graduado no Curso de História Licenciatura da Universidade de Passo Fundo. Membro do Núcleo de Estudos
Históricos do Mundo Rural (NEHMuR). Email: marcos_0407@outlook.com
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De acordo com Herédia,
[...] la matriz etimológica de la palabra podría ser ubicada em la ciência geográfica,
em cuanto su naturaliza responde, dentro de las ciências sociales y humanas, a la
dimensión espacial. Sin embargo, podemos encontrarla em la terminologia de
historiadores, literatos, sociólogos, economistas. De alli que sea conveniente
formular ciertas precisiones em cuanto a su uso y significado em determinados
sistemas de conocimiento. (HERÉDIA, 1996, p. 292)
Como afirma a autora, região pode ser entendida como algo constituindo um espaço geográfico criado pelo
homem, e que o homem a modifica. O significado de região não pode ser visto de forma separada da natureza
e do meio geográfico, pois ambos se completam, adquirindo conexão própria, compondo os elementos que
provém da investigação do meio com aqueles outros que formam o fundamento ideológico das pessoas.
Ainda sobre história regional, outro conceito importante, é o de espaço, que vem a ser caracterizado
“segundo Milton Santos como um fato social, produto da ação humana, uma natureza socializada que
interfere no processo social, pela carga de historicidade possível de ser construída” (RECKZIEGEL, 1999, p.
15 – 22).
Com base no conceito analisamos mapa, um de Maximiliano Beschoren, que foi um engenheiro,
jornalista, e meteorologista alemão, que fez um mapa detalhado da região norte no ano de 1875, retratado em
seu livro “Impressões de Viagem na Província do Rio Grande do Sul”, esse estudo parte do mapa de
Beschoren para o mapa atual da região e assim analisaremos quais foram as transformações socioambientais
pela modernização do campo.
BESCHOREN, M. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins
Livreiro, 1989.
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(Googlemaps)
Como podemos observar nos dois mapas, as regiões onde havia mato, não se tem mais, atualmente
encontramos campos de cultivo de soja, e também no mapa de Beschoren de 1875, ainda não existia o
município de Não- me- toque. Que preliminarmente conclui se que o município é fruto dessa modernização
consequentemente uma transformação socioambiental com imenso impacto ambiental.
Se a História da Humanidade tem um “cenário” com certeza os homens modificam esse “cenário”
conforme suas atitudes para com ele através do tempo. Impactos ambientais geram transformações
socioambientais, sejam eles impactos positivos ou negativos, a realidade é que de uma visão filosófica o
homem tem que lidar com as consequências do seu próprio comportamento ao longo do tempo.
O Rio Grande do Sul, antes dos colonos imigrantes, estava ocupado por matas de pinhais e várias
outras arvores que constituíam sua parte de mato, sendo esse um rico mato principalmente para tribos
indígenas que aqui estavam, dentre as inúmeras tribos em sua maioria encontramos kaigangs, os quais
seriam os grandes responsáveis ou “semeadores’ de tantas araucárias encontradas nessa região, devido ao
consumo do famoso pinhão, semente da arvore araucária, que fazia parte de sua dieta, e que por
consequência iam espalhando pelos matos adentro outras sementes de araucária”. Segundo Notzold:
Estes grupos exploravam o meio em que viviam de acordo com a época do ano,
dando origem assim a diversos sítios arqueológicos (sítios habitação, maior
permanência do grupo; sítios acampamentos, menor permanência; sítios oficina,
local de extração de matéria-prima). Sua alimentação baseava-se na caça de
animais de pequeno e médio porte e na coleta de frutos, raízes e principalmente do
pinhão, que eles encontravam em grande quantidade nas araucárias, vegetação
característica de sua região. (NOTZÖLD. 2003, p.48.)
Essa transformação socioambiental, causada pelo impacto ambiental da dieta das tribos Kaigangs
abre nossa pesquisa como sendo a primeira ação do homem sobre nossas matas, esse pode ser um impacto
positivo, afinal não há uma exploração abusiva da planta, mas sim um replantio, claro que não podemos
esquecer que de modo involuntário, onde acontecia de maneira natural sem uma consciência ambiental.
Com as políticas de imigração e sua grande promessa de terras para colonos, os territórios indígenas foram
sendo dizimados pouco a pouco e todos os grupos kaingang e caciques que viviam no Sul do Brasil foram
praticamente conquistados e aldeados no século XIX, provocando assim mais um impacto ambiental, se por
um lado temos a dieta indígena que espalhou araucárias pelo Sul, temos a vinda do colono que destrói a mata
para fazer lavouras, queimadas e desmatamento desenfreado tomaram conta da região Sul do Brasil no
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século XIX. A tomada da maioria dos territórios indígenas do Sul provoca não só o fim de uma cultura, mas
como também afetou completamente no “serviço ambiental”, segundo o biólogo Henry Phillippe Ibanes de
Novion:
Os serviços ambientais prestados pela natureza fornecem produtos como
alimentos, remédios naturais, fibras, combustíveis, água, oxigênio etc.; e garantem
o bom funcionamento dos processos naturais como o controle do clima, a
purificação da água, os ciclos de chuva, o equilíbrio climático, o oxigênio para
respirarmos, a fertilidade dos solos e a reciclagem dos nutrientes necessários, por
exemplo, para a agricultura. Ou seja, os serviços ambientais são as atividades,
produtos e processos que a natureza nos fornece e que possibilitam que a vida
como conhecemos possa ocorrer sem maiores custos para a humanidade. Outros
exemplos de serviços ambientais são: a produção de oxigênio e a purificação do ar
pelas plantas; a estabilidade das condições climáticas, com a moderação das
temperaturas, das chuvas e da força dos ventos e das marés; e a capacidade de
produção de água e o equilíbrio do ciclo hidrológico, com o controle das enchentes
e das secas. Tais serviços também correspondem ao fluxo de materiais, energia e
informação dos estoques de capital natural. A continuidade ou manutenção desses
serviços, essenciais à sobrevivência de todas as espécies, depende, diretamente, de
conservação e preservação ambiental, bem como de práticas que minimizem os
impactos das ações humanas sobre o ambiente. (NOVION. 2011, p.53)
Os povos indígenas e comunidades tradicionais, que historicamente preservaram o meio ambiente e usaram
de modo consciente e sustentável seus recursos e serviços, são também responsáveis pelo fornecimento
desses serviços ambientais, são o que se chama de provedores de serviços ambientais. Ao permitir que o
ambiente mantenha suas características naturais e siga fornecendo os serviços ambientais, estes povos e
comunidades garantem o fornecimento dos serviços ambientais que são usados por todos. Os serviços de
preservar a natureza e suas características, conservar a biodiversidade, fornecer água de qualidade (porque
preservam a mata na nascente e na margem dos rios) é só mais um exemplo do que esse conflito entre
indígenas e colonos e a “conquista” desses colonos causou em níveis ambientais.
Dessa maneira com a campanha de incentivo a imigração, organizada pelo governo brasileiro no século XIX,
tinha um interesse econômico, porém com o acesso a compra de terras facilitada e incentivando a agricultura
nas terras que eram matos, os colonos começam suas atividades que sem controle e sem uma educação
ambiental ou consciência ambiental nenhuma, mudaram para sempre a paisagem geográfica do Rio Grande
do Sul, aumentando e muito seus campos, explorando cada vez mais essa natureza, sem dar nada em troca de
forma abusiva e sem freio.
A colonização alemã e Italiana começou pela intenção de povoar o Rio Grande do Sul, garantindo a
posse do território ameaçado pelos vizinhos Castelhanos. Além disso, outro objetivo da busca de alemães e
italianos era recrutar soldados mercenários para reforçar o exército brasileiro, recém-independente.
Para falarmos um pouco da agricultura do Rio Grande do Sul, não podemos deixar de falar sobre a
imigração já que ela que da a origem para o plantio da região Sul do Brasil, para começarmos a pensar em
agricultura voltamos para a colonização da região sul que começou por volta do ano de 1648 com os
portugueses fundando a Vila de Paranaguá a mais antiga cidade da região sul do Brasil e do Paraná.
Com a Proclamação da República no Brasil, as terras devolutas passaram para os estados, assim
como a responsabilidade pela colonização. No Rio Grande do Sul, o governo positivista defendeu a imigração
espontânea e a colonização particular. Rapidamente, o planalto gaúcho foi transformado em zona colonial,
com a instalação das colônias novas de iniciativa pública e privada, atraídas pelas possibilidades de
exploração do comércio de terras e pela obtenção de lucros fáceis.
Os imigrantes chegados ao Brasil encontravam uma realidade muito diferente da proposta feita pela
propaganda em seu país de origem. A propaganda de terras com o pagamento em prazo estendido e
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facilitado, não mencionava que essas terras eram mato, assim que instalado o Colono europeu começa o
processo de queima e derrubada do mato, “limpeza”, para poder começar a plantar. Esse processo começou
com uma agricultura familiar de forma totalmente manual.
Os imigrantes europeus que vieram para cá não vieram sós, com eles vieram toda sua cultura e seu molde de
vida e produção, a forma de vida não foi muito modificada só importada e um pouco adaptada, construíram
casas nos moldes europeus, e trouxeram até seu folclore fixado até hoje nas regiões de imigração que hoje é
conhecida no mundo inteira como pedaço da Europa no Brasil.
A agricultura era baseada na produção de excedente, produziam entre famílias para consumo próprio e para
comércio, com isso a agricultura aqui instaurada não se detinha a um só plantio até pelo clima temperado,
mas sim de um diversificado agrário. Plantava se de tudo, mas destaca se o fumo, arroz, trigo, soja, cebola,
batata, com esse modo de plantio diversificado os agricultores criavam certo tipo de ligação com os
comerciantes, atacadistas ou a própria indústria, que beneficiou este tipo de produção.
Na região norte do Rio Grande do Sul, mais precisamente na região onde hoje se encontra os municípios de
Carazinho e Não- me-toque, não foi diferente, os colonos alemães também chegaram nessa região, porém já
havia a presença de lusos portugueses que deram origem a Grande fazenda não me toque, após é claro
expulsar os indígenas de suas terras.
Na época das instalações das fazendas pelos portugueses em 1827, muitas recebiam
denominações como Invernada Grande, Pessegueiro, Invernadinha, e uma delas,
pela denominação nos chama atenção, pois denominou-se Fazenda Não-Me-Toque.
Sua existência é confirmada por uma escritura pública encontrada no Cartório de
Registro de Imóveis de Passo Fundo, datada em 20 de julho de 1885.(SCHERER.
2004,p.34)
As terras do hoje município de Não-me-toque, como em outros municípios da região, tiveram a
presença de índios como primeiros habitantes nativos. A partir de 1827, começaram a chegar na região do
Planalto Médio elementos lusos, iniciando a atividade pecuária nas grandes estâncias por eles instaladas. Em
meados do século XX, os descendentes de italianos e alemães buscaram na Colônia Nova do "Alto Jacuhy"
(hoje Alto Jacuí) melhores condições de vida e, nos lotes de terras adquiridos, começaram a dedicar-se à
agricultura e à extração de madeira, bem como instalação de pequenas fábricas e casas comerciais, tornando
Não-Me-Toque sede da Colônia do Alto Jacuhy (1900). (SHERER, 2004,p.18-24)
A religião e a educação foram sempre as molas propulsoras do pequeno povoado que passou à vila,
fazendo parte das terras de Rio Pardo, Cruz Alta, para posteriormente tornar-se distrito de Passo Fundo e
Carazinho. A partir de 1949 começam a chegar os imigrantes holandeses e o município passa a ser o berço da
imigração holandesa no Rio Grande do Sul. Em 18 de dezembro de 1954 foi criado o município de Não-MeToque, sendo instalado em 28 de fevereiro de 1955. A sua população é composta, principalmente, por
descendentes de alemães, italianos, holandeses e uma parcela de portugueses, que vivem até hoje em sua
grande maioria por meio de atividades agrícolas providas da modernização da agricultura.
1.2 A modernização da agricultura e as mudanças socioambientais provocadas
Quando falamos em modernização, não podemos esquecer de que ela não é só uma questão de
industrialização ou de novas tecnologias, mas sim um conjunto de novos olhares, e modos de se viver a vida
em sociedade através desses meios providos pela modernização, porém para entrarem de modo social essas
novas tecnologias devem ser aceitas no âmbito social em massa, construindo assim um novo pensamento e
em uma escala de processo continuo um novo homem.
De acordo com o teórico social Peter Wagner, a modernização pode ser vista como um processo e como uma
ofensiva. A primeira visão é comumente projetada por políticos e pela mídia, e sugere que é o
desenvolvimento, originando novos dados tecnológicos ou leis ultrapassadas, que tornam a modernização
necessária ou preferível. Esta visão critica as dificuldades da modernização, visto que implica que são estes
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desenvolvimentos que controlam os limites da interação humana e não o contrário. A visão que considera a
modernização como uma ofensiva argumenta que tanto o desenvolvimento e as novas oportunidades
tornadas disponíveis por ele, são moldados e controlados por agentes humanos. Logo, este ponto de vista vê
o processo como um produto do planejamento e ação humanos, um processo ativo capaz de ser tanto
alterado quanto criticado. A modernização é muito mais provavelmente, um dos mais influentes
acontecimentos numa sociedade.
Nessa transição de agricultura familiar, para maquinários e agroquímicos, podemos destacar nos
agricultores o novo pensamento que Segundo Ponting há uma mudança no modo de pensar a relação
Homem e Natureza. Essa mudança de atitude pode ser um desdobramento da degradação ambiental causada
pelo uso abusivo e descontrolado dos recursos naturais, e os problemas decorrentes desse processo diversas
partes do globo. Assim, a história humana se apresenta também como a história do ambiente, por andarem
juntas, pelas ações do homem ter impacto direto em seu meio ambiente.
Com a modernidade o homem se desvincula da natureza, e se tranca em um pensamento e uma
filosofia de vida onde só o homem é o protagonista e passa a ver a natureza como um recurso para adquirir
um fim. O homem passa a se ver como dominador no caso da natureza e vai se sobrepuser a ela, então é ai
que começa “a mecanização do planeta” é nesse ambiente ideológico que a ciência moderna se formou e que
ainda a influência de forma significativa.
A partir dos anos 80 a mecanização do campo começou a ser intensificada, essa transformação
segundo George Martine é denominada de “caificação” que seria a mudança e evolução do modo de produção
e cultivo agrícola, que antes era praticamente todo manual e familiar, e que com a mecanização passou a ser
muito mais moderno e fácil e também mais produtivo e rápido, substituindo o trabalho braçal pelas
maquinas. Essa caificação era vista como a solução global para a agricultura e para a sociedade.
No Brasil essa visão revolucionaria nos meios de produção começa a partir de 1960, tendo a região
Sul e São Paulo como referência em produção agrícola obtendo a maioria de tratores do país. Essa
modernização foi acontecendo de forma compulsória devido aos financiamentos agrícolas facilitados e
incentivados, já com o viés de obter tal modernização para fins econômicos, pois a partir da mecanização a
produção seria exorbitante.
A modernização da agricultura não ocorreu de forma isolada no Brasil, mas sim como um fenômeno
mundial. Este processo constitui uma etapa da evolução da agricultura, baseada nas transformações
tecnológicas, insumos, máquinas e equipamentos, tendo como ponto de partida a revolução verde.
A modernização da agricultura pode ser caracterizada pela mudança da base
técnica da produção agrícola iniciada depois da segunda guerra mundial, com a
maior utilização de equipamentos e insumos, cuja resultante foi o aumento
imediato da produtividade dos fatores. O processo de modernização acarretou uma
integração técnica intra-setorial entre a mercantilização da agricultura, ao mesmo
tempo em que promove a substituição de elementos internos do complexo rural por
compras extra-setoriais, como máquinas e insumos, e, desta forma, induz à criação
de indústrias de bens de capital e insumos para o setor agrícola (COSTA,
2002,p.44).
A modernização ligou-se à Revolução Verde, um programa encabeçado pelo grupo econômico
Rockfeller, que:
Tinha como objetivo explícito contribuir para o aumento da produção e da
produtividade agrícola no mundo, através do desenvolvimento de experiências no
campo da genética vegetal para a criação e multiplicação de sementes adequadas às
condições dos diferentes solos e climas e resistentes às doenças e pragas, bem como
da descoberta e aplicação de técnicas agrícolas ou tratos culturais mais modernos e
eficientes (BRUM, 1985, p. 59).
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De acordo com o sociólogo Antônio Andrioli, a Revolução Verde baseava-se em três elementos
interligados:
1) a mecanização, através da produção de tratores, colheitadeiras e equipamentos;
2) a aplicação de adubo químico, pesticidas e medicamentos para a criação de
animais; 3) o progresso na biologia, através do desenvolvimento de sementes
híbridas e novas raças de animais com potencial produtivo superior (2008, p. 103).
Esse grande interesse econômico pautado na agricultura mundial, tinha um discurso de preocupação
com a população do mundo, onde um estudo feito pelos empresários do grupo Rockfeller, propagou na
imprensa mundial que o mundo poderia vir a sofrer com uma grande crise de alimentos para a população,
sendo assim a Revolução Verde seria o grande programa para sanar a fome no mundo. Como podemos
observar a Revolução Verde não sanou a fome no mundo, porém transformou a agricultura em agronegócio e
expandiu o capitalismo também para o mundo rural.
Então a partir do ano de 1960 começa esse alto investimento na modernização da agricultura, que
grosso modo identificamos que o maior produtor teve acesso a tecnologias de pesquisa de solo, crédito fácil, e
assistência técnica, a fim de produzir tanto para o comércio externo quanto o interno. Enquanto que o
pequeno agricultor ficou com o velho plantio tradicional e familiar, se baseava na produção de excedente e
comercializava com os pequenos mercados urbanos, os mesmos que devido comercializar com a massa
urbana de baixo poder aquisitivo segurava o preço dos produtos em baixa também.
Essa modernização foi denominada "dolorosa" por Graziano e "modernização conservadora" por
vários autores, tendo em vista que o processo de reestruturação produtiva se deu sem a alteração da
distribuição da posse da terra em espaços agrários concentrados, especializados em atividades intensivas em
capital (soja, milho, trigo, etc.). Com isso, houve o favorecimento das grandes propriedades e a concentração
da terra, sob o forte apoio do Estado, que se revelou socialmente seletivo, com as propriedades sendo
conduzidas por tecnologias poupadoras de emprego, trazendo consequências negativas para os trabalhadores
rurais, ocasionando a migração forçada de milhares de famílias do interior para os centros urbanos
(MENDONÇA et al., 2002).
Além do êxodo rural a modernização da agricultura causou em muitos lugares do mundo impactos
ambientais gigantescos, transformações socioambientais permanentes e visíveis nos dias atuais, tais como:
surgimento de cidades, desmatamento, auto índice de doenças causadas pelo uso de agrotóxicos, a morte
precoce de inúmeros agricultores que fizeram e fazem uso de agrotóxicos.
Como podemos ver no mapa de Beschoren, a localização do atual município de Não- me- toque e
grande parte dos arredores de Carazinho, eram em grande parte de mata ciliar, com grande presença de
araucárias. Segundo a historiadora Eunice Sueli Nodari o desmatamento no sul do Brasil não se deu só por
ser uma forma lucrativa, mas também pelo pensamento dos colonos de que a floresta é o grande empecilho
da lavoura. É claro que com a modernização do campo, também temos novas áreas como a agroindústria que
movimentou o comércio da madeira no século XX no Brasil, fortalecendo grande parte da economia nacional
do período. Grande exemplo disso são as madeireiras nos municípios vizinhos que em sua grande maioria
estão fechando as portas por falta de madeira na região.
A modernização da agricultura nessa teve inicio na região pelo município de Não-me-toque, mais
precisamente com a chegada dos imigrantes holandeses, a partir de 1949, que já tinham certa “experiência”
com maquinas agrícolas.
Segundo a pesquisadora Sandra Pedroso Cunha
A partir de 1930, a atividade agrícola nas terras de Não-Me-Toque, passou a exigir
novas formas de adubação nas lavouras e o uso de máquinas agrícolas. Esse
progresso na agricultura torna imprescindível a implantação da lavoura
mecanizada. Em 1948, começam a chegar as primeiras famílias neste estado do Rio
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Grande do Sul, sendo os Rauwers e Melis as primeiras famílias a chegarem em
Não-Me-Toque. Juntamente com os holandeses chegou a mecanização agrícola que
impulsionou nossa região. E assim Não-Me-Toque vai se desenvolvendo em todos
os setores: saúde, religião, educação, agricultura…Logo, a partir de 1949, com a
chegada dos imigrantes holandeses, experientes na mecanização das lavouras,
propiciou um avanço com a fabricação de máquinas agrícolas. Surgem empresas
que passam a trabalhar com sementes selecionadas. Todos esses aspectos
justificam a fama do município, além de ser pioneiro no uso de tratores,
plantadeiras, colheitadeiras, tornando Não-Me-Toque popularmente conhecida
como “Capital da Lavoura Mecanizada.(CUNHA,2004,p.27)
Esse processo de modernização, da um salto a partir de 1960, não só na região de Não Me Toque e
Carazinho, mas também no âmbito mundial. Com os altos investimentos na agricultura a Revolução Verde de
Nelson Rockfeller e seu grupo de empresários famintos por lucros, surgem com eles vários estudos sobre a
terra e também vários incentivos ao agricultor do próprio governo nacional brasileiro. A Emater (Empresa de
Assistência Técnica e Extensão Rural), ira surgir exatamente nesse contexto, mais precisamente no ano de
1957, o programa rural existente até os dias atuais, iniciou seus trabalhos no sul com a Operação tatu.
A Operação Tatú, como ficou conhecido o Plano Estadual de Melhoramento
da Fertilidade do Solo, na década de 1960, viria para resolver o problema
da falta de fertilidade do solo. Com a disseminação do uso do calcário e o
consequente aumento dos níveis de cálcio e magnésio, a Operação Tatú
elevou a produtividade agrícola. (EMATER, 2011)
Hoje, já se percebe um progresso com base no avanço da ciência do solo, através da geração do
conhecimento ao longo do tempo. Nos anos 1960 eram encontrados problemas de fertilidade. Já nas décadas
de 1970 e 1980, as dificuldades estavam na conservação. De lá para cá houve grandes evoluções. Atualmente,
as maiores preocupações são com problemas climáticos, o controle de emissão de gases e o cuidado com o
descarte de dejetos a fim de não afetar o solo.( EMATER,2011,p.1).
A partir de 1967, A modernização da agricultura e seu pacote tecnológico apresentam os herbicidas,
fertilizantes, fungicidas, ou seja, venenos e adubos químicos, produzidos pela indústria com objetivo de
combater as pragas e auxiliar no aumento da produtividade.
Segundo Nodari:
Os agrotóxicos eram parte do pacote tecnológico da modernização agrícola ou
revolução verde e, portanto, sua percepção e sua utilização estavam totalmente
conectadas com uma série de tecnologias agrícolas, como fertilizantes sintéticos,
calcário, tratores, sementes certificadas e demais implementos agrícolas. Para
convencer os agricultores a utilizar tais tecnologias, o governo brasileiro e os
estados utilizaram a concepção e métodos de extensão rural importados dos EUA e
criaram, a partir da década de 1950, escritórios de assistência técnica, contratando
técnicos agrícolas, engenheiros-agrônomos, veterinários e economistas domésticos.
No estado de Santa Catarina, foi criada a Associação de Crédito e Assistência Rural
do Estado de Santa Catarina (Acaresc), em 1957. Na sequência, crucial para a
disseminação dessas tecnologias foi a implantação de um amplo e generoso sistema
de crédito rural a partir do regime militar de 1964...(2017,p.78)
Com novas técnicas e equipamentos modernos, o produtor passa a depender cada vez menos da
“generosidade” da natureza, adaptando-a mais facilmente de acordo com seus interesses. Um grande
exemplo de tal feito seria os parreirais mineiros, logo que só se cultivava uva na região Sul do Brasil, hoje
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graças aos agrotóxicos podemos plantar praticamente tudo em qualquer lugar do mundo, sem depender das
condições climáticas naturais de tal região.
Esse processo incentivou a prática de monocultivos, o uso de sementes geneticamente modificadas, a
forte mecanização do campo e o uso dos pacotes agroquímicos. Quase toda a tecnologia que surgiu na
revolução verde, desde as máquinas aos agrotóxicos, foi proveniente de adaptações de pesquisas e
equipamentos utilizados na guerra. A produção e a comercialização dos agro venenos no Brasil e no mundo
se concentra na mão de seis grandes empresas transnacionais, que controlam mais de 80% do mercado de
venenos. São elas: Monsanto, Syngenta, Bayer, Dupont, Dow e Basf.
Os agrotóxicos chegaram ao Sul do país junto com a monocultura da soja, trigo e arroz, associados á
utilização obrigatória desses produtos para quem pretendesse usar o crédito rural. Hoje em dia, os
agrotóxicos encontram- se disseminados na agricultura convencional como uma solução de curto prazo para
a infestação de pragas e doenças.
Com essa ‘obrigação’ de comprar e usar os agrotóxicos os agricultores acabaram gerando uma grande
contaminação do meio ambiente mesmo sem saber. Na Europa não foi muito diferente, além dos problemas
ambientais é necessário observar que a fome de todos os famintos não teve fim. No entanto, por esse
caminho a agricultura está cada vez mais subordinada à indústria, que dita as regras de produção de acordo
com a sua demanda.
1.3 Os impactos ambientais que essas mudanças socioambientais causaram na região
O presente artigo permitiu a compreensão de parte do processo de modernização da agricultura no,
município de Carazinho e Não Me Toque, dos incentivos e do trabalho de imprensa, Emater e do Governo
brasileiro. Considerando que a atual região de Carazinho e Não Me Toque, desde a sua colonização foi
fortemente marcado pela agricultura, advindo dos indígenas, caboclos e dos povos europeus, a agricultura
fora parte do cotidiano, rotina de trabalho dos indivíduos então nas décadas de 1960 a 1970 a houve a
modificação da agricultura convencional para a entrada da modernização, na introdução do uso de
máquinas, equipamentos, agrotóxicos e agroquímicos refletindo assim, não só no meio rural mas também no
urbano.
Além das empresas representantes das indústrias de insumos e equipamentos para a agricultura que
estão até hoje em funcionamento, temos o auxilio da Emater impulsionando esse processo de modernização
que continua em andamento dia após dia.
A pesquisa, na interpretação de suas fontes, nos permitiu compreender o contexto em que estavam
inseridos, preenchendo algumas lacunas da história do processo de modernização da agrícola do município
de Carazinho, ao mesmo tempo em que nos abre espaço para novas indagações e muitos temas que podem
ser explorados por meio de novas pesquisas históricas. Não podemos deixar de questionar, os vários rumos
que nossa pesquisa nos traz, as várias facetas e também o caráter dessa modernização que era “solução”, mas
que apresenta uma grande preocupação com lucros. A quem serviu essa modernização? , a pesquisa nos
deixou claro de que essa modernização foi benéfica para grandes agricultores e que os pequenos produtores
ainda continuaram um bom tempo com a mão de obra familiar.
O desmatamento, a contaminação das águas e do solo são problemas que impactam a atualidade,
mas cuja origem está há algumas décadas, por ocasião da intensificação do processo de industrialização e da
utilização intensa dos bens naturais orientados para atividades agrícolas. Transformações socioambientais,
em sua grande maioria permanente, como praticamente o fim das florestas de araucárias, o surgimento de
uma cidade, advinda do processo de modernização.
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Pós-Abolição em Palmas/PR:
trabalho e interação social (1888-1900)
Maria Claudia de Oliveira Martins1
Resumo: O presente artigo tem o propósito de analisar os caminhos percorridos pelos ex-escravizados
após a abolição da escravidão, no que se refere ao trabalho e interação social, constatando-se que, para além
da questão de garantir a sobrevivência, tratava-se da luta por conquistar espaço no mundo dos indivíduos
livres. Uma luta extremamente espinhosa, em razão dos vários obstáculos que se apresentavam às relações
sociais e às oportunidades de promoção pessoal para os egressos do cativeiro. Para os referidos estudos
foram consultadas fontes cartoriais, eclesiásticas, atas da Câmara de Palmas e processos da vara criminal do
fórum daquela cidade, no período entre 1888 e 1900.
O fim da escravização legal no Brasil, que perdurou por cerca de três séculos, impôs aos egressos do
cativeiro o desafio de encontrar o seu espaço e serem aceitos no “mundo dos livres”. Desafio árduo, ao se
considerar que a liberdade concedida por meio da Lei Áurea não teve respaldo de leis e nem ações efetivas
voltadas a garantir oportunidades e direitos civis, políticos ou sociais àqueles que deixaram o cativeiro.
Conforme Lima (2005, p. 308),
[...] (havia uma) perspectiva pouco promissora de acesso aos atributos positivos que
revestiam a noção de ‘liberdade’ como ideal e horizonte de expectativa: o acesso à
propriedade e a um ofício remunerado que permitisse viver dignamente por si, a
garantia de poder construir autonomamente seus vínculos de sociabilidade e
pertencimento.
Desse modo, coube aos próprios libertos estabelecer estratégias para a vida em liberdade. Decidir,
diante de uma gama limitada de possibilidades, o que fazer e como contornar as dificuldades que se lhes
apresentavam.
O lócus deste estudo foi a Comarca de Palmas, que se localizava a sudoeste da Província do Paraná,
mas que se destacava por sua posição geopolítica estratégica, alvo de litígio entre províncias nacionais e de
disputa internacional, com a Argentina. Caracteristicamente rural e ancorada economicamente na pecuária
(criação e invernagem de muares, cavalares e gado vacum), utilizou-se da mão de obra cativa em escravarias
pequenas e médias, as quais poderiam contar desde um indivíduo, até pouco mais de vinte
escravos2(MARTINS, 2017 p.29 e 35).
Por sua vez, as fontes utilizadas para este artigo foram os registros eclesiásticos da Cúria
Metropolitana, as atas da Câmara Municipal e os processos da Vara Cível e Criminal do Fórum de
Palmas/PR, os quais expressaram, direta e indiretamente, o cotidiano e relações pessoais e de trabalho dos
libertos de 1888.
Abolição em Palmas
A notícia da extinção da escravidão negra foi comunicada aos camaristas de Palmas por via
telegráfica, em 14 de maio de 1888 e não provocou reações de entusiasmo, tampouco de protesto. Ao
contrário da vizinha Guarapuava, na qual se noticiou a resistência de alguns senhores escravistas em
Mestre em História pela UPF- Universidade de Passo Fundo. E-mail: claudia.om@terra.com.br
Este trabalho pautou-se em Helen Osório, que qualifica como pequenas as escravarias da atividade pecuária rio-grandense com até 9
cativos e grandes, aquelas cujo número de escravos seja de 40 ou mais indivíduos (OSÓRIO, 2005 p. 4).
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conceder liberdade aos seus cativos, os palmenses não esboçaram nenhuma reação neste sentido (pelo
menos, que se preserve o registro). Uma mensagem formal de felicitações à Princesa Isabel foi enviada
apenas em 28 de junho do mesmo ano, rogando ao Presidente da Província que a fizesse chegar à sua
destinatária.
Imagem 1– Comunicado sobre a decretação do fim da escravidão no Brasil
Fonte: Biblioteca do IFPR – campus Palmas
Imagem 2- Mensagem de felicitações à Princesa Isabel
Fonte: Livro de correspondências e atas da Câmara de Palmas. Biblioteca IFPR.
Não há um informe preciso quanto ao número de pessoas que ainda se achavam em situação de
escravização na comarca palmense, naquele momento. Os dados oficiais mais próximos daquela data
encontravam-se em relatório provincial do 2º semestre do ano de 1886 3, em tabela na qual era informada a
distribuição de cotas do Fundo de Emancipação e que mencionava a quantidade de escravos dos municípios
paranaenses. De acordo com aquele documento, ainda havia 227 cativos em Palmas.
Dada a sua quantidade relativamente baixa (em relação a outras locais do país) seria possível, então,
considerar desnecessária a mão de obra escrava naquela Comarca? Pensar que não faria nenhuma falta?
Àquela altura, teria sido substituída por trabalhadores imigrantes ou perdido sua importância para os
fazendeiros locais? Por certo, não. Conforme informado em trabalho precedente, a imigração europeia para
os locais mais distantes do litoral e das capitais ocorria em volume e ritmo mais lento do que o desejado. Tais
Relatório do Presidente da Província do Paraná, Faria Sobrinho, p. 17. Data: 30 de outubro de 1886. Disponível em
http://www.arquivopublico.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/rel_1886_b_p.pdf Acesso em 30 de agosto de 2018.
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informações eram prestadas pela Inspetoria Geral de Terras e analisadas com manifesta preocupação, pelo
próprio presidente da província. Palmas estava incluída entre os diversos pontos da província que receberam
imigrantes europeus de forma lenta e em pequenos grupos (MARTINS, 2017 p. 98-99).
Algumas das fazendas da região, como a Caldeiras 4 e a Santa Tecla5, foram vendidas exatamente nos
anos subsequentes a 1888, o que pode indicar certa desilusão com a retração dos negócios da pecuária, em
queda após a década de 1860 e a perda dos trabalhadores escravizados. Nos anúncios publicados no jornal 6,
recomendava-se a fazenda Caldeiras como um bom espaço para a fundação de colônias. Seus proprietários
indicavam novos usos àquele espaço.
Aos proprietários de terras que permaneceram em suas atividades e aos antigos senhores de
escravos palmenses em geral, coube reelaborar seus estratagemas para garantir trabalhadores,
preferencialmente gratuitos ou em condição muito aproximada ao trabalho sob regime de escravidão. E eles
não hesitaram em fazer uso dos expedientes que lhes eram possíveis, como as alforrias condicionais, as quais
se avolumaram naquela localidade nos anos que antecederam a abolição (59,3% condicionais contra 40,7%
incondicionais, entre os anos de 1880 e 1888), seguindo a tendência nacional (MARTINS, 2015 p.56).
Também empregaram o expediente de requerer a tutela dos filhos das mulheres libertas, utilizando-se dos
vínculos familiares como meio de retê-las junto aos antigos sítios de trabalho, além de explorar como mão de
obra os menores, até completarem 21 anos 7.
Do exposto acima, contudo, não se depreenda que não houve escolha para aqueles que alcançaram a
liberdade. Ou ainda que os mesmos tenham se comportado de forma apenas reativa, sem traçar seus
próprios projetos e estratégias para a vida em liberdade. É este o ponto que queremos desenvolver a seguir.
Vida cativa e vida livre
O cativeiro negro em regiões de pecuária guardou algumas peculiaridades em relação ao trabalho
forçado nas regiões em que predominaram outras atividades econômicas. Entre as referidas singularidades
estava uma maior liberdade de ir e vir, motivada pela necessidade de recolher e transportar animais dentro
dos limites da propriedade e fora dela, incluindo participar de tropas que iam buscar animais no Rio Grande
do Sul ou levá-los a Sorocaba.
Esta liberdade relativa, contudo, não equivalia à ausência de controle, mas provavelmente um
monitoramento em nível até mais elevado, dado que ao deslocar-se o cativo era vigiado pelos olhares do
capataz ou líder da tropa e também pela desconfiança das pessoas livres por onde passassem. Ademais,
cumpriam tais atividades aqueles cativos que se mostrassem confiáveis ao senhor, uma vez que lhe eram
individualmente conhecidos. Conforme Monsma (2011, p.2)
A força de trabalho relativamente pequena [...] significava que mesmo os grandes
estancieiros conheciam seus escravos por nome, se moravam nas suas propriedades.
No caso dos estancieiros que moravam nas cidades, seus capatazes tinham
conhecimento individual dos cativos.
Também é digno de destaque o fato de que as próprias tarefas diárias requeriam o uso de
ferramentas que poderiam facilmente ser utilizadas como armas, como cordas facões, machados e foices, que
eram necessárias para abrir picadas e resgatar animais do plantel, consertar cercas e cumprir outros
encargos, como o corte de árvores tombadas (WACHOWICZ, 1987 p.60).
Wachowicz, em relação ao Paraná e Monsma, quanto ao Rio Grande do Sul (nas obras
precedentemente citadas), abordaram este aspecto do trabalho de cativos em zonas de pecuária. Enquanto o
Proprietário até 1890: Luiz Lustosa de Souza Menezes.
Proprietário até 1898: Estevão Ribeiro do Nascimento Júnior
6 A República- edições 00090, 00091 e 00092, abril de1890.
7 Utilizar-se dos serviços do menor constava entre as prerrogativas senhoriais previstas no parágrafo 1º do artigo 1 da Lei 2.040, de 28
de setembro de 1871. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm Acesso em 05 de agosto de 2018.
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historiador paranaense limitou-se a constatar o uso daquelas ferramentas potencialmente perigosas, sem
aprofundar discussões, Monsma creditou tal situação a um risco calculado, que o senhor abraçava com base
em laços de fidelidade estabelecidos com sua pequena escravaria, que lhe reconhecia a autoridade. As
ferramentas/armas eram usadas, ainda, para defesa, diante do ataque de animais selvagens ou, ainda, de
grupos indígenas que resistiam em se submeter ao aldeamento e a situação de verem-se privados de suas
terras ancestrais nos Campos de Palmas (MARTINS, 2017 p.50-51).
É importante destacar que as características acima mencionadas não podem ser tomadas como
indicativo de uma relação paternal entre senhores e cativos, ou que assinalasse equidade social. Ao contrário,
havia limites muito bem traçados entre o que era permitido aos escravizados e o que correspondia à
sociedade livre e branca, entre a participação social que lhes era admitida e o que lhes era vedado. Desta
forma, tiveram que planejar meios de superar as interdições impostas, bem como as instituições e legislações
que não os incluíam. Isso tanto quando ainda se encontravam em condição de escravização, quanto na
medida em que adquiriram liberdade.
Em condição cativa, foram utilizados estratégias como o estabelecimento de relações “verticais”, ou
seja, naquela sociedade hierarquizada, estabelecer vínculos com pessoas mais bem posicionadas socialmente.
Entre os referidos vínculos, os de compadrio. Além disso, na condição livre, buscaram se aproximar daquilo
que identificava uma pessoa livre: um sobrenome, uma família “respeitável”, ou seja, que seguisse os
preceitos religiosos e morais vigentes, aliado ao viver “de si” e morar “sobre si”. Modos de ser e de agir que os
fizessem aceitos na comunidade. Indiciariamente, os libertos palmenses tentaram cumprir com esses
requisitos e é sobre suas ações e decisões após a liberdade que trataremos na sequência.
Primeiramente, voltamo-nos à questão da “respeitabilidade”. Quanto à oficialização dos casamentos,
Isabel Reis (entre outros pesquisadores brasileiros), aventa a possibilidade de que o aumento na quantidade
de relações oficializadas a partir da Lei de 1871 8, poderia estar ligado a um possível estratagema para
incluir-se entre os libertos pelo Fundo de Emancipação (REIS, 2007 p.205). Deste modo, o móvel daquelas
iniciativas seria totalmente pragmático, com vistas à liberdade. Entretanto, é possível pensar se a
oficialização dos relacionamentos por meio do sacramento religioso católico também não seria parte de um
projeto para obter aceitação social, ao partilhar ou demonstrar comunhão com os ritos e convenções morais
comuns àquela sociedade e que adquire especial sentido a partir do momento em que a liberdade deixa de ser
um projeto, para tornar-se realidade.
Breve olhar sobre o livro de matrimônios da Cúria Diocesana de Palmas indicou que no ano de 1889,
vários casais de egressos do cativeiro legitimaram suas uniões. Entre eles pode-se citar: Ignácio José da Luz e
Theresa Maria Libania (09/03/1889), além de Saturnino José de Souza e Maria Alexandrina dos Santos
(09/03/1889) todos ex-escravos; Lourenço Antonio de Paula e Maria Quitéria de Jesus (21/03/1889), em
que ela havia sido cativa; Matheus Tigre da África e Prudência Carneiro (10/04/1889) e Benedicto Manoel
Antonio e Clemência Maria da Conceição (29/04/1889), casais em que ambos os cônjuges são escravos;
Francisco da Costa Ribeiro e Michaella Josepha (07/08/1889), no qual ambos são ex-escravos e ele é descrito
como “natural da África”. São idosos.
A probabilidade de que seus relacionamentos tenham se iniciado após a libertação não pode ser
desconsiderada, ainda que pareça improvável. A dificuldade em comprovar que já eram precedentes, por
outro lado, decorre de fatores como a omissão do registro da paternidade dos filhos de mulheres escravas que
não fossem casadas. A menção ao nome do pai, caso fosse regularmente feita, seria um bom indicativo de
quando se formaram os casais. Assim, um dos meios mais comuns para identificar relacionamentos
duradouros, porém não oficializados, é por intermédio de documentos outros que façam menção ao casal
(como em processos de tutelas ou em registros de ocorrências policiais, nos quais constava que a escrava ou
liberta “vivia com fulano de tal”) ou por meio de informação do pároco, quando assumiam no matrimônio os
filhos tidos antes do casamento.
A Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, entre outras disposições, decretava a criação de um fundo para a emancipação gradual de
escravos e os critérios de classificação dos cativos a serem emancipados foram definidos por decreto (complementar àquela lei) nº
5.135, de 28 de novembro de 1872, artigos 24 a 26.
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Encontramos, ainda, mais 08 registros de filhos de libertos que se casaram ao longo do ano de 1889.
Considera-se a possibilidade de um número mais ampliado de casamentos, mas somente foram admitidos
para este trabalho aqueles em que houvesse no registro uma menção expressa à condição de anterior de
escravizado (dos noivos ou seus pais). Para aqueles que já haviam nascido fora do cativeiro, pesava ainda
mais a necessidade que se impunham, de enquadrar-se nas normas sociais.
Tais dados refletem o que igualmente constataram Rios e Mattos (2004, p.187), especialmente para o
período imediato pós 1888. Segundo aquelas pesquisadoras
A busca coletiva de legalizar as relações familiares constituídas ainda sob o cativeiro
é um índice expressivo das expectativas formadas a partir dessa nova condição de
liberdade. Esta atitude se ligava a uma preocupação ainda maior. A de construir uma
imagem positiva da pessoa e da família como parte de um conjunto de valores
socialmente reconhecidos e reforçados, a que chamaremos de “reputação”.
Legitimar a união e regularizar a situação dos filhos era uma maneira de colocar-se em igualdade
com os casais brancos constituídos pelos chamados “homens bons”, mostrar que partilhavam dos mesmos
valores daquele segmento social.
E é o que parece haver sucedido com Thereza e Benedicto dos Santos Martins, ex-cativos que se
casaram em 21 de agosto de 1888 e na ocasião não somente formalizaram sua relação como casal, como
também reconheceram como legitimamente seus, dois dos cinco filhos de Thereza (Sebastiana e Olímpio,
nascidos em 1883 e 1887, respectivamente), o que denotava relação estável e anterior. Comprometeram-se a
criar, juntos, as demais crianças: Pio, Benedicto e Luiza. Em 1899, os dois rapazes constavam como
lavradores e estavam aptos a votar, conforme registro no Livro de qualificação de Eleitores estaduais do
município9. Aparentemente, transcorridos onze anos, a família havia se aproximado da mencionada
“reputação” ao morar e viver sobre si, bem como pela aquisição de direitos políticos, mesmo que limitados 10.
Trabalho e interação social
Quanto ao trabalho, a condição livre supostamente ampliava as possibilidades para o exercício de
outras atividades, pois o antigo cativo não mais ficaria restrito ao que lhe era imposto pelo senhor.
O Censo de 1890 indicou, para Palmas, pessoas pretas e mestiças11 atuando em funções na atividade
artística12, manufatureira e de transportes, as quais não constavam nos dados apresentados pelo Censo de
1872, bastante limitado13. Indicava também uma pequena participação de mestiços e de nenhum negro no
ramo comercial. Ao mesmo tempo, ambos os levantamentos censitários apresentavam membros destes
grupos como servidores domésticos, da atividade agrícola e pastoril, o que indicia a permanência nos
mesmos sítios e atividades (MARTINS, 2017 p.91-92).
Compreensivelmente, pode-se pensar: - Para onde ir e o que fazer, quando muitos passaram anos e
décadas dentro da mesma fazenda, repetindo dia após dia as mesmas atividades? Sabe-se que muitos
egressos do cativeiro mantiveram-se vinculados aos mesmos locais de seu cativeiro como agregados ou como
Biblioteca IFPR- campus Palmas. Livro de qualificação de Eleitores estaduais do município. Alistamento eleitoral concluído em 31 de
outubro de 1899, p.19-20.
10 Os direitos políticos garantidos aos relacionados no livro de qualificação correspondiam a escolher os membros do colégio eleitoral
que escolheriam aquele que iriam compor a Câmara dos Deputados. GRAHAM, Richard. 1997. Clientelismo e Política no Brasil do
Século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.
11 As categorias “negro” e “mestiço” estão propostas no próprio censo.
12 O termo “artista”, segundo jornais cariocas da década de 1870, era utilizado para se referir aos seguintes ofícios: ferreiro, pedreiro,
carpinteiro, marceneiro, pintor, tipógrafo, artistas mecânicos e até mesmo aos engenheiros (MORAES, 2017 p.7). MORAES, Renata
Figueiredo. Escravidão e liberdade no século XIX: o diálogo entre trabalhadores livres e escravizados no Rio de Janeiro (1870-1888).
XXIX
Simpósio
de
História
Nacional
–ANPUH.
Brasília,
2017.
Disponível
em
http://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1501865423_ARQUIVO_RenataFigueiredoMoraes-Anpuh-ST095.pdf Acesso em
02 de setembro de 2017.
13 O Censo de 1872 foi o primeiro organizado pelo Império e teve como características ser pouco detalhado e possuir um viés urbano.
Também foi bastante falho na coleta dos dados.
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empregados, em condições não muito diversas àquelas dos tempos de escravização. Contudo,
independentemente da decisão de ficar ou de partir, que condições de trabalho os libertos encontraram?
Vargas (2016, p.10) responde de forma concisa a esta pergunta, ao afirmar que
A construção do mercado de trabalho – ou a superação definitiva da inexistência de
trabalho assalariado do período anterior – criou novas possibilidades de dominação
e novas relações de trabalho, as quais por sua vez fizeram uso das mesmas práticas
patriarcais e autoritárias.
Em Palmas, poucos contratos de trabalho foram registrados no tabelionato local, o que faz supor que
a maioria dos acordos de trabalho tenha sido feitos informalmente, no qual as partes empenhavam “apenas”
a sua palavra. Entre os contratos preservados à consulta na atualidade, a maior parte deles foi firmado com
libertos do sexo masculino. Consta apenas um referente à contratação de uma antiga escrava para a
realização de trabalhos domésticos, que a mesma já realizava como escravizada.
Em relação ao salário proposto, este era extremamente baixo (80 mil réis anuais, ou seja, pouco mais
de 6 mil réis ao mês), na comparação com o que era oferecido para as mesmas funções, em São Paulo (em
torno de 20 mil réis mensais) (TELLES, 2011). Há que se considerar, contudo, o fato de que no caso paulista
a atividade doméstica seria realizada no meio urbano, enquanto Eva (a escrava mencionada) desempenharia
suas funções na fazenda de seu antigo senhor, o que pode ser um fator de diferenciação. Ainda sim, é possível
afirmar que as condições de vida de Eva seguiriam extremamente precárias, mesmo se tornando assalariada.
Por comodidade, no sentido do que lhe facilitasse o desempenho das funções, ou justamente em
função de sua falta de recursos, tornou-se agregada na fazenda a qual trabalhara compulsoriamente como
escravizada. Sem um local de moradia próprio, ao menos garantia a si e à sua família um pequeno espaço
para a roça e criação de animais, que lhe permitiria subsistir.
No que tange aos deveres da contratada, detalhados no documento, estava a “obrigação de obedecer
em tudo que lhe fosse ordenado”, sem contestação 14. O referido trecho impunha a liberta um modo de
proceder muito aproximado ao que se exigia de um escravizado, pautado na obediência e subordinação. De
acordo com Barbosa, a regulação do trabalho sob o controle dos empregadores, neste período, era um misto
de “força e favor” (BARBOSA, 2016 p.15).
Fontes como os registros da vara criminal, inusitadamente, permitiram coletar informações
adicionais quanto às ocupações profissionais assumidas no pós-abolição, confirmando as palavras de
Rodrigues (2015, p.100), para quem estas fontes permitem “recuperar aspectos da experiência dos
escravizados, sua maneira de pensar e atuar no espaço de vivência”. Em nossas pesquisas, os dados pessoais
relatados por testemunhas e pelos envolvidos diretamente nos processos (acusados e vitimas) possibilitou
saber, por exemplo, que parte das mulheres seguiram como costureiras ou como lavadeiras, mas na forma
autônoma de prestação de serviços.
Foi o caso da liberta Merenciana, cuja contestação à qualidade de seu trabalho acabou em rusga
resolvida na polícia15. Dois anos após sua libertação encontramo-la cuidando das roupas de sua clientela. As
permanências, contudo, vão além de continuar morando em Palmas e realizar as atividades já conhecidas.
Prosseguem as difíceis condições de sobrevivência, agora na vida em liberdade. Indica-se no processo que
seja representada pelo Ministério Público, uma vez que “[...]se acha ainda sob a pressão do ônus do cativeiro,
tirando esmolas para remir-se, com o prazo de dois anos não tendo arrimo algum”.
Também parece se aplicar a parda Anna, que declarou nos autos policiais ser lavadeira 16. Já em
condição livre, num dos dias em que voltava da beira do rio, recebeu xingamentos e foi agredida fisicamente.
Sobre a supracitada escrava, Eva Ferreira (também nominada como Eva Maria da Conceição) e seu contrato de trabalho, ver mais em
MARTINS, Maria Claudia de Oliveira. Fronteiras fluidas : escravidão e liberdade na Comarca de Palmas/PR (1860-1900). Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade de Passo Fundo, 2017.
15 Fórum Municipal de Palmas/PR – vara criminal. Sumário de culpa. Queixosa: Merenciana Preste(s) dos Santos, parda, liberta,
residente em Palmas. Ré: Rosalina (de Tal).
16 Fórum Municipal de Palmas/PR – vara criminal. Corpo de delito de Anna liberta, 1888.
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Reagiu e a discussão decorrente motivou o processo policial. A ocorrência que envolveu Anna pode ser
interpretada como uma situação pontual ou, ainda, como um indício das dificuldades de inserção e
acolhimento por parte da “porção branca” daquela sociedade.
Diante dos vários obstáculos para a vida digna em liberdade, foi possível perceber que muitos
egressos do cativeiro estabeleceram moradia próxima uns dos outros, na região da cidade conhecida como
rocio17. A pesquisadora Lurdes Lago menciona uma possível doação de terrenos naquela área, adquiridos por
um grupo de “cidadãos” palmenses interessados em manter próximo a si os ex-escravizados, mas esta
informação não se confirma em nenhuma das fontes atualmente disponíveis à consulta (LAGO, 1987 p. 208).
O que se mostra muito mais fácil de confirmar é que foram feitas algumas solicitações de terras (pequenas
metragens) naquele espaço de administração pública, por meio de aforamento 18, nas quais a iniciativa partiu
de pessoas “de cor” libertas precedentemente ou por ocasião da Lei Áurea.
Sobre a concessão de cartas de foro, Findlay (2018 p.4) explica que
o aforamento foi muito utilizado no Brasil como instrumento de povoamento, na
medida em que as autoridades locais costumeiramente concediam aos solicitantes as
terras do patrimônio público, visando ao mesmo tempo promover a ocupação
territorial, estimular a produção local e aumentar as rendas governamentais com a
cobrança do foro.
A perda do domínio útil sobre o terreno concedido apenas se daria em caso de não pagamento dos
valores devidos, por três anos consecutivos.
Há registro de que a liberta Emília Maria da Conceição, casada com Germano Ferreira dos Santos,
recebeu 30 metros no rocio da cidade. Por sua vez, Bento Manoel Francisco, esposo de Maria Eva de Jesus
(ambos haviam sido cativos do fazendeiro Francisco de Assis Araújo Pimpão) foi uma das pessoas que
constou como proprietário de 100 m de terreno, adquirido por carta de foro. Para além do local de morada,
detinha apenas a posse de dois animais e era descrito como “miserável”. Vinte anos após a extinção da
escravidão no Brasil, ambos os casais permaneceram em Palmas e o fato de não terem perdido os direitos a
seus terrenos denota que cumprira as obrigações financeiras assumidas, mesmo com todas as dificuldades
enfrentadas19. É importante destacar que os casos citados são apenas demonstrativos e não expressam o total
de egressos do cativeiro que passaram a morar na região do rocio palmense após a liberdade.
Por outro lado, não somente as moradias vizinhas aproximaram os ex-escravizados. Um dos
elementos que oportunizava interação e que, em Palmas, indicia uma pequena, talvez embrionária
organização como grupo social, eram as festas conhecidas como fandangos. De acordo com Corrêa (2016,
p.414), essas festas com música e danças, tratavam-se de “[...] uma espécie de ‘baile popular’ associado
indistintamente a negros libertos, mulatos livres e brancos pobres”. Tais bailes, na visão elitista, eram
eventos nos quais grassava a promiscuidade, a libertinagem. Logo, deveriam ser rigorosamente controlados
(era necessário solicitar autorização e pagar a taxa estabelecida na municipalidade) e, quando possível,
reprimidos.
A história de ressio ou rossio (também grafado como rocio) em português mostra que a palavra significou sucessivamente ‘baldio’, isto
é, o que resta por cultivar, ou fica para trás ou fora de terreno cultivado e terreno que está para trás ou fora de povoação [...] Conforme
o Dicionário da Língua Portuguesa 2003, da Porto Editora, não designa o centro de uma cidade. Segundo este dicionário, rossio tem as
seguintes definições: “1. praça pública; 2. terreiro espaçoso; 3. terreno fruído, outrora, em comum, pelos habitantes de uma povoação”.
De acordo com José Pedro Machado, no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa é “nome próprio dado a vários
campos ou largos citadinos de Portugal, antigamente, fora das muralhas ou da área urbana”. Após o terreno desbastado e preparado,
serviam para semeadura de cereais, para hortas ou para pastagem de gados da comunidade. Segundo Robert Ricard (no “Bulletin
Hispanique”, 56.º, 1954), é espaço aberto no limite, entre a aglomeração urbana e o campo circundante. ISCTE- Instituto Universitário
de Lisboa, PT. Disponível em https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/rossio/11134 Acesso em 30 de setembro de 2018.
18 Aforamento = transferência do domínio útil e perpétuo de um imóvel, mediante pagamento de um foro anual, certo e invariável. O
aforamento estava presentes no Livro Quarto das Ordenações Filipinas.
19 Biblioteca do IFPR – campus Palmas. Lançamentos dos terrenos do rocio- 1908.
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No Código de Posturas elaborado pelos camaristas de Palmas, os artigos 44 e 45 20, respectivamente,
eram muito claros quanto a necessidade de solicitar autorização e pagar a taxa estabelecida na
municipalidade para a realização dos bailes. Isso já os limitava, uma vez que nem todos teriam condições de
arcar com os custos. Também era enfatizado que “nos fandangos dentro do quadro urbano não serão
permitidos vozerios, algazarras ou barulho que incomode os vizinhos”. Não à toa a ocorrência das referidas
festas se tornaram verificáveis por intermédio dos autos policiais lavrados à época, pois facilmente poderia
haver intervenção policial, por denúncia de outras pessoas da cidade ou por problemas diversos ocorridos
durante as festas.
O fandango realizado na casa de Joaquim Floriano de Morais terminou em agressão física entre o
mesmo e sua ex-companheira Isabel Maria dos Santos, sendo motivada por ciúmes, conforme relataram
partícipes da festa21. Assim, foi um dos casos documentados pela polícia palmense.
Os dados pessoais revelados pelas testemunhas permitiram saber que se tratavam de antigos
escravizados, como Joaquim Gregório dos Santos e Merenciana Prestes dos Santos (que não eram familiares
e nem formavam casal). Seus depoimentos indicam que se conheciam, bem como aos promotores da festa e
demais convidados e que não era a primeira vez que o grupo confraternizava.
Situação similar ocorreu em outro processo, no qual a outrora “ingênua” 22 Eudócia depõe como
testemunha na denúncia contra Luís Pestana, agregado em uma das fazendas palmenses, que invadiu o
fandango promovido por um vizinho 23.
Há que se destacar que não há (ou pelo menos, não foram preservados), registros de mesmo teor em
relação a pessoas pertencentes às camadas mais abastadas daquela sociedade. Evidentemente realizavam
suas próprias festividades. Seria possível que nunca se altercassem? Para o momento fica a constatação de
que, caso tenha acontecido, tudo era habitualmente abafado. Até porque eram justamente os chamados
“cidadãos” de Palmas (brancos, de estratos sociais mais elevados) que exerciam a autoridade local. Outra
constatação é a de que camadas sociais mais abastadas não se misturavam às festas dos negros, mestiços e
pobres, uma vez que em nenhum momento sua presença é citada.
Independentemente dos pequenos atritos e confusões, bailes como os supracitados podem ser
pensados como espaços de confraternização entre pessoas que se aproximavam e identificavam por laços do
passado ou por sua condição social comum. Diferiam do associativismo negro nos clubes que se formaram
nos anos e décadas seguintes ao fim da escravidão, por suas características de improvisação e organização
muito menos complexa, embora fossem igualmente espaços de sociabilidade e de (re)afirmação da
identidade coletiva. Dito de forma bastante simplificada, eram os momentos do encontro e da diversão, num
ambiente em que as pessoas que, de alguma forma, se sentiam aceitas e em condições sociais de igualdade.
Talvez por isso mesmo, se permitissem extravasar mais livremente as ações e o sentir. E também por isso
mesmo, quem sabe, estivessem constantemente sob o controle e ação policial.
Considerações finais
Sem desconsiderar possíveis pressões e ardis dos antigos senhores, com relação aos egressos do
cativeiro não se pode dizer que tenham se submetido tão somente às condições de trabalho, vida e moradia
que lhes foram apresentados no pós-abolição, posto que no contrato de Eva, no matrimônio de Thereza ou
nas roupas lavadas por Anna não se pode desconsiderar ter havido escolhas conscientes entre ficar ou
partir, sobre onde morar, em que atividade trabalhar, entre outras decisões tomadas naquele momento.
O fim da escravidão conduziu à necessidade de rever as dinâmicas sociais, posto que a partir da Lei
Áurea o mundo dos livres ganhara “novas cores” e o que se viu foi aqueles que detinham o poder econômico,
político e projeção social traçarem suas estratégias, a fim de não ver abalada a sua condição. Contudo, para
Biblioteca IFPR- campus Palmas. Atas da Câmara Municipal.
Fórum Municipal de Palmas/PR – vara criminal. Auto policial lavrado em 02/08/1889.
22 Ingênuo: denominação utilizada para designar os filhos livres de mulheres cativas nascidos a partir da Lei Imperial nº 2.040, de 28 de
setembro de 1871 (também chamada de Lei do Ventre Livre).
23 Fórum Municipal de Palmas/PR – vara criminal. Auto policial lavrado em 1908 (não consta a data exata) .
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os que haviam saído da condição de escravização iniciava-se ali um longo caminho para encontrar o seu
lugar social, superando históricas interdições. Coube a eles próprios a tarefa de construí-lo, passo a passo,
em razão da ausência de políticas públicas de inserção e das dificuldades cotidianas. Neste contexto, o apoio
mútuo, as casas próximas e a confraternização entre os membros daquele mesmo grupo ajudaram-lhes a
marcar, objetiva e subjetivamente, seu espaço.
Referências:
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2016. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ea/v30n87/0103-4014-ea-30-87-00007.pdf Acesso em 20 de setembro
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CORRÊA, Joana Ramalho Ortigão. A construção social do fandango como expressão cultural popular e tema de estudos
de folclore. Sociologia&Antropologia vol.6 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2016. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/sant/v6n2/2238-3875-sant-06-02-0407.pdf Acesso em 10 de agosto de 2018.
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LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século
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MONSMA, Karl. Escravidão nas estâncias do Rio Grande do Sul: estratégias de dominação e de resistência. 5º Encontro
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TELLES, Lorena Feres da Silva. Libertas entre sobrados: contratos de trabalho doméstico em São Paulo na derrocada da
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WACHOWICZ, Ruy Christovam. Paraná, sudoeste: ocupação e colonização. 2ª ed., Curitiba: Ed. Vicentina, 1987.
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Evasão e elisão fiscal: um problema socioeconômico
Maria Elena Amaral Ferreira Bueno 1
Adriana Margarida Mignoni 2
Resumo: Este ensaio teórico busca discutir se há similaridade entre elisão e evasão fiscal, no que diz
respeito à função socioeconômica dos tributos. Enquanto a elisão fiscal representa uma prática lícita para
reduzir a carga tributária, a evasão fiscal significa o meio ilícito de evitar o pagamento dos tributos. Porém,
para o Estado, ambas diminuem a arrecadação e, consequentemente, o volume de recursos a ser investido na
sociedade, por meio de serviços públicos. Neste sentido, o tema elisão fiscal tem sido objeto de grande
debate na esfera tributária, pela dificuldade em conhecer seus limites. Dessa forma, o texto não pretende
encerrar a discussão sobre o tema, mas trazer questionamentos como: será que os contribuintes serão
capazes de exercer a cidadania fiscal? E o Estado, será capaz de praticar sua função de promotor da igualdade
social? Talvez, incentivar o debate e a reflexão possa ser também, um exercício de cidadania.
Palavras-chave: Elisão Fiscal. Evasão Fiscal. Função socioeconômica dos tributos.
1. Introdução
A arrecadação incidente sobre os diversos setores produtivos é necessária para a manutenção do
Estado e para aplicação na melhoria da qualidade de vida da população. O ideal é que esta tributação seja
suportável e melhor distribuída, para que todos contribuam de forma justa e possam, assim, se beneficiar
desta contribuição (PERTUZATTI; MERLO, 2005). Assim, entende-se a tributação como necessária para que
o Estado cumpra sua função de promover o bem comum, a igualdade e a justiça, por meio do
desenvolvimento social e econômico.
Em geral, os indivíduos não gostam de pagar impostos e, podendo, não o fazem. Este comportamento
traz grandes repercussões ao desenvolvimento social e econômico, pois os tributos formam a principal receita
do Estado. “O problema da sonegação fiscal é tão antigo quanto os impostos em si” (SIQUEIRA; RAMOS,
2005, p. 556).
No Brasil, a cultura do não pagamento de tributos talvez seja resultante da elevada carga tributária e
do baixo retorno à sociedade, aliada aos casos de corrupção. Uma das pressuposições decorre do
desconhecimento da importância do Estado como regulador da vida em sociedade (GRZYBOVSKI; HAHN,
2006). Apesar dos inúmeros esforços empregados pela autoridade tributária brasileira, a evasão fiscal no
Brasil ainda é significativa.
Por outro lado, existe a figura da elisão fiscal. Uma forma lícita de pagar menos tributos. O
planejamento tributário é o caminho mais adequado segundo Pilati e Theiss, (2016); Gonçalves, Nascimento
e Wilbert, (2016); Torres, (2013), para planejar os gastos tributários, sua redução ou postergação. Em tempos
de recessão e alta competitividade, diminuir os custos e evitar saídas de caixa tem sido uma opção legal a que
muitas empresas estão recorrendo (GLASER, 2010). Diante do exposto, a questão que permeia este ensaio
teórico é: em relação à função socioeconômica dos tributos, a evasão e a elisão fiscal podem ser
similares?
Este questionamento tem origem no fato de serem duas formas diferentes de pagar menos tributos,
uma ilícita (evasão) e outra totalmente legal (elisão). Porém, ambas diminuem a entrada de recursos para o
Estado. Recursos esses necessários para o desenvolvimento de políticas públicas, que devem beneficiar todos
os cidadãos. Nesse sentido, o presente ensaio teórico tem por objetivo discutir se há similaridade entre a
elisão e a evasão fiscal, no que diz respeito à função socioeconômica dos tributos. Considerando a
Especialista em Contabilidade e graduada em Ciências Contábeis pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Mestranda em
Administração (UPF). Docente na Universidade de Passo Fundo. E-mail: elenabuenoupf@gmail.com
2 Especialista em Estratégias de Aprendizagem (FABE). Contadora (URI - Erechim). Docente no Centro de Ensino Superior
Riograndense – CESURG. E-mail: logus.contabilidade@gmail.com
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obrigatoriedade dos tributos na vida das pessoas físicas e jurídicas, bem como o fato de ser a fonte de
financiamento do Estado para a prestação de serviços públicos em prol de toda a sociedade, torna-se
necessário debater o valor socioeconômico do tributo, o cumprimento dos deveres tributários por todos os
cidadãos e o direito destes em acompanhar as ações públicas na aplicação destes recursos.
Este ensaio justifica-se por avançar na discussão sobre evasão e elisão fiscal, especialmente por
relacioná-las com a função socioeconômica dos tributos. Existem alguns estudos, com temas correlatos que
envolvem educação fiscal, evasão, elisão e planejamento tributário, como os de Cabello (2012) que buscou
verificar se as empresas que adotaram práticas de planejamento tributário apresentaram menor taxa efetiva
de impostos. Gomes (2012) observou se a característica da governança corporativa influenciou nas práticas
de gerenciamento tributário. Borges, Pereira e Borges (2015) buscam identificar os fundamentos que
caracterizam a educação fiscal dos indivíduos. Santana, Gonçalves e Matos (2015) buscam compreender a
associação entre a elisão fiscal e a responsabilidade social corporativa. Porém, não foram encontrados
debates sobre a similaridade de ambas quando relacionadas à função socioeconômica dos tributos,
especificamente nos estudos nacionais.
O presente ensaio está organizado inicialmente com a apresentação de um apanhado histórico sobre
a tributação no Brasil. Em seguida, são expostos os conceitos de evasão e elisão fiscal, os argumentos sobre
planejamento tributário e suas particularidades, especialmente as relacionadas à elisão fiscal. Na sequência,
busca-se evidenciar o valor socioeconômico do tributo. Por fim, as considerações finais procuram
sistematizar os debates e propor outros questionamentos que podem servir como sugestões para estudos
futuros.
2. Evolução histórica do sistema tributário nacional desde a Constituição de 1891 até a
atualidade
Conforme Oliveira (2018), a partir do ano de 1891 até a década de 1960, período em que se realizou a
primeira e mais extensa reforma de sua estrutura, o sistema tributário nacional não passou de um simples
instrumento arrecadatório. Já, a Constituição de 1934 representou um avanço ao estender aos municípios
competência para cobrar impostos próprios. A Constituição de 1946 inovou na redução da alíquota de
exportação de 10% para 5% com o intuito de garantir maior competitividade à produção nacional no exterior,
definir constitucionalmente um sistema de compartilhamento de impostos entre a União, Estados e
Munícipios e determinar que a União destinasse um percentual mínimo de suas receitas para promoção do
desenvolvimento regional, especificadamente nas regiões do norte e nordeste. Como não representaram
mudanças que de fato contribuíssem para a expansão da carga tributária e com um sistema tributário
obsoleto a crise econômica tornou-se inevitável ao final desse ciclo de expansão brasileira.
A reforma tributária de 1965-1966, além de organizar as bases tributárias de acordo com as bases
econômicas, também, eliminou tributos e os substituiu por outros, transformou alguns impostos cumulativos
em impostos sobre o valor agregado, ampliou as bases de incidência e as alíquotas, almejando aumentar a
arrecadação, redefiniu as competências tributárias das três esferas do governo e manobrou diversos tributos
para estimular a produção, os investimentos e o consumo. Sob a ótica do crescimento econômico, a política
econômica e tributária implementada nesse período obtiveram resultados excepcionais, gerando um
acréscimo anual na economia de 10%.
O extraordinário crescimento da economia no período de 1969-1973, conhecido como “milagre
econômico brasileiro”, permitiu a acomodação entre as classes sociais que apoiavam o regime militar e as que
não o apoiavam. Entretanto, a partir da metade da década de 1970 os sinais de uma crise econômica foram
anunciados. A crise da dívida externa no início da década de 1980 levou à exaustão as fontes externas de
financiamento da economia e Estado brasileiro, levando-o a recorrer as fontes internas, desse modo,
agravando a crise. Diante da situação precária, as bases de sustentação do regime militar ruíram, abrindo
espaço para um novo governo civil, concomitantemente a arrecadação tributária vergou diante da crise
econômica desse período gerando um processo hiperinflacionário que perdurou até 1994, com o lançamento
o Plano Real.
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A Constituição de 1988 foi alicerçada nos princípios da democracia e justiça social em oposição a
mais de vinte anos de arbítrio do regime militar. Foi estabelecido na nova Carta Magna o comprometimento
com a igualdade, a universalidade e com a isonomia na cobrança de impostos, o que na prática não ocorreu.
Contudo, a Constituição de 1988 fundiu os impostos especiais transformando-os no Imposto sobre
Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e
Intermunicipal e Comunicação (ICMS), mas não avançou na proposta original que propunha a instituição de
imposto amplo sobre o valor agregado. Desse modo, a exploração expansiva das contribuições sociais tornouse o caminho preferido pelo governo federal para reverter a perda de recursos imposta pela Constituição de
1988. Já em 1989 seria criada a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
O Plano Real criado em 1994 foi erguido para colocar ponto final a hiperinflação no Brasil. Para
viabilizá-lo foi realizado um “ajuste fiscal provisório” com o intuito de proporcionar ao governo condições
financeiras para cobrir seus desequilíbrios e evitar o endividamento para financiá-lo. Nesse período, além da
ampliação temporária das alíquotas do imposto de renda das pessoas físicas e alíquotas das contribuições
sociais, também, foi criada a Contribuição sobre Movimentação Financeira (CPMF), que deixaria de ser
cobrada somente no ano de 2008.
Ajustado com o crescimento econômico do Plano Real nos primeiros anos, a carga tributária se
expandiu, fazendo com que o governo Collor gerasse um superávit primário de 5,6% no Produto Interno
Bruto (PIB), sendo considerada uma façanha, causando a falsa impressão de que para o governo de Fernando
Henrique Cardoso a situação fiscal encontrava-se consideravelmente razoável e que prosseguiria estável. Foi
nesse clima de otimismo que na época o secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, encaminhou para
votação sua proposta de reforma do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ). Aprovada no final do
ano de 1995 a alíquota do imposto sobre o lucro tributável das empresas reduziu de 25% para 15%, entre
outras reduções de alíquotas e isenções, ficando clara a preferência do então secretário em favorecer os
setores mais ricos da sociedade, que na verdade já não necessitavam de tanta generosidade, uma vez que,
como meio de reduzir impostos ou até mesmo de isentá-los recorriam aos chamados “paraísos fiscais”.
Apesar, de todas as mudanças foi inevitável o naufrágio do Plano Real na sua primeira fase (19941998), e o progressivo endividamento do país tanto interna quanto externamente. Como consequência no
final de 1998 o governo negociou um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de US$ 41,5
bilhões para o período de 1999-2001. Com esse acordo o país se tornaria refém do neoliberalismo também
nas áreas da política fiscal e tributária, passando a orientar sua administração a partir desse ano, cujos
fundamentos permanecem até a atualidade, perdendo a importância como instrumento de política
econômica do Estado e sendo transformadas em simples fiadoras do processo de estabilização, voltadas
exclusivamente para garantir receitas para pagamentos de juros da dívida e preservação da riqueza
financeira, mesmo sendo necessário o sacrifício das políticas públicas oferecidas à população.
Ao se comprometer com essa estrutura e passar a dar prioridade absoluta para os princípios da
responsabilidade fiscal, compromisso que seria renovado por todos os demais governos após Fernando
Henrique Cardoso: Lula, Dilma e Temer, o Brasil renunciou a manipulação da política fiscal e da tributação
no sentido do desenvolvimento e diminuição de desigualdades. Nesse contexto, o que se sobressai é o fato de
que nenhum governo tenha apresentado qualquer proposta de reforma da tributação direta ou dos impostos
incidentes sobre a renda e o patrimônio.
Sendo assim, mesmo nos governos Lula e Dilma, quando ocorreram avanços na redução das
desigualdades no país, o resultado dessa conquista deveu-se mais ao manuseio do gasto público do que as
mudanças tributárias. Desse modo, o sistema tributário permaneceu em constante regressão e, no ano de
2015, momento em que o crescimento desapareceu, as políticas sociais perderam espaço no orçamento e
começaram a ser consideradas fator de comprometimento do princípio da responsabilidade fiscal, tornando
inevitável o processo de ampliação das desigualdades.
Daí a necessidade de reforma do sistema tributário brasileiro e o seu resgate como instrumento de
desenvolvimento econômico. Sem essa reforma, continuará operando apenas como mero instrumento de
ajuste fiscal, atuando como força contrária ao crescimento econômico e à igualdade.
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Diante da crescente carga tributária e da necessidade de diminuição dos custos, segundo Pilati e
Theiss (2016) os contribuintes se deparam com duas formas de redução destes encargos tributários. Uma
delas totalmente legal, denominada de elisão fiscal, e outra forma completamente ilegal, por meio da
chamada evasão fiscal.
2.1 Evasão fiscal: um fenômeno complexo
A prática da evasão fiscal é cometida após a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária,
objetivando reduzi-la ou omiti-la, sendo, portanto, contrária à lei. A evasão fiscal está prevista na Lei nº
8.137/90, (Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo). Esta lei
define que constitui crime contra a ordem tributária, suprimir ou reduzir tributo mediante, dentre outras
condutas, a omissão de informações, a prestação de informações falsas, a falsificação ou alteração de
documentos fiscais. A evasão fiscal reduz a transparência da organização e fomenta oportunidades de desvio
de recursos em benefício próprio, por parte dos gestores (SIQUEIRA; RAMOS, 2006).
Para Rizzi (2014), a evasão fiscal caracteriza-se por ser um meio ilícito de afastar o pagamento de
tributos, uma vez que na evasão ocorre o fato gerador, mas o contribuinte, valendo-se das mais diversas
formas de falsificação (“notas-frias”, “notas-calçadas”), entre outros tipos de simulação, não paga o valor
devido. A autora cita como exemplo a empresa que possui uma filial, mas simula para o fisco que as unidades
são empresas distintas, apenas para reduzir a carga tributária.
Em termos econômicos, os problemas da sonegação têm origem no fato de as variáveis que definem a
base tributária, como rendas, vendas, rendimentos, riqueza, entre outras, não serem claramente percebidas
(SIQUEIRA; RAMOS, 2005). Ou seja, um sujeito externo não pode observar o valor real da base tributária de
um determinado indivíduo, consequentemente não conhece sua verdadeira responsabilidade tributária.
Desse modo, o contribuinte pode levar vantagem da informação imprecisa que a administração tributária
detém sobre sua responsabilidade e distorcer a base de cálculo para tributação. Em síntese, a maioria dos
sonegadores não declara toda a sua obrigação.
Siqueira e Ramos (2006) argumentam que, além de os contribuintes pagarem muitos tributos, há um
sentimento generalizado de que o governo não destina com eficiência os valores arrecadados, o que pode
contribuir para o aumento da sonegação. Segundo Santiago (2010), a evasão também está na pirataria, na
informalidade, entre os profissionais liberais, nas pequenas e médias empresas, sendo sensivelmente menor
entre as empresas de grande porte, por estarem sujeitas a uma fiscalização mais acirrada da parte dos órgãos
arrecadadores e à auditoria independente obrigatória. Portanto, conforme citam Pertuzatti e Merlo (2005), a
evasão pode ser ainda mais geral e abranger todos os que desfrutem uma permissividade que lhes permita
não pagar impostos.
A evasão fiscal segundo Siqueira e Ramos (2006), é um fenômeno muito complexo, pois a conduta do
contribuinte é influenciada por vários fatores, tais como os aspectos da justiça tributária, a prevalência das
normas sociais, a avaliação dos benefícios públicos recebidos e a possibilidade de tal ato ser detectado e
punido. Segundo os autores, inicialmente a análise econômica da evasão fiscal focou-se em como o
comportamento sonegador pode ser demovido por meio da ameaça de identificação e aplicação de sanções.
Contudo, o crime de sonegação fiscal é elidido, ou seja, suspenso, pelo pagamento a qualquer tempo
(mesmo depois de iniciado o julgamento em última instância) do tributo evadido, acrescido das multas e
juros legais (SANTIAGO, 2010). O autor ainda comenta que, a extinção total da punibilidade talvez constitua
um estímulo à aposta na incapacidade do Fisco de descobrir o ilícito e, em ocorrendo a descoberta, o
pagamento resolve o problema em definitivo. Afirma também que, a frequente concessão de anistias,
utilizadas como instrumento de arrecadação, fere o princípio da igualdade, prejudicando os contribuintes
que cumprem pontualmente com suas obrigações.
Na opinião de Siqueira e Ramos (2006), a ideia é a de que o contribuinte realiza um estudo
minucioso dos custos e benefícios resultantes da sonegação, levando em consideração que os incentivos para
cumprimento fiel das obrigações tributárias não são claros. Além disso, a complexidade do cenário
econômico, a diversidade de leis e a possibilidade de exercer atividades econômicas informais, somadas à
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“benevolência” da autoridade tributária, aos casos recorrentes de corrupção por parte dos governantes,
parecem levar o contribuinte a decidir acerca da sonegação.
De acordo com o texto de John Christensen (2007) do Secretariado Internacional da Rede pela
Justiça Fiscal, nos últimos 50 anos, de modo clandestino, as elites profissionais e seus poderosos clientes
construíram uma economia global paralela, por vezes denominada de “paraísos fiscais”, com o intuito de
evadir impostos e regulamentações territoriais. Essa economia promove suporte habilitador de bancos,
escritórios jurídicos e contábeis, pequenas assembleias legislativas e pequenos sistemas judiciários e
intermediários financeiros associados, que por sua vez, se ajustam para servir de “interface extraterritorial
(offshore)” entre as economias ilícita e lícita.
Tal interconexão tem facilitado à evasão de capitais dos países pobres para os ricos, e promovido a
sonegação fiscal. Os negócios sigilosos e os tratamentos especiais atenuam a própria democracia, diminuindo
o crescimento econômico ao promover gratificações sem esforços e ao desviar investimentos, sendo
considerada uma das principais causas do crescimento da corrupção, que trabalha por meio de uma
conspiração entre o setor privado e os governos que protegem as atividades dos paraísos fiscais. O abuso
fiscal internacional deve tornar-se o próximo embate pelo desenvolvimento internacional e contra a
corrupção, a desigualdade e a globalização.
O sigilo extraterritorial é considerado um obstáculo importante para rastrear os fluxos de dinheiro
ilícito e combater as ações corruptas. Para agregar esse dinheiro às transações comerciais, esquemas
complexos são arquitetados, simulando o lucro do crime e da sonegação fiscal com a utilização de estruturas
extraterritoriais. Pelo menos US$ 1 trilhão de dinheiro ilícito entra, anualmente, em contas dos paraísos
fiscais, sendo que, fração da metade desse montante tem origem nos países em desenvolvimento. O índice de
fracasso no rastreamento dessas operações é espantosamente alto. As técnicas utilizadas para lavagem de
dinheiro e sonegação de impostos incluem: paraísos fiscais, empresas e fundos offshore, fundações, bancos
correspondentes, diretores interpostos, transferências eletrônicas fictícias, entre outros.
A sonegação de impostos corrompe os sistemas fiscais do estado moderno e prejudica a capacidade
de promover serviços exigidos por sua cidadania, representando a forma mais ampla de corrupção, privando
a sociedade de verbas públicas e autênticas. Entre os sonegadores estão instituições e indivíduos de renda
alta, tais como, banqueiros, advogados e contadores. É importante ressaltar que nem todo o capital que deixa
os países em desenvolvimento permanece fora, uma fração retorna mascarada como investimento
estrangeiro direto.
Para o autor, uma das soluções para o problema seria o fortalecimento da cooperação internacional.
Uma troca de informação eficaz entre as autoridades nacionais, também, seria considerada um avanço para
superar os problemas da evasão de capitais e da sonegação fiscal. Os obstáculos criados pelo sigilo bancário
poderiam ser superados por cláusulas de anulação introduzidas nos tratados internacionais. O segredo dos
fundos offshore poderia ser reduzido pela exigência de registro das informações principais sobre a identidade
do administrador e das pessoas beneficiadas. Acordos poderiam ser feitos sobre marcos internacionais para
taxação das multinacionais com base no lugar onde realmente seus lucros são gerados. Entretanto, a
principal barreira para avançar na consecução dessas metas é a falta de cooperação política dos governos das
principais nações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), todos eles
importantes paraísos fiscais.
Diante do exposto, cabem alguns questionamentos acerca da questão debatida neste estudo: será que
a decisão da evasão é simplesmente econômica? Será que o contribuinte pratica tal ato por desacreditar no
Estado? Será que os contribuintes que sonegam, sabem da possibilidade lícita de redução de impostos? Ou
será que a evasão é resultado de uma benevolência judicial?
2.2 Elisão fiscal: uma prática legalmente permitida
Para Amaral (2002), a elisão fiscal é um conjunto de procedimentos previstos em lei ou não vedados
por ela, que visam diminuir o pagamento de tributos. Sendo um direito do contribuinte, a fazenda pública
deve respeitá-lo. Não havendo ilegalidade na conduta do contribuinte, em legitimamente afastar ou diminuir
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a obrigação tributária, sua conduta deve ser respeitada pelo fisco, que não poderá cobrar qualquer valor
adicional e nem aplicar alguma sanção (RIZZI, 2014).
A principal característica da elisão fiscal é a utilização de meios permitidos ou não proibidos em lei,
para desonerar o contribuinte. São adotadas medidas legais que evitam a ocorrência do fato gerador, a
redução da base de cálculo ou da alíquota, sem que isso gere multa ao contribuinte, ou seja, a elisão fiscal
pode ser entendida como um “benefício fiscal” decorrente da lei ou em falhas na legislação, que permitem ao
contribuinte reduzir sua carga tributária.
Nesse sentido, Rizzi (2014) destaca a necessidade de reconhecer que, as hipóteses em que é facultada
a realização de negócios sem ter de contribuir para o fisco são restritas e pressupõe a atuação dentro dos
limites estabelecidos pela lei, não havendo espaço para simulação, fraude ou dolo. Uma vez que o
contribuinte escolhe, de forma lícita, a maneira menos onerosa de tributação, o fisco se vê obrigado a
respeitar sua escolha, pois se trata de direito do contribuinte ser tributado da forma menos onerosa.
Dessa forma, Glaser (2010) cita como exemplos de elisão fiscal os benefícios obtidos com alguns
incentivos fiscais, tais como PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador) e as doações para projetos
culturais. Já Gonçalves, Nascimento e Wilbert (2016) estudaram a subvenção governamental, que pode se
dar através de doações, subsídios, isenções tributárias, entre outros. Este tipo de incentivo, porém, exige que
as empresas retornem parte da riqueza gerada, através de benefícios positivos para a sociedade, ou seja, o
Estado pressupõe que os benefícios gerados possam superar os custos da renúncia fiscal.
Porém, às vezes, a elisão fiscal pode ser considerada abusiva, conforme estudos de Torres (2013);
Moreira (2003); Santana, Gonçalves e Matos (2015), que tratam da responsabilidade social corporativa e
geração de riqueza. Neste sentido, o Código Tributário Nacional (CTN), por meio da Lei Complementar 104
de 2001, teve acréscimo em seu Art. 116, do parágrafo único que trata de norma antielisão, atribuindo à
autoridade administrativa o poder de desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de
dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo. Cabe ressaltar que este acréscimo ainda é motivo de
discussão, pois se questionam sua eficácia e aplicabilidade (PILATI; THEISS, 2016).
Face ao exposto, seguem alguns questionamentos que permeiam o objetivo do presente ensaio: será
que os contribuintes que adotam a elisão em sua prática econômica, o fazem apenas para maximizar os
lucros? Ou será que o fazem por desacreditar no Estado, diante dos crescentes casos de corrupção?
2.3 Planejamento tributário: uma ferramenta lícita para o aumento da competitividade
Os cidadãos, segundo Gonçalves, Nascimento e Wilbert (2016), estão sujeitos à tributação de seus
bens, rendas e consumos por meio das mais diferentes leis, alíquotas, fatos geradores e formas de
pagamento. Com o aumento da carga tributária no Brasil e a preocupação em reduzir os custos operacionais
nas empresas, surge a necessidade de práticas que representem uma economia de tributos. Glaser (2010)
salienta que o planejamento tributário envolve uma ação lícita adotada antes da ocorrência do fato gerador.
Desse modo, o planejamento tributário é uma forma lícita de minimizar os custos fiscais, sem violar a lei
(PILATI; THEISS, 2016).
Para Glaser (2010), a crescente competitividade do mercado faz com que o planejamento tributário
seja uma ferramenta indispensável na busca da lucratividade, fator indispensável para a sobrevivência das
empresas. Dessa forma, administradores, empresários, consultores, contadores e diversos profissionais,
tanto da área tributária quanto societária, buscam alternativas legais para enfrentar a elevada carga
tributária, através desta ferramenta.
Na opinião de Pilati e Theiss (2016), o planejamento tributário pode ser compreendido como direito
intrasferível da empresa, a fim de planejar seus gastos tributários, obter redução parcial, total ou postergação
desses gastos, e aumentar o resultado operacional da organização. O contribuinte poderá, dessa forma,
estruturar seu negócio da maneira que julgar apropriado e procurar por meio de uma alternativa lícita
diminuir seus impostos. Contudo, esse processo exige conhecimento e análise prévia da legislação tributária
vigente, principalmente em decorrência de um Sistema Tributário complexo como o brasileiro.
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Se considerarmos que os tributos integram o preço dos bens e serviços, é natural aos empresários,
buscar a redução de seu valor e aumentar sua lucratividade (ANDRADE FILHO, 2015). O autor ainda cita
que, o planejamento tributário não é encontrado apenas nas empresas. A busca pela menor carga tributária
pode ser feita por pessoas comuns, a exemplo da dona de casa que escolhe o produto com o menor preço.
Assim, todos os contribuintes possuem o direito de estruturar e organizar o seu negócio ou sua vida pessoal,
da forma que melhor lhes convém, além de procurar a redução de custos em seu empreendimento e,
inclusive, em seus impostos pessoais.
Cabe ressaltar que, para muitos, a elisão fiscal é sinônimo de planejamento tributário, pois utiliza
apenas dos preceitos legais para redução do imposto. Além disso, é feito antes da ocorrência do fato gerador,
característica do vocábulo “planejamento” que, segundo Andrade Filho (2015), significa a ação de projetar
cenários futuros com certa antecedência e premissas técnicas.
Para Hilgert (2012), no exercício do direito à livre organização privada dos negócios, o contribuinte
busca meios de reduzir ou até mesmo evitar integralmente o seu encargo fiscal, utilizando-se de
planejamento tributário, especialmente as pessoas jurídicas, que têm por fim a maximização do lucro. Para
Glaser (2010) e Andrade Filho (2015), todo administrador tem o dever de maximizar os lucros e minimizar as
perdas das empresas, a fim de assegurar sua sobrevivência no mercado, planejando o menor ônus possível
para a empresa.
Neste sentido, mesmo que por meio do planejamento tributário o Estado diminua a arrecadação de
tributos, pressupõe-se que esse processo seja momentâneo, pois ao proporcionar maior competitividade às
empresas, estimula o crescimento do emprego e renda, reduz desigualdades sociais e auxilia o
desenvolvimento de algumas regiões.
Assim, cabem mais alguns questionamentos acerca do assunto debatido neste ensaio: será que o
planejamento tributário decorre apenas da elevada carga tributária imposta aos brasileiros? Será que os
contribuintes que utilizam da possibilidade lícita de redução de impostos, consideram também a redução de
receitas pelo Estado e consequentemente a sua influência nas políticas públicas? Será que o planejamento
tributário vai de encontro ao princípio da solidariedade social?
2.4 Função socioeconômica dos tributos
Segundo os estudos da Escola de Administração Fazendária - ESAF (2014), o tributo acompanhou a
evolução do homem desde as primeiras sociedades. Historiadores sugerem que as primeiras manifestações
tributárias foram voluntárias, como forma de presentear os líderes por seus serviços ou sua atuação em favor
da comunidade, sendo que, posteriormente, passaram a ser compulsórias, quando os vencidos de guerra
eram obrigados a entregar parte ou a totalidade de seus bens aos vencedores. Depois dessa época, os chefes
de Estado passaram a estabelecer uma contribuição pecuniária a ser paga pelos seus súditos, originando os
tributos. No Brasil, sabe-se que a história dos tributos teve início com a chegada dos portugueses,
especialmente com as capitanias hereditárias, quando Portugal nomeou os primeiros funcionários tributários
que tinham por função a arrecadação de impostos à Fazenda Real.
O tributo atualmente tem grande significado social. É o maior responsável pelo financiamento dos
programas e ações do governo nas áreas da saúde, previdência, educação, moradia, saneamento, meio
ambiente, energia e transporte, entre outras. A questão tributária como exercício da solidariedade, pressupõe
que os cidadãos estão contribuindo, por meio do pagamento de tributos, para que todos possam usufruir
destes benefícios. No entanto, é preciso zelar sempre para que os princípios constitucionais sejam observados
e para que os recursos arrecadados possam ser aplicados em obras e serviços que atendam às necessidades
da população como um todo, e, principalmente, da parcela mais pobre (ESAF, 2014).
Neste sentido, Andrade Filho (2015) cita um dos princípios fundamentais da Constituição Federal de
1988 que é o “princípio da solidariedade”, ou seja, ser solidário com os mais necessitados, tendo consciência
de sua contribuição e de seus esforços para o bem-comum. Porém, o valor solidariedade não pode ser
imposto, apesar de não excluir o dever que todos têm em contribuir com o Estado, para a realização do
interesse público. Dessa forma, o dever de solidariedade acaba sendo imposto pela norma tributária, que
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obriga o sujeito a tornar-se solidário em razão de uma circunstância que independe da sua vontade de
contribuir, ou seja, o sujeito é convocado a ser solidário ainda que não considere a existência do outro. Tratase, portanto, de uma solidariedade vazia de conteúdo moral ou ético.
Assim, segundo a ESAF (2014) para que o Estado cumpra sua função social de promover o bem
comum, a igualdade e a justiça, por meio do desenvolvimento social e econômico, é imprescindível que em
sua estruturação normativa e em seus objetivos estejam estabelecidos princípios de igualdade e justiça social
e fiscal. Significa dizer que os princípios constitucionais não podem ser apenas declarações de boas
intenções. No Brasil, os tributos são suportados, principalmente, pelos assalariados e consumidores, pois a
maior carga tributária incide sobre os bens de consumo.
Nesse sentido, para Hilgert (2012), o dever fundamental de pagar tributos está relacionado com o
princípio da capacidade contributiva, que consiste na concretização do princípio da igualdade em matéria
tributária, ou seja, aqueles que possuem mais riqueza contribuam mais do que aqueles que têm menos.
Segundo a autora, considerada a capacidade econômica, atinge-se a equidade na distribuição do encargo
tributário e, consequentemente, a redistribuição de renda e riqueza, proporcionando uma vida digna também
à classe social menos favorecida.
Contudo, a carga tributária no Brasil além de complexa, é considerada injusta, pois aqueles que
auferem menos renda estão sujeitos à mesma tributação daqueles que recebem uma renda mais elevada, ou
seja, grande parte da arrecadação de impostos decorre da tributação indireta sobre o consumo. Grzybosvski e
Hahn (2006) ressaltam que para parte da sociedade as obrigações tributárias são fontes de conflito e de
insatisfação, pois entendem que os impostos pagos não retornam em forma de benefícios adequados, ou seja,
em melhoria das condições de vida da população. Talvez essa concepção decorra do desconhecimento da
importância do Estado como garantidor do interesse público, da falta de consciência cidadã e da educação
fiscal por parte de toda a sociedade.
Outrossim, sabe-se que a elisão fiscal, ainda que lícita, reduz a arrecadação de tributos essenciais à
manutenção das atividades praticadas pelo Estado que, em tese, deveriam subsidiar o bem-estar social.
Desse modo, Gonçalves, Nascimento e Wilbert (2016), advertem que a tributação é necessária para o bemestar de todos, sendo que, se a população deixasse de cumprir suas obrigações tributárias, não haveria mais
serviços públicos aos cidadãos.
Nesse sentido, o Estado realiza ações com a finalidade de estimular a iniciativa privada a realizar
investimentos que deveriam retornar à sociedade em forma de geração de empregos, renda e tributos
(GONÇALVES; NASCIMENTO; WILBERT, 2016). Na visão dos autores, os incentivos fiscais são exemplos de
elisões decorrentes da própria lei. No entanto, o objetivo dos incentivos não é simplesmente a redução da
carga tributária destas entidades, sendo necessária uma contrapartida para que as mesmas sejam
concedidas. Assim, quando uma entidade recebe assistência governamental na forma de subvenções de
qualquer tipo, determinado tributo deixa de ser aplicado em serviços públicos. A expectativa é que as
entidades que receberem esses incentivos possam devolvê-lo em benefícios para a sociedade.
Outro fator de impedimento ao desenvolvimento social e econômico está relacionado à economia
informal. Tais atividades e seus rendimentos geralmente não são informados ao governo, ocasionando aos
trabalhadores informais, aumento de lucros a partir da evasão fiscal (VASCONCELOS; FERREIRA;
BESARRIA, 2017). As consequências dessas práticas são as perdas no orçamento público, reduzindo a
arrecadação de impostos e contribuições, principalmente, para a seguridade social e, por conseguinte, a
disponibilidade de recursos para melhorias na saúde, educação, assistência social e demais serviços públicos.
A partir do exposto, são feitos mais alguns questionamentos sobre tão importante tema: será que os
contribuintes conhecem seu dever de pagar impostos e o direito de acompanhar sua aplicação? Será que a
educação fiscal disseminada nas escolas promoveria o comportamento de cidadania fiscal nos futuros
contribuintes? Será que o Estado está disposto também a se reeducar e rever políticas anticorrupção mais
efetivas? Ou será que tudo isso é resultado de uma crise generalizada de valores?
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3. Considerações Finais
Este ensaio teórico procurou debater se há similaridade entre evasão e elisão fiscal em relação à
função socioeconômica dos tributos. Através de uma revisão crítica de estudos envolvendo o tema, percebese que este é um assunto complexo, pois trata de questões subjetivas, ou seja, relacionadas a atitudes e à
percepção de justiça social, que podem variar em decorrência de diversos fatores. Além disso, parece que este
quadro está ligado a um comportamento histórico, permeado por diversas tentativas infrutíferas do poder
público, em especial desde a Constituição de 1891 até os dias atuais.
De um lado tem-se a tributação, compreendida como um dever de cooperação que possibilita a
atuação estatal nas mais diversas áreas, especialmente na vida social e econômica das pessoas. Essa é a
compreensão de uma cidadania ativa, participativa e solidária. Nesse sentido, o tributo é visto como um
instrumento que pode e deve ser utilizado para promover mudanças e reduzir as desigualdades sociais. O
cidadão, consciente da função social do tributo, é capaz de participar do processo de arrecadação, aplicação e
fiscalização do dinheiro público.
Em compensação, do outro lado estão os contribuintes que questionam a adequada gestão do gasto
público por parte dos governantes, assim como o emaranhado de leis e situações geradoras de obrigações
fiscais. Muitos, de forma lícita, como no caso da elisão, procuram reduzir a carga tributária de suas operações
com a finalidade de garantir sua lucratividade e permanência no mercado. Essa prática é, inclusive,
defendida por juristas, pois além de ser legal, pode reverter em preços mais acessíveis para os bens de
consumo, incentivar a geração de empregos, entre outros benefícios para a sociedade. Porém, existem
aqueles que questionam tais práticas e são favoráveis às normas da antielisão, embora ainda não
regulamentadas, alegando que a falta de arrecadação é contrária ao desenvolvimento da nação.
Além disso, existem os que não têm esta preocupação e, talvez mais pela percepção de uma
inadequada administração dos recursos públicos e pela corrupção de alguns governantes, sentem-se
motivados a sonegar e utilizar de meios ilícitos para reduzir o pagamento de tributos e, assim, aumentar sua
lucratividade. Cabe ressaltar que, em ambos os casos, o Estado perde em arrecadação e, neste sentido, evasão
e elisão fiscal talvez possam ser similares.
Dessa forma, a função socioeconômica dos tributos parece carecer de uma discussão mais profunda.
Além disso, como exposto pela própria Secretaria da Receita Federal em sua Cartilha de educação fiscal,
talvez não sejam apenas atos isolados que permitirão a construção de uma verdadeira moral tributária, mas
sim uma mudança significativa na forma como o Estado se relaciona com o cidadão-contribuinte. Talvez,
quando o contribuinte conhecer a função socioeconômica dos tributos e, o Estado viabilizar a correta
aplicação dos recursos públicos, promovendo a justiça social, será possível a construção de uma cidadania
fiscal.
Nesse sentido, o presente ensaio não tem a intenção de encerrar o debate, ao contrário, pretende
provocar novas discussões sobre um tema tão importante para a manutenção de uma sociedade justa e
equilibrada, não só em termos fiscais, mas morais.
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A estética do frio, um novo recorte de fronteira
Maria Goreti Betencourt 1
Resumo: O presente estudo, pretende discutir de forma introdutória uma proposta de recorte sobre
fronteiras a partir da estética visual. Para tanto como recurso metodológico foram usados o documentário A
Linha Fria do Horizonte, no âmbito musical, e quatro obras dos artistas plásticos costumbristas, o argentino
Molina Campos e o sul-rio-grandense Berega. O recorte sobre fronteira será balizado por duas
representações: as semelhanças simbólico-estéticas que existem entre a milonga, comum a músicos do
Brasil, Uruguai e Argentina, que foram expressas no documentário através de imagens de paisagens
(culturais),e as manifestações plásticas que por sua vez também são expressas nas obras de Molina e Berega.
A tentativa de definir uma nova fronteira é perpassada por esse viés, ou seja tanto a música quanto a arte
plástica pode ser recortada por expressões estéticas distintas mas reproduzindo o mesmo território.
Palavras chave: estética, costumbrismo, milonga, paisagem, fronteira.
1-Sobre região e fronteira
O conceito de região não assumiu uma denominação pacífica, existem vários estudos que pretendem
dar conta de explicar ou definir minimaente a região conforme um contorno específico. Assim o conceito de
região se amplia de acordo com os enfoques das ciências. A geografia percebe o espaço natural e o político, a
economia as entradas e saídas de capital e as relações próximas entre si, a historia por sua vez da mesma
forma que a etnologia e a sociologia percebem esse conceito a partir das relações de poder.
“a historia regional não se constitui em um método e nem possui um corpo teórico próprio. É uma
concepção de recorte espacial do objeto estudado.” (Viscardi 1997,pg. 84. )
Ainda segundo a autora, a definição de região é um problema para os pesquisadores, também devido
aos critérios definidores do espaço regional,..”a região só pode ser vista no âmbito do enfoque sistêmico.
Desta forma a região se constitui em um subsistema de um todo mantendo com ele interrelações.”( Viscardi
1997,pg.87)
Neste estudo não se pretende definir propriamente um conceito de região e fronteira, senão discutir
as possibilidades que um enfoque de região e fronteira poderiam ter se visto sob o viés da estética 2.
Bourdieu (1989 p.114) diz que A fronteira nunca é mais que um produto de uma divisão a que se
atribuirá maior ou menor fundamento na “realidade” segundo os elementos que ela reúne, tenham entre si
semelhanças mais ou menos numerosas e mais ou menos fortes”.
De forma que conceituar região passa por valores diferentes de acordo com o posicionamento social,
histórico, geográfico político e econômico. Neste artigo, porém, abordaremos a fronteira pela segmentação
estética, o que por outro lado não inviabiliza nenhum dos conceitos apresentados.
Para tentar trabalhar um pouco essa ideia, propomos uma analogia entre o documentário “A Linha
Fria Do Horizonte”, que aborda a questão da musicalidade compartilhada entre artistas brasileiros,
argentinos e uruguaios e e o trabalho de dois artistas costumbristas que pertencem a países e tecnicamente à
regiões políticas e econômicas diferentes, bem como também não foram contemporâneos, muito embora
ambos tenham vivido no século XX. Esses artistas expressam suas culturas usando signos praticamente
idênticos. São eles o argentino Florencio de los Angeles Molina Campos, conhecido por Molina Campos,
nascido em 21 de agosto de 1891 e falecido em 16 de novembro de 1959, em Buenos Aires na Argentina. E o
Mestre em Comunicação e Semiotica, doutoranda em Historia bett@upf.br
A estética aqui é vista pelo viés de Kant, como algo produzido pelo sentimento, funcionando intermediado pela razão e pelo intelecto.
São os sentimentos subjetivos que formam o juizo do gosto, sendo portato subjetivo.Sendo o prazer o elemento que faz essa ligação e não
provas intelectivas.
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outro é o brasileiro Luiz Alberto Pont Beheregaray, conhecido como “Berega”, nascido em 1934 na cidade
gaúcha de Uruguaiana e falecido também em Uruguaia em 9 de abril de 2012.
Para dar um entendimento maior sobre o trabalho de ambos e como isso pode representar uma outra
forma de definir região é importante considerar o que caracteriza o gaúcho em ambos países Argentina e
Brasil.
Ao passo que na Argentina o debate entre intelectuais gira em torno de decidir se o
gaucho desempenha um papel positivo ou negativo na construção da identidade
nacional (isto se deve ser incluido ou excluido), no Brasil, o gaucho é utilizado
unanimimente por intelecutais para construir a identidade regional do Rio grande
do Sul, No Brasil portanto, o debate não se estabelece em torno da inclusão ou
exclusão do gaucho, mas em torno de como e por quem ela deve ser definida
(Oliven, 2006, p. 65)
Desta forma é que propomos uma reflexão sobre a fronteira permeada pela construção simbólica
estética “qualquer enunciado sobre região funciona como um argumento que contribui - tanto largamente
quanto mais largamente é reconhecido – para favorecer ou desfavorecer o acesso da região ao
reconhecimento e por este meio a existência ( Bourdieu, 1989,p.120 )
Ilmar Mattos citado por Claudia Viscardi (1997. P.87) salienta que os critérios para definição regional
não podem ser só físicos, mas devem derivar do entrecruzamento entre as dimensões espacial e
temporal...assim sendo o espaço regional é socialmente constituído através das diferentes experiências
históricas vividas por seus atores. ”
1.2- A linha fria do horizonte
O documentário A Linha Fria do Horizonte mostra a obra e o pensamento de um grupo de músicos
do sul do Brasil, Argentina e Uruguai que compartilham em suas obras os sentimentos e as paisagens dos
locais onde vivem ignorando as fronteiras entre países. Logo no inicio Victor Ramil 3 diz que ao responder
uma entrevista onde foi perguntado como era produzir musicalmente fora do centro, ele diz que não está a
margem de um do centro, senão no centro de uma outra história.
Penso que por aqui poderia se construir uma discussão importante a respeito do que significa
fronteira sob o viés da estética.
Para Bakhtin (2011 p. 175), o objeto estético é um “acontecimento artístico vivo” ,ou seja, não é algo
puramente teórico, mas um acontecimento, um produto do ato de existir, e deve ser compreendido em seu
contexto de existência e na relação com seus participantes.
Primeiramente devemos levar em conta que o objeto estético é produzido por um autor, que é o
“centro organizador do conteúdo-forma da visão artística” (Bakhtin, 2011, p. 173), possui uma ideologia,
um lugar no mundo, uma voz que dialoga com vozes de outros e imprime essas marcas em sua criação
estética. Outro elemento muito importante a ser considerado é o contexto no qual esse objeto é produzido,
pois, ainda de acordo com o autor, a obra não adquire sentido de forma isolada, mas deve ser encarada em
seu contexto, porque (Bakhtin, 2010, p. 16) “a autonomia da arte é baseada e garantida pela sua
participação na unidade da cultura, tanto que a definição sistemática ocupa aqui um lugar não só
singular, mas também indispensável e insubstituível”. Então, esse objeto estético passa a ter valor somente
quando está inserido no sistema cultural.
Além de considerar esses aspectos, também devemos observar a composição do objeto estético de
forma integral, ou seja, nos três elementos que o constituem, de acordo com Bakhtin (2010), que são a forma,
o conteúdo e o material. Todas as três são indissociáveis, interrelacionadas e possuem o mesmo grau de
importância dentro da obra, pois formam uma unidade.
3
Vitor Ramil é musico, compositor e escritor gaúcho.
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A forma não pode ser entendida independentemente do conteúdo, mas não pode
ser independente da natureza do material e dos procedimentos por ele
condicionados. Ela é condicionada a um dado conteúdo, por um lado, e à
peculiaridade do material e aos meios de sua elaboração por outro. (Bakhtin, 2011,
p. 178)
No documentário em particular, aparecem os diferentes artistas já construindo uma espécie de
conceito a cerca da fronteira permeada pela visão artistica, ou seja para eles as fronteiras acabam por serem
mais ou menos definidas pelas afinidades estéticas que penetram seus universos compositivos. Uma reflexão
sobre a identidade própria da região, em conflito e diálogo com um sentimento de identidade global. Entre
eles estão os brasileiros Vitor Ramil e Marcelo Delacroix, os uruguaios Daniel Drexler, Jorge Drexler e Ana
Prada e o argentino Kevin Johansen. E ao fim e ao cabo a paisagem por exemplo que é compartilhada pelo
sul do Brasil pela Argentina e Uruguai configuram uma forma especial e particular de fronteira natural. A
linha fria do horizonte, como foi denominada, acaba formando um território criativo que conecta propostas
musicais estéticas que se confundem, se inteconcetam e dialogam. Tudo isso atravessado pelas imagens de
Luciano Coelho mostrando um cenário relacionado com o frio em paisagens amplas, com a neblina e a chuva
presentes em vários momentos. Essa é a estética que concilia o significado tanto musical quanto plástico.
Os compositores falam sobre suas obras e sobre suas influências tanto entre eles mesmos quanto da
própria música que todos compartilham.
A milonga é o estilo musical que permeia todo o documentário. O compositor Drexler por exemplo
que é uruguaio fala da milonga produzida por Victor Ramil como uma mistura anglo saxônica e salienta que
a milonga é um hibrido típico dessa zona. Ela traz aspectos na complexidade musical, da bossa nova e do
samba por exemplo, sendo Ramil, portanto muito mais brasileiro do que ele (Victor), pensa que é e muito
menos brasileiro do que muitas pessoas pensam que ele seja.
Por sua vez Victor Ramil diz que Jorge Drexler é mais brasileiro que uruguaio justamente pelas
influencias culturais que esse artista sofreu ao longo de sua vida.
Paralelo a esse documetário há uma apresentação feita por Vitor Ramil em Genebra em 2003, onde o
autor pretende uma introdução a um conceito interessante sobre uma estética que unisse países diferentes
em cenários semelhantes, ao que Ramil chamou a Estética do Frio.
Apresentei A Estética do frio em francês no Théâtre Saint-Gervais em Genebra,
Suíça, no dia 19 de junho de 2003, como parte da programação Porto Alegre, un
autre Brésil. O texto foi escrito para a ocasião. De lá para cá mudou um pouco. Que
futuramente continue nunca sendo o mesmo.
Eu me chamo Vitor Ramil. Sou brasileiro, compositor, cantor e escritor. Venho do
estado do Rio Grande do Sul, capital Porto Alegre, extremo sul do Brasil, fronteira
com Uruguai e Argentina, região de clima temperado desse imenso país
mundialmente conhecido como tropical.
Vitor Ramil Porto Alegre, novembro de 2004.
Na conferencia Vitor Ramil diz que em um mês de junho muito quente em Copacabana, cidade em
que viveu cinco anos, estava ele no apartamento tomando chimarrão seminu, assistindo televisão, quando o
âncora do telejornal anunciava um carnaval fora de época no Nordeste, e a fala do jornalista acentuava a
normalidade daquela situação como se o carnaval independente da época fosse de fato uma ocorrência
cultural corriqueira para todos os brasileiros.
Em paralelo no mesmo telejornal o âncora anunciava um frio que antecipava um inverno rigoroso
no Rio Grande do Sul, porém o tom do jornalista se modificava como se estivesse falando de algo
absolutamente fora da realidade brasileira citando o frio do sul como de um inusitado clima europeu,ou seja,
não do mesmo Brasil que se estava falando.
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Desta forma Ramil percebeu o quanto distante ele próprio estava, isolado dentro do seu pais. Na
sequência de suas reflexões o artista fala sobre o sentimento de não identidade que muitas vezes circula entre
os nativos do Rio Grande do Sul. Repercutido em conceitos ou ações separtistas e o desejo de se criar a força
uma figura que institucionalize e justifique o fato de ser sul riograndense ou gaúcho.
Segue o autor A palavra gaúcho é, hoje em dia, um gentílico que designa os
habitantes do Rio Grande do Sul, e o estereótipo do gaúcho é um dos mais
difundidos nacionalmente, se não o mais difundido: misto de homem do campo e
herói, que o escritor brasileiro Euclides da Cunha, em seu clássico Os Sertões,
definiu como essa existência- quase-romanesca. Popularmente, é visto como
valente, machista, bravateiro; um tipo que está sempre vestido a caráter e às voltas
com o cavalo, o churrasco e o chimarrão.( Ramil 2004.p. 8)
Esse é o traço comum com os vizinhos uruguais e argentinos que também possuem seu gaucho como
um homem do campo, na verdade esse personagem, cria uma aproximação com os uruguaios e argentinos e
nos “estrangeiriza” em relação ao resto do Brasil. Neste caso as fronteiras se equacionam de outra forma
particularizadas pelas afinidades culturais, não economicas, não geograficas e nem historicas propriamente
ditas.
Existe também o gauchismo ou tradicionalismo que tenta criar uma identidade baseada no
estereótipo e que de certa forma pretende caracterizar o povo riograndense como gaúcho de forma geral.
A maior parte do Brasil é tropical, sendo subtropical o Sul apenas, neste caso a relação com o resto
do Brasil se perde nesse quesito, mas aproxima o Sul aos países vizinhos que compartilham o mesmo tipo de
clima, gerando um tipo particular de paisagem que cria obrigatoriamente também um imaginário coletivo.
Uma coisa que parecia diferenciar o sul do resto do Brasil e aproximar o mesmo Sul de alguns países
latinos era justamente o frio. Esse frio cria uma paisagem própria, hábitos específicos e uma identidade que
aproxima os de fora da fronteira política muito mais do que os que estão em um mesmo território político. De
certa forma o frio simboliza o Rio Grande assim como também é simbolizado por ele. Segue Ramil em sua
especulaçáo sobre a estética do frio
Ao me perguntar por onde começar a busca de uma estética do frio, minha
imaginação respondeu com uma imagem invernal: o céu claro sobre uma extensa e
verde planície sulista, onde um gaúcho solitário, abrigado por um poncho de lã,
tomava seu chimarrão, pensativo, os olhos postos no horizonte. Pampa, gaúcho...
Que curiosa associação! Eu fora acometido por um surto de estereótipo? Não.
Pampa e gaúcho estavam ali porque eu me transportara ao fundo do meu
imaginário, lá onde, tanto um como o outro, têm o seu lugar. O pampa pode ocupar
uma área pequena do território do Rio Grande do Sul, pode, a rigor, nem existir,
mas é um vasto fundo na nossa paisagem interior. (Ramil. 2004.p. 19)
A milonga está relacionada a essas condições dadas pela paisagem, as mesmas são transformadas
pelas obras plásticas, (no caso particular de Molina e Berega) com os recursos simbólicos da cor e da própria
forma compositiva onde o personagem é retratado.
E para falar sobre a expressão dessa estética do frio Vitor Ramil usa a milonga na categoria musical
para criar tambem uma paisagem estética.
Assim como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul, Uruguai
e Argentina, inexistindo no resto do Brasil.... A milonga me soava uma poderosa
sugestão de unidade, a expressão musical e poética do frio por excelência. (Ramil
2004, p. 22)…. Que outra, se não essa, escolheria o gaúcho solitário da minha
imagem para se expressar diante daquela fria vastidão de campo e céu? Que outra
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forma seria tão apropriada à nitidez, aos silêncios, aos vazios? Em sua inteireza e
essencialidade, a milonga, assim como a imagem, opunha-se ao excesso, à
redundância. Intensas e extensas, ambas tendiam ao monocromatismo, à
horizontalidade. O frio lhes correspondia aguçando os sentidos, estimulando a
concentração, o recolhimento, o intimismo; definindo-lhes os contornos de
maneira a ressaltar suas propriedades: rigor, profundidade, clareza, concisão,
pureza, leveza, melancolia. (Ramil, 2004 p.23)
1.4- A interface Molina e Berega
Esta mesma descrição que Ramil faz da paisagem que a milonga sugere pode ser avaliada com
relação à estética plástica que envolve as obras de Molina e Berega.
Berega assumidamente valorizava as obras de Molina Campos, que teve durante dez anos, suas
obras reproduzidas pelos calendários Alpargatas na Argentina. E mesmo Berega que teve suas obras
reproduzidas por vinte anos nos caledários Ipiranga no Rio Grande do Sul, apresentava os mesmos recursos
sígnicos,portanto ambos falaram de uma região física e histórica comum que é o pampa no geral. Também
ambos ilustraram calendários com temáticas do campo da vida simbólica do cidadão dos pampas, o uso do
cavalo,e paisagens abertas.
Berega trabalhou no calendário Ipiranga por vinte anos das décadas de 79 a 99 e Molina ilustrou o
calendário Alpargatas na Argentina nas décadas de 30, 40 com reedição póstuma em 60. Ambos
caracterizam seu trabalho com um tom humorístico próprio mas que ao mesmo tempo os aproxima, Molina
representa o gaúcho dos pampas argentinos e Berega o gaúcho dos pampas sul rio-grandenses.
Embora a questão do gaúcho seja também um outro conceito que tem contornos simbólicos, é
interessante estabelecer essa lógica.
Figura 1- Berega
fig, 1-Berega- Título: Lindo Moço Ano / meses: 1986 / janeiro-fevereiro (lâmina calendário) -trabalhos
feitos entre 20 /06/1985 e 20/08/1985. http://www.berega.com.br/
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Figura 2- Molina Campos
fig. 2-Molina Campos- https://br.pinterest.com/sandyenquin/florencio-molina-campos/
Figura 3- Berega
fig. 3-Berega Título: Gineteando Ano / meses: 1982 / janeiro-fevereiro (publicação) - originais feitos de
15/05/1980 (início) à 03/07/1980 (fim) http://www.berega.com.br/
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Figura 4- Molina Campos
fig. 4 Molina Campos- https://br.pinterest.com/sandyenquin/florencio-molina-campos/
Conforme se pode observar nas imagens ambos artistas apresentam características muito próximas
em termos de signos. As duas primeiras e duas últimas mostram o clássico signo do cavalo, a indrumentária
caracterizada basicamente pela tradicional bombacha, bota, lenço e a faca na cintura. Nas duas primeiras o
personagem aparece tranquilo sobre o cavalo solto no pampa. Esse tipo de imagem é comum no imaginário
tanto no sul do Brasil, quanto na Argentina e Uruguai, o que pode traduzir um tipo especial de fronteira no
âmbito tanto do imaginário quanto dos signos que as imagens sugerem. Ou seja, um sujeito solitário em uma
paisagem que pode ser identificada com o inverno, solto na vastidão circulado pelo céu e pelo campo. Nesta
paisagem o silêncio canta... (uma milonga talvez?)
O “drama” da solidão no pampa (característico da milonga) é substituído por uma “existência” sem
estes conflitos específicos. É o que os quadros de Molina e Berega traduzem.
Nas duas últimas o mesmo personagem está enquadrado na mesma paisagem vasta e vazia (fria)
onde o grande movimento é dado pela “gineteada” e o salto que o cavalo faz ao dar ação e sugerir alegria,tem
até um certo contorno lúdico, de alguma forma. A mesma paisagem aberta posicionando o personagem no
limite do céu com o horizonte “brincando” ao fazer sua “lida” cotidiana, margeia esse imaginário do gaúcho
pampeano solitario mas não infeliz, senão, quem sabe, livre e “dono” do espaço que o circunda. É esse
imaginário que os artistas marcam com muita qualidade técnica, deixando os subtextos para a interpretação
dos sujeitos que de um jeito ou outro estão inseridos nesse contexto, configurando um outro recorte de
fronteira, circunscrita pela subjetividade que a fruição estética permite.
É importante nessa altura especificar o que se quer dizer quando se fala em signo e a representação
deste no imaginário humano.
Para Peirce, teórico da semiótica americana, citado por Santaella (2000), o signo é aquilo que está no
lugar de outro (o seu objeto) e que representa algo para alguém e que por consequência de si forma cadeias
de significados.
Assim o objeto neste caso é todo o complexo que envolve tanto o personagem quanto seus adereços,
o significado disso é a ação do signo na mente dos sujeitos que o interpretam e para entenderem o signo
antes precisam de outras informações como por exemplo estarem inseridos em uma determinada cultura que
ofereça o amparo para o entendimento dessa ou daquela representação mediada por esse signo.
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Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS
Segundo Peirce: O pensamento tem três elementos: a função representativa que o torna
representação; a aplicação denotativa, ou ligação real, que põe um pensamento em relação com outro; a
qualidade material, que dá ao pensamento sua qualidade(Cf. CP, 5. 290.)
Portanto, um signo vem recheado de significações culturais. Neste caso o próprio animal (cavalo) o
tipo especifico de personagem e a paisagem solitária suscita uma forma especial de tótem que pode ser
reconhecido pelo seu clã. Neste caso o clã acaba por ser composto por pessoas cujas nacionalidades não
importam realmente porque se reconhecem em um recorte particular de fronteira estética.
Oliven (2006) cita, Marcel Mass referido no texto fazendo uma analogia entre o clã primitivo e a
sociedade moderna: O clã tem seu tótem a nação sua bandeira, a nação tem seu culto a Pátria e o clã tinham o
culto aos ancestrais animais-deuses.
Segue, Oliven, dizendo que Durkeim enfatiza a questão do emblema nos povos primitivos ou o tótem
que era um emblema um signo que representava segurança, sendo assim, o totem é uma bandeira um signo
que diferencia esse clã de outros.
Para Levi-Strauss os tótens servem também como identidades que cada clã assume para difereciar
uns de outros.
“Se como Weber, a nação “é uma comunidade de sentimentos que normalmente
tende a produzir um estado próprio”, é preciso invocar antigas tradições (reais ou
inventadas) como fundamento “natural” da identidade nacional que está sendo
criada, Isso tende a obscurecer o caráter historico e recente dos estados nacionais
“...assim como o estado -nação procura delimitar e zelar por suas fronteiras
geopoliticas, ele tambem se empenha em demarcar as fronteiras culturais,
estabelecendo o que faz e o que não faz parte da nação” (Oliven 2006, p. 20)
As imagens de Molina foram influenciadas por suas experiências com os homens do campo de onde
tem sua origem. Ao ser contratado pela fábrica Argentina Alpargatas para fazer uma série de desenhos para
seus calendários, essas lembranças ganharam força entremeadas por um humor ao mesmo tempo inocente e
mordaz. Esses calendários eram usados em bares, restaurantes e armazéns de bairros, que finalizado o ano
acabavam servindo de quadros costumbristas, fruídos pela população em geral.
Berega também desenhou motivos gaúchos para o calendário Ipiranga distribuídos nas redes dos
postos para clientes e funcionários. Do mesmo modo que Molina, Berega inspirou-se em lembranças de sua
infância no interior de Uruguaiana. Embora apresente um estilo que varia da cena mais narrativa até as
imagens caricatas associadas as charges, há uma interelaçãoo entre os dois, desde a temática até a construção
da própria composição plástica. Ambos os artistas que foram auto didatas, não apresentando portanto, uma
escola artística especifica, mostram claramente um pensamento comum que ao mesmo tempo também
representava o imaginário coletivo de uma população em particular.
O aparelhamento de ambos é o que sugere uma diluição das fronteiras simbólicas, e justamente o
tratamento dado aos seus trabalhos que repercutem o imaginário de uma regi!ão ampliada que compreende
o Rio Grande do Sul como um todo e a Argentina. Mesmo que não represente a realidade vivida pela maioria
dessas populações, uma vez que grande parte vive em espaços urbanos, é possível afirmar que as imagens
podem ser fruídas por essas populações sem sentimento de estranheza, muito antes pelo contrário. Mesmo
para quem não vivenciou na prática esses ambientes ainda assim sendo gaúcho de uma certa forma sente-se
pertencente e em alguma medida representado. Esse conforto é importante na integralização de ego do
sujeito, é isso que de algum jeito esse imaginário social representa.
o imaginário social é composto por um conjunto de relações imagéticas que atuam
como memória afetivo-social de uma cultura, um substrato ideológico mantido pela
comunidade. Trata-se de uma produção coletiva, já que é depositário da memória
que a família e os grupos recolhem de seus contatos com o cotidiano. Nessa
dimensão, identificamos as diferentes percepções dos atores em relação asi
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mesmos e de uns em relação aos outros, ou seja, como eles se visualizam como
partes de uma coletividade (Morais,1997. p 94)
E também se poderia dizer que a musicalidade dessas cenas poderia ser uma milonga, tudo isso
cercado pela sensação térmica do frio invernal.
Nas imagens de Berega ainda há uma consideração verbal do artista ( não discutido neste estudo),
que demonstra na fala todo uma construção linguística que remete a esse imaginário, independente aqui da
discussão tradicionalista ou não.O imaginário para Pesavento(1995) é uma representação, evocação onde o
visivel evoca algo do ausente.
Como já foi introduzido, Oliven também reintera, que a figura do gaúcho sofreu um longo processo
de elaboração cultural até obter o atual significado gentilico de habitante do estado.
Augusto Meyer diz que o gaúcho passou de uma imagem pejorativa como sendo vagabundo e errante
até meados do seculo XIX quando começa a designar também o peão de estância. Até a mitificação proposta
por José de Alencar sobre o Centauro dos pampas.
Nas demandas intelectuais sociológicas o gaúcho é visto como diferente do nordestino através do
meio ambiente, pela superioridade politica provinda da guerra: “o gaucho é socialmente um produto do
pampa, como politicamente é um produto da guerra”
“ O que ocorre no Rio grande do Sul parece estar indicando que atualmente para os
gauchos só se chega ao nacional através do regional, ou seja, para eles só é possivel
ser brasileiro sendo gaúcho antes. A identidade gaúcha é atualmente reposta não
mais nos termos da tradição farroupilha, mas enquanto expressão de uma distinção
cultural.
Quando se pretende comparar o Rio Grande do Sul do resto do pais, apontando
diferenças e construindo uma identidade social, é quase inevitavel que esse processo
lance mão do passado rural do estado e da figura do gaúcho, por serem estes os
elementos emblematicos que permitem ser utilizados como sinais distintivos”
(Oliven 2006 p.193)
Neste caso, vale considerar a questão do imaginário presente na elaboração simbólica que caracteriza
não apenas o habitante do Rio Grande do Sul que se denomina gaúcho bem como populações vizinhas como
é o caso em questão da Argentina, e não circunscrever um discurso regionalista per si.
O discurso regionalista é um discurso perfomatico, que tem em vista impor como
legitima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a
região assim delimitada – e como tal, desconhecida – contra a definição dominante,
portanto, reconhecida e legitima que a ignora.”( Bourdieu, 1989, p. 116)
Cabe aqui recordar a imagem criada por Vitor Ramil para descrever o que seria uma cena que
representaria o imaginário invernal dos pampas gaúchos e argentinos. Assim como a milonga tem um fundo
de melancolia e vastidão aqui essas imagens também evocam esse mesmo sentimento, muito embora o fundo
humorístico aproxime nosso imaginário ligado pela estética do Kitsch, que é em última instância um tipo de
arte mais próxima da emoção de conforto que o cotidiano nos traz do que necessariamente a fruição da
chamada grande arte que precisa de um backgroud para ser fruída.
No instante em que o processo inventivo não se sustenta em uma etnia dominante,
mas na referência estilística de um grupo marginal e multirracial, a identidade
tradicionalista pode ser construída contemporaneamente através de uma militância
que se desenvolve simbolicamente no “entre-lugar”, na fronteira, o lugar
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imaginário em que todos podem se involucrar, independente da origem e da classe
social. (Golin Pág. 100, 102)
Seguindo na questão que pretendíamos sobre o que se pode identificar como uma fronteira regional
a partir da referência estética é que se fez esse paralelo musical e plástico. As fronteiras com significado
geográfico ou mesmo histórico se diluem em nome de uma identidade criada pelo imaginário de um grupo
Bourdieu citado por Vizcardi(1997. p. 87-88) diz que a divisão regional não existe na realidade, pois
esta mesma realidade é representação que dela fazemos. Desta forma, a delimitação reginal é estabelecida
por quem vive e passa a compor o imaginário daqueles que a ela se referem. A identidade regional é, pois, um
produto da construção humana.”
Portanto, conforme a autora os objetos dos historiadores passa a ser também as diversidades
culturais produzidas pelas populações como mitos, vestimentas, os locais de residência a própria literatura,
enfim.
Por este viés é que se justifica este estudo, quando traz como objeto não apenas o imaginário de um
povo em particular mas como esse imaginário pode ser expresso estéticamente e consequentemente como
isso pode de certa forma configurar um circunscrito regional, uma nova fronteira margeada pelo uso comum
de uma mesma mentalidade.
Finalmente o que se percebe em termos de imaginário construído seja histórico ou não é que existe
sim um contorno de fronteira circundando uma região constituida pela estética que Vitor Ramil chamou de
estética do frio para abarcar o estado musical unindo Brasil sul, Argentina e Uruguai mas há também o
mesmo processo no campo da arte visual através das obras costumbristas de Molina e Berega, igualmente
construindo um imaginário que configura uma fronteira de signos fruida por pessoas que pertencem a outras
formas de fronteiras, mas que acabam irmanando uma região visual e musical, recriando uma fronteira que
na verdade nem é questionada. Ou seja , já não é mais uma questão puramente acadêmica, senão uma forma
de “ver” que abarca um espaço compartilhado por brasileiros, argentinos e uruguaios com o mesmo vigor.
Esse novo espaço que é apreendido pelos sentidos humanos aproxima inexoravelmente pessoas, significados
e territorios. Talvez seja uma configuração de fronteira importante para ser aprofundada enquanto conceito.
Bibliografia:
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. 6. Ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
BAKHITN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
GOLIN, Tau. Tradicionalismo e modernidade conservadora no “estado-marca”. In: BOEIRA, Nelson. Rio Grande em
debate: conservadismo e mudança. Porto Alegre: Sulina, 2008.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993
MORAES Dênis. Notas sobre o imaginário social e hegemonia cultural.Instituto de Artes e Comunicação Social da
Universidade Federal Fluminense- IACS_UFF: Rio de Janeiro: 1997
OLIVEN, Rubens George. A Parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação. Petropolios: Vozes, 2006.
PEIRCE, Charles Sanders. Escritos coligidos. Trad. Armando Mora D’Oliveira e Sérgio Pomeranglum. 3. ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores).
PESAVENTO, Sandra J. Em busca de uma outra história: imaginado o imaginário. In: Revista Brasileira de História, v.
5 nº 29. São Paulo: 1995
RAMIl, Vitor. A Estética do Frio. Conferencia em Genebra. Pelotas: Satolep livros. 2004.
SANTAELLA, Lúcia. A Teoria Geral dos Signos: como as linguagens significam as coisas. São Paulo: Pioneira, 2000.
VISCARDI, Claudia. Historia, região e poder: a busca de inferfaces metodologicas. Locus: revista de Historia. Juiz de
Fora, v.3, n 1, p. 84-97: 1997.
http://www.berega.com.br/
https://br.pinterest.com/sandyenquin/florencio-molina-campos/
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A Linha Fria Do Horizonte -2011 Direção: Luciano Coelho Gênero Documentário Nacionalidades Brasil, Argentina
Luciano Coelho / Vitor Ramil / Jorge Drexler / Kevin Johansen / Fernando Cabrera / Carlos Moscardini - Linha Fria
Filmes
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O controle da subjetividade cultural e dos direitos humanos:
o “cidadão” e o “mercado”
Mariana Chini1
Joline Picinin Cervi2
Resumo: A imigração é um grande desafio da atualidade no que diz respeito ao multiculturalismo. É
essencial que se criem espaços capazes de respeitar as diferenças sociais e culturais, e o direito pode servir
como ferramenta para essa criação. No entanto, é necessário que se leve em conta a totalidade dos
indivíduos, e não só aqueles caracterizados como "cidadãos", bem como, é imprescindível que o "mercado"
não sirva como meio legítimo de exclusão social. Objetiva-se, portanto, através de um trabalho hipotéticodedutivo, com abordagem qualitativa e método de procedimento bibliográfico, discutir como o conceito de
“cidadão” é capaz de afetar o controle da subjetividade cultural e dos direitos humanos e como o “mercado”
econômico é capaz de influenciar na distribuição destes direitos entre os sujeitos.
Palavras-chave: Cidadão. Direitos Humanos. Imigração. Mercado. Multiculturalismo.
INTRODUÇÃO
A lógica operacional do presente ensaio é hipotética-dedutiva, sendo sua abordagem de pesquisa
qualitativa, e seu método de procedimento bibliográfico. Ademais, no que tange aos procedimentos técnicos,
tem-se aqui uma pesquisa bibliográfica, baseada em livros, artigos e periódicos.
No tocante aos objetivos, este ensaio busca discutir como o conceito de “cidadão” é capaz de afetar o
controle da subjetividade cultural e dos direitos humanos, principalmente frente a relações inter-territoriais
quando os indivíduos adentram espaços diferentes de seu local de origem no papel de migrantes 3, bem como,
compreender como o “mercado” econômico é capaz de influenciar na distribuição dos direitos humanos entre
os sujeitos.
A relevância desta discussão dá-se em face do crescente aumento na mobilidade humana
internacional, de modo que se buscará delimitar quais são as principais motivações que levam a este
nomadismo e de que modo os migrantes são recepcionados em territórios desconhecidos por eles, além de
buscar compreender qual o papel dos direitos humanos na proteção e garantia dos direitos dos migrantes.
Mestranda em Direito na Universidade de Passo Fundo (UPF). Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível
Superior). Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho (UNINTER). Especialista em Teologia (UNESA). Bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais (UPF). Bacharel em Filosofia (UNISUL). Integrante do Projeto de Pesquisa “Estado de Direito, Sistemas de
Justiça e crítica jurídica: horizontes de uma ‘nova política’” (UPF-RS). E-mail: mar.chini@hotmail.com
2 Mestranda em Direito na Universidade de Passo Fundo (UPF). Bolsista FAPERGS/CAPES. Especialista em Direito Previdenciário
(LFG). Bacharel em Direito (ULBRA). Integrante do Projeto de Pesquisa: “Proteção Jurídico Ambiental Transnacional e o Paradigma da
Sustentabilidade no Novo Constitucionalismo Latino Americano”. E-mail: jolinepcervi@gmail.com
3 A Lei de Migração brasileira (nº 13. 445, de 24 de maio de 2017) diferencia as modalidades de migração da seguinte forma:
“Art. 1º [...]
§ 1º Para os devidos fins desta Lei, considera-se:
I – (VETADO);
II - imigrante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil;
III - emigrante: brasileiro que se estabelece temporária ou definitivamente no exterior;
IV - residente fronteiriço: pessoa nacional de país limítrofe ou apátrida que conserva a sua residência habitual em município fronteiriço
de país vizinho;
V - visitante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que vem ao Brasil para estadas de curta duração, sem pretensão de se estabelecer
temporária ou definitivamente no território nacional;
VI - apátrida: pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, segundo a sua legislação, nos termos da Convenção
sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002, ou assim reconhecida pelo Estado
brasileiro”. (LEI DE MIGRAÇÃO, 2017).
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1 SUBJETIVIDADE CULTURAL, DIREITOS HUMANOS E “CIDADÃO”
Um dos maiores desafios do multiculturalismo 4 na atualidade se apresenta na imigração, pois o
movimento de pessoas através de fronteiras desafia o “senso ético de convivência” e a “ideia de
reconhecimento da dignidade humana”. Há uma grande necessidade de que se criem espaços abertos a todas
as pessoas, onde as diferenças sejam respeitadas, social e culturalmente, sendo que o direito pode ser uma
ferramenta valiosa para garantir aos indivíduos reconhecimento e segurança (RUBIO, 2014, p. 46).
Mas tal ferramenta deve ser utilizada com cuidado, pois pode trazer consequências contrárias às
desejadas, criando diferenças ao invés de amenizá-las, como é o caso da consagração de certos indivíduos
como “nacionais”, conceituação que exclui os demais, atribuindo personalidade moral a um grupo e deixando
os demais fora da ordem implementada (OST, 1999, p. 93).
Ou seja, os indivíduos que não são considerados como cidadãos perdem sua identidade, tanto
pessoal quanto cultural, e acabam sem conseguir acesso a direitos que lhes seriam fundamentais caso
carregassem uma simples conceituação baseada no nascimento, seja em termos territoriais ou
consanguíneos.
Com a aparição da ideia de cidadania na era moderna, foi suposto que as divisões de classes, até
então fortemente implementadas, estivessem abolidas, constituindo-se uma igualdade de todos os indivíduos
perante a lei. Entretanto, tal igualdade pode ser considerada até mesmo ficcional, visto que os direitos
humanos, por exemplo, estão condicionados à condição de cidadão, e esta tem péssimas consequências para
três quartos da população mundial (CAMPUZANO, 2016, p. 163 e 164).
Cada vez mais, fortificam-se ideias de “dentro” e “fora” em relação ao Estado, de modo que os
considerados “nacionais” afirmam suas identidades e presença, “numa relação ambivalente com o seu
oposto, o estranho, o estrangeiro” (SANTOS; LUCAS, 2016, p. 20). É necessário que haja a figura do diferente
para que se possa, então, criar o conceito de normalidade, e com ele, a ideia de pertença.
É interessante notar que as ideologias totalitárias ao longo do tempo exerceram violência e
dominação sobre os nômades, e do mesmo modo atuaram o nacional-socialismo e o stalinismo, o primeiro
perseguindo “os judeus e os ciganos, cosmopolitas, sem raízes, sem pátria e sem terra”, e o segundo,
perseguindo “semitas e os povos pastores das repúblicas caucasianas ou sul-siberianas” (SANTOS, 2016, p.
67).
Isso demonstra que para os que controlam a subjetividade dos indivíduos não basta a proteção da
cultura nacional, deve haver também o rechaço àquilo que parece inadequado e não incorporável à esta
cultura.
Pode-se notar, portanto, que “pertencer é também uma forma de negar acessos, de não pertencer a
outro lugar” (LUCAS, 2016, p. 95). O indivíduo que está “dentro” não pode estar ligado a outras culturas,
outras linguagens, outros conhecimentos. Assim:
[...] a modernidade reforçou essa lógica do ‘dentro’ e do ‘fora’ e lhe outorgou um
estatuto jurídico. Construímos a pertença de modo ambivalente e inventamos o
estranho, o estrangeiro, o inimigo, a ameaça que vem de fora e que deve lá ser
mantida ou que está dentro e deve ser eliminada jogando-a para fora (LUCAS,
2016, p. 95).
Hall faz uma distinção entre “multicultural” e “multiculturalismo”, em que diz que o primeiro “descreve as características sociais e os
problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam
construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade ‘original’”, e o segundo “refere-se às estratégias e
políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais”
(HALL, 2009, p. 50). Já Santos, entende que “a expressão multiculturalismo designa, originalmente, a coexistência de formas culturais
ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades ‘modernas’. Rapidamente, contudo, o termo se tornou um
modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. Existem diferentes noções de multiculturalismo, nem
todas de sentido emancipatório. O termo apresenta as mesmas dificuldades e os mesmos potenciais do conceito de ‘cultura’, um conceito
central das humanidades e das ciências sociais e que, nas últimas décadas, se tornou um terreno explícito de lutas políticas (SANTOS,
2003, p. 26).
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Assim, todo aquele que não satisfaz as expectativas culturais e mercadológicas do território onde se
encontra estabelecido é considerado diferente, estranho à civilização moderna, incapaz de contribuir com o
crescimento estatal.
Na modernidade, a globalização5 e a grande onda migratória criam, então, uma indagação no que
diz respeito ao universalismo dos direitos humanos, tentando descobrir se estes seriam uma categoria éticojurídica com abrangência universal, ou se para que tais garantias possam ser consideradas como direitos
deveriam responder às exigências de validade e eficácia de cada estado soberano em que se encontrem os
indivíduos (BARRETO, 2004, p. 279).
Mbaya (1997, p. 21) também traz à tona o tema da universalidade dos direitos humanos frente à
diversidade cultural, e diz que “a percepção dos direitos humanos está condicionada, no espaço e no tempo,
por múltiplos fatores de ordem histórica, política, econômica, social e cultural”. De fato, “frequentemente, o
discurso sobre a globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios. Na verdade, a vitória é
aparentemente tão absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena” (SANTOS, 2004,
p. 244), “morte, fome, violência não foram experimentadas do mesmo modo por nações invadidas e
invasoras” (SANTOS; LUCAS, 2016, p. 21).
Existe atualmente, inclusive, uma abordagem assimilacionista que pretende que os imigrantes
“abandonem seus costumes e práticas originais, adequando seu comportamento de acordo com os valores e
normas da maioria” (SANTOS, 2016, p. 33), mas isto nem sempre é uma possibilidade, de modo que Lucas
(2016, p. 95) questiona: “o que fazer, porém, quando não se é bem-vindo em nenhum lugar? Mover-se? Para
onde?”.
A resposta a este questionamento torna-se cada vez mais complexa diante dos fluxos migratórios
atuais e do crescente aumento no número de campos de refugiados criados para relegar o “outro” ao lado de
“fora”. No entanto, existe a possibilidade de falar-se em direitos humanos universais, sendo que, Bobbio
(1994, p. 165), por exemplo, traz a ideia de um universalismo jurídico, que seria formado para atender as
necessidades de um Estado mundial único, desenvolvendo-se o positivismo jurídico em um nível tão extremo
que se constituiria um Direito positivo universal. Entretanto, mais do que um Direito positivo universal, é
necessário que se tenha o direito de ser igual quando a diferença inferioriza, e diferente quando a igualdade
descaracteriza (SANTOS, 2004, p. 272).
2 A ATUAÇÃO DO “MERCADO” NO CONTROLE DA SUBJETIVIDADE CULTURAL E DOS
DIREITOS HUMANOS
Por vários motivos, a versão hegemônica do Ocidente, que se baseia em um forte capitalismo, tem
sido responsável por priorizar tanto ideiais ou valores: como liberdade, igualdade, progresso e
desenvolvimento, quanto instituições: como o Estado, o mercado, a Igreja, “deixando de lado ou
subordinando as pessoas” à tais valores e instituições (RUBIO, 2014, p. 62 e 63), esquecendo-se de que as
mesmas deveriam servir ao ser humano, e não o contrário.
No sentido de fazer com que os indivíduos cooperem com o sistema hegemônico destas sociedades
Ocidentais, modelam-se, então, formas de “adestramento dos indivíduos”, que acabam se auto-afirmando
apenas à medida em que se adaptam aos imperativos do sistema, sendo que o que irá caracterizar a
identidade do indivíduo moderno é o “despojamento de sua dimensão de sujeito”, com o fim de sua
autonomia e criatividade, de modo que ao perder as características identitárias, o indivíduo “transforma-se
num ator que executa o papel por outros projetado”, a modelagem de atores sociais evita que se criem
Para Santos, “aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de facto, conjuntos diferenciados de relações sociais;
diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização. Nestes termos, não existe estritamente uma
entidade única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações. Em rigor, este termo só deveria ser usado no plural. [...]
Proponho, pois, a seguinte definição: a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua
influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival”
(SANTOS, 2004, p. 244).
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sujeitos históricos, e com isso, controla-se a produção de identidades e detém-se o direcionamento das
práticas sociais (RUIZ, 2003, p. 116 e 117).
Durante sua caminhada, a modernidade estendeu, “tanto espaços de inclusão e reconhecimento,
como espaços de exclusão e colonização” (RUBIO, 2014, p. 65) e com o desenvolvimento do sistema
capitalista criaram-se grandes instrumentos de racionalização da vida coletiva, onde a ciência moderna e o
direito estatal moderno dominaram os espaços, juntamente com o mercado, que se tornou hegemônico e
passou a controlar as demais instituições (RUBIO, 2014, p. 71).
Assim, a realidade acaba sendo substituída por teorias e instituições, eliminando-se os contextos e
as relações humanas, bem como a temporalidade e as próprias condições de existência das pessoas, de modo
que apenas uma minoria é privilegiada em detrimento dos demais (RUBIO, 2014, p. 77).
Para Rubio (2014, p. 99 e 100), embora as lutas liberais tenham sido fruto de um processo de
libertação, as mesmas preservaram apenas a liberdade de poucos, sendo que com o advento do sistema
capitalista, tal divisão se acentuou, pois com a adoção deste sistema, a classe burguesa subiu ao poder, mas
esqueceram-se os demais coletivos que passaram a buscar a libertação da exploração e da marginalização
social, como a classe operária, as mulheres e os negros, os quais se viram obrigados a adaptar-se à forma já
institucionalizada pelos que controlavam o poder.
Entende-se, portanto, que a força do livre mercado, o controle da economia pelo Estado, a
liberdade individual e a igualdade (relegada apenas ao texto legal) não podem ser contrapostos pelos
indivíduos, sob pena de, como dizem Lucas e Santos (2015, p. 23): o Diabo “tomar o corpo dos que se
arvoram a esses sacrilégios aos valores modernos”. Ou seja, todo aquele que tentar opor-se a estas forças
institucionalizadas, corre o risco de ser relegado ao status de inimigo da modernidade e do desenvolvimento.
O capitalismo tem cada vez mais uma dominação complexa e um modo mais sofisticado de oprimir
as classes e as nações consideradas inferiores (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 41), assim, na visão do capitalismo
atual, “a errância, a ausência de domicílio, o desemprego, a incapacidade de participação nas sociedades de
consumo” trazem à tona a exclusão do mercado formal e “o sedentarismo da permanência sob as pontes, as
ruas, as calçadas, as estações de metrô e os bancos das praças públicas” (SANTOS, 2016, p. 68).
Nesse sentido, ao buscar-se uma segurança para as classes dominantes em relação aos sedentários
permanentes, citados acima, renegam-se os direitos dos demais indivíduos, rompem-se os ideiais de
solidariedade e os vínculos sociais, e todo aquele que é considerado perigoso ou diferente, é excluído,
renegado, aniquilado (RUBIO, 2014, p. 81).
Assim,
a institucionalização/positivação jurídico-normativa de valores que se materializam
mediante formas de repressão político-jurídica ao tipo do pastor-nômadecosmopolita-imigrante tem sua origem no rechaço deste modo-de-ser do
camponês-sedentário-nacionalista. É a materialização jurídica do rechaço do
“outro”, do “diferente”, por aqueles que têm pretensões de constituir um mundo
sobre bases estritamente igualitárias exclusivistas. O “mau” a ser reprimido,
punido, é o de fora, o estrangeiro, o outro diferente que causa temor por ocupar os
espaços dos nacionais-sedentários que não saem do seu lugar e tampouco quebram
seus laços de origem com a terra natal, e que por isto são os “bons” que merecem
ser protegidos nesta relação (SANTOS, 2016, p. 73 e 74).
As políticas migratórias se tornam parte desta estrutura de segurança nacional e proteção dos
“bons”, de modo que se desenvolvem tecnologias cada vez mais avançadas para controlar as fronteiras e
manter os estrangeiros “fora”, pois estes são vistos como uma ameaça, no sentido de poderem estar ligados
ao terrorismo internacional, ao narcotráfico, ou à delinquência de modo geral. Além disso, a ameaça é vista
também como relacionada à cultura ou as formas de vida do país receptor, sendo que os “nacionais” temem
que os estrangeiros mantenham seus hábitos, sua língua e sua religião, podendo mesclá-los ou subjugar a
cultura predominante do país (SANTOS, 2016, p. 39).
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No entanto, quando a repressão aos indivíduos estrangeiros falha, ou é amenizada, entram em cena
os meios de comunicação e de difusão de ideais hegemônicos Ocidentalizados, de modo que a democracia
torna-se um produto de mercado, e é utilizada para dar a falsa impressão de que através dela todos os
indivíduos são integrados, mesmo quando estejam excluídos do exercício do poder político e democrático
(RUBIO, 2014, p. 108 e 109).
A busca de entender-se o voto como ideal de perfeição transforma a política em uma cota de poder
e as eleições em operações de mercado, assim, “o quantitativo (o número de votos) passa a ser mais
importante que o qualitativo (os conteúdos dos programas políticos e das reivindicações e demandas
populares)”. Dessa forma, a cidadania acaba mandando apenas simbolicamente, pois com o esvaziamento de
conteúdo do papel dos cidadãos, o poder político passa a ser exclusivo das instituições que representam o
Estado, sendo que “o exemplo mais grotesco de simplificação é aquele em que só representam a democracia o
voto e as eleições” (RUBIO, 2014, p. 111 a 116).
É necessário, portanto, encontrar-se um modo de preservar os direitos das pessoas
independentemente da pertença ou não ao papel de cidadão de um Estado soberano, o que já se vem
tentando fazer através dos direitos humanos que são invocados para preencher o vazio deixado pelos projetos
emancipatórios ao longo da história (SANTOS, 2004, p. 240).
Deve-se perceber, também, que são as relações e práticas pessoais e sociais, sejam elas jurídicas ou
não, que “nos dão a justa medida se fazemos ou não fazemos direitos humanos, se estamos construindo
processos a partir de relações baixo dinâmicas de reconhecimento, respeito, e inclusão ou através de
dinâmicas de império, dominação e exclusão” (RUBIO, 2014, p. 128).
Rubio (2014, p. 125 e 126) traz uma verdade bastante perturbadora no que diz respeito aos direitos
humanos, visto que, para ele, tem-se uma concepção pós-violatória dos direitos humanos - a qual
“circunscrita a esfera de sua reivindicação judicial” -, onde se ignora ou faz pouco caso da etapa préviolatória, de modo que “fica a impressão de que os direitos humanos só existem quando já foram violados,
não importando aquela dimensão da realidade que os constrói ou destrói antes da atuação do Estado”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir deste ensaio pode-se compreender que o conceito de cidadão afeta o controle da
subjetividade cultural e dos direitos humanos frente as relações inter-territoriais, pois a partir da
consagração de certos indivíduos dentro desta definição de cidadania – que leva em conta o local de
nascimento ou consanguinidade -, os que ficam de fora acabam excluídos e perdem sua identidade, tanto
pessoal quanto cultural, visto que se fortificam, cada vez mais, ideias de “dentro” e “fora” em relação ao
Estado e o conceito de cidadão se fortalece através do rechaço ao seu oposto, que é o estrangeiro.
Além disso, o mercado também influencia na distribuição ou contenção dos direitos humanos entre
os sujeitos, ao fazer com que aqueles que não satisfaçam suas expectativas sejam considerados incapazes de
contribuir com a civilização moderna, sendo que para sentirem-se parte do sistema, acabam se deixando
moldar por meio do despojamento de suas características de sujeito, perdendo a autonomia e a criatividade e
executando somente aquilo que já foi previsto pelo próprio mercado.
Ademais, os migrantes são recepcionados em territórios desconhecidos por eles a partir de uma
lógica assimilacionista que busca a adequação de seus comportamentos aos costumes do território em que
adentram, abandonando suas próprias práticas culturais.
Desta forma, compreende-se que o papel dos direitos humanos na proteção e garantia da
subjetividade individual é o de garantir que as diferenças sociais, culturais, religiosas e regionais sejam
respeitadas, garantindo reconhecimento e segurança aos indivíduos.
REFERÊNCIAS
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Claudio de Cicco e Maria Celeste C. J. Santos; revisão técnica: João Ferreira. - Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 4ª edição, 1994.
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modernas e a necessidade de um paradigma de responsabilidades comuns. In: CAMPUZANO, Alfonso de
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"Eu sei tudo”: a figura feminina na sua primeira edição
Marília Guaragni de Almeida*
Resumo: A presente comunicação enquadra-se no espaço de pesquisa referente a escritas e leituras, dentro
do âmbito da imprensa feminina na modernidade, ao perscrutar a presença das mulheres em uma revista
brasileira. Tem-se então uma análise da primeira edição da revista brasileira “Eu Sei Tudo”, com circulação
em junho de 1917 em todo o Brasil, voltada a observação da figura da mulher e de como os magazines
buscavam atingir o público feminino. Assim, o trabalho tem o objetivo de problematizar as discussões de
gênero no início do século XX, momento crucial no desenvolvimento das ideias feminista e no ganho de força
dos movimentos em prol da reivindicação de direitos. Por se tratar de um período marcado pelo
patriarcalismo e ao homem como principal membro da sociedade, a delimitação se dará sobre a figura das
mulheres em matérias, anúncios, textos, notícias, receitas, desenhos e imagens que vieram a retratá-las. Com
isso, a ênfase principal e a figura da mulher, no contexto da época, e de como os avanços no Movimento
Feminista eram mostrados nas mais de 140 páginas da primeira edição. Como também, o recebimento por
meio do público e a própria formulação das pautas a serem circuladas nas edições seguintes.
INTRODUÇÃO
O presente texto tem como objetivo contribuir para os estudos que abordam sobre a História das
Mulheres, com ênfase no feminino frente aos avanços do feminismo no início do século XX, através da
revista brasileira Eu Sei Tudo. Conhecida como “Magazine mensal ilustrado”, foi lançada na cidade do Rio de
Janeiro, no ano de 1917, pela Companhia Editora Americana 1. Sua sede se encontrava no nº 12 da Praça
Gonçalves Dias, com a organização e gerencial de Arthur Brandão, que assinava como responsável pelas
matérias presentes no magazine.
Assim, o escopo deste trabalho busca analisar a primeira edição da Revista Eu Sei Tudo, qual seja, a
001 de 1917 no mês de junho, que circulou até o ano de 1958, sendo vendida semanalmente ao preço de 60
francos para assinantes de fora do Brasil, e 2$000 reis em circulação nacional, mensal, e 25$000 reis a anual
(passando a ser 30$000 após a 3ª edição). Sua paginação variava de 100 a 150 páginas, sendo que a referida
edição continha 150 páginas. A revista buscava falar de assuntos variados, e os mais corriqueiros encontrados
nas páginas são tecnologias, fatos históricos, ciências, avanços e informações de nível nacional e
internacional. O título da revista já informava aos leitores o que eles poderiam esperar, saber de tudo a
respeito dos mais variados assuntos e temas que viessem a ser interessantes, todos dispostos no mesmo
periódico mensal.
A proposta aqui disposta é a de examinar como a primeira edição da revista retratou e buscou
informar os indivíduos do sexo feminino sobre os avanços feministas de forma nacional e internacional.
Ainda, como esta edição de número 001, investigou-se através das páginas como o magazine perscrutou
cativar o sexo feminino por meio de matérias, anúncios, histórias, imagens, contos, poemas, sessões e fatos
que refletiam a presença feminina no momento histórico2 da circulação da primeira edição.
Graduada em história pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), atualmente mestranda do Programa de Pós-Graduação em
História pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Email: mariliaalmeida_10@hotmail.com.
1 Importante editora do período, responsável pela publicação e edição da revista editava a Revista da Semana/A Scena Muda a primeira
revista sobre cinema do país. Outro fator crucial da editora e a forte presença e influência dos Estados Unidos da América nas
publicações.
2 Salienta-se que é obrigatória uma visão voltada ao contexto histórico da época, neste momento os ideais feministas ganhavam força por
se tratar da Primeira Onda, ou seja, as primeiras reinvindicações das mulheres frete a igualdade de gênero e muitas destas informações
chegavam tempos depois no Brasil, como também eram tratadas conforme a vontade do corpo editorial e do editor chefe.
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Tem-se também o diferencial das cores, visto que a revista se auto-intitulava multicolorida, pois
trazia suas capas cheias de cores, com imagens nítidas e desenhos, mas ainda fazia uso das páginas pretas e
brancas, nas dimensões 26,5 x 17,5 cm, encadernadas em brochura e impressas em papel de ótima qualidade.
As fontes utilizadas encontram-se disponíveis para todo e qualquer indivíduo que se interessar pelos
fatos no site da Biblioteca Nacional Digital, com o acervo completo da Revista Eu Sei Tudo3. A partir deste
ponto, foi observado o teor da primeira edição, como a forma que a escrita, os fatos, as matérias e as
informações eram direcionadas à mulher. Catalogaram-se todas e quaisquer informações que se
direcionassem ao sexo feminino, sendo de caráter informativo ou apenas para entretenimento.
Autores que fazem parte do referencial teórico buscam caminhar e fomentar a interpretação dos fatos
presentes, de forma que suas linhas proporcionam um modo a entender como a figura feminina era retratada
na época. Para isso, utiliza-se Foucalt (1978), Pedro (2008), Burke (2006), Bardin (2011), Pollak (1992),
Aleksiévitch (2016), entre outros, para análise de conteúdo, relações de poder, presença da mulher na
sociedade, gênero com categoria de análise, memória, história cultural, cultura presente na época, a maneira
como ela era retratada nas páginas das revistas e sucessivamente absorvida por leitores de ambos os sexos.
À vista disso, os resultados obtidos têm o retrato da mulher não só como dona de casa ou responsável
pela família. Destarte, nesse momento (ano de 1917), a mulher interessa-se por conhecimentos gerais,
informações, fatos históricos, como ainda quer saber das conquistas que o movimento feminista vem
realizando. Reverbera que o momento não é o mais favorável à figura feminina, mas retratá-la de modo não
somente como sexo frágil é considerado um avanço significativo. Outro ponto é a presença de notícias,
imagens e fatos direcionados aos dois sexos no mesmo magazine, mostrando que a representatividade
feminina era um importante meio de se conquistar mais leitores e assinantes. Outrossim, aumentar o
interesse por diversos assuntos, não somente com os já tratados com femininos, e assim acrescer o campo de
conhecimento das mulheres e fomentar a busca por uma igualdade, indo de encontro ao sistema patriarcal 4
que se encontravam.
A MULHER PELAS PÁGINAS DA EU SEI TUDO
Logo ao abrir as primeiras páginas da revista, encontra-se um emaranhado de informações, como
também uma escrita refinada se utilizando do português correto e da época. Visando o público feminino,
onde os editores supunham que as mulheres não se interessariam por assuntos científicos, a revista buscou
explorar temas femininos voltados ao lar, ao belo, a família, ao amor, às relações conjugais, educação dos
filhos, trajes, penteados, comportamento, maneiras de portar-se, e afins.
A edição número 001 traz a figura feminina mostrando interesse por poesia, cantos, narrativas
fictícias, moda, apetrechos, produtos de beleza, sendo que a mulher sempre era mostrada com roupas da
moda da época. Seja em imagens ou em caricaturas, a beleza era ponto importante da revista.
3https://bndigital.bn.gov.br/artigos/eu-sei-tudo-magazine-mensal-illustrado/
acessado em 08 de set de 2018.
O Patriarcalismo tem como definição ideológica a supremacia do homem nas relações sociais, o homem como detentor e responsável
do sustento familiar. O termo patriarcalismo vem do grego pater, ou seja, pai. Ver: SAFFIOTI, Heleieth I. Gênero, patriarcado, violência
(2011).
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Figura 2 - Caricatura das vestimentas da época
Fonte – Revista EU SEI TUDO (1917) – Edição nº001
Direcionado exclusivamente a figura da mulher, tinha-se a sessão “Dedos de Fada: Crochet e
Bordados” que apareceu na primeira edição e constantemente se fez presente para informar e ensinar novos
pontos para as damas da sociedade. Neste aspecto, a figura da mulher alinha-se à feminilidade e à delicadeza
de um ponto de bordado e crochet. A própria sessão já reflete a forma como se via a mulher neste momento
histórico. Foucault (1979) direciona-se principalmente às relações de poder, pois para o autor o poder
reprime, e ao mesmo tempo produz efeitos de saber e verdade, que refletem o que a sociedade está
acostumada a reproduzir, muitas vezes aceitando algo que reprime, e se torna verdade pelo número de vezes
que é repetido:
Trata-se (...) de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas
ramificações(...) captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e
locais, principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que
organizam e delimitam (...)Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada
vez menos jurídica de seu exercício. (FOUCAULT, 1979, p.182).
A ideia trabalhada por Michel Foucault (1979) acaba por ser refletida em uma das matérias
encontradas nas páginas 18, 31, 37, 41, 70 e 74, que mostram a mulher em diferentes faces aplicadas a
distintos tipos de relação de poder. Dentre as páginas supracitadas, duas refletem a contextualização
histórica da história das mulheres. Intitulada: “As consequências da guerra – Um novo perigo” mostrava as
mulheres participando da Primeira Guerra Mundial, retratadas como um perigo presente.
Quando se dizia < Temos homem ao leme > isso significava que todos podiam
dormir sossegadamente porquanto a direcção estavam garantida e não havia risco
de desnorteio ou desorientação. Mas que dizer agora que tantas embarcações, sobre
tudo nos serviços fluviais de França e de Inglaterra estão entregues a equipagens
femininas? (EU SEI TUDO, 1917, p.18).
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Os editores colocam a presença feminina em face de importantes campos de guerra como fator de
risco, e que acabavam por gerar uma maior preocupação e mobilização dos homens, para caso de alguma das
mulheres agir de forma errada. Ressalta-se que a presença feminina sempre se fez presente em inúmeras
atividades da história. A Revolução Francesa, por exemplo, é um dos maiores marcos da importante presença
das mulheres. Porém, poucos são os estudos que falam a respeito.
A citação referida anteriormente coloca com grau de preocupação e desconfiança a presença da
mulher na Primeira Guerra Mundial, passando à população que elas não seriam tão capazes como se um
homem estivesse nesta posição. Todavia, ao continuar a leitura da matéria, encontra-se um parágrafo que
coloca a mulher como proativa e inteligente, conquistando seu espaço facilmente e ganhando
reconhecimento em todas as posições que fossem efetivadas.
Ora, aconteceu depois que a guerra se prolongou muito além do que haviam
imaginado os mais pessimistas. Quase tez anos se passaram... Durante esse tempo
as mulheres invadiram todos os ramos de atividade e, com inteligência admirável,
com facilidade de assimilação maravilhosa, ganharam em todas essas profissões
novas para seu seco, pericia irrepenhensivel. Agora eil-ashabituadas a viver como
seu trabalho bem remunerado, a gosar a independência que lhe vem de honorários
fartos, ganhos com seus próprios esforços... Estarão ellas dispostas a abrir mão
subitamente de todas essas vantagens quando terminada a guerra, os milhões de
operários hoje mobilisados nas linhas de frente voltarem à vida civil? (EU SEI
TUDO, 1917, p.18).
Ao mesmo tempo em que coloca a mulher como peça importante e capaz, critica-se a volta desta à
sociedade no pós-guerra, pois é neste meio que se cria a competitividade entre os sexos ao ter a disputa pela
mesma vaga.
Figura 3 - Mulheres ao leme
Fonte – Revista EU SEI TUDO (1917) – Edição nº001
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Figura 4 - Escola de motorneiras em Giasgow
Fonte - Revista EU SEI TUDO (1917) – Edição nº001
Figura 5 - Uma equipe de <impressoras> em Londres. (...) Hoje todos esses serviços estão
aos cuidados de mulheres (1917)
Fonte - Revista EU SEI TUDO (1917) – Edição nº001
Neste momento histórico, as mulheres assumiram responsabilidades que antes não lhes cabia. E
como consequência, cerca de 20% da força de trabalho da indústria manufatureira passou a ser feminina,
sendo que isso aconteceu ao realizarem a substituição da mão de obra masculina, que foi a guerra, para a
feminina. Ademais, tem-se números de mais de 21 mil mulheres que serviram aos seus respectivos países.
Fatos como a presença destas nos fronts, sendo como enfermeiras, fuzileiras, soldadas ou substituindo os
homens na indústria, foram fator importante e crucial para que se aprofundasse a busca pelo sufrágio
universal, e assim conquistarem mais direitos frente à sociedade. 5
Por se tratar de uma revista com influência Americana, afinal fora organizada e comercializada pela
Companhia Editora Americana, matérias como estas acabavam por ter um grande impacto na sociedade
brasileira. Além do mais, serviam para contrapor, e até mesmo diminuir a expectativa colocada nas matérias
e em suas informações.
Ver: Lettie Gavin na obra American Women in World War I: TheyAlsoServed (Mulheres Americanas na Primeira Guerra Mundial: Elas
Também Serviram, em tradução livre), 2006.
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Figura 6 - A elegância masculina no início do século XX
Fonte - Revista EU SEI TUDO (1917) – Edição nº001
Em caixa alta, bem ao centro, e com uma imagem de homens bem trajados, a revista colocava: “O
costume Masculino Ideal”, definindo ao longo do corpo do texto, frases como: “A moda masculina, ao
contrario da que embeleza e arruína o sexo frágil, caractetiza-se pela uniformidade” (EU SEI TUDO, 1917, p.
37). Assim, tira-se o foco das mulheres presentes na guerra, e o coloca novamente em beleza e vestimentas.
Outro ponto que a revista carrega, é o de classificar a mulher como esposa: “A esposa no oriente e no
ocidente”, como também: “Qual a melhor compreensão dos deveres conjugares?”. Na matéria, o tema
principal é o casamento e as causas variadas que levam à falência do mesmo. Fica subentendido que a causa
principal de um relacionamento falho seja de toda responsabilidade da mulher, muito por seu
comportamento, modo de vestir, atitudes e afins. “Ora, diante d’essas verdades, se atendermos a que toda a
afeição sentimental tem por base a admiração parece claro que o melhor meio de defender o casamento é
manter e alimentar a beleza.” (EU SEI TUDO, 1917, p.44).
E ainda:
E isso do que menos se cuida e cabe a mulher a maior responsabilidade neste erro.
Desde que se casa, a mulher se considera dispensada de sua taceirice para com o
marido: continua a apurar os cuidados de sua toiletie para se apresentar na rua e na
sociedade; ao marido apresenta-se de qualquer modo, imaginando que ele rem
obrigação de continuar a adora-la seja como for. Muito mais inteligente é o critério
da oriental que casada julga-se mais do que nunca obrigada a encantar o
companheiro da sua existência (EU SEI TUDO, 1917, p.41).
Ao analisar este trecho da revista, percebe-se como a mulher era tida como inferior e totalmente
voltada ao marido. Neste tocante, Bourdieu (2010) coloca que se trata de uma relação social que oferece a
lógica da compreensão da dominação masculina para com a feminina, em prol de um principio préestabelecido pela sociedade patriarcal, onde o princípio simbólico é reconhecido tanto pelo dominante, o
homem, como pelo dominado, a mulher. De tal forma, na referida citação do magazine, percebe-se que a
mulher é tida como dominada, e os fatos que levam ao fracasso de um casamento se relacionam
exclusivamente à fisionomia ou cuidados que a mesma tem consigo.
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A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e
condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrecendo-a
em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria de uma construção social
naturalizada (BOURDIEU, 2010, p.32).
A ideia de Bourdieu é importante para que se possa compreender o grupo social no qual a revista
circulava. Deste modo, tem-se que mesmo com algumas notícias, não tantas como as voltadas ao público
masculino, se constata que informações sobre as mulheres se faziam presentes nas páginas da revista Eu Sei
Tudo. Em uma sociedade onde o sexo masculino era o detentor da força econômica e social, circular notícias,
não somente sobre beleza, comportamento e entretenimento para o publico feminino é um considerável
avanço.
Por se tratar de uma análise de conteúdo, é necessário foco nas mensagens, na escrita e no gênero
empregado na narrativa, para assim compreender o sujeito que será tratado nas matérias. Isso ocorre porque
em muitas delas não se emprega o “ele” diretamente, deixando aberta a possibilidade de a notícia ser tanto
para o sexo feminino, como para o masculino. Em meados do século XX, se ter matérias sem o emprego do
sujeito é uma forte ferramenta para que presença feminina seja pontual e evidente em todos os âmbitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Isto posto, a presente comunicação analisou a primeira edição da revista Eu Sei Tudo e buscou
observar a presença de material que pudesse fomentar e aumentar o campo da História das Mulheres.
Através de matérias, informativos, anúncios, textos, crônicas, narrativas, imagens e mais tudo que pudesse
apresentar fatores que identificassem e direcionassem a figura feminina.
Posteriormente, interpretou-se que o almanaque6 visava o publico feminino sim, ora voltando à sua
representatividade perante o mundo e o Brasil, ora buscando colocar a mulher como submissa e totalmente
dependente do marido. Os dois lados aqui descritos qualificam a política desenvolvida pelo editorial, afinal,
as duas formar de explicitar a mulher vendiam exemplares, e muito disso acontecia por ser esse o padrão da
mulher que consumia o magazine.
Ao referir-se a um padrão de mulher da época, é necessário observar-se que a sociedade era
patriarcal e capitalista. Os meios midiáticos, como jornais, magazines, folhetos e almanaques possuíam a
finalidade de grande comercialização, e as pessoas que os assinavam eram de classe média, média alta, e alta.
Desse modo, as mulheres que possuíam contato com tais informações não se viam influenciadas pela
necessidade de, por exemplo, receber o mesmo que os homens ao realizar a mesma função. Também, o
sufrágio universal7 não era tido como algo que pudesse modificar a vida das mesmas.
Entretanto, atingir as páginas de uma revista nacionalmente conhecida com temáticas variadas, e até
mesmo matérias voltadas exclusivamente para as mulheres e seus feitos é algo consideravelmente
importante. Por se tratar de um periódico mensal, os leitores esperavam o mês para informar-se sobre as
notícias do Brasil e do mundo, e as mulheres faziam parte deste grupo. Além de acompanharem os fatos
narrados, por ser uma revista ilustrada, puderam acompanhar através das imagens os feitos e conquistas das
mulheres na história.
O presente trabalho busca analisar apenas a revista de número 1, tendo em vista que a mesma acaba
por retratar em outros momentos da história a presença feminina. É um mero recorte do mês de junho de
1917, sendo que a revista avançara até 1958. Observa-se que o voto feminino acaba por acontecer enquanto a
revista ainda circulava, como tantos outros avanços que favoreceram e auxiliaram na propagação dos ideais
feministas trazidos na primeira onda, passando pela segunda 8 e tendo algum efeito na história.
Termo bastante utilizado para referir-se a revista Eu Sei Tudo durante o período de circulação.
No Brasil as mulheres só puderam exercer o direito ao voto no ano de 1932, e nos EUA 1920.
8 A Segunda Onda é datada na década de 1960, dois anos após o fim da revista.
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São poucos os estudos que analisam a revista aqui citada, sendo que a primeira edição foi a
introdução de um estilo diferente de alastramento da informação, pois além de retratar assuntos variados, a
revista buscava mostrar por intermédio de imagens a realidade vivida pelo mundo. Também as ideias
desenvolvidas no corpo do texto fazem parte de uma pesquisa de Mestrado, inserindo-se na grande área da
cultura com ênfase no debate de gênero e feminismo através das páginas da revista Eu Sei Tudo, com a
análise da influência deste meio de informação na vida das mulheres que se atualizavam através do magazine
do ano de 1917.
Aponta-se que foi respeitada a ortografia vigente no período da publicação das revistas nas citações
diretas e indiretas, para que se pudesse interpretar fielmente a linguagem utilizada ao público. Com isso,
tem-se uma maior proximidade com as falas e mensagens direcionadas ao grupo feminino.
REFERÊNCIAS
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A construção da identidade friulana na Itália e no Brasil (RS)
Marinilse Marina Busato1
Resumo: O artigo busca, fazer uma breve análise sobre a conflituosa região italiana de tríplice fronteira do
Friuli Venezia Giulia, que sofria perante as disputas territoriais em prol da proximidade fronteiriça com
demais territórios, levando a insatisfação populacional, principalmente no que tange a cobrança de altos
valores de impostos, a dificuldade em adquirir terra, e, consequentemente, o empobrecimento do território.
Este contexto, associado ao movimento do Risorgimento que buscava impulsionar a população italiana para
uma retomada das raízes romanas, resultou através dos esforços da dinastia de Savoia, na unificação da
Itália, que mesmo após a centralização do poder, não apresentou melhorias significativas. Assim, o sonho da
propriedade da terra, aliado a propaganda emigracionista para o Brasil, levou muitos italianos a darem início
ao abandono da pátria, e a consequente emigração em massa para o Rio Grande do Sul, com ênfase no
período de 1876-1901.
Palavras-chave: Itália. Friuli Venezia Giulia. Emigração. Brasil
The construction of friulian identity in Italy and Brazil (RS)
Abstract: The article seeks to make a brief analysis of the conflictive Italian triple border region of Friuli
Venezia Giulia, which suffered from territorial disputes in favor of border proximity with other territories,
leading to population dissatisfaction, especially with regard to the collection of high values of taxes, the
difficulty in acquiring land, and, consequently, the impoverishment of the territory. This context, associated
with the Risorgimento movement that sought to boost the Italian population for a revival of the Roman roots,
resulted in the efforts of the Savoia dynasty, in the unification of Italy, that even after the centralization of
power, did not show significant improvements. Thus, the dream of land ownership, together with the
emigrationist propaganda for Brazil, led many Italians to start abandoning their homeland, and the
consequent mass emigration to Rio Grande do Sul, with emphasis on the period of 1876-1901.
Key words: Italy. Friuli Venezia Giulia. Emigration. Brazil
Introdução
A Itália nos séculos XIV e XV, era dividida em vários reinos que eram Estados independentes,
também chamados de cidades-Estados que guerreavam entre si, visto que durante o período medieval as
cidades já eram importantes centros mercantis. Dessa forma, a Península era dividida e governada por
famílias da realeza francesa e austríaca, por nobres italianos, e em parte pelos Estados Papais, que exerciam
forte influência perante a população, além do Reino da Sicília (Casa de Savoia 2). Neste sentido, é importante
frisarmos que as monarquias também eram, e em alguns casos continuam sendo sistemas políticos, tendo o
monarca como líder do Estado.
Portanto, apesar da Península Itálica ser considerada para o período rica e populosa, enfrentava
sérios problemas de divisão territorial e consequentemente de identidade, assim, não havia uma unidade
propriamente dita, pois variavam em cada região, desde as leis que divergiam, assim como o idioma, a moeda
e a política. “Importante destacar, desse modo, que a Itália era então conhecida apenas como uma expressão
geográfica” (CARNIERI, 2013, p. 24), e não como uma unidade.
Cidades importantes como Veneza, Pisa, Gênova, Milão e Florença adquiriram sua independência
econômica, e assim ampliaram sua influência e capital. É pertinente salientarmos que muitas famílias, entre
elas os Médici, enriqueceram em função da manufatura, exportação e do comércio no Mediterrâneo,
Doutoranda em História pela Universidade de Passo Fundo-UPF. Bolsista Fapergs.
E-mail: mcbbusato@gmail.com. Neste breve artigo comenta-se superficialmente sobre questões que estão sendo abordados de forma
profunda na tese de doutorado.
2 O termo Casa de Savoia, pode ser escrito como Casa di Savoia, em italiano, ou em alguns casos Casa de Saboia, optamos por Casa de
Savoia.
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formando dinastias locais que expandiram-se para várias partes da Europa, seja pela via comercial ou
matrimonial, como foi o caso de Catarina di Medici 3 coroada rainha em função do casamento com o rei da
França Henrique II. Portanto, as disputas para controle comercial, territorial e consequentemente por poder
e influência eram bastante comuns e significativas, dividindo ainda mais a Península. Este fator associado as
diversas invasões de outros povos, principalmente em função das fronteiras próximas e domínios de
território, transformaram a Itália em um verdadeiro mosaico com distintas culturas e sentimentos diversos
de pertencimento.
Além dos conflitos internos, a Itália lutava contra as invasões francesa e espanhola. Inicialmente
foram obrigados a submissão da Espanha, entre 1559-1713, mas devido a Guerra da Sucessão Espanhola, a
Áustria passa a dominar parte do território italiano. Ainda, em consequência das Guerras Napoleônicas, o
norte e o centro da Itália foram invadidos, dessa forma:
A França pós-revolucionária do Diretório, já envolvida em um projeto
expansionista napoleônico, invadirá a cidade de Veneza em 1797, dividindo o
território do norte da Península Itálica com o Império Austríaco. No período que se
segue até o Congresso de Viena (1815), as dominações francesas e austríacas
suceder-se-ão na região setentrional italiana, tendo, a figura do invasor, ora a
imagem dos departamentos franceses, ora das províncias austríacas. A partir de
1815, o Império Habsburgo consolidar-se-á como força dominante na região,
assumindo a administração do norte peninsular até a vitória do projeto de
unificação da casa de Savoia, em 1866 (BENEDUZI, 2011, p. 33).
Com o passar dos séculos e com a evolução da tecnologia marítima, outras partes da Europa
passaram a aventurar-se em alto mar, mas focando em cruzar o Atlântico, e assim competir economicamente
com a Itália, dessa forma, a Península inicia um processo de pauperização em relação a população
campesina, e consequentemente, a proximidade fronteiriça permitiu diversas invasões e domínios
territoriais, especialmente nas regiões do norte da Itália. À vista disso, suas repúblicas perderam a autonomia
política, já que as regiões italianas passaram a ser disputadas com maior intensidade, “na verdade, a
península se tornou um território colonial das potências Imperiais do continente” (CARNIERI, 2013 p. 26).
Portanto além dos conflitos internos, havia a problemática de controle fronteiriço, ou seja, a Itália
não conseguia resolver as disputas territoriais com outros povos, sendo que a fronteira sempre foi destaque
de conflitos. Referente a definição de fronteira, Lia Osório Machado, afirma que “a fronteira está orientada
“para fora” (forças centrífugas), enquanto os limites estão orientados “para dentro” (forças centrípetas). A
fronteira é considerada uma fonte de perigo ou ameaça porque pode desenvolver interesses distintos aos do
governo central” (MACHADO, 1998, p. 2). Assim, o contexto político que definia a Europa era de disputas.
Em fins da Idade Média e início da Idade Moderna, as monarquias da França,
de Portugal e da Espanha procuraram reforçar seu domínio e seu poder diante
das particularidades regionais, dos nobres e de outras forças que se opunham à
centralização administrativa. Na Alemanha e, em especial, na Itália, contudo,
esse processo esbarrou em resistências muito maiores de cidades e aristocracias
mercantis ricas e poderosas, o que ajuda a compreender como a Itália continuou
dividida em vários Estados rivais (CARNIERI, 2013, p. 25).
Por consequência, o interesse na unificação da Itália pala casa de Savoia, aliado entre outras
questões, a determinados interesses políticos e econômicos, levou à ênfase e criação de um sentimento
nacionalista. Fato que não ocorreu de imediato, até mesmo em função do sentimento de pertencimento
regional, mas para tanto, iniciou-se um processo de ressurgimento das veias históricas, comparando os
3
Medici –escrita conforme o idioma italiano.
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nascidos em solo italiano com os romanos e seus feitos no passado remoto, de vitórias e resistências, trazidos
a luz pela burguesia intelectual italiana do século XIX, para assim, fomentar o discurso de nação.
Neste sentido dá-se origem ao movimento que conhecemos como Risorgimento. Independente dos
esforços da Itália em promulgar um sentimento nacional, a população das regiões com suas complexas
particularidades, iniciavam em pouco tempo após a unificação, uma grande emigração em direção ao Brasil,
esse movimento também pode ser entendido a primeiro momento pelo incentivo da Itália na saída dos
emigrantes, também como uma revolução da própria população por melhores condições financeiras, ou
ainda, pela descrença em melhorias socioeconômicas a curto prazo, mesmo após a unificação. Em nosso
recorte de estudo analisaremos brevemente a questão da emigração friulana para o Rio Grande do Sul, o
Friuli Venezia Giulia foi selecionado por suas características especiais.
1.2 Contexto territorial do Friuli Venezia Giulia
Sabe-se que a região do Friuli foi anexada oficialmente ao Reino da Itália, em 1866, mas que este
local engloba muitas particularidades se comparada com as demais regiões da Itália recém unificada, pois o
território atualmente nomeado de Friuli Venezia Giulia, está localizado ao nordeste da Itália. Sendo limitado
ao norte pela Áustria, a leste pela Eslovênia, ao sul é banhada pelo mar Adriático, e a oeste delimitado pelo
Vêneto (Itália).
Portanto, no extremo norte da região encontra-se a tríplice fronteira: Itália- Áustria- Eslovênia. O
nome dessa região indica uma composição de duas áreas geográficas distintas, mas ambas derivam do latim
"gens Iulia" (a família à qual Júlio César pertence). Friuli originalmente 'Forum Julii' era o nome de um
centro comercial, construído pelos romanos, na atual cidade de Civedale. Venezia Giulia, por outro lado, é
um nome recente provindo dos venezianos, já que o Friuli pertencia a República de Veneza. Esta região
também era chamada de Trivêneto (Três Venezas), pois mesmo durante determinados períodos pertencer ao
Império austríaco eram assim chamadas como forma de ressaltar uma suposta identidade italiana. Bertonha,
referente ao nacionalismo explana:
O Trentino era uma região basicamente camponesa, com forte componente
conservador, enquanto a de Trieste girava em torno do porto e do seu hinterland
eslavo. Os italianos tinham direitos e representação regional, mas muitos se viam
ameaçados pela crescente germanização ou eslavização dessas províncias e alguns
desejavam a incorporação ao Reino da Itália, enquanto outros acreditavam que era
possível ser italiano e, ao mesmo tempo, súdito austríaco (BERTONHA, 2018, p.
109).
Após a Primeira Guerra Mundial, o território do Friuli Venezia Giulia fazia parte da região do Vêneto,
juntamente com algumas áreas da antiga Iugoslávia. Após a Segunda Guerra Mundial, partes do território de
Veneza Giulia foram perdidos, e a região do Friuli foi reunida com o que restava da mesma. A República de
Veneza, entre os séculos XV e XVI estendeu seus limites por toda a região do Vêneto (Bérgamo, Bréscia e
Mântua, na Lombardia, e Udine, no Friuli).
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Tabela 1: Divisão territorial 4
1815-1865: Todo o território que inclui as províncias atuais de Udine, Pordenone, Gorizia e Trieste
está sob domínio austríaco.
1866: Friuli italiano. O Friuli que se torna parte do Reino da Itália com o nome da província de
Udine inclui um vasto território desde o rio Livenza até o rio Judrio, desde o mar até Pontebba. Faz
fronteira a norte e a leste com os territórios austríacos de Klagenfurt, Plezzo, Tolmino, Gorizia. Para
o oeste com os territórios de Portogruaro, Oderzo, Conegliano, Vittorio Vêneto e Cadore.
1866: Friuli austríaco. As cidades de Gorizia, Gradisca, Cervignano, Aquileia, Aiello, Tarvisio, parte
de Pontebba ainda estão sob administração austríaca.
1919-1926: Após a I Guerra Mundial os territórios que haviam permanecido com a Áustria (Gorizia,
Tarvisio, Cervignano, Aquileia, etc.) tornam-se parte do Reino da Itália sob a província de Udine,
sendo rebatizada como Friuli. A província italiana de Trieste é uma administração independente a
partir de 1923.
1927: É estabelecida a província de Gorizia, que se separa de Udine. Inclui os territórios do distrito
de Monfalcone, e os do distrito de Idria. Nesta redistribuição do território para Udine os municípios
do distrito de Cervignano e o distrito de Tarvisio são confiados.
1947: Com o tratado de paz que concluiu a Segunda Guerra Mundial, as fronteiras nacionais são
retocadas em função da transferência de alguns territórios para a Iugoslávia. Como resultado, a
província pré-existente de Gorizia é modificada, o que reduz seu território. A partir desta data, até
hoje, ela inclui os municípios de Gorizia, Capriva, Cormons, Doberdob, Dolegna del Collio, Farra
d'Isonzo, Fogliano-Redipuglia, Gradisca, Grado, Mariano del Friuli, Medea, Monfalcone,
Moradabad, Mossa, Romans d'Isonzo, Ronche dos Legionários, Sagrado, San Canzian d'Isonzo, San
Floriano, San Lorenzo, San Pier d'Isonzo Savogna d'Isonzo Staranzano Turriaco Villesse. A
província de Udine permanece territorialmente inalterada.
1954: Define-se a província de Trieste, além do acordo assinado, a nível internacional, incluindo os
municípios de Duino-Aurisina, Monrupino, Muggia, San Dorligo della Valle Sgonico, assim como a
capital de Trieste.
1963: A partir da província de Udine municípios são destacados no Tagliamento direito para formar
a nova província de Pordenone, que inclui, além da cidade capital, também os municípios de
Andreis, Arba, Arzene, Aviano, Azzano X, Barcis, Brugnera, Budoia, Caneva, Casarsa della Delizia,
Castelnuovo del Friuli, Cavasso Nuovo, Chions, Cimolais, Claut, Clauzetto, Cordenons, Cordovado,
Erto e Casso, Fanna, Fiume Vêneto, Fontanafredda, Frisanco, Maniago, Meduno, Montereale,
Morsano al Tagliamento, Pasiano di Pordenone, Pravisdomini Roveredo em piano, Sacile, San
Giorgio della Richinvelda, San Martino al Tagliamento, San Quirino, San Vito al Tagliamento,
Sequals, Sesto al Reghena, Spilimbergo, Tramonti di Sopra, Tramonti di Sotto, Travesio, Vajont,
Valvasone, Vito d ' Asio, Vivaro, Zoppola.
Fonte: Archivio di Stato di Udine.
Disponível de forma pública em: http://www.friulinprin.beniculturali.it/ricerca.html#utilita. <Acesso em: 25
de out. de 2018>.
A questão do espaço entre o Friuli e Venezia Giulia, é uma divisão muito antiga, e as duas áreas foram
fundidas em uma região autônoma somente entre 1954 e 1975, em diferentes fases. Historicamente, a área
era uma terra onde se encontraram pessoas e culturas distintas, que entraram em confronto com identidades
étnicas e linguísticas. Ainda hoje na região fala-se muitas línguas: italiano, friulano, esloveno, alemão e
vêneto em Friuli, com o acréscimo do croata em Venezia Giulia. Ainda existem tensões e divergências sobre
os territórios que compõem a parte do Friuli, e de Venezia Giulia. Conforme explana Grossutti:
4
Tradução minha.
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A região central do Friuli (atual província de Udine) e Friuli Ocidental (atual
província de Podernone) foram anexadas à Itália em 1866, juntamente com o
Vêneto, e imediatamente após a Terceira Guerra de Independência, enquanto o
Friuli oriental (o chamado condado de Gorizia e Gradisca) permaneceu sujeito ao
império austro-húngaro até o final da Primeira Guerra Mundial. O primeiro
também é conhecido como Friuli “italiano”, o segundo como Friuli “austríaco”. Em
1968, da província de Udine se separou a parte da chamada “Destra Tagliamento”
(o Friuli ocidental) que se tornou a atual província de Podernone5 (GROSSUTTI,
2015, p. 106)
O autor ainda explica que as famílias que saíram da região do Friuli para o estado do Rio Grande do
Sul, são provenientes da parte do Friuli “italiano”, cuja população já era adepta a migrações internas,
principalmente pela proximidade fronteiriça. No caso do Friuli “italiano”, o território faz divisa com o
Vêneto, mas de qualquer maneira, analisando o espaço territorial da região – atualmente possui 7.845 Km² e
aproximadamente 1.213.532 mil habitantes, é relativamente pequeno. Assim as mesclas culturais com as
demais partes da região e fronteiras foram inevitáveis, tendo o maior destaque na questão linguística,
chamada de língua ou idioma friulano, que é uma mistura dos dialetos e/ou idiomas usados neste espaço,
que foi trazida pelos imigrantes deste contexto para o Brasil, e continua sendo usada nesta parte da Itália.
Vale ressaltar que existiram questões problemáticas na colonização do Rio Grande do Sul entre os grupos
vindos, especialmente em nosso estudo, das regiões do Friuli e Vêneto, pois a maioria dos friulanos
compreendia e falava o italiano usado no Vêneto, mas o contrário não era habitual, gerando muitas vezes,
situações conflituosas nas colônias.
Figura 1: Atual mapa do Friuli Venezia Giulia
Fonte: Diáriu de su movimentu linguìsticu.
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Tradução minha, o texto original está em italiano.
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Disponível de forma pública em: https://salimbasarda.net/ateras-limbas/sa-limba-friulana-finas-issa-cununu-standard-comunu/attachment/mapa-friuli. <Acesso em: 25 de out. de 2018>.
Consequentemente, os costumes da região são considerados uma colcha de retalhos. Portanto, após a
anexação destas regiões ao Reino da Itália (1866), Roma foi tomada pelo rei (1870), assim a unificação da
Península Itálica fundou-se em um único Estado. Desse modo, a anexação de Roma com o Reino da Itália
ocorre somente em 1870, em função da retirada das tropas francesas do solo italiano, salientando que neste
período ocorria a unificação alemã, assim os povos germânicos liderados pelo Reino da Prússia declaravam
guerra à França. Referente a análise do contexto europeu anterior e pós unificação e guerras, Bertonha
advoga:
Religião, posicionamento político e identidades regionais sempre foram elementos
que reforçavam ou relativizavam a nacional na maior parte dos casos conhecidos
historicamente e, (...) todos esses elementos estão presentes, ao lado de outros prémodernos, como a fidelidade monárquica ou à casa reinante. Trabalhá-los é o único
caminho de recuperar a trajetória dos trentinos e friulanos no Brasil (BERTONHA,
2018, p. 126).
Portanto, a população desta parte da península, que em tempos pertencia à Itália, e em outros à
Áustria, consequentemente possuía em evidência um sentimento mais regionalista do que nacional, até
mesmo em função do nacionalismo ser inicialmente trabalhado após todo o contexto da unificação. Assim,
imigrantes também da região do Friuli “italiano” seguiram caminho na grande emigração italiana para o
Brasil, em nosso caso de estudo, em específico para o Rio Grande do Sul, onde passaram a dividir novamente
território com os vizinhos vênetos - considerados em maior número na colonização do estado sulista, e em
menor número com os trentinos e demais italianos de outras áreas.
2. A emigração italiana para o Rio Grande do Sul
O maior fluxo emigratório para o Rio Grande do Sul abrange o período entre 1876 e 1901, em prol do
frágil quadro econômico e político da Itália, e associado a propaganda emigracionista para o Brasil, onde era
prometido principalmente terra para os imigrantes instalados no estado sulista. Porém, os imigrantes que
chegaram ao Brasil após 1854, a maioria vênetos, tiveram que pagar pelas terras adquiridas, ainda que, no
ano de 1867 tivesse sido criado um novo regulamento que estimulava a emigração mediante algumas
vantagens, entre elas o pagamento da terra que poderia ser feita em até dez anos, a gratuidade da viagem do
Rio de Janeiro até o lote colonial, além de auxílio para os recém-chegados e assistência médica e religiosa por
doze anos (HEREDIA, 2001).
Em função do grande número de imigrantes que se direcionava para a região Sul, o acordo foi
suspenso e manteve-se apenas o crédito para aquisição de terras e 15 dias de trabalho para a abertura de
estradas. Portanto, os interesses relativos à emigração para o Brasil possuíam características distintas. Em
São Paulo, a chegada de imigrantes italianos representava a substituição gradual da mão de obra escrava nas
lavouras de café. Já no Rio Grande do Sul, o processo foi colonizatório, ou seja, com o objetivo de formar, em
pequenos lotes, colônias agrícolas essenciais para a produção de gêneros alimentícios, além da defesa da
fronteira, e do “branqueamento” da população.
No caso específico da atual região do Friuli Venezia Giulia a possibilidade da emigração para a parte
sul do Brasil começa a ser anunciada por volta de 1872. Em função da resistência do governo austríaco em
aceitar, ou até mesmo incentivar a emigração desta parte do território para o Brasil, acaba que são os
friulanos da parte italiana envolvidos neste movimento além-mar (GROSSUTTI, 2013). É importante
destacarmos que tanto os imigrantes trentinos, quanto friulanos vieram em número muito inferior aos
imigrantes vênetos, “mesmo assim, eram numerosos o bastante para acrescentar um novo elemento de
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identidade ao complexo caleidoscópio da imigração italiana no Brasil” (BERTONHA, 2018, p. 108). Sendo
interessante os registros de saída dos friulanos em direção a América Latina.
Em 1878, de fato, nas colunas do “Boletim da Associação Agrária Friulana”,
Gabriele Luigi Pecile indica Ampezzo, Forni di Sopra, Buja, Gemona, Cimolais,
Frisanco, Cordenons, Fontanafredda, Rived`Arcano, Roveredo in Piano, Caneva e
Polcenigo entre os relativamente poucos municípios da então província de Udine,
que possuem emigrados no Brasil (...). Com o crescimento das próprias famílias,
com o nascimento dos filhos, os matrimônios de muitos destes e a criação de novas
famílias, os pioneiros e seus descendentes procuravam sempre mais ao norte, nas
zonas ainda não populadas, novas disponibilidades de terras para cultivar (...). A
procura de novas terras tinha encorajado boa parte dos agricultores friulanos a
alcançar o interior do Brasil, mas também da Argentina a partir de 1877
(GROSSUTTI, 2013, p. 4).
O maior desejo dos emigrados era: ser dono da sua terra. Ambição comum para a maioria dos povos,
mas muito difícil de ser realizada no contexto econômico europeu da época, os italianos percebiam que na
permanência na Itália, também aqueles com melhores condições financeiras corriam o risco da falência,
afinal uma das causas da imigração italiana: “non fu la miséria, ma la paura della miséria6” (GROSSUTTI,
2009, p. 1).
Portanto, observando as inúmeras particularidades do Friuli Venezia Giulia, buscamos acompanhar
em nosso estudo que está sendo desenvolvido, a trajetória de algumas famílias friulanas instaladas no Rio
Grande do Sul, pois acreditamos que a partir destas buscas é possível atingir um contexto muito mais amplo.
“Logo os laços parentais, consanguíneos ou não consanguíneos, amizades e alianças surgem como
fundamentais no processo de ocupação de novas frentes, na proliferação das unidades de produção e na
formação de novas comunidades” (VENDRAME, 2016, p. 206). As redes sociais que se formaram em torno
de determinadas famílias friulanas nos interessam para a compreensão de uma dinâmica muito mais ampla
que envolve desde questões políticas, econômicas, práticas sociais, crenças, até o estopim para conflitos
étnicos culturais que tiveram início desde a Europa. Em consequência, nossa análise pretende abranger
desde as complexidades do ponto de partida (Itália e suas divisões fronteiriças), até as adaptações ou
resistências que transcorreram inicialmente no Rio Grande do Sul.
Esta imigração em específico possui características distintas, no próprio processo da unificação e
criação de uma identidade italiana, quanto na construção desta identidade no estado sulista do Brasil. Assim,
pretendemos perceber os fatores que impulsionaram a saída de determinada leva de imigrantes da região do
Friuli “italiano”, até a instalação inicial em Bento Gonçalves que fazia parte da colônia Dona Isabel até
meados de 1890, e sua fixação na Linha Zamith, que configurou-se como distrito da localidade, rebatizado
como município de Monte Belo do Sul. Nos interessa observa como ocorriam as relações destes friulanos com
o restante dos italianos também instalados em Monte Belo do Sul, e alastrando-se para a colônia de Guaporé,
mas sempre em linhas distintas, já que a ocupação do espaço ocorreu de forma a separar os friulanos do
restante dos colonos. Salientando que a manifestação linguística era distinta, além dos próprios costumes e
ofícios. Darcy Loss Luzzato, defende que;
(...) até entre os pobres, os mais pobres são discriminados. E essa deve ter sido uma
das razões porque os friulanos – i furlani, segundo seus vizinhos vênetos – eram
tão malvistos. Dominados e explorados ora pelos vênetos, ora pelos germânicos,
constituíram a população mais pobre do Norte da Itália. Também contribuiu para
esse desprezo o fato de utilizarem uma língua que, embora de raiz latina, era e é de
difícil compreensão por parte dos vênetos, lombardos e trentinos. (O interessante é
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Não foi a miséria, mas o medo da miséria.
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que nas cidades maiores, em especial entre a burguesia friulana, dava-se
preferência à utilização do vêneto, em prejuízo do friulano. Isso demonstra o
respeito que esse povo tinha e ainda tem pela cultura vêneta) (LUZZATTO, 1993, p.
61).
Em sentido oposto ao pensamento de Luzzato em relação aos friulanos e suas práticas identitárias e
econômicas, existem diversos provérbios italianos criados nas colônias pelos próprios imigrantes, entre eles:
se si vuole correre fuori di soldi solo passare per un furlan 7.
Dessa forma, focamos em perceber como a identidade dos friulanos se construiu de forma distinta
dentro da própria Europa, e por gerações no Rio Grande do Sul, e além. Em nossas fontes documentais
encontramos relatos de que na Itália eram chamados de austríacos e aqui no Rio Grande do Sul não eram
vistos como propriamente italianos, dessa forma, esforçaram-se no fortalecimento do próprio grupo, seja
pelas moradias próximas, migrações internas em conjunto, formando redes de compadrio, de parentela e
principalmente através dos casamentos consanguíneos. A família como base nas colônias europeias era
essencial.
Neste sentido, Giralda Seyfert (1985) reflexiona sobre as formas de transmissão do patrimônio
fundiário e também sobre os matrimônios endogâmicos entre famílias de camponeses do vale do Itajaí Mirim
(SC). Onde a endogamia é justificada pela comunidade de diversas maneiras, “por razões de ordem étnica,
religiosa, e também por considerações acerca dos valores camponeses. No primeiro caso, são admitidos os
casamentos entre colonos de origem italiana e alemã” (SEYFERTH, 1985, p. 23). A autora prossegue
destacando que os casamentos com caboclos são desqualificados, em função de serem considerados sem o
mesmo apego à terra e ao trabalho, como os imigrantes alemães e italianos. Ainda, destaca que em muitos
casos os casamentos endogâmicos também se dão como uma forma de manutenção de uma identidade
camponesa, e acima de tudo, da terra. Apesar de se tratar de comunidades distintas, a análise de Seyferth que
também se dá em prol do estudo de comunidades europeias, condiz com nosso tema, pois novamente a
questão da terra – problema vivenciado desde a Europa- aparece como preocupação central de manutenção
no Brasil.
Quanto as mobilidades, tanto internas quantos externas, em inúmeros casos as famílias vêm se
mostrando como base e ponte para a imigração, seja pelo suporte financeiro, quanto pela identidade étnica.
Catarina Zanini dialoga.
Dessa forma, na reconstrução da identidade étnica e suas particularidades, a
família desempenha um papel fundamental como aquela rede de relações sociais
baseada no sangue e no parentesco (mas não só) por meio da qual a imigração
como um processo maior se particulariza e adquire formas, cheiros, cores e a
experiência de personagens vivos. É pelas reconstruções da trajetória do emigrado
doméstico, da família, que trajetórias são traçadas e se estabelecem redes de troca
de informações e de partilha das dificuldades e dos êxitos (ZANINI, 2004, p. 61).
Pretendemos explanar na pesquisa que está em andamento, como a imigração italiana muitas vezes
vista como uma unidade em termos de ofícios, costumes, culturas e crenças possuía suas particularidades, e
que em alguns casos, não foram imediatamente amenizadas ou adaptadas com os demais grupos de italianos.
Conforme estamos averiguando existiu resistência entre os grupos por gerações, isto não significa que
determinadas adaptações não foram feitas no Brasil, mas o que estamos tentamos mostrar é que existiu a
manutenção de identidades próprias, familiares, construídas a partir de uma série de questões, que geraram
entraves e conflitos entre os imigrantes. Ou seja, o conceito de que em terras brasileiras as diferenças que
existiram na Itália foram rapidamente esquecidas não condiz com o cenário que estamos pesquisando. Sendo
Se quiser ficar sem dinheiro é só passar por um friulano. Frase que mistura na ortografia o italiano formal e os dialetos aqui
miscigenados.
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comum uma reconstrução de identidades, ainda que próprias, e com fortes indícios europeus, mas readaptas
com costumes típicos da localidade, especialmente os alimentares. Em diversos estudos o historiador Emílio
Franzina defende que no Rio Grande do Sul, apesar de todas as misturas culturais se criou uma unidade
italiana mais forte que na própria Itália, apesar de reinventada e adaptada conforme as necessidades do
período.
Consequentemente, mesmo partindo de uma Itália unificada, todo o processo de nacionalismo,
regionalismo e sentimento de pertença, ocorria de forma lenta. Portanto, defendemos que ainda no
transcorrer de 1860 até 1900, período de maior emigração para o Brasil, os imigrantes não se sentiam ligados
unicamente a Itália, mas sim a sua província, este fator associado a oportunidade de uma nova vida ítala no
RS, fomentou a mescla de novos costumes. Para o historiador italiano Giovanni Levi.
A identidade italiana no Rio Grande do Sul não existe, é uma mescla de loucuras. O
problema é que não é a mesma loucura, são muitas loucuras. Se aceitarmos as
diferenças vamos fazer a pergunta: Porque alguém faz referência à identidade? Um
motivo é para discriminar o outro. Outra pergunta: porque fazer parte de uma
identidade? Ela serve para nos diferenciar dos outros, dizendo que somos
diferentes (LEVI, 2015, p. 254).
Criou-se uma ilusão de que vivemos no Rio Grande do Sul uma cultura própria da “grande Itália”,
mas os costumes, hábitos alimentares, dialetos, crenças e até mesmo determinadas praticas consideradas
religiosas - benzimentos, não existem há tempos na atual Itália, e foram aglutinadas com as culturas africana
e indígena, povos que já habitavam o Brasil, antes das emigrações alemã, italiana, entre outras.
Portanto, a grande emigração italiana para o Rio Grande do Sul, proporcionou uma nova
oportunidade de reconstrução cultural em um país além-mar, reconstrução com início na saída da Europa,
em função das fronteiras próximas e particularidades regionais, talvez não de forma homogênea, mas a
maior parte dos imigrantes ítalos em sua própria convivência de viagem deram origem a um processo de
mistura dialetal e cultural que mesmo com determinadas resistências foi intensificada no Rio Grande do Sul,
e com o passar das gerações, miscigenado com outros costumes próprios dos povos natos do país.
Considerações finais
Buscamos explanar sobre o contexto político e social da Península Itálica, suas particularidades em
função da fronteira, em especial com à Áustria. Além da insatisfação dos contandini8 em relação à política,
economia, impostos e dificuldade em aquisição de terra, e que mesmo após a unificação italiana não
apresentou melhorias significativas. Isto, associada a propaganda emigracionista para o Brasil fulminou em
um movimento emigratório em massa, com ênfase no período de 1876-1901, onde foram criadas diversas
colônias no sul do país com o intuito de receber estes colonos, já que a intenção do estado era principalmente
em interesse colonizatório, além da proteção da fronteira, ou seja, novamente essa população estaria envolta
em questões fronteiriças, além do interesse governamental em “branqueamento” da população, e ainda, em
crescimento econômico voltado para a agricultura na pequena propriedade rural. Em vista disso, a
emigração para o Brasil tinha características distintas, os italianos direcionados para o Rio Grande do Sul,
cuja maior leva eram provenientes do Vêneto, vinham com o intuito de ocupar lotes rurais, de colonizar o
território, enquanto outros permaneciam, por exemplo, em São Paulo, substituindo gradativamente à mão de
obra escrava9.
Ainda, pretendeu-se demonstrar que a Itália era uma colcha de retalhos, repleta de culturas e
costumes próprios em cada região, levando os imigrantes a trazerem para a Mérica essas mesclas culturais,
Utilizamos este termo pois os italianos com ofício voltado também para a agricultura eram assim chamados na Itália.
Utilizamos a análise comparativa com o estado de São Paulo, pois não convêm em nossa breve analise aprofundar sobre a imigração
italiana e/ou colonização em outras partes do Brasil. Nossa intenção com estes exemplos foi meramente demonstrar as principais
diferenças entre um processo colonizatório, e outro de substituição de mão-de-obra escrava.
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já que a questão fronteiriça propiciava significativas trocas sociais. Assim, os imigrantes instalados no Rio
Grande do Sul, que já vinham com determinada bagagem cultural, adaptaram muitos de seus costumes em
função do novo contato com os habitantes natos do Brasil, mas a miscigenação étnica, durante as primeiras
gerações, não ocorreu de forma significativa para a maior leva. Desse modo, independente da região de saída
dos imigrantes italianos, é importante frisar que a família continuou como base central no Brasil, seja como
forma identitária para os grupos com idiomas distintos, mesmo que fossem da mesma nação, seja por
questões de perpetuar culturas e costumes específicos, seja por afinidades, ou manutenção econômica -terra,
mas os laços sanguíneos e as redes de parentela, ao menos no que se trata no Rio Grande do Sul, foram os
protagonistas para a adaptação em um novo mundo.
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Fontes primárias
Registros sacerdotais;
Assentos de registros públicos ou privados (civis, imobiliários, censitários, etc.)
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Remanescentes da cultura negra em São Luiz Gonzaga-RS:
trajetória e memórias do Clube Recreativo Imperatriz
Marisete de Mattos Morais1
Resumo: Os negros trazidos da África e vendidos no Brasil para trabalho escravo, influenciaram diversos
costumes dos brasileiros, desde o período colonial até a atualidade, sejam eles na cultura, religião, política,
economia e sociedade. Buscando valorizar a cultura afro-brasileira, nas últimas décadas, leis e decretos são
promulgados, datas comemorativas instituídas, campanhas contra o racismo e em prol das tradições negras
são realizadas. A importância do estudo deste tema é conduzir alunos da educação básica e a população em
geral, a reconhecer e valorizar esta influência para a sociedade a qual estão inseridos. A partir daí, para
fortalecer a contribuição dos negros na sociedade brasileira e rio-grandense, diferentes pesquisas procuram
registrar e enaltecer a cultura afro-brasileira, um deles é sobre os clubes negros. A presente pesquisa busca
trazer o tema para a comunidade são-luizense, registrar a história de um espaço desconhecido ou pouco
lembrado e que necessita ser preservado em São Luiz Gonzaga-RS: o Clube Recreativo Imperatriz, fundado
em 1943, destinado aos negros e pessoas da classe popular do município. Objetiva-se identificar seus
remanescentes, escrever sobre seus fundadores e famílias negras residentes na cidade, investigar elementos
que comprovem suas vivências como espaço de convergência política, tentativa de integração, local de lazer e
resistência cultural, identificando seus atrativos como biblioteca, participação nos carnavais de rua,
festividades diversas, entre outros. Assim, questiona-se os motivos que levaram as famílias a fundar um clube
negro, de que forma as autoridades, sociedade em geral e seus integrantes contemplavam o clube; que papel
e contribuições políticas, sociais e culturais o espaço desempenhou no município. Para isso, utiliza-se de
conceitos e histórias de clubes sociais negros, bem como uma trajetória dos africanos no Brasil, Rio Grande
do Sul e região das Missões, além de abordar concepções de memória em consonância com a História Oral. O
estudo utiliza-se de concepções de “negritude”, onde não se refira especificamente à questão da etnicidade
dos indivíduos que frequentam o clube, mas presentes nos fatores culturais, identitários e simbólicos
representados. A pesquisa utiliza-se de entrevistas que reconstroem o cotidiano do clube, seu surgimento e
outros acontecimentos relevantes, que será empregada juntamente com as fontes oficiais como atas, estatuto,
leis municipais, livros, jornais, códigos de postura, boletins de ocorrência, entre outros. Neste sentido,
contribuirá para a escrita deste ponto da História são-luizense, pois ainda não há registros históricoscientífico. Servirá também de subsídio para professores e alunos, auxiliando no conhecimento da trajetória
dos negros na cidade, além de contribuir para leituras e ampliação do acervo de história local.
A definição de Clubes Sociais Negros é realizada, por meio da Ata da Reunião da Comissão
Nacional de 29 de fevereiro de 2008: “Os Clubes Sociais Negros são espaços associativos do grupo étnico
afro-brasileiro, originário da necessidade de convívio social do grupo voluntariamente constituído e com
caráter beneficente, recreativo e cultural desenvolvendo atividades num espaço físico próprio. ” (ESCOBAR,
2009, p. 61)
Os negros se organizaram e construíram seus lugares de socialização, tendo como objetivo,
acumular valores para auxiliar nos funerais dos associados e familiares, além de investir em educação e
defesa dos direitos da população negra.
Os clubes e as associações negras estão espalhados por todo o Brasil. No Rio Grande do Sul do
século XIX, surgiram os primeiros clubes negros. A Sociedade Floresta Aurora, de Porto Alegre, fundada em
1872 é um exemplo de resistência negra. Também foi criado um time de futebol, a popularmente conhecida
como Liga dos Canelas Pretas, organizada no início da década de 1910, em Porto Alegre, destinado a oferecer
lugares de convívio social e aprimoramento físico aos postergados dos clubes das elites.
em História – PPGH – UFSM-RS. E-mail: marimoraishistoria@hotmail.com
Professora da Rede Estadual de Ensino - Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio - Instituto Estadual Rui Barbosa-SLG;
Pós-graduada em Orientação Educacional - UFFS Cerro Largo; Pós-graduada em Metodologia do Ensino de História e Geografia UNINTER-PR; Graduada em História - URI-SLG;
1Mestranda
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As vias férreas, seguindo as perspectivas das formas de trabalho do pós-abolição, foram as
primeiras atividades a empregar mão de obra negra, garantindo dignidade, crescimento profissional e
inserção social. Surgem assim, diversos clubes como o Clube 13 de maio de Santa Maria-RS, fundado por
ferroviários negros e a Sociedade Floresta Montenegrina de Montenegro-RS, criada por policiais militares e
ferroviários.
Atualmente, o Rio Grande do Sul obtêm mais de cinquenta registros de clubes que lutam ou
lutaram contra as dificuldades financeiras, resistindo à falta de auxílio e buscando maior valorização da
sociedade. Neste cadastro, pretende-se inserir o Clube Imperatriz de São Luiz Gonzaga, para preservação de
sua memória e história.
Em São Luiz Gonzaga, no século XX havia vários clubes, dentre eles o Clube União Operária, a
Sociedade Atlética São-luizense, Clube dos Subtenentes e Sargentos, o Clube Imperatriz e o Clube Harmonia.
O Clube de elite branca (Harmonia), de classe intermediária abrangendo os trabalhadores, pessoas de boa
condição financeira e brancos (União, Sargentos, Sociedade Atlética) e o Clube para os negros, no início de
sua fundação e mais tarde, também para as pessoas pobres da periferia que não podiam entrar nos demais
(Imperatriz). Esta disposição de clubes, demonstra claramente a exclusão entre classes sociais.
A principal forma de participação social dos negros e pobres era por meio do Clube Imperatriz,
chamada oficialmente de Sociedade Literária e Recreativa Imperatriz. Mesmo havendo outros clubes na
cidade, eles eram considerados de elite sendo que negros e pobres não podiam associar-se. Dias (2017)
expressa que: “a gente não pode desfazer do Clube Harmonia, mas os morenos não entravam lá, nem as
pessoas pobres, aí vinham para o nosso. Como não entrava foi criado um clube pra eles né”.
FUNDAÇÃO E CONSTRUÇÕES
A data de sua fundação é 24 de abril de 1943, conforme Santos (1987, p. 217) pela seguinte
diretoria: Presidente: João Vasconeles, Vice-presidente: Paulino Hermenegildo dos Santos, 1º secretário:
José Quintino Motta, 2º secretario: Manuel Alexandre de Oliveira, 1º tesoureiro: Brinaldo dos Santos, 2º
tesoureiro: José Silveira Severo, Conselho fiscal: Viriato Oliveira, Trajano Alves da Silva e José Santos.
Nas entrevistas, não foram elucidados os motivos para o nome do Clube Imperatriz, sabe-se que é
comum entre os clubes, nomes e datas referentes ao período da abolição da escravatura. São exemplos o
Clube Treze de Maio de Santa Maria - RS, por isso, pensa-se em duas hipóteses: O Clube adotou o título tão
desejado pelos ex-escravos, Imperatriz, como forma de homenagem à princesa Isabel, que assinou a Lei
Áurea dando liberdade aos escravos; ou ainda por causa da Imperatriz D. Leopoldina, primeira esposa de
Dom Pedro I, considerada uma das articuladoras da independência do Brasil, e que mantinha boas relações
com as diferentes classes sociais, incluindo a dos escravos, condição que questionava e se horrorizava.
O primeiro espaço em que se localizou o clube foi próximo ao hospital e depois perto do INSS 2,
antes de receber o terreno onde se situa atualmente. Segundo Marques:
Ele surgiu, a história que era o clube dos moreno, na época que tinha o dos brancos,
surgiu por causa que é que o pessoal só dançava os moreno lá, mas com o tempo foi
... foi diversificando foi branco e moreno dançando lá. Ele começou lá, primeiro
local que teve, um dos local, foi lá perto do hospital, na Rua Bento Soeiro de Souza
onde é a casa do doutor Praxedes. (...) Até uma vez eu tive lá com o meu pai, eu tive
lá no clube dos moreno, até o presidente era bem conhecido do meu pai, o que
cuidava lá. (...) depois muitos anos ele teve ali, onde hoje é o INPS teve uma casa
velha, teve uns tempo ali o clube. (...) até que a prefeitura cedeu aquele terreno lá.
Ali é o último local, era um casebre de madeira, depois foi feito de material com
muito sacrifício.
INSS: Instituto Nacional de Seguro Social, antigo INPS-Instituto Nacional de Previdência Social, localizado em São Luiz Gonzaga na
Rua Bento Soeiro de Souza, nº 2373, centro.
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Em 1961, por meio da Lei nº. 410, o clube negro recebe doação um terreno da Prefeitura Municipal,
durante o mandato do Prefeito João Loureiro:
Autoriza a aquisição de um imóvel João B. Loureiro, Prefeito Municipal de São Luiz
Gonzaga: - Faço saber que a Câmara Municipal e eu sanciono a seguinte lei:
Art. 1º - É o Prefeito autorizado a adquirir, por escritura pública, a Eduíno Adelino
Klein, pela quantia de Cr$120.000,OO, um terreno sito nesta cidade, quadra 366,
rua Venâncio Aires, com 10 (dez) metros de frente por cerca de 59 (cinquenta e
nove_ metros de frene a fundo. Art. 2º - O terreno adquirido pelo art. 1º será doado
à Sociedade Imperatriz sediada nesta cidade, para nele ser construído a sede da
Sociedade dentro dois anos a contar da data desta Lei, findo os quais reverterá ao
patrimônio do município caso não lhe seja dado finalidade constante desta lei. Lei
nº 3 – A despesa constante da aquisição prevista no art. 1º será ocorrida com
recursos a serem indicados. Art. 4º - a presente Lei entrará em vigor na data de sua
publicação, revogadas as disposições em contrário.
Gabinete do Prefeito em São Luiz Gonzaga, 10 de novembro de 1961.
A Prefeitura Municipal comprou os terrenos de Eduíno Adelino Klein e conforme a lei realiza a
doação ao Clube. Nos anos seguintes, conforme documentos, realizam-se os trâmites legais como pagamento
de imposto de transmissão de “inter-vivos”.
A escritura pública desta transação somente é lavrada no Cartório de Registros de Imóveis em 21
de maio de 1963, representada pelo prefeito e o presidente do clube:
Certifico que a fls. 236 do livro nº 3-AI foi feita hoje sob o nº 39.873 transcrição do
imóvel que o CLUBE LITERÁRIO E RECREATIVO IMPERATRIZ, Sociedade civil
com personalidade jurídica, com sede nesta cidade, representada por seu
presidente Manoel Alexandre de Oliveira, brasileiro, casado, militar, residente e
domiciliado nesta cidade; adquiriu da PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO LUIZ
GONZAGA, representada por seu Prefeito Municipal – Joao Belchior Loureiro , eu
costuma assinar João B. Loureiro, brasileiro, casado, residente e domiciliado nesta
cidade, devidamente autorizado conforme Lei Municipal nº 410, de 10 (dez) de
novembro de 1961, [...] desde já cede e transfere ao mesmo outorgado donatário
toda a posse e domínio, direitos e ação que sobre o aludido imóvel ora doado
exerciam, para que o mesmo donatário possa usar e gozar nos termos das cláusulas
e condições:
1º - que sobre o imóvel objeto da presente doação seja construída a Sede Social do
outorgado donatário Clube Literário Recreativo Imperatriz;
2º - que no caso de não cumprir a sociedade no prazo de dois anos, a contar desta
lei, o estipulado na cláusula primeira, findo este prazo, reverterá ao patrimônio da
Prefeitura Municipal de São Luiz Gonzaga; [...]
Deste documento, também pode-se retirar uma nova constatação: o Presidente da época, Manoel
Alexandre de Oliveira, é descrito como militar, sendo elucidado pelos entrevistados que havia grande
participação de militares do exército em sua fundação. Sobre clube e o presidente:
Conheci, era um velhinho magrinho, quando eu peguei aqui ele já era bem velhinho
já, [...] fazia pouco que tinha entrado, foi logo logo que eu tinha entrado e um ano e
pouco ele faleceu. (NENÊ, 2018)
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Eu acho que 1970 por aí 71 que o sargento Alexandre fundou. [...].E era Clube como
é que eu vou te dizer, era restrito pros morenos, só moreno, por isso que se chama
clube dos moreno. No início só entrava negro, só depois que depois que ele foi
embora, não sei quanto tempo ele ficou, mas deve ter ficado uns 5, 6 anos. O finado
Alexandre foi embora, morreu até esse senhor, deixa eu ver ele morava lá na
Monsenhor Wolski, lá pra baixo da rodoviária antiga. (BUENO, 2018)
O presidente do clube aqui era bem bem preto, esqueci o nome. [...] É esse ai,
Tenente Alexandre tenente do exército ele. É ele faleceu lá em Santo Angelo. [...]
Ele era daqui, mas depois ele foi embora prá lá né. [...]morava numa casa térrea
como essa aqui, mas a filha quis morar num apartamento, sei que o velho foi pro
apartamento e lá ficou muito chocado de ta dentro daquele apartamento sei que
deu um AVC no velho e morreu lá. Mas era muito legal ele. Antigamente quando eu
ia a Santo Ângelo eu encontrava ele, nós conversava e as gurias estão lá uma é
advogada que eu sei moram lá em Santo Ângelo. (SGT. ROQUE, 2018).
Manoel Alexandre de Oliveira, de origem negra, foi um dos fundadores do Clube Imperatriz, sendo
secretário na primeira diretoria e quem recebeu o terreno para a construção do clube, permaneceu longos
anos na diretoria e lutando para manter o clube e suas tradições.
Haviam ainda, outros militares negros no clube: “Seu Adão Marques era um morenão alto, foi
tempo sócio aqui era da diretoria, depois faleceu a esposa dele faleceu. [...] Esse Adão também era militar,
era do quartel, era sargento, também foi transferido e morreu.(NENÊ, 2018)
Também são citados: “Tinha a Mercedes aqui, acho que a Mercedes já morreu, uma frequentadora
daí, depois ela casou, ela vinha ali quando ela era moça, antes dela casar, era negra, professora. (BUENO,
2018)
No novo endereço é construído um salão de madeira com o apoio do poder público, como expressa
Santos “com o auxílio da Prefeitura Municipal, do Comércio, e dos próprios associados, a diretoria conseguiu
construir sua sede própria” (1987, p. 217).
Por volta de 1975, Nenê assume a diretoria do Clube e este, passa por grandes mudanças.
Eu me associei, e aí tava caindo tinha um pé direito lá e uns ferro atravessado assim
para ele não abrir ai nós fizemos uma campanha, um senhor de idade também foi
responsável, porque outros queriam a dançar e nada mais. Ai eu, o seu Gibson e o
Seu Diamantino fomos lá no horto, nós não tinha dinheiro pra fazer né, fomos lá e
perguntemos se ele não nos fornecia material, ai ele perguntou quem é o
responsável? Eu, digo eu faço encomenda e o que atrasar eu pago, como de fato, foi
difícil, mas nós concluímos tudo isso aqui, isso não tinha, só a partezinha de tábua
de traz, já caiu os pedaços em carnaval caiu afundo com gente com tudo, bem no
canto lá não deu para fazer o baile, era um dia de casa cheia, aí eu assumi todas as
dívidas dele para parque, parque eu doei pra eles, 100 metros de parque que eu fiz
uma doação, ai fui 5 anos presidente, ai terminamos, concluí. (NENÊ, 2018)
Neste período também, Nenê passa a defender a abertura do clube para as demais etnias e descreve
um acontecimento que chama de lamentável:
Este clube por ser um clube já de racismo naquela época é muito forte, eu tive um
baile aqui que deu uma briga medonha, ele era uma entrada aqui até aqui, e chegou
um rapaz loiro num carro, eu acho que era taxista, [...] ele era cabelo loiro cabeludo
e ele chegou aqui de táxi, estacionou lá daquele lado na frente e ele desceu, chegou,
falou com o seu Timóteo, perguntou se ele podia frequentar, ai o seu Timóteo saiu
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lá e veio três, não lamentavelmente o senhor não pode entrar, mas porque eu não
sou humano? E aí começou e se atracaram, olha vou te dizer, aquilo surgiu tanta
faca revólver era gente voando, eu também me fui na esquina, brigaram cortaram
ele ali do lado de lá da rua, cortaram ele na cabeça ai ele pegou entrou dentro do
esplanada que ele tinha um taxi e se foi pro hospital, daqui a pouco tapou de polícia
aqui, já não gostam muito de polícia foram embora. Mas foi horrível [...] não
deixaram ele entrar. É lamentável, um fato desse. (NENÊ, 2018)
Assim, o local passa gradativamente a fazer a abertura para brancos, obtendo maior, participação
das classes sociais pobres, ou seja, o clube acaba perdendo a característica de clube negro e começa a receber
todas as pessoas interessadas em associar-se. As que mais empenham-se são as de classe pobre que também
eram barradas nos clubes centrais, mas em períodos de auge do Clube, vinham pessoas brancas de boa
condição social.
Era clube dos moreno, era só moreno que frequentava, barbudo não frequentava,
cabeludo não frequentava, calça jeans não frequentava, era uma energia total, era
só moreno, abraça aqui dentro também não se abraçava, é, não se abraçavam, beijo
era tirado pra fora, e vou te dizer, e ai quando nós pegamos começou a vir gente, o
finado D.D. e a dona Z. D., o N. M. e a esposa, E.M, o presidente de um bairro, N.T.,
tem a assinatura deles tudo ai, todo esse pessoal ai, e como que eu vou chegar numa
gente dessa que não eram (para entrar) ai eu fiz uma reunião e começamos a tirar
isso ai, [...] É eu comecei a fazer reunião e conversar com o pessoal vamos abrir,
como é que não ia abrir [...] uns quantos da diretoria que são os antigo ainda, que
tu falava não, não vai mudar nada, mas a transformação já fizemos esses cálculos
fazem 43 anos mais ou menos, que começou a mudança, ai nós fomos tirando as
normas antigas. [...] E aí fomos transformando ele e teve uma época que era coisa
mais linda isso aqui nós fazíamos sábado e domingo isso aqui era cheio, (NENÊ,
2018).
O clube também realizava constantes ações em busca de auxilio de para melhorias, conforme
consta na Certidão de Registro 2933, onde o clube passa a integrar o registro de entidades civis para
habilitação ao recebimento de auxílios do Estado, sendo inscrita e registrada em 16 de abril de 1973. Na
década de 1980, sofre um incêndio criminoso:
Lá nós tinha bastante coisa, mas é que botaram fogo uma vez lá e queimou é ata
antiga, de fundação da época que foi fundado de mil novecentos e quarenta e
poucos tudo queimou. (...) Foi um camarada que ficou brabo lá com outro rapaz
que trabalhava lá e botou fogo ... botou fogo por malvadeza né ... queimou mais o
histórico do clube todos os documentos queimou ... antigo né ... ata antiga claro pra
saber quando é que foi fundado tudo aquele homem botou fora. (..) era tudo de
madeira pegou fogo, ainda bem que acudiram com tempo, mas queimou só o que
era interessante né. (...) foi lá por volta de 1984 ou 85 (MARQUES, 2017)
Botaram fogo nele, teve um rapaz aqui, nós descobrimos depois de passado o
tempo, mandado de outro que queria assumir aqui, tinha comprado uma gasolina
dele, é morto. Aqui na frente tinha uma parte que era de tábua, não tinha isso aqui
ainda e ele veio e despejou pela janela a gasolina, tava cheio de caixa de som ali,
mas eu tinha deixado um posando aqui porque era um roubo assim, vinham aqui
roubar bebida e tudo. E ele virou a gasolina e o rapaz sentou o cheiro, tava
acordado e sentiu o cheiro da gasolina, pensou da onde gasolina, quando ele viu ele
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saltou correndo, veio aqui puxou as caixa, mas ainda queimou e não pode ver quem
era, a janela era lá e o fogo se alastrou, mas tinha um tapete e o tapete que
encharcou ele consegui puxar pro meio do salão, e ai foi ele me ligou de vereda pra
mim vim, naquela época era telefone só no gancho ai eu vim aqui tinha queimado
parede essas caixas de som, um banco que era do clube e um horror de papel, Tinha
uma pratilerinha assim, lá de madeira aquela não se aproveitou nada. Aí fomos na
delegacia, aí tem prova de alguém que foi? Eu sabia mais ou menos quem foi, mas
não podia acusar o rapaz também, aí passou umas duas semanas ele veio numa
reunião aqui e eu peguei ele aí eu conversei com ele apertei, é mas não foi eu, foi tu
sim e apertei até, apertei apertei apertei ele que ficou condenado, mas não
confessou. (NENÊ, 2018)
A partir deste episódio, com a estrutura de madeira bastante danificada, a diretoria do clube e os
sócios novamente se empenham em reconstruir o clube, desta vez de alvenaria. De acordo com Brum:
O seu Gibson reuniu a diretoria pra ver se podiam, concordavam em fazer de
material né ... como o clube não tinha nada de fundos, eles foram na Caixa para ver
se conseguiam um empréstimo e conseguiram, porque o clube era de madeira e já
estava atado assim sabe com arame, tava querendo cair. Ai eles fizeram de material.
A reconstrução do clube seguiu com o dinheiro do empréstimo, assim como realizaram festas e
promoções para arrecadar fundos. No ano de 1990, a edificação já estava concluída, mas ao longo dos anos,
pequenas reformas são realizadas, assim como adequações das instalações em 2013, devido avaliação
conforme leis de manutenção do espaço, portas de acesso e cuidados com a segurança e capacidade de
frequentadores.
IMAGEM POSITIVADA: ESTATUTO DO CLUBE RECREATIVO IMPERATRIZ
Conforme o Estatuto do Clube, registrado em 25 de abril de 1944, ele se destina à realização de
danças, músicas, leituras, jogos lícitos e demais diversões.
No entanto, as festividades realizadas eram controladas, no que se refere à vestimenta e
comportamento, pois havia normas de convivência, que eram cobradas de todas os integrantes. Segundo o
Livro de Atas, ocorreram várias expulsões do quadro social por motivos variados, falta de pagamento das
mensalidades, brigas durante o baile, bebedeiras e mau comportamento.
Aparece frequentemente em atas a exclusão de sócios por falta de pagamento e expulsões por
comportamento inadequado. Conforme o Estatuto do Clube Recreativo Imperatriz:
Artigo 11º. Serão eliminados: Parágrafo 1º: Os sócios que deixarem de pagar três
meses de mensalidade: Parágrafo 2º: os que pedirem por escrito sua eliminação;
Parágrafo 3º: Os que no recinto do Club desacatarem ou ofenderem qualquer sócio,
família ou convidado; Parágrafo 4º: indenizar danos em utensílios do Club;
Parágrafo 5º: Os que praticarem ações indecorosas que manchem a reputação;
Parágrafo 6º: os que desviarem dinheiro da sociedade a si confiado ou se negarem.
(25 de setembro de 1944).
Baseados neste artigo, a ata nº 04, de 09 de abril de 1959, expressa que: “foram desligados do
quadro social da sociedade os sócios L.O. e O.S. por falta de pagamento, enquadrado no artigo 11, parágrafo
primeiro do Estatuto da Sociedade”.
Na ata nº 10, de 09 de julho de 1969:
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A reunião da diretoria resolveu dispensar das funções de tesoureiro o Senhor sócio
A.R.F. e suspender por (60) sessenta dias o mesmo sócio por ter comparecido ao
salão embriagado acompanhado de dois visitantes estranhos do Club e desacatar o
diretor de mês e o primeiro secretário, no uso de suas funções de presidente visto a
ausência do vice-presidente que está enfermo e o outro para a capital.
Ao que se refere ás roupas e comportamento os entrevistados expressam que:
No começo teve, teve um estatuto, não podia entrar, claro, mal vestido não entrava,
sujo não entrava de chinelo não entrava, principalmente quando tinha baile,
chapéu na cabeça não podia entrar lá dentro (Marques, 2017).
Tudo controlado, era uma sociedade, mulher era bem vestida, minissaia não
dançava, homem com o cabelo comprido não entrava, barbudo também não e rosto
colado também não, se teimasse era chamado na diretoria. No começo aquilo ali
era lindo... e tinha os jogo de bocha que eles faziam né tinha, dava baile no sábado e
domingo tinha reunião dançante a tarde, as tarde tinha terminava as seis horas”.
(Brum, 2017)
Fizeram a proposta pra mim se eu queria ser presidente, fazer uma chapa daí eu fiz,
apresentei, fui aceita, modifiquei bastante coisa assim que entrava todo mundo né
do jeito que queria, ai fui modificando, digo não entrar de bermudinha, homem de
bermuda, chinelo havaiana, essas coisas não né! e mudei um pouco e sou
presidente até agora ali (Dias, 2017)
Estas ações no Clube possuem o objetivo de manter uma identidade positivada, os padrões de
comportamento de seus frequentadores e o respeito mútuo. Há ainda, vários outros acontecimentos no clube
que foram punidos com suspensão de sócios e, não resolvendo, fez-se a expulsão, sem importar o tempo de
participação ou cargo que desempenhava na diretoria.
Por outro lado, os entrevistados relatam, que em alguns períodos o clube passou por momentos
perigosos, no que se refere à manutenção da ordem, sendo necessário atitudes firmes para recuperar o clube.
Começou a diminuir o pessoal os sócios e pega fase de muita bronca, chegavam
aqui da Auxiliadora, chega gente, meu Deus, tu tinha que ta preparado, podia dá
uma revolução era cada um facão deste tamanho e queriam entrar. Aí eu fui
tomando a peito de novo. [...] começou a bagaceirada vim e aí tu tinha que
enfrentar foi dando problema começar a falar hoje eu tu fala assim, o Imperatriz tá
bom, é mas matam muita gente lá. É esse é o comentário, brigam demais. Mas o
que que a gente vai fazer, na rua a polícia tu chamava vinha, e ai a gente tinha que
tomar peito, eu, eu passei por momentos pesados aqui, mesmo, mesmo, mesmo. Ai
começou as rusgas as peleias, tinha gente ai que chegava queria entrar não tinha
dinheiro pra pagar, como é que tu vai deixar,se todo mundo vai pagar, não eram
sócio, como é que tu vai deixar. Tudo isso vai dando um comentário assim ó que,
agora graças a Deus, essa aqui assumiu, (refere-se a presidente atual) ta
melhorando, ta dando bailes ótimos, já está sendo comentado de novo, mas foi
sofrido pra levantar ele é uma trajetória de história diversa. (NENÊ, 2018)
É anarquia mesmo virou agora daqui uns 20 anos para cá, até então era de
fundamento. Eu tenho, eu tenho dois facão ali guardado que eu achei ali de faca de
mesa, faca de mesa bastante eu tenho por ali, umas eu fiquei outras eu botei fora, e
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facão tem uns dois guardado no galpão que a gente achava deixaram tudo em cima
do muro que brigaram brigavam vinha gente da Vila daquela Vila lá da Vila Trinta e
da Vila Auxiliadora, uma vez deu uma briga aqui na frente de casa. Agora não,
agora até que parou um pouco eu não vejo mais. (BUENO, 2018).
BAILES, CARNAVAIS E OUTROS ATRATIVOS
O Clube destacou-se por participar dos carnavais de rua, ter escolha de rainhas, garota do bairro,
produzir bailes de finais de semana e festividades diversas, como churrasco para os sócios, cancha de bocha e
ainda por possuir uma biblioteca.
E o clube tinha biblioteca, tinha tudo essas coisa, tinha livros tinha uma peça sabe
era excelente o lugar assim que tinha essas coisas, tinha uma salinha que tu
guardava chapéu, casaco (...) tinha uma cancha de bocha (...) o pessoal se divertia
bastante, [...] no momento que eu tive no clube eu fiz escolha das garotas do bairro,
nem lembro mais o que eu fiz no clube, ah, o aniversário do clube eu fazia na data
que foi fundado eu fazia sorteio essas coisas. (Dias, 2017)
A biblioteca era um dos espaços de grande importância do Clube, pois em seu Estatuto menciona
que um dos objetivos do clube é a promoção de leituras.
Tinha ela lá, aonde tinha esse armário era muito bonito era madeira mesmo, com
vidro tudo, mas foi o que mais [destruiu com o incêndio). Esses livros de história
assim, eu nunca me passou pela cabeça ler a não ser um livro que o seu Pedrinho
Vieira Marques, nos adquirimos, um do seu Pedrinho e tinha outro um que fez,
acho que é um promotor que fez uma história de São Luís e fez dos clube tudo.
Quem quisesse ler vinha aqui e pegava só que devolvia, esse seu Pedrinho, na época
nos adquirimos ele saiu uma fortuna era um livro com toda história de São Luís de
ponta a ponta onde tinha meu pai, um dos 10 primeiros comerciantes foi colocada
no livro. E aqui do Imperatriz foi colocada toda a diretoria. (NENÊ, 2018)
Sobre os carnavais, as festividades eram muito conhecidas e descritas pelos entrevistados.
Eu tinha uns treze pra quatorze anos quando eu vim pra São Luiz, eu era
empregada e dali do clube lá bem ali no alto lá, onde tem uma árvore grande ali,
perto do capitão, aquele que morreu, Januário, é então de lá não tinha casa pra cá
assim que tapasse né se via bem o clube, ai era os bloco ensaiavam na rua né e se
via que era tudo gente morena, até a finada Maria Capica eu acho que era das donas
uma das que faziam os eventos da ... da banda esse ... dos blocos ... ela era bem
negra ... bem negra. Acho que era daqui, porque eu conheci ela aqui ... aqui em São
Luiz, e ela morreu ... ela foi embora pra Porto Alegre, as filha dela, tinha umas
filhas muito, morena bonita, é, eles eram bem moreno e ela que fazia tudo era com
ela. (Brum, 2017)
Na época que eu fui a rainha lá, a cadeira, o sofá da rainha era um sofá daqueles
antigos, vocês nem viram acho, e aí uma colcha por cima que sentava assim eu me
lembro que você sentava assim se achava o máximo. No desfile de rua, meu Deus
eu fui dentro de um jipe e meu irmão dirigindo, atrás, isso não tenho na foto sabe,
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porque não foi tirado, foi tirado de frente assim né, onde pegou só o jipe que eles
tiraram, era todo esse pessoal moreno sabe, e dai eles fizeram de folhas as fantasias
com as coisas do mato que era, eu lembro que eu ria bastante sabe digo meu deus
eu já não tava tanto na era deles lá pra trás, eu era jovem naquela época. (Dias,
2017)
Os carnavais eram momentos também de socialização das classes, conforme descreve Bueno:
Carnaval vinha gente do Clube Harmonia tudo pular ai, por exemplo tinha vizinhos
que moravam aqui em baixo, tudo já faleceram, meu pai minha mãe tudo iam tudo
iam no clube tudo iam dançar na época de carnaval. vinha vinha gente do Clube
Harmonia ali pular, e era Clube dos moreno, não entrava branco, branco não
entrava, só na época de carnaval entravam esses porque eram vizinho. Vinham lá
faziam o, como é que se diz os blocos e vinham pular ali, a mãe dizia e naquele
tempo era bem bom ali, era social.
Os bailes em geral eram muito frequentados pela comunidade, como descreve Morais:
Eu to com 81 anos desde que começou sempre nós vinha, me lembro bastante do
Luís preto com a família, eles eram da diretoria aquele tempo, mas eu não lembro
muito. A sim nós vinha nos bailes e eram bem bom, era cheinho [...]. O pessoal
mais era só daqui mesmo, os moreno, pessoal moreno, tudo os morenos [...] as
vezes misturava o pessoal, já tinha mudado um pouco né. Faz uns 50 anos que
venho, e continuo igual né, toda vez que ela ta aqui eu to junto aqui. (Refere-se a
filha, presidente atual) (MORAIS, 2018)
Em alguns momentos, havia o entrosamento entre as comunidades negras na região, como
descreve o Sgt. Roque, que em São Luiz Gonzaga frequentou apenas uma vez o Clube Imperatriz em um
aniversário, mas na sua cidade, Santo Ângelo, antes da transferência, além do Clube do Exército, frequentava
o Clube Princesa Isabel,
Tinha lá o Princesa Isabel lá em Santo Ângelo, os senhores lá e outros da diretoria,
disseram vamos fazer agora no aniversário do nosso Clube que era o Princesa
Isabel vamos convidar esqueci o nome do Tenente, tinha um tenente do exército
que era presidente do Imperatriz, (refere-se a Manoel Alexandre de Oliveira,,
rememorado mais tarde) então eles se conheciam então convidaram, mandaram
convidar esse pessoal do Imperatriz aí foi esse casal com as filhas foi mais gente,
foram em Santo Ângelo lá, foi um entrosamento de sociedade né com o Imperatriz
aqui e o Princesa Isabel lá de Santo Ângelo, ai eles foram lá no baile. [...] Acho que
isso foi em 63 por ai, 62 por ai. (SGT. ROQUE, 2018)
Após um tempo o Sargento Roque foi nomeado presidente do Clube Princesa Isabel e conforme
descreve, passou também a abrir para pessoas brancas.
Na época que esse outro era presidente só entrava preto, branco não entrava lá, o
nosso lá o Princesa Isabel era só a raça. Aí deu a caso de um fiscal de lá, a filha dele
ir casar, ó vou fazer o casamento de fulana aí no clube, não pode fazer, aí eu já abri
pra todo mundo, não veio só preto, veio mais branco e transformemos o clube né
deu uma crescida boa porque ai já começamos a deixar essas pessoas entrarem
cresce mais ai nesse meio de tempo, já sai promovido fui embora, não vi mais como
é que ficou lá. (SGT. ROQUE, 2018).
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Havia também organizações de festas e bailes em benefício a pessoas carentes. Na Ata nº 33, de 20
de julho de 1983, a Diretoria do Clube destina a renda líquida de um baile ao Conselho Popular para auxílio
na compra de remédio e leite aos fragilizados da cidade. Segundo Dias (2017) “faziam a doação de bastante
coisa para as pessoas carentes, dos arredores do clube que naquela época era considerado bairro”.
Alguns atrativos, com o tempo foram terminando, atualmente, a diretoria realiza bailes todos os
sábados, o clube apresenta-se em bom estado de conservação e seu público é bastante diversificado, sendo
em sua maioria moradores dos bairros e vilas.
O Clube oferecia carteira aos sócios, sendo possível frequentar os bailes e demais atrativos, apenas
os que estivessem em dia com seus pagamentos.
Concluindo, a Sociedade Literária e Recreativa Imperatriz era um clube negro, desde a sua
fundação, em 1943 até por meados dos anos 1975, sendo que as mudanças sociais, de pensamento e de
público, levaram a uma abertura gradativa às demais etnias, tornando-se um clube multiétnico, sendo
frequentado principalmente pela classe popular até hoje.
As contribuições das memórias já expressadas pelos mais antigos integrantes do Clube, famílias
negras, vizinhos da rua, contribuíram para a escrita da história do Clube, pois elas se entrelaçam e se
completam aos documentos, atas informações de jornais.
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ENTREVISTAS:
BRUM, Venceslina dos Santos. Venceslina dos Santos Brum. Depoimento (20 de junho de 2017).
Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2017;
BUENO, Neuza Maria Aquino. Neuza Maria Aquino Bueno. Depoimento (02 de outubro de 2018).
Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2018;
DIAS, Leda Jussara Brum. Leda Jussara Brum Dias. Depoimento (23 de maio de 2017). Entrevistadora:
Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2017;
FAGUNDES, Eva Morais. Eva Morais Fagundes. Depoimento (04 de outubro de 2018). Entrevistadora:
Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2018;
MARQUES, Gibson de Mattos. Gibson de Mattos Marques. Depoimento (27 de junho de 2017).
Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2017;
NASCIMENTO, Sueli Gonçalves do. Sueli Gonçalves do Nascimento. Depoimento (11 de setembro de 2018).
Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2018;
NENÊ. Marcelino Santana Brum. Depoimento (04 de outubro de 2018). Entrevistadora: Marisete de Mattos
Morais, São Luiz Gonzaga, 2018;
SGT.ROQUE. Roque Fernandes Fortes. Depoimento (02 de outubro de 2018). Entrevistadora: Marisete
de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2018;
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O casamento e suas representações na fotografia:
Relações sociais, poder e transformações
Maristela Piva1
Janaína Rigo Santin 2
Resumo: O presente artigo reflete sobre as formas como o casamento foi representado artisticamente na
realidade brasileira, onde há o predomínio de registros fotográficos. As fotos de casamento demarcam a
memória histórica de uma época, e trazem elementos para interpretar o próprio casamento, seus ritos e
desdobramentos, como no caso do divórcio. Bahia (2005) comenta que o ato de fotografar é um modo de
representar a imagem de um modo de vida, e ao se classificar o que é passível de ser fotografado, demarca-se
limites de ruptura e transformação de um mundo social. O casamento, é um dos principais ritos de
passagem, e encontra-se em quase todas as sociedades. Simbolizaria uma alteração irreversível da situação
social do casal que, proveniente de dois ramos da família, une-se para formar uma terceira (LEITE, 1991).
Encontra-se inúmeros ritos matrimoniais, entre os quais o vestido de noiva e o retrato. Os rituais buscam dar
significado e fixar na memória coletiva a lembrança da cerimônia, com palavras e gestos estabelecidos pelos
costumes. E, como uma parte quase insubstituível, o retrato acaba sendo o legitimador e faz parte da
publicidade do casamento. Estudos indicam que a indumentária da noiva tem sofrido pequenas mudanças e
é mantida com alguns elementos essenciais, tais como: véu, grinalda, saia, buquê, luvas. Segundo Santos
(apud Scheneid; Michelon, 2013, p. 8) “tudo indica que o uso do véu seria uma referência a Vesta, deusa
mitológica virgem, que, entre os romanos, era a protetora do lar e simbolizava a pureza e a perfeição”. Outro
símbolo, relacionado à indissolubilidade do casamento é a aliança (o círculo de ouro representaria o
compromisso eterno, e, presente no dedo anelar da mão esquerda como símbolo de submissão). Flores, como
símbolo de virgindade, compõe igualmente a figura da noiva. Deste modo, não é por nada que se virgindade
tem como simbologia a flor, a destruição da virgindade tem sido denominada de defloração. (SCHENEID E
MICHELON, 2013). Os retratos foram muitas vezes, (e ainda o são) objetos de exibição e distribuição entre
convidados e parentes que não puderam comparecer, e desenvolviam assim, funções de integração até
mesmo entre membros que haviam imigrado para o Brasil, com os que haviam ficado na terra de origem.
Constituem, pois, a memória da família. Porém, ainda que os casamentos tenham se modificado ao longo do
tempo, e outros formatos de família tenham sido estruturados, a necessidade de registrar em imagens os
rituais de passagem continua sendo uma tônica marcante no contemporâneo. Contudo, também se
modificaram os modos de fazer os registros. Da época das fitas cassete, gravações em vídeos, chegamos a
época da “selfie”, onde o registro em vídeo permite em tempo real compartilhar com “o mundo inteiro” o
acontecimento. Parece que registrar o casamento, hoje em dia, também responde a um ditame
contemporâneo, que repousa na necessidade de ser visto, “reconhecido” e “curtido”. Como se, precisássemos
“imortalizar” o momento vivido, para que ele possa ser significado como existente. Sendo assim, “as
fotografias não são representações ou provas da realidade, mas colocam-se como produtoras de olhares, de
modos de ver e compreender o mundo, produzindo, ao mesmo tempo, o próprio mundo” (DIAS, 2016, p.87).
Introdução
O presente artigo busca refletir sobre as formas como o casamento foi representado artisticamente, e
ao investigarmos as representações artísticas de casamento, observamos que especialmente na realidade
brasileira, os principais registros são fotográficos. Todavia, encontramos também estudos evidenciando como
o casamento foi retratado em algumas revistas de circulação, regional, e nacional. Assim, este ensaio buscará
analisar se as fotos de casamento, entendidas como um recurso artístico e também demarcadores de
memória histórica, trazem elementos para pensarmos o próprio casamento, seus ritos e seus
desdobramentos, como no caso do divórcio. Além do mais, amplia-se a discussão no sentido de verificar
Psicóloga e Psicoterapeuta. Especialista em Diagnóstico Psicológico. Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS) Doutoranda do Programa
de Pós- graduação em História da UPF. Profª Titular II da Universidade de Passo Fundo (UPF).
2 Janaína Rigo Santin é Pós-Doutora. Professora da UPF nos cursos de Direito, PPGH e PPGD .E-mail: janainars@upf.br
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como algumas revistas trouxeram ao longo do século XX as imagens do casamento, especialmente através de
charges, e de que forma estas imagens refletem os condicionantes culturais de uma época, e, portanto, a
representação de casamento em determinado período histórico.
Neste sentido, conforme aponta Bahia (2005) o ato de fotografar é um modo de representar a
imagem de um modo de vida. E ao se classificar o que é passível de ser fotografado, vai-se demarcando
alguns limites de ruptura, as relações de poder e transformação de um mundo social. Acreditamos que, ao
estudar a representação do casamento no Brasil, possamos levantar elementos para ampliar o olhar sobre o
fenômeno do casamento, assim como sobre sua dissolução e as relações de poder da época, bem como os
desdobramentos dos novos formatos de família hoje vivenciados.
Sobre o casamento no Brasil: alguns recortes
Sinteticamente podemos dizer que o casamento no Brasil vai se modificando ao longo dos anos,
assim como os modelos de família e as relações de poder. De acordo com Samara (2004) no Brasil
predominou desde a colonização o modelo de família patriarcal, onde o relacionamento entre seus membros
“estimulava a dependência na autoridade paterna e a solidariedade entre parentes” (p. 10). Esta família tinha
uma feição complexa, e incorporava em seu núcleo diversos integrantes: parentes, afilhados, agregados,
escravos, o que conferia a família uma espécie de organização típica, rendendo-lhe o nome de família
extensa.
Para Samara (2004), neste modelo o chefe de família cuidava dos negócios e buscava preservar a
linhagem familiar, além de exercer sua autoridade sobre a mulher, filhos e demais integrantes. Esta autora
refere que esta descrição de família foi muito explorada por estudiosos como Gilberto Freyre, mas que em
verdade caracterizava o ambiente rural. Contudo, argumenta que se voltamos o olhar para a sociedade
paulista, observar-se-á que o modelo de família extensa não é marcante, já que o número de elementos na
maioria dos casos pertencentes à família ficava em torno de um a quatro elementos.
Assim, as famílias eram predominantemente nucleares, com poucos filhos, já que a mortalidade
infantil contribuía para isto. Já o concubinato traz uma nova tonalidade às relações familiares, e vai justificar
a alta incidência de crianças ilegítimas. Vai se observar que desde o período colonial “havia uma certa
resistência por parte da população em casar, preferindo viver em concubinato” (SAMARA, 2004, p.41). Para
esta autora os casamentos eram opção de uma parcela da população, representando a união de interesses,
especialmente entre a elite branca. Assim, sendo visto como uma ato social de grande importância, teria
como finalidade última “preservar a fortuna e manter a linhagem e pureza do sangue” (SAMARA, 2004, p.
44).
De acordo com Pimentel (2005) o projeto colonizador de Portugal no Brasil teria se pautado pela
disciplina e pela domesticação dos costumes para realizar o desbravamento e povoação da colônia
portuguesa na América. Assim, a catequese cristã e a colonização procuravam conter o sexo dentro do
casamento. Esses mecanismos acabavam por sujeitar as pessoas. Ser casado significava para a sociedade da
época o uso do sexo dentro da legalidade, de acordo com os limites impostos.
Observou-se, entretanto, que o celibato era frequente nas famílias paulistas (final do século XVIII e
início do XIX) e o recenseamento indicou que muitas vezes, ao invés de se encontrar um casal, se encontrava
“homens ou mulheres solteiros que viviam solitários com seus filhos ilegítimos” (SAMARA, 2004, p. 19). Isto
parece denotar uma certa resistência aos apelos da Igreja Católica em sacramentar estas relações. A opção
pela união não sacramentada também ocorria nas camadas mais pobres da população, onde a escolha do
cônjuge é influenciada por critérios menos seletivos.
Nader (1997), por sua vez, indica que por uma tradição histórica, a mulher vai ter sua vida atrelada à
família, o que implicava na obrigação de submeter-se ao domínio do homem, seja seu pai ou esposo. A
identidade feminina vai assim sendo construída em torno do casamento, da maternidade, da vida privadadoméstica. Nesse contexto, a mulher vai ocupar o lugar de obediente a seu marido. Foi-lhe atribuída uma
inferioridade com relação ao homem, e até mesmo acreditava-se que a mulher era incapaz de exercer outras
atividades, se não aquelas domésticas e do cuidado com os filhos. Afinal, estas fariam parte da natureza da
mulher, estavam intrínsecas ao “ser mulher”.
Estes modelos familiares vão legitimando as relações de poder da época e a superioridade do homem,
assegurando-lhe o poder que lhe foi dado desde a criação do mundo e que foi muito observado no Brasil
Colônia, período em que se observa que as mulheres ocupavam essa posição; criadas para casar, ter filhos.
Formavam-se, em fato, “acordos familiares de interesses mútuos e a função do casamento era a de gerar
grandes famílias, em que a mulher era responsável por toda a organização” (EMÍDIO; VALENTE E SILVA,
2007, p.6).
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Com o passar do tempo, esse papel de esposa, mãe, companheira submissa ao homem, vai sofrer
mudanças, acompanhando as mudanças do mundo e na sociedade, como a entrada da mulher no mercado de
trabalho e o movimento feminista. Tudo isso vai trazer a possibilidade às mulheres de questionarem seu
papel e de se posicionarem como sujeitos com desejos e necessidades. Nader (1997) assinala que assim foi se
desconstruindo uma imagem da mulher delicada e doce sempre submissa e a espera de seu marido. As
mulheres, aos poucos, passam a traçar novos caminhos e vão demarcando novas configurações ao seu papel.
Nesta luta, as mulheres passaram a buscar fora da proteção do lar novos sentidos para a sua vida.
Começaram a exercer a atividade profissional e a buscar seus direitos como cidadãs. O trabalho feminino foi
conquistado fora do contexto doméstico e as mulheres passaram por uma evolução no seu papel social.
Portanto, o papel da mulher modifica-se, e estas modificações vão se refletir também no modelo de
família, que se transforma aos poucos. Um passo importante e significativo que passa a dar um novo formato
às famílias e aos casamentos foi a Lei do Divórcio, aprovada em 1977. No mesmo sentido, as Constituições
seguintes foram marcando e trazendo novas versões sobre a dissolução do casamento. Na opinião de Melo
(2004) a Constituição de 1988 foi marco no tocante aos novos direitos da mulher e à ampliação de sua
cidadania. A Constituição Federal de 1988 tentou romper com um sistema legal fortemente discriminatório
em relação ao gênero feminino.
De acordo com Cano et al. (2009), em fato, o divórcio e o recasamento já estavam ocorrendo antes
mesmo da regulamentação pela via de lei. Porém, não eram reconhecidos ou aceitos socialmente, e se
constituíam em temas velados ou evitados nas redes sociais e familiares. Deste modo, a modificação na lei
trouxe à tona os diversos modelos e padrões de família, os “novos” modelos familiares, decorrentes de
reorganizações conjugais, separações, novas formas de união e recasamento. E acompanhando este
fenômeno, o que vai se observar nas décadas seguintes é um aumento significativo no número de divórcios e
separações no Brasil. Vale citar que os números de divórcio ocorridos no Brasil, entre os anos de 1993 e 2003
havia crescido 44%. (CANO, et al, 2009, p.214).
Hoje, vivemos em uma sociedade em que já não é generalizada a obrigação de casar, tendo diminuído
muito o sentimento de reprovação pelo divórcio e até mesmo pelo aborto. Assim, os jovens, explica Turkenicz
(2013), dispõem de outras referências de vida que não se restringem ao casamento e a maternidade.
Os Retratos de casamento: ritos e significados
O casamento, bem assinala Leite, é um dos principais ritos de passagem, e encontra-se em quase
todas as sociedades. “Simboliza uma alteração irreversível da situação social do casal que, proveniente de
duas famílias ou de dois ramos da família, une-se para formar uma terceira” (1991, p. 182). Para este autor, o
casamento, em grande parte estaria mais ligado à passagem da moça donzela a esposa e anjo tutelar de nova
linhagem.
O que se vai observar são inúmeros ritos matrimoniais, entre os quais o vestido de noiva e o retrato.
Assim, estes rituais buscam dar significado e fixar na memória coletiva a lembrança da cerimônia, com
palavras e gestos estabelecidos pelos costumes. E, como uma parte quase insubstituível, “o retrato vem sendo
o legitimador e faz parte da publicidade do casamento. Não só torna pública uma relação como, com o passar
do tempo, acaba se confundindo com a lembrança do próprio casamento”. (LEITE, 1991, p. 182).
Também Bahia (2005) comenta que o ato de fotografar é um modo de representar a imagem de um
modo de vida. Assim, vai se classificando o que é passível de ser fotografado, como uma cerimônia, que
podem ser ritos de passagem que demarcam os limites de ruptura e transformação de um mundo social.
A foto ao reproduzir um rito de passagem congela o fato único e repete
mecanicamente aquilo que jamais se repete na existência. Mas, ao repetir o tempo
aprisionado do rito, o grupo isola um único incidente da sua história,
reproduzindo-o para além do próprio fluxo ininterrupto do tempo, transformandoo em algo atemporal. Neste sentido, evidenciam a permanência das regras sociais
que estão para além dos fatos isolados ressaltando a força da coletividade por
detrás das imagens dos indivíduos (BAHIA, 2005, p. 351).
A prática de fotografar está assim relacionada aos momentos extra cotidianos, que tendem a
expressar um tempo que marca uma ruptura seguida de transformações na rotina da unidade doméstica.
Bahia (2005) refere que a particularidade desse tipo de foto implica que no centro destas imagens não estão
os indivíduos, e sim os papéis sociais que representam.
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Nesta perspectiva vale citar o estudo de Michelon e Schneid (2015) que observaram fotografias de
noivas em álbuns de família no Brasil, produzidas entre as décadas de 1920 e 1960. A maioria das imagens
analisadas pelos autores foram construídas na emulsão fotográfica com base de prata, antigo modo se se
produzir as fotografias. As fotos acabam indicando modos de sentir, pensar e representar, estritamente
históricos, essencialmente localizados no tempo e no espaço. O modo como eram compartilhadas estas fotos,
enviando para parentes, colocando em um altar na sala de visitas, também alerta para o desejo de que aquele
momento,
sagrado na veste, no cenário, nos adornos, na aparência das coisas, fosse um
postulado da união irrevogável, até que a morte viesse para um dos nubentes.
Assim, o registro desta cerimônia transcendia a própria e elencava a noiva como o
selo das expectativas (MICHELON; SCHNEID, 2015, p.2).
Pode-se observar através do estudo, que os vestidos de noiva, como qualquer outra peça da
indumentária feminina, eram influenciados pelas tendências de moda da sua época. E ainda que a moda seja
efêmera, e se modifique com o passar do tempo, parece que desde a era Vitoriana a indumentária da noiva
tem sofrido pequenas mudanças e é mantida com alguns elementos essenciais, tais como: véu, grinalda, saia,
buquê, luvas. Assim, na análise da indumentária das noivas os autores concluem que as vestimentas
matrimoniais traduzem a sociedade daquele momento, que exigia da mulher no casamento a concordância
com os padrões vigentes (MICHELON; SCHNEID, 2015).
Ainda no que tange às fotografias de casamento, os autores consideram o véu um instrumento da
indumentária muito simbólico. Segundo Santos (apud MICHELON; SCHNEID, 2013, p. 8) “tudo indica que
o uso do véu seria uma referência a Vesta, deusa mitológica virgem, que, entre os romanos, era a protetora do
lar e simbolizava a pureza e a perfeição”.
Já no que se refere ao noivo, os autores não observaram vestimenta especial ou símbolos específicos,
como no caso das noivas. Ao longo das três décadas analisadas eles apresentaram-se sempre de ternos
escuros, camisa branca, lenço branco no bolso do paletó, gravata ou gravata borboleta escura ou clara e
sapatos pretos. (MICHELON; SCHNEID, 2013).
Destaca-se ainda outro símbolo que os autores observaram nos ritos do casamento: a aliança. Esta
seria o signo da indissolubilidade do casamento, e o círculo de ouro representaria o compromisso eterno, e,
presente no dedo anelar da mão esquerda como símbolo de submissão (MICHELON; SCHNEID, 2013, p. 8).
Flores, como símbolo de virgindade, compõe igualmente a figura da noiva. Deste modo, não é por nada que
se virgindade tem como simbologia a flor, a destruição da virgindade, tem sido denominada de defloração.
(SANTOS apud MICHELON; SCHNEID, 2013, p.9).
Michelon e Schneid (2013) explicitam que as fotografias não substituem a experiência vivida, mas
geram sobre ela a possibilidade de uma nova experiência memorial. Ela acaba por ser uma evidência
histórica e protagonista da história, sendo portanto, um instrumento portador de memória.
Segundo Leite (1991) os retratos são objetos de exibição e distribuição entre convidados e parentes
que não puderam comparecer, e desenvolvem assim, funções de integração entre membros que haviam
imigrado para o Brasil, com os que haviam ficado na terra de origem. Passam, pois, a construir a memória da
família.
O casamento em transformação: o que as charges denunciam
Um trabalho muito interessante foi desenvolvido por Queluz (2006), quando analisou as
representações da mulher presentes na revista de humor: A Bomba, de 1913, editada em Curitiba, no Paraná.
A autora comenta que a caricatura do início do século XX, de um modo geral, voltou-se para a cidade, para os
que nela viviam e transitavam. Deste modo, a caricatura reciclava os discursos da ciência, da arte, da
publicidade, da moda, do teatro, da imprensa, e buscava dar sentido à experiência urbana.
Ainda em um contexto do advento da República, das reformas urbanas e das inovações técnicas,
Queluz (2006) entende que:
a imprensa investiu num novo horizonte de imagens e o humor gráfico teve um
papel importante nesse processo. Mesmo em meio a um ranço moralista, a agência
da contestação foi dada às mulheres. Ao zombar do espaço almejado pela mulher e
do espaço que ela realmente ocupava na sociedade, as caricaturas deixavam
entrever as instâncias de luta, ao mesmo tempo, que davam voz, criavam /
integravam novos espaços (p.16).
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A figura feminina era muito constante nas charges e, ainda que não fosse a maioria, nem por isso a
presença das mulheres era menos instigante ou polêmica. Rachel Soihet, ao comentar sobre as
representações femininas, lembra que “o recurso da ironia e da comédia foi um poderoso instrumento para
desmoralizar a luta pela emancipação feminina e reforçar o mito da inferioridade e da passividade da
mulher” (apud QUELUZ, 2006, p.16). Ela afirma também que a charge teve um papel importante nesse
processo.
De todo modo, ainda que esta análise seja importante nos estudos das artimanhas de dominação e
exclusão da mulher em diversos setores, Queluz (2006) questiona que há uma riqueza do próprio mecanismo
da caricatura e da linguagem paródica. Afinal, a ambiguidade e a ironia dessas imagens acabam por revelar
também as novas conquistas e os outros caminhos trilhados pelas mulheres.
Esta autora, ao analisar as caricaturas da revista Bomba, percebe que os caricaturistas, em muitos
momentos, destacam a atuação da mulher, sua participação nas decisões, quando sugerem mudanças de
padrões, até mesmo na moda. Assim, vai se observar que as mulheres são representadas tomando
iniciativas, o que causa espanto, e é evidenciado nos desenhos das charges. Também seu papel no casamento
e na família é exposto e questionado. Neste sentido, vale destacar uma das charges que a autora analisa no
texto, e que ao mostrar um casal, na sequencia de dois desenhos, (espécie de história em quadrinhos),
mostrará na primeira homem e mulher próximo um ao outro, e no segundo, distantes. As imagens ainda vem
acompanhadas da seguinte legenda:
Na véspera do casamento:
I - Amamo-nos tanto... E se nos casássemos?
- Era nisso que estava pensando
II - Estamos tão aborrecidos... e se nos divorciássemos?
- Estava pensando justamente nisso.
(A Bomba, n. 12 – 30 set. 1913, apud QUELUZ, 2006, p. 19)
No entendimento de Queluz (2006) já era uma tradição cômica europeia ironizar os hábitos
burgueses. Deste modo, observa-se que no final do século XIX os caricaturistas referiam-se à hipocrisia do
casamento indissolúvel, numa sociedade decadente em que o adultério era uma prática aceita, que com o
divórcio apenas seria amenizada.
Nesta perspectiva vale a pena citar ainda outra charge analisada pela autora, que retrata o desenho
de um homem conversando com uma senhorita, supostamente em um banco de jardim. A moça está sentada,
de saias, bem vestida, e o rapaz, de terno e em pé, inicia o diálogo. O texto que acompanha a charge, é
nominado de “Precocidade Moderna”, e segue abaixo:
Ele – Então a senhorita não pretende casar?
Ela (15 anos) – Talvez, mas tenho medo de uma coisa...
Ele – Do que?
Ela – De logo ficar enjoada do marido.
(H. Scotti. A Bomba, n. 4 – 10 jul. 1913, apud, QUELUZ, 2006, p.20)
Queluz (2006) destaca, que embora o tema das charges seja o casamento, a ameaça do divórcio e o
questionamento desta instituição feito por parte das mulheres é o que sobressai. Há uma zombaria ao espaço
almejado pela mulher e do espaço que ela realmente ocupa na sociedade. As caricaturas, na opinião da
autora, deixariam entrever as instâncias de luta, as sutilezas dos discursos, e ao mesmo tempo que dão voz,
criam e integram novos espaços.
As charges e caricaturas dão visibilidade às tensões entre a busca da emancipação
feminina e as imposições culturais, produzindo um discurso polifônico e dialógico,
reconstruindo o olhar sobre o outro. Deixam entrever as práticas cotidianas do
espaço da cidade e a re-articulação das relações sociais. (QUELUZ, p. 21)
Observa-se uma antevisão sobre os sonhos femininos, e que provavelmente revelavam as mudanças
que vinham sendo sentidas nos padrões de comportamento urbanos. A charge, enquanto componente
artístico, vai representar esteticamente o que vai se observando no cotidiano. Todavia, há que se refletir
sobre o resistência da sociedade brasileira sobre o divórcio. Se pensarmos que 1913 a temática do divórcio já
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estava estampada em jornais e revistas no Brasil, e que a Lei do Divórcio só será aprovada em 1977, temos aí
64 anos de discussões e enfrentamentos à temática.
Ainda nesta esteira de análise de como as charges podem ter contribuído para colocar em questão os
papéis de gênero e, em especial, o lugar do casamento na vida da mulher, encontramos outro trabalho muito
interessante realizado por Bonadio e Boaventura (2013). Estas autoras buscaram observar como as imagens
em conjunto com o design gráfico desempenharam papel importante na imprensa feminina. Para tanto, elas
analisaram as ilustrações e layouts do designer gráfico Alceu Penna para as seções femininas da revista A
Cigarra, 3 no período entre 1947-1955.
As autoras esclarecem que nas décadas de 1940 e 1950, as reportagens veiculadas na revista Cigarra
eram produzidas pela mesma equipe de O Cruzeiro e abordavam principalmente temas leves, como esportes,
costumes e fatos curiosos. As seções de humor, literária e feminina eram também bastante atrativas em
termos visuais, especialmente a partir de 1947, quando a revista ganha mais páginas coloridas e aprimora
seus layouts e efeitos gráficos. Dentre os artistas gráficos que atuavam na revista, estavam Armando Alves
Pacheco (1913-1965), André Le Blanc (1921-1991), Santa Rosa (1909-1956) e Alceu Penna (1915-1980). Os
três primeiros atuaram especialmente na seção literária e o último nas colunas dedicadas às mulheres.
(BONADIO; BOAVENTURA, 2013, p. 661).
As autoras focalizam este período de Alceu Penna na revista, e suas ilustrações na seção literária. Ele
não só teria ilustrado as colunas femininas, como produziu uma determinada identidade visual para o
espaço, no período 1947-1955, quando sua participação na revista é largamente ampliada. Alceu Penna já era
um artista gráfico bastante conhecido no País, especialmente pela seção “As Garotas”, que era veiculada na
revista O Cruzeiro desde novembro de 1938. Porém na Revista Cigarra, merece destaque sua seção
intitulada: “O Marido de Madame”. Nesta, o artista gráfico traz à baila um outro modelo de casamento. A
esposa, por ele representada, foi chamada de Lolita, e, ainda que aparentasse ser uma jovem adulta, vestia-se
seguindo as linhas da moda parisiense. A personagem, ocupou, ao lado do seu marido Gonçalo, duas páginas
por edição durante seis anos, entre 1948 e 1954. Nestas charges as mulheres que Alceu representava
pareciam reverter situações comumente associadas à submissão feminina.
Bonadio e Boaventura comentam sobre o trabalho de Alceu Penna:
Ainda que o principal personagem masculino fosse denominado Gonçalo, o título
da história referia-se a ele apenas como marido, trazendo aqui uma inversão
curiosa, pois, na época, o comum era as mulheres verem seus nomes suprimidos
em prol dos sobrenomes dos esposos. Nas colunas sociais, as mulheres eram
denominadas Srª Fulana ou Srª. Beltrano, perdendo seus primeiros nomes e
consequentemente parte de sua identidade o [...] Já no quadrinho de A Cigarra,
Gonçalo (de quem não sabemos o sobrenome) era, no título e nas histórias, o
“Marido de Madame” ou o marido de Lolita. O casal quebra ainda com a imagem
exemplar da família nuclear, pois não tem filhos e em nenhuma das tiras há
indícios de que estão planejando tê- los. As histórias revelam também que a dupla
vivenciava uma relação conjugal um pouco “fora do comum”, pois apesar de
Gonçalo ser o provedor do lar, era a esposa quem possuía poder e domínio sob o
marido. Ainda que o humor atenuasse a situação, a história deixa evidência que era
Lolita quem tomava as decisões em casa – mesmo estas decisões se baseassem,
sobretudo em seus caprichos ou desejos de consumo. Desta maneira, “O Marido de
Madame” aponta uma alteração no modelo vigente, pois o marido é que está
associado a uma imagem de submissão na relação conjugal. (2013, p. 673)
De fato, a sessão “O Marido da Madame” trará ainda outro modelos relacionais a serem discutidos.
Gonçalo será apresentado lavando a louça. As autoras ressaltam,que na obra de Alceu Penna ele utilizou um
recurso gráfico interessante ao representar o homem, no caso Gonçalo. O desenho de Gonçalo era feito em
uma escala menor que a esposa, que na maioria das vezes vinha representada em primeiro plano (e portanto,
maior que o marido). Também os tipos usados na grafia do título reforçam o papel submisso de Gonçalo,
A Cigarra, de acordo com Bonadio e Boaventura (2013, p.654) “foi uma das mais longevas revistas já publicadas no Brasil. Lançada em
1914, circulou até 1975, perfazendo, portanto, mais de 60 anos de existência. Em seus primeiros anos era editada em São Paulo por
Gelásio Pimenta, seu editor-fundador”. Assim, entre os anos de 1940 e 1950, sob a direção de Frederico Chateaubriand a revista atingiu
o auge de sua popularidade.
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pois a palavra “marido” vinha grafada em caixa baixa e letra de traços finos, e em contrapartida “madame”
era grafada em caixa alta, em tamanho grande, com contornos em preto e miolo em vermelho.
Na análise do trabalho de Alceu Penna, Bonadio e Boaventura (2013) depreendem também a crítica
ao perfil feminino, até então idealizado. Afinal, Lolita não sabia cozinhar, e em inúmeras ocasiões, irá
alimentar o marido com enlatados ou sanduíches. Lolita também não sabe costurar, outra tarefa
frequentemente associada a uma boa esposa e, assim, é Gonçalo quem aparece pregando botões na camisa.
Outro detalhe, após a refeição, Lolita aparece fumando e conversando animadamente com as amigas,
enquanto Gonçalo, arruma os pratos e lava a louça na pia. São charges na década de 40 e 50. Isto é muito
interessante. Penna também questionou um dos preceitos comumente veiculados na imprensa feminina, o da
obediência ao marido. As charges mostram Gonçalo recebendo as ordens de Lolita e, na maioria das vezes,
obedece sem pestanejar. Assim, como uma seção em que Lolita viagem sozinha e o esposo fica em casa.
Bonadio e Boaventura (2013), concluem que embora se tratasse de uma personagem de ficção, Lolita
poderia ser uma moça à frente do seu tempo que começava a romper com os papéis estabelecidos. Começava
a ser descortinado um perfil individualista que ganharia mais espaço na sociedade após a Segunda Guerra,
até tornar-se dominante no final do século XX. Ressaltam, ainda, que uma das questões mais colocadas nos
debates acerca dos estudos de gênero, quando relacionados à produção imagética, é que geralmente as
imagens que povoam a arte e a cultura de massas são produzidas por e para os homens. Todavia, se há o
questionamento das questões de gênero, e ainda, de uma forma tão bem-humorada, Alceu Penna acaba por
interpelar sobre o modelo de casamento vigente e suas possíveis transformações.
Arte, representação e a funcionalidade de “ser visto”
Os textos lidos e analisados nos permitem pensar que a fotografia ou as charges parecem contar uma
história sobre o vivido e as relações de poder. Os casamentos vem se modificando ao longo do tempo, outros
formatos de família foram sendo estruturados, e as imagens denunciam estas realidades. Todavia há que se
notar que a necessidade de registrar em imagens os rituais de passagem continua sendo uma tônica marcante
no contemporâneo.
Neste aspecto Leite (1991) reforça que o retrato de casamento vai passar a ser um ritual
complementar ao rito de passagem (casamento), desde os primórdios da invenção e difusão comercial da
técnica fotográfica. E ainda que tenha havido uma diminuição dos casamentos, bem como, podemos
acrescentar, uma alteração sensível nos modos relacionais e sexuais das uniões, muitos desses ritos vigoram,
e “o retrato de casamento se conserva um ritual legitimador da família, funcionando mesmo como um elo de
gerações e de concórdia, quando, depois de uma união não aprovada, o casal se legitima e é aceito pelas
famílias de origem” (LEITE, 1991, p. 183).
O que se vai observar é que as despesas com o fotógrafo, material fotográfico, cerimonialista, mesmo
em famílias de parcos recursos, passaram a fazer parte dos orçamentos festivos, e da ostentação dos trajes
que marcam a festa do casamento. Os modelos de casamento tem se modificado, é uma realidade. Mas as
exigências ao ritual de casamento tem permanecido.
Também se modificaram os modos de fazer os registros. Tivemos a época das fitas cassete, gravações
em vídeos, até chegarmos agora na época da “selfie”, onde o registro em vídeo permite em tempo real
compartilhar com “o mundo inteiro” o acontecimento. Parece que registrar o casamento, hoje em dia,
também responde a um ditame contemporâneo, que repousa na necessidade de ser visto, “reconhecido” e
“curtido”. 4
Dockhorn e Macedo (2008) ponderam que atualmente o desejo já não mais é visto pelo sujeito como
um instrumento de modificação e reinvenção de si mesmo, da ordem social e do mundo. Ao contrário, os
destinos do desejo apontam para uma direção exibicionista e autocentrada, na qual o espaço de
intersubjetividade torna-se esvaziado e desinvestido. Enfim, a reflexão sobre os modos de subjetivação
contemporânea, fazem parte desta “formato” de como se faz o registro de casamentos hoje em dia, todavia,
não vamos enveredar nesta discussão, já que esta temática rendaria outro artigo.
Nossa tentativa centrou-se em pensar como vem sendo feita a representação artística do casamento.
Pudemos ver, que especificamente no Brasil, o registro do casamento é marcado pela fotografia. Mas na
imprensa, o casamento foi apresentado através das charges, quando com humor, criticava-se e se denunciava
as transformações que esta instituição foi sofrendo ao longo do tempo. Slavutzky (2014) e outros autores tem
Curtir uma foto nas redes sociais, tem representado para boa parte das pessoas, uma prova de popularidade, de valorização social, e
denota um hábito em nossos dias, que de acordo com alguns autores marca o narcisismo do sujeito encontrando novas formatos de
expressar-se no contemporâneo.
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chamado a atenção para o poder do humor de transformar a realidade, diminuindo o poder do medo. O
papel do humor é muito interessante neste sentido, visto que, nas palavras de Slavutzky, “O humor cria uma
realidade ilusória, a partir da própria realidade. A ilusão gerada pelo humor é criativa e facilita as relações
com a realidade externa, é na verdade uma nova visão sobre ela” (2014, p.331).
A arte, como exposto, tem ajudado a registrar a história e a sensibilizar para o que foi vivido. Porém,
atualmente o casamento vão é visto mais como o único ritual de fundação de uma família. Talvez hoje se case
por razões diferentes do que se casou um dia. Há um sentido prático no casamento, bem aponta Leite (1991):
dividir o aluguel, obter o visto, registrar os filhos da união. Uma expectativa nova nos casamentos hoje em
dia é que eles devem ser felizes. Existe até mesmo a fantasia de que será uma alegria permanente, o que
também leva ao número grande de divórcios e separações, pois, há muita dificuldade em lidar com as
frustrações em um relacionamento.
Enfim, o casamento se transformou, e o número de divórcio vem aumentando. Novos formatos de
família são uma realidade. Mas, parece que o que não muda é a necessidade de registrar a união, o que
poderia estar ligado a uma necessidade da memória individual e coletiva. Como se, precisássemos
“imortalizar” o momento vivido, para que ele possa ser significado como existente. Sendo assim, “as
fotografias não são representações ou provas da realidade, mas colocam-se como produtoras de olhares, de
modos de ver e compreender o mundo, produzindo, ao mesmo tempo, o próprio mundo” (DIAS, 2016, p.87).
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Museu Municipal de Três Arroios:
a narrativa da história na exposição de longa duração
Maurício da Silva Selau1
Fabíola Pezenatto2
João Paulo Corrêa3
Resumo: Três Arroios é um munícipio da região Alto Uruguai no Norte do RS. A colonização foi organizada
pela Companhia Luce, Rosa e Cia, com o assentamento das primeiras famílias em fevereiro de 1917. Marcado
pela presença de famílias de origem alemã, a ocupação do solo teve migrantes das antigas colônias do RS e
outras vindas diretamente da Europa. No ano de 2017, Três Arroios comemorou o centenário da colonização
e o 30º aniversário de emancipação. O poder público municipal promoveu um conjunto de atividades para
celebrar a data reconhecendo o trabalho e dedicação do povo tresarroiense e de entidades que contribuíram
com o desenvolvimento social, econômico e cultural do município que está com um dos melhores índices de
desenvolvimento socioeconômico (IDESE) no país. A partir do século XXI houve um esforço para que a
história local fosse registrada. Três publicações, com apoio do poder público, foram elaboradas. As
publicações versam sobre a história do município desde a colonização até o ano da respectiva publicação
(2004, 2013 e 2017). Escritos numa perspectiva factual, são evidenciados os principais passos do
desenvolvimento econômico, político e cultural de Três Arroios. A valorização da história e da cultura estão
presentes na política de gestão e no período de 2013 a 2016 foi realizado o restauro da Casa Canônica. A
edificação, construída em 1944, foi cedida em comodato para a Prefeitura Municipal que com recursos da Lei
de Incentivo a Cultura (LIC) do RS implantou a Casa da Cultura. A edificação abriga espaços administrativos
e conta com sala de estudos e cozinha experimental para cursos e oficinas, um auditório para palestras e
eventos culturais, e um espaço privilegiado no sótão onde será implantado o Museu Municipal que busca
preservar os testemunhos materiais da história municipal e valorizar a identidade do povo tresarroiense. As
funções básicas de um museu são apresentadas pela nova museologia com um tripé de atuação bem definido:
salvaguarda, pesquisa e comunicação. Ao longo de 2018 a contratação de assessoria técnica especializada em
museologia fez com que os trabalhos para implantação do museu efetivamente ocorressem com base nos
princípios e técnicas apropriadas, resultando no projeto da exposição de longa duração que está em processo
de montagem. O acervo a ser exposto foi coletado com base na pesquisa temática para a exposição e passou
por tratamento técnico visando sua conservação. Uma nova abordagem para a trajetória histórica e cultural
do município é apresentada na exposição, promovendo uma “reescrita da história” por meio de temas
relevantes e de uma narrativa que valoriza a memória coletiva ao invés dos fatos de forma isolada,
evidenciando pontos cruciais para compreender o município. Além de um ponto turístico relevante para o
município e região, o museu será um espaço importante para a prática pedagógica, o diálogo e a promoção da
memória coletiva, estando aberto ao público, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento.
Três Arroios é um munícipio da região Alto Uruguai no Norte do Rio Grande do Sul. A colonização
foi organizada pela Companhia Luce, Rosa e Cia, com o assentamento das primeiras famílias em fevereiro de
1917. O centenário da colonização, em 2017, foi celebrado com diversas atividades que valorizaram a história
do município e a memória de seus habitantes. Neste contexto, se insere o Museu Municipal de Três Arroios
que apresenta uma nova abordagem para a trajetória histórica e cultural do município na exposição de longa
duração, promovendo uma “reescrita da história” por meio de temas relevantes e de uma narrativa que
Historiador pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) – Criciúma/SC (2000), Mestre em História Cultural pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianópolis/SC (2006) e Doutorando em Museologia pela Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologia. Sócio da Viés Cultural: Museologia e Patrimônio - Imbituba – SC. mauricio@viescultural.com.br
2 Licenciatura em Ciências Sociais, pela Universidade Federal da Fronteira Sul, UFFS – Erechim, Especialização em pedagogia
empresarial e educação corporativa pela UNINTER- Erechim. fabiolapezenatto@gmail.com
3 Museólogo pelo Centro Universitário Barriga Verde (UNIBAVE) - SC (2010) e sócio da empresa Viés Cultural: Museologia e
Patrimônio. - Imbituba – SC. viescultural@viescultural.com.br
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valoriza a memória coletiva, ao invés dos fatos de forma isolada, evidenciando pontos cruciais para
compreender o município.
A Colonização
Após a proclamação da República, a colonização no Brasil passou para a responsabilidade dos
Estados. No Rio Grande do Sul a Lei n.⁰ 28 de 05 de outubro de 1899, regulamentada pelo Decreto n.⁰ 313 de
04 de julho de 1900, definiu parâmetros para que terras devolutas ainda existentes pudessem ser
colonizadas. A região Norte do Estado, conhecida como Alto Uruguai, passou a ser estudada para
implantação de colônias. Este processo contribuiu para que caboclos e indígenas, presentes nestas áreas,
fossem direcionados para outros locais ou reservas demarcadas pelas Comissões de Terras 4.
A colonização de Três Arroios foi organizada pela Companhia Luce, Rosa & Cia, que iniciou sua
atuação no Norte do Estado em 1916. A principal sede na região ficava em Barro (atual Gaurama) onde havia
a estação da Estrada de Ferro mais próxima da área da colônia. Esta companhia era responsável por
organizar a infraestrutura das ruas e estradas, demarcar os lotes e gerenciar a venda e o recebimento dos
valores relativos aos lotes coloniais. Os lotes rurais tinham 25ha cada e os lotes urbanos 1250m².
Marcado pela presença de famílias de origem alemã, a ocupação do solo em Três Arroios começa em
17 de fevereiro de 1917, com migrantes das antigas colônias do Rio Grande do Sul e outras vindas
diretamente da Europa5. Pouco depois chegam migrantes de outras nacionalidades, em especial italianos.
A procura pelas terras na região do Alto Uruguai era estimulada: pela escassez de terras à venda nas
colônias velhas, forçando as novas gerações de descentes de imigrantes a mudarem para outras regiões; a
fertilidade do solo; a proximidade com a Estrada de Ferro; e também a fuga dos constantes conflitos armados
que marcaram a luta pelo poder político no Rio Grande do Sul durante a República Velha 6.
Três Arroios no início da colonização, 1917
Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios
CHIAPARINI, Enori José et all. Erechim: retratos do passado, memórias do presente. Erechim: Graffoluz, 2012.
ZAHNER, Alexandre. Conhecendo Três Arroios: o Príncipe dos Vales do Alto Uruguai. Erechim: Editora São Cristóvão, 2004
6 CHIAPARINI, Enori José et all. Erechim: retratos do passado, memórias do presente. Erechim: Graffoluz, 2012.
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A emancipação
No contexto Sul brasileiro as sedes das colônias desde sua fundação tinham potencial para em pouco
tempo formar uma vila. A médio e longo prazo, conforme o nível de desenvolvimento econômico, podiam se
tornar municípios. A emancipação era sinônimo de vitória para os primeiros moradores e seus descendentes,
pois marcava o progresso obtido por aquela coletividade que se esforçara a iniciar o povoamento em uma
nova fronteira agrícola.
Na década de 1920 era notável o aumento das construções de residências e aumentava o número de
casas de comércio abertas em Três Arroios. No alto da colina se destacava a edificação da escola e da igreja,
que cumpriam importante papel na formação social da colônia, coordenados pela ordem franciscana que
atendeu a população, nos primeiros tempos do povoado, com serviços que a princípio eram de competência
do Estado.
Três Arroios no início da década de 1920
Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios
O desenvolvimento marcado pela agricultura, impulsionou o setor de serviços e as industrias
artesanais começaram a se estabelecer para atender os moradores locais. Esta evolução fez as lideranças
locais lutarem por mudanças administrativas. Pela Lei nº 244, de 08 de julho de 1953, Três Arroios foi
elevado a Distrito de Erechim.
Nas décadas de 1950 e 1960 houve grande movimento pela emancipação de municípios em todo o
país. Na região do Alto Uruguai alcançaram esta condição: Gaurama (1953), Aratiba (1955), Viadutos (1959),
Severiano de Almeida (1963) e Mariano Moro (1966). Uma Assembleia Geral foi organizada em Três Arroios,
no ano de 1965, para discutir a proposta de emancipação. Com 171 eleitores favoráveis, foi formada uma
Comissão pró-emancipação. Entretanto, o sonho da transformação em município teve que ser adiado, pois,
quando foi oficializado o pedido para a emancipação, houve mudanças na legislação.
No início dos anos 1980, a evolução das tecnologias e a chegada da eletricidade nas comunidades do
interior transforma a maneira de produzir no campo. A mecanização da lavoura e a chegada da primeira
colheitadeira, novas formas de armazenamento de alimentos e sua distribuição, alteram o cotidiano rural.
Nesta época a Emater põe em prática o Plano Estadual de Extensão Rural (popular projetão) que colocou
extensionistas próximos às famílias de produtores rurais, contribuindo para melhora dos resultados
econômicos, uma vez que os conhecimentos técnicos postos em prática aumentavam a produtividade.
Gradativamente os produtores migraram da produção de subsistência para uma agricultura
comercial, reestruturando as propriedades em busca de melhores rendimentos. A agricultura comercial
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trouxe diversificação da produção no munícipio, mas especializou as propriedades com produção de suínos e
aves na forma integrada, o aumento da produção leiteira, o cultivo de frutas e a diversificação da produção de
grãos.
Este processo deu novo impulso econômico ao município e estimulou as lideranças políticas e a
comunidade a buscar a emancipação. No dia 11 de setembro de 1985, foi realizada uma reunirão no salão do
Grêmio Esportivo Tresarroiense na qual se constatou que Três Arroios possuía os requisitos para ser
emancipado. Com a aprovação dos presentes uma nova Comissão Pró-Emancipação foi eleita. No dia 20 de
setembro de 1987 realizou-se o plebiscito com a presença de 1417 eleitores, dos quais 1342 votaram SIM. A
Lei Estadual n.⁰ 8.422 de 30 de novembro de 1987 oficializou a criação do município de Três Arroios.
Três Arroios na década de 1980, após a emancipação
Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios
Após a emancipação, Três Arroios gradativamente organizou sua infraestrutura. Com autonomia
administrativa os serviços à população se tornam mais acessíveis. O município possui um dos melhores IDH
(Índice de Desenvolvimento Humano) do país. O desenvolvimento local oportunizou o aumento no núcleo
urbano e a diversificação do comércio local e do setor de serviços. O turismo é uma atividade que aos poucos
começa a aproveitar seu grande potencial em razão das águas termais e das belezas naturais. O setor
industrial, em expansão, contribui para a melhora dos índices econômicos. A sustentabilidade é o grande
desafio para o futuro, de forma que o município se desenvolva e mantenha a qualidade de vida de sua
população.
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Vista aérea de Três Arroios em 2015
Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios
Centenário de colonização e a valorização da história
A comemoração que uma comunidade faz no centenário de sua colonização marca a coletividade,
celebrando as realizações de gerações que se sucederam na construção daquele povoado, depois uma vila,
mais tarde uma cidade. Estes momentos festivos são mobilizados, para reforçar os laços identitários, e
promover uma memória, valorizando a trajetória histórica dos membros desta comunidade. Pois como
aponta Gillis
Nós temos que ser lembrados de que memória e identidades não são coisas fixas,
mas representações ou construções da realidade, fenômenos subjetivos em vez de
objetivos. Estamos constantemente revendo nossas memórias para adaptar as
nossas identidades atuais. Memórias nos ajudam a fazer sentido no mundo em que
vivemos; e “trabalho de memória” é, como qualquer outro tipo de trabalho físico ou
mental, embutido em relações complexas de classe, gênero e poder que
determinam o que relembrado (ou esquecido), por quem e para que fim.7
No ano de 2017, Três Arroios comemorou o centenário da colonização e o 30º aniversário de
emancipação. O poder público municipal promoveu um conjunto de atividades para celebrar a data
reconhecendo o trabalho e dedicação do povo tresarroiense e de entidades que contribuíram com o
desenvolvimento social, econômico e cultural do município. Neste sentido, memórias foram mobilizadas
neste contexto para valorizar a trajetória histórica dos habitantes de Três Arroios, evidenciando suas
memórias em torno das celebrações do centenário do município que coincidiu com o trigésimo aniversário de
emancipação política.
Entre as atividades da programação do centenário ganhou destaque a Maratona Fotográfica, que
possuía como tema: “Registros além da Memória - Resgatando o Centenário da nossa História”. O principal
propósito era envolver a população na busca por registros fotográficos para valorizar o legado deixado pelos
GILLIS, John. Memory and Identity: the History of a Relationship. In: GILLIS, John (ed.) Commemorations: the politics of national
identity. Princeton: Princeton University Press, 1994.
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colonizadores do município. Mais de 120 fotografias foram inscritas, revelando imagens, que muitas vezes,
ficam guardadas em álbuns de família 8.
As fotos participantes foram ampliadas e tratadas por estúdio especializado. Em seguida, foram
disponibilizadas a um corpo de jurados, que escolheu as melhores, através de vários critérios. Em evento na
Casa da Cultura, ficaram em exposição para visitação do público. Os vencedores com as melhores fotos foram
premiados e o conjunto de fotos participante da Maratona foi amplamente divulgado por meio de uma
exposição itinerante que percorreu diferentes locais do município. Hoje estas imagens compõem o acervo do
Museu Municipal de Três Arroios. A maratona fotográfica foi premiada em primeiro lugar na área cultura do
2⁰ Prêmio Boas Práticas na Gestão Municipal promovido pela FAMURS (Federação das Associações de
Municípios do Rio Grande do Sul)9.
A mobilização da comunidade foi o principal resultado da maratona, uma vez que olhar as fotografias
antigas possibilitaram refletir sobre a trajetória de vida por ela percorrida, onde as imagens apresentam um
valor importante para a memória visual e sociocultural de um povo e seu ambiente de vida, na perspectiva de
uma releitura histórica do espaço em que esta população está presente há um século.
Evento de entrega da premiação aos vencedores da Maratona Fotográfica
Fonte: Acervo da Diretoria de Meio Ambiente de Três Arroios
Desta forma, a maratona mobilizou a memória da comunidade sobre seu passado e seu significado
no presente. Pollak destaca entre as características da memória, está o a condição de que ela é seletiva. Nem
tudo fica gravado, nem tudo fica registrado 10. O caráter seletivo da memória é reforçado pela noção de
pertencimento afetivo11 ao grupo ao qual um determinado indivíduo pertence, pois o sentimento de
continuidade presente naquele que se lembra é o que faz com que uma dada memória permaneça. “Assim,
situações vividas só se transformam em memória se aquele que se lembra sentir-se afetivamente ligado ao
grupo ao qual pertenceu. Aliás, ao qual pertence, pois só se faz parte de um grupo no passado se se continua
afetivamente a fazer parte dele no presente”12.
A memória, apesar de parecer algo estritamente individual, tem por suporte um grupo social,
com o qual a mesma é compartilhada, sem realizar uma ruptura entre o passado e o presente porque só
Projeto da Maratona Fotográfica “Registros além da Memória- Resgatando o Centenário da Nossa História”. Prefeitura Municipal de
Três Arroios.
9 Projeto de Três Arroios é vencedor na categoria Cultura do Prêmio Boas Práticas da FAMURS. Jornal Boa Vista, Erechim, edição do dia
06 de julho de 2018.
10 POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v. 5, n. 10, 1992, p.
200-212.
11 Noção elaborada por M. Halbwachs citada por D’ALÉSSIO, Márcia Mansur. Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora. In: Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 13, n. 25/26, set/92-ago/93, p. 98-9.
12 D’ALÉSSIO, p. 98.
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retém do passado aquilo que ainda é capaz de viver na consciência do grupo que a mantêm. Mas ao mesmo
tempo em que essa memória é seletiva e mantida por um determinado grupo, ela também é uma construção,
na medida em que está sujeita a flutuações, transformações e mudanças constantes, mediadas pelo presente
em que o grupo vive, de modo que a memória é também uma construção do passado e está aberta e em
constante evolução13.
Assim, as pessoas que fazem parte de um determinado grupo mantêm suas lembranças, que são
pessoais e, ao mesmo tempo, coletivas, pois como explicou Pollak com base nos elementos constitutivos da
memória, esta seria composta por acontecimentos, personagens e lugares e que os indivíduos têm
experiências pessoais, das quais participam diretamente e experiências do grupo, com as quais têm contato e
que nem sempre participa, mas que marcam de tal forma uma coletividade que ganham destaque e passam a
ser incorporados nas narrativas dos que compõem o grupo.
O município de Três Arroios valoriza muito as tradições culturais dos primeiros colonizadores, seu
passado e sua história. Preserva lugares, espaços e memórias que são passadas de geração a geração. A
população se sentiu valorizada, ao buscar em suas residências, os registros antigos em fotografias, para
compartilhá-los com toda a comunidade. Deste modo, contribuiu para o sucesso da maratona fotográfica não
só no sentido formal do evento, mas principalmente na mobilização da memória coletiva.
A partir do século XXI houve um esforço para que a história local fosse registrada. Três publicações,
com apoio do poder público, foram elaboradas: Conhecendo Três Arroios de Alexandre Zahner, Três
Arroios: Nossa História de autoria da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto, e Cem Anos de
História: Três Arroios-RS também de autoria da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto. As
publicações versam sobre a história do município desde a colonização até o ano da respectiva publicação
(2004, 2013 e 2017). Escritos numa perspectiva factual, são evidenciados os principais passos do
desenvolvimento econômico, político e cultural de Três Arroios. Embora relevantes como fontes de
informação, estas obras carecem de uma reflexão mais profunda sobre o significado histórico dos eventos
relatados.
É significativo que das três obras, duas tenham sido publicadas, respectivamente, nas gestões de
Lírio Antônia Zarichta e Luís Valdecir Pertuzatti, eleita em 2012 para o período 2013 a 2016, e reeleita neste
ano, para o período 2017 a 2020. A valorização da história e da cultura estão presentes na política de gestão
desta administração, que vem desenvolvendo estratégias para que a memória seja preservada e os munícipes
conservem as referências do passado.
Umas das ações mais significativas desta política de valorização da história municipal, foi realização
do restauro da Casa Canônica, concluído no ano de 2016. A edificação foi cedida em comodato para a
Prefeitura Municipal que com recursos da Lei de Incentivo à Cultura (LIC) do RS implantou a Casa da
Cultura. A Casa Canônica foi construída na década de 1940 e tornou-se uma das referências arquitetônicas de
Três Arroios. Em essência sua preservação por meio do restauro e atribuição de uso como Casa da Cultura,
consubstancia o que Nora articula com o conceito de “lugares de memória”. Para ele "os lugares de memória
nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar
celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notoriar atas, porque estas operações não são
naturais"14.
Partindo desta premissa, os lugares de memória são como espaços de ritualização, onde uma “memóriahistória” permite a representação de lembranças comum dos indivíduos, construindo uma narrativa que se
apresenta coletiva, mesmo composta por particularidades de cada indivíduo. Em função dessa identidade
coletiva, os grupos desenvolvem símbolos que se tornam comum a todos, como representações de sua
identidade. Dessa forma a memória é variante, se projetando em diversos símbolos, espaços e tempos, os lugares
de memória, que permite que o indivíduo estabeleça identificação com seu espaço de vivência.
Nesta perspectiva, o processo de restauro da Casa Canônica buscou adaptar a edificação ao novo uso,
uma Casa de Cultura, que por sua finalidade, reafirma uma função de memória para um patrimônio
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POLLAK, p. 200-212.
NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, nº 10, dezembro de 1993.
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identitário de Três Arroios, seja por seu símbolo religioso, arquitetônico ou mesmo pelo seu uso atual. Para
tanto, algumas intervenções visando melhorar os espaços foram feitas, porém sempre deixando claro para o
visitante o que é material original e o que foi inserido atualmente.
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Casa Canônica antes e no início das obras de restauro
Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios
Casa Canônica durante as obras de restauro
Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios
A madeira, elemento de grande importância para a edificação foi tratada e conservada, retirando-se
os forros para manter aparente a estrutura de cobertura e valorizando o trabalho magnífico de carpintaria da
época. O restauro valorizou a história e memória coletiva ao mostrar a importância do patrimônio histórico
às futuras gerações e preservar a edificação que é parte da identidade do município.
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Casa Canônica após a conclusão das obras de restauro
Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios
A edificação abriga espaços administrativos e conta com sala de estudos e cozinha experimental para
cursos e oficinas, um auditório para palestras e eventos culturais, e um espaço privilegiado no sótão onde
será implantado o Museu Municipal que busca preservar os testemunhos materiais da história municipal e
valorizar a identidade do povo tresarroiense.
A reescrita da história no Museu Municipal
As funções básicas de um museu são apresentadas pela nova museologia com um tripé de atuação bem
definido: preservação, pesquisa e comunicação. Para Desvallées e Mairesse15, essas funções podem ser
organizadas por “[...] preservação (que compreende a aquisição, a conservação e a gestão das coleções), a
pesquisa e a comunicação. A comunicação, ela mesma, compreende a educação e a exposição”. É imprescindível
perceber que essas funções não são executadas individualmente, elas exigem um comprometimento coletivo e
inter-relacionado.
Ao longo de 2018, a Prefeitura Municipal de Três Arroios investiu na contratação de assessoria técnica
especializada em museologia para a implantação do Museu Municipal de Três Arroios. Isto possibilitou que os
trabalhos efetivamente ocorressem com base nos princípios e técnicas apropriadas, resultando no projeto da
exposição de longa duração que está em processo de montagem.
Com base no tripé de atuação museológico, a equipe contratada junto com a equipe da Prefeitura
desenvolveu atividades de pesquisa, preservação e comunicação para que a exposição de longa duração
cumprisse seu objetivo maior, o de valorizar a memória coletiva dos habitantes de Três Arroios que por meio de
uma narrativa que promove reflexões sobre a história do município.
Uma pesquisa sobre a história do município foi realizada a partir da leitura das obras produzidas no
município, por livros publicados sobre Erechim, município do qual Três Arroios obteve sua emancipação,
entrevistas com moradores, consulta a fotografias do acervo do Museu e de particulares, pesquisa em
documentos no Arquivo Histórico de Erechim, Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul, na Prefeitura
Municipal e nos museus da região do Alto Uruguai no Norte do estado gaúcho.
Foi possível construir uma nova abordagem para a trajetória histórica e cultural do município,
promovendo uma “reescrita da história” por meio de temas relevantes e de uma narrativa que valoriza a
memória coletiva ao invés dos fatos de forma isolada, evidenciando pontos cruciais para compreender o
município.
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Tradução: Bruno Brulon Soares, Marília Xavier
Cury. ICOM: São Paulo, 2013. p. 22-23.
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Na exposição, estes temas foram divididos por núcleos temáticos que evidenciam a formação do
núcleo colonial, a evolução política, as transformações que marcaram um povoamento com agricultura de
subsistência para uma agricultura comercial, as indústrias artesanais, a música problematizada como parte
da identidade local, e o papel da ordem religiosa franciscana na formação de Três Arroios, quando estruturou
a assistência religiosa, educacional e social nos primeiros tempos do povoado, assumindo funções que eram,
a princípio, dever do Estado.
Um destaque é a formação dos espaços de sociabilidade do município, marcados por muito tempo
pelas festas de família, casamentos, festas religiosas, e principalmente pelas Casas Comerciais, popularmente
conhecidas como bodegão. Estes estabelecimentos ofereciam ao cliente o necessário para a sobrevivência da
sua família. Era o local para as transações financeiras, as trocas comerciais e a reunião de amigos.
Nestes espaços se discutiam problemas do local e as possíveis soluções, se tinha acesso as notícias
que chegavam de outros locais por meio do comerciante, e, se podia ter acesso a um pouco de lazer, em meio
as duras rotinas da lida na agricultura. Como recurso expositivo, foi montada uma casa comercial,
semelhante as existentes em Três Arroios, nas décadas de 1940 e 1950. O visitante poderá reviver esta
experiência e/ou ter contato com esta memória.
A narrativa da exposição utilizou como estratégia de comunicação a seleção de imagens e a produção
de textos explicativos, que em conjunto com o acervo, oportunizam uma leitura e reflexão sobre a história do
município, ativada por uma memória coletiva.
O acervo a ser exposto, foi coletado com base na pesquisa temática. Deste modo, os objetos recebidos
em doação foram fruto de uma seleção prévia, em que mais do que a quantidade, se privilegiou a qualidade
do acervo e seu potencial de contribuir para a construção da narrativa histórica.
Todo o acervo passou por tratamento técnico de conservação preventiva, visando melhorar a sua
condição de exposição e sua preservação, pois ao aceitar uma peça a instituição assume toda a
responsabilidade pela mesma, devendo mantê-la como suporte da memória local. Deste modo, o trabalho de
conservação, colabora para a preservação do acervo existente e reforça a importância do tripé de atuação da
museologia.
Por fim, a exposição é para o público, a face mais visível do trabalho dos museus. É na exposição,
principalmente na de longa duração, que as instituições museológicas apresentam, por meio das narrativas
construídas, o conteúdo que pretendem comunicar. No caso do Museu Municipal de Três Arroios, a narrativa
é construída sobre a história do município, cuja sede, fez um século de existência em 2017.
Como forma de ampliar as possibilidades de conhecimento sobre a história local, a narrativa da
exposição oferece uma leitura autônoma ao visitante. Mais do que construir uma única versão, a divisão em
temáticas relevantes, permite que o público, por meio de suas memórias, construa sua compreensão do
processo histórico municipal.
Assim, a narrativa histórica compreende uma função mais ampla do que o simples fato de expor um
tema. Ela necessariamente deve provocar no seu leitor uma reflexão sobre a sua condição de participante
desta história. O que diferencia a narrativa histórica clássica, presente em geral nos livros, em relação a
narrativa da exposição, é que no museu, o visitante faz seu percurso permeado por textos, imagens e
testemunhos materiais da história, confrontando o visitante com seu passado, vivido diretamente por ele ou
pelos seus antepassados. A ativação da memória coletiva torna o visitante sempre um co-autor da exposição.
No caso específico do Museu Municipal de Três Arroios, a exposição oportuniza uma narrativa
histórica que possui um fio condutor sobre a trajetória de cem anos de colonização. Entretanto, esta narrativa
não é linear, e aborda os temas que a pesquisa revelou como mais importantes para a cultura dos habitantes
do município. A disposição do conteúdo fornece uma síntese histórica de Três Arroios para os turistas, mas
principalmente, uma explicação mais profunda sobre a identidade local aos habitantes do município.
Conclusão
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A narrativa da história pode chegar ao público por diferentes meios. As exposições museológicas
permitem apresentar narrativas sobre a história de forma sintetizada mesclando textos, objetos e imagens,
compondo um roteiro de interpretação ao visitante.
Entretanto, cada visitante interpreta a narrativa a partir das suas experiências pessoais, ativando
diferentes conhecimentos e memórias vividas junto ao coletivo. Isto faz que, a narrativa proposta, com base
na memória coletiva, enfatize a autonomia do indivíduo frente ao conteúdo, oportunizando reflexões sobre a
trajetória histórico-cultural.
As questões centrais, abordadas em cada núcleo da exposição, ativam reflexões sobre as principais
transformações e permanências nos saberes e fazeres locais, colocando os visitantes como sujeitos de sua
própria história.
Por fim, além de um ponto turístico relevante para o município e região, o museu será um espaço
importante para a prática pedagógica, o diálogo e a promoção da memória coletiva, estando aberto ao
público, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento.
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O início da década de 1960 e a formação do Sindicato Dos Trabalhadores
Rurais de Passo Fundo: quem são os primeiros associados?
Milena Moretto1
Resumo: A década de 1960, no Rio Grande do Sul, é marcada pela consolidação de diversos sindicatos
rurais, justamente pela formação da FAG- Frente Agrária Gaúcha- em outubro de 1962, pela iniciativa de
bispos da Igreja Católica. Segundo Tedesco, a FAG tornou-se a “porta-voz de sua instituição de origem,
porém, com ênfase política no meio rural” (p. 300, 2017). Sendo assim, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Passo Fundo (STR) foi fundado por agricultores com a participação do Irmão Urbano Maximo, o qual
representava a FAG nesta região, no ano de sua consolidação. Percebemos neste trabalho os primeiros
associados do STR e quais eram as principais características procuradas para agregarem ao quadro social da
entidade, como, por exemplo, a questão de que os associados eram pequenos proprietários de terras,
variando de 3,2 hectares até 35,8 hectares; sendo que, em grande parte, a terra explorável diminuía
consideravelmente, tendo como plantação principal produtos como a soja, o trigo e o milho. Além da
agricultura, a maioria das residências possuíam criação de bovinos, equinos e suínos, e não apresentavam,
em grande parte, implementos agrícolas, ou quando tinham eram simples, como carroça e arados. O STR,
além de filiar pequenos proprietários de terras, procurava incorporar em sua instituição arrendatários,
parceiros, posseiros e uma grande parte de seus membros eram assalariados rurais. Esses dados, citados
acima, foram retirados das primeiras fichas de associados presentes no STR de Passo Fundo, e são
constatações iniciais de uma pesquisa para TCC, onde será abordado com maiores informações a constituição
desse Sindicato, bem como quem são as pessoas que o construíram.
Introdução
Este trabalho tem por objetivo compreender a consolidação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Passo Fundo (STR) no início da década de 1960 e quem foram os seus primeiros associados. Em um
primeiro momento contextualiza-se o surgimento do STR, o qual foi fundado por agricultores com a
participação do Irmão Urbano Maximo, sendo que o mesmo representava a Frente Agrária Gaúcha (FAG)
nesta região, no ano de sua consolidação. Além disso, apresenta-se a importância dos movimentos sociais
pela luta de terra, como por exemplo a FAG, para o surgimento dos sindicatos rurais no Rio Grande do Sul.
Em um segundo momento percebe-se os primeiros associados do STR e quais eram as principais
características procuradas para agregarem ao quadro social da entidade, como, por exemplo, a questão de
que os associados deveriam ser pequenos proprietários de terras ou assalariados rurais. Este tópico será
divido entre o sujeito, a ocupação do sujeito, e a posse do sujeito, sendo que se extraiu os dados das
primeiras fichas de associados presentes no STR de Passo Fundo, e são constatações iniciais de uma pesquisa
para TCC, onde será abordado com maiores informações a constituição desse Sindicato, bem como quem são
as pessoas que o construíram.
A década de 1960 e o início das formas organizativas em torno da terra de Passo Fundo
Nos primeiros anos de 1960 percebe-se novas formas organizativas no cenário nacional, estadual e
regional com a pretensão de reivindicar reformas, uma legislação favorável aos pequenos agricultores, e
complementações sociais de direitos que já existiam no meio urbano, isto influenciado pelas Ligas
Camponesas, movimento de transformações sociais e políticas no campo a partir da metade de 1950, além do
Graduando do V nível do curso de História da Universidade de Passo Fundo. Atua como bolsista voluntária de Iniciação Científica sob a
orientação da Professora Dra. Ironita Policarpo Machado com o Projeto de Pesquisa Práticas político-jurídicas e econômicas no processo
de ocupação do espaço e da constituição da sociedade sul brasileira entre 1930 a 1990. Email: milenamoretto@hotmail.com.
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Partido Comunista Brasileiro (PCB), dos movimentos da Igreja Católica, como por exemplo a Frente Agrária
Gaúcha (FAG) e a Ação Popular (AP). Salienta-se que a partir de 1963 entra com mais ênfase uma força do
Estado.
As Ligas Camponesas foram as grandes impulsionadoras do movimento pela reforma agrária no
Brasil. Iniciadas em Pernambuco, mais precisamente em Vitória de Santo Antão, as Ligas influenciaram
diversas mobilizações de camponeses, os quais segundo Nora (2002) aderiram as ideias que pautavam-se na
defesa dos interesses dos posseiros e foreiros, que, explorados pela estrutura do latifúndio subutilizado e pela
política de concentração de terras, aceleravam o movimento de migração constante; organizavam resistência
e procuravam agir como frente legal das lutas dos camponeses; reivindicavam a extensão dos direitos aos
despossuídos e, também, acionavam, juridicamente, os desmandos dos latifundiários.
O Partido Comunista do Brasil (PCB) foi outra grande força no meio rural na metade da década de
1950 e início de 1960, onde os militantes atuaram com grande força na União dos Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB). Segundo Nora (2002), diferentemente das Ligas Camponesas o
PCB desejava uma revolução no Brasil onde a primeira etapa, não deveria ser socialista, mas democráticopopular, de caráter antiimperialista e antifeudal. Sendo que a reforma agrária era entendida como a
transformação radical da estrutura fundiária e liquidação do latifundiário, mantendo-se como uma bandeira
central do partido, ao lado da reivindicação de aplicação da legislação trabalhista aos trabalhadores do
campo. Entretanto, tais reivindicações passavam a ser condicionadas à formação de uma “frente única”, que
reunisse o conjunto de forças interessadas no combate ao imperialismo norte-americano: a classe operária,
os camponeses, a pequena burguesia urbana, a própria burguesia e, ainda, os setores latifundiários que
possuíssem contradições com o imperialismo norte-americano. A revolução democrático-popular,
vislumbrada pelo PCB, passava pela defesa de um caminho pacífico dentro da legalidade.
Já a Igreja Católica, é a terceira organização de extrema importância para a compreensão do
surgimento do sindicalismo rural e da luta pela terra, nesta existia o chamado sindicalismo cristão,
protagonizado no Rio Grande do Sul pela Frente Agrária Gaúcha, o qual objetivava o combate ao comunismo
e seu princípio básico era a rejeição da luta de classes e defesa da harmonia social. Ressalta-se, contudo, que
exista ainda a Ação Popular (AP), oriunda dos setores leigos da Igreja e que possuíam posições mais radicais
de apoio à luta camponesa.
Nesta efervescência rural brasileira surge os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR), sendo que
no município de Passo Fundo este consolidou-se em 25 de julho de 1962, organizados pela Frente Agrária
Gaúcha, apoiada pela Igreja Católica do Rio Grande do Sul, a qual necessitava do meio rural para um
afrontamento contra as Ligas Camponesas, ao Master e algumas ações apoiadas pelo Governo Brizola.
Segundo Tedesco e Carini (2007), a Igreja conquistava os proprietários de terras através de um discurso em
torno da função social da propriedade, da necessidade da reforma agrária dentro da lei e, em geral, nas terras
públicas e nos latifúndios improdutivos com justas indenizações, além disso, criticava o comunismo e o
capitalismo liberal depredador e concentrador de renda e propriedade. No entanto, ressalta-se que a
instituição enfatizava a preservação da propriedade privada, e por consequência, a preocupação de não
alterar as bases do sistema capitalista.
Para o início do STR de Passo Fundo foram realizadas diversas reuniões, buscando a adesão de
novos agricultores nas ideias sindicais católica, contendo a participação do Irmão Urbano Maximo, o qual
representava a FAG nesta região. A ação da Igreja Católica, via FAG, em Passo Fundo foi muito presente, esta
pautava-se como representante dos trabalhadores rurais assalariados e dos pequenos produtores, para
Bassani (1986), sua ação sindical regulava as ações entre classes no setor agrícola, atuando dentro da
legislação vigente, tendo sempre presente que a questão agrária era resultado da má distribuição de terras e
do uso de métodos e técnicas atrasadas no processo produtivo, não se colocando, por exemplo, contra o
latifúndio, mas sim defendendo os interesses dos pequenos proprietários.
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O protagonista do STR: reconhecendo os primeiros associados
Para a compreensão do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo é necessário reconhecer
quem foram os seus primeiros filiados, os quais aceitaram ideias oriundas da FAG e da Igreja Católica, e
construíram um protagonismo sindical rural na região norte do Rio Grande do Sul. Salienta-se que, o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo prossegue na ativa com características semelhantes em
seu quadro social oriundas da década de 1960.
Para a construção deste subtítulo foram extraídos os dados das fichas de filiação do STR, as quais
contém na primeira folha o nome do associado, o seu número, a data de nascimento, sua filiação, o nome do
conjugue e dados do mesmo, relação dos dependentes, residência do filiado, a data de admissão, o
pagamento das mensalidades, o fundo de assistência medica e outros tipos de assistências ofertadas pelo
sindicato. A segunda folha apresenta informações sobre a ocupação/patrimônio, relatando sobre o filiado, se
o mesmo é proprietário e de quantos hectares de terras, quanto desses hectares são exploráveis e o quanto
são exploradas, se possuem potreiro, mato, se o proprietário, arrendatário, parceiro, posseiro e/ou
assalariado. Na segunda folha, também, aborda-se as principais culturas e criações, além de quais são os
bens imóveis dos associados e se estes possuem implementos agrícolas.
Para este trabalho foi utilizado as dez primeiras fichas de filiação do ano de 1962, ano de
consolidação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo, as quais estão presentes no arquivo
particular do sindicato. Os apontamentos retirados das fichas serão divididos em três pontos: o sujeito, a
ocupação do sujeito, e a posse do sujeito, o primeiro aponta quem é o sujeito e onde este localiza-se, o
segundo ponto exibe a propriedade deste indivíduo e o terceiro aspecto retrata qual era o cultivo, a criação e
os bens deste associado.
O primeiro item é o sujeito, nele é possível compreender quem são os associados do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Passo Fundo, fazendo com que seja apresentado de forma simples o pequeno
proprietário de terra ou assalariado rural da década de 1960 no norte do Rio Grande do Sul. Pode-se retirar
deste primeiro ponto dados pessoais dos proprietários, para que assim se possa perceber qual era o sexo
predominante, se havia conjugue e quais os dados do mesmo, se o sindicalista possuía filhos e a quantidade
deles, qual era a localização de sua moradia, abordando cidade e distrito pertencente, se a mensalidade
estava em dia, bem como o dinheiro referente as assistências oferecidas pelo sindicato, através destes últimos
dados pode-se identificar qual era a renda mensal/ semestral dos pequenos proprietários, se estes
conseguiam pagar as mensalidades e qual era a média de arrecadação do Sindicato
mensalmente/semestralmente.
Como constatações iniciais percebe-se que os primeiros sindicalistas são pertencentes ao sexo
masculino, sendo que, destes associados apenas um não é casado. Em relação a filhos constata-se que apenas
um não apresenta filho e os demais possuem entre 1 a 12 filhos. Todos eram assíduos em seus pagamentos de
mensalidade e do fundo de assistência médica, compreendendo assim que todos continham uma renda fixa,
no entanto nesta fase inicial do trabalho não é possível ainda afirmar qual era a renda mensal destes pela
falta de dados para as comparações.
No gráfico abaixo percebe-se a localização das residências dos associados, compreendendo que em
oito dos dez primeiros sindicalistas residiam no primeiro distrito, isto é, a região de Passo Fundo, mais
precisamente na área do Jabuticabal, de Ernestina e de São Miguel, sendo que apenas dois se destoam
residindo na região de Coxilha.
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Fonte: Fichas de filiação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo.
O segundo ponto é a ocupação do sujeito, neste tópico é possível perceber como era o patrimônio dos
sindicalistas rurais no início do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo, e a ocupação destas
terras dos pequenos proprietários. Apresenta-se neste tópico se este filiado era proprietário de terra,
relatando quanto de terra possuía e o quanto desta era explorada, além disso ele poderia ser também, ou
apenas, arrendatário, parceiro, posseiro e/ou assalariado rural.
Os dados retirados para a apresentação deste ponto foram os pertencentes a segunda folha no
quesito ocupação/ patrimônio, constata-se que um dos associados não escreveu seus dados sobre este ponto.
Salienta-se que neste início de sindicato apenas um é parceiro de terra, no entanto, este também era
proprietário. Constata-se que o STR era formado exclusivamente por pequenos proprietários de terra, com
propriedades variando de 3,2 hectares à 35,8 hectares.
No gráfico abaixo apresenta-se o tamanho da propriedade dos dez primeiros associados, percebendo
que quatro possuem uma propriedade variando entre 25 à 35,8 hectares, três constatam uma propriedade
entre 3,2 à 15 hectares, e dois apresentam uma propriedade entre 15 á 25 hectares.Contudo, ressalta-se que a
terra explorada diminuía consideravelmente, como por exemplo o caso do primeiro filiado o qual é
proprietário de 25 hectares, sendo que apenas 18 ha. eram exploráveis, e no caso dele apenas era explorado 8
ha., os demais 17 ha. eram divididos entre potreiro e mato, não podendo ser assim utilizado.
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Fonte: Fichas de filiação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo.
O terceiro segmento é a posse do sujeito, neste ponto debate-se como era formado as primeiras
moradias e o que estes pequenos proprietários de terras produziam no norte sul-rio-grandense na década de
1960, apresentando seus cultivos e suas criações. Ressalta-se que, é de suma importância compreender o que
era produzido nesta época para assim posteriormente, analisar como o pequeno proprietário de terra/
sindicalistas estava inserido na sociedade e na produção de alimentos.
Verifica-se que o principal cultivo no início do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo
era a soja, sendo que oito dos dez primeiros filiados produziam no mínimo 1 hectare dela, além de sete
produzirem milho, quatro produzirem trigo, e mais algumas plantações como mandioca, feijão, batata e
tomate. Em relação a criação compreende-se que todos os filiados possuíam bovino, oito possuíam suíno e
sete equino, apresentavam, também, algumas criações de galinhas, ovelhas e mulas. Todos os associados
continham casa de madeira, variando de 5x8 m² a 8x10 m², 8 possuíam galpão, apenas dois continham
algum tipo de automóvel, sendo que os demais implementos agrícolas eram simples como arados e carroças.
Considerações finais
A pesquisa referente a consolidação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo (STR) no
início da década de 1960 e quem foram os seus primeiros associados está em fase inicial, sendo que o
processo a qual se encontra, de digitalização de fontes, é fundamental para a continuidade da mesma.
Todavia, já se pode constatar que os primeiros associados residiam numa região próxima de Passo Fundo, a
propriedade variava entre 3,2 hectares até 35,8 hectares , sendo que, em grande parte, a terra explorável
diminuía consideravelmente, a plantação principal era produtos como a soja, o trigo e o milho. Além da
agricultura, a maioria das residências possuíam criação de bovinos, suínos e equinos, e não apresentavam,
em grande parte, implementos agrícolas, ou quando tinham eram simples, como carroça e arados. O STR,
além de filiar pequenos proprietários de terras, procurava incorporar em sua instituição arrendatários,
parceiros, posseiros e uma grande parte de seus membros eram assalariados rurais.
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Arquitetura e patrimônio:
intervenções contemporâneas em edifícios históricos
Monique Villani 1
Gerson Luís Trombetta 2
Resumo: Devido às alterações necessárias para atender seus usuários e adequar-se as exigências da
contemporaneidade, muitas edificações históricas sofrem modificações físicas e estéticas que na maioria dos
casos não são planejadas corretamente, embora seja este o único meio de sobrevivência destes imóveis
perante as construções atuais, para que não sejam abandonados ou esquecidos. Analisar como são realizadas
estas intervenções e todo o seu processo desde o surgimento dos imóveis até os dias atuais é essencial para
que seja possível compreender e entender o que foi modificado, qual o grau das mudanças realizadas em
todos os aspectos, se estas foram de âmbito positivo ou negativo, se houve preocupação com o histórico das
edificações, quais as técnicas utilizadas, buscando assim entender se as funções ali desenvolvidas são
realizadas com aptidão sem prejudicar os elementos históricos, mantendo todas suas características e
importâncias culturais preservadas e protegidas para as futuras gerações. Na maioria dos casos as adaptações
são indispensáveis para o imóvel comportar tal função, porém, muitas vezes as transformações se tornam
irreversíveis, muitas devido ao descaso, falta de conhecimento dos usuários ou pela falta de execução de um
projeto adequado. Atualmente muitas destas intervenções causam uma descaracterização de certas
edificações, através de alterações na sua arquitetura, estrutura e interior, perdendo parte de sua essência
histórica e identidade. "A maioria dos edifícios antigos deve sua longevidade ao fato de ter sido
continuadamente utilizada. Ao longo de sua história, porém, eles sofreram alterações para atender a novas
funções, que, não raras vezes, resultaram na modificação de sua aparência. O que hoje conhecemos é,
frequentemente, o resultado de sucessivas adaptações que possibilitaram sua sobrevivência." (LYRA, 2006,
p. 53). A intervenção em uma edificação que já tem uma identidade definida requer muita cautela, ainda
mais quando se tratam de características arquitetônicas que representam uma cultura ou período específico.
A combinação entre o novo e antigo pede sensibilidade para que haja integração entre ambos e a valorização
desejada da edificação. O monumento arquitetônico, seja ele qual for, representa um manancial de histórias e
situações herdadas repletas de conteúdos imprescindíveis. Qualquer projeto que se realize neste patrimônio
deve reconhecer e refletir a responsabilidade e o respeito pela autenticidade do legado, propondo uma
intervenção de continuidade adaptada, tirando partido das particularidades (muitas vezes exclusivas) de
cada testemunho. (VAZ, 2009).
Princípios de Intervenções nos Bens Arquitetônicos
Devido as alterações necessárias para atender seus usuários inúmeros edifícios históricos
sofrem/sofreram modificações em suas características físicas para adequar-se a determinadas funções, na
maioria dos casos alterações realizadas sem o devido planejamento embora seja esse o único motivo da
sobrevivência destes imóveis perante o tempo, resistindo ao abandono e esquecimento.
A busca pela preservação das construções históricas vem tomando força desde a idade média e
renascimento, onde os papas juntamente com alguns artistas iniciaram o processo de salvaguardar bens
patrimoniais, passando a compreender a real importância dos próprios. Do mesmo modo, as civilizações
romanas e gregas também reconstruíram edificações destruídas por batalhas ou pelo tempo, aplicando suas
técnicas construtivas e particularidades, reutilizando-as. (VAZ, 2009)
1
Autora e mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade de Passo Fundo. E-mail:
monique_villani@outlook.com
2 Autor e orientador. Professor Doutor e Pesquisador na área de Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade
de Passo Fundo. E-mail: gersont@upf.br
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A readaptação, na maioria dos casos, porém, é a condição para sobrevivência do
edifício quando sua função original desaparece ou quando as características de sua
arquitetura já não mais satisfazem às necessidades e exigências da sociedade. A
história da arquitetura é uma história de substituições e a maioria dos edifícios que
sobreviveram às mudanças sociais corresponde àqueles que passaram por
adaptações. Os demais foram substituídos ou abandonados. (LYRA, 2006, p.56)
A reconstrução de edificações históricas por variados povos dificulta a identificação dos mesmos
devido as variadas técnicas construtivas aplicadas, sem especificação de datas e responsáveis, criando uma
miscigenação de cultura, isto é, muitas caraterísticas indenitárias em um mesmo monumento. Apesar da
destruição de inúmeras edificações, muitas foram adaptadas por novos grupos, ganhando novas atividades e
usos, logo, prolongando a vida das mesmas, onde outras sem desenvolvimento algum, sofreram pelo
desaparecimento. (VAZ, 2009)
Em Roma, poucas edificações da Antiguidade não se arruinaram, mantendo-se
razoavelmente íntegras, ao menos em seu exterior. A razão dessa sobrevivência
reside no fato de terem sido adaptadas, ao longo de sua história, a usos diversos
daqueles para os quais foram concebidas. (LYRA, 2006, p. 54)
Com a preservação dos monumentos ganhando valorização pela igreja e estado surgiram grandes
nomes que defendiam teorias sobre a preservação e intervenção nas edificações, onde aplicavam suas teses e
ideias. As linhas de pensamentos eram distintas, porém, com o mesmo objetivo, salvaguardar tudo que fosse
considerado de importância histórica.
Enfim, a primeira norma de conduta ligada ao “como preservar” é manter o bem
cultural, especialmente o edifício, em uso constante e sempre que possível
satisfazendo a programas originais. Mas isso não é fácil. O grande problema é que
os movimentos preservadores sempre já encontram as construções de interesse
arruinadas, mutiladas, aviltadas por acréscimos espúrios, descaracterizadas e
muitas vezes irrecuperáveis no seu aspecto documental. (LEMOS, 1981, p. 69)
A intervenção variava de acordo com o pensamento defendido pelo intervencionista, onde a partir
disto organizava e defendia suas teorias, técnicas e práticas. Outro fator relevante para tal ação era o estado
em que o bem se encontrava, o uso pretendido e sua real importância arquitetônica e histórica para o local,
onde através deste levantamentos se definiam e realizavam as operações.
Conforme Braga (2003), Viollet-le-Duc (1814-1879) fora um dos grandes nomes do restauro
estilístico, pois tinha teorias que apoiavam a restituição da edificação, onde era importante utilizar técnicas e
materiais mais atuais de construção alterando o projeto original se necessário. Por outro lado, de forma
antagônica havia John Ruskin (1819-1900), defendia o anti-restauro e a conservação sobre a edificação, mas
não a intervenção, onde a mesma possuía um período de vida que deveria ser respeitado.
Com linhas de pensamentos que ficavam entre Le-Duc e Ruskin, Camillo Boito
(1836-1914) aprovava a preservação, mas se caso fosse preciso intervir, este deveria ser feito de uma forma
suave, defendendo a percepção da diferença de estilos e técnicas entre o novo e o antigo. Com outros
pensamentos surgiram ainda outros grandes nomes, como Alois Riegl, Gustavo Giovanonni, Cesare Brandi,
Luca Beltrami, todos criando novos conceitos sobre como preservar, conservar e o modo de intervir, onde
cada um defendia suas teses e as aplicava em suas obras.
Devido à necessidade de estabelecer regimentos sobre estes bens, criou-se as doutrinas
internacionais, inicialmente na Europa mas que logo alastrou-se pelo mundo, havendo a busca por princípios
de orientação de preservação e restauro do patrimônio arquitetônico, para que estes fossem realizados de
forma padronizada e cautelosa por todos.
Segundo com Braga (2003), em 1931 criou-se a Carta de
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Atenas durante o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, com objetivo principal de expressão de
cultura, valorização dos monumentos, técnicas e legislação de conservação, sendo um grande marco para o
início dos princípios de preservação.
Somente em maio de 1964 institui-se a Carta de Veneza, onde foram reavaliados os critérios da Carta
de Atenas, aprimorando-a. Conservação então definiu-se como manutenção permanente, com o entorno
fazendo parte do monumento. Há o uso de técnicas modernas que devem ser reconhecidas, distinguindo as
intervenções em todas as suas épocas, indiferente de seus estilos. Dentre anos outras iniciativas surgiram
buscando a qualificação das restrições anteriores, foram criadas também, a Carta de Burra, Cracóvia,
Conferência de Quito, Carta de Restauro, Carta de Florença, Carta de Washington, Recomendação de Paris,
Carta do Patrimônio Industrial dentre outras, todas ações para aprimorar e englobar os temas relacionados.
Intervenções no Brasil
No Brasil, algumas iniciativas foram tomadas, legislações foram criadas sobre patrimônio,
tombamentos, planos diretores, leis municipais e estaduais, mas ainda é pouco devido a grandiosidade de
monumentos históricos que o país agrega, onde a maioria não possui proteção alguma, muitos deles lutando
pela sobrevivência.
Os governos, especialmente os estaduais, têm que aquilatar a enorme
responsabilidade que lhes pesa nos ombros, representada por importantíssimos
centros históricos hoje à beira da descaracterização total graças, antes de tudo, à
inoperância de meia dúzia de decisões ou providencias mais demagógicas ou
políticas do que efetivamente práticas e sinceramente imaginadas como base em
honesta avaliação do que realmente valem aqueles bens de interesse social.
(LEMOS, 1981, p. 104)
Conforme Lemos (1981), a preservação é preciso pois revela relações espaciais e intenções plásticas
de uma técnica construtiva histórica e de uma arquitetura uniforme ou não, estando diretamente ligada ao
espaço urbano e a população que ali habita sendo portanto a identidade do local, que assim ocasiona uma
ligação entre os elementos.
A cidade é um acúmulo de vivências e de construções que se sobrepõem como
camadas arqueológicas. Inexiste o núcleo histórico puro, e é certo que a cidade em
que vivemos será o núcleo histórico do futuro. Se houver futuro – porque se a
cidade que está sendo construída hoje tiver arquitetura e espaços públicos
desprezíveis, a ponto de merecer ser demolida, as futuras gerações estarão
desprovidas de memória e de identidade. Nessa condição, estarão, provavelmente,
condenadas à barbárie. (BONDUKI, 2010, p.369)
Muitas destas edificações, as mais contempladas histórica e arquitetonicamente são tombadas ou
possuem algum tipo de cuidado específico, tem alguma utilização nobre como prefeituras, museus,
bibliotecas, mesmo não sendo este o histórico do uso, porém, que exige uma frequente manutenção,
ocasionando consequentemente a preservação das mesmas.
O monumento arquitetônico, seja ele qual for, representa um manancial de histórias e situações
herdadas repletas de conteúdos imprescindíveis. Qualquer projeto que se realize neste patrimônio deve
reconhecer e refletir a responsabilidade e o respeito pela autenticidade do legado, propondo uma intervenção
de continuidade adaptada, tirando partido das particularidades (muitas vezes exclusivas) de cada
testemunho. (VAZ, 2009)
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Querer e saber “tombar” monumentos é uma coisa. Saber conservá-los fisicamente
e restaurá-los é algo que se baseia em outros tipos de conhecimento. Isso requer
uma prática específica e pessoas especializadas, os “arquitetos dos monumentos
históricos”, que o século XIX precisou inventar. (CHOAY, 2001, p. 149)
A intervenção em uma edificação que já tem uma identidade definida requer muita cautela, ainda
mais quando se tratam de características arquitetônicas especiais que representam a cultura de povo ou um
período histórico específico. A combinação entre elementos do novo e antigo exige muita sensibilidade e
sutileza para que haja integração entre ambos, criando uma valorização ainda maior do monumento.
A introdução de melhorias estruturais e funcionais torna-se inevitável, e de certa
forma desejável, para assegurar a sua conveniente utilização prática face às
exigências contemporâneas, pressuposto base para garantir a sua manutenção. Do
mesmo modo que, embora se admita a “suavidade” de uma intervenção deste tipo,
muitas vezes recorrendo a técnicas e materiais tradicionais, existe uma eminente
necessidade de assumir com convicção a própria inovação que caracteriza a nossa
Era e o recurso a tecnologias e materiais que não existiam na altura. Deverá ser
interiorizada esta “possibilidade”, não obrigatoriamente claro, mas retendo
conscientemente que a nova intervenção deverá fazer parte da história. (VAZ 2009,
p.137)
Muitas edificações históricas que não possuem um caráter extremamente importante para
determinado local, não tem algum tipo de proteção institucional e não são de propriedade pública, são de
cunho particular, onde os proprietários tem o total poder sobre o edifício, decidindo as intervenções que este
sofrerá conforme as necessidades e utilidades, que na maioria dos casos não há relação ao antigo uso,
passando por novas atividades. Muitas edificações que perderam sua função original não foram demolidas,
mas sim reaproveitadas em algum novo uso para atender as necessidades atuais. (LYRA, 2006)
A maioria dos edifícios antigos deve sua longevidade ao fato de ter sido
continuadamente utilizada. Ao longo de sua história, porém, eles sofreram
alterações para atender a novas funções, que, não raras vezes, resultaram na
modificação de sua aparência. O que hoje conhecemos é, frequentemente, o
resultado de sucessivas adaptações que possibilitaram sua sobrevivência. (LYRA,
2006, p. 53)
Na maioria dos casos as adaptações são indispensáveis para comportar tal função, porém, muitas
vezes as transformações se tornam irreversíveis, muitas devido ao descaso, falta de conhecimento dos
usuários ou pela falta de execução de um projeto adequado. Atualmente muitas destas intervenções causam
uma descaracterização de certas edificações, através de alterações na sua arquitetura, estrutura e interior,
perdendo parte de sua essência histórica e identidade.
Modernização: procedimento novo, que despreza de forma mais aberta o respeito
que se deve ao patrimônio histórico, põe em jogo o mesmo desvio de atenção e a
mesma transferência de valores pela inserção do presente no passado, mas sob a
forma de um objeto construído, e não de um espetáculo. Modernizar não é, nesse
caso, dar a impressão de novo, mas colocar no corpo dos velhos edifícios um
implante regenerador. (CHOAY, 2001, p. 217)
De acordo com Bonduki (2010), utilizar bens preservados para uso comum da sociedade como
universidades, parques, habitação social, áreas de lazer, também é importante para que o patrimônio
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especificado seja considerado coletivo e não apenas de uso alheio, criando perspectivas de preservação com a
população, fazendo com que haja a conscientização da importância dos mesmos.
A ideia subjacente a qualquer de uma destas “re-intervenções” é introduzir algo de
novo, em menor ou maior grau. Sendo a reabilitação uma operação que pretende
reintroduzir “vida” a um edifício desactivado ou devoluto, visando uma apropriação
controlada, compatível e respeitadora do imóvel, adequada à herança cultural e ao
ritual de espaços do objecto a reabilitar. Limita-se no fundo à introdução do
mínimo indispensável ao novo uso, procurando com isso minimizar o impacto no
significado cultural do lugar. Operações como a reconversão e a renovação, menos
sensíveis aos aspectos da autenticidade física patente na matéria original,
associam-se a intervenções mais profundas com muitas alterações e com a
introdução de novos elementos. (VAZ, 2009, p. 07)
Introduzir um novo uso a uma edificação requer muita sensibilidade do projetista, é necessário
interferir com soluções tipológicas que não descaracterizem a mesma, devendo primeiramente estudá-la para
depois intervi-la, buscando manter os valores que esta transmitiu e transmite perante toda sua história, sem
comprometer sua identidade, mas sim valorizando-a. (VAZ, 2006)
Intervenções Atuais
Os critérios de intervenções nas edificações histórica vieram sofrendo adaptações com o tempo
segundo Braga (2003). Outras iniciativas foram criadas com intensão de aprimorar estas práticas,
adequando-se as necessidades da atualidade. Dentre as variadas possibilidades de se intervir em uma
edificação há algumas mais utilizadas atualmente:
•
Restauração: busca devolver ao bem suas características, sendo esta utilizada para imóveis de grande
importância histórica;
• Conservação: nada mais é do que manter o bem em seu estado íntegro;
•
Anastilose: há a reconstituição/recomposição de alguns fragmentos da obra para deixa-la mais
completa;
•
Retrofit: muito utilizados nos dias de hoje há a adaptação do espaço para novas atividades com
atualização de instalações;
•
Rearquitetura: adaptação ao novo uso, criação de um anexo contemporâneo que une-se ao antigo,
havendo uma conexão entre ambos.
Em outras palavras, deve-se verificar se a nova função é condizente com as
vocações daquela tipologia arquitetônica e, o mais importante, com a vocação
daquele monumento. Embora reutilizações completamente diversas das funções
originais tenham salvado do desaparecimento muitos monumentos, pode-se
considerar que tais fatos foram excepcionais, possuindo cada tipo arquitetônico um
leque finito de vocações de uso. (LYRA 2006, p. 57)
O próprio Brasil vem sendo ótimo exemplo no prolongamento da vida de algumas edificações
históricas e na execução destas ideologias, pois possui várias edifícios que sofreram intervenções
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contemporâneas para sobreviver e que hoje são pontos de referência devido sua arquitetura, história e função
recebendo muitos visitantes diariamente, muitos são museus, centros culturais e bibliotecas, com objetivos
sociais voltados à população, garantido assim uma vida continua, utilização, valorização e reconhecimento
dos mesmos.
•
SESC Pompéia: um grande modelo de intervenção que ocorreu em uma antiga fábrica de Tambores
em São Paulo por Lina Bo Bardi, o estabelecimento foi construído em meados do século XIX e após
anos de funcionamento veio por encerrar suas atividades. A ideia de reutilizar o ambiente ocorreu
devido a arquiteta responsável descobrir que o local já era utilizado como meio social pela comunidade
do entorno. Com o projeto pronto, logo iniciou-se a obra que teve início em 1977 e foi terminada em
1986. Houve então a intenção de manter a edificação existente da antiga fábrica assim como suas
características iniciais e cada pavilhão passou a receber uma nova função, como administração, ateliês,
restaurante, cozinha, oficinas, etc. Além disso, três novos blocos em formas prismáticas para uso
esportivo foram realizados, interligados por passarelas em diferentes ângulos. Com uma área total de
23.571,00m², a obra é toda adaptada para receber seus visitantes, apresenta um conexão de uma
arquitetura brutalista e industrial sendo esta a identidade marcante do local. (FLORES, MARQUES,
2014)
SESC Pompéia – São Paulo
Fonte: Archdaily, Pedro Kok, Fernando Stankuns, Flickr Beatriz Marques, 2013.
• Pinacoteca de São Paulo: o edifício do Liceu de Artes e Ofícios foi projetado no final do século XIX em
estilo neoclássico da época, porém nunca fora concluído, então em 1998 foram executadas as primeiras
adaptações do edifício para receber a Pinacoteca. O arquiteto responsável Paulo Mendes da Rocha foi
muito cauteloso em suas intervenções, teve como principal objetivo manter as características
principais do edifício, como o tijolo aparente no interior e exterior, realizando apenas adaptações para
melhorar os aspectos funcionais do local com aplicação de passarelas, rampas, escadas, coberturas,
iluminação, pisos e demais elementos. A obra de 10.815,00 m² é um dos locais mais visitados de São
Paulo por sua referência cultural e arquitetônica. (ALMEIDA, 2012)
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Pinacoteca de São Paulo – São Paulo
Fonte: Archdaily, Nelson Kon, 2015.
•
Museu do Pão: localizado em Ilópolis no Rio Grande do Sul é mais um exemplar onde demonstra que
as intervenções são primordiais para dar seguimento à vida das edificações. O antigo moinho de
farinha de milho que estava abandonado hoje é oficina de ensino para aprendizes locais e também
museu, recebendo visitação de muitas pessoas anualmente. Possui uma área de 830,00m² e a
intervenção foi realizada pelos arquitetos Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, finalizada no ano de
2007. O moinho construído em 1930 todo em madeira tem características arquitetônicas colonial
italiana e para sua complementação dois novos blocos foram criados em forma totalmente oposta,
vidro, concreto e estrutura metálica, criando assim uma conexão entre ambas. (FERRAZ, 2012)
Museu do Pão - Ilópolis
Fonte: Archidaily, Nelson Kon, 2011.
Com os exemplos demonstrados pode-se observar que ambas edificações estavam sofrendo com a
“inutilidade”, falta de manutenção, descuido e intempéries do tempo, sendo apenas mausoléus ocupando o
espaço e prestes a desaparecer em meio às construções contemporâneas, embora representassem um
manancial importante de cultura e identidade para seus devidos entornos. O Museu do Pão assim como a
Pinacoteca de São Paulo já apresentavam-se historicamente importantes mas não possuíam o total
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reconhecimento, já o SESC Pompéia era visto apenas como uso industrial, que através das modernizações e
adaptações ambas obras ganharam uma nova vida e um novo uso, reconhecendo assim suas memórias e
identidades, sendo que hoje são edifícios extremamente importantes para as cidades onde estão localizadas.
O uso destas intervenções é essencial para dar segmento à vida destas e de outras tantas edificações,
para que prossigam sendo utilizadas tendo seu espaço perante o urbano, mesmo que o uso seja distinto do
princípio. O cuidado com a escolha da intervenção a ser realizada e a maneira de execução é essencial para
que não haja perda da identidade do edifício, sem que o novo se sobressaia ao antigo, fazendo com que
ambos se destaquem mas cada um em suas peculiaridades, preservando a história e valorizando ainda mais a
cultura e arquitetura do local.
Por outro lado, um conhecimento adequado das técnicas construtivas empregadas
em uma determinada edificação aliado ao conhecimento histórico sobre as mesmas
e sobre os materiais de construção, é extremamente valioso para a datação desta
obra e pode prestar importantes contribuições para a filiação da mesma. (BRAGA,
2003, p.51)
Estas intervenções devem ser realizadas de forma elaborada, primeiramente pelo reconhecimento do
bem arquitetônico, para que haja uma compreensão por completa do mesmo, como levantamentos históricos
e arquitetônicos, após, vem a segunda fase, esta que é a intervenção propriamente dita, que deve ser
realizada seguindo as normativas impostas e o projeto elaborado. (VAZ, 2009)
Conforme Lyra (2006), cada edificação seja ela qual for, representa uma história em sua face,
pertence a uma comunidade, família ou cidade na qual há uma identificação ali relacionada. Com o
conhecimento da obra pela população e intervencionistas a prática de uma novo uso no mesmo é facilitada
onde há uma adaptação devida sua familiaridade com o local onde se encontra.
Todo o monumento constitui marco histórico na memória colectiva. Para ser
considerado património, é porque lhe é reconhecido um certo e determinado valor
intrinsecamente ligado à identidade e produto daquela nação. O significado
cultural justifica o interesse comum e pode ser tão diverso como o valor artístico,
científico, histórico, paisagístico, social ou técnico. A questão central reside na
compreensão do seu contributo. Não se justifica mantê-lo por ele ser velho, antigo,
diferente ou bonito, mas sim por ter alguma qualidade própria à sua autenticidade,
testemunha do tempo em que foi construído e de todo o tempo que já venceu para
chegar até nós. (VAZ 2009, p.05)
Introduzir um novo uso há uma edificação é mais que dar-lhe uma nova vida, uma nova
oportunidade de prolongar sua permanecia perante ao meio urbano, é permitir que seja vista, lembrada e
consequentemente respeitada, é poder lhe oferecer o reconhecimento pelo que representou e ainda
representa em toda sua existência, onde muitas vezes somente através da intervenção e a adaptação é
possível oferecer tamanha gratificação.
Desse modo, percebemos que necessariamente o termo preservar deve ser aplicado
com toda a amplitude de seu significado. É dever de patriotismo preservar os
recursos materiais e as condições ambientais em sua integridade, sendo exigidos
métodos de intervenção capazes de respeitar o elenco de elementos componentes
do Patrimônio Cultural. (LEMOS, 1981, p.26)
Conforme Vaz (2009), os monumentos arquitetônicos tem além da missão de transpassar a história e
conhecimento, a incumbência de passar sensibilidade e a admiração pelo passado ainda presente, para as
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futuras gerações, denominando como o modo de preservar a memória e salvaguardar o passado, devido seu
valor civilizacional, documental, histórico ou artístico.
No entanto, o que se tem notado com o envelhecimento das cidades é que, cada vez
mais, o olhar preservacionista deve ser aplicado, seja pelos que preservam os
testemunhos do passado seja pelos que constroem o presente e planejam o futuro.
Cada imóvel, cada canto de cidade, seja ele recente ou antigo, deve ser visto sob um
olhar preservacionista, seja para manter, seja para eliminar, seja para modificar ou
para introduzir o novo em qualquer contexto. A tarefa de preservar o passado,
construir o presente e planejar o futuro, tecendo o fio da história, coloca os
planejadores e executores das cidades na condição de missionários. (BRAGA, 2003,
p.14)
Vaz (2009), afirma que atualmente conservar um edifício é estar dando ênfase a sua caraterística
especial na arquitetura, no fator documental e sentimental, mas além disso é dar valor a um tempo histórico
marcante, é manter o passado no presente e principalmente preservá-lo para o futuro.
Conclui-se que o antigo e o novo podem ter lugar no património e nele conviver de
forma harmoniosa. Esteticamente, a obra final não tenderá a ser pior por isso.
Certamente que dará mais trabalho compatibilizar passado e presente, em prol de
um e de outro, mas cuja recompensa será um futuro mais rico e seguramente mais
autêntico. (VAZ, 2009, p.149)
As ações preservacionistas devem sim ser estudadas, projetadas e executadas, para que haja a
valorização necessária e apropriada das edificações históricas assim como suas longevidades perante o tempo
e espaço. Zelar pelo que representa a identidade de um povo e sua história é zelar por todas as vidas,
passadas, atuais e futuras, garantindo o prolongamento da cultura, do respeito e conhecimento.
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(De)Colonialidade do Saber no Campo dos Estudos Organizacionais:
possibilidades identificadas no panorama da produção científica brasileira
Nadiesca Manica dos Santos
Priscila Sampaio de Moraes
André da Silva Pereira
Denize Grzybovski
Resumo: O objetivo do artigo é analisar a possibilidade (de)colonialialidade do saber no campo dos estudos
organizacionais (EORs) brasileiros, tomando como base a produção científica brasileira. Especificamente fezse o mapeando dos textos que apresentam a temática “colonialidade do saber” e deles foram extraídos os
dados que permitiram identificar as comunidades acadêmicas, autores, mensurar o volume de artigos em
relação ao número de autores que dedicam suas pesquisas ao tema, a configuração da rede de
relacionamentos e elaborar uma lista dos principais periódicos que dedicam espaço para publicação do tema.
Trata-se de recorte de um projeto de pesquisa maior que se propõe a mensurar o nível de conhecimento dos
docentes dos cursos de graduação em Administração, ofertados nas universidades participantes do Consórcio
das Universidades Comunitárias Gaúchas, sobre o tema (de)colonialidade nos EORs. Entende-se que o
professor do ensino superior é um agente de construção da pluridiversalidade em diferentes áreas do
conhecimento. Em suas práticas pedagógicas, talvez esteja reproduzindo legado epistêmico do eurocentrismo
e, assim o fazendo, constrói barreiras intelectuais que impede o futuro profissional de compreender o mundo
organizacional a partir do seu próprio mundo e das epistemes que lhes são próprias. A literatura sobre a
colonialidade do saber aponta este tema sendo debatido entre pesquisadores situados nos centros e nas
periferias da produção da geopolítica do conhecimento nas ciências sociais e se caracteriza pelo
conhecimento produzido fora dos centros hegemônicos. Por meio do legado epistemológico eurocêntrico
centralizador, patriarcal e racialista, os estudos nas ciências sociais não são compreendidos a partir de
realidades próprias e desenvolvidos a partir de geo-história específicas e interconectadas, cuja razão pode
estar no desconhecimento do tema, na ausência de um debate temático mais efetivo nas instituições de
ensino superior brasileiras. Para aproximar-se do campo, fez-se uma pesquisa exploratória por meio da
técnica bibliométrica em duas bases de dados (Scielo Brasil; Spell) exclusivamente sobre a produção
brasileira. Os anais do Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da Administração
(Rede ORD/UFSC) foram investigados como complemento às bases de dados, por ser espaço ímpar de
debate nos EORs brasileiros. Palavras-chave de busca: decolonialidade, descolonialidade, colonialidade, póscolonialidade. Filtro: ciências sociais. Foram identificados 15 artigos na base de dados Spell, 26 artigos na
base Scielo Brasil e 4 artigos nos anais do Colóquio, totalizando 45 artigos. Para tabular os dados foi utilizado
o Nvivo Plus®, versão 11. A análise de cluster indicou 6 artigos repetidos e 3 fora do escopo, sendo 36 artigos
submetidos à análise. A temática é pouco estudada no Brasil, com destaque para dois pesquisadores e três
IESs (FGV/UnB/UFRGS). Cadernos EBAPE.BR, Revista Sociedade e Estado e Anais do Colóquio são os
principais veículos. O debate é incipiente no Brasil e isolado em determinados grupos. A legitimação da
decolonialidade do saber amplia o pensamento fronteiriço e cria condições possíveis de coexistência ampla
entre saberes do Sul e do Norte.
Palavras-Chave: Decolonialidade; Pós-colonialidade, Eurocentrismo.
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INTRODUÇÃO
A colonialidade do saber é tema de debate entre pesquisadores situados tanto no centro quanto nas
periferias da geopolítica do conhecimento nas ciências sociais e se caracteriza pelo conhecimento produzido
fora dos centros hegemônicos (DUSSEL, 2000; WOOD JR; PAES DE PAULA, 2004; LANDER, 2005;
QUIJANO, 2005; BALLESTRIN, 2013; FARIA; WANDERLEY, 2013; ASSIS, 2014; FARIA; ABDALLA, 2014;
ABDALLA; FARIA, 2015 CARVALHO FILHO et al., 2015; ABDALLA; FARIA, 2017; CARVALHO FILHO et
al., 2017; LEAL;MORAES, 2017). O legado epistemológico eurocêntrico centralizador, patriarcal e racialista
que caracteriza a mainstream nos EORs impossibilidade que autores/pesquisadores críticos provoquem
reflexões mais amplas e instiguem a compreensão de fenômenos organizacionais a partir de realidades
próprias e desenvolvidas por meio da geo-história específica e interconectada local (WALSH, 2007,
ABDALLA; FARIA, 2015). O ensino colonial da Administração apresenta uma formação técnico-funcionalista
e reprodutora acrítica de modelos importados do centro (CARVALHO FILHO et al, 2015; CARVALHO
FILHO et al., 2017; LEAL; MORAES, 2017). Por isso questiona-se qual é a configuração da produção
científica brasileira sobre (de)colonialidade e quem são os pesquisadores que conseguiram superar as
adversidades do campo? Quais são os periódicos científicos que se propõem a contemplar tal tema e provocar
reflexões críticas no campo da Administração?
O objetivo do presente artigo é analisar a possibilidade (de)colonialialidade do saber no campo dos
estudos organizacionais (EORs) brasileiros, tomando como base a produção científica brasileira.
Especificamente fez-se o mapeando dos textos que apresentam a temática “colonialidade do saber” e deles
foram extraídos os dados que permitiram identificar as comunidades acadêmicas, autores, mensurar o
volume de artigos em relação ao número de autores que dedicam suas pesquisas ao tema, a configuração da
rede de relacionamentos e elaborar uma lista dos principais periódicos que dedicam espaço para publicação
do tema.
A noção de colonialidade proposta por Quijano (1992) refere-se à relação do poder na formação de
um sistema de dominação mundial, o qual permeia as esferas do trabalho, a autoridade científica, a
supremacia de uma comunidade científica e seus contornos teóricos, epistemológicos e ontológicos
orientados por dimensões objetivistas da realidade. Colonialidade distingue-se de colonialismo uma vez que
colonialismo é uma forma de dominação política, administrativa e militar, enquanto colonialidade se
refere ao padrão de poder global mais complexo e profundo (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007;
CARVALHO FILHO et al., 2015), de caráter universal e que naturalizou a objetividade do mundo a partir da
concepção da sociedade capitalista-liberal (LANDER, 2005).
Apesar de extinto o colinialismo base da relação entre as antigas colônias e as potencias europeias, o
poder social ainda está permeando os critérios originados da relação colonial (QUIJANO, 1992); a dinâmica
de dominação se mantém por meio da manutenção, reformulação e velamento (ou não) das estruturas de
poder, seja na dimensão econômica, política ou epistêmica (CARVALHO FILHO et al., 2015).
Na ideia de promover e legitimar a pluriversalidade dos saberes, ampliando o pensamento fronteiriço
para construir condições possíveis de coexistência ampla (ABDALLA; FARIA, 2017) é necessário
descolonizar o colonizador e o colonizado (MIGNOLO, 2010). A descolonização da Administração, enquanto
campo de conhecimento pode promover a construção da pluridiversalidade em substituição ao quadro de
disfuncionalidade geo-epistêmica caracterizado pela subalternização de diversos saberes (CARVALHO
FILHO et al., 2017). O campo para o desenvolvimento de estudos decoloniais no ensino superior é amplo
(LEAL; MORAIS, 2017), assim, o presente estudo é um recorte de um projeto de pesquisa maior que se
propõe a mensurar o nível de conhecimento dos docentes dos cursos de graduação em Administração,
ofertados nas universidades participantes do Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas, sobre o
tema (de)colonialidade nos EORs. Apresenta-se um panorama da produção científica brasileira sobre
(de)colonialidade nos estudos organizacionais (EOR), mapeando comunidades acadêmicas, autores, volume
de artigos/autor, rede de relacionamentos e principais periódicos.
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O estudo apresenta-se em cinco seções, além da introdução. Na seção dois são apresentados os
fundamentos teóricos sobre de(colonialidade) e colonialidade, de(colonialidade) no ensino em
Administração. Na terceira seção a metodologia desenvolvida neste estudo. Por fim, apresentação dos
resultados e as considerações finais.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 A de(colonialidade) e colonialidade do saber
Introduzido pelo sociólogo peruano Anibal Quijano, o conceito de “colonialidade” surge no final dos
anos 1980, trazendo um novo sentido ao legado do termo colonialismo, particularmente como foi
conceituado durante a Guerra Fria, junto com o conceito de “decolonização” (e as lutas pela libertação na
África e na Ásia). Desde então, a colonialidade foi concebida e explorada por diversos autores como o lado
mais escuro da modernidade (DUSSEL, 2000; WOOD JR; PAES de PAULA, 2004; LANDER, 2005;
QUIJANO, 2005; BALLESTRIN, 2013; FARIA; WANDERLEY, 2013; ASSIS, 2014; FARIA; ABDALLA, 2014;
ABDALLA; FARIA, 2015; CARVALHO FILHO et al., 2015; FARIA; GUEDES; WANDERLEY, 2015;
ABDALLA; FARIA,2017; CARVALHO FILHO et al., 2017; LEAL; MORAES, 2017).
Para elucidar o conceito, Quijano (2005) argumenta, em primeiro lugar, sobre o processo de
globalização e a modernidade. O processo de globalização começou com a constituição da América e do
capitalismo colonial/moderno e eurocentrado, instaurando um novo padrão de poder mundial. Modernidade
é o conhecido período que se abre a partir da América, vinculado ao processo de eurocentrização do
capitalismo, alcançando traços definitório a partir do final do século XVIII. A atual fase do poder colonial e
capitalista pressiona para a deturpação daquelas trações específicas, inclusive pela reversão do conflito social
em torno da ampliação da igualdade social, da liberdade individual e da solidariedade social (QUIJANO,
2002). Uma das premissas desse poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia
de raça, uma construção mental que expressa à experiência básica da dominação colonial, permeando as
dimensões mais importantes no mundo incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo (QUIJANO,
2005). Essa premissa, portanto, exprime a origem do caráter colonial, que se mantém duradouro e estável,
implicando uma narrativa histórica universal que tem a Europa como único sujeito significativo (LANDER,
2005).
Essa matriz de poder, expressada por meio da colonialidade, ainda encobre o fato de que a Europa foi
produzida a partir da exploração político-econômica das colônias (ASSIS, 2014). Ao desconsiderar o contexto
histórico desse padrão de dominação, esconde-se a dependência histórica- estrutural de produção da
América e da Europa (QUIJANO, 2005). A constituição social atual é reflexo desses fluxos históricos de
poder desenvolvidos por essa matriz (MIGNOLO; OLIVEIRA, 2017). Tal sistema é responsável pela macroorganização social, que acontece por meio dos instrumentos de controle da organização social, como a
política, o direito, as formas de produção material, o imaginário e as formas intelectuais, tornando-os
hegemônicos e dominantes (MIGNOLO, 2005).
A colonialidade fundamenta a lógica do desdobramento da civilização ocidental (QUIJANO, 1992).
Diferenciando a noção de colonialismo, cuja origem é a relação entre as antigas colônias e as potencias
europeias, a colonialidade se refere a uma complexidade e uma maior profundidade do poder (CASTROGÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007; CARVALHO FILHO et al, 2015). O poder social ainda está permeando os
critérios originados da relação colonial, exercendo de forma hegemônica o controle da subjetividade/
intersubjetividade, e em particular no modo de produzir conhecimento (QUIJANO, 2002). Nessa
perspectiva, colonialidade é caracterizada como um tipo de relação social constituído pela co-presença
permanente de três elementos: dominação, exploração e conflito (QUIJANO, 2002).
O pensamento decolonial propõe a superação desses elementos por meio da trans-modernidade,
promovendo pluriversalidade dos saberes, ampliando o pensamento fronteiriço para construir condições
possíveis de coexistência ampla (ABDALLA; FARIA, 2017). Diferentes tipos de propostas de pesquisadores e
praticantes do Sul global procuram desvelar a violência totalitária da modernidade eurocentrista e os
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conhecimentos subalternizados (MIGNOLO, 2005; 2010; 2011). A emancipação intrínseca à mudança do
conhecimento não necessariamente deve refutar as contribuições que não venham do “colonizado” que busca
a emancipação, mas valorizar saberes conectados a diferentes locus de enunciação, contribuindo para tratar
dos problemas de escala global, superando a “modernidade” (BALLESTRIN, 2013). No entanto, a
emancipação latino-americana passa também pela contribuição de intelectuais que estão posicionados do
lado dos opressores (BALLESTRIN, 2013).
A de(colonialidade) e o projeto emancipatório envolvem os grupos sociais oprimidos, marginalizados
e excluídos, rompendo com a reprodução de padrões e percepções do mundo estabelecido pela modernidade
eurocentrista, pensando para além da ordem posta, por meio de um novo olhar sobre o que é legítimo
(SANTOS, 2002). A decolonialidade permite construir sua própria racionalidade por meio do dialogo
simétrico, propondo a inversão das ordens estabelecidas, desmistificando àqueles que negam a historicidade
e atenção a interesses particulares (BALLESTRIN, 2013). Ballestrin (2013), afirma que por meio do
confronto dos saberes é que se inicia a resistência e rompe-se o controle institucionalizado do conhecimento.
O ensino, assim como outros domínios, sempre aconteceu privilegiando o ponto de vista
eurocentrado em detrimento das histórias de outras culturas, negligenciando a riqueza dos diferentes
contextos. A partir das perspectivas abordadas, entende-se que a legitimação da pluriversalidade dos saberes
amplia o pensamento fronteiriço, construindo condições possíveis de coexistência ampla entre os saberes do
Sul e o Norte. Os intelectuais deste campo, no entanto, afirmam que é necessário descolonizar tanto o
colonizador, quanto o colonizado para superar os elementos de dominação, exploração e conflito. A
pluriversalidade do conhecimento se propõe não apenas ao contato entre o ocidente e outras civilizações,
mas uma configuração transmoderna articulada, promovendo um giro epistêmico capaz de gerar novos
conhecimentos e percepções de mundo, sem perder de vista a colonialidade do poder, do saber, e do ser.
2.2 De(colonialidade) no ensino em Administração
A temática da de(colonialidade) do saber para a área da Administração, com viés ligado á Gestão, é
percebido como lado “sombrio” (IBARRA-COLADO, 2006). De acordo com Faria e Abdalla (2014), esse
campo vem sendo fomentado pelo sistema hegemônico neoliberal eurocêntrico comandado pelos Estados
Unidos (EUA) para a preservação e fortalecimento de um padrão capitalista de poder que rearticula e
radicaliza a dicotomia centro-periferia em escala global.
No contexto da Administração, e especificamente ao considerarmos a trajetória da Administração
Pública no Brasil, também se observa que esta tem sido fortemente ligada a estruturas e mecanismos de
dominação dos países centrais sobre os periféricos dentro do sistema mundo moderno/colonial. Vale
ressaltar que os cursos da área de Administração já surgem, no Brasil nos anos 1950, veiculado através da
transposição de paradigmas de países mais desenvolvidos (FISCHER, 1984).
No ensino da Administração abrange a formação técnico-funcionalista que vem sendo ainda
desafiado, na prática, por pedagogias alternativas conectadas ao crescente interesse de acadêmicos pela
teorização decolonial, esse desenho dominante fragiliza o papel de ciência transformadora que a
Administração pode assumir (SARAIVA, 2011).
Muitos estudos no campo da Administração emergem do pensamento Decolonial, mas não de forma
submersa (ROSA; ALCADIPANI, 2014). Os autores Faria e Wanderley (2013) destacam a dificuldade da
produção do conhecimento decolonial nos estudos em Administração, em destaque o Brasil, em virtude da
dimensão geopolítica.
Tendo em conta a globalização e a expansão das fronteiras do conhecimento, têm-se algumas
vertentes relevantes dentro do assunto. A transformação do que não é conhecimento, e se torna
conhecimento, ou seja, muitas instituições que se voltam ao centro dominante se apropriam do não
conhecido e transformam de algum modo em conhecimento, assim aumentando o número de áreas do
conhecimento e produção acadêmica (FARIA; WANDERLEY, 2013).
Em destaque ao espaço geopolítico comentado pelos autores, é necessário entender as realidades da
América Latina, por três vieses. A primeira se da por meio das características do desenvolvimento dos
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estudos de organização da administração, havendo uma tendência de falsificação ou até imitação do
conhecimento gerado. A segunda destaca o papel desempenhado em virtude do termo “organização”
fazendo-se o uso de forma sintética a fim de facilitar a comparação de realidades diferentes e a terceira a
maneira que é contemplada os problemas organizacionais (IBARRA-COLADO, 2006).
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Com o objetivo de responder o problema de pesquisa, este estudo caracteriza-se como uma pesquisa
descritiva-exploratória, orientada pela estratégia da técnica bibliométrica, com abordagem quantitativa
dados. A técnica bibliométrica consiste na aplicação de métodos matemáticos e estatísticos com o intuito de
descrever e quantificar a comunicação escrita relacionada a uma determinada temática (PRITCHARD, 1969).
No método bibliométrico é esperado que os autores atendam às Leis que regem esses estudos, são
elas: lei de produtividade de autores de Lotka; lei de dispersão de periódicos de Bradford; e lei de frequência
de palavras de Zipf (CHUEKE; AMATUCCI, 2015). O objetivo da Lei Bradford é Identificar os periódicos
mais relevantes e que dão maior vazão a um tema em específico, a partir disso é possível verificar quais
periódicos científicos exercem maior atração sobre o assunto, refletindo na quantidade de publicações do
tema (CHUEKE; AMATUCCI, 2015). A Lei de Zipf observa a frequência em que aparecem determinadas
palavras ou palavras-chave em um texto (CHUEKE; AMATUCCI, 2015). O objetivo é estimar os temas mais
recorrentes relacionados a um campo de conhecimento nos textos estudados, formando uma classificação, a
primeira palavra mais citada no texto, a segunda, a terceira e assim por diante (CHUEKE; AMATUCCI,
2015). A Lei de Lotka expressa a quantidade de artigos, relacionando à produtividade dos autores, cujo
objetivo é levantar o impacto da produção de um autor numa área de conhecimento especifica, a partir d
critério tamanho-frequência (CHUEKE; AMATUCCI, 2015).
Com base nas leis de Lotka, Zipf e Bradford (CHUEKE; AMATUCCI, 2015), a pesquisa foi
desenvolvida nas seguintes etapas: análise da produção de artigos, mapeamento das comunidades
acadêmicas; identificação dos autores; quantidade de artigos por autor; redes de relacionamento; quantidade
de artigos publicados; periódicos que mais publicam sobre o tema e; identificação das palavras que mais
aparecem nos estudos.
A pesquisa foi realizada nas bases de dados Spell e Scielo, como complemento, foi pesquisado os
anais do Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da Administração, dada a
relevância deste colóquio para a temática apresentada. Os dados foram coletados no período de 28/07/2018
à 18/09/2018. As palavras utilizadas foram “decolonialidade”, “descolonialidade”, “colonialidade” e “póscolonialidade”, filtrando por “ciências sociais”. Foram encontrados 15 artigos na Spell, 26 artigos na Scielo e
4 artigos nos anais do Colóquio, totalizando 45 artigos.
Para analisar os dados do estudo foi utilizado o programa Nvivo Plus®, versão 11. Por meio da
análise de cluster no Nvivo Plus® foi verificado que 6 artigos se repetiam e 3 artigos se distanciavam da
temática. Após esse filtro, foram analisados 36 artigos. Quanto a análise e interpretação de dados deste
estudo, foi utilizado o programa Nvivo Plus®, versão 11. Por meio da analise de cluster no Nvivo Plus® foi
verificado que 6 artigos se repetiam e 3 artigos se distanciavam da temática. Após esse filtro, foi realizada
análise de estatística descritiva dos dados (HAIR JR. et al., 2005) de 36 artigos.
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES
Após a classificação dos 45 artigos científicos sobre “decolonialidade”, “descolonialidade”,
“colonialidade” e “pós-colonialidade”, filtrando por “ciências sociais”, eliminando os artigos que se repetiam
e os artigos que se distanciavam da temática, foram analisados 36 artigos de acordo com as categorias
propostas com base nas três leis: análise da produção de artigos, periódicos que mais publicam sobre o tema,
mapeamento das comunidades acadêmicas; identificação dos autores; quantidade de artigos por autor; redes
de relacionamento; quantidade de artigos publicados e; identificação das palavras que mais aparecem nos
estudos.
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4.1 Quantitativos de Publicações
A Figura 1 apresenta o número de publicações sobre colonialidade, distribuídas por ano. Os dados
indicam que o tema passa a ser considerado relevante para poucos pesquisadores a partir de 2013, tendo seu
ápice em 2015 com a realização de um evento científico com este propósito. A tendência é de crescimento.
Figura 1 – Número de publicações sobre colonialidade, por ano.
Fonte: dados da pesquisa
No período 2007-2011, que não há publicações nos periódicos nacionais, evidencia variância de
11,02. O desvio padrão é de 3,32 dos 36 elementos analisados. Mediana 2, intervalo de 0 a 9 artigos
produzidos.
Na Tabela 1 são apresentados os periódicos nos quais aparece mais de um artigo sobre colonialidade
publicado.
Tabela 1 – Principais periódicos de publicação
Principais Periódico/Eventos
Quantidade de artigos
Cadernos EBAPE
8
Revista Sociedade e Estado
7
Anais Colóquio Internacional de Epistemologia e
Sociologia da Ciência da Administração
4
Revista de Administração de Empresas
2
Outros com apenas uma publicação
15
Total
36
Fonte: dados da pesquisa
Em relação à quantidade de periódicos que publicaram artigos sobre o tema, foram identificados 19.
Destes, 15 possuem apenas uma publicação e 4 presentam mais de uma. Destacam-se, nesta lista, os
periódicos Cadernos EBAPE e Revista Sociedade e estado, com maior número de publicações no período,
respectivamente 8 e 7. Analisando a média por periódicos não chega a 2 artigos, com desvio padrão de 2,10 e
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variância da amostra de 4,43. Retirando os 15 periódicos com apenas uma publicação temos uma média de 5
artigos por periódico, com desvio padrão de 2,75 e Variância da amostra de 7,58.
O periódico Cadernos EBAPE.BR, classificado pela Capes no estrato Qualis A2, é patrocinado pela
Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas. No seu escopo
privilegia textos que promovem o debate de temas relevantes na Administração, mas estimula análises na
perspectivas interdisciplinares e críticas. O periódico Sociedade e Estado, por sua vez, está classificado no
estrato Qualis B1 e publica artigos originais que apresentam a notória diversidade de abordagens teóricas e
metodológicas no campo das ciências sociais.
4.2 Autorias e instituições de origem
Dentre os 36 artigos selecionados para análise foram identificados 42 autores, evidenciando uma
média de 1,16 autores por texto, cuja amplitude de número de autores varia de, no mínimo, 1 (um) artigo e,
no máximo, 7 artigos. O desvio padrão da amostra de produção cientifica por autor é de 1,05 e variância de
1,11. Os autores que mais publicaram sobre o tema colonialidade estão relacionados na Tabela 2. Alexandre
Farias (FGV/RJ) representa 39% dos textos publicados.
Tabela 2 – Relação de autores e número de publicações sobre colonialidade
Número de
Autor
Vínculo institucional
publicações
Fundação Getúlio Vargas/Rio de
Alexandre Farias
7
Janeiro
Wendell Ficher Teixeira
Universidade Federal de Alagoas
3
Assis
Joaze Bernardino-Costa
Universidade de Brasília
3
Sergio Wanderley
Fundação Getúlio Vargas/Rio de Janeiro
3
Mauricio Abdala
Universidade Federal do Espírito Santo
2
Rafael Alcadipani
EAESP-FGV
2
Ana Lucia Guedes
Universidade do Grande Rio
2
Maria Ceci Misoczky
Universidade Federal do Rio Grande do
Sul
2
Soma
24
Fonte: Os autores (2018)
Dentre outros autores, três publicaram três artigos sobre decolonialidade: Wendell Ficher Teixeira
Assis, que atua no nordeste do país, Joaze Bernardino-Costa, que está no centro-oeste, e Sergio Wanderley,
atuando na região sudeste. Em conjunto eles representam 15% dos autores que mais publicam no tema.
Contudo apenas Joaze Bernardino Costa é autor especialista nos debates sobre colonialidade e que utiliza
integralmente as teorias decoloniais e a perspectiva do pós-colonialismo em suas pesquisas. Com menor
expressão nas publicações sobre colonialidade estão: Mauricio Abdala, Rafael Alcadipani e Ana Lucia
Guedes, atuantes na região sudeste, e Maria Ceci Misoczky, na região sul. Os demais autores identificados
possuem apenas uma publicação.
Para gerar as redes de colaboração entre autores e instituições/centros de pesquisa, foi utilizado o
software Nvivo Plus®, versão 11. Após a codificação dos “nós” formados pelos autores e por
instituição/centro de pesquisa, obteve-se o cluster apresentado na Figura 2, cuja análise por similaridade de
codificação e usando a métrica de coeficiente de correlação de Pearson revela a rede de coautoria formada
por Alexandre Faria, Sergio Wanderley e Mauricio Abdala como de maior representatividade. A maioria dos
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autores não estão integrandos à rede brasileira de pesquisadores que se propõe a refletir sobre
(de)colonialidade nos estudos organizacionais.
Figura 2 – Cluster de autores e rede de relações
Fonte: Dados da pesquisa (2018).
Na Tabela 3 estão relacionadas as instituições de ensino superior (IESs) às quais estão vinculados os
autores dos artigos analisados. A Fundação Getúlio Vargas – representada por uma escola localizada no
Estado de São Paulo e a outra no Rio de Janeiro – detém a maior representatividade por seus pesquisadores
terem produzidos 10 artigos, mesmo que 7 deles tenham sido produzidos por apenas um pesquisador. A
Universidade de Brasília e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul ocupam a segunda posição, com a
penas 4 artigos cada. A produção institucional média é de 1,95 artigos, com o desvio padrão de 2,10 e
variância de 4,44. A rede de relacionamentos entre instituições revela poucas parcerias. A Fundação Getúlio
Vargas, por meio de Alexandre Faria, relaciona-se com as universidades Castelo Branco, Grande Rio e do
Ceará.
Tabela 3 – Principais Universidades
Principais Universidades
Quantidade de artigos que aparecem
Fundação Getúlio Vargas
10
Universidade de Brasília
4
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
4
Universidade Federal de Alagoas
3
Universidade Federal de Santa Catarina
3
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
2
Outras Universidades (15 universidades)
1
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Soma
27
Fonte: dados da pesquisa
Na Figura 3, o cluster de IESs às quais estão vinculados os autores revela iniciativas individuais dos
pesquisadores e não interesses institucionais em ampliar ou provocar o debate a respeito do tema. Os dados
permitem afirmar que o debate é incipiente no Brasil e isolados
Figura 3 – Relação entre universidades
Fonte: dados da pesquisa
As evidências observadas na distribuição geográfica dos pesquisadores que se propõe a debater o
tema colonialidade revelam fragilidades institucionais e articulações políticas para pensar uma rede densa,
com poder de conduzir/liderar um debate em direção ao desafio da hegemonia da ordem neoliberal e
eurocêntrica.
Com um debate centrado conhecimento e colonialidade, o neoliberalismo e o eurocentrismo se
apresentam distante do tema central apresentado pelos autores brasileiros supracitados. Na Figura 4,
elaborada a partir da frequência de palavras encontradas nos 36 artigos analisados e limitada a 100 palavras
mais citadas com menos de 8 caracteres, o cluster central é formado por um conhecimento sobre o
desenvolvimento do pensamento sobre a colonialidade no contexto da modernidade, valorizando questões de
contexto.
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Figura 4 – Palavras mais citadas nos artigos científicos sobre colonialidade
Fonte: Dados da pesquisa
Individualmente, as palavras mais citadas são: desenvolvimento (15 artigos, 524 repetições),
administração/management (13 artigos, 953 repetições), colonialidade (13 artigos, 713 repetições),
conhecimento (12 artigos, 886 repetições) e colonialismo (12 artigos, 387 repetições) e modernidade (11
artigos, 613 repetições), além de outras palavras com menor número de repetições.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo foi apresentar um panorama da produção científica brasileira sobre decolonialidade, por
meio de uma pesquisa descritiva com a utilização de técnicas bibliométricas. Os resultados mostram que a
temática é pouco estudada no Brasil, com destaque para dois pesquisadores (Alexandre Farias e Wendell
Ficher Teixeira Assis (e três IESs (FGV/UnB/UFRGS). Os Cadernos EBAPE.BR, Revista Sociedade e Estado e
Anais do Colóquio são os principais veículos de disseminação desta temática. A nuvem de palavras apresenta
uma grande concentração em torno das palavras “conhecimento”, “colonialidade”, “colonial” e
“modernidade”, indicando a preferência dos autores destas palavras para a divulgação do trabalho. O debate
sobre colonialidade e decolonialidade é incipiente no Brasil e isolado em determinados grupos. Entende-se
que por meio da legitimação da decolonialidade do saber é possível ampliar o pensamento fronteiriço e criar
condições possíveis de coexistência ampla entre saberes do Sul e do Norte. Assim, é possível promover a
construção da pluridiversalidade em substituição ao quadro de disfuncionalidade geo-epistêmica
caracterizado pela subalternização de diversos saberes. Por fim, o presente estudo encontra limitações,
sugere-se a continuidade dos estudos, ampliando para outras bases de dados e dando ênfase ao conteúdo das
discussões teóricas dos trabalhos utilizando-se de uma revisão sistemática, buscando promover maior
compreensão da discussão teórica adotada nos trabalhos.
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A metodologia de ensino marista na formação de
“bons cristãos e virtuosos cidadãos” – Passo Fundo (1906-1950)
Natália Carla Vanelli1
Resumo: O presente trabalho analisará o papel que a Congregação dos Irmãos Maristas e do Colégio Nossa
Senhora da Conceição na difusão e fortalecimento do catolicismo na região de Passo Fundo, durante entre os
anos de 1906 a 1950. Neste contexto, frente a laicização Estatal, as autoridades eclesiásticas empenham-se
fortemente na consolidação de um catolicismo, mais sólido e profundo no país, sendo o campo educacional
um espaço estratégico para os novos objetivos da Igreja Católica. É nesse intuito que a Congregação dos
Irmão Maristas chega ao Brasil, para educar e evangelizar os jovens dentro da doutrina da fé cristã. Através
de seus educandários em modelo de internato, aplicavam a da metodologia de ensino confessional, para
assim, além de realizar a normatização e adequação social de seus estudantes, educava-se e catequizava-se
dentro dos processos do catolicismo. Analisa-se a presença dessas instituições e a importância das mesmas
para a construção da personalidade e do caráter dos estudantes, bem como as marcas que a mesma deixava
na subjetividade de seus internos.
Palavras-chave: Catolicismo, educação confessional, metodologia de ensino, subjetividade, Marista.
A Cultura, que é o produto dessa divisão mágica, tem valor de sagrado. E, de fato,
essa consagração cultural submete os objetos, pessoas e situações que ela toca em
uma espécie de promoção antológica que se assemelha a uma transubstanciação.
[...] a negação da fruição interior, grosseira, vulgar, venal, servil, em poucas
palavras, natural, em que se constitui como o tal sagrado cultural, traz em seu bojo
a afirmação de superioridade daqueles que sabem satisfazer com prazeres
sublimados, requintados, desinteressados, gratuitos, distintos, interditados, para
sempre o simples profano. É assim que a arte e o consumo artístico estão prédispostos a desempenhar, independentemente da nossa vontade e de nosso saber,
uma função de legitimação das diferenças sociais.”
Pierre Boudieu
Em plena Era Napoleônica (1799-1815) - no auge da laicização estatal e perseguição religiosa 2 –, foi
fundado o Instituto dos Irmãos Maristas 3 (1817) por Marcellin Joseph Benoît Champagnat 4. A atuação de
Champagnat iniciou-se no cume de fenômeno político-social de mudança radical na história francesa e
mundial.
Graduada em História na UPF-Universidade de Passo Fundo. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
de
Passo
Fundo
(PPGH/UPF),
na
linha
de
pesquisa:
Cultura
e
Patrimônio.
Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8117653H2 . E-mail: nataliacvanelli@gmail.com.
2 PIERRARD, Pierre. História da Igreja. São Paulo: Edições Paulinas, 1982. p.221.
3 Instituto dos Irmãos Maristas das Escolas (Fratres Maristae a Scholis - F.M.S) é o nome de uma ordem religiosa fundada em 2 de
janeiro de 1817, no pequeno vilarejo de La Valla, França, por Marcelino Champagnat. A ordem religiosa apesar de seguir e propagar a
doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana não era reconhecida como congregação religiosa, nem pela Igreja nem governo francês,
fato esse que somente se modificou para a primeiro nos anos de 1936 e para o segundo em 1851.
4 Nasceu em 20 de maio de 1789, em Marlhes, aldeia de montanha no centro Leste da França, perto de Lyon, na França. Filho de João
Batista e Maria Chirat, estudava em casa, pois tinha medo da escola e dos métodos e castigos educacionais utilizados pelos professores.
Com 14 anos, entra para o seminário onde anos depois junta-se a um grupo de seminaristas que projeta fundar uma Congregação que
abrange padres, religiosas e leigos, levando o nome de Maria- a "Sociedade de Maria"- para cristianizar a sociedade. Em 1817, aos seus
27 anos, reúne seus dois primeiros discípulos formando os irmãos Maristas. Em 1836, a igreja reconhece a Sociedade de Maria e lhe
confia a missão da Oceania. Morre aos 51 anos de idade em 6 de junho de 1840. O papa João Paulo II canonizou Marcelino Champagnat
no dia 18 de abril de 1999, na praça São Pedro no Vaticano, reconhecendo-o como santo da Igreja Católica.
1
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Apesar de ativo e propagador da fé católica, o Instituto Marista ainda não era reconhecido pela Igreja
Católica como Congregação religiosa -cenário esse que veio a modificar-se somente no ano de 1936 -.
Durante o século XIX, a Igreja Católica promoveu uma nova onda de missões catequizadoras para a Ásia,
África e Oceania, sendo o Instituto Marista integrante e participante dessas missões. 5 Foi a partir desse
momento que a Congregação Marista e as ideias de Marcelino Champagnat difundiram-se para várias partes
do mundo, inclusive para a América e o Brasil, no final do século XIX.
No período de transição do Império brasileiro para a República, o Brasil possuía um número muito
baixo de dioceses, cada uma delas com escassos sacerdotes. Sacerdotes esses em constante crise devido à
nova ordem civil de laicidade estatal. Outro acontecimento que agravava fortemente o quadro de decadência
do catolicismo brasileiro durante o fim do século XIX foi a má reputação do sacerdócio. A menção a padre
não representava exatamente um religioso como exemplo de vida, pois muitos não seguiam os dogmas
religiosos nem o juramento religioso que faziam na ordenação. Alguns viviam na “farra”, envolvidos com o
alcoolismo constante e/ou até possuíam família. Outros sacerdotes serviam famílias poderosas envolvidos
com o crime e com a vida “irregular” 6.
Os registros sobre a situação e atuação dos religiosos no raiar da república demonstra a degradação
do prelado brasileiro. O mesmo sem estrutura física adequada para desempenhar a contento suas funções
religiosas (com poucas paróquias - as que existiam velhas e necessitando de reformas), sem estruturação
financeira (pois anteriormente a laicização estatal o dizimo era de propriedade do Estado) e sem legitimação
popular (uma vez que suas autoridades brasileiras não eram vistos como respeitosos e dignos, sendo desleais
e corruptos com seus propósitos e pregações) acarretaram no desleixo e depreciação dos religiosos católicos.
Decide-se então na Assembleia Episcopal realizada em São Paulo em agosto de 1890, presidida pelo
Bispo Dom Marcelo Costa, que a Igreja Católica como instituição iria aumentar seu horizonte religioso,
reconquistar seu prestígio como instituição e seus fiéis e, principalmente, contrapor-se-ia a expansão dos
colégios protestantes7, ainda em pequeno número no início do século XIX. Facilitariam assim a vinda das
congregações religiosas europeias para o Brasil, a fim de recristianizar a população e reafirmarem-se como a
religião com maior poder de influência no país.
Frente à laicização do Estado, a Igreja Católica e suas lideranças perceberam que teriam que
conquistar um novo espaço no cenário da república brasileira, e que deveriam de fato conquistá-lo.
Inicialmente as lideranças religiosas visavam expandir e solidificar a fé católica em terreno brasileiro através
das massas, doutrinando a população, para assim poderem solidificar-se através da legitimação e
confirmação ideológica de seus ideais 8. Essa pregação iniciou-se pelas dioceses, paróquias, capelas, e escolas,
apostando no âmbito devocional como o grande campo de propagação ideológica.
O campo educacional foi percebido como um espaço estratégico para os novos objetivos da Igreja
Católica no país. Nesse campo poderiam controlar o jogo de ideia e a mentalidade dos alunos, que por
consequência chegaria a suas casas e seus descendentes, legitimando a instituição católica através do
imaginário9.
Outro fator muito importante que fez com que as lideranças políticas sul rio-grandenses investissem
na vinda das congregações religiosas europeias era o cenário cultural e religioso do Rio Grande do Sul, era
que se via surgir uma esfera da vida humana religiosa bipartidária. De um lado católicos e do outro e não
católicos responsáveis pelo controle de áreas importantes da sociedade, uma vez que nessas lideranças
LANFREY. Irmão André. História do Instituto – Da aldeia de Marlhes à expansão mundial (1780-1907). São Paulo: Instituto dos
Irmãos Maristas Casa Geral- ROMA. 2015. V1.p.23.
6 MEDEIROS. Marcia Maria. Cara ou Coroa – Católicos e Metodistas no Planalto Médio Gaúcho (início do século XX).Passo Fundo:
UPF . 2007. p.38.
7 AZZI, Riolando. A Igreja Católica na formação da sociedade brasileira. São Paulo: Editora Santário, Aparecida, 2008. p.19.
8 GIOLO, Jaime. Estado & Igreja na implantação da República Gaúcha: a educação como base de um acordo de apoio mútuo. SérieEstudos-Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB 27 (2013). p. 137.
9 AZZI, Riolando. A presença da Igreja católica na sociedade brasileira e formação das dioceses no período republicano. In: SOUZA,
Rogério Luiz; OTTO, Clarícia (Org.). Faces do Catolicismo. Florianópolis: Editora Insular, 2008. p.21.
5
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estavam as bases das regras da moral e bons costumes que deviam fazer parte do comportamento e do
ideário social10.
Os Irmãos Maristas chegaram no Rio Grande do Sul, por iniciativa do Padre Rudgero Separa
Stenmanns, vigário da cidade de Bom Princípio, no ano de 1897. A congregação dos Irmãos Maristas chega a
Passo Fundo no ano de 1906 e, no mesmo ano funda o Colégio São Pedro. 11 Em Passo Fundo, a Igreja
Católica assumiu os espaços deixados pelo Estado, fixando-se firmemente na estrutura sócio-política que o
contexto lhe apresentava. Através dos colégios confessionais, já que o estado não dava conta da parte
educacional, expandiu sua atuação junto à sociedade, inserindo-se no seio da população, não somente por
missas e sermões eucarísticos12
Em 1908, o proprietário da casa onde funcionava o Colégio São Pedro, o senhor Aníbal de Primio,
vendeu o referido imóvel. Em razão disso, os irmãos Maristas procuraram uma nova sede, alugando uma
edificação de Lucas Annes na Avenida Brasil. Eleito o novo Intendente Municipal, o senhor Gervásio Annes,
irmão de Lucas, resolveu suprimir a contribuição financeira concedida ao Colégio São Pedro 13.
Em 1928 surgiu a oportunidade desejada pelos religiosos para retornarem à Passo Fundo. Os padres
Palotinos14 retiraram-se da paróquia da cidade e seu imóvel foi colocado à venda. Após examinar o imóvel, o
mesmo foi comprado pela Congregação Marista para transformá-lo no Ginásio Nossa Senhora da Conceição.
As primeiras preocupações decorrentes e ações realizadas pela direção da Congregação que assumiu o
Colégio Conceição no ano de 1928 foram adaptar a edificação e construir os prédios necessários para
efetuação do “tão clamado e desejado do Curso Ginasial 15” (escola secundária vocacionada para a
preparação dos alunos para acederem a uma universidade) e Internato; oficializar o ensino mediante
consecução e Inspeção Federal e instalar o Juvenato 16 (estudos e formação de jovens para a vida eclesiástica
e exercício do magistério religioso) para candidatos à vocação Marista. Em 1º de março de 1929 realizou-se a
abertura do novo Ginásio do Colégio Marista Conceição, tendo início nesse dia a trajetória do colégio na
cidade, com 78 alunos matriculados17.
Nesse sentido, os Educandários e Colégios em modelo de Internato 18 são vistos, pela elite, como
grandes alicerces e aliados no processo de disseminação dos hábitos e costumes sociais que estão em voga.
As crianças e jovens são confiados a um grupo de pessoas que, através de uma metodologia e um sistema
educacional, prometem educar e moldar aqueles indivíduos semelhantes a seus pares, devolvendo-os à suas
famílias, prontos para o convívio social adulto.
10 MEDEIROS. Marcia Maria. Cara ou Coroa – Católicos e Metodistas no Planalto Médio Gaúcho (início do século XX).Passo Fundo:
UPF . 2007.p.111.
11 HENZ. Ir. Alfredo. Maristas no Brasil Meridional. Porto Alegre: CMC, 2000. 28.
12 MEDEIROS. Marcia Maria. Op.Cit. Passo Fundo: UPF . 2007. p.48.
13 COLUSSI, Eliane Lucia. Aspectos da maçonaria em Passo Fundo: 1876 - 1925. Passo Fundo: EDIUPF, 1998.p.336.
14 Os Padres Palotinos (S.A.C.) são uma sociedade de vida apostólica da Igreja Católica Apostólica Romana fundada em 1835 com o nome
de Sociedade do Apostolado Católico (societas apostolatus catholici) pelo Padre Vicente Pallotti, declarado santo, durante o Concílio
Vaticano II, pelo Papa João XXIII em 20 de janeiro de 1963. Em Passo Fundo, no ano de 1905 assumiram a direção da Paróquia de
Passo Fundo e permaneceram até o ano de 1928.
15 Nos países germânicos, tradicionalmente, o ginásio constitui uma escola secundária vocacionada para a preparação dos alunos para
acederem a uma universidade, com caraterísticas muito semelhantes às dos tradicionais liceus da Europa latina. Os ginásios têm origem
na Reforma Protestante ocorrida no século XVI. O primeiro sistema de escolas a ministrar um ensino ginasial surgiu na Saxónia em
1528. Segundo o sistema educativo do tipo germânico, os ginásios destinam-se aos alunos com maior vocação académica. Estes alunos,
são filtrados à saída do ensino primário, por volta dos 10 a 13 anos, só aos melhores sendo permitido aceder ao ginásio.
Tradicionalmente, o ginásio foca-se nas humanidades e nos estudos clássicos, com o seu currículo a incluir normalmente o ensino do
latim e do grego antigo. Outras modalidades do ensino ginasial incluem as línguas modernas, as ciências, a economia e as tecnologias.
16 Estágio de estudos e formação, em certas ordens ou congregações católicas, de jovens para a vida eclesiástica e exercício do magistério
religioso. Estabelecimento de ensino e preparação de jovens para a carreira religiosa.
17 LIVRO de Atas do Colégio Marista Conceição. Livro 01. Data 1910 –1939.p.53.
18 O sistema de internato é composto, além do corpo docente e discente, por uma grande estrutura de um complexo físico, onde os
estudantes transitam regradamente entre salas de aulas, dormitório, refeitórios, biblioteca, áreas verdes, etc; O regime de internato
inclui alojamento durante os dias úteis e/ou também durante o fim de semana. Geralmente são localizados em áreas rurais ou afastadas
do centro das cidades.
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Para Erving Goffman os Internatos fazem parte de um círculo muito estreito, ao qual ele denomina
Instituições Totais. Segundo o autor19, as instituições totais se caracterizam por serem estabelecimentos
fechados que funcionam em regime de internação, onde um grupo relativamente numeroso de internados
vive em tempo integral.
A instituição funciona como local de residência, trabalho, lazer e espaço de alguma atividade
específica, que pode ser terapêutica, correcional, educativa etc. A Instituição total é aquela que controla ou
busca controlar a vida dos indivíduos a ela submetidos, substituindo as possibilidades de interação social por
"alternativas" internas. Para o autor, o internado começa a agir de maneira que o seu “eu” passa por
transformações dramáticas do ponto de vista pessoal e do seu papel social.
A criança inserida em um modelo de internato, seja religioso ou não, sofre um processo de
“supressão do eu” gerando o enclausuramento da “concepção de si mesmo” e seu ethos20, que são formadas
na vida familiar e civil e não são aceitas pela sociedade aparente e suas normativas. Fazendo-o perder seu
conjunto indenitário e segurança pessoal, gerando desequilíbrio e suscetibilidade ao ideário propagado na
instituição ao qual o estudante está submetido.
Os estabelecimentos fechados por muros que delimitam seu território apresentam
algumas características distintivas: os indivíduos internados têm, como parte de
suas obrigações, uma participação visível nos momentos adequados às atividades
do estabelecimento. Isso exige deles uma mobilização da atenção e do esforço
muscular, além de certa submissão pessoal à atividade em questão. Essa
participação obrigatória na atividade do estabelecimento é considerada como um
símbolo do compromisso e da adesão do indivíduo, implicando também a aceitação
por ele das consequências da participação para uma definição de sua natureza,
papel e posição de internado. Os problemas de adesão visíveis nas atividades
programadas do estabelecimento são indicadores do modo como os indivíduos se
adaptam ou não ao papel e definição que o estabelecimento lhes impõe. 21
Dessa maneira, encontrando-se isolado, o aluno passa a desenvolver um sentimento de abandono,
um desejo de anonimato e os contatos com o mundo externo e com a realidade (que não seja a da própria
instituição de ensino) são evitados. Inexoravelmente, para ser aceito no grande contexto, o indivíduo
despoja-se de suas defesas e satisfações, enfim, aprende a viver sob as condições que lhes são apresentadas.
O esforço alheio é incorporado por meio de “coerção particular” (o coagido obedece
involuntariamente), pois necessita seguir as regras que o local onde está inserido impõe, como horários para
realização de tarefas, grade curricular, atividade práticas, doutrinas religiosas (em casso de colégios
religiosos, conventos ou seminários) bem como a ideologia que é disseminada. O período em que estudante
fica internado e subjugado constitui uma parte significativa do período vital total do indivíduo; pois é nessa
fase etária, segundo Vygotsky, que os sujeitos solidificam sua personalidade, suas concepções de certo e
errado, bem e mal, através de suas relações de exemplificação para com o meio ao qual estão inseridos. 22
Portanto esse lapso de tempo no qual o indivíduo vive como internado pode deixar marcas profundas na sua
subjetividade.
A linha que separa a personalidade os internos do contexto e da ideologia da Instituição de ensino
onde encontra-se submetido torna-se tênue. Uma vez que, inicialmente o interno, ao se encontrar isolado e
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.p.20.
Ethos é uma palavra usada para descrever o conjunto de hábitos ou crenças que definem uma comunidade ou nação. O ethos são os
costumes e os traços comportamentais que distinguem um povo, os traços sociais e afetivos que definem o comportamento de uma
determinada pessoa ou cultura.
21 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.p.17-18.
22 BENELLI, Sílvio José. O internato escolar como instituição total: Violência e subjetividade. Psicologia em Estudo, Maringá: v. 7, n. 2,
p.
19-29,
jul./dez.
2002.
Disponível
em:
<http://www.observatoriodeseguranca.org/files/O%20internato%20Escolar%20como%20institui%C3%A7%C3%A3o%20total%20Viol%C3%AAncia%20e%20Subjetividade..pdf>. Acesso em 19.07.2018. p.19.
19
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totalmente submerso – nem sempre de maneira voluntária- ao contexto ideológico e de regramentos, adere e
reproduz, inconscientemente, características e práticas difundidas pela entidade ao qual está vinculado. As
práticas sociais foram o grande instrumento para a “modelagem” da subjetividade dos indivíduos internos,
pois conforme demonstra Benelli, um estudante de colégio interno acaba por sentir orgulho de pertencer a
essa instituição de ensino; uma vez que o mesmo não perde totalmente seus direitos civis e a duração de sua
permanência no internato é limitada, sabendo que retornará ao meio social.
Como membro da comunidade escolar, o estudante depende em grande medida do
que o colégio lhe proporcione quanto ao seu bem-estar, alojamento, recreação,
saúde, etc. Ele também está bastante sujeito ao sistema de autoridade e controle
institucional (normas sobre a admissão, expulsão, regulamentos, aproveitamento
acadêmico e comunitário e condições de graduação). 23
Foucault demonstra, ao estudar o funcionamento do poder nas sociedades modernas, que nos
conventos e no exército, já existiam (há muito tempo) meios e processos disciplinadores e de subordinação.
“Mas as disciplinas se tornaram no decorrer do século XVII e XVIII formas gerais de dominação” 24. Para
Beneelli “seriam uma sofisticação da tecnologia conventual monástica que, apesar de implicar a obediência a
um superior, tinha como objetivo principal o aumento do autodomínio” 25.
Sendo essa a metodologia empregada pela Congregação Marista em seus colégios -metodologia
baseada no modelo de ensino Lazarista- pois nos primórdios da fundação da Comunidade (1822) houve, na
França, um contato direto entre esses grupos religiosos. Champagnat, movido de seu ideário de catequização
e evangelização utiliza-se do modelo de ensino Lazarista para formatar a metodologia Marista 26. Baseada em
Colégios de Internatos, em modelos Confessionais, ou seja, vinculado a igrejas ou confissões religiosas. A
escola confessional baseia os seus princípios, objetivos e forma de atuação numa religião, diferenciando-se,
portanto, das escolas laicas. Para essas escolas o desenvolvimento dos sentimentos religiosos e moral nos
alunos é o objetivo primeiro do trabalho educacional, procurando ter um embasamento filosófico-teológico.
Ao abordar uma metodologia religiosa, a Congregação Marista buscava formar “bons cristãos e
virtuosos cidadãos” ao “tornar Jesus Cristo conhecido e amado”. Foi com a catequese como forte aliada no
internato que os Irmãos Maristas conseguiram enraizar-se e difundirem seus ideais na sociedade passofundense, transformando e formando a subjetividade e o caráter de muitos jovens e estudantes internos.
Conforme a Constituição e Estatutos dos Irmão Maristas, era dever dos mesmos, e, por consequência dos
estudantes
Cada dia, louvamos a Mãe de Deus pelo terço ou outra prática de piedade
marial [...] Levamo-los a rezar muitas vezes a essa Boa Mãe e a imitá-la. [...]
asseguramos aos jovens uma catequese marial. Dedicamo-nos inteiramente a
esse ministério (catequese) confiantes na ajuda do Senhor e na proteção de
Maria.
Nessa percepção os colégios em modelo de internato mostram-se totalmente eficientes para a
finalidade de propagar e disseminar o processo civilizatório. “Educa-se para a vida”, deixa-se de lado os
modos rudes, descobre-se rotinas, normas, para assim aprender a conviver corretamente em sociedade.
Nesse contexto os Colégios Maristas também além de terem esse papel de possuírem o papel de ensinar,
possuem o papel de educar, tanto subjetivamente como na fé católica.
BENELLI, Sílvio José.Ibid.. 2002. Acesso em 19.07.2018.p.21.
FOUCAULT, Michel. (1999b). Vigiar e punir: nascimento da prisão. 21ª ed. Petrópolis: Vozes. p.118.
25
BENELLI,
Sílvio
José.
Idem.
2004.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103166X2004000300008&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em 19.07.2018. p.249.
26 ZIND. Ir. Pierri, F.M.S. Seguindo os passos de Marcelino Champagnat. Centro de Estudos Maristas: Belo Horizonte, 1988. p.205.
23
24
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Portanto, nesse sentido, progresso significa dominação. Dominação do “eu”, eu psicológico, dos
instintos -considerados grosseiros e impulsivos- a fim da construção de um “eu” aceito socialmente. E nesse
contexto dominação, por consequência, significa civilidade, evolução.
Bibliografia
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republicano. In: SOUZA, Rogério Luiz; OTTO, Clarícia (Org.). Faces do Catolicismo. Florianópolis: Editora
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BENELLI, Sílvio José. O internato escolar como instituição total: Violência e subjetividade. Psicologia em
Estudo,
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7,
n.
2,
p.
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jul./dez.
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Escravidão: a realidade pós-abolição e o caso dos
“Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil”
Pamela De Almeida Araújo1
Maira Angelica Dal Conte Tonial 2
Resumo: O mundo do trabalho acompanha a sociedade desde a sua existência, pois desde o início o ser
humano precisou utilizar sua força laboral para defender-se e manter-se coletando e caçando para sua
própria subsistência. Porém, ao decorrer da história, o mundo do trabalho passou por uma série de
transformações, levando o homem, a assumir papéis diferenciados no contexto social e, em determinados
momentos da história, ser impelido à feitura de trabalhos forçados, contra a vontade. Num primeiro
momento a escravatura teve um contexto sócio político e num segundo momento a característica
mercadológica. E, somente, após a abolição da escravatura, datada de 13 (treze) de maio de 1888, com a
instituição da Lei Áurea, o Brasil declarou oficialmente o fim da escravidão. Assim, supostamente as relações
de trabalho forçadas deveriam ter encerrado seu ciclo histórico, mas passado mais de um século da extinção
oficial da escravidão, porém, a realidade que se constata no Brasil hoje é um pouco diferente do idealizado.
Embora, existissem legislações no Brasil para evitar abusos, ainda hoje persiste a memória escravagista no
país que conta, sobretudo, com a não efetividade dessas normas. O que ocasionou no ano de 2015 a condição
de réu do Estado Brasileiro, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por conivência com o trabalho
escravo no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. O Brasil foi condenado pela Corte, em
sentença datada de 20 de outubro de 2016, com a determinação de indenizar por danos imateriais os
resgatados, bem como, tomar medidas legislativas que tornassem imprescritíveis os crimes de redução de
pessoas à escravidão e suas formas análogas. Tornando-se, em pleno século XXI, o Brasil, o primeiro país
condenado nessa matéria pela OEA (Organização dos Estados Americanos). A presente pesquisa objetiva
realizar uma análise sobre o mundo contemporâneo do trabalho e a situação de trabalhadores condicionados
a laborar em situação análogas as de escravos, porém, agora revestido de novas características. Nesse sentido
a busca histórica se tornará essencial para a definição e contextualização do fenômeno do trabalho escravo,
que será abordado especificamente no Brasil, com recorte histórico específico, dos avanços e retrocessos pósabolição da escravidão e, principalmente após o caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil.
“Querer ser livre é também querer livres os outros”
(Simone de Beauvoir)
INTRODUÇÃO
O mundo do trabalho acompanha a sociedade desde a sua existência, pois desde o inicio o ser
humano precisou utilizar sua força laboral para defender-se e manter-se coletando e caçando para sua
própria subsistência. Porém, ao decorrer da história, o mundo do trabalho passou por uma serie de
transformações, levando o homem, a assumir papéis diferenciados no contexto social e, em determinados
momentos da história, ser impelido à feitura de trabalhos forçados, contra a vontade.
A escravidão perpetua-se mas a cada época busca contornos diferentes. A partir do caso
Trabalhadores Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil verifica-se a escravidão num novo contorno em que a
dignidade do trabalhador é aviltada. A presente pesquisa objetiva realizar uma análise sobre o mundo
contemporâneo do trabalho e a situação de trabalhadores condicionados a laborar em situação análogas as de
escravos, porém, agora revestido de novas características.
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo-RS, com ênfase na linha de pesquisa Jurisdição
Constitucional, Integrante do Grupo de Pesquisa Dimensões do Poder, Gênero e Diversidade e do Grupo Direitos Humanos e
Democracia na América Latina, Bolsista Capes, pam.ufg@gmail.com .
2 Mestre em Direito pela Unisinos, Doutoranda pelo do Programa de Pós Graduação em Direito da Univali, Professora da Faculdade de
Direito da Universidade de Passo Fundo, e-mail: mairatonial@upf.br .
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1. A REALIDADE PÓS-ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO BRASIL E A LIBERDADE DO
TRABALHO
A grande maioria dos historiadores brasileiros, segundo Silvia Hunold Lara (1998, p.26), tratam a
história do trabalho no Brasil, a partir do final do século XIX e início do século XX, num contexto de um
trabalho livre (assalariado), também tomado por conta dos imigrantes, já que os ex-escravos poderiam não
deter a mesma qualificação daqueles. Entretanto, para a autora,
“a história social do trabalho no Brasil contém, em si mesma, um processo de
exclusão: nela não figura o trabalhador escravo. Milhares de trabalhadores, que
durante séculos, tocaram a produção e geraram riqueza no Brasil ficam ocultos
[...]” (LARA,1998, p.26).
Toda essa análise é feita pela autora Silvia Hunold no seu artigo intitulado “Escravidão, cidadania
e história do trabalho no Brasil”. A autora realiza uma crítica à historiografia de transição e a teoria da
substituição do escravo pelo imigrante, principalmente no século XIX, em que segundo a autora, há um
tremendo hiato que separam essas fases e que muitos livros de história não dispõem (LARA,1998, p.27-28).
Nesse sentido, relata a autora que esse hiato do período de transição da escravidão (em que o
labor era exercido por seres coisificados) para a formação do mercado de trabalho livre, assalariado (lugar
dos sujeitos históricos) no Brasil é marcado por uma exclusão dos escravos da sua própria história. Isso se
deve em razão de que “em nome da justiça e da humanidade burguesas, os abolicionistas erigiam-se em
procuradores dos oprimidos, excluindo-os das lutas pelas liberdades [...]” (LARA, 1998, p.28).
E são muitos os tipos de liberdade e lutas pela liberdade. Escreve ainda a autora que, no período
do século XIX e início do XX , as “noções diferentes de liberdade e trabalho livre estiveram em luta”, em
razão disso, nos deparamos com a dificuldade em entendermos a liberdade como “a possibilidade de vender
‘livremente’ a força de trabalho em troca de um salário”. (LARA, 1998, p.28).
A autora aduz que estudos têm revelado novos aspectos das relações entre escravidão e liberdade
nas últimas décadas do século XIX . Nesse sentido, a autora afirma que Reid Andrews analisa as primeiras
décadas do pós abolição e detecta a presença de vários trabalhadores negros em diversas ocupações, seja no
mercado urbano, seja no rural. Depoimentos coletados na imprensa da época relatam que
“para o liberto, as demandas relativas às condições de trabalho eram até mais
importantes que o nível dos salários: buscavam afastar qualquer reminiscência
característica com a escravidão, tendiam em não aceitar empregos em plantações
onde tinham sido escravos, preferiam viver longe de seus patrões, procuravam
retirar mulheres e crianças do trabalho. Diante deste tipo de demandas, que do
ponto de vista dos libertos eram funcionais na definição de liberdades”
O ser humano “coisificado” e tratado como propriedade de outrem é marca característica comum
da escravidão anterior a Lei Àurea (Lei n.3.353, de 13 de maio de 1888), que aboliu, ao menos formalmente,
essa forma de escravidão. Todavia, mesmo após a abolição formal, se vê que a escravidão se perpetuou no
tempo, de modo que assumiu e assume novas conotações. O ser humano coisificado na escravidão dos
séculos passados distingue-se do modo contemporâneo de escravidão.
A liberdade humana do trabalhador é restringida não somente por meios diretos, mas indiretos
também. Levando-se em consideração que coerções podem ocorrer de maneira física e moral, de modo a
cercear as escolhas de um trabalhador.
Até mesmo após a abolição os ex-escravos puderam impor, segundo Silvia Hunold, exigências
maiores que aquelas dos imigrantes em situações em que a escolha era possível. Não obstante, a experiência
escrava moldou as ações e reivindicações dos libertos no período pós-abolição, segundo a autora “a
marginalização dos negros não aparece mais como ‘marcas’ da escravidão, da falta de habilidades para o
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mercado trabalhista [...] mas se explica por uma análise que leva em conta os confrontos entre
trabalhadores e seus patrões”, além das tensões raciais. (LARA, 1998, p.35).
Importante mencionar que os direitos trabalhistas podem funcionar, como bem adverte a
historiadora Angela de Castro Gomes (2012, p.169), como uma “ponta de lança para a defesa dos direitos da
pessoa humana numa sociedade que se quer democrática”, ou pelo menos se pretende ainda ser
democrática.
Nesse contexto cabe trazer a visão do economista Amartya Sen, quando afirma que o êxito de uma
sociedade deve ser avaliado primeiramente de acordo com as liberdades substantivas que os membros dessa
sociedade desfrutam. (p.33) Já que ter mais liberdade melhora o potencial das pessoas para cuidar de si
mesmas e influenciar o mundo, que segundo Sen, são questões centrais do desenvolvimento.
2.
RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO BRASILEIRO POR VIOLAÇÕES
DOS DIREITOS HUMANOS
Verifica-se ainda que não obstante o ser humano ser “coisificado” na escravidão anterior a Lei
Àurea (Lei n.3.353, de 13 de maio de 1888), ainda persiste novos modos de escravidão, com outras
conotações diferentes, que pode ser direta ou indiretamente, com coerção física ou moral, de modo a violar
direitos humanos, bem como atingir a dignidade do trabalhador, seja com a ação ou omissão do Estado.
Nesse sentido cabe destacar o conceito de dignidade definido por Sarlet:
a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação
ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos. (SARLET, 2007, p. 383)
Nesse contexto, importantes organizações internacionais e regionais se consolidaram, sobretudo
após a Segunda Grande Guerra Mundial. As organizações surgiram de modo a estabelecer propósitos de
preservação dos direitos humanos, dignidade humana, o desenvolvimento, dentre outras funções.
É o caso da Organização internacional do Trabalho (OIT) e Organização dos Estados Americanos
(OEA), dentre outras. Para o presente capítulo e desenvolvimento do trabalho a maior ênfase será dado à
OEA. A OEA se constituiu como importante organização regional fundada em 1948, com sede em
Washington, cujos países-membros se comprometeram defender os interesses do continente americano.
Nesse contexto surgiu a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, um tratado internacional
entre os países-membros da OEA, mas também conhecida a Convenção como o Pacto de São José da Costa
Rica que foi celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 e promulgado no Brasil pelo
Decreto número 678, de 6 de novembro de 1992.
Para dar cumprimento ao contido na Convenção, foram criados dois órgãos: a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. No
preâmbulo da Convenção se fala em respeito aos direitos humanos essenciais, justiça social e regime de
liberdade pessoal, no âmbito interno do quadro das instituições democráticas.
Ressalta-se ainda a importância dos princípios consagrados em Cartas e Declarações
internacionais, reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser
humano livre só poderia ser realizado isento do temor, miséria, bem como, com a criação das condições que
permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos
civis e políticos.
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Não obstante a maior ênfase na proteção dos direitos civis e políticos, os direitos sociais e
econômicos são tratados apenas no Capítulo III da Convenção, num único artigo, o artigo 26 da Convenção
que tratou como um compromisso do Estado com seu desenvolvimento progressivo. Todavia em
complementação à proteção dos direitos sociais na Convenção foi aprovado o Protocolo de San Salvador. O
referido Protocolo é adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. O Brasil o ratificou em 1996 e o pacto entrou em vigor em 1999.
Nesse contexto cabe salientar o que os Estados Americanos signatários da referida Convenção
convieram no seu artigo 6º:
Artigo 6º - Proibição da escravidão e da servidão
1. Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o
tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos
países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade
acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no
sentido de proibir o cumprimento da dita pena, imposta por um juiz ou tribunal
competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a capacidade
física e intelectual do recluso.
No Protocolo de San Salvador os Estados também convieram respectivamente nos artigos 6º, 7 e 8º
o direito ao trabalho , bem como a condições justas, equitativas e satisfatórias de trabalho e também direitos
sindicais. Os artigos declaram a importância dos Estados adotarem medidas de modo a garantir a plena
efetividade do direito ao trabalho. Todavia esse trabalho exercido de modo que inclua oportunidades de obter
meios para uma vida digna.
O Brasil, no entanto, não honrou com o propósito Convenção e teve que ser responsabilizado
internacionalmente, por violações da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
2.1 Caso dos Trabalhadores da fazenda Verde Vs. Brasil
É importante salientar que antes mesmo do Estado brasileiro ser condenado pela primeira vez
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no final de 2016 pelo caso dos Trabalhadores da Fazenda
Verde.
Não obstante a existência de normas internacionais, existe no âmbito interno brasileiro, a
Constituição da República Federativa do Brasil que inclui os valores sociais do trabalho como um dos
princípios fundamentais da República. Ainda assim, mesmo o trabalho considerado um direito
fundamental, haja vista estar elencado entre os direitos sociais e uma série de direitos trabalhistas previstos
no rol do artigo 7º da Carta Magna, infelizmente não são garantia de efetividade.
3. CONCLUSÃO
A realidade pós-abolição brasileira é ainda marcada pela escravidão, mas com novas
características, atualmente temos a escravidão contemporânea.
Num primeiro momento a escravatura teve um contexto sócio político e num segundo momento a
característica mercadológica. E, somente, após a abolição da escravatura, datada de 13 (treze) de maio de
1888, com a instituição da Lei Áurea, o Brasil declarou oficialmente o fim da escravidão. Assim,
supostamente as relações de trabalho forçadas deveriam ter encerrado seu ciclo histórico, mas passado mais
de um século da extinção oficial da escravidão, porém, a realidade que se constata no Brasil hoje é um pouco
diferente do idealizado.
Embora, existissem legislações no Brasil para evitar abusos, ainda hoje persiste a memória
escravagista no país que conta, sobretudo, com a não efetividade dessas normas. Entre os anos de 2003 e
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2017, foram resgatados 43.696 (quarenta e três mil seiscentos e noventa e seis) trabalhadores em situação
análoga à de escravo no Brasil.
Ainda que o Estado Brasileiro tenha sido condenado na Corte Interamericana de Direitos
Humanos, por conivência com o trabalho escravo no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs.
Brasil, verifica-se a necessidade de dar continuidade à busca de mecanismos para maior proteção ao sujeito
nos casos que envolvem essa violação.
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Biopoder x empresas transnacionais :
a ingerência na soberania dos estados
Pamela De Almeida Araújo1
Maira Angelica Dal Conte Tonial 2
Resumo: Objetiva-se com a presente pesquisa realizar uma análise sobre o mundo contemporâneo do
trabalho e a influência das empresas transnacionais na soberania dos povos, pois é sabido que alguns Estados
terminam por ceder a pressões advindas de grandes corporações modificando inclusive seu próprio
ordenamento jurídico. A nova era - da pós modernidade - como muitos gostam de nominar, trouxe a diversas
nações o medo do fenômeno da perda da soberania. Explica-se: os Estados que antes se apresentam como
mecanismos autônomos e soberanos em determinados momentos aceitam flexibilizar sua soberania em prol
de ouros interesses. No direito do trabalho esse fenômeno se apresenta de forma bastante clara. Se antes o
homem trabalhava apenas para seu próprio sustento, com o passar do tempo, essa relação com o mundo do
trabalho foi se modificando. Na contemporaneidade, observa-se que o mercado de trabalho está dominado
por grandes empresas, que empregam grande parte da população mundial e que compreendem um imenso
poderio e influencias políticas. O presente trabalho buscará analisar, primeiramente o conceito de biopoder,
denominação proposta por Michel Foucault, que traz reflexões sobre ações que interferem nas características
vitais da existência humana, inclusive referente ao mundo do trabalho. Este fenômeno que Foucault chama
de biopoder, que a partir da forma de governamentabilidade adotada pela Empresa transnacional, busca a
partir de práticas e regras próprias exercer seu poder econômico tanto sobre seus empregados, quanto a
sociedade que geral, haja vista que através da utilização de discursos próprios influencia sobremaneira na
própria economia e soberania estatal.
Introdução
Objetiva-se com a presente pesquisa realizar uma análise sobre o mundo contemporâneo do
trabalho e a influencia das empresas transnacionais na soberania dos povos, pois é sabido que alguns Estados
terminam por ceder diante às pressões advindas de grandes corporações modificando inclusive seu próprio
ordenamento jurídico.
O presente trabalho buscará analisar, primeiramente a compreensão do fenômeno da
transnacionalidade e como ele se posiciona no âmbito do direito laboral eposteriormente o conceito de
biopoder e como o mesmo age na governabilidade adotada pela empresa transnacional .
1. Globalização e Transnacionalização no mundo do Trabalho
Se antes o homem trabalhava apenas para seu próprio sustento, com o passar do tempo, essa
relação com o mundo do trabalho foi se modificando. O mundo do trabalho passou por várias fases: desde o
dispêndio da força humana para sua própria mantença, após relações subordinadas forçadas de trabalho
(escravidão),relações hibridas de prestação de serviços (servidão) .
Essa relação homem X trabalho, passou por constantes mudanças e continua sofrendo a ingerência
de mutações. Os moldes da vida e da cultura atuais não são mais os mesmos comparados aos do século
passado. Passadas gerações, a relação de trabalho e sua inserção no mundo - então globalizado - ainda
causam severos impactos nas comunidades.
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo-RS, com ênfase na linha de pesquisa Jurisdição
Constitucional, Integrante do Grupo de Pesquisa Dimensões do Poder, Gênero e Diversidade e do Grupo Direitos Humanos e
Democracia na América Latina, Bolsista Capes, pam.ufg@gmail.com .
2 Mestre em Direito pela Unisinos, Doutoranda pelo do Programa de Pós Graduação em Direito da Univali, Professora da Faculdade de
Direito da Universidade de Passo Fundo, e-mail: mairatonial@upf.br .
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Uma das principais causas das mutações laborais deve-se ao fenômeno da globalização mecanismo responsável pela integração mundial, que flexibilizou as soberanias dos Estados - o que
anteriormente era considerado como Estados absolutos (soberano na sua essência), hoje cede a pressões
internacionacionais.
Devido àscausas financeiras, as empresas buscam se adequar aos moldes financeiros mundiais o que
leva algumas corporações lesar os trabalhadores no que tange aos direitos fundamentais e sociais
internacionalmente consagrados.
Na contemporaneidade, observa-se que o mercado de trabalho está dominado por grandes
empresas, que empregam grande parte da população mundial e que detém um imenso poderio e influências
políticas.
No conexo globalizado em que se encontra o mundo atualmente, as empresas têm optado
por expandir suas atividades produtivas para territórios onde a rigidez da legislação trabalhista será mais
mitigada - ou seja - na impossibilidade de se reduzir o valor das matérias primas (para transformar a
empresa mais competitiva), trabalha-se na redução do valor da mão de obra.
Esse fenômeno tem ocasionado o deslocamento de grandes empresas a países que permitem
que a sua legislação interna passe por processos modificativos a fim de atender os interesses dessas grandes
corporações.
A nova era - da pós-modernidade-como muitos gostam de nominar, trouxe a muitas nações
o medo do fenômeno da perda da soberania. Explica-se: os Estados que antes apresentam como
mecanismos autônomos e soberanos em determinados momentos aceitam flexibilizar sua soberania em prol
de ouros interesses.
Sob a ótica das empresas transnacionais, a concorrência (muitas vezes desleal) acarreta a utilização
da mão de obra barata em benefício burlando legislação trabalhista e às vezes tributária. Assim, as grandes
corporações acabam fechando as suas portas quando as legislações garantidoras de direitos fundamentais e
sociais acabam protegendo os trabalhadores.
Assim, frente à instabilidade da economia mundial, as empresas transnacionais procuram se
enquadrar nos moldes atuais de uma globalização que se direciona no sentido inverso do bem estar social,
levando os trabalhadores a um sério prejuízo. Dessa forma, Zambotto declara:
Com a globalização, o mundo empresarial mostra-se cada vez mais competitivo.
Essa competitividade faz com que o empregador tenha que se adaptar às
necessidades do mercado, precisando reduzir gastos, e tal economia acaba por
refletir em prejuízo ao trabalhador, o qual é o pólo mais fraco da relação de
trabalho. Assim, com a flexibilização,o empregado tem se submetido a situações
degradantes, como redução salarial, jornada de trabalho excessiva, sem falar nos
efeitos indiretos como a exploração demasiada do trabalhador, fazendo com que ele
se submeta a uma carga de trabalho descomunal, situações na qual tem-se um
funcionário trabalhando por quatro. (ZAMBOTTO, 2014, s.p.)
Importante ressaltar que em relação ao Direito do Trabalho, a Constituição Federal, alçou
os diretos laborais como diretos fundamentais, trazendo no bojo do artigo sétimo alguns direitos que devem
ser respeitos na confecção de todo e qualquer contrato de trabalho.
A legislação infraconstitucional, principalmente por meio da Consolidação das Leis do
Trabalho e também demais legislações esparsas, trouxeram as bases sobres as quais uma relação de
trabalho deve se regrar, para que não haja infringência aos direitos fundamentais dos trabalhadores. Além
de convenções e recomendações internacionais.Neste sentido, tais documentos legais devem ser respeitados
e observados.
Ocorre que, a busca pela competitividade tem gerado por parte de algumas empresas a
necessidade de adaptações ao ordenamento jurídico, de forma a tornar a legislação protetiva menos incisiva
nas relações laborais, ou seja, mais permissiva ao atendimento dos interesses financeiros.
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Assim, as empresas (geralmente de cunho transnacional) que aqui se instalam, usando
como exemplo o caso brasileiro, devem se submeter às regras impostas pelo ordenamento constitucional e
infraconstitucional aqui posto. Isso porque, o estado é soberano e o Poder Legislativo, Executivo e
Judiciário de forma articulada definiram como deve ser gerido o Estado Brasileiro,
No entanto, em determinados momentos, observa-se a ingerência de mecanismos externos
que pressionam a mudança da legislação interna para atendimento de seus interesses.
Historicamente o Brasil passa por um processo de construção de mecanismos que
consolidam o mecanismo protetivo trabalhista. Caso emblemático pode ser trazido neste momento, no que
tange as recentes alterações em nosso ordenamento jurídico laboral - teriam sido pressões externas que
fizeram com que a nossa Consolidação das Leis do Trabalho sofresse alterações para possibilitar uma maior
flexibilidade nas relações laborais? Opoder emana do povo e em eu nome deve ser exercido, à medida
queexistem influências externas a soberania nacional entra em colapso.
A transnacionalidade é um fenômeno que surgiu da globalização que enfatiza o capital como o
principal fator econômico em escala planetária que, por sua vez, altera as relações jurídicas
internacionais.Assim relata Stelzer:
A Transnacionalização pode ser compreendida como um fenômeno reflexivo da
globalização, que se evidencia pela desterritorialização dos relacionamentos
político-sociais, fomentado por sistema econômico capitalista ultra valorizado, que
articula ordenamento jurídico mundial à margem da soberania dos Estados. A
transnacionalidade insere-se no contexto da globalização e liga-se fortemente com
a concepção do transpasse estatal. Enquanto a globalização remete à idéia de
conjunto, de globo, enfim, o mundo sintetizado como único; Transnacionalização
está atada à referência de Estado permeável, mas tem na figura estatal a referência
do ente em declínio. (STELZER, 2009, p. 21)
Na atualidade, os Estados ganharam características transnacionais impulsionados pelo fenômeno da
globalização. No contexto empresarial, o fator econômico é transferido de uma empresa situada em um
Estado para as filiais em outros Estados. Dessa forma, Chacon explica:
Na virada do século XX para o XXI, os Estados vão deixando de ser nacionais e
plurinacionais e passam a ser – os que para isso dispõem de poder econômico e
científico-tecnológico, por tanto militar e político – Estados transnacionais: Seu
poder econômico lhes é dado por suas empresas também transnacionais, no
sentido, antes definido, de sediadas num Estado-nação e dele projetadas em outros.
Empresa transnacional e Estado transnacional acompanham-se, braços da mesma
cultura-civilização que os gerou e mantém, cultura significado o que são os seus
homens, e civilização, o que fazem, aquela seiva desta. (CHACON, 2002, p. 19)
Porém, o processo da transnacionalização acarreta um mal às relações trabalhistas internacionais. As
grandes organizações, aquelas que detêm o capital, necessitam de um número muito maior de trabalhadores
ao passo que, no cenário internacional, quando as pessoas se direcionam para o seu bem-estar e para a sua
qualidade de vida, podem estar caminhando ruma à flexibilização de direitos fundamentais e sociais (o que
favorece as empresas irregulares). Nesse contexto, Bauman apresenta:
Devido à total disseminação das regras de livre mercado e, sobretudo, ao livre
movimento do capital e das finanças, a ‘’economia’’ é progressivamente isentada do
controle político; com efeito, o significado primordial do termo ‘’economia’’ é o de
‘’área não política’’. O que quer que restou da política, espera-se deve ser tratado
pelo Estado, como nos bons velhos tempos – mas o Estado não deve tocar em coisa
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alguma relacionada à vida econômica: qualquer tentativa nesse sentido enfrentaria
imediata e furiosa punição dos mercados mundiais. (BAUMAN, 1999, p. 74)
Esse é um dos desafios que a sociedade global enfrente na atualidade no âmbito das relações
internacionais de trabalho em decorrência da globalização por serem demandas novas e complexas que não
encontram respostas na atual estrutura jurídica.
A realidade que se enfrenta em decorrência da flexibilização dos direitos sociais se torna um ciclo
visando sempre o lucro das corporações e a utilização de mão de obra barata para gerar menos custos. Em
âmbito internacional, a fiscalização nas empresas irregulares é muito difícil, ficando essa incumbência para o
Estado defender os direitos trabalhistas. Assim Pasold:
A flexibilização dos direitos fundamentais corrobora a ação antiética promovida
pelas empresas ou corporações transnacionais. O Estado transnacional deverá
pautar sua formulação – política, econômica, social – pela proteção às pessoas
pelos critérios adequados nos quais se percebem o significado das múltiplas interretroações entre as culturas do mundo. A partir dessa experiência do ser-comoutroparticipam interesses de cunho político preparados para elaborar esse novo
espaço democrático. (PASOLD, 2010, p. 127)
Para Edgar Morim, citado por Gabriel Ferrer, sustenta que énecessária a realização de uma política
normatizando a globalização para evitar o retrocesso. Deve-se assegurar o interesse geral por meio de novos
modelos de vida e de Democracia. (FERRER, 2012, s.p.)
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem por objetivo tutelar os direitos sociais e
fundamentais dos trabalhadores nos países que ratifiquem as suas Convenções ou Recomendações. Dessa
forma, os autores Paixão, Rodrigues e Caldas explicam:
No âmbito da OIT, é interessante destacar a Declaração relativa aos princípios e
direitos fundamentais do e no trabalho. Essa Declaração foi adotada em 1998 e por
ela os Estados Membros, quer tenham ou não ratificados os convênios nela
compreendidos, comprometem-se a respeitar e promover os direitos inseridos nas
seguintes categorias: a liberdade de associação e a liberdade sindical e o efetivo
reconhecimento do direito de negociação coletiva; a eliminação do trabalho forçado
ou obrigatório; a abolição do trabalho infantil e, finalmente, a eliminação da
discriminação no que diz respeito ao emprego e ocupação. (PAIXÃO; RODRIGUES;
CALDAS, 2005, p. 354)
Frente à instabilidade econômica que se refletem nas relações trabalhistas internacionais, as
Constituições dos Estados devem garantir os direitos fundamentais e sociais, principalmente o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana, pois não se pode transferir o ônus do mercado financeiro global para a parte
mais fraca da relação trabalhista. Em âmbito internacional, se estuda uma nova cultura empresarial como
forma de fortalecimento das relações trabalhistas internacionais e garantir a efetividade dos princípios
internacionalmente consagrados para o trabalho digno.
É nesse contexto que, em 1999, o Secretário Geral da ONU fezum convite ao setor
privado para que, juntamente com diversas agências das Nações Unidas e atores
sociais, contribuísse na busca de uma economia global mais sustentável e
inclusiva.O objetivo que ficou conhecido como ‘’Global Compact’’ é encorajar o
alinhamento das políticas e das práticas empresariais com os valores e os objetivos
aplicáveis internacionalmente e universalmente acordados. Esses valores foram
separados em dez princípios-chave, nas áreas de direitos humanos, direitos do
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trabalho e proteção ambiental. Essas áreas foram escolhidas por possuírem um
potencial efetivo para influenciar e gerar mudanças positivas na sociedade. Os dez
princípios são os seguintes: 1. As empresas devem apoiar e respeitar a proteção de
direitos humanos reconhecidos internacionalmente na sua área de influência; 2.
Assegura-se de sua não participação em violações de direitos humanos; 3. As
empresas devem apoiar a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do
direito à negociação coletiva; 4. Apoiar a eliminação de todas as formas de trabalho
forçado ou compulsório; 5. Apoiar a erradicação efetivado trabalho infantil; 6.
Apoiar a eliminação da discriminação no emprego; 7. As empresas devem adotar
uma abordagem preventiva para os desafios ambientais; 8. Desenvolver iniciativas
para promover maior responsabilidade ambiental; 9. Incentivar o desenvolvimento
e a difusão de tecnologias ambientalmente sustentáveis: 10. As empresas devem
combater a corrupção em todas as suas formas, incluindo extorsão e suborno.
(PAIXÃO; RODRIGUES; CALDAS, 2005, p. 357-358)
Os direitos sociais devem ser defendidos e efetivamente aplicados no âmbito interno de cada Estado,
dessa forma qualquer pessoa nesse contexto migratório terá os seus direitos sociais garantidos com o objetivo
de evitar o retrocesso e atender os anseios da sociedade. (TONIAL, 2009, p. 32-33).
Assim, que a busca da dignidade da pessoa humana e sua proteção pelo Estado será sempre objetivo
a ser alcançado. Nesse intento passar-se-á a discorrer sobre o pensamento de Michael Foucault, sobre o
biopoder e sua aplicabilidade nas relações laborais.
2. O Biopoder e a sua aplicabilidade no mundo do Trabalho
Neste contexto desenhado acima,a presente pesquisa também migrará para o uma inter-relação com
o pensamento de Michel Foucault, assim que, buscará analisar, primeiramente o conceito de biopoder, que
traz reflexões sobre ações que interferem nas características vitais da existência humana, inclusive referente
ao mundo do trabalho.
A ideia de biopoder, sua conceituação e seu estudo é de suma importânciana contemporaneidade,
visto que no ápice de uma quarta revolução industrial e com o avanço gigantesco das ciências médicas e
biológicas, a vida pode ser um alvo fácil da manipulação. Por um lado, se utilizada para o bem da sociedade,
será louvável, porem se utilizada em seu verniz negativo, poderá gerar efeitos nocivos.
Define-se biopoder “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui
suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa
estratégia geral do poder” (Foucault, 2008, p. 3).
Importante ressaltar que Foucault, em suas obras e em especial nas décadas de setenta buscou
trabalhar o fenômeno do poder. E, numa interessante abordagem, buscou demonstrar que, o poder
estádiluído em esferas na sociedade, como ele denomina "micro-poderes". Neste sentido ele tenta
desconstituir aquela idéia padrão de que o poder somente emana do Estado, como monopólio e único titular.
Interessante que adotando uma nova forma de pesquisa e valendo-se de metodologias diferenciadas utilizase do que ele vem a denominar "genealogia" para fazer esse entendimento das diferentes formas de poder
permeados na sociedade.
Valendo-se desta leitura de que o poder encontra-se dissipado na comunidade, assegura o autor que
"o poder opera de modo difuso, capilar, espalhando-se por uma rede social que inclui instituições diversas
como a família, a escola, o hospital, a clínica"(Furtado; Camilo2016, p.35). Tal concepção vai de encontro ao
que a doutrina tinha como premissa para a justificação do poder - assim entendido como aquele que emana
do Estado e tem na soberania seu justificador.
Seguindo o entendimento de Furtado e Camilo, que analisando o pensamento de Foucault,
afirmam“Exercer o poder torna-se possível mediante conhecimentos que lhe servem de instrumento e
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justificação. Em nome da verdade legitimam-se e viabilizam-se práticas autoritárias de segregação,
monitoramento, gestão dos corpos e do desejo"(Furtado; Camilo2016, p.35) .
Nesse sentido Diniz e Oliveira"Esta denominação é utilizada pelo fato de individualizar o sujeito e
usar técnicas disciplinares para utilizá-lo. Ao lado do poder disciplinar, surgirá no final do século XVIII um
tipo de poder que será nominado por Foucault de biopoder" (Diniz; Oliveira, p.144).
Alça-se, nesse novo entendimento de poder uma questão interessantíssima, qual seja, o homem e
seu corpo passam a ser espaços de desenvolvimento do poder, assim:
Os mecanismos disciplinares se integram, então, aos mecanismos de segurança e à
biopolítica, numa perspectiva mais ampla que é a do poder sobre a vida, do
biopoder. É na articulação da anatomopolítica dos corpos (que caracteriza os
mecanismos disciplinares) com a biopolítica das populações (enquanto
mecanismos de regulação e segurança) que teriam se produzido esse poder e esse
saber sobre a vida, o investimento maciço sobre a vida e seus fenômenos, a partir
de uma tecnologia refletida e calculada e da introdução da população como objeto
de intervenção política, de gestão e de governo.(Martins e Junior, 2009, p. 162)
Este fenômeno que Foucault chama de biopoder, é que transportado para o objeto da presente
pesquisa busca-se perquirir, pois, a partir da forma de governamentabilidade adotada pela Empresa
transnacional, poderá esta buscar a partir de práticas e regras próprias exercer seu poder econômico tanto
sobre seus empregados, quanto a sociedade que geral, haja vista que através da utilização de discursos
próprios influencia sobremaneira na própria economia e soberania estatal.
Visto acima que o fenômeno da globalização ocasionou um forte impacto nas relações laborais, bem
como, demonstrou que a fragilização do mercado de trabalho fica bastante atrelado ao impacto ocasionado
na ingerência das empresas transnacionais na soberania e autodeterminação dos Estados. Porém, esse
fenômenojá havia sido previsto por Foucault, que conseguia captar no biopoder um espaço interessante para
a expansão de um processo dominatório de poder “um domínio de saber novo que é a economia política”
(Foucault, 2004, p. 79)
Furtado e Camilo, analisando a obra de Foucault e as relações do mundo do trabalho faz
interessante observação:
Fator determinante na configuração do pensamento neoliberal americano será a
chamada teoria do capital humano. Duas principais implicações desta teoria podem
ser apontadas. A primeira refere-se à tomada do trabalho e do trabalhador como
objetos centrais das estratégias neoliberais (Foucault, 2008b). Entendendo-se por
capital tudo o que pode ser futuramente revertido em fonte renda, o trabalhador
passa a ser considerado o principal elemento produtor de riquezas. O sujeito que
trabalha torna-se, portanto, capital humano, estando suas capacidades físicas e
psicológicas envolvidas diretamente no processo produtivo. "(Furtado; Camilo
2016, p.40)
E ainda, seguindo a mesma linha de pensamento traz:
Por conseguinte, o capital humano deve ser melhorado, aperfeiçoado, de forma a
tornar-se o mais rentável possível. Isto impõe ao neoliberalismo a necessidade de
gerar conhecimento sobre o comportamento individual e coletivo, de assegurar a
escolarização e saúde dos indivíduos, situando a população no centro de massivos
investimentos estatais "(Furtado; Camilo 2016, p.40)
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E, abordando as relações de trabalho, Foucault, faz abordagens específicas do fenômeno
capitalista no processo laboral. Entendendo o Autor ser a disciplina um mecanismo de "docilização" do
empregado, bem como, a melhor utilidade do mesmo.
Assim Pelizzaro "Não é, pois, o poder enquanto elemento de coerção ou de violência que está
posto por Foucault, mas o poder enquanto relação estratégica, enquanto um conjunto de tecnologias por
meio das quais ele é exercido."(Pelizzaro, 2013 p.155).
Ou seja, busca-se a maior produtividade do colaborador, à medida que - sem formas violentas - mas
sutis de dominação, obtém os intentos almejados pelos detentores dos meios de produção, assim Foucalt:
[...]esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo,que
realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidadeutilidade, são o que podemos chamar ‘disciplinas’. Muitos processos disciplinares
existem há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as
disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII formulas gerais de
dominação. Diferentes da escravidão, pois não fundamentam numa relação de
apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custos
a e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes
(FOUCAULT, 2010, p.133).
Neste contexto a utilização de métodos, conforme estudados e explicitados por Foucault poderão
ser importantes mecanismos de manipulação do poderio econômico de empresas transnacionais.
Conclusão
Assim, analisando-se o fenômeno da globalização no mundo do trabalho, e atentando-se ao
principal fator abordado nessa pesquisa, qual seja: o avanço do fenômeno transnacional e a forma com que
as empresas têm afrontado a soberania dos Estados buscaram discorrer um pouco sobre a fragilidade das
relações de trabalhado e a mitigação da proteção estatal.
Da mesma forma, utilizando-se dos estudos desenvolvidos por Foucault, onde em seus
apontamentos retira do Estado a supremacia do poder (atribuindo-se a outras esferas e instituições), valesea presente pesquisa do conceito de biopoder - para que se possa entender a forma com a qual as
empresas transnacionais utilizam-se de seu poder para com seus colaboradores e com a sociedade de
forma geral.
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Do direito terreno ao divino sobre a terra:
A Relação do Movimento Dos trabalhadores Sem Terra e a Pastoral da
Terra na Região Sudoeste do Paraná
Pâmela Pongan1
Resumo: Durante o governo militar vigente no Brasil nos anos 60 a 80 se firmou uma política agrária de
modernização da agricultura que objetivava a formação de uma produção agrícola a patamares de
industrialização. A implantação dessa política favoreceu as grandes propriedades e relegou ao esquecimento
e à indiferença a pequena área de terra que era voltada basicamente para a subsistência e comércio local,
forçando esses pequenos agricultores a deixarem suas terras e se mudarem para as cidades, situação que se
agravou com a construção de usinas hidrelétricas que deixaram muitos agricultores sem terras, pois as
desocupações não proporcionaram auxílio posterior. A partir desses acontecimentos, muitas instituições e
movimentos surgiram para lutar com esses pequenos agricultores pela conquista de seus direitos. Nesse
sentido, esse artigo procura refletir o movimento dos sem-terra da região sudoeste do Paraná a partir da
influência da Pastoral da Terra. Pois, a partir da lenda da Terra Prometida e da Doutrina Social da Igreja,
criou-se a Pastoral da Terra que buscava construir e implantar projetos de desenvolvimento visando a
“agroecologia” que resultaria em relações harmoniosas entre os homens e o meio ambiente. Assim, esse
trabalho busca realizar uma compreensão mais apurada sobre presença da Pastoral da Terra no sudoeste do
paraná nos anos 1980 e sua participação nos movimentos destes trabalhadores sem-terra, desde sua
concepção, organização e movimentações na região, presente em suas ocupações, acampamentos e nos
conflitos, trabalhando a partir da ideologia cristã do direito divino e terreno da terra.
Palavras-chave: Pastoral da Terra; Doutrina Social da Igreja; Agroecologia; Movimento dos Sem Terra.
Abstract : During the military government present in Brazil in the 1960’s until the 1980’s it was established
an agrarian policy of modernization of the agriculture, which meant the formation of an agricultural
production to industrialization levels. The implantation of this policy favored the big properties and relegated
to the forgetfulness and to the indifference the small areas of land which was oriented to the subsistence and
to the local market, forcing these small farmers to leave their lands and to move to the towns, situation that
was intensified by the building of hydroelectric power plants which left many farmers without their lands, for
the vacancies didn´t provide further aid. From these events, many institutions and movements arised to
militate with these small farmers for the conquest of their rights. This way, this article intend to think about
the landless movement of the southwest region of Paraná from the influence of the Pastoral da Terra. For,
starting from the legend of the Promised Land and the Social Doctrine of the Church, the Pastoral da Terra
was founded, which pursued to build and to implant development projects looking for the “agroecology”,
which would result in harmonious relationships between men and environment. This way, this work means
to make a more accurate comprehension about the presence of the Pastoral da Terra in the southwest of
Paraná in the 1980’s and its participation in the movements of these landless workers, since its conception,
organization and movements in the region, present in their possesions, camps and in the conflicts, working
from the Christian ideology of the divine and earthly land right.
Keywords: Pastoral da Terra; Social Doctrine of the Church; Agroecology; the Landless Movement.
Mestranda no Programa de Pós-Graduação de História na Universidade de Passo Fundo – PPGH/UPF. Bolsista PROSUP/CAPES. Email: ppongan@hotmail.com
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Introdução
O governo militar vigente no Brasil nos anos 60 a 80 introduziu uma política agrária de
modernização da agricultura, nomeada como Revolução Verde, que objetivava a formação de uma produção
agrícola a patamares de industrialização. A implantação dessa política favoreceu as grandes propriedades e
relegou ao esquecimento e a indiferença à pequena área de terra que era voltada basicamente para a
subsistência e comércio local, forçando esses pequenos agricultores a deixarem suas terras e se mudarem
para as cidades. Na região sudoeste do Paraná não foi diferente, porém essa situação se agravou com a
construção de usinas hidrelétricas que deixaram muitos agricultores sem terras, pois as desocupações não
proporcionaram auxílio posterior.
A partir desses acontecimentos, muitas instituições e movimentos surgiram para lutar com esses
pequenos agricultores pela conquista de seus direitos. Direito a terra, a produção, a uma vida digna com sua
família. Nesse sentido, fundou-se na região sudoeste do Paraná nos início dos anos 80 o Movimento dos
Agricultores Sem Terra do Sudoeste (MASTES), que posteriormente se anexou ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que se organizava em nível nacional batalhando pela Reforma
Agrária.
Nesse contexto, destaca-se a participação da Comissão Pastoral da Terra criada em 1975, e atuante
no sudoeste desde 1978, nos movimentos destes trabalhadores sem terra, desde sua concepção, organização e
movimentações na região, presente em suas ocupações, acampamentos e nos conflitos, trabalhando a partir
da ideologia cristã do direito divino e terreno da terra.
Consequências do agronegócio
A vitória alcançada pelos posseiros na Revolta culminada em 1957 na região sudoeste, e suas
consequências posteriores, fizeram com que muitos agricultores migrassem para a região concebendo uma
estrutura fundiária ocupada por três diferentes formas: pequenos agricultores que produziam para sua
subsistência; proprietários de grandes fazendas de gado e empresas exploradoras de madeira; e de
trabalhadores rurais que vendiam sua força de trabalho nas grandes fazendas. (PRANDO, 2010)
A introdução de medidas econômicas conhecidas como Revolução Verde pelo governo militar na
década de 60, buscava industrializar a agricultura brasileira elevando-a a um patamar de negócios, visando o
aumento da produtividade agrícola para exportação. Assim, o pequeno agricultor que praticava um produção
de subsistência foi prejudicado, pois essa política governamental era projetada exclusivamente para
proprietários de médio e grande porte.
A introdução do modelo tecnológico internacional produziu o empobrecimento e a
saída considerável de pequenos agricultores rurais para a cidade. A perda das
pequenas áreas rurais era eminente, visto as dificuldades impostas [...] que não
permitia uma evolução dos pequenos produtores rurais nos moldes tecnológicos.
(PRANDO, 2010, p.36).
Ainda segundo Prando (2010), essa ação de modernizar a agricultura tinha dois intuitos referentes a
forma escolhida para aumentar a produção agrícola. A primeira defendia a reforma agrária, e a outra, a
adesão de pacotes tecnológicos para os agricultores sem mexer na questão das terras.
Nesse contexto, optou-se pelo processo de modernização sem dar relevância a reforma agrária, mas
simplesmente ao processo produtivo, que estava firmado nas grandes concentrações de terras nas mãos de
poucos, ignorando os pequenos proprietários e suas terras.
Durante esse período, segundo Bonin (1991), houve no país incentivos para entradas de empresas
estrangeiras, principalmente voltadas para a produção de sementes, máquinas agrícolas, agrotóxicos,
tratores, além de estimular investimentos de capital estrangeiro nos processos de produção, até então
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subsidiado pelo governo, que financiava os grandes grupos econômicos e desconsiderava a pequena
propriedade rural.
Desta forma, a agricultura se firmou como uma atividade que demandava de insumos industriais e
que oferecia produtos para processamento nas indústrias, ocasionando a emersão de complexos industriais
com intensa intervenção pública, através de créditos agrícolas. Entretanto, “[...] o crédito agrícola, além de
seletivo e concentrador, fora concedido a juros negativos aos grandes produtores e à agroindústria”
(FLEURY, 2015, p.35)
Assim, a Revolução Verde acertou de maneira expressiva a vida do camponês do sudoeste que,
impossibilitado de se associar ao proposto, já que essas políticas de incentivo eram voltadas exclusivamente
aos grandes proprietários, teve de se desfazer de modo indesejado de suas terras.
Com isso, o número de trabalhadores sem-terra cresceu expressivamente em todo o país, inclusive no
sudoeste, nos anos 70, fomentando a concepção de movimentos defensores da reforma agrária. No sudoeste,
segundo Prando (2010), o aumento dos trabalhadores sem-terra foi consequência também da construção de
hidrelétricas, que atingiu os pequenos produtores por conta das barragens.
A política adotada pelo governo ditatorial afetava gradualmente os pequenos agricultores da região,
acentuando-se nos anos 80. Cada vez mais, estes que não seguiam as mudanças impostas foram empurrados
do campo para a cidade, sendo obrigados a se desfazerem de suas propriedades, que, muitas vezes, eram
vendidas para quitar as dívidas adquiridas na busca de se adequar conforme as normas da “nova agricultura”
(PRANDO, 2010).
Essa modernização levou a perda de incontáveis pequenas propriedades rurais baseadas na
subsistência, que, no período era altamente disseminado na região sudoeste do Paraná. Anteriormente, a
Revolta dos Posseiros de 1957, marcada pela luta, fez com que agricultores vendessem sua força de trabalho
em grandes fazendas. É certo que muitos agricultores migraram para essa região em busca de melhores
condições de vida, o que tornou a região e o momento propícios para a constituição de movimentos e
organização que buscavam defender os agricultores familiares.
A luta pela terra no sudoeste
Posterior a Revolta dos Posseiros, instalou-se o Grupo Executivo para as Terras do Sudoeste do
Paraná (GETSOP), com o objetivo de delinear e efetivar a colonização, medir, demarcar e dividir os lotes,
construir estradas, postos de assistência à agricultura, escolas, incentivar o associativismo (LAZIER, 1998). A
partir desses trabalhos, os posseiros conseguiram se estabelecer em suas terras. Entretanto, outras
conjunturas sociais e políticas, mais uma vez, prejudicaram os trabalhos e projetos dos colonos que se
fundamentavam na agricultura de subsistência. Os planos políticos para o campo da agricultura buscava
colocar a produção agrícola subordinada ao capital industrial, gerando oportunidades de lucro para os
grandes latifundiários e indo de contramão aos anseios dos pequenos produtores.
A grande concentração de terras nas mãos da minoria e o excessivo êxodo rural iniciado em todo o
país nos anos 70, por consequência dos projetos políticos de mecanização da agricultura conforme já
mencionado, favoreceu o nascimento de ideias e a união de milhares de famílias para lutar em favor dos
prejudicados.
A ida forçada para a cidade e a perda das terras possibilitaram a formação de organizações que
lutassem aos lado dos agricultores por seus direitos e pela consumação da reforma agrária. “[...] a
modernização no campo apresentou-se como um ‘elemento ao mesmo tempo desestruturador e estruturador
das relações sociais’, pois significou uma nova composição de forças a partir da qual emergiu o ‘sem-terra’”
(BATTISTI, 2006, p.75).
A política econômica definida para o campo acarretou que ele precisasse cada vez menos dos
recursos naturais e cada vez mais de recursos processados e produzidos nas indústrias, gerando um grande
índice de trabalhadores assalariados e afetando fortemente a agricultura familiar, que foi excluída mais ainda
das políticas públicas, dado que o sistema de crédito e subsídio favorecia exclusivamente as grandes
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propriedades, que consequentemente, com a venda das pequenas propriedades, aumentavam sua
concentração de terras (FERNANDES, 1999).
Nesse contexto, o Movimento dos Sem Terra no Sudoeste – MST do Paraná – teve sua oportunidade
de lutar contra a desigualdade no campo. Segundo Battisti (2006), este se constituiu como forma de
organização dos agricultores que não se encaixavam no método moderno de produção que tinha uma
intenção seletiva e beneficiava somente os poderosos.
A primeira ação concreta do movimento foi a ocupação da Fazenda Anoni no Município de
Marmeleiro, em 1983. Segundo Battisti (2006), essa ação teve a participação de 650 famílias de
trabalhadores sem-terra da região sudoeste paranaense, que se fixaram numa área de 4 mil hectares de terras
improdutivas, que já havia sido totalmente explorada após a extração de madeiras na área.
Neste mesmo ano foi formado o Movimento dos Agricultores Rurais Sem Terra do Sudoeste
(MASTES), unindo os trabalhadores rurais de forma organizada e buscando encontrar soluções para os
problemas que enfrentavam.
Assim, segundo Danieli (2014), o MASTES tinha por objetivo lutar pela reforma agrária e construir
ações que possibilitassem a dignidade do trabalhador rural para que este tivesse garantia sobre sua terra e
pudesse trabalhar nela com segurança. O movimento se estruturou e cresceu rápido pelo sudoeste, tanto que
em 1985 já estava presente em 20 municípios. A autora relata ainda que a primeira ocupação do MASTES se
deu em 1984 na fazenda Imaribo, no munícipio de Mangueirinha, com uma área de 17 mil hectares ocupados
por 91 famílias.
A importância do MST e do MASTES era tão grande em todo o Paraná, que na cidade de Cascavel
entre 21 a 24 de janeiro de 1984, realizou-se o Primeiro Encontro Nacional dos Trabalhadores que criou
oficialmente o MST (FERNANDES, 1999).
Ambos os movimentos tiveram apoio de outras organizações e movimentos. No sudoeste, os
trabalhadores obtiveram apoio da ASSESOAR (Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural), de
Sindicatos Rurais e da Comissão da Pastoral da Terra (CPT). Este trabalho irá se ater às atividades efetuadas
por esta última organização em relação às ações do MST.
A Pastoral da Terra e os Sem Terra no Sudoeste
A Comissão da Pastoral da Terra (CPT) foi criada oficialmente em junho de 1975 durante o encontro
de Bispos e Prelados da Amazônia. O evento foi convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), mas teve participação também de representantes de outras igrejas cristãs, e teve como objeto de
discussão as ações necessárias para promover ao trabalhador do campo o protagonismo de sua história,
dando suporte e acompanhamento em sua organização e trabalho (CPT NACIONAL, 2010).
A CPT, desde sua concepção em âmbito nacional, buscou criar espaços de interação política para os
trabalhadores rurais, proporcionando o contato entre os integrantes do MST de diferentes estados e regiões,
visando uma troca de experiências e a convivência entre os iguais.
No sudoeste paranaense, a atuação da Igreja Católica no âmbito do campo iniciou-se de forma efetiva
nos anos 1960, baseada na Doutrina Social da Igreja, resultado das modificações do Concílio Vaticano II
(1962-1965). Sua presença ajudou no surgimento de lideranças na região, porém um dos primeiros trabalhos
foi o acompanhamento de migração de agricultores na região sul do país que vinham para o sudoeste dentro
da política governamental conhecida como “Marcha para o Oeste”, com o objetivo de ocupar terras de
fronteira. Nesse contexto, a congregação Sagrado Coração de Jesus envia ao Brasil um grupo de missionários
e padres belgas em 1963, que tinham como função acompanhar de perto as ações no campo (DANIELI,
2014).
É nessa realidade que, em 1966, constitui-se a ASSESOAR, formado por 33 jovens militantes da
Juventude Agrária Católica (JAC), amparados pelos padres belgas, que buscavam promover melhorias na
vida dos trabalhadores rurais e desenvolver a agricultura familiar baseada na Doutrina Social Cristã
(CALLEGARI; ALBA, 2016).
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Porém, é somente em 1978 que os agricultores vão participar ativamente na ASSESOAR, passando a
assumir a entidade, o que proporcionou uma maior aceitação e representatividade dela entre os
trabalhadores rurais.
Uma prova disso são os números de participantes em Assembléias que, em 1976, foi
de 43 pessoas, em 1977, de 50 pessoas e, em 1978, de 169 pessoas. Foi nesta
Assembléia geral que foi eleito o primeiro agricultor como presidente da
ASSESOAR (CALLEGARI; ALBA, 2016, p.10).
A CPT e a ASSESOAR, unindo-se a outras entidades, como sindicatos por exemplo, fizeram um
trabalho em conjunto, apoiando-se, para assim, formarem a base para a organização dos sem-terra no
sudoeste nos anos 80.
De início, os agentes da CPT encontraram nos agricultores um medo e um receio enorme de lutar por
seus direitos, o que era de se esperar, já que viviam em uma ditadura que ceifava todo movimento contrário a
ela. Outra preocupação presente entre os agricultores era sobre a questão da propriedade privada, para a
qual os agentes usaram da Bíblia e do Estatuto da Terra (1964) como ferramenta para sensibilizar e afirmar
que o direito à terra estava previsto nas leis dos homens e nas leis divinas.
Esses setores progressistas da igreja e a CPT foram essenciais para a superação da noção moralista
em relação a propriedade e introduziram a noção de direito à terra.
[...] a noção de direito a terra de trabalho foi articulada na 18º Assembléia Geral da
CNBB, em Itaici (1980), no documento ‘Igreja e Problemas da Terra’. Também a
Igreja de Confissão Luterana do Brasil (IECLB) tratou da questão da terra no
documento ‘Terra de Deus – Terra para Todos’, de 1981. (SCHREINER, 2002,
p.171).
A CPT fundamentava seu trabalho na Teologia da Libertação, usando a Bíblia para legitimar a ação e
os moldes de vida e de trabalho dos pequenos agricultores, incentivando os trabalhadores sem-terra à luta.
Formaram-se assim, ocupações e acampamentos, tendo como protagonistas a organização interna da CPT.
A Pastoral reunia-se com os agricultores nas Comunidades Eclesiais de Base para discutir ideias,
incentivar a reforma agrária, organizar o modo de vida nos acampamentos, referenciando-se em documentos
elaborados pela própria Comissão, como, por exemplo, o caderno “Bíblia e a Terra”, de 1981, que relaciona os
desígnios de Deus com o cotidiano dos homens. Esses documentos eram produzidos para auxiliar a CPT nos
grupos de reflexão a despertar a consciência do problema da terra. (SCHREINER, 2002).
O caderno “Bíblia e a Terra” é uma espécie de roteiro para grupos de reflexões e se organizava em
três partes: o problema da terra no Antigo Testamento; a terra no Novo Testamento e na Igreja dos
primórdios; e a terra e a Igreja dos nossos tempos. O caderno ainda abordava como deveriam ser realizadas
as reuniões: de forma calma, analisando os problemas com criticidade, as leituras deveriam ser feitas com
voz firme, e as reuniões deveriam iniciar com cantos para que todos se sentissem a vontade. (PERIN;
NADEL; GEEURICKX, 1981).
O caderno faz uma contextualização entre os cristãos desde o Antigo Testamento até o Concílio
Vaticano II. Apresentando que tanto os primeiros cristão quanto os primeiros padres pós concílio
permaneceram na perspectiva e nos ideais de ajuda mútua entre os homens. Afirmando que “[...] a igreja,
quando hoje defende a propriedade individual da terra e dos meios de produção, sempre insiste que [...]
mesmo sendo propriedade privada deve servir a todos” (PERIN; NADEL; GEEURICKX, 1981, p.42). Defende
ainda que a terra deve servir a todos e que “a história do uso da terra é uma constante luta entre o projeto
(plano) de Deus e a realidade do pecado e egoísmo até parece que, sempre de novo, o egoísmo vence: os ricos
ficam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres” (PERIN; NADEL; GEEURICKX, 1981, p.46).
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A partir desse roteiro do caderno, os agentes da CPT ligavam a história do cristianismo com a
realidade do Sudoeste nos anos 80, buscando mostrar aos agricultores que Deus tende a justiça e defende a
igualdade de condições de terras a todos e do uso para o trabalho.
A CPT manteve-se firme ao lado dos sem-terra mesmo após as ocupações, tanto que quando se
instalava um novo acampamento, fixava-se uma cruz no local onde os agricultores estavam dispostos a ficar
(BONIN, 1991).
Dentro dos acampamentos, a Pastoral realizava reuniões periodicamente, abordando questões de
organização do local como produção, segurança, saúde e bem estar, visando garantir que os agricultores
permanecem nos acampamentos com uma estrutura mínima de condições básica de vida. Outro tema
abordado nas reuniões é a questão de Deus quanto ligado a terra, próximo do povo que sofre (SCHREINER,
2002). Partindo desse princípio de um Deus presente, preocupado com a vida dos agricultores, manifestado
na luta e nas ocupações dos sem-terra, a CPT se firmou entre os agricultores, ajudando-os a lutar por uma
terra onde poderiam produzir e construir uma vida digna.
Considerações Finais
A CPT, presente no Paraná desde os anos 70, inicialmente com o objetivo de ajudar os atingidos pelas
barragens das usinas hidrelétricas, e no sudoeste mais especificamente desde 1978 também com esse intuito,
foi uma grande e ativa cooperadora na formação dos movimentos sociais dos trabalhadores sem-terra.
A Pastoral se uniu com outros movimentos como o MASTES e o MST buscando defender e auxiliar os
trabalhadores rurais em sua luta pelo seus direitos quanto a terra. Agiu diretamente nas comunidades,
trabalhando com os indivíduos, com as famílias e em grupos, num processo de sensibilização, reflexão,
criticidade e solução dos problemas enfrentados pelo homem do campo, principalmente quanto a má
distribuição de terras, embasando-se na Bíblia quando instrumento de ação e política, incentivando um ideal
de luta.
Posterior as ocupações, a CPT trabalha a organização interna social dos acampamentos, realizando
reuniões abordando temas básicos de vida diária, visando estabelecer as famílias e construir uma
comunidade.
Em toda ação da CPT destaca-se o uso do divino, das abordagens de um Deus presente, que luta, que
deseja a justa distribuição de terras e que se preocupa com o seu povo, ideia essa que era enriquecida pela
produção de material contendo a mística cristã e a luta pela terra, ligando passado e presente.
Porém, é a união dessas formas de abordagem e de trabalho da CPT que ajudaram os agricultores na
luta pela terra e que fez do sudoeste e de seu povo um exemplo de labuta pela tão desejada reforma agrária.
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A disputa pela terra e os conflitos fundiários na região Sudoeste do Paraná
Paola Nahuana Grazzi Torres1
Pâmela Pongan2
Resumo: A região Sudoeste do Paraná tem sua história diretamente vinculada à luta pela terra, concebida
pelos camponeses como espaço de relações e de trabalho, de produção e reprodução biológica e social e pela
elite como fonte de poder (político/econômico). Essas concepções diferentes diante do papel da terra
estabeleceram a origem de conflitos de interesses entre os grupos sociais regionais. No Sudoeste, a luta pela
posse da terra possui dois marcos essenciais: a Revolta dos Posseiros de 1957 e os conflitos da década de
1980. A primeira confrontou o capital comercial, fruto da comercialização de títulos de terra, com
camponeses posseiros (agricultores familiares). O segundo confrontou ocorreu entre os agricultores
familiares, mini fundistas e sem-terra, contra o capital industrial e comercial, essencialmente das áreas da
madeira e da pecuária. A partir desta perspectiva, neste trabalho buscaremos analisar os movimentos pela
posse e uso da terra ocorridos na região Sudoeste do Paraná desde a Revolta de 1957 às ocupações,
acampamentos e assentamentos do MASTES/MST, visando dar ênfase aos aspectos históricos,
antropológicos e sociológicos. Destacando o significado e a abrangência das lutas, considerando o confronto
de opiniões e as influências destas na organização dos projetos de intervenção e no comportamento das bases
dos movimentos sociais da região. Assim, mais que fazer a analise dos fatos, procura-se compreender a
realidade historicamente essa contraditória do processo de ação e luta dentre o meio social do sudoeste
paranaense, tratando de questões complexas como a do imaginário e da identidade coletiva.
Palavras-chave: Luta pela Terra; Resistência; Revolta de 1957; Movimento dos Sem Terra.
Abstract : The Southwest region of Paraná has its history directly linked to the struggle for land, conceived
by peasants as a space of relations and work, of biological and social production and reproduction, and by the
elite as a source of power (political/ economic). These different conceptions of the role of land have
established the origin of conflicts of interest among regional social groups. In the Southwest, the struggle for
land tenure has two essential milestones: the 1957 Posseiros' Revolt and the conflicts of the 1980s. The first
confronted commercial capital, the result of the commercialization of land titles, with peasants (family
farmers). The second confrontation occurred between family farmers, mini landowners and landless, against
industrial and commercial capital, essentially in the areas of wood and livestock. Emphasizing the meaning
and scope of the struggles, considering the confrontation of opinions and their influence in the organization
of intervention projects and in the behavior of the bases of the social movements of the region. thus, rather
than analyzing the facts, it seeks to understand the historically contradictory reality of the process of action
and struggle among the social environment of the south-west of Paraná, dealing with complex issues such as
the imaginary and collective identity.
Keywords: Fight for the Earth; Resistance; Revolt of 1957; Movement of the Landless.
Introdução
O Sudoeste do Paraná possui em sua historia uma grande ligação com a questão da terra uma vez que
historicamente a mesma foi o cerne que desencadeou um cenário de disputas entre camponeses e elites
agrárias, os quais concebiam a terra de formas contrarias enquanto o camponês tinha uma visão de que a
terra era seu espaço de vivencia e subsistência voltada ao trabalho e as relações a elite percebe a mesma como
uma fonte de poder seja ele político ou econômico.
Foram essas divergências de idéias que eclodem como a origem dos conflitos que surgiram na década
de 60 e posteriormente 80, em relação a posse de terra, conflitos esses compostos por diversos grupos sociais
da época. A mesma possui por sua vez dois grandes: o primeiro é a Revolta dos Colonos de 1957, a qual
Graduada
em
História
pela
UniparUniversidade
de
ParanaenseCampus
de
Francisco
Beltrão
nauhannah@hotmail.com@hotmail.com
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação de História em História Regional na Universidade de Passo Fundo -PPGH/ UPF. Bolsista
Capes – ppongan@hotmail.com
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apresentou o confronto ao capital comercial, fruto da comercialização de títulos de terra e também da
madeira, com camponeses posseiros (agricultores familiarese moradores urbanos). O segundo confrontou
ocorreu entre os “agricultores familiares, minifundistas e sem terra, com o capital industrial e comercial,
principalmente das áreas da madeira e da pecuária”. (VERONESE, 1998, p. 69-70).
Segundo Feres alinhava-se de fato no Sudoeste do Paraná, a luta constante em meio a dois pólos
extremos que norteavam o processo de ocupação do território: de um lado, a elite composta pelo monopólio
fundiário, e do outro, os pequenos proprietários, camponeses composta pela divisão de pequenas
propriedades. “A fronteira da colonização mostrava-se o terreno ideal para esse confronto”. (FERES, 1990,
p. 508).
A revolta de 1957 se deu em um contexto agrário nacional no qual se predominava a estagnação do
governo esse orientado por ideais econômicos e tecnocráticos, acusado por parcelas expressivas da igreja
católica, estudantes, intelectuais, operários e ate mesmo a imprensa.
No território do Sudoeste do Paraná, após a resolução das questões de posse das terras por meio de
um conflito aberto e armado, entre agricultores e as instituições colonizadoras, deu se o inicio de um
processo de modernização na agricultura o qual constitui-se sobretudo, na transformação da base tecnológica
fundamentada por meio do capital industrial.
O qual, partindo da cidade, faz a absorção e recria o campo com significados diferentes, modificando
a produção agrícola em setor de produção industrial esse subordinado aos imperativos e submetida as
exigências do capital. (GOMES, 2001, p. 41).
No ano de 1984 em janeiro, o Paraná foi sede do Encontro Nacional de Fundação do Movimento dos
Sem Terra (MST) e o I Congresso Nacional do MST, o qual teve delegados de 23 estados, onde definiu-se o
lema: Ocupar é a única solução. O Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste do Paraná
(MASTES), No anseio da busca de seu espaço, enfrentam os latifundiários e o Estado, se estabelecendo e
resistindo dentro de acampamentos improvisados por dias messes e até mesmo por anos.
A revolta dos Colonos de 1957
O cenário em que a Revolta de 1957, conhecida também como Revolta dos Colonos se dá é de
transformações no modo de exploração capitalista no campo isso em uma esfera nacional, a qual manifestouse nos diversos modos. É nessa época que a produção agrícola tem sua iniciação no mercado da
agroindústria.
Para uma melhor compreensão a cerca deste movimento se faz necessário retomar como ocorreu o
início da colonização dessa região, a qual tem como marco a criação do Território Federal do Iguaçu e a
instalação da Colônia Agrícola General Osório (CANGO), no começo da década de 1940, com o intuito de
promover de forma dirigida a colonização ao longo da fronteira com a Argentina. De acordo com Lazer
(2005):
O Sudoeste do Paraná, era uma região fértil e rica, que foi muito disputada,
causando conflitos jurídicos, políticos e sociais. A Argentina e o Brasil disputaram
a região. Os Estados do Paraná e Santa Catarina também entraram em conflito
pela área. Essa desavença pela posse das terras envolveu também a Cia. De
Estradas de Ferro São Paulo – Rio Grande, a CITLA, o Governo Federal, o
Governo do Paraná e, principalmente posseiros. (LAZER, 2005, p146).
Essa vinda em massa à região se dava devido a procura por melhores condições de vida, pelos
colonos catarinenses e gaúchos os quais não tinham noção das adversidades que teriam que enfrentar para
poderem realizarem suas ambições e sonhos envolvendo a questão da nova terra.
Com a implantação da CANGO, a migração vinda do Rio Grande do Sul e Santa Catarina obteve um
maior impulso e o fluxo de migrantes, ocorreu de forma desordenada em maior quantidades, excedendo
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assim a capacidade de atendimento da colonizadora; em 1950, a população regional ultrapassava os 200 mil
habitantes.
A movimentação de deslocamento vindo do Rio Grande também influenciou na ocupação desse
território. Segundo Zarth (1997):
No final do século a pressão demográfica sobre as colônias velhas, fundadas sob o
sistema de pequenas propriedades, impulsionou colonos excedentes para as novas
áreas disponíveis. [...] as áreas florestais do Alto Uruguai foram definitivamente
transformadas em zonas agrícolas, inclusive ultrapassando o Rio Uruguai e
chegando ás terras do oeste catarinense e sudoeste paranaense. (ZARTH,
1997,p.29).
Nessa época a especulação a cerca dessa área cresce significativamente gerando assim o inicio das
disputas pela terra.
Tais disputas tiveram maior percussão em 1945 com a vitória jurídica de José Rupp essa proveniente
de uma ação que perdurava a dezoito anos, contraria a empresa Brazil Railway Co., devido ao fato da mesma
ter sido encampada pelo governo Federal em 1940, se deu um crédito a Rupp junto ao Poder Público
Federal.
Assim Rupp aliado a Mário Fontana, amigo do Governador Lupion, o qual de certa forma tinha
influência junto ao Governo Federal, criaram a Clevelândia Industrial e Territorial Ltda. (CITLA) com o
intuito de viabilizar a colonização do sudoeste paranaense. Tempo depois, Fontana compra os direitos de
Rupp e, por influição de Lupion, em uma operação que se deu na ilegalidade, em 1950, a CITLA faz a
aquisição das Glebas das “Missões” e do “Chopim” compradas do Governo Federal, por meio da
Superintendência das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União (SEIPU). O que chama a atenção é o
valor que foi declarado nessa negociata o entre a CITLA e a SEIPU valor este de 10 milhões de cruzeiros.
Segundo Wachovicz (1987) esse valor:
Era uma importância ínfima, por uma área quatro vezes maior do que o então
Distrito Federal, possuidora de inúmeros recursos hidrelétricos e detentora da
maior reserva de pinheiros do Brasil, calculada em 3 milhões de árvores adultas”
(WACHOVICZ, 1987, p. 151).
Na escritura da CITLA o território se refere a 475.200 há. , incluindo a extensão de terra referente à
CANGO, a qual possuía na época mais de 3 mil colonos assentados, bem como as sedes dos distritos de
Francisco Beltrão, Capanema e Santo Antônio. A qual continha a maior reserva de pinheiros adultos do
território brasileiro, com a quantia superior a 3 milhões de árvores as quais poderiam ser industrializadas,
milhões de árvores de madeiras de lei, bem como a exorbitante quantia de erva-mate as quais estavam
prontas a serem exploradas (FERES, 1990, p. 505-6).
A mesma foi denunciada pela oposição estadual, essa liderada pelo PTB, tal fato teve uma enorme
repercussão na imprensa nacional. Em decorrência desse fato, o Tribunal de Contas da União acaba negando
o registro da escritura à CITLA, com a alegação de inconstitucionalidade. Assim, o Conselho de Segurança
Nacional manda ofícios a todos os Cartórios da região vetando o registro da escritura da CITLA. Porém o
Governo Lupion, cria em Santo Antônio do Sudoeste um Cartório de Registro de Títulos e Documentos, onde
essas escrituras eram feitas. Nesse momento existia uma grande tensão entre os poderes estadual e federal,
este baseado em uma lógica político-econômica e partidária. Entretanto deve-se ser considerado que no
Sudoeste, naquele momento a existia uma maior e significativa independência do estado em relação à União.
Com a ascensão da oposição - PTB e UDN – ao poder Estadual, com o Governador Bento Munhoz da
Rocha Neto em 1951, o governo tenta impedir a grilagem. Ocorre também incentivos a migração de gaúchos e
estimulo os colonos ao não pagamento à CITLA, por parte de políticos locais, afinados com o projeto de
Vargas á região, o que desencadeou na pressão contra os jagunços. Nesse cenário que ia se delimitando, os s
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colonos, na busca por legitimar suas posses e facilitar a produção, derrubaram os pinheiros, impossibilitando
o projeto de Fontana para a região de instalar uma fábrica de celulose, de modo, que o mesmo passou então a
vender as terras. De acordo com Feres no Sudoeste, se delimitava a luta perdurável entre os extremos s pólos
de ocupação do território brasileiro: de um lado o monopólio fundiário composto pela elite, de outro a
divisão da terra em pequenas propriedades, essa composta pelos camponeses, pequenos proprietários. “A
fronteira da colonização mostrava-se o terreno ideal para esse confronto” (FERES, 1990, p. 508).
De forma simultânea os projetos de colonização da CANGO assentavam os colonos, passaram a se
desenvolverem projetos de colônia esses diretos do Estado e também por meio da iniciativa privada. Serra
(1992)
A colonização oficial e empresarial privada provocou pelo menos dois efeitos
imediatos: dinamizou o avanço da frente pioneira [...] paralelamente provoca a
valorização das terras e, como efeito contraditório, desperta a cobiça de grupos
políticos e econômicos que vêm na apropriação de grandes áreas, aparentemente
ainda sem dono, um meio facil de enriquecimento e de ascesao ao poder (SERRA,
1992,p.75).
Vale ressaltar que em 1956 volta ao governo do Estado Lupion e, devido a pressão dos financiadores
de sua campanha, força Fontana a ceder boa parte da Gleba Missões às empresas colonizadoras "Comercial e
Agrícola Paraná Ltda." e "Apucarana Ltda.", as quais para que os colonos a assinassem a confissão de dívida
das terras, partem ao recrutamento de jagunços esses criminosos profissionais; parte vindos de diversas
regiões como Norte do Paraná, Argentina e Paraguai (WACHOVICZ, 1987, p. 32).
Othon Maeder afirmava que, os tinham ao seu dispor armamentos diversos como revólveres,
metralhadoras e jeeps preparados para o “serviço” que se delimitava a matar, assaltar, surrar e o que fosse
necessário a sua função. O mesmo ainda discorre que, diversas atrocidades foram realizadas nessa época
como mortes, desaparecimentos, espancamentos, mutilações, estupros, assaltos, saques, incêndios, extorsões
entre outras. Sendo que tais crimes ficaram impunes, pois em geral, as autoridades não possuíam o interesse
em descobrir e punir os responsáveis. Eis a “a razão porque, nos cartórios daquelas regiões, não há prova
de que hajam sido mortos posseiros ou colonos”. (MAEDER, 1958, p. 32)
Esse tipo de atitude ou mesmo o envolvimento de autoridades nesses crimes é confirmado por
Wachovicz (1987, p. 172): “autoridades do governo do Estado colaboraram nesse esquema. Nas delegacias
de polícia da região Sudoeste, foram colocados delegados submissos, que acatavam inclusive ordens
emanadas dos gerentes das companhias”. (WACHOVICZ, 1987, p. 172).
O Estado na esfera federal permanecia-se distante e omisso em vinculação aos problemas fundiário.
Não foi tomadas nenhuma atitude em relação ao abaixo-assinado subscrito por mais de 2 mil pessoas o qual
fazia a denuncia da violência exercidas pelas companhias e o envolvimento da polícia, por parte do então
presidente Juscelino Kubitschek em 07 de abril de 1997, esse subscrito pelos colonos Rosalino Albano da
Costa e Augusto Pedro Pereira. Na busca de defender-se dos jagunços, vários colonos uniam-se a bandidos e
praticaram assim arbitrariedades. Wachovicz (1987) discorre que colonos da fronteira da região de
Capanema recorreram a Pedro Santin, figura conhecida da época na região pela conduta de valentão e
contrabandista de gado argentino o qual negociava suas cargas com açougues da região. O mesmo reuniu 11
colonos e atacaram e atearam fogo ao escritório da Colonizadora Apucarana em Lajeado Grande., os que
saiam para fora do prédio eram eliminados.
Nos conflitos de Apucarana, na região de fronteira, o acontecimento de maior repercussão que
resulta no levante dos revoltosos, foi o assalto à caminhonete, episodio este desencadeado no dia 14 de
setembro de 1957, no quilômetro 17 da estrada Santo Antônio a Lajeado Grande. Devido a um alerta em
relação a uma emboscada encabeçada pelo grupo de Santin, os superiores da companhia colonizadora
desistiram de ir a uma reunião, ordenando que o motorista e um jagunço dessem carona a quem estivesse na
estrada. A mesma concretizou-se, ocorrendo a morte de sete pessoas,sedo que os colonos mataram cinco de
seus pares. “Um dos atacantes inclusive participou do assassinato de seu próprio pai, que havia pedido
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carona”. (WACHOVICZ, 1987). A situação se tornou desesperadora e em 2 de outubro de 1957, ocorre um
dos principais acontecimentos históricos do Sudoeste o qual teve repercussão nacional. Os principais jornais
e revistas do país enviam repórteres e fotógrafos à região. Enquanto os políticos oposicionistas resolveram
agir. (WACHOVICZ, 1987, p. 190).
Iniciam-se assim, os conflitos, que culminam no movimento de massa conhecido por Revolta
Camponesa, Levante dos Posseiros ou Revolta dos Colonos, em 10 de outubro de 1957, dia em que pegam
em armas milhares de colonos e posseiros e invadem e tomam posse dos principais municípios do Sudoeste
do Paraná, expulsando e substituindo as autoridades constituídas.
Veronese (1998, p. 71) afirma que a organização e iniciativa da Revolta se deu a partir dos colonos
posseiros, através da constatação da ausência de uma ação efetiva do Estado para tornar-los proprietários
legais das terras nas quais os mesmos já viviam e exploravam. Boneti (2005, p. 119) assim discorre que os
comerciantes, estes parte do segmento sócio-político econômico dominante, assumem nesse momento o
papel de divulgar, orientar e liderar o movimento. Torna-se claro que os revoltos tiveram decisivo apoio dos
comerciantes e profissionais liberais, com vinculação a grupos econômicos e/ou partidos de oposição ao
então vigente governo. Porém os posseiros assumiram a revolta devido ao fato de conceberem a propriedade
da terra como espaço de trabalho e relações, local esse que garantia a sua produção e a reprodução da vida e
diferentemente do grupo fundiário que a percebe como fonte exclusiva de poder.
A imensa repercussão e o êxito do movimento levaram presidente Juscelino Kubitscheck, a dar um
ultimato a Lupion, que, para fugir da intervenção, acabou por sacrificar seus interesses econômicos e amigos,
fechando assim as colonizadoras.
Mesmo com a expulsão das companhias imobiliárias, a luta permaneceu em prol da transformação
dos posseiros em proprietários. Então em 1962, o então Presidente João Goulart criou o Grupo Executivo
para as Terras do Sudoeste do Paraná (GETSOP) com o intuito de resolver de forma definitiva a questão das
posses. De acordo com Martins (1994, p. 64-5), os conflitos do Sudoeste do Paranaense atingiram de forma
direta um dos principais mecanismos de reprodução do poder oligárquico: a grilagem de terras, a qual não
constituía ainda uma questão social e política. A singularidade do Sudoeste “estava no fato de que a terra
era usada fundamentalmente para obter retornos econômicos e não retornos políticos” em contrapartida
com a tradição histórica nacional.
Conflitos da década de 1980
Na região Sudoeste do Paraná, após a resolução das questões da posse de terra por conflito aberto, e
armado, entre os posseiros, pequenos agricultores e empresas colonizadoras, inicia-se o processo de
modernização da agricultura que se constituiu, na transformação da base tecnológica norteada pelo capital
industrial. A cidade faz a absorção e recriação do campo com outros significados, modificando a “produção
agrícola em um setor da produção industrial subordinada aos seus imperativos e submetida às suas
exigências”. (IANNI, 2004, p.48).
De acordo com Oliveira (1991) a modernização implicou no aumento significativo considerável da
quantidade de estabelecimentos conduzidos por posseiros, de 109.016 estabelecimentos em 1940 para
1.054.542 em 1985. dessa maneira, a modernização no campo se mostrou como um “elemento ao mesmo
tempo desestruturador e estruturador de relações sociais”, pois o mesmo significou uma nova composição de
forças a partir da qual emergiu o “sem-terra” (GOMES, 2001, p.41).
Um novo cenário começou a se delimitar, grande parte da população rural transfere-se para as
cidades como decorrência da modernização conservadora, agravando o caso da marginalização de ampla
parcela da população, o que se reflete em diversos aspectos como, por exemplo, e a concentração de renda e
capital, bem como a possibilidade do surgimento das grandes mobilizações operárias do ABC paulista - área
mais industrializada - e dos agricultores familiares do Sul do país. Ao fim da ditadura militar, a questão
agrária se apresentava como um dos mais complexos problemas nacionais.
No Sudoeste o movimento de luta pela terra, expressava uma fase de reorganização da vida dos
agricultores os quais haviam integrado essa ordem constituída através das novas relações estabelecidas com
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a introdução da modernização do campo. A luta volta à tona de maneira sistemática em 1983, quando 650
famílias de “sem terra” da região Sudoeste do Paraná e Oeste de Santa Catarina ocuparam em
Marmeleiro/PR4 mil hectares de terras da Fazenda Annoni, sitiada na divisa com o estado de Santa Catarina.
Os donos residiam no Rio Grande e a terra estava improdutiva após a mesma ter sido utilizada para extração
de madeira. Durante o confronto direto entre ocupantes e jagunços, um sem terra foi morto, fortalecendo
desse modo a luta, culminando no assentamento dos ocupantes.
A maneira improvisada dessa ocupação resultou em diversas dissidências e rupturas, seja entre os
ocupantes, ou mesmo entre os chamados “canais de apoio”. Essa debilidade foi utilizada pelo Estado para
emperrar o processo de desapropriação,(o qual apenas foi concluído em 1998), e os políticos dessa região se
utilizaram dessa situação durante várias eleições para angariação votos desses posseiros, sob a promessa de
legalização da posse.
De acordo com Santos (2000) fica evidente a violência política exercida pela classe dominante, com a
finalidade de “provocar efeito de demonstração para silenciar, punir e docilizar os vivos” uma “tecnologia
de poder eficiente” e que é “alimentada pela impunidade” (SANTOS, 2000, p. 03). Porém o exemplo
“negativo” da Fazenda Annoni influenciou a criação de um movimento estruturado pelos sem terra na região
e que, posteriormente, passaria a denominar-se Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste
(MASTES). Essa criação se deu a partir de um cadastramento, o qual foi realizado pelos sindicatos, com
apoio da CPT e da Ong Assesoar.
Depois do debate e análise da situação, as organizações e lideranças dos agricultores familiares
tomam a decisão por aderir a um trabalho de base, criando assim consequentemente as Coordenações
Municipais e, mais tarde, da Coordenação Regional dos Agricultores Familiares Sem Terra que, em 1986,
tornar-se-ia o MASTES. O desejo de emancipação, e autonomia esteve presente desde a origem do
movimento que, o qual em seu primeiro planejamento definia:
O MASTES, nosso movimento, é uma coordenação autônoma que autodetermina-se
em suas decisões e ações [...]; o MASTES terá uma coordenação escolhida pelos
trabalhadores, com a função de garantir a execução das decisões do movimento e o
cumprimento dos princípios.
O movimento tinha como objetivos iniciais uma mistura de propósitos como “promover a
organização dos trabalhadores na luta pela conquista e fixação à terra e desenvolver nos agricultores a
consciência de classe; terra para quem nela trabalha e dela precisa” e projeções de difícil alcance um tanto
utópicas, mais muito características do momento como a “construção de uma nova ordem social”. A
estratégia aplicada foi o trabalho de base, que almejava sensibilizar as comunidades em relação aos
problemas enfrentados pelos jovens agricultores como a falta de perspectivas devido ao processo de
modernização da agricultura; destacando a legitimidade e legalidade de seus interesses através da
transmissão de informações que legitimavam o direito/disponibilidade de terra e, bem como,
leituras/reflexões bíblicas e de autoridades religiosas, leituras como Igreja e Problemas da Terra, A luta pela
terra na Bíblia, Queremos a terra e Puebla para o povo, foram utilizadas. Em 1984 e 1985, o MASTES, que
já estava estruturado, organizou grandes manifestações, em forma de atos públicos e passeatas, seguidas de
ocupações de terra e acampamentos, envolvendo 1881 famílias de sem terra. Os sem terra, na busca pelo seu
“espaço vital”, da “terra prometida”, confrontaram o Estado e os grandes latifundiários, na resistência dentro
de acampamentos improvisados durante meses e ate mesmo anos. Nesse processo de negociação entre
assentados e órgãos estatais, os mesmos se valiam e intercalavam-se em argumentos emocionais, políticos e
legais, exemplo disso é o uso do Estatuto da Terra como referencial legal.
Segundo Gomes (2001, p. 104), o acampamento se tornou uma estratégia de pressão e negociação com o
intuito de agilizar o assentamento definitivo. No ideal dos sem terras, a participação no significa a
possibilidade de “voltar a ser lavrador, de recuperar o direito de viver, de comer, de tomar remédio, de ter
um teto, de dar escola para os filhos,” momento de esperança retornar a viver.
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De acordo com Feres o acampamento é o instante de ruptura, no qual criam-se novos caminhos e
estratégias. E o que condiciona as chances de vitória são a capacidade de resistência do acampamento. Pois
essa é a fase mais difícil da luta, que pode durar por um tempo indefinido. (FERES, 1990, p.561).
Posteriormente a uma enorme resistência, por parte dos sem-terra no ano de 1985 entre julho e
agosto, 350 das 1881 famílias que compunham a MASTES foram assentadas pelo Estado. Segundo o
levantamento do IPARDES de 1989, mais de 50% dos assentados do Paraná eram da região Sudoeste, esses
descendentes dos participantes do movimento de 1957 sendo filhos ou netos desses agricultores, o que deixa
evidente a marca da resistência, herança essa de luta deixada de geração para geração, mesmo que esses
tenham lutado contra a expropriação, em momentos e condições distintas.
Na nova luta por terra e dignidade, a experiência dos antepassados foi importante. Os agricultores
familiares têm o exemplo na Revolta de 1957 de que para a garantia da existência enquanto grupo social é
fundamental a luta pela terra. Pois os direitos e a cidadania apenas são alcançados se efetivados por eles
mesmos é não como algo vindo de outros, em expressão de um gesto de solidariedade humana. (VERONESE,
1998, p. 72).
Os resultados de tais mobilizações unidos a realidade locam deram um impulso ao movimento o qual
se expandiu rapidamente, passando de 9 municípios em 1985, á 20 em 1987. Nessa época, os latifundiários
da região , depois da visita de Ronaldo Caiado ou qual tornar-se-ia mais tarde o coordenador nacional, a
parti de uma organização formam a União Democrática Ruralista (UDR), aliados a alguns setores do Estado
e a paramilitares, com o intuito de reprimir e isolar o movimento através do apoio da sociedade, cria-se
assim uma aliança de forças repressivas entre governos e fazendeiros. Nesse momento os governantes trazem
como parte de suas estratégias os despejos violentos, a repressão aparece em modo de lei e o Judiciário, na
grande maioria dos casos se mostra como instrumento de legitimação desses despejos, de processos e
mesmo de prisões á lideranças e militantes do movimento. A primeira medida que geralmente era utilizada
era o despejo legal dos ocupantes, medida esta tomada pelo
proprietário que, apelava a autoridade do Estado. Esses despejos eram extremamente violentos. Um
caso que teve bastante repercussão na região, foi o despejo do acampamento da Fazenda Corimbatá:
Em fins de dezembro, um pelotão de choque da polícia estadual, armado de
metralhadoras e gás lacrimogêneo, executa o despejo. A tropa policial foi apoiada
pelas prefeituras de Chopinzinho, Coronel Vivida, São João, São Jorge e Verê.
Alguns agricultores foram presos e mulheres e crianças foram feridas. Os
ocupantes foram jogados à beira da estrada, sem as barracas (destruídas pela
polícia) e sem alimentos (as reservas foram ou apreendidas ou destruídas).
(FERES, 1990, p. 620).
Ao que se refere ao Sudoeste, seja em 1957 ou na década de 1980, percebe-se que nem mesmo a
violência policial ou paramilitar teve a capacidade de conter a luta (FERES 1990, p. 576). De acordo com
Wanderley (1996), uma das mais fundamentais dimensões das lutas dos camponeses brasileiros se centra no
esforço na construção de um “território” familiar, local este de vida e de trabalho, que tem a capacidade de
guardar a memória da família e de reproduzi-la para as gerações futuras.
As lutas pela terra no território do Sudoeste do Paraná evidenciam o que defendia Martins (1994) de
que é um equivoco afirmar que historicamente que os camponeses são conservadores e que as
transformações sociais não se dariam através dos mesmos. O mesmo embasado pela história das lutas
camponesas, a partir do século XVIII, afirma que esses sujeitos são fundamentais desestabilizadores da
ordem social e política tradicional.
Em 1986, o MASTES por meio de uma determinação nacional, incorporou em seu Plano de Ação
propostas para a Constituinte, o que posteriormente culminou em uma emenda popular essa com mais de
um milhão e meio de assinaturas, favorável à Reforma Agrária.
A datar da emenda popular, procurava-se garantir uma maior pressão política sobre o Estado em
prol da aceleração do processo de discussão do Programa Nacional de Reforma Agrária, tal pressão, se
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mostra principalmente na maneira de acampamento/ocupação. Ao fim de 1986, nas terras paranaenses
existiam 44 acampamentos com cerca de 4.626 famílias. A estratégia implantada em 1987 de “ocupar e
resistir” fez com que o Estado agiliza-se as desapropriações nas áreas de conflito. A luta pela terra teve sim
suas vitorias por se assim dizer em favor aos assentados, talvez uma das maiores tenha sido o assentamento
de 1.604 famílias nos 27 mil hectares do maior latifúndio do Sul do país da década de 1990 Giacomet
Marodin, este com 83 mil hectares da madeireira, após diversas ocupações nas quais os sem-terra tinham
sido retirados de forma violenta por jagunços e forças polícias.
Considerações finais
A revolta de 1957 criou as condições para fomentar a luta das terras, mesmo que se tenha implantado
no campo a modernização exploração da terra e da mão de obra, a agricultura familiar ainda predomina,
adaptando-se enfrentando alguns desafios de forma organizada. Nos anos 80, com a crise do crédito e o
excedente de mão de obra, muitos agricultores ficaram sem terra, mas foram capazes de se organizar em
torno do movimento dos trabalhadores rurais sem terra (MST).
Os conflitos da década de 1980 que envolviam as lutas pela terra, envolvendo os agricultores
familiares tiveram na revolta de 1957, o exemplo de que, para que sua existência seja garantida enquanto um
grupo social se faz essencial a luta pela terra, uma vez que seus direitos, sua cidadania só são alcançadas e
efetivadas a partir da luta dos próprios sujeitos.
A história da região sudoeste é um exemplo rico de luta, que demonstra que a luta pela terra, é uma
luta que se dá nas esferas política, social, econômica e cultural, e que o seu alcance implicaria na acarreta na
organização e mobilização, bem como na adesão social, efeito do reconhecimento da sociedade ao direito à
vida, ao trabalho e à dignidade.
As disputas pela terra no Sudoeste Paranaense,sejam a da Revolta de 1957 ou as disputas fundiárias
da década de 1980, são a prova de que a partir de movimentos sociais, da organização se pode alcançar os
resultados almejados, como o direito a terra, é possível se mudar a história por meio da superação de
desafios, e mostrar que o povo pode sim ser protagonista.
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Hipátia de Alexandria: busca filosófica e liberdade
Paola Rezende Schettert1
Resumo: Hipátia de Alexandria, filósofa do Egito romano do século V, destacou-se pela coragem de ensinar
filosofia diante da eminência avassaladora do cristianismo da época. A ousadia da filósofa, decorrente não
somente do seu paganismo, como também de sua presença feminina em um mundo masculinizado na
sociedade de modo geral e, na filosofia, de modo específico. Isso, portanto, retrata seu espírito crítico e
contra-hegemônico que se traduz em uma postura formativa de si mesmo e do outro. Influenciada,
sobretudo, pelo neoplatonismo, assume o monismo de Plotino diante do dualismo de Platão. Frente a isso,
pretendemos apresentar um pouco da vida desta filósofa e como el nos inquieta diante da vida, uma vez que a
filósofa foi, para ela, um exercício vital e constante de si mesmo. Deste modo, apresentaremos como Hipátia
assume uma posição filosófica a partir da qual passa a exercer o papel de mestra. Neste contexto, trataremos
da seguinte questão: em que consistia este papel filosófico de Hipátia quando referimo-nos à formação
humana? A liberdade de pensamento é, segundo o que defenderemos um dos maiores ganhos do processo de
formação do homem quando esta é pensada desde a filosofia hipatiana.
INTRODUÇAO
Hipátia foi uma filósofa que, como os demais filósofos do período, também transitou por outras áreas como
matemática, geometria e astronomia. Neste ensaio temos a pretensão de apresentar o pensamento de uma filósofa
que viveu em um momento histórico em que as mulheres eram absolutamente desconsideradas do meio intelectual.
Para marcar o valor e importância de seu pensamento na época, demonstraremos a relação de sua filosofia com a
filosofia de Platão e de Plotino, além de analisarmos as mudanças filosóficas no pensamento da Antiguidade Tardia
através da filósofa. Diante desse objetivo, precisaremos compreender Plotino com a ideia do nous, uno e monismo e
diferencia-lo de Platão, especialmente ao que diz respeito à sua maneira dualista de pensar o homem, o
conhecimento e a vida, de modo geral, a partir do mundo das ideias e do mundo das sensações.
A pretensão é trazer ao debate acadêmico uma filósofa que transgrediu algumas regras em um contexto
turbulento e de profundas mudanças: a ascensão do poder das ideias cristãs contra o paganismo que decaía.
Acredita-se que o tema é relevante por não haver muitos estudos sobre Hipátia de Alexandria e sua filosofia, devido
às dificuldades de fontes e, especialmente, pelo o fato da filósofa não nos ter deixado nada escrito. Porém, o desafio
é tentar traçar um breve caminho sobre a filosofia hipatiana e as influências de Platão e Plotino sob ela, como a
filósofa buscou unir tais ideias. E sem esquecer o período em que Hipátia viveu: um momento de mudanças
drásticas no pensamento, comportamento e cultura em Alexandria.
ASPECTOS HISTÓRICOS DA VIDA DE HIPATIA
Hipátia viveu em Alexandria, que era um centro cultural, político e de conhecimento durante o Império
Romano. Não se tem precisão sobre o seu nascimento e morte, Dzieslka (1995, p.80) cita que a filósofa nasceu em,
aproximadamente, em 370, porém não há fontes seguras de seu nascimento.
Dzieslka (1995) descreve Hipátia como uma mulher livre, que transitava tranquilamente por Alexandria,
cidade que resguardava a cultura greco-romana em seu Museu e Biblioteca. E dentro dessa cultura a filósofa foi
influenciada. Ao mesmo tempo, Alexandria era uma cidade que abrigava o judaísmo, paganismo e o cristianismo
em ascensão.
Acadêmica do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo, II semestre. Licenciada em História, 2011/ UPF. Orientada pelo
Professor Dr. Miguel da Silva Rossetto.
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Dessa maneira, a filósofa irá agregar e conviver com diversas religiões. Em seus ensinamentos demonstrava
conhecimento de Platão, Aristóteles, Plotino e os expunha com maestria. Era considerada grande influência política
com relações sociais renomadas dentro do Império romano:
Y por muy deseable que sea volver a examinar la vida y la muerte de Hipatia a luz de los
hechos, son muy pocas, como veremos en las fuentes, las prubas directas que han llegado
hasta nosotros. Sabemos, sin embargo, que, durante el periodo de madurez de Hipatia,
sus enseñanzas y actividades filosoficas em Alejandría atraen a um considerable número
de jóvenes, los cuales, impresionados por sus dotes espirituales e intelectuales, la
aceptam como maestra. (DZIELSKA, 1994,p. 41)
Como exposto, o que nos chegou de fontes sobre Hipátia foi muito pouco. Ela não nos deixou nada escrito.
Mas, ao longo dos tempos buscou-se sobre ela através de escritos de Sócrates Escolástico (viveu no início do séc. V
d.C ), que fora um historiador do período e em cartas entre seus discípulos. A maioria dessas cartas provém de
Sinésio de Cirene, onde se conservou 156 cartas dirigidas à Hipátia e outros colegas do mesmo círculo, porém não
se encontrou cartas da própria filósofa (Idem).
Esses seguidores de Hipátia foram pessoas influentes em Alexandria: arcebispos, o prefeito Orestes, bispo
Cirilo, Sinésio que obtém poder como arcebispo da Igreja, pessoas que administravam dentro do Império.
Segundo Cabeceira (2014), o prefeito imperial Orestes via seguidamente e consultava a filósofa sobre
questões administrativas de Alexandria. A mesma autora relata que a conversão de Orestes ao cristianismo ocorreu
por questões políticas, assim ele visava se adequar ao momento para obter maior prestígio.
Orestes, para Cabeceira (2014), fora influenciado fortemente por Hipátia e pode se supor que ela
enfraqueceu a fé cristã do político. Suposição realizada pelos oponentes de Orestes e daqueles que não viam com
bons olhos o respeito do prefeito pela filósofa. Pois, era uma afronta o prefeito de Alexandria se aconselhar com
uma mulher. Logo, devido essa abertura de Orestes e aproximação à filosofia demonstra que ele não estava
praticando somente o cristianismo. Seus oponentes poderiam supor que era uma fraqueza do prefeito ou que este
não estava convicto e expressando a sua fé de batismo.
O prefeito teve que lidar com os conflitos entre judeus e cristãos: ocorriam diversos ataques entre os
integrantes das religiões. Orestes tenta apaziguar os conflitos, já Cirilo como bispo expulsa os judeus e se aproveita
do momento de tensão. (CABECEIRA, p. 19).
O poder masculino começa a se delimitar nesse momento e para as religiões monoteístas (judaísmo e
cristianismo) a mulher era submissa ao homem. Tal idealização pode ser observada no Antigo Testamento através
de Adão e de Eva (Gn: 3, 6-16), por exemplo, onde a mulher é descrita como inferior ao homem (este era a grande
obra da criação), a mulher como responsável pela expulsão do Paraíso. Pois, foi Eva quem trouxe a maçã, ou seja,
quem trouxe o pecado e o ofereceu ao homem. Uma boa justificativa para afirmação do cristianismo: o papel de Eva
na Bíblia.
Cirilo analisava que a filósofa tinha algo subversivo que fazia as pessoas se revoltarem (GLEICHAUF, p.
20). A tensão estava posta: Hipátia sofrendo ataques pessoais de sua relação com Orestes, defensora da filosofia,
aceitava alunos de diferentes religiões e de diferentes visões de vida; assim no contexto de ascensão do cristianismo
e de seu extremismo não irá terminar muito bem ou de forma dialógica, que provavelmente Hipátia transmitia.
Sabendo que “se movía com gran naturalidade entre los hombres y no retractaba facilmente de sus
opiniones. Además, de acuerdo com el antiguo ideal de dedicar uma vida al servicio de la ciência, permanció
soltera” (Idem, p.21): é possível considerar que em um momento de transição, onde a Igreja Católica começa a ter
poder e prestígio e também entre os judeus que percebiam que as mulheres tinham a missão de ter filhos, que
Hipátia e seu posicionamento não foram bem aceitos e presumível de serem combatidos.
Sobre a morte da filósofa, Sócrates Escolástico descreve (apud Gleichauf, p. 21- 22):
“ de tal suerte que diversos exaltados, encabezados por monjes conspiraron entre todos y
atacaron a la mujer por la espalda em uma ocasión cuando regressaba a su casa. La
arrancaron de su carruaje y la arrastaron juntos a la iglesia que se conoce com el nombre
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de Kaisarion. Allí, la despojaron de sus ropas y desgarraron su cuerpo com trozos de
conchas marinas. Despedazaron a la mujer miembro a miembro y llevaron después los
pedazos a um lugar llamado Kikaron para quemarlos”
Cabeceira (2014, p. 19) traz outra versão de Gleichauf, mas semelhante da morte de Hipátia: em que João
de Nikiu, um detrator da filósofa, cita que Pedro, crente convicto e fanático:
“encontrou a pagã numa imponente cadeira, provavelmente proferindo uma conferência.
Ela foi levada por Pedro e outros cristãos até a igreja, despida e arrastada pela cidade
acarretando sua morte. Coincidentemente ao registro de Sócrates, nesta versão de João de
Nikiu, o corpo dela também foi queimado quando ela já estava morta.”
Apesar de variar um pouco, as versões da morte de Hipátia concordam em algo: fora violenta a sua morte.
Talvez, até simbólica, como maneira de exterminar uma mulher que mostrava que podia sim filosofar, ser
matemática, pensar sobre astronomia em um mundo dominado por homens. Exterminar um símbolo de que era
possível dialogar e conviver em meio aos judeus, cristãos e pagãos. E além disso, juntar o Uno de Plotino com ideais
platônicos e também, talvez, utilizar-se de ideais cristãos sobre o transcendente.
HIPÁTIA E SUA FORMAÇAO
Nossa filósofa dedicou-se a diferentes áreas do conhecimento humano. Relembrando que naquele momento
não existia a separação das áreas do conhecimento ou ciências: uma pessoa poderia ser um astrônomo, matemático,
filósofo ou cientista ao mesmo tempo. A separação das ciências será consolidada na modernidade.
É relevante ressaltar que Hipátia foi privilegiada por participar da aristocracia e esta também foi uma
cientista, sendo responsável pela criação do hidrômetro (CABECEIRA, p.11) que tinha a função de contabilizar o
volume da água.
Por esse motivo, Hipátia é mais reconhecida na área matemática, em que fora orientada e influenciada por
seu pai Teón, este que auxiliava como membro da biblioteca e Museu de Alexandria, além de ter comentado obras
de Ptolomeu e Euclides (MARTINELLI, 2016, p.78).
Dzielska (1994) em sua pesquisa aponta que para sabermos sobre a escola hipatiana foi preciso a análise das
cartas de Sinésio à Herculiano (este também aluno da filósofa) e de Sinésio à Hipátia.
Antes de adentrar e tentar elaborar um pouco da filosofia hipatiana, é significante compreender como ela
entrou em contato com Platão: através de Plotino:
Hipatia irradia conocimientos y prudência derivados del “divino” Platón y de Plotino, su
sucesor. Por intermedio de los dos, posee el don de comunicar com el mistério divino, lo
que inclina a sus alumnos a atribuirle la “santidad” que Sinesio, em todos sus escritos,
atribuye a Platón, como hacen todos los filósofos neoplatónicos del período; lo
consideram maestro indiscutible de la filosofia y del conocimiento del mundo de las
formas divinas. (DZIELSKA, 1994,
p.60)
Entende-se que Hipátia teve contato com Platão através da filosofia de Plotino, para tal ir-se-á abordar o
conhecimento do mestre Platão.
Para uma breve análise do pensamento de Platão, faremos uso do capítulo VII do livro A República, onde o
filósofo traz o famoso mito da caverna e faz essa analogia sobre a busca do conhecimento e o filosofar. Para Platão
estamos no mundo das sombras e, não conseguiremos sair dele senão buscarmos o conhecimento verdadeiro
(episteme). Assim há os que estão presos na caverna, nós como maioria, e ocorre de um prisioneiro conseguir se
libertar.
A libertação não é fácil: é um processo difícil e dolorido. A libertação pode ser interpretada como a busca do
conhecimento pelo filósofo que não é simples e fácil, demanda tempo e exercício. Platão vai delinear sobre o mundo
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dos sentidos e o mundo das ideias, e assim explicá-los através de sua alegoria. Para ele, o filósofo deve sair da
caverna através da educação e buscando em seu intelecto ideias que já existiam ali (reminiscência) para poder
acessar a verdade e a essência de tal (eidos).
O sair da caverna é se desprender e ver o que há além das sombras, ou seja, essas sombras não são a
verdade e o conhecimento em si; mas sim imagens breves e crenças que não chegam a formular uma verdade, mas
uma imagem que pertence ao mundo sensível que não é a verdade e o conhecimento encontrado através da
racionalidade.
A ascese é a educação do filósofo, sair do mundo das imagens para buscar o bem supremo que nada mais é
que a verdade no mundo das ideias e do conhecimento. Mas essa libertação não é fácil:
[...] quais seriam as consequências da libertação desses homens, depois de curados de
suas cadeias e imaginações, se as coisas se passassem do seguinte modo: vindo a ser um
deles libertado e obrigado imediatamente a levantar-se, a virar o pescoço, andar e olhar
na direção da luz, não apenas tudo isso lhe causaria dor, como também o
deslumbramento o impediria de ver os objetos cujas sombras até então ele enxergava.
Como achas que responderia a quem lhe afirmasse que tudo o que ele vira até ali não
passava de brinquedo e que somente agora, por estar mais próximo da realidade e ter o
rosto voltado para o que é mais real, é que ele via com maior exatidão; e também se o
interlocutor lhe mostrasse os objetos, à medida que fossem desfilando, e o obrigasse, à
custa de perguntas, a designá-los pelos nomes? Não te parece que ficaria atrapalhado e
imaginaria ser mais verdadeiro tudo o que ele vira até então do que quanto naquele
instante lhe mostravam? (Rep., VII, 575, 515 D)
Nessa passagem Platão remete a saída do mundo das imagens para o mundo do conhecimento: a ascensão
da alma ao inteligível. Essa busca não é fácil: ter ciência de sua ignorância, analisar que há diferentes possibilidades
de conhecimento, ver os ‘objetos’ que antes eram sombras ou borrões, ou seja, perceber que somos limitados, mas
que se pode buscar os ‘objetos’ ou o conhecimento através desse exercício proposto pelo filósofo. Para Platão:
[...] no limite extremo da região do cognoscível está a ideia do bem, dificilmente
perceptível, mas que, uma vez apreendida, impõe-nos de pronto a conclusão de que é a
causa de tudo o que é belo e direito, a geratriz, no mundo visível, da luz e do senhor da
luz, como no mundo inteligível é dominadora, fonte imediata da verdade e da inteligência,
que precisará ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria, tanto na vida pública
como na particular. (Rep., VII, 579, 517 B-C)
Para Platão o Bem supremo é o logos, o auge do conhecimento e para atingi-lo é necessário o exercício
filosófico e o distanciamento do mundo sensível, é se aproximar do inteligível. Já Hipátia não irá se distanciar
completamente do mundo sensível devido à influência posterior de Plotino. E, nisto, reside o elo de diálogo entre os
três filósofos sob o qual pretendemos situar nossa leitura sobre Hipátia.
Mas, Hipátia será inspirada por essa busca pelo Bem supremo, como propõe Platão. Gleichauf (2010, p.21)
diz que, “el cuerpo es uma atadura, de la que uno debe escapar paso a paso”. A saída da caverna em direção à luz
como é demonstrado por Platão, influenciou o pensamento de Hipátia, pois para ela, o corpo ou o material deve ser
abandonado para ocorrer a busca do mundo inteligível.. O corpo é um empecilho, uma atadura que deve ser
abandonado aos poucos de acordo com o que nossa mestra ensinava.
Em seguida, vamos analisar a filosofia de Plotino para após liga-la a Platão e a Hipátia. Reale (1990, p. 339)
elucida que Plotino organiza seu sistema em três hipóstases: o Uno, o Nous e a Alma. Ele pensa o Uno, um ser
perfeito e ilimitado, criador de tudo, infinito, que ao criar não perde nada de si. Dessa forma:
Plotino descobre o infinito na dimensão do imaterial e o caracteriza como potência
produtora ilimitada. E, consequentemente, como o ser, a substância e a inteligência
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haviam sido concebidos na filosofia clássica como finitos, Plotino coloca o seu “Uno”
acima do ser e da inteligência (Idem, p. 340).
Ou seja, há a ideia de um ser perfeito que é quem emana luz em círculos sucessivos (Idem, p. 342), aqui se
pode esboçar a ideia do divino e a valorização dessa busca por algo que está além do plano material. É a primeira
hipóstase de Plotino, o primeiro caminho: o Uno. E é o caminho final que as outras hipóstases seguem para se unir
ao Uno.
O Uno é um ser que cria os demais e assim, cria o Nous que é uma forma de espírito que se origina pelo
Uno. Não é um ser, mas um campo de ideias, um lugar que existe a ideia de matéria:
O Espírito plotiniano torna-se o Ser por excelência, o Pensamento por excelência, a Vida
por excelência. É cosmos inteligível no qual o Todo ecoa em cada Ideia e, vice-e-versa, no
qual cada Ideia se reflete no Todo. É o mundo da pura Beleza, já que a Beleza é
essencialmente forma. (Idem, p.343)
A segunda hipóstase é derivada do Uno (que se autocria, sem perder nada de si) que irá se tornar o Ser.
Já a terceira hipóstase é a Alma: a Alma seria esse último estágio, que nasce do Nous, algumas almas
permanecem no mundo das ideias como espírito. Outras dão forma aos seres.
Esse método plotiniano dá a entender que a Alma deve chegar ao Uno, mas para isso ocorrer deve-se
meditar e abdicar de bens terrenos. É aqui que aproximamos Hipátia e seus ensinamentos: a mestra tentou
apresentar essas ideias aos seus discípulos. Desapego às posses, compreensão dos mistérios da alma através da
contemplação e meditação.
Segundo Cabeceira (2014, p.31) Plotino influencia sobre a ideia de Belo, que é preciso se desapegar ao
material, ao que julgamos beleza nos corpos e nas coisas; para isso se deve voltar à alma. Aqui, é preciso de
meditação para se retornar ao intelecto, ao espírito para assim acessar o Uno elevado. A aproximação de Plotino: as
hipóstases o nous e as almas, até chegarem à hipóstase superior: o Uno a criadora, deveria ocorrer pela meditação,
voltar-se ao interior de si para chegar ao Ser criador de tudo.
Sinésio em suas cartas descreve Hipátia como bem-aventurada, segundo Dzieslka (2004, p.60), que a
mesma autora cita que é por intermédio de Platão e de Plotino que se encontram os mistérios divinos do espírito na
filosofia hipatiana.
Hipátia guia seus alunos ao encontro do divino através de ensinamentos de Platão. Assim, de acordo com
Dzielska (2004, p.61) os alunos deveriam “de un enérgico esfuerzo de la inteligência y el corazón descubran en su
fuero interno ‘el ojo enterrado dentro de nosostros’”. A mesma autora discorre que esse Olho Intelectual é como um
“filho luminoso da razão”. Essa ideia de um Olho intelectual se aproxima de Plotino, que dizia que a alma deveria se
voltar ao Nous até alcançar o Uno através da meditação.
A filosofia hipatiana busca o êxtase, pois se liberta das amarras corpóreas e da matéria, buscando o espírito,
o inteligível. Para depois se extasiar com o Uno, o mais elevado nos céus que não pertence ao mundo terreno:
De ahora en adelante esta vida verdadera estará siempre subordinada a la razón, a utilizar
los instrumentos cognitivos para buscar primero la sabiduría eterna, mas adelante para
someterse al éxtasis que eleva a otra dimensión de la existência y a la fusión directa com
el Uno. (DZIELSKA,2004, p.62)
Também Platão se imbrica com Plotino: elevar-se ao Uno através dos ensinamentos de Platão, do
inteligível: “Vivir la vida de acuerdo com la razón es la meta de los seres humanos. Busquemos esa vida; pidamos a
Dios la divina sabiduría” (Ep. 137) 2.
Marcação referente à carta de Sinésio. In:. DZIELSKA, Maria. Hipatia de Alejandría. Tradução José Luis López Muñoz. Espanha:
EPubLibre, 2004. p.63.
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Dzieslka expõe sobre a sabedoria que Hipátia buscava, uma busca pelo divino e pelos seus mistérios
deixando as ‘amarras corporais’ e da matéria para chegar ao Ser elevado:
La sabiduría que ordena al ser humano que reconozca y entienda sólo las cosas divinas y
lo empuja a buscar lo indefinible y misterioro también lo eleva por encima de la
perfección corporal. La elevación del ser humano más ala de su cuerpo significa que em su
búsqueda de Diós queda libre de afectos, vive em armonia consigo mismo, indiferente a
las cosas del mundo. Em consecuencia, el caminho por el que Hipatia conduce a sus
discípulos hacia lo que ellos llaman "la“unión com lo divino” requiere um gran esfuerzo
cognitivo y también la perfeción ética. (DZIELSKA, 2004, p.63)
Ou seja, a elevação ao Uno, a busca pela sabedoria está acima de questões corporais ou de bens. A harmonia
é buscada na interioridade para se voltar ao divino. Após essa busca em si, passa ao Nous até chegar ao Uno. Em
termos platônicos é deixar o mundo sensível para encontrar no inteligível a sabedoria. Porém, Hipátia percebe o ser
superior que se origina de Plotino.
Frente essa breve compreensão das origens da filosofia hipatiana, buscar-se-á analisar o conceito de
liberdade de pensamento. Parte-se da premissa referente ao contexto de Hipátia: disputas entre judeus e cristãos na
política, onde o judaísmo não via com bons olhos uma mulher independente e com uma posição de poder, a ameaça
que ela significava pela proximidade com o prefeito e autoridades de Alexandria.
Uma mulher que andava livremente pela cidade, com ensinamentos filosóficos e espirituais poderia ser
uma grande afronta às tradições monoteístas do Egito. E uma questão que ficou na mente da autora do presente
artigo: será que a perda ou inexistência de escritos hipatianos é ao acaso?
Nossa filósofa traz conceitos ontológicos, pensa a existência e a transcendência até o Uno. Não é uma
filósofa da physys, mas sim, de questões além do meio visível, questões de interioridade e encontro com algo
superior.
Não se pode abrir mão do desconhecimento da filósofa no meio acadêmico. E não só dela, pensamos no
Ocidente uma filosofia masculinizada, onde os principais nomes são os fundadores do que chamamos de Filosofia.
Rosa (2015) problematiza o fazer filosófico e o que é Filosofia: as mulheres não tem nenhuma contribuição em
nosso pensamento? E afirma: “Assim, subverter é transcender. Uma transcendência que se faz ao caminhar com as
mulheres e no caminhar das mulheres na Filosofia.” (Idem, p. 35)
E para Hipátia, onde reside a liberdade? Não seria na relação com a verdade, com as ideias? A liberdade
para ela não residia justamente em exercitar-se filosoficamente? Uma prática que não era comum, nem aceitável
por parte das mulheres? Esse exercício racional do espírito não é justamente o que dá ao sujeito o acesso à sua
liberdade?
Hipátia transgrediu. Talvez não fosse a intenção da filósofa, acredito que ela buscava a liberdade e o diálogo
das ideias. Buscava o conhecimento supremo através da união com o Uno através de regras de desapego ao sensível.
E a filósofa caminhava em uma linha tênue política e religiosa. Em um momento conturbado entre judeus e cristãos
principalmente, onde os segundos cresciam. E já os judeus não aceitavam uma mulher em uma posição de
destaque: como mestre, aquela que tinha acesso ao conhecimento e o transmitia à elite de Alexandria.
Também se destaca o descontentamento dos cristãos devido à política. Orestes como prefeito escutava
muito Hipátia: como uma mulher na Antiguidade Tardia conseguiu esse poder? Talvez não fosse intencional ou
talvez as condições de vida aristocrática de Hipátia privilegiaram-na. Não temos como responder muitas questões
com clareza. Mas podemos perceber a relevância do exercício filosófico e da liberdade deste.
Exercício filosófico que ocorria entre pessoas de diferentes religiões. Será que essa atitude de reunir
diferentes credos em um mesmo ambiente não pode ser considerada uma transgressão e a valorização da
liberdade? Liberdade filosófica para pessoas em posições religiosas e talvez políticas diferente. Um espaço que a
filósofa permitia e criou como lugar para possibilidades filosóficas: possibilidades de judeus, cristãos e pagãos
estudarem e filosofarem juntos; posicionamentos políticos adversos, talvez deixados de lado até certo ponto para
estudar geometria, astronomia ou filosofia.
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A busca filosófica para chegar à sabedoria divina e a extensão disso por parte de Hipátia aos alunos,
demonstra a insistência, ou o fato de se acreditar na abertura dos humanos. Acreditar que era possível uma mulher
instruída guiar homens políticos ou de cargos importantes no momento de ascensão cristã. Além de a filósofa ter
que conviver com a ideia bíblica da submissão feminina. Repensar o que é liberdade em tempos de suprimir ela, de
ditar regras e ainda existir uma mulher filósofa. Entender que mulheres foram e são seres atuantes na filosofia e
demais ciências que são espaços masculinos, que é possível conviver com essas diferenças, buscar o conhecimento e
o fornecer.
REFERÊNCIAS:
BÍBLIA. Eva e depois Adão comem do Fruto proibido. Tradução de João Ferreira de Almeida. L.C.C: Publicações
Eletrônicas. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/biblia.pdf>. Acesso em 10 de out. de 2018.
CABECEIRA, Ana Clara da Silva. A vida de Hipácia de Alexandria: representações de gênero na Antiguidade
Tardia. 2014, 43 f. Monografia (Licenciatura em Filosofia)- Universidade de Brasília, Brasília. Disponível em: <
http://bdm.unb.br/handle/10483/8067>. Acesso em 05 de out. de 2018.
DZIELSKA, Maria. Hipatia de Alejandría. Tradução José Luis López Muñoz. Espanha: EPubLibre, 2004.
Disponível em: < https://pt.scribd.com/document/349532925/Dzielska-Maria-Hipatia-De-Alejandria-pdf>.
Acesso em 03 de jun. de 2018.
GLEICHAUF, Ingebord. Mujeres filósofas em la historia: desde la Antigüedade hasta el siglo XXI. Barcelona:
Icaria Editorial, 2010.
LIMA, Fabiano Albuquerque de. Conversão: o retorno da alma ao Uno no pensamento de Plotino. Disponível em:
<https://www.webartigos.com/artigos/conversao-o-retorno-da-alma-ao-uno-no-pensamento-de-plotino/106931>.
Acesso em 15 de out.de 2018.
MARTINELLI, Águeda Vieira. Hipátia de Alexandria: por uma história não idealizada. In: PACHECO, Juliana
(Org.). Filósofas: a presença das mulheres na filosofia [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Editora Fi, 2016.
Disponível em: <http://www.editorafi.org>. Acesso em 01 de maio de 2018.
PLATÃO. A República. Tradução Carlos Alberto Nunes; editor convidado Plínio Martins Filho; organização
Benedito Nunes & Vitor Sales Pinheiro; texto grego John Burnet. 4ª edição revisada e bilíngue. Belém: Ed. UFPA,
2016.
REALE, Giovanni. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990.
ROSA, Graziela Rinaldi da. Transgressões, subversões e as margens do pensamento filosófico. In: PACHECO,
Juliana (Org.). Mulher & Filosofia: As relações de gênero no pensamento filosófico [recurso eletrônico]. Porto
Alegre: Editora Fi, 2015. Disponível em: <http://www.editorafi.org>. Acesso em 04 de junho de 2018.
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A colônia Getúlio Vargas/RS através da análise fotográfica
Patricia Lilian Mokfa1
Resumo: Abordar o processo de imigração e colonização a partir das imagens fotográficas têm revelado
particularidades sobre a representação de/e sobre os núcleos coloniais. No presente estudo, analisam-se as
imagens fotográficas produzidas sobre o colono/ imigrante, na qual, foi a mão de obra na construção da
colônia de Getúlio Vargas, situada no norte do Rio Grande do Sul, no período de 1908 a 1934. Justifica-se o
recorte temático dado a sua relevância e ausência de estudos nessa linha. Partindo do conceito de
representação de Chartier (1991), objetiva-se perceber como os fotógrafos representaram a formação da
colônia de Getúlio Vargas, no que diz respeito aos espaços fotografados, a instalação dos colonos em seus
lotes, a correlação entre colonização e ferrovia, a organização do espaço urbano da colônia no início do século
XX; e contribuir para o conjunto de estudos historiográficos sobre a história social.
Palavras-chave: Colônia Getúlio Vargas; colono/imigrante; análise fotográfica
INTRODUÇÃO
As cidades, assim como as pessoas, têm personalidade. Tem seu jeito próprio, qualidades,
defeitos, características que distinguem umas das outras. E tem uma história, formada
pela soma das histórias de todos os que ali vivem ou viveram. Uma parte desta história vai
sendo contada, escrita e incorporada à cultura da população. Outra parte fica impressa no
espaço urbano e é contada pelos próprios recantos, pelas ruas, pelas construções. Do
prédio mais antigo ao mais recente, as construções testemunham a passagem dos homens
pelo lugar, mostram como vivem e o que são capazes de construir. (DETONI, M. G., 1989,
p. 7)
Este artigo tem por objetivo analisar as imagens fotográficas do período de 1908 a 1934 e identificar
as representações construídas sobre a mão de obra do colono na construção da colônia de Getúlio Vargas,
situada no norte do Rio Grande do Sul, mais especificamente no que concerne à configuração de seu espaço e
seus sujeitos.
Patricia Lilian Mokfa, graduada em História pela Universidade de Passo Fundo, Mestranda PPGH/UPF Bolsista FUPF 50%, e-mail:
patriciamokfa@yahoo.com
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Mapa 1: Cidade de Getúlio Vargas localizada no norte do Rio Grande do Sul, que será o palco de estudo.
Fonte: https://wikitravel.org/pt/Rio_Grande_do_Sul
Durante esse período de renovação, historiadores como Jacques Le Goff e Marc Bloch irão expandir
em muito a noção de documento e dos objetos da história. Como a máxima de Marc Bloch: “A diversidade
dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o
que toca pode e deve informar-nos sobre ele” (1941-1942, p. 63).
O conjunto de imagens foi constituído por vários fotógrafos, muitos dos quais não identificados, que
registraram a formação e o crescimento dessa colônia. O conjunto fotográfico, composto por cerca de 200
imagens de temas os mais diversos, está no acervo sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico de
Getúlio Vargas (IHGGV). Logo, essas fotografias deixaram de circular e passaram a integrar uma coleção de
uma instituição privada,
para “participarem de um intercâmbio de um mundo visível e invisível” (POMIAN, 1984, p.66)
As primeiras fotografias feitas foram por um fotografo não identificado que registrou 45 imagens a
partir de 1908 a 1913 início da colonização, que cruzou pela então sede da Colônia Erechim (atual Getúlio
Vargas), seguindo em direção a Paiol Grande e Marcelino Ramos. Após, ele prosseguiu viagem a Santa
Catarina e ao Paraná doando essas imagens para o arquivo de Erechim RS.
Como um exemplo desse circuito de produção e consumo da imagem, temos a pequena colônia de
Getúlio Vargas, inicialmente registrada nas imagens – feitas pelos primeiros fotógrafos itinerantes – de
retratos de famílias em suas propriedades, imagens estas divulgadas nos mais diferentes suportes.
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2. Getúlio Vargas no rastro de sua história
Inicialmente chamado de Paiol Grande e, depois, sucessivamente, de Boa Vista, Boa Vista de
Erechim, José Bonifácio e, dividindo então Getúlio Vargas e Erechim como muitos outros povoados do
Brasil, Getúlio Vargas surgiu à margem de uma estrada de ferro. No caso, a estrada de ferro que ligava o Rio
Grande do Sul a São Paulo.
A fotografia é uma importante fonte histórica para o estudo da imigração e da colonização. Para Ana
Maria Mauad (2004), o historiador deve partir do pressuposto de que a fotografia é um testemunho válido,
não importando se o registro foi feito para documentar um fato ou representar um estilo de vida:
As fotografias guardam, na sua superfície sensível, a marca indefectível do passado que a
produziu e consumiu. Um dia já foram memória presente, próximas àqueles que as
possuíam, as guardavam e colecionavam como relíquias, lembranças ou testemunhos. No
processo de constante vir a ser recuperam o seu caráter de presença num novo lugar, num
outro contexto e com uma função diferente. Da mesma forma que seus antigos donos, o
historiador entra em contato com este presente/ passado e o investe de sentido, um
sentido diverso daquele dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio de ser
estudado. (MAUAD, 2004, p. 26).
Foi na primeira metade do século XX que a utilização da máquina fotográfica tornou-se popular.
Para além da crescente e veloz evolução tecnológica que a acompanhou, a fotografia passou a figurar como
um discurso da verdade, importante documento comprobatório de um acontecimento. A fim de conhecer as
diferentes sociedades e sua organização, a fotografia consiste em uma importante fonte de pesquisa.
Para Charles Monteiro,
A fotografia é um recorte do real. Primeiramente, um corte no fluxo tempo real, o
congelamento de um instante separado da sucessão dos acontecimentos. Em segundo
lugar, ele é um fragmento escolhido pelo fotógrafo pela seleção de tema, dos sujeitos, do
entorno, do enquadramento, do sentido, da luminosidade, da forma, etc. Em terceiro
lugar, transforma o tridimensional em bidimensional, reduz a gama das cores e simula a
profundidade do campo de visão. Ela é também uma convenção do olhar herdada do
Renascimento e da pintura, que é necessário aprender para ver. A câmara fotográfica
capta mais e menos do que o nosso olho pode ver. (MONTEIRO, 2006, p.12).
Segundo Borges (2005, p. 80), “seus discursos [da fotografia] sinalizam lógicas diferenciadas de
organização do pensamento, de ordenação dos espaços sociais e de medição dos tempos culturais”. Já Susan
Sontag destaca que:
Por meio das fotos, acompanhamos da maneira mais íntima e perturbadora o modo como
as pessoas envelhecem. Olhar para uma velha foto de si mesmo, de alguém que
conhecemos ou de alguma figura pública muito fotografada é sentir, antes de tudo: como
eu (ela, ele) era muito mais jovem na época. A fotografia é o inventário da mortalidade.
Basta, agora, um toque do dedo para dotar um momento de uma ironia póstuma. As fotos
mostram as pessoas incontestavelmente presentes num lugar e numa época específica de
suas vidas; agrupam pessoas e coisas que, um instante depois, se dispersaram, mudaram,
seguiram o curso de seus destinos independentes. (SONTAG, 2004, p. 43).
A cultura dos povos, manifestada por seus costumes, habitação, monumentos, mitos e religiões,
passou a ser gradativamente documentada pela câmara fotográfica. Paisagens urbanas e rurais, obras de
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implantação de estradas de ferro, conflitos armados e expedições científicas passaram a ter seu lugar diante
das máquinas fotográficas. Seja a fotografia um tipo de arte ou de pura técnica, surge no debate a questão de
seu caráter documental: o homem passa a ter uma outra opção de acesso a outras realidades que antes lhe
eram transmitidas através de relatos escritos, em sua maioria (KOSSOY, 2001).
Toda fotografia traz consigo uma história. É um resíduo, um vestígio do passado. Contudo, enquanto
tecnologia de registros fotográficos de seu tempo, no qual a técnica e a ciência eram sagradas, foi de certa
forma, sacralizado. As fotografias passaram a ser consideradas, enquanto registros instantâneos da realidade,
como “testemunhos da verdade” KOSSOY, 1993, p. 13), o que atribuiu a elas um certo estatuto de
credibilidade, tornando-a um espelho fiel dos fatos.
Observando-se tais questões, uma fotografia produzida no passado também pode ser considerada
uma espécie de monumento, pois, como destaca (LE GOFF 1984, p. 103), todo documento reflete “o esforço
das sociedades históricas para impor ao futuro, voluntária ou involuntariamente determinada imagem de si
próprias”. Dessa forma, podemos dizer que toda imagem fotográfica tem atrás de si uma história. Se,
enquanto documento, ela é um instrumento de fixação da memória e, nesse sentido, mostra-nos como eram
os objetos, os rostos, as ruas, o mundo, ao mesmo tempo, enquanto representação, ela nos faz imaginar o não
manifesto, a emoção e a ideologia do fotógrafo.
A fotografia, assim compreendida, deixa de ser imagem retida no tempo para se tornar uma
mensagem que se processa através do tempo, tanto como imagem/documento quanto como
imagem/monumento. Sua importância é ressaltada por Le Goff (2003), o qual a coloca entre as
manifestações mais significativas da memória coletiva. A fotografia revolucionou a memória: multiplicou e a
democratizou, dando uma precisão e uma “verdade” visual nunca antes atingida, permitindo, assim,
preservar a memória do tempo e da evolução cronológica.
3
Origem do colono/imigrante e emancipação de Getúlio Vargas/RS
Segundo Silva (2011, p.136) faz a seguinte consideração sobre o “colono”: “Ser colono, sob a ótica dos
governantes, era a equivalente, a ser pequeno proprietário agrícola, fixado a terra, respeitador das leis e das
autoridades e, sobretudo, ser um produtor de gêneros voltados a 'avolumar as rendas do Estado’”. E para
Dorigon e Renk (2013, p. 13): “A palavra ‘Colono’ foi uma categoria administrativa estabelecida pelas
autoridades do Império a esses imigrantes e assimilada pelos agricultores como sinal positivo na construção
da identidade”.
Era a propriedade de terra que o colono estava interessado. Um dos objetivos era buscar “melhorar
de vida” e ter a perspectiva e a possibilidade de “dar um conforto à família”. Atrair o colono em comprar as
terras e explorar madeira foi uma prática comum entre os colonizadores. O colono tinha o papel de preencher
o “vazio demográfico na região” e trazer o desenvolvimento esperado pelos governantes. (RADIN, 2012, p.
77) salienta: “A propriedade da terra representava acima de tudo a grande possibilidade de dar o conforto à
família, de formar uma comunidade de fé, também, espaço da solidariedade no enfrentamento das
dificuldades típicas desse tipo de colonização.”
Com a colonização Getuliense ali se instalaram imigrantes europeus e/ou descendes. Destes,
predominavam os de origem italiana, que chegaram na colônia por volta de 1910 através da ferrovia, ao longo
de vários anos, modificaram a fisionomia social da região com seus valores espirituais, culturais e materiais.
Grande parte dos imigrantes, não só os italianos, como citei a cima vinham em busca de uma vida melhor
para si e para suas gerações. Ainda hoje é possível perceber interferências dos imigrantes oriundos desses
países, especialmente na arquitetura e na culinária da cidade, alguns germânicos, poloneses, alemães e
judaicos. Praticavam costumes e hábitos culturais mais de origem europeia; falavam e ensinavam aos seus
filhos a língua de origem.
Radin, (2009) utiliza a categoria “ocupação” para designar o período anterior à colonização,
condizente ao espaço do indígena e do caboclo, “colonização” para designar o período decorrente à
colonização, onde a terra passa a ser comercializada pelas companhias colonizadoras em pequenos lotes e
apropriação. Grandes extensões de terras foram legalizadas pelo sistema de posse tendo por base a Lei de
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Terra de 1850. No final do século XIX e início do século XX, tinha-se o entendimento de que seria legítimo
“tornar para si aquilo que era considerado abandono, no caso as terras”.
O novo município reivindicou o tradicional nome de Erechim junto ao governo do estado, justificando o valor
sentimental por ter sido nesse local a primeira sede da colônia. O pedido, contudo, foi negado, sendo sugerido o nome de
Getúlio Vargas:
Em 18 de dezembro de 1934, finalmente, tornou-se realidade a emancipação do povoado que se
chamava colônia Erechim, pelo decreto estadual nº 5788. O distrito de Sananduva, pertencente a
Lagoa Vermelha, foi excluído do território ao emancipar-se e o território do novo município ficou
constituído pelo 2º e 4º distritos de Erechim –Povoado Erechim e Erebango – e pelo distrito de Sete
de Setembro, território do município de Passo Fundo e que, mais tarde, passaria a pertencer a
Tapejara, quando este se emancipo. (OLIVEIRA; FORLIN; CRENDENE, 1984, p. 36)
Desde o princípio de sua história conhecida, a cidade de Getúlio Vargas/RS foi sendo transformada
principalmente através da ação dos imigrantes/migrantes. Naquele momento em que todos estavam mais
preocupados em sobreviver, não era comum produzir registros com o intuito de guardar documentos
históricos para a posteridade. No entanto, já havia certa cultura da imagem – as atividades na nova terra,
mesmo que em pequena escala e não disseminadas, foram retratadas por lentes fotográficas. Nesse sentido,
se uma das funções da fotografia é a de aproximação com o real, estas imagens trazem o efeito de sentido de
que possuem uma capacidade especular.
Colonização e ferrovia estavam fortemente interligadas nesse processo e no discurso do governo,
representando ambas a modernização e o progresso. Podemos acompanhar a trajetória da apropriação de
terras, atraindo imigrantes e colonos e colocando em prática o processo predeterminado por agentes políticos
e econômicos do Estado, que previa tirar de cena o índio e o caboclo. A ferrovia deu sustentação ao projeto de
colonização, como meio de transporte de pessoas, além de servir de fronteira e de via para escoar a produção;
portanto, teve o papel de animar a vida econômica e de proteger a fronteira.
Referindo-se à formação de Getúlio Vargas, Ângelo Fabris destaca que:
Em 1911, com a chegada do trem e a inauguração da Estação Férrea Erechim, as ligações
para a capital, para as colônias velhas e para os outros estados foram estabelecidas. Com o
trem vieram mais imigrantes, na maioria italianos, alemães e poloneses, que formaram a
base da população e da força de trabalho, possibilitando o maior desenvolvimento da
região. A partir de 1924, com o apoio da comunidade, um grupo de moradores levantou a
bandeira de emancipação e, em 18 de dezembro de 1934, o governo federal decretou a
criação do município de Getúlio Vargas. Ficaram ligados ao município os distritos de
Erebango, Ipiranga, Floriano Peixoto e o bairro Estação, agora municípios que integram a
região. (FABRIS, 2014, p. 6)
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Figura 1: Estação Erechim (1910) - hoje Estação.
Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas. Fotógrafo não identificado.
Os imigrantes europeus chegaram à colônia de Erechim, a partir de 1910. Encontraram uma
infraestrutura em fase de execução, um órgão oficial de colonização em atividade a seu benefício e uma
ferrovia, além da hospitalidade e do espírito de ajuda de compatriotas aclimatados e experientes, que falavam
os mesmos idiomas.
Nesse contexto de 1910, o trem representa a modernidade. Já a estação de trem figura como um
ponto privilegiado para a tomada das fotografias da colônia, como podemos observar na figura 1, que traz um
retrato da estação de trem e o seu movimento, representado pelos freteiros, responsáveis pelo transporte de
mercadorias e pessoas que chegavam e partiam.
Além da localização da Estação Férrea, a figura 1 e 2 também permite analisar homens com boas
vestimentas e com o mínimo de objetos e malas; a charrete e a o cavalo, símbolos de status social, completam
na foto o desejo de ascensão social e econômica. O local na figura 1 parece pertencer à zona rural, em função
da terra batida, das casas de maneira ao fundo e da mata com bastante árvores.
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Figura 2: Imigrantes e migrantes chegam pela ferrovia na cidade de Estação (1910).
Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas.
Fotógrafo não identificado.
Na figura 2, imigrantes chegam pela ferrovia na cidade de Estação, transportados para a sede da
colônia em 1910. Percebem-se homens com boas vestimentas, acompanhados de crianças e sem malas e
objetos particulares.
Ao chegarem, os colonos europeus e os imigrantes das colônias velhas encontraram
aqueles antigos moradores, com suas capoeiras (áreas desmatadas), roças (plantações de
milho), mandioca, feijão), extraindo e cancheando erva-mate. Geralmente possuíam
pequenas criações de animais domésticos (porcos, aves, vaca leiteira, terneiros), bois e
cavalos, pois os únicos meios de transporte existentes eram o lombo, o burro e a
carrocinha. Em sua maioria, eram descendentes de paulistas ou vindos de outros lugares.
Dentre eles, havia também alguns descendentes de alemães e italianos. As famílias que
chegavam iam se instalando um tanto desordenadamente na área da Praça Júlio de
Castilhos e à frente do quadro ferroviário (CHIAPARINI, 2012, p. 43).
Vários problemas surgiram no início das atividades de assentamentos coloniais de imigrantes.
Dentre os mais citados compreendem a viagem realizada dos grandes centros até os lotes coloniais devido à
dificuldade que apresentavam os meios de transportes frente à condição geográfica. O imigrante procedia de
uma realidade diferenciada do meio rural e urbano. Em geral, vivia em seu habitat rural relativamente
urbanizado, inserido no contexto europeu. Ao emigrar para o Rio Grande do Sul, antes da I Guerra Mundial,
estradas, ferrovias e meios de transporte variados já eram comuns em diversas regiões fora do Brasil.
A viagem rumo à nova propriedade iniciava com o carregamento das malas nas mulas ou nas costas.
Reservavam-se cavalos mansos para as mulheres e as crianças mais novas. Geralmente, os homens e os filhos
seguiam a pé ou revezavam-se na maioria dos animais. Os imigrantes seguiam a viagem em fila indiana; à
frente, ia o responsável pelo grupo, acompanhado de funcionário da empresa colonizadora. Parava-se para
almoçar e para o descanso de homens e animais. As regiões designadas, como assinalado, raramente havia
estradas como as conhecidas em solo, sendo o caminho realizado por picadas abertas na mata. Não raro,
precisava-se abrir o caminho com auxílio do facão e expressivo esforço físico.
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Figura3: Imigrantes e migrantes chegam na área da mata, para divisão de lotes (1910).
Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas(IHGVV). Fotógrafo não identificado.
Com a observação de detalhes presentes em fotografias como essas, pode-se entender melhor as
lembranças dos que viveram naquela época. Era preciso organizar e dividir os lotes, derrubar árvores para
então cortar as toras para a construção de abrigos e abrir caminhos em meio à mata fechada - e esta tarefa
exigia força masculina. Mulheres e crianças viriam depois para a Colônia, quando houvesse uma pequena
infra-estrutura para recebê-los. Naquele instante congelado, as toras começavam a ser organizadas, após a
limpeza dos troncos e a abertura de uma clareira. Ao fundo, nota-se que a floresta era densa, e que uma das
espécies que a constituíam era a Araucária, ou pinheiro-do-Paraná. Homens protegidos por roupas
compridas, chapéus e botas para enfrentar as intempéries do clima, insetos e animais da floresta. O trabalho
era braçal, com instrumentos como foices e enxadas.
A acomodação dos imigrantes nas hospedarias e barracões, enquanto não fossem destinados a seus
lotes também trouxe dificuldades aos imigrantes e Empresas Colonizadoras. Era difícil acomodar número tão
grande de pessoas, com costumes e dialetos diferentes, em pouco espaço. A título de exemplo, podem-se citar
as Colônias de Ijuí e Boa Vista do Erechim, onde os imigrantes ficavam dispostos em um barracão, esperando
a designação dos lotes, nem sempre considerando suas diferenças linguísticas e condições físicas - quente e
mal ventilados -. Alemães, italianos, judeus e poloneses dividiam o mesmo espaço.
No momento da instalação no lote colonial, a edificação da residência estava entre as mais
importantes para início do empreendimento. Em geral, foi o colono que edificou sua casa, utilizando-se de
material encontrado na propriedade: barro, madeira, palha e pedra. Os pregos, algumas vezes utilizados
pelos imigrantes alemães e italianos, não foram utilizados na arquitetura polonesa. Os poloneses utilizaram
sobretudo o sistema de encaixes de madeira - blocausse -, usado na Polônia durante vários séculos, sobretudo
na área rural.
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Figura 4: Grupo de imigrantes e migrantes prontos para a construção de casas (1910).
Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas(IHGGV). Fotógrafo não identificado.
Na figura 4, grupo de colonos que faziam mutirões de homens, com ferramentas em mãos, prontos
para dominar a mata, sendo que utilizavam a sua força braçal e animal (carro de boi – transporte de pedras,
pedregulhos, terra), ajudavam manter trechos mais próximos de sua moradia. Os interesses coletivos
(escolas, conservação de estradas, comercialização de produtos) se resolviam mais dentro da própria
comunidade local (Linhas). A recuperação de estradas se dava através de mutirões, uma vez por ano.
Os imigrantes não eram exigentes no que se referia à moradia, já que a situação habitacional era
difícil. “As casas eram pequenas e mal ventiladas. Antes de emigrarem, muitos camponeses moravam em
casas locadas. Muitas casas - chalupa - eram desconfortáveis, sem instalações sanitárias, assemelhando-se às
choças medievais.” (TEMPSKI, 1971; p.309-313).
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Figuras 3 e 5: Início do povoamento em Erechim, atual Getúlio Vargas (1913). Rua 3, Av. Borges de Medeiros
nos primórdios da colonização (1913).
Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas.
Fotógrafo não identificado.
Nas figuras 3 e 5, percebe-se o início do povoamento em Erechim, atual Getúlio Vargas, em 1913, na
Rua 3, Av. Borges de Medeiros, nos primórdios da colonização. Trata-se de uma representação do espaço
urbano, com poucas ruas abertas, sem postes de luz, algumas casas pequenas feitas de madeira e outras um
pouco maiores com bastantes janelas e portas grandes; uns dos meios de transporte, que aparece na imagem,
era a charrete; a rua era de terra batida.
Animais também eram criados, em pequena quantidade, tais como vaca, cachorro, galinhas, porcos,
para a subsistência da família e dos vizinhos próximos, que compravam leite, galinhas, ovos, banha de porco
e uma parte da carne. As famílias também faziam trocas de alimentos, pois, no início da colonização, não
havia como guardar carnes por muito tempo, de modo que estas eram repartidas entre os vizinhos.
Os colonos desenvolviam a agricultura familiar, plantavam e criavam o que precisavam à sua
manutenção, e sobras serviam para vender e obter dinheiro. Acreditavam que a cada ano construiriam dias
melhores com base na vontade, saúde e recursos que dispunham.
Para Chartier, o conceito de representação é a “pedra angular de uma abordagem a nível da história
cultural”, pois permite articular três modalidades de relação com o mundo social:
Primeiramente, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações
intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída
pelos diferentes grupos; em seguida, as práticas que visam fazer reconhecer uma
identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar
simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e
objetivadas graças às quais uns “representantes” (instâncias coletivas ou pessoas)
marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade
(CHARTIER, 1990, p. 23).
Assim, a história cultural se definiria, por um lado, como “a análise do trabalho de representação,
isto é, das classificações e exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e
conceituais próprias de um tempo ou de um espaço” (CHARTIER, 1990, p. 27), e, por outro, “como o estudo
dos processos com os quais se constrói um sentido. Rompendo com a antiga ideia que dotava os textos e as
obras de um sentido intrínseco, absoluto, único — o qual a crítica tinha a obrigação de identificar — dirige-se
às práticas que pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo” (CHARTIER, 1990, p. 27).
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Conclusão
Ao analisar as imagens, não há como ficar passivos. Elas incitam nossas lembranças, nos fazem
pensar sobre o passado, a partir do dado de materialidade que persiste na ideia retratada2. Qual é, pois, a
natureza desses registros? Qual é o papel do fotógrafo? Quais são as imagens que compõem o
colono/imigrante como construtor da cidade?
As respostas a tais indagações supõem o exame das fotografias e o contexto das publicações onde
estão inseridas.
O fotógrafo, na maioria das vezes, sequer era identificado nas fotos, o que sugere outras reflexões
acerca da autoria e do estatuto da fotografia para aquela coletividade naquele contexto.
Desse modo, as fotografias caracterizam, num primeiro momento, a chegada dos
imigrantes/migrantes após o desenvolvimento dessa cidade a partir da mão de obra do colono em querer
colonizar o local. As fotografias enquanto recursos imagéticos nos permitem analisar a visibilidade e
invisibilidade dos fenômenos sociais revelando uma modalidade de olhar o trabalho do colono para desfazer
a mata e construir a cidade atual a partir das lentes do fotógrafo e da sociedade daquele momento.
Para Kevin Lynch,
A cidade é uma construção no espaço, mas tão vasta que os nossos sentidos deixam de
alcançar o espaço quando este existe mais além. Apreendemos, por isso, a cidade por
partes e nesse processo a nossa mente retém as memórias e os significados mais
importantes, que mais nos marcam ao longo da vida, de algum modo associando-os ao
espaço que suporta fisicamente esses acontecimentos; estabelecem-se assim relações com
partes da cidade, as quais se transformam nas mais significantes. (LYNCH, 1997, p. 11).
Assim, a imagem urbana colonial cumpre a tarefa de demarcar e assinalar o espaço – lugares e
geografia. Deste modo, ela é pontual e traça o percurso da cidade; ademais, organiza a cidade, torna-a
simbólica e representativamente eficiente. O seu reconhecimento supõe a percepção coletiva que a consagra e
que faz circular valores, referências e identidades urbanas.
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Processos crimes de infanticídio:
uma proposta de abordagem historiográfica
Paula Ribeiro Ciochetto1
Resumo: Pretende-se nesta comunicação, apontar algumas considerações acerca do uso e interpretação dos
processos crimes de infanticídio, ocorridos no Rio Grande do Sul, entre os anos de 1891 e 1922. Os processos
judiciais se configuram como um lugar de busca pela verdade e seus efeitos, neles estão contidas as falas dos
homens da lei, testemunhas e rés, evidenciando relações de poder, assim como aspectos do cotidiano destas
pessoas. Sendo assim, serão apresentadas algumas possibilidades de abordagem historiográfica.
Palavras-chaves: Infanticídio. Verdade. Poder.
Esta comunicação é parte das reflexões presentes na dissertação “Um crime que salva a vergonha:
moralidade e medicina legal nos processos de infanticídio (Rio Grande do Sul, 1891-1922)”, que propôs
através da análise de 15 processos crimes de infanticídio, identificar com o saber médico legal investigou o
corpo das mulheres acusadas de terem cometido tal ato criminoso. Procurando perceber a construção de uma
imagem e de um discurso que poderia, muitas vezes, influenciar no parecer final do processo, culminando na
absolvição ou condenação da ré. Para tanto, foram analisados também, os elementos que construíram o
discurso jurídico acerca da moralidade feminina.
As fontes documentais estão disponíveis no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS)
e no Arquivo Histórico de Santa Maria (AHSM). Foi possível chegar até elas, através de um levantamento
documental realizado de forma aleatória, procurando os processos que tinham mulheres como rés. Ao final
da pesquisa totalizou-se 26 processos crimes de infanticídio, cometidos entre os anos de 1891 a 1951. Porém,
na dissertação foram utilizadas 15 deles, referentes aos anos de 1891 a 1922, devido ao contexto histórico
abordado. Estas fontes são provenientes de 10 cidades daquele estado, e dentre elas apenas uma encontra-se
preservada no AHSM, as demais localizam-se no APERS.
O Rio Grande do Sul foi o cenário da análise, sendo entendido como um espaço que proporciona a
problematização dos objetivos propostos. O período de consolidação da República possibilitou a elaboração
de uma série de padrões morais, que tinham como uma de suas finalidades a adequação das condutas dos
populares dentro dos padrões aceitos por alguns membros da sociedade. Este estado, após a Proclamação da
República, diferente do que ocorreu com o restante do país, que tornou-se liberal, adotou o Positivismo, que
neste território foi reelaborado por Júlio de Castilhos.
O Positivismo se caracterizava como um sistema de ideias elaboradas no século XIX, pelo filósofo
francês Augusto Comte. Segundo Weber, “idealizou-se uma filosofia baseada na ciência, para tentar
reorganizar a sociedade em uma proposta político-religiosa, em que as coisas deveriam estar em perfeita
ordem para a orientação ética da vida moral”.2
Nos processos crimes temos não apenas a fala dos advogados, promotores, juízes, mas também,
principalmente a partir de 1907, a incorporação intensa do saber médico ao judiciário brasileiro, com o
intuito de instrumentalizá-lo e conferir-lhe um aparato técnico-científico.3 Os médicos legistas tornaram-se
integrantes do cotidiano judiciário, atuando nos exames de flagrantes, e nos processos em que seus pareceres
1Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (PPGH/UFSM), Mestra em História
pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH/UFSC). paulaciochetto@yahoo.com.br.
2 WEBER, Beatriz Teixeira. Positivismo e ciência médica no Rio Grande do Sul: a faculdade de Medicina de Porto Alegre. História,
Ciências
e
Saúde
–
Manguinhos.
Vol.5.
n.03.
Rio
de
Janeiro.
Nov.
1998/Fev.1999.
Disponível:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010459701999000100003&lang=pt >. Acesso em: 17 Jul. 2012, p. 34.
3 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.
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clínicos eram fundamentais para a construção da “verdade” dos crimes, investigando corpos de réus, rés e
vítimas.
Considerando os objetivos e delimitações presentes na referida dissertação, foi possível, pensar as
fontes que foram utilizadas para a análise historiográfica. Assim, serão feitos alguns apontamentos acerca
dos processos crimes enquanto fonte histórica, pensando a relação entre a verdade, a história, poder e
sujeitos.
Um olhar sobre as fontes: verdade, poder, sujeitos
A historiadora Michele Perrot afirma que o infanticídio, principalmente de meninas “é uma prática
muito antiga, que perdura maciçamente na Índia e, principalmente na China, por causa da delimitação a um
único filho”.4 Nota-se que no Brasil, este cenário por vezes se repetiu, e ainda se repete. Algumas mulheres
continuam a cometer crimes contra a vida de seus filhos, o que pode estar relacionado às tradições culturais,
econômicas, fatores psicológicos e pressões sociais.
Na sociedade em que vivemos, essas práticas são condenadas, pois muitos consideram que há vida
desde o momento da concepção. E assim, o historiador Adriano Prosperi nos fala:
O gesto da mãe que mata o filho torna o episódio desconcertante e ameaçador.
Aconteceu, pode voltar a acontecer e, de fato, continua a acontecer; e, a cada vez
que acontece, o gesto sempre desperta reações profundas porque rompe o sentido
de continuidade da vida e atinge a raiz da esperança como projeção da espécie no
futuro.5
Entende-se que essas práticas continuam acontecendo não apenas no Brasil, mas no mundo, e que são
julgadas de diferentes maneiras, conforme sua temporalidade e espacialidade. Em alguns lugares são aceitas,
em outros não são oficiais, mas estão presentes entre a população e nas práticas clandestinas.
Deste modo, o historiador que tem as fontes criminais como seu objeto de análise, deve considerar
que: “a partir do momento em que um comportamento é definido como crime e, enquanto tal, é proibido e
punido, torna-se possível estudar a repetição do próprio crime, as variações das leis que lhe dizem respeito,
as modificações na percepção social e no juízo aplicado a ele”. 6
Ainda segundo Prosperi, “modificam-se as palavras que indicam os crimes e, com elas, [...],
modificam-se também os próprios crimes”,7 assim como as versões que se podem construir sobre eles. Nos
processos crimes, a versão final constitui-se como verdade, uma versão verdadeira elaborada pela Justiça.
A busca pela verdade nesses processos, segundo Zenha, 8 se distingue da ação do ato criminoso, pois
este não nos é possível de alcançar, e o considerado verídico, se constitui das versões apresentadas no
documento pelos homens da lei, como advogados e juízes. O fato nos escapa, ficou perdido no tempo, no que
Prosperi afirma ser
[...] dois fios distintos que se entrelaçam em proporções e formas diferentes em
cada vida: o fio cinzento daquilo que se repete a cada geração e que se expressa
como ‘nada de novo de baixo do sol’, e aquele outro fio que apresenta uma única
vez, [...], o tom inconfundível de uma cor destinada a nunca mais reaparecer.9
PERROT, Michele. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007, p. 98.
PROSPERI, Adriano. Dar a alma: a história de um infanticídio. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 26.
6 Ibid, p. 29.
7 PROSPERI, 2010.
8 ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da pobreza. Revista Brasileira de História. v. 5, nº10. São Paulo: Marco Zero,
1985.
9 PROSPERI, op. cit., p. 28.
4
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O “fio cinzento”, do qual ele nos fala, se relaciona aqui, a repetição das práticas infanticidas por
mulheres de diferentes países e épocas; e o “outro fio”, é o ato em si, perdido no tempo.
Os processos criminais trazem os indícios do que pode ter ocorrido, mas isto não é necessariamente o
objetivo principal buscado pelo historiador que faz uso desta fonte documental. Ao lermos as falas contidas
nessa documentação, podemos ter acesso, em parte, a sociedade local, aos códigos de valores, conflitos,
padrões de moralidade; considerando que essas falas agiam de acordo com a intenção de quem as proferia,
em um determinado tempo e entendimento, poderiam influenciar ou não na sentença dos processos.
O historiador Carlo Guinzburg nos fala que os autos processuais “diretamente acessíveis ou [...]
indiretamente, podem ser comparados à documentação de primeira mão recolhida por um antropólogo em
seu trabalho de campo e deixada para historiadores futuros”. 10 Na busca pela verdade do que teria
acontecido, os juristas elaboraram uma série de questões para o interrogatório aplicado aos réus e
testemunhas; as respostas, sem que houvesse esta intenção, acabam por contribuir com o trabalho do
historiador, que se aproxima da fonte após anos de sua elaboração, e procura captar aspectos dos processos
sociais e do cotidiano através de sua análise, e dos dados involuntários nela contidos. 11
Destacamos que ainda que historiador e juiz se aproximem na medida em que ambos, de certo modo,
possuem o mesmo objeto como alvo de suas investigações, seus olhares se distanciam, de modo que para um,
a busca pela “verdade” é seu objetivo principal, e as provas adquiridas ao longo dos autos corroboram para
isto, culminando na absolvição ou condenação do réu, assim a “margem de incerteza tem um significado
puramente negativo”.12 Para o historiador a margem de incerteza se configura em suas pesquisas deste
sempre, pois o passado é impossível de ser alcançado, porém ao usar a narrativa pode-se buscar reconstruílo. Nesse mesmo sentido, Gaddis faz uma analogia ao comparar o trabalho do historiador e do artista, nos
dizendo que
os historiadores, [...], empregam a abstração para superar uma restrição diferente,
que é o distanciamento no tempo de seu objeto de estudo. Os artistas coexistem
com os objetos os quais representam, sendo possível para eles mudar a perspectiva,
ajustar a luz, ou mover o modelo. Os historiadores não podem fazer a mesma coisa:
o que eles representam está no passado, que nunca poderá ser alterado. Porém eles
podem, por meio da forma peculiar de abstração que conhecemos como narrativa,
retratar o movimento através do tempo [...].13
A documentação histórica muitas vezes, apresenta lacunas que fazem com que os historiadores,
através da narrativa, possam tentar preenche-las a partir de possibilidades históricas, e assim a pesquisa
pode não ser “centrada na contraposição entre “verdadeiro” e “inventado”, mas na integração, [...], de
“realidades” e “possibilidades”.14
Para Albuquerque Júnior, o passado pode ser pensado como uma “invenção”, composto por discursos
e práticas através dos tempos, e
[...] embora a narrativa histórica não possa ter jamais a liberdade de criação de
uma narrativa ficcional, ela nunca poderá se distanciar do fato de que é narrativa e,
portanto, guarda uma relação de proximidade com o fazer artístico, quando recorta
seu objeto e constrói, em torno deles, uma intriga.15
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 313.
Ibid.
12 GINZBURG, 2007, p. 315.
13 GADDIS, John L. Paisagens da história. Como os historiadores mapeiam o passado. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 29.
14 GINZBURG, loc. cit.
15 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 63.
10
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Porém deve-se atentar para a cientificidade da pesquisa histórica, para o rigor teórico e metodológico.
O termo “invenção” deve ser interpretado como a tentativa de responder os questionamentos do historiador
através das possibilidades históricas.
O campo jurídico, conforme Bourdieu pode ser pensado como
o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a
boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam os agentes
investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste
essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou
menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima,
justa, do mundo social.16
O direito de dizer é exercido por aqueles envolvidos nos processos, arrolados nos autos, aquilo que é
dito é dito com significância, algumas vezes sob orientação dos advogados, outras de forma ainda
“espontânea”. São relatos de fragmentos de acontecimentos da vida daquelas pessoas. As falas ao serem
interpretadas pelos homens da lei adquirem um sentido, que por eles poderá ser considerado uma “visão
legítima”, uma reconstrução verdadeira do momento e do ato em análise.
Esta interpretação possível aos juristas é fruto do que Bourdieu afirma ser “ilusão da sua autonomia
absoluta em relação às pressões externas”. 17 Se pensarmos que na citação anterior Bourdieu nos fala que a
interpretação dos textos consagram a visão por eles considerada legítima do mundo social, logo, podemos
sugerir que o mundo social interfere nas tomadas de decisões dos juristas, seus juízos de valores, seus
conceitos morais.
Nesse sentido, Rinaldi nos fala que “com a noção de campo jurídico, pensamos o tribunal do júri como
parte de um universo jurídico relacionado à nossa sociedade, entendendo que sua dinâmica e funcionamento
são ligados às nossas representações sociais”.18
Nos processos crimes há falas que nos remetem ao que Bourdieu chama de “apropriação”, uma
linguagem jurídica marcada pela mistura de elementos retirados da língua comum. Acarretando em uma
“neutralização”, que seria obtida
por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das
construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar
a
impersonalidade do enunciado normativo e para construir o enunciador em sujeito
universal, ao mesmo tempo imparcial e objetivo.19
Os enunciados ao mesmo tempo em que pretendiam fazer do enunciador um ser imparcial, emitiam
juízos de valores presentes na sociedade. Nos processos crimes de infanticídio, isso pode ser identificado nos
enunciados ou palavras que remetem significados moralizadores, normalizador e normatizadores acerca das
rés, tais como: “mãe solteira”, “trabalhadora”, “honesta”, “vergonha de seus atos”, “desnaturada”, “mulher
desonrada”. Tais enunciados possuem efeito universal, e fazem “referência a valores transubjectivos que
pressupõem a existência de um consenso ético”.20
Quando pensamos em atos criminosos, no uso da Justiça para desvendá-los, e na sociedade em que os
envolvidos se inserem, torna-se interessante pensar a reflexão de Dezalay, da qual faz uso Bourdieu “a
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2 ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 1998, p. 212.
Ibem, ibidem.
18 RINALDI, Alessandra de Andrade. Marginais, delinquentes e vítimas. Um estudo sobre a representação da categoria favelado no
Tribunal do Júri da cidade do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV,
2003, p. 301.
19 BOURDIEU, op. cit., p. 215.
20 Ibid, p. 216.
16
17
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sensibilidade à injustiça ou a capacidade de perceber uma experiência como injusta não está uniformemente
espalhada e [...] depende estreitamente da posição ocupada no espaço social”. 21
Nas páginas dos processos crimes, têm-se acesso a homens e mulheres populares, e também a
membros da elite. Essas pessoas interagem entre si, detalhando seus espaços de convivência, onde se
relacionam e evidenciam seu cotidiano através das inquirições. Além da exposição, em parte de seu
cotidiano, podemos vislumbrar aspectos do sistema de ideias e códigos morais que regiam a sociedade em
que elas estavam envolvidas. Assim como a distinção de condutas, do que é considerado lícito e ilícito em
uma sociedade, e pelos sujeitos que a constituem, tendo em vista o lugar em que eles se encontram.
Do mesmo modo que podemos encontrar diferenças nas vivências, podemos nos deparar com
tentativas de enquadramento social e cultural, principalmente por partes dos populares em relação à elite
– especialmente em situações singulares como no encontro com o judiciário – sendo que são geralmente,
os membros desta classe social que estabelecem as diferenças.
No que se refere à diferença, Bourdieu nos fala que esta somente se torna
[...] visível, perceptível, não indiferente, socialmente pertinente, se ela é percebida
por alguém capaz de estabelecer a diferença [...]. A diferença só se torna signo e
signo de distinção [...] se lhe aplicamos um princípio de visão e de divisão que,
sendo o produto da incorporação da estrutura de diferenças objetivas [...] está
presente em todos os agentes.22
A distinção aparece nos processos até mesmo como um meio de classificação dos sujeitos neles
envolvidos, nos mostrando como as diferenças agem na sociedade, assim elas tornam-se “diferenças
simbólicas e constituem uma verdadeira linguagem”. 23 O espaço social ocupado pelos indivíduos demarca as
diferenças, as distinções, e está inscrito na subjetividade, marcado por agrupamentos e pertencimentos.
No que se refere ao discurso jurídico encontrado nos processos crimes, estes podem ser entendidos
“como jogos estratégicos de ação e reação, de perguntas e respostas, de dominação e de esquiva, como
também de luta”.24 A ação dos agentes da lei nos processos pode ser subjetiva, pois não se alcança a verdade
total sobre o acontecimento, mas podem tentar aproximar-se dela, através das testemunhas, interrogatórios,
da ciência e das práticas, espaços de ação e reação dos sujeitos. Os processos se constituem como um campo
de disputa pela versão verdadeira, ainda que se queria como objetivo e generalizador.
Nesse sentido, Foucault aponta:
[...] existem, na nossa sociedade, ou pelo menos, em nossas sociedades, vários
lugares onde a verdade se forma, onde um número de regras do jogo são definidas
– regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas subjetividades, certos
domínios do objeto, certos tipos de saber – e por conseguinte podemos, a partir
daí, fazer uma história externa, exterior da verdade”.25
A busca pela verdade, do que realmente teria acontecido no memento do ato criminoso, foi constante
nos processos crimes de infanticídio, seja através dos interrogatórios, da análise do corpo das rés ou do
recém-nascido. Porém, Foucault26 alerta que é primordial atentarmos para os efeitos do discurso da verdade.
Os desdobramentos deste discurso, nos casos analisados podem resultar na condenação ou absolvição das
rés.
Ibid, p. 232.
BOURDIEU, Pierre. Razão práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p.23.
23 Ibid, p. 22.
24 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003, p. 09.
25 FOUCAULT, 2003, p. 11.
26 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
21
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Os processos judiciais se configuram como um lugar de busca pela verdade e seus efeitos; são fontes
privilegiadas para o estudo dos populares, pois é aí que os encontramos e podemos analisá-los com um maior
cuidado e riqueza de informações. Porém, em relação as mulheres, Perrot afirma que elas
[...] aparecem apenas quando perturbam a ordem, o que justamente fazem menos
que os homens, não em virtude de uma natureza rara, mas devido à sua fraca
presença, à sua hesitação também em dar queixa quando elas são vítimas.
Consequentemente, os arquivos de polícia e de justiça, infinitamente preciosos para
o conhecimento do povo, homens e mulheres, devem ser analisados na forma
sexuada de seu abastecimento.27
Sendo assim, devemos perceber o documento histórico em toda sua integridade, identificando quem o
escreveu, para quem escreveu e com qual objetivo, especialmente no caso de processos crimes, onde o
aparato judicial era composto exclusivamente por homens, e talvez, os próprios depoimentos femininos
tenham sido modificados, censurados, antes de chegarem aos tribunais. 28
Em relação aos interrogatórios, Perrot nos diz que estes “permitem abordar, de alguma forma, as
mulheres das classes populares em suas realidades cotidianas. Ouve-se o eco de suas palavras que os
comissários de polícia, ou os próprios policiais, esforçam-se para registrar, e mesmo por traduzir”.29
A invisibilidade foi considerada comum das mulheres e perpetuada pelas religiões, sistemas políticos e
manuais de comportamento.30 As mulheres seriam responsáveis pela vida comum e ordinária, construída de
“mil atos mecânicos”, esfera privada e secundária, sem necessidade de ser relatada. Porém, neste espaço mais
privado que público encontraram estratégias para burlar ou mesmo romper o que havia sido imposto a elas,
como normas e regras de conduta.
Ao longo da História, houve uma proliferação de imagens acerca das mulheres; porém estas imagens
eram provenientes, muitas vezes, de descrições de mulheres feitas pelos homens, podendo ser então, a
imagem que os homens faziam delas e não precisamente como elas se percebiam. Em alguns momentos, são
homens escrevendo sobre mulheres, sendo que estes que circulavam pelos setores públicos da sociedade, da
sua economia, da política e estavam envolvidos mais diretamente com a apreciação das condutas. As
mulheres foram, por muito tempo, mais imaginadas do que descritas:
Os tênues vestígios que elas deixaram provêm não tanto delas próprias [...] como
do olhar dos homens que governam a cidade, constroem a sua memória e gerem
seus arquivos. O registro primário do que elas fazem ou dizem é midiatizado pelos
critérios de seleção dos escribas do poder. Indiferentes à vida privada, eles
dedicam-se à vida pública, em que elas não participam.31
O corpo feminino foi objeto de análise do masculino, os homens falavam sobre ele, do que seria
correto, desde a sexualidade até o comportamento. As mulheres pouco falavam de si, e as poucas coisas que
elas produziram “são elas mesmas que destroem, [...] julgam sem interesse. Afinal, elas são apenas mulheres,
cuja vida não conta muito. Existe até um pudor feminino que se estende à memória. Uma desvalorização das
mulheres por si mesmas. Um silêncio consubstancial a noção de honra”. 32
Esta noção honra é que levaria muitas a cometerem infanticídio, uma situação limite em que a partir
dela, a mulher teria sua vida exposta, assim como aquilo que tinha de mais íntimo: seu corpo.
PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005.
FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORI, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
2000.
29 PERROT, 2007, p. 27.
30 Id., 2005.
31 DUBY, Georges; PERROT, Michele (orgs.). História das mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, 1990, p. 09.
32 PERROT, 2007, p.17.
27
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O infanticídio, segundo Perrot, era o recurso “de camponesas, jovens, sozinhas na maioria das vezes
criadas, no campo ou na cidade, que, tendo procurado dissimular a gravidez sob as pesadas dobras da saia ou
do avental, [...], veem-se literalmente coagidas a matá-la para preservar a honra”.33
A honra está ligada a sexualidade34 feminina. E no caso dos processos, é posta em questão pelos
homens que compunham o aparato jurídico, e também por aqueles que são arrolados como testemunhas nos
inquéritos.
Sendo assim, podemos afirmar que os processos crimes se constituem como uma importante fonte
histórica, e que sua análise possibilita o entendimento acerca das relações sociais e entre os sujeitos neles
envolvidos, do sistema jurídico do período, apontando códigos de valores sobre o permitido e o ilícito na
sociedade, principalmente em casos de crimes em que os únicos acusados seriam mulheres, como o
infanticídio.
REFERÊNCIAS
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2007.
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LHOMOND, Brigitte. Sexualidade. In: HIDRATA, Helena; LABORIE, Françoise (orgs.). Dicionário crítico do
feminismo. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.
PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, Maria. I. S. de; SOIHET, Rachel. (orgs.). O
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PROSPERI, Adriano. Dar a alma: a história de um infanticídio. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
RINALDI, Alessandra de Andrade. Marginais, delinquentes e vítimas. Um estudo sobre a representação da
categoria favelado no Tribunal do Júri da cidade do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos
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WEBER, Beatriz Teixeira. Positivismo e ciência médica no Rio Grande do Sul: a faculdade de Medicina de
Porto Alegre. História, Ciências e Saúde – Manguinhos. Vol.5. n.03. Rio de Janeiro. Nov. 1998/Fev.1999.
Disponível: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010459701999000100003&lang=pt
>. Acesso em: 17 Jul. 2012.
ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da pobreza. Revista Brasileira de História. v. 5, nº10.
São Paulo: Marco Zero, 1985.
33 PERROT, Michele. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, Maria. I. S. de; SOIHET, Rachel. (orgs.). O corpo feminino em
debate. São Paulo: UNESP, 2003, p. 17.
34 A sexualidade é aqui entendida “de uma maneira mais ampla, definida como a construção social desses usos, a formatação e
ordenação dessas atividades, que determina um conjunto de regras e normas, variáveis de acordo com épocas e sociedades. Essas regas e
normas proíbem uma série de atos sexuais e prescrevem outros, e determinam as pessoas com as quais tais atos podem ou não e devem
ou não ser praticados”. LHOMOND, Brigitte. Sexualidade. In: HIDRATA, Helena; LABORIE, Françoise (orgs.). Dicionário crítico do
feminismo. São Paulo: Ed. UNESP, 2009, p. 231.
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O Die Serra Post, as fontes em língua alemã e o estudo da história
dos colonos da região serrana do Rio Grande do Sul
na primeira metade do século XX
Paulo Adam1
Resumo: A comunicação, resultante de uma mescla de estudos anteriores e atuais, reflete sobre a importância do
jornal Die Serra Post e de outras fontes em língua alemã, bem como de seus problemas e diferenciais em relação a outras,
como forma de trazer novos elementos para a história regional.
Este artigo, resultante de uma mescla de estudos anteriores e atuais, reflete sobre a importância do
jornal Die Serra Post e de outras fontes em língua alemã, bem como de seus problemas e diferenciais em
relação a outras, como forma de trazer novos elementos para a história regional. No tocante a formação do
Rio Grande do Sul, no quesito da colonização e povoamento com imigrantes europeus não ibéricos, há
aspectos ou temas em que a maior parte, as principais, isto se não as únicas fontes escritas estão em língua
estrangeira, as faladas por estas populações migrantes, dentre elas o alemão. Para falar o mínimo, há
seguramente importantes fontes escritas em alemão, e provavelmente em italiano e outras línguas, ainda não
exploradas ou mesmo já exploradas, que podem vir a fornecer interessantes respostas se inquiridas pela
historiografia contemporânea.
Evidentemente havia no Rio Grande do Sul colônias apresentando uma uniformidade étnica definida
nas quais imperava um monolinguismo, em paralelo com outras multiétnicas. Muitas das colônias mistas
eram marcadas por uma profusão de línguas, como em Ijuí, colônia fundada na região do planalto em 1890,
onde o Padre Cuber comenta que se falavam 19 línguas, o que fez com que ele a chamasse de “Babel do Novo
Mundo” (CUBER, 1975, p. 30). Mesmo neste caso, para muitos, Ijuí seria uma colônia germânica, pela
grande difusão da língua alemã na localidade. Conforme Martin Fischer, memorialista de certa importância
na localidade, “o que deu a Ijuí aquele cunho especial de tratar-se aparentemente de uma colônia alemã foi a
aglomeração das massas de teuto-russos, de austríacos e, principalmente, de teuto-brasileiros, além de um
bom punhado de teuto-poloneses, de teuto-húngaros e de teuto-romenos”. Destes, os teuto-russos, vindos
em levas em épocas diferentes, constituíram um grupo relativamente numeroso. Entretanto, o autor,
possuidor de aguda percepção acerca das nuances entre grupos que aparentemente eram vistos como
alemães, indica que estes grupos étnicos apenas falavam o alemão como sua língua materna, e eram, por isso,
em geral tratados como alemães, embora se distinguissem consideravelmente uns dos outros nos caracteres e
costumes (FISCHER, 2002, p. 36, 58-59).
Evidencia-se, por conta da presença dos imigrantes europeus de modo geral e germânicos em
particular na formação demográfica do Rio Grande do Sul, um mundo que existia em alemão, ou seja,
comunicava-se, lia, expressava-se e pensava na língua de Goethe ou algum dialeto aparentado nesta família
linguística, como o pomerano ou o hunsruck. A língua alemã foi usada na comunicação usual entre as
pessoas, neste caso sendo mais comum algum dialeto, e no ensino e na imprensa colonial que se organizou
para atender estas populações, lhes propiciando informação e formação, sendo então empregado o alemão
gramatical. Neste sentido, o uso do alemão enfrentou duas situações de restrições importantes. A primeira
delas por ocasião da 1ª Guerra Mundial, principalmente na imprensa, e a segunda no contexto do Estado
Novo e da chamada nacionalização implementada por aquele regime, quadro ainda agravado pela
deflagração da 2ª Guerra Mundial. Neste contexto, a imprensa em língua estrangeira, e a alemã em
particular, foram proibidas sendo que a interdição do uso de idioma estrangeiro se estendeu ao ensino. Este
1 Paulo Adam trabalha no IFFarroupilha, Mestre em História pela UPF e doutorando na mesma instituição. Correio eletrônico:
pauloadam2@gmail.com
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segundo processo de restrição e/ou interdição foi o mais acentuado e feriu de morte o mundo de fala
germânica, que apesar de um ressurgimento posterior de uma certa imprensa alemã, dali para diante apenas
sobreviveu de forma fragmentada e definhou com o envelhecimento da população.
A difusão da língua alemã nas áreas de colonização com imigrantes teutos fazia com que as
organizações associativas por eles fundadas utilizassem-se desta língua em sua comunicação, como é
perceptível na história de três das mais importantes delas: a Bauerverein – Associação Riograndense de
Agricultores, a Volksverein - Sociedade União Popular e as Uniões Coloniais 2. Os informativos impressos
destas entidades, o Bauerfreund da Bauerverein, o Skt. Paulusblatt da Sociedade União Popular, e o
Nachrichtenblatt, no caso da Liga das Uniões Coloniais, eram editados em alemão, embora deste último
também houvesse uma edição em português. Entretanto a versão em alemão era em quantidade muito maior
que a edição em português, como em 1931 por exemplo, quando a tiragem alemã alcançou 14.750 exemplares
e a portuguesa apenas 2.7703.
O cotidiano destas entidades se desenvolvia em alemão. Para servir de exemplo, os nomes dos órgãos
constitutivos da Liga das Uniões Coloniais Riograndenses eram denominados em alemão: a Assembleia
Geral, por exemplo, era a Bundesversammlung (SCHALLENBERGER, 2009, p. 390). Uma carta enviada por
Luiz Kling, então gerente da Liga das Uniões Coloniais em Porto Alegre, para a União Colonial de Nëu
Württemberg (atual Panambi), datada de 16 de outubro de 1934, evidencia que muitas das correspondências
das Uniões Coloniais eram escritas em alemão 4. No relatório da Diretoria da Liga encaminhado ao seu 2º
Congresso, consta que dentre as funções da secretaria, estava a tradução dos documentos manuseados na
rotina da entidade do alemão para o português e vice-versa5. Eugênio Zimmermann, Presidente do Conselho
Fiscal da Cooperativa Sul Riograndense de Banha em 1936, relata que as reuniões da entidade eram
particularmente demoradas por que as correspondências e documentos eram lidos em alemão e português 6.
Até a década de 60 os relatórios anuais da Cooperativa Sul Riograndense de Banha, sediada em Cruz Alta,
organização fundada pelos colonos sob os auspícios das Uniões Coloniais, ainda eram escritos em formato
bilíngue, português e alemão7.
O último veículo de imprensa que persiste sendo publicado no Brasil em alemão é o Skt. Paulusblatt.
Sua existência começou em 1912, com o fim da Bauerverein e a formação do Volksverein - Sociedade União
Popular. No período inicial, até 1934, o padre Teodoro Amstad ocupou as funções de redator e editor da
revista. Este veículo surge das deliberações do Congresso Católico de Venâncio Aires, que o cria como
instrumento de formação e informação da Volksverein. Liga-se, portanto, a manutenção de uma identidade
étnica e religiosa, ou seja, dos alemães católicos no sul do Brasil. A revista continuou a circular até 1941,
quando foi proibida a imprensa alemã no Brasil. Foi retomada em 1948 e, desde então, circula em edições
mensais até o presente momento (Klauck, 2009). Sofreu uma breve interrupção no final de 1988, quando se
viu principalmente sem recursos humanos para coordenar a publicação, mas voltou a ser publicada ainda em
1989 com a criação da Fundação Theodor Amstad (Hammes, 2012; Seibth, 2012), que assumiu o encargo.
Parece que muito contribuiu nesta sobrevivência a atuação de abnegados escritores e leitores, sendo inclusive
conduzidas campanhas no intuito de manter e aumentar o rol de assinantes.
A Bauerverein, ou seja, a Associação Riograndense de Agricultores, surgiu em 1899, com o propósito de atuar na defesa dos interesses
econômicos dos colonos de origem germânica e na construção do seu bem-estar material e espiritual. Em 1909, por força das normativas
legais, esta organização foi fracionada e dela surgiram diversos sindicatos agrícolas. Em 1912, os colonos teuto-católicos se rearticularam
em torno da Sociedade União Popular - Volksverein. As Uniões Coloniais, também remanescentes da Bauerverein, que se espalhavam
por diversos municípios, conjugada com a experiência das Selbschütz, que eram grupos de autodefesa organizados na região colonial
serrana pelos colonos, com anuência do poder público, por ocasião dos conflitos armados nos anos 20, se articularam em 1929 na Liga
das Uniões Coloniais Riograndenses. Em 1932, a Liga das Uniões Coloniais se transformou em um sindicato central. Posteriormente, a
transformação das Uniões Coloniais em consórcios cooperativos fez com que a Liga deixasse de ser uma central sindical para se tornar
uma central das cooperativas.
3 Noticiário da Liga das Uniões Coloniais. Edição de fevereiro de 1932. MAHP.
4 Documentos da União Colonial de Panambi. MAHP.
5 Noticiário da Liga das Uniões Coloniais. Edição especial de 01.04.1931. MAHP
6 Jornal Correio Serrano. Edição de 18.01.1936. MADP.
7 Relatórios da Cooperativa Sul Riograndense de Banha. MAHP.
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O Die Serra Post
Os jornais Die Serra Post e Correio Serrano, o primeiro em alemão e o último em português, foram
editados na região colonial do noroeste do Rio Grande do Sul, onde desfrutavam de grande prestígio. A
origem dos dois veículos remonta a história de Roberto Löw, nascido em 1872 na cidade de Praga, então
parte da Áustria. Formado em Direito pela Imperial Universidade Alemã de Praga, deixou a Europa em 1900
e migrou para o Brasil. Perambulando pelo Rio Grande do Sul, exerceu diversas ocupações, sempre no
jornalismo. Por dois anos dirigiu em Porto Alegre o ‘Koseritz Deutsche Zeitung’, jornal outrora fundado por
Carlos Von Koseritz. Em 1911 Löw fundou seu próprio jornal, sediado em Cruz Alta, o Die Serra Post, voltado
para a população migrante de fala alemã, transferindo-o em 1912 para Ijuí, onde o instalou junto a Praça da
República, com uma livraria e uma tipografia anexas (BINDÉ, 2012, p. 150-153).
Em 1914 Roberto Löw viajou para a Europa com o intuito de comprar equipamentos gráficos. Mas
por conta da Primeira Guerra Mundial, lá permaneceu 5 anos, sendo inclusive convocado para o exército
austro-húngaro. No período da ausência de Roberto Löw, o jornal permaneceu com a esposa, Júlia Löw e o
gerente, que por conta das restrições linguísticas durante o conflito, decidiram publicá-lo em português, com
o nome de Correio Serrano. De volta ao Brasil, Roberto Löw manteve os dois jornais, sendo o alemão como
suplemento do Correio Serrano. A edição alemã voltou a ser restringida entre 1941 e 1946, por conta do novo
conflito mundial. Em 1928, seu filho, Ulrich Löw assumiu a direção dos jornais, cargo que exerceu até 1978,
quando o Correio Serrano foi vendido (BINDÉ, 2012, p. 150-153). Roberto Löw continuou muitos anos como
editor, escrevendo e assinando artigos nos dois jornais. Além do dois jornais, também editaram por muitos
anos o Serra Post Kalendar, um anuário com informações diversificadas, mas com importante aporte de
conteúdo local, discutindo a problemática local.
O Correio Serrano, e o seu congênere em língua alemã, foram de grande importância em Ijuí e na
região norte e noroeste do Rio Grande do Sul, registrando as problemáticas vividas pela população. É
possível exemplificar com propriedade o envolvimento destes veículos de comunicação, e em particular do
publicado em alemão – o Serra Post - em um gama considerável de temas de interesse colonial e regional por
meio de três grandes questões: o desenvolvimento agrícola regional, a questão da banha e a cobertura da
organização de autodefesa dos colonos por ocasião das revoluções de 1923 e 1924. Três questões que
apresentam nuances importantes quando veiculados em língua alemã.
O desenvolvimento agrícola regional desde logo tomou a atenção de Roberto Löw e outros
articulistas do Serra Post. Isto é perceptível no seu envolvimento na formação de duas importantes entidades
destinadas a alavancar o progresso nesta área: uma sociedade agrícola, chamada de Bauernhilfe e uma
estação experimental agrícola, também chamada de Colônia Modelo. A diretoria da Bauernhilfe era
composta de lideranças ligadas ao Sínodo Rio-Grandense e aos jornais Correio Serrano/Die Serra Post,
sendo o editor, Roberto Löw, o presidente. A entidade manteria nos anos seguintes no jornal um encarte
intitulado Landwirtschaftliger Ratgeber, bimestral, pelo qual difundia “notícias de interesse do setor
agrícola, veiculava informações sobre o mercado agrícola, instruía sobre o manejo do solo, sobre técnicas de
plantio e de armazenamento e sobre a introdução de novas culturas” (SCHALLENBERGER, 2009, p. 377).
Do mesmo modo, o grupo Serra Post/Correio Serrano manter-se-ia ligado a Colônia Modelo, sendo que
Ulrich Löw integraria a diretoria da mesma.
Discutindo a organização da Colônia Modelo e a centralidade da sua ação em torno da suinocultura,
os veículos, em 1934, produziram uma forte crítica. Não querendo pôr em “dúvida os excelentes serviços
prestados por aquela organização na melhoria dos rebanhos vacuns e suínos”, inclusive reconhecendo que a
“distribuição de animais caprichosamente selecionados entre os colonos produtores de banha e leite, tem
produzido excelentes resultados”, o articulista aponta que os setores em que “a ação da colônia modelo tem
sido lenta, não correspondendo, ao que parece, as suas verdadeiras finalidades, é na agricultura e na
avicultura”. Neste sentido, cobra da entidade um trabalho mais forte na questão dos grãos “com o fim de
vendê-los por preços razoáveis aos colonos”, e a realização de “estudos experimentais sobre cereais e
gramíneas”, e o mesmo em relação a avicultura, “procurando introduzir no município raças apuradas e que
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mais se adaptem a produção de ovos e carne”. Provavelmente tendo claro o desembocar da crise da banha, o
articulista recomendava à Colônia Modelo “dedicar maior atenção aos demais ramos das indústrias rurais”. 8
Em outra edição, o artigo veiculado no órgão de imprensa apontava que “a luta pela vida e a
consequente luta pelos mercados, é cada vez mais ativa. O porvir não deve nos encontrar dedicados
exclusivamente a um ou dois produtos”. 9 E completava sua análise salientando que em matéria de cultivo,
“estamos atrasados, não só na falta de técnica dos nossos produtores, senão, e principalmente na pouca
variedade”.
Graças a cobertura desenvolvida por estes veículos é possível reconstituir, de uma forma mais
ampliada, a história do principal produto econômico da região colonial - a banha e os seus desdobramentos e
conexões. A forma engajada com que assumiram a questão da banha, explica a situação em que se viram
envolvidos: a de responder à acusação de serem “um jornal alemão”, por ser escrito neste idioma, no caso do
Serra Post, e sobretudo, porque “alemães são os seus diretores”10. Conforme o autor da acusação ao Correio
Serrano/Serra Post, não lhe “assistia o direito” de criticar o monopólio da banha estabelecido do Estado,
uma vez que “atacar o Sindicato seria o mesmo que agredir o Governo do Estado, por que foi o Governo
quem criou o Sindicato e o amparou”, argumentação que o jornal ijuiense rebateu afirmando que com ela, o
articulista pretendia “repetir o sacramento da santíssima trindade”, ao aludir as estreitas ligações entre o
Governo do Estado e o Sindicato da Banha 11. Segundo o Correio Serrano, estas acusações foram inspiradas no
que “os magnatas da banha” haviam soprado no ouvido do articulista.
No contexto da crise da banha, o debate estabelecido na imprensa regional e estadual alcançou a
envergadura correspondente ao tamanho da economia colonial. O Correio Serrano/Die Serra Post, que
assumira a um bom tempo a defesa da economia colonial, se põe a questionar a postura do Sindicato da
Banha, cobrando do mesmo “uma justificação insofismável sob a redução dos preços que parecia injusta à
população colonial”.12 De fato, o Correio Serrano/Serra Post se alça a condição de porta-voz da colônia,
como quando reproduz o raciocínio veiculado originariamente no Serra Post:
Devia supor-se que a baixa do câmbio provocaria uma alta de preços. O sindicato
monopolizado entretanto não acha necessário de prestar contas aos colonos que lhe
são entregues sem defesa e assim os motivos deste novo assalto ao bolso da
população colonial ficar-nos-á sempre sem o devido esclarecimento.13
Neste debate, a questão da cotação internacional da banha e dos preços pagos na região ganhou
relevo especial, por conta do impacto direto do preço do produto em Ijuí. Assim, se fazia necessário esmiuçar
o funcionamento do mecanismo dos preços. Dentre vários aspectos, se discutia o caso da exportação da
banha para a Alemanha. A argumentação seguida pelo Serra Post dava conta que a banha era colocada no
mercado de Hamburgo, no valor de 1,20 marcos alemães, sendo que a cotação do marco estava em Rs.
3$800, o que daria em 4$560 por quilo de banha. Destes, deveria ser subtraído 1$650, que era o preço de
compra na região em 1931, $200 de frete, $250 de custos de refinação e outras despesas, rendendo assim um
lucro de 2$460 por quilo de banha. 14
A década de 1930 representou o auge dos conflitos em torno da produção da banha, acompanhada
com detalhes pelas páginas do Correio Serrano. O comércio, e principalmente a exportação da banha, se
mostrava um universo intrincado e complexo. E para o colono, a leitura das notícias publicadas no meio
regional e a formação de uma opinião acerca da circulação regional e internacional da banha e da sua
Jornal Correio Serrano. Edição de 21.02.1934. MADP.
Jornal Correio Serrano. Edição de 05.12.1934. MADP.
10 Jornal Correio Serrano. Edição de 22.08.1934. MADP. Na edição de 25.08.1934 o Correio Serrano informa que o órgão de imprensa no
qual teria sido publicada a acusação é o Jornal da Manhã, de Porto Alegre, permanecendo o nome do autor incógnito.
11 O Sindicato da Banha foi um cartel montado em 1928 pelos grandes comerciantes de banha do Rio Grande do Sul, com apoio do
governo do Estado, capitaneado na época por Getúlio Vargas, com o objetivo de controlar o mercado da banha. A principal consequência
da formação do cartel foi a derrubada do preço da banha comprada dos colonos (ADAM, 2015).
12 Jornal Correio Serrano. Edição de 24.09.1931. MADP.
13 Jornal Correio Serrano. Edição de 24.09.1931. MADP.
14 Jornal Correio Serrano. Edição de 24.09.1931. MADP.
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cotação, era uma tarefa hercúlea. Por meio de sua cobertura, o Correio Serrano, e o Serra Post, em alemão,
informavam o meio colonial sobre os caminhos e descaminhos tomados por este importante produto da
economia regional, ao mesmo tempo que também formava esta opinião.
A medida que o colono se via apartado da atividade da banha e a expectativa dos rendimentos dela
minguaram consideravelmente, a inteligência que se expressava no Correio Serrano e no Serra Post,
replicando em alguns momentos a análise que a banha era, por volta de 1935, um ‘assunto morto’, indicavam
que a alternativa era a qualificação do colono e a diversificação das suas atividades como forma de competir
num meio cada vez mais competitivo. O que evidencia a antiguidade do discurso da qualificação do colono.
Destaca-se na cobertura do Correio Serrano/Serra Post a análise do mecanismo dos preços,
ficando evidente que a cotação internacional da banha não era o principal elemento que atuava na
conformação do preço, nem sequer a dinâmica da oferta e procura. Na verdade, pelo noticiário parece não
haver muita lógica nas altas e quedas do preço da banha, uma vez que no ano de pouca oferta o preço cai, no
ano de exportação considerável o preço igualmente cai e contraditoriamente quando a produção interna
decai também são anunciadas exportações volumosas. A grande questão era o movimento de acúmulo de
capital realizado pelo Sindicato da Banha, revelado nos lucros consideráveis que o trust realizava. Por isso
mesmo é compreensível a animosidade que o mesmo angariou em parcelas importantes da sociedade, pelo
menos da região colonial, animosidade para a qual o Correio Serrano, na sua área de alcance, deve ter
contribuído.
Nos anos 20, outro tema já merecera a cobertura do Serra Post. Trata-se da organização dos colonos
para enfrentar os dissabores dos conflitos bélicos que sacudiram quase todo o Rio Grande do Sul por ocasião
das chamadas Revoluções de 1923 e 1924. Assim, por meio da leitura do jornal Serra Post e do Serra-Post
Kalendar de 1926 é possível constatar que os colonos constituíram algo em torno de 23 organizações de
Selbstschutz na região do planalto, que ao que tudo indica, são na sua maior parte Ligas, congregando
associações ou sociedade de autodefesa que se organizavam nas localidades, majoritariamente na área rural.
Assim, nesta região são elencados: Ijuí – Serra Cadeado (Augusto Pestana), Ijuí – Ramada (Ajuricaba), Vila
Ijuí, Ijuí – linhas 4-7 (margem direita do Rio Ijuí), Fachinal (parte norte de Ijuí), Burity (interior de Santo
Ângelo), Rincão Vermelho (Roque Gonzales), Nëu Württemberg (Panambi), Cerro Pelado (Porto Xavier),
Bello Centro (Santa Rosa), Porto Feliz (Mondaí, em Santa Catarina), dando ainda detalhes quanto a sua
organização e principais eventos que marcaram sua existência. Mas no próprio texto se reconhece que o
quadro é incompleto, havendo muitas lacunas 15. A estes, por conta de apuração em outras fontes, pode ser
acrescido ainda as organizações de Serro Azul (Cerro Largo), Pirapó, Xingu, General Osório (Ibirubá),
Condor, Erechim (tardiamente), e Pejuçara, embora desta última inexistam informações maiores.
O texto do Serra Post Kalendar, fazendo uma síntese de tudo o que fora publicado no jornal Serra
Post, para introduzir e justificar o fenômeno dos Selbstschutz estabelece uma analogia com o oeste
americano de 100 anos antes, que era, assim como o planalto do Rio Grande do Sul, uma “área fronteiriça da
cultura” onde “as coisas acontecem da mesma forma”. Ou seja, quando os cidadãos, desassistidos pelo
governo, pela sua distância ou impotência, são levados ao “procedimento natural, ou melhor, o procedimento
original da sociedade humana: todos os habitantes de uma colônia formam uma união armada e lutam pela
vida e propriedade contra aqueles que por inimizade ou necessidade se tornam assaltantes e ladrões” 16.
O acervo no Museu Antropológico Diretor Pestana (MADP) de Ijuí guarda o Correio Serrano e o
Serra Post, digitalizados e disponíveis ao público, ao passo que o Serra Post Kalendar se encontra em
formato físico. Lamentavelmente, a digitalização, feita na década de 1990, tem sérios problemas de nitidez, o
que atrapalha bastante a leitura do material e a pesquisa.
Os estudos em curso apontaram uma diferença considerável de conteúdo no Correio Serrano e
Serra Post no tocante aos três assuntos mencionados: a questão agrícola, o problema da banha e a
organização dos colonos nos Selbstschütz por ocasião das Revoluções de 1923 e 1924.
Serra-Post Kalendar, 1926. pp. 115-132. MADP. A reportagem parece ser fruto tanto do conhecimento acerca do tema do autor, ou
autores, como foi derivado do retorno das diversas sociedades ainda existentes quando da indagação enviada pela redação Serra Post.
Algumas lacunas permaneceram precisamente porque muitas sociedades não enviaram informações.
16 Serra Post Kalendar de 1926, p. 115. MADP.
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No tocante a questão agrícola, embora apareça nos dois veículos a discussão do problema, o
suplemento Landwirtschaftliger Ratgeber foi exclusivo da versão alemã. Embora não fosse muito grande,
restrito a 4 páginas, ao que se sabe, salve alguns apontamentos de Schallenberger (2009), permanece sem
nenhum outro estudo que lhe desvende o conteúdo. O problema da banha mereceu o gasto de papel e tinta
em ambas as versões, com a ressalva que certos textos e análises permaneciam exclusivos da alemã, como por
exemplo, textos escritos por colonos refletindo a questão. Por fim, a organização dos Selbschütz foi quase que
exclusivamente tratada na versão alemã, ao passo que o desenrolar geral do conflito foi noticiado na versão
em vernáculo, o que leva a inevitável interrogação de o porque disto.
A existência por si só de considerável material ainda inexplorado constitui enorme potencial para o
desenvolvimento de pesquisas historiográficas no campo da história regional e, principalmente no caso das
fontes mencionadas, para o estudo dos processos de migração e colonização do planalto do Rio Grande do
Sul. Entretanto, a língua alemã e a fonte gótica utilizada na impressão se constituem nos principais entraves
para a leitura e elucidação deste material.
REFERENCIAS
BINDÉ, Ademar Campos. Ijuí – histórias revividas: 100 anos de emancipação. Espumoso: Gráfica Líder,
2012.
CUBER, Padre Antoni. Nas margens do Uruguai. Ijuí: MADP, 1975.
FISCHER, Martin. A Colonização de Ijuí – uma retrospectiva histórica, sociológica e étnica. In: Etnias
diferenciadas na formação de Ijuí. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.
HAMMES, Hugo. A Sociedade União popular de 1960 a 1988. In: RAMBO, Arthur Blásio & ARENDT, Isabel
Cristina (Orgs.) Cooperar para prosperar: a terceira via. Porto Alegre: Sescoop/RS, 2012.
KLAUCK, Samuel. O apostolado da imprensa: a revista St. Paulus-Blatt como instrumento de informação,
formação e catequese no Rio Grande do Sul (1912-1934). Tese (Doutorado em História). Universidade
Federal do Paraná: Curitiba, 2009.
SCHALLENBERGER, Erneldo. Associativismo cristão e desenvolvimento comunitário: imigração e
produção social do espaço colonial no sul do Brasil. Cascavel: Edunioeste, 2009.
SEIBTH, Renato Urbano. A transferência do ‘Volksverein’ para Nova Petrópolis. In: RAMBO, Arthur Blásio
& ARENDT, Isabel Cristina (Orgs.) Cooperar para prosperar: a terceira via. Porto Alegre: Sescoop/RS,
2012.
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As contradições no processo de Reassentamento dos Afogados
do Passo Real na década de 1980
Pedro Vicente Stefanello Medeiros
Resumo: Este trabalho discute o processo de reassentamento dos atingidos pela barragem do Passo Real, na
década de 1980. A partir de 1967, para a construção da Usina Hidrelétrica do Passo Real, o Governo do
Estado do Rio Grande do Sul desapropriou 23.000 hectares de terras na região de Cruz Alta, Ibirubá e
Espumoso, desalojando milhares de famílias. Em 28 de agosto de 1968 foi assinado entre o Estado, através
da CEEE (Comissão Estadual de Energia Elétrica) e a União, representada pelo IBRA (Instituto Brasileiro de
Reforma Agrária), posteriormente transformado em INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária). O objetivo do estudo é problematizar o chamado “Acordo de Cooperação”, pelo qual o Governo
Federal assumia a responsabilidade do reassentamento dos desalojados, com base no faro de que nos anos
1970 mais de 500 famílias foram reassentadas, contudo, chegam os anos 1980 e diversos agricultores e seus
descendentes não foram reassentados se reconhecendo como os “Afogados do Passo Real”, assim, através de
documentos encontrados no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos e nos arquivos do
INCRA/RS, também, analisar as contradições inerentes às ações das autoridades responsáveis no
reassentamento dos desalojados.
A partir de 1965, para a construção da Usina Hidrelétrica do Passo Real, o Governo do Estado do Rio
Grande do Sul desapropriou 23.000 hectares de terras na região do Alto Jacuí, mais especificamente nos
munícipios de Cruz Alta, Ibirubá e Espumoso, desalojando milhares de famílias. Em 28 de agosto de 1968 foi
assinado entre o Estado, através da CEEE (Comissão Estadual de Energia Elétrica) e a União, representada
pelo IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária), posteriormente transformado em INCRA (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o chamado “Acordo de Cooperação”, pelo qual o Governo
Federal assumia a responsabilidade do reassentamento dos desalojados 1.
De acordo com um relatório da CEEE, datado de 8 de setembro de 1969 2, foram desapropriadas 3129
propriedades rurais, sendo destas 1498 na margem direita do Rio Jacuí e 1631 à margem esquerda. Neste
sentido, segundo dados do INCRA 3, aproximadamente 1600 famílias de agricultores foram atingidas. Deste
total, 1050 optaram pelo reassentamento em novas terras em um primeiro momento. Assim, o órgão federal
teria desapropriado em uma primeira etapa 16.449,36 hectares. Dentre estes, foram 9.774,37 hectares
pertencentes à Fazenda Boa Vista localizada no município de Cruz Alta, 3.064,1878 hectares desapropriados
da Fazenda Colorados, situada no mesmo município e 3.140,1003 hectares da Fazenda Itaíba, encontrada
nos municípios de Ibirubá e Santa Bárbara do Sul.
Este processo de reassentamento foi institucionalmente elaborado como um Projeto Integrado de
Colonização (PIC). Estes projetos desapropriavam uma área conforme as normas do Estatuto da Terra e a
repartiam de forma parcimoniosa para serem disponibilizada aos agricultores que a compravam mediante o
pagamento em 20 anos, deste modo obtendo o título legal das propriedades. Neste processo, também, havia
fomento de crédito para a aquisição de utensílios e maquinário, bem como a realização de estudo técnico
acerca das condições de exploração agrícola dos terrenos.
Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense. Doutorando em História pela Universidade de Passo Fundo.
http://lattes.cnpq.br/7457607247729782 medeirospvs@gmail.com
1 LORENZON, Algir (Org.). AFOGADOS: Até Quando? Relatório da Comissão Especial dos Agricultores Desalojados do Passo Real.
Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas. S/d.
2 CEEE – Relatório acerca das propriedades que tiveram suas terras atingidas pelas águas da bacia de alagamento do Passo Real.
08/09/1969. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
3 Projeto Integrado de Colonização Sarandi (Gleba I – Invernada do Butiá) – Ministério da Agricultura – Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária – INCRA Coordenadoria Regional do Rio Grande do Sul – Publicado em dezembro de 1972.
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Neste sentido, o então Projeto Integrado de Colonização – Passo Real reassentou 528 famílias.
Posteriormente, visando à recolocação das famílias restantes, o INCRA ampliou o Projeto Integrado de
Colonização – Sarandi4, desapropriando a Invernada do Butiá, pertencente à Firma SAGRISA – Comercial e
a Agrícola Ltda. Também foram desapropriadas a Fazenda Sarandi, propriedade de Ernesto José Annoni e,
ainda, a antiga Estação Experimental Engenheiro Luiz Englert, mediante um entendimento entre o Governo
do Estado com o Ministério da Agricultura para a passagem ao patrimônio do INCRA de parte da área não
lotada do Núcleo Colonial de Reforma Agrária de Sarandi.
Contudo, estes Projetos Integrados de Colonização desenvolvidos pelo INCRA não foram suficientes
para reassentar todas as famílias que foram atingidas pela construção da barragem do Passo Real. Em 1986 a
Prefeitura de Fortaleza dos Valos 5 enviou à Superintendência do INCRA/RS um dossiê advogando em favor
dos atingidos pela barragem. O conteúdo dos documentos evidencia a situação de diversos desalojados que
por mais de 12 anos estiveram à espera de uma solução, vivendo em condições precárias. Encontramos várias
listas com nomes de desalojados candidatos ao reassentamento cujo somatório representa mais de 300
famílias.
Dentre os trabalhadores rurais desalojados encontramos pequenos proprietários, arrendatários,
parceiros e meeiros, que tiveram seus meios de sobrevivência destruídos pela implantação da barragem.
Neste sentido, podemos elucidar o caso de A.P. M, mediante um requerimento encontrado no arquivo do
referido sindicato6. Em 1969, quando da desapropriação, A.P.M, arrendava à cinco proprietários uma área
que perfazia 100 hectares. Possuía três tratores e uma automotriz, sendo financiado pelo Banco do Brasil.
A.P.M também era proprietário 2,5 hectares oriundos da herança de sua esposa, I.G.S, e também havia
comprado outros 2,5 hectares com recursos próprios.
Vindo a desapropriação, A.P.M perdeu tudo, inclusive o maquinário, ficando sem condições de pagar
o financiamento pendente. Em 1986, A.P.M vivia na área urbana de Fortaleza dos Valos, com sete filhos
maiores de idade, também em situação de desamparo. Em uma observação, no fim do documento, podemos
entender a situação de A.P.M: “A pobreza e a desesperança, não consegue abater seu A.P.M e sua família, tem
sobrevivido da esperança de um dia reconquistar tudo o que a BARRAGEM levou”.
Também podemos apreciar alguns quadros onde o agricultor perdeu parcialmente sua terra. Esta foi
a situação de N.F.C7, que antes do alagado plantava 35 hectares em parceria com o sogro. Em 1986, como a
maior parte de suas terras ficaram submersas, plantava 4 hectares onde possuía moradia, mas sem condições
mínimas de sobrevivência. Trajetória parecida teve N.P.S 8. Em 1969 morava na comunidade rural do Rincão
dos Valos trabalhando em parceria com T.S. Quando a água chegou, N.P.S perdeu o pedaço de terra que lhe
era cedido, perdendo também, a fonte do sustento de sua família. Em 1986 N.P.S estava com 53 anos e,
conforme a observação no fim do documento, era considerado: “uma pessoa caridosa, que reparte o pouco
que tem, ajudando os ainda mais pobres; Pessoa reconhecidamente honesta”.
No requerimento de D.F.S 9, é possível contemplar o esforço desempenhado por um desalojado para
manter sua família após o alagamento. Até 1969, D.F.S plantava de 8 a 12 hectares com animais de tração.
Em 1986, D.F.S, casado com E.L.S, tinha 10 filhos, sendo 6 maiores de idade, e plantava 3 hectares que havia
recebido de herança da esposa. Além de possuir 3 vacas de leite e algumas galinhas onde morava, tinha que
caminhar mais de 2km para plantar uma área de 2,5 hectares cedida por um parente. Na observação consta
que a família era numerosa, e organizada poderia produzir mais. Contudo, não tinham as condições
necessárias para tanto, pois viviam em situação de extrema pobreza.
Além de arrendamentos e parcerias em terras cedidas por parentes e amigos, muitos desalojados
necessitavam trabalhar como diaristas em propriedades alheias, para complementar sua escassa renda. Este
foi o caso de I.M.M, que na época da desapropriação vivia nas terras do pai. Seu pai, A.B.M, possuía 3,5
Este “PIC” teve origem através do primeiro processo de desapropriação da Fazenda Sarandi em 1962, em ação decorrente das
mobilizações e acampamentos realizados naquele ano pelo MASTER – Movimento dos Agricultores Sem Terra – na região.
5 Emancipado de Cruz Alta em 1982, Fortaleza dos Valos é o município com maior área alagada pela barragem.
6 Requerimento A.P.M. Desalojado do Passo Real. 8/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS.
7 Requerimento N.F.C. Desalojado do Passo Real. 10/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS.
8 Requerimento N.P.S. Desalojado do Passo Real. 08/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS.
9 Requerimento D.F.S. Desalojado do Passo Real. 10/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS.
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hectares e só foi indenizado sobre 1,5 hectares. Deste modo, em 1986, I.M.M tinha 37 anos, casado com 2
filhos menores, cultivava 4 hectares de seu sogro onde lhe pagava uma taxa de 20% da produção. Assim, para
incrementar o sustento da família, trabalhava como diarista em granjas 10 de terceiros.
Mediante a leitura destas fontes, evidenciamos o difícil panorama enfrentado pelos desalojados do
Passo Real que em meados dos anos 1980 ainda não haviam sido reassentados. Este cenário nos possibilita
perguntar por que estes trabalhadores rurais, prejudicados pela barragem, não foram reassentados como as
demais famílias que ainda nos anos 1970 tiveram o acesso a terra através do acordo celebrado entre o INCRA
e o governo do Rio Grande do Sul. Ainda não temos todas as respostas, no entanto, os requerimentos já
referenciados nos dão algumas pistas do que pode ter acontecido. No requerimento de I.M.M encontramos a
seguinte sentença: “NIGUÉM TEM COMPROVANTE ALGUM, TANTO DE DOCUMENTOS como destas
INSCRIÇÕES. Perguntado por que? DIZEM que o Dr. J.B ficava de mandar depois...”.
Analisando os outros requerimentos, mais da metade dos documentos trazem uma referência a um
tal Dr. J.B vinculado ao INCRA, que entre 1969 e 1971 era responsável por inscrever os desalojados nas listas
para reassentamento. Os requerentes alegaram inscrever-se com o Dr. J.B e nunca terem recebido os
comprovantes. Ainda não podemos tirar nenhuma conclusão definitiva, entretanto, tais evidências permitem
questionarmos os métodos burocráticos adotados pelo INCRA na seleção dos desalojados, que acentuaram
ainda mais as contradições daquele processo. Futuramente, no decorrer de nossas pesquisas, mediante um
cruzamento de fontes mais acurado, poderemos tecer reflexões mais consistentes sobre essa matéria.
Neste momento, com as fontes que possuímos o que sim, podemos fazer com mais cabedal, é discutir
as manifestações e a mobilização dos desalojados na luta pela terra. Os atingidos pela barragem do Passo
Real ficaram conhecidos como “Afogados”, pois assim foram denominados em alguns documentos da
Comissão Especial dos Agricultores Desalojados do Passo Real, criada em 1983 pela Assembleia Legislativa
do Rio Grande do Sul, para solucionar os conflitos entre os reassentados e os proprietários da Fazenda
Annoni11, que contestavam sua desapropriação na justiça há mais de dez anos. Assim, a denominação
“Afogados”, se consolidou quando o deputado Algir Lorenzon publicou o já referenciado Relatório da
Comissão com o título “AFOGADOS: Até Quando?”. O termo ganhou mais amplitude pelo destaque que a
imprensa deu a matéria naquele ano, muitas vezes se referindo aos agricultores como “Afogados”.
Apesar de tais referências, é possível que tal alcunha tenha aparecido há alguns anos antes. Em seu
livro de memórias, o Prefeito de Ibirubá entre 1963 e 1968, Olavo Stefanello, havia sido procurado pelos
atingidos para que intervisse em seus clamores. Assim, Olavo teria os denominado de “Afogados”: “Os
afogados do Passo Real, como eu os denominei, só aceitariam sair de suas terras pacificamente se a CEEE e
os governos lhe dessem outras terras, assentando-os não distante dali e com a mesma infraestrutura”
(STEFANELLO, 2008: 227).
O então Prefeito de Ibirubá também relata que se entrevistara com os Presidentes Castello Branco,
Costa e Silva e Médici, dizendo que “como a solução ideal e necessária” tardou em vir, muitas audiências e
reuniões foram realizadas sem que o problema fosse resolvido (STEFANELLO, 2008: 227).
Para além da origem de tal denominação, é interessante analisar como os atingidos forjaram uma
identidade na luta pela terra e se reconhecendo como “afogados” clamaram por justiça social. Em um
Granja é como coloquialmente se referem à propriedades rurais, independente do tamanho, na região do Alto Jacuí.
Embora a Fazenda Annoni também tenha recebido Afogados do Passo Real, ela foi palco de um processo mais amplo, abrigando
trabalhadores rurais sem terra de diversas partes do Rio Grande do Sul. Neste sentido é interessante contemplar a dissertação “A
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE DA TERRA NO PROCESSO DE DESAPROPRIAÇÃO DA FAZENDA ANNONI (1972-1993)” de
Simone Lopes Dickel (2016): A Fazenda Annoni, localizada na região Norte do Rio Grande do Sul, pertencente aos municípios de Pontão
e Sarandi, ganhou espaço nos noticiários no ano de 1985. Ficou conhecida quando foi alvo da maior ocupação de terras no Brasil até
então, coordenada pelo recém-criado Movimento dos Sem Terra (MST) no início do período democrático. No ano de 2015, a ocupação,
que contribuiu para tornar a fazenda um dos símbolos da reforma agrária, feita por mais de 1500 famílias de sem-terra, completou 30
anos. No entanto, antes disso, um conflito importante – e pouco conhecido em torno da desapropriação da Annoni – acontecia desde o
início da década de 1970, envolvendo os desapropriados (família Annoni) e a União. Parte remanescente do grande latifúndio regional
denominado Fazenda Sarandi, que foi palco constante de conflitos em torno da terra por diferentes sujeitos, a Annoni teve seu decreto
de desapropriação baixado em 1972, no entanto, pouco se sabe sobre o processo judicial de desapropriação. O conflito na justiça, que
rendeu a este processo judicial o título de um dos maiores processos cíveis vistos no Brasil até então, perpassa as décadas 1970, 1980 e
1990 e se estende até os dias atuais.
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documento sem data intitulado “Os Afogados do Passo Real”12 encontrado nos arquivos do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos, o processo histórico em questão é referenciado como a “triste e
desumana história dos Afogados do Passo Real”. No documento é relatada a desapropriação de mais de 1600
propriedades rurais, em sua maioria minifúndios, para a instalação da barragem. Também sinaliza as
famílias que já foram reassentadas e cobra das autoridades responsáveis uma atitude para solucionar o
problema que agoniza as famílias que por mais de 12 anos esperam o reassentamento.
O texto em questão também ressalta o apoio do movimento sindical, considerando os sindicatos dos
trabalhadores rurais de Cruz Alta, Ibirubá, Espumoso e Fortaleza dos Valos. Ademais, agradece o apoio da
Federação dos Trabalhadores Agrícolas do Estado (FETAG-RS) no amparo aos sindicalistas filiados e
também cita o empenho das Prefeituras e Câmara de Vereadores das cidades atingidas na ajuda aos Afogados
na luta pela terra.
Neste sentido é salutar apreciar outro documento, uma nota de solidariedade elaborada pela
Regional Sindical dos Trabalhadores Rurais do Alto Jacuí, datada de 11 de outubro de 1983. A referida
Regional Sindical era composta por 12 municípios e representava mais de 20 mil sindicalistas. A nota de
solidariedade assinala que era de conhecimento público a angustiante situação daquelas famílias, suas vidas
incertas e errantes em função da morosidade dos órgãos oficiais responsáveis em reassentá-los:
Nesse momento em que os “AFOGADOS DO PASSO REAL”, passaram a ser
reconhecidos, lutam organizadamente pela conquista de seus legítimos direitos e
clamam por Justiça Social, nós, dirigentes dos Sindicatos signatários,
HIPOTECAMOS NOSSA SOLIDARIEDADE, IRRESTRITO APOIO ÀS
REIVINDICAÇÕES dos COMPANHEIROS e dispomos a auxiliá-los na sustentação
de tão justo movimento13.
Neste ínterim, outro documento, encontrado no sindicato de Fortaleza dos Valos, nos revela como os
Afogados alicerçaram sua identidade e constituíram um discurso firme na luta pela terra. No documento
intitulado “O Manifesto dos Afogados da Barragem do Passo Real” elaborado em viagem a Porto Alegre, os
trabalhadores alegaram esclarecer às autoridades quem eles eram:
Afogados do Passo Real, não vadios. “Afogados” por que as propriedades, onde
tirávamos o nosso sustento e para nossos filhos, está de baixo da água da barragem
e por isso estamos há 13 anos nessa situação de pobreza porque hoje nós somos:
biscateiros, meeiros, arrendatários, peões, empregados e muitos de nós sem
emprego... Nós não podemos mais ficar em silêncio14.
No decorrer do texto, os Afogados atestam que não podem ficar em silêncio por que, se agissem de tal
forma, estariam traindo seus próprios filhos, que lhes poderiam dar esperança, e se lhes devolvessem as
terras, poderiam voltar a trabalhar como faziam há 13 anos. Também sinalizam que tal situação aconteceu
por que antes eles não “enxergavam”, mas no seu agora estavam unidos e fortes, pois tinham do seu lado os
sindicatos, as Igrejas e algumas autoridades. Por conseguinte, os Afogados relatam que ficaram
extremamente ofendidos com uma publicação feita por pessoas “que ocupam cargos importantes” em um
Jornal de Cruz Alta: que eles já haveriam vendido suas terras ou que já tinham sido indenizados.
Assim, tendo sua legitimidade questionada por determinados setores da sociedade, percebe-se que os
Afogados se ancoraram na construção de uma identidade que os unia e que lhes dava consistência para
reclamar por justiça social e consolidar a luta pela terra. Neste sentido, fizeram uma cobrança às autoridades
Os Afogados do Passo Real. S/D. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
Nota de Solidariedade. Regional Sindical dos Trabalhadores Rurais do Alto Jacuí. 11/10/1983. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Fortaleza dos Valos.
14 O Manifesto dos Afogados da Barragem do Passo Real. 08/11/1983. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos
Valos.
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superiores, cobrando uma posição do Governador do Estado, Jair Soares, que em sua campanha havia
prometido dar uma “chance” com terras e trabalho para os colonos e empregados. Além disso, se dirigiram à
Assembleia Legislativa, reclamando aos deputados que foram eleitos para cuidar dos “nossos direitos”.
Referente ao INCRA sinalizaram que este deveria lutar “com nós e por nós”, dizendo que é para tal fim que
ele existe. Também se referiram a FETAG, assinalando que esperavam que a entidade continuasse os
incentivando como tinha feito até então. O mesmo disseram das autoridades locais e das pessoas da
comunidade, confiando que estes compreendessem sua situação.
No fim do documento, os Afogados sentenciaram que era seu direito ficar no Rio Grande do Sul, por
que foi ali que perderam suas terras. Este aspecto vai ao encontro do que disse o Ex-Prefeito de Ibirubá,
Olavo Stefanello, que os trabalhadores só aceitariam sair de suas terras se fossem reassentados em lugares
não distantes e com a mesma infraestrutura. Esse aspecto também pode ser corroborado com outro
documento, uma declaração15 feita pelo agricultor A.B, que alegou ao Governador Jair Soares que não queria
ir para as terras que lhe foram designadas no Salto do Jacuí pelo seguinte motivo: “Alego que as terras
concedidas pelo Governo do Estado, são bem inferiores em área do que aquela que fomos desapropriados, e
que a produção que venha a serem produzidos sobre as mesmas, não cobrirão as despesas de manutenção
pessoal e familiar”.
Portanto, se entende que os Afogados exigiam que o reassentamento fosse realizado em regiões
próximas e em condições semelhantes ou superiores a que se encontravam antes do alagamento. Neste caso,
as terras não poderiam ser menores ou de qualidade inferior, ou seja, que não possibilitasse a manutenção e
a reprodução da economia familiar. Este aspecto nos permite discutir os Afogados do Passo Real enquanto
camponeses. Para Márcia Motta e Paulo Zarth (2009: 11), no Brasil a condição camponesa seria bastante
diversa, incluindo proprietários, posseiros e pequenos arrendatários, e desde extrativistas e agroextrativistas
até quilombolas e os novos poliprodutores resultantes dos assentamentos de Reforma Agrária.
Para reconhecer a forma camponesa não basta considerar a especificidade da organização interna à
unidade de produção e à família trabalhadora e gestora dos meios de produção alocados. É necessário a
compreensão mais ampla do mundo cultural, político, econômico e social em que o camponês produz e se
reproduz:
Da coexistência com outros agentes sociais, o camponês se constitui como categoria
política, reconhecendo-se pela possibilidade de referência identitária e de
organização social, isto é, em luta por objetivos comuns, ou mediante a luta,
tornados comuns e projetivos (MOTTA & ZARTH, 2009: 10-11).
Assim, é possível reconhecer os esforços desempenhados pelos desalojados do Passo Real como uma
forma de luta camponesa, já que ao se reconhecerem mediante a identidade de Afogados, se organizando em
torno de objetivos comuns na busca por seus direitos legítimos.
Em março de 1988, o Delegado regional do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário
(MIRAD) enviou ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos um documento 16 no qual
pedia colaboração para o cadastramento dos desalojados, dando um sinal que iria reassentá-los. A questão,
no entanto, é que somente teriam prioridade às pessoas que estivessem na situação de agricultores sem-terra,
não priorizando aqueles que tivessem terra ou estivessem empregados, ou em condições razoáveis. O
problema é como medir as tais “condições razoáveis”. O fato de o sujeito estar empregado não o
desqualificaria como sem terra, talvez fosse a única solução circunstancial para sustentar sua família. No caso
dos Afogados que ainda tivessem um pedaço de terra, de todo modo não era o que possuíam antes do
alagado, e na maioria dos casos não era suficiente para sua manutenção.
Declaração A.B. 18/06/1984. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
Delegado Regional do MIRAD no Rio Grande do Sul. 11/03/1988. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos
Valos.
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Ainda não conseguimos aferir o tamanho dos lotes propostos pelo MIRAD nesses reassentamentos.
Entretanto, através da solicitação de cinco Afogados 17, é cabível dizer que as glebas eram inferiores àquelas
distribuídas nos primeiros Projetos Integrados de Colonização, que os outros desalojados receberam. Assim,
os Afogados, V.S.C, O.R.J, S.S, F.L.S, e A.S solicitavam, de “forma singela”, a igualdade no recebimento de
lotes com os que já foram reassentados:
Saiba V. Sª, que nós, em nossa maioria, trabalhamos de empregados em
estabelecimentos rurais, nestes longos anos recebendo salários mínimos e alguns
ainda percebendo percentagens sobre as colheitas, trabalhamos arduamente, pois
temos nossas famílias para sustentar, na alimentação e educação para fornecer
para nossos filhos e esposas, e sempre mantivemos a esperança de que um dia o
Governo Federal representado hoje pelo MIRAD, nos concederia um pedaço de
terra, mas não pensávamos que o mesmo seria tão pequeno, em relação aos
sofrimentos e angústias guardadas por estes longos anos.
Assinalamos, portanto, o caráter de perseverança e de resistência dos Afogados na luta pelo seu justo
direito a terra. Como se nota, na solicitação, os trabalhadores enfatizaram seu trabalho árduo assentado na
esperança de que um dia a justiça fosse feita. Contudo, encontramos o caso de um Afogado 18 que quando
recebeu a possibilidade do tão sonhado acesso a terra, já não tinha mais condições de seguir em frente. O
senhor A.M.S desistiu da proposta de reassentamento do MIRAD, motivo: alegou não ter mais condições de
trabalhar por estar muito doente. Tais exemplos demonstram que, depois de longos anos, a simples cessão de
um lote de terra, não era para muitos afogados, a solução para um problema que se inseria em uma equação
muito mais complexa. Neste sentido, sinalizamos que precisamos seguir com nossas pesquisas primárias,
para elaborar um panorama mais sólido dos reassentamentos em fins dos anos 1980, o que faremos em
ocasião futura.
Considerações finais
Os projetos de reassentamento dos atingidos pela barragem do Passo Real não deram conta de
abarcar todas as famílias prejudicadas. Assim, muitos desalojados, que por mais de doze anos
compartilhavam uma angustiante espera, resolveram romper o silêncio, e juntos, se empenharam na justa
luta pela terra. Estes trabalhadores rurais, arrendatários, parceiros, meeiros, empregados, diaristas e
pequenos proprietários, se uniram, a partir de suas reivindicações em torno de uma identidade, os Afogados
do Passo Real, que foi sendo forjada e consolidada conforme a luta pela terra avançava.
Obstinados pela conquista de suas demandas, marcharam firme e cobraram de todas as autoridades
competentes, as promessas que lhes foram feitas e que não foram cumpridas. Quando tiveram sua
idoneidade questionada por alguns setores da sociedade, não esmoreceram, e de cara limpa mostraram a
todos quem eram, trabalhadores determinados que reclamavam direitos legítimos. É importante lembrar que
os Afogados não se manifestaram sozinhos, tiveram o apoio da FETAG e de todos os Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais da região do Alto Jacuí, que hipotecaram sua solidariedade na busca por justiça social.
Também foi importante o auxílio prestado pelas autoridades locais, como a Prefeitura de Fortaleza dos Valos,
que elaborou um denso compêndio de documentos comprovando a legitimidade dos reclamantes e tentando
buscar caminhos para a solução daquela contenda.
Por um lado, ficou claro que a simples concessão de um pedaço de terra não significaria o fim dos
problemas e da luta. Os Afogados tiveram que resistir em suas justas exigências não querendo dar um passo
atrás. Alguns companheiros de luta não puderam seguir em frente, o tempo agiu e sem condições de saúde,
tiveram de desistir. Tal fato não diminuiu a seriedade do esforço destes trabalhadores rurais que se
17
18
Solicitação Afogados. S/D. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
Termo de desistência. 22/04/1988. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
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manifestaram e se mobilizaram legitimamente. A água pode ter alagado a terra onde muitos nasceram, mas
os Afogados que dali emergiram, construíram um importante passo na luta pela terra no Brasil.
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FONTES:
CEEE – Relatório acerca das propriedades que tiveram suas terras atingidas pelas águas da bacia de
alagamento do Passo Real. 08/09/1969. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos
Valos.
C.H. E Passo Real/Gleba92. 11/05/1965. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS.
Declaração A.B. 18/06/1984. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
Delegado Regional do MIRAD no Rio Grande do Sul. 11/03/1988. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Fortaleza dos Valos.
LORENZON, Algir (Org.). AFOGADOS: Até Quando? Relatório da Comissão Especial dos Agricultores
Desalojados do Passo Real. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul;
Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas. S/D.
Nota de Solidariedade. Regional Sindical dos Trabalhadores Rurais do Alto Jacuí. 11/10/1983. Arquivo do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
O Manifesto dos Afogados da Barragem do Passo Real. 08/11/1983. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Fortaleza dos Valos.
Os Afogados do Passo Real. S/D. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
Projeto Integrado de Colonização Sarandi (Gleba I – Invernada do Butiá) – Ministério da Agricultura –
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA Coordenadoria Regional do Rio Grande do
Sul – Publicado em dezembro de 1972.
Requerimento A.P.M. Desalojado do Passo Real. 8/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS.
Requerimento D.F.S. Desalojado do Passo Real. 10/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS.
Requerimento N.F.C. Desalojado do Passo Real. 10/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS.
Requerimento N.P.S. Desalojado do Passo Real. 08/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS.
Solicitação Afogados. S/D. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
Termo de desistência. 22/04/1988. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS:
DICKEL, Simone Lopes. A função social da propriedade da terra no processo de desapropriação da
Fazenda Annoni (1972-1993). 2016. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de Passo Fundo.
Passo Fundo.
LEAL, Giuliana Franco. O poder dos donos da terra: um balanço das organizações de proprietários e
empresários rurais na década de 90. Raízes, vol. 22, nº. 02, 2003.
MOTTA, Márcia & ZARTH, Paulo (orgs.). Formas de resistência camponesa: visibilidade de conflitos ao
longo da história, vol.2: concepções de justiça e resistência nas repúblicas do passado (1930-1960). São
Paulo: Editora Unesp; Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário, NEAD, 2009.
STEFANELLO, Olavo. Esmeraldas cá na terra, estrelas lá no céu. São Paulo: Editora Gente, 2008.
WOORTMANN, K. "Com parente não se neguceia": o campesinato como ordem moral. In: ANUÁRIO
ANTROPOLÓGICO 87. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1990. p. 11-73.
WOORTMANN, K. Migração, família e campesinato. In: WELCH, C. A. et al. (Org.).Camponeses brasileiros:
leituras e interpretações clássicas: v. 1. São Paulo: Unesp; Brasília: Nead, 2009. p. 217-238.
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A Ferrovia do Trigo como Patrimônio Cultural
Renan Pezzi1
Resumo: O presente trabalho analisará a Ferrovia do Trigo como patrimônio histórico para o município de
Guaporé e região dos vales do rio Taquari e Guaporé. Com os primeiros projetos de construção remetendo ao
ano de 1910. O processo de construção passou por diversas etapas e interrupções, sendo concluído apenas no
ano de 1978, ainda na década de 1980 os trens de passageiros tiveram suas atividades suspensas, e em 1996
as linhas férreas foram concedias à iniciativa privada, a partir disso, os espaços, ao longo do trajeto entre os
municípios de Guaporé e Muçum, acabaram sendo abandonados, e hoje se encontram em estado de
detrimento e/ou esquecimento. Muitos projetos para a implementação de um trem turístico vêm sendo
discutidos e apresentados ao longo dos anos, porém, nenhum deles discute a importância histórica e
patrimonial da ferrovia. Nesse sentido, este trabalho se compromete em discutir esses locais e na
possibilidade da utilização dos mesmos como espaço de memória e para fins turísticos.
Palavras-chave: Ferrovia, patrimônio, memória, turismo
Nesse artigo pretendemos analisar, a partir do processo histórico da construção e posterior
concessão da EF-491, popularmente conhecida como Ferrovia do Trigo, como a mesma pode ser considerada
um patrimônio histórico e também cultural, nesse sentido, para compor o trabalho, na maior parte, foram
utilizadas obras bibliográficas de autores locais que, a partir de diferentes pontos de vista, abordam o tema
selecionado, desde a parte econômica, passando pelo contexto histórico e, por fim, a patrimonial. Outra
importante fonte para a pesquisa foram as matérias de periódicos da região e documentos oficiais do
município de Guaporé.
No Brasil a preocupação com a preservação do patrimônio histórico remete à década de 1920, onde a
falta de cuidado com os bens materiais arquitetônicos culturais colocava em risco a sua conservação. Um
exemplo disso já era o descaso com as cidades históricas, o que na época chamou a atenção de algumas,
dando início a um movimento que buscava a conscientização da população para a necessidade de preservar
determinadas obras da arquitetura colonial. Uma vasta e diversificada lista de intelectuais da sociedade, que
posteriormente se integraram ao modernismo, desde o início do século XX, alertavam para as possíveis
perdas irreparáveis dos monumentos do Brasil caso não houvesse uma política preservacionista. Foram as
cidades históricas mineiras o grande achado deste grupo. Nestas, monumentos e núcleos urbanos estavam
abandonados, porém, mantendo a integridade estilística que contavam a história e refletiam a tradição
almejada. (TOMAZ, 2010. p.9)
A questão patrimonial é algo que está em constante e crescente discussão no meio acadêmico.
Partindo disso é que vamos propor um estudo que busque destacar o conhecimento e da preservação como
patrimônio cultural desta ferrovia, tanto para a região de Passo Fundo, como para os vales do Guaporé e
Taquari, durante as décadas de 1950 a 1990.
Algo que muito se discute na sociedade diz respeito à utilização e investimentos na malha ferroviária
do Brasil. Nesse sentido, tomamos como exemplo os países europeus, onde esse tipo de transporte surgiu e
vem sendo utilizado e ampliado desde então, seja no transporte de pessoas, como também nos demais tipos
de cargas. Desde a privatização das linhas férreas na década de 1990, grande parte das estradas de ferro do
país se encontram em estado de abandono, ou possuem uma pequena frota circulando.
Breve histórico da Ferrovia do Trigo
1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF), na linha de pesquisa: Cultura e
Patrimônio.
E-mail: renan_renan010@hotmail.com
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A região norte do estado do Rio Grande do Sul era a grande produtora de trigo e posteriormente se
tornou de soja, sendo que a principal forma de escoamento das imponentes safras era feita a partir do
transporte ferroviário. Podemos enfatizar a região de Passo Fundo no que diz respeito à produção de grãos,
ou moageira. A região de Passo Fundo destacou-se primeiramente com a produção do o trigo, que por várias
décadas era o principal produto da agricultura. Tempos depois foi substituído por outro cereal também de
grande importância, a soja.
Sobre o início do cultivo de trigo, Tedesco destaca que:
Especificamente na região de Passo Fundo, segundo Parizzi, em 1858, já se falava
deste cereal na Câmara Municipal. Na primeira estatística agrícola organizada pela
instituição figura uma plantação de 1 600 Kg, cuja colheita teria produzido 19 200
Kg, ou seja, um rendimento diminuto. Em 1875, a cultura ocupava no município
uma extensão de 654 400 m², sendo o quarto produto no ano; a terra era
preparada a enxada, e o processo consistia em roçar, derrubar e queimar as matas
para após fazer a plantação (TEDESCO, SANDER, 2005. p. 98)
A passagem do trem, com certeza, beneficiou a imensa maioria dos produtores do norte
riograndense. Nesse sentido, foram várias as categorias que viram um futuro mais próspero. Porém, um
problema que se observava estava relacionado à distância e o tempo que o trem gastava para chegar até Porto
Alegre. Primeiramente o trajeto era feito através da linha que saia de Passo Fundo, seguia para Santa Maria e
após para Porto Alegre. Essa era uma viagem de em média 24 horas, percorrendo cerca de 550 Km. Sendo
assim, Cristiane Secchi, destaca que, ainda no final do século XIX, apresentaram-se as primeiras iniciativas
para a construção da atual Ferrovia do Trigo. Segundo os projetos, a mesma deveria iniciar no município de
Lajeado e seguir pelo Rio Taquari, com destino final a cidade de Passo Fundo. Isso diminuiria o tempo para 8
horas, um quarto do que era gasto com o trajeto antigo, e então o trajeto teria pouco mais de 300 Km.
(SECCHI, 2008. p.46)
Em 1910 aconteceram as primeiras movimentações do governo e órgãos responsáveis para o início da
construção dessa nova estrada de ferro. No entanto, pouco tempo depois, em 1914, os mesmos estiveram
paralisados por conta da Grande Guerra que estava acontecendo na Europa. Então, após o final do conflito
(SECCHI, 2008. p.46), o governo brasileiro se encontrava em um período de muita instabilidade e crise
financeira, juntando tudo isso às tensões no governo Vargas, a partir de 1930, ainda podemos destacar a
eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Em matéria publicada no jornal Correio do Povo2, em 1973, é destacado que foi aprovado o projeto
de engenharia final para a construção e que os investimentos do Ministério dos Transportes, para a
modernização do transporte ferroviário nacional, chegavam a 11 bilhões e 800 milhões de cruzeiros para o
triênio 1973-75. A matéria ainda destaca que “no caso específico da L 35, 3 que mudaria de nome para EF-491,
as inversões financeiras se justificam plenamente em face da demanda de transporte de produtos para a
região, onde se alinham o trigo em grão, farelo de soja, sorgo, calcário, cimento, fertilizantes, derivados de
petróleo e outros ”.
A inauguração da Ferrovia do Trigo estava prevista para o ano de 1977. No entanto, um novo atraso
na conclusão das obras adiou para o ano seguinte esse acontecimento. E foi somente em dezembro de 1978,
após 68 anos, que oficialmente ocorreu a entrega da EF-491, em uma cerimônia contando com a presença do
então Presidente da República, General Ernesto Geisel. Na manhã do dia 8 de dezembro de 1978, o
presidente chegou ao Aeroporto de Passo Fundo, sendo recebido pelo Prefeito Wolmar Salton, seguindo até a
nova Gare do município, onde proferiu um discurso e posteriormente iniciou a viagem inaugural com destino
final a cidade de Porto Alegre. Antes disso seria feita mais uma parada na cidade de Guaporé, onde também
2
3
FERROVIA DO TRIGO TEM SEU PROJETO FINAL DE ENGENHARIA. O Correio do Povo, 31 ago. de 1973.
Este foi o primeiro nome dado para a Ferrovia do Trigo.
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estava programada a inauguração da estação ferroviária da cidade e, para descerrar uma placa alusiva aos 75
anos de emancipação do município. É fato que uma multidão aguardava a chegada da autoridade.
Os trens de passageiros iniciaram suas atividades na linha Passo Fundo-Porto Alegre no final do ano
de 1979. Antes disso já trafegavam pela Ferrovia do Trigo outros trens transportando as safras de soja e trigo
da região Norte do RS.
O abandono do transporte ferroviário brasileiro, no caso da Ferrovia do Trigo, aconteceu pouco
tempo depois da inauguração oficial, muito por conta das novas rodovias e praticidade desse tipo de
transporte. E também pela questão do alto consumo de diesel dos trens em comparação aos caminhões,
segundo alegavam o governo e os órgão responsáveis.
Segundo Ana Julian Faccio e Aldomar Arnaldo Rückert, o modelo de privatização brasileiro tomou
impulso durante o governo Collor. Porém, no início dos anos 1980, já havia sido criada a Comissão Nacional
de Desestatização (CND). O processo de desestatização do setor ferroviário foi iniciado a partir do momento
em que a RFFSA passou a integrar o PND (Plano Nacional de Desestatização). A rede foi dividida em seis
grandes malhas, sendo que o processo de concessão dessas iniciou em 1996, durante o governo Fernando
Henrique Cardoso, e a malha da região sul foi leiloada para a América Latina Logística (ALL), no ano de
1997. (FACCIO, RÜCKERT, 2014. p.55)
Foi durante os dois mandatos de Fernando Henrique (1995 – 2002) que a política de desestatização
foi aplicada com mais força, onde vários ramos da economia sofreram privatizações ou concessões. Alicia
Gimenez, mostra que para FHC o avanço destas práticas possibilitaria que, com a entrada de capital
estrangeiro, as áreas estratégicas da economia nacional poderiam superar os déficits causados pela “má
administração pública” dessas empresas. A autora ainda destaca que:
O papel do Estado como provedor do desenvolvimento econômico e dos principais
setores da infraestrutura estava saturado. Claro que o processo de privatizações
sofreu severas críticas de diversos grupos, tanto de grupos de esquerda,
movimentos sindicalistas e até membros do próprio governo. Porém, tais críticas
não impediram que boa parte das empresas estatais fosse entregue à iniciativa
privada, muitas vezes por valores muito abaixo do real valor de mercado, sob o
argumento de que tais empresas seriam melhor administradas e trariam mais
lucros ao país se ficassem nas mãos de capitalistas, já que para o governo não seria
mais possível manter um número tão grande de empresas em sua maioria
endividadas. (GIMENEZ, 2013. p.14)
Revitalização do patrimônio e utilização com fins turísticos
Diferente de Passo Fundo, a cidade de Guaporé não se desenvolveu às margens da ferrovia, pois a
estrada de ferro possuía o seu traçado um pouco distante dos antigos limites urbanos. Atualmente existem
algumas residências nas proximidades da linha, porém as mesmas não foram construídas no local por conta
da passagem do trem. Pelo contrário, o então Bairro Ferroviário começou a receber moradias apenas nos
anos 1990, durante os processos de concessão da EF-491. Talvez um fato que tenha barrado o crescimento da
cidade para aquela região, seja por conta do curto período de tempo em que o trem de passageiros tenha
estado em operação. Depois que os trens húngaros 4 encerraram as atividades, não havia mais motivos para,
por exemplo, o desenvolvimento de um comércio no local.
Como vimos anteriormente, a construção de uma Estrada de Ferro era necessária para o escoamento
mais eficaz da produção da região norte do Rio Grande do Sul, pois Passo Fundo se destacava como um dos
maiores produtores de trigo e posteriormente de soja. Já Guaporé, em determinado período, entre as décadas
“Os trens húngaros foram anunciados pelo governo federal no final de outubro de 1973. Ficaram com esse nome por terem sido
importados
da
Hungria
(fabricante:
Ganz-Mavag)
em
troca
de
café
brasileiro.”
Fonte:
Disponível
em:
<http://www.estacoesferroviarias.com.br/trens_sp_3/trem%20hungaro.htm> Acesso em julho de 2018.
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de 1920 – 40 também era um dos municípios de destaque na produção desses cerais. Porém, ao longo do
tempo, vários de seus territórios se desmembraram e deram origem a muitos outros municípios da região,
como destacado por Giovani Balbinot. Segundo o autor, o município de Guaporé, após os processos de
emancipação, acabou com apenas 20% do seu tamanho original, o que levou a um processo de mudança na
orientação econômica para a indústria joalheira e têxtil. (BALBINOT, 2014. p.136)
Atualmente, após o encerramento da linha de passageiros com o Trem Húngaro em 1982, as diversas
estações ao longo do trajeto foram sendo abandonadas. Hoje, algumas se encontram parcialmente
destruídas.
Durante muito tempo os poderes públicos dos municípios que compreendem o trajeto Guaporé –
Muçum, estiveram unidos na realização de projetos que buscassem implementar um roteiro turístico pela
região através dos trilhos. O primeiro projeto para um trem turístico surgiu em 1999, pouco tempo após a
concessão da malha ferroviária, conforme matéria do jornal Tribuna da Serra5, sob o título de “Guaporé
busca atrair turistas com trem Maria Fumaça”. Nesta matéria é destacado o cenário da Ferrovia do Trigo na
região de Guaporé e Muçum. A ideia era de implementar um passeio com uma locomotiva Maria Fumaça,
fazendo a rota entre os dois municípios pois, segundo cálculos, a ferrovia teria viabilidade econômica e
poderia ajudar a impulsionar o turismo nas cidades.
No mesmo ano, 1999, um oficio foi encaminhado para o então Ministro de Estado dos Transportes,
com o objetivo da liberação de passageiros, dando destaque para o fato de que a Ferrovia do Trigo possuía,
no trecho Guaporé – Muçum, seus “maiores atrativos”, sendo esses os viadutos e túneis, juntando com a
paisagem serrana dos vales que acabam “proporcionando panorama de invejável beleza e imponência”. O
documento segue evidenciando o objetivo da utilização da linha férrea com fins turísticos, segundo:
Com o objetivo de desenvolver o turismo na região e gerar emprego, solicitamos a
liberação da linha de passageiros para exploração turística ferroviária pela
Prefeitura Municipal de Guaporé, aos finais de semana e feriados (...) salientamos,
também, que o nosso município é polo na industrialização da semi-jóia e possui um
dos autódromos mais belos e seguros do país. Isso, somado ao grande turismo
desenvolvido pela região de Caxias do Sul, proporcionará maior oportunidade de
visitação pública, gerando o aumento de nossas divisas e trabalho a nossa
população.6
Em resposta, o Secretário de Transportes Terrestres Substituto, Carlos Guterres Parada Júnior,
encaminhou ofício com anexo de uma “cópia da Norma Complementar nº 8, de 8/8/2000, publicada no
DOU (Diário Oficial da União), em 10/8/2000, a qual estabelece diretrizes para tratamento de solicitações
relativas à prestação de serviço excepcional de transporte ferroviário de passageiros” 7. Tal norma indica que a
liberação das linhas sob concessão é destinada, conforme Art. 2º, apenas no “atendimento de órgãos ou
entidades sem fins lucrativos; na realização de eventos específicos e isolados, de natureza cultural; duração
pré-estabelecida; ou descontinuidade na prestação dos serviços”. 8
Analisando os exemplos acima citados, podemos perceber que, na primeira tentativa, a implantação
de um roteiro turístico envolvendo a Ferrovia do Trigo foi barrada por um ponto nas diretrizes do Ministério
dos Transportes.
Vale ressaltar que, na época não existia um projeto bem elaborado para colocar em prática um
roteiro turístico ferroviário e cultural na região. Sendo assim, nos anos seguintes, os municípios que
compõem a região de abrangência da ferrovia entre Guaporé e Estrela e formam a Associação dos Municípios
de Turismo da Região dos Vales (AMTURVALES); firmam uma união para discutir possíveis propostas e
projetos de turismo envolvendo o transporte ferroviário. Tal associação possui um papel muito importante
Guaporé busca atrair turistas com trem Maria Fumaça. Tribuna da Serra. p.3. Guaporé. 22 jul. de 1999.
Prefeitura Municipal de Guaporé, Ofício 168-99.
7 Ministério dos Transportes Secretaria de Transportes Terrestres, Ofício Circular nº 017/STT/MT.
8 Diário Oficial da União, 10/08/2000. Seção 1, p. 15.
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para que assim sejam propostas novas práticas, que visam o turismo. Essa união entre os municípios
fortalece seus ideais.
Em 2010, na cidade de Guaporé, ocorreu uma cerimônia de entrega simbólica dos vagões para serem
utilizados no transporte de passageiros no roteiro turístico, bem como o lançamento de uma campanha que
visava a implantação do trem turístico até o ano de 2014, sob o título de Copa pelo Rio Grande. Na imagem
abaixo pode ser observado o convite para estas cerimonias.
Figura 1: Convite para cerimônia de entrega dos vagões e campanha Copa pelo Rio Grande
Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Guaporé. 2010
Na ocasião, como descrito em matéria publicada no jornal Informativo Regional, os representantes
das principais entidades ligadas ao projeto participaram da entrega simbólica dos seis vagões doados pelo
Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (DNIT), os quais seriam restaurados e
posteriormente usados para o passeio.9
O projeto não foi concretizado até o presente e os municípios ainda estão à espera da revitalização e
entrega definitiva dos vagões. Junto a isso, aguardam a liberação da empresa responsável pelos serviços
atuais das linhas, para a circulação do trem turístico. Como salienta matéria publicada no site da
AMTURVALES:
Ainda restam alguns estudos técnicos da viabilidade de se trazer um ‘veículo’ como
esse e processos com o Governo Federal (Dnit) e com a ALL para a implantação
deste trem”, diz Arruda. Entre os trâmites para a implantação do “Trem de
Passageiros” está a liberação da linha férrea (direito de trânsito), em determinados
horários, pela América Latina Logística (ALL), detentora da concessão. Outro
“problema” é a documentação liberatória do Departamento Nacional de
Infraestrutura de Transportes (Dnit) para que se coloque um trem de passageiros
na linha, que há tempos é ocupada somente por trens de carga. Arruda salienta que
existem várias regras da Agência Nacional de Transporte Terrestres (ANTT). 10
Entrega de Vagões e lançamento da Copa pelo Rio Grande acontece hoje. Informativo Regional. Guaporé. p.4 30 abr. de 2010.
Ferrovia do Trigo: Trem turístico deve ser implantado em 2015, disponível em: < http://www.amturvales.com.br/noticias/ferroviado-trigo-trem-turistico-deve-ser-implantado-em-2015> Acesso em, jun. de 2018.
9
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Sobre essas questões que andam atrasando a implantação do roteiro turístico, podemos ainda
destacar um avanço nas negociações por parte do DNIT, conforme ofício encaminhado ao Prefeito Municipal
pelo órgão,11 no dia 04 de abril de 2016. Neste, referindo-se ao pedido de cessão de uso gratuito de bem
imóvel, no caso, a Estação Ferroviária de Guaporé, com prazo de vigência do contrato por 20 anos, conforme
nota do DOU12.
A partir dos documentos mencionados e das matérias jornalísticas, pudemos analisar que, desde os
primeiros anos pós concessão a Ferrovia do Trigo, esta demostrava ter uma valiosa importância para os
municípios da região. Nesse sentido, o turismo seria uma alternativa para gerar mais empregos e PIB para as
cidades.
O próximo passo é a conscientização da população sobre a preservação dos patrimônios. Nesse
trabalho focamos especialmente no caso da cidade de Guaporé e de seu complexo ferroviário. Como já
analisado anteriormente, a construção se encontra em estado de abandono e parte dela é utilizada como
moradia, sendo interessante a revitalização e realocação das pessoas que hoje lá vivem em outras regiões da
cidade.
Em 2006, foi instituída pelo Poder Público Municipal a lei nº 2699/2006, cuja finalidade é a de
preservação do patrimônio natural e cultural do município, juntamente com o tombamento dos mesmos. O
Art 2º descreve o seguinte:
O patrimônio natural e cultural do Município de Guaporé é constituído por bens
móveis ou imóveis, de natureza material ou imaterial, tomados individualmente ou
em conjunto, existentes em seu território e cuja preservação seja de interesse
público, dado o seu valor histórico, artístico, ecológico, bibliográfico, documental,
religioso, folclórico, etnográfico, arqueológico, paleontológico, paisagístico,
turístico ou científico. (GUAPORÉ, 2006)
Se tal lei for aplicada corretamente, possibilitará elevar a importância do complexo ferroviário da
cidade de Guaporé, no sentido do valor histórico cultural e turístico regional. Aqui, já apresentamos os
principais motivos pelos quais a EF-491 possui importância histórica e cultural para a região. E que pode ser
considerado com um dos bens integrantes da preservação do patrimônio histórico e da memória da
população local, e também para viabilizar e consolidar os projetos de recolocação da linha de passageiros.
Sobre o turismo ferroviário no Brasil, citamos o trabalho de Vera Lúcia Borges e Clara Fraga. As
autoras abordam a utilização das linhas férreas construídas durante a República Velha, as quais atualmente
servem como roteiros turísticos. Sobre isso, é destacado que:
Com o passar do tempo, os viajantes e os residentes foram associando aos trens em
circulação referências à prosperidade e euforia daquele período que parece ter sido
passado pelas gerações. Provavelmente, a sensação de idealização por momentos
vividos no passado, associado às lembranças de felicidade, seja, no presente,
importante componente de apelo para este mergulho no passado da história do
país sob o barulho da Maria Fumaça. Dito de outra maneira, na atualidade, os trens
levam seus passageiros ao mergulho no tempo de crescimento do Brasil marcado
por fortes elementos culturais que podem ser potencializados como produtos
turísticos ímpares em prol do desenvolvimento do turismo ferroviário no País.
(BORGES, FRAGA, 2015. p. 12)
11
12
DNIT Ofício nº 208/2016/CGPF/DIF/DNIT.
Diário Oficial da União, 22/03/2016. Seção 3, p. 107.
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Um importante ponto abordado pelas autoras pode ser utilizado para este trabalho. Em uma das
conclusões em que se trata a respeito da importância de se investir no transporte ferroviário como atrativo
turístico, cita-se que é válido por estar ligado ao passado das regiões onde o mesmo é implementado. A
proposta leva os passageiros a uma viagem no tempo, de volta a um período onde o “progresso” chegaria
junto com os trilhos e seria anunciado ao som do trem. Assim, podendo amenizar a frustração da população
que hoje observa a situação na qual se encontram a maioria das Estradas de Ferro do país.
Considerações finais
Seria importante, caso o projeto de um trem turístico se concretize, a revitalização do espaço e a
conscientização do poder público para que o mesmo possa integrar a lista de bens tombados, de tal forma
que possibilite a preservação e reconhecimento do mesmo como patrimônio histórico e cultural do município
e região.
Com a ferrovia sob concessão da ALL, a única expectativa para a volta dos trens de passageiros está
por conta da aprovação e implementação de um roteiro turístico. Também foi possível observar nessa parte
do trabalho, que existe empenho dos governos municipais e no setor privado para que, enfim, os projetos
saiam do papel.
Focando no complexo ferroviário da cidade de Guaporé onde, o local precisa passar por uma
revitalização para então poder atender aos turistas e à população local que, se constituído o projeto, passarão
a utilizar o seu espaço. É válido aqui destacar que, num primeiro momento, seria uma ideia quase que
utópica tentar recuperar todos os patrimônios ferroviários das cidades presentes no percurso. Porém, é
necessário que os principais estejam em boas condições para a utilização, sendo a cidade em questão um dos
polos destacáveis para o desenvolvimento do projeto. Nesse sentido, a mesma deve apresentar uma estrutura
condizente.
Dessa forma, seria interessante, em um primeiro momento, a inclusão do complexo ferroviário de
Guaporé na lista dos patrimônios tombados do município. O próximo passo poderia ser a revitalização do
espaço, transformando-o novamente em um lugar com a devida capacidade para atender o público que
passará a frequentá-lo. Na observação deste último aspecto, podemos destacar o estudo de Alexandre
Concari. Seu trabalho consiste em um projeto arquitetônico de revitalização do complexo, juntamente com a
criação de um parque urbano. O projeto é bastante ambicioso, porém possui importância, tendo em vista
que, a partir deste será elevada a relevância do local para o patrimônio cultural da cidade. Entre todas as
propostas de revitalização de todo o espaço apresentadas por Alexandre Concari uma das que mais chama a
atenção é a da revitalização e posterior utilização do antigo edifício da Estação Ferroviária:
A proposta para o edifício da Estação Ferroviária, consiste em ativar o edifício e seu
entorno, agregando novos usos, como visto no programa de necessidades, não
somente como ponto final do trajeto do Trem turístico. A proposição do Museu da
Memória Ferroviária no antigo armazém, junto ao Café Vagão, atrai outros
públicos ao local mantendo-o ativo nos demais dias. A presença da Secretaria do
Turismo no segundo pavimento, movimenta o complexo com o fluxo necessário à
sua operação, em um ponto estratégico da cidade junto a um setor de informações
turísticas para os visitantes que podem a partir daí conhecer outros atrativos da
cidade. (CONCARI, 2017. p. 70)
A ideia proposta se assemelha a outro projeto de revitalização de importante patrimônio tombado e
posteriormente utilizado por órgãos públicos. Nos referimos ao prédio que no passado serviu como a sede de
uma das maiores e mais importantes indústrias da cidade e região, o qual passou por uma ampla reforma e
serve como sede do Arquivo Histórico Municipal, Junta Militar e demais serviços públicos do município.
Sendo assim, constituiu-se em uma boa forma de aproveitamento e também preservação dos espaços
integrantes ao patrimônio cultural.
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Feita a primeira parte de reconhecimento, tombamento e revitalização do patrimônio ferroviário,
passamos para outra importante etapa: a da conscientização da população para a conservação dos espaços.
Nesse ponto devemos focar na população como um todo. Porém, algumas propostas interessantes podem ser
tomadas como, por exemplo, a inclusão de temas ligados ao patrimônio cultural e sua preservação nas
escolas, onde os professores poderão levar os jovens alunos para aulas extraclasse posteriormente aos
assuntos teóricos, tratados em sala de aula. Desse modo, os estudantes poderão acompanhar na prática quais
são os patrimônios de sua cidade e o porquê da importância de preservá-los.
A participação popular é um dos fatores que melhor contribuem para a preservação da história de
determinado local. E é através do povo que podemos determinar se um espaço ou construção tem o devido
valor histórico para aquela comunidade e assim ser preservado. Como apresentado por Ana Paula Wickert,
em um estudo sobre o patrimônio cultural do distrito de Evangelista, no município de Casca, a opinião
popular teve grande relevância para o trabalho de reconhecimento do patrimônio cultural. Neste caso, a
maioria dos moradores da localidade, em um parecer, mostrou-se favorável às práticas de preservação.
(WICKERT, 2004. p.72) Dessa forma, como analisado anteriormente, acreditamos que a união entre os
estudos históricos, arquitetônicos e a participação da população, aliados aos órgãos públicos municipais e
regionais, são a maior arma contra o descaso e o abandono de parte da história de um lugar específico.
Referências bibliográficas
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couro (1892-1980). 2014.
BORGES, V.L.B. & FRAGA, C. (2015). Turismo e Ferrovia no Brasil: Um estudo sobre as heranças da
primeira República. Política e Planejamento do Turismo. XII Seminário da Associação Nacional de Pesquisa
e Pós Graduação em Turismo – ANPTUR. Natal, Rio Grande do Norte.
CONCARI, Alexandre. Revitalização Do Patrimônio Ferroviário De Guaporé. 2017. 85 f. TCC
(Graduação) - Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, 2017
FACCIO, Ana Julian; RÜCKERT, Aldomar Arnaldo. Infraestrutura Ferroviária e Privatização: o Caso do
Ramal Passo Fundo - Marcelino Ramos na Região do Alto Uruguai/RS. Revista de Geopolítica, Natal,
v. 5, n. 1, jan. 2014.
GIMENEZ, Alicia Ribeiro Pinto de Andrade. Privatizações no Governo FHC e a Evolução do
Transporte Rodoviário no Brasil. 2013. 42 f. TCC (Graduação) - Curso de Ciências Econômicas,
Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2013.
GUAPORÉ, Lei nº2699/2006, de 16 de junho de 2006. Dispõe sobre a preservação do patrimônio natural e
cultural do município de Guaporé e institui o fundo de proteção do patrimônio cultural de Guaporé.
Guaporé. 2006
SECCHI, Cristiane. Ferrovia do Trigo: uma História Sobre os Trilhos (1940-1980). 2008. 152 f. TCC
(Graduação) - Curso de História, Univates, Lajeado, 2008.
TEDESCO, João Carlos; SANDER, Roberto. Madeireiros, comerciantes e granjeiros: lógicas e contradições
no processo de desenvolvimento socioeconômico de Passo Fundo (1900-1960). Passo Fundo: Ed.
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TOMAZ, César Paulo. A preservação do patrimônio cultural e sua trajetória no Brasil. Revista de História e
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WICKERT, Ana Paula. Linha 15: patrimônio, memória e cultura. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo
Fundo, 2004.
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As comemorações do 25 de julho de 1956, no Rio Grande do Sul
René Ernaini Gertz*
Resumo: Como mostram os trabalhos de Roswithia Weber, a partir de 1924 ocorreram comemorações do
25 de julho, simbolizando o início da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Ainda que se tratasse de uma
data específica aos alemães e descendentes, tentou-se dar um cunho mais geral ao evento, designando-o
como “Dia do Colono”, como a homenagear o conjunto dos imigrantes que deram origem a um sistema de
pequena propriedade no estado. Esses festejos se adensaram ao longo da década de 1930, mas foram
interrompidos pela política de nacionalização, durante o Estado Novo (1937-1945). Depois da guerra, eles
recomeçaram de forma muito tímida, mas há indícios de que em 1956 eles novamente atingiram uma
intensidade comparável à do período anterior à política de nacionalização. É este o tema desta apresentação.
Este ensaio faz parte de um projeto de pesquisa histórica intitulado “O rescaldo da Segunda Guerra
Mundial no Rio Grande do Sul”. Há bibliografia respeitável sobre manifestações verbais, movimentos e ações
para pensar, definir, fortalecer o “caráter nacional” brasileiro, a “identidade nacional”, ao longo do século
XX. Entre outras facetas do tema, está a preocupação em determinar as características necessárias para uma
pessoa ou um grupo ser um “típico ou verdadeiro brasileiro” – e sua contrapartida, isto é, aquele(s) que não
apresentaria(m) as qualidades de cidadão pleno. Nesta perspectiva, ganharam importância imigrantes e
descendentes, em especial aqueles vindos de alguns países. É muito provável que japoneses e descendentes
tenham despertado as maiores preocupações, tanto entre parcelas da população quanto entre uma elite
pensante e agentes de Estado. Judeus, negros, poloneses e descendentes, alemães e descendentes vêm a
seguir. Debates e medidas a respeito se aprofundaram a partir de 1930, e tudo isso desembocou naquilo que
ficou conhecido como uma generalizada “campanha de nacionalização”, após a decretação do Estado Novo,
em 1937 (GERTZ, 2014b).
Aqui interessam, especificamente, alemães e descendentes, no Rio Grande do Sul. Em relação a eles,
cabe destacar – sem entrar numa “avaliação” ou no estabelecimento da “verdade” sobre essa polêmica – que
havia, por um lado, longa tradição de prevenção contra eles, com desconfianças quanto à sua lealdade ao
Brasil, a suas qualidades de cidadãos brasileiros, por parte de intelectuais, de setores da sociedade em geral e
de agentes de Estado; por outro lado, havia, entre eles, de fato, defensores da preservação da pureza genética
e da identidade cultural, eventualmente, até religiosa. Duas palavras resumem as posições derivadas dessa
realidade. Por um lado, aqueles que faziam restrições a essa população naquilo que tange à sua integração e
lealdade ao país falavam em “perigo alemão” (GERTZ, 1991); por outro lado, a palavra “germanismo”
caracterizava aqueles que diziam que alemães e descendentes deveriam – para serem úteis à sua “nova
pátria” – evitar a miscigenação e o abandono de suas características étnico-culturais, com destaque para a
língua (GERTZ, 1987, p. 92-105). Como escreveu Giralda Seyferth (1989), tratava-se de “dois discursos
étnicos irredutíveis”.
Como tais, o confronto verbal, que vinha de longa data, alcançou um ápice a partir de 1938, com a
“campanha de nacionalização”, desembocando, em considerável número de oportunidades, em violências
físicas, nos anos seguintes, até o final da Segunda Guerra Mundial. E é ao “rescaldo” desses acontecimentos –
alguns dos quais literalmente marcados pelo fogo – que se refere o projeto em que se insere o presente
estudo.
Para uma compreensão adequada da situação, é necessário um pequeno recuo no tempo, ao menos
em relação àquilo que aconteceu dentro da “colônia alemã”, a partir de 1924. A revolução de 1923, entre
Borges de Medeiros e Assis Brasil, quebrou a espinha dorsal política daquele. Está muito claro que uma
Graduado em História pela UNISINOS; mestre em Ciência Política pela UFRGS; doutor em Ciência Política pela Universidade Livre de
Berlim; ex-professor na PUCRS e na UFRGS; aposentado. E-mail: gertz@cpovo.net
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parcela da população percebeu esse fato, e começou a lutar em favor de uma maior autonomia para serem
governados, dentro de seus respectivos municípios, por representantes locais – e não mais por chefes do
executivo impostos pelo Partido Republicano Rio-Grandense, muitas vezes vindos de fora das comunas. Isso
se refletiu nas eleições de 1924, mas, sobretudo, nas de 1928. Esse contexto mostra que, durante a segunda
metade da década de 1920, ao menos uma parte da população da “colônia alemã” se mobilizou em termos
políticos, sociais, econômicos, mas também em termos culturais, no sentido de recuperar uma autoestima
que havia sofrido sérios arranhões durante a Primeira Guerra Mundial (GERTZ, 2002, p. 124-150).
Os festejos do centenário da imigração alemã, em 1924, se inserem nesse processo (WEBER, 2004).
Nos anos seguintes, sobretudo após a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha – fato visto por aqui como
uma recuperação da autoestima também na “pátria-mãe”, após as humilhações sofridas com a Primeira
Guerra Mundial –, a mobilização pela cultura e identidade próprias, específicas do grupo, teve um
incremento perceptível. Palavras como “movimento pró-25 de julho” ou campanhas por “nosso dia” foram
popularizadas. E essa mobilização foi favorecida pelo governo Flores da Cunha (1930-1937). Se os novos
detentores do poder em Santa Catarina iniciaram uma política de “nacionalização” das populações
“estrangeiras” logo após a revolução de 1930, o governo daqui agiu em sentido oposto, não se cansando de
destacar seu bom relacionamento com as “colônias” alemã e italiana. Para exemplificar ações concretas nesse
sentido, seja citado apenas o fato de que, em 1934, o dia 25 de julho, dia da chegada dos primeiros imigrantes
alemães a São Leopoldo, foi declarado feriado estadual, como “dia do colono”. Livros enaltecendo a presença
e a contribuição de imigrantes alemães e descendentes foram publicados com chancela oficial ou por uma
“Comissão Pró 25 de Julho” (PORTO, 1934; SOVERAL, 1935; ARBEITSGEMEINSCHAFT..., 1936;
CENTRO..., 1936).
Durante o Estado Novo, após a deposição de Flores da Cunha e a implantação da “campanha de
nacionalização” também no Rio Grande do Sul, que, em muitos casos, degenerou em violenta perseguição
contra tudo que fosse “alemão”, desapareceu qualquer manifestação político-cultural pela “germanidade”.
Terminada a guerra, este processo foi retomado, ainda que de forma lenta. As pesquisas a respeito ainda são
embrionárias, e as indicações aqui feitas são lacunares e provisórias. Além disso, deve-se ter em mente que
conveniências políticas interferiram, reforçando a necessidade de cuidados em manifestações e atos a
respeito, eventualmente registrados. Assim, é sintomática, por exemplo, uma manifestação feita no dia 25 de
julho de 1946 na Assembleia Nacional Constituinte. Ainda que lá estivessem dois deputados de sobrenome
alemão com vínculos históricos na “colônia alemã” do Rio Grande do Sul, Gaston Englert (PSD) e Arthur
Fischer (PTB), foi Osório Tuiuti (com Flores da Cunha, a bancada gaúcha da UDN) quem apresentou
congratulações pela passagem do “dia do colono”, enfatizando que essa data foi instituída, em1934, pelo seu
agora colega de bancada. Mesmo que tivesse feito referências a todas as correntes imigratórias, destacou que
“justa homenagem é prestada ao benemérito colono alemão – grande, se não o maior, fator do rápido
progresso sulino” (ANAIS DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1949, p. 198). Mesmo sem poder
arrolar indícios – e muito menos fontes comprobatórias –, pode-se aventar a hipótese de que os
“representantes” da “colônia alemã” do Rio Grande do Sul não tiveram coragem ou não consideraram
oportuno falar sobre o assunto, enquanto um integrante do mais representativo partido de oposição ao status
quo que vigorou nos anos anteriores aproveitou o tema para dar uma estocada nos seus adversários.
Objetivamente, os eleitores das regiões de colonização alemã se “manifestaram” nas eleições
regionais de 1947, elegendo para a Assembleia Constituinte estadual 16 deputados de sobrenome
inequivocamente alemão, entre 55, perfazendo quase 30%, um índice, com certeza, superior ao de
descendentes de alemães no conjunto da população. 1 Isso, óbvio, não significa que todos eles se sentissem
“representantes” dessa parcela da população – cite-se, por exemplo, Otto Alcides Ohlweiler, eleito pelo
Partido Comunista Brasileiro, o qual, muito provavelmente, não se preocupava com essa questão. Mas,
inversamente, alguns dos eleitos sem sobrenome expressamente alemão também podem ser vistos como
1
Entre os signatários da Constituição estadual de 1947 constam apenas 10 sobrenomes expressamente alemães.
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“representantes” dessa população, como, por exemplo, Alcides Flores Soares Junior (UDN), Antônio
Campani (PSD)2 e Luiz Alexandre Campagnoni (PRP).
Na continuidade, como deputados estaduais da primeira legislatura pós-guerra, vários desses
parlamentares defenderam a causa de alemães e descendentes. Como essa história também ainda precisa ser
estudada, para uma avaliação mais precisa, cabe referir algumas manifestações reproduzidas fora dos anais
da Assembleia, em publicações na forma de folhetos ou brochuras, uma delas, do deputado Wolfram Metzler
(1947), do Partido de Representação Popular (PRP), sucedâneo da Ação Integralista Brasileira dos anos 1930.
Metzler fora preso durante o Estado Novo por supostas ou efetivas atividades nazistas, vindo agora, como
deputado, apresentar sua defesa, a qual, porém, era também uma defesa da população de origem alemã.3
Cabe destacar também a ação do deputado Bruno Born, eleito pela UDN, luterano militante, que em, no
mínimo, duas oportunidades se apresentou como advogado da causa aqui abordada. Numa delas, proferiu
um discurso “festivo”, no sentido de rememorar o “dia do colono” (BORN, 1948). Considerando que o clima
ainda era tenso, a fala foi parecida com a de seu correligionário Osório Tuiuti, no ano anterior, na Câmara
dos Deputados, evocando a importância de todas as correntes imigratórias, mas como a data (25 de julho) se
refere à chegada dos primeiros alemães a São Leopoldo, o recado subentendido estava claro. Na segunda
oportunidade, o tom já foi bem mais incisivo, pois claramente crítico em relação à demora para reconstruir o
monumento ao imigrante alemão em São Leopoldo, depredado em 1942 (BORN, 1950).
Num campo totalmente diferente da arena política em que desenrolaram os fatos recém citados, cabe
referir a existência de um movimento conhecido por “Socorro Europa Faminta”, SEF, centrado no Rio
Grande do Sul, entre 1946 e 1949. Ecumênico, reuniu católicos e luteranos num esforço de angariar e remeter
produtos e dinheiro para a população da Alemanha assolada pelos efeitos da guerra (FERNANDES, 2005;
2015, p. 413-429; GOODMAN, 2015, p. 113-154). Abstraindo de seu papel caritativo em relação aos alemães,
lá da Alemanha, os autores que estudaram essa associação e sua obra teceram algumas considerações sobre
intenções e efeitos sobre a população de origem alemã daqui, do Brasil, em especial do Rio Grande do Sul.
Evandro Fernandes, ao referir-se ao padre jesuíta Balduíno Rambo, uma das principais lideranças da
SEF, escreveu:
Entretanto, mais do que uma simples atitude de caridade cristã, a SEF mostrou-se como um recurso
para a reconstrução dos antigos laços culturais com a Alemanha, assim como uma possibilidade para
o restabelecimento do antigo projeto de germanidade que havia sofrido um profundo revés no Brasil
com o desencadeamento da Segunda Guerra Mundial [...]. Pe. Rambo acreditava num projeto de
germanidade para as colônias alemãs [do Brasil], apesar dos abalos provocados pela Campanha de
Nacionalização do Estado Novo e das tentativas feitas pela Igreja Católica Brasileira em acabar com o
germanismo (FERNANDES, 2005, p. 142-143).
E acrescentou:
Seu pensamento era seguido por pessoas dos mais diversos campos de atuação como igrejas, escolas,
comércio, empresas e nos segmentos políticos ligados à etnia alemã. Estes buscavam, no pós-guerra,
uma rearticulação de suas ações a nível local e nacional, a fim de conseguir voltar a cultivar os valores
culturais alemães, dos quais o discurso germanista era portador (FERNANDES, 2005, p. 143).
Glen Goodman, por sua vez, escreveu o seguinte a respeito da SEF:
Apesar desse sobrenome italiano, seu pai se chamava Ludwig Alois Campani, originário de Innsbruck/Áustria. Nascido em Porto
Alegre, começou sua carreira profissional como balconista na firma comercial de Carlos Naschold, tendo se tornado, posteriormente,
caixeiro-viajante dessa firma, com atuação concentrada em regiões de colonização alemã (como já acontecera com seu pai). Foi casado
com Ana Sybilla Junges. Em 1949, fez parte da comissão organizadora dos festejos dos 125 anos de imigração alemã (PETRY, 1950, p.
26). Com isso, de fato, foram eleitos, no mínimo, 17 deputados “alemães”, em 1947, perfazendo mais de 30% do total.
3 Mais informações sobre a biografia de Metzler cf. em TONINI, 2003.
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Os organizadores desenvolveram uma multiplicidade de discursos adotando narrativas da esfera
pública brasileira – colocando a SEF e seus benfeitores, claramente, dentro da nação [brasileira] –,
mas, ao mesmo tempo, advogando uma nova configuração da germanidade. Essa nova germanidade
deixava pouco espaço para clivagens confessionais que haviam dividido a comunidade germanobrasileira antes do Estado Novo.4 Eles tomaram de empréstimo e ressignificaram o “alemão”
homogeneizado e imaginado que a campanha de nacionalização havia estabelecido como seu alvo.
Nesse sentido, a SEF ajudou a reconfigurar ideias tanto de uma cidadania brasileira quanto de uma
identidade alemã em meio ao processo de redemocratização do Brasil (GODMAN, 2015, p. 142).
Não se trata, aqui, de analisar a validade ou a correção das interpretações e conclusões desses dois
autores, mas apenas de registrar um episódio que, sem dúvida, mobilizou parcelas da população de origem
alemã, com efeitos sobre sua autopercepção. Mas, além desses fatores subjetivos, a virada da década de 1940
para de 1950 registrou alguns elementos objetivos que não podem ser esquecidos, neste contexto. Em maio
de 1949, foi constituída a República Federal Alemã, isto é, foi criado um novo Estado alemão nos territórios
ocupados pelos aliados ocidentais. Isso significava não só o reaparecimento de uma “pátria-mãe”, mas
também uma provável retomada de relações diplomáticas normais com o Brasil, trazendo de volta
funcionários alemães, que muitas vezes tinham tido alguma influência, direta ou indireta, na vida de alemães
e descendentes (as relações diplomáticas foram, formalmente, restabelecidas em 1950, a nova embaixada
alemã foi aberta em 1951, e o primeiro consulado pós-guerra em Porto Alegre foi instalado em 1º de setembro
de 1952) (BANDEIRA, 1994, p. 53-65; OLIVEIRA, 2005).
No ano de 1950, também se registraram as primeiras vitórias judiciais de empresas e cidadãos que
tiveram seus bens depredados em agosto de 1942. Após pendenga judicial na qual o governo do Rio Grande
do Sul argumentara que a União era responsável pelos estragos, já que, na época, o estado-membro da
federação estava sob intervenção federal, o Supremo Tribunal Federal decidiu que caberia ao governo do
estado arcar com eventuais indenizações. E a partir deste momento, tribunais gaúchos começaram a tomar
decisões favoráveis aos demandantes. No mesmo ano de 1950, o Congresso Nacional decidiu liberar os bens
dos “súditos do Eixo”, confiscados por legislação do Estado Novo, em 1942. Ainda que essa devolução não
fosse geral e irrestrita, significou um avanço.
Tudo isso levou a pequenas modificações no clima de inserção das populações de origem alemã na
esfera política. Se nas eleições estaduais de 1947, no Rio Grande do Sul, haviam sido eleitos 16 – na verdade,
17 – deputados de sobrenome alemão, entre um total de 55, esse número recuou nas eleições para o
parlamento gaúcho de 1951. Mesmo assim – enfatizando que nomes não são um indicador inequívoco para
medir “representação”, ainda que não possam ser desprezados como um elemento que, no mínimo, denota
tendências –, os dados não sugerem um enfraquecimento ou uma neutralização da presença das regiões de
colonização alemã na arena política. Nas eleições de 1950 para governador do estado, pela primeira vez,
desde 1824, um cidadão de sobrenome alemão concorreu ao cargo – Edgar Luiz Schneider, pelo Partido
Libertador. E entre os deputados federais gaúchos, a “bancada teuta” passou de dois, em 1945, para quatro,
agora, cabendo destacar que os quatro podiam ser considerados representantes efetivos da “colônia alemã”,
pois todos eles, com certeza, falavam alemão, e não haviam se comportado como “renegados étnicos” 5,
durante a guerra. Também não eram representativos de uma elite socioeconômica ou intelectual encastelada
em Porto Alegre, mas, sim, do povo do interior do estado: Wolfram Metzler, havia nascido em Porto Alegre,
como médico, porém, clinicara pelo interior; Nestor Jost era de Candelária, e havia atuado também em São
Lourenço do Sul; Willy Carlos Fröhlich era de Santa Cruz do Sul; e Germano Dockhorn vinha de Três de
Maio, então ainda distrito de Santa Rosa. Sob o ponto de vista da procedência partidária, o primeiro foi eleito
pelo PRP, o último pelo PTB, e os dois outros pelo PSD, indicando para um relativo pluralismo políticoideológico.
Lembre-se o caráter expressamente interconfessional do empreendimento.
Essa é uma expressão que os “germanistas” costumavam aplicar àqueles que, apesar de cidadãos de origem alemã, faziam questão de
ignorar – ou até menosprezar ou amaldiçoar – suas origens.
4
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As eleições para a segunda legislatura estadual do pós-guerra realizaram-se em 1951. Ao constatar
um recuo de 16 [17] deputados com sobrenome alemão, em 1947, para 10, deve-se ressalvar que dois nomes
não foram computados nesta contagem. Um é o de Teobaldo Neumann (PTB), pois ele deve ser classificado,
de forma inequívoca, como “renegado étnico”, já que, na qualidade de policial durante o Estado Novo, era
referido como uma das pessoas com quem os descendentes de alemães menos simpatizavam. Entre os 52
policiais denunciados pelo procurador do estado João Bonumá, em 1947, por arbitrariedades cometidas
contra “súditos do Eixo”, durante a guerra, encontram-se 14 sobrenomes inequivocamente alemães, com
destaque especial para Neumann e Ernani Baumann (GERTZ, 2018a, p. 208-214). O outro nome de
deputado omitido na contagem é o de Pio Müller da Fontoura – neste caso, por causa da “hibridez” do
sobrenome, e não por referências desabonadoras entre descendentes de alemães. Infelizmente, não foi
possível localizar informações a respeito de sua biografia; na verdade, ele até pode ter exercido alguma
“representatividade” da população de origem alemã, pois fora prefeito de Santo Ângelo, antes de ser eleito
deputado.
Assim como os quatro deputados federais de sobrenome alemão eleitos no ano anterior, os 10
estaduais de 1951 podem ser considerados autênticos representantes da “colônia alemã” – com certeza,
nenhum deles era “renegado étnico”. Alberto Hoffmann (PRP) era filho de fruticultores de Ijuí; Alfredo
Leandro Carlson (PTB) de Santa Rosa; Ariosto Jaeger (PSD) de Santa Rosa; João Lino Braun (PTB), filho de
colonos de Estrela; Helmuth Closs (PRP) de Lajeado; Mário Lampert (PSD) de Lajeado; Norberto Harald
Schmidt (PL) de Santa Cruz do Sul; Romeu Roese Scheibe (PSD) de Lajeado/Arroio do Meio; Siegfried
Emanuel Heuser (PTB) de Santa Cruz do Sul; Victor Oscar Graeff (UDN) de Passo Fundo/Carazinho. 6 Mais
uma vez, temos uma procedência maciça (de fato, exclusiva) do interior do estado, fato que, em tese, reforça
a representatividade das regiões “coloniais”. Deve-se destacar também que havia uma distribuição
relativamente ecumênica naquilo que diz respeito à filiação partidária desses representantes da população de
origem alemã: três deputados de cada um dos dois grandes partidos (PSD e PTB), perfazendo, juntos, 60%,
um do PL e também um da UDN; quanto aos dois deputados filiados ao PRP, evidenciavam uma pequena
super-representação deste partido quando se verifica sua densidade eleitoral no conjunto do estado.
Ainda que Roswithia Weber (2004, p. 133-145) tenha mostrado que as referências ao 25 de julho, em
São Leopoldo, tenham sido relativamente tímidas em 1947 e 1948, no ano seguinte “os sinos voltam a
repicar” – sem, contudo, terem sido erradicadas todas as arrestas. De qualquer forma, aqueles que estavam
mais interessados numa normalização da situação consideraram os resultados, no mínimo, satisfatórios, pois
a editora da família Rotermund – envolvida havia década na produção de material impresso para a “colônia
alemã” (DREHER, 2014, p. 82-95) – editou uma brochura de 75 páginas, organizada por Leopoldo Petry
(1950), fornecendo um quadro dos festejos e dando uma impressão do espírito que os norteou. A publicação
inicia com uma fotografia que destaca a presença do governador Walter Jobim junto o monumento ainda não
recuperado da depredação sofrida em 1942. Na longa apresentação (p. 1-23, além do “prólogo”, p. III-IV),
Leopoldo Petry não só destacou as contribuições de imigrantes alemães e colonizadores descendentes, em
diversas áreas da vida humana, mas denunciou, de forma expressa, os erros cometidos durante a guerra
contra essa parcela da população gaúcha: “Durante a última guerra mundial, muito teve de sofrer o elemento
germânico no sul do Brasil, devido à sua ascendência. As perseguições, as mais injustas, foram movidas não
somente a súditos alemães, mas também a brasileiros de origem teuta” (PETRY, 1950, p. 21).
Uma comissão organizadora de “nosso dia” publicou longa “proclamação” no Diário de Notícias de
Porto Alegre, no dia 24 de julho. Por iniciativa do deputado federal Osório Tuyuty de Oliveira Freitas, os
Correios e Telégrafos emitiram três carimbos para homenagear a imigração e colonização alemã – com o
monumento ao imigrante em São Leopoldo; o monumento da colonização em Novo Hamburgo; e a casa da
Feitoria Velha. O Correio do Povo de Porto Alegre publicou, no dia 26 de julho, longa reportagem com relato
do transcurso das comemorações em São Leopoldo. Figuras de destaque do cenário político estiveram
Obviamente, neste momento, vale a observação já feita em relação à legislatura de 1947 de que a “representação” da “colônia alemã”
não se dá, necessariamente, só através de deputados de sobrenome alemão. Nesta eleição de 1951, cabe citar, no mínimo, Nestor Pereira,
originário de Taquara, cuja atuação caberia averiguar sob este ângulo.
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presentes e discursaram: o governador Walter Jobim; Edgar Luiz Schneider, deputado estadual, ex-reitor da
então Universidade de Porto Alegre; Frederico Guilherme Schmidt, deputado estadual. Na Câmara Federal, o
deputado gaúcho Osório Tuyuty de Oliveira Freitas pronunciou longo e detalhado discurso. O poeta
Mansueto Bernandi, que havia exercido o cargo de prefeito de São Leopoldo de 1919 a 1923, cometeu uma
poesia que começava com a seguinte estrofe: “Rebentos de lusitanos, de alemães e de italianos e de outros
grupos arianos disseminados aos mil do norte ao sul do Brasil” (PETRY, 1950, p. 24-43).
As últimas 23 páginas da brochura (PETRY, 1950, p. 50-63) foram dedicadas ao monumento ao
imigrante em São Leopoldo, que continuava na mesma situação em que o haviam deixado os depredadores
de 1942. Através da apresentação da história do próprio monumento, mas, sobretudo, da história dos
esforços que vinham sendo desenvolvidos para sua restauração, desde 1946, sem êxito, certamente se
pretendeu colocar em evidência as tarefas que estavam colocadas para uma futura mobilização pela causa
mais geral da população de origem alemã do estado. As dimensões e o êxito dos festejos forneciam motivo
para otimismo.
É sob este pano de fundo que deve ser vista a criação de duas instâncias que se mostrariam longevas:
o jornal Brasil-Post7, com sede em São Paulo, em 1950, e a Federação dos Centros Culturais 25 de Julho, em
1951, com sede no Rio Grande do Sul (GERTZ, 2018b). Na verdade, trata-se de duas faces da mesma moeda,
pois parte muito significativa das pessoas envolvidas nesses dois empreendimentos foram as mesmas, e os
organizadores da segunda imaginaram que o jornal seria um importante fator de divulgação da mesma. No
decorrer do tempo, fizeram-se sentir, porém, algumas divergências, e até atritos, ainda que não se tivesse
chegado a uma ruptura. Naquilo que segue, a atenção se concentrará, exclusivamente, na Federação.
Como ela teve vida longa, sobrevivendo até hoje, como FECAB (Federação dos Centros de Cultura
Alemã no Brasil); teve uma antecessora de nome muito semelhante, nos anos 1930 (Federação 25 de Julho),
e como partes constitutivas, como componentes (já que se apresentava como “federação”) “centros culturais
25 de julho”; e, ainda, pelo fato de que toda essa mobilização (incluindo a fundação do jornal) tivesse girado
em torno da “ideia do 25 de julho”, do “25. Juli-Gedanke”, tudo isso tem levado a certa falta de precisão por
parte de alguns historiadores.8 Desde meus primeiros escritos sobre o “germanismo” (conceito que tem tudo
a ver com a Federação e seus ideólogos e militantes), venho criticando o enfoque historiográfico que costuma
supervalorizar essa ideologia, esse movimento. Sua existência e alguma eficácia não podem, evidentemente,
ser negadas, de forma alguma, no entanto, não se pode partir do pressuposto de que se algum pastor, padre,
jornalista, professor insistisse no tema essa era, ipso facto, a forma de pensar e de agir do conjunto da
população de origem alemã. E isso fica, mais uma vez, muito claro na história da Federação dos Centros
Culturais 25 de Julho, fundada em 1952 (GERTZ, 2018b). Faço essa afirmação com base na análise de
extensa documentação de Fritz Rotermund, o “pai do 25 de julho”, em especial de sua correspondência do
ano de 1956.
A Federação dos Centros Culturais 25 de Julho significou a rearticulação do movimento “germanista”
(em grande parte, as pessoas eram as mesmas da década de 1930). Claro, no pós-guerra, não se encontram
mais insistências expressas sobre a preservação genética da pureza étnica, por exemplo. A insistência em
definir a principal organização eclesiástica luterana, o Sínodo Riograndense, como “igreja étnica”,
“Volkskirche”, foi substituída, ao menos por uma parcela do clero, por uma autocrítica e uma tentativa de
“abrasileiramento”.
Sem entrar em detalhes, pode-se dizer que os objetivos concretos da Federação eram três: a)
manutenção da cultura alemã, com incentivo à literatura, ao canto, ao teatro, ao lazer; b) decretação do 25 de
julho como feriado, de preferência do nível municipal até o federal; c) legislação para que as autoridades
educacionais permitissem o ensino da língua alemã nas escolas, ao menos naqueles estados com índice
significativo de população de origem.
7
8
A respeito do jornal, cf. WOLFF, 2010.
Um exemplo dessa falta de precisão, na minha opinião, ocorre na tese de Glen Goodman (2015, p. 155-185).
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A Federação enfrentou três problemas básicos, desde sua fundação: a) a desconfiança de instâncias
diplomáticas alemãs no Brasil; b) a falta de uma base de sustentação material; c) a ausência de “centros
culturais” a congregar.
Se é verdade que o primeiro cônsul alemão em Porto Alegre, Rudolf Pamperrin, mostrasse certa
abertura para uma aproximação e um fomento da cultura e da identidade de alemães e descendentes no
Brasil, o consulado de São Paulo e a própria embaixada no Rio de Janeiro ficaram alarmados com
acontecimentos envolvendo cultivadores do “movimento 25 de julho”, naquele estado e em Curitiba, de onde,
inclusive, foi noticiada a visita de representantes da “colônia alemã” do Chile durante a qual teriam sido
registradas manifestações nazistas. Mesmo que, no decorrer dos anos, a representação diplomática tivesse
acabado de assumir uma posição menos crítica, a ênfase continuou sendo a de fomentar e difundir uma
cultura alemã de alto nível, nos campos cultural e científico, para toda a população brasileira – e não uma
cultura alemã “popular” ou folclórica, que devesse atingir, sobretudo, os “alemães” (BARBIAN, 2014, p. 272277; GOODMAN, 2015, p. 176-183). Em todo caso, não há registros de que – ao menos na década de 1950 – a
Alemanha tenha dado apoio material para o cultivo do “25 de julho”.
Os outros dois problemas enfrentados pela Federação dos Centros Culturais 25 de Julho, a rigor,
estão intimamente ligados entre si, pois a falta de uma base de sustentação material derivava justamente da
ausência de centros que, com seus filiados, aportassem dinheiro para suas atividades. Historiadores foram
induzidos a erro de análise pelo fato de que o Centro Cultural 25 de Julho de Porto Alegre efetivamente deu
origem à Federação. A existência deste centro já foi referida em 1949, mas ele viria a ser formalizado em
1951. E foi a partir desse impulso inicial que derivou a ideia e a concretização da Federação, inclusive figuras
de destaque nesta última estiveram presentes na fundação daquele, como Fritz Rotermund e Bruno Born. Os
analistas, porém, não se deram conta de que a “colônia alemã” de Porto Alegre é uma coisa, e a “colônia
alemã” do interior do estado é algo totalmente diferente. Sim, há uma mística de que ambas se compõem de
“alemães”, mas – abstraindo de uma pequena elite socioeconômica e intelectual do interior – esta última é
composta por “alemães” totalmente diferentes, com interesses econômicos, sociais, políticos, educacionais,
culturais, educacionais, com uma “mentalidade” que tem pouco a ver com a população de origem alemã da
Capital.
Ainda que o Centro Cultural 25 de Julho de Porto Alegre se declarasse defensor dos mesmos
princípios que a Federação, não há qualquer dúvida de que ele, muito logo, evoluiu para uma associação
cultural-recreativa de massa, interessada em fornecer a seus associados as tradicionais Geselligkeit e
Gemühtlichkeit, sociabilidade e “aconchego” alemães, característica que preserva até hoje. Ainda que seus
associados pudessem confessar-se, verbalmente, à “germanidade”, dificilmente se preocupariam em ofertar
somas consideráveis de dinheiro para a promoção da mesma.
Essa indisponibilidade dos porto-alegrenses para financiar um movimento cuja sede se localizaria
em São Leopoldo, e cuja utilidade, aparentemente, só uma parte reconhecia, está documentada na
correspondência de Fritz Rotermund, o primeiro secretário-geral da Federação, mesmo antes da
formalização da mesma (relembrando que se trata do “pai do 25 de julho” e de uma figura central na
Federação, não só pelo cargo formalmente exercido). Uma série de cinco cartas trocadas entre Rotermund e
Benno Mentz, importante empresário de Porto Alegre, e figura de destaque naquilo que tange à mobilização
político-cultural na Capital e nas regiões de colonização alemã do vale do rio dos Sinos, no mínimo desde os
festejos do centenário da imigração alemã, em 1924, além de proprietário e mantenedor da Fundação
Frederico Mentz (seu pai), constituída de uma enorme quantidade de fontes sobre imigração e colonização
alemã no estado, dá uma ideia daquilo que ocorria (RAMOS, 2015).
Em carta de 10 de junho de 1951, Rotermund escreveu a Mentz:
mais uma vez está se aproximando o 25 de julho, e mais uma vez constato que dependo
exclusivamente das minhas limitadas possibilidades para os preparativos e a divulgação. Estou a
ponto de afirmar que [agora] dependo mais que nos últimos anos. Lamento esse fato tanto mais por
ter vivido na esperança de que em função das atribuições que o Sr. me delegou, me garantiria toda a
ajuda e todo o apoio necessário.
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Numa carta-resposta, com data do dia seguinte, Mentz fez uma série de comentários, lamentando
que Rotermund estivesse sozinho, mas não lhe dando uma resposta inequívoca, apenas lembrando tê-lo
alertado de que “o trabalho sempre recai sobre alguns poucos que precisam sacrificar-se pela coletividade”.
Aparentemente decepcionado com essa resposta, Rotermund voltou à carga, em carta de 13 de junho,
reconhecendo que Mentz mantinha a importante instituição que guarda a história de alemães e descendentes
no Rio Grande do Sul, mas ponderou que aquilo que “é o mais importante e o mais necessário é a
preservação e o estímulo à nossa germanidade 9, a qual se fundamenta na tradição e na língua”, esta seria a
divisa do “25 de julho”.
Em 21 de março do ano passado [1950], o Sr. se comprometeu, frente a um grupo que estava comigo,
a liderar essa tarefa, prometendo disponibilizar um capital de mais de 1.000 contos, a fim de
financiar o “movimento 25 de julho”, além de apoiá-lo moralmente. O Sr. me designou não só a
presidir esse “movimento”, mas expandi-lo de forma eficiente e sólida. Mas relativo ao apoio
financeiro nunca tive uma resposta de sua parte.
Numa carta-tréplica de 15 de junho, Mentz tentou justificar-se em relação à ausência de ajuda
financeira de sua parte: “Depois do encontro de 21 de março de 1950, só muita pouca gente se mostrou
interessada na causa, motivo pelo qual toda a coisa precisou ser repensada em dimensões muito menores”,
dando a entender que aquilo que seria possível fazer, nessas condições, caberia à sua própria fundação.
Apesar de que essa troca de cartas não tenha levado a um rompimento das relações, Mentz escreveu mais
uma, com data de 16 de junho, informando que soube que Rotermund esteve em Porto Alegre, mas não lhe
telefonou, “motivo pelo qual é difícil estabelecer uma colaboração”.10
Os centros culturais filiados pelo Brasil a fora poderiam ter sido outra fonte de financiamento.
Infelizmente, não foi possível ter acesso à documentação anterior a 1956, mas na deste ano há referências
muito esparsas ao citado centro de Porto Alegre, sem qualquer destaque ou entusiasmo – e só. Em outras
fontes há referências a centros em Panambi, no Rio Grande do Sul, e em Blumenau, Santa Catarina, no
entanto, na relativamente rica correspondência de Rotermund do citado ano não há nenhuma referência a
eles, havendo algumas referências a conflitos dentro de grupos supostamente simpáticos ao “25 de julho” em
outros estados, como Paraná e São Paulo. Por tudo isso, ao contrário de uma eficaz instância de
regermanização das populações de origem alemã, a Federação dos Centos Culturais 25 de Julho não passou
de um pequeno grupo de, literalmente, não mais de dez abnegados gaúchos empenhados na causa. 11 Não
significa que não tenha havido nenhum vínculo com o conjunto da população de origem alemã ou mesmo só
de uma parcela significativa, e que a repercussão de seu trabalho tenha sido totalmente nulo. Um exemplo
pode ilustrar uma aceitação relativamente bem-sucedida. Em 1955, foi publicado pela editora Rotermund um
cancioneiro com músicas populares alemãs, elaborado por Theo Kleine, chamado Frisch gesungen. Há
registros de uma boa vendagem. Neste caso, podemos imaginar que integrantes de corais, pastores e
professores tenham adquirido o livro como instrumento útil para seu trabalho cotidiano, para seu lazer, e
não por amor à ideologia do “germanismo”.
Infelizmente, o espaço não permite fazer uma análise da correspondência de Rotermund, por isso
posso apresentar apenas uma avaliação geral, sem possibilidade de transcrever o conteúdo específico da
documentação. Uma primeira constatação derivada do manuseio das cartas é a falta de dinheiro, uma
lamúria que atravessa as correspondências dos doze meses do ano (1956). Mas estão também registrados
fracassos programáticos. O professor Willy Fuchs, responsável pela política educacional das escolas ligadas
ao Sínodo Riograndense, e o padre jesuíta Balduíno Rambo tinham afirmado que, em tratativas junto à
No texto alemão está a palavra “Deutschtum”.
Devo o acesso a essas cartas a Rosangela Cristina Ribeiro Ramos. Elas se encontram no Acervo Benno Mentz – DELFOS – PUCRS. Os
grifos estão no original.
11 Nominalmente envolvidos aparecem os nomes de Albano Volkmer, Balduíno Rambo, Bruno Born, C. O. Kortz, Fritz Rotermund,
Leopoldo Petry, Theo Kleine.
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Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul, haviam chegado a um acordo – incluindo uma minuta já
redigida – para a edição de um ato legislativo que permitiria o ensino de alemão nas escolas gaúchas, uma
importante bandeira da Federação. Só que, de repente, apareceu, no Correio do Povo, um artigo de uma
pessoa, identificada na correspondência como “D’Avila”, que pôs tudo a perder, sem que a Federação se
sentisse em condições de reagir com qualquer gesto. 12 Somente perto do final do ano, a editora Rotermund
conseguiu colocar no mercado um folheto redigido por Leopoldo Petry (1956) intitulado Pátria, imigração e
cultura que se posicionou em relação a esse assunto Em várias cartas, Fritz Rotermund destacou o sacrifício
que sua empresa fizera para publicar esse panfleto, na esperança de que ele seria vendido em massa, pelo
interior do estado, a preço muito barato. Seguiu-se uma grande atividade epistolar para pessoas conhecidas
de todos os recantos do Rio Grande do Sul e de outros estados, oferecendo o “produto”. Depois de algum
tempo, o próprio Rotermund expôs o resultado: houve apenas uma única resposta positiva, de um grupo de
pessoas de Rolante, enviando dinheiro e pedindo alguns exemplares. No mais, fracasso total nas vendas.
A maioria das cartas respondendo ao apelo por ajuda à causa do “25 de julho” feito por Rotermund
está vazada em termos respeitosos, diplomáticos. Mas várias são claramente críticas, até virulentas. Assim,
uma carta do pastor Alfred Simon, de Pelotas, datada de 14 de novembro de 1956, lembra que nos anos 1930
ele editou um jornal que, entre outras coisas, defendia a causa do “25 de julho”, mas quando entrou em rota
de colisão com nazistas ninguém veio ajudá-lo; vieram os problemas da guerra, depois da guerra, o prédio da
igreja está em estado muito precário, “mas não tomei conhecimento de nenhuma atitude da direção do
movimento 25 de julho para ajudar”, motivo pelo qual não só não iria ajudar, mas condenava essa
campanha.13
Há também uma grande quantidade de cartas aos deputados estaduais e federais da “bancada teuta”
– todas redigidas em alemão –, censurando os parlamentares por falta de empenho a favor da declaração do
25 de julho como feriado e da implantação da língua alemã nas escolas. Há, inclusive, referências aos
problemas que estava enfrentando aquele que provavelmente era considerado o mais destacado e erudito
ideólogo da causa do “25 de julho”, o padre jesuíta Balduíno Rambo. É que a arquidiocese de Porto Alegre lhe
teria imposto silêncio em relação ao tema “germanidade”.
Em resumo, aquilo que transparece nas cartas do arquivo de Fritz Rotermund é uma situação de
evidente desânimo em relação à Federação dos Centros Culturais 25 de Julho. E essa não é uma impressão
apenas daquele que lê essa correspondência agora, cerca de 60 anos depois. Os próprios atores
contemporâneos tinham essa sensação. Por isso – para terminar –, apresento alguns pequenos trechos de
uma carta que comprova isso. Apesar de Fritz Rotermund ter deixado, formalmente, o cargo de secretáriogeral, em 1955, sendo substituído por Theo Kleine 14, ele continuou sendo a figura central, pois tinha tradição
como “pai do movimento 25 de julho”, era empresário do ramo gráfico (que podia patrocinar publicações),
mantinha relações com muita gente considerada importante etc. Num primeiro momento, Leopoldo Petry
assumira a presidência, mas a passara, muito logo, para Bruno Born, deputado estadual na legislatura
iniciada em 1947, fora candidato a deputado federal, em 1951, mas não se elegera, ficando na suplência.
Candidatou-se a prefeito de Lajeado, tendo sido eleito. Rotermund e Born eram muito amigos, de forma que
a troca de cartas entre eles reflete um clima de muita sinceridade.
Em virtude da absoluta falta de espaço, sou obrigado a restringir-me à transcrição de algumas poucas
frases de uma longa carta (três páginas) de Rotermund a Born, de 16 de dezembro de 1956. Como se vê no
Na correspondência, estão indicados os meses de fevereiro ou março como espaço temporal em que esse texto teria sido publicado.
Como ainda não foi possível fazer uma pesquisa a respeito, não há como revelar o conteúdo exato nem identificar o nome completo do
autor (teria sido Airton d’Avila Barnasque?).
13 Esta carta, como as demais a serem referidas de agora em diante, faz parte do arquivo Rotermund, depositado no Museu Histórico
Visconde de São Leopoldo.
14 Há várias cartas que denotam certa decepção com Kleine, uma delas é explícita: ele simplesmente não teria tempo para dedicar-se à
causa, pois era não só professor no Instituto Pré-Teológico, mas também diretor do internato. Além disso, há indícios de que havia
algumas diferenças de concepção: Kleine, aparentemente, não se interessava muito pela agitação político-cultural, preferindo produzir
materiais para o trabalho prático nas comunidades, como o citado cancioneiro Frisch gesungen. Nas décadas seguintes, Kleine se
tornaria o secretário-geral perpétuo (e solitário?) da Federação, destacando-se – além da criação da Casa da Juventude, em Gramado –
pela publicação de livros sobre temas ligados à “germanidade”.
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próprio texto, ela foi antecedida de outras que trataram do mesmo tema – e denota um clima de decepção, da
primeira à última linha. “Há pouco eu revisei, como epístola deste domingo, tua confissão (Beichte) do dia 8
deste mês. Estou acostumado com esse tipo de notícias dignas do Livro de Jó”. “Se temo uma exposição ao
ridículo, isso se deve ao fato de que manifestamos, ou havíamos manifestado, uma intenção frente à opinião
pública, mas fracassamos na execução”. “Eu chamo a atenção para o fato de que nós nos chamamos
Federação dos Centros, e queríamos sê-lo, mas não conseguimos sê-lo nem o somos”.15 “Não há dúvida de
que vivemos numa profunda crise econômica, de forma que não deveríamos ficar pechinchando por ajuda
financeira. Existe, porém, um mas: percebe-se essa mesma crise quando se trata de gastar em cinema, em
apoio a atividades esportivas, em associações recreativas ou em festas?”. Voltou a lamentar o fracasso frente
ao caso “D’Ávila”: “O fato de que, naquela oportunidade, a portaria já redigida sobre o ensino da língua não
se concretizasse, nos jogou para trás, e nos expôs ao ridículo”. Por tudo isso, “tu mesmo dizes que
dificilmente houve um momento tão apropriado quanto o atual para abandonarmos o barco”. “A mim me
parece que este é o único caminho que nos resta para sermos justos para com nossa história”.
*
O leitor atento terá notado que está chegando ao final do texto e não viu nada a respeito dos festejos
do “25 de julho” de 1956, anunciados no título. É que, mais uma vez, a evolução da escrita do texto se deu de
tal forma que faltou espaço para aquilo que fora anunciado como tema central. Diante do fato de que é
necessário encerrar, só resta fazer alguns brevíssimos comentários finais que apontem para a necessidade de
retomar o tema, em outra oportunidade. O fato surpreendente desta história é que – mesmo em meio ao
clima depressivo na Federação dos Centros Culturais 25 de Julho, a qual tinha como uma de suas principais
metas a luta pela transformação da data em feriado, com a consequente celebração de festas alusivas –
ocorreram, neste ano de 1956, os maiores atos comemorativos, desde a Segunda Guerra Mundial. Só para
exemplificar, além de desfiles, discursos, com a presença de altas autoridades, o Diário de Notícias publicou
um encarte de 64 páginas, a Revista do Globo dedicou um editorial e uma matéria de seis páginas
(ZUKAUSKAS, 1956). O próprio Fritz Rotermund, que havia enfatizado que não participaria desse “circo”
(Rummel), escreveu, em um documento datado de 28 de julho, provavelmente enviado para a Brasil-Post
para subsidiar seu noticioso: “De fato, São Leopoldo vivenciou, sobretudo no dia 25 de julho 16, seu ‘grande
dia’, numa dimensão que, provavelmente, não vivenciara nem durante os festejos do centenário (1924).
Apesar de muitos milhares de pessoas terem assistido ao desfile, deve-se destacar que não ocorreu nenhum
acidente ou incidente”.
Tudo isso aponta, mais uma vez, para o erro evidente cometido por historiadores ao deduzirem uma
suposta eficácia absoluta da ideologia “germanista”, atribuindo ao conteúdo das “falas” de militantes da
causa a milagrosa capacidade de gerar realidade. Não existe espaço para desenvolver o raciocínio, mas para
uma compreensão adequada das dimensões e do sucesso das comemorações do “25 de julho” em 1956 é
necessário abandonar o “germanismo” como variável explicativa, e recorrer a uma análise que leve em
consideração estruturas políticas, culturais, sociais, econômicas gerais daquele contexto, seja o nacional, o
estadual, o municipal. Quem se restringe à análise das divagações dos “germanistas” não chega a lugar
algum.
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Trata-se, aqui, evidentemente, de uma referência ao já citado fato de que, na verdade, a Federação não congregava nem representava
qualquer centro cultural de lugar algum.
16 Os festejos haviam se estendido por três dias.
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A Revista Veja e o Plebiscito de 1993
Roberto Biluczyk1
Resumo: A imprensa se constitui em um excelente objeto de pesquisa ao historiador. O uso de periódicos
para esse fim é reflexo das novas possibilidades surgidas no século XX, com os estudos desempenhados pelo
Movimento dos Annales e a renovação cultural marxista. O olhar apurado do historiador ajuda a compor o
conhecimento que pode ser extraído de páginas de revistas e jornais, contribuindo ao entendimento do
desenvolvimento da sociedade e suas percepções. Esta pesquisa tem por objetivo analisar as representações
do contexto histórico que conduziu e viabilizou a realização do Plebiscito sobre a Forma e o Sistema de
Governo, em 1993, através da cobertura política efetuada pela revista Veja. Embora venha ganhando força ao
longo dos anos, a pesquisa em periódicos requer grande atenção a fatores, como a parcialidade. Sobre isso,
vários trabalhos acadêmicos se ocupam, ao retratarem os recursos de manipulação empregados por esse tipo
de informativo. Outra barreira pode se apresentar na confusão entre História e memória, onde a segunda diz
respeito a experiências pessoais do pesquisador, as quais podem se confundir com o panorama histórico e o
contexto geral. A História do Tempo Presente vem conquistando lugar, neste contexto, dentro das
observações contemporâneas, buscando a superação das barreiras outrora impostas. No Plebiscito, a
campanha foi promovida em curto espaço de tempo, contando com horário político em rádio e televisão,
onde cada uma das correntes buscou convencer o eleitor da eficácia da implantação de seu ideário. A disputa
envolvia a implantação da monarquia ou a manutenção da república, bem como a permanência do
presidencialismo ou a instalação do sistema parlamentarista, discussão viabilizada e prevista na Constituição
Federal de 1988. Ante a tão delicado tema, se observados os movimentos de uma eleição tradicional,
reservou-se engajamento aquém do esperado. Muito por essa razão, o resultado da votação não apresentou
surpresas: a república presidencialista se consagrou no voto, enterrando as aspirações dos monarquistas e
dos parlamentaristas, naquele momento. A cobertura de Veja sobre os acontecimentos também tem muito a
dizer sobre a importância designada à decisão tomada naquele 21 de abril. Dentro do assunto, considerando
as representações impressas na fonte, a pesquisa, a qual ainda se encontra em andamento, demarca fatores
relevantes, com peculiar interesse aos estudos da História do Brasil.
Após mais de cem anos da Proclamação da República e trinta anos depois de o parlamentarismo ser
rechaçado por meio de uma consulta popular, o eleitor brasileiro foi chamado às urnas para votar no
Plebiscito sobre a Forma e o Sistema de Governo, em 21 de abril de 1993. O inusitado expediente, viabilizado
pela Constituição de 1988, fez com que a população tivesse oportunidade de escolher entre a Monarquia e a
República, o presidencialismo e o parlamentarismo.
Este artigo objetiva analisar o contexto histórico que conduziu e viabilizou a realização do Plebiscito,
através das representações percebidas pela cobertura política praticada pela revista Veja. Naquele ano, o
semanário publicado pela Editora Abril completava vinte e cinco anos de existência. Além disso, contava com
o prestígio atribuído às denúncias que publicou e que ajudaram a derrubar do poder, no final de 1992, o
presidente da República, Fernando Collor de Mello. Dessa maneira, emergia de forma peculiar no cenário
editorial brasileiro, conferindo credibilidade especial às suas escolhas e posicionamentos, dentro das
representações por ela praticadas.
Breve contextualização política e legal do Brasil
Ao passar por diversos estatutos, ao longo de sua História, o Brasil contou com um regime
monárquico de governo, entre 1822 e 1889. Embora emancipado de Portugal, seu primeiro governante foi
Dom Pedro I, da dinastia de Bragança. Por sua origem portuguesa, enfrentou o sentimento antilusitano
desenvolvido após a instabilidade de seu governo. Dessa forma, renunciou em favor de seu filho Dom Pedro
II, em 1831. O novo imperador contava com apenas cinco anos de idade.
1
Acadêmico do 8º nível do curso de História (L) da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: 104666@upf.br.
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Por isso, houve necessidade do desenvolvimento das regências, entre 1831 e 1840.
“O período regencial é tradicionalmente visto sob perspectiva negativa, que o caracteriza como época
anárquica e anômala, como empecilho à formação e à preservação da nação brasileira”. (BASILE, 2011, p.
55). Durante os governos regenciais, inúmeras e intensas revolta nas províncias, a exemplo da Farroupilha,
da Cabanagem, da Balaiada e da Sabinada, entre outras. Apesar disso, com o desenvolvimento de novas
pesquisas no âmbito histórico, a visão negativa sobre o período, tido como sala de espera à maioridade do
legítimo imperador, vem paulatinamente se transformando. (BASILE, 2011, p. 56).
A antecipação da maioridade de Dom Pedro II permitiu que ele assumisse o poder em 1840. Seguiria
no cargo de imperador pelos quarenta e nove anos seguintes. Inicialmente, “D. Pedro II, muito jovem e sem
grande experiência política, sofreu fortemente a influência dos políticos que o cercavam” (WERNET, 1997, p.
77). Nos últimos anos, especialmente após a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870),
enfrentou descontentamentos, os quais incentivariam o movimento republicano.
Historiadores como Dolhnikoff (2017, p. 153) afirmam que a monarquia brasileira tinha forte caráter
elitista, garantindo a normatização da vida social e política, definida em meio a um cenário de disputas,
divergências, crises e acordos, em uma sociedade hierarquizada, ou seja, desigual, com sustentação da ordem
escravista. Esse modelo se amparava em uma estrutura jurídica e política que se utilizava de valores e do
vocabulário liberal – liberdade, direito, entre outros. Assim, para Napolitano (2017, p. 9), toda essa
contradição gerou forte desgaste no sistema monárquico, favorecendo a efervescência de ideias ligadas à
proposta republicana e ao abolicionismo.
Em 1889, a República seria implantada no Brasil. Sem consideráveis transformações nas posições
ocupadas pelos atores do cenário político, apesar dos múltiplos e divergentes interesses, a mudança mais
significativa foi a subtração da figura do imperador. O legado de atraso não seria, portanto, combatido por
aqueles que se beneficiavam dessas estruturas consideradas arcaicas (NAPOLITANO, 2017, p. 8).
Considerou-se, assim, como uma “obra de conciliação entre vitoriosos e derrotados” (LEMOS, 2009, p. 437).
A Primeira República foi caracterizada pela dominância das oligarquias rurais do Sudeste. Em seus
primeiros anos, porém, os militares, condutores do golpe que derrubou a monarquia, foram os primeiros
mandatários. Seu processo político classifica-se como liberalismo oligárquico: a “coexistência de uma
Constituição liberal com práticas políticas oligárquicas” (RESENDE, 2008, p. 91), aspectos tradicionalmente
contraditórios. Os partidos políticos possuíam caráter estadual, com dominância do Partido Republicano
Paulista e do Partido Republicano Mineiro.
Após apresentar sinais de desequilíbrio nos anos 1920, novos personagens políticos contribuem com
a mudança que se observaria em 1930. O sul-rio-grandense Getúlio Vargas ascende ao poder por meio da
Revolução de 1930, mecanismo que não caracterizou alteração das relações de produção econômica, nem em
substituição imediata de uma classe na instância política (FAUSTO, 2010, p. 116). Apresentando-se como um
governo provisório, encarou resistências das antigas oligarquias dominantes, em especial a paulista.
Entretanto, por meio de uma nova postura, permitiu uma radical mudança no país.
Vargas instala, em 1937, a ditadura do Estado Novo. Em sua busca de legitimação, proporciona novas
possibilidades às classes antigamente excluídas, como os trabalhadores. O Trabalhismo faz o Estado se
antecipar a movimentos populares, concedendo novas leis em benefício do trabalhador (FERREIRA, 1997). A
propaganda estatal, com inspiração nos regimes totalitários que assolavam a Europa de então, torna-se eficaz
mecanismo governamental. “O uso dos meios de comunicação tinha como objetivo legitimar o Estado Novo e
conquistar o apoio dos trabalhadores à política varguista” (CAPELATO, 1999, p. 171).
Após a queda de Vargas, em 1945, as ideias do antigo presidente seguiram influenciando o panorama
político nacional, através da composição de três partidos de atuação e relevância nacional – e não mais
estadual, como antes de 1930: PSD e PTB, com inspiração getulista, e UDN, como opositora (FICO, 2016, p.
22).
A partir de então, os governantes seriam eleitos pelo voto popular. Em 1951, o próprio Vargas
ganharia as eleições e retornaria ao cargo pela via democrática, enfrentando crises, não concluindo o
mandato, devido a seu suicídio. Seu substituto foi Café Filho, o vice.
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Juscelino Kubitschek, por sua vez, seria o mais bem-sucedido dos mandatários, exercendo sua
governança do início ao fim do período delimitado, dentro do jogo democrático.
Em 1961, a renúncia de Jânio Quadros causaria novo embate a expor as fragilidades da democracia
brasileira. João Goulart, o vice, visto por setores da sociedade, como os militares, com desconfiança, estava
em visita à China, de regime comunista, quando Jânio deixa o cargo.
Após a Campanha da Legalidade, liderada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, Jango,
como era conhecido, toma posse. No entanto, tem seus poderes limitados pela implantação do
parlamentarismo, a partir de 1961.
Desse modo, o parlamentarismo, proposto por muitos como uma
fórmula capaz de dar maior flexibilidade ao sistema político, entrou
em vigor pela porta dos fundos. Utilizado como simples expediente
para resolver uma crise não poderia durar muito, como, de fato, não
durou. (FAUSTO, 2004, p. 443).
Descontente com o expediente que lhe fora imposto como condição à posse, durante todo o período,
“de setembro de 1961 a janeiro de 1963, Jango manobrou cuidadosamente a fim de recuperar os poderes
presidenciais, ganhando aprovação popular em um plebiscito para a abolição do Ato Adicional que havia
estabelecido o sistema parlamentar” (SKIDMORE, 2007, p. 264).
Desorganizado, o parlamentarismo do período contou com gestões conturbadas e polêmicas.
Realizou-se em 6 de janeiro de 1963, um plebiscito que consolidou no voto popular o retorno do modelo
presidencialista. Jango teria, finalmente, a oportunidade de exercer plenamente seu mandato.
Entretanto, o governo Goulart fracassa em sua tentativa de promover profundas reformas, sendo
derrubado em 1964 pelo golpe militar que implantaria uma ditadura militar de vinte e um anos no país.
Durante a ditadura, manifestações sociais e democráticas foram fortemente reprimidas.
A ebulição de movimentos como o “Diretas Já”, em 1983 e 1984, visavam o retorno das eleições para
presidente, contrabalançando com as promessas de reabertura advindas ainda do final dos anos 1970.
Tancredo Neves, eleito indiretamente em 1985, não tomaria posse, ao adoecer e falecer, logo em seguida.
Com isso, José Sarney, seu vice, assumiu a presidência.
A primeira eleição direta após vinte e nove anos elege Fernando Collor de Mello como presidente, em
1989. Marcado por instabilidade econômica e denúncias de corrupção, o governante renuncia pouco antes da
conclusão de sua deposição, no final de 1992. Em seu lugar Itamar Franco, o vice, assume a presidência, já
com a missão de encaminhar o Plebiscito previsto para 1993.
Desde 1824, o Brasil contou com sete Constituições ao longo de sua história política. A primeira delas
regeu o período monárquico. Com a Proclamação da República, uma nova Carta de leis se fez necessária,
para atender novos anseios relativos à transformação da forma de governo. Inspirada no modelo norteamericano, configurou uma República Federativa liberal, (FAUSTO, 2015, p. 141). Já em 1934, o governo
Vargas instalou um novo conjunto de leis, abandonando-o em favor de uma nova e transformada Carta em
1937, com a ditadura do Estado Novo.
Com o fim do regime ditatorial varguista, em 1946, a Constituição deixa para trás princípios da carta
anterior, vertendo-se para a questão democrática liberal, caracterizando-se por sua “tendência a uma
democracia de leve conteúdo social” (SILVA, 1989, p. 20). Em 1967 é a vez do conjunto de leis da ditadura
civil-militar ser outorgado, privilegiando os interesses dos mandatários ditadores.
A atual Constituição está em vigor desde 1988, fruto da reunião de uma Assembleia Nacional
Constituinte. De acordo com Fausto, “Havia um anseio de que ela não só fixasse os direitos dos cidadãos e
das instituições básicas do país, como resolvesse muitos problemas fora de seu alcance.” (FAUSTO, 2004, p.
519). Por isso, a Assembleia ganhou amplo destaque no exercício de suas funções.
O Artigo 2, Título X, da Carta de 1988, previa que no ano de 1993 ocorreria um plebiscito a fim de
que a população pudesse deliberar sobre a forma e o sistema de governo. “No dia 7 de setembro de 1993 o
eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de
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governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.” (BRASIL, 1988). Mais tarde,
em 1992, a data da eleição foi antecipada para 21 de abril.
A realização do Plebiscito
A realização do Plebiscito em 1993 oportunizou ao eleitor a escolha da forma e do sistema de
governo. A votação apresentava a opção entre a Monarquia e a República, o presidencialismo e o
parlamentarismo, escolhidas separadamente no espaço da mesma cédula (CARVALHO, 2010). A disposição
das informações no papel ainda contemplava a possibilidade da escolha de uma monarquia presidencialista.
No entanto, a lei que regulamentou o processo não versava sobre a ideia, considerada, portanto, inexistente –
logo, inviável.
A concretização do processo eleitoral, em abril de 1993, coincidiu com um momento de instabilidade
e enfraquecimento das instituições brasileiras, observadas com o longo desgaste do presidente Fernando
Collor e a recente instalação do vice, Itamar Franco. Assim, a campanha foi realizada em curto espaço de
tempo, com utilização de horário político em rádio e televisão. Por mais que entre a aprovação do Plebiscito e
a realização do mesmo tivessem se passado cinco anos, os assuntos e eventuais discussões pertinentes não
foram aprofundados no período. Na última hora, portanto, cada uma das frentes buscou convencer o eleitor
dos pontos positivos de seu ideário e dos pontos negativos associados às demais ideias em concorrência
(CARVALHO, 2010).
A realização da votação se relaciona com a articulação do deputado federal constituinte Cunha Bueno
(PDS-SP), o qual viabilizou a proposta de remoção de uma Cláusula Pétrea, datada de 1889, que impedia a
contestação da República (NÉMETH-TORRES, 2008). Com isso, trazia a ideia de realizar um Plebiscito, a
fim de que a população escolhesse entre a República e a Monarquia, sua forma de governo preferida. Sem
crédito entre os constituintes, a ideia ganhou força ao obter o apoio dos parlamentaristas.
O debate sobre o sistema de governo no âmbito da Assembleia Constituinte já havia aclamado a
escolha pelo presidencialismo. Com isso, portanto, o parlamentarismo foi reprovado como sistema de
governo para o Brasil. Insatisfeitos, os parlamentaristas se uniram com Cunha Bueno em prol da proposta
plebiscitária, contemplando formas e sistemas de governo na mesma votação. A ideia foi, então, aprovada
com ampla margem (NÉMETH-TORRES, 2008).
Em fevereiro de 1993, com a regulamentação da votação, as frentes começaram a materializar suas
campanhas. Os monarquistas parlamentaristas, por exemplo, elaboraram seus trabalhos enfatizando
membros da Família Real, sem especificar quem seria o rei em caso de vitória da causa. Isso se deve pelas
históricas desavenças familiares que separaram a realeza em dois ramos. Dentro dos próprios ramos havia
divergências ideológicas, a exemplo da filiação de Dom Luiz Gastão e Dom Bertrand, o primeiro e o segundo
da lista de sucessão oficial dos Orleans e Bragança, à TFP – Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade – organização de extrema direita composta por católicos radicais. Apesar disso, Dom
Luiz era concorrente declarado ao cargo (NEMETH-TORRES, 2008). Cunha Bueno seguia sendo a principal
liderança em defesa da ideia monárquica.
Já entre os republicanos parlamentaristas, o apoio dos mais diversos políticos da época tornava a
frente multipartidária. O PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira – era, no entanto, o principal
envolvido na defesa da corrente (CARVALHO, 2010). A frente salientava em sua defesa, ataques ao
presidencialismo, taxando-o de corrupto, resgatando a lembrança do governo que havia sido deposto
recentemente. No entanto, o movimento teve dificuldade em conciliar seu ideário com a explicação de
informações e métodos complexos relativos ao sistema e desconhecidos do grande público, como a moção de
desconfiança e a dissolução de um governo impopular. Tais fatores eram vistos como positivos pelos
defensores (SERRA, 1993, pp. 13-14), mas confundiam a opinião popular. Por isso, Miguel (1996) enfatiza
que “A proposta da frente parlamentarista pareceu complicada para o telespectador brasileiro” (MIGUEL,
1996, p. 30), destacando a importância da campanha televisiva na construção do conhecimento eleitoral.
Por fim, os republicanos presidencialistas contavam com o slogan “Diretas Sempre”, alusivo ao
movimento Diretas Já. Seus principais apoiadores, como Darcy Ribeiro, acusavam os parlamentaristas de
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querem praticar um golpe através do Plebiscito, desde a concepção do pleito eleitoral até ao ideário
inconsistente, em suas visões (RIBEIRO, 1993, p. 109). A monarquia também não era poupada em críticas
por Ribeiro, ao salientar sua preferência pela manutenção do status quo: “É de chorar, porém, porque o
aventureirismo parlamentarista poderá confundir o povo, seja divertindo com a brincadeira carnavalesca do
retorno à monarquia, seja enganando com promessas milagrosas de um governo parlamentarista perfeito”
(RIBEIRO, 1993, p. 110). Assim como os parlamentaristas, constituíam-se de membros de diversos partidos,
apresentando dificuldade em unificar seu discurso público.
O resultado não surpreendeu: a república presidencialista ganhou com relevantes percentuais. O
índice de abstenção foi grande. Conforme Miguel (1996), “Poucas campanhas políticas encontraram um
eleitorado tão desmotivado quanto a do plebiscito do dia 21 de abril de 1993” (MIGUEL, 1996, p. 1). Isso tudo
demonstra falta de engajamento da população no processo, justificando-se pela pouca familiaridade do
eleitor frente aos assuntos em questão. A cobertura de Veja sobre os acontecimentos também tem muito a
dizer sobre a importância designada à decisão tomada naquele abril.
A revista Veja: representações sobre o Plebiscito e a pesquisa histórica pela imprensa
Os estudos historiográficos proporcionados pelo Movimento dos Annales e a renovação cultural
marxista, ao longo do século XX, tornaram possível a utilização de periódicos da imprensa como fontes de
pesquisa. Através de jornais e revistas pode-se perceber como se dava a visão de um evento histórico em seu
próprio tempo, auxiliando na compreensão do desenvolvimento social (DE LUCA, 2008, p. 111).
A possibilidade do uso de fatos relativamente recentes, tratados a partir da chamada História do
Tempo Presente, viabilizou o surgimento de novos trabalhos. A proximidade temporal do pesquisador com o
objeto de estudo deixou de ser tratada de forma negativa.
Assim, a falta de distância, ao invés de um inconveniente, pode ser um
instrumento de auxílio importante para um maior entendimento da
realidade estudada, de maneira a superar a descontinuidade
fundamental, que ordinariamente separa o instrumental intelectual,
afetivo e psíquico do historiador e aqueles que fazem a história.
(CHARTIER apud FERREIRA, 2000).
Desse modo, a História pode contribuir de maneira especial à produção e organização de
conhecimento, uma vez que, sendo contemporâneo ao acontecimento estudado ou estando mais próximo
dele, o historiador pode recuperar dados que forneçam a imperativa fundamentação à pesquisa. O
pesquisador se coloca como uma testemunha ocular da História em busca da superação de paixões, portando
instrumental historiográfico de qualidade para contemplar todo o processo histórico.
A pesquisa em periódicos requer atenção redobrada a fatores, como a parcialidade peculiar aos
veículos de imprensa e a eventual confusão entre História e memória, onde a segunda diz respeito a
experiências pessoais do pesquisador.
Com o uso da revista Veja, a atenção não é diferente. Lançada em 1968, a publicação era tida como
inovadora em seu mercado, pois “Era uma revista cheia de texto, que inaugurava no Brasil o gênero das
Newsweeklies, revistas semanais de informação.” (CORRÊA, 2012, p. 218). O estranhamento inicial do
público foi inevitável, uma vez que suas principais concorrentes de sucesso – O Cruzeiro e Manchete –
utilizavam em suas páginas mais imagens e menos textos.
Com o tempo, após pesados investimentos oriundos de sua editora, a Abril, consolidou-se no
mercado, inspirando concorrentes, como IstoÉ e Época (CORRÊA, 2012, p. 222).
O comportamento da revista desperta o interesse de pesquisadores, pela quantidade de informações
perceptíveis em seus textos e imagens, utilizando técnicas metodológicas de análise. Nem sempre essas
informações se limitam a uma simples notícia. Os jornais e as revistas muitas vezes apresentam reflexos de
uma filiação partidária, oculta em seu discurso auto atribuído de “simples veículo de imprensa” (SILVA,
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2005, p. 81). “As mídias não transmitem o que ocorre na realidade social, elas impõem o que constroem do
espaço público” (CHARAUDEAU, 2015, p. 19).
Por meio da Análise de Conteúdo e da Análise de Discurso, o pesquisador na área da História pode
extrair os conhecimentos necessários para a composição de sua pesquisa. “Os textos jornalísticos devem ser
compreendidos como uma representação que deixa entrever a sociedade da época retratada e as atitudes ali
introjetadas”. (KARAWEJCZYK, 2010, p. 136).
Ao que confere a realização do Plebiscito sobre a Forma e o Sistema de Governo, foram analisadas
quinze edições da revista Veja, datadas de janeiro a maio de 1993. Por elas, é possível perceber as incertezas
que regiam os acordes iniciais da disputa, ainda sem regulamentação no mês de janeiro. No campo das
dúvidas, Veja apresenta em suas páginas dados de pesquisa, os quais indicam certo favoritismo da República
parlamentarista. Acredita-se que tal fato se deva ao recente desgaste natural da imagem do presidencialismo
naquele momento, motivado pela deposição do presidente anterior.
Também se nota certo desprezo na abordagem da publicação em relação ao ideário monarquista.
Considerável espaço é dedicado à apresentação da família Orleans e Bragança, em seus “amores, intrigas e
estilo de vida”, como destaca o semanário. O tom folhetinesco e a pouca crença na seriedade dos
monarquistas naquela eleição são fatores criticados, inclusive, por leitores na seção de “Cartas”.
Com a regulamentação do Plebiscito, em 3 de fevereiro, a campanha se inicia de fato. Quantidade
considerável de matérias salientavam que as campanhas não agradavam, por sua superficialidade e falta de
concretude. Inúmeras referências negativas são feitas ao longo do período. Sem perspectiva de que a
campanha deslanche e contribua para a erudição política do leitor/eleitor, o semanário publica seu próprio
guia, a fim de explicar pontos de concordância e discordância com o discurso das frentes, um mês antes da
eleição.
Na medida em que o Parlamentarismo tem dificuldades em explicar suas ideias ao grande público, o
conteúdo de Veja critica a corrente com mais veemência. Se inicialmente, procura reforçar a ideia de forma
positiva, posteriormente expõe suas múltiplas fraquezas em sua eventual aplicação no cenário nacional. Nem
por isso faz apologia aos presidencialistas. Igualmente critica as frentes, como também aumenta o tom contra
a própria realização da votação.
O Plebiscito passa e o enfoque das reportagens incide sobre a economia no governo Itamar Franco –
às vésperas do Plano Real – e a reforma constitucional de outubro – já dispensada da alteração da forma e no
sistema de governo, devido ao resultado favorável à República presidencialista.
Com isso, pode-se entender que a cobertura do semanário sobre o assunto reflete o ritmo da
campanha e a postura do eleitor, mesmo quando as paixões que impedem o pleno exercício da
imparcialidade jornalística nos periódicos não são tão acentuadas, como no caso do Plebiscito.
Ou seja, por meio da postura de Veja, o Plebiscito pode ser percebido em todas as suas nuances,
colaborando para a pesquisa do historiador, o qual, com a adoção de critérios minuciosos, pode fazer uso
desse recurso, especialmente para retratar pesquisas da História do Tempo Presente.
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O processo migratório da Região do Vale do Rio do Peixe/SC:
características da frente pioneira de colonização
Roberto Carlos Rodrigues1
Resumo: O processo de migração para outra região ou estado faz parte da história da humanidade e é algo
que ocorre em diferentes momentos históricos. Todavia, sempre é importante analisar as condições
específicas em que ocorrem esses processos migratórios e os fatores que os influenciam. Nesse sentido, este
artigo aborda a migração na região do Vale do Rio do Peixe no início do século XX com o objetivo de
compreender as características da Frente Pioneira que marcaram a forma de colonização desse movimento
migratório. Para a elaboração desse trabalho, foram analisadas várias fontes bibliográficas e teóricas que
abordam o assunto estudado. Verifica-se que ocorreram vários momentos de fricção entre os autóctones e as
companhias colonizadoras e que a Frente Pioneira de colonização mudou o perfil de produção e da cultura de
região do Vale do Rio do Peixe, sendo que as modificações ocorridas perduram até os dias de hoje.
Palavras-chave: Migração, frente pioneira, Vale do Rio do Peixe.
REGIÃO OESTE CATARINENSE
O atual território do oeste catarinense, como grande parte do interior brasileiro, permaneceu por
longos anos sem ser ocupado. Havia em Santa Catarina quatro grandes grupos indígenas que habitavam o
território: os Carijó, no litoral; os Xokleng nas serras Geral e do Mar, planalto norte, planalto serrano e nas
regiões do Médio e do Alto Rio Itapocu, Itajaí e Mirim; os Guarani, na região ribeirinha do rio Uruguai, desde
Peperi-Guaçu até as proximidades da atual cidade de Concórdia e; os Kaingang, nas regiões altas do oeste
catarinense, cobertas parcialmente por pinheiros, próximas ao estado do Paraná. Nos territórios do vale do
Rio do Peixe havia a presença tão somente dos Kaingang (BILIBIO, 2017).
A distância e ausência de adequado transporte para bens que poderiam ser produzidos fizeram com
que o território do vale do Rio do Peixe ficasse desabitado por mais de três séculos.
Essa região do meio oeste catarinense, antes da guerra do contestado, pertencia ao estado do Paraná
e, em 15 de fevereiro de 1905, o governo do Paraná, por meio do Decreto nº47, fundou uma colônia na região
da foz do rio do Peixe, com área de cerca de 12.000 hectares, para promover o povoamento, sendo que tal
situação só se alterou com o início da construção da estrada de ferro no vale do Rio do Peixe (BILIBIO, 2017).
FERROVIA COLONIZADORA
O fator que impulsionou a colonização do oeste catarinense foi essa construção da estrada de ferro,
cujas obras tiveram início em 1908, tendo como responsável pela construção do trecho catarinense, a
empresa norte-americana Brazil Railway Company. A obra foi conhecida como “ferrovia colonizadora”.
Ao término da construção da estrada de ferro, totalizavam cerca de dez mil trabalhadores recrutados
pela empresa construtora, sendo que a partir da conclusão, muitos se espalharam pela região e provocaram
grande miscigenação entre a massa predominantemente masculina e as índias locais. Tal população levava
uma vida bastante simples, cultivava a terra através de sucessivos desmatamentos, visando à subsistência
(RADIN, 2001).
Essa população foi vista pelas autoridades e opinião pública como incapaz ou imprópria para o
aproveitamento econômico do território. Por seu modo de vida, sua cultura e a sua forma de lidar com a
produção, os caboclos foram representados como pessoas do sertão, preguiçosas, atrasadas, rudes, violentas
1
Licenciado em História pela UNOESC e Mestrando em História pela UPF.
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e, em suma, inadequadas para promover o progresso da região, como imaginavam as autoridades. (BILIBIO,
2017). Tal elemento humano, que habitava essa região, não era considerado proprietário das terras que
ocupava, mas sim um posseiro, intruso, sem cultura e marginalizado.
Os colonos, Por sua vez, eram representados como trabalhadores, ordeiros, progressistas e mais
preparados para difundir a “civilização”, a exemplo do que teria acorrido nas antigas áreas das colônias do
Sul. (BILIBIO, 2017).
Salienta-se que, quando se fala de colonização, reporta-se à relação de colonizadores e colonizados. O
avanço do processo de colonização intensificou a apropriação privada da terra, fato que se constituiu em um
novo modelo. Com ele, o modo de vida das populações nativas se enfraqueceu sobremaneira e o dos colonos
foi firmando sua hegemonia (BILIBIO, 2017).
A companhia norte-americana Brazil Railway Company recebeu como pagamento, sob forma de
concessão, quinze quilômetros de cada lado da estrada, sem ser levada em conta qualquer posse anterior,
legalizada ou não. Além disso, a mesma empresa teve como subsidiária a Brazil Development & Colonization
que iniciou a apropriação territorial, encontrando muitos proprietários e posseiros às margens da estrada de
ferro.
Perante a situação, esses últimos foram desalojados. Foi então, a partir da construção dessa estrada,
que cortou o estado catarinense ao longo de todo o Vale do Rio do Peixe, que se iniciou o processo
colonizador oestino (PIAZZA, 1983).
A empresa construtora da estrada de ferro reivindicou junto aos governos do Paraná e de Santa
Catarina as terras que faltavam. Cabe mencionarmos aqui que o governo paranaense, a partir de 1911, à
revelia do governo catarinense, passou a expedir títulos (terrenos já demarcados em ambos os lados da
ferrovia nas duas margens do Rio do Peixe) à Companhia.
Diante destes fatos, o governo autorizou a venda, em grandes glebas, a particulares, das terras
concedidas, para que se formassem empresas colonizadoras próprias. Perante isso é que a Companhia
construtora da ferrovia criou à subsidiária Brazil Development and Colonization Company, cedendo-lhe a
maior parte das terras a que tinha direito.
INÍCIO DA COLONIZAÇÃO E POVOAMENTO
Enquanto perdurou o movimento do Contestado (1912-1915), os programas de colonização do Vale
do Rio do Peixe e oeste ficaram paralisados. No ano de 1917, o governo deu um impulso para que as regiões
fossem ocupadas, criando os municípios de Cruzeiro (hoje Joaçaba) e Chapecó.
As empresas subsidiárias da construtora da estrada de ferro, além de passarem a implantar projetos
de colonização diretamente, também passaram a transferir suas concessões a outras empresas colonizadoras
que, naquele momento, estavam se estruturando no Rio Grande do Sul.
O processo colonizador, interessando o oeste do Estado, somente começou de forma intensa em
1920. Primeiramente, foram feitas concessões pelo governo do Paraná e, mais tarde, pelo governo
catarinense (CEPA, 1990). Nessa data, a região era povoada por caboclos e índios, os quais, com a
colonização, buscaram se instalar em locais mais distantes.
A empresa construtora da ferrovia repassou várias concessões a outras colonizadoras gaúchas e boa
parte delas mantiveram suas sedes naquele Estado ou em cidades do interior. Algumas das empresas
colonizadoras que atuaram nesta região foram: Bertaso, Chapecó-Peperi LTDA, Mosele, Theodore Capele.
Além dessas citadas, outras de importância menor atuaram na região.
Os donos das empresas de colonização no Rio Grande do Sul, diante da dificuldade de obter novas
áreas para comercialização naquele Estado, passaram a atuar na venda das terras desocupadas no oeste
catarinense. (RADIN, 2001).
Ao se referir ao processo colonizador, impulsionado a partir de 1920, CEPA faz o seguinte
comentário:
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[...] não chegou a caracterizar uma marcha para o Oeste. Pelo contrário, iniciou-se
predominantemente no sentido sulnorte, com os primeiros núcleos instalando-se
no Vale do Rio do Peixe e no Alto Uruguai; a partir daí, as frentes deslocavam-se
tanto para o oeste quanto para o norte (CERPA, 1990, p.23).
Gaúchos e seus descendentes se fixaram no oeste catarinense, definindo o perfil cultural do habitante
como “cataúcho”, uma mescla de gaúcho catarinense ao lado do catarinense gaúcho, sendo mais forte e
duradoura a tradição sulista dos gaúchos em hábitos alimentares e folclore tradicionalistas (HACK, 2008).
Sendo assim, a colonização em Santa Catarina e, em especial no Vale do Rio do Peixe, deu-se
basicamente por imigrantes vindos do Rio Grande Sul no início do século XX. Essa emigração ocorreu em
virtude da falta de terras para as famílias dos colonos, uma vez que as famílias iam crescendo e o sustento
pela produção agrícola começou a ser ameaçado. Uma prática comum das famílias nesse período, que até
então não tinham métodos eficientes para o controle da natalidade e mantiam a visão de que filhos
consistiam em uma fonte de mão de obra para o trabalho na lavoura, e a para isso era necessário uma grande
quantidade de filhos. Ocorre que os filhos dos colonos iam constituindo novas famílias a necessidade de
novas terras ficava eminente. Dessa forma, o excedente populacional e as dificuldades do mundo que os
cercava fez com que as famílias migrassem. As companhias colonizadoras estimulavam entre os colonos a
ideia de que morar em novas terras seria a possibilidade de encontrar um mundo melhor – a Cocanha. Com
isso, iniciou-se a migração para o oeste catarinense.
Podemos perceber que essa migração dos colonos gaúchos, em especial, foi de certa forma uma
“migração forçada”. Várias são as matrizes teóricas que se debruçam sobre esse fenômeno. Para Gaudemar
(1977), a migração está vinculada à mobilidade do trabalho, ou seja, à propriedade que todo homem possui
de vender sua força de trabalho e se deslocar de acordo com as regras ditadas pelo capital:
A circulação das forças de trabalho é o momento da submissão do trabalhador às
exigências do mercado, aquele em que o trabalhador, à mercê do capital e das crises
periódicas, se desloca de uma esfera de atividade para outra; ou por vezes aquele
em que sucede o trabalhador ser “sensível” a toda variação da sua força de trabalho
e da sua atividade, que lhe deixa antever um melhor salário (GAUDEMAR, 1977, p.
194).
Para Singer (1998), a mobilidade no capitalismo é uma “mobilidade forçada”, em decorrência, de um
lado, da introdução de relações de produção capitalistas que acarretam à expropriação de camponeses, além
da decadência ou atraso tecnológico em determinadas áreas e a falta de terras, provocando a carência de
trabalho, e, de outro, da necessidade do trabalhador inserir-se em novas frentes. Assim:
As migrações internas não parecem ser mais que um mero mecanismo de
redistribuição espacial da população que se adapta, em última análise, ao rearranjo
espacial das atividades econômicas. Os mecanismos de mercado que, no
capitalismo, orientam os fluxos de investimento às cidades e, ao mesmo tempo,
criam os incentivos econômicos às migrações do campo à cidade, não fariam mais
que exprimir a racionalidade macroeconômica do progresso técnico que
constituiria a essência da industrialização. Tal industrialização, sem que as
características institucionais e históricas dela tivessem qualquer papel na
determinação daquele processo […] (SINGER, 1998, p. 31-32).
Portanto, a migração interna é um processo social, determinado historicamente, segundo causas
estruturais quase sempre de fundo econômico: “Dadas determinadas circunstâncias, uma classe social é
posta em movimento” (SINGER, 1998, p. 152).
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FRENTE PIONEIRA NO OESTE
O processo de colonização da região do Vale do Rio do Peixe foi movido por fins mercantis, ao se
desenvolver calcado na pequena propriedade familiar, como CEPA (1990), expõe que:
Dividiam-se os lotes urbanos que formariam a sede dos distritos e delimitavam-se
algumas pequenas chácaras ao seu redor. No interior os lotes coloniais a serem
vendidos aos futuros colonos, eram demarcados com áreas entre 20 a 25 hectares,
em geral 24,2 (10 alqueires paulistas), o que viria a caracterizar a área como
“colônia”. Nas áreas que se prestavam as atividades agropastoris, eram demarcados
lotes rurais de 100 a 1.000 hectares; estes, porém, tiveram pouca expressão, dadas
as condições topográficas da região (CEPA, 1990, p.24).
Essa conjuntura permitiu criar um sentimento comunitário e religioso. Isso porque os colonos se
organizaram sua vida social, em grande parte, em torno dessas comunidades religiosas. Nesse sentido, os
colonizadores replicaram o modelo das antigas colônias sulinas de imigrantes.
Tal prática se constituiu em importante fator de organização social, tendo em vista que a presença do
Estado pouco ou não existia, ou tardou ao chegar. Em torno dessas comunidades ou vilas surgiram, por
iniciativa dos moradores locais, igrejas, escolas, cemitérios, centros comunitários, etc.
Ao analisar esse cenário da colonização da região do Vale do Rio de Peixe podemos perceber as
características dessa colonização como sendo a da frente pioneira. Ao falar sobre frente pioneira, Golin
menciona que essa “ […] tenciona uma “nova sociabilidade”, fundada em novas formas de produzir, em
alterações de mercado e nas relações sociais.” (GOLIN, 2002, p.31).
Assim, o movimento da frente pioneira reflete a expansão geográfica do capitalismo, tendo como
ponto fundamental a nova relação que se estabelece com a propriedade privada da terra:
O ponto chave da implantação da frente pioneira é a propriedade privada da terra.
Na frente pioneira a terra não é ocupada, é comprada. Desse modo, a renda da terra
se impõe como mediação entre o homem e a sociedade. A terra passa a ser
equivalente de capital e é através da mercadoria que o sujeito trava as suas relações
sociais. Essas relações não se esgotam mais no âmbito do contato pessoal. O
funcionamento do mercado é que passa a ser o regulador da riqueza e da pobreza. A
alienação do produto do relacionamento faz com que as expectativas reguladoras
do relacionamento sejam construídas de conformidade com as objetivações da
sociedade capitalista (MARTINS, 1975, p. 47).
A respeito da mobilidade geográfica Harvey comenta:
[...]toda forma de mobilidade geográfica do capital requer infraestruturas espaciais
fixas e seguras para funcionar. As migrações seriam, do ponto de vista do processo
de desenvolvimento capitalista, condições necessárias à circulação inconstante do
capital no espaço e sua acumulação efetivamente. (HARVEY, 2005,p.148).
Ocorre, portanto, com a expansão da frente pioneira sobre a frente de expansão, toda uma
mobilidade de infraestruturas para subsidiarem e apoiarem a reprodução do capital e sua circulação. Nesse
sentido, para Harvey (2005), as migrações seriam do ponto de vista do processo de desenvolvimento
capitalista, condições necessárias à circulação inconstante do capital no espaço e sua acumulação.
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Sendo assim, a frente pioneira “é constituída pela forma empresarial e capitalista de ocupação do
território – é a grande fazenda, o banco, a casa de comércio, a ferrovia, a estrada, o juiz, o cartório, o Estado”
(MARTINS, J S apud MICHELETTO; 2003, p.79) .
Os sistemas simbólicos assim são criados pela frente pioneira, resultando nas estruturas dos poderes
dominantes compostos pela Igreja e o Estado, que constroem uma dada realidade na fronteira para atender a
um determinado fim: é estabelecido um sentido imediato de mundo para a manutenção de uma ordem para a
reprodução ampliada do capital. Nas palavras de Bourdieu (1998, p. 10):“os símbolos são os instrumentos
por excelência da integração social [...] eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social
que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social”.
Nesse sentido, na frente pioneira os elementos de poder simbólico são estabelecidos para legitimar
uma ordem dominante produzida por uma classe dominante. A ordem material, isto é, das infraestruturas
fixadas na frente pioneira, é concomitantemente estabelecida por um poder simbólico que ganha e expressa
sentido através das ideologias externadas pelos detentores dos meios de produção. Assim:
Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os
pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante
numa dada sociedade é também a potência dominante espiritual. A classe que
dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção
intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios
de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. Os
pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais
dominantes concebidas sob a forma de idéias e, portanto, a expressão das relações
que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as idéias
do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem entre
outras coisas uma consciência, e é em conseqüência disso que pensam; na medida
em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda a sua
extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que
tenham, entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como
produtores de idéias, que regulamentem a produção e a distribuição dos
pensamentos da sua época; as suas idéias são, portanto, as idéias dominantes da
sua época (MARX; ENGELS, 1987, p. 29).
Destarte, se as ideias de uma classe dominante são as ideias de uma época, as ideias que dominam a
fronteira são as ideias de uma(s) classe(s) dominante(s) de determinada(s) época(s). Essas ideias vêm do
poder político, econômico e dos símbolos, isto é, das estruturas criadas para legitimar e afirmar o poder
dessa classe sobre os outros indivíduos. Portanto, é nesse contexto que são estabelecidas as relações de poder
das classes dominantes na frente pioneira. Aliado a isso, para Martins (1982, p. 75): “é nessa frente que surge
em nosso país o que se chama hoje, indevidamente, de pioneiro”. Para o autor, estes sujeitos são na verdade
os pioneiros das formas sociais e econômicas da exploração e dominação vinculadas às classes dominantes e
ao Estado. Assim, essa frente pioneira é essencialmente exploratória, pois está organizada socialmente sobre
relações de compra e venda, inclusive da força de trabalho.
ATIVIDADES ECONÔNICAS DESENVOLVIDAS NA REGIÃO OESTE CATARINENSE
Com a intensificação do processo colonizador no Vale do Rio do Peixe a partir de 1920, a extração da
madeira passou a ser a principal atividade econômica da região até 1940. Os primeiros imigrantes gaúchos
que chegaram ao Vale do Rio do Peixe dedicavam-se à agropecuária (em especial à produção de milho, suínos
e trigo), atividades semelhantes às que desenvolviam nas zonas de origem. Os colonos descendentes de
alemães, procedentes da região de Santa Cruz (RS), trouxeram o cultivo de fumo à região. Esse, juntamente
com a erva-mate e a madeira, produtos que se prestavam às precárias condições de transporte,
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representavam a base econômica do oeste nesse período, permitindo o surgimento de casas de exportação
(CEPA, 1990).
O tipo de produção agrícola que se estabeleceu nesta área, como abordam Testa et al. (1996), foi o da
predominância da família enquanto unidade organizadora do processo produtivo e do trabalho. Mas, mesmo
a produção sendo familiar, essa não era somente para a subsistência e sim orientada para o mercado.
Quanto ao transporte desses produtos, a erva-mate seguia de cargueiro (caminhão que transporta
carga) para a Argentina e, pela ferrovia, ao Rio Grande do Sul e ao centro-sul do país. A madeira, no Vale do
Rio do Peixe, era transportada pela ferrovia para o sudeste e mais para o oeste do vale, era transportada para
a Argentina via balsas. O fumo era transportado para Santa Cruz (RS). Podemos notar a importância da
ferrovia São Paulo - Rio Grande impulsionando as atividades extrativas da região, mas, acima de tudo, ela
representou a integração da economia colonial gaúcha aos principais centros do país (São Paulo e Rio de
Janeiro), como enfatiza o estudo do Instituto CEPA (1990).
Esse aponta ainda que o oeste catarinense bem como o sudoeste paranaense viriam a constituir
sucessivos espaços econômicos de expansão da economia colonial iniciada no Rio Grande do Sul que,
naquela época, já apresentava excedentes populacionais. Podemos perceber que a estrada de ferro é o
principal meio de escoação da produção da colonização de Frente Pioneira.
Durante a década de 30, outro fator contribuiu para o comércio entre a região oeste catarinense e o
centro do país. A demanda paulista de suínos vivos e banha fez com que o Vale do Rio do Peixe desviasse seu
comércio com as antigas colônias gaúchas e passasse a comercializar com São Paulo.
Em 1940, foram fundados três frigoríficos de suínos no Vale do Rio do Peixe que impulsionaram uma
nova fase na economia regional: o da agroindustrialização.
No mesmo ano, também se intensificou a colonização na direção do extremo-oeste do Estado e,
concomitantemente, a abertura do mercado para suínos, via agroindústria, atingiu toda a região do Vale do
Rio do Peixe até o extremo-oeste catarinense. Em razão da abundância de terras férteis e com preços
acessíveis, clima favorável, proximidade com a estrada-de-ferro e a quantidade de mão de obra que migrou
para essa região, o comércio local cresceu rapidamente e de 1940 a 1960, a região assumiu a primeira posição
estadual na produção de suínos, bem como de milho e feijão. Foi nesse período que se desenvolveu o grande
capital agroindustrial da região.
Inicialmente, a economia foi comandada pela agricultura familiar voltada ao mercado interno, sendo
que atualmente em toda a região oeste ocorre o predomínio das atividades econômicas ligadas direta ou
indiretamente às agroindústrias e a indústria frigorífica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível perceber que a colonização do Vale do Rio do Peixe e do oeste catarinense não foi
espontânea, mas sistemática e programada, feita a partir de interesses do Estado, das colonizadoras e
especuladores e sem levar em conta a população autóctone da região, características típicas da Frente
Pioneira de colonização.
No vale do Rio do Peixe e oeste catarinense, repetiu-se o mesmo modelo de ocupação das áreas de
colonização gaúcha, baseado na pequena propriedade colonial, que era destinada à agricultura de
subsistência e procurava atender ao mercado interno. As novas terras do meio-oeste e oeste catarinense
absorveram o grande excedente populacional das áreas coloniais do Rio Grande do Sul. Assim, na medida em
que eram ocupadas as terras em Santa Catarina, aliviava-se a pressão demográfica naquele estado.
O modelo de colonização adotado nas novas terras favoreceu a continuidade da civilização agrária,
em que os migrantes mantiveram-se ligados ao trabalho agrícola. Em virtude do tamanho dos lotes e, de
modo especial, das limitações do próprio modelo, a expectativa de fazer fortuna frustrou-se novamente.
Apesar disso, na visão dos agricultores, considerava-se um status de ser proprietário, ou mesmo estar ligado
a terra.
Os migrantes nas novas terras agiram conforme sua visão e seus princípios culturais, contribuindo,
nesse sentido, para a marginalização dos caboclos, que, na região, ficaram cada vez mais distantes do acesso
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a terra e às condições de sobrevivência. No entanto, muitos desses caboclos excluídos resistiram a essa forma
excludente e perversa e permaneceram na região. Sendo assim, pode-se perceber que os coblocos
contribuíram em vários aspectos para o crescimento tanto econômico quanto cultural da região meio- oeste e
oeste catarinense.
Hoje, conhecida como Vale do Rio do Peixe, a microrregião de Joaçaba é composta por vinte e sete
municípios dentro os quais, onze são banhados pelo Rio do Peixe. Nessa microrregião estão localizadas três
Agências de Desenvolvimento Regional (ADR): de Caçador, de Joaçaba e de Videira. A Agência de
Desenvolvimento Regional de Joaçaba é composta pelos municípios de Água Doce, Capinzal, Catanduvas,
Erval Velho, Herval d’ Oeste, Jaborá, Ibicaré, Joaçaba, Lacerdópolis, Luzerna, Ouro, Treze Tilhas e Vargem
Bonita, A SDR de Caçador contêm os municípios de Caçador, Calmon, Lebon Régis, Macieira, Matos Costa,
Rio das Antas e Timbó Grande (Figura 2); e a SDR de Videira abrange os municípios de Arroio Trinta,
Fraiburgo, Iomerê, Pinheiro Preto, Salto Veloso, Tangará e Videira.
Na região do Vale do Rio do Peixe a presença dos migrantes, em especial, italianos e alemães é
bastante visível e, apesar da forte presença desses migrantes, pode-se perceber grande presença dos caboclos
e índios através da miscigenação que foi um processo inevitável, fazendo com que o multiculturalismo
prevalecesse na região.
Através desse artigo não esperava-se concluir a temática sobre a colonização e povoamento da região
oeste, mais contribuir como fonte para futuros trabalhos que poderão abordar essa mesma temática.
Entende-se que os principais objetivos do trabalho foram alcançados e espera-se a continuidade dos estudos
para melhor compreender o fenômeno da colonização no Vale do Rio do Peixe.
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SINGER, Paul. Dinâmica populacional e desenvolvimento. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.
TESTA, V. M. et all. O desenvolvimento sustentável do Oeste Catarinense (proposta para
discussão). Florianópolis: EPAGRI, 1996, 247 p.
[ 339 ]
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Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208
Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS
Perspectivas sobre o conceito de poder em administração:
Análise Sistemática de Artigos Empíricos (1990-2018) e
Uma Proposta de Definição Abrangente
Rodolfo Henrique Cerbaro
André da Silva Pereira
Resumo: A conceituação de poder envolve diferenças significativas entre autores nas ciências sociais. Em
administração, por envolver organizações que costumam ter algum grau de hierarquia, o conceito é utilizado
de forma frequente e com definições variadas. Dado tal cenário, este artigo objetiva fazer uma revisão de
como o conceito tem sido usado em textos empíricos que entrelaçam questões de poder com organizações, e
se há tendências visíveis entre as definições utilizadas, enfocando a distinção individual/relacional no
período 1990-2018. Para tanto, um número de 15 artigos foi selecionado, que enfoque poder em organizações
e sejam empíricos, nas bases Scopus, Web of Science e Scielo. Com estes, se faz uma análise de conteúdo,
objetivando apontar características das definições utilizadas. Além disto, em prol de avançar teoricamente,
brevemente se delineia uma conceituação que, talvez, seja capaz de utilizar a essência tanto da perspectiva
individual como da relacional: definir o conceito e de ser estrutural de forma a permitir a este certa
maleabilidade conceitual. Conclui-se que, no âmbito relacional, a principal tendência é Foucaultiana. No
individual, a categorização de French e Raven é a mais utilizada. Finalmente, percebe-se fragmentação nos
usos.
Palavras-chave: Poder; Administração; Conceituação
Abstract : The conceptualization of power involves significant differences among authors in the social
sciences. In business administration, because of handling organizations that usually have some degree of
hierarchy, the use of the concept is frequent and with different definitions. Given said scenario, this paper
aims to make a revision of how the concept is used in empirical texts which intertwine questions of power in
organizations, and if there are visible tendencies among the used definitions, focusing in the distinction
individual/relational for the period of 1990-2018. For said endeavor, we selected 15 articles after research,
which focus power in organizations and are empirical, in the databases Scopus, Web of Science and Scielo.
With those, we use content analysis, aiming to pinpoint characteristics of the definitions. Besides that, with
the intent of advancing theoretically, we briefly delineate a conceptualization that, maybe, is capable of using
the essence of both the individual and relational perspective: defining the concept and being structural in a
way of allowing the concept to have conceptual malleability. We conclude that, in the relational scope, the
main tendency is Foucauldian. In the individual, the categorization of French and Raven is the more used.
Finally, we note fragmentation in the uses.
Keywords: Power, Business Administration, Conceptualization
INTRODUÇÃO
Nas ciências sociais, o conceito de poder é com frequência considerado uma das noções centrais
(RUSSELL, 2004 [1938]; DAHL, 1957; KEHOANE, NYE, 2001; SEGNINI, 2014), e sua utilização em
administração é frequente, como uma busca bibliográfica sobre poder em organizações demonstra. Por
exemplo, na Scielo (BERTERO, 1968; VARGAS, 1998; SILVEIRA, 2005 e sendo 15 resultados para “poder em
organizações” e 394 para “poder” AND “organizações” nesta base), na Scopus (busca por “power in
organizations” recupera 144 trabalhos, “power” AND “organizations” são 53.472 os achados) e na Web of
Science (107 resultados por “power in organizations” e 10.504 por “power” AND “organizations”). Há,
portanto, significante bibliografia entrelaçando administração e o conceito de poder, de modo a haver uma
lacuna e certa importância em saber como o conceito, considerado como controverso (DAHL, 1957; NYE,
2001), é utilizado em diferentes trabalhos empíricos, sendo esta a justificativa para o presente. Nota-se que,
mesmo existindo muitos artigos quando a procura é “power” AND “organizations”, mostrando significante
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intersecção entre os temas, a quantia de trabalhos empíricos focando, de fato, poder em organizações
(“power in organizations”), é diminuta no período, e o presente artigo consegue, assim, analisar estes artigos.
Apesar de, como afirma Dahl (1957) e Regoli (1974), as pessoas geralmente terem uma noção
intuitiva do que querem dizer por poder, uma sistematização do conceito tem permanecido difícil, como
sugere o muito citado artigo de Dahl (1957) e, mais recentemente, autores como Nye (1990). Usualmente, ela
se aproxima da ideia de influenciar ou controlar comportamentos dos outros (KOTTER, 2010), sendo,
todavia, diferenciada por certos autores em individual ou diádica (relacional) (REGOLI, 1974; DUNBAR,
2004). Contudo, áreas em que o conceito se apresente com frequência, como relações internacionais e
ciências políticas, objetivam ter uma definição rigorosa do mesmo, para não existir dúvidas significativas nos
discursos e nas teorias que utilizam tal conceito, apesar de alguns autores não crerem ser tal possível
(SCOTT, 2008). Em administração, o conceito também detém relevância, sendo frisado em obras seminais
do campo, como no livro Imagens da Organização de Gareth Morgan (1997), assim como aparecendo,
implícita ou explicitamente, frequentemente quando que se estuda algum tipo de relação hierárquica.
Dado tal cenário de importância do conceito, a pergunta que se busca responder é: quais as
tendências para o conceito de poder em administração em artigos empíricos datados entre 1990-2018? E,
baseando-se na diferenciação entre definição individual e relacional, há como propor um meio termo que
englobe características das duas? Para auxiliar a responder estas questões, inicialmente uma seleção de 15
artigos empíricos sobre administração e poder são utilizados, diversificados pelas bases onde são
encontrados e observados pela classificação primária de Regoli (1974). A escolha se deveu ao relacionar
poder com organizações e serem trabalhos empíricos. Objetiva-se prover recursos para se aproximar de
responder à questão sobre como o conceito geralmente é definido em administração e, após, estilizar
possibilidades de avanços teóricos. Em prol disso, primeiramente se demonstra um referencial com os
principais autores sobre a conceituação de poder; depois, se expõe de forma mais ampla o método, os
resultados, uma proposta de definição que busca unir as categorias, sendo, assim, mais abrangente, e as
devidas conclusões.
REFERENCIAL TEÓRICO: Poder e suas Definições
O conceito de poder tem uma longa história que remete a antiguidade, e frente a definição do
conceito em si já há pesquisas buscando defini-lo no século XVIII (BALDWIN, 2016), como Hobbes. Durante
o século XX surgiram as formas mais utilizadas nos dias atuais. Entre estas, está a de influência (BLAU,
1964; HEYWOOD, 2000) e capacidade material (SINGER, 1980), utilizadas em relações internacionais e
ciência política. Já em sociologia, a versão republicada de um clássico de Max Weber (2010) define poder
como a “habilidade de pessoas ou grupos atingirem seus objetivos a despeito da oposição alheia”, enquanto
Steven Lukes (1974) utiliza uma dualidade, definindo como a “capacidade de impactar o mundo ao nosso
redor” e a “capacidade de dominar outros”.
O campo da administração, por sua vez, geralmente utiliza o conceito como especificado em outras
áreas, havendo poucos teóricos organizacionais que buscaram definir o conceito, com as devidas exceções de
Pfeffer (1977) que o define como “habilidade de chegar a resultados almejados”, o que não difere muito de
outras definições já previamente sistematizadas, e Mintzberg, que define como “capacidade de afetar os
resultados organizacionais” (VARGAS, 1998). Talvez isto se dê dada a já significante bibliografia em outras
áreas, ser um assunto controverso e o fato de administração ser um campo considerado mais aplicado, mas
uma explanação requer pesquisas específicas e não é o intuito do presente. Inicialmente nesta seção se
explana a evolução do tratamento do conceito, para depois frisar as definições de poder mais comumente
utilizadas. Com isto se objetiva prover um delineamento das transformações sofridas pela análise do conceito
de poder ao longo do tempo.
Segundo Baldwin (2016) apesar de haver em geral acordo em relação a importância do conceito,
sobre a definição do conceito de poder e termos correlatos como coerção e autoridade pairam discórdias.
Ainda conforme Baldwin (2016), destaca-se que, pesquisado desde a antiguidade, com os trabalhos de
Thucydides, Machiavelli e Aristóteles, apenas no século XX explicar o conceito passou a entrar na agenda e
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ser um tópico seriamente enfrentado. Continua Baldwin afirmando que até os anos 1950, o considerado mais
importante trabalho veio de Lasswell e Kaplan “Poder e Sociedade” e após a metade do século, o estudo
sistemático e rigoroso se dá em várias disciplinas, como geografia, psicologia e filosofia. A presente
sistematização foca na segunda metade do século XX em diante. Neste período de tempo, de acordo com
Regoli (1974) existem duas escolas: a individualista e a diádica. A primeira enfoca prover uma definição para
o conceito em si, enquanto a segunda trata poder como sendo algo relacional, aproximando, no mínimo, dois
atores. Baldwin (2016) cita que a partir de Lasswell e Kaplan, a tendência de trabalhos é de trabalhar poder
como algo relacional, mas o ideal não seria a capacidade de conciliar as duas definições? E a tendência se dá
em administração no período temporal estabelecido para este trabalho? Assim, tem-se tais duas perspectivas
as quais se trabalha, e sistematiza-se alguns conceitos de poder do século XX, em especial da segunda
metade, segundo uma revisão de Regoli (1974):
Quadro 1: Definições de Poder
Autor
Blau, 1964
brown, 1969
goldhammer; shils, 1939
WEBER, 1947
bierstedt, 1950
hobbes, 1937
lasswell; kaplan, 1950
PARSONS, 1968
BANFIELD, 1961
Dahl, 1957
definição
Poder é todos os tipos de influência entre
pessoas ou grupos, incluindo aqueles
exercidos em transações de trocas, onde um
induz outros a ceder a seus desejos por meio
de recompensá-los por fazê-lo.
Poder é a influência exercida por um homem
ou grupo, através de quaisquer, da conduta
de outros em maneiras pretendidas.
Uma pessoa tem poder na medida em que
influencia o comportamento alheio de acordo
com suas intenções.
Poder é a probabilidade de um ator numa
relação social estar numa situação de
satisfazer
seus
desejos,
apesar
de
resistências, independente da base em que
esta probabilidade se situa.
Poder é uma força latente.
Poder é a habilidade para obter alguns
aparentes bens futuros
Poder é participação na tomada de decisão
Poder é a habilidade de um ator induzir ou
influenciar outro para seguir suas diretivas
ou quaisquer outras normas que ele suporta
Poder é a habilidade de estabelecer controle
frente o outro.
(A) Tem poder sobre (B) na medida em que
(A) consegue com que (B) faça algo que (B)
normalmente não faria.
Fonte: Adaptado de Regoli (1974)
Nota-se a proeminência de definições que relacionam poder com influência, como Brown (1969) e
Parsons (1968), havendo já nesse período tratamento de forma relacional, como Dahl (1957). Na presente
análise sobre o emprego do conceito de poder em administração, se buscará averiguar se os mesmos utilizam
uma ideia que tende mais para o individual ou o diádico/relacional, assim como com qual definição mais
aparentam se assemelhar.
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Após os achados de Regoli, não foi encontrada outra revisão de conceito de poder utilizados, e vale
adicionar à lista de Regoli alguns dos mais conceituados, como Foucault (1992), que vê poder de forma
relacional, todavia por não se considerar um teórico (ALBUQUERQUE, 1995) frisa que sua tentativa de
compreensão é mais um método do que teoria, e define como algo estrutural, nos termos que seria uma
“complexa situação estratégica num dado ambiente social” (FOUCAULT, 1980) e French e Raven (1959) que
utilizam cinco categorias para tentar chegar a essência do conceito: poder legítimo (autoridade), poder
referente (pares hierárquicos), poder de recompensa (capacidade de recompensar), poder de especialista
(referente ao conhecimento que se tem) e poder coercivo (uso da coerção).
Também, a já citada definição de Steven Lukes (1974) aparece como uma definição bastante citada;
artigos geralmente utilizam as definições já sistematizadas no esforço de Regoli. Por fim, ressalta-se a ideia
de circuitos de poder de Clegg, que adentra a categoria relacional e concebe poder como intricado com
linguagem e conhecimento (Clegg, 1989, 2007), e as definições de teóricos organizacionais já citadas,
respectivamente Pfeffer (1977), em que poder é “habilidade de chegar a resultados almejados” e Mintzerg
(1983) poder é “capacidade de afetar os resultados organizacionais”.
As categorias teóricas utilizadas são delineadas no quadro síntese teórico a seguir, notando que a
categorização primária segue Regoli (1974) e a secundária segue, em boa parte, o entendimento dos autores,
e possíveis questionamentos podem ser levantados pelo leitor:
Quadro 2: Categorias Principais
Categorias Principais
Individual
Fonte: Elaboração dos Autores
Relacional/Diádico
Quadro 3: Categorização Secundária
Categorias Secundárias (Conceituação de Poder Assemelhada a)
BLAU, 1964 (Individual)
BROWN, 1969 (Individual)
GOLDHAMMER; SHILS, 1939 (Individual)
WEBER, 1947 (Individual)
BIERSTEDT, 1950 (Individual)
HOBBES, 1937 (Individual)
LASSWELL; KAPLAN, 1950 (Relacional)
PARSONS, 1968 (Individual)
BANFIELD, 1961 (Individual)
DAHL, 1957 (Relacional)
FOUCAULT, 1992 (Relacional)
FRENCH E RAVEN, 1959 (Individual)
LUKES, 1974 (Individual)
CLEGG, 1989, 2007 (Relacional)
PFEFFER, 1977 (Individual)
MINTZBERG, 1983 (Individual)
Fonte: Elaboração dos Autores
O significado dos quadros é diferenciar entre compreensões de poder que podem ser categorizadas,
primeiramente fazendo a maior delimitação categórica: se pode compreender poder ou provendo uma
definição no sentido de o conceito ser uma entidade em específico, ou compreendendo como algo que escapa
a delimitação de entidades, só podendo ser compreendido de forma estrutural. No segundo quadro, tem-se a
aproximação em relação a esta categorização principal, ou seja, as definições dos autores caem em individual
ou relacional/diádico, aproximando-se mais de uma ou de outra.
MÉTODO
Trata-se de pesquisa bibliográfica e qualitativa na qual se aplica uma análise de conteúdo. Bardin
(2006) considera análise de conteúdo um aglomerado de técnica que analisa comunicação, em prol de inferir
por meio de indicadores definidos. Segundo Chizzotti (2006) compreender criticamente o conteúdo
manifesto ou latente e as significações está no cerne da análise de conteúdo. Como o conceito de poder vem
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sendo utilizado em administração é o tema, fazendo com que a pesquisa por meio da análise de conteúdo seja
geralmente adequada.
A sistematização neste artigo do método busca seguir conforme o clássico de Bardin (1977), com
algumas adaptações por ser qualitativo e bibliográfico. Na pré-análise se escolheu documentos bibliográficos
seguindo o critério temporal (1990-2018) e enfocando o conceito de poder em administração. O corpus se
perfaz numa análise geral dos textos escolhidos a partir do critério “power in organizations” e sua respectiva
versão em português, enfocando a conceituação de poder e a categorização a priori entre conceituação
individual ou diádica/relacional. Perante estas, se busca, também, apreciar frente qual definição citada no
referencial mais se assemelha. O objetivo é explorar tendências na conceituação de poder em administração.
Após a análise, sintetiza-se as partes dos artigos mais relevantes e que foram utilizadas pela pesquisa para
determinar como categorizar, inferindo-se e interpretando-se.
Os 15 (quinze) artigos selecionados foram obtidos nas bases Scopus, Web of Science e Scielo, ainda
tendo por critério tratar sobre poder em organizações, se adequar ao prisma temporal (1990-2018), deter um
corpus em que se expressar a análise possa auxiliar frente a classificação e a existência de tendência, e serem
estudos empíricos. Apresenta-se o fluxograma de seleção da seguinte maneira, notando que se utiliza "Power
in Organizations" como palavras-chave, entre 1990-2018:
Figura 1: Fluxograma da Seleção de Artigos
Fonte: Elaboração dos autores
Nota-se que, segundo Zigarmi et al. (2015) há poucos estudos empíricos sobre poder, e foram
selecionados artigos que enfoquem alguma aplicação empírica de poder. Isto porque acredita-se que são
nestes em que principalmente o modo como o conceito é definido pode levar a avançar o status quo, já que
lidam com algum cenário prático e não ficam apenas na criação de teorias, sendo como, de fato, o conceito de
poder tem sido posto em uso. Apenas se descartou artigos empíricos que não tinham relação de fato com a
conceituação de poder, ou seja, ignoraram a questão de definição. Neste caso, excluíram-se 85 artigos por
razões como (1) não serem empíricos, (2) não utilizarem o conceito de poder de forma explícita e (3) não
frisarem definições para o conceito.
ANÁLISE DOS DADOS
Os artigos selecionados foram analisados em sua inteireza para fins de averiguar a utilização do
conceito de poder nos mesmos, contudo focou-se nas passagens em que tal conceito aparece de maneira mais
contundente, porque é a parte do corpus textual que mais importa para o presente. Os artigos são tabelados
com suas características principais, respectivamente, autor/ano/periódico, foco do estudo, principal
passagem utilizada para classificação de poder, classificação entre individual ou diádico/relacional (categoria
primária), e conceituação que mais se aproxima (categoria secundária), conforme a Tabela 1, vista em
seguida.
Vale notar que as passagens dos textos em inglês foram traduzidas para o português para melhor
clarificação do conteúdo ao leitor, citando-se a página, para fins de se poder buscar, caso haja algum
interesse. Utilizando da tabela, pode-se perceber uma diversidade significativa de tópicos que se entrelaçam
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com poder no âmbito organizacional, assim como uma diversidade ampla de perspectivas. Há, também,
periódicos colombianos, brasileiros, norte-americanos, o que provê a análise de generalidade, não se valendo
apenas de como uma dada corrente de pensamento utiliza o conceito, mas como, ao redor do mundo, tem se
trabalhado empiricamente o conceito de poder.
Ainda que se faça um recorte textual, frisa-se que análises de todo o texto são necessárias, porque,
em especial quando se trata de forma relacional, é o conjunto da obra que é necessário analisar para poder
formalizar categorias. Cabe ainda frisar que a categorização leva em conta, em especial, o explicitado; não
houve, assim, casos de inferência além do corpus textual, como busca por outros trabalhos dos autores para
ver de que forma costumam definir.
Autor/Ano/Periódico
CORREIA; DIAS, 2018
Revista Pensamiento
Americano, v. 11, n.
20.
PRESLER et al., 2018
Sex Roles, v. 78, n. 78, p. 573-586
WILNER et al.,
2017
Journal of Business
Ethics, v. 141, n. 4, p.
677-691
ZIGARMI et al., 2015
Human Resource
Development
Quarterly, v. 26, n. 4,
p. 359-384
Foco do Estudo
Poder de
dirigentes
máximos de
organizações
Poder em
Organizações
enfocando
mulheres oficiais
militares júnior
Organizações
online e
dificuldades com
controle e
resistência num
espaço com limites
não muito claros
Uso de poder de
líder e implicações
para afeto e
intenções de
trabalho
Recorte Textual
“Recorrendo para este fim a
um índice de medida
formulado
por
Correia
(2012) com base no conceito
de distribuição do poder
adotado por Sauder e
Espeland
(2009)
que
permite investigar o poder
organizacional
enquanto
fenómeno dinâmico” (p. 90)
“Ainda, a posição de oficial
júnior é dupla porque assim
como exercem autoridade
para com níveis hierárquicos
abaixo
são
sujeitas
a
autoridade
a
níveis
hierárquico acima (maioria
dos quais são homens)” (p.
4)
“Poder não só envolve a
habilidade
de
criar
e
influenciar” (p. 8)
“Fineman (2000) define o
termo "arenas emocionais"
para descrever os contextos
micro-político e de fluxo de
poder nos quais emoções são
realizadas para diferentes
audiências como patrões,
clientes, e colegas” (p. 3)
"Este artigo busca aumentar
o entendimento atual de
poder estrutural no nível
organizacional através de
examinar
como
formas
estruturais
de
poder
implementadas por líderes
afetam pessoas no nível
[ 345 ]
Classificação
Primária
Relacional/Diádico
Individual
Relacional/Diádico
Relacional/Diádico
Classificação
Secundária
FOUCAULT,
1992
(poder
estrutural).
Nota: Sauder e
Espeland (2009)
se baseiam em
Foucault
FRENCH;
RAVEN (poder
legítimo), 1959;
BROWN, 1969;
PARSONS,
1968; (poder
como influência)
FOUCAULT,
1992 (poder
como estrutural,
ocorrendo em
fluxo)
FOUCAULT,
1992
(poder
estrutural)
Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF)
Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208
Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS
TREADWAY et al., 2013
Journal of
Management, v. 39,
n. 6, p. 1529-1553
KENNY, 2012
Organization Studies,
v. 33, n. 9, p. 11751193
MACALPINE; MARCH,
2005
Management
Learning, v. 36, n. 4,
p. 429-450
Papel de
performance e
habilidade política
na influência
social e poder
interpessoal
Identificação e
afeto numa
organização
internacional de
desenvolvimento
Relações pessoais
de raça em
organizações e sua
relação com poder
psicológico individual” (p.
360)
“Talvez mais simplesmente,
poder pode ser visto como o
potencial
para
exercer
influência sobre outros” (p.
1533)
“Segundo, evidente em todas
essas definições é que a
habilidade de influenciar
outros
é
baseada
na
percepção e, assim, sujeita a
manipulação
e
interpretação” (p. 1533)
“Esse
reconhecimento
aparece próximo do tipo de
reconhecimento desanexado
discutido em relação a noção
de Derek, na qual a presença
e influência de estruturas de
poder são simplesmente
aceitadas” (p. 1186)
“Nós começamos a usar o
termo
poder/identidade
para expressar a complexa
interação entre esses dois
conceitos: a maneira que
identidade individual produz
diferentes
poderes
dependendo do contexto e as
identidades
específicas
envolvidas” (p. 432)
VAARA et al., 2005
Journal of
Management Studies,
v. 42, n. 3, p. 595-623
Linguagem e os
circuitos de poder
numa organização
multinacional em
processo de fusão
"O que é importante para
nossa presente análise é que
linguagem e conhecimento
também estão relacionadas
com poder" (p. 597)
TJOSVOLD et al., 2005
The Journal of Social
Psychology, v. 145, n.
6, p. 645-661
Contextos sociais e
uso de poder em
uma amostra
chinesa
"Poder pode ser utilmente
definido como ocorrendo
quando uma pessoa é capaz
de afetar os resultados de
outras" (p. 646)
COLEMAN, 2004
Journal of Applied
Social Psychology, v.
34, n. 2, p. 297-321
Estudo
experimental
sobre poder
organizacional e
efeitos de priming
“Trabalhando a partir de
uma definição geral de
poder, proposta por Salancik
e Pfeffer” (1977) como a
[ 346 ]
Individual
Relacional/Diádico
Relacional/Diádico
Relacional/Diádico
BROWN, 1969;
PARSONS,
1968; (poder
como influência)
FOUCAULT,
1992
(poder
estrutural)
FOUCAULT,
1992
(poder
estrutural)
CLEGG, 1989
(poder
relacionado com
conhecimento e
linguagem);
FOUCAULT,
1992
(poder
estrutural,
poderconhecimento)
Relacional/Diádico
DAHL, 1957
(definição de A
em relação a B)
Individual
SALANCIK;
PFEFFER, 1977
(poder como
habilidade)
Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF)
Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208
Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS
PEIRO; MELIÁ, 2003
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v. 52, n. 1, p. 14-35
WALKER; NEWCOMB,
2000
Construction
Management &
Economics, v. 18, n. 1,
p. 37-44
VARGAS, 1998
Revista de
Administração
contemporânea, v. 2,
n. 3, p. 89-107
PHENG; MAY, 1997
Building Research &
Information, v. 25, n.
3, p. 158-169
ATWATER, 1995
Group &
Organization
Management, v. 20,
n. 4, p. 460-485
em decisões
gerenciais de
compartilhamento
de poder
Poder interpessoal
formal e informal
em organizações
"habilidade de chegar a
resultados almejados" (p.
299)
O uso positivo de
poder num grande
projeto de
construção
“Muitas definições de poder
emanam da de Weber
(1947)” (p. 2)
Configuração
poder em empresa
brasileira
Sistemas de
gerenciamento de
qualidade, estudo
de autoridade e
empoderamento
A relação entre
poder supervisório
e características
organizacionais
“Baseado nas fontes de
poder
identificadas
por
French e Raven, uma teoria
bifatorial
de
poder
é
formulada e testada” (p. 14)
“Poder de especialista e de
referência são descritos
como
pessoais,
pois
largamente dependem dos
atributos
pessoais
do
indivíduo,
como
conhecimento e carisma” (p.
38)
“Mintzberg (1983) preferiu
abster-se de uma discussão
maior
de
conceitos
abstratos, definindo poder
como sendo simplesmente a
capacidade de afetar os
resultados organizacionais.”
(p. 91)
“Poder refere à capacidade
com que o gerente de
qualidade
tem
de
influenciar” (p. 159)
Individual
Individual
Individual
Individual
“Há quatro tipos de poder:
coercivo, de recompensa,
especialista
e
de
oportunidade” (p. 159)
"Essas cinco bases de poder
são teoricamente distintas"
(p. 468)
Individual
FRENCH;
RAVEN, 1959
(poder dividido
em cinco
categorias)
WEBER, 1947
(poder como
habilidade de
satisfazer
desejos apesar
de resistências);
FRENCH;
RAVEN, 1959
(poder dividido
em cinco
categorias)
MINTZBERG,
1983 (poder
como
capacidade de
afetar resultados
organizacionais)
BROWN, 1969;
PARSONS,
1968; (poder
como
influência);
FRENCH;
RAVEN, 1959
(poder
categorizado)
FRENCH;
RAVEN, 1959
(poder dividido
em cinco
categorias)
Fonte: Elaboração dos Autores
Nota-se, portanto, oito artigos em que a definição seguiu a lógica individual, mais frequentemente
utilizando o viés de French e Raven (1959), enquanto os outros sete artigos foram relacionais, em especial
Foucaultianos. Há, assim, fragmentação em utilização individual ou relacional/diádica no período temporal
1990-2018 envolvendo artigos empíricos que tratem poder em organizações. Nota-se que a vasta maioria dos
artigos empíricos neste período de tempo sobre poder em organizações e envolvendo as bases Scopus, Web of
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Science e Scielo foram praticamente exauridos, podendo existir alguns que foram deixados de fora, mas se tal
ocorreu se deveu, em geral, a alguma característica do artigo que não se enquadrava nos quesitos estipulados
pelo método.
O ideal seria que tal fragmentação em definir o conceito não ocorresse; que, ao tratar de poder,
houvesse um cenário de maior similaridade no tratamento, para que fosse possível congruência perante o
mesmo. Entretanto, não só o mesmo é controverso como é lidado de maneiras categoricamente bastante
diferentes; uns provem alguma conceituação individual (no qual há várias), outros veem como algo relacional
(na qual, também há mais de uma visão). Assim o estado da arte em administração do conceito é de tal sorte
que é lidado de maneiras amplamente diferente em trabalhos empíricos neste período temporal analisado.
Dado tal cenário, é relevante buscar um meio termo em que seja possível haver, de um lado, uma definição
geral para o conceito em si e, de outro, que permita uma análise estrutural. Será que tal é possível?
INDIVIDUAL VS. RELACIONAL: Uma Proposta de Unificação
Geralmente o individual exclui o relacional/diádico, porque este último se recusa a definir poder de
uma forma em que “poder é x” “poder é tal entidade”, frisando, como Dahl (1957), Lasswell e Kaplan (1950),
Clegg e Courpasson (2007), e Foucault (1992) no aspecto de ser visto de forma a aproximar dois agentes e
variar com o contexto, e não como uma “entidade”. Assim as categorias aparentam ser mutuamente
excludentes, porque se definir a entidade “poder”, acaba-se incapaz de averiguar toda a estrutura e relação
que o construto deveria ser capaz de explanar. Contudo, pode-se pensar em maneiras de superar tal
dualidade.
Uma ideia possível, sugerida por estes autores a ser pensada, seria definir poder como “o que conta
como meio de determinar a posição de um sujeito numa dada competição”, sendo esta uma definição capaz
de (1) considerar poder uma entidade abstrata, (2) fazer com que seja possível variar conforma a estrutura
pensada – que é formalizada por uma competição entre atores, a qual atua como a estrutura (3) permitir a utilização de contextos variados, porque “poder” pode ser, usando a conceituação proposta,
transformado de acordo com a competição que se analisa.
Por exemplo, numa situação hierárquica organizacional em que haja vários tipos de competições,
como “quem detém o maior cargo hierárquico?” – poder seria posição hierárquica –, “quem detém maior
respeito dos subordinados?”, – poder seria respeitabilidade
– e “quem detém maior conhecimento
técnico?”, – poder seria conhecimento técnico –, haveria a possibilidade, utilizando esta definição proposta,
de se criar uma estrutura de competição para, a partir desta, definir poder como sendo uma entidade que se
situa dentro da dada estrutura, e utiliza desta para ser definido.
Tal ideia é embrionária e necessitaria pesquisas específicas e puramente teóricas para ser mais
desenvolvida, e enfrenta problemas como possivelmente ser tautológica. Todavia, é capaz de fazer o conceito
de poder ser modificado conforme o aspecto contextual/estrutural/relacional, e não faz uso de categorias
taxativas, que acabam por inviabilizar outras que o autor do estudo empírico considere relevante usar. Além
disso, e mais importante, não se priva de prover uma definição fixa para o conceito. Espera-se que possa ser
uma proposta a auxiliar maiores estudos, e certamente problemas relacionados com o uso da mesma podem
ser levantados, mas o fato é que é difícil trabalhar poder empiricamente de uma forma integrada num cenário
em que há concepções tão divergentes, como esta pesquisa dos anos 1990-2018 em administração mostrou.
CONCLUSÕES
O objetivo do trabalho foi realizar uma pesquisa qualitativa e bibliográfica utilizando análise de
conteúdo para observar tendências de definição de poder em artigos empíricos de administração no período
1990-2018 e brevemente propor possibilidades de avanços teóricos. Os achados demonstram que há
fragmentação em uso de categorias individual/relacional, como teorizado por Regoli (1974) e Dunbar (2004).
Na aproximação de definição utilizada, nota-se principalmente na categoria individual utilização do trabalho
de French e Raven (1959) e na relacional de Foucault (1992). Com isto conclui-se que não há unificação de
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viés para trabalhar com o conceito de poder de forma empírica para o período analisado nas bases da Scopus,
Web of Science e Scielo. O cenário se mostra, em realidade, bastante diversificado entre as categorias
definidas, ou seja, não há consenso em torno da definição do conceito e esta não aparenta estar avançando
para uma pacificação do tema, isto mais de sessenta anos depois do artigo seminal de Dahl (1957).
Espera-se que tal cenário de fragmentação na concepção de poder seja trabalhado seriamente por
praticantes da administração com interesses em como tal conceito se situa no âmbito organizacional, uma
vez que se utiliza uma pluralidade de noções cuja fragmentação pode fazer com que o interessado no assunto
não seja capaz de utilizar a literatura conforme seus objetivos práticos, dada as diferentes percepções dada ao
construto. No mínimo, este esforço permite ao leitor averiguar como tem sido as pesquisas empíricas frente o
conceito de poder e pode ser utilizado como meio de averiguar quais estudos há maior interesse por parte do
praticamente, que almeja compreender melhor o construto quando pesquisado empiricamente. Também, há
possibilidade de utilização da diferenciação categórica para fins de explanar explicitamente onde o trabalho
empírico sobre poder se situa, o que se percebe não ter acontecido por pesquisadores do construto.
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A imigração italiana pelos braços das mulheres imigrantes
Rodrigo Paste Ferreira – IFES1
Resumo: Atividade de pesquisa desenvolvida para examinar como a mulher imigrante italiana participou da
organização e contribuiu para a sustentação econômica e social da sociedade imigrante italiana, durante
parte da segunda metade do século XIX e princípios do século XX, no Município de Venda Nova do
Imigrante, região Sul Serrana do Estado do Espírito Santo, local que na sua origem era conhecido como
núcleo São Pedro de Venda Nova. Nesta pesquisa será possível encontrar as funções desempenhadas por elas
dentro da sociedade de imigrantes que se fixou na região interiorana do Espírito Santo. Para que esse
trabalho fosse desenvolvido utilizei fontes bibliográficas inerentes ao tema, entrevistas com descendentes
diretos dos primeiros imigrantes italianos da comunidade, documentos de época, além de outras fontes
existentes. Com tal pesquisa sendo devidamente realizada e com as etapas necessárias de análises tendo sido
concluídas, foi possível esclarecer questões importantes e mostrar que essas mulheres atuaram de forma tão
concreta e direta no desenvolvimento da sociedade imigrante italiana Vendanovense assim como
historicamente é atribuída aos homens imigrantes. Com sua atuação, ajudaram na acumulação de pecúlio
necessário para que a comunidade de imigrantes italianos pudesse prosperar na sociedade capixaba e hoje
obter grande destaque no cenário estadual nos campos da economia, agricultura, agroturismo e turismo das
montanhas. Demonstro neste trabalho que as mulheres imigrantes italianas merecem ser reconhecidas e
valorizadas, assim como se faz com os homens imigrantes italianos, e por esse motivo devem ser respeitadas
e receber o reconhecimento que por anos lhes foi negado.
Palavras-chaves: Imigrante, contribuição, feminina, desenvolvimento.
O processo de imigração ao longo da segunda metade do século XIX e início do século XX para o
Estado do Espírito Santo se difere dos demais Estados da região Sudeste, onde o objetivo principal era a
ocupação dos espaços territoriais e não a absorção da mão de obra nas lavouras cafeeiras ou outras atividades
econômicas ligadas ao fluxo imigratório. Dentro dessa realidade a formação do então Núcleo São Pedro de
Venda Nova está diretamente ligada a expansão e ocupação territorial pelos imigrantes na região sul serrana
do Estado do Espírito Santo. A predominância dos migrantes e imigrantes que se fixaram à região do atual
município capixaba de Venda Nova do Imigrante eram provenientes do Núcleo Colonial Castello,
considerado o 6º território da Colônia Rio Novo. As razões para o deslocamento destes grupos populacionais
entre um núcleo colonial e outro foram os mais variados.
A miséria e a pobreza de muitos habitantes, aliados ao solo de pouca fertilidade, juntamente com o
isolamento e o descaso do governo, tornaram a vida ao longo do 6º território da colônia Rio Novo um
verdadeiro martírio. Essa realidade ajudou a dar o impulso necessário ao deslocamento para as áreas mais
interioranas e transformar o que antes eram quatro grandes fazendas escravistas e produtoras de café, no
atual Município de Venda Nova do Imigrante.
O período da chegada dos primeiros imigrantes na região do atual município de Venda Nova é um
tanto quanto controverso. Segundo Novaes os primeiros imigrantes chegaram a Venda Nova por volta de
1892, sendo que em suas pesquisas essa data é atribuída a Antônio Venturim, no ato da compra da fazenda
Viçosinha, região do distrito de São João de Viçosa. Posteriormente chegaria então, na atual sede do
município, o imigrante Ângelo Altoé, comprando parte da Fazenda Providência e se instalando na mesma
Doutor em Ciências da Educação pela Universidade Americana/PY revalidado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ.
Mestre em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo-UFES. Especialista em História Moderna e
Contemporânea pelo Centro Universitário São Camilo. Professor de História do Instituto Federal do Espírito Santo. E-mail
rpaste@ifes.edu.br.
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(NOVAES, 1980:127). Já para Cavati, o momento da chegada compreende aos anos de 1890 a 1893, sem dar
uma certeza para tal fundação (CAVATI, 1973:53).
Para Máximo Zandonadi, que foi autor de diversas obras a respeito da ocupação e desenvolvimento
da região, os primeiros habitantes do lugar datam de 1891. Foram eles Ângelo e Giuseppe Altoé, que através
da compra de parte da Fazenda Providência, deram início a ocupações do município (ZANDONADI,
1992:49), essa informação se refere a cede do atual município. E temos ainda os relatos de outro nome
bastante conhecido na região, Euzaudino Venturini. Segundo ele, seu avô, Amadeo Venturim, chegou a
região em 1891, e que Antônio Ventorini e Giovanni Ventorini, primos de seu avô, acompanharam tal
ocupação e chegaram a região após a instalação de Amadeo no que hoje conhecemos como o distrito de São
João de Viçosa. (LAZZARO, 1992:19). Não nos cabe definir quais desses nomes estão com a razão, o fato é
que no início da década de 1890 iniciava-se a ocupação da região, junto com essa ocupação iniciava também
a história de lutas e sofrimentos de muitos dos antepassados dos atuais habitantes do município.
Devemos destacar que durante esse período o papel desempenhado pelas mulheres desses
imigrantes sempre foi de grande importância. É comum encontrarmos apenas os referências masculinas
nesse processo de ocupação, falamos de Amadeo, de Ângelo, Giovanni, entre outros tantos, mas em nenhum
momento encontramos as referências as suas esposas, irmãs, filhas, companheiras, mães, etc. Não é normal
encontrarmos pelas ruas da cidade a referência de que “foi minha avó que formou essa lavoura, foi minha
bisavó que trabalhou nessas áreas”. É muito simplismo acreditarmos que os homens fizeram tudo que hoje aí
está sozinhos, não podemos aceitar que as mulheres tiveram apenas o papel de meras observadoras do
processo de construção de Venda Nova e de outras áreas do nosso Estado, do nosso País e do Mundo.
Todo o esforço realizado pelos imigrantes foi válido, cada um fazendo sua parte, lutando como
podiam. É nesse sentido que encontramos e nos impressionamos com a figura das mulheres. A elas cabia, já
na Itália, uma grande variedade de tarefas dentro da sociedade peninsular. Sua figura será de grande
importância em todas as etapas da formação da sociedade italiana, embora muitas vezes acabem sendo
lembradas apenas pelas atividades tidas como “invisíveis”, tais como os trabalhos de casa, cuidar dos filhos e
outras mais.
Quando temos acesso aos problemas enfrentados pelos italianos em solo brasileiro, é comum
despertarmos um misto de indignação e descrença pelas informações encontradas. Passamos a realizar as
mesmas perguntas a cerca do assunto: seria possível que esses homens e mulheres realmente tiveram
tamanho desafio para conseguirem prosperar na nova terra? Como puderam sobreviver a tamanhas
provações? E tais questionamentos podem ficar ainda mais surpreendentes se julgarmos, de forma errônea,
que as mulheres, por serem mais “frágeis”, deveriam sofre tanto quanto ou até mais que os homens, e por
esse motivo seria difícil acreditar que haviam conseguido vencer esse desafio.
O momento da chegada a região de Venda Nova já significava uma grande provação, a ausência de
moradias muitas vezes tornavam os primeiros dias um verdadeiro tormento. As primeiras noites certamente
nunca foram esquecidas por muitas dessas mulheres, os relatos, mesmo sendo de outras áreas, demonstram
que a ausência de moradas dignas eram o primeiro grande obstáculo.
Só depois de muita labuta subiam as primeiras habitações. Essas moradias eram muito rústicas e
impróprias, porém era o que o momento podia oferecer, verdadeiras “ choupanas, grotescas, feias, porém
sólidas e fortes, conforme pediam as circunstâncias [ ... ] o trabalho começava ao raiar do dia [ ... ] “ as
acomodações e os objetos dessas casas eram os mais precários possíveis com “ leitos que [ ... ] magoavam o
corpo: quatro paus fincados, um entrelaçado de cipó formando estrado, um magro colchão de capim [ ... ] ”
(TAMANINI, 2006:27).
Acordava-se cedo para preparar um rápido desjejum, que em muitos casos consistia apenas em uma
fatia de polenta com um pouco de café. Após essa refeição inicial, cabia a essas mulheres preparar o almoço e
as demais refeições do dia, que em grande parte das vezes eram levadas por elas mesmas na roça onde os
serviços estavam sendo realizados. Pode-se perceber a extrema importância das mulheres para que a
estrutura desenvolvida nessa sociedade não entrasse em colapso. Poupando tempo, poupando dinheiro,
poupando capital que era reinvestido na propriedade.
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Era função das mulheres dar conta de preparar a merenda, o almoço, que era levado até o local onde
os homens trabalhavam. Assim relata Teresa Dell’Armellina Serafini,
você não sabe como era difici levá cumida pros meu irmón trabaiando lá no alto
das derrubada. Hoje precisa umas 10 panelas pra fazê o cume que a mamãe fazia.
(...) A gente saía daqui, de um lado um balaio pendurado, do outro um panelón
daqueles preto, de ferro, subia aquele morro todo, era uma hora que gastava. Às
veiz tinha taiadele2 e a mamãe botava taiadele na menestra3 (...) isso ia no panelón
preto, e do outro lado do balaio ia uma polenta grande, só vendo. (...) Eu me
alembro, nóis era minina e subia aquele morro. A gente chegava lá em cima
cansada. E aí ficava lá trabaiando. Eu capinava, roçava, deriçava café, mas o pio de
tudo era juntá café cum as mon. Olha, saía sangue das ponta dos dedo e a gente
tinha que continuá trabaiando. (LAZZARO, 1992:64).
Após cumprirem sua abrigação de levar a alimentação até o campo elas ainda eram aproveitadas nas
atividades da roça. A rotina diária era o trabalho e mais trabalho, nem mesmo quando se ia para o local a ser
trabalhado ou retornava da lavoura o trabalho era deixado de lado. Como os nonos e as nonas costumam
dizer na região de Venda Nova, “ninguém dava viagem vazia”, ninguém ficava passeando entre as idas e
vindas da casa para o trabalho, muito menos as mulheres, se na ida era necessário levar a comida dos
homens em pesadas panelas e balaios, na volta sempre estavam com suas mãos ocupadas com cachos de
bananas, inhame, abóboras, lenha entre outras coisas.
Essa rotina era diária, era comum, às 4 horas da manhã, as mulheres já estarem na cozinha, ali
preparavam os alimentos e começavam a realizar as primeiras atividades da casa. Tudo tinha que estar
sempre preparado para nunca deixar faltar nada para os homens, as vontades masculinas eram a lei a ser
seguida dentro das casas. Vivia-se em uma sociedade tipicamente patriarcalista, onde o homem é o grande
chefe da unidade familiar. Segundo Pedro Altoé “na família italiana sempre existiu uma hierarquia, era o pai
quem falava. Depois o filho mais velho e ia aquela seqüência.” (LAZZARO. 1992:56). Porém certos pontos
poderiam ser analisados e discutidos, tal hierarquia seria justa? O que seria dessa sociedade, não só a de
Venda Nova do Imigrante, mas de todas as sociedades formadas por imigrantes, sem a ação das mulheres?
Os homens acordavam e já queriam seu café pronto, seu desjejum preparado, fosse um pedaço de
polenta com ovo, fosse um pedaço de pão feito em casa com queijo, ou o que servisse de alimento. Uma vez
que esses homens estavam pelos campos trabalhando, as mulheres continuavam a realizar suas tarefas
dentro e ao redor da casa. Tratar dos porcos, cuidar das galinhas, tirar o leite, cuidar dos filhos, arrumar a
casa, se preocupar em fazer o queijo, dar conta da horta que fornecia alimentos para a família, costurar, fazer
o tricô, moer o milho para ter o fubá, que era utilizado no preparo da polenta, fazer a canjica do milho, etc. As
atividades realizadas pelas mulheres dentro e ao arredor das casas eram inúmeras, além de ter que ajudar
aos homens no trabalho das lavouras. E quando os homens chegavam dentro de casa não estavam
preocupados se o dia das mulheres havia sido tão duro quanto o seu, queria a comida pronta, não importa a
dificuldade que existisse, a função das mulheres era deixar tudo pronto para a alimentação dos seus maridos,
filhos, netos, etc.
Tais sofrimentos são comuns nas histórias dos descendentes de imigrantes italianos de Venda Nova
do Imigrante, é fácil encontrarmos relatos que confirmam toda a dureza da vida das mulheres nos primeiros
anos de vida no solo do antigo núcleo São Pedro de Venda Nova. É o que nos fala Anidis Venturim Pasti
Desde criança eu sempre trabalhei na roça. Cum a idade de 7 anos mamãe deixou a
cozinha para mim. Eu cozinhava, fazia tudo. Ainda as crianças para tomá conta.
Talharim, tipo de macarrão feito em casa, muito comum na alimentação dos imigrantes e seus descendentes.
Menestra ou Minestra. Espécie de canja, um tipo de sopa. Também é uma culinária típica de áreas de colonização italiana, nesse caso,
Venda Nova do Imigrante.
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(...) Casei, continuei na roça, criando filho, um atrás do outro, trabalhando em casa
e na roça. Eu capinava, deriçava café, plantava milho, feijão, arroiz, mas o pior da
roça mesmo é capiná arroiz no meio do brejo. Carreguei muito café, mandioca,
feijão, banana, milho, tudo nas costas. (...) Lavava a roupa a noite, passava a noite,
cum aqueles ferro de brasa pesado, que demorava pra esquentá... remendava,
porque durante o dia tinha que trabalhá na roça. A gente tirava leite, dava comida a
galinha, cozinhava comida pra porco, fazia orta, molhava horta... (...)A gente
trabalhava tanto que de noite sentava na cama pra rezá e nem conseguia, dormia.
Os italiano era sistemático pra daná, as mulher não tinha direito a nada, só
trabalhá. E elas trabalhava mais, os homens só trabalhava na roça e elas trabalhava
na roça e em casa.(LAZZARO, 1992:109).
Esse breve relato nos dá uma visão bastante aprofundada do que foi enfrentado pelas mulheres nos
primeiros tempos da formação de Venda Nova do Imigrante. Anidis não é imigrante, seus avós eram
imigrantes, sua criação foi baseada na criação que seus pais tiveram, sua realidade fora menos sofrida que a
de sua mãe e avó, e mesmo assim deixa transparecer por tudo que as mulheres da sua época, e de antes dela,
tiveram que passar. Como negar a importância dessas mulheres na história da formação do município de
Venda nova do Imigrante? Muitos podem dizer que elas são lembradas, que seu trabalho é reconhecido,
porém em nenhum momento temos livros descrevendo seus feitos, sua realidade. Não é possível encontrar
nenhum material que faça referência a suas realizações em primeiro plano, com as mulheres como figuras
principais. Sempre que seus nomes são lembrados eles aparecem em segundo plano, ofuscados pelos feitos
dos homens. Quando iniciamos uma conversa com os descendentes de imigrantes do município
vendanovense é certo escutarmos frases tais como “essa lavoura foi formada pelo meu avô, essas terras foram
compradas pelo meu pai” entre outras. Ora, e as mulheres? Essas não ajudaram a comprar as terras com seu
trabalho e seu suor? Também não contribuíram para a acumulação de pecúlio necessário para aquisição de
novas terras? Quantas trabalhavam tanto quanto ou até mais que os homens, fosse em casa ou mesmo na
lavoura de café, base econômica nos primeiros tempos da cidade.
Homens e mulheres labutavam nos cafezais juntos, na hora do trabalho na lavoura muitas vezes não
existia diferença entre os sexos. O trabalho era realizado da mesmo forma, embora não possamos negar que
em certos aspectos, quando se tratava de força, os homens levavam uma certa vantagem sobre as mulheres.
Mas mesmo assim, se lembrarmos das diversas atividades realizadas pelas mulheres, esta vantagem era
superada. Segundo Saletto, que toma como base o padrão das fazendas paulistas para avaliar a adequação da
quantidade de mão-de-obra à produção de café, “um trabalhador adulto, considerado uma “enxada”, se
encarregava de 2 mil pés de café, e a mulher e filhos menores a partir de 12 anos, considerados “meiasenxadas”, cultivavam mil pés de café” (SALETTO1996:95). Por esses cálculos podemos perceber que a
mulher dava conta de metade de pés de café que um homem adulto poderia tomar. Porém temos que lembrar
que essas mulheres não se dedicavam apenas a esta atividade, elas ainda tinham, como foi visto
anteriormente, diversas tarefas no seu dia-a-dia, além do trabalho na lavoura.
Em todas as entrevistas realizadas para o desenvolvimento desta pesquisa, todos os entrevistados,
tanto homens quanto mulheres, foram unânimes em dizer que entre as atividades realizadas nos trabalhos
diários, as mulheres eram fundamentais, trabalhando as vezes mais que os próprios homens. Isso fica claro
no relato do Sr. Benjamim Falqueto que conta sobra uma de suas tias, chamada Verônica Falqueto; segundo
seu pai lhe falava, ela trabalhava banando 4 café igual a um homem; não perdendo em eficiências para os
homens que a acompanhavam. Tal atividade ainda nos dias de hoje pode ser observada nas regiões do
interior do município de Venda Nova, e em outras localidades.
Banar o café é o ato de peneirar os grãos do café para poder retirar o excesso da sujeira contida entre os grãos. O indivíduo arremessa
os grãos contidos dentro de uma peneira funda, feita de um tipo de taquara, ou bambu, para o alto e assim tenta separar a terra, as
folhas e todo tipo de sujeira existente.
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Dinheiro era artigo de luxo entre os habitantes da região de Venda Nova, Justina Venturini Pasti
relata que
antigamente não era moleza non! E pra fazê um tostón era muito difici. Eles nunca
tinha dinhero, nunca, nunca, nunca. Tinha as coisa em casa por que colhia de tudo.
E minha mãe sempre foi muito caprichosa. Tinha a horta dela com tudo. Era fejão
de vage, era amendoim, era quiabo, de tudo, tudo. Aipim, batata doce, eu me
lembro que mamãe plantava tomate (...)(LAZZARO, 1992, p. 78).
Tais relatos nos demonstram que além de contribuir na produção dos gêneros que poderiam ser
comercializados, e assim engordar o orçamento familiar, as mulheres ainda eram responsáveis pelas
economias que poderiam ser feitas pelo simples fato de não ter que gastar com determinados alimentos ou
produtos que as famílias necessitavam.
Não raro essas mulheres atuavam em funções de direção das terras. Em casos de morte do marido,
em casos de doenças, cabiam as mulheres as atividades de gerenciamento dos lotes de terras. Se ficar em suas
propriedades na ausência do marido era fato normal, sair dessas propriedades e realizar atividades na
comunidade em que estavam inseridas também não era atitude difícil de ser encontrada. Não raro as
mulheres tinham que realizar longos trajetos a pé, ou no lombo de animais, para assim, com esta atitude, não
necessitar retirar os homens de suas atividades diárias.
Para essas imigrantes, função de auxílio e de direção em uma sociedade em formação era o que não
faltava. Não apenas em atividades voltadas para a formação e desenvolvimento da propriedade elas estavam
inseridas. Em um período que a presença de professores, médicos, padres, farmacêuticos eram raridades, a
atuação do gênero feminino será indispensável, em muitos momentos eram elas que assumiam tais papéis .
Em meio as matas, rios e todas as desventuras existentes teremos ainda a participação dessas mulheres no
papel de parteiras, a elas cabia a tarefa de colocar no mundo os filhos dos moradores.
Todas essas guerreiras que atravessaram o Atlântico e aqui desembarcaram, traziam com suas
bagagens sonhos e esperanças. Aprenderam que o sonho pode se transformar em pesadelo, mais nem assim
desistiram de tentar, lutaram com bravura e coragem, ajudaram seus parceiros a desenvolver o nosso país e
nosso estado, passaram por inúmeros problemas e venceram. Não voltaram para suas casas na Itália com os
bolsos cheios de riquezas, porém deixaram para seus descendentes riquezas ainda maiores. Histórias de um
povo que não desistiu, não se curvou diante das dificuldades, lutou e enfrentou os desalentos de peitos
abertos e ajudaram a construir o nosso presente.
Mesmo com tantas realizações nas comunidades de descendentes de imigrantes italianos, caso de
Venda Nova do Imigrante, o reconhecimento das mulheres não se faz tão importante quanto os dos homens.
Vale frisar que não estou tirando o mérito das realizações e conquistas masculinas, não quero aqui dizer que
os homens que trabalharam arduamente na formação do município devem ser deixados de lado. Todos
sabemos de sua importância, de seus feitos, sem seu suor certamente a comunidade vendanovense não teria
a beleza que hoje podemos nos deleitar. O que chamo atenção nesse trabalho é a falta de reconhecimento que
muitas vezes as mulheres são vítimas, em poucas páginas tentei deixar claro que se os homens imigrantes
fizeram grandes coisas, sem o auxílio feminino nada disso seria possível. E devemos lembrar ainda o fato de
que mesmo com a atuação tão intensa dessas mulheres dentro das propriedades a elas, muito raramente,
cabia alguma parte da herança familiar. Assim,
os imigrantes e seus descendentes criaram regras próprias de sucessão, segundo as
quais o último filho herdava a propriedade paterna, enquanto os outros homens
recebiam propriedades formadas durante a vida do pai, e as filhas não recebiam
terra. (SALETTO. p. 115, 1996)
É entristecedor observarmos esta realidade, mesmo após anos de labuta junto da família, a elas
cabia apenas um pequeno dote, quando este era dado.
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Ao pretender desenvolver tal pesquisa voltada para esse tema espero poder, no futuro, ajudar a
esclarecer qual o devido lugar de nossas antepassadas. Entregar a elas uma vaga no carro da História de
devido destaque e importância, não só as mulheres imigrantes italianas, mas a todas que já passaram por
essa imensidão chamada terra.
LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO
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A Biblioteca do Brigadeiro Silva Paes:
práticas médico-cirúrgicas no sul da américa portuguesa setecentista
Rogério Machado de Carvalho1
Resumo: Esta comunicação contempla resultados parciais da minha participação como bolsista, desde
março de 2017, no projeto Circulação e apropriação de saberes em obras manuscritas e impressas de Cirurgia
na América Meridional do Setecentos. Nela, apresentamos e discutimos as práticas médicas empregadas no
extremo sul da América portuguesa no século XVIII, a partir da análise de dois livros, a saber, Cirurgia
Anatômica - Por perguntas e respostas (Monsieur LeClere, 1715, Trad. João Vigier) e O Practicante do
Hospital Convecido (Manoel Gomes de Lima, 1756) que integravam a biblioteca particular do Brigadeiro José
da Silva Paes, fundador da cidade de Rio Grande. Segundo Ana Cristina Araujo (1999) e Walter Piazza
(1988), essa biblioteca era móvel, o que nos faz questionar sua relevância para o Brigadeiro, considerando os
projetos metropolitanos de colonização e de ascensão social e política de Silva Paes. Ao apresentarmos estas
duas obras de cirurgia do início do Setecentos, que se encontram na Biblioteca Riograndense, destacamos,
primeiramente, os procedimentos terapêuticos que seus autores descrevem e indicam para o tratamento de
ferimentos e enfermidades que poderiam acometer tanto os soldados, que, a serviço da Coroa portuguesa,
atuavam nos conflitos fronteiriços, quanto os primeiros colonizadores. Na continuidade, ressaltamos as ações
do Brigadeiro no que dizia respeito aos cuidados com a saúde dos súditos da Coroa portuguesa, na medida
em que o projeto de expansão e ocupação do Continente de São Pedro passava pela manutenção e fixação dos
colonos nas novas terras. Para compreender o processo de formação e as funções desempenhadas pelos
cirurgiões no Setecentos, bem como os saberes e as práticas médico-cirúrgicas vigentes no período,
recorremos aos trabalhos de FIGUEIREDO (2008), CARNEIRO (1994), WITTER (2005), MIRANDA (2004),
ABREU (2007), FAUSTO, PALMA e CAMPOS (2013) e FILHO (1947), bem como aos dicionários de
BLUTEAU (1712-28) e CHERNOVIZ (1890). Para entender o contexto histórico e político da região platina
das primeiras décadas do século XVIII, nos valemos das obras de GOLIN (2015), KUHN (2014), PIAZZA
(1988) e FORTES (1980). O trabalho de ARAUJO (1999) sobre a biblioteca do Brigadeiro foi fundamental
para conhecermos melhor as práticas de leitura do período e a relação entre a posse de livros e os
mecanismos de ascensão social próprias do período.
Este artigo traz algumas considerações a respeito da minha participação como bolsista de iniciação
científica UNIBIC. O projeto Circulação e apropriação de saberes em obras manuscritas e impressas de
Cirurgia na América meridional do Setecentos, do qual faço parte, é orientado pela professora doutora
Eliane Cristina Deckmann Fleck. Nele, desenvolvemos reflexões acerca das condições de saúde vigentes no
extremo sul da América Portuguesa, a partir da transcrição e da análise de dois livros de medicina que se
encontram na biblioteca Riograndense2 , cotejando-os com a bibliografia atual e a documentação existente do
mesmo período. Nosso recorte temporal está vinculado ao tempo em que o Brigadeiro José da Silva Paes,
fundador do Presídio Jesus Maria José, que deu origem à cidade de Rio Grande/RS, esteve no Brasil. Nosso
maior objetivo é mostrar, através da análise de dois livros de medicina do século XVIII, qual importância
dada pelas autoridades metropolitanas à saúde dos soldados e colonos do Continente de São Pedro.
Acreditamos que essa preocupação com o atendimento de enfermos e com a garantia da saúde, no caso
específico do Brigadeiro, também se devia ao seu projeto pessoal de ascensão política e social.
Nesse sentido, sem tecer extensos comentários sobre o Brigadeiro Silva Paes e sem descrever sua
extensa biografia,3 vamos tratar sobre o período em que esteve no Brasil como vice-governador do Rio de
Janeiro. Sobre ele, podemos afirmar que sua origem burguesa não o impediu de galgar postos e benesses da
Acadêmico de Licenciatura em História pela Universidade Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. (roggerio.carvalho@gmail.com)
A Biblioteca Riograndense (Rio Grande/RS) possui uma sala chamada Silva Paes com várias obras de autores gaúchos. Nesta sala estão
alguns volumes que faziam parte da biblioteca do Brigadeiro e são disponibilizadas para pesquisas.
3 Para um conhecimento completo da biografia do Brigadeiro ver PIAZZA (1988) e FORTES (1980)
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corte. O brigadeiro era engenheiro militar e foi por seus serviços que recebeu o Hábito de Cristo em 1719
(Piazza, 1988, p. 43). Durante o tempo em que foi assessor do Conselho Ultramarino tomou conhecimento do
contexto da colônia brasileira, tendo sido um dos idealizadores das “Agoa da Carioca” (Piazza, 1988, p.39).
Muito talvez por esse conhecimento do cenário brasileiro que foi designado vice-governador do Rio de
Janeiro em 1735. No ano seguinte acompanha de perto o socorro a Colônia de Sacramento, onde em 1736,
comanda in loco a situação do cerco espanhol a povoação lusitana. No seu retorno, em 1737, funda o presídio
Jesus Maria José, marco que daria origem a primeira povoação oficial portuguesa em solo que hoje se chama
Rio Grande do Sul. Sua preocupação com o sucesso do povoamento vai ao encontro dos projetos da corte
portuguesa que, já em 1704 (Cesar, 1981, p. 62), manifestava interesse em povoar a Barra do Rio Grande,
com o intuito de manter um cordão de apoio desde Laguna até a Colônia de Sacramento. Mesmo após se
afastar do comando do Presídio, Silva Paes se preocupa com a situação dos colonos e soldados que mandara
para lá.
Sua inquietação com a saúde é inferida através da análise que fizemos de algumas cartas do
brigadeiro durante seu período no Brasil. Como exemplo, principalmente de sua preocupação com o sucesso
do projeto português de colonizar a região fica demonstrada em carta de 1736, quando se dirige a
Montevidéu, comandando o socorro a Sacramento. Nela, o brigadeiro solicita que seja enviado Sebastião
Gomes de Carvalho, homem qualificado nas artes cirúrgicas, segundo o próprio Silva Paes (Franco, 2003, p.
154). Podemos notar que bem antes da fundação do Presídio (1737), ele já solicitava esta provisão. Outro
exemplo que temos é que, ao chegar para assumir o governo de Santa Catarina, ele observa que não há
cirurgião e rapidamente solicita um, acrescentando que necessita também de uma botica, pois se soubesse
que não ali não tinha, teria trazido a sua (Piazza, 1982, 69). Um segundo fato que podemos supor, através da
afirmação acima, é que Silva Paes possuía uma botica particular.
Quanto aos livros que, de acordo com Ana Cristina Araujo (1999), faziam parte da biblioteca
particular do brigadeiro, sabe-se que eram 437 obras, sendo que 14 delas eram de cirurgia e medicina e,
ainda, que era um acervo móvel. Ou seja, supõe-se que, pelo menos alguns livros, acompanhavam o
brigadeiro e suas missões.4 Destas quatorze, duas obras são trabalhadas neste projeto de pesquisa: a Cirurgia
Anatomica, e Completa, por Perguntas e Respostas, autoria de Monsieur Leclere (1661 – 1708), uma
tradução de João Vigier do ano de 1715. E, também, O Practicante do Hospital Convencido (1756) que se
constitui de uma monografia de Manuel Gomes de Lima (1727 – 1806). Ambas se encontram no acervo da
Biblioteca Riograndense.
Cirurgia Anatomica, por perguntas e respostas
A primeira obra, com autoria atribuída a Monsieur Leclere, conhecido como François Pouppard, foi
traduzida por um também francês, boticário em Lisboa, João Vigier, no ano de 1715. Esta obra é composta de
várias edições e alguns historiadores sugerem se tratar de uma compilação de tratados, inclusive atribuindo
ao autor apenas um capítulo de todo o livro 5. Por ser um tratado, nota-se uma descrição melhor das doenças
e dos procedimentos necessários à sua cura. No último capítulo fala sobre os remédios que são necessários a
um bom cirurgião, e isso, face ao contexto bélico que assolava a fronteira da América Portuguesa, era de
suma importância. Como o próprio título sugere, o livro é organizado em perguntas e respostas. De um total
de 393 perguntas – 167 questões são conceituais – este formato mostra como era útil a pesquisa desses
procedimentos e conceitos, o que seria de grande praticidade no ambiente em que viviam os colonos e
soldados.
Walter Piazza (1988, p. 164) também comenta sobre a mobilidade da biblioteca do brigadeiro. Mas cita apenas as obras relativas ao seu
trabalho. Ou seja, militares e de engenharia.
5 Segundo a Biographie Universelle, ancienne et moderne, Supplément (1845, p. 472 e 473), nos da conta que o tratado Cirurgia
Anatomica foi publicado pela primeira vez em 1694, sob o nome Cirurgia Abrangente, com o autor assinando Gabriel Leclerc. Em nossas
pesquisas, todas as referências de Gabriel Leclerc nos levam a Monseieur Leclere. A livre tradução do francês foi feita por mim.
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Cartilagem que é? He huma parte que obedece, macia, que he quasi da natureza
do osso, & que se acha sempre atada a seus extremos para os adoçar, & facilitar os
seus movimentos. (Leclere, 1715, p. 9)
O autor era bastante detalhista em suas descrições e também nas definições de cada doença e em
relação aos procedimentos de cura para essas enfermidades. Considerando o escasso número de médicos
existente na colônia, o didatismo do livro era útil para pessoas com pouca cultura e, ainda, de muita valia
para aqueles encarregados das artes de curar, pois, muitas vezes, não havia um cirurgião por perto.
Ainda nos capítulos iniciais (pág. 7), entre “ventosas, pinças, tenazes, bico de grou, bico de corvo,
tirafundo, sacabalas, tentas cavas para fazer sair a urina da bexiga” e “ganchos para tirar os meninos mortos”,
o autor procura orientar o leitor para o exercício da atividade. Descreve os instrumentos do cirurgião
procurando destacar que alguns são portáteis e serviriam para suprir o prático em locais ermos ou em zonas
de combate, aonde a instrumentação maior não seria possível.
Que he o que chamais instrumentos portateis, & não portateis? Chamão
se instrumentos aquelles que o Cirurgião traz no seu estojo de algibeyra, com sua
cayxa de unguentos, & fios, se exercitar a cirurgia em Aldeas onde não haja botica;
(Leclere, 1715, p. 5).
A Sífilis sempre foi um problema junto às novas povoações e entre os militares. Nas palavras do
Brigadeiro Silva Paes, o clima do Rio Grande era tão bom que não havia, “nem houve sezões, nem febres
malignas, e Mulheres que eu tinha mandado do Rio, as mais corridas, e Galicadas 6, sem cura melhoraram, e
pariram quase todas” (Cesar, 1981, p. 128). Lycurgo Santos Filho nos diz que “não há doenças climáticas”,
mas as condições do ambiente “podem alterar e modificar a evolução de uma moléstia” (Santos, 1947, p. 32).
O livro traz um capítulo inteiro sobre o Morbo Gállico, desde seus sintomas até os remédios para as diversas
fases da doença. O que, sem dúvida, era de grande valia para os cirurgiões, dentro dos conhecimentos da
época. Como diz a pesquisadora Nikelen Witter em seu trabalho Apontamentos para uma história da
doença no Rio Grande do Sul – séc. XVIII – XIX (2005), assim como a sífilis, outras doenças foram
transportadas pelos exércitos que circulavam – e interagiam – na fronteira meridional.
O livro Cirurgia Anatomica (1715) nos traz um capítulo inteiro sobre as doenças venéreas. Além do
morbo galico, traz definições sobre os cancros venereos, ou cavallos, e os buboens venereos. O morbo galico
é, sem dúvida, o que mais toma espaço na explicação. Tanto na definição, passando pelo diagnóstico através
da análise dos sintomas, quanto do tratamento com mercúrio. Aliás, a panaceia mercurial é ensinada
detalhadamente em todo o seu processo (Leclere,1715, p. 191).
Quando se faz uma leitura mais atenta, verifica-se que não há tratados ou conceitos específicos para a
mulher. Através de uma única pergunta, o autor expõe detalhadamente o aparelho reprodutor feminino:
A madre é o principal instrumento, e lugar aonde a geração se faz, é da figura de
uma pera com a cabeça para cima: està situada entre o intestino recto, e a bexiga;
he de uma substância carnosa, e membranosa: he retida em seu lugar por quatro
ligamentos atados no seu fundo, dos quais os dois superiores são os ligamentos
largos que vem dos lombos, e os dois inferiores são os que vem das verilhas, onde
formão uma figura de pè de pato, que se extende aos ossos pubis, e à parte chata
das coxas; o que faz com que as mulheres sejão sugeiras a mover cahindo sobre os
geolhos. (Leclere, 1715, p. 84-85)
Segundo o Dicionário de Rafael Bluteau (1789, p. 650), galicadas vem do galico, mal Francez, ou venéreo. Chernoviz (1890, p. 7)
completa que galicar é sinônimo de Sífilis.
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Na página 266 traz a descrição de um procedimento de cesárea. Um detalhe que chama atenção no
texto é que em nenhum momento o autor se refere ao “bebê” ou “feto”. É sempre “menino”.
No capítulo VI, página 168, o livro descreve os prognósticos e tratamentos de ferimentos com armas
de fogo. Ressalta os pontos vitais em que um ferimento deste tipo significava a morte. No tratamento, chama
a atenção a curiosa solicitação para que o cirurgião identifique a “qualidade da arma ou arcabuz” pois
classifica as armas mais perigosas, explicando que quanto mais perigosa a arma, mais complicado seria o
tratamento. No final da página 169 ainda solicita que o doente esteja na mesma posição que estava ao ser
ferido, mostrando a importância de reconstituir a trajetória da bala para poder extrai-la pela mesma
abertura. Como a sangria era um dos principais tratamentos, ele a sugere, mas com a advertência que se
houvesse muita perda de sangue, se deveria apenas purgar. O intuito era aliviar a dor, e, por isso, indica os
“remédios tópicos anódinos7” para ajudar no combate a dor.
O autor de Cirurgia Anatomica segue descrevendo os procedimentos e os vários remédios existentes 8
para tratar as feridas feitas com armas de fogo. Para queimaduras com pólvora, um acidente que poderia
ocorrer até mesmo durante os treinamentos, destaca que não se fazia necessário tirar os grãos da pele pois
podiam se quebrar e entrar mais na pele. Segundo ele, “é necessário deixa-los vir a supuração”. “Cal viva em
pó, nata de leite, mel escumado” misturados é um excelente unguento no tratamento desse tipo de ferimento.
As escarificações9 profundas são indicadas quando o ferimento gangrenar. Adicione-se esterco de cavalo
cozido em vinho para ser “aplicada em forma de cataplasma”. O autor reforça: “este remédio é aprovado”.
O ambiente, considerado inóspito para os primeiros povoadores e soldados que provinham da área
mais tropical do Brasil10, castigava e deixava suas marcas. Tau Golin (2015), ao comentar uma carta do
Brigadeiro Silva Paes, destaca que as chuvas tornavam o terreno muito alagadiço. A água, por vezes, chegava
à altura da cintura, quando montados. E nem todos tinham arreios. Diz Silva Paes: “Os soldados, os fiz
montar em osso, e chegavam sempre tão molhados, sem terem com que remudar, que me causavam uma
grande lástima”. (Silva Paes, apud Golin, 2015, p. 42). Nas moléstias que tinham como causa a umidade, o
livro faz referências à frieira. Na página 124, o autor define o que são frieiras e na página seguinte indica o
remédio adequado. Segundo ele:
Lava-se, e se põe o calcanhar de molho em vinho cozido com pedra ume, e sal
comum, logo se aplica uma cataplasma que se compõe juntando-lhe farinha de
centeio, mel e enxofre. O sumo de rabãos quentes, aplicado com o unguento
rosado, também é bom, ou óleo petróleo só. (Leclere, 1715, p. 125)
Chernoviz ainda sugere “lavatorios com cachaça, aguardente camphorada, agua salgada ou
misturada com vinagre, com agua de sabão, agua de Colônia, ou esfregar a frieira com limão” (Chernoviz,
1890, p. 1244).
O Practicante do Hospital
Na segunda obra, por se tratar de uma monografia, O Practicante do Hospital Convencido Dialogo
Chirurgico sobre a Inflamação (1756), autoria de Manoel Gomes de Lima, já traz mais orientações para os
7 “Medicamentos de que tem as propriedades de acalmar a dor, como o ópio, o cloridrato de morfina, codeína, lactucario, éter, hypnone,
etc.” (Chernoviz, 1890, p. 185).
8 Maria Regina Cotrim Guimarães, ao falar dos manuais de Tissot (1773), Buchan (1788) e Cullen (1788), comenta que “nesses manuais
não serão encontradas” referências a farmacopeia brasileira por possuírem um caráter universalista. O que se aplica ao livro Cirurgia
Anatomica, por este se tratar de uma tradução do francês. (Guimarães, 2005, p. 503)
9 “Escaras - Dá-se este nome à crosta resultante da mortifição de uma parte do corpo pelo fogo, pelo óleo de vitriolo, ou por algum outro
cáustico violento” (Chernoviz, 1890, p. 1004).
10 Os primeiros povoadores, vindos de áreas tropicais, vieram de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Alguns casais fugiram do cerco à Colônia
de Sacramento e outros de Laguna. Ver: Wiederspahn, 1979; Fortes, 1980 e 2001; José Honório Rodrigues credita também a existência
de soldados do nordeste no conjunto de tropas sob o comando do Brigadeiro Silva Paes. Muitos destes ficaram se fixaram no presídio.
(Rodrigues, 1954)
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leitores, estudiosos e praticantes da cirurgia, do que propriamente práticas e procedimentos cirúrgicos. Em
seu prólogo, deixa claro uma crítica que vai permear seu trabalho até a última página: A cirurgia em Portugal
deixava muito a desejar em relação ao restante da Europa. O autor, apesar de fazer uso das técnicas de um
holandês, elogia inúmeras vezes a cirurgia francesa, principalmente, quando se trata do ensino da Cirurgia.
Manuel Gomes de Lima Bezerra nasceu em 04 de janeiro de 1757, em Ponte de Lima, e faleceu nesta
mesma cidade em 06 de março de 1806. Médico, cientista de referência, acadêmico, escritor,
Foi um erudito a quem nenhuma área do saber referente ao homem e à sociedade
era indiferente, um intelectual de saberes e aplicações científicas especializadas,
com particular realce na cirurgia e medicina, que se entregou a uma intensa
actividade de associativismo, intercâmbio, renovação e divulgação científica 11.
Já Pedro Vilas Boas Tavares, em seu trabalho “Manuel Gomes de Lima Bezerra: o discurso ilustrado
pela dignificação da cirurgia” (2008) como um filósofo e “um erudito a quem nenhuma área do saber
referente ao homem e à sociedade era indiferente”. (Tavares, 2008, p. 83)
O que se nota em sua obra é a intensidade com que defende a cirurgia e o manifesto desejo de tornála tão eficiente e eficaz quanto, no seu julgamento, era a cirurgia francesa. Para ele, a situação em que se
encontrava a cirurgia portuguesa estava ligada à falta de guerras em Portugal. Para ele, a cirurgia evoluía a
partir de uma “nação de guerreiros”. Ele acrescenta que o ensino da cirurgia devia vir de vários autores e os
professores deviam ler as obras nas várias línguas em que eram escritas. Nota-se por esta exigência que o
autor não estava escrevendo para homens incultos nas artes da cirurgia.
Conforme nos diz Adelino Cardoso, no pensamento de Boerhaave, o médico deveria conhecer não só
medicina, mas ter uma formação científica que englobasse todas as ciências da natureza. (Cardoso, 2011, p.
156, 158). Para Manoel Gomes de Lima, sua obra é, segundo o próprio título, “fundado nas doutrinas do
incomparável Boerhaave”. No Prólogo, seguindo a linha de Boerhaave 12, o autor destaca que em cirurgia se
faz necessário “saber Latim, História Natural e a Economia do corpo humano”. Mais adiante, reitera “que
não só a Física, Anatomia e a Patologia lhe são necessárias, mas a Matemática, a Botânica, e muitas outras”,
são importantes no aprendizado. Na página 10, o autor questiona os cirurgiões portugueses que sabiam
apenas a língua francesa, uma vez que o próprio estatuto francês exigia que o estudante, ou praticante de
cirurgia, tivesse conhecimento de Latim, Física e Belas Artes. Para ele, era impossível que os portugueses que
sabiam apenas francês aprendessem a arte da cirurgia se não lessem obras de autores médicos escritos em
latim. O autor não foge a esta regra e cita, por toda sua obra, diversos autores para referenciar seu
conhecimento e justificar seus argumentos.
O livro O Practicante do Hospital Convencido é estruturado em duas partes. A primeira estabelece
um diálogo sobre a inflamação entre um praticante da cirurgia e o autor. É nessa parte que ele estabelece
todo o seu princípio crítico ao ensino da cirurgia em Portugal. Principalmente o fato de se estudar a cirurgia a
partir da Cirurgia de Antonio Ferreira 13 (1670) que, segundo ele, independente do sucesso que tenha feito no
passado, é insuficiente para o atual aprendizado da cirurgia. Nesse sentido, Manoel Gomes de Lima faz
questão de ressaltar o conhecimento de Boerhaave e dá a ele um destaque à altura da fama que já desfruta.
Dedica várias páginas à biografia de Herman Boerhaave, engrandecendo a carreira e a obra desse que trouxe
novos conhecimentos referentes ao uso de “substâncias medicinais de origem mineral”. (Lemos, 1881, p. 132)
A necessidade de ler vários autores é dada de forma bastante convincente. Para poder compreender
os ensinamentos de Boerhaave, o autor sugere que o praticante tenha conhecimento da bibliografia sobre os
Portal Ponte de Lima Cultural. Disponível em https://pontedelimacultural.pt/as-pessoas-subpag.asp?t=paginas&pid=1586. Acesso em
23 out de 2018.
12 Herman Boerhaave (1668-1738). A primeira obra influenciada por ele, escrita em português, foi A Matéria Médica (1735, 1738), escrita
por Jacob Castro Sarmento. (Pinto, 2011, p. 166)
13 Antonio Ferreira (1616-1679). Sua obra marcou a cirurgia em Portugal. Estudou em Coimbra. Foi cirurgião no Hospital Real de Todos
os Santos e, por merecimento, cirurgião-mor de D. Pedro II. Para Maximiano Lemos, Antonio Ferreira “ocupa na história da nossa
cirurgia um lugar preponderante” (Lemos, 1881, p. 96).
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diversos assuntos que envolviam a medicina e cita vários exemplos de autores que se utilizaram desse meio.
Sobre a inflamação, especificamente, divide os autores a serem discutidos – e citados por ele – em duas
“classes”. Nessa divisão, tanto cita as obras de cada autor com sua biografia, quanto critica algumas. Mas
procura sempre mostrar as qualidades de cada título. É, através delas que define, junto com seu pupilo, o que
é inflamação: “a inflamação é um tumor preternatural 14, renitente, duro, vermelho, e quente, com dor
punctoria, e algumas vezes com febre” (p. 41). Com o conhecimento dos antigos, o autor sugere que o
praticante já conseguiria evoluir para um próximo passo, desde que conhecesse as publicações e descobertas
de outros autores.
Chama a atenção que todas as definições dadas pelo autor possuem um caráter didático. É através de
analogias e exemplos, de certa forma corriqueiros, que torna os conceitos de fácil aceitação e entendimento.
Exemplo disso, temos na explicação sobre a inflamação dos nervos, pois compara-os com uma corda de viola.
Desta forma, torna o conhecimento do Fleymão, da Erysipela, Edema ou Scirro de fácil entendimento e
compreensão. E, mantendo sua forma de pensar a respeito do ensino da cirurgia, Manoel Gomes de Lima faz
uso de diversos autores para justificar seus conceitos e, como não poderia deixar de ser, do tratamento da
inflamação.
O autor encerra a primeira parte do livro com o reconhecimento do praticante de que sem o
conhecimento do corpo humano e até da história natural ele não teria condições de ser um bom cirurgião. O
autor ainda se propõe a ensiná-lo mais, desde que fosse nas horas em que não estivesse trabalhando com
cirurgia. Ao citar o dr. Jacob de Castro Sarmento, que dizia que a cirurgia da Inglaterra pagava mais e só
aprendiam as pessoas ricas, Manoel Gomes de Lima reitera que a cirurgia em Portugal se ganha pouco e se
trabalha muito.
Na segunda parte, Manoel Gomes de Lima procura demostrar como seu trabalho de cura se
desenvolvia. Cita exemplos de curas em que foi protagonista no tratamento, sempre com sucesso. Na
primeira observação mostra como curou um estiomeno15 do escroto em pouco tempo. Ao fazer o diagnóstico,
imediatamente, solicitou uma sangria e mandou alimentar o doente com:
caldos de galinha, e ameixas, e bebesse quanta agoa quisesse, cozida primeiro com
cevada de França. Ordenei-lhe para de tarde hum Clyster emoliente de cozimento
de Malvas, Mercuriaes, e folhas de Violas, por estar adstricto 16 de ventre, e receiteilhe para tomar sobre a Sangria huma Tizana compota de duas livras de cozimento
de Raizes de Althea, e Golsaons, folhas de Parietaria, e Alface com duas oitavas de
Cristal Mineral. Na parte mandei fomentar todo aquelle dia com hum cozimento
de Flores de Sabugo, Arros do Telhado, Tanchagem, Pero Camoez e Alfavaca de
Cobra em Leyte. (Lima, 1756, p. 160-161) (Grifos do autor)
Neste pequeno trecho já podemos observar o quanto são importantes, para o autor, outros trabalhos
já em desenvolvimento ou obras clássicas. É nelas que ele se espelha para determinar, na sua concepção, o
que é necessário para a cura. Nas notas de rodapé, o autor procura mostrar todos os autores que referenciam
seu trabalho. Sobre “quanta agoa quisesse” faz uso de DD. Peres Guttier, e Vasques. Justifica o uso do
“Clyster Emolliente” pela própria qualidade do clister, “que obtudem a acrimônia, e abrandão, e lubricão o
ventre he útil nas Inflammaçoens”. Quando indica a fomentação da parte afetada, faz uso de Ferreira, que
representa a “Escola Antiga” e sugere o uso de “Repercussivos puros na inflamação dos testículos”, mas usa,
também, autores que representam a “Escola Moderna”, que sugerem o uso de emolientes e anódinos. Todas
Na definição do próprio: “Tumor é mesmo que inchação e vem do grego Oedos, que significa distensão para os lados, para diante e
para o centro; e como por meio da tal inchação toma a parte maior crescimento, dizemos, que não é natural, mas preter, ou além do
natural” (Lima, 1756, p. 41).
15 Segundo Bluteau, estiomeno significa comido da gangrena (Bluteau, 1789, p. 564).
Para Chernoviz, dá-se este nome (Esthiomeno) a certas ulceras do rosto ou da vulva que se estendem, em profundidade, roendo os
tecidos. A mesma palavra aplica-se também a certos dartros, e sobretudo ao lupo (Chernoviz, 1890, p. 1048).
16 Adstricto – mui apertado. De Adstringir; apertar, cerrar, unir (Bluteau, 1789, p. 30).
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as suas ações são fundamentadas em autores tais como Juncker, Hildano, Aecio Amideno, o próprio
Boerhaave que nos casos de inflamação dos testículos, segundo o autor, aconselhava a “sangria largamente”.
Manoel Gomes de Lima encerra sua observação dizendo que “foi cousa pasmosa de ver o como se reproduziu
toda a parte dos testículos, que se tinha separado, e o como o escroto inteiramente se regenerou” (p. 167).
Na segunda observação, o autor comenta sobre a M. Marcellina Antonia Leonisa Sandanha, uma
freira Franciscana do Convento de Monchique. Esta moça de 25 anos, mais ou menos, sofria de um tumor na
mama esquerda.
Era um como huma laranja medíocre, desigual, duro, escuro, aderente ao peyto,
com muytas veas negras em roda, e com dor, e picadas penetrantes de tempo em
tempo. (p. 169)
Neste caso, nota-se o respeito que o cirurgião possuía pelo trabalho do médico que não quis extirpar
o tumor logo de início, que, segundo ele, era a melhor forma de curar. Como a doente não estava com “falta
de animo naquele tempo” e havia solicitado com muita fé os cuidados do autor, isto, acrescentado do fato de
que a paciente já se tratava com o “erudito” médico Antonio Mena Falcão, fez com que o autor optasse, sem
muita fé, pela cura através de remédios e outros procedimentos. Novamente faz uso de vários autores 17 que
indicam remédios para estes casos. Como não obteve resultado optou por extirpar o tumor, não sem antes
fazer com que a enferma recebesse os sacramentos da Igreja e tivesse o acompanhamento do médico.
Feita a cirurgia, começou o tratamento, e, posteriormente, viu, com proveito, que a chaga cicatrizava.
Após isto, o autor inicia uma discussão a respeito da doença e discute com vários autores os procedimentos.
Critica veementemente os cirurgiões que não adotavam a extirpação ou aqueles que preferiam se omitir sobre
a doença. Para ele não havia idade que impedisse um cancro ou tumor de ser extirpado, “salvo se os inimigos
da extirpação entendem, que hum Cancro he menos perigoso na massa do sangue, do que em as Glandulas de
huma Mamma” (p. 180). Nessa discussão mantém sua crença na cirurgia francesa e julga que um cirurgião
no alto de sua razão não negaria isso, já que a cirurgia francesa 18 acredita na extirpação do tumor para uma
cura efetiva.
Em uma terceira observação ele trata de um cancro ulcerado nos lábios e na face direita de José Pinto
Lavrador, setenta anos. Segundo ele:
Principiava este Cancro no meyo do Labio inferior, ou sphinter dos Beiços:
estendia-se pela face sobre os Musculos Elevadores superior, e inferior,
Zigomatico, e parte do Buccinator, e terminava no Sphinter superior. A vista era
horrenda, a dureza em roda grande, e a chaga com lábios revirados, e com cheiro
fétido” (p.180). (Grifos do autor)
Neste caso, contando com a ajuda do cirurgião José de Sousa Feliz e de seu filho, tratou de extirpar
logo o cancro. O tamanho do corte era tanto, que o autor não conseguiu juntar as partes. Fez uso de um
procedimento semelhante à cirurgia do Lábio Leporino. Comenta que, um ano depois, encontrou o paciente
curado daquele tumor. No entanto estava com um princípio de outro tumor. Escreveu para o cirurgião José
de Sousa Feliz para que extirpasse assim que fosse possível. Reitera nesta observação a necessidade de se
extirpar o tumor, não importando a idade.
Uma rápida reflexão a respeito desse autor e de sua escrita nos indica um padrão de procedimento
que justifica as suas colocações no início do trabalho. Nas primeiras páginas, ele comenta sobre a
necessidade de conhecer mais de um autor e de se manter atualizado em relação à prática da cirurgia dos
No início do tratamento o autor faz uso de Circulos de Oleo de Ouro sem frutos, como atestam os Cirurgiões Costa, e Monteiro. (Lima,
1756, p. 170)
18 Manoel Gomes de Lima não se furta a citar os autores franceses entre eles, Mr. Le Cat, cirurgião de Ruan, Mr. La Sone, médico da
Rainha de França. Chega a citar um prêmio que a Real Academia de Cirurgia lança em 1738, para quem tivesse o melhor tratamento
para o Cancro nas Mamas.
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outros países. Salienta, ainda, a necessidade de se saber para além do processo cirúrgico. Era, por isso,
necessário o conhecimento de outras línguas, principalmente o latim, para poder conhecer os trabalhos de
outros autores. Além das línguas, era necessário que se conhecesse anatomia, botânica, belas letras. Nota-se
a imposição deste conhecimento de anatomia tanto no momento em que se iria extirpar o tumor, pois ele
evitaria o corte de veias e artérias que determinaria uma complicação vital para o paciente, quanto no
momento da indicação de unguentos e cataplasmas que se utilizassem de plantas com propriedades de cura.
Considerações
Diante de tudo que expusemos, podemos constatar o quanto a literatura médica era importante para
as populações coloniais, principalmente as estabelecidas no extremo sul da América portuguesa.
Considerando a forma atualizada e didática de exposição das obras aqui expostas, pode-se inferir as possíveis
razões para que o Brigadeiro possuísse um tratado de cirurgia como o Cirurgia Anatomica, e completa. Sua
leitura permitiria que o Brigadeiro acessasse um conhecimento sobre as teorias de medicina vigentes naquele
período, o que nos leva a supor que ele tenha feito efetivamente a leitura do tratado Cirurgia Anatomica, e
completa. O cotejo que fizemos com as cartas do brigadeiro, a bibliografia atual e as fontes demonstram que
suas ações enquanto comandante militar e, principalmente, seu empenho para o êxito do projeto de
colonização desenvolvido pela Corte portuguesa, denotam essa preocupação com a saúde.
Independentemente do seu interesse pessoal. Por sua riqueza de detalhes e exposição de conceitos e
procedimentos, que atendiam à demanda dos primeiros soldados e colonos no Continente de São Pedro, o
Tratado de anatomia traz orientações mais precisas do que o Praticante do Hospital Convencido. Quanto a
este último, não podemos afirmar que tenha sido utilizado por Silva Paes na sua passagem pelo Brasil, pois
foi impresso em 1756, quando o Brigadeiro Silva Paes já se encontrava em Portugal. O fato de a obra integrar
sua biblioteca pessoal é um indicativo de seu status social (Araujo, 1999) e, mesmo já contando uma idade
avançada, pode-se supor que Silva Paes tenha tido acesso ao conteúdo da monografia e, portanto, à crítica
que seu autor fez ao “estado em que se encontrava” a prática da cirurgia em Portugal e a sua posição sobre a
relevância das traduções de obras de medicina para aquele país.
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Análise iconográfica das ações cívico-sociais do Exército na Fronteira
Brasil/Argentina na década de 1970
Ronaldo Zatta1
Ismael Antônio Vannini2
Resumo: Esta comunicação têm o intuito de analisar as ACISO – Ações Cívico-Social realizadas na década
de 1970, na fronteira Brasil/Argentina, através de parte do acervo iconográfico de uma extinta unidade
militar do Exército Brasileiro, a 3ª Companhia do 33º Batalhão de Infantaria Motorizada. Tal organização
militar, batizada pelo nome histórico de “Sentinelas do Sudoeste”, foi implantada na cidade de Francisco
Beltrão/PR em meados da década de 1950, durante o conflito agrário conhecido como Revolta dos Posseiros;
e, suprimida em 2001 por ocasião dos novos redirecionamentos das Organizações Militares que o Ministério
da Defesa realizou no início do século XXI, culminando em sua substituição pelo 16º Esquadrão de Cavalaria
Mecanizado, oriundo de Passo Fundo/RS. Como proposta de pesquisa, que acreditamos ser uma
contribuição inédita para a História Militar brasileira, nos propomos em discutir – valendo-se como fonte
primária do Álbum Fotográfico da 3ª/33º BIMtz, que retrata a ações daquela unidade militar durante década
de 1970 – como as ACISO foram operacionalizadas numa região sensível aos problemas de fronteira, sendo
atuações criteriosamente planejadas, e intentas, no sentido de contribuir para a construção de um
sentimento comunitário em prol do Exército brasileiro como instituição necessária, durante o Regime Militar
brasileiro.
Considerações iniciais
Esta pesquisa têm o intuito de analisar as ACISO – Ações Cívico-Sociais realizadas na década de 1970, na
fronteira Brasil/Argentina, através de parte do acervo iconográfico de uma extinta unidade militar do Exército
Brasileiro, a 3ª Companhia do 33º Batalhão de Infantaria Motorizada. Tal organização militar, batizada pelo nome
histórico de “Sentinelas do Sudoeste”, foi implantada na cidade de Francisco Beltrão/PR em meados da década de
1950, durante o conflito agrário conhecido como Revolta dos Posseiros; e, suprimida em 2001 por ocasião dos
novos redirecionamentos das Organizações Militares que o Ministério da Defesa realizou no início do século XXI,
culminando em sua substituição pelo 16º Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, oriundo de Passo Fundo/RS. Como
proposta de pesquisa, que acreditamos ser uma contribuição inédita para a História Militar brasileira, nos
propomos em discutir – valendo-se como fonte primária do Álbum Histórico Fotográfico daquela Organização
Militar, integrante do Exército Brasileiro, denominada 3ª/33º BIMtz, que retrata parte das ações daquela unidade
militar durante década de 1970 – entre elas, selecionadas para este estudo, as ACISO que foram operacionalizadas
numa região sensível aos problemas de fronteira, considerando-as, como atuações criteriosamente planejadas, e
intentas, no sentido de contribuir para a construção de um sentimento comunitário em prol do Exército brasileiro
como instituição necessária, durante o Regime Militar brasileiro.
O processo de ocupação colonial e a presença militar na fronteira Brasil/Argentina
A região de fronteira Brasil/Argentina, qual compreende geograficamente o Sudoeste do Estado do Paraná
e o extremo Oeste de Santa Catarina, apresenta em sua ocupação colonial algumas características distintas daquelas
tendencialmente perpetradas no sul do País. Inúmeros fatores de ordem política, judicial, militar e social, deram
uma conotação, sobretudo conflituosa, no processo de colonização. Litígios entre o Estado do Paraná e a União
Doutor em História pela UFPR. Vinculado ao Grupo de Pesquisa CNPQ “Cultura, Etnias, Identificações”. E-mail:
ronaldozatta@yahoo.com.br .
2 Doutor em História. Professor do Curso de História da UNICENTRO - Campus de Coronel Vivida. Vinculado ao Grupo de Pesquisa
CNPQ “Cultura, Etnias, Identificações”. E-mail: vaniniunicentro@gmail.com .
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desencadearam contendas pelas glebas de terras, que, posteriormente as disputas foram protagonizadas também
por interesses particulares, empresas colonizadoras e pelos colonos posseiros. (GOMES, 2005).
Enquanto a questão tramitava sub judice, o governo varguista, na ação da marcha para o oeste, intervém na
região e cria uma colônia para incentivar a colonização a CANGO (Colônia Agrícola Nacional Osório) por um
decreto de 1943. Tal projeto estimulou rápida e desenfreada migração de colonos, assentados ilegalmente nos lotes
das glebas de terras do sudoeste. Devido ao embargo litigioso em que a região se encontrava os colonos não
obtiveram os registros dos lotes, esta condição transformou os ocupantes em posseiros. (LAZIER, 1998).
Uma companhia de capital norte americano adquiriu, também ilegalmente, a posse das mesmas glebas, já
questionadas pelos governos e pelas famílias dos colonos posseiros. Tal contenda confrontou o interesse dos
posseiros, que lutavam pelos lotes de terras, e os jagunços, que em nome das companhias pretendiam expulsar os
ocupantes. Como pano de fundo, se deflagrava uma luta política entre os diferentes grupos de poder, que atingia
diretamente a instância estadual e federal. Por conta disso, as autoridades instituídas na região representavam os
interesses políticos conflitantes, e, no caso, posicionavam-se no sentido contrário aos posseiros. (COLNAGHI,
1994).
Quando o embate armado atingiu proporções alarmantes, a imprensa nacional e internacional noticiavam o
episódio do embate das guerrilhas agrárias, foi instalado um destacamento efetivo do Exército Brasileiro em
Francisco Beltrão. A cidade também era a sede da companhia colonizadora e abrigava os escritórios das empresas
imobiliárias. A princípio, tal destacamento se mantinha acantonado, como efetivo de forças a intervir no momento
que fosse convocado.
Quando o clima de instabilidade tomou conta da região, as autoridades políticas e militares observaram a
necessidade de medidas e forças de controle. Tornara-se imperativo o deslocamento de efetivos militares, como
forma de inibir o recrudescimento do conflito, no sentido de atuarem como mediadores entre os grupos envolvidos.
No ano de 1954, um efetivo das tropas do Batalhão de Caçadores, provenientes de Joinville –SC e outro efetivo de
Infantaria de Ponta Grossa- PR, se instalaram nas dependências da CANGO, em Francisco Beltrão. 3 Nos anos
posteriores o efetivo militar foi ampliado, em 1957 fora destinado a Francisco Beltrão outro pelotão de Infantaria,
constituído por quatro sargentos, cinco cabos e vinte e quatro soldados, comandados pelo tenente João da Cruz
Filho.4
Em outubro de 1957, o embate entre os grupos chegou ao ápice, convulsionando articulações políticas da
região, do Estado e da União. Os registros e as evidências do levante armado, quando seis mil colonos tomaram de
assalto o controle do Sudoeste do Paraná, revelam que as forças militares foram decisivas para o controle do
conflito. Vindo, posteriormente em 1962, por determinação da Casa Militar, que por sua vez estava subordinada
diretamente à Presidência da República, operar, através do Grupo Executivo de Terras para o Sudoeste do Paraná –
GETSOP, a medição e titulação dos lotes urbanos e rurais, trabalho que se prolongou até década de 1980,
garantindo assim os direitos a propriedade da terra na região de fronteira. (WACHOWICZ, 1987).
Importante entendermos o processo de colonização do Sudoeste do Paraná com a presença efetiva e
decisiva das forças armadas. Forças apaziguadoras e mediadores de um sangrento conflito agrário, que, deve-se
ressaltar, finalizado com uma inédita vitória dos pequenos colonos posseiros. No final, as terras foram
desapropriadas e as famílias tiveram suas terras tituladas, permanecendo em suas propriedades. Nesta conjuntura,
o Exército se define como instituição atuante e de prestigio na região. Gozando de status de referência para a ordem
e paz entre a população. Destarte, a participação da instituição lhes rendeu no imaginário social local o título de
“guardião” das terras em litígio.
A normatização institucional das ACISO na década de 1970
O Exército brasileiro define as Ações Cívico-Sociais como atuações próprias militares, de intervenção social,
explanadas como um:
3Boletim interno Nº 12,2 de 30 de Junho de 2000, da 3ª Companhia do 33º Batalhão de Infantaria Motorizada da cidade de Francisco
Beltrão-PR.
4Boletim interno Nº 5, de 7 de Janeiro de 1957, do 13º Regimento de Infantaria da cidade de Ponta Grossa- PR.
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“Conjunto de atividades de caráter temporário, episódico ou programado de
assistência e auxílio às comunidades, promovendo o espírito cívico e comunitário dos
cidadãos, no país ou no exterior, desenvolvidas pelas organizações das Forças
Armadas, nos diversos níveis de comando, do aproveitamento dos recursos em
pessoal, material e técnicas disponíveis, para resolver problemas imediatos e
prementes”. (EXÉRCITO BRASILEIRO, 2018).
Trata-se portanto, de uma didática para aplicação de técnicas que orientam a atuação militar, de caráter
humanitário, executada por tropas comprometida com a solução de problemas emergenciais, sendo eles
ocasionados por calamidades ou guerras; mas também, disposta na labuta da formação de espíritos cívicos
comunitários, se valando dos meios diversos disponíveis para a ocasião.
Há razões para acreditarmos que a orientação de aplicação de tropas militares em ACISO iniciou-se com a
emulação do modelo militar americano, à partir dos acordos de 1942 e 1952, firmados entre Brasil/EUA após a
vigência da Missão Militar Francesa (1919-1939), qual privilegiava a “cooperação, adoção de armas, equipamentos e
doutrinas”. (SVARTMAN, 2016, p. 361). Pois, foi a partir daí que identificou a terminologia nos manuais de
doutrinas militares daquela instituição, intensificada pela próxima relação que os EUA, militarmente, exerceram
nas doutrinas de emprego do Exército brasileiro até 1985.
Ainda no início dos anos 1970, sobre a aplicação de tropas militares em calamidades públicas, o Governo
brasileiro se manifestou por lei, assinada pelo General Emílio Garrastazu Médici, preliminarmente, através do
Decreto nº 67.347, em 5 de Outubro de 1970, qual estabeleceu diretrizes, e normas de ação, para defesa permanente
contra as calamidades públicas, além de criar um Grupo Especial para os casos. O artigo 11 daquele decreto
esclareceu, inicialmente, sobre as funções das Forças Armadas naquele tipo de operação:
“Art. 11. Os Ministérios do Exército, da Marinha e da Aeronáutica darão apoio de
pessoal e material necessários ao planejamento e execução de tarefas de socorro, ao
transporte marítimo e aéreo de suprimento e as missões de busca e salvamento, nos
âmbitos federal, estadual, territorial e municipal.” (BRASIL, Decreto nº 67.347 de 5 de
Mar.1970).
Desta forma, um embrião do que hoje é conhecido por Defesa Civil, que atua no âmbito de responsabilidade
das Unidades Federativas, passava a ser prevista em lei federal, compondo um quadro que envolvia diversos
ministérios. Sendo que as ações do Exército em calamidade pública passaram à estar previstas em situação de
emergência, sendo elas provocada por fatores anormais, e adversos, que afetam gravemente a comunidade, mas em
condições que privava total ou parcialmente do atendimento de suas necessidades, ou até mesmo ameaçando a
existência ou a integridade de seus elementos.
Os anos 70 do século passado reportam os ânimos mais intensos do Regime Militar brasileiro, no seio das
Forças Armadas se intensificavam o combate aos comunistas, e os esforços dos atores envolvidos naquele contextos
seguiam focado naquele sentido. Assim, em 1973, o Exército brasileiro efetiva seu recente encargo legal através da
elaboração de estudos sobre calamidades públicas, que resultou na impressão do “Manual de Campanha C19-15
Distúrbios Civis e Calamidades Públicas”, qual foi aprovado pela Portaria n. 148 – Estado Maior do Exército em 29
de Ago. 1973. Vinculado à ideologia da Guerra Fria, bem como o combate internacional ao comunismo, este
manual passou, primeiramente, a orientar os militares brasileiros integrantes das unidades operacionais, no
exercício de ações de polícia, em seu planejamento e sua execução de atividades de “controle de distúrbios civis” 5; e,
num segundo momento, uma orientação para campanhas de ACISOS.
O fato é que as ACISOS já aconteciam, e a elaboração de material de orientação é fruto do pensamento
militar que conduzia o Regime Militar brasileiro desde meados da década de 1960. O material produzido pelas
5 Na visão dos militares brasileiros, em 1970, o distúrbio civil poderia ser considerado uma quebra de ordem pública, uma alteração da
paz social através do conflito de ruas ou atos contra autoridades de um governo instituído.
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prensas militares direcionava as tropas no sentido de tratar como missões prioritárias, em operações de
calamidades, a seguinte ordem de importância em suas atuações diretas: a) preservação da ordem pública; b)
tentativa de evitar o pânico; c) proteção de instalações importantes; d) o controle de tráfego; d) o controle,
circulação e evacuação de civis; e) a manutenção da ordem pública; f) a repressão ao saque; e, g) o fornecimento de
serviços médicos de urgência.
O Manual de Campanha C1915 de 1973, pensava as calamidades públicas sob a ótica da Guerra Fria, de fato,
era filho de seu tempo! Elaborado em um período que muitos pesquisadores compreendem como o endurecimento
do Regime Militar brasileiro, apresentou-se muito mais preocupado com a preservação da lei e da ordem pública,
do que claramente com as questões emergenciais incitadas pela calamidades públicas. Assim, em sua essência a
quebra da ordem pública e da paz social, seja por eventos naturais ou fabricados, necessitavam da intervenção
direta do Estado militar para reparação, evitando o caos. Desta forma, a previsão em Manual para o combate à
greves, tumultos e saques, antevia a preocupação com o reestabelecimento da normalidade afetada pelas
calamidades.
Interessante também, é perceber que, as Forças Armadas, em casos de calamidade pública, colaborariam
com os ministérios civis, sempre que solicitadas, na assistência às populações atingidas e no estabelecimento da
normalidade. A finalidade era apoiar autoridades civis, porém poderiam ter a responsabilidade de coordenar as
ações, desde que houvesse a delegação de poderes. Segundo a mesma doutrina, uma preparação, ou mesmo ações
preventivas que pudessem minimizar os efeitos de uma calamidade pública, também eram compreendidos como
medidas a serem adotas pelas Forças Militares.
Mesmo relegadas à um segundo momento, as operações emergenciais, em detrimento das operações de
polícia, podem ser percebidas que as ACISOS eram percebidas pelos militares como uma resposta do Estado na
situação do caos social, ou nas ocasiões de perturbação da paz social, vistas como necessários para garantir atos de
autoridade de um governo instituído.
O Manual C19-15 orientou as atividades de ACISOS do Exército brasileiro, desde a data de sua publicação
em 29 de Ago. 1973 até 18 Dez. 1997, quando foi revogado pelo Manual de Campanha C19-15 Operações de Controle
de Distúrbios, quando em aspectos de doutrina no emprego das Forças Terrestres, o Exército dividiu, em questões
de instrução de operações, as operações de polícia vinculados aos caos de distúrbios, das operações de calamidades
públicas e assistências emergenciais.
A realização das ACISO na fronteira Brasil/Argentina na década de 1970
Para esta comunicação, nos propomos a analisar as imagens de três eventos de ACISOS empreendidas pelo
Exército brasileiro na fronteira Brasil/Argentina nos 70 do século passado, cujos registros dos fotógrafos militares,
com cunho memorial-institucional, compõe o Álbum Histórico da 3ª Companhia de Infantaria instalada em
Francisco Beltrão/PR. Foram eles: 1) no ano de 1970, em Salgado Filho/PR; no ano de 1971 em Romelândia/SC; e,
em 1974, em Santo Antônio do Sudoeste/PR.
Na tentativa de seguir as orientações de LIMA; TATSCH (2009), em perceber a diversidade de usos que
gerou este arquivo iconográfico militar, não tão somente a instituição de guarda, mas compreendendo os locais de
origem de produção e o caminho de circulação da fotografia, é possível afirmar que a elaboração das fontes
analisadas nesta pesquisa, os registros das operações de ACISO, representam uma doutrina de atuação de tropa
sendo implantada pelo Exército brasileiro, em caráter nacional, como conteúdo iconográfico se apresenta como
uma adequação de doutrina operacional inovadora para a época. Este material institucionalizado compôs uma série
de registros elaborados, que o comando militar local repassava ao III Exército, como relatos de atividades
desenvolvidas na faixa de fronteira.
Considera-se importante realçar também, o histórico problemático da questão de fronteira com a República
Argentina, a ocupação dessa faixa de fronteira através da Colônia Agrícola General Osório para fixação de fronteiras
demográficas, os conflitos pela posse da terra que gerou a Revolta dos Colonos em 1957, a guerrilha de 1965 e
estabilização local pela GETSOP, durante a década de 1970 e 1980, qual estava ligada ao Gabinete do Chefe Militar;
situações em que o Exército brasileiro atuou diretamente. Bem como, o posicionamento ideológico do pensamento
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militar brasileiro no combate ao comunismo internacional, que amargou nesta região de fronteira, em 1965, um
foco guerrilheiro oriundo de exilados no Uruguai.
Para exposição, preferiu-se exibir as ACISOS por mosaicos, em ordem cronológica de acontecimentos.
No ano de 1970, o Acervo Fotográfico da 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada registra no município
de Salgado Filho/PR, a primeira ACISO fotografada por aquela organização militar. Destaque foi o registro
fotográfico de palestras, cujas notas afirmam ser sobre diversos assuntos de interesse daquela comunidade agrícolacolonial de fronteira. Destacado também, os auxílios veterinários, a vacinação infantil, o atendimento médico e a
construção de pontes e de estradas.
Mosaico 1. ACISO em Salgado Filho/PR em 1970.
Fonte: Acervo Fotográfico da 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada.
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No ano seguinte, em 1971, a mesma Organização Militar registra operações de ACISO no Estado de Santa
Catarina, no município de Romelândia. O destaque daquela operação, de acordo com as notas do Álbum Histórico
foram os atendimentos médicos domiciliares, a recuperação de 31 escolas públicas, mais de 5000 extrações
dentárias e as cirurgias de remoção de cânceres sebáceos.
Mosaico 2. ACISO em Romelândia/SC em 1971.
Fonte: Acervo Fotográfico da 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada.
A terceira oportunidade de emprego de tropas militares em operações de ACISO na Fronteira
Brasil/Argentina, na década de 1970, pelo Exército brasileiro, registrada no Acervo Fotográfico da 3ª/33º Batalhão
de Infantaria Motorizada, aconteceu em 04 Out. 1974. Desta vez, de caráter extraordinário, no município de Santo
Antônio do Sudoeste/PR, quando aquele município, após ter sido assolado por forte vendaval, teve a presença dos
fuzileiros de infantaria que realizaram assistência emergencial àquela comunidade.
Outras ações da tropa foram descritas, podendo ser citadas: a vacinação para evitar a proliferação de
doenças (epidemia) e consulta adultos; atendimento emergencial de feridos adaptando escolas públicas em
hospitais de campanha; reconstrução de bairros e a assistência médica domiciliar com equipes de enfermeiros
liderados por um Oficial médico.
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Também, é notável, que aturam como reforço, ou mesmo operando serviços públicos normais necessários à
vida da população civil. Como por exemplo, no que se refere ao estabelecimento de comunicações através de posto
rádio, o abastecimento de água potável, a regularização de transportes coletivos e a desobstrução de vias de tráfego.
Mosaico 3. ACISO extraordinária em 04 de Outubro de 1974 em Santo Antônio do Sudoeste/PR.
Fonte: Acervo Fotográfico da 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada.
Análise iconográficas sumária das ACISO registradas no Acervo da 3ª/33º Batalhão de Infantaria
Motorizada:
- foram registradas por profissionais militares, com intenções militares de registro memorial, que
enquadraram as cenas de modo a ressaltar uniformes, brasões e destacar militares perante os demais que
realizavam as mesmas tarefas;
- dos três eventos analisados, apenas um possuía caráter extraordinário, motivado por intempéries
climáticas – sendo os dois primeiros, ações próprias de iniciativa institucional;
- notável a foto do operador de rádio no Mosaico 2, onde a parede de fundo, sustenta um cartaz
institucional do III Exército, citando um slogan de ação, que ao lado de uma imagem de criança, lê-se “PRECISO
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DE VOCÊS... III EXÉRCITO... ACISO 1971”. Que, este item sustenta a hipótese de que as ACISO naquela região de
fronteira foram um programa articulado com autoridades civis e criteriosamente planejado pelo comando militar.
- que o evento de caráter emergencial, registrado em 1974 em Santo Antônio do Sudoeste/PR, houve uma
despreocupação na tomada de cena dos registros fotográficos. Pois, ressaltou-se o aspecto traumático do evento em
relação à presença militar na área. Algo não percebido nas imagens dos eventos anteriores registrado por aquela
organização militar;
- as ACISO foram realizadas sem a delegação de poderes das autoridades civis, mas de iniciativa militar,
sendo visível nas imagens o apoio recebido de profissionais civis (engenheiros civis na construção de pontes,
veterinários civis nas assistências e enfermeiras civis nos casos de atendimentos emergenciais).
- até onde pode-se apurar, a 3ª Companhia do 33º Batalhão de Infantaria Motorizada produziu sua
memória institucional iconográfica, selecionou suas melhores fontes iconográficas, através de enquadramentos
destacáveis, mas não socializou seu uso, deixando-as relegadas aos arquivos militares. E que talvez, nem mesmo
existisse tal intuito, já que, naquele momento e local, a preocupação com a questão da paz social aparenta estar
mais vinculada à formação de espíritos nacionais do que a auto propaganda do regime;
- que durante as ACISO, a tropa foi empenhada em missões que não se enquadraram perfeitamente no seu
treinamento militar, sendo destacada para afazeres funcionais que agregaram valores morais na forma em que
aquela comunidade de fronteira passou a perceber a presença dos integrantes do Exército, muito distinta do
contexto nacional, onde o governo militar acentuava prisões e censuras aos contrários ao Regime.
Referências bibliográficas
ACERVO FOTOGRÁFICO DA 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada.
BRASIL, Decreto nº 67.347 de 5 de Mar.1970, Estabelece diretrizes e normas de ação para defesa permanente
contra as calamidades públicas, cria Grupo Especial e dá outras providências. Brasília, DF, Out. 1970. Disponível
em:
<
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-67347-5-outubro-1970-408879publicacaooriginal-1-pe.html >. Acesso em: 16 Out. 2018.
Boletim Interno Nº 122, de 30 de Junho de 2000, da 3ª Companhia do 33º Batalhão de Infantaria Motorizada da
cidade de Francisco Beltrão-PR.
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GOMES Iria Zanoni. 1957, a Revolta dos Posseiros. 3ª. Ed. Curitiba: Criar Edições, 2005.
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SVARTMAN, Eduardo Munhoz. O Exército brasileiro e a emulação dos modelos francês e estadunidense no século
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WACHOWICZ, Ruy Christovam. Paraná, Sudoeste: ocupação e colonização. Curitiba: Ed. Vicentina. 1987.
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Representações em jogo: a Segunda Guerra Mundial e suas forças armadas
em conflito, na franquia de jogos digitais Call Of Duty
Ruggiero Moreira1
Resumo: A Segunda Guerra Mundial durou seis anos (1939-1945) e além dos excessivos gastos econômicos
(destinados para a guerra e para a reconstrução do mundo no pós-guerra) e da gigantesca destruição
material, contabilizou: quase quarenta e um milhões de refugiados pelo mundo, a morte de cerca de quinze
milhões de soldados e dez milhões de civis, e, quatro milhões de prisioneiros de guerra foram mortos ou
deixados para morrer. Sendo um dos períodos mais violentos e emblemáticos da história contemporânea, a
Segunda Guerra Mundial, deixou marcas (culturais, políticas, sociais) na humanidade, sendo causa de
modificações materiais e imateriais nas sociedades. Devido a sua importância, este período foi, e ainda é,
narrado e representado de diversas formas, a partir de diferentes pontos de vista. Os instrumentos utilizados
para tais representações, são diversos, como por exemplo: filmes, livros, músicas, pinturas, poemas e mais
recentemente, jogos digitais. A utilização dos jogos digitais para tal função, vem crescendo, principalmente, a
partir do início da década de 1980, quando os jogos digitais começam a se popularizar e aumentar
consideravelmente sua circulação no mercado. Devido a pluralidade de possíveis conteúdos (estéticos, de
narrativa, de mecânicas) a serem desenvolvidos e utilizados nas plataformas que executam os jogos
eletrônicos (consoles ou computadores), criar-se-ão diversas categorias de jogos digitais, sendo uma das
principais, os First Person Shooter, popularmente conhecidos como FPS, que ganham maior visibilidade a
partir década de 1990, principalmente, utilizando a Segunda Guerra como pano de fundo. A Segunda Guerra
Mundial, portanto, foi o carro chefe das representações nos jogos digitais, durante muito tempo, dominando
o cenário dos FPS durante quase uma década. Um fator que é de suma importância para o sucesso dos jogos
com temática da Segunda Guerra Mundial, é o fato do conflito ser tido como uma “guerra justa” contra um
inimigo poderoso e com intenções maléficas, sendo “fácil” estabelecer os Aliados como bons, em
contrapartida dos nazistas maus. Assim, foi de fácil aceitação e propagação, a construção dos nazistas como
os principais inimigos dos Estados Unidos e do “Mundo Ocidental Live”. Observando a crescente
popularidade dos jogos eletrônicos em nossa sociedade, torna-se assim relevante compreendermos como se
desenvolvem e como são trabalhadas as narrativas dos jogos eletrônicos, que utilizam diversos temas
históricos, como pano de fundo, e como estes temas influenciam na construção do imaginário sobre o
assunto. Buscamos, portanto, compreender de que forma a Segunda Guerra Mundial e as forças armadas que
estavam em conflito são representadas nos FPS games da franquia Call of Duty, buscamos, também,
interpretar quais são suas influências e como as características narrativas (tanto histórica quanto de
gameplay) e os recursos audiovisuais são utilizados para expressar e reforçar certas representações e ideias.
Conforme Dille e Platten, os videogames, são uma das expressões do crescente ramo de
entretenimento em massa, sendo diretamente influenciados pelos demais meios de difusão deste tipo de
entretenimento, como por exemplo, o cinema e a televisão (DILLE; PLATTEN, 2007, p. 2-12). Apesar de
Dille e Platten usarem o termo “entretenimento em massa” para se referir ao mercado em que os jogos
digitais estão inseridos, preferimos utilizar o conceito de “comunicação de massa” trabalhado por Thompson
(2005).
Para Thompson, em todas as sociedades humanas existe a criação e troca de conteúdo simbólico, esta
troca, que se dá através da interação entre os seres humanos pode ser chamada de comunicação, por sua vez,
toda comunicação é uma forma de ação, e toda ação é resultado de aplicação de “poder” (THOMPSON, 2005,
p. 20-21). Nossa sociedade institucionaliza o poder, separando-o em diversas esferas e categorias e legando-o
para instituições que tornam-se socialmente aceitas como portadoras legítimas de tais poderes, das quais
Thompson cita o poder econômico (empresas), o poder político (o Estado), o poder coercitivo (polícia) e,
aquele que para este trabalho é o mais relevante, o poder simbólico (THOMPSON, 2005, p. 21-25).
1 Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF); Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade de Passo Fundo (UPF). Endereço eletrônico: ruggiero_h@hotmail.com
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O poder simbólico sempre foi relegado à instituições que historicamente acumularam os meios de
informação e comunicação, como, as instituições religiosas e as instituições de conhecimento (igreja, escola,
universidade) (THOMPSON, 2005, p. 24-25), contudo, com o surgimento da indústria da mídia, esta,
rapidamente ascende como um dos principais meios de comunicação e propagação do conteúdo simbólico.
“Contar histórias é um hábito tão antigo quanto o próprio homem” (FRANCISCO, 2011, p. 1), e a
utilização dos jogos digitais para tal função, vem crescendo, principalmente, a partir do início da década de
1980, quando os videogames começam a se popularizar e aumentar consideravelmente sua circulação no
mercado (LEITE, 2006, p.40-45). Devido a pluralidade de possíveis conteúdos (estéticos, de narrativa, de
mecânicas) a serem desenvolvidos e utilizados nas plataformas que executam os jogos digitais (consoles 2 ou
computadores), criar-se-ão diversas categorias de videogames, sendo uma das principais, os First Person
Shooter3, popularmente conhecidos como FPS, que ganham maior visibilidade a partir década de 1990
(ROJAS,2014).
O mercado de jogos digitais está mais recrudescente do que nunca, fato que podemos perceber
através da quantidade de pessoas que este tipo de mídia atinge (até abril de 2016 era contabilizado um
público de quase dois bilhões de pessoas (MCKANE, 2016) e também, através do número de vendas,
principalmente, dos jogos Triple A4. Um dos jogos mais esperados de uma das franquias mais famosas do
mercado: Call of Duty: Black Ops5, em 2011, vendeu 5,6 milhões de cópias somente no seu dia de estreia
(LANDIN, 2011), este é um dos maiores exemplos deste mercado em crescimento.
Analisando tais números de vendas, observamos, a popularidade dos jogos digitais em nossa
sociedade, e assim, torna-se relevante compreendermos como se desenvolvem e como são trabalhadas as
narrativas dos jogos digitais, que utilizam diversos temas históricos, entre os quais, a Segunda Guerra
Mundial, como pano de fundo, e como estes temas influenciam na construção do imaginário sobre o assunto;
identificamos, também, que a pesquisa acadêmica relacionada aos videogames ainda inicia seus passos no
Brasil6.
A Segunda Guerra Mundial durou seis anos (1939-1945) e além dos excessivos gastos econômicos
(destinados para a guerra e para a reconstrução do mundo no pós-guerra) e da gigantesca destruição
material, contabilizou: a morte de cerca de quinze milhões de soldados e dez milhões de civis, quatro milhões
de prisioneiros de guerra foram mortos ou deixados para morrer (GILBERT, 2011b, p. 300-301) e quase
quarenta e um milhões de refugiados pelo mundo (HOBSBAWN, 1995, p.58).
Sendo um dos conflitos mais violentos e emblemáticos da história contemporânea, a Segunda Guerra
Mundial, deixou marcas (culturais, políticas, sociais) na humanidade, sendo causa de modificações materiais
e imateriais nas sociedades. Devido a sua importância, a Segunda Guerra Mundial, foi, e ainda é, narrada e
representada de diversas formas, a partir de diferentes pontos de vista. Os instrumentos utilizados para tais
representações, são diversos, como por exemplo: filmes, livros, músicas, pinturas, poemas e mais
recentemente, jogos digitais.
Para Fornaciari é importante que definamos qual é o termo que iremos utilizar para nomear nossas
fontes, já que o termo que escolhemos para definir tal mídia (videogames, vídeo games, jogos digitais, jogos
eletrônicos, jogos de computador) representa a visão que temos sobre ela (FORNACIARI, 2016, p. 30-33).
Através de Fornaciari, podemos perceber que existe uma discussão sobre qual é o termo mais
adequado a se utilizar, não temos a pretensão de definir qual é o termo correto de nos dirigirmos à tal mídia,
No Brasil, o termo videogame é utilizado como um substantivo para plataformas especificas para os jogos digitais (Super Nintendo,
Mega Drive, Play Station 4, XBOX One, etc.) e não para os jogos digitais em si. No presente trabalho ao utilizarmos a expressão
“videogames” estaremos nos referindo aos jogos digitais.
3 Traduzindo como “Tiro em Primeira Pessoa”, buscando a imersão do jogador, a “câmera” é posicionada de uma forma que simule a
visão do personagem do jogo.
4 Jogos “Triple A” são as franquias de jogos mais famosas, ou os jogos mais esperados, o termo tem o mesmo sentido ao utilizado para
grande estreias no cinema, “blockbuster”.
5 Call of Duty é popularmente conhecido entre os jogadores e jogadoras pela sigla COD.
6 Acerca do trabalho acadêmico, voltado principalmente à área de História, temos de citar os trabalhos de Christiano Britto Monteiro dos
Santos e Marco Fornaciari, que estão referenciados nesta obra, como sendo os principais trabalhos sobre o assunto na área da História, e
ressaltamos sua importância e influência para nosso trabalho.
2
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assim, nossa opção foi a utilização do termo “jogos digitais”, para nos referirmos essencialmente aos jogos
em si, porém, em certas ocasiões acreditamos que o termo “videogames” é melhor empregado,
principalmente para nos referirmos a toda a indústria que envolve os jogos digitais, que engloba os
“fabricantes de consoles (console manufacturers), as editoras (publishers), as desenvolvedoras (developers),
as distribuidoras (distribuitors), os varejistas e o consumidor final (consumer)” (JHONS, 2006 apud
FORNACIARI, 2016, p. 61)
Assim, como os principais meios de entretenimento e comunicação de massa do século XXI, os jogos
digitais utilizam a imagem para criar conteúdo ao seu público. Delimitar as fronteiras físicas e intelectuais
(conceituais e simbólicas) do conceito “imagem”, é um desafio deveras complexo, pois, conforme Santaella
Embora a palavra imagem nos conduza imediatamente à idéia de visualidade, o
termo contém uma reserva de ambigüidade, pois “imagem” pode ser interpretada
tanto como imagem visual estritamente quanto como um complexo indivizível e
ambíguo de estímulos auditivos, visuais e emocionais [...] Essa noção polissêmica
da imagem teve sua origem no termo grego eikon que abarcava todos os tipos de
imagem, desde pinturas até estampas de um selo, assim como imagens sombreadas
e espelhadas [...] (SANTAELLA, 2006, p. 174).
Essa ideia de Santaella, é corroborada por Joly, que ao falar da história da imagem diz que
“Consciente ou não, essa história nos constitui, e nos convida a abordar a imagem de uma maneira
complexa” (JOLY, 1999, p.19), logo, compreendemos a multiplicidades de ideais e definições que o termo
“imagem” abarca. Nos jogos digitais, portanto, a “imagem” não se resume ao agrupamento de pixels em uma
tela, mas sim, às representações audiovisuais que nos são apresentadas e representadas por aparelhos e
significadas pelo jogador.
Ao trabalharmos os conceitos de imagem, representação e significação, como pontos centrais em
nossa análise de jogos digitais, a abordagem teórica da semiótica se apresenta como coerente e apropriada
para a análise das construções nos jogos digitais.
A semiótica surge como disciplina somente no início do século XX, quando a “ciência dos signos”
inicia sua busca em “estudar os diferentes tipos de signos interpretados por nós, estabelecer sua tipologia,
encontrar as leis de funcionamento das suas diversas categorias” (JOLY, 1999, p. 29-30), porém, suas raízes
remontam à antiguidade grega, pois
Os antigos [...] Também consideravam a linguagem como uma categoria de signos
ou de símbolos que servia para que os homens se comunicassem. O conceito de
signo, portanto, é muito antigo e já designa algo que se percebe – cores, calor,
formas, sons – e a que se dá uma significação. (JOLY, 1999, p. 30)
Desta forma, podemos perceber como os signos são importantes social e culturalmente para os seres
humanos, sendo utilizados na construção de representações e significações de diversos conceitos que são
utilizados na comunicação e interação humana. Ligada inicialmente à linguística 7, a semiótica, com o tempo
transversalizou seus conhecimentos para os demais campos acadêmicos; será, especialmente com o trabalho
do norte americano Charles Pierce, que a semiótica expandirá definitivamente suas fronteiras para além da
linguística (JOLY, 1999, p. 31-33). Pierce compreende os signos como:
[...] um signo é “algo que está no lugar de alguma coisa para alguém, em alguma
relação ou alguma qualidade”.
7
Joly destaca principalmente o trabalho de Ferdinand de Saussure
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O mérito dessa definição é mostrar que um signo mantém uma relação solidária
entre pelo menos três polos [...]: a face perceptível do signo, “representamen”, ou
significante; o que ele representa, “objeto” ou referente; e o que significa,
“interpretante” ou significado. (PIERCE, apud, JOLY, 1999, p. 33)
Através de Pierce, constatamos também que os signos estão presentes em toda a esfera de interação
humana, na qual significamos os diversos signos naturais (fumaça, cheiro de pão, expressão corporal etc.) e
as representações artificiais deles (contidos na língua, músicas, filmes etc.), a partir e em razão de nossos
referenciais culturais e sociais porque “De fato, um signo só é ‘signo’ se ‘exprimir idéias’ e se provocar na
mente daquele ou daqueles que o percebem uma atitude interpretativa” (JOLY, 1999, p. 29). Deste modo,
podemos inferir que o mundo que nos cerca está repleto de signos, não excluso, os jogos digitais também se
tornam, ressignificam e criam signos que nos são apresentados através de suas imagens – retornamos aqui à
supracitada conceituação de Santaella (2006) e Joly (1999) de “imagem”, que exprime a multifacetada e
complexa ideia que o conceito pode criar, reiteramos aqui nossa compreensão da “imagem” dos jogos
digitais, não somente como o estímulo visual criado pelo programa, mas como a utilização do recurso
audiovisual consoante à narrativa específica.
Isto posto, concordamos com Joly, quando afirma que “abordar ou estudar certos fenômenos em seu
aspecto semiótico é considerar seu modo de produção de sentido, ou seja, a maneira como provocam
significações, isto é, interpretações” (JOLY, 1999, p. 29) 8, desta forma, ao analisarmos historicamente Call of
Duty (significante) acreditamos ser necessário entende-lo como uma plataforma de mídia que comunica suas
ideias (significado) através das interpretações criadas acerca da Segunda Guerra Mundial (objeto).
Socialmente temos funções elencadas como importantes, como trabalhar ou estudar;
secundariamente, então, o entretenimento em massa (cinema, artes visuais, jogos, música), teria por
finalidade, ser uma espécie de distração às pessoas, uma forma de você se desligar do mundo que importa
(trabalho, estudos), e se conectar (por um breve período de tempo) a um mundo onde essas preocupações
“necessárias” e “reais” não interferem, logicamente, nossa conexão é temporária e cedo ou tarde voltamos
para o “mundo real”. Esta fuga da realidade é comumente vista como prejudicial ao jogador e a sociedade,
pois uma pessoa que vive no “mundo dos jogos” não aplica suas habilidades (físicas ou mentais) no “mundo
real”, pois encontraria-se “inerte” na frente de um console ou computador (MCGONIGAL, p. 12-21).
Para a designer de jogos digitais e escritora Jane McGonigal a “fuga” para o mundo virtual, está longe
de ter sentido negativo. McGonigal entende que a “fuga” voluntária de bilhões de pessoas ao mundo dos
jogos digitais, não é uma quebra na sociedade, mas uma nova forma de organização e interação entre as
pessoas, para McGonigal, “o jogo é o oposto emocional direto da depressão” e uma nova maneira de entender
a palavra trabalho, pois aos jogarmos, não estamos reduzindo ao nulo nossa atividade física e mental, para
nos “conectarmos” ao jogo, outrossim, estamos alocando nossas habilidades cognitivas e motoras para vencer
os obstáculos impostos a nós pelos jogos (MCGONIGAL, 2012, p. 36-39).
Pelo trabalho de McGonigal é possível obtermos uma definição do que são jogos, principalmente
jogos digitais, pois para ela, apesar da diversidade de temas, gêneros e complexidade tecnológica, os jogos
“compartilham quatro características que os definem” (MCGONIGAL, 2012, p.30), as quais são:
A meta é o resultado específico que os jogadores vão trabalhar para conseguir [...]
a meta propicia um senso de objetivo. As regras impõem limitações em como os
jogadores podem atingir as metas[...] elas liberam a criatividade e estimulam o
pensamento estratégico. O sistema de feedback diz aos jogadores o quão perto
eles estão de atingir a meta [...] O feedback em tempo real serve como uma
promessa para os jogadores de que a meta é definitivamente alcançável, além de
fornecer motivação para continuar jogando. Finalmente, a participação
8
Grifos do autor.
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voluntária exige que cada um dos jogadores aceite, consciente e voluntariamente,
a meta, as regras e o feedback. (MCGONIGAL, 2012, p.30-31)9
A concepção acerca das características definidoras dos jogos, por McGonigal, se mostra fundamental
para o nosso entendimento de o que são os jogos digitais, porém, algo que para ela é simplesmente “um
esforço para consolidar” os quatro pilares conceituais dos jogos (meta, regras, sistema de feedback e
participação voluntária) (MCGONIGAL, 2012, p.31), para nós é, também, um dos principais elementos dos
jogos, que não deve ser deixado de lado, ou elencado como uma força de auxílio nos jogos, mas, deve ser
inserido como um dos conceitos fundamentais dos jogos digitais, esse elemento é a jogabilidade.
O conceito de jogabilidade, é uma tradução e transfiguração do conceito em inglês, gameplay10.
The gameplay is the component of computer games that is found in no other art
form: interactivity. A game’s gameplay is the degree and nature of the interactivity
that the game includes, i.e., how players are able to interact with the game-world
and how that game-world reacts to the choices players make. (ROUSE, 2005, p.
XX)11
Logo, através de Rouse, podemos compreender como os elementos audiovisuais dos jogos trabalham
para que seja criada uma experiência diferente, inovadora e interativa aos jogadores, desta forma, a
jogabilidade é um dos principais elementos a serem levados em consideração, pois é a forma como o jogador
“vive” no mundo dos jogos, é a maneira como este utiliza os recursos audiovisuais dos jogos para se inserir e
interagir na narrativa.
Comparando as ideias de McGonigal e Rouse, podemos elencar como características fundamentais
dos jogos: metas (objetivos), regras (que gerem o mundo em que o jogador se insere), sistema de feedback
(conhecimento de para onde se deve ir no jogo, e o quão perto da meta você está), participação voluntária
(compreender e aceitar as demais características) e jogabilidade (forma como o jogador interage com o
mundo do jogo digital). Desta forma definimos o que os jogos são em si, mas nos carece compreender qual
sua função social para nós.
Conforme citado acima, os jogos comumente são observados como formas de fuga do indivíduo do
mundo “real” (essa fuga pode ser encarada positivamente ou negativamente), o que demonstra que o jogo
(principalmente o jogo digital) é visto como algo separado do “mundo real”, e se é separado, o é, por não
estar ligado a nós e, dessa forma, não ser parte de nossa cultura, ideia que para Huizinga pareceria
inconcebível.
Antes de discutirmos as ideias de Huizinga, devemos apresentar uma questão que é salientada pelo
tradutor de Huizinga que na língua portuguesa os conceitos de jogar e brincar são representados de forma
separada, enquanto em outras línguas estes conceitos são abarcados por uma única palavra como por
exemplo: to play (no inglês) e spielen (no alemão) (HUIZINGA, 2010, p.3). Partindo deste pressuposto,
compreendemos que a forma como nossa sociedade vê os jogos, pode ser diferente da forma que as
sociedades com matriz linguística alemã ou inglesa vê, a priori pela forma como é representada
linguisticamente.
Para Huizinga, o jogo é uma atividade universal em nosso planeta, que está presente não só para os
seres humanos, mas também para os animais (HUIZINGA, 2010, p.3). Huizinga afirma que nas diversas
sociedades existentes no mundo “É possível negar [...] a justiça, a beleza, a verdade, o bem, Deus. É possível
negar-se a seriedade, mas não o jogo” (HUIZINGA, 2010, p. 6), assim, Huizinga universaliza o jogo entre
sociedades humanas, as quais, apesar de suas diferenças estruturais foram capazes de criar jogos. Através de
9Grifos
do autor
Conceito que traduzimos como jogabilidade.
11 “A jogabilidade é o componente de jogos de computador que não é encontrado em nenhuma outra forma de arte: interatividade. A
jogabilidade de um jogo é o grau e a natureza da interatividade que o jogo inclui, i.e., como os jogadores são capazes de interagir com o
mundo-do-jogo e como este mundo-do-jogo reage as escolhas que os jogadores fazem.” [Tradução livre]
10
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seu discurso, Huizinga levanta sua tese de que o jogo, não é um resultado ou uma ação, cultural ou social,
mas que ele, o jogo, é antecessor à própria sociedade (HUIZINGA, 2010, p. 3-30), fator que revela a
importância dos jogos como atividade significante da humanidade.
Apesar de criada para o entretenimento e o grande mercado, a análise sobre a narrativa construída
sobre os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, na franquia Call of Duty12, torna-se importante, visto
que, “Pode-se dizer que há historicidade em toda narrativa, mesmo a ficcional, pois ela parte sempre de um
ponto do real” (FRANCISCO, 2011, p.20).
A narrativa, então, é um dos meios pelo qual, os criadores dos jogos, inserem o jogador no “mundo
do jogo” e comunicam-se com ele. Jogos que utilizam temas históricos, costumam situar-se no limiar entre a
narrativa ficcional e a narrativa histórica, fato que não interfere na análise histórica sobre eles, pois:
A narrativa histórica é uma ficção e interpretação no sentido de que a partir do
momento em que o fato é narrado, seja ele um documento, ou um trabalho
especializado, a narrativa passa por um processo de seleção por parte de quem
conta e por parte de quem ouve. De maneira similar às efetuadas nas narrativas
ficcionais. (FRANCISCO, 2011, p.21)
Desta forma, a narrativa deve ser vista como uma expressão e representação criada para e pelo jogo,
que assim como a narrativa histórica, reflete não a verdade sobre os fatos (algo que nem mesmo a História
deve objetivar), mas, um ponto de vista.
Para melhor analisarmos os jogos digitais como elementos de comunicação de massa, temos de
inseri-los em um mundo capitalista globalizado, e recordar, que a esmagadora maioria de seus produtos é
destinado ao mercado consumidor.
Os jogos digitais são moldados pelo mundo que os cerca, tornando-se reflexos da sociedade que os
produziu, logo, discursos (explícitos ou implícitos) serão a ele atribuídos e por ele assumidos. Portanto,
analisar um jogo digital é também analisar a sociedade que o construiu e para isso, devemos compreender
como as representações atuam no mundo social, que conforme Chartier:
As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a
universalização de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses dos grupos que as forjam [...] as percepções do social não são de
forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais,
escolares, políticas) [...] (CHARTIER, 1990, p. 17 apud VARTULI; SIMAN, p. 4)
Assim, teremos de entender cada jogo digital como uma representação de um contexto histórico,
social e cultural, pois conforme Francisco a “Realidade exige presença, e pensando assim, somente o aqui e
agora seria real, pois ele é verificado empiricamente. O trabalho com o passado é sempre um exercício de
representação. (FRANCISCO, 2011, p.23)”. Essa representação, intencionalmente ou não, acabará por
ofuscar ou extrapolar certos aspectos e conceitos que seu discurso legitima ou condena. O conteúdo
interativo proposto para seu público, então, não se trata de uma massa neutra sem intencionalidades, mas
um material que tem uma carga ideológica.
Buscamos, portanto, compreender de que forma a Segunda Guerra Mundial e as forças armadas que
estavam em conflito são representadas nos FPS games da franquia Call of Duty, buscamos, também como as
características narrativas (tanto histórica quanto de gameplay) e os recursos audiovisuais são utilizados para
expressar e reforçar certas representações e ideias.
Para esta pesquisa, utilizamos como fonte, exclusivamente, FPS games da franquia Call of Duty, uma
das maiores franquias de jogos das últimas décadas. A escolha da franquia de Call of Duty, se deu, não
simplesmente pelo fato de os três jogos compartilharem a temática de Segunda Guerra Mundial, mas, por
12
O nome do jogo pode ser traduzido como: “Chamado para o Dever” ou “Chamado do Dever”
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possuírem uma estrutura narrativa similar (tratam das campanhas militares dos Estados Unidos da América,
do Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte e da União das Repúblicas Socialistas Soviética) 13.
A franquia lançou ao mercado mais de vinte títulos de jogos digitais, destes, dez utilizam o tema da
Segunda Guerra Mundial como material para sua narrativa, sendo que escolhemos como material para a
presente análise os seguintes jogos: Call of Duty (ACTIVISION, 2003), Call of Duty 2 (ACTIVISION, 2005),
Call of Duty 3 (ACTIVISION, 2006).
Os jogos Call of Duty (ACTIVISION, 2003) e Call of Duty 2 (ACTIVISION, 2005) são desenvolvidos
pela empresa Infinity Ward, enquanto o jogo Call of Duty 3 foi desenvolvido pela Treyarch, porém, apesar
de serem desenvolvidos por estes estúdios é a empresa Activision Publishing, Inc. que é dona da “IP”
(Intellectual Property)14, dos direitos autorais, de Call of Duty e também distribuidora do produto. O jogos
Call of Duty (ACTIVISION, 2003) foi um exclusivo de PC, enquanto Call of Duty 2 (ACTIVISION, 2005) e
Call of Duty 3 (ACTIVISION, 2006) foram lançados ao mercado em multi-plataformas: computador e XBOX
360 no primeiro caso; e no segundo caso Play Station 2 e 3, XBOX 360 e One, (KALOR, 2017).
Embora o mercado de jogos digitais, não seja exclusivo da sociedade norte-americana, grande parte
de sua produção é criada para e pelos Estados Unidos da América. Sendo os Estados Unidos um dos maiores
consumidores de jogos digitais e um dos principais berços das grandes produtoras de jogos, é natural que a
maioria dos jogos digitais, utilize signos e objetos, que ao serem significados e resinificados, sejam
compreensíveis ao receptor, logo, as construções simbólicas dos jogos digitais, tendem a exprimir ideias e
concepções que estejam inerentes a sociedade e ideário coletivo norte-americano. Dessa maneira, ao
trabalharmos com jogos digitais, principalmente aqueles que têm como tema principal a guerra, devemos
levar em conta o forte militarismo e belicismo presente na cultura norte-americana.
Assim, ao trabalharmos com os três primeiros títulos da franquia de jogos digitais Call of Duty – Call
of Duty (2003); Call of Duty 2 (2005) e Call of Duty 3 (2006)- entramos em contato com uma representação
da Segunda Guerra Mundial e das forças em combate, que se dá a partir de estruturas simbólicas préestabelecidas, e embora tais representações, alcancem o caráter de “reais” e “históricas”, sua representação
é resultado da cultura e da visão de mundo de seus produtores, logo, a guerra significada na franquia, é uma
das possíveis representações da guerra, sendo impossível afirmarmos se é verdadeira ou falsa.
Mesmo que o tema principal dos três títulos da franquia Call of Duty seja a Segunda Guerra
Mundial, um dos conflitos mais violentos na história da humanidade, a violência representada na franquia,
não aborda temas como o sofrimento (físico e psicológico) dos soldados, nem apresenta a violência causada
pelos tiros e explosões, logo, a violência no jogo é mais simbólica do que “real” e se mostra de forma
suavizada e romantizada.
O principal símbolo estabelecido sob a franquia é a noção do esforço coletivo de guerra, em
detrimento do individualismo (que era comumente representado nos jogos da época). Tal exaltação da
coletividade se dá em duas características narrativas.
Na primeira característica narrativa, é de fácil percepção que o personagem do jogador, em
pouquíssimas ocasiões se encontra sozinho, o mesmo, sempre dispõe de seus aliados e companheiros para
avançar contra as posições inimigas. Embora a maioria das ações “heroicas” apresentadas no jogo, fique a
cargo do personagem controlado pelo jogador, este, não se apresenta como o personagem “principal” da
narrativa, sendo apenas um participante que ganhou destaque.
A segunda característica narrativa de Call of Duty, é a coletivização da representação do esforço de
guerra em uma esfera macro. Assim, a franquia se distinguirá dos demais jogos digitais que utilizavam a
Segunda Guerra como objeto, por não apresentar apenas o ponto de vista de um personagem, mas de
diversos personagens que lutaram em diferentes contextos da guerra. O principal símbolo que será criado
sobre Call of Duty (2003) será a representação da campanha soviética, que se mostra como uma quebra
paradigmática nas narrativas construídas pelos meios de comunicação de massa norte-americanos sobre os
russos/comunistas.
13
14
No terceiro título, exclusivamente, temos a representação das ações dos exércitos polonês e canadenses na franquia.
Traduzido literalmente, “Propriedade Intelectual”.
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Ao observarmos o desenvolvimento da franquia, analisando seus três primeiros jogos, podemos
perceber como internamente os símbolos construídos pelo primeiro título são paulatinamente questionados
e modificados. O maior exemplo que podemos comparar são as diferenças estruturais que podem ser
observadas ao compararmos os dois primeiros títulos da franquia ao terceiro.
Em Call of Duty e Call of Duty 2, existe uma tentativa de se humanizar e personificar a guerra e os
personagens digitais, tal construção dá-se, pela apresentação de documentos pessoais (fotografias,
“troféus de guerra”, cartas) dos personagens os quais o jogador controlará; Em Call of Duty 3, a
humanização do conflito se dá a partir da criação e do desenvolvimento da história e do caráter dos
personagens “secundários”, que interagem com os personagens “principais”. A individuação dos
personagens pertencentes à narrativa desconstrói o senso de coletividade evocado desde o primeiro título,
exacerbando assim, uma individualização que se mostra crescente na franquia, bem como na sociedade que a
significa.
Outro elemento que se modificará no decorrer da produção da franquia será a representação da
pluralidade e magnitude do esforço de guerra empregado pelos Aliados para a derrota do Eixo. Enquanto que
no primeiro título da franquia, podemos claramente perceber que o esforço de guerra russo é representado
como essencial para a vitória Aliada sobre a Alemanha (sendo os soviéticos a dominarem Berlim). No
decorrer da franquia podemos perceber como a representação do esforço de guerra dos demais Aliados
(principalmente os soviéticos) paulatinamente se arrefece em detrimento da demonstração da bravura e
poderio representados pela ação das forças armadas norte-americanas. O ponto culminante da representação
da importância dos Estados Unidos na guerra, se dá no terceiro título, no qual, as ações das demais forças
armadas (francesas, canadenses, britânicas, polonesas), é suplantada pela norte-americana, que participa das
maiores batalhas, e deve e se mostra como a perdição do exército alemão.
Os jogos digitais (significantes), comumente utilizam temas (objetos) comuns à convivência e
história da sociedade que os produz, para desta forma criar uma narrativa que não simplesmente é a sua
visão sobre o objeto, mas é a ressignificação da visão social sobre o objeto (significado). Assim, devemos ler a
franquia Call of Duty, como a construção de uma sociedade (ou grupo que partilha dos mesmos referentes)
que, na relação entre o presente (a sociedade que o produz) e o passado (Segunda Guerra Mundial) busca não
o questionamento sobre seu objeto, porém, busca, através de seu objeto e da sua significação e
ressignificação a consolidação de suas “verdades” históricas, que por si, dão sentido e base a sua visão sobre
si mesma.
JOGOS DIGITAIS
CALL OF DUTY 2. Produção Infinity Ward Inc. Santa Monica: Activision Publishing Inc., 2005.
CALL OF DUTY 3. Produção Treyarch. Santa Monica: Activision Publishing Inc., 2006.
CALL OF DUTY. Produção: Infinity Ward Inc. Santa Monica: Activision Publishing Inc., 2003.
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O processo de emancipação de São Miguel das Missões na década de 1980:
o patrimônio em disputa
Sandi Mumbach1
Resumo: Neste trabalho apresentamos as principais problemáticas e considerações desenvolvidas em nossa
dissertação de mestrado, defendida recentemente pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Santa Maria. A mesma integrou a Linha de Pesquisa “Memória e Patrimônio” e
contou com auxílio de bolsa CAPES/DS. Nela, buscamos compreender como o patrimônio histórico do
período reducional foi ativado e utilizado na composição de discursos, atendendo a interesses de
determinados grupos políticos em São Miguel das Missões e Santo Ângelo, na década de 1980. Para isto,
utilizamos os periódicos Tribuna Regional e Jornal das Missões, ambos de Santo Ângelo, bem como o
processo emancipatório, presente na Assembleia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul. As décadas de
1970 e 1980 foram marcadas por um novo olhar ao passado da região, quando lideranças regionais buscaram
afirmar os vínculos identitários com o passado do território. Neste processo, o sítio arqueológico de São
Miguel Arcanjo ganhou destaque pelas edificações que abriga, tornando-se um símbolo na construção da
memória regional. Mas também, tornou-se instrumento de barganha de grupos políticos, que estavam
interessados no desenvolvimento econômico regional através do turismo. Constatou-se que o patrimônio
histórico de São Miguel das Missões despertou o interesse das lideranças de Santo Ângelo no momento em
que foi vislumbrado como uma possibilidade ao desenvolvimento turístico e econômico. A partir disso foi
ativado, utilizado e negociado nos processos discursivos dos grupos políticos, que acreditavam que o turismo,
traria o almejado desenvolvimento econômico local. Neste processo, os periódicos foram instrumentos
essenciais para a produção e reprodução dos discursos dos grupos políticos, bem como de interlocução destes
com a comunidade. Neles o patrimônio era retratado pelo viés de cada grupo e conforme a estes convinha.
No embate entre os dois grupos que polarizavam o cenário político de Santo Ângelo, expressos nas páginas
dos periódicos, o patrimônio servia como ferramenta de disputa ao ser considerado bem ou mal
administrado por parte dos gestores públicos. Em São Miguel das Missões, da mesma forma, o patrimônio
histórico edificado foi utilizado como justificativa para a emancipação municipal, onde se acreditou também,
que este traria desenvolvimento ao lugar. Evidencia-se um intenso processo de negociação dos grupos com
referenciais do passado, produzindo seleções, apropriações e esquecimentos, o que acabou invisibilizando
determinados grupos na memória regional, demonstrando que o patrimônio histórico constitui-se em um
campo de disputas entre os grupos sociais.
Palavras-chave: Patrimônio histórico; memória; grupos políticos; São Miguel das Missões.
INTRODUÇÃO
São Miguel das Missões é um município integrante da região das Missões 2, localizada na região
noroeste do estado do Rio Grande do Sul. O mesmo abriga em seu território os remanescentes arqueológicos
da antiga redução de São Miguel Arcanjo, detentor do título de Patrimônio Cultural da Humanidade pela
UNESCO, desde o ano de 1983, sendo o único patrimônio cultural da humanidade do Sul do Brasil. Desta
forma, constitui-se como atração principal no cenário turístico da região, recebendo milhares de turistas
anualmente.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, integrante da linha de Pesquisa Memória e Patrimônio, Mestre em
História pelo mesmo programa. Graduada em História Licenciatura e Bacharelado pela UFSM (2015), sandimumbach@gmail.com.
2 Utilizamos o termo região das Missões para designar uma área geográfica localizada na região noroeste do estado do Rio Grande do
Sul, na qual encontram-se remanescentes arqueológicos correspondentes ao segundo ciclo reducional jesuítico-guarani no estado.
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Sua história está diretamente ligada à redução de São Miguel Arcanjo, a qual fez parte da Província
Jesuítica do Paraguai, nos séculos XVII e XVIII. A desagregação do projeto reducional ocorreu no final do
século XVIII, devido a rearranjos e acordos entre as coroas ibéricas e suas colônias, bem como à delineação
das fronteiras dos novos estados nacionais que surgiam no século XIX. As sete reduções da segunda fase,
localizadas à margem esquerda do rio Uruguai ficaram conhecidas como Sete Povos das Missões, e foram
consecutivamente destruídas, tanto por conflitos militares quanto pelos novos povoadores da região. Poucos
vestígios restaram do período missioneiro no estado do Rio Grande do Sul. Em São Miguel das Missões
encontram-se a maior parte deles, especialmente o mais famoso, a fachada da antiga igreja da redução.
Este trabalho é fruto de reflexões desenvolvidas na dissertação de mestrado, defendida no ao de 2018
pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, e que integrou a
linha de pesquisa Memória e Patrimônio. Em nossa dissertação de mestrado focamos o olhar sobre a década
de 1980 em São Miguel das Missões, período em que o Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo foi incluso
na lista de patrimônios da Humanidade da UNESCO, e também, período em que lideranças da comunidade
mobilizaram-se na busca pela emancipação político-administrativa deste, que constituía-se como um distrito
de Santo Ângelo.
Neste processo, analisado ao longo da dissertação, e que discorreremos de maneira rápida neste
artigo, o patrimônio histórico do período reducional, contido no território do município foi ativado3 de
diversas maneiras e com diversas finalidades, produzindo ressignificações e apropriações. Portanto, o
objetivo foi identificar como o patrimônio histórico de São Miguel das Missões foi utilizado por suas
lideranças intelectuais e políticas no processo de emancipação político-administrativa, atentando para os
interesses envolvidos aí e os discursos produzidos sobre o passado e o patrimônio histórico edificado.
Utilizamos como fontes históricas para a construção do trabalho o jornal “Tribuna Regional” e o
“Jornal das Missões”, ambos do município de Santo Ângelo, bem como documentos oficiais contidos no
Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Visto que, no período delimitado por
este estudo, as notícias referentes a São Miguel das Missões eram veiculadas nos periódicos de Santo Ângelo,
fez-se uso dos mesmos que fornecem uma série de informações que permitiram compreender os discursos
produzidos entorno do passado e dos patrimônios históricos pelos grupos políticos locais. Os documentos
oficiais, por sua vez, explicitam a ativação e utilização destes mesmos elementos no processo
emancipacionista pelas lideranças locais de São Miguel das Missões.
Do abandono e depredação à patrimônio da humanidade, em meio século, o sítio arqueológico de São
Miguel Arcanjo e o município que surgiu em seu entorno, explicitam as contradições dos acionamentos de
elementos do passado na região das Missões do estado do Rio Grande do Sul. Sua trajetória de preservação
acompanha a evolução do conceito de patrimônio e das instituições de preservação em nossa sociedade. E
mais do que isso, as intenções em sua preservação explicitam que a salvaguarda de elementos do passado se
faz por questões ideológicas e atendendo a interesses e discursos de poder.
No ano de 1978 foi criado o espetáculo “Som e Luz” em São Miguel das Missões, conferindo novas
dimensões turísticas ao lugar. Nesse mesmo ano teve início o processo de emancipação políticoadministrativa do lugar, com a mobilização de lideranças locais que, dispostas a concretizar seus anseios,
encaminharam toda a documentação necessária, arcando financeiramente com os custos desta. O processo
teve andamento até o ano de 1982, tendo sido neste ano arquivado, sem motivos explícitos, provavelmente
por barreiras burocráticas impostas pela legislação do período, ou ainda por disputas e interesses locais
desfavoráveis a esta. Em 1985, encabeçado por novas lideranças locais, ele foi reaberto e culminou na
emancipação político-administrativa de São Miguel das Missões em 1988, o que, conforme Ana Lúcia Goelzer
Meira (2007), marcou muitas mudanças, principalmente com a criação de um plano diretor da cidade que
possibilitou organizar e orientar o desenvolvimento urbano atendendo aos cuidados que necessitava o sítio
arqueológico.
Coube à Santo Ângelo criar novos artifícios de rememoração, que atraíssem os turistas e fizessem a
população local lembrar o seu passado “missioneiro”. Esse passado é frequentemente ativado e
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Conceito abordado por Llorenç Prats (1997).
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constantemente comemorado em Santo Ângelo, cuja população orgulha-se em ressaltar que sua catedral
católica é uma réplica fiel da igreja da redução de São Miguel Arcanjo. As ativações de elementos do passado,
desenvolvidas na região das Missões do estado do Rio Grande do Sul, constituem-se em um processo
complexo e contraditório, implicam em usos do passado, ressignificações, negociações e também
esquecimentos, que se não problematizados, acabam por naturalizar desigualdades.
“TRIBUNA REGIONAL” E “JORNAL DAS MISSÕES”: DISCURSOS CONVERGENTES E
DIVERGENTES
Os Jornais “Tribuna Regional4” e “Jornal das Missões5”, ambos do município de Santo Ângelo nos
permitem fazer uma ampla análise do contexto político e social da década de 1980 na região das Missões. A
análise de ambos os periódicos nos permite perceber os aspectos sociais, econômicos e culturais do período,
mas de maneira ainda mais profícua, é possível perceber a polarização política no cenário do município, e
como esta acabou se reproduzindo no distrito de São Miguel, que também nascia como município.
Analisamos ambos os periódicos, compreendendo a importância da utilização destes como fonte
primaria à construção do conhecimento histórico, tendo em vista que são construídos por indivíduos e
grupos, e carregam, consigo, os discursos por estes defendidos.
[...] A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por entender-se a
imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses na
vida social; nega-se pois, aqui aquelas perspectivas que a tomam como mero
“veículo” de informações; transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível
isolado da realidade político-social na qual se insere. (CAPELATO apud LUCA,
2008, p.118).
A análise dos periódicos foi direcionada especialmente aos anos de 1983 e 1988, o primeiro recorte,
ano em que São Miguel foi incluso na lista dos patrimônios da Humanidade da UNESCO, o segundo recorte,
ano em que São Miguel tornou-se município. Na análise das publicações destes dois anos buscamos
compreender o lugar do patrimônio histórico nos discursos produzidos pelos grupos políticos locais.
Santo Ângelo, assim como os demais municípios da região das Missões, vivenciou um período de crise
econômica e desfalques em seu setor agrícola nas décadas de 1970 e 1980. Com a intensificação dos eventos
de valoração do patrimônio arqueológico, da antiga redução de São Miguel Arcanjo, suas lideranças políticas
e econômicas visualizaram no patrimônio histórico do distrito a grande alternativa ao desenvolvimento
econômico do município.
Durante todo o ano de 1983 a comunidade santo-angelense aguardou com expectativa a inclusão de
São Miguel na lista dos patrimônios da humanidade da UNESCO. Diversos eventos e festividades foram
programados em Santo Ângelo, aguardando a declaração. Lideranças políticas e empresariais aproveitavam a
euforia regional, para projetarem investimentos no setor turístico e incentivar a criação de toda a
infraestrutura necessária para receber os milhares de turistas esperados. O clima na cidade era de euforia e
grande aposta no setor turístico (Tribuna Regional, 15 dez. 1983) 6.
4 Fundado em 5 de julho 1967, com periodicidade semanal, foi “Criado sob a liderança de Luiz Valdir Andres, tendo como artífices
diretos Cláudio Wilmar Schoroeder, Celso Bernardi e Carlos Alberto Bencke. Quatro jovens acadêmicos que a partir de então, passam a
escrever a história de Santo Ângelo, fazendo um contraponto saudável e democrático aos outros jornais da época, através das páginas de
Tribuna”. (INSTITUCIONAL. Jornal Tribuna Regional)4.
5Entrou em circulação em 15 de junho de 1983 entrou em circulação em Santo Ângelo 5. O grupo adquiriu também, no início da década de
1980, a emissora de rádio Santo Ângelo, que havia sido fundada na cidade na década de 1940. “Os anseios dos brasileiros por liberdade
de expressão e retorno à democracia era o sentimento que mobilizava o país no início dos anos 80. Em Santo Ângelo, os
empreendedores Marcelino Debacco e Adroaldo Mousquer Loureiro sentiam necessidade de alternativa nos meios de comunicação e em
abril de 1983 fundaram a gráfica São Miguel” (INSTUITUCIONAL: História e linha editorial. Jornal das Missões)5.
6 SÃO MIGUEL Patrimônio da Humanidade: Já influi na economia de Santo Ângelo. Tribuna Regional, Santo Ângelo 15 dez. 1983.
Caderno especial.
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O título de patrimônio da humanidade concretizado em dezembro de 1983 ao sítio arqueológico
localizado no distrito de São Miguel, fez o município de Santo Ângelo abrigar o terceiro patrimônio da
humanidade em terras brasileiras, e o primeiro do estado do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, é perceptível
que a este município fosse interessante que São Miguel permanecesse como seu distrito, fato que pode ter
contribuído para esta interrupção do processo emancipatório no ano de 1981. Logo nos primeiros dias, as
notícias já davam conta de expor os reflexos do ocorrido na economia do município, como demonstra a
edição de 15 de dezembro de 1983 do Jornal Tribuna Regional:
O reconhecimento das Ruínas de São Miguel como Patrimônio da Humanidade, já
está tendo reflexos diretos na economia de Santo Ângelo. Acontece que desde a
própria semana em que foi anunciada oficialmente a decisão da UNESCO,
aumentou de maneira significativa o movimento nos hotéis da cidade. Em toda
semana passada e no decorrer desta destacou-se a presença de professores,
pesquisadores e jornalistas provenientes das mais diversas regiões do Rio Grande
do Sul e também de outros estados, que aqui ocorreram em busca de informações e
fotografias sobre história e condições atuais das Ruinas Miguelinas. Infraestruturalmente preparados para esta situação, os empresários do setor fazem um
balanço da realidade (Tribuna Regional, 15 dez. 1983).
O movimento nos hotéis e na cidade era esperado não só para aquele mês, mas também para o ano que
adentrava e os próximos. Santo Ângelo experimentava naquele dezembro um fluxo turístico jamais
vivenciado, e projetava este como a grande possibilidade de desenvolvimento econômico do município.
Emancipar o distrito de São Miguel, não deveria, nesse contexto, fazer parte dos planos de lideranças e
autoridades de Santo Ângelo.
A inserção do município em roteiros turísticos mais amplos era vislumbrada por lideranças de Santo
Ângelo, que projetavam um roteiro turístico integrando os patrimônios do período reducional da Argentina e
do Paraguai, trazendo um fluxo turístico constante às regiões. Um grande roteiro turístico internacional
traria visibilidade à região, concretizando o turismo como a grande saída ao desenvolvimento econômico
regional (Tribuna Regional. 10 dez. 1983) 7.
Mas enquanto nas páginas do jornal Tribuna Regional, durante o ano de 1983, o clima era de euforia e
comemorações sobre a declaração da UNESCO que concretizou-se em dezembro, as páginas do Jornal das
Missões desferiam críticas à maneira como o patrimônio histórico de São Miguel vinha sendo tratado pelas
lideranças de Santo Ângelo, e a maneira como os investimentos no turismo vinham sendo direcionados:
A secretaria municipal de turismo descuidou-se de São Miguel e isso não vem de
agora [...]. Na verdade Santo Ângelo possui hoje uma estrutura suficiente para
assegurar turistas que venham a São Miguel: bons restaurantes, bons hotéis,
algumas boates e bons locais para compras. Assim, os visitantes olhariam o
passado das Missões, mas gastariam alguns tostões na sua capital (Jornal das
Missões, 24 ago. 1983)8.
O Jornal das Missões, apresentava um nítido contraponto ao que vinha sendo veiculado pelo jornal
Tribuna Regional naquele ano. As farpas trocadas no ano de 1983, entre ambos os periódicos, eram apenas o
início de uma longa história de utilização da mídia escrita no jogo político local, no qual o patrimônio
histórico de São Miguel teria um lugar de destaque.
7 Arquivo particular do jornal Tribuna Regional. Prefeito Azeredo acredita em novo fluxo turístico. Tribuna Regional, Ano XVII Santo
Ângelo/RS. 10 dez. 1983.
8 Arquivo particular do Jornal das Missões. Turismo nas missões: um potencial ainda inexplorado. Jornal das Missões, Ano I, Santo
Ângelo/RS. 24 ago. 1983.
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Enquanto São Miguel era publicizada como curiosa e exótica, as lideranças de Santo Ângelo buscavam
apresentá-la como moderna, oferecendo os demais serviços que ao turista pudesse interessar. Neste período,
Santo Ângelo reivindicava o título de Capital Missioneira, indicando a sua vanguarda, em uma região que
voltava seu olhar ao passado colonial.
Cidade de porte médio bem planejada em termos urbanos, a Capital Missioneira
destaca-se também no cenário gaúcho por ter emprestado a serviço o governo,
muitos filhos ilustres. [...] A situação de Santo Ângelo como polo regional está
condicionada à própria história, quando em 12 de agosto de 1707, era fundada pelo
padre Diogo Hase, a Capital dos Sete Povos das Missões. As reminiscências deste
período, de grande importância para a história do Rio Grande do Sul e do Brasil,
encontram-se no distrito de São Miguel, onde as ruinas, das quais a Catedral é a
mais importante, dão o testemunho da luta e da coragem de índios e jesuítas. [...]
(Tribuna Regional, 30 abr. 1983)9.
A justificativa para tal título baseava-se no contexto do período e no desenvolvimento comercial e
industrial de Santo Ângelo, que a destacava no cenário regional. Mas também no passado, ligando o lugar ao
período reducional e, principalmente, por abrigar os remanescentes da igreja da antiga redução de São
Miguel Arcanjo em território de seu distrito. Compreendemos que nesse discurso, permeado de inferências
ao passado e elementos do período em que viviam os sujeitos, buscava-se transmitir sempre uma imagem
positiva de Santo Ângelo, tanto no contexto regional, quanto para sua própria população, procurando elevar
autoestima desta e a relação dos sujeitos com o lugar. O período reducional era invocado como algo positivo,
como um período próspero, a memória que se pretendia consolidar era fruto de uma seleção de elementos
positivos do passado.
O “Jornal das Missões” estampava matérias a respeito do sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo,
buscando evidenciar o descaso que o poder público tinha para com aquele lugar, destacando os problemas na
preservação das edificações, buscando imprimir sua crítica à maneira como o governo municipal de Santo
Ângelo vinha tratando o patrimônio histórico de seu distrito. Em matéria intitulada “Turismo nas Missões,
um potencial ainda inexplorado”10, o jornal traçou um panorama do estado de conservação das edificações do
sítio arqueológico, bem como estabeleceu duras críticas as autoridades responsáveis do município de Santo
Ângelo, que segundo ele “traçam promessas e não as cumprem” (Jornal das Missões. 24 ago. 1983) 11.
O Jornal recriminava ainda, o fato de as lideranças do município de Santo Ângelo não estarem
explorando o imenso potencial turístico do distrito de São Miguel, e de possuir um total despreparo no trato
com o turista. Nesse sentido defendia: “A redenção econômica de Santo Ângelo está no turismo” 12. A matéria
prossegue trazendo também a fala de alguns entrevistados, um deles utiliza a seguinte frase: “A divulgação
das Ruinas é feita mais fora do que na região”, e para isso a matéria apresenta a solução dada pelo mesmo
entrevistado: “Introduzir uma matéria de História das Missões nos currículos escolares, ao seu ver
contribuiria para aproximar a população de suas fontes históricas” 13.
O fascínio das Reduções, com efeito, ainda hoje atrai levas de turistas dos mais
distantes pontos – com predominância do Rio e São Paulo que diariamente
desembarcam no pequeno e pacato distrito de São Miguel, a 56 quilômetros de
Santo Ângelo, a sede. Em resposta defronta-se com uma estrutura turística
9Arquivo particular do jornal Tribuna Regional. SANTO ÂNGELO continua polo regional. Tribuna Regional, Ano XVII, Santo
Ângelo/RS. 29 abr. 1983.
10 Arquivo particular do Jornal das Missões. Turismo nas Missões: um potencial ainda inexplorado. Jornal das Missões, Ano I, Santo
Ângelo/RS. 24 ago. 1983.
11 Arquivo particular do Jornal das Missões. Turismo nas Missões: um potencial ainda inexplorado. Jornal das Missões, Ano I, Santo
Ângelo/RS. 24 ago. 1983.
12 Idem.
13 Idem.
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incipiente. Contenta-se, por força das circunstancias, com o Som e Luz, espetáculo
iniciado em 1978 e hoje o chamariz único que justifica tal afluxo de pessoas. Sem
quaisquer atrações paralelas, as Ruínas de São Miguel, secular capital dos 7 Povos,
contam uma história de abandono, ainda não completamente resgatada, levando-se
em conta seu rico potencial turístico que, entretanto, até o momento não produziu
os frutos práticos desejados. (Jornal das Missões, 24 ago. 1983) 14.
Podemos perceber que as críticas empreendidas pelo “Jornal das Missões” eram de ordem política, o
patrimônio histórico era apenas um vetor entre as relações dos dois grupos políticos. Nesse sentido, se
percebe que o potencial turístico regional era discurso comum a ambos, mas a maneira como o grupo que se
encontrava à frente do governo municipal lidava com ele, tornava-se ferramenta da crítica oposicionista que,
apesar de demonstrar preocupação com a situação do patrimônio histórico, estava mais interessada em
utilizá-lo como instrumento de desmoralização do grupo a que se opunha. Desta forma, o patrimônio
histórico, mais do que um interesse comum a ambos os grupos, torna-se um objeto de barganha no jogo
político, possível de ser utilizado pelos grupos conforme seus interesses.
ALMEJAM UM “RENASCIMENTO”: A EMANCIPAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DE SÃO
MIGUEL DAS MISSÕES
A intensificação dos processos de valoração do patrimônio histórico do período reducional, no distrito
de São Miguel, como também a intensificação do número de visitantes que circulavam no local, e o contínuo
crescimento urbano no em torno do sítio arqueológico, estimularam as lideranças locais a mobilizarem um
movimento em busca da emancipação político-administrativa. Esta mobilização teve início no ano de 1978,
quando iniciou-se o processo burocrático de solicitação da emancipação político-administrativa de São
Miguel em relação à sede, Santo Ângelo 15.
A solicitação de criação do município de São Miguel das Missões, conforme Processo nº1806/78-5 de
29/05/1978 tramitado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, possuía como ementa a
seguinte designação: “Requerem providências de estilo e previstas em lei, no sentido de que seja concedido
diploma legal, para coleta de elementos, visando à criação do município de São Miguel, antiga capital dos
Sete Povos das Missões”. Como origem designava-se Pery Gonçalves de Oliveira16 e outros. Portanto, como se
percebe na descrição do processo, no momento de buscar a autonomia político-administrativa local foi ao
passado reducional que os indivíduos recorreram para justificar tal pretensão.
Nas páginas iniciais do processo são apresentados os motivos para o pedido de emancipação de São
Miguel das Missões. Nestas, através de elementos históricos e culturais locais, os membros da comissão
emancipacionista buscavam justificar a necessidade do desmembramento. Os solicitantes apresentavam a
necessidade do andamento e conclusão do processo para o “ressurgimento da São Miguel”, afirmando que,
com a concretização da emancipação, seria possível retornar ao progresso e desenvolvimento que o lugar já
tivera em outro tempos, remetendo a memória regional que consolidou os elementos do passado
reducional17.
O processo emancipatório iniciou-se no ano de 1978, teve uma pausa de três anos, retornando no ano
de 1981, sendo neste mesmo ano arquivado, sem motivos explícitos expressos na documentação18. No ano de
Idem.
ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das
Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988.
16 Pery Gonçalves de Oliveira era presidente da primeira Comissão Emancipacionista formada em São Miguel das Missões, no ano de
1978, Conforme: ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São
Miguel das Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988.
17 ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das
Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988.
18 No trabalho de dissertação de mestrado trabalhamos de maneira mais atenta ao contexto político da época, bem como ao contexto
social bastante complexo na região naquele período.
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1985, um novo processo foi iniciado, anexando a este a documentação do processo anterior, sendo também, a
comissão emancipacionista composta por novas lideranças. O processo se prolongou até 1988, tendo, neste
ano, atendido a todos os pré-requisitos necessários. Em 29 de abril de 1988, através da Lei Estadual nº
8.584, São Miguel das Missões foi declarado município, passando a gerir-se política e administrativamente.
No ano de 1978, a Assembleia Legislativa solicitou documentos que estavam faltando ao processo, mas
estes só foram fornecidos pela comissão emancipacionista no ano de 1981. Da documentação de 1981 o
processo dá um salto ao ano de 1985, quando uma nova comissão emancipacionista se formou solicitando
um novo projeto de lei para a criação do município, e a anexação do antigo.
A COMISSÃO EMANCIPACIONISTA DO FUTURO MUNICÍPIO DE SÃO
MIGUEL, por seus membros que no fim assinam, pedem vênia para expor e
solicitar o seguinte:
1.- Encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça dessa Egrégia Assembleia
Legislativa, o Processo de Emancipação de São Miguel, desde 29 de maio de 1978;
2.- Passados vários anos não diminuiu o ardente desejo de emancipação, ao
contrário, mais se avoluma a certeza da necessidade dessa providencia, como
imperativo até de ordem internacional, pois, como é público, O MUNDO
PROCLAMOU SÃO MIGUEL COMO UM DOS SEUS MONUMENTOS
CULTURAIS, não faz muito. Esse fato relevantíssimo, PATRIMÔNIO CUTURAL
DA HUMANIDADE, com justiça e merecimento, carregou sobre todos nós a
responsabilidade de responder positivamente a tão nobre e significativo gesto
internacional. Não podemos, de modo algum, permitir que a área historicamente
vinculada à Redução seja comprometida em seu mínimo necessário visando a nossa
Emancipação. Seria extremamente lamentável que outras pretensões
emancipacionistas, ainda que merecidas, viessem a frustrar SÃO MIGUEL das suas
condições mínimas naturais, que a própria história lhe reservou [...] 19.
Percebe-se, no trecho apresentado, a intensa negociação com elementos do passado colonial
empreendida pelas lideranças da comissão emancipacionista. Primeiro, recorre-se ao fato de São Miguel das
Missões abrigar um patrimônio da humanidade em seu território, a emancipação político-administrativa é
apresentada como uma resposta apropriada a tal aclamação. A autonomia do lugar é exposta como sendo
uma consequência “natural”. A história, ou melhor dizendo, a seleção de alguns elementos do passado, era
utilizada para justificar esta alegação.
Para além dos meandros burocráticos de um processo emancipatório, com informações e detalhes
(mapas, acordos, declarações, fotografias), atentamos a maneira como os grupos construíram uma retórica
sobre o passado e como se utilizaram deste, e do patrimônio histórico local, buscando concretizar seus
anseios políticos e econômicos. Transparecem elementos acerca da realidade destes indivíduos, sendo
possível perceber que os mesmos eram pessoas de posses, constituindo um grupo de influência econômica,
sendo, a maioria destes, comerciantes, agropecuaristas, médios e grandes proprietários rurais. Este grupo
buscou, em suas narrativas, justificar a importância da emancipação do lugar, remetendo-se ao passado e ao
patrimônio histórico. Para referirem-se a São Miguel, utilizavam a designação de Capital das Missões, ou
Capital dos Sete Povos. O título, baseado no imaginário popular que edificou São Miguel Arcanjo como a
mais pujante dos Sete Povoados reducionais, buscava fundamentar o argumento da necessidade da
emancipação político-administrativa local, cuja ementa assim designa-se: “Requerem providências de estilo e
previstas em lei, no sentido de que seja concedido diploma legal, para coleta de elementos, visando a criação
19SOLICITA
CREDENCIAMENTO para a emancipação e São Miguel. Processo 4677/85-4, 07/06/1985. Folha 02. IN: ASSEMBLÉIA
Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das Missões. Processo
2258/88-9. 21 de Abril de 1988.
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do município de São Miguel, antiga capital dos Sete Povos das Missões” (ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado
do Rio Grande do Sul. 21 de Abril de 1988)20.
Na visão destes indivíduos, o passado do lugar, por si só, já fornecia elementos suficientes para
embasar a necessidade da autonomia político-administrativa. Um lugar que no imaginário popular, já
ostentou o título de capital dos povoados missioneiros. Tal posto, na visão destes indivíduos, merecia a
autonomia político-administrativa municipal. O emprego do termo “capital das missões” é recorrente em
diversos documentos inclusos no processo emancipacionista, como demonstra o trecho:
ISTO POSTO, REQUEREM, a Vossas Excelências se dignem a conceder-lhe o
Credenciamento e ordenar todas as providências de estilo e previstas em Lei
aplicáveis a matéria, a fim de que tenha lugar a coleta dos elementos precisos, a
oportuna consulta plebiscitária e o DIPLOMA LEGAL que haja por bem proclamar
a existência do MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL, antiga Capital dos Sete Povos
das Missões, tendo como sede a área urbanística que circundam a majestosa
Redução Miguelina (ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul,
vol.2, pag. 179)21.
Tal pretensão era apresentada como consenso na comunidade miguelina 22, e como um anseio, não
apenas dos grupos políticos, conforme menciona:
INVOCAM OS DOUTOS SUPLEMENTOS DE VOSSAS EXCELENCIAS EM FAVOR
DA EMANCIPAÇAO DE SÃO MIGUEL – PATRIMÔNIO CULTURAL DA
HUMANIDADE, por ser uma iniciativa genuína da Comunidade, não se tratando
de interesses meramente políticos (ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio
Grande do Sul, vol. 2, pag. 180)23.
Constatamos que, apesar da aspiração à emancipação municipal ter sido narrada como uma vontade
de toda comunidade local, na realidade não havia unanimidade, pois na consulta plebiscitária constatou-se
que 638 votaram contra a emancipação político-administrativa, enquanto 2.480 votaram a favor da
emancipação, 33 votaram branco, 27 anularam seu voto e 1.110 eleitores não compareceram 24. Portanto, a
pretensão emancipacionista era anseio de grande parte da população, mas estava bem longe de ser um
consenso na comunidade.
As lideranças do distrito, aspirando à autonomia do lugar, embasaram seus discursos no passado e no
patrimônio histórico como se a relação dos indivíduos da comunidade com este fosse consenso. Narraram o
passado ressaltando a grandiosidade e o dinamismo que o lugar possuíra em tempos remotos. O patrimônio
histórico edificado era usado como testemunha deste e, a emancipação político-administrativa, foi posta
como a única saída possível para o “renascimento” do lugar, o qual traria “de volta” a prosperidade e o
progresso do passado, como demonstra o trecho a seguir:
Os Rio-grandenses, signatários desta petição, desejam e aspiram ardentemente que
tenha lugar, ao amparo da Lei e do Direito, o surgimento de um novo município no
cenário rio-grandense, o MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL, formado, que se deseja,
pela área que outrora – constituiu, em parte, os domínios da fabulosa redução de
São Miguel das Missões. É desnecessário assentar maiores informações a respeito
ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das
Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988.
21 Idem.
22 Gentílico de São Miguel das Missões.
23 ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das
Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988.
24 Idem.
20
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da significação dessa redução, por que disto já cuidou suficientemente a história o
“mapa mundi” registra um ponto inconfundível na América do Sul, dentre tantas
outras relevâncias, representado pelas RUINAS DE SÃO MIGUEL, famosas pelo
que representam e pelo que significam aos povos civilizados. Os atuais habitantes
dessa região, inclusive os signatários deste petitório almejam um
renascimento, isto é, reimplantar na já existente planificação urbanística de São
Miguel, as bases da sede do município que se pretende criar, se vierem a contar, o
que esperam, com o beneplácito de Vossas Excelências (ASSEMBLÉIA Legislativa
do Estado do Rio Grande do Sul. pag. 64, Grifo nosso) 25.
Através da ativação de elementos do passado, da história e dos patrimônios históricos, construiu-se
um discurso onde estes, selecionados e ressignificados, dariam legitimidade à criação do novo município.
Processo esse que era apresentado como natural, tendo em vista sua trajetória apresentada como gloriosa.
Esta forma de compor o discurso, apelativo ao desmembramento, mascarou as disputas entre os grupos
políticos e os interesses econômicos que estavam por trás da solicitação.
[...] É justo lembrar que São Miguel já existiu com todos os serviços e organizações
anunciados pela história, não sendo, pois, a rigor, um ato de simples e modesta
criação de um município, mas a proclamação de um ressurgimento valoroso e
concreto, que está a merecer o reconhecimento da legislador, a fim de que renasça
no palio da lei, com toda a sua pujança e dinamismo, a comunidade organizada,
agora sob a forma de município, em tudo e por tudo alinhado aos anseios e
diretrizes da Nação Brasileira (ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande
do Sul, pag. 63)26.
Portanto, o processo emancipatório de São Miguel, além de marcar a autonomia política e
administrativa do lugar, implicou também em uma nova relação das lideranças locais com o patrimônio
histórico edificado, pois estes passaram também a gerir, pensar, organizar e produzir significações com o
patrimônio histórico local. As ações culturais e turísticas passaram a ser organizadas pelo poder público
local.
Estes grupos políticos de São Miguel das Missões, que com a emancipação do lugar passaram a
monopolizar os cargos da administração pública local eram formados por sujeitos advindos de diversos
grupos étnicos, nesse sentido, são perceptíveis diversas contradições. Liane Maria Nagel (2001), ao tentar
explicar esse processo de negociação, empreendido pelos sujeitos do lugar, no município de Santo Ângelo,
problematiza algumas contradições deste:
Assim, utilizam-se referências do passado histórico regional, inclusive “arquétipos”
da história, que fixam imagens e discursos o tipo primitivo dos homens que
estiveram presentes na remota formação histórica do Rio Grande do Sul, em lutas
que se fizeram recuar ao avanço das fronteiras, especialmente nas disputas pelo
gado e pela terra na região missioneira. Por outro lado, também se fazem presentes
referências aos imigrantes como construtores e promotores do Desenvolvimento
regional (p.16).
Os descendentes de imigrantes de diversos grupos étnicos, por vezes, incorporam como seu o passado
jesuítico guarani, cujas marcas se imprimem na paisagem do território regional. Em outras vezes, procuram a
25 ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das
Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988.
26 ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das
Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988
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afirmação dos referenciais dos grupos étnicos que integram, buscando consolidar a imagem destes como
pioneiros e responsáveis pelo progresso da região. Nesse sentido, percebe-se que o processo de negociação
que empreende a construção da memória regional, ora valoriza determinado discurso, ora outro. Os
processos de rememoração e esquecimento, que são ativados através da negociação com o passado,
constituem-se em estratégias as quais os grupos recorrem e utilizam quando convém.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos demonstrar que, na década de 1980, a consagração do Sítio Arqueológico de São Miguel
Arcanjo como patrimônio da humanidade pela UNESCO (1983) despertou o interesse de grupos políticos de
Santo Ângelo. O patrimônio histórico edificado foi ativado e utilizado por estes grupos na década de 1980,
que o consideravam a grande saída para o desenvolvimento econômico regional, através do turismo.
Neste processo, os jornais “Tribuna Regional” e “Jornal das Missões” foram instrumentos essenciais
para a produção e reprodução dos discursos dos grupos políticos, bem como de interlocução destes com a
comunidade. Neles o patrimônio era retratado pelo viés de cada grupo e conforme a estes convinham. No
embate entre os dois grupos que polarizavam o cenário político de Santo Ângelo, expressos nas páginas dos
periódicos, o patrimônio servia como ferramenta de disputa ao ser considerado bem ou mal administrado
por parte dos gestores públicos. Também foi possível percebemos através dos documentos oficiais do
processo emancipacionista – mantidos no Memorial da Assembleia Legislativa do estado do Rio Grande do
Sul – os espaços de manifestação e interlocução dos grupos políticos, onde o patrimônio histórico era
constantemente ativado e utilizado como justificativa ao desmembramento.
Ao produzir representações culturais específicas, autodenominando-se missioneiros, os grupos
vincularam seus referenciais ao passado do lugar. A estes grupos sociais que se consolidaram no poder
público dos municípios, interessava buscar o desenvolvimento econômico através do setor turístico. Esse fato
não impediu que, mais tarde, estes mesmos grupos buscassem conexões com os grupos étnicos imigrantes,
evidenciando o uso de elementos do passado e do patrimônio histórico local como elemento de barganha.
Negociar, nesse sentido, torna-se estratégia, permitindo a inserção dos indivíduos em vários contextos.
Constatou-se que, de fato, o patrimônio histórico de São Miguel das Missões despertou o interesse das
lideranças de Santo Ângelo no momento em que foi vislumbrado como uma possibilidade ao
desenvolvimento turístico e econômico. A partir disso foi ativado, utilizado e negociado nos processos
discursivos dos grupos políticos que acreditavam que o turismo em torno destes traria o almejado
desenvolvimento econômico local. Em São Miguel das Missões, da mesma forma, o patrimônio histórico
edificado foi utilizado como justificativa para a emancipação municipal, onde se acreditou também, que este
traria desenvolvimento ao lugar. O período reducional era invocado como um período próspero, e o retorno
dessa prosperidade era usado como justificativa para a emancipação pelos sujeitos políticos envolvidos.
Portanto, o patrimônio histórico de São Miguel das Missões passou por diversos processos de
ativação, apropriação, ressignificação, negociação e principalmente utilização. Os processos de ativação
patrimonial perpassam por procedimentos de negociação entorno de referenciais do passado e do presente.
Nesse sentido, acreditamos que o patrimônio histórico de uma comunidade possa sim ser utilizado como um
recurso ao desenvolvimento regional, como um atrativo turístico, como um elemento de pertença e de
alteridade. Porém, é preciso entender as contradições sociais produzidas neste processo complexo para,
então, desnaturalizá-las.
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Ataque a guarnição de São José do Norte
Santa Giovana Mendes Giordani1
Resumo: O presente trabalho analisa o ataque a Guarnição de São José do Norte na madrugada de 16 de
julho de 1840, relatada em carta de 17 de julho de 1840 por Antônio Soares de Paiva, ao Ministro da Guerra.
Destina-se também a atuação dos informantes do Comandante Antônio Soares de Paiva no referido
confronto. Os agentes de informação destinavam-se a coletar e repassar informações, a seus comandantes,
que eram responsáveis pelas disposições de comando da guarnição. O estudo baseia-se na Coleção Varela do
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, do qual buscamos cuidadosamente fazer o mapeamento das fontes
através de leitura e transcrição, com o objetivo de reunir o máximo de informações possíveis e passiveis de
compreensão, localizando e identificando as informações pertinentes ao estudo. Um destes casos é a
sequência de 14 cartas de Antônio Soares de Paiva, Coronel Comandante da Guarnição de São José do Norte,
na qual dá parte de todos os movimentos de seus informantes a um oficial superior, a maioria destina-se a
Manoel Jorge Rodrigues, e as cartas encontradas seguem de 10 de Julho de 1839 a 17 de Julho de 1840, o
período de um ano, com espaçamento de meses entre as cartas. As cartas demonstram a preocupação do
Coronel Paiva com a obtenção de informações, para melhor proteger a guarnição de São José do Norte.
Justifica-se este trabalho pelo interesse em compreender o processo de coleta e repasse de informações, bem
como as relações de reciprocidade e confiança entre comandante e comandado seguindo o sistema de
hierarquia política da província. Objetivamos compreender os movimentos dos operadores envolvidos no
circuito de comunicação, além de compreender como se deu o embate entre farrapos e imperiais. A intenção
dos farrapos era de um ataque surpresa a cidade de São José do Norte, que estava sob o domínio do Coronel
Comandante da Guarnição, Antônio Soares de Paiva, a mando dos imperiais, com o intuito de dominar São
José do Norte, e a partir deste domínio passar a atacar a cidade de Rio Grande e tomar seu porto marítimo.
As relações de reciprocidade e confiança entre comandante e comandado, segue o sistema de hierarquia
política da província, e desta maneira podemos observar que a confiança dos agentes de informação do
Coronel Paiva, é feita seguindo estes moldes, e por um longo período de tempo as atividades praticadas pelos
informantes foi de grande ajuda, mesmo que tenham sido atacados em São José do Norte. Haviam sido
informados e precavidos por seus informantes de um possível ataque, do qual não conseguiram previamente
se preparar, mas que devido a esses avisos puderam fortificar sua resistência.
O presente trabalho analisa o ataque a Guarnição de São José do Norte na madrugada de 16 de julho
de 1840, relatada em carta de 17 de julho de 1840 por Antônio Soares de Paiva, ao Ministro da Guerra.
Destina-se também a atuação dos informantes do Comandante Antônio Soares de Paiva no referido
confronto. Os agentes de informação destinavam-se a coletar e repassar informações, a seus comandantes,
que eram responsáveis pelas disposições de comando da guarnição. O estudo baseia-se na Coleção Varela do
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
Antes de iniciarmos devemos lembrar que o espaço de estudo será a Província de Rio Grande de São
Pedro, criada em 28 de fevereiro de 1821. Como evento central, temos a Guerra dos Farrapos, sendo ela o
principal conflito armado da província. Onde parte da elite rio-grandense, caudilha, defendendo seus
interesses em 1835 durante a crise regencial no Brasil declara o rompimento com o império do Brasil, e em
1836 declara-se uma república, que durou até 1845.
Dada a sua importância, muito já se escreveu sobre esse conflito. A historiografia abre espaço para os
diferentes vieses inseridos na “Revolução Farroupilha” tanto no termo utilizado quanto nos demais estudos
sobre o período, como por exemplo, o estudo da participação dos escravos na guerra dos farrapos,
principalmente no episódio que contempla a chamada Batalha de Porongos 2, em novembro de 1844.
Graduada em História pela Universidade de Passo Fundo, mestranda em História pelo Programa de Pós Graduação em História da
Universidade de Passo Fundo. Santa_mendes@yahoo.com.br.
2 MENDES, Jeferson. O Barão de Caxias na Guerra contra os Farrapos. Dissertação de Mestrado. Passo Fundo, 2011, pp. 79-83.
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Desta forma, o caso mais interessante que encontramos dentro do período que abrange a Guerra dos
Farrapos, é a sequência de 14 cartas de Antônio Soares de Paiva, Coronel Comandante da Guarnição de São
José do Norte, na qual dá parte de todos os movimentos dos informantes a um oficial superior, “Continuando
a cumprir os meus deveres, ponho na prezença de V. Exa. a original parte que tive do Bombeiro da frente” 3,
neste caso ao Tenente General Comandante em Chefe do Exército Manoel Jorge Rodrigues. Dentre as 14
cartas enviadas por Paiva, a maioria foi destinada a Manoel Jorge Rodrigues, as cartas encontradas seguem
de 10 de Julho de 1839 a 5 de Julho de 1840, o período de um ano, com espaçamento de meses entre as
cartas. No entanto, demonstram a preocupação em empregar agentes de espionagem, para a obtenção de
informações, para proteger a guarnição de São José do Norte.
“Na manhã de 8 do corrente, recolhendo-se hum Bombeiro, que havia mandado até o Estreito à
indagar os movimentos dos rebeldes, obtive as minuciozas noticias, que, por copia, levo a prezença de V.
Exa.: ellas parecem dignas de algum credito, até mesmo pela coherencia que tem as que aparecem vindas
dessa cidade”4. A todo o momento, são empregados informantes para observar o inimigo, eles podem estar
vigiando de longe, tanto quanto podem estar infiltrados no exército inimigo, “sendo huma do Bombeiro que
conservo entre eles”5. Desta maneira, a função dos informantes é considerada de risco, de acordo com o
serviço prestado, não podendo o mesmo ser descoberto pelas forças inimigas.
“Tenho a honra de passar as mãos de V Exa. a copia junta, que neste momento
recebo de nosso Bombeiro deste lado; por ella conhecerá V Exa. O juiso que os
anarchistas fazem do nosso movimento. S. Exa. se dignará diserme o que convém
que eu lhe mande diser para elle lá fazer constar, ou, emfim, o mais que V. Exa.
julgar conveniente”6.
O fragmento acima, além de dar parte do movimento dos inimigos, pede instruções para o
prosseguimento do serviço de bombeamento, como o mesmo deveria proceder de acordo com as informações
dadas (não temos acesso as informações dadas), também traz uma característica única, ao mencionar que
remeteria “cópia da carta”, que havia recebido de um “bombeiro”, desta maneira, podemos aqui afirmar a
existência de cartas escritas pelos informantes, que até então não tínhamos conhecimento. Normalmente as
notícias eram compiladas e passadas para os demais oficiais, pelos comandantes das guarnições e das tropas,
de maneira que as informações eram obtidas de diferentes formas, porém quase sempre repassadas da
mesma forma, por cartas escritas pelos comandantes e não por subalternos, soldados e ou qualquer função
de baixa patente. Contudo, a carta abaixo, demonstra a escrita de um bombeiro do Coronel Paiva:
“Ilmo. Senhor.
Hoje, 21 de Março d 1840.
Participo a V. Sa. que de Mustardas só marchou parte da gente comandados pello
Elias se ce acharão em São Simão e o resto se achavão em Mustardas com o
Mingote e estavão esperando o resto da Cavalhada e gente do Estreito que no dia 19
dá se aVião de achar para marcharem para se reunir com o Canavarro deixando
aqui huma polícia de 30 homens velhos e algumas crianças commandados pello
Gutardo; O Canavarro se acha acampado entre capivari e palmares com quatro
centos e tantos homens e troce com sigo huma purção de carretama com as famílias
que elles vierão trazendo emganadas da laguna que já huma purção dellas [1v] se
tem hido embora para a Laguna dizem por aqui que canavarro temciona dar hum
asalto ahi no Norte, mais porem eu duvido que elle caia nessa; o que eu suponho he
que elle com esse Voato quer ver se assim apanha lá toda acavalhada e gente de
CV-7099
CV-7072
5 CV-7076
6 CV-7097
3
4
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Mustardas e Estreito, pois elle bem necicitado está dessa cavalhada por se achar
muito apé a força do citio de Porto Alegre se acha em movimento eja tem Marchado
para abanda de Capivari; também sefalla que Marchou huma força rebelde do citio
de 800 a 900 homens commandados por Antonio Manoel Agostinho e outros para
hirem atacar a nossa força [2] que vem de São Paulo, que já tinhão sido vistas por
elles rebeldes as nossas partidas dessa força no campo da vacaria e por isso
mandarão aquella gente a toda apreça aver se os podião atacar e estão a espera
deste rezultado para saberem o que handem deliberarem he por hora o quanto
tenho aparticipar a V. Sa. pois não me descuido e estou com toda a cautella
evigilancia de todos os movimentos do Inimigo e de que algum movimento ou
movida pequena ou grande que seja ou logo emediatamente mandarei ou erei
peçoalmente participar a V. Sa. mais com tudo deve estar agora com [2v] com
alguma cautella athe ver o movimento do tal canavarro que julgo o que breve se
saberá.
Do bombeiro do Cel Pa Paiva.
Norte”7.
É claro que de acordo com uma maior quantia de missivas escritas, esses dois casos de relato escrito
pelos informantes é raro, já que, essa tarefa era destinada aos comandantes. Todo esse processo de escrita
seguia a hierarquia militar da província tanto pela redação das correspondências, quanto pelo fato de todos
os comandantes reportarem-se a um oficial superior, a todo o momento os comandantes deveriam reportarse a seus superiores, e esperar respostas, do que deveriam fazer para dar prosseguimento nos seus
movimentos e ações de suas tropas, além de muitas vezes necessitarem de apoio militar, para algum possível
confronto.
“Constando-se por participação do Bombeiro da frente, que acabo de receber com
dacta de hontem, que os rebeldes se reunem em grande Numaro para virem evadir
esta Praça como se manifesta da copia junta; julgo de meu dever comunicallo a V.
Sa., para que se digne reforçar esta Guarnição com a força que puder dispençar,
athe que se manifestem as marchas e tentativas dos mesmos rebeldes” 8.
A preocupação do Coronel Paiva era de um possível ataque a sua guarnição, a carta é destinada então
a Manoel Jorge Rodrigues e ao Coronel Comandante da Guarnição do Rio Grande, Jacinto Pinto de Araújo
Correia, a quem pedia reforço, com a quantia de praças que pudesse dispensar. A última carta que
encontramos do senhor Paiva, do qual emprega informantes para descobrimento do movimento dos inimigos
foi em 5 de julho de 1840, da qual dá parte da movimentação dos farrapos: “Junto achará V. Exa. as duas
partes do Bombeiro da frente e por elas verá a pozição que occupão os rebeldes, e as Invernadas de suas
Cavalhadas”9.
A intenção dos farrapos era de um ataque surpresa a cidade de São José do Norte, da qual como
vimos estava sob o domínio do Coronel Comandante da Guarnição, Antônio Soares de Paiva, a mando dos
imperiais, com o intuito de dominar São José do Norte, e a partir deste domínio passar a atacar a cidade de
Rio Grande e tomar seu porto marítimo.
CV-7100
CV-7110
9 CV-7114
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MAPA II: Cidade de Rio Grande e Vilarejo de São José do Norte
Fonte: FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: Almanak
Laemmert, 1938, p. 172.
O ataque ocorreu na madrugada de 16 de julho de 1840, e foi relatada em carta de 17 de julho de
1840 por Antônio Soares de Paiva, que foi ferido na batalha, ao Ministro da Guerra e feito uma cópia da carta
por Francisco Jozé d’Amorim, Tenente Graduado Servindo de Secretario, (na ausência do secretário), ao
Tenente Manoel Jorge Rodrigues, da qual temos acesso:
“Cópia. Ilmo. e Exmo. Sr. = Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Exa.,
que à huma hora da noite do dia 16 do corrente foi atacada esta Guarnição em
todos os seus pontos pelos rebeldes, em numero de mil a mil e duzentos homens de
todas as armas ao mando de Bento Gonçalves, e Crescencio, conseguindo forçár a
Cortina entre as Batarias nº 2 e 3, e tomar as dittas Battarias, e invadir o centro da
Villa; porém pagárão bém caro o seu arrojo, por quanto soffrerão hum fogo infernál
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da nossa Furilaria, e das quatro batterias, que sempre conservamos, não tirando
vantagem das duas que eles occupárão, pois que apenas a 3ª fêz tres ou quatro tiros
contra a 4ª que occupava-mos, a mesma que lhe respondeu com hum vivo fogo, e
também dirigido que os obrigou a encravar duas Peças, e a não fazérem mais fogo
de Artilharia. A perda das duas Batterias foi devida a impiricia dos officiaes que as
commandávão, a 3ª pela pouca vigiláncia com que estava o Capitão João
Nepomoceno da Silva Portella do Corpo expedicionario d’artilharia, que nella foi
prizioneiro; e a 2ª pela falta de actividade do 1º Tenente Bento João.
No centro da Villa no Quartel do 2º Batalhão, e nas quatro Batterias que guarneciamos não cessou o fogo desde hûa hora ate as nove, ao qual respondia o inimigo
corajosamente, fazendo toda a delligencia por sustentar os pontos que tinha gánho,
ambicionando a possár-se de toda a villa para effectuar o saque que lhes éra
prometido por seus maiores. Havião trez dias que huma forte Tempestade de vento
privava a communicação dêsta Guarnição para a do Rio Grande e vice-versa, e por
isso não era possivel recebermos socorros d’ali com a promptidão que as
circunstancias exigião; com tudo às tres horas da noite chegarão tres Lanchas com
35praças, e às nove [1v] horas da manháá atracarão duas com mais 40, e já se
divizávão, que sahião do Sul outras, que a remos forcejávão por soccorrermos, o
que só poderão conseguir humas à tarde, e outras à noite. Nestas circunstancias
com aquelle piqueno reforço chegado às nove horas como fica ditto me dicidi a
mandár attacár as duas Batterias, que o inimigo possuia, e tivemos a filicidade de
as ganhár com pouca perda nossa, porque o inimigo além de pouca resistencia se
pôz em vergonhoza retirada, na qual foi acossado com metralha, e fuzilariadas
Batterias, de que lhes resultou conciderável perda” 10.
Foi um grande ataque a guarnição de São José do Norte, pelo que podemos observar da carta, as
forças a mando de Bento Gonçalves estavam com um grande efetivo de soldados e a batalha não foi tão
rápida, pois iniciou as 01 da madrugada e se estendeu até as 9 da manhã, com fogo intenso de ambos os
lados. Segundo Tasso Fragoso “S. José do Norte estava provida de uma linha de trincheiras e que havia nessa
linha, a distâncias apropridas, pequenos fortes ou, melhor, posições especiais para a artilharia, e talvez para
flanqueamento, denominado baterias” 11, a tomada do povoado de São José do Norte, segundo Fragoso foi
rápida, perto das duas e meia da madrugada já haviam dominado diversos pontos do povoado, e o inimigo
estava a se esconder. Dessa forma, para que os imperiais saíssem de seus quartéis teriam de incendiar a
praça, o que Bento Gonçalves se opôs a ideia, posto que, para isso teria que fazer vítimas inocentes, dessa
forma pôs-se em retirada, “O inimigo na sua retirada acampou daqui tres Legoas, aonde se conserva ate hoje,
blazonando de voltar com mais força a attacar novamente esta Guarnição”12, o que não ocorreu.
Não houve um contra-ataque por parte dos farrapos, nem mesmo houveram outros combates
grandiosos. Logo após, sucedeu a troca da administração, passando o comando do Exército ao Conde de Rio
Pardo, que dentre os 14 meses de sua administração, que foram de 14 de abril de 1841 a 26 de junho de 1842,
não envolveu-se em combates, “não se praticou nenhuma ação militar importante, nem se alterou a
localização das tropas. Viveu-se na inércia. O chefe não teve nenhum pensamento estratégico ou, se teve,
nunca o revelou”13. Com isso temos segundo Fragoso os únicos feitos das tropas no período de administração
do Conde de Rio Pardo em ataques surpresas foram descritos desta forma:
“Assim, em princípio de novembro de 1841, Francisco Pedro bateu a pequena
guarnição rebelde de S. Gabriel, fazendo 23 prisioneiros e tomando 400 cavalos;
CV-7116
FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1938, p. 173.
12 CV-7116
13 FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1938, p. 202.
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em fins do mesmo mês (a 25), João Propício, no Rinção Bonito, nas costas do
Pequirí, derrota forças rebeldes, matando-lhes 120 homens, fazendo 182
prisioneiros, apossando-se da bagagem, e tomando 800 cavalos; e, em 20 de
janeiro seguinte, o sobredito Francisco Pedro, sendo inesperadamente atacado por
Bento Gonçalves com 300 homens, destroça a êste, o qual deixa em campo 36
mortos com 20 prisioneiros, 200 cavalos e toda a bagagem, ao passo que a fôrça
legal só teve 3 mortos e 7 feridos” 14.
Os feitos dos comandos das tropas de alguns oficiais faziam com que seu prestigio aumentasse cada
vez mais, esse foi o caso do Tenente-coronel Francisco Pedro de Abreu. Em carta de José Maria da Silva
Bitencourt, Brigadeiro Comandante a José Clemente Pereira e ao Conde de Rio Pardo comunica o
desempenho das tropas de Moringue:
V. Ex. Comunica o brilhante feito de armas praticado, em desempenho das ordens
de V. Ex., participadas a esta Secretária de Estado no seu oficio nº 22, por uma
pequena força do Exército Imperial comandada pelo Tenente-coronel Francisco
Pedro de Abreu, no dia 26 de janeiro, junto ao passo do Cordeiro. E o mesmo
Augusto Senhor, apreciando devidamente o distinto valor com que o referido
tenente-coronel e a briosa tropa às suas ordens destroçou completamente em
renhido combate superiores forças comandadas pelo principal chefes dos rebeldes
Bento Gonçalves, há por bem determinar que V. Ex. louve, no seu Imperial Nome, a
todos os oficiais, oficiais inferiores e soldados que tiveram parte em tão distinta
ação, pelo denodo e bravura com que tão assinaladamente souberam coroar de
novos louros as armas imperiais; e por ser de suas magnânimas intenções que não
fiquem sem remuneração os serviços dos beneméritos que se distinguirem por
gloriosos feitos de armas, houve por bem condecorar o bravo Tenente-coronel
Francisco Pedro de Abreu com a insígnia de Oficial da Ordem Imperial do Cruzeiro
e conceder ao Capitão Honorário do Exército Fernando Augusto Maximiliano
Kersting o soldo correspondente ao mesmo posto.
Como podemos observar as operações surpresas empregadas pelos imperais as forças farrapas,
descritas por Fragoso vai de encontro a carta de José Maria da Silva Bitencourt, onde relata os feitos de
Moringue, por mais que aparentemente não tenham exatidão da data do ocorrido. Além da condecoração e
descrição dos feitos de Moringue, há a valorização de todos os envolvido na batalha, sendo eles oficiais de
alta patente, oficiais inferiores e ou soldados, vangloriando a toda a tropa, que não apenas ganhou uma
batalha, mas como se referiu José Maria “destroçou completamente” a tropa comandada por Bento
Gonçalves.
O alto oficialato era composto por: “alferes, tenentes, capitães, tenentes-coronéis, coronéis,
brigadeiros e marechais”15. E quem compunha as forças do exército eram os homens pobres, libertos,
criminosos entre outros, é neste fato que reside a necessidade de valorização dos soldados de baixa patente,
pois havia uma certa dificuldade em recrutar o contingente necessário para o exército, de tal forma que, a
carga do recrutamento recaia sobre os ombros dos comandantes militares.
“A lógica do recrutamento militar refletia muito claramente as hierárquicas estruturas de poder, de
sociabilidade, dos arranjos econômicos, enfim, da estrutura hierárquica da sociedade brasileira até o final do
FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1938, p. 202.
COMISSOLI, Adriano. Espadas e penas: o papel dos comandantes de fronteira nos circuitos de comunicação política da capitania do
Rio Grande de São Pedro (século XIX). In: Postais: Revista do Museu Correio. Brasília: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos,
Departamento de Gestão Cultural, 2014, p. 16.
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Império”16. Com isso, podemos afirmar que havia uma distinção social muito grande entre os que tinham
força de mando militar e político, dos que apenas serviam no exército.
Havia ainda “relações de clientela entre os comandantes militares” 17, relações estas que deixam ainda
mais claro esta distinções sociais. Podemos caracterizar o clientelismo como: “cultura política fundamentada
em relações pessoais e alicerçadas em trocas de favores, protagonizada por algum sujeito que detém o poder
e concede a outrem quaisquer tipos de proteção/auxilio, para receber em troca fidelidade, apoios políticos e
lealdades pessoais”18, buscavam com isso, na maioria das vezes, isenção do serviço militar.
Ainda demonstra que não apenas a valorização destes homens chegava, mas que o soldo se fazia necessária
como recompensa por seu atos de bravura, eram os comandantes responsáveis por manter suas tropas, com
isso os comandados sentiam-se recompensados, e além de servirem nas tropas regulares, serviam ao seu
comandante. Como é observado, esse processo segue o sistema de hierarquia militar da província, onde os
comandados seguem seus comandantes, conforme se sentem protegidos ao seu mando, em todo esse
processo podemos perceber e concluir que a confiança dos informantes a seus comandantes funcionava da
mesma maneira, obviamente também mediante o valor recebido por estes agentes de informação, por
prestarem um serviço de risco a suas vidas.
Desta maneira, a confiança dos informantes do Coronel Antônio Soares de Paiva, é feita seguindo
estes moldes, e por um longo período de tempo as atividades praticadas pelos agentes de informação, foram
de grande ajuda. Por mais que tenham sido atacados em São José do Norte, haviam sido já informados e
precavidos pelos agentes de informação de um possível ataque, do qual não conseguiram previamente se
preparar, mas que devido a esses avisos puderam fortificar sua resistência, e com reforços de Rio Grande,
puderam debelar o conflito, mesmo que, parte disso tenha ocorrido por desistência de Bento Gonçalves.
Este é mais um dos casos em que tivemos a oportunidade de observar a atuação dos agentes de informação
na Guerra dos Farrapos. Quiçá o melhor caso, do qual conseguimos acompanhar as diligencias dos
bombeiros de 10 de Julho de 1839 a 5 de Julho de 1840, ao observarem o entorno do vilarejo, e com isso a
possibilidade de precaverem-se, além da preocupação do comandante Paiva na guarda e manutenção do seu
domínio e comando do vilarejo de São José do Norte.
Referências
CANCIANI, Leonardo; MUGGE, Miquéias H. As Guardas Nacionais e seus comandantes – um ensaio
comparativo: as províncias de Buenos Aires e do Rio Grande do Sul (século XIX). In: MUGGE, Miquéias H.;
COMISSOLI, Adriano. Homens e Armas: recrutamento militar no Brasil – século XIX. São Leopoldo: Oikos,
2011.
COMISSOLI, Adriano. Espadas e penas: o papel dos comandantes de fronteira nos circuitos de comunicação
política da capitania do Rio Grande de São Pedro (século XIX). In: Postais: Revista do Museu Correio.
Brasília: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, Departamento de Gestão Cultural, 2014.
CV-7072
CV-7076
CV-7097
CV-7099
CV-7100
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RIBEIRO, José Iran. "De tão longe para sustentar a honra nacional": Estado e Nação nas trajetórias dos militares do Exército
Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, 2009, p. 7.
17 FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de
Doutorado. Rio de Janeiro, 2007, pp. 170-171.
18 CANCIANI, Leonardo; MUGGE, Miquéias H. As Guardas Nacionais e seus comandantes – um ensaio comparativo: as províncias de
Buenos Aires e do Rio Grande do Sul (século XIX). In: MUGGE, Miquéias H.; COMISSOLI, Adriano. Homens e Armas: recrutamento
militar no Brasil – século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2011, p. 193.
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CV-7116
FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira Sul do
Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, 2007.
FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1938.
MENDES, Jeferson. O Barão de Caxias na Guerra contra os Farrapos. Dissertação de Mestrado. Passo Fundo,
2011.
RIBEIRO, José Iran. "De tão longe para sustentar a honra nacional": Estado e Nação nas trajetórias dos
militares do Exército Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, 2009.
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A imigração numa perspectiva dos direitos fundamentais e os
processos de inserção na sociedade
Silvana de F. M. da Silva1
Resumo: A migração é um fenômeno complexo que envolve de um lado questões político econômicas e de
outro princípios e direitos fundamentais inerentes a pessoa humana. Diante deste cenário, milhares de
pessoas sem perspectivas de vida, devido à pobreza, à falta de condições básicas de subsistência, às
desigualdades, o desemprego, as doenças e as questões religiosas, abandonam suas famílias, seu círculo de
amizades, seus relacionamentos e tudo que construíram em busca de melhores condições de vida. A
imigração é uma realidade vivenciada por vários países e que vem se tornando, a cada dia, mais evidente no
Brasil e em diversos Estados. Tornou-se um fenômeno micro e macro, pelo fato das cidades não estarem
preparadas para acolher este contingente de pessoas que chegam com outra cultura, identidade, história e
perspectiva de vida, e que muitas vezes vai de encontro à realidade local na qual buscam se estabelecer. Nesse
sentido, se faz necessário, uma reflexão sobre a inserção do imigrante na sociedade brasileira, diante dos
desafios enfrentados por eles quando chegam ao país de destino, quais sejam, a dificuldade de obter
documentação que lhes permita trabalhar, o aprendizado da Língua Portuguesa para compreender ou falar o
idioma nacional, o acesso à rede de saúde pública ou a impossibilidade de obter à educação para os filhos.
Desse modo, compreende-se que refletir sobre os fenômenos imigratórios envolve identidade e cidadania,
contudo, parece que estas ainda não são efetivadas nem no país de origem, nem no de adoção. Assim, tornase pertinente que cada vez mais estudos sobre imigração sejam realizados no Brasil, pois é premente a
necessidade de compreensão acerca das transformações que podem advir da aceitação destes imigrantes, as
quais podem ser de cunho econômico, político, social e cultural. Também, se faz necessárias ações conjuntas
de diálogo, cooperação e reciprocidade para que desta forma, o diferente seja aceito e inserido na nova
sociedade. O Brasil caminha a passos lentos nas questões de inclusão, e não é somente as leis que farão com
que o imigrante seja inserido no contexto social e sujeito de direito e deveres.
Introdução
A migração é um fenômeno complexo que envolve de um lado questões, político-econômico e de
outro, princípios e direitos fundamentais. Diante deste cenário, milhares de pessoas sem perspectivas de
vida, devido à pobreza, à falta de condições básicas de subsistência, às desigualdades, o desemprego, as
doenças e as questões religiosas, abandonam suas famílias, seu círculo de amizades, seus relacionamentos e
tudo que construíram em busca de melhores condições de vida.
É uma realidade vivenciada por vários países e que vem se tornando, a cada dia, mais evidente no
Brasil e em diversos Estados. Tornou-se um fenômeno micro e macro, pelo fato das cidades não estarem
preparadas para acolher este contingente de pessoas que chegam com outra cultura, identidade, história e
perspectiva de vida, e que muitas vezes vai de encontro à realidade local na qual buscam se estabelecer.
Nesse sentido, se faz necessário, uma reflexão sobre a inserção do imigrante na sociedade brasileira,
diante dos desafios enfrentados por eles quando chegam ao país de destino, quais sejam, a dificuldade de
obter documentação que lhes permita trabalhar, o aprendizado da língua portuguesa para compreender ou
falar o idioma nacional, o acesso à rede de saúde pública, o acesso a educação, á moradia dentre outros.
Desse modo, compreende-se que refletir sobre os fenômenos imigratórios envolve identidade e
cidadania, contudo, parece que estas ainda não são efetivadas nem no país de origem, nem no de adoção, por
isto, torna-se necessário estudos sobre a imigração no Brasil. Pois, é premente a necessidade de compreensão
acerca das transformações oriundas da aceitação destes imigrantes, as quais podem ser de cunho econômico,
político, social e cultural.
Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo. Graduada em Ciências Habilitação Matemática pela
Universidade de Passo Fundo. Mestranda do Mestrado Stricto Sensu da Universidade de Passo Fundo. Especialista em Educação
Socioambiental pela Universidade de Passo Fundo. E-mail: vannasilva@hotmail.com
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Diante deste cenário, busca-se fazer uma reflexão sobre a complexidade dos processos de inserção do
imigrante no país escolhido para dar início a uma nova vida, com ênfase nos direitos humanos e o respeito às
diferenças.
1 Dos direitos humanos e dos direitos fundamentais na contemporaneidade
A proteção aos direitos humanos é uma conquista da sociedade moderna, uma construção ou até
mesmo invenção da modernidade, ainda, pode-se dizer que é um novo artefato social que emerge através dos
tempos. Para Baldi (2004, p. 280), os direitos humanos não são manifestações abstratas da inteligência
humana, mas encontram-se inseridos na situação histórica de cada cultura.
Segundo Siqueira Junior e Oliveira:
Os direitos humanos reconhecidos pelo Estado são denominados fundamentais,
vez que, via de regra, são inseridos na norma fundamental do Estado, a
Constituição. Para Konrad Hesse, “direitos fundamentais são aqueles direitos que o
direito vigente qualifica de direitos fundamentais”. Com o intuito de limitar o poder
público estatal, os direitos humanos são incorporados nos textos constitucionais,
estabelecendo-se como verdadeiras declarações de direitos do homem, que
juntamente com outros direitos subjetivos públicos formam os chamados direitos
fundamentais. (2016, p. 44).
Dessa forma, pode-se dizer que a expressão “direitos fundamentais” esta interligada a um número de
direitos que surgem do direito natural e da evolução histórica e que deve ser observado pela sociedade. São
direitos absolutos e naturais, podem ser denominados como direitos da personalidade num sentido mais
restrito e direitos humanos num sentido mais amplo. (SIQUEIRA JUNIOR; OLIVEIRA, 2016, p. 48).
Assim, a expressão direitos humanos se vincula a outras expressões, quais sejam, direitos naturais,
direitos morais, direitos fundamentais, entre outros. Mas a expressão tem popularidade por ter sido
empregada em 1948 pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
Na visão de Ingo Sarlet,
a concepção de acordo com a qual – pelo menos em grande parte os direitos
fundamentais (assim como, em especial, os direitos humanos) encontram seu
fundamento na dignidade da pessoa humana, quando contrastada com a noção de
dignidade na condição de um direito (fundamental) á proteção e promoção dessa
dignidade, foi percebida, como constituindo uma “dualidade de usos”, visto que a
dignidade opera tanto como o fundamento (a fonte) dos direitos humanos e
fundamentais, mas também assume a condição de conteúdo dos direitos. (2019, p.
98).
Portanto, é possível afirmar que a base dos direitos humanos a nível internacional é formada por três
pilares: a Carta de fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), a Carta do Tribunal de Nuremberg e
a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A primeira legitima uma preocupação internacional quanto
aos direitos humanos, à segunda institui a responsabilidade da proteção desses direitos e a última, a
Declaração, dispõe quanto ao grupo desses direitos considerando-os como indivisíveis, fundamentais e
universais. (REIS, 2006, p. 33).
O grande desafio que o tema de direitos humanos apresenta se relaciona com seu conceito e sua
fundamentação. Em primeiro lugar porque veicula ideal de humanidade que se ampliam no tempo e no
espaço, em segundo lugar porque são direitos fundamentais, inerentes a pessoa humana, bem como são
valores universais, e em terceiro lugar porque são direitos necessários e que garantem uma vida digna aos
indivíduos.
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Assim, segundo Baldi:
Os direitos humanos referem-se, portanto e antes de tudo, a uma categoria de
direitos que tem o caráter de abrigar e proteger a existência e o exercício das
diferentes capacidades do ser humano, e que irão encontrar na ideia de dignidade
da pessoa humana o seu ponto convergente. É em função dessa ideia, resultante da
concepção do ser humano como dotado de diferentes capacidades naturais, é que
se pode procurar critérios comuns, que possam responder ao desafio do
multiculturalismo. (2004, p. 28).
Quando se fala em direitos humanos, diz-se que eles não nasceram do progresso das relações
comerciais entre os povos, mas nasceram da identificação dos valores que são comuns às diversas sociedades
e grupos pertencentes a esta sociedade. Segundo as tradições Kantianas, as leis morais são fruto da razão do
homem. (BALDI, 2004, p. 304-305).
Na visão de Baldi:
Os direitos humanos seriam, assim, a positivação dos princípios fundadores, que
por sua natureza moral, asseguram o caráter de universalidade dessa categoria de
direitos. Nesse sentido, é que se pode dizer, com Habermas, que o pensamento
kantiano representa “uma intuição diretora” (1996:80) no projeto de estabelecer os
fundamentos dos direitos humanos na época contemporânea. (2004, p. 305).
Para Ramos (2005, p. 194) a noção de universalidade dos direitos humanos fica em completa
contraposição com diversas tradições culturais e religiosas. Não se deveria ir em busca de um denominador
comum em matéria de direitos humanos, mas sim aceitar que a pluralidade de culturas e religiões existem e
precisam ser respeitadas, sendo reconhecidas a liberdade e a participação, com direitos iguais à todos.
Nas palavras de Rubio:
No que diz respeito a uma escala mundial, temos, no contexto da globalização, uma
multiculturalidade muito clara. É óbvio e claro que existem diferentes tipos de
sociedades multiculturais. E também um fato da factualidade vida ou existência de
uma pluralidade de culturas no mundo e na nossa própria área geográfica. Isto tem
consequências negativas (problemas e conflitos de identidade e de coexistência
com base na distinção nós/eles ou outros), mas também positivas. E é neste espaço
que a cultura jurídica tem que saber como se mover. O fato multicultural deve
tomar isso como desafio intercultural, ou seja, como tarefa ou programa, como
exigência legal que flui a partir da realidade de nossa situação histórica e se
concentra numa humanidade que deve caminhar junto para conquistar e
reconhecer os direitos plenamente humanos e para todos, sem exceção. [...] Este é o
derradeiro desafio proposto para a imaginação jurídica: a incorporação consciente
e explícita do multiculturalismo no mundo, sem incorrer em situações idílicas ou
idealistas. (2014, p. 44-45).
Os direitos humanos trazem em si uma vocação de universalidade, tendo por base o modelo de
organização da sociedade, por serem direitos pertencentes a todos os homens, que, apesar das diferenças
raciais, culturais, religiosas e ideológicas, são integrantes de uma única espécie no universo. Nesse sentido,
pode-se dizer que as raízes filosóficas dos direitos humanos estão interligadas ao pensamento humanista, que
inspirou as bases para a fundamentação filosófica dos direitos humanos. (GORCZEWSKI, 2009, p. 103-104).
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Nesse sentido, parte-se do princípio de que os direitos humanos não estão prontos, são construídos
através da história, se radicam nas lutas de classes ao longo dos anos, são compreendidos como direitos
inerentes á pessoa humana, onde cada indivíduo pode desfrutar de seus direitos sem distinção de raça, cor,
gênero, língua, religião, entre outros.
Conforme Gorczewski (2009), olhando esses direitos sob o viés da globalização, de um lado tem-se o
avanço da condição humana, porém de outro se vê a sociedade retroceder alguns passos. O trabalho passa a
ser comercializado como mercadoria, o meio ambiente é constantemente degradado, enquanto as fortunas se
acumulam, a miséria e a fome se espalham, fomentando o crescimento da violência. Assim,
por um lado a globalização pode ser um progresso para a condição humana. É uma
alternativa à manutenção a qualquer custo da soberania do Estado, ao serviço
militar obrigatório, a ameaça de destruição do planeta em uma guerra nuclear, á
subordinação dos interesses individuais aos dos governantes sem que fosse possível
neutralizar esse poder. Por outro lado, esta nova ordem, com Estados débeis,
capital desregulado e economia internacionalizada, leva a sociedade a dar alguns
passos para trás quanto aos avanços conseguidos nos últimos séculos. O trabalho
humano passa a ser negociado como mercadoria, sujeito a lei da oferta e da
procura, a degradação ambiental passa a ser uma forma constante, fortunas
imensas se acumulam, os extremos sociais se acirram, a violência cresce, a fome a
miséria e a morte rondam a sociedade. (GORCZEWSKI, 2010, p. 38).
Julios-Campuzano, Santos e Lucas (2016) ressaltam que a globalização, em todas as suas facetas,
tornou ainda mais evidente as trocas e os processos de interação humanas, em sua dimensão positiva e
negativa. A noção de espaço-tempo foi se modificando e aos poucos se aproximando, e a expressão onde se
diz que nenhum espaço é tão longe que não possa ser acessado de alguma maneira passa a fazer sentido. Por
isto, o desejo de estar em outros lugares aumentam os processos de deslocamentos, e mesmo não tendo
noção do que irá se encontrar do outro lado da fronteira, o encontro com o diferente e seu estranhamento
sempre marcaram os processos de mobilidade urbana e os movimentos migratórios.
Desta forma, importante considerar que,
o estrangeiro, o imigrante, o refugiado, é o resultado objetivo da noção de
identidade nacional como única possibilidade de acesso. Eles reforçam a ideia de
pertença numa lógica ambivalente: conformam sua presença na relação com o seu
oposto. O imigrante reforça a posição do cidadão nacional e vice-versa.
(GORCZEWSKI, 2010, p. 22).
Desse modo, passam a ocorrer muitas transformações relacionadas à perda de pertencimento e
identidade, pois muda o local de residência, os laços de amizades, os vínculos familiares na maioria das vezes
se perdem, ocorrem mudanças e transformações sociais, econômicas, políticas, as quais nem sempre são
positivas. Assim, o imigrante que deixa sua pátria em busca do novo, nunca vai sozinho, leva consigo
resquícios de sua cultura, que, de certo modo, adquiriu ao logo de seu desenvolvimento como ser humano.
Nas palavras de Tedesco:
Na velocidade do próprio cotidiano – na descontinuidade e na fragmentação do
tempo – na “aceleração do tempo presente”, o homem toma consciência da perda
de suas referencias mais imediatas, da destruição do passado, e volta-se para a
necessidade de questionar a sua inserção social, de identificar laços comuns e criar,
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na expressão de Pierre Nora, “lugares de memória” para suprir esses vazios. (2002,
p. 21).
Nesse sentido, a migração é vista como uma das principais forças que atuam na formação dos
Estados modernos, bem como é responsável pelas reconfigurações políticas, econômicas e sociais da
sociedade de hoje, pois provoca inúmeras transformações na vida dos indivíduos, assim como é um tema
pertinente aos dias atuais.
2 Os processos de inclusão do imigrante na sociedade
As primeiras migrações de nossos ancestrais estavam confinadas no continente africano, assim,
acredita-se que há 100 mil anos atrás seus descendentes saíram da África para o Oriente Médio e de lá se
dispersaram por todos os continentes do planeta, eram os chamados migrantes. Por isto a história da espécie
humana ressalta que todas as pessoas atualmente vivas são descendentes de um pequeno grupo de seres
humanos com origem na África Oriental. (BAUMAN, 2017, p. 69-70).
Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), a denominação de imigração referese ao processo pelo qual os “estrangeiros se deslocam para um país, a fim de aí se estabelecerem”. Esse
movimento de imigração pode advir de vários motivos, sejam pessoais, pela busca de trabalho e
oportunidades, ou até mesmo para fugir de situações que podem ser de perseguições ou discriminações por
motivos políticos ou religiosos, entre outros. (2009, p. 33).
Nesse sentido ressalta Baraldi:
As migrações internacionais, assim, só existem porque existem as fronteiras.
Juridicamente deveriam constituir a exceção no sistema de Estados-nação, que
constrói-se sobre a tríade: governo, povo e território, em que um povo estável (ou
estabilizado), localizado em um território definido, é ligado a um governo e a um
ordenamento jurídico que possui jurisdição (poder) sobre aquele território. O
migrante é aquele membro de um Estado que se desloca para outro território e,
portanto, se coloca sob a jurisdição deste outro Estado. (2014, p.16).
É preocupante a forma com que grande parte do Ocidente responde ao problema da imigração, que é
tratada como assunto alheio e que deve ser solucionado pelos países periféricos. Cabe, unicamente, autorizar
o número de pessoas que podem entrar, repatriando aqueles que estão fora da cota legal concedida.
Baumann destaca que:
Hospitalidade significa o direito que tem um estrangeiro de não ser tratado de
forma hostil pelo fato de estar em território alheio. O outro pode desprezar o
estrangeiro, se isso pode realizar-se sem ruína deste, mas, enquanto o estrangeiro
se comportar amistosamente em seu posto, o outro não pode combatê-lo com
hostilidade. Não há nenhum direito de hóspede em que se possa basear essa
exigência (para isso seria necessário um contrato especialmente generoso, pelo
qual se limitasse o tempo de “hospedagem”), mas um direito de visita, direito a
apresentar-se à sociedade, que tem todos os homens em virtude e direito da
propriedade comum da superfície da Terra, sobre a qual o ser humano pode se
estender até o infinito. (2017, p. 73).
Rubio (2007, p. 84) ressalta que é necessário ter consciência de que este é um problema global que
afeta a todos, é preciso buscar uma solução, e fazer com que o discurso emancipador de liberdade e
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solidariedade seja reconhecido a estas pessoas que muitas vezes não falam a língua do país que as recebe e se
expressam de maneira diferente.
Acrescenta Habermas que:
Uma nação de cidadãos é composta de pessoas que, devido a seus processos sociais,
encarnam simultaneamente as formas de vida dentro das quais se desenvolveu sua
identidade – e isso ocorre mesmo quando, como adultos, eles se libertaram das
tradições da sua origem. Naquilo que é relevante para seu caráter, as pessoas são
como entroncamentos numa rede adscritícia de culturas e tradições. A composição
contingente do povo de um Estado, a unidade política, na terminologia de Dahl,
determina também implicitamente o horizonte das orientações de valor, dentro do
qual ocorrem conflitos culturais e os discursos do auto-entendimento ético-político.
Junto com a composição social da cidadania também muda esse horizonte de
valores. (2000, p. 165).
O fenômeno migratório ocorre porque, em grande parte, o Brasil é um país emergente capaz de lidar
com a crise mundial, além de ser um lugar com relativa segurança para que os povos que vêm de regiões
conflituosas e precárias possam viver em condições dignas, bem como, assegurar o bem estar de sua família.
A Constituição Federal do Brasil, no caput de seu artigo 5º, expressa, que: “Todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros, residentes no País,
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, identifica-se,
assim, que assume como fundamental o princípio da igualdade.
Deste modo, como assegurar a igualdade quando a realidade observada em âmbito nacional e
internacional é o crescente aumento do desemprego e o avanço tecnológico, fatores que contribuem cada vez
mais para que as pessoas encontrem dificuldades para se qualificar e adquirir habilidades e competências
para não serem excluídas do mercado de trabalho. Por este motivo muitos são obrigados a imigrar sozinhos
ou em grupos para outros países em busca de uma oportunidade profissional e melhores condições de vida.
Neste processo de inserção dos imigrantes na sociedade, alguns obstáculos podem ser verificados,
tais como o acolhimento, o domínio da língua e a questão da discriminação racial e xenofobia. Esses fatos em
conjuntos ou isolados acabam se tornando um empecilho para os imigrantes se inserirem na sociedade ou
viverem excluídos do convívio social. A primeira barreira a ser vencida é o acolhimento.
Diante desta situação é possível perceber que as cercas, os muros, as divisas, as fronteiras, que
separam Estados e regiões, são alguns dos problemas enfrentados pelos imigrantes quando chegam ao país
de adoção, pois muitas vezes acabam sendo barrados logo na chegada, tornando-se vulneráveis. Á negação do
acesso é mais forte do que a hospitalidade e a solidariedade que muito são defendidas e debatidas nos
discursos sobre os direitos humanos. (JULIOS-CAMPUZANO; SANTOS; LUCAS, 2010, p. 23).
Segundo Julios-Campuzano, Santos e Lucas:
Ela coloca o peregrino e o imigrante não como simples viajantes, como turistas,
mas como alguém que está em busca da salvação, da terra prometida, do lugar
melhor para se viver; alguém que esta em fuga, salvando a sua vida temporal. E as
razões desse processo são mundanas mesmo. Fugir da guerra, fome, violências,
estabelecer novos lugares de poder, conquistar mais riqueza. Vivemos esse sonho
da terra prometida até os dias atuais. (2016, p. 13).
Um dos maiores problemas em relação à entrada dos imigrantes se dá em função do controle dos
fluxos pelos países receptores, principalmente em relação à entrada de imigrantes em condições menos
favorecidas, o que acarreta em medidas políticas, jurídicas, penais e administrativas muitas vezes repressivas
em relação a este contingente de pessoas.
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Ressaltam Julios-Campuzano, Santos e Lucas (2016, p. 28), que os problemas que envolvem estes
fenômenos não começam e acabam com o controle dos fluxos, especialmente os de entradas. É necessário
considerar que este imigrante que abandona seu país de origem em busca de acolhimento passa por sérios
problemas de adaptação à sua nova sociedade, muitas vezes até problemas psicológicos, relacionados com as
motivações das migrações, bem como com suas consequências.
Nas palavras de Julios-Campuzano, Santos e Lucas:
Desde essa perspectiva crítico-problemática, não se pode ignorar que um dos
principais problemas atinentes aos processos migratórios diz respeito à diferença
cultural a ser vivenciada pelo imigrante diante da cultura ou das culturas do país
recebedor e as consequências daí advindas em relação à configuração de sua
própria identidade. (2016, p. 28).
Ainda, segundo Julios-Campuzano, Santos e Lucas (2016), um dos grandes desafios enfrentados
pelos países receptores, que muitas vezes exploram o trabalho destes, é gerir os processos de inserção dos
estrangeiros, criando condições sociais e existenciais de forma a diminuir os traumas oriundos desta
mudança de vida, fazendo com que este imigrante se sinta acolhido nesta nova sociedade e que o recomeço
não seja tão traumático.
Desse modo destaca que:
No mundo inteiro há muitas incertezas em torno da presença de comunidades
estrangeiras; percebe-se muita resistência ao outro, o que pode gerar, em curto
prazo, conflitos de grandes proporções. Por exemplo, na Europa, confronta-se o
etnocentrismo e a tolerância ao outro. A questão premente é como atender às
reivindicações e respeitar os direitos dos migrantes, diante das legislações baseadas
no poder e soberania do Estado-nações. A mobilidade contemporânea traz, além do
dinamismo das migrações internacionais, a ilegalidade, o tráfico de pessoas, a
xenofobia e a usurpação dos direitos do migrante. Para o enfrentamento destes
problemas as ações não podem ser unilaterais, é necessário esforço conjunto de
diálogo e cooperação, respeitando a soberania nacional, mas reconhecendo a
complexidade das questões, para organizar foros internacionais. (JULIOSCAMPUZANO; SANTOS; LUCAS, 2016, p. 32).
Neste contexto é possível perceber que o processo de imigração em seus vários aspectos acarreta
mudanças comportamentais e emocionais. Assim, o imigrante terá que se adaptar ao novo, deverá aceitar as
perdas e acima de tudo se permitir a participar dos processos de integração, tentando, aos poucos, deixar de
lado suas raízes e sua bagagem cultural, e se inserir neste novo mundo, mas com a certeza de que continua
sendo a mesma pessoa que abandonou sua terra em busca de dignidade e de uma nova identidade.
Julios-Campuzano, Santos e Lucas comentam que:
Cidades bem-sucedidas e as sociedades do futuro serão mais e mais multiculturais.
Assim, gerir e explorar o potencial da diversidade cultural para estimular a
criatividade e inovação, e, consequentemente, atingir prosperidade econômica e
uma melhor qualidade de vida, tornam-se desafios a serem enfrentados não só no
futuro, mas já nos dias atuais. A diversidade pode ser um recurso para o
desenvolvimento de uma cidade se o discurso público, as instituições e os processos
da cidade, bem como o comportamento das pessoas, levarem consideração a
diversidade de forma positiva. (2016, p. 89).
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Segundo Tedesco (2015, p. 75) é impressionante como nossa capacidade de pensar e determinar a
diferença entre os diferentes indivíduos da sociedade pode refletir o próprio critério de alteridade diante do
outro individuo ou do grupo social ao qual ele pertence, seja por sua diferença de cunho racial, de gênero, de
classe, de lugar, de origem, de geração, de pode econômico, etc.
Assim, metaforicamente relacionamos esse processo de migração e acolhimento a
porta que se abrem e se fecham, na perspectiva de frisar o quanto é complexa a
relação entre os diferentes, principalmente em uma condição caracterizada pela
vulnerabilidade e insegurança social que envolve diferentes atores, tanto no
passado, com as migrações de escravos vindos da África quanto no presente, com
as novas levas de imigrantes vulneráveis e dependentes de uma condição precária
de trabalho no país de destino. (TEDESCO, 2015, p. 77).
Os migrantes atravessam fronteiras geográficas, culturais, socioeconômicas e interpessoais.
Este mesmo imigrante atravessa um período de estranhamento profundo em busca de uma nova identidade,
e precisa de suporte que lhe restabeleça a confiança. Esta condição de vulnerável que lhe foi atribuída porque
chega sem recursos econômicos, sem entender o idioma e pelo seu baixo grau de instrução, potencializa
ainda mais sua fragilidade. (TEDESCO, 2015, p. 87).
Dessa forma, o enfrentamento do diferente também é um desafio dos grupos dos
acolhedores, pois os contatos ressignificam vidas, formas de agir e representações
sociais. Ver o outro no seu antigo espaço de exclusividade é deslocar o seu próprio
reconhecimento de ser sujeito e de pertencer a algum lugar ou ter determinada
condição e status social. (TEDESCO, 2015, p. 88).
O Brasil caminha a passos lentos nas questões de inclusão, e não é somente as leis que farão com que
o imigrante seja inserido no contexto social e sujeito de direito e deveres. É necessário à implementação de
políticas públicas que fortaleçam as desigualdades, pensadas numa perspectiva integral e transversal que
possam favorecer a integração e prevenção de violação de direitos. Também, se faz necessárias ações
conjuntas de diálogo, cooperação e reciprocidade para que desta forma, o diferente seja aceito e inserido na
nova sociedade.
Conclusão
O presente trabalho fez reflexões acerca dos direitos humanos com base nos direitos fundamentais e
no princípio da igualdade, com o propósito de efetivar o que determina a legislação pátria em relação aos
direitos dos imigrantes.
“Imigrantes” parece ser um termo pejorativo, explica-se, a acepção do termo remete a “algo
desagradável”, neste sentido, tem-se observado a existência de países que sequer cogitam acolher imigrantes
e outros que querem deportá-los. Contudo, depende de cada país acolher e aceitar esses imigrantes que
chegam com outra cultura, outra identidade, buscando apenas, uma vida digna, o que em muitas vezes, já lhe
foi negado.
Em relação ao processo de inserção dos imigrantes na sociedade brasileira, alguns obstáculos podem
ser observados, em especial, o acolhimento, a religião, o domínio da língua e a questão da discriminação
racial e xenofobia. Esses fatos em conjuntos ou isolados acabam se tornando obstáculos para a adaptação
deste imigrante que está chegando em busca de acolhimento.
Vive-se numa sociedade onde a maior parte dos brasileiros se declara descendentes dos africanos ou
assumem ser mestiça, mas, infelizmente, isso não garante ao imigrante estrangeiro, uma vivência harmônica
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ou a garantia de que será aceito nessa nova sociedade, sobretudo, porque o imigrante chega em situação de
extrema vulnerabilidade social, o que faz com que seja mais discriminado.
Neste contexto, é preciso pensar formas de reconhecer esse imigrante que chega em busca de
acolhimento, facilitando seu acesso a cultura da sociedade e dos grupos locais. Desta forma é possível romper
as barreiras que separam o estrangeiro da sociedade, assim, este poderá se adaptar mais facilmente passando
a viver de forma plena e integrada nesta nova sociedade, e não à margem dela.
REFERÊNCIAS
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BARALDI, Camila Bibiana Freitas. Migrações Internacionais, Direitos Humanos e Cidadania SulAmericana: o prisma do Brasil e da Integração Sul-americana. Tese ao Programa de Pós-Graduação em
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A conquista da Terra Indígena Toldo Chimbangue
Silvana Winckler1
Arlene Renk2
Resumo: Este trabalho aborda o processo de demarcação da Terra Indígena – TI – Toldo Chimbangue,
localizada na região oeste de Santa Catarina, nas proximidades dos rios Lambedor e Irani. O Toldo
Chimbangue está estabelecido em uma área de 1963 hectares recuperada por indígenas kaingank no período
imediatamente posterior ao final do regime militar no Brasil. O Decreto de demarcação data de dezembro de
1985. Até então, a área demandada era integralmente ocupada por população não indígena, constituída por
descendentes de colonos europeus oriundos no Rio Grande do Sul. O processo de demarcação da TI implicou
na declaração de nulidade dos títulos de propriedade agrária anteriores e na remoção dos agricultores ali
estabelecidos. O conflito opôs, fundamentalmente, de um lado, agricultores, que contavam com o apoio do
empresariado regional, de partidos políticos e de entidades de classe; e, de outro, indígenas articulados em
rede de trocas de informações e solidariedade, com apoio da igreja diocesana de Chapecó e do Conselho
Indigenista Missionário (CIMI). Esse episódio antecedeu a política de demarcação de terras indígenas
inaugurada pela Constituição brasileira de 1988, tendo-se baseado em laudos jurídicos e antropológicos que
serviram de inspiração ao atual regime constitucional de tratamento da questão indígena, especificidade que
justifica a relevância do estudo.
Palavras-chave: Demarcação. Indigenato. Terra indígena. Toldo Chimbangue.
Introdução
O estatuto jurídico das terras indígenas está na origem de muitos conflitos sociais que envolvem a
sua demarcação e as garantias que lhes são inerentes. Nesse sentido, acreditamos que a elucidação dos
conceitos jurídicos poderá contribuir para a compreensão das situações conflituosas desde o viés da política
indigenista e da legislação brasileira, notadamente sob a vigência da Constituição de 1988.
Neste estudo, tomamos com caso a ser analisado a demarcação da Terra Indígena Toldo
Chimbangue, por apresentar grande complexidade e por permitir-nos o exame de diferentes momentos da
história recente das demarcações. Essa Terra Indígena está localizada no município de Chapecó, nas
proximidades da foz do rio Lambedor, situado na bacia hidrográfica do rio Irani. A área demarcada é de 1963
hectares3 e se encontra habitada por indígenas Kaingang e Guarani, estes em caráter provisório, enquanto
aguardam a demarcação de área demandada nos municípios de Cunha Porã e Saudades. Atualmente vivem
na aldeia pouco mais de quinhentas pessoas. (BRINGHENTI, 2017).
A pesquisa é bibliográfica e documental, com abordagem analítica, a qual favorece a formulação de
conceitos e a caracterização de institutos jurídicos. Recorremos, de igual modo, à historiografia regional a fim
de descrever o caso e seus rebatimentos na questão mais ampla que é a demarcação de terras indígenas no
Brasil.
A demarcação da TI ocorreu em duas etapas, sendo a primeira correspondente a 988 hectares, com
decreto de expropriação datado de dezembro de 1985. Neste caso, o instituto do indigenato (direito congênito
às terras tradicionalmente ocupadas) não foi adotado, optando-se pela desapropriação dos colonos que
Doutora em Direito pela Universidade de Barcelona (UB). Docente dos programas de pós-graduação em Ciências Ambientais
(mestrado e doutorado) e em Direito (mestrado acadêmico).
2 Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Direito pela Universidade de
Barcelona. Docente dos programas de pós-graduação em Ciências Ambientais (mestrado e doutorado) e em Direito (mestrado
acadêmico).
3 Um hectare da TI está localizado na comunidade de Sede Trentin, separado da TI, por ter sido ali identificado um cemitério indígena.
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haviam adquirido as terras. Estes foram indenizados pelas terras e pelas benfeitorias. Já na segunda etapa,
sob a vigência da Constituição de 1988, adotou-se o parâmetro constitucional, segundo o qual as terras
indígenas são direito originário, e não derivado, não cabendo indenização às famílias não indígenas
removidas (BRINGHENTI, 2017; NACKE e BLOEMER, 2007).
Terras indígenas: estatuto jurídico
A questão indígena esteve presente desde as primeiras regulamentações jurídicas concernentes à
terra no Brasil. Tércio Sampaio Ferraz Junior, com base nas pesquisas de Expedito Arnaud, chama a atenção
para um registro histórico:
[...] Alvará de 01.04.1680, ratificando o de 10.11.1647, que determinava que “os
índios descidos do sertão” fossem senhores de suas fazendas, que lhes fossem
designados “lugares convenientes, para neles lavrarem e cultivarem”,
desobrigando-os de pagarem foro ou tributo, mesmo em sesmarias, posto que
considerados “primários e naturais senhores delas”. : (ARNAUD, s/d, apud
FERRAZ JUNIOR, 2004, 689-690):
Esses dispositivos legais dão origem ao instituto designado como indigenato, considerando-se as
terras do indigenato um direito congênito, originário e, portanto, distinguindo-as das terras devolutas.
A Lei de Terras (Lei 601/1850) e seu regulamento, de 1854, estabeleceram que as terras destinadas à
ocupação indígena seriam caracterizadas como usufruto, atendendo a uma perspectiva assimilacionista.
(FERRAZ JUNIOR, 2004). Como terras devolutas 4 sob usufruto, não poderiam ser alienadas. Há uma
divergência instalada no que diz respeito à manutenção, pela legislação imperial, do instituto do indigenato.
A leitura da Lei de Terras leva ao entendimento de que o texto legal não reconhece o direito originário dos
indígenas às terras. Esta postura é coerente com aquela adotada na Carta Régia de 1808, de Dom João VI,
que instituiu “o princípio da ‘guerra justa’, pelo qual se poderiam escravizar os índios em conflito com os
colonos, expropriando-os de suas terras, arrancando-os do seu habitat, anulando todos os avanços no sentido
de um incipiente direito indígena” (ROSA e CASTELO BRANCO, s/d; n/p).
O art. 12 da Lei de Terras dispunha que:
Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias: 1º, para
a colonisação dos indigenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de
estradas, e quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º,
para a construção naval.
No entanto, predomina o entendimento de que o direito originário foi preservado. Essa condição
jurídica foi mantida nas constituições da República de 1891, 1934, 1946 e 1967. Na Constituição atualmente
em vigor, as terras indígenas são consideradas direito congênito a ser declarado (e não instituído) pelo
decreto de demarcação.
A Lei 601/1850 definia terras devolutas no art. 3º:
Art. 3º São terras devolutas:
§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal.
§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do
Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem
revalidadas por esta Lei.
§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.
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A Constituição brasileira de 1988 declara, expressamente, que as terras indígenas são direito
congênito das populações 5 indígenas. O texto constitucional (art. 231 6) reconhece aos índios os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, determinando à administração pública federal a
obrigação de demarcá-las e protegê-las.
O direito congênito, consagrado no instituto do indigenato, pode ser relacionado ao princípio do uti
possidetis adotado por Portugal e Espanha no Tratado de Madri, que pôs termo às dúvidas acerca de limites
territoriais entre as duas coroas em 1750.
O Tratado de Madri (1750) adotou, dentre os critérios para demarcar as fronteiras dos dois reinos na
América Latina, o princípio do uti possidetis, no qual se outorgou o direito à posse ao respectivo país
ocupante. As coroas de Portugal e Espanha:
[...] resolveram pôr termo às disputas passadas e futuras, e esquecer-se, e não usar
de todas as ações e direitos que possam pertencer-lhes em virtude dos referidos
Tratados de Tordesilhas, Lisboa, Utrecht e da Escritura de Saragoça, ou de outros
quaisquer fundamentos que possam influir na divisão dos seus domínios por linha
meridiana; e querem que ao diante não se trate mais dela, reduzindo os limites das
duas monarquias aos que se assinalaram no presente tratado; sendo o seu ânimo
que nele se atenda com cuidado a dois fins: o primeiro e principal é que se
assinalem os limites dos dois domínios, tomando por balizas as paragens mais
conhecidas, para que em nenhum tempo se confundam, nem deem ocasião a
disputas, como são a origem e curso dos rios, e os montes mais notáveis; o
segundo, que cada parte há de ficar com o que atualmente possui; à
exceção das mútuas cessões, que em seu lugar se dirão; as quais se farão por
conveniência comum, e para que os confins fiquem, quanto for possível, menos
sujeitos a controvérsias. (TRATADO DE MADRI, 1750 - grifamos)
A Constituição brasileira define ocupação tradicional no parágrafo primeiro do art. 231, ao dizer que
são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios “aquelas por eles habitadas em caráter permanente, as
utilizadas em suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições.” (BRASI, 1988).
A Constituição não faz referência a “povos”, e sim a “populações”, tendo em conta as implicações políticas dos usos destes termos. A
adoção da primeira expressão poderia configurar o reconhecimento do plurinacionalismo.
6 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras
indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada
participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou
epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido,
em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a
que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante
interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a
ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
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Neste aspecto, houve avanço em relação à compreensão que até então prevaleceu e que restringia a
extensão da terra indígena à parcela habitada e ao entorno da aldeia. A atual Constituição rompe com a
perspectiva assimilacionista e reconhece o direito ao modo tradicional de vida e de relação com o território,
tendo em vista as necessidades inerentes à reprodução social e cultural. Assim sendo, as áreas demandadas e
efetivamente demarcadas ampliam-se em extensão.
No entanto, o direito real conferido pela Constituição de 1988 aos povos indígenas é a posse
usufrutuária permanente, mantendo-se as terras sob o domínio da União. Em outras palavras, os indígenas
não podem alienar as terras porque as detêm em caráter de usufruto.
O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 fixou, no art. 67, o prazo
de cinco anos, a contar de sua promulgação, para que as terras indígenas fossem demarcadas. Nas palavras
de Ferraz Junior:
[...] a demarcação não engendra nenhum direito às terras, pois tal direito é
declarado originário (antecede à demarcação). Mas tem o sentido de conferir
certeza e segurança ao exercício do direito, no que se refere ao seu conteúdo
(faculdades) e objeto (terras ocupadas tradicionalmente). (FERRAZ JUNIOR,
2004, p. 695)
Transcorridos trinta anos da promulgação da Constituição, a demarcação de terras indígenas segue
sendo um desafio que se apresenta às autoridades administrativas e judiciárias e, evidentemente, à
sociedade, chamada com frequência a se posicionar em face de conflitos agrários dela derivados.
É de destacar a tramitação, no Congresso Nacional, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
215/2000, que pretende transferir a competência de demarcar terras indígenas do Poder Executivo ao Poder
Legislativo, dando a este poder a possibilidade de rever demarcações já realizadas. A matéria vem gerando
preocupação aos povos indígenas, que veem seus direitos ameaçados de restrições.
Demarcação da Terra Indígena Toldo Chimbangue
De acordo com Bringhenti (2017), a retomada da Terra Indígena Toldo Chimbangue foi referência
para outros processos demarcatórios ocorridos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, tendo
influenciado, inclusive, o processo constituinte:
Foi a primeira comunidade indígena brasileira no século XX que recuperou as
terras que estavam totalmente escrituradas, registradas em poder de camponeses.
Isso marca também o processo de reinauguração de uma identidade étnica forjada
na luta pela terra. A conquista do Decreto nº 92.253 de 30 de dezembro de 1985 foi
uma longa ação que durou anos e demandou mais do que a pressão da comunidade
e de seus aliados, ela mobilizou o país, deixou marcas na sociedade e na igreja
diocesana, modificou o conceito de indígena e de Terra Indígena no oeste
catarinense. O referido Decreto é resultado desta particularidade. (BRINGHENTI,
Clovis Antonio, 2017, p. 25)
As tensões sociais produzidas a partir da luta pela terra kaingang chegaram ao ponto de temer-se o
confronto direito entre indígenas e camponeses e de demandar intervenção militar em momentos
específicos7.
Veja-se, por exemplo, notícia publicada no Jornal de Santa Catarina, datada de 27/08/1985: “Situação normaliza, mas PM fica na Sede
[Trentin]. CHAPECÓ. Por medida de segurança, policiais militares continuam por mais alguns dias em Sede Trentin, a dez quilômetros
do centro de Chapecó, onde índios Caingangue e colonos disputam 1885 hectares de terra. A questão, que dividiu a opinião pública,
continua sem definição. A visita da comissão interministerial não trouxe resultados. Seus integrantes prometeram dar uma resposta do
Governo Federal, mas não apresentaram datas.” (JORNAL DE SANTA CATARINA, 1985, n/p).
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Até a edição do decreto demarcatório da TI Toldo Chimbangue, em todo o oeste catarinense havia
uma única terra indígena demarcada: a Xapecó, datada do início do século XX (1902). Veio, na sequência, o
reconhecimento administrativo do Toldo Pinhal (1996) e a formação da reserva indígena Aldeia Condá
(2001), esta, decorrente da aquisição de terras em processo que envolveu o edital de outorga de exploração
hídrica no rio Uruguai para a finalidade de produção energética, no qual foi vencedor o Consórcio Foz do
Chapecó. Outra área encontra-se em disputa, reivindicada por indígenas guarani, nos municípios de
Saudades e Cunha Porã, SC. Trata-se da terra do Araçá’í8, acerca da qual já foram emitidos laudos
antropológicos e existe processo judicial em tramitação na Justiça Federal da 4ª. Região. De acordo com
Fernandes e Piovezana (2015, p. 119):
Todos estes casos têm em comum não apenas as tensões e os conflitos entre
indígenas e agricultores, mas também a morosidade do processo de regularização
fundiária e a fragilidade das decisões do indigenismo oficial em face às pressões
políticas locais. (FERNANDES; PIOVEZANA, 2015, p.119)
A área onde se localiza a TI Toldo Chimbangue fez parte, até o final do século XIX, da chamada
fazenda Barra Grande, titulada em 1891 pelo governo do Paraná a José Joaquim de Moraes (BRINGHENTI,
2017, p. 3). Posteriormente foi vendida a Luís Vicente de Sousa Queirós, filho da Baronesa da Limeira,
terratenente no oeste catarinense que vivia em São Paulo. Na região, o nome da Baronesa é conhecido por
constar em muitas escrituras públicas de imóveis. Como relata Bringhenti,
Posteriormente, em 1919 os herdeiros venderam-nas para a Empresa Colonizadora
Luce & Rosa Cia Ltda. que as dividiu em lotes de 24 hectares (uma colônia) e as
revendeu a camponeses. Nem José Joaquim de Moraes nem Luís Vicente de Souza
Queirós tomou posse das terras. Tratava-se de região de floresta estacional
decidual e não propícia à criação de gado. O interesse nas terras era para
especulação. Ela só vai despertar interesse para a outra prática de uso do solo com
chegada de famílias de camponeses oriundas das colônias velhas do Rio Grande do
Sul e alguns vindos diretamente da Europa, a partir da terceira década do século
XX. (BRINGHENTI, 2017, p. 3).
À companhia colonizadora cabia a responsabilidade de livrar a terra dos indígenas. Naquela época, o
termo “desintrusão” tinha significado oposto ao que agora ostenta: tratava-se de remover todo vestígio da
presença indígena nas áreas colonizadas. 9 Não logrando êxito nesta empreitada, a Colonizadora Luce & Rosa
vende a área aos irmãos Trentin, que dão seguimento ao projeto colonizador, repassando as terras a famílias
camponesas.
Avançando o processo de colonização com agricultores oriundos do Rio Grande do Sul, os indígenas
do Toldo Chimbangue foram confinados numa área de 100 hectares, nas margens do rio Irani, considerada
área fiscal. Ficaram somente 10 famílias. Trabalhavam como agregados e jornaleiros nas propriedades
vizinhas. Algumas famílias venderam seus sítios, os quais foram regularizados pela colonizadora Luce & Rosa
Cia. Ltda. Poucas famílias resistiram e permaneceram no local. Destacaram-se os “troncos velhos” Francisco
Marcelino, Clemente Fortes e Ana Fortes, a Fen’Nó (BRINGHENTI, 2017).
Ver: SILVA, José Valderi; RENK, Arlene. Guarani chiripa: oeste catarinense – uma região de conflitos. In: WINCKLER, Silvana;
PEREIRA, Reginaldo; TEIXEIRA, Marcelo Markus. Cidadania, socioambientalismo, atores e sujeitos internacionais em
diálogo com o Direito. [ebook] São Leopoldo: Karywa, 2018, p. 423-431.
9 “Segundo o Conselho Indigenista Missionário – Regional Sul (Cimi Sul), a alienação da terra aos irmãos Trentin ocorreu por
dificuldades da empresa Luce &Rosa em remover os indígenas. Na escritura de compra e venda ficou acordado que os compradores
ficaram responsáveis pela retirada dos intrusos existentes na gleba de terra vendida. Os Kaingang são tratados como intrusos”
(BRINGHENTI, 2017, p. 4).
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Nas palavras de Fernandes e Piovesana (2015, p. 116-117), a dinâmica foi a mesma em todo oeste
catarinense:
De índios que ocupavam terras nas bacias hidrográficas dos principais rios da
região, articulados em amplas redes de sociabilidade, os Kaingang passaram ao
confinamento. No Oeste de Santa Catarina apenas uma área foi demarcada: a TI
Xapecó. Muitos não se ajustaram a este macro ordenamento territorial, ora
buscando refúgio em áreas de difícil acesso, ora permanecendo “invisíveis” aos
empreendimentos colonizadores, convivendo de maneira indireta e dissimulada
com os nascentes núcleos coloniais.
Permanecer nas franjas do processo colonizador foi a forma de resistência que possibilitou a
retomada das terras tradicionais. Os kaingang nunca abandonaram completamente a região. Graças a essa
presença, foi possível caracterizar a área como terra indígena tradicionalmente ocupada e – o que foi de
suma importância – reorganizar a comunidade na luta pela demarcação.
A luta pela retomada das terras contou com o apoio de lideranças indígenas da Terra Indígena
Xapecó e da Pastoral Indigenista diocesana de Chapecó.10 Isso ocorreu no final da década de 1970. Bringhenti
(2017, p. 12) descreve dois movimentos complementares: o primeiro consistiu no fortalecimento e formação
da comunidade para conhecer os seus direitos e para se rearticular socialmente, reunir as famílias que
estavam “espalhadas”; o segundo, implicou na busca por aliados de outras comunidades indígenas e na
sociedade brasileira, “a começar pela sociedade regional especialmente a diocese de Chapecó”. A mobilização
implicou em viagens à Brasília, onde acampavam à espera de resposta da administração pública federal.
O processo de demarcação da TI Toldo Chimbangue teve início em 1982. A Funai criou o primeiro
grupo de trabalho em agosto de 1982, sendo que a equipe apresentou uma proposta de demarcar 50 colônias.
No entanto, o relatório foi elaborado sem o cumprimento das exigências legais, ou seja, sem os estudos
antropológicos e o levantamento fundiário. Grupo Interministerial foi criado, por decreto, em 1983, para
decidir sobre o direito indígena à terra. Na sequência, em 1984, novo grupo de trabalho foi constituído, desta
vez integrado por antropólogas da UFSC e da FUNAI. (BRINGHENTI, 2017).
A Terra Indígena Toldo Chimbangue está localizada na comunidade Sede Trentim, a menos de vinte
quilômetros da zona urbana do município de Chapecó. A demarcação ocorreu em duas etapas, em 1985/1986
e em 2004. A relevância dessa experiência exitosa de renascimento de uma comunidade indígena repercutiu
de modo amplo no cenário brasileiro. Como afirma Bringhenti (2017, p. 2),
A conquista da Terra Indígena Toldo Chimbangue inspirou o movimento indígena
nos processos de retomada de outras terras. A fundamentação antropológica e
jurídica empregada no processo da conquista da Terra Indígena Toldo Chimbangue
contribuiu para a formulação dos novos direitos indígenas assegurados na
Constituição Federal de 1988. No âmbito do movimento indígena percebe-se que as
ações de apoio a comunidade Kaingang do Toldo Chimbangue gerou uma reação
em cadeia e consolidou a rede de trocas de informações e de solidariedade iniciado
uma década antes.
Neste sentido, a experiência da demarcação territorial do Toldo Chimbangue antecipou-se à
Constituição de 1988 e definiu um novo parâmetro para o tratamento jurídico dos conflitos agrários
envolvendo terras indígenas.
10 Nacke e Bloemer (2007, p. 60) afirmam: “Não se pode esquecer que houve a participação de muitos agentes sociais neste processo,
entre os quais se destacam os agentes do CIMI, que participaram ativamente, localizando e recuperando documentos históricos,
registros de batismos nas igrejas católicas, consultando e fornecendo advogados especializados, além do firme e coerente apoio do então
Arcebispo da Arquidiocese de Chapecó, D. José Gomes”.
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Referências
BRINGHENTI, Clovis Antonio. A gênese do processo histórico de demarcação de Terras Indígenas no Brasil
a partir da conquista da TI Toldo Chimbangue. Anais do XXIX Simpósio Nacional de História - - contra os
preconceitos: história e democracia. Brasília, 2017. Disponível em:
http://www.snh2017.anpuh.org/site/anais. Acesso em: 10/out./2018.
FERNANDE, Ricardo Cid; PIOVEZANA, Leonel. Perspectivas kaingang sobre o direito territorial e
ambiental no sul do Brasil. Ambiente & Sociedade n São Paulo v. XVIII, n. 2 n p. 115-132 n. abr.-jun. 2015.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A demarcação de terras indígenas e seu fundamento constitucional.
Revista Brasileira de Direito Constitucional , n. 3, jan./jun. – 2004, p. 689-699.
JORNAL DE SANTA CATARINA. “Situação normaliza, mas PM fica na Sede”. 27/08/1985, n/p.
NACKE, Anelise; RENK, Arlene; PIOVESANA, Leonel; BLOEMER, Neusa Maria Sens. Os kaingang no oeste
catarinense. Chapecó: Argos, 2007.
ROSA, Hilário; CASTELO BRANCO, Tales. Direito dos índios à terra no passado e na atualidade brasileira Gênese do indigenato. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI67436,101048Direito+dos+indios+a+terra+no+passado+e+na+atualidade+brasileira. Acesso em: 10/out/2018.
SILVA, José Valderi; RENK, Arlene. Guarani chiripa: oeste catarinense – uma região de conflitos. In:
WINCKLER, Silvana; PEREIRA, Reginaldo; TEIXEIRA, Marcelo Markus. Cidadania,
socioambientalismo, atores e sujeitos internacionais em diálogo com o Direito. [ebook]
São Leopoldo: Karywa, 2018, p. 423-431.
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Contexto político jurídico brasileiro da implementação dos
assentamentos na Fazenda Annoni (1970 a 1990)
Simone Lopes Dickel1
Resumo: O presente texto visa discutir a partir de referencial teórico pertinente de modo a traçar um
panorama do contexto político jurídico brasileiro no que se refere a reforma agrária nas décadas de 1970 a
1990, período em que ocorreu a implementação dos assentamentos na Fazenda Annoni. Este latifúndio foi
desapropriado no início da década de 1970, e teve a função social da propriedade como pressuposto
fundamental que possibilitou a desapropriação. Pretende-se apontar não apenas mudanças na legislação no
que concerne a reforma agrária, mas também na própria concepção de reforma agrária, analisando sua
influência no processo de reforma agrária na Annoni.
INTRODUÇÃO
Distante de fazer algum tipo de nova abordagem sobre a temática que é amplamente revisitada sob
os mais diversos enfoques, a presente discussão constitui-se num esforço necessário de compreender o
processo de assentamento, que resulta da ocupação da Fazenda Annoni em 1985, a partir do debate a nível
nacional sobre a reforma agrária nos diferentes momentos históricos. Debatida de forma incansável, a
concepção de reforma agrária pode sofrer mudanças nos diferentes contextos, para os sujeitos que a ela se
referem ou sobre ela se debruçam para tentar compreender.
Referenciado por muito tempo como assentamento modelo de reforma agrária (CAUME, 2006), o
processo de transformação do grande latifúndio situado na região Norte do Rio Grande do Sul,
desapropriado da família Annoni na década de 1970 por não estar cumprindo com sua função social, em um
espaço de reforma agrária, foi um processo que permeou diferentes contextos, e mudanças no debate em
torno da reforma agrária. Teve início no auge do regime militar quando o imóvel foi desapropriado. A
história da desapropriação da Annoni toma outros rumos no período da redemocratização, quando diante
das dificuldades do Estado em executar a reforma agrária, os movimentos sociais tornam-se protagonistas da
luta pela terra. Ao mesmo tempo em que estes constituem um fato político mantendo a reforma agrária na
agenda política da Nova República, grandes proprietários organizam a oposição política à reforma agrária.
Ao analisar o contexto e a forma como o assentamento aconteceu, vemos a materialização de uma
reforma agrária que não é consenso na sociedade, sobre a qual atuam diferentes forças políticas, distante de
ser considerada uma política de estado, comprometido com a transformação do campo a partir da
democratização do acesso à terra. Vemos também que os movimentos sociais se constituem na força capaz de
fazer contraponto à falta de vontade política, somada a uma legislação que embora preconize a reforma
agrária como forma de corrigir a estrutura fundiária tão desigual, deixa evidente nas suas entrelinhas uma
concepção privatista da terra, que acaba favorecendo os grandes proprietários. Por isso pode se concordar
com a ideia de Buainain (2008), de “reforma agrária por conflito”, para caracterizar o processo brasileiro que
em pouco ou nada contribui para alterar o quadro histórico de concentração das terras nas mãos de poucos,
para além da solução de conflitos mais pontuais.
Trata-se então, de pensar a discussão em torno da reforma agrária nos diferentes contextos
históricos, percebendo neles permanências e rupturas, mudanças na concepção de reforma agrária que
interferem nas leis e políticas públicas, repercutindo ou sendo repercutidos pelos diferentes segmentos da
sociedade civil que se organizam e passam a reivindicar a reforma agrária, ou se posicionar de modo
contrário a ela.
1 Doutoranda em História pelo PPGH da Universidade de Passo Fundo, orientada pela professora Dr Ironita P. Machado. E-mail:
simone.lopes.dickel@gmail.com
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Nesse sentido, o texto está dividido em três seções. Na primeira, será contextualizada a década de
1970 à luz do Estatuto da Terra, momento em que a fazenda foi desapropriada e o projeto de assentamento
que serviu de pretexto para a desapropriação acabou não se efetivando; na segunda parte, o contexto do
ressurgimento dos movimentos sociais e da grande ocupação em plena redemocratização; e na terceira parte,
o início da década de 1990 quando o assentamento definitivo é concluído, e surgem aos assentados novos
desafios como permanecer na terra, ao mesmo tempo em que no cenário nacional surgem críticas ao Plano
Nacional da Reforma Agrária, bem como em relação ao processo de constituinte que resultou na Constituição
de 1988.
BREVE BALANÇO DA REFORMA AGRÁRIA NO ESTATUTO DA TERRA
Caso atípico e por isso mesmo instigante, o decreto de desapropriação da Fazenda Annoni configurou
um primeiro passo do Estado para a transformação daquele que era um território de latifúndio, em território
de reforma agrária. Detalhe, em pleno regime militar. Sua atipicidade decorre do fato de que a legislação na
qual a desapropriação foi amparada, o Estatuto da Terra, que com poucas modificações orienta ainda hoje a
legislação brasileira no que se refere a reforma agrária, caracterizou-se por ter sido muito pouco utilizada
para o fim de modificar a estrutura fundiária. Sua ineficácia ou inércia rendeu-lhe inúmeras críticas e a
necessidade de elaboração de um Plano Nacional de Reforma Agrária, cujo objetivo seria tirar a reforma
agrária do âmbito legal, e colocá-la em prática estabelecendo metas para sua concretização.
Interessante notar, e não dá para fazer isso sem remeter ao contexto em que a primeira lei de
reforma agrária foi feita, que a divisão entre duas grandes diretrizes, a política agrícola e a política fundiária,
possibilitou ao Estatuto da Terra ser instrumento de transformações na agricultura, necessárias ao modelo
de desenvolvimento econômico defendido pelos militares, sem modificar a estrutura fundiária brasileira. Isso
foi possível mediante o processo de modernização amplamente apoiado pelo Estado através da concessão de
crédito farto e barato, cujos resultados ao longo do tempo acabam por acirrar ainda mais as desigualdades e
conflitos no campo. Nas palavras de Buainain (2008, P. 19)
A modernização conservadora do latifúndio reforçou a concentração da
propriedade da terra e o caráter excludente do modelo de desenvolvimento
agropecuário; como regra geral, as “relações arcaicas” foram substituídas por
relações de assalariamento temporário, embora, em muitas regiões, sem qualquer
proteção legal.
O Estatuto da Terra, elaborado por um Grupo de Trabalho designado por Castello Branco assim que
assumiu a presidência da República, objetivava ser uma resposta a um certo consenso criado no início da
década de 1960 no meio acadêmico e político de que a reforma agrária se constituía num imperativo ao
desenvolvimento capitalista. Nesse contexto, nas palavras de Jose Graziano da Silva (1981, p. 39), “A reforma
agrária visava então alterar a estrutura de posse e uso da terra no Brasil, para que pudesse haver um
desenvolvimento mais rápido das forças produtivas no campo. ” Ela tinha caráter principalmente econômico,
no sentido de tornar produtivas boa parte das terras que estavam ociosas e assim integrar o campo a
economia nacional, atuando no sentido de ajudar superar o chamado “atraso brasileiro” (BUAINAIN, 2008,
p. 28).
O modelo de reforma agrária definido pelo Estatuto da Terra, que também tinha o objetivo político
de amenizar os conflitos no campo sob a promessa de uma reforma agrária concedida de cima pra baixo, sem
a pressão e participação popular, era concebida basicamente “como assentamento de famílias de pequenos
produtores, Trabalhadores Rurais sem-terra, arrendatários, parceiros e meeiros em terras desapropriadas
por interesse social”. (BUAINAIN, 2008, p. 29)
Embora a possibilidade de desapropriação por interesse social tenha aparecido na Constituição
Federal de 1946, a ideia de que a propriedade da terra não deveria contrariar os interesses da coletividade
recebe uma importância maior no Estatuto da Terra, através do princípio da função social. O documento
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define um conjunto de requisitos que a propriedade deveria atender para que seu uso estivesse em
consonância com os interesses da sociedade, ou seja, para que ela cumprisse uma função social. Embora
constituída por aspectos econômicos, sociais e ambientais, a função social na maioria das vezes acaba sendo
utilizada como justificativa para a desapropriação de imóveis rurais quando o aspecto da produtividade é
ferido, o que faz com que o aspecto econômico se sobreponha aos demais. O que é passível de compreensão,
uma vez que a produção agrícola passa a ser bastante estimulada na época, tendo um importante papel no
desenvolvimento capitalista.
Stédile (2012) caracteriza as duas primeiras décadas de vigência do Estatuto da Terra, como 20 anos
em que se priorizou apenas os projetos de colonização, através da distribuição de terras públicas na fronteira
agrícola da Amazônia Legal. Nesse sentido, Ariovaldo Umbelino Oliveira (2007) caracteriza algumas práticas
dos governos militares no que concerne a reforma agrária como uma contra-reforma agrária. Segundo ele “
como não era real a intenção do governo militar do Marechal Castelo Branco de fazer a reforma agrária
quando assinou o Estatuto da Terra, parte de sua implementação foi sendo adiada. ” (2007, p. 122). No lugar
da reestruturação fundiária, dois programas foram levados adiante pelos governos militares
equivocadamente classificados como reforma agrária: os projetos de colonização implantados na
Transamazônica pelo INCRA, e o PROTERRA que era parte da estratégia do governo no sentido de
apresentar ao mundo financeiro capitalista e à própria sociedade brasileira que era possível fazer “reforma
agrária” sem violência e sem contrariar os interesses dos latifundiários nordestinos. (OLIVEIRA, 2007, p.
122)
A respeito das inúmeras e merecidas críticas ao Estatuto da Terra, enquanto os governos militares
priorizavam os projetos de colonização na região Amazônica, na região sul do país, à medida que o campo se
modernizava, cresciam as contradições e as tensões sociais, ressurgindo assim os conflitos agrários, fruto do
descaso relegado aos pobres do campo resultado de políticas públicas que priorizavam as grandes
propriedades. Contribuiu para engrossar o contingente de trabalhadores sem-terra no estado, a
desapropriação de pequenos agricultores para os projetos de construção de hidrelétricas. A formação da
barragem do Passo Real na região de Cruz Alta e Santa Maria, deixou centenas de famílias desalojadas.
Conforme Seminotti (2008, p. 77) “a maioria dos indivíduos que ali residiam era constituída de posseiros,
arrendatários, meeiros, filhos de proprietários, que segundo o decreto citado, não tinham direito à
indenização. ”
A expulsão daqueles que ficaram conhecidos como “afogados do Passo Real” criou uma demanda por
reassentamento no estado. A construção da Barragem do Passo Real e a necessidade de reassentamento de
muitas famílias foi o pretexto utilizado para desapropriar a Fazenda Annoni, através do Decreto nº 70.232. O
imóvel estava classificado oficialmente como latifúndio por exploração, o que permitia legalmente que fosse
desapropriado por não cumprimento da função social. Trata-se de um caso bastante peculiar de
desapropriação no Rio Grande do Sul para fins de reforma agrária, pois conforme pode ser visto até agora, o
Estatuto da Terra foi muito mais utilizado para fins de colonização, como é o caso dos Projetos de Integração
Nacional (PIN), e mesmo para beneficiar as grandes propriedades como foi o caso do PROTERRA, na região
Nordeste do país.
O que acontece nos anos subsequentes à construção da Barragem que tem início ainda no final da
década de 1960, e ao decreto de desapropriação, é uma longa espera pela solução definitiva do assentamento
por parte dos chamados “afogados” do Passo Real, diante de uma legislação que possibilitou aos
proprietários da Annoni uma série de embargos e dificuldades impostas à desapropriação sob o pretexto de
defesa do direito à propriedade. Tais impugnações resultaram na complexificação do processo, fazendo com
que ele perpasse décadas sem uma solução efetiva. Embora os colonos fossem instalados de modo provisório
no imóvel rural, a fazenda era alvo de intensa disputa judicial entre os desapropriados e o Incra. Era um
período permeado por incertezas sobre os rumos da propriedade.
De acordo com a legislação vigente, no caso o Estatuto da Terra, as terras escolhidas para serem
desapropriadas eram terras consideradas improdutivas, de acordo com critérios estabelecidos em lei, como o
Grau de Utilização da Terra (GUT) e Grau de Eficiência na Exploração (GEE). Os fatores que complicaram a
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desapropriação da Annoni foram; a possibilidade de modificação cadastral em vista do Decreto 70.231 2, e,
portanto, o latifúndio por exploração podia adquirir status de empresa rural e tornar-se imune a
desapropriação; além disso, a possibilidade de contradição acerca dos valores acertados em termos de
indenização, que de acordo com Buainain (2008, p. 30) possibilitaram
“aos proprietários recorrer na justiça e receberem, após os anos de processo
judicial, valores de indenização muito superiores ao equivalente ao preço de
mercado, devido simplesmente pela aplicação de juros e correção monetária sobre
o valor original. Esse fato gerou, em particular nos anos 90 do século passado, uma
das maiores distorções do programa de reforma agrária, já que em vez de punir o
latifúndio improdutivo, conforme previa o Estatuto da Terra, acabou assegurandolhes enormes vantagens.
As chamadas brechas na legislação, onde os proprietários encontram uma forma de barrar o processo
de desapropriação sob o pretexto de um direito absoluto à propriedade, contribuem muitas vezes para tornar
a reforma agrária não apenas complicada do ponto de vista legal, pois diferentes interpretações da lei
permitem questionar a ação do Estado, mas também onerosa para o mesmo, em função da incidência de
juros e correção monetária acrescidos ao valor global da indenização. O que de certa forma contribui para
que os programas de reforma agrária configurem muito mais um programa oficial para manter viva a
esperança, do que um projeto de desenvolvimento a ser realmente colocado em prática no país.
A REDEMOCRATIZAÇÃO, O CONTEXTO DE RESSURGIMENTO DOS MOVIMENTOS DE
LUTA PELA TERRA E A OCUPAÇÃO DA ANNONI
O início da década de 1980 é caracterizado pelo processo de transição democrática, com a eleição
indireta de Tancredo Neves em janeiro de 1985 e o gradual retorno das pautas sociais para o debate político.
Apesar da ideia oficial de uma transição lenta, gradual e segura, diversos setores da sociedade levantam-se na
busca de uma verdadeira ruptura com o período autoritário, o que de certa forma acabou não acontecendo. A
respeito disso, vale lembrar que no final de década de 1970 surgiam no país movimentos como a Campanha
da Anistia e a própria Campanha das Diretas Já, que pretendia contrapor-se ao processo de transição
defendido pelos militares, mas acabou também sendo frustrada. Por isso, o historiador Carlos Fico (2012)
caracteriza a transição democrática como um processo inconcluso, que não causou uma verdadeira ruptura
com o passado ditatorial, o que de certa forma ajuda a explicar a fragilidade da nossa jovem democracia.
No Sul do país, a resistência à um quadro de exclusão e miséria no campo decorrente de um longo
processo histórico que foi agravado durante o período militar, fez ressurgir no Norte Sul-Rio-Grandense os
conflitos pela terra. O chamado conflito de Nonoai, teve início com a resistência dos índios caingangues ao
processo de intrusão dos colonos, e culminou com a expulsão de quase mil famílias de colonos da reserva
indígena de Nonoai, coagindo o governo a pensar alternativas de emergência para resolução desses conflitos
em torno da terra (MARCON, 1997, p. 48). A rebeldia em relação a situação de exploração no campo, com a
qual foi conivente um regime que beneficiou ainda mais os grandes proprietários, alargando as
desigualdades, ressurgiu na região desafiando o caráter policialesco que ainda revestia a repressão aos
conflitos agrários.
A existência do Estatuto da Terra, concebido incialmente como instrumento para realização de uma
reforma agrária afim de coibir ou pelo menos diminuir os conflitos no campo, não mudou em quase nada
Publicado em 3 de março de 1972, assim como o decreto 70.232 (decreto que possibilitou a desapropriação da Annoni), dispunha sobre
a revisão cadastral dos imóveis rurais, estipulando um prazo para que os proprietários revissem a situação do seu imóvel rural, podendo
alterar a classificação do mesmo mediante comprovação do status da propriedade. Tem-se no “Art. 1º. A revisão geral do cadastro rural,
a que se refere o § 4º do artigo 46 da Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964, será realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária, em todo o território nacional, no período de 15 de março a 15 de junho de 1972, de acordo com os prazos fixados para
cada região em Instrução do INCRA aprovada pelo Ministro da Agricultura.”
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esse quadro de exploração e miséria. Corroborando com esta posição, Antônio Marcio Buainain (2008) cita
algumas considerações de Guedes Pinto (1995 p. 71) que resumem um balanço feito pela Associação
Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) na ocasião dos 15 anos da publicação do Estatuto da Terra. Dentre
essas informações, é citado o número de famílias beneficiadas por projetos de reforma agrária, num total de
9327, enquanto os projetos de colonização beneficiaram 39948 famílias. Como resultado dessa inércia dos
projetos de reforma agrária em detrimento dos projetos de colonização e incentivos à política agrícola, o
índice Gini da distribuição da terra no Brasil havia passado de 0,731 na década de 1960 para 0,867. Além
disso, o autor traz também “outros dados que mostram que a reforma agrária foi praticamente abandonada
enquanto a política agrícola dirigida aos que têm Terra foi implementada em larga escala”. (2008, p. 32)
A consequência no campo desse processo de modernização da agricultura mediante a “política
agrícola voltada aos que tem terra” foi o aumento da concentração fundiária, aumentando o espaço ocupado
pelas grandes propriedades, muitas delas modernizadas mediante concessões de crédito e incentivos fiscais,
uma vez que o imposto pago pelas empresas rurais, como passam a ser chamados esses latifúndios
modernizados e revestidos de caráter empresarial, era inferior ao que seria pago no caso dos latifúndios por
exploração.
Além da asfixia da pequena propriedade diante da pressão das grandes propriedades, a “revolução
verde”, compreendida como um conjunto de transformações no campo no qual a adoção de novas tecnologias
diminuiu a necessidade de mão-de-obra, gerou desemprego em grande escala no campo. Sem terras e sem
trabalho, ou, com quantidade de terras insuficiente para sobreviver do seu trabalho nela, muitos pequenos
produtores, meeiros, arrendatários, etc., pegaram o rumo das cidades, e o que encontraram lá foi
desemprego, subemprego e miséria. Condições péssimas e um ritmo de vida com os quais muitos não
conseguiam acostumar. Excluídos, à margem da sociedade, poder trabalhar na terra e dela tirar seu sustento
era visto como a única oportunidade de uma vida menos sofrida.
Esse contexto, associado à modernização conservadora, que José Francisco Graziano da Silva (1982)
chama de “modernização dolorosa”, foi denunciado em documento da CONTAG (Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura) em 1981, em razão dos dezessete anos do Estatuto da Terra
Hoje, tem os trabalhadores que enfrentar toda uma política agrária cuja tônica tem
sido a separação do trabalhador da terra, através da penalização do minifúndio e do
apoio, quase sem limites, à grande propriedade. A intervenção governamental no
campo cresceu nesses dezessete anos, não no sentido de atender às necessidades
das “legiões de assalariados, parceiros, arrendatários, ocupantes e posseiros que
não vislumbram, nas condições atualmente vigentes no meio rural, qualquer
perspectiva de se tornarem proprietários da terra que cultivam”, mas sim no de
favorecer a grande propriedade, através de isenções e subsídios, de suporte
financeiro a projetos antissociais ou, mais diretamente, de grandes obras públicas
que se tornam, elas próprias, motivos de desassossego para a população
trabalhadora rural. (CONTAG, Brasília (DF), 12 de novembro de 1981, p. 2)
Assumida como bandeira de luta pela CONTAG, a reforma agrária está inserida num contexto mais
amplo de lutas sociais, embaladas pelos ventos da democracia. Entretanto, diferente da década de 1960,
nesse contexto ela não tem um caráter essencialmente econômico, pois a estrutura fundiária deixa de ser
vista enquanto um entrave ao desenvolvimento da agricultura no país. A modernização conservadora criou
um novo padrão em que o latifúndio deixou de ser sinônimo de atraso, podendo ser visto como um aliado ao
modelo econômico vigente. Portanto, é colocada à prova a tese defendida na década de 1960, quando a
reforma agrária era vista de forma mais consensual entre as diferentes correntes políticas e intelectuais, de
que a modificação da estrutura fundiária era necessária ao desenvolvimento capitalista. Conforme assinala
José Graziano da Silva (1981, p.39) “a estrutura agrária brasileira não constituiu empecilho ao processo de
industrialização do país”.
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Entretanto, se por um lado as grandes cidades absorveram ao longo do processo de industrialização e
urbanização boa parte desse contingente de sem terras e excluídos do campo em razão da modernização que
manteve intacta a estrutura fundiária, o possível público da reforma agrária, é também verdade, de acordo
com José Gomes da Silva, que “o campo mandou também para o setor urbano sua carga de problemas”.
(1996, p. 183). Nesse sentido, nem tanto um instrumento necessário ao desenvolvimento econômico do país,
mas a reforma agrária passa a ser vista como uma questão social, como solução ao contingente de excluídos
do campo, que aumentam de forma decisiva as estatísticas do êxodo rural.
É nesse contexto que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é gestado, de 1979
até 1984, ano de sua fundação a partir do 1º Encontro Nacional no Paraná, passando a aglutinar e organizar a
resistência dos sem-terra ao processo que os colocava à margem da sociedade. De acordo com a definição de
Bernardo Mançano Fernandes (2012, p. 496), o MST
É um movimento sócioterritorial que reúne em sua base diferentes categorias de
camponeses pobres – como parceiros, meeiros, posseiros, minifundiários e
trabalhadores assalariados chamados de sem-terra – e também diversos lutadores
sociais para desenvolver as lutas pela terra, por Reforma Agrária e por mudanças
na agricultura brasileira.
Assim, o Acampamento na Encruzilhada Natalino pode ser entendido como um ato de indignação à
política fundiária do governo. Segundo Bernardo Mançano Fernandes “Essa forma de luta significa a recusa
dos camponeses à modernização conservadora. Essa política do governo privilegia o grande capital e tem
conduzido os camponeses à expropriação, à expulsão da terra, à exclusão, à miséria e a fome” (1999, p. 54).
Sobre o papel das ocupações de terra e formação de acampamentos, estratégia adotada pelo MST, Fernandes
(2008 p. 219) salienta que
Por meio das ocupações de terra, os sem-terra mantem na pauta política a questão
agrária. As ocupações de terra tornaram-se uma das principais formas de acesso a
ela. É, portanto, uma forma de criação e recriação do campesinato. (...) A ocupação
de terra é uma afronta aos princípios da sociedade capitalista. Mas, ao mesmo
tempo, também é uma forma de desenvolvimento do capitalismo, porque as áreas
ocupadas, quando transformadas em assentamentos, se tornam propriedades
familiares, que produzem a renda apropriada em sua maior parte pelos capitalistas.
Essa ação dos sem-terra pode então ser vista como uma discordância em relação ao caráter
excludente que reveste o desenvolvimento capitalista brasileiro, privando os que desejam trabalhar na terra
da condição de proprietários. Mas, ao mesmo tempo significa uma tentativa de inclusão no mesmo sistema,
uma vez que ao ocupar a terra, esse pedaço de território capitalista, os assentados tendem a trabalhar a
produzir também riquezas, muitas das quais acabam sendo apropriadas pelos capitalistas. Por isso o autor
afirma que “um conflito por terra é um confronto entre classes sociais, entre modelos de desenvolvimento,
por territórios”. É através das ocupações que o campesinato tende a se reconstruir. (FERNANDES, 2008, p.
199)
Esse desejo de se inserir com mais dignidade na sociedade, mas também de se reproduzir
socialmente através da produção camponesa, foi o que motivou as mais de 1500 famílias que cruzaram as
cercas do latifúndio Annoni na madrugada do dia 29 de outubro. Conforme estudo de Bavaresco (1999),
grande parte destes sem-terra tem origem no processo de minifundização na região norte do RS, sendo a
saída de alguns dos filhos de casa, vista como um certo alívio ao grupo familiar que fica na terra. Cansados de
esperar pelas promessas de governo, essas famílias se organizaram através do MST, para ocupar e pressionar
a realização da reforma agrária.
A escolha do latifúndio, próximo a Encruzilhada Natalino e as Glebas Macali e Brilhante, se deve ao
fato de que esta fazenda que já integrou parte do grande complexo Fazenda Sarandi, estava em litígio
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judicial, sem uma previsão concreta de resolução desde a década de 1970. Grande parte da fazenda estava
ociosa, embora abrigasse algumas famílias destinadas a área desde o início da década de 1970, o que se
constituía uma contradição justamente na região onde crescia o número de sem-terra.
Um ano antes da ocupação, teve início a preparação do IV Congresso Nacional dos Trabalhadores
Rurais, promovido pela Contag, embalado pela Campanha das Diretas já e a esperança de uma ampliação da
participação popular na tomada de decisões. Apesar de algumas discordâncias entre MST e Contag em
relação ao caminho para alcançar uma reforma agrária de fato transformadora, a solução encontrada foi a
conciliação, considerando-se o Estatuto da Terra como ponto de partida, mas explicitando-se a necessidade
de elaborar uma nova proposta de lei (MEDEIROS, 1989, p. 169).
Entre os principais aspectos da proposta que resultou da preparação do Congresso da Contag, a
possibilidade de desapropriação de empresas rurais; pagamento das benfeitorias das terras desapropriadas
em títulos da dívida agrária; estabelecimento de uma área máxima, estabelecida em módulos rurais, para os
imóveis; perda sumária da propriedade, acima de três módulos, quando 50% de sua área agricultável não
fosse utilizada; confisco para terras griladas ou com titulação duvidosa; distribuição gratuita de terra aos
trabalhadores beneficiados pela reforma agrária; proibição de compra e venda de lotes nas áreas de
assentamento. (MEDEIROS, 1989, p. 169)
De acordo com Medeiros (1989), a proposta constituía um rompimento com a política agrária dos
governos anteriores, e significou um estímulo à crença dos trabalhadores e do movimento sindical rural no
atendimento de suas antigas reivindicações, pela forma como foi gestada e os princípios que guiaram sua
formulação. Mas, por outro lado, essa aproximação do governo com os movimentos sociais soava como uma
ameaça aos grandes proprietários, que passam a organizar uma oposição ferrenha à reforma agrária.
Para contrapor e inviabilizar a realização da reforma agrária os pecuaristas e demais proprietários
fundaram a União Democrática Ruralista (UDR). De acordo com Medeiros, a violência tem marcado o perfil
da UDR, “Milícias armadas, coerção, espancamentos, perseguições, assassinatos reeditaram, de forma pouco
sofisticada, a secular atitude dos proprietários fundiários ante qualquer iniciativa de organização e
reivindicação dos trabalhadores. ” (MEDEIROS, 1989, p.188)
Houve um certo otimismo em razão do caráter democrático diante da manifestação do interesse do
governo em escutar as propostas dos interessados na reforma agrária. Conforme aponta Silva (1985, p. 11) “ o
debate público da proposta de reforma agrária é antes de tudo uma conquista da longa luta de toda a
sociedade brasileira, muito antes mesmo da Campanha das Diretas, pela participação das principais decisões
do governo”. Mas, o adiamento da aprovação e a reformulação da proposta dava indícios de que faltava apoio
político para a causa. (MEDEIROS, 1989)
O resultado dos sucessivos recuos mediante investidas e pressões dos ruralistas ao frágil governo da
Nova República, foram decepcionantes para aqueles que ousaram acreditar que desta vez a reforma agrária
seria efetivada no país. De uma reforma agrária popular, pensada no coletivo e transformadora, nascia uma
proposta “conciliadora” e descaracterizada, que tinha entre seus autores, alguns dos idealizadores do
Estatuto da Terra. Embora o texto do documento e a exposição dos motivos da proposta mantivesse a
“desapropriação por interesse social, estabelecendo uma meta de assentar 1,4 milhão de famílias entre
1985/89, a mudança do objetivo maior da proposta, de “mudar a estrutura fundiária do país” para
“contribuir para modificar o regime de posse e uso da terra” representava por si um retrocesso (SILVA, 1997,
p. 68).
Em função dos conflitos entre o governo Sarney, a UDR (União Democrática Ruralista), e os
camponeses sem-terra, posseiros, etc. o ministro do MIRAD, Nelson Ribeiro, acabou deixando o governo.
“Os números referentes ao primeiro ano do Plano (85/86) traziam já, o fracasso da reforma agrária da "Nova
República” de José Sarney. Havia sido atingido apenas 5% das metas das famílias assentadas e da área
desapropriada” (OLIVEIRA, 2007, p. 126).
No entanto, essa não foi a única frustração em relação a reforma agrária durante o governo Sarney.
Com a nomeação de Jader Barbalho para a presidência do MIRAD, veio o Decreto-lei nº 2.363 de 23 de
outubro de 1987, que feria muitos artigos do Estatuto da Terra e, de acordo com Medeiros (1989), seria “a
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última pá de cal sobre as esperanças de que alguma reforma agrária pudesse ser implementada através da
vontade política do governo Sarney”. O decreto, de acordo Oliveira (2007, p.128) definia que
(...) as áreas em produção não poderiam mais ser desapropriadas para fins da
Reforma Agrária. Assim, a desapropriação de áreas com produção de até 1.500 ha
na Amazônia, 1.000 ha no Centro-Oeste, 500 ha no Nordeste e até 250 ha no Sul e
Sudeste, não puderam mais acontecer. Além disso, para imóveis de até 10.000 ha, a
desapropriação passava a incidir sobre apenas sobre 75% da superfície do imóvel,
podendo os 25% restantes ficar sob controle do proprietário.
Sendo assim, restava aos trabalhadores, que se organizavam para exigir uma resposta à ineficácia dos
programas oficiais de reforma agrária, batalhar pela reforma agrária na Constituinte. “O plenário do
Congresso Nacional tornou-se, durante a Constituinte, um espaço de lutas por excelência” (OLIVEIRA, 2007,
p. 128), pois medindo forças com os movimentos socioterritoriais defensores de uma reforma agrária ampla,
geral e irrestrita, a oposição a reforma agrária encabeçada pela UDR atuava no sentido de barrar este
processo.
José Gomes da Silva escreveu em 1989 o livro “Buraco Negro: A Reforma Agrária na Constituinte”,
analisando os confrontos, mediações e propostas relativas a questão agrária durante o trabalho da
Constituinte em 1987/88. De modo geral, os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte duraram 20
meses e 4 dias, e resultaram na auto-elogiada por Ulisses Guimarães de “constituição-cidadã” (SILVA, 1997,
p. 72). Em relação a reforma agrária, os resultados do processo de eleições da Constituinte “embora não
fossem claramente favoráveis aos trabalhadores, permitiram esperanças”. (MEDEIROS, 1989, p. 202)
A conquista de apoio popular para a causa da reforma agrária angariada por diversas entidades tais
como Campanha Nacional pela Reforma Agrária, Contag, CNBB, Cimi, CUT, CPT, MTST, refletiu na
cooptação de um milhão e meio de assinaturas para um projeto de emenda popular. Este projeto de reforma
agrária ampliava o potencial reformista do Estatuto da Terra e “o seu eixo era a tese de que à propriedade da
terra rural corresponde uma obrigação social. ” (MEDEIROS, 1989, p. 202). Entretanto, a força política dos
ruralistas refletiu na criação de um dispositivo que torna isenta de desapropriação a propriedade produtiva.
“Com a vitória da política fundiária dos latifundiários, o governo Sarney sepultou o I PNRA. ” (OLIVEIRA,
2007, p 129)
Enquanto isso, nas diferentes regiões do país os movimentos socioterritoriais promoviam ações,
dentre as quais temos as ocupações de terras e formação de acampamentos que constituíam um fato político,
fazendo com que a reforma agrária permanecesse na ordem do dia (MEDEIROS, 1989, p.204). Muitas dessas
ações de questionamento e pressão em relação a reforma agrária saíram da Annoni, do acampamento que
surgiu da grande ocupação de 1985. Enquanto a solução efetiva para o conflito judicial não acontecia, os
acampados empreendiam diversas formas de luta e pressão para a realização da reforma no Estado, uma vez
que a área da fazenda não comportava o total das famílias que ali acamparam.
Essas ações, tais como caminhadas, a realização da Romaria da Terra, e tentativas de ocupação de
outras áreas, tinham também o sentido de sensibilizar a opinião pública para a situação de vulnerabilidade
das famílias que aguardavam ansiosamente ser contemplados com lotes de terra. Conforme frisa Medeiros,
“uma das marcas notáveis da vida política brasileira nos últimos quarenta anos foi a emergência dos
trabalhadores rurais na cena política, constituindo-se progressivamente como sujeitos sociais, numa
trajetória descontínua, marcada por avanços e recuos, vitórias e derrotas” (1989, p. 210). Os debates e
expectativas em torno das possibilidades criadas em relação a efetivação da reforma agrária, eram
compartilhados entre os assentados, que viam com desconfiança as promessas ao mesmo tempo que se
conscientizavam de que sem o protagonismo deles que eram os mais interessados na reforma agrária, ela
jamais sairia do papel.
Assim, os acampados entendiam que a permanência na área era a prioridade naquele momento,
mesmo com todas as dificuldades que permeavam o cotidiano do acampamento. O acampamento Annoni
durou um ano. Após decisões judiciais e a liberação de uma área maior, as famílias puderam se espalhar nas
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16 áreas. Enquanto não haviam terras disponíveis no Estado para o assentamento das famílias, no
“assentamento provisório” a divisão dos acampados em grupos levou ao que Bavaresco (1999) chama de
descentralização do assentamento. As preocupações voltaram-se a sobrevivência através da produção
agrícola nas pequenas extensões de terra destinadas a cada família. É nesse contexto, que tanto Igreja,
quanto Movimento e Estado, passam a incentivar a cooperação agrícola, estratégia produtiva que passa a ser
vista como alternativa viável em tempos de escassez de recursos.
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A CONCLUSÃO DE ASSENTAMENTO E A REFORMA AGRÁRIA NOS GOVERNOS COLLOR,
ITAMAR E FHC
A década de 1990 no Brasil foi influenciada pela emergência do chamado Paradigma do Capitalismo
Agrário, fornecendo um novo arcabouço teórico para a interpretação dos conflitos agrários e
desenvolvimento brasileiro. Esse aparato explicativo consolidou-se não apenas na academia, influenciando
importantes pesquisas em torno da questão agrária, mas também refletiu na prática dos governantes, através
de políticas públicas que utilizam essa forma de ver o campesinato dentro do desenvolvimento capitalista.
Marcada pelos poucos resultados em termos de assentamento de famílias no país, a década vive mudanças a
partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso. No entanto, é com esse mesmo presidente que a reforma
agrária, após um reavivamento a partir do assentamento de um significativo número de famílias, é relegada
ao esquecimento, seja pelo incentivo à chamada Reforma Agrária de Mercado, uma reforma agrária sem
conflitos, seja pela judicialização dos conflitos por terra, freando o número de ocupações, criando uma ilusão
de que não havia mais demanda para a reforma agrária, sendo ela descabida nesses novos tempos.
Usando a definição de Abramovay (2012) de paradigma, vemos que o autor faz referência a Thomas
S. Kuhn, pesquisador que tornou-se célebre pelo uso do termo nas ciências humanas. Segundo o autor, Kuhn
mostrou que ao contrário do que se imagina, os cientistas não são indivíduos prontos a aceitar as novidades e
desafios colocados pela ciência a partir das rupturas e mudanças que constituem sua evolução. Assim sendo,
os cientistas trabalham dentro de uma certa “normalidade”. A liberdade na ciência “não significa que a
comunidade científica autorize a pesquisar sobre qualquer coisa”. Haveriam instituições tais como
universidades e conselhos de pesquisa responsáveis por julgar “a pertinência de cada pesquisa com base em
um conjunto de crenças comunitariamente partilhadas pelos cientistas sobre o que, como e para quê
pesquisar. E a esse conjunto de crenças que se dá o nome de paradigma”. (ABRAMOVAY, 2012, p. 30)
Compreendidos enquanto diferentes modelos explicativos que não necessariamente anulam um ao
outro, temos dois grandes paradigmas: o Paradigma da Questão Agrária e o Paradigma do Capitalismo
Agrário, “como resultado das construções teóricas e metodológicas que procuram interpretar as realidades
através de duas visões de mundo, sendo que uma tem a perspectiva de superação do sistema capitalista,
enquanto a outra defende a sua manutenção. ” (FELICIO, 2011, p. 6)
Tanto os conflitos agrários quanto o desenvolvimento agrário são vistos de forma diferente pelos dois
modelos explicativos. Enquanto o Paradigma da Questão Agrária (KAUTSKY, 1986) defende a tese de que a
questão agrária é estrutural e engendrada pelo avanço do capital na agricultura, “esta questão não pode ser
solucionada pelo capitalismo e sua superação está na construção de uma outra sociedade” (FELICIO, 2011, p.
5), o Paradigma do Capitalismo Agrário defende que “os problemas agrários criados pelo capitalismo podem
ser solucionados por ele próprio, não existindo uma questão agrária na perspectiva do outro paradigma”,
sendo a agricultura familiar e o agronegócio apontados como soluções ao desenvolvimento.
De acordo com Fernandes “um conflito por terra é um confronto entre classes sociais, entre modelos
de desenvolvimento, por territórios. ” (2008, p.199). Enquanto no Paradigma da Questão Agrária, as
ocupações de terra representam uma tentativa de recriação do campesinato, através da sua territorialização,
que representa ao mesmo tempo uma disputa pelo território capitalista, mas também uma forma de
resistência ao modelo hegemônico “e enfrentamento com o binômio latifúndio – agronegócio” (2008, p.220),
para o Paradigma do Capitalismo Agrário, as ocupações de terra representam uma anomalia, algo que fere no
amago o desenvolvimento capitalista, criando “um mal-estar quando o assunto é contestar o capitalismo”.
Para este paradigma, “as perspectivas estão nas possibilidades de se tornar unidades do sistema. Assim, a
agricultura familiar é mais uma unidade do sistema, que caminha segundo os preceitos do capital. ”
(FERNANDES, 2007, p. 195)
Para além da academia e das pautas e projetos de governo, os dois paradigmas espacializaram-se e
foram incorporados também por movimentos socioterritorias. O MST, o mais organizado movimento
sócioterritorial (OLIVEIRA, 2007, p. 139), responsável pela ocupação da Fazenda Annoni e que passa a se
projetar em nível nacional a partir dessas experiências, usando como estratégia as ocupações de terra para
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pressionar um governo com pouco apoio ou vontade de fazer reforma agrária, organizando a resistência dos
camponeses ao processo de exclusão promovido segundo o Paradigma da Questão Agrária, pelo próprio
desenvolvimento capitalista. A solução para a questão agrária perpassava pela redistribuição massiva das
terras, território do latifúndio, e a adoção da reforma agrária enquanto modelo de desenvolvimento, em
oposição ao agronegócio. (FERNANDES, 2009, p. 45)
Compreende-se então a ocupação da Annoni e o processo de reivindicação da reforma agrária a
partir de outras estratégias diversas, enquanto uma forma de questionamento à forma que o
desenvolvimento capitalista assumiu, excludente e extremamente desigual. A ocupação em si trata-se do
questionamento da própria concepção de propriedade privada enquanto um direito absoluto, elemento
fundamental no sistema capitalista. Vista como uma afronta e geralmente de forma separada do
desenvolvimento, a ocupação que gera o conflito por terras assume o papel de pressionar o governo para a
formação de assentamentos, espaço de reprodução social camponesa, segundo o Paradigma da Questão
Agrária, ou da agricultura familiar, de acordo com o Paradigma do Capitalismo Agrário. De espaço de
resistência ao capitalismo através da estratégia produtiva própria do campesinato, à parte integrante do
sistema capitalista, onde o camponês “profissionaliza-se” e deixa de resistir para integrar-se ao sistema.
Enquanto os dois paradigmas competem, complementam e revezam-se para explicar a questão
agrária e o desenvolvimento capitalista no campo, movimentos socioterritoriais criam fatos políticos,
exigindo uma resposta do Estado, norteado por uma ou outra compreensão do problema agrário. Enquanto o
MST preconiza a construção de uma nova sociedade a partir da reforma agrária, ou pelo menos a construção
de um modelo alternativo ao hegemônico, conforme preconiza o Paradigma da Questão Agrária, a concepção
oficial de reforma agrária vai aos poucos sofrer influência do Paradigma do Capitalismo Agrário,
especialmente a partir do segundo governo FHC (FERNANDES, 2008, p. 193).
Após os ínfimos resultados do Governo Collor, quando “os defensores de uma reforma agrária
encabeçada pelo Estado, via desapropriação de terras, viam cada vez mais distante a realização de suas
intensões” (FERNANDES, 2009, p. 47), e o “Programa da Terra” foi frustrado em função do impeachment, a
limitação do poder estatal mediante desapropriações de terras para fins de reforma agrária continuou com
Itamar Franco, que assumiu no lugar de Collor em 1992. Mesmo com o aumento das ocupações de terras,
foram feitos apenas 127 projetos de assentamento, assentando 13.281 famílias. (FERNANDES, 2009, P. 48)
Dentro desse quadro de aumento das ocupações e conflitos agrários pelas diversas regiões do país, a
conclusão do assentamento da Annoni aconteceu em fases. No assentamento Encruzilhada Natalino fase 1
foram assentadas 57 famílias de agricultores desalojados pela Barragem do Passo Real (CAUME, 2006, p.
175). A medida que outras áreas de terra eram desapropriadas no estado, famílias acampadas na Annoni iam
sendo assentadas, em municípios como Tupanciretã, Santiago e Guaíba. Na segunda fase, 35 famílias foram
destinadas ao “Assentamento Holandês”, em 1987. Em função das dificuldades em desapropriar mais terras
no estado, e do grande número de famílias que aguardava a liberação de novas áreas, a conclusão de
assentamento na Annoni só aconteceu em 1993, quando mais de duzentas famílias passaram a ser
beneficiárias de políticas públicas destinadas à reforma agrária.
Embora não seja mérito desse texto, é importante ressaltar, a importância da presença do poder
público nos assentamentos, uma vez que o sucesso ou não dos programas de reforma agrária dependem da
“capacidade do poder público de implantar as condições estruturais mínimas necessárias para a viabilização
da unidade social de produção”.(BAVARESCO, 1999, p. 271) isso porque, segundo Bavaresco, “em geral, os
beneficiados pela reforma agrária chegam aos assentamentos completamente desestruturados materialmente
para iniciar o processo produtivo.”
Essa presença ou não do poder público depende muito da concepção de reforma agrária adotada. Nos
primeiros anos após a conclusão do assentamento na Annoni, durante o primeiro governo de Fernando
Henrique Cardoso (1995-1998), foram criados 2.389 assentamentos, “esses números eram os mais altos
registrados por um governo até então” (FERNANDES, 2009). Tais resultados, à medida que o governo
Fernando Henrique atende às pressões feitas pelo MST mediante ocupações, empolgaram novas ocupações
de terra pelo país, que aumentaram expressivamente.
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Especialmente a partir do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, o paradigma do
Capitalismo Agrário passa a orientar as políticas públicas, quando é criado o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e o programa Novo Mundo Rural, que tinha como
principais ações a criação de infraestrutura social nos assentamentos rurais, além da implantação da relação
de compra e venda da terra como forma de inibir as ocupações (FERNANDES, 2008, p. 193). Na intensão de
ajudar a integrar os assentados ao mercado mediante concessão de crédito, e de mostrar ao mundo uma
reforma agrária via mercado, através do Banco Mundial, portanto, mediante compra e venda e “sem
conflitos”, o governo encerra um ciclo de resultados expressivos em termos de reforma agrária como forma
de resposta aos conflitos de terra. Passando então a apontar para uma solução dentro da lógica do
capitalismo, em que a integração do camponês se dá a partir da compra da terra e sua profissionalização em
agricultor familiar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora constantemente revisitado, ainda há diversos olhares possíveis de serem lançados de forma
mais aprofundada sobre o processo de assentamento e a consolidação deste enquanto espaço de reforma
agrária na Fazenda Annoni. A importância dessas análises, em que pese a importância histórica que
constituiu a Annoni uma referência no país em termos de reforma agrária, está em compreender o papel dos
diferentes sujeitos que protagonizam esse processo, e perceber como a reforma agrária é pensada e
operacionalizada ao longo do tempo por aqueles que dela se apropriam transformando em bandeira de luta,
mas também por aqueles que se veem diante do desafio de colocar os interesses da coletividade, ou de alguns
grupos subalternos, uma vez que a reforma agrária não chega a ser um consenso na sociedade, acima do
interesse privado, ou de grupos que exercem grande pressão política, ocupando cargos importantes no poder
público. Espera-se com a discussão ter conseguido contextualizar as diferentes discussões em torno da
reforma agrária, mostrando como a história da Fazenda Annoni situa-se neste processo.
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A essência da arquitetura está no kitsch?
Tábara Varissa Petry1
Resumo: Refletir sobre a complexidade atuante do kitsch dentro da arquitetura contemporânea, em uma
época em que as influências são inspirações de diferentes tendências, como classificar esta arquitetura? O
kitsch não seria uma complementação e humanização onde a força e a essência estão na necessidade da
criação de um espaço único, classificado e moldado pelo próprio usuário? Tendo como concepção o âmago, a
alma do habitador. No que se baseia, ter uma arquitetura viva e humana, transparecendo as necessidades e
emoções referentes ao indivíduo/espaço, assim dando função ao ambiente de moldar-se ao seu explorador. A
arquitetura pode introduzir esta ação e usá-la a seu favor, equilibrando as concepções sem deixar de agregar
a riqueza conceitual. Estes elementos podem ser analisados nas construções religiosas, como as igrejas, que
afirmam a importância e a necessidade do kitsch para a representação do sagrado, para a imaginação e a fé
de seus seguidores.
Palavras-chave: Arquitetura. Kitsch. Movimento.
Is the essence of architecture in kitsch?
Abstract : Reflecting on the active complexity of kitsch within contemporary architecture, at a time when
influences are inspirations of different trends, how to classify this architecture? Is not kitsch a
complementation and humanization where strength and essence are in need of the creation of a single space,
classified and molded by the user? Having as its conception the core, the soul of the inhabitant. On what it is
based, to have a living and human architecture, showing the needs and emotions regarding the individual /
space, thus giving function to the environment to shape itself to its explorer. Architecture can introduce this
action and use it in its favor, balancing the conceptions while adding the conceptual richness. These elements
can be analyzed in religious constructions, such as churches, which affirm the importance and necessity of
kitsch for the representation of the sacred, for the imagination and faith of its followers.
Keywords: Architecture. Kitsch. Movement.
Introdução
No século XX nascia na uma nova visão de arquitetura, um novo estilo, distinto e enigmático. Apto
a adaptar-se as concomitâncias na atual sociedade e economia, que sofriam com guerras e transformações
econômicas. Seu conceito era projetar edificações com poder de expressar-se por si mesmas, dirigindo o
olhar e as emoções perante suas linhas, formas, cores, luzes e materiais, na composição do espaço proposto.
Para o arquiteto Le Corbusier a casa moderna não utilizava e necessitava de luxo, conceitualmente visava ser
uma casa-instrumento, uma máquina de morar, afastada de qualquer sentimentalismo. “O homem moderno,
para o arquiteto citado, é aquele que vive me um ambiente sem “objetos inúteis” e “ninharias ridículas” e
prefere o conforto de um ambiente funcional como aquele que encontra no seu espaço de trabalho”.
(TROMBETTA, 2015, p. 446-447). Uma obra pura e limpa, com a proposta de dar somente o necessário a seu
usuário, sem a concepção de ornamentos e figurações. “Nenhum período da história da arquitetura foi mais
criativo, mais destrutivo ou mais extenuante, quer para os arquitetos, quer para os inocentes espectadores”.
(BLAKE, 1974 apud PORTOGHESI, 2002, p.57)
Segundo o autor Portoghesi (2002), movimento moderno tão conhecido e impactante, trouxe uma
maneira mecânica de sentir a arquitetura, a busca pela leveza e formas geométricas de traços simples
associada a um espaço cuja função era produzir uma máquina de morar gerou edificações únicas e de
personalidade marcante, porém humanamente sem vida, sem alma. A abstração de ornamentos e a
preocupação com a forma desfocou a atenção aos desejos do principal elemento: o usuário. “Qualquer enfeite
1Arquiteta
e Urbanista formada pela Universidade de Passo Fundo, Rs.
Aluna do Curso de Mestrado em História, Patrimônio e Cultura. Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS.
79207@upf.br
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ou outro tipo de objeto seria desnecessário e corromperia não só a funcionalidade da casa como a sua beleza”.
(TROMBETTA, 2015, p. 447). A intenção de trabalhar a integração entre espaço interior com o exterior
utilizando diferentes materiais e os próprios materiais que o movimento adotou para suas criações mostram
mais um de seus equívocos, a falta de conforto ambiental e a problemática sustentável, que acarretam em
concepções falhas e enigmáticas.
Nascida para combater o desperdício dos ornamentos postiços impostos pelo gosto
eclético oitocentista, a arquitetura moderna, ao ser adotada pelo capitalismo em
ascensão por sua ética de austeridade e simplicidade, transformou-se
paradoxalmente na arquitetura do desperdício de energia: Um gigantesco
mecanismo de consumo dos limitados recursos da terra que, além de tudo, requer a
renovação contínua do seu efêmero patrimônio. (PORTOGHESI, 2002, p.41)
Para romper com padrões industriais, novas propostas arquitetônicas começaram a surgir em
meados de 1930, em confronto com as ideologias modernistas. Assim caminhando para um novo estilo de
arquitetura pós-moderna. Nesta nova forma de projetar foi inserida a história, a colagem e a justaposição de
diferentes estilos. A memória e a ação das pessoas são pontos primordiais para o significado das obras,
respeitando o passado e o usuário. (PORTOGHESI, 2002)
A industrialização proporcionou novas possibilidades sociais e culturais, estimulando um novo perfil
de indivíduo consumista, que se modifica conforme sua inserção e as possiblidades de ofertas oferecidas a
ele. A população mais humilde teve acesso a produtos antes exclusivos da aristocracia. Resultando na
sociedade globalizada atual, construindo seu próprio universo, categórico para conjuntura una e artificial ao
qual existe alento e refúgio. A base do kitsch é o consumismo civilizatório, em uma cultura onde a produção
acelerada é o enfoque, envolta em um ciclo que se produz para consumir, se cria para produzir. “O kitsch é
uma forma patológica da arte, um aspecto de alienação contemporânea [...] (MOLES, 1972, p. 22)
A medida que o movimento se expandia, o kitsch foi se introduzindo, agregado à arquitetura forma
lúdica e simbólica, uma identidade que define a ação e expressão de sentimentos de cada indivíduo, tornando
a edificação humanizada, aconchegante para quem a usa. Toda via, conceitos relativos a gostos pessoais
podem ter diferentes opiniões, o que pode ser belo e harmonioso para o indivíduo “A” pode ser brega e
inapropriado para o indivíduo “B”. Este é a grande fascínio gerado pelo kitsch.
O termo “kitsch” tem inúmeras derivações, do inglês sketch, com significado de “esboço”, partindo
de suposições oriundas da sua fusão no século XIX no comércio da arte, como uma maneira de mercadores
desvalorizarem obras para adquiri-las com menor valorização. (TROMBETTA, 2015) Em Munique aparece
por volta de 1860, originada do sul alemão pelo termo kitschen, adquirindo significados como atravancar,
recolher do lixo e fazer móveis novos com velhos. Tendo ligação também com o verkitschen, que se relaciona
a algo como trapacear, receptar, vender alguma coisa diferente do combinado ou utilizar astucia na execução
de móveis para se passarem por antiguidades. (MOLES, 1972) “Trata-se de um conceito universal, familiar,
importante, que corresponde, em primeiro lugar, a uma época da gênese estética, a um estilo marcado pela
ausência de estilo, a uma função de conforto acrescentada às funções tradicionais, ao supérfluo do
progresso”. (MOLES, 1972, p. 10)
Apresentar o processo do kitsch, sua essência, significado e uso na arquitetura e ornamentação do
espaço habitado, entender como classifica-lo para trazer a aceitação de sua linguagem, de suas mais
profundas particularidades é o caminho mais coerente e complacente para encontrar o equilíbrio e usá-lo em
favor da arquitetura. “O kitsch, entendido enquanto estilo, é a expressão de um projeto que renuncia a
qualquer pretensão de atender aos valores tradicionais da arte, como a verdade e a autenticidade”.
(TROMBETTA, 2015, p. 443)
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A trajetória das formas
“A forma segue sua função”, frase protótipo da arquitetura funcionalista. Segundo os autores
Guimaraes e Cavalcanti (1982), os métodos do funcionalismo estão especificados na Carta de Atenas. Tendo
pormenorizado os itens como a abolição do ornamento, estruturação do espaço por economia de
movimentos: ergonomia e estruturação por economia de meios: aproveitamento das condições de produção
mecânica.
O princípio básico funcional, ao estabelecer que os objetos deveriam ser
determinados por sua função, traz em seu bojo a ideia de rigor, de disciplina e,
portanto, de ascetismo. Acarretando como consequência uma luta sistemática
contra todo e qualquer irracionalidade, vai de encontro a tudo que pareça fugir à
função, inclusive a decoração. (GUIMARAES e CAVALCANTI, 1982, p.32)
“Examinado sob o ponto de vista dos princípios da arquitetura funcionalista, o kitsch é um
verdadeiro “escândalo estético””. (TROMBETTA, 2015, p. 447) “O kitsch pode ser compreendido como um
“efeito colateral” do projeto moderno nas artes e arquitetura”. (TROMBETTA, 2015, p.442). Dentro dessas
duas frases constata-se que a alusão a uma nova forma de arquitetura quando posta em prática pela maior
parte de seus usuários teve uma repercussão oposta a proposta inicial, a necessidade do indivíduo de tornar
seu ambiente humanizado com forte apelo por objetos tanto funcionais como antifuncionais correspondentes
ao seu padrão de gosto criam cenários que seguem o perfil do homem contemporâneo, sendo supridos e
substituídos dentro das possibilidades que cada cultura e época pode proporcionar.
Levando em consideração o fato do capitalismo de forma estratégica vincular a ideia de
funcionalidade com embelezamento, dando duplo sentido ao objeto, tornando o consumidor adstrito aos
produtos industriais. “Afinal, os espaços domésticos inevitavelmente se relacionam com seus moradores.
Assim como podemos analisar uma cultura através de seus produtos culturais, em menor escala podemos
analisar um morador conforme a construção de seu lugar de habitação”. (TORTATO ; AHLERT, 215, p.168)
A natureza dos objetos utilizados para a humanização dos espaços deve ser avaliada além do
funcional e antifuncional, qual o valor que ele agrega? Analisando sua representação simbólica, sua
composição com o contexto, sua carga emocional, referencial, sua artificialidade defronte ao ambiente
natural, fatores esses que fundamentam qual a relação dele com o indivíduo/ entorno, classificando-o dentro
de necessidades, questões decorativas, estéticas ou culturais.
Como Portoghesi (2002) relata, alguns fatores foram marcantes para o fim da arquitetura moderna,
como a participação de Fhilip Johnson, considerado hoje o patriarca do pós-modernismo, que em 1932, com
a colaboração de Russell Hitchcock criou a fórmula do International Style, com a filosofia de uma natureza
estilística, relativa e transitória. Outro elemento imprescindível para o marco transitório, é a afirmação que o
estilo teve até data de morte, – ás 15h32 do dia 15 de julho de 1972, com a implosão do conjunto habitacional
Pruitt-Igoe, construído em 1951. A obra priorizava a moradia para pessoas de baixa renda, setorizando o
espaço urbano, trazendo áreas de integração, com caminhos, estares e áreas verdes, porém os espaços
individuais eram repetitivos e remetiam a seus usuários a sensação de estarem em uma prisão.
Desconsiderado pelos psicólogos e sociólogos qualquer forma de adaptação ou restauração pela conclusão de
atribuírem a escolhas arquitetônicas grande parte da responsabilidade pelos atos de violência e vandalismo
gerados por seus habitantes – na maioria negros - e indivíduos que viam no local potencialidade para
marginalidade. A solução mais coerente foi a demolição, trazendo consigo grande carga negativa para um
estilo correlato a grandes críticas populares.
O ideal que originalmente justificava e conferia a conotação heroica à univalência
da linguagem arquitetônica moderna era o mito da reforma social, a esperança de
transformar a sociedade através da arquitetura, e assim evitar – segundo a teoria
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de Le Corbusier - a revolução política. Mas que sentido pode ter esta univalência,
depois da derribada do mito da esperança? Segundo Jancks, é hora de mudar a
rota, ou melhor, é hora de perceber que os arquitetos à frente das novas
investigações, aqueles que souberam compreender as exigências do nosso tempo
antes e melhor que todos, já mudaram de rumo há quase vinte anos, e que sua luta
prefigura as diretrizes de uma arquitetura diversa, tornada ao seio da história.
(PORTOGHESI, 2002, p.61)
A busca por uma expressão mais humanizada dentro da arquitetura eclode na despreocupação com o
belo, referenciando a cultura e a história que a rodeia, uma fala popular que dentro de seus critérios reage
contra as normas rígidas do funcionalismo. “O projeto funcionalista visa, sob esse ponto de vista, afastar a
arquitetura de qualquer sentimentalismo”. (TROMBETTA, 2015, p. 446).
Sobre a visão de Portoghesi (2002), o período pós-moderno difere-se do moderno por sua relação à
tradição, vinculando sua arquitetura com outros estilos, como o barroco e o maneirismo. Uma continua
evolução da sociedade e cultura usando padrões mais adequados e complexos. A base de estudos se dá pela
observação da metamorfose sofrida nas casas pelos seus moradores. No qual identificam a relação de usuário
e arquitetura nas suas vivências e experiências cotidianas.
[...] não nega a tradição moderna mas a interpreta de forma livre, a integra e revê
criticamente seus erros e acertos. Contra os dogmas da univalência, da coerência
estilística pessoal, do equilíbrio estático ou dinâmico, contra a pureza e ausência de
qualquer elemento “vulgar”, a arquitetura pós-moderna revalida a ambiguidade e a
ironia, a pluralidade de estilos, o duplo código que lhe permite voltar-se ao mesmo
tempo para o gosto popular, através da citação histórica ou vernácula, e para os
especialistas, através da explicitação do método compositivo e do chamado “jogo de
xadrez” da composição do objeto arquitetônico. (PORTOGHESI, 2002, p.61)
Em alguns escritos o arquiteto Louis Kahn discorre a metodologia de interverter a relação formafunção, imputando a responsabilidade à forma de expressar a função do espaço, sendo flexível e adaptável a
qualquer possibilidade de modificação. Repondo a arquitetura a si mesma e a sua história, abstraindo a
tecnologia, a geometria rudimentar e a pintura abstrata. Deixando um legado seguido principalmente por
Robert Venturi e Charles W. Moore. Nas propostas de Venturi suas ações eram consideradas mais realistas,
propondo mudanças leves no cenário urbano com modificações de formas profundas no contexto. Uma
reforma sem ilusões, considerado pelos pós modernistas o oposto da metodologia de arquitetos e urbanistas
modernos que propunham conceber espaços novos impossíveis de serem executados. Já no desenvolvimento
da arquitetura de Moore, o lugar é pensado com a presença ativa do homem e suas necessidades. Sua
arquitetura é figurativa, buscando o gosto pessoal do cliente, sua história, desejo, sonhos e memória para
transparecer na obra. (PORTOGHESI, 2002)
As instituições são abrigos da inspiração. Escolas, bibliotecas, laboratórios,
ginásios. Antes de acatar aquilo que é ditado pelo espaço, o arquiteto considera a
inspiração. Ele se interroga sobre a sua natureza, sobre o que distingue uma
inspiração da outra. Quando percebe tal diferença, ele não entra em contato com a
sua forma correspondente. A forma inspira o projeto. (PORTOGHESI, 2002, p.105)
Analisando o trajeto da arquitetura durante os estilos anteriores, os fatores de transformação e as
causas coerentes levaram para a consagração do kitsch, um elemento popularmente inserido na cultura de
massa, que possibilita de forma globalizada o acesso a produtos antes intangíveis a muitos indivíduos. Sua
forma de inserção provém da cópia e imitação de elementos, que personalizam a vivência de cada cidadão,
trazendo a realização de sonhos do espaço único e sagrado para o usuário que o comtempla. “Ainda que
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pareça contraditório, a reprodução em massa de objetos decorativos contribuiu para afirmar a singularidade,
a qualidade de “único entre todos””. (TROMBETTA, 2015, p. 444). Dentre as palavras de Sêga (2010) o kitsch
é um assunto de estranhamento que segue perplexo e sem uma definição, de difícil interpretação. A confusão
em seu significado muitas vezes acarreta em algo que é brega e de mau gosto.
Mas que justificativas são sensatas e congruentes para classificar algo de mau gosto ou impróprio
dentro de patamares arquitetônicos se conceitualmente ao olhar do consumidor o uso do kitsch está
evidenciando sua individualidade, seu âmago. A personificação do indivíduo, representado pela linguagem
do espaço habitável, classificado inconscientemente como seu refúgio.
O kitsch, na relação com o ideário funcionalista, assume um papel transgressor na
medida em que se instala nos ambientes construídos quando o arquiteto “dá as
costas”. Os cenários kitsch montados nos exteriores e interiores das casas, com suas
composições saturadas, bricolagem, objetos imitando elementos naturais (animais
e plantas), uso de cores chamativas, exageros, mosaicos e referências religiosas
realizam o propósito de criar “zonas de aconchego”, tornando o clima da casa mais
divertido e acolhedor. (TROMBETTA, 2015, p. 448)
Seguindo a análise de Trombetta (2015) a falta de compreensão do sentimentalismo propiciado pelo
kitsch expõe críticas como: a produção ingênua e imatura de efeitos e expressões emocionais, dando o
exemplo de enfeites de jardim, objetos produzidos de forma tosca, em gesso ou material similar que pela sua
forma remetem a expressões de meiguice e ternura; a manipulação das emoções; a evocação de falsas
emoções, que confere com a substituição de algo real que não se encontra disponível; releitura de emoções
baratas e fáceis e a distorção das percepções do pensamento racional, ou seja, o kitsch é adotado como uma
fuga para a criação do universo individual livre a qualquer sentimento proposto.
Pode-se notar na arquitetura kitsch uma necessidade de criação individual, de
personalização e afirmação social. Cada casa vai apresentar elementos diversos de
outras, elementos esses que geralmente estão ligados à individualidade do
proprietário. (GUIMARAES e CAVALCANTI, 1982, p.39)
A questão secular continua a gerar polêmica dentro o meio social. O que está evidente é que a
arquitetura contemporânea se encontra diversificada e sem um estilo único. Dentro de sua bagagem
histórica, cultural e conceitual, o kitsch está onipresente, indiferente de estar tímido ou expressamente
visível, ele sempre estará lá, seja na arquitetura, nos ornamentos de humanização dos espaços e na
linguagem de sustentabilidade e reaproveitamento de objetos para fins distintos da proposta original.
O kitsch pode ser criativo por várias razões. Por ser alternativo, econômico,
sugestivo, oportuno, funcional, além de possuir uma gama de adjetivos que
poderíamos atribuir-lhe. Ele complementa uma ideia, dá o toque desejado a um
ambiente, porém nunca é original na sua criatividade, nem na sua essência. O seu
aspecto alternativo acaba por resultar em uma solução adequada a uma situação ou
a um problema em questão. Por mais exigentes e por mais conhecedores de estética
da arte que formos, é quase impossível não sermos e não termos um pouco de
kitsch em cada um de nós. (SÊGA, 2010, p.62)
Uma forte tendência contemporânea é o reaproveitamento de objetos para a preservação de sua
história e fins sustentáveis. Tanto inseridos na decoração de um ambiente como na composição arquitetônica
da obra. Citando como exemplos os pneus, que depois de terem sua vida útil findada são aproveitados para
fazer balanços, hortas, jardins, entre outros..., e o projeto do arquiteto David Hertz em uma encosta de
Malibu, na Califórnia que utilizou asas de um avião 747 aposentado, para compor a cobertura da residência.
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Kitsch no sagrado
Intencionalmente o estilo moderno idealizava trazer para os templos religiosos uma arquitetura
que transparecia a fé, o místico, o sagrado, se revelando pelo uso de materiais e seus efeitos, como linhas
puras, a luz, cores, conceitos, criando representação de ambientações, cenas, tornando a obra arquitetônica a
própria devoção e simbologia da crença. Aboliram qualquer uso de ornamentação e elementos decorativos,
como imagens de santos e referências materiais e concretas para fazer tangível a função do espaço. Todos os
méritos seriam dados para a forma e a linguagem arquitetônica, nada mais era necessário para o diálogo com
o sagrado. Suscitando o empoderamento à edificação.
Do ponto de vista psicológico e emocional, ao subtrair o kitsch o efeito do ambiente para muitos
usuários perde o significado. A necessidade de elementos visíveis e materiais para afirmar crenças e
manifestações sentimentais está muito presente na cultura, solidificando a premência do questionamento do
que traz a essência para um projeto arquitetônico.
Como as autoras Tortato; Ahlert, (2015) na sua narrativa salientam:
[...] Há dezenas de milhares de anos pequenas grupos nômades carregavam consigo
estatuetas representativas daquilo que compreendiam como fertilidade e
produtividade; perpassando e complexificando a ritualística do culto às mais
diversas divindades em tempos e estatuas colossais, até a expressão de suas
inquietações individuais, seus temores e angústias, paralelamente a cenas de amor,
de beleza, de alegria, criando relações decisivas entre expressão artística e sua
concepção de subjetividade. (TORTATO ; AHLERT, 2015, p. 163)
O desligamento com esses ornamentos se torna algo muito distante, pois é no próprio lar que ele se
inicia, na decoração de suas áreas íntimas e jardins com imagens e esculturas que condensam a ideia de que
estando ali materializados a proteção está garantida, cerimônias, oferendas propostas possuem mais força
que somente singelas orações. Estes rituais automaticamente se estendem para ambientes de pregação que
qualificam a extensão do lar.
É da natureza do ser humano o apego ao ornamento, ao kitsch, independente do grau, todos
necessitam a criação de uma ambientação aconchegante para entrar em seu próprio universo.
Conclusão
O kitsch é um questionamento delicado, principalmente relacionado a arquitetura. Quais são seus
limites atingíveis para não descaracterizar a obra arquitetônica? Até que ponto o profissional pode interferir
na ambientação do espaço perante o habitador, o usuário. Que referências abranger em uma cultura que vem
de exageradas representações e o desprendimento ainda não se alcança para revelar uma arquitetura limpa
que expresse seu significado por ela mesma. E nessa arquitetura limpa já se enquadra os materiais
ecológicos, sustentáveis, que mais uma vez levam para o caminho do kitsch.
De diferentes direções se chega ao mesmo elemento: o kitsch. Ele está presente no cotidiano.
Mesmo não sendo um produto original ele tem o poder de se transmutar, e tornar-se original a partir do
momento que é utilizado para um fim singular.
Esse é o domínio que o indivíduo possui de seu espaço. Mudando o usuário as características e
necessidades serão outras, o que levará a uma forma espacial totalmente distinta.
Esto resulta ampliamente visible em el mundo de la arquitectura, especialmente si
se considera como arquitectura la proyección y la fruición del ambiente físico em
que vivimos, a todas las escalas dimensionales. Este ambiente. Hoy, há sufrido em
primer lugar um processo de objetualización, de passo cada vez más rápido de la
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naturaliza hacia la cultura través del objeto; la naturaliza se artificializa como
deleite tecnológico y como creación de un microclima más adaptado a la
supervivência social, pero esto sucede a través del objeto; la naturaleza se
artificializa como deleite tecnológico social, pero este sucede a través de la
incrustación, en la naturaleza misma, de los objetos produzidos por el hombre:[...]
(GREGOTTI, 2015, p. 254-255)
Cabe a coerência aos profissionais da área, arquitetos e urbanistas achar meios para a harmonia
entre esse elemento tão enigmático com a concepção arquitetônica. Conhecer as particularidades de cada
cliente e usar a favor na construção de um projeto onde a personificação se consolida e se humaniza
revelando sonhos, desejos e mistérios cabíveis no mundo de fantasias uno. “El objeto kitsch reproduce de
algún modo, en sus reglas de estruturación, este deplazamiento con respecto a lo real, que permite a la
auténtica obra creadora una nueva colocación con respecto alo real y tal vez un nuevo conocimento del
mundo”. (GREGOTTI, 1968, p.257)
É a sua essência sendo transformada em matéria. O projeto pode ter o mesmo programa de
necessidade para diferentes pessoas, como cozinha, sala de estar, dormitórios e banheiro, seguir formas
contemporâneas, mas é na humanização que a mágica se dá. É nela que o kitsch nasce, floresce e melhor se
encaixa na função arquitetural. “Elaborar sua morada de acordo com a sua filosofia de vida. ” (GUIMARAES
e CAVALCANTI, 1982, p.95)
Um questionamento que deve ser levantado em conta dentro da arquitetura religiosa, servindo
como uma reflexão para o uso do kitsch é por que esse fenômeno acontece? Qual a necessidade da devoção
pelas esculturas? O espaço consagrado, a obra em si não teria a responsabilidade de ser o canal para o
divino? Como ser perceptível e sensível às formas e conceitos arquitetônicos, respeitando o espaço por ele
mesmo.
Talvez a resposta esteja nos sentimentos. A concepção figurativa é mais perceptível que a abstrata,
tornando seu entendimento facilitado. O propósito do kitsch é esse, trazer emoção, está longe dele querer
competir com a arquitetura. A forma exagerada de sua utilização é que atrasa o processo de entendimento e
aceitação desse elemento tão complexo.
Referências
GREGOTTI, V. Kitsch y arquitectura. In DORFLES G. El kitsch. Antologia del mal gusto. Editora Lumen,
1968. p. 251-272.
GUIMARAES, D.; CAVALCANTI, L. Arquitetura kitsch: suburbana e rural. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
MOLES, A. A. Que é o kitsch? In___. O kitsch. A arte da felicidade. Tradução de Sérgio Miceli. São Paulo,
Perspectiva: ed. da Universidade de São Paulo. 1972. p. 9-22.
PORTOGHESI, P. Depois da arquitetura moderna. Tradução e apresentação Ana Luiza Nobre. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
RICCHINI, R. Casa feita com peças de um avião 747. Disponível em
<http://www.setorreciclagem.com.br/curiosidades/casa-reciclada-com-pecas-de-aviao/>. Acesso em: 06
ago.2018.
SÊGA, C. M. P. O kitsch está cult. Revista Signos do Consumo, São Paulo, V.2, N.1, Jun. 2010. P:53-66.
Disponível em <http://www.revistas.usp.br/signosdoconsumo/article/view/44361>. Acesso em: 06
ago.2018.
TORTATO, B. A. ; AHLERT, J. . A embriaguez de consumo: uma introdução ao kitsch. Asa-Palavra (Brumadinho), v. 1, p.
163 -168, jan./jul. 2015.
TROMBETTA,G. L. Entre a lágrima e a transgressão: a ambiguidade do kitsch no projeto moderno da arte e
da arquitetura. História: debates e tendências, v.15, n.2, p. 441-450, jul./dez. 2015.
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A influência do processo de internacionalização da agricultura brasileira na
expansão da fronteira agrícola
Tiago Dalla Corte1
Resumo: Este estudo aplica os aportes teórico-conceituais da história regional para discutir a influência do
processo de internacionalização da agricultura brasileira na transição dos séculos XX-XXI para a expansão
da fronteira agrícola do país. Para tanto, investiga os fatores determinantes do processo de
internacionalização da agricultura brasileira face ao período de reformulação da política agrícola na mudança
de conjunturas ocorrida na década de 1990. Em razão da relevância da reformulação da política agrícola e da
internacionalização da agricultura que acarretou a transformação do setor primário num dos mais dinâmicos
da economia brasileira, é que se justifica esta pesquisa. Em sua análise, apresentam-se questionamentos
sobre o ambiente econômico brasileiro e o impacto das reformas políticas sobre o setor agrícola, bem como
reflete-se sobre a influência da aceleração da globalização em relação ao movimento de internacionalização
da agricultura. No presente estudo, entende-se como internacionalização da agricultura o direcionamento do
esforço produtivo para atender a demanda de commodities agrícolas pela comunidade internacional. Diante
do exposto, procura-se identificar a relação entre a expansão da fronteira agrícola frente a consolidação do
processo de internacionalização da agricultura.
Palavras-chave: Agricultura brasileira; Fatores determinantes; Fronteira Agrícola; Internacionalização.
The influence of the process of internationalization of brazilian agriculture in the expansion
of the agricultural frontier
Abstract: This study applies the theoretical-conceptual contributions of regional history to discuss the
influence of the process of internationalization of Brazilian agriculture in the transition from the XX-XXI
century to the expansion of the country's agricultural frontier. In order to do so, it investigates the
determinants of the process of internationalization of Brazilian agriculture in view of the period of
reformulation of agricultural policy in the change of conjunctures that occurred in the 1990s. Due to the
relevance of the reformulation of agricultural policy and the internationalization of agriculture that led to the
transformation of the primary sector in one of the most dynamic of the Brazilian economy, is that this
research is justified. In their analysis, questions are raised about the Brazilian economic environment and the
impact of the political reforms on the agricultural sector, as well as on the influence of the acceleration of
globalization in relation to the internationalization movement of agriculture. In the present study, the
internationalization of agriculture is understood as the orientation of the productive effort to meet the
demand of agricultural commodities by the international community. In view of the above, it is sought to
identify the relationship between the expansion of the agricultural frontier and the consolidation of the
process of internationalization of agriculture.
Keywords: Brazilian agriculture; Determining factors; Agricultural Frontier; Internationalization.
INTRODUÇÃO
Durante a aceleração do processo de globalização nos anos 1990, o cenário no qual o agronegócio
encontrava-se envolto relacionava-se, cada vez mais, com a lógica do mercado. Essa era a racionalidade que
conduziu a reformulação dos instrumentos de política agrícola e a redefinição do papel do Estado na
agricultura (o qual era o provedor de confiança para a expansão econômica). A narrativa histórica sobre a
transição da conjuntura econômica da agricultura brasileira consolidou-se com a normatização das políticas
agrícolas, marcando o amplo processo de regulamentação de novos instrumentos de política agrícola (como,
entre outros, a elaboração de leis e de subsídios específicos para a agricultura). Contudo, apesar da
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF). Mestre pelo Programa de PósGraduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF). Possui MBA em Gestão Estratégica do Agronegócio pela
Fundação Getúlio Vargas (FGV). Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Economista. Docente da
Faculdade de Economia, Ciências Contábeis e Administração da Universidade de Passo Fundo (FEAC/UPF). E-mail: dallacorte@upf.br
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reformulação dos instrumentos de política agrícola e econômica ter criado condições para a expansão da
agricultura, essa só aconteceu a partir de 1995/96 com a melhora dos preços recebidos pelo produtor
brasileiro.
No início da década de 2010, os resultados e a dimensão alcançada pela agricultura apontavam-na
como um do setores mais dinâmicos da economia brasileira. Em 2000, segundo a FAO, o Brasil ocupava o 6º
lugar no ranking mundial de exportadores agrícolas. Já, em 2010, o Brasil alcançou a terceira posição no
ranking mundial de exportadores agrícolas, ultrapassando Austrália, China e Canadá, ficando atrás, apenas,
dos Estados Unidos e da União Europeia. No começo da década de 2010, o Brasil já ocupava a primeira
posição de exportação de produtos como café, suco de laranja, açúcar e carne bovina. Ocupava, ainda, a
segunda posição na exportação de importantes culturas como soja e milho. Nesse sentido, o agronegócio foi o
setor com maior contribuição para o crescimento da economia brasileira nos últimos anos, representando,
em 2012, aproximadamente, 22% do PIB brasileiro. Os estudos da FAO destacaram, também, que o resultado
alcançado pela agricultura brasileira foi obtido com a manutenção de 69,4% da vegetação nativa brasileira,
contra, apenas, 0,3% da manutenção da vegetação nativa europeia (FAO, 2012).
Perante essa reflexão e confrontação de informações é que sobressai a pergunta que passa a ser
investigada pelo presente estudo: Quais foram/são os fatores determinantes para a internacionalização da
agricultura brasileira e quais os seus impactos sobre a expansão da fronteira agrícola? De acordo com o
embasamento teórico que será apresentado, a resposta para essa questão é fundamental para que se
compreenda os pontos de ruptura em sua conjuntura a partir dos quais a produção agrícola brasileira
começou a ganhar destaque em relação à sua produção mundial e a fronteira agrícola consolidou a sua
expansão.
É diante da relevância do movimento de internacionalização da agricultura, a partir do qual o setor
passou a caracterizar-se como um dos mais importantes da economia brasileira, que se justifica o presente
estudo. Assim, tem-se como objetivo geral elaborar uma reflexão sobre o processo de internacionalização da
agricultura brasileira e da sua relação com a expansão da fronteira agrícola. Para tanto, utilizou-se do aporte
teórico da História Regional, o qual, entre outros ferramentais, permite a confrontação de fontes e a
comparação entre o regional e o global. Convém mencionar que o estudo realizado perpassou pela
investigação de diversas temáticas, em início, pela abordagem da conjuntura da agricultura brasileira no pósguerra e a interiorização do Brasil, em sequência, pelo estudo da transição de conjunturas, seguido pela
investigação da ocidentalização da dieta alimentar, bem como pela pesquisa da expansão da fronteira
agrícola e, por fim, pela relação das partes com o todo. Ressalta-se que os enfoques apresentados foram
considerados como condicionantes, ainda que não diretos, para a exploração do objetivo geral deste trabalho.
Dentro desse contexto, procurou-se desenvolver a discussão em torno do diálogo de fontes históricas
previamente definidas, com destaque para a Revista de Política Agrícola (RPA), periódico que emergiu no
período de transição de conjunturas no começo da década de 1990. O periódico RPA discute temas
relacionados à política e à agricultura, sendo a sua publicação de responsabilidade do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Na elaboração e na avaliação do conteúdo da RPA, o Mapa
conta com a colaboração de um corpo técnico atuante nas principais agências de pesquisa e companhias
relacionadas à agricultura no país, como EMBRAPA, CONAB etc. É importante salientar que algumas Cartas
de Política Agrícola foram assinadas pelos próprios ministros de Estado em exercício. As fontes históricas, de
acordo com a metodologia, foram trabalhadas como não excludentes ou antinômicas, mas como
complementares, optando-se pela soja como cultura de referência para este trabalho.
A AGRICULTURA BRASILEIRA NO PÓS-GUERRA E A TRANSIÇÃO DE CONJUNTURA
ECONÔMICA NA AGRICULTURA ENTRE 1990 E 1994
Foi no período do pós-guerra até a estruturação da nova ordem internacional (política, econômica e
comercial), no final da década de 1980, que se presenciou o desenrolar de vários fatores que precisam ser
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mencionados para a reconstrução do processo de internacionalização da agricultura brasileira. 2 O primeiro
fator relaciona-se à instauração de políticas que favoreceriam a internacionalização da agricultura brasileira,
a qual ocorreu quando a inflação começou a fugir de controle e quando a capacidade de importação atingiu
níveis críticos (após a empolgação desenvolvimentista do período 1955/60). A rigidez estrutural da oferta
agrícola foi apontada como a principal causa da elevação dos preços e, ainda, a agricultura começou a surgir
como um grande potencial para alavancar e diversificar as exportações brasileiras.
Nessa senda, a construção da oferta agrícola passou por um ambicioso programa de modernização.
Ele teve início em 1965, com a Lei 4.829, de 5/11/65, que criou o Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR),
e com o Decreto-Lei 57.391, de 7/12/65, que reformulou a Política de Garantia de Preços Mínimos, e
continuou nos anos posteriores com a ampliação dos estímulos à pesquisa agropecuária, por meio da criação
da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), com o incentivo à extensão rural, por meio da
criação da Empresa Brasileira de Extensão Rural (EMBRATER) no início da década de setenta, e com a
implementação de vários programas independentes, como o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados
(PRODECER), em cooperação com o governo do Japão, e de programas regionais como o POLOCENTRO.
Entre os pontos destacados acima, deve-se discutir a importância da criação da EMBRAPA, a qual
desenvolveu os pacotes tecnológicos para ocupação do bioma do cerrado, região onde a fronteira agrícola
consolidou a sua expansão. Com a manutenção dos recursos pelo governo federal, a EMBRAPA logo se
tornou um dos mais importantes sistemas de pesquisas dos países em desenvolvimento. A empresa pública
apresentava elevados investimentos no treinamento de seus pesquisadores, por meio de graduação no
exterior, garantindo-lhes todo o apoio operacional necessário. Como resultado dessa política, Schuh (1997, p.
18) relata que o sistema começou a gerar um fluxo contínuo de novas tecnologias para produção e, como
consequência, observou-se uma elevação na produtividade que, como destacou o autor, foi muito importante
durante a crise dos anos 1980.
Ainda, durante esse período, o governo investiu no desenvolvimento de programas de graduação em
Ciências Agrárias. O objetivo estava centrado na capacitação de novos pesquisadores para o crescente
mercado agrícola. Contudo, é importante relatar que, com o agravamento da crise fiscal brasileira, na década
de 1980, os responsáveis pela política reduziram o apoio aos programas de graduação e à EMBRAPA. Como
consequência, ambos os sistemas passaram por um sério declínio, provocando a saída de técnicos
especializados do Brasil, que foram em busca de empregos, tanto em organismos internacionais como na
iniciativa privada.
O segundo fator envolve a política brasileira de crédito agrícola, que, também, constituiu-se como um
dos elementos determinantes para a expansão da fronteira agrícola. Tradicionalmente, a resposta dos
encarregados da política para as crises na agricultura era a de fornecer crédito subsidiado para o setor.
Barros (1991) afirma que, desse modo, o setor agrícola tratou de se beneficiar dessa política ao longo dos
anos, aumentando a utilização do crédito subsidiado na década de 1970 e levando ao extremo essa política
durante a crise dos anos 1980. Os relatos demonstram que as taxas de juros reais para o crédito agrícola
chegaram a se situar entre 40% e 50% negativos. O volume de crédito agrícola era tão elevado que contribuiu
para a eventual perda de controle da política monetária por parte do governo.
Assim, convém informar, conforme dados do Banco Central do Brasil e do Ministério da Agricultura,
Abastecimento e Pecuária, que o período de 1975 e 1982 apresentou a maior sequência de duração (um total
de oito anos) de disponibilização de crédito agrícola pelo país. Nessa época, o volume anual disponibilizado
de crédito agrícola encontrava-se acima de 80 bilhões de reais (ano base 2010).
Segundo Schuh (1997, p. 19), esse crédito subsidiado compensou alguns dos recursos que foram
subtraídos do setor pelas políticas comercial e cambial. Entretanto, a distribuição dos benefícios delas era
bem diferente da política de distribuição dos impostos. Os relatos demonstram que esse crédito subsidiado
aumentou o valor da terra. Ainda, os grandes proprietários consagraram-se como os agraciados pela elevação
Nesse sentido, é possível observar os relatos contidos na Revista de Política Agrícola. Também, o artigo intitulado "Agricultura no
Brasil: Política, Modernização e Desenvolvimento Econômico", do autor G. Edward Schuh, na página 18, retrata os significativos
investimentos em pesquisa agrícola ocorridos no Brasil já no início da década de 70.
2
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dos volumes de crédito agrícola – em contrapartida dos pequenos proprietários. Além de exacerbar a
distribuição muito distorcida da renda do setor, essa política também deu condições para que os grandes
agricultores comprassem as terras de produtores menores. Dessa forma, esse movimento culminou na
migração dos pequenos produtores para o mercado urbano de trabalho.
Coelho (2001, p. 03) afirma que, no Brasil, o crédito rural oficial compõe a espinha dorsal do sistema
de financiamento da agricultura. Já, os instrumentos de suporte à comercialização e à transferência de risco
dependem pesadamente do apoio do Estado. Nesse sentido, pode-se afirmar que o volume de crédito
agrícola, com destaque para os elevados volumes da década de 1970, foi o principal mecanismo de incentivo
da abertura de novas áreas para cultivo e para a elevação da produção.
O terceiro fator relevante refere-se às consequências da crise econômica da década de 1980. Ela teve
efeitos salutares sobre a política econômica, já que teve que ser mais justa com a agricultura. Nesse período, a
dívida externa precisou ser respeitada e houve a necessidade de atração de capital externo para a economia.
Assim, como resultado, a proteção teve que ser reduzida, a taxa cambial ajustada, os impostos sobre a
exportação reduzidos e as exportações estimuladas. A maior parte dessas reformas políticas estimulava a
elevação da produção agrícola e a expansão da fronteira (COELHO, 1992).
Com base na fonte da Revista de Política Agrícola e nos relatos dos autores discutidos sobre a
caracterização da conjuntura da agricultura brasileira no pós-guerra e na interiorização do Brasil, é possível
evidenciar que o grande agente por trás de toda essa evolução ocorrida é o próprio governo brasileiro. As
grandes contribuições dele estão na disponibilização de recursos para produção via crédito agrícola
subsidiado e no fomento à pesquisa. Essa expansão via governo está dentro de uma conjuntura econômica
para a agricultura diferente da que se observa a partir da internacionalização, na qual um dos grandes fatores
característicos é a redução do papel do Estado na agricultura.
Os anos de 1990 começaram com novas perspectivas que foram estruturadas pensando no melhor
desempenho da agricultura no médio prazo. O período ficou marcado no Brasil pela abertura ao comércio.
Ainda, foi possível evidenciar que essas mudanças exigiram um grande esforço da agricultura brasileira no
sentido de absorver novas tecnologias e na busca de mecanismos de mercados nos quais o aspecto central
deveria ser a liberdade comercial e de preços (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E REFORMA AGRÁRIA,
1992).
Assim, o início da década de 1990 marcou de forma auspiciosa os campos legal e institucional da
agricultura brasileira. Nesse período, começou a ser concebida e implantada uma nova política agrícola com
o objetivo de praticar um novo padrão de crescimento no setor. Este enfoque inédito assumiu importância
maior no cenário da agricultura brasileira no momento em que mecanismos oficiais de subsídios ao setor
estavam exauridos. A ação do Estado voltou-se, então, para o estabelecimento de um entorno
macroeconômico e legal propício às atividades agropecuárias e ao fornecimento de serviços cujas
externalidades eram elevadas, como obras de infraestrutura física e a oferta tecnológica. Logo, esse padrão
baseava-se, fundamentalmente, em mais estímulos de mercado e em menos ações diretas de governo. Logo, a
política agrícola zelava para que o setor não fosse tratado discriminatoriamente pela política
macroeconômica, defendendo os princípios de mercado e apoiando o setor em negociações e na abertura de
mercados externos (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E REFORMA AGRÁRIA, 1992).
A expectativa no começo dos anos 1990 era de que a modernização da comercialização agrícola, em
conjunto com as necessárias reformas estruturais, garantiria à agricultura brasileira uma transição com o
mínimo de trauma de uma economia fechada para uma maior inserção no mercado mundial. É possível
observar também que a volta do Brasil ao sistema financeiro internacional viabilizou novas fontes de
investimentos produtivos para a agricultura e agroindústria. A partir de então, os objetivos da política
governamental estariam direcionados para a consolidação do crescimento da agricultura, aumento da
produtividade e maior liberdade de mercado (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E REFORMA AGRÁRIA,
1992).
O ano de 1991 pode ser definido como o marco inicial da nova conjuntura econômica para o setor.
Esse período foi delimitado com base nas sanções do Presidente Fernando Collor às denominadas Leis
Agrícolas. Essas leis estabeleceram as diretrizes básicas para a ação de Governo no setor. Os desafios
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enfrentados concentravam-se na estabilização da economia brasileira. O objetivo, assim, era criar um
ambiente que permitiria o planejamento das atividades de médio e de longo prazo que favoreceriam o
desenvolvimento do setor (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E REFORMA AGRÁRIA, 1992).
Nesse contexto, ressalta-se que o discurso do período relacionava-se à mudança no papel do Estado
no setor. Este deixaria de exercer uma função de protagonista no setor agrícola para desempenhar um papel
de regulador, sendo responsável pela condução das políticas sociais. É sob essa perspectiva que se passa a
buscar a abertura comercial e o acesso a novos mercados para a agricultura brasileira. Diante do exposto,
estava formatada e normatizada a nova conjuntura econômica que desenvolveria o potencial da agricultura
brasileira e a expansão de suas fronteiras agrícolas consolidadas dentro do processo de internacionalização.
A INTERNACIONALIZAÇÃO DA AGRICULTURA BRASILEIRA: O IMPACTO DA NOVA
CONJUNTURA NAS FRONTEIRAS AGRÍCOLAS
Conforme os artigos de política agrícola, até esse período, as várias tentativas para integrar a
economia brasileira no comércio mundial ou mesmo em blocos regionais tinham falhado em virtude da
pressão direta dos beneficiários do protecionismo aliados a grupos nacionalistas. Além disso, até então,
ignorava-se o princípio econômico elementar de que para aumentar as exportações é necessário também
aumentar as importações e que o importante para o Brasil era o incremento do comércio exterior e não
apenas um de seus componentes. O viés anti-importador do modelo em prática gerou a menor relação
exportação/PIB do país entre as economias mais importantes do mundo à época. O Brasil foi o único país
cuja posição no ranking dos exportadores não refletia a posição do ranking das maiores economias.
Assim, as discussões dos artigos de política agrícola voltaram-se, novamente, para o crédito rural,
sendo que o modelo implantado no Brasil, a partir de 1965, apresentou como uma de suas principais
características a convivência de situações de exagerado paternalismo e de exacerbado rigor. Com relação ao
exagerado paternalismo, podem ser citadas as regras e as condições altamente favoráveis em termos de juros
e de volume de recursos colocados à disposição dos produtores no decorrer das décadas de setenta e de
oitenta e, ainda, alguns perdões de dívidas aprovados na esteira de alguns planos de estabilização postos em
prática na segunda metade dos anos 1980.
É importante destacar que o crédito rural patrocinado pelo Estado permanecia sendo mundialmente
um forte instrumento de estímulo e de apoio à atividade agrícola como fonte de capital e como um fator de
equilíbrio na definição dos custos do financiamento. Todavia, existiram períodos nos quais a produção
agrícola elevou-se de maneira considerável, sendo neles o crédito agrícola público restrito. Assim, é
importante ressaltar Maia e Lima (2001, p. 836-838), que afirmam que a ocorrência de safras recordes em
1987, 1988 e 1989 no Brasil – período no qual o crédito rural encontrava-se em patamares reduzidos –
indicou que a agricultura brasileira estava relativamente imune à crise econômica da década de 1980.
Entre 1987 e 1990, pode-se observar um pico nos preços internacionais da soja. Logo, coloca-se em
evidência a importância do preço da soja em detrimento de um ambiente econômico instável e da baixa
oferta de crédito público para o setor. Houve um período de recuo nos preços após o pico de preços ocorridos
entre 1987 e 1990. O declínio de preços atinge as safras de 1990 até 1993. Logo, o declínio de preços
internacionais da soja apresenta-se como um fator de relevância a ser considerado para a explicação do
declínio das safras seguintes. Após o recorde de 71,48 milhões de toneladas colhidas em 88/89, deu-se uma
brusca interrupção no crescimento, o que coincidiu com a redução dos preços internacionais da soja. A safra
de 89/90 apresentou uma redução de 18,47% na produção total de grãos brasileira, com uma produção de
58,28 milhões de toneladas. A safra de 90/91 apresentou nova redução, de 0,65%, com uma produção de
57,89 milhões de toneladas. Ainda, houve uma forte expansão da área cultivada no centro-oeste no período
em que os preços da soja iniciaram sua trajetória de alta.
Logo, pode-se afirmar que as discussões da Revista de Política Agrícola, ou seja, os temas
relacionados, observados e pensados como fundamentais para a expansão da agricultura brasileira, não
foram os temas determinantes para o processo de internacionalização da agricultura brasileira. Fundamentase essa visão na falta de trabalhos sobre a relação dos preços agrícolas com a remuneração dos produtores,
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seus investimentos, a expansão de áreas e a elevação da produção. Não se pode reduzir a importância das
discussões realizadas pela Revista de Política Agrícola, porém, deve-se refletir sobre a hierarquia dos fatores
e das relações determinantes para a internacionalização da agricultura brasileira.
As evidências caminham no sentido de afirmar que foi no suporte oferecido pelos preços dos
produtos agrícolas e, consequentemente, nos retornos atraentes aos produtores, que o posicionamento da
atividade agrícola e as decisões positivas sobre os altos investimentos necessários para os plantios das safras
estavam embasados. Assim, é possível verificar que, internamente, o Brasil apresentava um conjunto de
fatores condicionantes importantes para a expansão da produção agrícola e do agronegócio, contudo esses
fatores não se apresentavam como suficientes para a internacionalização. Logo, embora não se tenha
encontrado evidências sobre um real planejamento visando alcançar um objetivo de internacionalização, a
transição de conjunturas moldou o setor agrícola para a internacionalização.
Convém também ressaltar que há relação da abertura anual de áreas para cultivo no Centro-Oeste
brasileiro com a venda de máquinas agrícolas a partir da elevação internacional dos preços da soja em 1996.
Foi a forte abertura de áreas que acabou por consolidar o movimento de ocupação do território nacional. A
aspiração de ocupação territorial no Brasil tem uma história longa cuja maior expressão ocorreu durante o
regime militar. Nesse sentido, embora o processo de ocupação apresente muitos símbolos como a construção
de Brasília, a construção da estrada Transamazônica e a política de crescimento populacional, a abertura do
cerrado para a produção de soja é outra fase desse movimento. Uma variedade de políticas governamentais
brasileiras e de programas específicos esforçaram-se em fomentar a produção de soja nos cerrados, o que
consolidou a soja como o grande motor do crescimento demográfico e econômico dos cerrados.
Ainda, é possível afirmar que o processo de internacionalização da agricultura apresentou como fator
determinante para sua consolidação a importação de soja pela China. Entende-se que esse movimento
acelerou os preços internacionais da soja, o que provocou aumento na abertura de áreas agricultáveis e na
demanda de tecnologia e de bens de capital através do consumo de máquinas agrícolas. Dessa maneira, de
acordo com os fundamentos apresentados, consolidou-se a relação de que a agricultura responde a preços. O
processo de internacionalização da agricultura deu-se por meio da melhora dos preços para o agricultor, que
foram responsáveis por acelerar o processo de interiorização brasileiro, por auxiliar o movimento de
ocupação do território brasileiro e por reanimar a indústria de bens de capital para o setor primário.
CONCLUSÃO
Em linhas gerais, constatou-se que os determinantes para a internacionalização da agricultura
brasileira estão relacionados com os preços recebidos pelo produtor, que, no caso da cultura de soja, são
derivados principalmente dos preços internacionais da soja e da taxa de câmbio brasileira. Os preços
internacionais da cultura de soja são estabelecidos pela oferta e demanda do produto, enquanto a taxa de
câmbio, a partir de 1999, estabelecida com flutuante, é formada a partir da oferta e da demanda de moeda
estrangeira. Ainda, esses elementos iniciam seus movimentos de convergência que resultam na elevação do
preço recebido pelo produtor brasileiro a partir de 1995/96 e alcançam seu momento de maior relação em
janeiro de 1999, com a liberação da taxa de cambio brasileira. Nesse momento, a taxa de câmbio passou por
uma considerável desvalorização, o que elevou os preços da soja para o produtor brasileiro.
É a combinação desses dois fatores necessários que se apresentam como determinantes para a
efetivação do processo de internacionalização da agricultura brasileira e para a expansão de sua fronteira
agrícola. Todavia, embora apresente-se a elevação dos preços internacionais e a desvalorização do câmbio e,
consequentemente, dos preços finais ao produtor como fatores determinantes para a internacionalização da
agricultura brasileira, convém referir que o resultado afirmativo para o crescimento e a sustentação da
produção de soja no Brasil foi, também, uma resposta aos preços reagentes devido às consideráveis
mudanças da demanda mundial por produtos derivados da soja. Isso, por sua vez, não representa uma
simplificação da cadeia de eventos.
Ainda, nesse contexto, deve-se destacar a velocidade de resposta oferecida pelos produtores
brasileiros frente ao aumento de preços e de renda. A resposta rápida da agricultura brasileira, em termos de
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ampliação de área para cultivo e de elevação da produção e produtividade, relacionou-se aos incentivos, à
estrutura e às políticas agrícolas. Esses incentivos caracterizaram-se como elementos necessários ao processo
de internacionalização. Entretanto, eles não foram suficientes para iniciá-lo. Importa mencionar que essa
constatação cristalizou-se com a observação de que a região com maior abertura de área de cultivo foi a
região centro-oeste (cerrado). Sem a criação de um pacote tecnológico para a produção nos cerrados, a
abertura de áreas na região não aconteceria com a mesma velocidade. Contudo, sem a demanda chinesa,
responsável por elevar os preços internacionais, não haveria motivação para a ampliação da produção nos
cerrados. Logo, a criação de pacotes tecnológicos são entendidos como elementos necessários para o processo
de internacionalização e de expansão da fronteira agrícola, porém não suficientes sem a entrada chinesa no
mercado internacional (o que ocorreu entre 1995/96) e seus impactos sobre a renda e os preços recebidos
pelo produtor brasileiro.
Diante do exposto, demonstrou-se o impacto da transição de conjunturas sobre o papel do Estado
brasileiro na economia e na agricultura, o qual passou a sua função para o setor privado e o livre mercado.
Dessa maneira, é possível concluir que a década de 1990 consolida um nova relação do Estado brasileiro com
a agricultura e com as fronteiras produtivas. Aqui se encerra esta pesquisa, mas não se esgota o tema e nem a
história do processo em questão. As permanências dos segmentos ligados à conjuntura anterior estão
conflitando com o modelo atual. Embora o Estado tenha se afastado da agricultura, alguns segmentos ainda
ficaram sob sua tutela, permanecendo dentro da conjuntura anterior à internacionalização da agricultura.
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brasileira. In: YEGANIANTZ, L. Pesquisa agropecuária, questionamentos, consolidação e
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Migração italiana e alemã:
o caso da Comunidade de Boa Esperança- Crissiumal/ RS
Tiara Cristiana Pimentel dos Santos1
Ronaldo Bernardino Colvero2
Resumo: A migração italiana e Alemã no Noroeste do atual estado do Rio Grande do Sul, se deu devido a
vários fatores como, o esgotamento de terras nas antigas colônias, estas que se situavam mais ao norte do
estado e o incentivo a ocupação das terras do Noroeste, com intuito do governo de fortificação as fronteiras,
principalmente com a Argentina. As terras do Noroeste chamaram atenção pois eram terras que ainda não
haviam sido cultivadas pelo homem europeu, os colonos as chamavam “terra nova ou roça nova” a atual
cidade de Crissiumal, foi o último município em que as terras ainda eram devolutas a ser cultivado. O
objetivo deste trabalho e escrever como que ocorreu a migração dos colonos para esse espaço e a posse das
pequenas propriedades, através das terras devolutas. Para a o desenvolvimento desta pesquisa
operacionalizamos ela a partir da heurística. nos propomos também a trabalhar na perspectiva da
subjetividade testável. Todas estas questões sempre nos apropriando das bibliografias pertinentes ao tema
proposto para ser pesquisado e a pesquisa nas fontes documentais. Portanto o trabalho desenvolve a história
do minifúndio em Crissiumal na comunidade de Boa esperança, partindo dos desmembramentos dos
municípios, de palmeiras, após Três Passos, até chegar no município de Crisssiumal.
A imigração no atual estado do Rio Grande do Sul, iniciou no início do século XIX, com a chegada
dos Alemães e mais tarde dos Italianos, projeto implementado pelo império brasileiro e continuado após o
advento da república com intuito de melhorar a defesa das fronteiras brasileiras, ampliação da oferta de mão
de obra no meio rural e nas cidades, na perspectiva de um possível aumento da economia brasileira.
Em se tratando de imigração “A saída encontrada pelas elites para substituir a mão de obra escrava
foi realizar uma intensa propaganda na Europa, em especial na Itália, na Alemanha e na Espanha, para atrair
os camponeses pobres e excluídos pelo avanço do capitalismo industrial no final do século 19 na
Europa.”(STEIDILE, 2011 p. 25) dessa forma o território continuou na mão dos grandes proprietários de
terras, e a vinda dos imigrantes com a ilusão, de terem suas próprias terras, pois uma grande parcela dos
imigrantes foram trabalhar nas plantações de café nos estados de São Paulo e Minas Gerais, outros
permaneceram nas cidades. Muitos acumularam um pouco de dinheiro e mais tarde compraram suas terras,
outros compraram lotes financiados pelo governo através das companhias de imigração, e assim
sucessivamente foram iniciando sua trajetória de luta pela melhoria das condições de vida.
Os colonos que se designaram para o Sul, que foi o caso dos Alemães e italianos no século XIX, não
foram designados para suprir o trabalho escravo e sim para fazer a povoação das áreas, habitadas pelos povos
originários, havendo um deslocamento dos povos que ali abitavam, para as áreas de reduções assim.
Para a história do planalto rio-grandense e e, especialmente, para a de seu
noroeste-fronteiriço, o conceito de colonização deve ser imediatamente revisto. A
sua adoção resultou no privilegiamento de um método de representação positivista
e artificial, sob ótica da intrusão estatal-imigrante.(GOLIN, 2002, p. 38)
Académica de Ciências Humanas – Licenciatura da Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA – Campus São Borja/RS bolsista
Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul FAPERGS. Membro do grupo de pesquisa/ Relações de Fronteira:
História, Política e cultura na tríplice aliança Brasil, Argentina e Uruguai. tiaracpds@gmail.com
2 Prof. Dr. Ronaldo Bernardino Colvero. Diretor do campus de São Borja – UNIPAMPA; Mestre em História Regional - UPF - Passo
Fundo – RS; Doutor em História das Sociedades Ibéricas e Americanas - PUC - Porto Alegre – RS; Prof. Adjunto da Universidade
Federal do Pampa - UNIPAMPA - Campus de São Borja – RS; Professor do Mestrado em Políticas Públicas da UNIPAMPA campus São
Borja e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural - UFPEL . rbcolvero@gmail.com
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Desta maneira a propaganda de terras devolutas por várias empresas, de imigração, fazia a ponte
para que as informações chegassem até os colonos. Conforme a lei n° 601, de 18 de setembro de 1850 sobre
terras devolutas, os artigos abaixo especifica que;
Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias: 1º, para
a colonisação dos indigenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de
estradas, e quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º,
para a construção naval.
Art. 14. Fica o Governo autorizado a vender as terras devolutas em hasta publica,
ou fóra della, como e quando julgar mais conveniente, fazendo previamente medir,
dividir, demarcar e descrever a porção das mesmas terras que houver de ser
exposta á venda, guardadas as regras seguintes:
§ 1º A medição e divisão serão feitas, quando o permittirem as circumstancias
locaes, por linhas que corram de norte ao sul, conforme o verdadeiro meridiano, e
por outras que as cortem em angulos rectos, de maneira que formem lotes ou
quadrados de 500 braças por lado demarcados convenientemente.
§ 2º Assim esses lotes, como as sobras de terras, em que se não puder verificar a
divisão acima indicada, serão vendidos separadamente sobre o preço minimo,
fixado antecipadamente e pago á vista, de meio real, um real, real e meio, e dous
réis, por braça quadrada, segundo for a qualidade e situação dos mesmos lotes e
sobras.
§ 3º A venda fóra da hasta publica será feita pelo preço que se ajustar, nunca abaixo
do minimo fixado, segundo a qualidade e situação dos respectivos lotes e sobras,
ante o Tribunal do Thesouro Publico, com assistencia do Chefe da Repartição Geral
das Terras, na Provincia do Rio de Janeiro, e ante as Thesourarias, com assistencia
de um delegado do dito Chefe, e com approvação do respectivo Presidente, nas
outras Provincias do Imperio.
Art. 17. Os estrangeiros que comprarem terras, e nellas se estabelecerem, ou vierem
á sua custa exercer qualquer industria no paiz, serão naturalisados querendo,
depois de dous annos de residencia pela fórma por que o foram os da colonia de S,
Leopoldo, e ficarão isentos do serviço militar, menos do da Guarda Nacional dentro
do municipio.
Muitos imigrantes vieram com grande esperança de melhorias nas condições de vida, entre elas ter
a sua própria propriedade.
No final do século XIX, desenvolveu-se um novo fluxo migratório através dos
projetos de colonização voltados para colonos de origem europeia (alemã, italiana,
polonesa, russa entre os principais), que se instalaram como pequenos
proprietários nas áreas florestais. Muitas “colônias” foram fundadas em terras
concedidas pelo. Estado, e outras resultaram de projetos de colonização de
companhias privadas, especializadas em comercialização de terras. (ZARTH, 1999,
p 110)
Mais espaços foram ocupados, e uma nova economia, veio a surgir com o minifúndio, contrariando
a economia do Rio Grande do Sul que abrangia o latifúndio e as grandes propriedades de terras, assim a
articulação de uma politica, de ocupação destas terras devolutas em regiões de fronteira, onde o governo do
estado, preocupado com a ocupação dessa região, iniciou uma política da ocupação destas terras para os
migrantes e seus descendentes. “Os investimentos realizados nos países atrasados conciliavam interesses
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políticos (manutenção de um certo equilíbrio geopolítico entre as potencias imperialistas, ainda que
temporariamente) com vantagens econômicas”. (ARRUDA, 2012, p. 101). As vantagens que o governo tirou
diante de tal conjuntura se deu através da manutenção de suas fronteiras no sul do Brasil e da arrecadação da
venda dos lotes, da ampliação da agricultura, do povoamento de áreas de mata chamadas de terras virgens,
do aumento de arrecadações de impostos, da diversificação cultural, pois o nosso objeto de estudo é o
noroeste do estado do Rio Grande do Sul, espaço este ocupado anteriormente por uma estância jesuítica e
por outros povos originários.
As florestas de pinheiros, os campos grossos, as terras quentes do Alto Uruguai,
conferem feição econômica peculiar a essa, dir-se-ia, metade Norte do Rio Grande,
que só veio a tomar real importância no conjunto após a Independência do Brasil,
com a entrada dos imigrantes alemães e italianos. Construíram estes, na maior
parte dessas regiões um arcabouço econômico de grande solidez. A pequena
propriedade de exploração intensiva, aliada à indústria, estão transformando a
floresta e os vales intratáveis em risonhos centros de fartura e de paz. Enquanto
não se construiu a estrada de ferro, as regiões centrais do País. (GUILHERMINO,
2002 p.17)
A transformação destes locais se deu pelo processo de certa ilusão por parte dos migrantes, a ideia
de riqueza que os mesmos tinham, após a ocupação através dos investimentos feitos com a agricultura
intensiva e o plantio de diversas culturas. Fez com que esses espaços de fronteira se consolidassem de forma
diferente e o que era ilusão no início iria se tornar realidade mais tarde, principalmente com a abertura de
estradas que ligariam as colônias a outras cidades.
Colonos na região de Crissiumal
O Noroeste do estado, principalmente a região onde está situada a cidade de Crissiumal no Rio
Grande do Sul começou a ser ocupada pelos migrantes no século XIX, sendo o último município a começar a
receber migrantes, justamente por ser um território, de relevo mais ondulado chegando mais perto do rio
Uruguai se tornando acidentado, sendo de mata fechada de floresta subtropical, território de povos
originários do Rio Grande do Sul, espaço onde foi a estância missioneira de San Francisco Javier. “Os
indígenas que causavam problema para a ocupação do território eram os Kaigangs, que viviam nas florestas
ao norte e, com frequência atacavam os viajantes e tropeiros que circulava pela região” (ZARTH, 2002, p 80)
por ser uma região de difícil acesso geograficamente, e o governo estando com uma política de ocupação e
fortificação de fronteira através das terras devolutas, fator que impulsionou a imigração e a migração, pois
começou a surgir empresas privadas de compra e venda de terras que faziam a venda dos lotes das colônias, o
preço da terra também havia dobrado pois as empresas colonizadoras privadas compravam as terras do
governo e faziam a revenda para os colonos como explica ZART:
Após esse impulso, dado pelo governo através da criação das colônias oficiais um grande comércio
de terras instalou-se na região e, finalmente, a definição de Leo Waibel pode ser observada: matas
derrubadas, povoados brotando da terra quase da noite para o dia, preços da terra se elevando. (ZARTH,
2002, p. 81). Antes do aumento do preço da terra nesta região que é denominada de região noroeste mais
especificadamente Alto Uruguai, as terras eram de valor bem acessível, comparado com as terras ao norte
perto das antigas colônias velhas, de onde a maioria dos migrantes estavam.
Desta maneira começou a se consolidar o processo de migração e de formação de várias famílias na
região noroeste do estado, onde muitos já eram descendentes de imigrantes das famílias de outras colônias
onde não havia mais terras a serem distribuídas para os filhos dos imigrantes, com isto a região noroeste era
considerada pelos governantes como de matas virgens, pois não haviam sido ocupadas para realização de
plantações. Os filhos de imigrantes italianos e alemães das cidades já consolidadas, como município de
Estrela, Estancia Velha, São Leopoldo, Vale do Taquari, “Em 1824, fundou-se a colônia de São Leopoldo, nas
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proximidades de Porto Alegre, no sopé da serra gaúcha. Eram distribuídos 77 hectares de terra, ferramentas,
sementes, subsídios, etc.” (MAESTRI, 1986, p. 139)
Anos mais tarde o que eram chamadas de antigas colônias de imigração, os lotes de terra já estavam
esgotados, não permitindo que os próprios descendentes dos imigrantes, pudessem permanecer nestas
regiões, considerando estes fatores, a busca pela compra de novos lotes de terras produtivas ocorria cada vez
mais longe das colônias, para iniciar uma nova vida, em outros lugares mais produtivos, passa a se falar
então da fronteira agrícola que se caracteriza com os seguintes fatores.
1º - o estágio "não-capitalista", no qual as atividades estão ligadas ao extrativismo e
as trocas são limitadas. O mercado é precário na região tanto para a terra como
para a produção e o trabalho;
2º - o estágio "pré-capitalista", que é "caracterizado por um aumento da migração
para a região e a intensificação da atividade extrativa. A terra começa a ser
vendida e comprada;
3º - o estágio "capitalista" em que a migração é intensificada e a região integra-se
efetivamente na economia nacional; a agricultura passa a predominar sobre o
extrativismo e dá origem a um crescente mercado de terras e mercadoria. Ao lado
da pequena produção agrícola surge o mercado de trabalho livre.(ZARTH, 1997, p.
34)
A intensificação do capitalismo, juntamente com a fronteira agrícola, contribuiu com o comercio de
compra e venda de terras, adentrando em novos territórios, no Noroeste comprando novos lotes na encosta
do Rio Uruguai. “No noroeste do estado ocorreu o processo de expansão deslocando populações de colonos
das antigas colônias, somados aos novos imigrantes europeus, para os territórios indígenas.” (GERHARD,
2011, p. 11) A ocupação pelos colonos que estavam tomando posse de seus lotes em um espaço ocupado por
kaigangs, resultou em vários conflitos até o assentamento definitivo nestas áreas. “A ocupação das terras
indígenas pela colonização italiana e alemã, no século XIX, retirou dos Kaigans suas áreas de caça, coleta e
perambulação e os colocou em modo de agricultura familiar” (VEIGA, 2010, p. 19). Assim notamos que os
conflitos no século XIX foram constantes com os colonos.
Uma solução que o governo encontrou foi de restringir seu acesso ao território ocupado pelos lotes
fazendo com que os Kaigangs fossem aldeados, vê esse fator se repetir mais uma vez, onde os povos
originários são restringidos de suas próprias terras dando espaço para os migrantes e ao capitalismo, que
supostamente desenvolveria a economia do estado.
Além dos conflitos entre os grupos originários e os migrantes que estavam ocupando estas terras
que de direito eram destes povos, resultaram em grandes dificuldades e desafios para o migrante, desde abrir
“picadas” em meio as matas que futuramente dariam espaço as estradas que se tem hoje, achar lugar
adequado para construção das casas na sua maioria das vezes de pau a pique, as casas eram construídas
próximos a vertentes, ou dos rios, para ter facilmente acesso a irrigação das plantações e para o seu próprio
consumo.
No começo para fazer as lavouras os trabalhos também eram manuais, feito através de roçadas, que
consistia na derrubada de mata e após a queimada deste local, só assim estariam prontas para ser arada e
para fazer o plantio. As terras, na região noroeste eram muito férteis, mas não eram virgens como era
denominada a terra onde não havia feito o cultivo de alguma cultura, pois este espaço já havia sido habitado.
Estes espaços não haviam ainda sido cultivados, eram totalmente ocupados por matas, não interferido pelo
homem, a fauna local era muito rica, de onde os colonos tiraram muito proveito tanto da carne como da pele
dos animais que também eram comercializadas.
Nos primeiros anos, em que os colonos, adquiriram os lotes de terras na região noroeste como foi
mencionado a cima, foram anos muito difíceis para estas famílias, desde a compra das terras, quanto o
processo de adequação para a morada e plantio da mesma, como o desmatamento, a decisão onde fazer a
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construção da casa, terras que tinham vertentes ou rios próximos tinham preço mais elevado que as terras
onde não se encontravam estes recursos.
Após o preparo da terra, começava a preparação para o plantio, das sementes, onde eram
plantados, milho, arroz, feijão, nestas terras por serem terras que nunca foram cultivadas, colhia tudo o que
era plantado “plantava feijão, feijão dava, dava, milho aquilo que plantava dava. Arroz se colhia de tudo” (
Ignês Lucietto dos Santos) 3
O relato menciona o plantio de algumas culturas logo na chegada dos migrantes nestas regiões,
onde as terras eram bastante férteis, o relato nos leva a pensar que a semente que era plantada, conseguia ter
uma boa colheita. Mas isso não diminuiu o sofrimento no processo de escolha e fixação das famílias nas
terras. O processo de instalação de cada família nos novos locais se davam por meios árduos, onde primeiro
os homens se instalavam nos locais, para abrir as matas e fazer os caminhos que eram chamados de picadas,
adentrando nas matas, após as mulheres vinham para os acampamentos, muitas vezes as casas eram apenas
cabanas com as camas para o descanso noturno.
Um ranchinho tudo de serrado, assim de plancha, nois morava, eu não! Eu fui
junto com o pai e com a mãe e não sei quem mais. La na morada era puro mato, só
derrubado um eitinho e os outros ficaram ali na ressaca, (...) fazia comida fora, só a
cama era dentro, acho que colocaram um pano por cima, um plástico. Duas
forquilhas e ali no meio fazia comida, a gente comia, tinha fome fome. (Ignes
Lucietto dos Santos)
O relato demostra como que era o início da vida dos migrantes no novo território, o sofrimento, a
escassez, de certos alimentos, por muitas famílias dificultava este início da nova vida. Após as roças estarem
prontas depois das matas estarem devastadas, começava-se o plantio e o cultivo das sementes, onde o
principal cereal a ser plantado era o milho, embora se plantava também o feijão, mandioca, trigo, entre
outros produtos, animais também eram criados para o consumo, o gado vacum, o porco, galinha para a
própria subsistência familiar nestes primeiros anos.
Além dos cereais que eram vendidos ou trocados, para a renda familiar, um produto em si se
destaca mais entre outro, que é a criação de suínos para a venda, muitos agricultores se detinham na criação
de porcos, para a venda da carne ou da banha. Mas a maioria do lucro provinha da venda do leitão para o
abate, para empresas, assim muitos agricultores pagaram suas terras devolutas, através da comercialização
destes animais.
A maioria dos produtos produzidos pelos colonos era para o próprio consumo, o seu excedente, era
comercializado na cidade, ou trocado entre os colonos ou até mesmo com pessoas de fora das colônias. Como
muitos agricultores não tinham meios de ir a cidade, então os comerciantes da cidade, iam ate os colonos
trocando os produtos, os colonos trocavam seu excedente por produtos que não tinham como produzir. O
que era arrecado a partir das vendas era destinado para alguma emergência como saúde ou guardavam para
pagar os lotes.
O desenvolvimento da economia desta região se deu de forma mais intensa a partir da abertura das
estradas e também pela chegada da estrada de ferro até Santa Rosa. Afirma Dahne, Conceição&Cia., em 14 de
janeiro de 1933, assinou contrato com o governo do estado do Rio Grande do Sul para a construção de
estradas de ferro e de rodagem. A ela cabia a colonização racional e planejada de terras devolutas
pertencentes ao Estado, situadas entre os rios Santa Rosa e Turvo eté o rio Uruguai( PLETCH, 1995,
p.17)Com as rodovias o acesso a outros locais e as capitais o acesso a recursos para as plantações como
insumos e outros maquinários os lucros com a plantação de soja e trigo ficaram também mais visíveis com a
industrialização.
Após o início da política do governo referente ao fundo de credito rural, e o incentivo da igreja no
fomento das associações dos moradores e mais tarde na criação dos sindicatos, incentivaram a agricultura
3
Entrevista concedida por moradora da Localidade de Boa Esperança- Crissiumal/RS em 11/10/2017
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familiar, baseada no minifúndio, assegurando os colonos seus direitos e de serem reconhecidos como
pequenos produtores rurais. Esses sindicatos surgiram e contribuíram para o desenvolvimento econômico,
social e cultural.
Atuando neste sentido, a igreja ( tanto a católica quanto a evangélica – luterana,
inclusive trabalhando juntas eventualmente ), dirigiu esforços na tentativa de
organizar as comunidades coloniais de imigrantes, tanto do ponto de vista ético e
religioso quanto do ponto de vista da melhoria das condições materiais de vida.
(PEREIRA, p. 103)
Na região noroeste o fundo de credito rural chegou com as cooperativas, incentivando os
minifúndios, com as plantações de trigo, e soja, os seus créditos basicamente eram voltados para esses fins.
Em Crissiumal a primeira cooperativa de credito foi
Fundada em 05 de maio de 1946, na vila de crissiumal, Distrito do município de
Três Passos, a “Caixa Rural” como era conhecida durante três décadas, participou,
decisivamente, do desenvolvimento econômico da região, financiando aquisição de
terras, maquinário e acolhendo as as economias (poupança de seus associados).
(PLETCH, 1995, p. 49)
De certa forma o fundo de crédito rural contribuiu para o desenvolvimento, de muitos dos
agricultores já instalados na região, muitos adquiriram maquinas financiadas possibilitando o aumento na
produção e o pagamento mais rápido dos lotes.
Foto de agricultor quando adquiriu trator financiado
Foto: acervo pessoal Ignes Lucietto dos Santos
A fotografia acima é de um migrante que veio para esta região, adquiriu seu lote de terra, e
com a possibilidade da compra de equipamentos como o trator, permitiu o plantio de áreas maiores
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proporcionando assim uma maior produção agrícola, sabe-se que o trator também servia como meio de
deslocamento de suas propriedades até as comunidades mais próximas.
Crissiumal se desmembrou do município de Três Passos, este foi o último município da fronteira
noroeste a ser ocupado por migrantes colonizadores de origem alemã, italiana e polonesa.
Ainda no século atual, Criciumal integrado Palmeiras das missões, era área
inexplorada.A partir de 1930, porém, o esgotamento das terras e a elevada
densidade populacional das denominadas “colônias velhas” determinou um
verdadeiro êxodo para as zonas de terras ainda virgens e inicia-se a ocupação de
Criciumal.O nome adveria de “criciúma” tipo de jungo abundante no local.
Povoado, principalmente por elementos de origem germânica, a agricultura, a
suinocultura e outras atividades tomam tal impulso que já em 1954,
desmembrando-se de Três passos, Criciumal se constitui em município.
(FELIZARDO, p.69)
Economia
No século XIX esta região foi ocupada por uma colônia militar, que se instalou com o objetivo
principal de guarnecer a região de possíveis invasões dos argentinos, esta colônia também teria a
responsabilidade de ir povoando gradualmente e com o recebimento dos lotes que o governo tinha proposto
poderiam contribuir para a economia da região, mas essas colônias não bastaram para a colonização, pois
como já foi mencionado o difícil acesso a estes locais, não havendo estrada de rodagem, dificultava a
sobrevivência dos que tentavam a sua colonização, e também os militares não tinham o costume do plantio e
de gerar a sua própria economia.
Os colonos migrantes mais tarde começaram a ocupar uma área, praticamente não habitada, e não
influenciada pela mão do homem europeu, isso já no século XX, estas eram terras ocupadas pelos povos
originários de guaranis e kaigangs, povos não aceitaram a ocupação dos migrantes.
Encontramos elementos de várias culturas, dentro da formação cultural do município, algumas
mais visíveis e outras mais intrínsecas dentro das comunidades, as mais visíveis são as de origem europeia
principalmente Alemã e Italiana, encontrando fragmentos destas culturas em vários objetos e costumes,
embora muitos foram readaptados a partir da convivência ou influência dos povos originários que já haviam
influenciado ainda quando dos processos de imigração no norte do estado e trazidos mais tarde pelos
migrantes para a região da atual cidade de crissiumal.
É na alimentação que podemos encontrar elementos tanto da cultura europeia como da cultura dos
povos originários. Um exemplo simples é a polenta, onde sempre existiu na culinária Italiana, mas a mesma
era feita de outros cereais, como a aveia e o trigo. A polenta feita de milho é originaria da América sendo o
milho um alimento original da América, e que os povos que viviam nessa região principalmente os que eram
considerados agricultores já faziam o plantio do cereal muito antes dos colonizadores Italianos.
A comunidade de Boa Esperança interior de Crissiumal cujo nome surgiu “com a vinda de novos
moradores e gente “boa” nasceu uma “esperança” de terem dias melhores. Surgiu a denominação BOA
ESPERANÇA” (PLETCH, 1995, p.95) a maioria destes moradores vindos de várias colônias sendo sua
predominância alemã dentro da comunidade, mas havendo moradores de origem Italiana também.
Muitas das pessoas que moravam a margem direita do rio cujo nome é Lajeado Grande, que dividia
os municípios de Três passos agora denominado município de Tiradentes do sul, passaram a viver a margem
esquerda, que é a comunidade de Boa esperança. Desta maneira começou a se consolidar a comunidade. A
economia segundo (PLETCH, 1995, p.96) era na época baseada na cultura de milho, soja, tabaco e venda do
leite. Mas muitas famílias quitaram suas terras com a venda de suínos. Assim conseguindo se manter estável,
e conquistando seu espaço dentro do município, os primeiros anos dos colonos nestes espaços foram
sofridos, um exemplo é das estradas onde os próprios moradores as fizeram, trabalhando nas mesmas em
forma de mutirão, a energia elétrica foi chegar na comunidade por volta de 1968.
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A igreja católica e luterana sempre se fizera presente na comunidade sendo a religião católica a com
maior numero de praticantes. Na comunidade podia perceber a presença de três Igrejas, isto denota de
como a fé influenciava os moradores na esperança de dias melhores como cita PLETCH, 1995. O clube ou
sociedade como era chamado “A sociedade D. Pedro II Foi Fundada em 1950. O primeiro presidente foi
Oscar Bartz. Cinco anos depois foi criada a sociedade de damas “aurora” cuja primeira presidente foi Elvira
Grasel Senh.” (PLETCH, 1995, p. 96) é outro fator importante o lazer, a cultura e a diversão isto fazia com
diminuísse um pouco o sofrimento do povo e geralmente quem promovia as festas era a própria igreja.
A importância do espaço católico para estes grupos é imensurável, as discussões sobre as terras ou
o modo de plantio dentro da comunidade ainda eram feitas dentro do espaço católico, trabalhando de modo
social. Onde membros da associação, se reuniam para o debate de certos assuntos envolvendo a economia
que a comunidade ia gerar para o seu próprio sustento.
Igreja Puríssimo coração de Maria localizada na comunidade de Boa Esperança/ Crissiumal
Fotos: acervo pessoal Ignes Lucietto dos Santos
Dentro da igreja e depois no salão paroquial discutiam todas as questões que se fazia pertinente que
tratassem do coletivo da comunidade, como a compra de maquinário agrícola para o uso de todos, dentro
desta discussão pode-se mencionar a compra de uma trilhadeira e uma colheitadeira, onde todos dentro da
comunidade fizeram parte da discussão e da decisão da compra conforme documentos acessados durante a
pesquisa. Algumas décadas depois da vinda dos primeiros migrantes, algumas culturas eram plantadas a
largas escalas, onde já não era mais para o próprio consumo, mas sim visando a venda dos produtos,
principalmente para a quitação das terras.
Tabela 1: ANO DE 1964 PRODUÇÃO CULTIVADA EM UMA AREA DE 11Ha
CULTURA
HECTARES
TONELADAS
Milho
3 Há
30ton
Mandioca
1 Há
0,2ton
Soja
3 Há
2,4ton
Cana de açúcar
0,1 Há
2,7ton
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Batata Inglesa
0,2
0,3ton
Fonte : Os autores (2018).
Pela tabela acima podemos notar os produtos que eram produzidos como o milho, mandioca, soja,
cana de açúcar e a batata inglesa, alguns eram produzidos apenas com o fim de venda como é o caso da soja,
já o milho aproveitam para fazerem a farinha de milho e o excedente era comercializado ou alimentavam os
animais, outros produtos eram mais para o consumo interno. Podemos afirmar que em pequenos espaços de
terra conseguiam sobreviver e ainda pagar a terra, mostra claramente que os migrantes trabalharam e
construirão seus espaços individuais e coletivos, fazendo com que a região desenvolvesse economicamente.
Conclusão
O trabalho buscou desenvolver um pouco da história da migração da região noroeste do estado do
Rio Grande do Sul a partir de um recorte de uma pesquisa que vem sendo realizada, sobre como o município
que foi a última fronteira a ser colonizada por descendentes de europeus, e que foi se consolidando como o
município de Crissiumal, hoje com a aproximadamente 15 mil habitantes.
A maioria destes habitantes foi migrante das colônias velhas que ficavam mais a o Norte do Estado,
devido à falta de terras e outros descendentes de imigrantes vindo de países da Europa fugidos da II Guerra
Mundial como Alemanha e Itália e filhos de colonos imigrantes. Isto impulsionou a procura de novas terras,
desta maneira o governo aproveitando-se disto, incentivou a ocupação da região noroeste com o objetivo de
fortificar a área de fronteira. Além das colônias militares que já existiam ali anos antes.
Os primeiros anos nas novas terras foram bastante sofridos, pois dispunham de poucos recursos,
para a sobrevivência, onde a mata era abundante, e não havendo estradas para chegar as residências que
estavam sendo recém construídas em meio a mata. A atual cidade de Crissiumal por volta de 1915, pertencia
a Três passos, nesta época havia poucos habitantes nestes lugares, as matas eram densas, sendo alguns
lugares habitados por povos originários e também caboclos, que eram responsáveis pela criação de algumas
cabeças de gado, ou que chefiavam a retirada dos povos destas matas levando-os para os espaços chamados
pelo governo de reserva indígena
Para o incentivo do plantio e o minifúndio para os novos habitantes “os migrantes” o governo cria
o crédito rural, possibilitando assim o empréstimo para compra de ferramentas, máquinas e sementes, isto
contribui para o desenvolvimento econômico da região. A comunidade de Boa Esperança situada no interior
também teve sua contribuição histórica para o município, tendo na sua maioria migrantes descendentes de
alemães e italianos. As religiões católicas e luterana serviram de inspiração para os migrantes diante de
tantas adversidades que foi imposta a eles neste processo de colonização desta comunidade, e também estas
foram fontes de inspiração para as associações que desenvolveram uma serie de atividades dentre elas a
possibilidade de créditos aos pequenos agricultores da comunidade.
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Túneis do tempo. Paleotoca de Xaxim, produto da megafauna regional
Valdirene Chitolina1
Resumo: Galerias subterrâneas sempre estão envoltas em mistérios. O desconhecido, a escuridão, a
insegurança ao adentrar aquele espaço, as perguntas sobre sua origem, os questionamentos sobre seus
propósitos, as dúvidas sobre seus usos e sobre os personagens que ali estiveram – galerias subterrâneas
fazem voar a imaginação e a curiosidade. Não podia ser diferente com a galeria subterrânea encontrada em
Xaxim. Um túnel inicialmente baixo, úmido e barrento, que se bifurca, onde dá para ficar em pé... quem
poderia ser o autor? Qual seria a sua idade? Porque foi escavado? Subitamente surge um elemento
desconhecido em pleno perímetro urbano, ao lado do acesso à cidade. Como sempre nestes casos, a
descoberta do túnel faz surgir inicialmente uma curiosidade das pessoas, algumas das quais entram, mas,
com o passar dos anos, a estrutura fica lá, escondida e esquecida. O resgate das informações sobre a galeria
subterrânea de Xaxim é apresentado aqui pela historiadora Valdirene Chitolina, em um precioso compêndio
que reúne em um texto de fácil leitura tanto os depoimentos de quem encontrou a galeria como daqueles que
a adentraram. Tão importante quanto à descoberta da galeria é a sua interpretação. Nos dias atuais, graças a
um trabalho de pesquisa de mais de 10 anos sobre estas galerias, podemos avançar um pouco mais no
entendimento sobre “quem cavou?”, “quando cavou?”, “para que cavou?” e outros dados. Muitos detalhes
continuam ignorados, muitos talvez nunca venhamos a descobrir. Valdirene aborda estes aspectos, ilustra
quando possível e nos faz entender o contexto desta galeria. Livros como este fazem a “ponte” indispensável e
essencial entre os artigos científicos de termos técnicos e em língua estrangeira e o grande público, que busca
a informação em linguagem coloquial. A leitura do livro nos remete a algo improvável – subitamente estamos
sendo confrontados com um sítio paleontológico. É como se um dinossauro subitamente entrasse no nosso
quintal. A Paleontologia deixa de ser a imagem de um osso encontrado em terras distantes para se tornar
algo muito palpável, bem ali na frente dos nossos olhos. E somos lembrados, com absoluta clareza, que em
Xaxim havia, até bem pouco tempo atrás, animais enormes de várias espécies diferentes como nunca antes
tínhamos imaginado. Valdirene tem o mérito de nos trazer esta imagem de forma muito concreta e nos
instiga a descobrir mais sobre estes animais e a galeria subterrânea de Xaxim. Porto Alegre, 22 de outubro de
2014. Prof. Heinrich Frank. Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Apresentam-se, a seguir, recortes de uma pesquisa que em 2015 foi publicada em formato de livro.
PREFÁCIO
Galerias subterrâneas sempre estão envoltas em mistérios. O desconhecido, a escuridão, a
insegurança ao adentrar aquele espaço, as perguntas sobre sua origem, os questionamentos sobre seus
propósitos, as dúvidas sobre seus usos e sobre os personagens que ali estiveram – galerias subterrâneas
fazem voar a imaginação e a curiosidade.
Não podia ser diferente com a galeria subterrânea encontrada em Xaxim. Um túnel inicialmente
baixo, úmido e barrento, que se bifurca, onde dá para ficar em pé... quem poderia ser o autor? Qual seria a
sua idade? Porque foi escavado? Subitamente surge um elemento desconhecido em pleno perímetro urbano,
ao lado do acesso à cidade. Como sempre nestes casos, a descoberta do túnel faz surgir inicialmente uma
curiosidade das pessoas, algumas das quais entram, mas, com o passar dos anos, a estrutura fica lá,
escondida e esquecida.
O resgate das informações sobre a galeria subterrânea de Xaxim é apresentado aqui pela historiadora
Valdirene Chitolina, em um precioso compêndio que reúne em um texto de fácil leitura tanto os depoimentos
de quem encontrou a galeria como daqueles que a adentraram.
Graduada em História pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas (1992), mestre em História Regional pela Universidade
de Passo Fundo (2008), doutoranda do PPGH da UPF. Vínculo profissional: Prefeitura de Xaxim. E-mail:
<valdirenechitolina@yahoo.com.br>.
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Tão importante quanto à descoberta da galeria é a sua interpretação. Nos dias atuais, graças a um
trabalho de pesquisa de mais de 10 anos sobre estas galerias, podemos avançar um pouco mais no
entendimento sobre “quem cavou?”, “quando cavou?”, “para que cavou?” e outros dados. Muitos detalhes
continuam ignorados, muitos talvez nunca venhamos a descobrir. Valdirene aborda estes aspectos, ilustra
quando possível e nos faz entender o contexto desta galeria. Livros como este fazem a “ponte” indispensável e
essencial entre os artigos científicos de termos técnicos e em língua estrangeira e o grande público, que busca
a informação em linguagem coloquial.
A leitura do livro nos remete a algo improvável – subitamente estamos sendo confrontados com um
sítio paleontológico. É como se um dinossauro subitamente entrasse no nosso quintal. A Paleontologia deixa
de ser a imagem de um osso encontrado em terras distantes para se tornar algo muito palpável, bem ali na
frente dos nossos olhos. E somos lembrados, com absoluta clareza, que em Xaxim havia, até bem pouco
tempo atrás, animais enormes de várias espécies diferentes como nunca antes tínhamos imaginado.
Valdirene tem o mérito de nos trazer esta imagem de forma muito concreta e nos instiga a descobrir mais
sobre estes animais e a galeria subterrânea de Xaxim.
Porto Alegre, 22 de outubro de 2014.
Prof. Heinrich Frank
Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
INTRODUÇÃO
A galeria subterrânea de Xaxim, na contemporaneidade denominada de paleotoca, ao que tudo
indica foi abrigo de animais pré-históricos. Ela é herança de um passado distante, é um patrimônio que apela
por um olhar mais astuto, em virtude de ser um lugar dotado de expressivo valor para a Paleontologia do sul
do Brasil. Portanto, estudá-la significa adentrar em um universo ainda desconhecido pela população da
região. Para tanto, adotar-se-ão como meios técnicos as pesquisas bibliográfica, documental, de campo e a
história oral (que neste artigo será suprimida).
O estudo também se justifica pelo benefício cultural ao possibilitar o registro de novos
conhecimentos. Essa galeria consiste em um bem vinculado à identidade da comunidade xaxinense, que
abriga em seu território esses “túneis do tempo”. Outra razão é o ganho social que ela representa, porque
beneficiará especialmente estudantes, gestores, produtores culturais, professores, entre outros profissionais
que serão os disseminadores dos conhecimentos relacionados a esse sítio paleontológico. Assim, serão
promovidas ações de conscientização, de valorização e de preservação.
A primeira parte do livro apresenta a transcrição e interpretação de uma correspondência emitida em
1987, por Rossano Lopes Bastos, arqueólogo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN). A carta informa o resultado da pesquisa sobre a galeria subterrânea de Xaxim. Nela há
comparações com outras galerias, localizadas em Urubici, e que foram estudas pelo padre João Alfredo
Rohr2, além de registros sobre o diâmetro dos túneis e desenhos que permitem vislumbrar o seu formato.
Adiante, expõem-se características morfológicas da galeria subterrânea de Xaxim, com base na Ficha
de Registro de Sítio Arqueológico do (IPHAN), conforme o Decreto n. 2.807, de 21 de outubro de 1998. Ao
longo de muitos anos, deduziu-se que a galeria subterrânea de Xaxim fosse uma formação natural ou
trabalho de engenharia indígena. Porém, há um novo olhar, lançado pelos professores Heinrich Frank,
Francisco Buchmann e Felipe Caron, do “Projeto Paleotocas”, que defendem a ideia de que a galeria seja uma
paleotoca. Dessa forma, com o apoio desses profissionais, apresenta-se nesta pesquisa um enfoque singular
sobre esses testemunhos do tempo: as paleotocas.
Padre jesuíta, professor e arqueólogo. Sua obra, constituída pelo levantamento sistemático de sítios arqueológicos em Santa
Catarina, é o mais extenso ocorrido na arqueologia catarinense, totalizando cerca de 400 sítios registrados. (REIS, Maria José; FOSSARI,
Tereza Domitila. Arqueologia epreservaçãodopatrimôniocultural:a contribuição do Pe. João Alfredo Rohr. Cadernos do CEOM, Políticas públicas: memórias e
experiências, Chapecó: Argos, ano 22, n. 30, 2009.
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Correspondência
Há, no centro da cidade de Xaxim, uma galeria subterrânea, que foi estudada por Rossano Lopes
Bastos, arqueólogo da 11ª Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN). Na correspondência remetida em 1º de julho de 1987 por Bastos ao diretor do SPHAN 3, Luiz
Antônio V. Custódio4, com a finalidade de informar a diretoria sobre o andamento das ações referentes à
Arqueologia em Santa Catarina, pode-se ler o seguinte registro:
Nos dias 28 e 29 de maio do corrente, fizemos uma viagem técnica ao
município de Xaxim. A viagem deveu-se a solicitação por parte daquela
Prefeitura. Tal solicitação deu-se por ocasião da identificação de uma
caverna existente na encosta do morro, onde estavam sendo feitas obras de
terraplanagem, solicitou-nos visita técnica, a fim de identificar a
possibilidade de ser ou não um sítio arqueológico.
Na nossa avaliação a caverna já foi destruída em pelo menos 1/3,
impossibilitando uma análise mais apurada da tal evidência. Por outro lado,
na abertura da boca mais recente foram encontradas restos de fogueira que
acreditamos tratar-se de queima recente. Não foi encontrado na superfície
nenhum indício (cerâmico, lítico, sepultamento, etc.) que caracterizasse uma
ocupação arqueológica. Entretanto, algumas considerações teremos que
levar em conta para melhor definir se esta caverna trata-se ou não de um
sítio arqueológico.
Em 1971, Padberg Drenkpol, antropólogo do Museu Nacional do Rio de
Janeiro, recebeu planta topográfica de ‘misteriosas galerias subterrâneas’
existentes na localidade de Rio dos Bugres, município de Urubici, Santa
Catarina. Padberg chegou à conclusão de que aquelas galerias não eram préhistóricas, mas obra dos construtores da primeira estrada Florianópolis –
Lages, os quais, seduzidos por sonhos de minas de ouro e prata, escavassem
aquelas galerias.
Em 1970, Rohr, fazendo prospecções de sítios arqueológicos no planalto
Catarinense, teve notícias da existência de galerias semelhantes na
localidade de João Paulo, município de Bom Retiro. Haviam sido
descobertas, há anos passados, por caçadores, quando a cachorrada, em
perseguição a uma manada [o autor quis dizer vara] de porcos do mato,
continuou latindo debaixo do solo. Depois de uma hora de buscas
infrutíferas, o capataz da fazenda conseguiu localizar, novamente, a boca da
galeria em meio à mata fechada por denso taquaral. Situa-se em uma lomba
e foi cavada em forma cilíndrica, na argila arenosa. A boca pequena é estreita
por presença de terra, humo e folhas. É preciso entrar rastejando. Por
dentro, porém, possui metro e meio de diâmetro. Nas paredes existem sinais
de picareta e de uma cavadeira pectiforme, que deixa marcas como que de
garras de animais. O chão estava juncado de blocos de argila, caídos do teto.
O corredor principal possui uns quarenta metros de comprimento e
apresenta dois braços laterais de quatro e cinco metros de comprimento. Na
“Serviço do Patrimônio Histórico e Arqueológico Nacional.”
Diretor da Secretaria do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (SPHAN/FNPM), órgão do Ministério da Cultura (atualmente
IPHAN).
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opinião do dono da fazenda, as galerias seriam obras dos jesuítas. São
conhecidas pelo povo como ‘Toca dos Padres’.
Rohr ao inspecionar aquelas galerias, completamente escuras, à luz precária
de uma vela, teve a intuição nítida de estar em presença de um novo tipo,
ainda inédito, de sítio arqueológico, construído por populações préhistóricas. Talvez abrigo e esconderijo contra ataques repentinos de
inimigos, que, subtraindo-os à vista e ao alcance dos perseguidores, abrigaria
centenas de indivíduos. O homem branco abriria poços; mas não extensas
galerias, quase a flor da terra que importam em imenso trabalho de remoção
de terra.
Sua suspeita tornou-se certeza quando no município vizinho de Urubici teve
o ensejo de visitar toda uma série de outras galerias, escavadas da mesma
forma cilíndrica, em rocha mole de arenito, geralmente com braços laterais e
possuindo bocas em extremidades opostas; algumas até com salas maiores e
teto apoiado em colunas, deixadas em pé, para este fim. Todas apresentam
os mesmos sinais de picareta e de cavadeira pectiforme, deixando marcas
como que de garras de animais. Em alguma delas encontrou-se sinais de
petróglifos5 e cacos de cerâmica indígena. Outras se acham em comunicação
com casas subterrâneas, sugerindo-se a hipótese de serem da mesma cultura
das casas subterrâneas.
Entretanto, a presença das galerias subterrâneas também já foi assinalada
nos planaltos rio-grandenses e paranaenses, confirmando dispersão
geográfica idêntica às casas subterrâneas. (ANAIS M. A. – UFSC – 1994).
Desta forma, a galeria do município de Xaxim possui características que
estão sublinhadas na descrição acima. Por isso entendemos tratar-se de um
sítio arqueológico e, como tal, protegido pela Lei 3. 924/61. 6
Por meio da correspondência transcrita, juntamente com as figuras apresentadas adiante, é possível
interpretar que a galeria subterrânea, em 1987, à época da investigação, já estava destruída em pelo menos
um terço. Nela não foram encontrados indícios cerâmicos, líticos ou de sepultamentos que caracterizassem
ocupações arqueológicas.
Bastos, baseado nas pesquisas realizadas pelo padre João Alfredo Rohr sobre outros sítios
arqueológicos do planalto catarinense, especialmente aqueles localizados em João Paulo, município de Bom
Retiro (SC), constatou que as características se assemelhavam às da galeria subterrânea existente nos altos
da Avenida Plínio Arlindo de Nes, em Xaxim.
De acordo com Rohr, nos resultados da pesquisa realizada na localidade de João Paulo, tais galerias
se situam numa lomba7 e foram cavadas em forma cilíndrica na argila arenosa. Têm boca pequena e estreita
por terra, é preciso entrar rastejando. Nas paredes existem sinais de picareta e de cavadeira pectiforme, 8 que
deixam marcas como que de animais, com um corredor principal e dois braços laterais.
Em 1970, quando Rohr investigou a primeira galeria subterrânea na localidade de João Paulo, as
condições eram precárias, as investigações foram realizadas sob a luz de velas. Ou seja, o estudo não foi
rigoroso. O pesquisador teve a intuição de estar num sítio arqueológico ainda inédito.
5
Petróglifos são representações gravadas pelo homem em pedra ou em rochas, existindo em todos os continentes, com exceção da
Antártida. O termo deriva das palavras gregas petros, "pedra", e glyphein, "talhar". Os mais antigos petróglifos recuam ao Neolítico, há
cerca de 12 a 10 000 anos atrás, sendo as representações gráficas que antecedem a "invenção" da escrita (PETRÓGLIFOS. In: Infopédia.
[S.l.]: Porto, 2014. Disponível em: <http://www.infopedia.pt/$petroglifos>. Acesso em: 2 maio 2014.)
6
BASTOS, Rossano Lopes. [Carta] 1º jul. 1987, Florianópolis [para] CUSTÓDIO, Luiz Antônio, [...]. Para informar ao diretor do
SPHAN das ações referentes à Arqueologia em Santa Catarina.
7
Crista arredondada de serra ou monte.
8
São traços mais ou menos verticais, como um pé-de-cabra com três patas.
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Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS
As suspeitas de Rohr teriam sido confirmadas quando, em Urubici, a 190 km de Florianópolis, ele
visitou uma série de outras cavernas com braços laterais que possuíam bocas em extremidades opostas,
idênticas à galeria subterrânea de Xaxim, todas com os mesmos sinais de picareta e de cavadeira pectiforme,
deixando marcas como que garras de animais. Em alguma delas – o que não é o caso da galeria xaxinense –,
encontraram-se sinais de petróglifos9 e fragmentos de cerâmica indígena. Outras se achavam em
comunicação com casas subterrâneas. A presença de tais galerias também foi assinalada nos planaltos riograndenses e paranaenses, confirmando dispersão geográfica idêntica à das casas subterrâneas.
Sobre os dados apresentados, na correspondência, tem-se apenas uma suposição de que a galeria de
Xaxim seja semelhante àquelas existentes em outras regiões de Santa Catarina e que foram descritas por
Rohr. Além disso, como não foram encontrados vestígios arqueológicos de ocupação humana, há também a
possibilidade de que ela seja somente uma formação natural.
A galeria subterrânea localizada no centro da cidade de Xaxim também poderia identificar-se com os
abrigos sob-rochas, ou então, conforme a opinião do arqueólogo Marco Aurélio Nadal De Masi, “deveria ser
considerada a possibilidade de abrigos de defesa devido à caça aos índios (bugreiros)”. 10 Nadal de Masi, ao
ser questionado, via e-mail, sobre a galeria localizada no centro de Xaxim, registra que “a forma de
construção é claramente escavada, mas como ninguém menciona dados de cultura material em escavações
que possam ser associados a culturas conhecidas arqueologicamente fica-se no terreno de hipóteses a serem
confirmadas”.11 Além disso, “elas podem ter sido usadas como habitação, locais de cerimoniais, usadas como
estocagem, como armadilhas [...]”.12
A seguir, a primeira figura contempla as descrições da galeria subterrânea estudada por Bastos; tal
desenho foi enviado ao diretor Luiz Antônio Custódio, juntamente com a correspondência apresentada. A
galeria se localiza no centro da cidade de Xaxim, à direita, entre o centro e o trevo que dá acesso à BR-282.
Figura 1 – Reconstituição gráfica, planta da galeria subterrânea próxima à BR-282 em Xaxim
Fonte: Escritório Técnico de Florianópolis SPHAN/FNPM, Of. n. 003/88 – 10ª DR.
É uma representação grafada em pedra ou rocha, peculiar de povos pré-históricos.
DE MASI, Marco Aurélio Nadal. (Org.). Xokleng 2008 a.C. as terras altas do Sul do Brasil: transcrições do Seminário de
Arqueologia e etno-história. Tubarão: Unisul, 2006. p. 225.
11
DE MASI, Marco Aurélio Nadal. Re: Valdirene Chitolina [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<valdirenechitolina@yahoo.com.br>. Acesso em: 19 out. 2008.
12
DE MASI, Marco Aurélio Nadal (Org.). Xokleng 2008 a.C. as terras altas do Sul do Brasil... 2006. p. 225.
9
10
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Medidas
Comprimento
Altura
Largura
Quadro 1 – Medidas da galeria subterrânea (Xaxim, 1987)
Galeria D Galeria C
Galeria E
Distância da entrada aos
pontos
10,15 m
09,90 m
11,00 m
A ---------------------- 12,00 m
00,90 m
01,25 m
00,90 m
B ---------------------- 19,50 m
01,10 m
01,60 m
01,15 m
C ---------------------- 29,40 m
D ---------------------- 29,65 m
E ---------------------- 30,40 m
::::::: Elevações
Na parte B, onde as galerias se encontram, o diâmetro é de 3m, e o perímetro é de 9,42m.
Extensão total da galeria: 50,55m
Fonte: elaboração da autora, com base na correspondência emitida pelo Escritório Técnico Florianópolis
SPHAN/FNPM, Of. n. 003/88 – 10ª DR.
Ficha de Registro de Sítio Arqueológico
A galeria subterrânea de Xaxim está cadastrada na Ficha de Registro de Sítio Arqueológico do Instituto
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão vinculado ao Ministério da Cultura. A ficha indica as
características morfológicas e culturais do sítio. A elaboração e o respectivo preenchimento da Ficha de
Registro de Sítio Arqueológico foram realizados com base no Decreto nº 2.807, de 21 de outubro de 1998, o
qual considera a necessidade de implantar padrões nacionais, no âmbito da identificação dos sítios
arqueológicos visando à montagem do Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos, em conformidade com a
Lei nº 3.924, de 26 de julho de 1961, conforme o quadro 2. 13
Quadro 2 – Ficha de Registro de Sítio Arqueológico, do IPHAN
Detalhes do Sítio Arqueológico
Município - UF
Xaxim - SC
Comprimento
0m
Largura
0m
Altura Máxima
0m
Área
0 m2
Escala
1:50.000
Unidade Geomorfológica
Planalto
Compartimento Topográfico Topo
Altitude
0
Distância
0
Rio
Urussanga
Bacia
Uruguai
Cf.
IPHAN.
Portaria
IPHAN
n.
241,
de
19
de
novembro
<http://www.ipef.br/legislacao/bdlegislacao/arquivos/5057.rtf>. Acesso em: 13 abr. 2009.
13
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de
1998.
Disponível
em:
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Vegetação
floresta ombrófila;
Uso atual da terra
plantio;
Propriedade da terra
Terra privada;
Categoria
Unicomponencial
Pré-Colonial
Tipo
Galeria subterrânea
Forma
Não delimitada
Contexto Deposição
em profundidade
Filiação Cultural
Grau de integridade
mais de 75%
Relevância do sítio
alta
Atividades desenvolvidas no local Registro;
Nome do Responsável
Edna J. Morley
Nome Instituição
11ª CR/ SPHAN/ SC
Endereço Instituição
Rua Conselheiro Mafra nº
141. Ed. da Antiga Alfândega,
2º andar - Centro.
UF da Instituição
SC
CEP da Instituição
88010-100
Telefone/Fax da Instituição
(048) 2230883
Responsável Preenchimento
Rossano Lopes Bastos
Data Preenchimento
29/09/1997
Localização Dados
11ª CR
Fonte: IPHAN. Ficha de Registro de Sítio Arqueológico. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/portal/montaDetalheSitioArqueologico.do?id=SC00980?>. Acesso em: 13 abr.
2009.
Todos os campos apresentados na ficha estão em conformidade com a portaria do IPHAN nº 241, de 19 de
novembro de 1998. Sobre a galeria subterrânea de Xaxim, considerada sítio arqueológico, nos campos
comprimento, largura, altura máxima e área as medidas não foram indicadas, porém o quadro 1, apresentado
anteriormente, demonstra alguns desses resultados.
A galeria está localizada no topo de um monte. A altitude e a distância não foram delimitadas na ficha. No
campo que indica o rio mais próximo, há um equívoco, porque ele se chama rio Xaxim e não Urussanga. A
galeria xaxinense integra a bacia do Uruguai, e o tipo de vegetação peculiar é a ombrófila.
Na ficha, não há registro sobre a filiação cultural do sítio. Não foi realizada escavação de superfície;
nenhum artefato lítico, cerâmico ou de arte rupestre foi coletado. A galeria subterrânea de Xaxim não foi
relacionada com nenhum outro sítio arqueológico. Porém, na área que compreende o atual município de
Xaxim, existem diversos sítios arqueológicos que foram estudados, especialmente por Piazza (1987), e, num
período mais tardio, por Maria Madalena Velho do Amaral (2001) – essa pesquisadora cita que eles
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pertencem à tradição Taquara, especialmente à fase Xaxim.
De acordo com o conhecimento atual, a área da galeria subterrânea de Xaxim ainda não foi reconhecida
como patrimônio municipal, em virtude de não ter sido realizada nenhuma ação de defesa, de preservação ou
de valorização do lugar. Porém, em âmbito federal, a galeria é considerada sítio arqueológico.
A Ficha de Registro de Sítio Arqueológico não informa quais são as possibilidades de destruição, ou
possíveis medidas de preservação da galeria. Todavia, de acordo com observações recentes, no local não há
nenhuma indicação, por mais modesta que seja, de que a área no entorno da galeria subterrânea esteja sendo
protegida.
No campo “categoria”, o termo “Unicomponencial” indica que esse sítio não apresenta uma sequência de
ocupações superpostas. Um sítio arqueológico pode ser classificado, quanto à sua ocupação, como précolonial, histórico ou de contato.
Quanto ao contexto de deposição dos vestígios, a ficha indica que ocorre “em profundidade”. Ainda de
acordo com a ficha, o tipo de exposição do sítio é uma galeria subterrânea, embora não tenha sido indicado o
tipo de solo ou a espessura e a profundidade das camadas geológicas.
Na ficha, a forma da galeria não é indicada. Há diversas nomenclaturas para a forma de um sítio
arqueológico: anular, circular, elipsoidal, irregular, linear, não delimitada, retangular, triangular, entre
outras. Porém, nas imagens fotográficas registradas adiante nota-se que o formato é cilíndrico.
No campo que indica as atividades desenvolvidas no local do sítio, está marcado “Registro”, isso significa
que foi realizada vistoria de campo.
No item “Filiação Cultural”, no campo que se refere à relevância do sítio, foi registrada como “alta”, termo
que indica a “[...] proporção do seu estado de conservação, ao seu potencial científico – presença de material
orgânico, esqueletos, profundidade temporal grande, arte rupestre, etc. – e à importância que lhe é atribuída
pela comunidade”.14 Porém, por meio de conversas informais, percebeu-se que a população ignora a
existência da galeria subterrânea.
Os campos finais da ficha se referem à Instituição, e seu respectivo endereço, onde está registrado o
inventário da galeria subterrânea de Xaxim, além dos dados de Rossano Lopes Bastos, responsável pelo
preenchimento da Ficha de Registro de Sítio Arqueológico. Encerra-se esta parte do texto, em que se
registraram detalhes sobre a galeria subterrânea de Xaxim com base na Ficha de Registro de Sítio
Arqueológico do Instituto Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Adiante, imagens antigas e recentes irão ampliar, através de diversos perfis, a observação dos túneis
subterrâneos e da localização externa da paleotoca.
Figura 2 – Levantamento topográfico, no
interior da paleotoca, Eduardo Lunardi –
Xaxim, 11 de junho de 198.
14
Figura 3 – Interior da galeria – Xaxim, abril
de 2012.
Nota-se o túnel cilíndrico, o teto côncavo, as
aranhas no teto, o chão com sedimentos
IPHAN. Portaria IPHAN n. 241, de 19 de novembro de 1998... Acesso em: 23 abr. 2009.
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Fonte: acervo de Álvaro Burtet.
Fonte: acervo de Valdirene Chitolina.
Figura 4 – Entrada da galeria. Vê-se a
vegetação encobrindo o espaço – Xaxim, abril
de 2012
Figura 5 – Entrada da galeria, vista do
exterior – Xaxim, abril de 2012
Fonte: acervo de Valdirene Chitolina.
Fonte: acervo de Valdirene Chitolina.
Figura 6 – Entrada da galeria, vista do interior
– Xaxim, setembro de 2014
Figura 7 – Vista do entorno da galeria –
Xaxim, abril de 2012
Fonte: acervo de Valdirene Chitolina.
Fonte: acervo de Valdirene Chitolina.
As imagens evidenciaram o recorte espacial que abriga a galeria subterrânea de Xaxim. É um espaço
urbano, com diferentes usos da terra. Nota-se a utilização de áreas residenciais, comerciais e a inexistência
de mata nativa na superfície. De acordo com as imagens, citações e documentos exibidos ao longo do texto,
listam-se as seguintes observações sobre a paleotoca xaxinense:
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está localizada num topo, próxima da superfície;
a entrada do túnel é bem visível;
nota-se que o formato é cilíndrico;
o teto é côncavo;
há túneis que terminam abruptamente;
a estrutura lembra uma cruz, de acordo com a figura 1.
nos primeiros metros, é necessário andar agachado; adiante, em muitos trechos, é possível caminhar
em pé;
os primeiros metros da galeria se apresentam com pouquíssimas gotas d’água pingando do teto;
entretanto, segundo as imagens apresentadas, há inundação;
há uma delgada camada sedimentar cobrindo o piso original;
não há feições de colapso de teto, pelo menos não nos primeiros metros;
os túneis apresentam aclives e declives, subindo e descendo embaixo da terra, não são retos;
os túneis se encontram e formam uma “sala”, que origina três caminhos diferentes;
há marcas nas paredes, similares a “uma pazinha de jardim”;
alguns túneis são becos sem saída;
não foram encontrados fósseis no interior da galeria;
a altura e a largura são, aparentemente, constantes;
escavada em eluvião ou coluvião;
a galeria se integra à bacia hidrográfica do Uruguai;
na superfície da galeria, no passado, o tipo de vegetação peculiar era a ombrófila (sempre verde,
vegetação arbusiva, típica da Mata Atlântica), porém atualmente há apenas capoeira;
nessa região, o clima, no inverno, é gelado;
ao que tudo indica foi escavada por animais já extintos, em terreno acidentado, com fonte d’água
próxima (250m);
é provável que a paleotoca da Avenida Plínio Arlindo de Nes tenha sido escavada por uma das
espécies de preguiças gigantes que habitaram o continente sul-americano nos últimos milhões de
anos;
a paleotoca de Xaxim integra a área de dispersão geográfica por onde se espalham as paleotocas
brasileiras, sul e sudeste do País – mais precisamente, nos estados de São Paulo, Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul;
de acordo com os depoimentos apresentados, somente na década 1980 é que foram realizados
estudos, orientados por Rossano Lopes Bastos – entretanto, as opiniões da população eram
imprecisas por se tratar de um caso inédito.
Sabe-se que o estudo das paleotocas faz parte de uma nova linha de pesquisa na Paleontologia
brasileira; salvo engano, desencadeada nos últimos anos do segundo milênio. Esse novo olhar foi lançado por
uma equipe de professores de São Paulo e do Rio Grande do Sul, inspirados por pesquisas realizadas na
Argentina. Tais profissionais integram o Projeto Paleotocas. Um desses professores é Heinrich Frank que na
próxima seção esclarecerá algumas dúvidas.
Esclarecendo dúvidas
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Registra-se, na sequência, uma entrevista com o professor Heinrich Frank, do Instituto de
Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e membro do Projeto Paleotocas, com o objetivo
de esclarecer dúvidas e analisar conteúdos relacionados às paleotocas, especialmente a de Xaxim. 15
Figura 8 – Professor Heinrich Frank
Fonte: acervo de Heinrich Frank.
Professor Frank, de acordo com as fotografias da galeria subterrânea de Xaxim, você acha
que ela foi construída por um ou mais animais?
Frank – Eu sou da opinião que uma paleotoca desse tamanho, ainda mais ramificada, foi escavada e
habitada por uma manada de animais, não apenas por um animal. Mas é uma opinião, baseado em tocas de
raposas e texugos no Hemisfério Norte, que também constroem abrigos subterrâneos complexos.
Qual é a provável data de construção das paleotocas?
Frank – Pois é, o limite inferior é a provável data de extinção da megafauna sul-americana – algo em torno
de 10 mil anos atrás. Pode ser 8 mil, pode ser 15 mil, não se sabe. O limite superior é a alteração da rocha do
local, que não ajuda muito, pois a rocha é muito mais antiga que a megafauna. Pessoalmente, acho que as
tocas são bastante recentes, com menos de 500 mil anos de idade.
Os tatus gigantes, prováveis construtores, ou as preguiças gigantes eram peculiares da região
sul do Brasil? Ou melhor, do sul da América do Sul? Eu entendi que no Hemisfério Norte as
tocas poderiam ter sido destruídas por antigas glaciações, porém já foram encontrados
vestígios desses animais em outros continentes?
Frank – Os tatus e as preguiças gigantes são exclusividade sul-americana até o estabelecimento do Istmo do
Panamá16, 3 milhões de anos atrás. A partir daí, animais exclusivamente sul-americanos migraram para a
América do Norte e animais exclusivamente norte-americanos migraram para a América do Sul. Chama-se
isso de “Grande Intercâmbio Americano”. Procure na Wikipedia, em Biogeografia Evolutiva – ali tem uma
seção muito boa sobre isso.
Numa paleotoca havia entrada e saída, ou uma abertura prestava-se para a mesma função?
Frank – Apesar de a gente encontrar abrigos subterrâneos complexos e grandes com apenas uma entrada,
acredito que os abrigos tinham entradas, saídas, rotas de fuga, respiradouros e outras comunicações com a
superfície.
No planalto catarinense, mais especificamente em Xaxim, qual seria o provável escavador?
Frank – Podem ser tatus e preguiças, depende do tamanho da paleotoca. Não há nenhuma preferência
regional de tatus ou preguiças.
As marcas que vemos nas fotografias não seriam de prováveis garras nas paredes?
15
FRANK, Heinrich. Entrevista concedida a Valdirene Chitolina. Porto Alegre, [11 set. 2012.].
16É
uma estreita porção de terra que liga a América do Norte e a América do Sul.
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Frank – Não consegui ver com clareza as marcas de garra nas fotografias, porque as fotos precisam ser de
detalhe das paredes, com iluminação oblíqua à parede para que as sombras ressaltem as marcas.
Por que há diferença de datas sobre o período de construção das paleotocas, conforme os
diferentes autores?
Frank – Porque as paleotocas sempre são mais antigas que 10 mil anos. Então há autores que acreditam que
elas são muito antigas (vários milhões de anos) e outros autores, entre os quais me incluo que acreditam que
elas são relativamente recentes (menos de 100 mil anos). Provavelmente nunca vamos saber ao certo.
O que significam depósitos pleistocênicos?
Frank – São acumulações de materiais geológicos (areias, lamas, etc.) formadas durante o Pleistoceno. Na
escala de tempo geológico, o Pleistoceno, ou Pleistocênico é a época que está compreendida entre 1 milhão e
806 mil e 11 mil e 500 anos atrás, aproximadamente.
Já procurei os conceitos, porém você poderia explicar de forma simples os termos Terciário e
Quaternário... diferenciá-los e correlacioná-los com o surgimento das paleotocas?
Frank – O tempo geológico é dividido em eras, períodos e épocas. Terciário e Quaternário trata-se de uma
divisão da era Cenozóica. O Terciário foi substituído pelos períodos Neógeno e Paleógeno. Então, os últimos
65 milhões de anos são chamados de era Cenozóica. Desta, os 42 milhões de anos iniciais (mais velhos) são
um período chamado de Paleógeno. De 23 milhões de anos atrás até hoje é outro período, chamado de
Neógeno. As últimas duas épocas do Neógeno são o Pleistoceno (de 2 milhões de anos atrás até 10 mil anos
atrás) e o Holoceno (de 10 mil anos atrás até hoje).
Com base na citação referenciada anteriormente, sobre o provável escavador da paleotoca de
Xaxim, é possível supor que foi feita por tatus? Além disso, posso registrar que ela poderia ter
sido construída há aproximadamente 3 milhões de anos, conforme Quintana (1992)?
Frank – Acho que não. Sou da opinião que animais que cavam tocas não cavam tocas mais largas que a
largura máxima de seu corpo. E o maior tatu gigante existente tinha apenas 80cm de largura, no máximo. Se
a paleotoca tem mais de 1m de largura, em minha opinião foi cavada por preguiças gigantes. Quanto à data,
não dá para afirmar nada. Pessoalmente, acho que 3 milhões de anos é demais, a toca é mais jovem. Se a toca
de Xaxim tem 30m de comprimento e 1,5m de largura, possui um volume de aproximadamente 100m 3. O
sedimento no local tem uma densidade um pouco acima de 2g/cm3 – significa que cada centímetro cúbico do
material pesa duas gramas. Como cada metro cúbico corresponde a um milhão de centímetros cúbicos, cada
metro cúbico pesará 2 milhões de gramas, o que corresponde a dois mil quilos. O que significa que a
escavação da paleotoca demoveu quase uma tonelada de material. É muito material, não creio que um animal
sozinho cavou tudo isso. É mais provável que a paleotoca foi sendo cavada aos poucos, por grupos familiares
(manadas) de preguiças gigantes.
O que significa data próxima a 10ka?
Frank – Dez kilo-anos correspondem a 10 mil anos.
Como a Geologia e o clima da região de Xaxim foram propícios à escavação de paleotocas?
Frank – Paleotocas foram escavadas em qualquer material que não fosse rocha ígnea ou metamórfica
inalterada, desde que o relevo não fosse plano (uma planície costeira, por exemplo) ou extremamente
acentuado (canyons, por exemplo). Então podem ser encontradas em quase qualquer clima e geologia. De
acordo com o material que você me enviou, verifiquei que o material no qual a toca foi escavada é um
material de alteração de rocha – olhei na lupa binocular (que é o que dá para fazer) e não vi nada de
especial – um material argiloso friável com hidróxidos de ferro vermelhos – esse tipo de material é muito
comum e não permite identificar detalhes. Pela geologia de Xaxim, é alteração de rocha vulcânica, talvez com
alguma movimentação como escorregamento. Então dá para classificar como eluvião ou coluvião.
O que significa o termo Icnofósseis Domichnia?
Frank – Traços fósseis têm uma classificação toda sua. Domichnia são estruturas cavadas pelos animais
para morar dentro. Vem de domus, do grego, significando ‘casa”. Movichnia, por exemplo, são estruturas
criadas pelos animais ao se mover.
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Notou-se, por meio da entrevista com o professor Frank, que ele defende a ideia de que a paleotoca
xaxinense foi escavada e habitada por uma manada de preguiças gigantes. Ele ainda cita que as tocas têm
menos de 500 mil anos e mais de 10 mil anos, ou seja, construídas no Período Pleistoceno. Além disso, que a
paleotoca de Xaxim é um desses fragmentos que deixaram suas marcas na crosta terrestre, e que servem
como fonte de pesquisa para desvendar enigmas sobre a evolução do Planeta e dos seres vivos – neste caso,
em relação à megafauna pleistocênica sul-americana.
CONCLUSÃO
Em vista dos argumentos apresentados na pesquisa, conclui-se que a galeria subterrânea
denominada de paleotoca, existente no centro da cidade de Xaxim, na Avenida Plínio Arlindo de Nes, é
dotada de um expressivo valor nos campos da Paleontologia, Biologia, Turismo e Espeleologia da região oeste
de Santa Catarina.
Sobre a origem da galeria subterrânea de Xaxim, percebeu-se que ao longo do tempo constituíram-se
três ideias diferentes. Uma dessas ideias sugere que “supostamente” teria sido um trabalho de engenharia
indígena; a outra, uma formação natural; e, finalmente, a mais recente e apoiada em evidências científicas,
de que se trata de uma paleotoca.
Mediante os estudos realizados em 1987 por Rossano Lopes Bastos, do IPHAN, constatou-se que a
galeria subterrânea de Xaxim, situada em uma lomba, estava destruída em um terço e que não havia
fragmentos cerâmicos, líticos ou de sepultamentos. Nas paredes existiam sinais de picareta e de cavadeira
pectiforme. Havia um corredor principal e dois braços laterais. Tal galeria se assemelhava às outras
existentes na localidade de João Paulo, município de Bom Retiro, e em Urubici (SC) – mas também estavam
dispersas nos planaltos rio-grandenses e paranaenses.
Referindo-se à galeria subterrânea de Xaxim, conforme Rossano Lopes Bastos documentou, com
base no “mapinha” de Eduardo Lunardi, a largura dos túneis fica em torno de 1,10m a 1,60m. A altura entre
90cm e 1,25m. E a distância da entrada aos pontos: “A”, 12m; “B”, 19,50m; “C”, 29,40m; “D”, 29,65; e o túnel
“E”, 30,40m. Na parte em que os túneis se encontram, o perímetro é de 9,42m.
Considerada patrimônio da União, a galeria subterrânea de Xaxim está protegida pela Lei nº 3.924,
de 26 de julho de 1961. Ela foi cadastrada na Ficha de Registro de Sítio Arqueológico, do Instituto Histórico e
Artístico Nacional, órgão vinculado ao Ministério da Cultura. Entretanto, pelo fato de não se tratar de um
sítio arqueológico, há outra legislação que rege esses locais, conforme este endereço eletrônico:
<www.sbpbrasil.org>.
Por outro lado, o caso das paleotocas é pouco visado pela legislação brasileira. Portanto, a
conscientização e sensibilização da população sobre o valor científico do lugar, a fiscalização do Poder
Público e, especialmente, estrutura de proteção são importantes para a garantia de conservação da galeria
subterrânea, que sofre naturalmente um processo de destruição.
Observou-se, também, que, em várias cidades do sul do Brasil galerias subterrâneas, idênticas à de
Xaxim, são consideradas paleotocas. Elas são estudadas por uma nova linha da Paleontologia, por meio de
atividades de campo e de laboratório, pelo grupo de professores que integram o “Projeto Paleotocas.
Dado o exposto pelo Projeto Paleotocas, galerias subterrâneas semelhantes à de Xaxim são
encontradas no Brasil nos planaltos paulista, paranaense, catarinense e rio-grandense. No exterior, na
Argentina e no Chile. Porém, não são encontradas na América do Norte, na Europa ou na África. Na
atualidade, na fauna sul-americana, não existem animais que cavem túneis com as dimensões das paleotocas
existentes.
Concluiu-se, com base na entrevista com o professor Frank, que a galeria xaxinense é uma paleotoca. Ou
seja, um abrigo subterrâneo escavado e habitado por animais pré-históricos. Essas galerias eram locais de
moradia permanente de paleovertebrados da megafauna pleistocênica sul-americana, extintos há,
aproximadamente, 10 mil anos. Esses abrigos tinham entradas, saídas, rotas de fuga, respiradouros e outras
comunicações com a superfície.
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No caso da galeria xaxinense, seria uma manada de preguiças gigantes que teria escavado e habitado o
local. Para Frank, seria esse o animal escavador pelo fato de a galeria medir mais de um metro de largura, e
na natureza os animais não cavam túneis maiores que seu próprio tamanho.
Viu-se, que entre os pesquisadores do Projeto Paleotocas há divergências sobre a idade dessas galerias; o
consenso é de que devem ser inferiores a 500 mil anos. Há autores que acreditam que elas datam de milhões
de anos; e outros, em que Frank se inclui, que acreditam que elas são relativamente recentes (menos de 100
mil anos). Porém, sempre mais antigas que 10 mil anos.
Com o auxílio do professor Frank, identificou-se que a paleotoca de Xaxim foi escavada num material
argiloso friável com hidróxidos de ferro vermelhos – esse tipo de material é muito comum e não permite
maiores detalhes. Pela geologia de Xaxim, é alteração de rocha vulcânica, talvez com alguma movimentação
como escorregamento. Então, dá para classificar como eluvião ou coluvião.
Observou-se que a paleotoca xaxinense está localizada num topo, próxima da superfície, com a entrada
do túnel bem visível, porém, nos primeiros metros é necessário andar agachado e, adiante é possível
caminhar em pé. Há sedimentos cobrindo o piso original. Não se apresentam colapsos no teto. O formato é
cilíndrico e a estrutura lembra uma cruz. Os túneis, com seus aclives e declives, não são retos; eles se
encontram e formam uma “sala”. No interior não foram encontrados fósseis, o que impede a identificação
exata do escavador.
Notou-se que a paleotoca de Xaxim está preservada, porém, de acordo com o que é indicado pelo
Projeto Paleotocas, é importante se preocupar, ao entrar, para que o teto não rache e desabe. Além disso, há
que se tomar cuidado pelos riscos de desmoronamento e nunca entrar sozinho, pois pode ser mortal, em
curto ou médio prazo, em virtude da poeira de fezes secas de morcegos, ou polens de fungos tóxicos que
infectam os pulmões. Ainda, os membros do Projeto Paleotocas alertam para outros cuidados necessários ao
entrar numa paleotoca: contar com socorro imediato, utilizar máscaras cirúrgicas e estar sempre
acompanhado.
Esses “túneis do tempo”, que seguem seu curso ao longo de milhares de anos, preservam um legado
que entrelaça o passado e o presente, o homem e a natureza. Os humanos constroem suas moradias, assim
como os animais, em busca de segurança, de abrigo; animais extintos cavaram as paleotocas, seu habitat.
Todavia, eles desapareceram. O que é possível compreender com isso? Qual é o “fosso” que separa a
construção das paleotocas e a contemporaneidade?
Na busca de algumas respostas, muitas informações foram negligenciadas nesta singela pesquisa.
Porém, percebeu-se que as paleotocas têm um “horizonte de verdades” 17 para diversas áreas do
conhecimento. Desbravar essa história, que começou muito antes de nossas vidas, representa,
metaforicamente, uma entre tantas “chaves” para se entender e respeitar o processo de evolução da vida na
Terra.
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Referências
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17
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Mecanismos de coerção no Contestado:
uma análise sobre a organização política dos redutos
Vanderlei Cristiano Juraski*
Resumo: Este artigo integra um conjunto de ações realizadas junto ao Instituto Federal Catarinense –
campus Fraiburgo entre os anos de 2016 e 2017 , cujo objetivo era problematizar a Guerra do Contestado sob
a ótica da resistência cabocla às forças governamentais. Esta produção, em específico, examina os
mecanismos de coerção grupal utilizados nos redutos, por meio de uma aproximação teórica entre as obras
de Elias (2000) e Machado (2001). Parte-se do princípio de que a coação física por meio da violência não
pode explicar de maneira eficaz a permanência e mobilização dos rebeldes, sem simplificar as ligações entre
os agentes envolvidos e de sua organização com o campo de experiência da sociedade campesina. Ademais a
duração do conflito revela a complexa organização dos camponeses para deter as investidas do Exército
brasileiro e dos seguranças particulares que os perseguiram. Nesse sentido, a análise dos redutos torna-se
importante, pois eles podem ser considerados estruturas político-administrativas capazes de definir rotinas,
ordenar os espaços, tempos e corpos de uma forma particular. Rompendo antigos laços de solidariedade,
consolidaram outros, neste último caso, vinculados a própria organização hierárquica adotada nestes locais.
O artigo está dividido em três partes. Em um primeiro momento, foram problematizados os mecanismos de
coerção grupal abordados por Elias (2000). Posteriormente, foram analisadas as relações de poder e a
constituição dos partidos vacilante e guerreiro dentro dos redutos, visto que as tensões existentes entre esses
grupos determinaram as ofensivas e recuos dos insurretos ao longo do conflito. Na última sessão,
relacionados os mecanismos de coerção empregados pelas lideranças, de modo a legitimar suas decisões e
àqueles apresentados na obra Os Estabelecidos e os outsiders. Tendo em vista que, esses mecanismos
transcendiam as disputas pelo poder entre partidos distintos, estando embasados nas relações dialógicas dos
redutos com o habitus caboclo.
Palavras-chave: Guerra do Contestado. Mecanismos de Coerção. Redutos.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo busca problematizar os sistemas de coerção grupal a partir do binômio permissões/
proibições aplicadas aos sertanejos insurgentes nos redutos-mor.1 Cabe destacar que os redutos se
caracterizaram por sua organização político-administrativa durante o conflito com as forças armadas. O
controle sobre a população concentrada neste espaço ocorria não apenas pela violência, mas também por um
complexo código de conduta que relacionava-se a vida anterior à Guerra do Contestado.
A vida nos redutos era regrada pelo discurso messiânico milenarista do retorno de José Maria e
do Exército Encantado de São Sebastião. Destaca-se a presença de jovens considerados oráculos no
movimento, por possuírem a capacidade mediúnica de conversar com o monge. Os primeiros jovens eram
parentes de Eusébio Ferreira dos Santos, o qual mantinha influência sobre eles. 2 Conforme o conflito
aprofundava-se surgiram outras lideranças, não vinculados a figura de Eusébio.
Machado (2001) identificou dois partidos dentro do movimento: o religioso e o rebelde ou
guerreiro. As disputas entre estes dois grupos, alteraram a forma como os caboclos comportavam-se durante
a Guerra, ora apenas defendendo os redutos das investidas do exército brasileiro, ora atacando e saqueando
as cidades próximas.
* Atua como professor de História no Instituto Federal Catarinense – campus Fraiburgo. É mestre em História, área de concentração
História Regional pela Universidade de Passo Fundo/ RS (2013) e doutorando em História, área de concentração História, Região e
Fronteiras, pela mesma instituição. Endereço eletrônico: vanderlei.juraski@ifc.edu.br
1 Cita-se: “Taquaruçu, dez. 1913 a jan. 1914; Caraguatá, fev. a abr. de 1914; Bom Sossego, mai. a jul. de 1914; Caçador Grande, jul. a nov.
1914; Santa Maria, dez. de 1914 a abr. 1915; São Miguel, mai. a jul. de 1915; São Pedro, jul. a dez. de 1915” (MACHADO, 2001, p. 257).
2 Eusébio era líder comunitário em São Sebastião dos Perdizes e foi ele quem organizou a migração de várias pessoas (vizinhos e
conhecidos) para o 2º Taquaruçu a espera do retorno de José Maria.
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Considerando a fluidez dos episódios relacionados à Guerra, a mudança de partidos no poder, e
os múltiplos interesses envolvidos, pensa-se que a coerção grupal foi garantida por uma série de permissões e
restrições aos redutários, em que a violência foi uma das manifestações do código de ética presente nos
redutos. 3
Nesse sentido, optou-se por analisar os sistemas de coerção grupal à luz da obra de Elias (2000).
O sociólogo, em Os estabelecidos e os outsiders, trabalhou com a distinção entre grupos que não
apresentavam diferenças de classe, raça ou crença, tendo um padrão de vida semelhante entre si. A única
justificativa para a distinção entre eles era a ancestralidade da ocupação. Contudo, foi por meio da análise
desta distinção que percebeu-se os mecanismos de coerção social, como a estigmatização a partir da fofoca
elogiosa e/ou depreciativa.
O artigo foi dividido em três partes. Na primeira seção foram abordados os elementos
constituintes da trama analisada por Elias (2000), de modo a observar como estes conceitos foram utilizados
em seu contexto original. A segunda seção tratou das relações de poder dentro dos redutos-mor (objeto deste
estudo). A terceira parte buscou estabelecer uma aproximação teórica entre a obra de Elias (2000) e
Machado (2001).
2. BREVE REVISÃO SOBRE OS ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS
Em seu livro Os estabelecidos e os outsiders, o autor tem como palco a cidade inglesa de
Winston Parva (nome fictício), “localizada nos arredores de uma grande cidade industrial”, entre os anos de
1959 e 1960. “Uma ferrovia separava-a de outras partes desse conjunto que proliferava” (ELIAS, 2000, p. 51).
A cidade tinha cerca de 5000 habitantes, quase a totalidade pertencente a classe trabalhadora. Os moradores
dispunham de “fábricas, escolas, igrejas, lojas e clubes” (idem).
Winston Parva dividia-se em três bairros. A zona 1 era uma “área residencial de classe média”,
enquanto as zonas 2, ou “aldeia”, e 3, “loteamento” eram “áreas operárias”. Elias retratou a tensão entre os
bairros, notadamente, das zonas 2 e 3 da seguinte forma:
Não havia diferenças de nacionalidade, ascendência étnica, “cor” ou “raça” entre os
residentes das duas áreas, e eles tampouco diferiam quanto a seu tipo de ocupação,
sua renda e seu nível educacional – em suma, quanto a sua classe social. As duas
eram áreas de trabalhadores. A única diferença entre elas era a que já foi
mencionada: um grupo compunha-se de antigos residentes, instalados na região
havia duas ou três gerações, e o outro era formado por recém-chegados (Ibid., p.
21).
Na cidade a estigmatização social era direcionada de um grupo a outro. Portanto, não pode ser
considerado como “preconceito social”, passando a ser “preconceito intergrupal”. “No caso de Winston Parva,
de uma povoação da classe trabalhadora, estabelecida desde longa data, em relação aos membros de uma
nova povoação de trabalhadores em sua vizinhança” (Ibid., p. 20).
O maior tempo de convivência entre os moradores da aldeia garantiram certos privilégios em
relação aos moradores do loteamento. Conhecer as famílias tradicionais da localidade, bem como desfrutar
de um passado em comum concediam aos residentes o status de insiders, enquanto os moradores do
loteamento eram vistos como forasteiros, ou seja, outsiders. Percebe-se uma distinção entre o carisma do
grupo (estabelecidos) e a desonra grupal (dos outros).
O grupo dos antigos residentes, famílias cujos membros se conheciam havia mais
de uma geração, estabelecera para si um estilo de vida comum e um conjunto de
Quando o cerco das forças oficiais passou a ser mais incisivo, a organização dos redutos foi mantida por meio da ameaça e do medo,
representado pela historiografia, na figura de Adeodato.
3
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normas. Eles observavam certos padrões e se orgulhavam disso. Por conseguinte, o
afluxo de recém-chegados a seu bairro era sentido como uma ameaça a seu estilo de
vida. […] Os recém-chegados eram desconhecidos não apenas dos antigos
residentes, mas também entre eles, não tinham coesão, e, por isso, não conseguiam
cerrar fileiras e revidar (Ibid., p. 25).
Segundo Elias (2000), as diferenças de coesão são equivalentes ao poder adquirido e
compartilhado pela comunidade. Quanto mais coeso o grupo, maior sua influência na cidade e seu poder de
estigmatização. “Afixar o rótulo de ‘valor humano inferior’ a outro grupo é uma das armas usadas pelos
grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade social” (Ibid., p. 24).
No caso de Winston Parva, os moradores do loteamento eram vistos como arruaceiros,
desregrados e promíscuos. Este estigma grupal aplicado a todos os indivíduos, pode ser comparado aquele
atribuído aos “burakumins” que desempenhavam funções consideradas impuras no Japão. Eles eram
executores de criminosos, fabricantes de couro, açougueiros, limpadores de ruas ou coveiros. Segundo o
preceito xintoísta4 da pureza, um ser humano pode tornar-se impuro ao realizar atividades consideradas
sujas.
Para Elias, a distinção física também era importante para a estigmatização. Encontrar traços,
marcas, sinais de distinção entre os burakumins e o restante da população, “um sinal de nascença azulado,
abaixo das axilas” (Ibid., p. 35), justificava o estigma grupal a partir das “forças que criaram o mundo”,
naturalizando, por consequência, o preconceito intergrupal.
A atribuição de falhas – e também de qualidades positivas – a indivíduos que
pessoalmente nada fizeram para merecê-las, pelo simples fato de pertencerem a um
grupo julgado digno delas, é um fenômeno universal. […] Em todos esses casos,
aqueles que são objeto do ataque não conseguem revidar porque, apesar de
pessoalmente inocentes das acusações ou censuras, não conseguem livrar-se, nem
sequer em pensamento, da identificação com o grupo estigmatizado. Assim, as
calúnias que acionam os sentimentos de vergonha ou culpa do próprio grupo
socialmente inferior, diante de símbolos de inferioridade e sinais de caráter
imprestável que lhes é atribuído, bem como a paralisia da capacidade de revide que
costuma acompanhá-lo, fazem parte do aparato social com que os grupos
socialmente dominantes e superiores mantêm sua dominação e superioridade em
relação aos socialmente inferiores. Há sempre uma suposição de que cada membro
do grupo inferior está marcado pela mesma mácula. Eles não conseguem escapar
individualmente da estigmatização grupal, assim como não conseguem escapar
individualmente do status inferior de seu grupo (Ibid., p. 132).
Cabe salientar que a relação estabelecidos e outsiders, no caso de Winston Parva tem um vínculo
duplo, pois resulta em estigmatização. Criticar a zona 3 servia para manter a coesão dos moradores da zona
2. Se, de outro modo, a dependência for unilateral, ocorre o extermínio dos outsiders. Elias citou como
exemplo os ameríndios nos anos que seguiram-se a chegada dos europeus na América.
“Um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de
poder das quais o grupo estigmatizado é excluído” (Ibid., p. 23) e sua exclusão ocorre para preservar o
carisma grupal. “[...] sua maior coesão permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais
com potencial de poder mais elevado e de outro tipo, o que vem reforçar sua coesão, e excluir dessas posições
os membros dos outros grupos” (Ibid., p. 22). Permitindo a prioridade na “distribuição vigente de
oportunidades de poder” (Ibid., p. 36).
O xintoísmo é uma religião politeísta de origem japonesa que defende a harmonia entre o homem e a natureza, acreditando que o
Universo é constituído por forças puras, impuras e a fusão de ambas.
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Contudo, os privilégios desfrutados pelos estabelecidos têm como preço o autocontrole
individual, o regramento e a censura da opinião grupal.
Ela pode ser mantida através da participação gratificante no valor humano superior
do grupo e da correspondente acentuação do amor-próprio e auto-respeito dos
indivíduos, reforçadas pela aprovação contínua da opinião interna do grupo e, ao
mesmo tempo, pelas restrições impostas por cada membro em si mesmo, de acordo
com as normas e padrões grupais (Ibid., p. 41).
A aceitação/ rejeição do indivíduo pelo grupo, ou, o carisma/ desonra grupal restringem ou
expandem a autopercepção do sujeito como importante para a coletividade. De certo modo, as ações
individuais refletiam um código de ética informal compartilhado com os demais membros, que estabeleciam
os limites do poder do ser humano. A familiaridade das pessoas da aldeia com as regras previamente
estabelecidas permitiram um direcionamento sobre o permitido/ recomendado e o indesejável/ proibido.
A visão, hoje muito difundida, de que um indivíduo mentalmente sadio pode
tornar-se totalmente independente da opinião do “nós” [we-group] e, nesse
sentido, ser absolutamente autônomo, é tão enganosa quanto a visão inversa, que
reza que sua autonomia pode desaparecer por completo numa coletividade de
robôs. É isso que se pretende dizer quando se fala da elasticidade dos vínculos que
unem a auto-regulamentação da pessoa às pressões reguladoras do “nós” (Ibid., p.
40).
Como afirmado anteriormente, a submissão às regras do grupo trazem também benefícios aos
indivíduos. “Isso oferece recompensas sob a forma de status e poder, para contrabalançar a frustração das
limitações impostas e da relativa perda de espontaneidade” (Ibid., p. 171). A maior coesão dos aldeões
permite a eles desfrutar de prestígio ao ocuparem cargos, remunerados ou não, que tenham visibilidade
naquela sociedade.
Em muitos casos, ninguém que não pertença ao círculo dos detentores do
monopólio consegue penetrar nele sem o consentimento destes [...] só [famílias
antigas] lhes é possível de continuar a existir como tal enquanto têm poder
suficiente para preservar este monopólio [...] monopolização de posições-chaves
em instituições locais, da maior coesão e solidariedade, da maior uniformidade e
elaboração das normas e crenças, e da maior disciplina externa que lhes é
concomitante (Ibid., p. 169-170).
O carisma grupal reside na capacidade de resistência ao ingresso dos outsiders na comunidade.
Então, a estigmatização serve como defesa para o carisma evitando, portanto, a profanação de elementos
considerados agregadores pelos estabelecidos. O estigma grupal, por sua vez, é difundido através da fofoca –
instrumento utilizado pelos aldeões para consolidar-se em posições de poder e afastar os recém-chegados.
Segundo Elias (2000), a fofoca pode ser elogiosa, geralmente dirigida aos membros das famílias antigas, ou
depreciativa, quando a ação dos moradores da zona 3 era analisada pelos estabelecidos.
3. EUSÉBIO FERREIRA DOS SANTOS E A RESSIGNIFICAÇÃO DO DISCURSO
Quando José Maria foi morto na Batalha do Irani em 1912, seu discurso passou a ser
ressignificado por algumas lideranças locais, notadamente por Eusébio Ferreira dos Santos. Este personagem
teve um papel de destaque na Guerra do Contestado. Antes desse episódio, ele era o responsável por
organizar as festas, desfrutando de prestígio na comunidade.
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Machado relatou que José Maria
em certo dia de julho de 1912 recebeu a visita de uma comissão proveniente de
Curitibanos composta por Praxedes Gomes Damasceno e Francisco Paes de Farias,
de Taquaruçu, Manoel Alves de Assumpção Rocha e Eusébio Ferreira dos Santos,
de São Sebastião das Perdizes (ou São Sebastião da Boa Vista). Estes homens eram
líderes destas comunidades e vieram a Campos Novos para convidar José Maria a
comparecer à Festa do Bom Jesus, que acontecia dia 6 de agosto em Taquaruçu
(2001, p. 171).
Depois de permanecer alguns meses na localidade, o monge desentendeu-se com o Coronel
Albuquerque, sendo obrigado a migrar para os campos do Irani. Alguns sertanejos acompanham-no.
Eusébio, por motivos de saúde, não estava entre eles.
Independente do que tenha acontecido durante a batalha, ocorre, em outubro de
1912 e outubro de 1913, um peculiar processo de reelaboração mística. É o que
Duglas Monteiro denomina de processo de “reencantamento do mundo”, como a
complexa criação de instituições místicas e sociais novas, que darão um novo
significado e uma nova coesão para os seguidores de José Maria (MACHADO,
2001, p. 185).
Pouco tempo antes de completar um ano da morte do monge – na primeira batalha da “Guerra
Santa” –, houve boatos de que a neta de Eusébio, Teodora, com 11 anos de idade, era orientada em sonhos
por José Maria para ir até Taquaruçu 5, onde o profeta e o exército encantado de São Sebastião regressaria
(Ibid., p. 195).
Aproveitando-se de seu status social em São Sebastião das Perdizes, Eusébio convenceu os
vizinhos e conhecidos a rumarem para Taquaruçu onde ficariam em vigília pelo retorno do monge.
Eusébio Ferreira dos Santos chegou em Taquaruçu em 1º de dezembro de 1913,
com sua família e um grupo de aproximadamente 20 pessoas de Perdizes.
Chegando em Taquaruçu, foram repelidos por Praxedes Damasceno, que não
queria mais envolver-se com problemas com o Cel. Albuquerque. Os sertanejos de
Perdizes pousaram nas terras de Chico Ventura, onde deram início a formação do
primeiro “Quadro Santo” (Ibid., p. 196).
Neste primeiro momento, pode-se perceber a ascendência de Eusébio sobre as pessoas reunidas
no reduto, especialmente, pela capacidade de sua neta em, supostamente, comunicar-se com José Maria.
Conforme o tempo passava e a previsão não se confirmava, Teodora foi sendo questionada. Sua liderança
durou poucos dias.6 Em seu lugar assumiu o menino-Deus Manoel, que, por sua vez, conversava com o
monge na mata.
A reelaboração religiosa se processa através da transformação da figura de José
Maria, de um simples curandeiro, em um indivíduo santificado que possuía
qualidades proféticas. Muitos sertanejos passaram a afirmar que José Maria havia
profetizado sua própria morte. Os principais intelectuais produtores deste novo
5Atualmente
pertencente ao município de Fraiburgo/SC.
Em depoimento a Maurício Vinhas de Queiroz, Teodora reconheceu que suas visões não passavam de invenção de seu avô e dos mais
velhos para dirigir o grupo (Ibid., p.197).
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quadro de referência social e religioso são Manoel Alves de Assumpção, Eusébio
Ferreira dos Santos e sua esposa Querubina, de Perdizes, que contarão com o apoio
de Chico Ventura (Ibid., p. 188).
O reduto foi sendo estruturado pela ação de um núcleo inicial formado por Eusébio, Querubina
e Chico Ventura. O discurso do monge passou, então, a ser ressignificado, justificando a permanência por
tempo indeterminado no 2º Taquaruçu e a afronta a autoridade do Cel. Albuquerque que defendia a
dispersão.
Para garantir a coesão grupal alguns elementos foram importantes. Inicialmente, cabe salientar
que, as pessoas envolvidas eram conhecidas e já desfrutavam de uma história em comum. De modo que uma
referência qualquer, fazia sentido em si mesma, sem precisar de uma explicação mais minuciosa.
Segundo Koselleck (2006), uma determinada sociedade, delineada espacial e temporalmente,
compartilha um “campo de experiência” e um “horizonte de expectativa” específico. Para o autor, o campo de
experiência é formado pelas vivências de um grupo, enquanto o horizonte de expectativa é composto por suas
perspectivas de futuro. Durante muitos séculos, a expectativa dependeu das experiências, de modo que, um
camponês, por exemplo, apenas poderia esperar por um número limitado de possibilidades, via de regra,
ligadas às suas vivências.
O 2º Taquaruçu, como ficou conhecido o ajuntamento liderado por Eusébio, reunia pessoas que
compartilhavam um conjunto de experiências e expectativas similares, devido à convivência da maioria na
cidade de São Sebastião dos Perdizes. Contudo, era necessário o desenvolvimento dos mecanismos de
coerção que assegurassem a unidade do grupo e a repressão aos dissidentes.
Nesta segunda Taquaruçu, que durou apenas de dezembro de 1913 a fevereiro de
1914, há uma rápida sucessão de lideranças, todas influenciadas ou colocadas pelo
velho Eusébio. Teodora não chegou a completar duas semanas como
vidente/comandante do reduto, houve uma crescente descrença em suas visões e
ela mesma parecia ter se assutado com sua própria representação. Logo ela perdeu
o “aço”. Teodora perde a importância mas continuará, como “virgem”, a coadjuvar
o trabalho de outras lideranças religiosas e políticas dos diferentes redutos até o
final da guerra. Em meados de dezembro de 1913, quem passa a dirigir Taquaruçu é
Manoel [Menino-Deus, ou, Menino-de-Deus], filho de Eusébio e Querubina, rapaz
com 18 anos que passou a declarar que conversava com José Maria na mata (Ibid.,
p. 198).
Percebe-se que os mecanismos de coerção inerentes àquela sociedade limitavam a atuação do
indivíduo a códigos estabelecidos pela coletividade. A ascensão de Manoel e, por consequência, de Eusébio
sobre o grupo, deveria se restringir aos limites demarcados pelo próprio coletivo mesmo que de forma
inconsciente. Entre as demandas repassadas por Manoel, sempre cumprindo a fórmula “da ordem do monge
José Maria”, de modo a justificar o seu discurso, o menino-Deus pediu para dormir com duas virgens. Tal
solicitação não estava circunscrita entre as permissões e/ou proibições daquela sociedade, logo Manoel foi
retirado do cargo que ocupava
[…] pouco depois de 10 dias Manoel foi retirado do comando e surrado
publicamente com vara de marmelo por seu sobrinho de 11 anos, Joaquim, o novo
Menino-Deus. […] Os caboclos, que estavam mergulhados num regime de rigor
moral, consideraram este ato [dormir com duas virgens] uma afronta que revelava
a fraude de Manoel (Ibid., p. 203).
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Manoel não notou a tênue linha que separava a sua vontade e as necessidades coletivas, logo foi
exposto publicamente, perdendo o cargo que ocupava e diminuindo seu status no reduto. Elias (2000)
chamou de “descrédito coletivo”, a punição aplicada aos indivíduos que ousassem desrespeitar as regras
estabelecidas pelo grupo.
Apesar de o episódio ocorrido com Manoel, poder resultar em crítica a Eusébio, este como líder
do movimento continuou indicando os videntes. 7 “As lideranças de Teodora, Manoel e Joaquim, não
centravam-se apenas em suas anunciadas capacidades mediúnicas e sagradas. O poder destes jovens era
respeitado, principalmente, porque sua autoridade era bancada” (Ibid., p. 220/221) pelo líder comunitário. O
monopólio sobre a indicação de guias espirituais 8, desempenhado por Eusébio neste primeiro momento,
revela o pertencimento deste, ao que Elias (2000) chamava de “minoria dos melhores”, convertida na
“dominação dos melhores” sobre os alijados do “carisma grupal”. 9
Embora, sendo a margem de manobra limitada, como constatado no pedido de Manoel, ainda
era permitido o surgimento de novas rotinas, diferentes daquelas percebidas no período anterior à Guerra.
A ordem urbanística quadrangular, de uma praça demarcada por cruzeiros diante
de uma Igreja; as práticas das formas, com o perfilamento de toda a população
local duas vezes ao dia para rezas e organização dos serviços; a organização dos
“Pares de França”, como guarda de elite sertaneja: são todas práticas sociais,
culturais e religiosas criadas, pelo menos, a partir de novembro de 1913, no
segundo Taquaruçu, quando as lideranças de Eusébio Ferreira dos Santos e Chico
Ventura partem para a elaboração deste tipo de organização social na espera do
retorno de José Maria (Ibid., p. 179).
A população que outrora vivia às margens do latifúndio, tendo a disposição grandes extensões
de terras, principalmente, na região da floresta ombrófila mista, agora deveria se habituar a concentrar-se em
um espaço restrito devido aos esforços de guerra. Essa nova ordem espacial precisava ser seguida por uma
disciplina, que permitisse aos dirigentes manter o controle sobre as atividades cotidianas dos caboclos.
É provavelmente neste período [2º Taquaruçu] que se institucionalizaram as
formas, um perfilamento geral da população do reduto na praça central, que se
realizava duas vezes por dia, pelas manhãs e tardes, onde se entoavam cantos e
preces, se dividiam as tarefas comuns de subsistência e de defesa, e se davam
“Vivas” à Monarquia, a São João Maria e José Maria. Na praça central do “Quadro
Santo” as pessoas eram separadas em formas paralelas de homens, mulheres e
crianças. Neste momento havia uma dissolução das unidades familiares nos três
grupos da forma, o que colocava os indivíduos diretamente ao alcance dos
discursos dos chefes. Além de servir para fins práticos, como organização dos
serviços e divisão das tarefas, as formas cumpriam um papel de renovação e
reforço motivacional dos redutos (Ibid., p. 201-202).
O esforço em constituir uma nova ordem baseada nos preceitos supostamente indicados por
José Maria era evidente. Nos termos de Elias (2000), a “boa sociedade” iniciada por Eusébio, Querubina e
Chico Ventura, deveria estar pautada no discurso messiânico milenarista de retorno do monge e na
obediência aos oráculos indicados por Eusébio.
A proeminência do patriarca sobre os caboclos em Taquaruçu foi abalada pelo início dos ataques
ao reduto. O 2º Taquaruçu sofreu duas investidas do exército brasileiro. A primeira foi repelida pelos
Logo depois da saída de Manoel assumiu Joaquim, neto de Eusébio.
Entre os três primeiros oráculos estavam dois netos e um filho de Eusébio e Querubina.
9 Deste modo, aqueles que estavam mais próximos do núcleo fundador poderiam desfrutar de benesses negadas à maioria. Exemplo
disso, era a alimentação, o controle sobre o estoque e a prerrogativa de tomar decisões em nome do coletivo.
7
8
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sertanejos, a segunda logrou sucesso, dizimando o reduto e matando inúmeras mulheres e crianças que
estavam no local, haja vista que os homens haviam deslocado-se para Caraguatá, por ordem de Joaquim.
Além do sério ferimento na perna [decorrente do primeiro ataque a comunidade de
Taquaruçu no dia 29 de dezembro de 1913], a liderança de Eusébio vai aos poucos
desgastando-se tanto pela inconstância das lideranças que o mesmo engendra,
como pela crescente população que aflui ao reduto. Há claros sinais de desgaste da
liderança de Eusébio devido a rápida perda de “aço” dos jovens que nomeara como
comandantes (Ibid., p. 221).
Em Caraguatá, Eusébio teve de partilhar sua liderança com Elias Antônio de Morais “Juiz de Paz
[do Distrito de São Sebastião dos Perdizes] e Major da Guarda Nacional [...] e sua esposa Adúlcia” (Ibid., p.
221/222). Pela primeira vez, desde o 2º Taquaruçu, o guia espiritual não foi indicado por Eusébio. A virgem
desse reduto era Maria Rosa, filha de Elisiasinho da Serra, morador da Serra da Esperança, sem parentesco
com Eusébio.
Elias de Moraes assumiu o comando das formas e, em pouco tempo,
principalmente a partir de meados de 1914, era o principal comandante do
movimento sertanejo. Elias e sua esposa Adúlcia assumirão uma posição
semelhante a de Eusébio e Querubina. Serão os principais responsáveis pelas
escolhas das futuras lideranças (Ibid., p. 228).
Outro ponto a destacar era que “Maria Rosa, ao contrário de Teodora ou dos Menino-Deus
Joaquim e Linhares, não submetia suas ordens a um conselho. Maria Rosa dirigia suas ordens diretamente
nas formas” (MACHADO, 2001, p. 226), o que restringia ainda mais a ascendência de Eusébio sobre os
caboclos.10
Conforme a Guerra do Contestado avançava, ganhava importância dentro dos redutos o que
Machado chamou de partido rebelde ou guerreiro, formado por pessoas menos religiosas do que aquelas do
núcleo originário. Nesse sentido, o ataque das forças oficiais ao 2º Taquaruçu em 8 de fevereiro de 1914 e as
investidas contra Caraguatá contribuíram para a ascensão deste partido.
“Caraguatá foi evacuado em final de março de 1914. O tifo estava dizimando a população do
reduto e Maria Rosa comandou uma longa marcha, conduzido mais de 2 mil pessoas, 600 cabeças de gado,
cargueiros de mantimentos, etc., para o novo reduto de Bom Sossego” (Ibid., p. 228). Segundo Machado
(2001), “a liderança da virgem Maria Rosa declinou em Bom Sossego, logo após a evacuação de Caraguatá,
em abril de 1914” (Ibid., p. 257). A partir desse momento, o partido rebelde passou a dirigir o movimento.
Entre as principais lideranças caboclas neste período, cita-se Agustin Perez Saraiva, o
Castelhano, em Lages, Chico Ventura e Paulino Pereira, em Curitibanos, Aleixo Gonçalves de Lima, Bonifácio
Papudo e Antônio Tavares, em Canoinhas, Conrado Grobbe e Tomazinho Rocha, em Timbó e Timbozinho,
respectivamente, Chiquinho Alonso e Elias de Moraes no reduto-mor.
Os interesses que motivavam esses indivíduos eram os mais variados possíveis, desde o combate
ao coronelismo até desavenças pessoais como no caso dos irmãos Sampaio com o Cel. Albuquerque, amante
da esposa de João Sampaio. Destaca-se ainda, os problemas da gestão em Curitibanos, caso da cobrança de
impostos considerados excessivos por Paulino Pereira.
Os episódios políticos de 1913 tensionam de tal forma a política em Curitibanos,
que o ressurgimento do movimento pela expectativa do retorno de José Maria, em
novo ajuntamento em Taquaruçu, será imediatamente entendido como uma
Após a substituição de Manoel por Joaquim foi instituído um conselho que tinham como função traduzir a mensagem do profeta. Na
prática era como se a mensagem do oráculo devesse passar pelo filtro dos líderes políticos, evitando assim o descrédito do grupo.
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afronta à legitimidade do poder do Cel. Albuquerque. A oposição política do
município, principalmente os irmãos Sampaio e Paulino Pereira [vendedor de
gasosa], passa a ver na vida dos redutos um meio eficaz de unir forças no combate
às autoridades. Os Sampaio e Paulino Pereira levaram consigo “sua gente”,
centenas de sertanejos. Sua adesão ao movimento rebelde ocorre em meados de
1914 (Ibid., p. 195).
Considerando os diversos interesses pessoais e a oposição política na região do Contestado, o
movimento mítico/religioso parecia, apenas, um pretexto para a rebelião popular. Machado (2001) ao
discorrer sobre a tentativa de invasão da cidade de Lages pelos rebeldes falou sobre a percepção do capitão
Euclides de Castro acerca dos caboclos envolvidos no conflito.
O capitão Euclides de Castro avaliou em 550 o número de rebeldes em armas
dispostos a invadir a sede [Lages, outubro de 1917]. Porém, o oficial do Regimento
de Segurança não via este agrupamento como um conjunto uniforme de indivíduos
com os mesmos propósitos. Estes 550 seriam o somatório de 200 “fanáticos”
(comandados por Chico Ventura), 100 “amedrontados” (um grupo de sertanejos
que teriam sido intimidados a aderir ao movimento), 100 “comedores de carne” (a
“ralé” do campo que se aproveitava do conflito para saquear fazendas e carnear
rezes), 50 “criminosos” (chefiados pelo negro Olegário) e 100 “despeitados de
Curitibanos” (comandados por Paulino Pereira e os irmãos Sampaio, opositores
políticos do Coronel Albuquerque) (Ibid., p. 280/281).
Muito embora, a pluralidade de sujeitos enredados na Guerra, ao observar as dimensões do
território em litígio e a duração do conflito, nota-se que o discurso profético inaugurado por José Maria,
manipulado por Eusébio e apropriado pelos sertanejos da região, serviu como fio condutor das reivindicações
sociais.
A existência de guias espirituais, como “virgens” e “menino-Deus” revela a necessidade de
justificação do movimento a partir de elementos do universo sobrenatural aceito por aquela população. “Com
o correr da luta com o governo, paulatinamente, vão se afirmando no comando as ‘lideranças de briga’. No
entanto, mesmo as ‘lideranças de briga’, quando assumiam o comando-geral, precisavam legitimar-se
religiosamente, sendo acompanhados por virgens e novos monges” (Ibid., p. 340).
Nos redutos-mor as disputas entre o partido religioso e guerreiro se acentuavam na medida em
que havia o aprofundamento dos conflitos entre caboclos e as forças oficiais. Chico Alonso, um dos líderes do
partido guerreiro, foi trazido para Caraguatá por Venuto Baiano e substituiu Maria Rosa, após ela conversar
com Matos Costa11, em busca de uma solução pacífica para o conflito. 12 Durante seu comando, a irmandade
cabocla expandiu seu território. Em meio ao rápido avanço do movimento rebelde pela região, o governo de
Chiquinho Alonso terminou no ataque frustrado à estação ferroviária de Rio das Antas, no início de
novembro de 1914. 13
Com a morte de Chiquinho Alonso ressurgiu a disputa entre o Partido guerreiro e o Partido
religioso “e estancou, definitivamente, a ofensiva ‘pelada’. O novo comandante-geral, Adeodato, ordenou o
recolhimento de todos os piquetes ao reduto-mor (Ibid., p. 282).
Matos Costa foi oficial do Exército Brasileiro, um dos encarregados pela Campanha militar no Contestado. Morto em uma emboscada
planejada por Venuto Baiano.
12 A orientação para os caboclos era "manter reserva" em relação aos "peludos". Provavelmente, o contato entre Maria Rosa e Matos
Costa foi entendido na época como "poluidor", na medida em que expunha o "carisma grupal" à pessoa não iniciada no movimento,
percebido pelas lideranças do partido guerreiro como inimigo.
13 Se os rebeldes conseguissem tomar esta estação, haveria a possibilidade de expandir o movimento para o extremo oeste de Santa
Catarina, pois esta era um importante interposto entre o centro-oeste do Estado e os campos de Irani e de Palmas.
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Talvez a explicação mais razoável para entender a ascensão de Adeodato seja a
apontada por Vinhas de Queiroz. Este autor explica que havia uma disputa velada
entre dois “partidos” dentro dos redutos. O mais antigo é o “partido” vacilante ou
moderado, representado pelas “virgens”, por Eusébio Ferreira dos Santos (avô da
“virgem” Teodora, antigo seguidor de José Maria e formador do segundo reduto de
Taquaruçu), que, a partir da morte de Chiquinho Alonso, passou a ser favorável a
uma paz negociada com as forças do governo. O outro “partido”, menos religioso e
mais “jagunço”, liderado Chiquinho Alonso e pelo velho Elias de Morais, confiava
na expansão dos redutos e na derrota do governo (Ibid., p. 299/300).
A ascensão de Adeodato ocorreu em meio a crise de lideranças, logo a manutenção do cargo e da
supremacia do partido guerreiro, deveria ser garantida, mesmo que pelo uso da violência. A primeira
demonstração de força de Adeodato foi o deslocamento dos sertanejos de Caçador para Santa Maria
(Curitibanos).
Em Santa Maria, Eusébio Ferreira foi reabilitado, Adeodato o nomeou almoxarife
das armas. Mas esta recomposição com o “partido moderado” custou a vida de
Antoninho, que já tinha desafiado publicamente Adeodato (Antoninho queria que o
reduto-mor de Caçador se transferisse para S. Sebastião [Timbozinho], e não
obteve apoio de ninguém). Segundo Vinhas de Queiroz, foi Aleixo Gonçalves, major
da Guarda Nacional e antigo federalista que havia aderido ao movimento dos
sertanejos, que matou Antoninho, a mando de Adeodato (Ibid., p. 306).
Apesar de a violência empregada para garantir a preservação do movimento, cabe ressaltar que
Adeodato também preocupava-se com a legitimação espiritual de seu comando. Segundo Machado (2001),
Adeodato, inicialmente, declinou do convite, mas após ser convencido por Crespo para liderar o movimento,
o novo líder relatou aos caboclos que José Maria apareceu em sonho convocando-o para esta missão.
Neste sentido, a aparição do monge e a capacidade das lideranças em comunicar-se com este
continuavam sendo utilizadas para justificar a indicação de pessoas alinhadas a determinado partido para
assumir a direção do movimento. O discurso da Guerra Santa era aceito pela população, mesmo com o
aprofundamento dos conflitos.
Após o cerco do exército ao reduto de Santa Maria, ocorreu a rendição de grande parte dos
redutários. Nos dias que se seguiram aos ataques, vários sertanejos se apresentavam as autoridades locais,
alegando que estavam em Santa Maria mantidos a força por Adeodato, que passou a ser descrito como
désposta pelos caboclos.
Logo depois da destruição do reduto de Santa Maria – que chegou a ter, aproximadamente, 30
mil pessoas – e, sem o apoio do “partido moderado”, Adeodato e seus adeptos fundaram novos redutos “São
Miguel, Pedras Brancas e São Pedro” até serem capturados e presos.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS À RELAÇÃO ESTABELECIDOS E OUTSIDERS E A FORMAÇÃO
DOS REDUTOS
Notadamente, Eusébio esforçou-se para criar uma “boa sociedade”, nos termos de Elias (2000).
Ele propôs uma nova organização da vida dentro dos redutos, preservando e rompendo com antigas
tradições. Os redutos estavam no limiar entre a velha e a nova ordem, de modo que foi necessário abandonar
os vínculos com os coronéis da região, ao mesmo tempo que manter as relações de compadrio 14 e, por
consequência, de submissão aos líderes do reduto.
14 A importância das relações de compadrio no sertão catarinense está relacionada à densidade demográfica, a organização social e a
concentração de poderes presentes no interior do Brasil no início do século XX. Os caboclos, em sua maioria, trabalhavam para os
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Os redutários chamavam-se mutuamente de irmãos e, com frequência,
rebatizavam os novos membros que aderiam ao grupo, numa cerimônia com
características rituais, onde era escolhido um novo padrinho e, portanto,
formavam-se novos vínculos de compadrio, em substituição às antigas relações.
Era comum que os chefes fossem escolhidos como novos padrinhos, o que
cimentava novos vínculos de fidelidade. A nova vida em comunidade necessitava de
novas referências sociais, ao mesmo tempo que rompia com muitos antigos
vínculos (Ibid., p. 210).
O 2º Taquaruçu constituiu-se na tentativa de Eusébio em implementar a “boa sociedade”, por
meio de novos laços de apadrinhamento e da prática do “comunismo caboclo” (MACHADO, 2001). 15 Este
último relacionado aos “puxirões” e, logo, dialogando com a realidade anterior a Guerra.
Outro elemento que demonstra o esforço do patriarca era a mistificação da realidade através do
discurso messiânico milenarista e da presença de oráculos que comunicavam-se com o monge José Maria.
No reduto de Taquaruçu, todos os guias espirituais estavam vinculados a Eusébio Ferreira dos Santos.
A estigmatização, conceito elaborado por Elias (2000) e abordado anteriormente, pode ser
entendido como uma ferramenta utilizada para distanciar a “boa sociedade” da má. Para tanto, foram
empregados sinais físicos distintivos como, por exemplo, o corte de cabelo e o não uso da barba, a fim de
caracterizar a diferença entre “peludos” e “pelados”. 16
Manoel introduziu, como característica física distintiva, o corte rente de cabelo aos
devotos de José Maria, a partir deste momento os irmãos passam a chamar-se de
“pelados”, denominando as forças do governo de “peludos”. Os “pelados”
adquiriram distinção física também com o uso de chapéus com fitas brancas que
desciam como barbicachos. Nas formas e nas expedições de incursão dos piquetes
xucros, os devotos carregavam uma bandeira branca com cruz verde. […] As fitas
deviam medir 1,7m, equivalente a estatura de João Maria. O discurso de “Guerra
Santa”, associado a estas demonstrações físicas de adesão a vida rebelde, formou
uma nova linguagem do movimento, adotada inclusive mais tarde por outras
lideranças não tão religiosas (MACHADO, 2001, p. 202).
Os redutários possuíam um “carisma grupal” que se revelava na capacidade mediúnica de
alguns membros em comunicar-se com o monge morto José Maria. Contudo, apenas o grupo familiar de
Eusébio possuía este dom e, por consequência, desfrutavam de privilégios naquela sociedade, como por
exemplo, a “distribuição vigente de oportunidades de poder” (ELIAS, 2000, p. 36).
De outro modo, pode-se analisar a “desonra grupal”, termo também abordado por Elias (2000),
no contexto de formação dos redutos a partir dos acontecimentos envolvendo Manoel, Maria Rosa e Venuto
Baiano. Inicialmente, observa-se o caso do menino-Deus Manoel que afirmou ter recebido ordens de José
Maria para deitar-se com duas virgens. Tal pedido não foi aceito pela coletividade e Manoel apanhou com
coronéis ou mantinham uma relação de respeito para com a autoridade local. Quando nascia um filho, por exemplo, era costume
convidar o Coronel para ser o padrinho. Esta filiação representava proteção para o caboclo e fidelidade ao latifundiário. Com o início da
Guerra do Contestado, os acordos (informais) previamente estabelecidos não garantiam que os caboclos pudessem manter-se em suas
terras. Então, os sertanejos insurgentes ao ingressar nos redutos buscaram nova filiação, justamente, com os líderes do movimento.
Percebe-se que esta mudança ocorreu em relação ao responsável pela proteção/fidelidade, mas não houve a preocupação dos caboclos
em romper com as amarras sociais representadas pelas relações de compadrio.
“O comunismo caboclo foi produto de elaboração do grupo dirigente inicial Eusébio-Querubina-Ventura, tomando como experiência a
rápida passagem de José Maria por Taquaruçu e Irani, em 1912” (Ibid., p. 210).
16 Corroborou para isto a percepção de que os outsiders estavam sendo beneficiados pelo Governo Republicano, enquanto os "filhos da
terra" eram expulsos de suas casas.
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vara de marmelo de Joaquim, neto de Eusébio. Maria Rosa, por sua vez, teve seu status rebaixado no reduto
ao conversar com Matos Costa. E Venuto Baiano, por ter planejado uma emboscada a Matos Costa, também
sofreu as sanções do grupo, sendo assassinado por alguns jagunços.17
Na organização dos redutos percebeu-se o desenvolvimento de mecanismos de coerção social
que transcendiam o uso da violência física. Exemplo disso é o estabelecimento de novas relações de
compadrio, a vida de abdicação à espera pelo retorno dos monges e do Exército Encantado de São Sebastião e
a submissão aos comandantes a partir das formas.
Apesar de terem por objeto de análise contextos históricos diferentes a aproximação teórica
entre as obras de Elias (2000) e Machado (2001) é útil para compreender o funcionamento dos mecanismos
de coerção nos redutos, evitando visões simplistas das experiências de vida.
REFERÊNCIAS
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a
partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas. In:
_______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto,
Ed. PUC-Rio, 2006.
MACHADO, Paulo Pinheiro. Um estudo sobre as origens sociais e a formação política das lideranças
sertanejas do Contestado, 1912-1916. Tese (Doutorado em História) Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Orientador: Profº. Drº. Cláudio Henrique de Moraes
Batalha. Campinas, SP, 2001.
Pode-se afirmar que, a fofoca elogiosa auxiliou na consolidação de Eusébio como patriarca do movimento no 2º Taquaruçu e
respaldou suas indicações de virgens e meninos-Deus. De outro modo, a fofoca depreciativa também contribuiu para a destituição ou
morte dos personagens abordados acima.
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Na disputa das memórias: a caracterização dos objetivos da luta armada na
memória de seus militantes (1968 – 1972) 1
Vinícius de Oliveira Masseroni2
Resumo: Esse trabalho busca compreender como os militantes, da autorreferida, esquerda revolucionária
construíram, ao longo do tempo, suas memórias do tempo da luta aramada contra a ditadura civil-militar no
Brasil (1968-1972). Elegendo como um dos marcos possíveis a Lei nº 6.683 de 1979 – doravante, Lei da
Anistia –, a sociedade brasileira entrou em um processo de (re)construção da memória, com vistas a
acomodação de seu passado recente e tentando, assim, desfazer-se de seu pregresso apoio ao regime
instaurado em 1964, ficando apenas com as memórias da resistência democrática. Desta maneira, as
esquerdas e seus projetos revolucionários – de combate ao capitalismo – perderam, nesse novo discurso
onde emerge uma memória democrática, sua retórica mais acentuada e de enfrentamento ao regime. Isso se
deu tanto na memória coletiva da sociedade, como nas memórias daqueles militantes. Dessa maneira, os
combatentes da causa revolucionária foram integrados, de maneira difusa, numa grande e vitoriosa
resistência democrática. Porém, devemos lembrar que a memória não é “eleita” na sociedade, ela é
construída, e não sem disputas. Dessa forma, almejamos mostrar, também, como há uma disputa dessas
memórias, onde dentro de um amálgama de indivíduos, algumas construções da memória se sobrepujaram a
outras. Muitos desses militantes afirmam que faziam e lutaram na resistência democrática. Outros tantos
afirmam que estavam em busca da revolução socialista, onde seria instaurada uma ditadura revolucionária
(do proletariado). No entanto, na sociedade brasileira, durante muito tempo grassou apenas a ideia de jovens
radicais – até errados em suas adesões armadas, talvez? – mas, democratas. É importante, em nosso ver, essa
questão, já que, atualmente, há uma parte da sociedade que tende a, não só negar o autoritarismo do regime,
como o glorificar, fazendo-o a partir das “evidências” do autoritarismo das esquerdas, esse revisionismo
histórico é, também, uma construção da memória. Dessa forma, nosso principal objetivo é deslindar como se
deu esse processo de (re)construção da memória nos militantes revolucionários. Nosso principal aporte
teórico-metodológico provém dos estudos sobre a memória (Michael Pollak, Paul Ricouer, Jeanne Marie
Gagnebin), e, também, da História Oral (Alessandro Portelli). As entrevistas aqui trabalhadas foram
realizadas por outros pesquisadores – e encontram-se acessíveis ao público –, que se enquadram em nossas
perspectivas para o desenvolvimento dessa pesquisa – a saber, o período imediatamente após a
redemocratização, entrevistas sobre o exílio durante a ditadura e, também, demais entrevistas consideradas
pertinentes à pesquisa. Desta forma buscarei compreender “como” e “por quê?” das mudanças da
compreensão e avaliação da contribuição da luta armada na memória destes militantes.
À GUISA DE INTRODUÇÃO
“A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o
tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de ‘tempoagora’ [Jetztzeit]” (Walter Benjamin)3
No texto que se segue buscaremos introduzir a problemática da disputa sobre as memórias relativas
ao período da luta armada durante a ditadura civil-militar brasileira. Precisamos, para seguir esse objetivo,
realizarmos algumas reflexões, mesmo que breves e introdutórias, sobre as questões relativas ao trato com a
1
Esse texto é a extensão da comunicação realizada no IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras. Agradeço a todos
participantes do GT de História Política, nas pessoas dos coordenadores Alessandro Batistella (UPF) e Marluza Marques Harres
(UNISINOS), pelos comentários e sugestões durante o evento.
2 Formado em história pela UNISINOS, atualmente é aluno de mestrado em história na mesma instituição com bolsa PROSUC/CAPES.
E-mail: Vinícius.masseroni@gmail.com.
3 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e História da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.
249.
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memória dentro da pesquisa histórica. Isso se deve que trabalharemos com entrevistas dos militantes da
autorreferida esquerda revolucionária.4
No trabalho com entrevistas, como em nosso caso, as fontes orais não são espontâneas, mas
provocadas pelas questões postas aos entrevistados. Nesse momento o inquirido acessa suas memórias, no
processo de formulação de uma resposta. Nesse sentido, a colocação de Beatriz Sarlo nos parece pertinente,
segundo a autora a memória é “uma captura do passado pelo presente”. 5 No mesmo sentido afirma Denise
Rollemberg, “o movimento que elege a memória como objeto de historia deve pressupor a memória não
como ‘verdade do passado’, como ‘presença do passado’, mas como ‘presente do passado’. Aí estão sua
riqueza e sua relevância”.6
A questão memória é parte indissolúvel da questão da História Oral. Em nosso tema, em particular,
ela se torna muito delicada. Os entrevistados, muitos deles passaram pelas maiores atrocidades propiciadas
pela ditadura civil-militar, logo, essas memórias se tornam incomodas. Aqui achamos importante ressalvar a
importância da função de coesão que a memória exerce no indivíduo não pela coerção, mas pela questão
afetiva.7 Essas memórias – individuais, mas que dão coesão a um grupo – podem, não descartamos essa
hipótese, conter equívocos, intencionais ou não. Por este motivo o trabalho da História Oral, ou da memória,
muitas vezes, foram atacados por essa “fraqueza”. Não vamos lembrar que qualquer fonte é passível de estar
errada, mesmo propositalmente. Essa seria uma resposta. Mas estaríamos atacando a História em geral,
como disciplina. O cruzamento de dados e fontes é um procedimento básico do metiér historiográfico. Não
raro os entrevistados pelos historiadores se mostram muito precisos nas informações fornecidas. Porém,
ainda devemos uma resposta aos Rankeanos. Devemos lembrar que, muitos dos trabalhos com História Oral
e Memória estão de fato preocupados com a memória em si, ou seja, com o processo pelos quais os sujeitos
(re)constroem essas memórias, dessa maneira, o erro, ou mesmo a mentira são importantes objetos de
análise. Alessandro Portelli lembra que “até mesmo o erro, a invenção e o mal-entendido – e mesmo as
mentiras – especialmente quando são socialmente difundidos, tornam-se sintomas preciosos de processos
históricos importantes como a memória e o desejo”. 8
Procuraremos aqui, então, evidenciar, por meio dos relatos de militantes – suas reconstruções da
memória – que, apesar de durante muito tempo a esquerda revolucionária ter sido vista como a radicalização
da luta pela democracia, isso não está “pacificado nas memórias” dos militantes. Muitos afirmam que
lutavam pela democracia, outros tantos que lutavam pela ditadura revolucionária, ou ainda, do
proletariado. Quem fala a verdade? Quem mente? Mas, talvez o mais importante seja saber o motivo da
mudança de discurso.
AS ESQUERDAS NO BRASIL DE 1960
A produção historiográfica sobre as esquerdas 9 no Brasil já é bastante desenvolvida, e ainda é alvo de
interesse dos jovens pesquisadores. Desde o final da década de 1980 as esquerdas vêm sendo objeto de
estudos de diversos historiadores, filósofos, sociólogos e demais pesquisadores das ciências humanas.
Aqui uma nota se faz necessária. Em meu projeto de mestrado, intitulado “Democracia ou Revolução? Um estudo sobre a memória dos
militantes da esquerda armada no Brasil (1968 - 1972)”, trabalho com as entrevistas realizadas pelo sociólogo Marcelo Ridenti,
disponíveis no Arquivo Edgar Leuenroth, Universidade Estadual de Campinas (AEL/UNICAMP), Fundo: Militância política e Luta
Armada no Brasil. Porém para este trabalho utilizei entrevistas disponíveis na internet de partidários da luta armada no Brasil. Aqui
pretendo apenas evidenciar que essas memórias não são unas, mas polifônicas.
5 SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG,
2007, p. 9.
6ROLLEMBERG, Deníse. História, memória e verdade: em busca do universo dos homens. In: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES,
Edson; TELES, Janaína de Almeida (org). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil, vol. II. São Paulo: Editora Hucitec,
2009, p. 569 – 577, p. 575.
7 POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº 3, p. 3 – 15, 1989, p. 3.
8 PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016, p. 19.
9 Optou-se aqui usar o termo no plural, esquerdas, já consagrado na bibliografia sobre o tema, por entendermos que o campo
progressista era e é múltiplo e informado por vários aportes teóricos. Cf.: AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e
sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
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Podemos começar pelos estudos já clássicos da historiografia Combate nas trevas, de Jacob Gorender,10 A
Revolução faltou ao encontro, de Daniel Aarão Reis11 e O fantasma da Revolução brasileira, de Marcelo
Ridenti.12 Esses estudos tem em comum abordarem as esquerdas dentro do período da ditadura civil-militar,
no entanto, as esquerdas tem sido objeto de estudo nos mais diversos períodos da história e com a maior
diversidade de ângulos de abordagem.13
Mesmo com relevante produção bibliográfica o tema das esquerdas tem sido, assim com o período da
ditadura civil-militar como um todo, “vítimas” das memórias. Não é novidade para os historiados que as
sociedades, após o termino de regimes autoritários e violentos, tendem a construir memórias (sempre em
dialética com o esquecimento) harmoniosas, ou ao menos, autocomplacentes com vistas à auto-absolvição.
Não se trata, obviamente, de ato pensado afim de “ludibriar” a História, é uma ação de preservação para que
essa sociedade consiga “seguir em frente”, refazendo um passado o qual possa lembrar e lidar. Isso não foi
exclusividade brasileira, os alemães pós-regime nazista, os italianos pós-regime fascista e os franceses após o
término da ocupação nazista em seu território, parecem ter sofrido da mesma “amnésia pós-traumática” que
a sociedade brasileira experimentou após a queda da ditadura em 1985. Dessa maneira cria-se o mito da
sociedade como vítima.14 A sociedade, através da reconstrução da memória, esquece-se de sua parcela de
participação e colaboração com os regimes autoritários, seja colaboração ativa ou simplesmente sujeitandose as condições impostas. No caso brasileiro, a partir de 1979, a sociedade começa um processo de avaliação
– não necessariamente racionalizada – da memória dos anos de chumbo e mesmo do golpe de 1964. Passa a
rechaçar a ditadura como se nunca houvesse tido nada com aquilo, e vendo-a – a ditadura – como “corpo
estranho”, algo que sempre a sociedade se opôs.15
A historiografia, a revelia da memória cômoda da sociedade, já demonstrou com inegável quantidade
de evidências que a sociedade não apenas assistiu o golpe de 1964 e suportou a ditadura, mas sim, tomou
parte ativamente nos rumos do país sob o governo dos militares, basta lembrar que grande parte da imprensa
saudou o Golpe, instituições como CNBB e OAB, líderes civis como Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek e
que a família brasileira marchou pelo país nas famigeradas “Marchas da Família com Deus, pela Liberdade”
e, também, que todos os vice-presidentes do país sob a ditadura foram civis. 16
GORENDER, Jacob [1987]. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2014.
11 O livro é originário da tese de doutoramento em história do professor Daniel Reis, defendida em 1987, transformada em livro em 1989,
cf.: AARÃO REIS, Daniel. A Revolução Faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1989.
12 O livro é originário da tese de doutoramento em sociologia do professor Marcelo Ridenti, defendida em 1989, transformada em livro
em 1993, cf.: RIDENTI, Marcelo [1993]. O fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
13 Alguns estudos muito relevantes sobre as esquerdas são os seguintes: AARÃO REIS, Daniel; FERREIRA, Jorge (org). As esquerdas no
Brasil. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007, 3 vol. Em três volumes que somam quase duas mil páginas os autores abordam as
esquerdas nos seus mais diversos matizes (anarquistas, comunistas, socialistas, trotskistas, trabalhistas e etc.) e no período que abarca a
proclamação da república até o século XXI. Outra coleção importante é a História do Marxismo no Brasil, publicada em seis volumes,
com diversos organizadores e autores. Sobre as esquerdas na década de 1970 durante a ditadura brasileira ver: ARAÚJO, Maria Paula
Nascimento. A Utopia Fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no Mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000. Sobre a
produção cultural dos comunistas convém consultar: NAPOLITANO, Marcos; CZAJKA, Rodrigo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá.
Comunistas brasileiros: Cultura Política e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. Sobre o exílio dos militantes
revolucionários: ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. São Paulo: Record, 1999. O PCB tem sido objeto de estudo de
vários pesquisadores: FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário dos comunistas do Brasil (1930 – 1956). Rio de
Janeiro: Mauad, 2002. KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil, até o começo dos anos
trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1998. SEGATTO, José Antonio. Reforma e Revolução: as vicissitudes políticas do PCB (1954 – 1964).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. SANTOS, Raimundo. A primeira renovação pecebista: reflexos do XX congresso do PCUS
no PCB (1956 – 1957). Belo Horizonte: Oficina de livros, 1988. Sem contar as centenas de artigos e capítulos de livros.
14 Para melhor avaliação das sociedades pós-ditatoriais na Europa, especialmente o regime de Vichy na França, e do mito da sociedade
como vítima consultar: GROPPO, Bruno. Mito da sociedade como vítima: as sociedades pós-ditatoriais em face de seu passado na
Europa e na América Latina. In: QUADRAT, Samantha Viz; ROLLEMBERG, Denise. História e Memória das ditaduras do século XX.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 39 -56.
15 AARÃO REIS, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 135.
16 Sobre a participação civil no golpe ver: ARRÃO REIS, 2014, p 48 - 49. DREIFUSS, René. 1964: a conquista do estado. Ação política,
poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: O golpe que derrubou um
presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2014. PRESOT, Aline.
Celebrando a “Revolução”: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe de 1964. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT,
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Subjacente ao mito da sociedade como vítima, surge, sub-repticiamente, o mito da sociedade
resistente.17 Não basta não termos parte com a ditadura, também fomos resistentes a ela. É nesse momento
que a memória da esquerda toma vulto, aquilo que Daniel Aarão Reis chamou, com sua perspicácia usual, de
deslocamentos de sentido.18
Contudo, as esquerdas revolucionárias não são compreensíveis se não houver uma rápida
introdução ao seu contexto de surgimento. 19 É sempre mister lembrar que durante a década de 1960 o
mundo estava em plena Guerra Fria, logo as lutas entre direitas e esquerdas ganhavam relevo e interesse
internacionais. Hoje já é sabido, graças à pesquisa historiográfica e abertura de novos arquivos, da
participação dos Estados Unidos da América no golpe civil-militar no Brasil.20 Tendo isso em vista, é importe
tentarmos trazer a tona o contexto do início da década de 1960, as revoluções vitoriosas que inspiraram
grande parte da juventude daquela época, especialmente a Revolução Cubana de 1959 (inicialmente nacional
democrática e, posteriormente, em 1962 assumindo caráter socialista) e a Revolução Argelina, de 1962,
contra o colonialismo francês. Esse contexto internacional animava grande parte das esquerdas brasileiras
ainda antes de 1964, são eles: Partido Comunista Brasileiro (PCB); Partido Comunista do Brasil (PC do B);
Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-POLOP ou, simplesmente, POLOP); Partido
Operário Revolucionário Trotskista (POR-T); a juventude católica aglutinada na Ação Popular (AP); os
nacionalistas radicais do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) liderados por Leonel Brizola; também, o
movimento capitaneado por Francisco Julião que reivindicava a Reforma Agrária, as Ligas Camponesas que,
ainda em 1962, realizariam uma das primeiras tentativas de implantação de uma guerrilha rural. Esse
movimento surgido dentro das Ligas Camponesas foi chamado de Movimento Revolucionário Tiradentes
(MRT).21
É necessário ressaltar a importância do PCB dentro do nosso estudo, já que só trabalharemos as
organizações armadas. Apesar de sempre tecer críticas abertas à luta armada, no pós 1964 o PCB perderá
grande número de militantes para as organizações revolucionárias, sendo ele o maior partido marxista até o
golpe civil-militar, também foi o maior alvo de críticas dos militantes que surpreenderam-se com seu
imobilismo e despreparo para o golpe. Dessa maneira, no pós-64 vários foram os “culpados” pelas esquerdas,
Jango, o PCB de Luís Carlos Prestes, a retórica inflamada de Brizola e, também, organização menores de
esquerda, tais como, PC do B, POLOP e AP.
O PCB foi quem mais sofreu com rachas22, alguns deles são: Ação Libertadora Nacional (ALN),
originária da ruptura de Carlos Marighella em 1967, quando esse velho militante participa de um evento em
solidariedade a Cuba sem autorização partidária. Ao retornar de Cuba, Marighella já expulso do PCB, leva
Samantha Viz (org.). A construção social dos regimes autoritários: Brasil e América Latina, vol. II. Rio de Janeiro, RJ: Civilização
Brasileira, 2010, p. 71-96.
17 GROPPO, 2015, p. 42.
18 AARÃO REIS, 2014, p. 133; ARRÃO REIS, 2002, p. 70.
19 Os trabalhos mais aprofundados sobre o surgimento dessas esquerdas são os já citados: Aarão Reis (1989), Gorender (2014) e Ridenti
(2010). Para um panorama mais sintético de contextualização do surgimento e fragmentação dessas organizações, ver: RIDENTI,
Marcelo. Esquerdas armadas urbanas: 1964 – 1974. In: ______; AARÃO REIS, Daniel. História do Marxismo no Brasil, vol. VI.
Campinas: Editora Unicamp, 2007a, p. 105 – 152; RIDENTI, Marcelo. Esquerdas Revolucionárias armadas nos anos 1960 – 1970. In:
FERREIRA, Jorge; AARAÃO REIS, Daniel. Esquerdas no Brasil, vol. III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007b, p. 21 – 52;
ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta armada. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida. O Brasil
Republicano. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2013, p. 43 – 92
20 Sobre a participação dos EUA no golpe e apoio à ditadura ver: FICO, Carlos. O grande Irmão: da operação brother Sam aos anos de
chumbo. O governo dos Estados Unidos e a Ditadura Militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008. Convém sempre
lembrar que não devemos exagerar a influência do apoio dos agentes externos no golpe brasileiro, sob o risco de vermos a história
brasileira simplesmente como joguete internacional e, também, sob risco de “absolvermos” aqueles que perpetraram o golpe pois
estavam apenas “a reboque” de Washington, cf.: AARÃO REIS, Daniel. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: AARÃO
REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964 – 2004). Bauru:
EDUSC, 2004, 29 – 52, p. 33.
21 Não confundir com agrupamento homônimo do final da década de 1960. A tentativa de implementação de uma guerrilha rural, ainda
sob governo constitucional de João Goulart, foi desbaratada antes mesmo de Julião conseguir lançar a guerrilha, cf.: RIDENTI, 2017a, p.
133, nota 3.
22 Denominação dos militantes para quando um grupo saía de uma organização para fundar outra.
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grande parte dos militantes de São Paulo – onde o mesmo residia na época – esses dissidentes ficaram
conhecidos como “Ala Marighella”, posteriormente adotam o nome de “Agrupamento comunista de São
Paulo” e, em 1968, adota o nome de Ação Libertadora Nacional. 23 Outro fruto de dissidência do PCB foi o
Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), cujos militantes seriam os derrotados do VI Congresso
Nacional do PCB que discordavam da linha pacifista defendida por Prestes. Dessa organização que optará
pelas ações armadas com vistas a desencadeamento da guerrilha rural fizeram parte conhecidos comunistas
como Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho e Mário Alves. As organizações mais radicais ficaram
conhecidas como Dissidências, de origem estudantil. As mais importantes foram: Dissidência de São Paulo
(DISP), que posteriormente cederá seus militantes a várias organização, a principal foi a ALN; Dissidência do
Rio de Janeiro (DI-RJ), futuro Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8); Dissidência da
Guanabara (DI-GB), após o desbaratamento do MR-8 a DI-GB assumirá o nome da organização MR-8, o
qual assina o manifesto de captura do embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, em 1969;
outras dissidências importantes foram as dissidências do Rio Grande do Sul (DI-RG) e do Distrito Federal
(DI-DF). A DI-RG posteriormente se fundiria com militantes dissidentes da POLOP e fundariam o Partido
Operário Comunista (POC), em 1970.24
Mas não apenas o PCB sofreria com a perda de militantes. PC do B sofrerá com diversas
dissidências.25 As mais importantes foram em 1966 o Partido Comunista Revolucionário (PCR), de
Pernambuco e a Ala vermelha do PC do B (ALA). Esse último formado por militantes retornados da China e
insatisfeitos com a demora do desencadeamento da Guerrilha rural por parte do PC do B – denominados por
eles de “ala branca”. A ALA também sofreria com minúsculas cisões, num partido já minúsculo, como o
Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) 26 e o Movimento Revolucionário Marxista (MRM), de 1969 e
1970, respectivamente.27
A POLOP também sofreia com rachas. Os principais foram: a Vanguarda Popular Revolucionária
(VPR); os Comandos de Libertação Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada Popular – Palmares (VARPalmares). Cada qual também com suas respectivas dissidências.
Como podemos ver, o golpe civil-militar serviu para que os militantes das organizações originárias –
a saber PCB, POLOP, PC do B – questionassem os rumos e decisões tomadas por essas organizações. O
interessante de notar nessa miríade de partidos e organizações clandestinas é que, em sua maioria, queriam a
deflagração de uma guerrilha rural. As organizações originárias do PCB e ALN propunham uma guerra de
guerrilhas nos moldes do foco guerrilheiro castro-guevarista. Já as organizações ligadas, originalmente, ao
PC do B primavam pela influência maoísta e a guerra popular prolongada. Os descendentes da POLOP
pendiam pela influência do mito da Revolução Cubana, assim como a ALN. 28 No entanto, o único partido que
efetivamente conseguiu efetivar a guerrilha rural fora o PC do B, na região do Araguaia.
Esses diversos rachas permitem que usemos a feliz expressão de Marcelo Ridenti que enxergou nas
esquerdas brasileiras uma verdadeira constelação de organizações.29 Porém, ao analisarmos a documentação
produzida por essas diversas organizações, fica evidente o caráter ofensivo daquela luta. Não era apenas a
luta pela democracia30, esses militantes almejavam uma revolução social. Chegamos a tal conclusão na
leitura da bibliografia do tema já bastante citada aqui, mas, também, pelo livro organizado por Daniel Aarão
RIDENTI, 2007a, 110.
Sobre as dissidências estudantis ver: RIDENTI, 2007a, 114 – 118.
25 Lembrando que o próprio PC do B é um dissidência do PCB, de 1962, reivindicando serem os continuadores do Partido fundado em
1922, cf.: AARÃO REIS, 1989, 34-39.
26 Não confundir essa dissidência da ALA, o MRT, com o MRT originário das Ligas Camponesas.
27 Para uma análise sintética da “família” originária das dissidências do PC do B, ver: RIDENTI, 2007a, p. 126 – 129.
28 O mito difundido da Revolução Cubana está ligado ao fato, difundido pelos próprios líderes daquela Revolução, que bastava um
punhado de homens corajosos e se poderia deflagrar uma revolução, ver: ROLLEMBERG, 2013, p. 60.
29 RIDENTI, 2010,p.27.
30 É importante lembrar que o desejo de Revolução não exclui a possibilidade de ambição de um regime mais democrático. Porém, estou
disposta a concordar que as organizações revolucionárias desprezavam a “democracia liberal burguesa”. No projeto de mestrado no qual
trabalho atualmente essa definição do conceito de democracia é parte seminal da pesquisa. No entanto, para esse trabalho a definição e
debate sobre o conceito não é fundamental, já que espero evidenciar que as memórias divergem sobre o objetivo da luta armada.
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Reis e Jair Ferreira de Sá, Imagens da Revolução.31 Este trabalho reúne diversos documentos das
organizações revolucionárias entre os anos 1961 e 1971. Os organizadores próprios foram militantes da
esquerda revolucionária, Daniel Reis dirigente da DI-GB/MR-8 e Jair Ferreira de Sá militante da Ação
Popular/Ação Popular Marxista-Leninista. Esse trabalho além de fonte de consulta nos serviu, também,
como objeto de pesquisa.
Essas organizações tinham visões de Brasil diferente. De modo geral, as que vinham como rachas do
PCB, mantiveram a análise do Brasil com resquícios feudais no campo e que a Revolução deveria realizar-se
em duas etapas, a primeira de libertação nacional (antiimperialista), com participação maior ou menor da
burguesia brasileira e, posteriormente haveria uma revolução de caráter socialista. 32 Como dito, a maioria
das organizações oriundas do PCB mantiveram a mesma análise, excetuando-se a DI-GB/MR-8, que definia
que a burguesia nacional já estava integrada com o grande capital estrangeiro, sendo assim o caráter da
Revolução Brasileira seria socialista. Outras eram as divergências, a forma de organização era um debate
recorrente: ou na forma de partido leninista centralizado (PC do B, PCBR e ALA), ou comandos
revolucionários descentralizados (ALN e COLINA). 33
Já na década de 1970, no exílio, muitos militantes vão realizar um balanço da luta armada. Já
aparecem as primeiras críticas, constatação do isolamento político e social. Porém como definiu Daniel Aarão
Reis, o ano de 1979 e a anistia foram essenciais nos deslocamentos de sentido na memória das esquerdas
brasileiras. A sociedade passou a enxergar-se como vítima da ditadura e via nos jovens revolucionários sua
mais radicalizada luta democrática. Uma construção da memória. Como salientou o historiador, as esquerdas
que perderam a batalha na história, saíram vencedora nas batalhas da memória. 34 Segundo Daniel Arrão
Reis,
criaram-se assim as condições para que, no interior da luta pela anistia, se operasse
uma notável reconstrução: a luta armada ofensiva contra a ditadura militar, com
objetivo de destruir o capitalismo e instaurar uma ditadura revolucionária, ou seja,
o projeto revolucionário transmutou-se em resistência democrática contra a
ditadura. As organizações revolucionárias, malgré elles-memê, foram recriadas
como alas extremadas da resistência democrática. Ora, e de acordo com as
elaborações prevalecentes no apagar das luzes do regime ditatorial, como todos, ou
quase todos, haviam resistido, aqueles bravos rapazes e moças de armas na mão
ganhavam seu lugar, legítimo como os desesperados de uma nobre causa, os
equivocados de uma luta justa, agora, afinal, triunfante, a redemocratização. (grifos
no original)35
Podemos interpretar essa reconstrução como uma das formas da sociedade brasileira conseguir
harmonizar seu passado para poder adentrar o período democrático, como lembra Bruno Groppo, “uma
sociedade recém-saída de uma ditadura raramente está pronta a se questionar de maneira crítica sobre esse
passado, porque a verdade frequentemente é desagradável, dolorosa e difícil de aceitar”. 36 Dessa maneira a
sociedade brasileira construiu uma memória com a qual poderia lidar.
AARÃO REIS, Daniel; SÁ, Jair Ferreira de (org). Imagens da Revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de
esquerda dos anos 1961 – 1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.
32 RIDENTI, 2010, p. 36.
33 Para não nos estendermos, havia ainda o debate entre a maior ou menor importância dos trabalhadores na revolução. A VPR,
inspirada em Gunder Frank, sustentava que o lumpemproletariado era a nova força revolucionária. Se as operações deveriam se focar no
campo ou na cidade (apesar da grande maioria nunca ter lançado a guerrilha rural, defendiam que essa era a prioridade da luta
revolucionária). Para uma melhor compreensão do debate entre as esquerdas ver: RIDENTI, op. cit., p. 27 – 70.
34 AARÃO REIS, 2004, p. 30.
35 Ibidem, 48 – 49.
36 GROPPO, 2015, p. 41.
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Porém essas memórias são construídas a posteriori, a partir de valores que foram adquiridos depois.
As esquerdas brasileiras aprenderam e incorporaram valores democráticos nas duras penas do exílio. 37 A
partir desses valores esse militantes revolucionários ressignificam seu passado, introduzindo os valores
democráticos onde eles não estavam, ou onde não eram dominantes. O valor das esquerdas revolucionárias
não era a “democracia”, mas a “revolução”. Dessa forma o mito da sociedade resistente serve a conciliação da
sociedade, mas não à história. Segundo Pierre Laborie, “a apropriação da Resistência como bem comum
serviria de cortina de fumaça. Ela favorecia a amnésia e evitava dolorosos exames de consciência”. 38 Denise
Rollemberg sintetiza, com notória perspicácia, o problema. Segundo a historiadora, a eliminação da
participação civil no golpe tem
como desdobramento desta interpretação, a democracia estruturaria a cultura
política brasileira. O ano de 1979 teria sido decisivo, nesta elaboração, momento de
conciliação nacional, quando se construía a democracia sem resolver o passado,
sem esclarecer como e por que os militares haviam sido vitoriosos em 1964 e
permaneciam no poder desde então. (grifos no original)39
É conveniente salientar que se “as esquerdas”, ou parte delas, “não eram democráticas, tampouco o
eram as direitas”.40 Nessa avaliação há de ser historicizado o conceito de democracia, que como lembra
Denise Rollemberg, o valor da democracia não era estruturante da cultura política brasileira dos anos de
1960. Muitas vezes esses militantes das esquerdas revolucionárias buscaram legitimar ações e posturas no
presente, por meio, de suas ações passadas. Inclusive valendo-se desse passado politicamente no presente,
porém, reconstruído a partir da mistificação ou da ideologia da resistência.41 Entendemos que é de
fundamental importância que o campo progressista compreenda seu passado a luz dos ideais que os
formaram e, também, os motivos que os levaram a esquecer seus reais objetivos na luta revolucionária. Como
bem lembrou Marcelo Ridenti, o pesquisador não tem controle do uso (devido ou não, honesto ou não) dos
seus estudos e conclusões. Logo pensamos ser importante que nesse trabalho não está em questão o
julgamento moral dos militantes ou pior, não acreditamos que eles mudaram seus discursos com a finalidade
de enganar a sociedade, mas entendemos isso como um processo natural de construção da memória que toda
sociedade que emerge de uma ditadura de mais de duas décadas está sujeita.42
NA DISPUTA DAS MEMÓRIAS
Nesta sessão do trabalho selecionamos quatro falas de quatro militantes. Essas passagens
selecionadas, cabe ressaltar, foram escolhidas pela sua diversidade, não obedecendo uma sistemática
específica, meu principal objetivo é evidenciar que não há unicidade nas memórias desses militantes, apesar
de somente uma ter ganhado destaque na “memória nacional” – a saber, a memória de uma resistência
democrática.
Também é importante ressalvar que os relatos que trouxemos para esse trabalho são de pessoas que
ainda se definem como “pessoas de esquerda” – ainda que este também seja um termo polissêmico.
Comecemos pela fala de Eduardo Jorge que militou pelo PCBR e foi fundador do Partido dos Trabalhadores
(PT). Eduardo Jorge se define como “sendo um socialista, portanto de esquerda, não é? Mas sou uma pessoa
AARÃO REIS, 2002, p. 72-73.
LABORIE apud ROLEMBERG, 2009, p. 574.
39 ROLLEMBERG, 2009, p. 572
40 RIDENTI, Marcelo. Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura: armadilhas para os pesquisadores. In: AARÃO
REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964 – 2004). Bauru:
Edusc, 2004, p. 53 – 66, p. 63.
41 Ibidem, p. 58.
42 Não se trata, do que muitas vezes é considerado, que a sociedade brasileira estava entre duas forças, a ditadura dos militares, ou o
avanço revolucionário. Equiparar militantes revolucionários que pegaram em armas, que mal chegavam a casa dos mil, com o exército
nacional bem equipado, seria no mínimo, desmedido. Cf.: ARRÃO REIS, 2002, 70 – 71; RIDENTI, op. cit., 63 – 64.
37
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que acredita que a democracia é uma questão essencial”.43 Portanto, não se trata de alguém ressentido com
determinada visão política, ainda que Eduardo Jorge manifeste apreciações muito críticas as ações e visões
da esquerda armada, com a qual mantêm uma relação bastante ambígua durante a entrevista. Por exemplo,
ao falar da direção do PCBR, Eduardo Jorge fala da excelência de seus antigos comandantes, cita Jacob
Gorender, Mário Alves e Apolônio de Carvalho. A esse último rende um longo elogio que segue:
Quem era que era a direção, só pra você ter uma noção na qualidade da direção do
PCBR [...] Eu to falando de Mário Alves, eu to falando de Jacob Gorender, Apolônio
de Carvalho. Apolônio de Carvalho o mais gentil dos comunistas que eu já conheci
na minha vida, né? Um homem... militar do exército. Resistiu à ditadura do Vargas.
Fugiu pra Espanha, lutou na... Guerra Civil espanhola com os Republicanos. De lá,
fugiu pra França, entrou na resistência francesa. Casou com uma francesa. Veio
com a... Veio com todas as condecorações da resistência francesa, esse era o
Apolônio [risos]. Esses eram meus líderes, Apolônio, Mário Álves, Jacob
Gorender.44
Porém, ao falar do Partido, como instituição não personificada, Eduardo Jorge tece duras críticas Aos
posicionamentos aos quais eram adeptos:
Nós éramos pela ditadura do proletariado. Nós éramos contra a ditadura militar.
Mas éramos a favor da ditadura do proletariado. Isso aí é preciso dizer a verdade
toda, né?! Às vezes eu ouço meias verdades, né! Como a ditadura militar nos
oprimiu barbaramente, né?! De forma violenta, muitas vezes as pessoas pensam
que não existiam, no campo da esquerda, coisa igual e até pior, em vários aspectos,
não é? O Stalin e o Hitler, eles disputam pau a pau a medalha de ouro de genocidas
na história recente. E o Mao Tsé-Tung vinha ali na medalha de prata [...] Eu sou de
esquerda, sim! Mas sou uma pessoa de esquerda, um socialista que acredita que a
democracia é um regime que a gente tem que preservar, valorizar e cultivar.45
Dessa forma Eduardo Jorge busca manter uma visão positiva de seus comandantes, mas altamente
crítica as suas ações. Essa entrevista foi concedida enquanto Eduardo Jorge era candidato a presidência da
República em 2014. Podemos inferir que, ao mesmo tempo que fazia críticas a esquerda armada, buscando
assim reconhecer aquilo que poderia se pensar como erros desses militantes, buscando acenar a eleitores de
centro. Mas, também, sinalizava aos eleitores de centro-esquerda com a não negação de sua orientação
“socialista”.
Outra figura emblemática da luta armada, foi Vera Sílvia Magalhães, ficou famosa por ser a única
mulher a participar do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. Vera foi militante
da DI-GB/MR-8 presa, torturada e exilada. Foi símbolo da luta pelo fim da tortura nos quartéis do Brasil
devido a sua foto no momento de sua libertação, Vera saiu tão vilipendiada que não podia caminhar, estava
numa cadeira de rodas. A militante lembra com orgulho de seu tempo de combate a ditadura, segundo ela:
Ah valeu! Só não valeu pra quem morreu. É contraditório o que eu to dizendo. Mas
é... como eu te digo, eu adquiri... não tinha nada de melhor a ser feito [luta contra a
ditadura] na minha geração. Eu acho que o que havia de melhor na minha geração,
JORGE, Eduardo. FLUXO com Eduardo Jorge (parte 1). Entrevistador: Bruno Torturra. Mountain View: Google, 2014 (ca. 25 min 52
s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=M54n1x_7Da8> acesso em: 10 de setembro de 2018.
44 JORGE, 2014.
45 Idem.
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fez o que eu fiz, essa era a nata da geração. Fez errado? Não importa! As intenções e
a experiência que acumulou tava nesse núcleo que resistiu a ditadura. 46
O mais interessante, contudo, é a avaliação que Vera faz da opção revolucionária. Mesmo afirmando
que o melhor de sua geração fez aquilo que ela mesma fez, doravante, luta contra a Ditadura, ou melhor, luta
armada contra a Ditadura, Vera condena essa mesma opção durante a mesma entrevista:
Aí ficou [depois da queda do congresso de Ibiúna e da promulgação do AI-5] na
vanguarda do movimento – aí já não mais o movimento estudantil –, o movimento
social de tomada do poder. É isso que nós queríamos, e transformação daquilo em
socialismo. E que nós não éramos contra a ditadura, nós éramos contra a ditadura
militar-burguesa, mas nós éramos a favor da ditadura do proletariado, isso
ninguém diz, mas tem que dizer, porque faz parte da nossa história. 47
E completa num momento posterior,
A gente não é conservador, não adianta! Não é no amor, não é com homem, não é
no trabalho. Eu sou sempre uma pessoa revolucionária [...] Sou contra a ditadura
do proletariado sou contra qualquer tipo de ditadura [...] o que não quer dizer que
eu não deixe de, nas minhas aulas, na minha micropolítica [de] transmitir uma
ideia socialista, entendeu? Eu sou uma socialista. 48
As palavras de Vera Sílvia Magalhães, assim como as de Eduardo Jorge, são eivadas, num primeiro
olhar, de contradições. Ou seja, considera que fez o certo, e defendia o errado? E por que essas memórias da
luta pela ditadura do proletariado49 ficaram esquecidas, ou não ganharam o devido espaço na memória
sobre o período?
Já defendendo outra percepção da luta armada, como uma espécie de luta pela democracia, temos
outra gama de militantes. Talvez um dos mais famosos seja o ex-líder estudantil, fundador do PT e exministro chefe da casa Civil, José Dirceu. Dirceu foi um importante líder estudantil, libertado pelo sequetro
do embaixador americano em 1969. Fez treinamento guerrilheiro em Cuba, onde ingressou numa dissidência
da ALN, o Movimento de Libertação Popular, sigla MOLIPO. Em recente entrevista, em razão do lançamento
de seu livro de memórias, ao ser perguntado por Paulo Henrique Amorim quando ele – Dirceu – se deu conta
que deveria lutar pela democracia – numa alusão, sub-reptícia, de que, anteriormente, ele não lutava – ele
responde da seguinte maneira,
Não! Sempre, nós nunca fomos contra... Nós queríamos “volta a democracia”, a
ditadura que implantou no Brasil... Isso também é... às vez fala “eles eram
totalitários, também. Que eles eram socialista”. Eu, por exemplo, quando
invadiram a Checoslováquia, o pacto de Varsóvia, eu fui contra, ta na Folha de São
Paulo. Vieram me entrevistar, eu falei: “Sou totalmente contra, eu luto aqui pela
democracia, como é que eu posso ser contra as reformas que estão sendo feitas pelo
[Alexander] Dubček na Checoslováquia” entendeu?! Nós lutávamos pela
democracia, nós queríamos a volta da democracia, nós távamos lutando contra a
ditadura. Os partidos e as organizações políticas, muitas delas, tinham programas
MAGALHÃES, Vera Silvia. Memória Política – Vera Silvia Magalhães. TV Câmara. Mountain View: Google, 2011 (1h 00 min 57s).
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=q8fUe7vsj2s&t=2357s> acesso em: 10 de setembro de 2018.
47 MAGALHÃES, 2011.
48 Idem.
49 Aqui não vou me deter na definição teórica do que seria, dentro da teoria marxista, uma ditadura do proletariado, já que os
entrevistados utilizam a ideia, ao que tudo indica, como uma simples oposição a ditadura militar de direita.
46
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democráticos nacionalista, ou de libertação popular como MOLIPO, é o movimento
de libertação popular, né? Não tinha programas socialistas, entendeu? O caráter da
Revolução brasileira é outra discussão[...] Agora, isso não tira a legitimidade de um
imperativo moral de resistir a ditadura, e o direito natural que nós temos a rebelião
quando se implanta um governo de opressão, e um governo... uma ditadura,
inclusive a carta da ONU nos da esse direito.50
Dirceu faz uma importante ressalva, ao qual já nos referimos na sessão anterior. Realmente a
discussão sobre o caráter da Revolução brasileira era uma questão em aberto. Mas, não é verídico que não
existissem programas socialistas para o Brasil. Duas das mais importantes organizações da luta armada
defendiam uma Revolução Socialista para o Brasil, são elas: A POLOP e seu Programa Socialista para o
Brasil51; e o MR-8 em sua Linha Política e orientação para prática.52 Ambas organizações defendiam o
caráter socialista da Revolução Brasileira. Mas a ressalva de Dirceu é importante. Não raramente os
militantes da esquerda armada são acusados de defenderem, ou se inspirarem em regimes autoritários. Isso,
em nosso entender, carrega uma boa dose de anacronismo. As organizações da esquerda revolucionária
tinham, basicamente, três grandes inspirações, a Revolução Cubana, a Revolução Chinesa (principalmente a
Revolução Cultural) e as revoluções do Terceiro Mundo, de caráter de libertação nacional. Em alguma
medida, reivindicavam a Revolução Russa de 1917, mas negando o período stalinista posterior. Dessa
maneira, esse militantes não estavam a par dos acontecimentos e de todos desdobramentos da Revolução
Cultural chinesa, por exemplo. Hoje é público e notório as violações de direitos humanos em grande parte
dessas revoluções, mas, na década de 1960 e início de 1970 esses militantes não tinham tais informações e
ainda mantinham idealizações desses processos revolucionários.
O último depoimento que trazemos é do militante Manoel Cyrillo. Integrando a ALN, Cyrillo também
fez parte do grupo que sequestrou o embaixador Charles Burke Elbrick. Na passagem que trazemos, Cyrillo
traz suas influências e como e porque passou a integrar uma das mais radicais organizações revolucionárias
do Brasil. Em suas palavras:
Aí entra a minha história. Eu vinha de uma turma de bairro, nas Perdizes, que se
reunia na padaria. E dois ou três companheiros, amigos, começaram a trazer
discussões da conjuntura da época, acompanhando leitura de jornal e discutindo
coletivamente, e isso foi evoluindo, foi crescendo. Entrei na luta pela resistência
democrática; minha revolta foi por aí. E daquela turminha da padaria, depois de
lermos Por que resisti à prisão [livro de autoria de Carlos Marighela], eu e quatro
companheiros entramos na ALN, no GTA [grupo tático armado] da ALN. 53
O relato é bastante interessante. Cyrillo faz questão de ressaltar que participou da luta armada pela
“resistência democrática” e após a leitura do livro de Marighela. Sua entrada não foi num setor de “massas” –
designação dada pelo militantes que integravam a seção das organizações responsáveis pela ação junto à
população – mas diretamente no GTA, setor mais importante e ofensivo das esquerdas armadas. Nosso
intento aqui não é comprovar que Cyrillo mentiu ou falou a verdade. A sua declaração pode ser muito bem
aquilo que ele considera ter feito, ou, não nego essa possibilidade, que de fato esse tenha sido o motivo de
entrar para a luta armada. No entanto, na documentação dessas organizações os objetivos eram sempre
DIRCEU, José. Lula é o maior ídolo do Dirceu. Entrevistador: Paulo Henrique Amorim. Mountain View: Google, 2018. (1h 15 min 16
s) Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MxU_AJCqVWc&t=615s> acesso em: 10 de setembro de 2018.
51 O documento pode ser consultado em: ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA MARXISTA – POLÍTICA OPERÁRIA. Programa
Socialista para o Brasil. In: AARÃO REIS, Daniel; SÁ, Jair Ferreira(org). Imagens da Revolução: documentos políticos das organizações
clandestinas de esquerda dos anos 1961 – 1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985, 89 – 116.
52 Cf.: MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO 8 DE OUTUBRO. Linha política e orientação para prática. In: AARÃO REIS, Daniel; SÁ, Jair
Ferreira (org). Imagens da Revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961 – 1971. Rio de
Janeiro: Marco Zero, 1985, p. 340 – 356.
53 DA-RIN, Silvio. Hércules 56: o sequestro do embaixador norte-americano em 1969. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 294.
50
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ofensivos contra a ditadura, e não de restauração da democracia pré 1964. Os militantes poderiam ter
opiniões diversas daquelas manifestadas pelas organizações? É possível, porém, cremos que as intenções das
organizações se sobrepujavam a dos militantes isolados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes da finalização desse texto, gostaríamos de realizar algumas considerações. Primeiramente, é
totalmente fora de nosso propósito realizar qualquer tipo de “julgamento moral” das ações das esquerdas
armadas das décadas de 1960-70. Essa ressalva é importante devido às operações historiográficas realizadas
por um número ínfimo de historiadores e um número maior de jornalistas e políticos que tentam, por meio
de um revisionismo imprudente, resguardar ou comemorar o golpe de 1964 e a ditadura subsequente. Em
recente declaração infeliz, o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antônio Dias Toffoli, comparou o
incomparável. Deu sobre vida a Teoria dos Dois Demônios.54 O eminente ministro alegou que não se deveria
chamar o ocorrido em 31 de março de 1964 (ou primeiro de abril) nem de Golpe, nem de Revolução, mas sim
de movimento de 64. O presidente do Supremo afirmou,
Não foi um golpe nem uma revolução. Me refiro a movimento de 1964. Hoje,
afirmo isso graças ao ensinamento do ministro da Justiça, Torquato Jardim [...] Foi
apropriado tanto para a esquerda quanto para a direita criticar a ditadura. A crítica,
especialmente da sociedade conservadora, gerou um desgaste da legitimidade do
governo.55
Interpretações como essa tem tomado vulto mesmo com dezenas de argumentos, evidências e
produção bibliográfica apontando o contrário. Tendo isso em mente, nosso trabalho não se insere nessa onda
revisionista que tem assolado o Brasil. Mas não queremos, também, pecar pelo oposto e realizarmos um
trabalho de “elogio” aos “heróis” nacionais. Como alertou Marcelo Ridenti, não devemos nos deixar persuadir
pela ideologia da resistência democrática.56 Diversos autores têm discutido se o conceito de resistência seria
apropriado para pensar as organizações de esquerda no Brasil. Daniel Aarão Reis nega que as esquerdas
armadas tenham participado da resistência contra a ditadura e enfatiza seu caráter ofensivo e
revolucionário. Aarão Reis destaca,
Um primeiro deslocamento de sentido, promovido pelos partidários de uma ampla
anistia, apresentou as esquerdas revolucionárias como parte integrante da
resistência democrática, uma espécie de braço armado dessa resistência. Apagouse, assim, o caráter revolucionário da proposta que havia moldado aquelas
esquerdas. Ou seja, apagou-se o fato de que eram partidárias de uma ditadura
revolucionária para efetuar as transformações radicais, essenciais à construção de
uma sociedade livre da exploração e da opressão. Do ponto de vista histórico, não
havia aí nada de inusitado ou excepcional, pois os modelos revolucionários do
século XX haviam desembocado, realmente, em experiências ditatoriais. (grifos no
original)57
Criada na Argentina e depois “importada” para o Brasil, a dita teoria alegava que os golpes militares eram justificáveis, pois, se os
militares não dessem o golpe, as esquerdas o dariam.
55 ROCHA, André Ítalo; BRIDI, Carla. Toffoli diz que prefere chamar ditadura militar de 'movimento de 1964'. O Estado de São Paulo.
São Paulo, 1 Out. 2018. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,toffoli-nao-vi-projeto-nacional-mesmo-auma-semana-da-eleicao,70002527529> acessado em 29 de outubro de 2018.
56 RIDENTI, 2004, p. 57-58.
57 AARÃO REIS, 2014, p. 133-134
54
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O professor Marcelo Ridenti, em contra partida, afirma que, por mais que houvesse um projeto
ofensivo, o papel das esquerdas no Brasil teria sido de resistência, mas concorda que não se deve utilizá-lo
acompanhado do adjetivo democrático, afim de evitar mal entendidos e aquilo que o mesmo qualificou como
ideologia da resistência democrática. Há de se incluir nesse debate o recente trabalho da professora Denise
Rollemberg onde faz um levantamento historiográfico e teórico dos usos do conceito de resistência, tendo em
vista, principalmente a frança sob regime de Vichy. Segundo Denise Rollemberg, o conceito de resistência
poderia ter tanto o sentido de lutar pela manutenção ou restabelecimento de uma ordem anterior, ou como
um sentido ofensivo contra a ordem estabelecida. 58
Chegando ao fim deste breve texto, buscamos evidenciar o caráter múltiplo das memórias dos
militantes da luta armada. Apesar de, durante um longo tempo, a memória que prevaleceu na sociedade foi a
memória da resistência democrática, isso não está pacificado nem entre os próprios partícipes da luta
revolucionária. Compreender melhor os objetivos das esquerdas revolucionárias também faz parte de um
projeto político contemporâneo, que busca combater àqueles que querem atribuir a culpa às esquerdas pelo
golpe civil-militar e a ditadura que se abateu sobre nosso país.
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Vargas e o mundo rural: um olhar sobre os discursos (1930-1945)
Vitória Comiran1
Resumo: Esta comunicação aborda parte da pesquisa que analisa dezessete discursos de Getúlio Vargas
acerca do mundo rural, no período de 1930 a 1945. A problemática de estudo é caracterizar, a nível discurso,
as proposições sociais e político-econômicos ao mundo rural, através da metodologia da análise do discurso.
Observamos, para a constituição da pesquisa, o contexto sócio histórico em que o sujeito dos discursos se
encontrava. Dentro da nova proposta do governo varguista, que podemos observar nos discursos deste
período, encontramos o anseio de mudança do modelo agrário exportador para um mundo rural voltado ao
interesse nacional. O trabalhador rural, os projetos de auxílio a este, a preocupação com o seu método de
produção e propriedade dão espaço a um interesse voltado inteiramente ao capital industrial. Por
conseguinte, podemos perceber ao longo destes dezessete discursos como o olhar do governo Vargas para o
mundo rural muda conforme as fases de seu governo que iniciam em 1930 e procedem até 1945.
Introdução
Este trabalho, vinculado ao projeto de pesquisa “Práticas político-jurídicas e econômicas no processo
de ocupação do espaço e da constituição da sociedade sul brasileiro - 1930 a 1990” procura compreender os
anseios e objetivos sociais e político-econômicos do governo de Getúlio Vargas que surgiu em 1930,
compreendendo, assim, quais eram seus projetos desenvolvimentistas propostos ao mundo rural. Para o
entendimento destes aspectos foram utilizados os discursos referentes ao mundo rural, pronunciados por
Getúlio Vargas. Assim, como forma metodológica foi empregue a Análise de Discurso.
Para a análise dos discursos foram utilizados como fonte dezessete discursos entre o período de
1930-1945 que pertencem a três temporalidades do governo varguista. Sete discursos pertencentes ao
Governo Provisório (1930-1934), três discursos do Governo Constitucional (1934-1937) e sete discursos
referentes ao Estado Novo (1937-1945). Para a realização desta pesquisa observamos o contexto sócio
histórico de cada período do governo Vargas em que os discursos se encontram, dispondo, assim, analisá-los
dentro de sua própria conjuntura.
Através da compreensão de Mikhail Bakhtin entendemos que para analisar os discursos necessita-se
compreender sua estrutura e também seu contexto sócio histórico. Deste modo é necessário que se realize
através da Análise de Discurso o estudo do locutor e de sua mensagem através de quatro questões
norteadoras propostas: reconhecer a quem o discurso se destinava, como o locutor se manifesta, de que
forma evidencia sua mensagem e, por fim, como o contexto da mensagem exposta, comunica-se com o
contexto sócio histórico do período analisado.
Deste modo, este artigo procura abordar, através dos dezessete discursos de Getúlio Vargas, os
objetivos e interesses do governo acerca do mundo rural, procurando compreender o projeto
desenvolvimentista presente nos discursos entre o período de 1930-1945.
O Governo Provisório e os primeiros discursos de Getúlio Vargas
Durante o primeiro período da Era Vargas, o chamado Governo Provisório, Getúlio Vargas, na
tentativa de firmar-se e autenticar-se no poder, realizou seus discursos em diferentes regiões do Brasil.
Mesmo que ainda administrado pela Constituição de 1891 o governo de Vargas propõe em seus discursos,
referentes ao mundo rural, algumas modificações em comparação com a Primeira República. Assim, estes
Acadêmica do 8º nível do curso de História pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Realizou atividades como bolsista PIBIC-CNPq e
atualmente desenvolve o trabalho de conclusão de curso através do estudo dos discursos de Getúlio Vargas sobre o mundo rural, da
Constituição e Legislações Agrárias e de processos civis do norte do Rio Grande do Sul. E-mail: vicomiran@gmail.com
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primeiros sete discursos serviram como manifesto das transformações sociais e político-econômicas
pretendidas pelo novo governo.
Os discursos deste período foram pronunciados nos seguintes estados: Rio de Janeiro (1930), Minas
Gerais (1931), Bahia (1933), Pernambuco (1933), Paraíba (1933), Ceará (1933) e Pará (1933). Como podemos
perceber, os discursos foram pronunciados majoritariamente no nordeste do país durante o Governo
Provisório e este fator nos evidencia como o Estado voltou-se a esta região para iniciar as manifestações de
seus anseios e visões para o Brasil.
Dentro da conjuntura temporal, estes sete discursos irão explorar o conteúdo referente ao mundo
rural, demonstrando as influências frente ao contexto histórico. Deste modo, em relação ao contexto vivido
durante a Primeira República em que a economia era principalmente voltada à produção agrárioexportadora observamos nos discursos do Governo Provisório as primeiras iniciativas de mudança deste
modelo para o incentivo do capital industrial. Assim, estes discursos se encontram como sendo os primeiros
em que se discute um projeto de desenvolvimento nacional.
O primeiro discurso realizado no Rio de Janeiro em 1930 se destaca pelos ideários de construção de
uma nova nação frente à Primeira República. O mundo rural, para isso, recebe diversas propostas e
idealizações para uma modificação de suas bases. Anteriormente, as bases do mundo rural se concentravam,
principalmente, nos grandes latifundiários da cafeicultura e a produção era destinada à exportação. Assim,
podemos observar as novas intenções do governo, no que se refere ao mundo rural, no primeiro discurso de
Vargas em que expõe seus ideais de transformação, em que diz:
2) saneamento moral e físico, extirpando ou inutilizando os agentes de corrupção,
por todos os meios adequados a uma campanha sistemática de defesa social e
educação sanitária; 12) reorganização do Ministério da Agricultura, aparelho
atualmente rígido e inoperante, para adaptá-lo ás necessidades do problema
agrícola brasileiro; 13) intensificar a produção pela policultura e adotar uma
política internacional de aproximação econômica, facilitando o escoamento das
nossas sobras exportáveis; 16) promover, sem violência, a extinção progressiva do
latifúndio, protegendo a organização da pequena propriedade, mediante a
transferencia direta de lotes de terra de cultura ao trabalhador agrícola,
preferentemente ao nacional, estimulando-o a construir com as próprias mãos, em
terra própria, o edifício de sua prosperidade (VARGAS, 1930, p. 18-19-20).
Vargas utilizava em seus discursos palavras como terra, propriedade, agricultor e produção para as
novas projeções do seu governo em relação ao mundo rural. Entre estas projeções podemos observar no que
se refere à citação acima questões referentes à: uma campanha de defesa social e educação sanitária,
extinguindo os agentes de corrupção, o que nos mostra que o período da Primeira República foi de descaso e
principalmente, de desvirtuação, o que propõe Vargas, então, é um governo com novas ações frente ao que
era mantido na Primeira República. A reorganização do Ministério da Agricultura, apresentando, então, a
ideia de que este estava desarranjado ou que Vargas propunha uma nova composição deste Ministério frente
ao seu governo.
O incentivo à policultura, que nos monstra que a Primeira República não estimulava a policultura do
modo como Vargas a pretende, aduzindo, assim, que os interesses do governo anterior se voltavam ao
latifundiário e na exportação, principalmente, do café. A extinção progressiva do latifúndio, referindo-nos
que a Primeira República foi um período, como dito anteriormente, comandado pelos grandes latifundiários
que regiam o país a partir das oligarquias regionais. Vargas propõe assim, dissipar este modo pelo qual o país
se estruturou e, por seguinte, ao discursar a favor de uma extinção do latifúndio, nos mostra que defendia o
arranjo agrário a partir das pequenas propriedades. Neste sentido, os demais discursos referentes ao
Governo Provisório seguirão este norte traçado no primeiro discurso de Vargas como chefe do governo.
Os quatro discursos pronunciados no nordeste do país, Bahia, Ceará, Pernambuco e Paraíba
possuíam como foco o trabalhador rural. O governo varguista voltou-se para o modo de produção destes
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trabalhadores, suas condições de vida e, principalmente, o papel do tenentismo na região para evidenciar
seus novos objetivos e intenções, como podemos observar:
Por vezes, o seu aspecto é miserável, mas, no corpo combalido, aninha-se a alma
forte que venceu a natureza amazônica e desbravou o Acre. Em algumas regiões,
vemo-lo quebrantado pelas moléstias tropicais, enfraquecido pela miséria, mal
alimentado, indolente e sem iniciativa, como se fosse um autômato. Dai a esse
espectro farta alimentação e trabalho compensador; criailhe a capacidade de
pensar, instruindo-o, educando-o, e rivalizará com os melhores homens do mundo
(VARGAS, 1933, p. 325).
Entre as grandes intenções manifestadas nos discursos de Vargas podemos observar, no nordeste do
país, questões referentes a uma educação rural para os trabalhadores do campo, evidenciando alguns pontos
de interesse do governo varguista ao mundo rural, como: o auxílio ao trabalhador do campo para um
aperfeiçoamento do seu trabalho e, consequentemente, uma melhor produção propiciando um
desenvolvimento da produção em escala nacional.
Na citação acima podemos observar que Vargas se utiliza dos aspectos julgados como “miseráveis” do
trabalhador rural para promover os objetivos do seu governo referentes a uma educação para as pessoas do
campo. Se observarmos como Vargas se utiliza da característica para desfazer o aspecto deste trabalhador
nos indica que na sua visão o governo anterior, comandado pelos grandes latifundiários, não realizou
políticas que visassem um auxílio ou proteção deste trabalhador rural. Assim, o trabalhador rural se
encontra, no momento do discurso, definido a partir destas características para invalidar o governo anterior e
também para servir de base do novo trazido por Vargas a partir dos anseios manifestados no discurso.
Entre outras questões presentes nos discursos destinados ao nordeste e ao norte do país podemos
observar os objetivos de uma (re) territorialização do homem do campo, onde o governo procurava amparar
o produtor rural fazendo-o ocupar novas áreas produtivas. Vargas se pronunciava também a respeito da
criação do Crédito Agrícola para auxiliar os produtores quanto ao custeio da produção e de novos
maquinários, demonstrando que o novo governo se interessava pela produção deste pequeno produtor
criando novos mecanismos para auxiliá-lo.
Além da preocupação demonstrada nos discursos com os produtores rurais, suas formas de trabalho
e de produção, o discurso neste período, como é o caso do pronunciado em Minas Gerais evidencia as
primeiras intenções do governo Vargas acerca do mundo rural voltando-o à industrialização, como
poderemos perceber nos demais discursos pronunciados durante o período do Governo Constitucional. Neste
discurso Vargas disserta sobre o aumento da produção de álcool e algodão para um fortalecimento da
indústria nacional, como podemos ver:
O nosso engrandecimento tem que provir da terra, pelo intenso desenvolvimento
da agricultura. Mas, o esforço para esse fim se esteriliza e fraqueia, ao lembrarmonos que todo o maquinismo, desde o arado que sulca o seio da gleba até o veículo
que transporta o produto das colheitas, deva vir do estrangeiro (VARGAS, 1931, p.
47).
Nesta citação podemos analisar o discurso observando que Vargas defende o mundo rural como base
para o futuro desenvolvimento nacional. No que se refere à palavra engrandecimento podemos interpretar a
partir do ponto em que compreendemos que o país não é notável e para isso precisa se investir no mundo
rural e na indústria que por ventura o sustenta, ou pelo viés em que o Brasil é um país grandioso, mas só
poderia ascender para um desenvolvimento pleno quando se preocupasse em investir nas indústrias
nacionais para se desvincular do estrangeiro.
Apesar do considerável aumento de indústrias no período pré-1930, em que em 1920 havia 13.336
indústrias no país (CENSO, 1920), a população continuava a ser majoritariamente rural. Assim, percebemos
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que é neste sentido que Vargas passa a discursar em detrimento de uma produção voltada para o interesse
industrial ao logo do Governo Constitucional.
O Governo Constitucional e os primeiros aspectos industriais do mundo rural
Este novo período do governo de 1934-1937 em que houve a elaboração de uma Constituição nos
mostra muito dos objetivos industriais planejados pelo governo varguista. Os discursos deste período foram
pronunciados no Rio Grande do Sul (1934), Rio de Janeiro (1936) e Bahia (1936) e vão dissertar sobre o
fomento da indústria nacional e o desenvolvimento econômico. Como observa Fonseca o governo que iniciou
em 1930 demonstra um novo estilo econômico, referente à diminuição das importações e aumento da
produção (FONSECA, 2014).
Podemos observar esta questão nos discursos referentes à indústria pronunciados no Rio de Janeiro
e na Bahia. Nestes Vargas discursa sobre a industrialização do açúcar e do cacau, respectivamente. Em
referência ao açúcar Vargas disserta sobre a criação do Instituto do Açúcar e Álcool, em 1933. Neste sentido,
podemos perceber como o governo de Vargas estabelece em seu discurso um viés industrial, agindo, ao
incentivar a produção açucareira e a criação do Instituto, como regularizador da economia e da agroindústria
do açúcar.
Podemos observar na fala de Vargas a importância desta produção, “Sobre as vantagens da
industrialização do álcool depõe significativamente o acentuado crescimento da produção, que passou de 33
milhões de litros, em 1930, a 47 milhões, em 1935.” (VARGAS, 1936, p. 163). A modernização da baixada
fluminense se torna essencial, para Vargas, para um fortalecimento da economia, tendo como base o mundo
rural que, por sua vez, leva ao desenvolvimento nacional, como podemos ver na citação que se refere às
destilarias:
Uma delas aí está em construção, com capacidade para produzir, diariamente, 60
mil litros e custo orçado em 20.000:000$. Campos recolherá diretamente os
benefícios desse melhoramento, ficando aparelhado para desenvolver em condições
excepcionais a sua indústria básica. Diante de perspectivas tão animadoras, a ação
dos seus homens de trabalho não pode esmorecer. Vinculados ao progresso
campista de aspectos tão intensos e multiformes, tudo os impele a prosseguir
resolutamente nas fecundas iniciativas que vêm fazendo a prosperidade deste
privilegiado recanto fluminense (VARGAS, 1936, p. 164).
Podemos compreender nesta citação que Vargas alude a prosperidade fluminense como
consequência das indústrias que se instalaram na região. Com isso, evidencia que, apesar do potencial de
uma produção industrial, vindo da produção rural da cana, a região não sofria investimentos, no período
anterior à Vargas e que seu governo foi o que iniciou este processo, trazendo um melhoramento na região que
até então, não se observava, de acordo com o discurso.
No discurso pronunciado na Bahia observamos a mesma questão industrial, no entanto voltada à
produção do cacau. Vargas disserta sobre a criação do Instituto do Cacau através do melhoramento da
produção do produto que, por sua vez, só pode ocorrer em decorrência do incentivo do governo em auxiliar o
produtor durante o Governo Provisório.
No contexto em que se inserem estes discursos podemos observar o interesse do governo em tornar
sua economia independente das potências do período, como é o caso dos Estados Unidos e da Alemanha. Os
dois países na década de 1930 eram os principais compradores e fornecedores de produtos para o Brasil. O
Brasil, desta forma, caracterizava-se por uma política bilateral entre as duas potências e, assim, ansiava por
uma independência econômica ao passo que fortificava sua economia, tendo como base o mundo rural.
Dentro deste período o discurso pronunciado no Rio Grande do Sul, primeiro durante o Governo
Constitucional, serve como legitimador dos objetivos do governo varguista acerca do mundo rural. Vargas
disserta sobre as realizações do seu governo durante o período Provisório, como cita: “determinou-se um
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plano sistemático de combate às secas do Nordeste, com resultados nunca atingidos em mais de um século
[...]” (VARGAS, 1934, p. 26).
Neste fragmento do discurso podemos entender que as secas na região no Nordeste do país não eram
um fator que levasse preocupação aos governantes da Primeira República, pois, como cita Vargas, foi durante
seu Governo Provisório que se estabeleceu um plano para combater esta situação. No entanto, se analisarmos
com mais veemência a palavra sistemático, neste fragmento, podemos entendê-la como constante ou
permanente, assim, por seguinte, compreendemos que, mesmo que os governantes da Primeira República
tenham realizados projetos para combater as secas na região Nordeste, estes não foram orientados da
maneira permanente e constante como foram os programas mantidos pelo governo varguista.
Assim, percebemos que os discursos deste período compõem a nova organização político-econômica
visada pelo governo varguista e que se mostra evidente nos discursos analisados anteriormente neste mesmo
período, a difusão de um mundo rural baseado na industrialização.
Estado Novo e a industrialização do mundo rural
O Estado Novo inicia em 1937 com o golpe planejado em detrimento da chamada “ameaça
comunista”. O novo governo de Vargas caracterizou-se pela repressão e, sobretudo, neste período podemos
observar nos discursos, o grande incentivo de uma industrialização nacional. Se no período do Governo
Constitucional, os anseios do governo se mostravam evidentes em um nascimento da indústria utilizando
como base o mundo rural, durante o Estado Novo, os discursos de Vargas já estão inteiramente inseridos
neste contexto de desenvolvimento nacional.
Os sete discursos acerca do mundo rural pronunciados neste período foram realizados nos seguintes
estados: Rio de Janeiro (1937, 1940, 1941, 1943), Minas Gerais (1939), São Paulo (1943) e Paraná (1944). Os
discursos no Rio de Janeiro de 1940 e 1941 foram direcionados ao dia do trabalhador e focados,
especialmente ao trabalhador urbano, o operariado. O trabalhador rural, antes muito saudado durante os
discursos do Governo Provisório como sendo a base pela qual o Brasil se sustentava e também pela qual a
indústria se sustentaria, não é mencionado.
O discurso pronunciado por Vargas no Rio de Janeiro em 1937 sobre ocasião de posse do novo
Estado, assim como na posse de 1934, desenvolve seu conteúdo através dos feitos realizados pelo governo
durante o Governo Constitucional, principalmente os referentes à economia nacional. Em referência ao
mundo rural, podemos observar este em segundo plano no fragmento abaixo:
Precisamos equipar as vias férreas do país, de modo a oferecerem transporte
econômico aos produtos das diversas regiões, bem como construir novos traçados e
abrir rodovias, prosseguindo na execução do nosso plano de comunicações,
particularmente no que se refere à penetração do hinterland e articulação dos
centros de consumo interno com os escoadouros de exportação (VARGAS, 1937, p.
28).
O mundo rural, no discurso acima, se encontra na ideia de modernização ligada à industrialização.
Vargas menciona o aparelhamento da malha férrea e a criação de rodovias para o melhor escoamento da
produção e para interligar os centros de consumo. Isto mostra que Vargas se baseia na ideia de um
desenvolvimento nacional e assim tange novos objetivos ligados ao melhoramento dos meios pelos quais
circulam os produtos.
Vargas assume o papel de modernizador, esquecendo, por se dizer, do pequeno produtor para focarse no ideal de um desenvolvimento nacional que nasce com o seu governo, de acordo com o discurso, pois
menciona como “nosso plano” a questão da modificação destas estruturas. Assim como no que se refere à
palavra “articulação”, compreendemos, aqui, que os centros de consumo e os escoadouros de exportação já
existiam, mas não se encontravam interligados, com isso, Vargas planeja sua articulação como sinal do seu
plano de desenvolvimento.
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Os demais discursos do Estado Novo se correlacionam com a ideia do mundo rural voltado para a
industrialização, como é o caso dos discursos pronunciados em Minas Gerais e São Paulo. O discurso
pronunciado no Paraná, em 1944, por sua vez, o último desta análise, ocorre com a intenção de Vargas tentar
manter-se no poder e é denominado “Brasil visto como um todo”, servindo como legitimador do que seu
governo fez desde 1930. Podemos observar na citação abaixo esta constatação:
A situação precária em que o movimento revolucionário de 30 encontrou as
finanças públicas modificou-se completamente. Sucedeu-lhe uma fase próspera, de
seguro equilíbrio, evidente na pontualidade dos pagamentos, liquidação a termo
dos compromissos internos e na execução de vasto programa de obras públicas,
tornado possível por uma receita superior a 100 milhões de cruzeiros, que permite
atacar de frente os problemas de comunicação, educação, saúde e fomento da
produção, sem descurar a assistência social (VARGAS, 1944, p. 255).
Neste fragmento do discurso podemos observar que Vargas retrocede sua fala a partir da Revolução
de 1930. Vargas menciona sobre a situação encontrada pelo novo governo ao assumir o poder. Ao
analisarmos o que nos mostra a palavra “precária” observamos que o governo anterior possuía uma
administração insatisfatória ou deficiente das finanças públicas, não sendo, assim, um governo sólido em
relação ao controle financeiro. Podemos observar esta questão no que se refere ao café e ao Convênio de
Taubaté (1906) que estabeleceu o Estado como comprador das sacas de café não exportadas, prejudicando,
desta forma a economia nacional, mas beneficiando, assim, os latifundiários do produto.
No discurso também analisamos como Getúlio Vargas coloca seu governo como aquele que trouxe a
prosperidade nacional, ao investir nas obras públicas, solucionando alguns dos problemas que haviam
persistido desde a Primeira República. Getúlio Vargas, assim sendo, durante este discurso pronunciava
sobre as realizações trazidas pelo seu governo para legitimar o Estado e mostrar à população seus feitos,
assim como mostrar que, frente ao que havia antes de 1930, seu governo trouxe grandes avanços.
Considerações finais
Este artigo, ao propor uma análise, mesmo que breve, dos discursos de Getúlio Vargas sobre o
mundo rural durante o período de 1930-1945, nos mostra um pouco dos interesses varguistas no novo
governo que surgiu em 1930. Observamos que os objetivos do governo Vargas foram sendo transformados
com o passar do tempo e com a estruturação deste em cada período ao longo da Era Vargas.
Assim, durante o Governo Provisório observamos um mundo rural voltado ao trabalhador rural, seu
método produtivo e sua propriedade. Além disso, nos discursos deste período notamos que o mundo rural
era visto como peça substancial para as propostas de desenvolvimento econômico pretendido por Getúlio
Vargas. Para isso, em seus discursos ele cita a criação do Crédito Agrícola, para auxiliar o produtor, assim
como uma (re) territorialização para incentivar a produção em novas áreas.
Já durante o Governo Constitucional, Vargas passou a discursar em detrimento de um anseio de
investimento na indústria nacional, usando, assim, o mundo rural como base para o fortalecimento da
indústria e um eventual desenvolvimento econômico, como observamos no discurso que se refere à
industrialização do álcool em uma região que já era conhecida pela crescente produção da cana de açúcar.
Durante o Estado Novo os discursos estão inseridos neste novo ideal de industrialização, e, por
consequência, o mundo rural também. Visto o contexto histórico que leva o Brasil a investir na indústria
como forma de uma modernização e desenvolvimento econômico, o mundo rural também se encontra sobre
este viés. Neste período os discursos de Vargas não se voltam ao produtor ou seu trabalho, mas sim em como
a produção rural se torna importante para o avanço industrial.
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O desespero epistemológico em Fernando Pessoa: uma análise historiográfica
Vitória Ulinoski Moch1
Resumo: O início século XX é caracterizado por muitos autores pela crise de sentido e também pela
retomada mais sistemática do conceito de finitude. 1914 é definido por Baumer como o momento em que se
dará um abismo entre as gerações, será outro o modo de agir e o expressar-se dos indivíduos. Nesse sentido,
o estudo da obra poética de Fernando Pessoa enquanto testemunho histórico permite vislumbrar respostas
epistemológicas e existenciais. As significações de um sujeito moderno perante seu horizonte de expectativa
no contexto europeu ocidental, bem como o modo como é transposto o sentimento de ruptura em relação ao
passado. Quanto à quebra de horizonte de expectativa para a definição de um “eu” que se esboça sem
referenciais, Fernando Pessoa é caracterizado pela despersonalização de si próprio. Assim, a análise
reconhece a característica performativa da escrita e se utiliza dos conceitos propostos por Baumer:
ansiedade, absurdo e alienação, no sentido de perceber como esse sujeito histórico os relaciona e significa e
considerando também as respostas de outros autores do período. A base teórico-metodológica de
interpretação da obra será fundamentada na ideia de contexto de Lacapra, especialmente a tensão entre
intenção autoral e o contexto de linguagem usada pelo autor. E finalmente a demarcação cronológica, nesse
sentido, se dá pensando o referencial temporal entre guerras, até a morte do autor (1914-1935).
INTRODUÇÃO
O século XX, sobretudo após 1914 e no contexto das guerras mundiais, é entendido nesse trabalho a
partir da experiência da finitude da geração europeia. Baumer entende que “o homem torna-se problemático
para si próprio” e, assim, demarca três características do período: o desespero epistemológico, o relativismo
quanto à natureza humana e a desvalorização de si. Essas categorias tornam-se fundamentais para
compreender o contexto histórico. Por tratamos de um contexto em que o sujeito é definido a partir de sua
insegurança e de seu desamparo, a primeira é a que mais nos interessa aqui.
Neste contexto histórico e intelectual, os problemas da consciência, a questão de unidade subjetiva,
ou ainda a identidade, desembocam no que pretendemos compreender: o Eu. Em um universo de incertezas
ou, pelo menos, de certezas mais fluídas e sem referências está o poeta português Fernando Pessoa. Com ele
buscamos saber como se colocam e como se dão as possíveis respostas acerca de si. Sendo assim, o desespero
epistemológico será compreendido a partir de alguns conceitos: a ansiedade, o absurdo e a alienação,
subordinados ao conceito de finitude em um “mar de devir”.
Esses conceitos são abordados metodologicamente a partir de algumas premissas que Koselleck
sugere: os pares assimétricos e antitéticos. Do ponto de vista da análise contextual, utilizaremos alguns
pressupostos de LaCapra (1983), especialmente sua ideia de colocar o próprio contexto como um problema a
ser pensado e não como algo dado para a interpretação.
Fernando Pessoa é compreendido como um testemunho de sua época. Não se trata de subsumir o
real a uma totalidade fornecida pela razão ou a uma existência individual particular em busca da verdade,
que é também alcançada através da racionalidade. O testemunho, aqui, segundo Armani (p.89) tem sentido
se pensado em um contexto epistemológico em que o primado da substância – e da substância indivisível – é
profundamente problematizado, o que implica o questionamento, entre outros, da metafísica da
subjetividade através da ontologia hermenêutica heideggeriana.
Por outro lado, o testemunho de uma época indica algo de um ser-no-mundo, de maneira que a
posição de sujeito que Pessoa assume tem a ver com o mundo com o qual o autor se relaciona, de modo que
Aluna da Graduação em História Licenciatura da Universidade Federal de Santa Maria, do 6° semestre. Participa do grupo de pesquisa
História das Ideias e dos Conceitos nos Séculos 19 e 20: produção de presença e construção do sentido, da UFSM do Prof° Dr° Carlos
Henrique Armani.
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aquilo que se apresenta no texto não se restringe somente ao texto, mas ao pertencimento a uma época.
Nesse sentido, não se objetiva compreender o poeta e sua obra de uma forma homogênea, da mesma forma
como não cabe nesse trabalho uma interpretação completa de seu pensamento, tarefa que seria praticamente
impossível, se levarmos em consideração a relação entre interpretação e temporalidade.
O texto será dividido em três partes. A primeira delas irá discutir os aspectos gerais, teóricos e
contextuais para a interpretação; em um segundo momento, definiremos metodologicamente os conceitos,
fazendo algumas ressalvas importantes a Koselleck; na terceira parte, discuto uma das possíveis respostas
para o desespero epistemológico, sendo subsequente à análise de alguns poemas, principalmente do
heterônimo Álvaro Campos.
1.2 - A era dos três A’s diante do espaço de experiência e do horizonte de expectativa
Baumer se utiliza de questões perenes para compreender como os indivíduos de cada século
interagiam com a realidade. Para o autor, todas as sociedades fizeram perguntas acerca do ser humano, da
natureza, da sociedade, de Deus e da história (BAUMER, 1990). Sem entrar no mérito do alcance das
questões perenes de Baumer, não há dúvida de que elas servem pra pensar o contexto europeu dos últimos
100 anos. Essas cinco questões são pensadas em termos temporais a partir dos pares ser e devir, que
comportam a explicação de uma visão geral acerca de cada século. Para Baumer, o século XX teria
inaugurado uma nova concepção de devir em que a própria pergunta pelo ser teria se tornado problemática.
Nesse sentido, o intelectual português Fernando Pessoa está inserido em um contexto de crise de
sentido. Sua maneira de perceber o mundo e o descrever por meio da literatura nos permitem reconstruir um
passado da história intelectual europeia e, particularmente, um passado pensado em língua portuguesa.
Sendo assim, os textos de Fernando Pessoa que interpretaremos têm uma constituição dupla: eles são obras e
fontes ao mesmo tempo. Como demonstra LaCapra:
tanto el “documento” como la “obra” son textos que implican una interracción
entre los componentes documentários y de ser-obra que debería examinarse un
una historiografía crítica. A menudo, las dimensiones del documento que hacen de
él un texto de cierta clase, con su propia historicidad y relaciones com los procesos
sociopolíticos (por ejemplo las relaciones de poder), se traslucen cuando se lo usa
lisa y llanamente como una cacería de hechos en la reconstrucción del pasado. (El
registro de uma investigación, por ejemplo, es em sí mismo una estrutura de poder
textual que lo vincula com relaciones de poder em la sociedad em general. Su
funcionamento em cuento texto está íntima y problemáticamente relacionado com
su uso para la reconstrucción de la vida del pasado.) (LACAPRA, p.246)
LaCapra traz ressalvas importantes acerca dos textos objetos da história intelectual, interessa-nos
aqui, sobretudo, os literários, pois muitas vezes são excluídos do que os historiadores entendem como
registro histórico. Dessa forma, compreendemos que se objetiva estudar “ideias o estructuras de la
consciência o de la mente. [Pois,] Las ideas o estructuras de la consciência se abstraem de los textos y se
relacionan com modos generales y formalizados de discurso o formas simbólicas” (LACAPRA, p.250).
A interpretação acerca da realidade utilizada tem sua base na construção metodológica que Koselleck
propõem: os pares assimétricos antitéticos. Isto é, “em um dos casos os modos de nomear usados pelas
diferentes pessoas para si próprias e para os outros concordam entre si; no outro divergem. Em um dos casos
as palavras implicam conhecimento mútuo; no outro introduz-se nas designações um significado
depreciativo, de modo que o parceiro pode considerar-se mencionado ou chamado, mas não reconhecido”
(KOSELLECK, p.191) Esses atributos são usados na mesma direção, pois quando a direção for contrária,
serão assimétricos. São atribuições recíprocas, estabelecem inclusões e exclusões e, “nelas se expressam a
identidade da pessoa e suas relações com os outros.” (KOSELLECK, p.191)
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Se compreendermos as delimitações de Baumer, no âmbito de uma experiência de finitude será
consequência da alta desvalorização de si. O indivíduo não se encontra mais nos referentes de seu passado e
os futuros que até então se explicavam a partir de filosofias da história, se esfacelam no contexto da Primeira
Guerra Mundial. A realidade perceptível nesse campo de experiência corrói as mentalidades progressistas ou
utópicas. Não à toa, é nesse momento que as maiores distopias serão escritas, como Admirável Mundo Novo
escrito em 1931 por Aldous Huxley.
Os sujeitos têm nova percepção a respeito do passado e também do horizonte de perspectiva dessa
geração, acarretando em um abismo geracional. Como já pude esboçar, a relação indivíduo e presente,
contexto vivido pelo autor é, necessariamente, compreendida a partir de uma quebra de referências com o
passado. Há um d‘esfacelamento dos absolutos, o triunfo de devir como descreve Baumer. Finitude, por isso,
é colocado enquanto conceito mestre, pois nos permite pensar o Eu, a civilização, a experiência da sociedade
do contexto europeu, em meio a um caos.
Os conceitos definidos por Baumer para compreender o início do século XX são necessários. O
século, não à toa é definido como a Era dos 3 A’s: ansiedade, alienação e absurdo. Eles, e o par campo de
experiência e horizonte de expectativa que irão direcionar o nosso olhar para a compreensão do período
histórico no qual o poeta está inserido.
Mas para isso, é necessário pensar os conceitos metodologicamente e fazer algumas pontuações e
delimitações importantes sobre os pares assimétricos antitéticos. É importante perceber a necessidade de um
alargamento e até generalização das ideias do autor, da mesma forma que Koselleck percebe a ampliação e
abrangência, principalmente, no terceiro par: humanos e não-humanos. Dessa forma, a construção da
metodologia se fixa em alguns eixos norteadores, para que a apreensão da realidade se dê da melhor forma
possível.
A primeira ressalva importante, é a não necessidade da formação de pares, pois trataremos de três
conceitos, além de angústia. Essa tripartição será submetida e gerenciada pelo conceito de finitude, em um
contexto de devir. Ao desenvolver sobre os pares antitéticos, Koselleck, expande que:
com o passar do tempo, as estruturas de todos os conceitos antitéticos podem atuar
simultaneamente (...) a coexistência das figuras antitéticas de linguagem (...) que pode
estar contida em um único par de conceitos, porque nele ingressam diferentes zonas de
experiência histórica. (KOSELLECK. p.196)
A utilização dessa metodologia possibilita compreender o movimento histórico e o peso semântico
das palavras para a apreensão da realidade. Se explica, principalmente, pela delimitação e pontuação sobre
os pares na citação anterior.
“Mas não podem estar ausentes os conceitos pelos quais o grupo possa se reconhecer e se
autodeterminar, caso deseje apresentar-se como uma unidade de ação. No sentido
empregado aqui, o conceito serve não apenas para indicar unidades de ação, mas também
para caracterizá-las e criá-las [Não apenas indica, mas também constitui grupos políticos
e sociais]. (KOSELLECK, p.192).
As antíteses, no caso desse trabalho, se darão na relação eu-mundo gerada a partir de cada um dos
conceitos. Sendo assim, as implicações evidenciam a relação contexto e indivíduo. Vale ressaltar a
importância semântica para apreensão dessa realidade, sendo ela direcionada pelos conceitos angustia,
alienação, ansiedade, angústia, devir e finitude.
Acerca da escolha desses conceitos, faz-se importante evidenciar que também “trataremos daqueles
pares de conceitos que se caracteriza, por pretender incluir a totalidade das pessoas. Trata-se, por
conseguinte, de conceitos binários com pretensões universais” (KOSELLECK, p.193). Os conceitos
escolhidos não se esgotam em aspectos binários, pois, percebe-se que se houvesse a restrição em eixos pares,
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não estaríamos admitindo as características particulares do contexto, em especial, que os conceitos não se
esgotam em antíteses e assimetrias.
Feitas essas ressalvas, o alargamento de alguns conceitos, a não referência a outros, conseguimos
pensar com a base metódica de pretensão universal a constituição, o vislumbre e a ação dos indivíduos em
uma dada época. Pretendermos compreender o momento e o fluxo de ideias nos quais o poeta está inserido e
é dessa forma que o autor aponta que:
O estrutural aponta para o histórico, e vice-versa. Assim, as fontes podem ser lidas de
duas maneiras diferentes: como auto-articulação-histórica dos que atuam conforme
dizem as fontes e como articulação linguística de determinadas estruturas de significado.
(KOSELLECK, p.195)
Além disso, “a história nunca se identifica com seu registro linguístico nem com sua experiência
formulada, condensada oralmente ou por escrito, mas também não é independente dessas articulações
linguísticas. (KOSELLECK, p.196). Por isso, está no cerne da escolha dos conceitos a percepção de que eles
“revelam determinadas formas de experiência e possibilidades de expectativas cujos atributos podem surgir
com outras denominações em outras situações históricas.” (KOSELLECK, p.195) E é com essa premissa que
nos utilizaremos do par espaço de experiência e horizonte de expectativa para compreender espaço-tempo.
Pretende-se, então, pensar as antíteses e assimetrias geradas a partir desse eixo de possibilidades.
Claro que levando em consideração quando e como se darão e se se darão. Considera-se sempre as possíveis
respostas, não apenas naquilo que é mostrado ou procura ser percebido no autor, através das características
do contexto. Mas também, as implicações e as novas referências que não “esperadas”, não reconhecer isso
seria dogmático.
Tendo em vista o desespero epistemológico, sabemos que os conceitos, individualmente, podem e
devem gerar uma assimetria na relação eu - mundo, já que dependem do mundo vivido pelo autor. Eles são,
então, três modos de se deparar com a realidade, tanto no sentido de interagir, de interferir e de ser afetado
por. Não se trata, por isso, somente do caráter discursivo ou performativo de obra, mas da percepção que
temos de estarmos estudando um indivíduo que se expressa de uma dada forma acerca da realidade e, assim,
a descreve. Em suma, consideramos as estruturas de significado.
A seguir apresentarei os conceitos que serão interpretados na obra de Fernando Pessoa: ansiedade,
alienação e absurdo que estão subordinados ao devir e a experiência de finitude. E acerca da percepção do
tempo, o par de conceitos criado por Koselleck, espaço de experiência e horizonte de expectativa.
O primeiro deles é finitude, como espaço de experiência. O conceito está profundamente imbricado
ao conceito de devir, no âmbito da percepção –individual- do tempo, do contexto, enfim, da realidade. “Viver
no mundo tornou-se, nas palavras do filósofo espanhol Ortega y Gasset, <<escandalosamente temporário>>
não só sujeito a mudança, mas também sem normas ou raízes. (BAUMER, p.168) Além disso, também para
descrever e se utilizar de outros autores sobre o contexto, o autor descreve que:
O espirito do tempo vê tudo sub specie temporis, perpetuamente agitado movendo-se e
mudando. O espirito do espaço é o seu oposto, produz um mundo de objetos sólidos e de
absolutos que existem eternamente. No entanto, o espírito do tempo foca o aspecto
dinâmico da realidade, atirando as pessoas para um <<êxtase de acção>> (BAUMER,
p.167-168)
Isto é, filósofos como Heidegger, Sartre e Marcel descrevem sobre a perda do indivíduo, de um ser no
sentido estático, reduzido as leis causais da natureza ou a partir de universalismos, como propunha o
idealismo. O existencialismo apostava na liberdade para definir-se. “Assim, pensar no homem como ser,
significava pensar nele como potência, ou devir.” (BAUMER, p.213) Baumer aponta, segundo Mollberg, que
“O homem fundamental é um mito”. (BAUMER, p.188)
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Esses conceitos são pensados agindo mutuamente e considerando suas assimetrias e antíteses.
Colocados nessa relação eu-mundo são, efetivamente, manifestações de uma dada realidade. Também é
necessário pensá-los perante a supremacia do devir: “Não havia unidade estática chamada cultura, mas
apenas um desenvolvimento perpétuo. Esse conceito de transformação, o conceito de devir.” (BAUMER,
p.181 apoud Collengwood). Em Fernando Pessoa perceberemos que o entendimento e definições de si
também não terão a pretensão de desenvolver uma unidade coerente. No âmbito intelectual o século XX,
Muitos foram os autores que se depararam com a ansiedade existencial de um
mundo cada vez mais destituído de fundamento e de ontologia. Sigmund Freud,
Franz Kafka, Paul Tillich, Ernst Jünger, Karl Kraus, Franz Rosenzweig, Martin
Heidegger, Franz Alexander, Henri Bergson, entre outros, direcionaram grande
parte de suas energias intelectuais para colocar um dos problemas precípuos do
homem: a finitude. Finitude que afastou definitivamente o ser, “deixando os
homens sem pontos de referência e colocando-os à deriva num mar infinito de
devir”. (Armani, p.)
Ao definirmos ansiedade, a demarcação do conceito angustia se faz importante. Ao decorrer do
estudo, pudemos perceber que ele aparece em muitos poemas de Fernando Pessoa e não está distante do eixo
gerador que foi delimitado. Nesse sentido, a diferença entre ansiedade e angústia se dá na medida em que a
última não tem um objeto determinado que irá gerá-la. Trata-se da consciência do possível não-ser.
Enquanto a alienação pode ser entendida como o afastamento e o desamparo em um universo estranho. Para
os novos hegelianos, o ser humano está condenado a viver como um estranho em um universo que é
indiferente.
Para o europeu moderno, já não existe nada de permanente na vida; os valores
desapareceram; foi deixado frente a frente com o absurdo. A ansiedade e a alienação eram
os sentimentos provocados pelo absurdo. (...) Ele atribuía o seu domínio ao sentido
contemporâneo da falta de sentido da vida (o Absurdo) que, por sua vez, tinha origem na
desintegração das estruturas normais de significado, do poder, e da fé (BAUMER, p.180)
Já o conceito de absurdo, pois nesse mundo os valores desapareceram ou se d’esfacelaram. Não há
mais um sentido para a vida, “daí o absurdo, por força de lógica, ser algo que envolve uma atitude
sistemática. A poesia seria uma réplica do absurdo da vida, ponto por ponto apoiada sobre a repulsa de tal
vida como os homens a vivem. (GONÇALVES, p.50). Com a famosa frase de Nietzsche “Deus está morto, e
nós o matamos” podemos evidenciar a morte das crenças, pois nem a racionalidade conseguirá se manter
como o eixo fundamental de sentido para o universo.
1.3. Fernando Pessoa como testemunho
Como testemunho de uma época, Fernando Pessoa expressa uma reflexão densa sobre a ansiedade, a
alienação e o absurdo. Conceitos que estão profundamente imbricados a concepção de ser e devir, são
pensados principalmente e pelo par horizonte de expectativa e campo de experiência propostos por
Koselleck.
Segundo o autor (p.306) “todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas
expectativas das pessoas que atuam ou que sofrem”. Por isso utilizaremos essas categorias históricas, visto
que elas “equivalem às de espaço e tempo”. (p.307) Os conceitos experiência e expectativa são equivalentes e,
ainda, são constitutivos “da história e do conhecimento, e certamente o fazem mostrando e produzindo a
relação interna entre passado e futuro, hoje e amanhã”. (p.308)
Koselleck define experiência como “o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram
incorporados e podem ser lembrados” (p.309). Isto é, através da experiência de cada um, que é percebida e
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reafirmada pela experiência alheia, notam-se formas perceptíveis de pensamento. Também ligada à pessoa e
ao interpessoal, a expectativa é o “futuro presente”, é “o não experimentado, o que apenas pode ser previsto”
(p.310). Já “horizonte quer dizer aquela linha por trás da qual se abre um futuro um novo espaço de
experiência, mas um espaço que ainda não foi comtemplado”. (p.311)
O desespero epistemológico pretende ser discutido e, “significa o desespero de descobrir alguma vez
quem é o homem” (BAUMER, p.185). Consequência da crise de sentido, esse contexto é característico pelo
fenômeno individual de:
Ir para dentro – para encontrar – para encontrar o ego, ou a si próprio, ou o Eu, ou o
maravilhoso; ou simplesmente expressar descontentamento com o mundo externo
dominado pela ciência e pela razão – tornou-se um hábito para muita gente
especialmente quando o movimento psicanalítico se tornou popular (BAUMER, p.176)
Dessa forma, se mostra a relevância da escolha do autor estudado. Pois,
O papel de Pessoa na história da poesia moderna é o exercício da extrema lucidez sobre as
falácias do sujeito. A poesia de Pessoa exemplificaria o modo como o vácuo/vazia se
compensa, não por preenchimento ilusório, mas pelo revezamento infinito de
significantes que constituem a linguagem, plena de desejo que impulsiona o falante a ser.
(GONÇALVES. p.63)
Mesmo que essa descrição evidencie uma das formas de ler Pessoa, o trecho também exemplifica os
processos nos quais o autor está imerso. Em outra leitura proposta por Gonçalves, é apresentada a
significação da obra poética. No sentido de contestação da realidade e princípios que cercam o autor. Dessa
forma, podemos destacar o movimento modernista e algumas de suas percepções da realidade. Já que
implicam na visão de um mundo absurdo.
As múltiplas facetas da realidade, são para eles consequência da irracionalidade ou da perda de
parâmetros. Submerso ao contexto, a criação da heteronímia de Pessoa pode ser pensada como uma resposta
sintomática desse processo. Pois, “a humanidade, longe de ser invariável, é feita, desfeita e refeita sem cessar;
que, longe de ser uma, é infinitamente diversa, tanto no tempo quanto no espaço”. (BAUMER, p.188). Esse
fenômeno modifica, consequentemente, a percepção que o poeta tem a respeito de si. Já que abarca diversas
definições, não é, essencialmente.
No tocante à conjunção poética em Pessoa, é possível sim fazer uma aproximação a
Nietzsche: enquanto no filósofo alemão o eixo de conjunção é a profecia do super-humano
(Zaratustra), em Fernando Pessoa é a nostalgia do infra-humano (principalmente em
Caeiro). A obra de se Pessoa se move e afirma-se por ser “inteiramente irracional”.
(GONÇALVES, p.49)
O desespero epistemológico, então, se explica pela referência ao século do devir, e, principalmente,
com a compreensão de ruptura em relação ao passado. “O relativismo não nega a existência do ego, nem
perde a esperança de o encontrar e o definir. Por outro lado, o relativismo postula a plasticidade infinita do
ego humano (...) O homem é o que fizeram dele” (Baumer. p. 187). O desdobramento dessa afirmação em
Pessoa é o Eu em heterônimos. No surrealismo, podemos ver as descrições do autor acerca da corrente
literária.
Pessoa passa a ser considerado como pertencente a literatura negativista do século XX,
como um autor que atenta para a anti-razão, numa forma de liberação do onírico e do
inconsciente. Na apresentação da psicanálise o apoio para entender o sujeito artístico na
Modernidade, que é múltiplo, despersonalizado, vazio, incerto. A atenção voltada para a
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questão do Eu, na obra de Pessoa na eliminação do objeto, numa solidão metafísica, na
intimidade com a loucura, na crença de um mestre desconhecido, na única certeza de que
escrever é viver. (GONÇALVES. p.60)
Para ele, a unidade da humanidade é compreendida a partir das multifaces, no sentido de todos
serem a soma de um:
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quantas mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento,
Estiver, sentir, viver, for
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora (PESSOA, p.225)
Acerca desse desespero epistemológico em Pessoa, percebe-se algo que Baumer define como a
introspecção. Isto se dá no sentido de os indivíduos não entenderem nem a si próprios nem aos outros.
Segundo Gonçalves (p.23) “a fragmentação do Eu em Pessoa é fruto de uma ‘ânsia primária’ de racionalizar
sua identidade, bastante problemática. Por isso, o poeta torna-se uma espécie de porta voz impessoal de seus
heterônimos na apreensão de uma multiformidade universal”. Se o autor, enquanto teórico literário,
compreende o poema tabacaria como uma totalidade, pois na amostragem de um único poema, Pessoa
demonstra a síntese do universo pessoano, num movimento circular da micro-estrutura para a macroestrutura.
Sendo assim, as possibilidades de ler pessoa podem ser traçadas de diversas maneiras por teóricos da
literatura e historiadores. No processo de compreensão e delimitação tanto da estética quanto das
caraterísticas da obra. O diálogo com essas interpretações nos auxilia a compreender os elementos comuns,
perceber a complexidade do poeta e as concepções de mundo, isto é, o mundo vivido. Pois delimita-se o
enredo das diversas facetas do Eu, transposta em uma totalidade ontológica que está extremamente ligada as
condições do devir, isto é, do contexto histórico.
Poderíamos, aqui, discutir acerca da intencionalidade autoral, mas é evidente que não
necessariamente as leituras que ele mesmo delimita, iria compor uma leitura melhor para o trabalho. “Se a
linguagem poética de Pessoa é uma busca da essência do Ser, o desdobramento em personalidade/máscaras
é considerado como possibilidade de conhecimento dessa Ser”, define a heterônima como um somatório de
sistemas epistemológicos. (GONÇALVES, p.32) Essas leituras nos auxiliam a compreender o contexto que
gera a perda da forma de Pessoa.
Gonçalves propõe algumas analises acerca do poeta quanto a questão da heteronímia, referindo-se a
Freud e a Lacan, as multiculturalistas e psicanalistas. Ao deter-se, ele, e críticos literários aos quais se refere,
percebe essa analise como enfática ao texto poético, pois parte da “profundidade de Pessoa ipse e seus
heterônimos”. (GONÇALVES, p.59) Dessa forma, situa o poeta e suas vozes pessoanas no contexto de crise
que já comentara anteriormente. O desdobramento se dá na definição de alguns heterônimos:
“O heterônimo Álvaro de Campos, a voz mais atuante em Pessoa, é um Eros liberto. A
objetividade do mestre Caeiro é mostrada como um grau ômega da poética pessoana”,
enquanto “Ricardo Reis é o pagão, racionalista, de inacessibilidade de um epicurismo e
estoicismo que desvanecem por não representarem o verdadeiro paganismo que é antigo.
Essa consciência que leva a infelicidade é a consciência como atividade ou como ato
nadificante. (GONÇALVES. p.59)
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Além disso, dada a delimitação cronológica a análise se centra principalmente em Álvaro Campos.
Quanto ao recorte temporal da poesia, centra-se em dois períodos denominados respectivamente como o
Engenheiro Sensacionalista (1914-1922) e o Engenheiro Metafísico (1923-1930). Pois, percebe-se a
impossibilidade de nesse artigo analisar um número maior de poemas. As escolhas, então, foram feitas
partindo de uma percepção do que melhor se relacionaria com as perguntas que aqui se procurava responder
e com o auxílio das leituras de teóricos literários para as delimitações.
Nesse sentido, “Álvaro Campos se conformaria como o ego máximo das contradições, implodindo
pelas pulsões e solto no delírio da multiplicação” (GONÇALVES, p.63) e além disso,
Campos é visto num estádio de percepção fenomenológica do mundo, onde a sensação
compõe uma realização de compensação oral, tão próxima das satisfações infantis. A
angustia metafísica seria neutralizada pelo tabaco. (GONÇALVES, p.61)
No poema Ode Mortal podemos vislumbrar o sentido de totalidade o qual o autor se referia sobre
Caeiro.“Da tua alma universal localizada, / Do teu corpo divino intelectual...” Refere-se, em seguida, a
maneira de ver o universo, Álvaro: “Viste com a tua cegueira perfeita, sabes o não ver. / Porque o que viste
com os teus dedos materiais e admiráveis / Foi a face sensível e não a face fisiognómica das coisas / Foi a
realidade e não o real. (...) / E a verdade que há em tudo é a verdade que o excede! / Ah, sem receio! / Ah,
sem angustia!” (PESSOA, p. 280)
Desencadeiam-se os exatos sentimentos que são gerados pelo universo absurdista, e que não são
expressados por Caeiro. Aqui ele descreve a sintomática, a condenação, de estar alienado em relação ao
universo, pois não vê realmente. O que é, a verdade, está para além do universo, absurdo, visível. Esse
universo, gera “a alienação cósmica (...) [que] era um estado permanente que, embora desse ao homem a
liberdade (liberdade de qualquer espécie de necessidade), o condenava a viver como um estranho num
universo indiferente. ” (BAUMER, p.180) Em sequência, relata sobre a verdade que é dada naquilo que
excede, da mesma forma que descreve em “Autopsicografia”. Para o poeta, só se chaga a uma verdade
essencial através do poema. A descrição subsequente é sobre esse universo que o aliena e que não consegue
compreender.
Em outro poema (PESSOA, p.304): “ Mestre, meu mestre! / Na angustia sensacionista de todos os
dias sentidos, / Na magoa quotidiana das matemáticas de ser, / Eu, escravo de tudo como um pó de todos os
ventos, (...) Meu mestre meu coração não aprendeu tua serenidade. / Meu coração não aprendeu nada. / Meu
coração não é nada, / Meu coração está perdido. (...) Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas, /
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente”. Novamente, o mundo, aparentemente, não tem sentido
algum para o poeta e, se antes o tinha era devido ao mestre. Isto se canalizará na definição de si: “E eu, por
minha desgraça, não sou eu nem outro ninguém”. Nesses trechos encontramos a subordinação dos conceitos
em causa e consequência, até esse desespero epistemológico.
Após alguns versos pergunta a Caeiro: “Para que me tornaste eu? Deixasse-me ser humano!” / Feliz o
homem marçano, / Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada.” Neste poema o poeta
define-se novamente sentindo angustia, que se dá “pela indiferença de toda a vida” (PESSOA, p.304),
determinando o objeto causador. Esse poema também revela um pouco do quotidiano de Pessoa e de sua
dificuldade de socializar e interagir, na informidade de sua epistemologia. Ao descrever a consciência de seu
possível não-ser, estabelece novamente uma relação eu-mundo. Mas agora a partir do conceito de ansiedade
que está em assimetria com a alienação, antes descrita.
No próximo poema percebemos que este estar-alienado é percebido na maneira de ver e no conceito
que o gera, a angustia. “Ah, a angústia insuportável de [haver] gente! / O cansaço inconvertível de ver e
ouvir! (...) / Queria vomitar o que vi, só na náusea de o ter visto, / Estomago da alma alvorotado de eu ser...”
(PESSOA, p.252)
O conceito de angústia aparece nesses poemas, demonstrando a necessidade de percebe-lo dentro do
eixo de interpretação. Segundo Baumer (p.180), “Para uma das personagens de ficção de Jean-Paul Sartre o
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Absurdo era a chave de sua náusea, do sentimento de estar de trop no universo”, isto é, alienado. Esses
conceitos também se colocarão assimetricamente na relação eu-mundo do poema a seguir:
Ah, a angústia insuportável de [haver] gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!
(...)
Queria vomitar o que vi, só na náusea de o ter visto,
Estomago da alma alvorotado de eu ser... (PESSOA. p.252)
As sensações e percepções de mundo prescritas no poema, através da falta de um sentido para a vida,
descrevem o absurdo. Dessa forma, conseguimos vislumbrar a maneira como os conceitos, mesmo aqueles
que são expostos como sintomáticos, desencadeiam-se interconectando-se no poema anterior.
Na poesia “hoje estou como se esse tivesse sido outro. / Quem fui não me lembra senão como uma
história apensa. / Quem serei não me interessa, como o fundo do mundo” (PESSOA, p.373). Novamente o
poeta se coloca sem uma definição precisa ou, pelo menos, esboça-se sem referenciais. Podemos notar, além
disso, que é apresentada uma relação de assimetria entre o eu-mundo, sob as categorias de tempo.
“Hoje tenho uma alma parecida com a morte dos nervos - / Necrose da alma, / Apodrecimento dos
sentidos. / Tudo que tenho feito, conheço-o claramente: é nada” (PESSOA, p. 355). Com esse trecho já
conseguimos vislumbrar que ao definir o indivíduo enquanto problemático, não podemos resumi-lo através
da dicotomia bom e mau, muito própria das teologias. Em necrose percebemos a morte da alma, sendo assim
o sentir também se esfacela, resultando em uma insignificância, em um viver sem sentidos.
Mais tarde no mesmo poema, o devir é apresentado como rompimento, isto é, há uma quebra de
expectativa em relação ao futuro: “O Destino acabou-me como a um manuscrito interrompido. Nem altos
nem baixos – consciência de nem sequer a ter... (...) Tenho uma náusea do estomago dos pulmões. / Custame a respirar para sustentar a alma”. (PESSOA, p. 355) Essa construção de uma problemática em relação a
própria alma, pode ser compreendida também através da aceleração do tempo, do que consideramos
moderno e é sintomático das definições as quais o poeta se utiliza para definir-se.
No poema de Álvaro Campos:
“Absurdamente surgindo, estática e constelada
Do vácuo dinâmico do mundo.
Que eu sou daquelas que sofrem sem sofrimento,
Que têm realidade na alma,
Que não são mitos, são a realidade
Que não têm alegria do corpo ou da alma, daqueles
Que vivem pedindo esmola com a vontade de perde-la... (PESSOA, p.59)
Para explicar a manifestação do conceito central, o devir, o Eu se coloca em antítese com esse ser
estar no mundo no poema a seguir. O poeta não é, mas está, e seu estado não é permanente e,
consequentemente, seu Eu também não é.
CUL DE LAMPE
Pouco a pouco,
Sem que qualquer coisa me falte,
Sem que qualquer coisa me sobre,
Sem que qualquer coisa esteja exactamente na mesma posição,
Vou andando parado,
Vou vivendo morrendo,
Vou sendo eu através de uma quantidade de gente sem ser.
Vou sendo tudo menos eu.
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Acabei. (PESSOA, p.370)
No próximo poema, Fernando Pessoa ao se definir expõe algumas características do devir, dentro do
que se configura a sua alienação em relação ao mundo. Essa alienação cósmica, se coloca na mesma medida
em que há a descrição do universo, se manifestando também a ansiedade:
Mas eu, em cuja alma se reflectem
As forças todas do universo,
Em cuja reflexão emotiva e sacutida
Minuto a minuto, emoção a emoção,
Coisas antagónicas e absurdas se sucedem –
Eu o foco inútil das realidades,
Eu o fantasma nascido de todas as sensações,
Eu o abstracto, eu o projectado no écran
Eu a mulher legítima e triste do Conjunto,
Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem ser de água. (PESSOA. p.251)
Enfim, ao explicarmos a heteronímia e a maneira como Àlvaro Campos responde a questão
epistemológica com dos conceitos, conseguimos esboçar algumas manifestações sobre o período histórico
europeu. Fernando Pessoa é um intelectual que nos deixou uma discussão densa acerca do desespero
epistemológico. Nosso trabalho pode, após algumas ressalvas necessárias, evidenciar quais a possíveis
respostas acerca das questões que envolviam o poeta. Para tal, se fez necessário relacionar a categoria eumundo com conceitos temporais e ansiedade, o absurdo, a alienação e angustia.
REFERÊNCIAS
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representacional e alteridade. Estudos Ibero-Americanos. Edição Especial. PUCRS, n. 2, 2006, p. 87-101.
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Alberty. 1° edição. Lisboa: Edições 70, Lda, 1977, p.167-182.
BAUMER, Franklin L. O homem problemático. O pensamento europeu moderno. Tradução de Maria
Manuela Alberty. 1° edição. Lisboa: Edições 70, Lda, 1977, p.183-205.
GONÇALVES, Robson Pereira. O Sujeito Pessoa – Literatura e Psicanálise. 1° edição. Santa Maria: Ed.
UFSM, 1995.
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Passado: contribuição a semântica dos tempos históricos. 1° edição. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio,
2014, p. 191-232.
KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa: duas categorias históricas. In:
Futuro Passado: contribuição a semântica dos tempos históricos. 1° edição. Rio de Janeiro: Contraponto:
PUC-Rio, 2014, p. 305-328.
LACAPRA. Dominick. Repensar la historia intelectual y ler textos. In: PALTI, Elías José. Giro linguístico e
historia intelectual. 1° edição. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2012, p.237-293.
PESSOA, Fernando. Poesia / Álvaro Campos. Edição Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
CAMPOS, Álvaro de. Livro de Versos. Fernando Pessoa. Teresa Rita Lopes Edição crítica. Lisboa: Estampa,
1993.
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O Juizado de Paz e a sua atuação em Santa Maria (1830-1850)
Viviane Siqueira Alves1
Resumo: Neste ensaio, abordamos sobre a instituição do Juizado de Paz no século XIX, onde busca-se
entender a atuação dos Juízes de Paz em Santa Maria, Rio Grande do Sul entre os anos 1830 até 1850. Nesse
sentido, para compreendermos a atuação dos Juízes de Paz em Santa Maria entre os anos 1830-1850 é
necessário tipificar o cargo de Juiz de Paz à luz da legislação da época aqui estudada. Entende-se que a
instituição do Juizado de Paz está entre as instituições mais antigas da história judiciária brasileira, pois tem
suas raízes ainda no período que antecede a independência do Brasil e está inserido num contexto de
transformações políticas e sociais. Sendo assim, precisamos também compreender os processos que levaram
às transformações ocorridas ao longo do início do século XIX. Dessa forma, será apresentado as Reformas
pelas quais a instituição do Juizado de Paz passou desde a sua oficialização em 1827 até a Reforma de 1841
que resultou na retirada de poderes desta instituição, bem como as diferentes formas de atuação deste
Juizado em Santa Maria no recorte temporal informado.
AS REFORMAS NA INSTITUIÇÃO DO JUIZADO DE PAZ
A instituição do Juizado de Paz foi regulamentada através da lei de 15 de outubro de 1827, onde
entende-se que esse fato causou uma grande mudança no sistema judicial que estava vigente até o momento.
A partir desta lei ficou estabelecido que em cada uma das freguesias e das capelas filiais deveriam ter um Juiz
de Paz e um suplente, os quais eram eleitos conforme as eleições para vereadores da Câmara Municipal. A lei
estipulava algumas exigências para o exercício do cargo e também estabeleceu várias competências ao Juiz de
Paz.
De acordo com o Artigo 3º da lei 15 de outubro de 1827, aquele que fosse eleitor poderia ser Juiz de
Paz, no entanto, o Artigo 94 da Constituição de 1824 específica quem poderia votar nas eleições para
Deputados, Senadores e membros dos Conselhos de Província. Sendo assim:
[...] eleitores eram aqueles que tivessem renda líquida anual não inferior a
200$000 (duzentos mil réis) por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego;
idade de 21 anos, exceto se for bacharel formado ou clérigo de ordens sacras, e
deveria saber ler e escrever. (NASCIMENTO, 2011, p. 4).
A adequação da lei por parte das freguesias e vilas não ocorreram de imediato em todos os lugares,
em alguns casos as eleições para o cargo de Juiz de Paz ocorreram logo após a publicação da lei, em outros o
processo foi mais tardio. No caso de Porto Alegre, capital da Província do Rio Grande de São Pedro, a lei não
demorou a chegar, pois documentos datados de 1828 revelam a existência de um Juizado de Paz nesse
período2. Em Mariana, município de Minas Gerais, fontes revelam que as eleições para Juízes de Paz
ocorreram em 1829, sendo que nesse período eram eleitos um Juiz de Paz e um suplente para cada distrito 3.
Já em Santa Maria, que no recorte temporal aqui estudado estava na posição de quarto distrito de Cachoeira
do Sul, o Juizado de Paz começou a atuar em 1829, chegou-se a essa conclusão a partir das informações
encontradas nas atas da câmara municipal, onde foi encontrado um documentado no qual menciona um
sujeito como Juiz de Paz.
Graduanda no curso de História/Licenciatura na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: vivianealves094@gmail.com.
CODA, Alexadra. O juiz de paz na esfera criminal - Porto Alegre (1832-1841). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
História/Bacharel)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2012, p. 25.
3 NASCIMENTO, Joelma Aparecida do. Os “homens” da administração e da justiça no Império: eleição e perfil social dos juízes de paz
em Mariana, 1827-1841. 2010. 194 p. Dissertação de Mestrado (Mestrado em História)–Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de
Fora, p. 128, 2010.
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Nesse sentido, a lei de 15 de outubro de 1827 estabelece algumas competências que ficavam a cargo
do Juiz de Paz, entre elas:
A atividade de restabelecer a paz e a concordância entre as partes era a principal
função do juiz de paz, facilitando o entendimento entre as pessoas, longe das
formalidades judiciárias. Mas para além dessa nobre obrigação, deveriam julgar
pequenas demandas, reduzindo-as a termo; evitar ajuntamentos, rixas e
quilombos; pôr bêbados em custódia; fazer corpo de delito, interrogar delinquentes
e testemunhas antes de encaminhá-los ao juiz criminal; perseguir criminosos em
seu distrito; informar o juiz de órfãos sobre menores abandonados; vigiar a
conservação das matas e florestas; participar às autoridades provinciais da
descoberta de bens preciosos em sua jurisdição; dividir o distrito em quarteirões,
nomeando para cada um deles um inspetor que o mantenha informado dos
acontecimentos e execute suas ordens. (CODA, 2012, p. 91).
Já a lei de 1º de outubro de 1828, reformulou o funcionamento dos Conselhos Municipais. Essa lei
deliberou novas responsabilidades que resultaram na ampliação do cargo, fazendo com que os Juízes de Paz
se tornassem os responsáveis por questões que antes estavam a cargo da câmara municipal e de seus
vereadores, entre as novas funções encontramos as seguintes: publicar nas portas das igrejas, vilas e cidades
a relação de nomes autorizados a participarem das eleições4. Assim, “o esvaziamento de poder das Câmaras e
a amplitude dos poderes da nova magistratura tornaram o juiz de paz o principal ator político municipal”.
(MOTTA, 2013, p. 68).
A partir de então as Reformas são recorrentes, o Código Criminal de 1830, assim como as leis de 1827
e 1828 estabeleceram medidas que transformaram o cargo de Juiz de Paz, passando a exercer funções de
conciliador, pacificador e responsável pela ordem pública. Já o Código do Processo Criminal de 1832 revogou
algumas medidas implementadas com a lei de 1827, ampliou as competências, lhe concedeu poderes policiais
e judiciais, tornando esses magistrados mais poderosos numa perspectiva local 5. Enquanto a lei 15 de
Outubro de 1827 estabeleceu que deveria ter um Juiz de Paz em cada freguesia ou vila, a lei de 29 de
Novembro de 1832 determinou que deveriam ser eleitos quatro Juízes de Paz em cada distrito, sendo que
cada um assumiria o cargo por um ano e quando um estivesse exercendo a função, os outros três ficariam
como suplentes, mas as eleições continuariam ocorrendo no intervalo de quarto anos.
Regulamentou-se que seriam eleitos quatro juízes de paz, cada um exercendo a
titularidade por um ano, conforme número de votos recebidos. O mais votado seria
o primeiro a exercer a jurisdição, seguido do segundo mais votado e assim
sucessivamente. Quando o titular não pudesse exercer as funções, substituía-o o
próximo da sequência. (CODA, 2012, p. 36).
Contudo, com a lei 261 de 3 de Dezembro de 1841 fica decretado que deveria ter um chefe de polícia
com os delegados e subdelegados no Município da Corte e em cada Província. As atribuições que haviam sido
conferidas aos Juízes de Paz pelo art. 12 §§ 1º, 2º, 3º, 4º 5º e 7º do Código do Processo Criminal, passam a
ser competências dos chefes de polícia e aos seus delegados nos seus respectivos distritos de atuação 6. Para
Gabriel Souza Cerqueira (2014), as reformas no Código de Processo Criminal em 1841 promoveram a
RODYCZ, Wilson. C. O juiz de paz imperial: uma experiência de magistratura leiga e eletiva no Brasil. Justiça e História. Porto Alegre.
v.
3,
n.
5,
2003.
Disponível
em:
https://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justic
a_e_historia/issn_1676-5834/v3n5/doc/02-Wilson_Rodycz.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2018. p. 7-9.
5 FARIA, Regina. Helena Martins de. Os Juízes de Paz: concepções e práticas. VI Jornada Internacional de Políticas Públicas. São Luis.
Disponível
em:
<http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo3estadolutassociaisepoliticaspublicas/osjuizesdepaz-concepcaoepraticas.pdf>. Acesso em: 24 de Ago. 2018. p. 4.
6 RODYCZ, Wilson. C. Ibid. p. 26-27.
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centralização da política e nas atividades administrativas. Raymundo Faoro (1984), salienta que essa
centralização de poder judiciário ao governo resultou na retirada de autonomia que as províncias estavam
exercendo.
Ao promover uma enorme centralização do poder de justiça ao governo, esta lei
retirou as atribuições autonomistas das províncias, atrelando as influências locais,
armadas com a polícia e a justiça, aos agentes do governo. A partir de 1841, em
todas as províncias, os chefes de polícia bem como seus subordinados (delegados,
subdelegados) passam a ser indicados diretamente pelo poder central ou
indiretamente pelos presidentes de província (que por sua vez, eram indicados pelo
governo imperial). O juiz de paz perde grande parte de suas atribuições, que
passam para a autoridade policial, que além de suas funções de polícia, assume
funções judiciárias. (FAORO 1984 apud CERQUEIRA 2014, p. 23).
Nota-se uma grande mudança no que diz respeito ao cargo de Juiz de Paz a partir das reformas
ocorridas em 1841. Se considerarmos as leis que haviam sido implementadas até então no País, verifica-se
que a estrutura judiciária vinha sendo organizada e conquistando um espaço maior na sociedade, pois apesar
do Juizado de Paz abranger um caráter local, exercia diversas funções importantes para manter uma
administração nos distritos e fazer com que a justiça fosse mais acessível.
As reformas de 1841 tinham objetivos, assim como as outras leis que a instituição já havia
presenciado. Um dos objetivos evidentes, era a modernização e profissionalização dos poderes judiciários,
além da retirada de poderes dos juízes leigos, incluindo os Juízes Municipais e Juízes de Órfãos, estes
passariam a ser nomeados, mas com a condição de que fossem Bacharéis formados em Direito, além disso,
deveriam ter pelo menos um ano de prática no foro. (CERQUEIRA, 2014, p. 26).
Para Elaine Sodré (2013), além da Reforma de 1841 trazer reformas no Código do Processo Criminal
de 1832, trazia consigo objetivos mais abrangentes. Nesse sentido, a autora analisa os relatórios do
Ministério da Justiça entre os anos 1832 e 1836, onde destaca alguns tópicos da Reforma de 1841 com o
objetivo de confirmar os pretextos dessa nova Reforma 7. Percebe-se que nesse momento a atuação dos Juízes
de Paz já não era a mesma que em 1827, quando o cargo havia sido regulamentado, agora a instituição
recebia críticas, muitas no sentido de serem incapazes de continuarem exercendo tais funções,
principalmente pelo fato do cargo ser ocupado por homens leigos 8.
O grande objetivo da Reforma de 1841 era esvaziar o poder dos juízes leigos. Nesse
sentido, o foco central das mudanças foram as instâncias acima descritas: juiz de
paz e Júri, inegavelmente enfraquecidos. Contudo, era necessário tomar cuidado
para não deixar nenhum flanco descoberto, assim também foram “reformados” os
outros cargos da magistratura leiga: promotores públicos, juízes municipais e de
órfãos. Sobre esse grupo já se havia diagnosticado dois problemas: nomeação e
inaptidão. Ambas as características eram descritas pelo ministro da justiça quando
analisava a situação dos juízes municipais: “nem a maneira, porque são nomeados
deixa ao Governo a necessária liberdade de escolher; nem a ausência de
habilitações garante a suficiência dos Juízes” (Relatório do Ministério da Justiça,
1840, p. 15). Já sobre os promotores públicos dizia-se: “as atribuições deste
Funcionário, essencial no novo sistema, são pesadíssimas, e assaz odiosas para
poderem ser exercidas por um só indivíduo, e gratuitamente, nas grandes
Povoações” (Relatório do Ministério da Justiça, 1834, p. 22). Assim, a sugestão era
SODRÉ, Elaine. O duplo papel da reforma judiciária de 1841: uma lei para a justiça e um instrumento administrativo para o governo
imperial. In: Anais do V Congresso brasileiro de história do direito. Curitiba: IBHD. 2013. Disponível em: <
http://www.ibhd.org.br/arquivos/anexos/VCBHD.pdf>. Acesso em: 26 set. 2018. p. 412.
8 Ibid, p. 415.
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aumentar o número daqueles magistrados, bem como conferir a eles um ordenado.
(SODRÉ, 2013, p. 421)
Novamente fica evidente que a Reforma de 1841 resultou na retirada de poderes dos Juízes de Paz e
assim a instituição começou a perder sua legitimidade inicial.
O JUIZADO DE PAZ EM SANTA MARIA
Através de uma análise documental buscou-se identificar os indivíduos que atuaram como Juízes de
Paz em Santa Maria entre os anos 1830 a 1850. As atas da câmara municipal e termos de posse e juramentos
revelaram a existência de quinze Juízes de Paz atuantes, incluindo os suplentes. Contudo, existe uma lacuna
documental entre os anos 1835 e 1850, onde verifica-se duas hipóteses, a primeira seria que muitas
informações se perderam ou não foram registradas devido à sobreposição de soberania que acontece nos
anos que se sucedeu a Guerra dos Farrapos (1835-1845), a segunda hipótese refere-se ao fato dos Juízes de
Paz resolverem algumas questões no privado fazendo com que não se tenha um registro, Alexandra Coda
(2012), salienta esta questão dizendo que nem todos os casos eram documentados pelos Juízes de Paz,
principalmente quando julgados como irrelevantes:
A lei afirmava que todas as conciliações realizadas tivessem o resultado lavrado em
termo, porém, uma das hipóteses sobre a pouca existência desse tipo de atividade é
o fato de que tais reconciliações, talvez, não o fossem. Tratando-se de uma tentativa
de resolver a questão antes que ela se tornasse um caso jurídico, e encaminhada
para outras jurisdições, pode se questionar se tal dispositivo da lei era efetivamente
cumprido. O próprio juiz de paz poderia considerar alguns casos como irrelevantes,
resolvendo-os sem documentá-los. (CODA, 2012, p. 26)
No caso de Santa Maria a documentação ainda não revelou casos referentes a conciliações entre
indivíduos, mas não exclui a possibilidade de que tenha sido uma prática comum entre os diferentes Juízes
de Paz, visto que era comum alguns casos não passarem por registro oficial. Fato recorrente era a forma de
comunicação com outras autoridades, em especial o Presidente da Província.
Em 10 de junho de 1835, o Juiz de Paz Constantino José de Oliveira escreve ao Presidente da
Província Antônio Rodrigues Fernandes Braga, na correspondência o Juiz solicita uma casa de cadeia para o
povoamento de Santa Maria, enquanto faz a solicitação descreve situações que vem passando na posição de
Juiz de Paz do distrito e também a importância do seu pedido ser levado em consideração 9.
Analisando as palavras usadas por Constantino José de Oliveira, percebe-se que não era a primeira
vez que escrevia solicitando providencias ao Presidente da Província. O Juiz de Paz relata que Santa Maria
não tinha um lugar adequado para resguardo dos presos e da Guarda Municipal, salienta que o lugar que
antes estava sendo usado era mantido pelos seus antecessores desde 1833 e que ele não poderia continuar
arcando com tal despesa. Constantino, também revela alguns detalhes sobre o lugar que estava sendo
utilizado, na descrição usa das palavras: cubículo e espelunca.
O juiz de Paz relata também que o dono do estabelecimento lhe fez uma proposta, onde ele e seus
companheiros poderiam continuar usando o local, mas na condição de que o serviço policial aplicado aos
demais moradores não se aplicasse à ele. Como forma de explicação, Constantino alega que se sentiu na
obrigação de aceitar tal proposta, pois caso contrário, não teria outro lugar para que pudesse ser usado como
casa de cadeia.
O Juiz de Paz era um cargo central e de extrema importância para o funcionamento da Vila, até a
implementação da Reforma de 1841 eram os Juízes de Paz os responsáveis pela ordem e organização de sua
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Juízo de Paz Santa Maria da Boca do Monte (1831-1837). Maço 38. Correspondência enviada
ao Presidente da Província por Constantino José de Oliveira em 10 de junho de 1835.
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localidade de atuação. Através desta correspondência, percebe-se a preocupação e indignação de Constantino
José de Oliveira, comunicando ao Presidente Provincial sobre a atual situação carcerária. Apesar do cargo ser
ocupado por homens leigos e Santa Maria estar na condição de quarto distrito de Cachoeira do Sul, percebese que a comunicação com o governo era direta.
Para Michele de Oliveira Casali (2018), até mesmo as vilas mais distantes deveriam eleger seus
magistrados, levando em consideração as atribuições da lei de 15 de outubro de 1827. Para que a jurisdição
ocorresse nesses locais, era necessário cargos que estabelecessem a ordem e regulamentação das localidades,
é nesse sentido que a autora considera o cargo de Juiz de Paz como um cargo central nas vilas, pois suas
atribuições giravam em torno do cuidado com as demandas locais 10. Os argumentos usados por Constantino
José de Oliveira, pode ser entendido como uma preocupação em exercer suas funções na Capela de Santa
Maria, mas que a falta de apoio de seus superiores, de certa forma era um empecilho para dar continuidade
às suas atribuições como Juiz de Paz.
A substituição dos Juízes de Paz era algo corriqueiro e poderia acontecer quando o indivíduo se
ausentasse da sua localidade de atuação, ou seja, quando este mudava-se do distrito no qual foi eleito para
exercer suas funções. Este caso foi identificado em Santa Maria, quando em 1835 um Juiz de Paz foi
substituído por seu suplente, a ação foi justificada pelo fato do Juiz mudar-se de distrito e também por ser
administrador de um comércio11. Outro motivo de substituição, se dava no caso do Juiz de Paz não cumprir
com as suas obrigações, esses relatos são encontrados com frequência em correspondências ou ofícios
enviados para a Câmara Municipal ou até mesmo para o presidente da Província, estas correspondências
eram escritas por Juízes de Paz ou Vereadores da vila.
A circulação por outros cargos era outra prática comum entre alguns indivíduos que em algum
momento ocuparam o cargo de Juiz de Paz, em Santa Maria as fontes revelaram que dos quinze Juízes de
Paz, pelo menos seis indivíduos circularam por outros cargos antes ou depois de serem Juízes. Entre os
diferentes cargos podemos encontrar fiscais de capela, fiscais municipais, alferes, capitão e vereador.
No Rio de Janeiro, os papéis políticos dos juízes de paz eram mais visíveis,
especialmente os seus deveres eleitorais. Isso explica a existência de juízes
semiprofissionais, que por anos seguidos ocuparam o posto, tornando-se uma
espécie de “chefes de bairro”. Na região cafeicultora, as famílias dos fazendeiros
geralmente ocupavam o posto. (RODYCZ, 2003, p. 13).
Outra situação recorrente em Santa Maria que deve ser destaca, está no número de vezes que um
sujeito foi Juiz de Paz, pois através da documentação percebe-se que Constantino José de Oliveira prestou
juramento e tomou posse como Juiz de Paz por pelo menos quatro vez, em diferentes anos. Aconteceu o
mesmo com Baltazar Pinto de Aguiar, Francisco Ribeiro Pinto, ambos foram Juízes de Paz em dois
momentos. Situação também identificada nas eleições de Mariana:
Nas eleições municipais de Mariana notamos que até 1832 ocorreu, como previsto
pela Lei de 1827, a eleição de um juiz de paz e um suplente apenas. A partir de
1832, porém, com a promulgação do Código do Processo Criminal, que alterou o
número de eleitos para 4 juízes, verificou-se quase sempre serem eleitos os quatro
juízes de paz, um para cada ano do quatriênio, apesar ainda de em algumas
localidades seguirem elegendo um juiz e um suplente apenas. Foi constante, além
disso, um mesmo indivíduo permanecer no poder, sendo eleito por várias vezes.
(NASCIMENTO, 2010, p. 164).
CASALI, Michele de Oliveira. A Magistratura leiga e eletiva: os Juízes de Paz em Rio Pardo (1828-1850). 2018. Dissertação
(Mestrado em História)–Universidade Federal do rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2018. p. 107.
11 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Câmara Municipal de Cachoeira do Sul. Documento 443, maço 38.
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Outro documento revela a autonomia e a forma como o Juiz de Paz Constantino exercia seu papel de
autoridade local. Pois, em 24 de fevereiro de 1835, Constantino José de Oliveira já havia entrado em contato
com o mesmo Presidente Provincial, onde comunica que havia nomeado um morador local para ocupar o
cargo de Juiz de Paz, suas justificativas são de que ele precisava se ausentar de Santa Maia por alguns dias e
os outros Juízes não poderiam assumir por diferentes motivos, sendo que o 2ª Juiz estava enfermo, o 3ª
ausente e o 4ª ainda não sido juramentado:
Sendo eu um dos quatro Juizes de paz que deve ter nesse distrito, muito na
prezente legislatura, como mais votado servi no primeiro ano, e por enfermidade
do 2º Juiz, ausência do 3º, e falta do 4º, que ainda não há ate hoje juramentado,
exercia eu há mezes a jurisdição na qualidade de suplente, como se reconhesse a
sua Casa nesta Povoação o Juiz 3º, e proprietário deste presente ano, Manoel
Batista de Maceno lhe officiei no dia 23 de janeiro pp, fazendo lhe entrega da
jurisdição, tanto que legitimame lhe pertencia, como para que eu tinha motivo de
impedimento, qual a urgente necessidade de uma viagem que na manhã do dia 24
effectuei, retornando-me bem persuadido de que aquele Juiz proprietário ficava
impossado e tanto mais acreditava eu nisto, que ele me não tinha respondido; por
eu regressando so depois de quatro dias de ausência já não encontrei no Distrito
aquele Juiz, que fui informado, tinha recuzado investir-se da autoridade e
administrar justiça, retirando-se sem providenciar sua substituição[...] 12
Observando as palavras de Constantino, fica explicito o poder local deste Juiz de Paz, pois não
havendo outro Juiz de Paz juramentado pela Câmara, rapidamente Constantino nomeia Manoel Batista
Maceno para substitui-lo, usando justificativas para tal atitude. Após explicar os acontecimentos,
Constantino solicita com urgência a tomada de providencia com relação a esta situação, relatando que a
população de Santa Maria encontrava-se sem a autoridade de Juiz de Paz. Nesse sentido, essa
correspondência reforça a ideia de que os Juízes de Paz tinham grande autonomia local.
Tendo em vista que a principal função dos Juízes de Paz era a conciliação, mas não existem muitos
registros oficiais referentes a estas questões, outros estudos apontam os Juízes de Paz como figuras atuantes
em assuntos vinculados à esfera criminal, como é o caso dos Juízes de Paz de Porto Alegre:
Por mais de uma década, os juízes de paz porto-alegrenses, em suas atividades
diárias, buscaram cumprir o disposto na lei. Tanto aqueles dispositivos presentes
na lei que constituiu a função, como os que ampliaram seu poderio, constantes nos
Códigos Criminais. Desde a função mais nobre, que, teoricamente, justificava a
necessidade de sua instituição nos quadros da administração judicial imperial, a
conciliação, até as agruras de não poder cumprir suas atribuições devido à guerra,
esses homens eleitos tentaram administrar uma porção da Justiça no sul do Brasil.
(CODA, 2012, p. 29).
Em Santa Maria, foram encontrados dois processos13 que ainda estão sendo analisados, são
processos de auto de devassa datados em 1832 e de autoria do Juiz de Paz André Ribeiro de Cordova, sendo
que o primeiro processo contém quarenta páginas, onde foi possível identificar o réu, denunciante, vítima,
Juízes de Paz e Juiz Ordinário. O segundo processo contém trinta e três páginas, onde costa os nomes dos
envolvidos, estão identificados da seguinte maneira: autor, morto, acusado, Juízes de Paz e Juiz Ordinário.
Uma vez que a Reforma do Código criminal de 1832 atribuiu poderes policiais e judiciais aos Juízes de Paz,
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Juízo de Paz Santa Maria da Boca do Monte (1831-1837). Maço 38. Correspondência enviada
ao Presidente da Província por Constantino José de Oliveira em 24 de fevereiro de 1835. [Texto original].
13 Ibid. PROC 0863 e PROC 0864.
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esses documentos afirmam que os Juízes de Santa Maria também atuavam nessas questões, recolhendo
provas e testemunhos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A instituição do Juizado de Paz inseriu-se dentro de um contexto de mudanças e o período inicial
aqui analisado pode ser considerado o auge de sua atuação, sendo que a partir de 1841 tem-se um declínio e
esvaziamento de poderes. A documentação referente ao Juizado de Paz nos possibilita entender os processos
de mudança pelos quais o sistema judiciário passou e como essas questões foram recebidas pela população.
No caso de Santa Maria, que no período analisado ainda ocupava a posição de distrito de Cachoeira do Sul,
podemos perceber que os Juízes de Paz foram figuras importantes para o desenvolver da sua história,
atuando como autoridades locais, autores de processos criminas e também identificados como atores
políticos devido ao seu contato com outras autoridades municipais na tentativa de conseguir demandas para
a população.
FONTES E REFERÊNCIAS
FONTES
ARQUIVO HISTÓRICO DE CACHOEIRA DO SUL. Fundo A – Câmara Municipal. Série B - CM/CP. Subsérie
3: CM/CP/TPJ 001.
__________. Fundo A – Câmara Municipal. Série D – CM/OF. Subsérie 1: CM/OF/A 001.
ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Fundo Justiça. Juízo de paz Santa Maria da Boca do
Monte (1831-1837). Correspondência. Maço 38.
REFERÊNCIAS
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2018. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal do rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS,
2018.
CERQUEIRA, Gabriel Souza. Reforma Judiciária e Administração da Justiça no Segundo Reinado (18411871). 2014, 104 p. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, RJ, 2014. p. 19-62.
CODA, Alexandra. O juiz de paz na esfera criminal - Porto Alegre (1832-1841). 2012. 51 p. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em História/Bacharel)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, RS, 2012.
__________. Os eleitos da Justiça: a atuação dos juízes de paz em Porto Alegre (1827-1841). 2012. 171 p.
Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2012
FARIA, Regina Helena Martins de. Os Juízes de Paz: concepções e práticas. VI Jornada Internacional de
Políticas Públicas. São Luis. Disponível em:
<http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo3estadolutassociaisepoliticaspublicas/osjuizesdepaz-concepcaoepraticas.pdf>. Acesso em: 24 de Ago. 2018.
MOTTA, Kátia Sausen da. O juiz de paz e a cultura política no início dos oitocentos (Província do Espírito
Santo, 1827-1842). 2013. 211 p. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal do Espírito Santo,
Espírito Santo, ES, 2013. p. 104-133.
RODYCZ, Wilson Carlos. O juiz de paz imperial: uma experiência de magistratura leiga e eletiva no Brasil.
Justiça e História. Porto Alegre. v. 3, n. 5, p. 35-72, 2003. Disponível em:
https://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judici
ario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v3n5/doc/02-Wilson_Rodycz.pdf>. Acesso em: 18
abr. 2018.
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NASCIMENTO. Joelma Aparecida do. Os “homens” da administração e da justiça no Império: eleição e
perfil social dos juízes de paz em Mariana, 1827-1841. 2010. 194 p. Dissertação de Mestrado (Mestrado em
História)–Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, p. 128, 2010.
__________. Herança e adaptação em uma vila do Império: Juízes de Paz, diversidade econômica e
hierarquias sociais. Mariana, Brasil (1827-1841). In: XXXI Encontro da Associação Portuguesa de História
Econômica e Social – Coimbra. Anais do XXXI Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica
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SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. O duplo papel da reforma judiciária de 1841: uma lei para a justiça e um
instrumento administrativo para o governo imperial. In: Anais do V Congresso brasileiro de história do
direito. Curitiba: IBHD. p. 412-424. 2013. Disponível em: <
http://www.ibhd.org.br/arquivos/anexos/VCBHD.pdf>. Acesso em: 26 set. 2018.
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Cartas e diários no teatro de operações: o cotidiano da guerra contra o
Paraguai no Rio Grande do Sul
Wagner Cardoso Jardim1
Universidade de Passo Fundo
Resumo: Entre 1864 e 1870 a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai foi o evento político, econômico
e militar mais importante em que aqueles países se envolveram. A historiografia, seja de viés militar ou não,
tem avançado muito nas interpretações sobre aquele conflito. Nos últimos anos, muitos bons trabalhos tem
surgido, contribuindo com novos olhares para esse tão importante evento. O corpo documental de que dispõe
os pesquisadores é enorme e vasto, vão desde documentos do Exército, como listas de recrutas, ordens do
dia, ofícios, etc, como da Guarda Nacional de todas as províncias. Também são fartos os documentos dos
diversos ministérios imperiais, como correspondências aos comandos do Exército e Marinha, bem como
desses com outros órgãos do Estado. Apesar dessa imensidão documental, são raros os documentos não
oficiais, como cartas e diários, produzidos por militares, sejam oficiais ou praças. Nesse trabalho,
apresentamos uma tentativa de sistematizar os poucos registros nesse sentido, que se referem ao período da
Guerra no Rio Grande do Sul. Apresentamos as formas como aqueles homens viam e viviam suas
angustiantes experiências no conflito.
Documentações pessoais, como cartas e diários, são belas fontes de pesquisa que ajudam a
complementar uma visão geral sobre determinado período ou acontecimento. Entendemos, porém, que essas
fontes, por si só, não são suficientes para uma abordagem mais global dos acontecimentos, que levem em
conta a totalidade como pressuposto teórico-metodológico. Isso, no entanto, não subtrai a importância
desses corpus documentais. Acreditamos que uma sincronização de diferentes fontes, como documentos
oficiais, fontes jornalísticas, documentos pessoais, entre outros, ajudam o melhor entendimento de um
objeto de pesquisa, sobretudo, se o pesquisador não eleger apenas uma tipologia de fontes para trabalhar.
No caso de diários e correspondências, acreditamos que a fonte, por seu caráter inicialmente privado,
traz elementos que outras documentações não trariam. Durante o conflito contra o Paraguai – 1863-1870 –
milhares de homens de todo o Império foram mobilizado para a região belicosa e ali permaneceram por
longo período, muitos tendo cumprido todo o período do conflito enfileirado. Nesses anos, muita
documentação foi produzida, sejam elas do exército, dos governos provinciais, das representações
diplomáticas, de jornais, do governo imperial ou, em menor número, de particulares, que elaboravam seus
diários e escreviam cartas para suas famílias. O conflito contra o Paraguai produziu infinitamente menos
correspondências do tipo pessoal do que a Guerra da Secessão, nos Estados Unidos, que ocorria no mesmo
período.2
Correspondências pessoais, eivadas de posicionamentos individuais e visões de mundo, devem ser
relativizadas em seu processo de análise. Ao mesmo tempo, esse tipo de documento nos permite um olhar
diferenciado do contexto em que foi produzida, impossível de se apreender por meio de outra documentação
– a oficial, por exemplo. Infelizmente para a historiografia da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai,
são raras as correspondências escritas por combatentes aliancistas, pelo menos que temos noticias ou que
tenham sobrevivido ao tempo. Isso muito se deve ao grande número de analfabetos nas fileiras imperiais,
dentre os quais, muitos escravizados e libertos.
Professor da rede pública estadual, Rio Grande do Sul. Formado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul. Mestre em História pelo PPGH da Universidade de Passo Fundo e doutorando na mesma instituição. Tem pesquisado sobre o
Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai e mais especificamente o envolvimento do Rio Grande do Sul naquele conflito.
wcjardim@hotmail.com
2 MAESTRI. Mário. Cartas desde o front da Guerra do Paraguai. Territórios e Fronteiras, nº1, jan/jun. 2009. pp.118-127. disponível em:
http://www.ppghis.com/territorios&fronteiras/index.php/v03n02/article/view/34/33. acesso em 6 nov.2018.
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O Rio Grande do Sul e a Guerra contra o Paraguai
Entre 10 de junho e 18 de setembro de 1865, as tropas paraguaias comandadas pelo tenente coronel
Antônio de La Cruz Estigarribia invadiram, dominaram e saquearam as vilas de São Borja, Itaqui e
Uruguaiana, na fronteira oeste da província do Rio Grande do Sul. Em 18 de setembro de 1865, o território
invadido foi retomado depois de prolongado sítio da vila de Uruguaiana – invadida a 5 de agosto. Encerradas
no povoado, as tropas invasoras, sem ter como guerrear, capitularam, entregando a aglomeração e rendendose como prisioneiros de guerra.
O efetivo dos exércitos aliancistas, diante de Uruguaiana chegaria a 30 mil homens de todas as
armas, já relativamente bem apetrechados. Enquanto no interior da vila penavam cerca de 5.500 paraguaios,
cansados, famintos, mal armados e sem disposição para guerrear. As negociações para a entrega da praça não
demoraram muito. Após a batalha de Jataí, arroio tributário do rio Uruguai, em 17 de agosto de 1865, na vila
argentina de Restauración (Paso de Los Libres), diante de Uruguaiana, do outro lado do rio, que resultou na
aniquilação de uma coluna do exército paraguaio, minguaria o ânimo dos já debilitados soldados. 3
A fronteira oeste da província, sob a responsabilidade do general David Canabarro, estava em
completo abandono.4 João Marcellino de Souza, presidente da província, determinou, genericamente, ao
brigadeiro David Canabarro e ao coronel Francisco Pedro de Abreu, comandantes da 1ª e da 2ª divisões do
Exército imperial, respectivamente, que escolhessem os melhores lugares para se fixarem com as tropas.
Ambos deviam defender grandes extensões de território. David Canabarro recebera carta branca do
presidente da província para agir conforme julgasse melhor; porém, Francisco de Abreu, a pedido de
moradores - seguramente de famílias abastadas - da fronteira Sul, foi fixado, com sua tropa, nas imediações
de Bagé. Região “mais rica e populosa do Rio Grande do Sul de então, coração da produção pastoril e
charqueadora”, o que explicaria a preferência na sua proteção.5
A situação das forças de defesa da fronteira era preocupante. Os corpos da Guarda Nacional, quando
não destacados, ou seja, à serviço do Exército, não eram remunerados pelo Estado. Não raro, tinham que
prover suas armas, cavalaria e fardamentos. Com os preparativos para guerra, houve necessidade de
recrutamento maciço. Nos corpos da Guarda Nacional, foram incorporados homens simples, sem condições
de comprar o material básico, exigindo do governo ou dos comandantes do corpo. Problema esse que
perdurou durante toda a campanha.
Em 2 de maio de 1865, após espalhar-se a notícia do rompimento das relações entre a República do
Paraguai e a Argentina liberal mitrista, o Ministro da Guerra do Império ordenou que todos os corpos do
exército marchassem sem demora para Uruguaiana, o que não aconteceu de imediato. 6 As autoridades
esperavam a invasão por aquele ponto. A fronteira era terra de ninguém. Nominalmente contava com forças
de defesa numerosas e organizadas - a realidade, porém, era outra.
Os reforços demoravam e a defesa era insuficiente. Nos dias da invasão, 10, 11 e 12 de junho, uma
pequena força de não mais que quatrocentos homens da Guarda nacional, apoiada a seguir pelo 1º Batalhão
de Voluntários da Pátria da Corte, praticamente sem treinamento, tentava impedir, sem sucesso e sem muito
esforço, a passagem do rio Uruguai pelos paraguaios. Não é certo se devido a essa pequena resistência, os
paraguaios esperavam que toda tropa transpusesse o rio, para invadir São Borja. 7
3 MAESTRI, Mario. De Yatay a Cerro-Corá: Consenso e dissenso na resistência militar paraguaia. Estudios Historicos – CDHRPyB, Nº
11, Uruguai, Dez. 2013.p.8-9. Disponível em <http://www.estudioshistoricos.org/11/art.1%20de%20yatay%20a%20cerro%20cora%20%20maestri.pdf > Acesso em 13 nov.2015.
4JARDIM, Wagner Cardoso. David Canabarro, o antiherói imperial na guerra contra Paraguai. Estudios Historicos - CDHRPyB, nº19,
Uruguai, Jul. 2018.p.12. disponível em: http://www.estudioshistoricos.org/19/eh1907.pdf acesso em 06 nov.2018.
5 GAY, Cônego João Pedro. A invasão paraguaia [...].Ob.cit.p.164.
6 FRAGOSO, Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. Ob.cit.p.105.
7 FREITAS, Osório Tuyuty de Oliveira. A invasão de São Borja. Porto Alegre: A Nação, s/d.p.90
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Cartas e diários: raridades nas fileiras aliancistas
Nesse texto, elegemos a documentação produzida em meio ao conflito, no Rio Grande do Sul ou que
estivessem ligadas à essa província. Nesse momento, apenas vamos nos ater ao conteúdo do que ali foi
expresso. Essa documentação se refere a cartas e diários escritos por três militares distintos e quase na
mesma época. São eles: as cartas escritas por Carlos Jacob Schnell, militar de origem alemã, morador do Rio
Grande do Sul, adido ao 12º batalhão da Guarda Nacional de São Leopoldo; o diário de Francisco Pereira da
Silva Barbosa, que veio do Rio de Janeiro com o 1º Corpo de Voluntários da Pátria e o diário do coronel
Manuel Lucas de Oliveira, líder político rio-grandense que recebeu permissão do governo imperial para criar
dois corpos de Voluntários da Pátria no Rio Grande.
Carlos Jacob Schnell, jovem colono de origem alemã, participaria da guerra contra o Paraguai.
Engajado na 5ª companhia do 12º batalhão da Guarda Nacional de São Leopoldo, como furriel. Em sua
correspondência pessoal, destinada à família, deixou-nos preciosos relatos da vida no acampamento,
registrando a visão de mundo de um soldado, vivendo situações atípicas junto a seus companheiros alemães.
Ferido na batalha de Curupaity, em 22 de setembro de 1866, morreria em 17 do mês seguinte no hospital em
Corrientes.
Oriundos de Stralsund, na Pomerânia, os Schnell se estabeleceram em São Leopoldo desenvolvendo
a atividade oleira e agricultura de subsistência. À época em que ocorreu o conflito com o Paraguai seriam
colonos de remediada posição, tendo, provavelmente, no futuro lançado mão da acumulação de capital pela
atividade na olaria e investido em lotes fundiários, como de costume entre os colonos enriquecidos. A boa
condição da família Schnell chamaria a atenção de familiares empobrecidos que viviam na Europa. Lá, a dura
condição de vida aos trabalhadores, com altos preços das mercadorias, o desemprego e a fome, no imediato
pós-guerra austro-prussiana, estimulava o desejo de melhorar de vida nessa parte do mundo, como ficaria
registrado naquelas correspondências.
Entre 16 de outubro de 1864, ainda em Porto Alegre e 26 de julho de 1866, Carlos Schnnel escreveu,
salvo engano, 26 cartas à família, a maior parte ainda em território rio-grandense, onde sequer participaram
de combate e passaram meses estacionados, em completa imobilidade. Nessa condição, acompanharam a
invasão da fronteira de São Borja e a rendição paraguaia em Uruguaiana. Já no Paraguai, o combatente
teuto-brasileiro, receberia uma das poucas cartas da família, assinada pelo pai, com notícias da colônia. E,
finalmente encerrando as correspondências da família Schnell, em 12 de março de 1867, Manuel Barth, em
resposta aos aflitos pedidos de informações daquela família, informava que o jovem Carlos Jacob Schnell
estava morto devido a ferimentos em uma das pernas.
Francisco Pereira da Silva Barbosa nasceu em 2 de abril de 1843, no Rio de Janeiro. Filho de Zeferino
Pereira da Silva, alferes da Guarda de Honra de Pedro 1º, e de Rosa Soares da Silva. 8 Francisco trabalhou em
casa comercial no Rio de Janeiro até fins de 1864. Quando da publicação do decreto que criava os corpos de
Voluntários da Pátria – decreto 3371, de janeiro de 1865 – Francisco Pereira ainda se encontrava naquela
cidade. Ali incorporou-se às fileiras do 1º Corpo de Voluntários da Pátria. Ficou aquartelado no “Quartel de
Sant’Anna”.9
Aquele corpo de voluntários era composto, na sua grande maioria, por pessoas totalmente alheias aos
serviços militares e comandado pelo experimentado coronel João Manoel Mena Barreto. Tendo assentado
praça apenas em 17 de fevereiro de 1865, dias depois foi autorizado a usar distintivo de “soldado particular”.
A falta de militares experientes para ocupar postos minimamente elevados fez com que Francisco Barbosa,
talvez por ser um dos poucos letrados, logo fosse elevado a sargento de sua companhia. Em 9 de março
chegavam à Rio Grande, onde sem nunca ter atirado com uma arma, foi elevado a sargento.
Em 24 de março, já 2º sargento, embarcou para Porto Alegre. Marcharam para a fronteira de São
Borja, provavelmente após serem conduzidos em embarcações até Rio Pardo, limite da navegabilidade
DIÁRIO
DA
CAMPANHA
DO
PARAGUAI
de
Francisco
Pereira
da
Silva
Barbosa.
http://www.forumnow.com.br/vip/mensagens.asp?forum=125774&topico=2964054. Acesso em 17 de out.2018.
9 DIÁRIO DA CAMPANHA DO PARAGUAI de Francisco Pereira da Silva Barbosa.Ob.cit.
8
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naquela época. Em 10 de junho chegaram às imediações de São Borja, onde depois de avisados, correram
para tentar impedir, sem muito sucesso, a invasão paraguaia. Francisco Pereira da Silva Barbosa iria até o
fim do conflito, galgando postos não superiores a de oficial de segunda classe. 10 O que era comum a quem
não possuía riquezas e títulos nobiliárquicos.
Manuel Lucas de Oliveira nasceu no Povo Novo, 1797 e morreu em Rio Grande, em 1874. Um dos
líderes da Farroupilha, 1835-45, estancieiro na região sul da província onde era capitão da Guarda Nacional
ao estourar a revolta.11 Encerrada a guerra coma assinatura, apenas pelos rebeldes, do tratado de paz, Lucas
de Oliveira não galgou tanto prestígio como seus companheiros de revolta, entre eles David Canabarro e
Antônio de Sousa Neto. Isso se materializou em sua inexpressiva ascensão nos cargos do Exército, como
pretendia. Quando do início do conflito contra as Repúblicas do Uruguai e Paraguai, sendo convidado por
companheiros de armas a se juntar ao exército, manifestava que só o faria mediante reconhecimento de seu
valor pelo governo imperial.12
Em suas atividades econômicas, além da criação de animais e agricultura, de feijão, milho, pêssegos,
iniciava atividade de produção de cal para construção. Em janeiro de 1865, após ser publicado na província,
por meio dos jornais, o decreto que instituiu os Corpos de Voluntários da Pátria, Lucas de Oliveira viu ali
uma possibilidade de obter prestígio e muito provavelmente aumentar suas riquezas. Ofereceu ao governo
seus serviços para a criação de dois corpos desses voluntários no Rio Grande do Sul.
Em 30 de janeiro de 1865, já tendo enviado solicitação para recrutar Voluntários da Pátria, Lucas de
Oliveira anotou encontro com o presidente da província. O governante pedia-lhe auxílio para reunião de
gente “aos comandantes de Canguçu e Piratini”. Sem meias palavras teria respondido que “não estava
disposto a trabalhar sem vantagens.” 13 Estava claro que suas intenções eram de cunho pessoal e não por
qualquer espécie de patriotismo. Lucas de Oliveira não media suas palavras, pelo menos no diário. Em 18 de
abril, ao referir-se aos que dirigiam a guerra anotou: “nenhum deles presta para nada, e por isso me não
subordino a ser comandado por esses imbecis”.14 Não poupava seus inimigos políticos a quem considerava
“inábeis”. Certamente sentia-se injustiçado por não ter adquirido lugar no exército, assim como seus amigos
e seus contrários.
Após longa espera – na qual já escrevia e visitava incansavelmente parentes e amigos em busca de
Voluntários - teve a solicitação aceita em julho de 1865. Aparentemente, por motivos não conhecidos, Manuel
Lucas de Oliveira não marchou para o Paraguai com os homens que ajudou a recrutar. Em 11 de junho de
1866 foi dispensado do serviço de campanha pelo general chefe do 2º Corpo do Exército, barão de Porto
Alegre.15 No que diz respeito ao cotidiano do recrutamento e da vida em ambiente militar, o diário de Lucas
de Oliveira é pouco generoso.
A vida no acampamento
As condições de vida nos acampamentos eram bastante dificultosas, seja pela angustiante demora,
pela fatigante marcha, pelo excesso de chuvas ou calor, pela fome, pela falta de dinheiro do soldo, pelas
constantes doenças que acometiam os corpos, pela saudade de casa, da família, enfim, uma infinidade de
motivos poderia transformar a vida dos militares acampados, em especial, os com menos recursos, num
tormento.
Em meados de outubro de 1863, o 12º Corpo de Cavalaria da Guarda Nacional, de São Leopoldo, da
qual Carlos Schnell fazia parte iniciou sua preparação em Porto Alegre e logo marchou em direção ao teatro
MAESTRI, Mario. Silva Barbosa Diário de um Voluntário na Guerra contra o Paraguai Da defesa de São Borja à Morte de Francisco
Solano
López.
Disponível
em:
https://www.academia.edu/26758649/Silva_Barbosa_Di%C3%A1rio_de_um_Volunt%C3%A1rio_na_Guerra_contra_o_Paraguai._Da
_defesa_de_S%C3%A3o_Borja_%C3%A0_Morte_de_Francisco_Solano_L%C3%B3pez. Acesso em 17 de out.2018.
11 BIOGRAFIA de MANUEL LUCAS DE OLIVEIRA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Lucas_de_Oliveira. Acesso
em 17 de out.2018.
12 DIÁRIO do coronel MANUEL LUCAS DE OLIVEIRA. 1864-1865. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Est, 1997.
13 DIÁRIO do coronel MANUEL LUCAS DE OLIVEIRA.Ob.cit.p.34.
14 Id.ib.,p.50
15 Id.ib.,p.23.
10
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de operações. Desde Porto Alegre, o batalhão acampou em Rio Pardo, Passo da Areia, Sete Almas, Restinga
Seca, Paim, Arroio do Sol, entrada de Santa Maria e Várzea de Santa Maria. Em princípios de dezembro de
1864, chegaram à Santa Maria da Boca do Monte, após mais de um ano da organização e início da marcha.
Ao que tudo parece a grande dificuldade da marcha era a falta de cavalhada, problema que atingiria outros
corpos ao longo daquela campanha. Já em uma de suas primeiras cartas, Carlos Schnell reclamava de saber
quando marchariam. Dizia: “Estamos a pé”.16 O estado de desorganização que grassava sobre o Império em
épocas de paz, tornou-se tragédia durante o conflito. Em meio a acusações de corrupção e superfaturamento
no fornecimento de cavalos para o exército, vários corpos ficaram desabastecidos. A falta de cavalhada foi um
grande problema naquele conflito, no entanto, a grande demora daquele batalhão parecia estar ligada a
outras questões. Posteriormente, seu comandante seria levado a conselho de investigação.
A situação da falta de cavalhada no exército chegou ao ponto de, em alguns casos, os próprios
recrutas, com condições, comprarem seus cavalos. Carlos Schnell reclamava que em meio a falta de montaria
“cada um [tinha] que se virar por si”. 17 Em correspondência de 7 de dezembro de 1865, o jovem pedia à
família, informações sobre o preço dos cavalos ,pois pretendia “voltar até fevereiro” caso “os preços”
estivessem bons.18 Não é possível, porém, tomar como parâmetro o dito batalhão nº 12 de São Leopoldo,
sobretudo, em relação a seus componentes teuto-brasileiros de boas famílias. Se para alguns, como o jovem
Carlos Schnell, era possível, em meio a evolução do seu batalhão, cogitar comprar seus próprios cavalos, para
outros, oriundos de famílias empobrecidas, em geral, dependentes do soldo para alimentar a família,
comprar cavalo era impensado.
O Rio grande do Sul tinha como principal arma de guerra a cavalaria. Importante força lutou
praticamente todas as guerras da região platina. Era temida, mas a poderosa cavalaria rio-grandense, ao que
parece, estava restrita ao meridião da província. Lá onde os grandes estancieiros mobilizavam e tinham sob
seu comando milhares de homens à cavalo. Naquele momento, a demanda por cavalhada crescia em toda a
província, com isso, os preços também tendiam a aumentar significativamente. Junto a isso veios sobre a
região um terrível e chuvoso inverno, debilitando ou matando muitos animais, contribuindo para o aumento
dos preços. O cansaço e a parca alimentação também podem ter contribuído para as mortes dos cavalos. Em
27 de dezembro, recém chegado à Santa Maria, após 7 dias de marcha, Carlos Schnell, informava à família
que “os cavalos morreram quase todos”. Avaliava que se o comandante não conseguisse “dinheiro nem
cavalos”, a “perspectiva de seguir marchando” não era boa. 19 Sua análise não era incorreta, pois
permaneceram em Santa Maria até 6 de fevereiro de 1866, ou seja, estiveram em completa inatividade por
dois meses.
Desinformados
Em muitas situações, a informação é poderosa arma, assim suprimi-la pode ser recurso para manter
ou evitar consenso sobre determinado assunto. É comum que os soldados, sejam sempre os últimos
informados dos acontecimentos e decisões - quando não são totalmente tolhidas - mesmo as de seu
particular interesse. Durante o recrutamento, muitos ilícitos foram cometidos, alistamento de menores, de
casados, de único arrimo de família, etc., o que era proibido por lei. Era consenso entre os participantes
daquele conflito a brevidade do mesmo. Isso percorria o imaginário dos comandantes e dos soldados, pois,
não havia qualquer motivo para se acreditar em uma guerra prolongada devido às características dos
conflitos da região, resolvidas, em geral com uma grande batalha.
Não é impossível que devido a essa abstração de conflito muitos se tenha deixado recrutar, mesmo
irregularmente, para garantir um ganho financeiro, vantagens oferecidas pelo governo ou mesmo status. Em
registro positivo do imaginário que permeava os acampamentos, Carlos Schnell, em 22 de dezembro de 1864,
em carta à família, acreditava que o fim estava próximo. Dizia que esperavam “poder retornar para casa até o
Id.ib.,p.141.
Loc.cit.
18 SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.158.
19 Id.ib.,p.166.
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inverno, pois os comandantes casados já [estavam] autorizados a deixar suas guarnições”. 20 Era legítimo que
a essa altura dos acontecimentos, com a questão no Uruguai praticamente liquidada e sem ameaças
detectadas às fronteiras da província se alimentasse a esperança de retorno ás suas casas.
A dispensa dos casados, motivo da euforia do jovem alemão, era um engodo. Naturalmente, no
contexto em que estavam, a chegada de notícias daquela dispensa era interpretada como a proximidade do
final da guerra. Porém, o que não era divulgado, era que provavelmente, os comandantes pressionados
política e militarmente e confiantes no fim do conflito, cederam e liberaram os recrutamentos ilegais,
detectados desde o início da organização daquele corpo. Parece razoável que, no acampamento, ou em
marcha, os soldados não possuíssem muitas informações sobre os acontecimentos da guerra.
Não há registros, nem mesmo nas cartas ora analisadas, da presença de comerciantes acompanhando
a tropa. A presença destes, em geral, é sinônimo de informação, pois, mantêm contato comerciais com outros
pontos do Império. Jornais poderiam circular pelo acampamento, porém não é certo que soubessem ler em
português. Esperavam que as notícias viessem de suas casas, possivelmente melhor informados. Em 27 de
dezembro de 1865, Carlos Schnell, dizia à família: “Notícias da guerra eu não tenho, acredito que vocês
ouvem mais a respeito do que eu”. 21 Materializando o quão alijados de informações estavam, concluía
dizendo que não acreditava que chegariam no Paraguai e esperava voltar para casa “antes do inverno”.22
Durante todo o período que estiveram em marcha e estacionados em diversos lugares da província,
ocorreram importantes acontecimentos da guerra. Em 10-12 de junho os paraguaios invadiram São Borja e
marcharam sobre Uruguaiana, rendendo-se nessa em 18 de setembro. Não há, nas cartas publicadas,
nenhuma referência a qualquer evento desse período. Há um lapso temporal entre as correspondências, no
período entre 15 de janeiro e 18 de outubro. Verificando-se a assiduidade com que o jovem Carlos Schnell
escrevia é provável que tenha havido extravio de correspondência. É bastante provável que algumas cartas
tenham se perdido ao longo dos anos e mesmo no trajeto entre acampamento e a casa da família, o que não
deveria ser incomum no precário sistema de postagens existente na época. Não raras vezes, as cartas
remetidas nem sequer saíam do acampamento, perdidas em meio à desorganização. Outras vezes, as cartas
chegavam ao destino em péssimas condições, molhadas, sujas ou rasgadas, como atesta o jovem alemão.
Em seu diário, o coronel Manuel Lucas de Oliveira também deixou anotar acontecimentos
importantes que ocorriam na província na época em que ele organizava seus voluntários. Nenhuma linha foi
escrita sobre a invasão e avanço paraguaio sobre o Rio Grande do Sul e as inoperâncias da defesa. Apenas em
23 de setembro, anotou o recebimento de notícias sobrea “vitória” aliancista em Uruguaiana, da qual não
sabia “se houve fogo”.23
Na mesma época em que o 12º Batalhão da Guarda Nacional, de São Leopoldo, estacionava por longo
período em Santa Maria, o 1º de Voluntários da Pátria, chegava na província e marchava em direção à São
Borja. Essas duas forças encontravam-se em condições bastante distintas. Os voluntários do 1º corpo
estavam em marcha há vários dias, e ao chegar nas proximidades de São Borja, souberam que os paraguaios
invadiam naquele momento a província e foram levados ao batismo de fogo. Após tentativa frustrada de
impedir a entrada dos invasores, com tão pouca gente, a saída foi bater em retirada escoltando as famílias
que também fugiam às pressas em direção à Alegrete.
Francisco Pereira da Silva Barbosa, pertencente àquele corpo, descreveu aquela situação. Dizia:
“Sofremos muito de S. Borja até a barranca do [rio] Itú. Muitas vezes mal arriávamos as mochilas,
tornávamos a levantá-las e a marcha sem carnear. Outras vezes depois de mortas as rezes, éramos avisados
que o inimigo estava próximo. Mal tínhamos tempo de dividir a carne e carregávamos crua, até ao novo
acampamento, em que na maior parte, faltava a lenha, aproveitando nós os estrumes secos das animais para
assar a carne ou fazer o cozido ficando com um cheiro e sabor desagradável”. 24
Id.ib.,p.141.
Id.ib.,p.166.
22 Loc.cit.
23 DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira 1864-1865. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Est, 1997.
24 DIÁRIO DA CAMPANHA DO PARAGUAI de Francisco Pereira da Silva Barbosa.Ob.cit.
20
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Situação que não era regra, por nem sempre andarem aos apuros correndo dos invasores, mas que
deve ter assustado muitos daqueles homens que sequer tinham aprendido a atirar. Quanto às péssimas
condições do alimento, isso sim, era uma constante. Pouca e nada diversa, a comida era uma das principais
reclamações dos soldados. As vezes o número de reses carneadas não eram suficientes para alimentar a
tropa.
Carlos Schnell viveu em condições muito diferentes disso. Exceto nas primeiras correspondências,
onde reclamava bastante da comida fornecida, Carlos Schnell, viveria, segundo ele próprio, muito bem no
acampamento. No conjunto de suas cartas são raras as informações negativas, privilegiando sempre
assegurar aos familiares, sua boa condição. Registrava, sempre que podia, o desejo de retornar para casa e,
sobretudo, nas primeiras cartas, mostrava-se sobremaneira saudoso. No geral, o redator afirmava que o que
mais o entristecia era o ambiente “um tanto enfadonho”. 25 As cartas representavam, para quem soubesse ler
e escrever – realidade dada à poucos – uma maneira de estarem próximos de casa, de enviarem e receberem
notícias. Em 15 de janeiro de 1865, em carta mal endereçada de Santa Maria, o jovem Carlos pedia à família
que ao escreverem se alongassem, pois, segundo ele, as “cartas” eram a sua “diversão”. 26 Essa carta foi
escrita, provavelmente, em Rio Pardo ou a caminho.
Em melhores condições
O ambiente de guerra por si só é terrível, saber que enfrentará outro exército e que o risco de morte é
grande torna o cenário ainda mais tenso. A guerra contra o Paraguai inaugurou um conceito de guerra total,
de longa duração. Até então, não comum, na região platina, as tropas ficarem inativas por muito tempo. A
carência de efetivos era grande e a marcha demasiadamente demorada. O 12º Corpo de Cavalaria esteve
exatamente 1 ano e 5 meses em marcha desde Porto Alegre até atravessarem o rio Uruguai, em São Borja, em
8 de março de 1866. Tal inatividade, além de retirar força ativa do exército aliancista, em momento de
grande necessidade, inutilizava material e animais.
Realidade semelhante ocorrida com os corpos de voluntários recrutados por Manuel Lucas de
Oliveira. Em janeiro de 1866, meses após a organização oficial dos corpos, já há muito mobilizados
extraoficialmente, as forças de Manuel Lucas ainda não tinham incorporado ao Segundo Corpo do Exército,
sob comando do general barão de Porto Alegre, então em São Borja. Aquela demora motivou ordem de
inspeção, do governo provincial, que determinou marcha imediata. 27
Nesse lapso, os soldados viviam as angústias e as incertezas inerentes ao confinamento. Essas,
infelizmente não registradas por Lucas de Oliveira e por Francisco Pereira, mas abundantes no relato do
jovem leopoldense. As experiências do jovem Carlos Schnell, no entanto, não servem de parâmetro, para
analisar como viviam os Guardas Nacionais engajados. O jovem furriel teuto-brasileiro, que em carta de 10
de janeiro de 1866 afirmava ter “firmemente tomado” a “decisão de lutar pela pátria e pela honra”,
certamente estava ali por motivos diversos de muitos de seus companheiros. 28 Os motivos que levaram
milhares de homens àquela cruenta guerra são os mais diversos possíveis. Desde o recrutamento forçado,
legal ou ilegal, privando as famílias de seus entes, muitas vezes únicos provedores, até alistamentos
voluntários de quem enxergava na vida militar uma solução para prover alimentos para si e sua família.29
No 1º Corpo de Voluntários, as condições eram precárias. Ao chegarem em Alegrete, cansados e
famintos, estavam extremamente debilitados. Registrou em seu diário que: “O Batalhão chegou à Vila de
Alegrete todo roto e esfarrapado, foi preciso passar uma revista e o soldado que estava com a blusa e a calça
em melhor estado, cedeu o capote ao que estava quase nu, entraram muitos com roupa à paisana e capote por
25 SANT’ANA, ELMA. Minha amada.Ob.cit.p.143.
26 Id.ib.,p.142.
27 DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira[...]Ob.cit.p.22.
28 SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.p.169.
29 AHRS. Correspondência de João José Pereira, 1865. Assuntos militares, maço 187; BECKER, Klaus. Alemães e descendentes do Rio
Grande do Sul [...]Ob.cit.p.157.
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cima, por ter de emprestar a sua farda ao companheiro, muitos descalços e outros de alpercata de coro cru,
amarradas com correias também cruas”.30
É possível que, no caso do jovem Carlos Schnell, sua escrita revele o desejo de construir uma carreira
militar de sucesso e deixar de depender da labuta na olaria ou na produção agrícola da colônia. Ao que
parece, Carlos era o filho primogênito de uma família de colonos remediados de São Leopoldo. A
possibilidade de alcançar elevado grau militar na Guarda Nacional não seria fantasiosa, pois, nas regiões de
colonização alemã, ao contrário do restante da província e do Império, os altos cargos de comandância não
acompanhavam a hierarquia socioeconômica dos colonos.31
A história da participação de alemães e descendentes nas guerras do Império era longa e repleta de
acusações e reclamações de parte à parte. Os chamados Brummers, que lutaram na guerra contra o ditador
Juan Manoel de Rosas, eram conhecidos por sua insubordinação e reclamações, sobretudo quando do atraso
no pagamento dos soldos, cruel tradição no exército imperial. A partir dali a participação teuta nas guerras
imperiais seria sempre controversa e recheada de contradições. Segundo o jovem Carlos Schnell, em 18 de
outubro de 1865, no acampamento em marcha, na direção de Rio Pardo, a comida que até então era de boa
qualidade ficou ruim e por isso reclamaram. Diz: “Nós não ficamos conformados com isso e não aceitamos a
carne ruim”.32 Segundo o colono nos próximos dias a comida melhorou e não houve registro de novas
reclamações.
Naquele corpo de cavalaria, composto em sua maioria de alemães e descendentes verificou-se que o
tratamento dispensado aos soldados era diferenciado. Apesar da paradoxal visão romantizada do jovem
Carlos Schnell, não nega-se que o ambiente ali vivenciado era, ao mesmo tempo tenso pela proximidade da
guerra e leve com toque de descontração pela presença de amigos e conterrâneos. Referindo-se ao
comandante do corpo dizia: “Ele nem pode nos tratar melhor, nos considera filhos e não soldados” e
arrematava dizendo que não lhes faltava nada.33
Em flagrante sinal de que eram dispensados tratamentos diferentes para os não alemães, o jovem
revelava que eles, os teutos, respeitavam muito seu comandante, mas que entre os “soldados de cor ele não
[era] mais tão bem quisto.34 Há grande possibilidade de que a visão do jovem Carlos Schnell sobre esses
acontecimentos fosse prejudicada por fatores emocionais e sentimentos amistosos para com o comandante.
Paradoxalmente ao que antes expunha, o jovem alemão revelou em diversas cartas as constantes deserções,
tanto de brasileiros quanto de alemães. Deduz-se que nem todos pensavam e/ou recebiam o mesmo
tratamento. Vivendo realidade diversa de muitos de seus patrícios, Carlos assegurava que não desertaria
“sem uma justificativa maior”.35
Manuel Lucas de Oliveira, como dito, pouco escreveu sobre a tropa a que, com tamanha dificuldade,
arregimentava. Em uma dessas poucas vezes, registrou que o voluntário “José pompeu” foi preso “por ter
feito turbulência e puxado faca” e que seria “expulso dos Voluntários da Pátria, por indigno de pertencer a
essa classe”.36 Não maiores informações de quem seria aquele voluntário, nem do motivo de sua
“turbulência”.
Situação Singular
Aos poucos, as cartas revelavam que a vida do furriel Carlos Schnell vivia situação singular naquela
corporação. Em 6 de dezembro de 1865, após demorada marcha de mais de um ano, o corpo nº 12 da Guarda
Nacional chegava a Santa Maria. Nesta localidade residiam muitos alemães e descendentes, já em dispersão
pela província. Aquele corpo teria sido recepcionado com flores e banda de música. Muitos moradores de
DIÁRIO DA CAMPANHA DO PARAGUAI de Francisco Pereira da Silva Barbosa.Ob.cit.
MUGGE, Miqueias Henrique. “Gostaria de se tornar tenente”, oficiais da Guarda Nacional um perfil socioeconômico do Brasil
Meridional (1850-1870). História Unissinos. Vol.16, nº3, setembro/dezembro de 2012.p.316.
32 SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.146.
33 Id.ib.,p.146.
34 Id.ib.,p.154.
35 Id.ib.,p.160.
36 DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira[...]Ob.cit.p.90.
30
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Santa Maria eram oriundos dos primeiros núcleos de colonização alemã, por isso, não seria difícil que ali
encontrassem parentes, como de fato ocorreu. Em Santa Maria vivia um primo de Carlos, Bernardo, mais um
motivo para que o jovem se sentisse praticamente em casa.
Ao contrário da maioria de seus companheiros de armas, o jovem Carlos passou dois meses
agradáveis na presença de familiares. O estado de ânimo do jovem alemão era tal que em carta de 3 de
fevereiro de 1866, revelava à família o seguinte: “Já estamos há dois meses ‘jogados’ aqui e mesmo assim
ainda não estou aborrecido”. É relativamente fácil compreender o conformismo do jovem Carlos Schnell, pois
apesar de frequentemente registrar a saudade da mãe, pai, irmãos, sobrinhos e primos, não deixou na colônia
mulher e filhos, como tantos outros. Para ele, a aventura de participar do conflito, sobretudo, quando se
pensava em rápido retorno, na companhia de outros jovens, parente e amigos, compartilhando mesma língua
e costumes, poderia representar acumulo de experiência e maturidade. Como prova de crescimento, de
responsabilidade por afazeres cotidianos, o jovem escreveu em 13 de janeiro de 1866, desejando que seus
familiares soubessem como ele e seus camaradas se viravam nos “afazeres domésticos, como cozinhar, lavar e
preparar panquecas”.37
Uma vez em Santa Maria, o primo Bernard teria o acolhido e proporcionado momentos agradáveis.
Demonstrando que tinha facilidade em licenciar-se do corpo para visitar o primo, Carlos registrou que desde
que chegaram a Santa Maria “não se passou nenhum domingo ou dia livre” que não o visitasse. 38 Sua
realidade e, possivelmente, de muitos de seus camaradas de origem alemã, era diversa da maioria da tropa,
sobretudo os brasileiros, negros escravizados ou livres, mas também alemães empobrecidos. Esses, devido às
constantes deserções eram, seguramente, vigiados e tinham liberdade restrita. Guardadas as devidas
proporções das descrições feitas por Carlos Schnell, pode-se concluir que a 5ª companhia do 12º corpo onde
servia o furriel, não conheceu, até o cruzamento da fronteira, situação de privação, típica de acampamentos
militares. O ambiente em sua companhia lhe era agradável de tal forma que Carlos desejava não ser
promovido a 2º sargento, conforme estava habilitado, “por causa de [seus] camaradas”. 39
Francisco Pereira de Abreu fez importante registro sobre as dificuldades da marcha e das fugas
precipitadas, carregando pesadas mochilas e atravessando rios em meio ao inverno. O jovem Schnell estava
em outra condição, como já referimos, muito em função da falta de mobilidade do corpo em que estava.
Situação semelhante, de imobilidade, em boa medida pelas dificuldades de organizar os corpos a que se
dispôs, vivia o coronel Manuel Lucas de Oliveira. Esse, talvez esperasse imóvel o desenrolar da guerra, que se
pensava acabar ou pelo menos desmobilizar muita gente após a rendição em Uruguaiana. Mesmo sem muitas
informações sobre o cotidiano da tropa, em alguns momentos ficou explícito as diferenças entre oficial e
tropa. Enquanto, provavelmente parte dos recrutados, vivia dias de tensão e dificuldades nos acampamentos,
na proximidade de Pelotas, o coronel Lucas de Oliveira com frequência ia para sua estância ou para
propriedades próximas, para passar a noite e “escrever”.40
Deserções
Como proposto, a situação vivida por Carlos Schnell e seus camaradas, era singular, não
correspondia ao grosso daquelas forças. O próprio furriel alemão registrou em suas cartas constantes
deserções, não só de luso-brasileiros, chamados por ele de “azuis”, como de alemães. Salvo engano e extravio
de documentação, até novembro de 1865, o jovem não registrou deserções no corpo ao qual pertencia. Porém
dali em diante os registros foram frequentes. Os motivos que levavam à deserção são muitos e variavam
conforme os interesses e necessidades dos combatentes. Apesar de não conhecer na prática os problemas,
Carlos Schnell registrou diversas situações que poderiam estimular o desejo de desertar. Como ficou
registrado, o 12º Corpo de cavalaria esteve inoperante, fazendo pequenas marchas e longas paradas por falta
de cavalhada. Esse efetivo deveria marchar especialmente montado, no entanto nada impedia que, na falta de
SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.172.
Id.ib.,p.181.
39 Id.ib.,p.169.
40 DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira[...]Ob.cit.p.94.
37
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animais, fossem obrigados a ir de marche marche, por lugares íngremes e carregando mochila e o pesado
fuzil de quinze quilos.
Além disso, como visto o sistema de recrutamento, em geral, desrespeitava a legislação e arrolava
homens isentos. Nesse caso, estavam homens casados, arrimos de família, filhos de viúvas e únicos sustentos
da casa e aqueles que tivessem cumprido o período obrigatório no exército de 1ª linha. Existem dois grandes
grupos de homens recrutados para o exército, os por consenso e os forçados. Cada um desses grupos podem
se subdividir em outras subcategorias. É provável, no entanto, que a grande motivação da fuga entre os
engajados com o mínimo de consenso, de forma legal, fosse o reiterado e prolongado atraso no pagamento do
soldo. Como apenas proposto, muitos recrutas tinham compromissos com suas famílias e dependiam do seu
ordenado.
As cartas do jovem furriel leopoldense estão repletas de casos de deserções. Em 6 de novembro de
1865, registrou que de uma só vez “desertaram 22 homens de ‘nossos’ irmãos alemães”. 41 Na ocasião, os
fugitivos teriam escrito uma carta e deixado na barraca do capitão. O texto, segundo Carlos, dizia: “Preado
capitão não podemos mais empunhar armas sem receber soldo, pois estamos sem dinheiro, e se aqui já não
recebemos mais o soldo a situação ficará [grave]” 42 Emitindo juízo de valor sobre o que os diferenciava dos
brasileiros, Carlos Schnell afirmava que os alemães eram “mais atrevidos que os azuis”. 43 Talvez a diferença
estivesse no fato de que a falta do soldo fosse a única coisa que impedia os alemães de ficarem, enquanto aos
demais, inclusive possíveis negros livres ou libertos, certamente teriam motivações diversas. Além disso, e do
compromisso moral que os alemães poderiam ter com os compatriotas, era quase impossível que os soldados
não alemães soubessem escrever.
Ainda sobre a carta seguida de deserção, é preciso apreciar esse fato com bastante cautela para não
incorrer em erros de interpretação devido a aparência do fato. É preciso pensar sobre os objetivos dos
alemães ao fugirem em grande grupo e deixarem correspondência explicita de que o faziam por causa da falta
de pagamento. Essa pode ter sido uma das formas encontradas pelos soldados de chamar a atenção para o
fato e não o desejo profundo de fugirem. Isso é corroborado pela informação do próprio Carlos de que no dia
seguinte à deserção, iriam receber o soldo. Tal hipótese é fortalecida pela informação de que no dia 18 de
novembro, doze dias após a fuga, foram capturados 19 desertores e que “não receberam castigos” 44 O
documento não deixa claro se fugiram à cavalo ou não, mas a julgar pela rápida recaptura e ausência de
punição é possível que fugissem sem os cavalos, como de costume, e também que tivessem se deixado
capturar. A fuga em cavalos, sobretudo se com destino conhecido e seguro era quase impossível de ser
alcançada quando tardiamente detectada. Na mesma correspondência, o jovem reatava a fuga de “3 azuis”
“que não foram mais localizados por que estavam com boas montarias”. 45
As liberações dos casados e as deserções que com o passar dos dias se intensificavam fez reduzir
drasticamente a 5ª companhia do 12º Corpo de Cavalaria da Guarda Nacional de São Leopoldo. Em 13 de
dezembro de 1865, teriam apenas 29 homens e segundo o furriel Carlos Schnell: “Se ficássemos acampados
por mais 14 dias, então teríamos apenas 4 homens”.46
Manuel Lucas de Oliveira, que em dezembro de 1865, após quase um mês da ordem de marchar para
a fronteira de São Borja, ainda encontrava-se imóvel nas proximidades de Pelotas registrou poucas deserções
em seu diário. Em 23 de dezembro escreveu brevemente que três alemães desertaram.47 Na região de Pelotas
havia muitos descendentes de alemães que foram incorporados aos voluntários, as vezes de forma nada
voluntária. Isso ficou registrado em reprimenda do governo provincial ao próprio Manuel Lucas de Oliveira e
seus oficiais subordinados, com autorização de recrutamento. Eles foram acusados de recrutar como
voluntário mesmo quem não desejasse ser. Isso, também pode ter levado ao caso de algumas deserções.
SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.151.
Id.ib.,p.151.
43 Loc.cit.
44 Id.ib.,p.154.
45 Loc.cit.
46 Id.ib.,p.163.
47 DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira[...]Ob.cit.p.103.
41
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O historiador Klaus Becker, em livro sobre a participação de alemães e descendentes na guerra
contra o Paraguai observou que entre os teuto-brasileiros também houve a utilização de substitutos, que
podiam ser escravos libertos com o propósito de ir à guerra no lugar de outrem ou alguém que por contrato
firmado se comprometia a engajar-se como substituto em troca de uma quantia em dinheiro. Em 10 de
janeiro de 1866, do acampamento em Santa Maria, Carlos Schnell informava a família a fuga de “5 soldados
substitutos”.48
Via de regra, os corpos da Guarda Nacional eram compostos de 400 homens. Segundo tabela dos
corpos permanentes chamados a destacamento pelo governo da província em 1865. 49 O corpo nº 12 figurava
com essa formação. Se ao deixar Porto Alegre esse corpo estivesse completo, as liberações e, sobretudo as
deserções o diminuíram muito. Em 26 de janeiro de 1866, desde Santa Maria da Boca do Monte, o jovem
Carlos Schnell escrevia perplexo que aquela corporação contava, no momento, com apenas “278 homens”. E,
refletindo sobre as baixas acreditava que chegariam em São Borja “com 100 homens ou menos”.50
Existem registros de soldados desertores que arrependidos voltavam a unidade que pertenciam. Em
3 de novembro Carlos Schnell registrou em carta o retorno do patrício Jacob Holfmeister, cinco dias após
desertar.51 Muitas vezes, ao planejarem fuga ou mesmo aproveitarem momento ideal, os soldados não
avaliavam como poderiam sobreviver por algum tempo sem serem descobertos. Quando o lugar da fuga era
distante do de origem, era improvável que ao desertar o soldado voltasse para casa. Com o aprofundamento
da guerra o governo autorizou a criação de patrulhas volantes que percorriam campos e povos atrás de
desertores, sendo assim, a exposição de voltar ao município de origem era grande.
Havia grande temor entre os soldados, seja do exército de 1ª linha, seja da Guarda Nacional, de
serem enviados como castigo para a armada. 52 O serviço na marinha era penoso, o confinamento entediante e
as chances de desertar remotas. Assim, como castigo a desertores das forças terrestres, os comandantes
poderiam pedir ao governo o envio para a armada. Nesse sentido, é crível que os desertores que não
conseguissem sucesso na fuga ou que dela se arrependessem voltassem ao corpo de origem e tentassem
escapar da punição.
A guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai foi, sem dúvida, uma dolorosa experiência, não raro
forçosa, para milhares de pessoas. Seus cotidianos, suas amarguras, suas alegrias, enfim suas vidas naquele
espaço de tempo, não são objeto preferível em pesquisas históricas, mesmo em função das fontes escassas.
Os registros deixados por Francisco Pereira da Silva, Manuel Lucas de Oliveira e, sobretudo por Carlos
Schnell nos permitiram ter um outro olhar sobre daquele conflito.
Referências Bibliográficas:
AHRS. Correspondência de João José Pereira, 1865. Assuntos militares, maço 187.
AHRS. Correspondência do Barão de Jacuí, 1865. Autoridades Militares, maço 183.
BIOGRAFIA
de
MANUEL
LUCAS
DE
OLIVEIRA.
Disponível
em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Lucas_de_Oliveira. Acesso em 17 de out.2018.
DIÁRIO DA CAMPANHA DO PARAGUAI de Francisco Pereira da Silva Barbosa. Disponível em:
http://www.forumnow.com.br/vip/mensagens.asp?forum=125774&topico=2964054. Acesso em 17 de
out.2018.
DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira 1864-1865. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Est, 1997.
FRAGOSO, Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército. Vol. 2, 2010.
SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.168.
49 RELATÓRIO apresentado ao Exmo vice-presidente da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul dr. Antônio Augusto Pereira da
Cunha pelo Visconde da Boa Vista. Rio de Janeiro: Typografia do Jornall do comércio, 1866.
50 SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.177.
51 SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.148.
52 AHRS. Correspondência do Barão de Jacuí, 1865. Autoridades Militares, maço 183.
48
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FREITAS, Osório Tuyuty de Oliveira. A invasão de São Borja. Porto Alegre: A Nação, s/d.
GAY, Cônego João Pedro. A invasão paraguaia na fronteira brasileira do Uruguai. Comentada e anotada
pelo major Souza Docca. Caxias do Sul: EdUCS, 1980.
JARDIM, Wagner Cardoso. David Canabarro, o anti-herói imperial na guerra contra Paraguai. Estudios
Historicos
CDHRPyB,
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História, política e escrita epistolar: a correspondência de Santa-Anna
Nery a Floriano Peixoto (França-Brasil, 1894)
Waleska Sheila Gaspar1
Resumo: Os primeiros anos da República no Brasil foram marcados pela tensão dos problemas políticos e
pelas lutas pelo poder entre os diversos ramos civis e militares. Dois eventos em particular fizeram parte
deste período conflituoso, a Revolta da Armada do Rio de Janeiro (1893-1894) e a Revolução Federalista
ocorrida no Rio Grande do Sul (1893-1895). O presente trabalho é desenvolvido a partir desse contexto,
direcionando as análises sobre a correspondência enviada ao vice-presidente Floriano Peixoto pelo
intelectual e jornalista amazonense Frederico Santa-Anna Nery, enquanto este residia em Paris. Assim, a
pesquisa tem como objetivo compreender, através do exame das fontes, a repercussão internacional das
revoltas que ocorriam no país, bem como as interpretações e estratégias utilizadas pelo remetente na defesa
da política empregada por Floriano Peixoto frente à imprensa europeia.
Palavras-Chave: Escrita epistolar, Frederico Santa-Anna Nery, história política.
Introdução
Os primeiros anos da República no Brasil foram marcados por grande agitação política e militar. A
abolição da escravidão em 1888, a transição do Império para a República através do golpe de 1889, a
Constituição de 1891, a renúncia de Deodoro da Fonseca e as revoltas que eclodiram nesse período, são
alguns dos aspectos que contribuíram para o agravamento do cenário político do país.
Ascendendo à chefia do governo federal após a renúncia de Deodoro em 1891, o vice-presidente
Marechal Floriano Peixoto enfrentou duas revoltas graves, as quais revelam o clima de tensão dos problemas
políticos brasileiros da época e a crise de legitimidade do governo instituído. As lutas que eclodiram nesse
contexto foram a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul (1893-1895), e a Revolta da Armada no Rio de
Janeiro (1893-1894). A disputa pelo poder entre os diversos ramos civis e militares incentivaram o uso da
força como meio de impor as diretrizes políticas que estavam em jogo.
Até certo ponto conectados, tais conflitos abalaram a ordem dos poderes instituídos, sendo
combatido de forma impetuosa por Floriano Peixoto, o qual acabou por ser reconhecido como “marechal de
ferro” e “consolidador da República” após por fim às revoltas. É neste contexto que dedico as análises deste
trabalho, as quais partem da leitura de cartas endereçadas ao vice-presidente Floriano Peixoto tendo como
autoria o escritor e jornalista Frederico Santa-Anna Nery, enquanto este residia em Paris. Em suma, o
conteúdo presente no corpus documental corresponde a cartas comentando notícias veiculadas em jornais
franceses, americanos e ingleses sobre as revoltas que estavam ocorrendo no Brasil. Além disso, as
informações são acrescidas de traduções e recortes de tais notícias e artigos publicados nos jornais a mando
do autor, em defesa do governo legal.
O uso de cartas na historiografia abre um grande campo de possibilidades para o historiador. A
renovação no campo da história política também contribuiu neste sentido ao retomar o documento escrito
através de novas perspectivas, permitindo a adoção de diferentes aportes analíticos para sua interpretação.
Nesse sentido, como salienta Teresa Malatian, ao tomar este tipo de documento como fonte, o historiador
entra em contado com conversas fragmentadas a serem decodificadas em sua dimensão histórica ao mesmo
tempo em que reconhece o contexto de uma época, entrelaçando a singularidade do indivíduo que escreve a
uma dimensão coletiva (2013, p. 200).
Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo - UPF. Bolsista CAPES/Prosuc.
Licenciada em História pela mesma universidade. E-mail: gaspar.waleska@gmail.com
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Sendo assim, esta proposta de análise tem como objetivo compreender, através da correspondência
examinada, a repercussão internacional das revoltas que ocorriam no país, bem como a dinâmica das
relações estabelecidas entre o remetente e o governo instituído. Também, buscar-se-á elucidar as
interpretações e estratégias utilizadas pelo jornalista na defesa da política empregada por Floriano Peixoto
frente à imprensa internacional, pretendendo perceber ao mesmo tempo, o engajamento na vida política dos
atores históricos envolvidos.
Em síntese, a proposta desta pesquisa visa contribuir com novas perspectivas sobre a dimensão que
as revoltas em estudo alcançaram internacionalmente frente às discussões levantadas pelo remetente sobre a
imprensa da época. Além disso, como ressalta Malatian, a análise de correspondências possibilita esclarecer
a difusão das ideias entre determinado grupo, a fixação de certas visões como dominantes numa dada época e
seu poder de influir nos acontecimentos (2013, p. 209).
A história política renovada e o uso de cartas como fonte de pesquisa
A história política vem sendo rediscutida nas últimas décadas, levantando debates que envolvem seus
paradigmas, conceitos e procedimentos metodológicos. Como salienta o autor José D’Assunção Barros
(2009), enquanto a história política do século XIX mostrava uma preocupação praticamente exclusiva com a
política dos grandes Estados - a chamada história política tradicional -, a nova história política,
principalmente após a década 1980, passa a se interessar também pelo “poder” em outras modalidades.
Conforme o autor,
Entre outros aspectos a serem oportunamente considerados, o que esteve em jogo
na passagem de uma tradicional História Política, tal como ela era elaborada no
século XIX, a uma Nova História política que terá o seu momento de especial
intensidade a partir das últimas décadas do século XX, foi de fato um conjunto
profundas mutações e disputas que se deram no interior da palavra "poder" ou
através dos complexos desenvolvimentos históricos de sua compreensão pela
comunidade científica. (...) "Poder" - de acordo com a nova ótica que foi se
impondo gradualmente - é aquilo que exercemos através das palavras ou das
imagens, através dos modos de comportamento, dos preconceitos (BARROS, 2009,
p. 149).
Sendo assim, os novos debates envolvendo a história política buscou romper com ideia de uma
historiografia considerada tradicional, a qual sofreu pesadas críticas a partir da década de 1920, com o
advento da Escola dos Annales. Como elucida Francisco Falcon, prisioneira da visão centralizada e
institucionalizada do poder, a história política tradicional pretendeu ser também memória, “coube-lhe então,
durante séculos, lembrar e ensinar pelos exemplos reais e ilustres de que era a única depositária” (1997, p.
54).
A crítica endereçada à história política tradicional recaia, sobretudo, sobre a história positivista
institucionalizada no século XIX. Conforme salienta Falcon (1997), o positivismo tinha como princípio a
objetividade e neutralidade por parte dos historiadores ao “reviver” a História, baseando suas análises em
perspectivas deterministas utilizando-se de uma variedade de documentos oficiais ou escritos, ordenando os
fatos mais importantes, geralmente ligados à política e aos grandes líderes, em uma ordem cronológica e
linear de apreensão do tempo, descrevendo-os como um passado real da humanidade.
A preocupação dos Annales com a construção de uma história-problema contrastava-se com a
narrativa descritiva da velha história política - a ênfase nas séries, na conjuntura e na estrutura tornava o fato
desprezível, a longa duração tornava o tempo do episódio insignificante, conforme Fernand Braudel (1982, p.
11) uma duração “caprichosa” e “enganadora”. Porém, como salienta Cassio Albernaz, o “combate”, no
sentido annaliste à história política, parece confundir o político enquanto objeto de estudo que possibilita a
compreensão de alguns fenômenos sociais, com as noções de acontecimento e de contingência (2011, p. 13).
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Ao encontro disso, Jacques Julliard (1988), ao discutir o papel da história política na historiografia,
defende que o problema não estava no objeto do político, mas sim nos métodos empregados pelos
historiadores. Longe de pretender interceder a favor da tradicional história condenada pelos annales, o autor
considera que por muito tempo a história política deixou de produzir uma problemática, o que justificaria a
perda do seu prestígio frente à historiografia francesa. Sendo assim, Julliard ressalta que os limites impostos
à história política estariam relacionados a questões metodológicas bitoladas e a simples narração dos fatos,
configurando a ausência de problematizações mais profundas.
O ensaio crítico proposto por Julliard faz parte de um conjunto de trabalhos que vinham sendo
produzidos na Europa nas décadas 70 e 80 do século XX, os quais se propuseram a debater a política do
ponto de vista da historiografia rediscutindo possibilidades e perspectivas para sua renovação. Para Jacques
Le Goff (1983), as novas discussões que emergiam, tinham como enfoque o político no sentido de cultura e de
poder em oposição a tradicional história política, visto que os fatos já não ocupavam lugar de destaque, mas
sim, as mentalidades, os signos e os símbolos políticos de poder.
Na órbita das discussões, o historiador René Rémond defende que o retorno de um interesse pela
temática seria o signo de uma nova etapa no desenvolvimento da reflexão que a História faz sobre si mesma,
e também, o resultado de uma nova configuração, marcada tanto pelas mudanças, que neste novo contexto
passaram a afetar o político, como pelas que dizem respeito ao olhar que o novo historiador dirige a este
político. Para o autor, o político não pode ser delineado por uma coleção de objetos ou de um espaço, o
político não tem fronteiras naturais, e por isso, somos levados a definições mais abstratas, onde a mais
constante é pela referência ao poder. (2003, p. 444).
Assim, ao incorporar novos objetos e novas abordagens, visando compreender o universo do político
de forma mais ampliada, a história política renovada aproximou-se de outras questões as quais perpassam os
fenômenos econômicos, culturais e sociais. De acordo com esta nova ótica, o poder se estende a outras
coletividades, setores das atividades humanas, é expresso nas palavras e nos modos de comportamento.
Conforme Julliard (1988), o poder neste contexto, adquire uma noção muito mais ampla que o Estado.
Portanto, há a preocupação de fazer aparecer as relações entre as instituições políticas e as formações sociais
subjacentes. A compreensão do político transcorre neste sentido, no reconhecimento dos jogos de interesses,
nas relações de poder estabelecidas e na multiplicidade de fatores que influenciam as decisões em diferentes
esferas.
Frente a isso, percebemos que, em parte, a recuperação do prestígio do estudo do político na
historiografia recente tem sido possível devido à renovação das suas abordagens e métodos, bem como o
contato estabelecido com novas fronteiras teóricas. Este contexto permitiu ao historiador levantar novas
problemáticas e interpretações. Ë possível observar desta forma, que diferentes perspectivas de análises
podem servir ao estudo de fontes muitas vezes tidas como convencionais, como os documentos escritos e/ou
oficiais. Um exemplo disso é o uso das cartas na pesquisa histórica. Há muito tempo utilizadas pelos
historiadores em seus exames, as cartas são retomadas como o próprio objeto de investigação frente aos
novos enfoques explorados pela historiografia. A autora Angela de Castro Gomes destaca que tal
posicionamento requer mais investimentos na utilização e na análise das cartas, resultando em uma maior
atenção às questões teóricas metodológicas que envolvem esse tipo de fonte (2004, p. 10).
Sendo assim, o uso de correspondências na pesquisa abre um grande campo de possibilidades para o
historiador, constituindo um meio privilegiado de acesso a informações visto o papel cada vez mais relevante
que as cartas assumiram nas sociedades ao longo dos séculos. O hábito da correspondência aumentou
significativamente a partir do século XVIII com o crescimento da alfabetização. Neste contexto, verificou-se a
ampliação das práticas de escrita e de leitura alcançando assim, diversas camadas sociais. As cartas eram
utilizadas para expressar sentimentos, emoções, experiências, pedidos, recomendações, conselhos, entre
muitas outras modalidades, chegando ao século XIX como o gênero mais difundido de escrita, tornando-se
até mesmo uma moda (MALATIAN, 2013, p. 196).
Conforme Malatian, o uso de cartas, inevitavelmente encontrarão no caminho as especificidades do
gênero epistolar, ou seja,
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[...] trata-se de documentos escritos com a preocupação de alcançar um
destinatário. Tal preocupação os torna testemunhos de redes de comunicações
entre indivíduos e grupos. É o receptor quem irá provavelmente controlar sua
preservação ou destruição, numa prática de memória implícita ou explícita no
pacto epistolar e seus desdobramentos, os atos de escrever, enviar, receber, ler,
responder e guardar cartas (2013, p. 203).
Ainda, o historiador deve considerar que as cartas são fragmentos de uma história, pois nada impede
que parte das correspondências sejam destruídas se assim for a vontade do titular, ou que as condições de
conservação e escrita tornem sua leitura um desafio. No caso de cartas produzidas ou endereçadas a pessoas
com inserção pública e destacada, como é o caso das fontes utilizadas nesta pesquisa, estes aspectos devem
ser levados em conta. Como salienta Malatian, correspondências de figuras públicas são conservadas com o
conhecimento de sua importância enquanto fontes biográficas, sofrendo nesse sentido, a seleção daquilo que
deve ser preservado e divulgado para olhares futuros (2013, p. 202).
Sobretudo, as novas propostas de análise das cartas deve considerar a subjetividade do documento.
Sendo assim, Gomes ressalta que,
o que passa a importar para o historiador é exatamente a ótica assumida pelo
registro e como seu autor a expressa. Isto é, o documento não trata de ‘dizer o que
houve’, mas de dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou,
retrospectivamente, em relação a um acontecimento (2004, p. 15).
Por esse motivo, cabe ao pesquisador decidir o que irá buscar nesses documentos, levantando
problemáticas que correspondam aos objetivos propostos do trabalho, buscando não a veracidade dos fatos,
mas sim, compreender os aspectos relacionados ao contexto no qual as correspondências foram produzidas,
bem como os diversos papéis sociais, culturais e políticos dos atores históricos envolvidos. Malatian assinala
que as considerações feitas sobre esse tipo de escrita
remete à constatação que as informações nelas contidas serão sempre versões
individuais ou coletivamente construídas sobre determinados acontecimentos
vividos pelo narrador ou dos quais se inteirou de diversas formas como conversas,
leituras, relatos (2013, p. 204).
Frente ao exposto, a proposta desta pesquisa pretende compreender a correspondência destina ao
vice-presidente Floriano Peixoto dentro dos aspectos anteriormente mencionados, os quais dão um novo
lugar para a análise de cartas dentro da pesquisa histórica. Deste modo, as missivas utilizadas como fonte
neste trabalho contribuem significativamente com novas percepções de um contexto específico, marcado
pelas revoltas e pelo clima político de intensa agitação.
As revoltas na correspondência de Santa-Anna Nery
A Revolução Federalista que eclodiu em 1893, é resultado de um quadro de instabilidades que
remontam a antigas rivalidades entre os partidos que disputavam o poder do estado rio-grandense. Com o
advento da República, o Partido Republicano Rio-grandense (PRR) ascende ao governo sob o comando de
Júlio de Castilhos, o qual empreende implacável perseguição e derrubada de seus opositores dos cargos
públicos e posições de liderança e prestígio eleitoral nos municípios. Afastados do poder, chefes liberais e
dissidentes republicanos fundam o Partido Federalista no início de 1892, tendo como lideranças João Nunes
da Silva Tavares e Gaspar Silveira Martins.
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Organizados em território uruguaio2, os federalistas arquitetaram a invasão do estado, a qual ocorreu
em fevereiro de 1893. O Exército participou ativamente do conflito, oficiais tidos como fiéis a causa
republicana foram cedidos ao governo do estado rio-grandense, postos como comandantes de brigadas e
batalhões. A guerra civil se estenderia até 1895, ultrapassando os limites do estado, chegando a Santa
Catarina e ao Paraná, e deixaria a marca da extrema violência cometida nos campos de batalha, como a
execução de prisioneiros através da degola (FLORES, 1996, p. 168).
No mesmo ano, no Rio de Janeiro em setembro de 1893, deflagrava-se a segunda Revolta da Armada,
quando oficiais da marinha insurgiram contra o governo de Floriano Peixoto. À frente da rebelião estava o
ex-ministro da Marinha Custódio de Mello que esperava, assim como ocorrera na primeira Revolta da
Armada comandada por ele em 1891, a renúncia do vice-presidente Floriano Peixoto como foi a de Deodoro
da Fonseca. Contudo, o Marechal manifestou sua intenção de resistir até as últimas consequências,
resultando na retirada, após vários ataques frustrados, da esquadra dos revoltosos que ameaçava
bombardear a cidade do Rio para a Ilha de Desterro, atual Florianópolis, estabelecendo aí um governo
provisório.
Aderindo à revolta em dezembro, o almirante Saldanha da Gama deu conhecimento às autoridades
que o comando das tropas revolucionárias passaria a ser exercido por ele. Nesse ínterim, as tropas
federalistas do Sul, tomaram sentido leste para estabelecer contatos com os revoltosos da Armada que se
encontravam em Desterro.3 Em março de 1894, Floriano Peixoto, amparado pelas forças do Exército e com
uma nova frota de navios adquirida no exterior, pôs fim ao movimento revoltoso da Marinha.
O conjunto documental utilizado neste trabalho refere-se a cartas endereçadas ao vice-presidente da
República durante os primeiros meses de 1894, escritas pelo intelectual e jornalista Frederico Santa-Anna
Nery (1848-1901), enquanto este residia em Paris. Tais correspondências encontram-se para consulta no
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, fazendo parte do Fundo Floriano Peixoto, o qual é constituído de
documentos produzidos e acumulados pelo titular no período em que exerceu a presidência da República
(1891-1894).
Cabe aqui fazer uma breve explanação sobre a vida de Santa-Anna Nery para a melhor compreensão
de seu papel no contexto em análise. Intelectual amazônico, Santa-Anna Nery se destacou como um dos
principais divulgadores da região no exterior, tornando-se figura ativa nas relações internacionais brasileiras
durante o Império e início da República. Além de escritor, Santa-Anna Nery era jornalista escrevendo em
diversos jornais no exterior. Sobre a atuação do autor neste período, Ana Carolina de Abreu Coelho destaca:
Em 1874 mudava-se para Paris, local em que conquistou um círculo de amizades
com gente ilustre como Vitor Hugo, Franz Liszt e o príncipe Roland Bonaparte;
fora isso, vários intelectuais e pessoas da alta sociedade eram assíduos no salão de
sua residência em Paris. Colaborou com os jornais franceses L’Événement, Écho de
Paris, L’opinion e Le fígaro, produzindo artigos sobre o Brasil. Foi diretor do
periódico L’América e o primeiro correspondente brasileiro do jornal Republique
Française instituído por Leon Gambito um dos chefes prestigiados do partido
republicano francês. Escreveu também para os jornais italianos La Tribuna,
Libertá , Journal de Rome e Il Século e para o jornal londrino Society de 1874 a
De acordo com Ana Luiza Setti Recziegel (2015), as vinculações estabelecidas na fronteira entre os territórios do Uruguai e Rio Grande
do Sul podem ser interpretadas pelos elementos regionais, que além das condições geográficas e as movimentações demográficas, estão
ligadas às características étnicas e culturais, bem como aos padrões econômicos comerciais e às alianças sociais e políticas, derivativos
de uma história que se fez comum desde início da ocupação lusitano-espanhola, determinando o caráter de uma mentalidade coletiva
que, na prática, ignorou as marcas dos limites nacionais muitas vezes. Muitos dos estancieiros que investiam seu capital em terras
uruguaias eram simpatizantes ou membros do Partido Federalista, sendo assim, o exílio no país vizinho permitiu aos federalistas
traçarem suas estratégias de ação revolucionária e firmar alianças.
3 Cabe ressaltar nesse contexto que não havia total coesão entre os dois grupos rebeldes. A aproximação entre eles se deu pelo desejo de
se estabelecer um governo provisório, tendo como um dos objetivos principais conseguir atrelar relações com países do Prata, para que
estes declarassem beligerância com o Brasil, o que impediria a venda de armamento ao governo federal, porém, o propósito de
fortalecimento dos movimentos revolucionários não foi alcançado (RECKZIEGEL, 2015, p. 141). Somado a isto, os líderes federalistas
temiam a associação da revolução com o movimento monarquista, uma vez que as declarações do almirante Saldanha da Gama
demostravam suas inclinações monárquicas.
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Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS
1882 escreveu para o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, assinando a coluna
Ver, ouvir e contar. Era um dos proprietários e diretores da Revue du monde Latin
e diretor da redação do periódico Le Brésil, revistas que procuravam expor uma
imagem positiva do Brasil e dos países latino-americanos (2007, p. 15).
Um fator interessante em ser destacado sobre a vida de Santa-Anna Nery é sua postura política
ambígua. Como ressalta Coelho, o jornalista tinha estreita ligação com a monarquia durante o Império no
Brasil, sendo sócio do IHGB e recebedor de diversas homenagens pelo Imperador, contudo, podia se
“ambientar” muito bem com políticos ligados à república (2007, p. 19). Tais aspectos podem ser observados
nas leituras das cartas endereçadas a Floriano Peixoto, as quais tratam com muito prestígio a figura e a
política adotada pelo vice-presidente enquanto este ocupava o cargo de chefe de Estado.
Neste contexto, é perceptível como Santa-Anna Nery buscava ser o elo entre a Europa e o Brasil. Nas
revistas e jornais os quais atuava no exterior, o autor procurava expor o desenvolvimento do Brasil e também
da Amazônia, através de um discurso que propagava um país aparentemente europeu em prosperidade,
comunicação, com o diferencial de possuir uma excelente produtividade natural e um território bastante
superior (COELHO, 2007, p. 30). Em suma, Nery fazia parte de um círculo de intelectuais nacionalistas que,
mesmo com a transição do regime monárquico para o republicano, não deixou de lado seu engajamento na
vida política enquanto propagandista do Brasil no exterior.
As correspondências analisadas permitem reconhecer tais aspectos. As cartas buscavam informar e,
ao mesmo tempo, alertar Floriano Peixoto sobre as notícias que estavam circulando nos jornais da Europa
acerca das revoltas que aconteciam no Brasil, bem como salientavam as atitudes tomadas pelo jornalista em
resposta e defesa do governo legal quando este era alvo de críticas.
Em carta datada de 19 de fevereiro de 1894, Santa-Anna Nery informa Floriano sobre nota que
redigiu em resposta ao Journal des Débats, o qual, segundo o autor, não escondia suas simpatias aos
revoltosos, mas que mesmo assim havia publicado a retificação, contudo, acompanhada de comentários
recheados de inexatidões. Felizmente, continuava Nery, outros “grandes órgãos da imprensa diária” haviam
publicado sua nota como New York Herald e outras folhas inglesas. Na mesma correspondência, o jornalista
informava sobre algumas linhas presentes no jornal Times, de Nova York, as quais se referiam a um
telegrama expedido por Ruy Barbosa enaltecendo a necessidade de serem os revoltosos reconhecidos como
beligerantes, ao passo que a folha respondia ser "Ruy Barbosa um mentiroso, que os insurgentes não tinham
direito algum, e que logo estariam desbaratados".4
Em outra correspondência Nery escreve ter a honra de remeter a Floriano artigos que redigiu e
mandou publicar em defesa do governo legal. Entre os assuntos, destaca o autor que no periódico Le Journal
escreveu tendo por finalidade mostrar que,
[...] não resta mais aos sediciosos sombra de pretexto para continuarem as suas
piratarias, havendo V. Ex.ª demostrado com factos que respeita á risca a
Constituição de 24 de fevereiro de 1891.5
Ainda, afirma ter respondido a boatos publicados nos jornais franceses L'epoque e Le Nouveau
Monde, os quais versavam que a Revolta da Armada estava por alcançar a vitória, visto que o governo não
tinha elementos suficientes para resistir. Por fim, diz ter refutado em termos enérgicos as insolências do
Journal des Débats, “que não trepidou em aconselhar aos insurgentes que prosseguissem na lucta”. 6
Visto dessa forma, é percebível a atuação enérgica de Nery enquanto jornalista que buscava contestar
qualquer manifestação contrária endereçada ao governo brasileiro. As cartas evidenciam o papel
desempenhado pelo intelectual como a reverberação das diretrizes políticas tomadas por Floriano Peixoto,
bem como comprovam as tentativas de mobilizar a imprensa em seu favor.
Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 19/02/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662.
Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 05/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662.
6 Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 05/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662.
4
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Ao mesmo tempo, devemos levar em consideração que o próprio poder instituído mantinha a
preocupação de defender-se aos olhos estrangeiros. Em alguns casos, a atuação dos jornalistas estava ligada a
superintendências administrativas no exterior que financiavam seus trabalhos para atuarem na imprensa
fora do país. Isto fica claro em umas das cartas de Nery quando o autor faz um apelo ao descrever a situação
em que se encontravam os funcionários da superintendência em Paris:
Julgo haver assim cumprido meu dever, embora a superintendência se ache
literalmente sem um real, não tendo podido nem mesmo pagar os ordenados de
fevereiro dos seus empregados, todos pais de família e sem outros recursos em
terras extranhas.7
Além de sua atuação na imprensa, Nery mostrava-se inteirado sobre outros assuntos relacionados ao
conflito, notificando medidas adotadas para evitar a compra de material bélico na Europa pelos revoltosos.
Sua influência nas relações internacionais permitia que tomasse conhecimento de alguns fatos intervindo
diretamente em tais questões, as quais reportava de imediato ao vice-presidente:
Tendo recebido informações, que me pareciam fidedignas, de que em Hamburgo se
tinhão affectuado embarques de chumbo, pólvora e até dynamite com destino a
portos do Sul da República, diregime, confidencialmente ao nosso ministro em
Berlim, Barão de Itajubá, para que se dignasse providencias a tal respeito. Deu-me
segurança de que tal não se dará, suspeitando, porém, que embarques se tinha
effectuado em Antuérpia, e acrescentando que já havia telegraphado ao Governo a
tal respeito. O Sr. Consul em Londres compartilhou-me em reserva que tinha sido
procurado pelos negociantes Samuel and Brothers, que desejavam expedir
material de guerra para Santos. Escrevi-lhe logo que não deixasse partir material
bellico algum sem que os encarregados da expedição comprovassem com
documentos authenticos a remessa destinada exclusivamente ao Governo Legal. Ao
levar essas ocorrências ao conhecimento de V. Ex.ª, tenho a honra de assignar-me
com a mais sabida consideração e perfeita lealdade. 8
Diante do exposto, percebemos como Nery mantinha-se atento as informações que circulavam no
interior dos assuntos envolvendo os conflitos que ocorriam no país e capacidade que o mesmo tinha em
intervir em tais questões. Também, as entrelinhas revelam que o autor buscava mostrar-se eficiente perante
Floriano, uma forma de dizer “estou aqui” e “minhas atitudes são significativas”, aumentando assim, sua
credibilidade. Ao mesmo tempo, o trecho revela a existência de toda uma rede de informações articuladas,
demostrando a abrangência alcançada pelas revoltas no exterior.
Com a derrota da Revolta da Armada em março de 1894, Santa-Anna Nery passa a remeter ao vicepresidente as notícias sobre a vitória, nas palavras do jornalista:
A notícia da vitória do governo foi aqui conhecida com tanta rapidez que a minha
intervenção na imprensa tornou-se quasi desnecessária. Os mesmos jornaes que,
dias antes, cobriam-nos de contrariedades, forão os primeiros a se indignarem
contra os seus amigos da revolta.9
Descrevia ainda, que havia mandado divulgar nota sobre a vitória do governo legal a qual foi
publicada em jornais como L’Eclair, Le Journal, e Temps. Também, anexava junto à carta, artigo escrito por
ele, o qual foi publicado no jornal republicado L’Événement, em resposta ao periódico Journal des Débats
Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 05/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662.
Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 05/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662.
9 Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 20/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662.
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que, “persistindo em sustentar a causa dos sediciosos, disse que Saldanha da Gama não se tinha rendido, mas
que se tinha retirado simplesmente”.10 O conteúdo escrito por Nery em seu artigo de resposta atacava de
forma enérgica a pessoa de Saldanha da Gama, afirmando de forma irônica que o “valente marinheiro” não
havia a quem recorrer após a derrota da revolta, pois nem seus patrícios queriam tomar aquele incômodo.
Seguia seu texto escrevendo que,
com effeito, não nos esquecemos de que os homens que assim jogaram tão
levianamente a paz do próprio paiz e a própria honra pessoal não hesitaram em
semear a morte nos bairros mais populosos de uma cidade aberta. O
bombardeamento do Rio de Janeiro fica sendo um facto sem desculpa possível
desde que não se tratava, para os chefes que o affetuaram, de uma lucta na qual
deveriam arriscar a vida. Com que direito o almirante Gama apontou os canhões
contra a capital do seu paiz infeliz, se a causa pela qual lutava tinha tão pouca
importância que nem mesmo merecia um esforço pessoal da sua luta?11
Frente a isso, ressaltava que a opinião pública não poderia estar com os “sediciosos”, pois não existia
causa alguma nas reivindicações dos revoltosos, além de pretextos pessoais para empunharem armas,
referindo-se ao conflito como uma “mesquinha insurreição”. Tomamos, neste sentido, conhecimento de
como a revolta estava sendo repercutida nos jornais europeus. O papel assumido por Santa-Anna Nery é
representativo no sentido que demonstra que, para além da imprensa nacional, o assunto tomou lugar nas
páginas periódicas no exterior, contando com a atuação de jornalistas que mantinham ligações estreitas com
o governo instituído. Ao mesmo tempo, as cartas evidenciam a existência de jornais que apoiavam a causa
revoltosa ou criticavam as ações do governo brasileiro, como é o caso do Journal des Débats, diversas vezes
citado pelo autor.
Tais aspectos podem ser observados ainda, em outra missiva, na qual Nery reporta a Floriano que na
data de 23 de março, os jornais haviam reproduzido um telegrama expedido pelo correspondente do New
York Herald, o qual referia-se a notícia de que o vice-presidente do Brasil colocava em vigor os Decretos de
1838 e 1851, autorizando a execução sem processo de todas as pessoas, nacionais ou estrangeiras que
auxiliaram as revoltas direta ou indiretamente. 12 Ressalta o autor que imediatamente, encaminhou telegrama
a Floriano tratando sobre tal questão, com o intuito de “ficar habilitado para responder a qualquer ataque
que, por acaso, aparecesse nos jornaes sympathicos á causa dos revoltosos”. O jornalista continua relatando
que como já previa, no dia seguinte, 24 de março, o jornal Times de Londres, havia publicado tal notícia em
termos “assaz violentos” e não tendo recebido resposta do telegrama enviado ao vice-presidente, julgou ser
urgente não demorar em responder tais investidas do jornal britânico: “mandei um artigo ao Times e dirigi
cópia desse artigo ao New York Herald afim de demonstrar que, a verdadeira notícia, tinha ella plena
justificação”.13
O artigo escrito aos editores do Times foi mandado como anexo para o conhecimento de Floriano,
destacando que outra resposta estava sendo elaborada pelo autor, a partir da qual buscava ele fazer um
resumo de toda legislação francesa com o intuito de provar que a atitude tomada pelo governo legal brasileiro
não era mais draconiana do que a dos “diversos povos civilisados da Europa”.
Para mais, os argumentos utilizados no artigo de resposta buscavam justificar a atitude do governo
frente à situação que se encontrava o país. Assim defendia Nery:
Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 20/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662.
Anexo da carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 20/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO
Q6.LEG.COR,CAR.662.
12 O Decreto o qual refere-se Santa-Anna Nery é o de n. 1681 de 28 de fevereiro de 1894, que declarava os crimes cometidos por civis ou
militares, estariam sujeitos a foro militar. Destaca Silva (2013) que tal decreto considerava “que o crime de rebelião deveria ser
assimilado ao de guerra externa, invocando o decreto nº 61, de 24 de outubro de 1838, para justificar tal medida”, e “definia que os
crimes a serem julgados em foro militar, cometidos por civis ou militares, seriam os mesmos arrolados no decreto nº 631, de 18 de
setembro de 1851”. Para mais detalhes ver decreto nº 1.681, de 28 de fevereiro de 1894, disponível em:
<http://legis.senado.leg.br/legislacao/PublicacaoSigen.action?id=393726&tipoDocumento=DEC-n&tipoTexto=PUB>.
13 Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 28/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662.
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Primeiro que tanto, não é possível que se queira que os sediciosos sejão
condennados sem julgamento, mas sim que sejão processados summariamente, o
que é muito differente, se assim proceder, o marechal Peixoto não pratica nenhum
acto arbitrário ou ditatorial; não fará mais do que proceder de conformidade com
leis que datão do tempo do Império de Dom Pedro II, o qual por mais que essa
circunstancia já ande muito esquecida, também teve que reprimir, durante o seu
longo reinado, uma série de sublevações armadas ou verdadeiras revoluções.14
O jornalista aproveitava para contrapor as afirmações publicadas pelo jornal Times as quais diziam
que o governo brasileiro sofria de um vício orgânico: a fraqueza e a covardia. Nas palavras do autor,
diferentemente de Dom Pedro II que tomou o caminho do exílio sem nenhum protesto, e Deodoro da
Fonseca que renunciou seu cargo de presidente perante as ameaças da primeira Revolta da Armada, Floriano
Peixoto soube resistir defendendo a legalidade e sendo assim, “ensinou ao povo brasileiro que é necessário
luctar em prol da Constituição”. Por tal posicionamento assumido pelo Marechal, não deveria este deixar
impune quem perturbava a paz e a ordem no país. Neste contexto, continuava o autor, o respeito à
autoridade constituída era basilar e o perdão imediato dos revoltosos apenas levaria o Brasil ao abismo e por
tais motivos, a repressão aos insurgentes era algo louvável, não o contrário disso.
Novamente percebemos como Nery buscava através da imprensa defender as atitudes de Floriano
Peixoto, descrevendo a figura do chefe de Estado com muita credibilidade frente às críticas externas. As
considerações feitas pelo jornalista levam a constatação de que as informações escritas por ele tratavam de
construções feitas pelo próprio autor, as quais pretendiam, através de exemplos, legitimar a repressão
desencadeada naquele contexto. Isso pode ser observado na continuação do artigo, quando Nery salienta que
[...] aqueles que manifestam tanta ternura pelos chefes da insurreição no Brasil,
deveriam ter ostentado os mesmos sentimentos quando, por exemplo, o presidente
da França, Adolphe Thiers, castigou os autores da Comuna de Paris. 15
O jornalista finaliza sua resposta aos editores do jornal britânico ressaltando que o Brasil, mesmo na
condição de estar vivenciando uma guerra-civil, vinha cumprido com seus compromissos financeiros,
comparando-o a Portugal, que nas palavras do autor, havia suspendido em plena paz, o pagamento dos juros
de suas dívidas. Completava a resposta em tom provocativo:
Se quizeres que o Brazil desça ao nivel desse Estado, podeis aconselhar-lhe que
deixe de applicar as leis que punem a sedição. Mas, nesse caso, que será feito dos
interesses que os inglezes têem naquelle paiz que deve boa parte dos seus
progressos aos capitaes inglezes?16
Todos os argumentos utilizados por Nery pretendiam descontruir aquilo que o jornal britânico havia
publicado dias antes, tocando inclusive, na questão financeira do país, algo que influenciava diretamente os
interesses dos ingleses. Tais aspectos demostram mais uma vez, sua habilidade em intervir em assuntos que
poderiam tanto corresponder a questões políticas como econômicas ou diplomáticas.
É perceptível a partir das leituras das cartas e dos artigos anexados a elas, a missão a qual SantaAnna Nery tomou para si, sendo um “porta-voz” no exterior dos interesses daqueles que governavam o Brasil
Anexo da carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 28/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO
Q6.LEG.COR,CAR.662.
15 Anexo da carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 28/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO
Q6.LEG.COR,CAR.662.
16 Anexo da carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 28/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO
Q6.LEG.COR,CAR.662.
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no período. Seu papel não se diferenciava muito da atuação de outros sujeitos que, através da imprensa, das
obras e das letras, caracterizavam as intricadas relações de poder e a vida intelectual daquela época, tão
próxima dos debates políticos e seus desdobramentos.
Considerações finais
O uso de cartas como fonte na pesquisa histórica vem sendo cada vez mais reconhecido pelos
pesquisadores. A importância desse tipo de documento revela muito mais do que a comunicação do
remetente ao destinatário, desvendando na escrita o desejo de que as ideias incorporem os acontecimentos.
Através das correspondências o historiador tem a oportunidade de penetrar nos jogos de interações sociais
de determinada época, pois tal forma de escrita carrega consigo lugares, momentos particulares e sujeitos
que fazem parte da história.
A renovação na história política permitiu que novos olhares e problemáticas fossem levantadas sobre
o documento histórico. Tais aspectos também podem ser percebidos quando utilizamos as correspondências
enquanto fonte para pesquisa através de novas perspectivas historiográficas. Sendo assim, mais do que a
descrição ou a busca pela veracidade dos fatos, as cartas tornam-se um meio privilegiado de acesso a atitudes
e representações, cabendo ao historiador decidir o que irá buscar naqueles documentos, buscando decifrar a
subjetividade entre as linhas daquele que escreve.
A correspondência analisada neste trabalho, a título de exemplo, constitui uma forma de
compreendermos a arena política do contexto estudado através da abertura analítica proposta pela renovação
historiográfica. Neste sentido, as cartas endereçadas a Floriano Peixoto por Santa-Anna Nery colaboram com
a compreensão sobre as intricadas redes de relações existentes em um contexto particular marcado pelas
revoltas as quais passava o país. Através da leitura é possível verificar a existência de um arranjo
internacional que contava com a participação de intelectuais, como no caso de Nery, os quais
desempenhavam, dentre outras coisas, papel fundamental na imprensa, tendo como objetivo proteger os
interesses e a imagem do governo brasileiro no exterior.
Destaca-se assim, o valor da fonte estudada, pois através dela é possível entrarmos em contato com o
que estava sendo publicado e debatido em alguns periódicos internacionais sendo possível evidenciar ainda,
como as críticas levantadas eram contestadas. Tais indícios vêm reafirmar o relevante papel que a imprensa
ocupava na época, principalmente enquanto meio de influir ideologias e concepções. Nesta perspectiva, a
presente análise possibilitou, mesmo que de maneira sucinta, alargar algumas questões envolvendo os
conflitos em estudo e os embates de opinião daquele momento histórico.
Sendo assim, o estudo permitiu evidenciar que as revoltas não ficaram restritas ao território
nacional. Muito mais do que um problema interno, sua repercussão sugere que, internacionalmente, as
mesmas foram pautas de diferentes discussões acabando por dividir opiniões. Neste cenário, é possível
considerar que o poder instituído agia através de toda uma rede de comunicações entre indivíduos que
compartilhavam, através das correspondências, suas experiências, preocupações e modos de agir frente a um
contexto marcado pelos conflitos que convulsionaram os primeiros anos da República brasileira.
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A Bacia Platina nas primeiras quatro décadas do século xvi: descoberta e
representação europeia1
Yúri Batista da Silva2
Resumo: O trabalho refere-se ao projeto de iniciação científica que vem sendo desenvolvido, com bolsa do
programa FIPE da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), desde abril de 2018, que tem por tema “A
construção da representação do espaço platino no contexto histórico-político e social do período colonial e
das independências - um levantamento da representação cartográfica e de “imagens”. Questão que deveria
ser facilmente respondida e que habitualmente é atribuída a Juan Díaz de Sólis, a descoberta do Rio da Prata
no século XVI pelos europeus gerou debates entre historiadores do século XX. Dentre eles, o argentino
Roberto Levillier e o português Luis Ferrand de Almeida protagonizarão uma discussão, a partir de mapas e
documentos manuscritos da época, sobre a expedição que teria chegado primeiro ao estuário platino.
Independente do melhor argumento, as pesquisas demonstraram haver uma grande variação de mapa para
mapa referente a localização em graus de certas regiões e a confusão existente em relação ao topônimo
presente em diversos mapas das primeiras décadas do século XVI. Com isso, o objetivo deste trabalho é
buscar melhor compreender os primeiros anos da ocupação europeia na região platina, bem como as
representações contidas nos mapas europeus e a compreensão da área espacial de abrangência. Para tanto,
apresentaremos os primeiros resultados levantados. Registramos ainda, que este projeto integra as ações
dentro do Grupo de Pesquisa do CNPq/UFSM “História Platina: sociedade, poder e instituições”.
INTRODUÇÃO
O presente artigo, com um caráter de ensaio, busca demonstrar a diversidade presente nos mapas
cartográficos no que tange a representação dos confins meridionais do Novo Mundo contidas nos mapas
entre o período de 1500 até 1540 através de um debate historiográfico entre dois autores: o argentino
Roberto Levillier (1886-1969) e o português Luis Ferrand de Almeida (1922-2006). Além disso, busca-se
entender como o imaginário construído na década de 1520 acerca das infindáveis riquezas que a Região
Platina poderia proporcionar repercutiu na península Ibérica e na cartografia das coroas portuguesa e
espanhola dos anos de 1520 e 1530.
EXPLORANDO AS NOVAS TERRAS
Mesmo com a assinatura do Tratado de Tordesilhas em 1494 que garantia a posse para a coroa
portuguesa de todas as terras localizadas a 370 léguas, no sentido oeste, a partir do arquipélago de Cabo
Verde, de acordo com Anselmo Neetzow (2014, p. 3),
Descobrir implicava as seguintes ações: Em primeiro lugar, chegar a um local,
saber retornar ao ponto de origem e ir ao local novamente. Como conseqüência
direta, este novo local não deveria fazer parte do conhecimento mundial, pois ao
passo que a divulgação legitimava a descoberta. Nisto, em algumas fontes da época
vemos primeiramente a palavra “achar” sobre um determinado local, uma vez que,
Trabalho vinculado ao Projeto de Pesquisa “A construção da representação do espaço platino no contexto histórico-político e social do
período colonial e das independências - um levantamento da representação cartográfica e de “imagens”” coordenado pela Profª Drª
Maria Medianeira Padoin que possui financiamento com Bolsa de Iniciação Científica –FIPE da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), em 2018.
2
Graduando de História Licenciatura na Universidade Federal de Santa Maria/UFSM, Bolsista FIPE/2018. E-mail:
yurisilva67@gmail.com.
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achar uma terra não significava, de imediato, a sua descoberta. (NEETZONW,
2014, p. 03).
A posse era então legitimada conforme o território inédito ao conhecimento mundial fosse divulgado.
Nesse sentido, a partir da descoberta europeia feita por Pedro Álvares Cabral em 1500, quando este chegou
às terras brasileiras, então denominada Santa Cruz, o próximo passo da coroa portuguesa foi montar
expedições que explorassem o restante da costa, buscando conhecer as novas terras.
Assim, em 1501 foi enviada à costa brasileira uma nova expedição capitaneada pelo florentino
Américo Vespúcio (1454-1512) com o objetivo de tomar conhecimento do que continha nas terras recém
descobertas, enfocando nas riquezas que estas poderiam oferecer. Ao retornar no ano seguinte, Vespúcio
relata que nada, a não ser madeira de pau-brasil, fora encontrado.
Com esse conhecimento sobre as terras brasileiras, em 1503 a coroa portuguesa vai então firmar um
contrato de arrendamento com o cristão novo Fernando de Noronha. Em troca do direito de extração da
cobiçada madeira nas terras do rei, o arrendatário, além de destinar uma certa quantia do produto extraído à
coroa, deveria construir e guarnecer fortalezas na região e explorar a cada ano uma extensão de 300 léguas
ao longo da costa. Para exploração da costa brasileira então organizada por Fernando de Noronha, Américo
Vespúcio foi novamente destinado, e este retorna ao Brasil em 1503.
A extensão explorada pela frota organizada por Fernando de Noronha é ainda hoje incerta, havendo
quem defenda que os navios deste chegaram até o atual Rio da Prata e Patagônia, como é o caso do
historiador e diplomata argentino Roberto Levillier. Analisando fragmentos de cartas e a cartografia dos
primeiros anos do século XVI, Levillier defenderá que a primeira expedição de Vespúcio teria chegado até o
estuário platino e que este na cartografia posterior a expedição teria então passado a se chamar de Rio
Jordan.
Já demonstramos em América La bien llamada e em El Nuevo Mundo com uma
vasta cartografia, que essa enseada representa o sítio e o primeiro nome cristão do
Rio da Prata, chamado até então Paranaguazú ou Huruay pelos índios.
(LEVILLIER, 1956, p. 434).
Em contrapartida, outros historiadores contestarão as conclusões de Levillier, como é o caso do
português Luis Ferrand de Almeida que, com a mesma documentação cartográfica de que utiliza o
historiador argentino, chegará a conclusões diferentes. Para ele, a associação entre o Rio Jordan e o Rio da
Prata é fruto de um erro cartográfico presente em muitos mapas de 1523, a partir do Mapa de Turim 3, até
15364, onde o verdadeiro Rio da Prata é então denominado Rio Jordan.
Anterior ao ano de 1523, Almeida defende que a comum diferenciação de latitude com que aparece o
Rio Jordan nos diversos mapas da época não permite que este seja associado ao estuário platino, onde
mesmo que o
Rio Jordão aparecesse sempre, na cartografia primitiva, em 35º, isso não significa
necessariamente que ele se identificava com o Prata. Acontece, porém, que o
Jordão não está sempre à mesma latitude, o que enfraquece ainda mais o
argumento de Levillier. Assim, em King-Hamy (1502), vemos um golfo sem nome
em 25-27º, prolongando-se a costa até 33º. No mapa de Pesaro, o mesmo golfo
inominado está em 35-37º, aparecendo também em Silvano e Lenox na latitude de
35º e no Waldseemüller de 1505 em 33º. Quanto ao rio com a designação de
Jordão, ora nos surge em 35º (?) (Kunstmann II), ora em 33-34º (Canerio), ora em
A autoria do Mapa de Turim é desconhecida, ficando seu nome atribuído ao local onde se encontra, a Biblioteca Real de Turim.
Equivoca-se o autor ao definir esta data, uma vez que os mapas do Italiano Battista Agnese de 1541 e 1544 aparecem com o nome Rio
Jordan no primeiro e com os nomes Rio da Prata e Rio Jordan no segundo. Os originais dos referidos mapas encontram-se na Biblioteca
Estatal da Baviera e na Biblioteca Nacional da Espanha, respectivamente.
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40º (Waldseemüller, 1507), ora em 27º (Ruysch), ora em 32º (Waldssemüller,
1516). (ALMEIDA, 1955, p. 26 apud NEETZONW, 2014, p. 5).
A confusão referente ao topônimo que atribui o nome Rio Jordan nas representações do estuário
platino, bem como a grande diferenciação em graus com que o golfo chamado Jordan aparece em diversos
mapas, demonstra as dificuldades existentes na época, onde a ciência cartográfica ainda buscava, com
dificuldades, projetar-se o mais objetiva possível.
Ainda, fato que contraria a hipótese da descoberta do Rio da Prata pela expedição de 1501-1502 é o
de que a nomeação do estuário platino como Rio Jordan jamais aparece fora da cartografia, onde “os
membros das cortes, os altos funcionários, os navegadores e os cronistas do tempo nunca usam nos seus
escritos o nome Jordão para designar o estuário platino, mas sim, rio de Solis, Santa Maria, S. Cristóvão ou
até mesmo Rio da Prata”. (NEETZONW 2014, p. 5).
Assim, a atribuição da descoberta do Rio da Prata ao florentino Américo Vespúcio - ou a Gonçalo
Coelho, como defendem alguns5 - possui pouca adesão na historiografia, sendo então a descoberta atribuída à
armada portuguesa sob o comando de João de Lisboa que supostamente em 1511-1512 teria navegado pela
região ou então pela expedição espanhola de Juan Díaz de Sólis, então piloto mor da Casa de Contratacion
de Sevilla que chegou ao estuário platino no ano de 1516.
Da expedição de João de Lisboa pouco se sabe e há dificuldade em precisar a cronologia. Em seu
Livro de Marinharia, que contém um atlas e o Tratado da Agulha de Marear e que é datado do ano de 1514, há
várias imprecisões, como por exemplo, o registro do Estreito de Magalhães descoberto apenas em 1520 por
Fernão de Magalhães, o registro do Japão, atingido pelos portugueses somente em 1543, e curiosos castelos
portugueses desenhados na região do Império Inca, fato que não possui amparo de outros registros. Além
disso, e fato que pode explicar tamanha imprecisão cronológica da data assinada com o conteúdo registrado,
é como explica Luis de Albuquerque em um estudo sobre o Tratado da Agulha de Marear
Mas nem aqui [uma cópia do Livro de Marinharia de João de Lisboa] são de
surpreender as deficiências da transcrição, visto a compilação em que ela se
encontra datar de meados de Quinhentos e o tratado ser de 1514, como no seu título
está declarado; o que quer dizer que certamente existiram várias cópias
intermediárias entre o original e essa aparentemente mais antiga versão de que
dispomos. (ALBUQUERQUE, 1981, p. 130).
Ainda que não comprove a veracidade da viagem de Lisboa até o estuário platino, a mesma é
utilizada por Dom João III, rei de Portugal e Algarves desde 1521 até 1557, a fim de justificar a posse e a
presença lusitana na região platina. Este é, inclusive, o último argumento do historiador português Luis
Ferrand de Almeida contra as ideias de Roberto Levillier, onde para ele deixa-se de lado o “descobrimento do
Prata em 1502 pela simples razão de que ele não existiu”. (ALMEIDA, 1955, p. 46 apud NEETZONW, 2014,
p. 7). A tentativa de Dom João III de argumentar a favor da presença lusa na região anterior aos espanhóis
indica o forte impacto que as expedições principalmente na década de 1520 terão no imaginário europeu
posterior.
Enquanto a expedição de João de Lisboa, se é que podemos considera-la como verídica, parece ter
tido não muita relevância na sua contemporaneidade, sendo invocada apenas posteriormente como
argumento para presença lusitana, a expedição de Juan Díaz de Sólis (1470-1516) composta por três navios
que atingem o estuário platino em 1516 teve muitas consequências diretas e é invocada pela historiografia
5 Na segunda metade do século XX, historiadores como Alexandre Gaspar da Naia defenderão que as expedições de 1501-1502 e 1503,
organizadas pela coroa portuguesa e por Fernando de Noronha respectivamente, teriam tido como capitão mor o português Gonçalo
Coelho e não Américo Vespúcio, tendo como principais argumentos o mapa de Maiollo de 1504 que contém a inscrição “Tera de
Gonsalvo Coigo, vocatur Santa Croxe”, alegando que a atribuição daquelas terras só poderia ser dada ao capitão que as costeou e não a
outro tripulante e também que, partindo da ideia de que essas expedições realmente tomaram conhecimento do estuário platino, essa
informação não havia chegado até a Casa de Contratacion de Sevilla até a expedição de Sólis, mesmo que Américo Vespúcio tivesse sido
capitão mor da referida da casa desde 1508 até 1512, ano de sua morte. (NAIA, 1960).
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como a expedição descobridora do Rio da Prata. Dela, primeiro “sel piloto [o próprio Sólis] había sido
muerto y canibalizado por sus nativos a la vista de los barcos cuando se acercó a la costa con quince
hombres”(GANDINI, 2016, p. 2). Segundo que, ao assumir o comando da expedição com a morte de Sólis,
seu cunhando Francisco de Torres decide voltar para Espanha, retorno que acabou com o naufrágio de um
dos navios próximo a ilha de Santa Catarina. Os náufragos sobreviventes permaneceram no novo continente,
sendo um deles Aleixo Garcia que, oito anos depois, comandaria uma incursão frustrada junto a indígenas
em direção ao interior do continente, mais precisamente até o Alto Peru, em busca das riquezas incas. E
terceiro é que, apesar de ter chamado o estuário de Mar Dulce, o nome de Sólis acabou nos anos seguintes a
sua morte sendo atribuído ao rio, ficando o atual Rio da Prata conhecido como Rio Sólis ou Rio de Sólis pelos
espanhóis.
Consequência direta também foi a expedição do veneziano Sebastião Caboto (1474-1557) a serviço da
coroa espanhola em 1526. A expedição que inicialmente deveria atravessar o Estreito de Magalhães e chegar
até as Ilhas Molucas foi desviada por Caboto quando este teve conhecimento, a partir, tanto de portugueses
no Novo Mundo, quanto de indígenas e especialmente sobreviventes da expedição de Sólis, das expedições
anteriores a ele e da possibilidade de conquista de infindáveis riquezas, passando então a navegar pelo Rio
Sólis e depois pelo Rio Paraná, fundando o forte Sancti Spíritus que serviu de base para navegações futuras
na região. Além de Caboto e na mesma época que ele, outro navegador circulará, contrariando sua missão
original, pelo Rio da Prata e seus afluentes. Seu nome é Diego García de Moguer, espanhol a serviço da Casa
de Contratacion de La Coruña6, e que a partir de 1528 passa a navegar pelo Rio da Prata, chegando até o forte
Sancti Spiritu e depois ao encontro de Caboto, reivindicando ser ele o detentor do direito de explorar e
conquistar aquelas regiões.
O RIO QUE LEVA ATÉ A PRATA: MUDANÇA DA PERSPECTIVA EUROPÉIA SOBRE A REGIÃO
Segundo Maria Juliana Gandini (2016), as expedições de Sebastian Caboto e Diego Garcia de Moguer
foram responsáveis por uma mudança na perspectiva europeia sobre a região:
La circulación de un inmenso cúmulo de nueva información sobre la región,
recogida y validada por el aparato judicial español, logró transformar
drásticamente la representación inicial establecida del río descubierto por Solís.
Así, pasó de ser el sombrío paraje de la muerte y la canibalización de su primer
descubridor a una atractiva conquista. Esta transformación se hizo evidente con el
surgimiento y consolidación de un nuevo nombre para la masa de agua, que
denotaba mejor las renovadas y auspiciosas esperanza que sobre él se
desarrollaron: de allí en más sería llamado Río de la Plata, en referencia a los
inmensos tesoros en metales preciosos que permitiría alcanzar. (GANDINI, 2016,
p. 5).
Contudo, apesar de toda a mística que repercutiu na Europa em torno da região platina e das
possibilidades que ela oferecia – chegar a imensas riquezas a partir dos rios – ter surgido aparentemente sob
viajantes e exploradores diretamente associados a Espanha, ainda que estes tivessem tido contato com
diversos indivíduos residentes do Novo Mundo, o nome de “Rio da Prata” parece notabilizar-se entre os
portugueses primeiramente. Isso fica claro em um despacho de 17 de fevereiro de 1531 da então Rainha da
Espanha Dona Isabel ao seu embaixador em Portugal Lope Hurtado de Mendonza:
“Después que en veinte y cinco del pasado os escribi con Antônio de Montoya lo
que habreis visto, he seído informada que puede beber dos meses, poco más o
Casa financiada por comerciantes, uma vez que “los costes de los preparativos eram muy altos y la situación financiera del Emperador
no permitia dispendios”. (DOMINGO, 2004, p. 60).
6
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menos, que el Rey de Portugal escribió á Sevilla á un português que se liame
Gonzalo de Costa, que ha muchos anos que vivia en un puerto de la tierra dei Brasil
del dicho Sereníssimo Rey para que fuese allá, é que, legado, su Alteza le preguntó
particularmente por las cosas dal Rio de Soli que los portugueses llaman el de la
Plata”. (SILVA, 1946, p. 297 apud NAIA, 1969, p. 69).
A carta da rainha a seu embaixador evidencia, além da utilização do nome Rio da Prata pelos
portugueses7, a própria diferenciação entre as duas coroas, deixando claro que na Espanha ainda se chama o
rio descoberto por Sólis em 1516 de Rio de Sólis.
Outra fonte da época que registra essa dualidade referente ao estuário platino é o mapa do piemontês
Giacomo Gastaldi de 1556 (com reedições em 1565 e 1606), presente no terceiro volume da obra Delle
navigationi et Viaggi do trevisano Giovan Battista Ramusio. A obra de Ramusio, por sua vez, trata-se de um
compilado de textos descritivos sobre diversas partes do mundo reunidos pelo autor.
O autor do texto original que deu origem ao mapa de Gastaldi, segundo Olga Okuneva (2013), seria
Pierre Crignon, tripulante de uma expedição francesa de 1529 rumo ao Sumatra que teria em seu trajeto
paradas ao longo da costa brasileira, ainda que a descrição pelo autor tenha sido feita apenas alguns anos
mais tarde, próximo ao ano de 1535. A partir dela, Gastaldi, que cria um mapa rico em detalhes, porém pobre
em topônimos, ao desenhar o estuário platino, lhe atribui dois nomes ou então um único nome composto a
partir dos nomes que já foram citados no despacho da rainha Isabel. Assim, ao nomear a região, o autor
utiliza a inscrição “Solis. f. Rio dela Plata” (figura 1). Contudo, é importante destacar a presença apenas do
nome “R. dela plata” na exata posição onde se localiza o estuário, talvez indicando que para o autor houvesse
uma preferência pelo nome Rio da Prata ou então que este nome fosse predominante na região, ainda que o
nome utilizado pelos espanhóis fazendo alusão a Juan Diaz Sólis permanecesse coexistindo.
No entanto, outra ocorrência do período que merece ser destacada é que o nome Rio da Prata,
embora utilizado nas fontes supracitadas, ainda não era utilizado nem mesmo pela totalidade dos
portugueses, demonstrando não haver nenhuma espécie de batismo formal da região reconhecida pela
totalidade dos viajantes e exploradores que cruzavam por ali. Isso evidencia-se no roteiro de viagem de Pero
Lopes de Sousa, irmão de Martin Afonso de Sousa, que navegou pelo Rio da Prata já no ano de 1531 e que
mais de uma vez o citou com o nome de “Rio Santa Maria”. (RIHGB, 1861, p.44).
Figura 7 - Detalhe do mapa de Giacomo Gastaldi de 1556. Biblioteca
Nacional.
No ano seguinte, em 1532, em sua famosa carta a Martin Afonso de Sousa datada de 28 de setembro, o próprio Rei de Portugal, D. João
III, ao definir a extensão de cada capitania, chama o estuário platino já pelo nome de Rio da Prata: “[...]determinei de mandar demarcar
de Pernambuco até o Rio da Prata cinquenta léguas de costa a cada capitania[...]”. (LUIS, 2004, p. 65).
7
Fonte: Exemplar colorido da Biblioteca Digital de Cartografia Histórica — Universidade de São Paulo. [http://
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www.cartografiahistorica.usp.br/index.php?option=com_jumi&fileid=14&Itemid=99&idMapa=579].
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Na cartografia espanhola e portuguesa do final da década de 1520 e década de 1530, posterior a
repercussão das viagens de Moguer e especialmente a de Caboto, tornar-se-á claro a relevância que estas
tiveram para modificação da perspectiva sobre o estuário platino.
Analisando a construção e o conhecimento geográfico da bacia platina no século XVI e início do
XVII, Tiago Bonato (2018) demonstrará a transformação ocorrida na representação cartográfica do Rio da
Prata e seus principais afluentes a partir dos mapas de Diogo Ribeiro do ano de 1525, 1527 e dois do ano de
1529 e de Alonso de Chaves de 1535 (figura 2), ambos cartógrafos da Casa de Contratacion de Sevilla, bem
como em Portugal com o mapa de Gaspar Viegas em 1534 (figura 3).
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Figura 2 - Traço da bacia platina presente nos mapas de Diogo Ribeiro de (a) 1525, (b) 1527,
(c) 1529 e (d) 1529, bem como o mapa de Alonso de Chaves (e) 1535
Fonte: Adaptação da utilização feita por Tiago Bonato, 2018, p.
141.
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Comparando os cinco mapas da Casa de Contratacion de Sevilla supracitados é possível perceber a
imediata repercussão que as viagens tiveram. Nos dois primeiros de 1525 e 1527, anteriores a Caboto,
mantém-se um tamanho aproximado àquele presente em diversos outros mapas da década de 1520,
enquanto que os dois mapas de 1529, criados enquanto Caboto ainda estava na América, mas que cartas dali
já haviam chegado à Europa, já mostram o rio Paraná extremamente ampliado além de outros afluentes
considerados importantes. (BONATO, 2018, p. 140).
Uma dessas cartas é a de Luis de Ramirez que em 10 de julho de 1528, pouco antes de morrer no
forte Sanct Spíritus escreve com destino a Espanha. Em uma parte, ele descreve o que Caboto e sua
tripulação ouviram de Enrique Montes, um dos sobreviventes da expedição de Juan Diaz Sólis e da aventura
de Aleixo Garcia que vivia na região próxima à ilha de Santa Catarina desde então:
“dijo [Enrique Montes]8 que si le queríamos seguir, que nos cargaría las naos de
oro y plata porque él estaba cierto que entrando por Rio de Solís iríamos a dar en
un río que se llama Paraná, el cual es muy caudalosísimo, y entra dentro en este de
Solís con veinte y dos bocas. Entrando por este dicho río arriba no tenía en mucho
cargar las naos de oro y plata aunque fuesen mayores, porque el dicho río de
Paraná y otros que a él vienen a dar, van a confinar con una sierra a donde muchos
indios acostumbran ir y venir y que en esta sierra había mucha manera de metal y
que en ella había mucho oro y plata y otro género de metal que aquello no
alcanzaba qué metal era, más de cuanto ello no era cobre e que todos estos géneros
de metal había mucha cantidad”. (GANDINI, 2016, p. 15).
Na carta, Ramirez, além de utilizar-se do nome Rio de Sólis ao referir-se ao estuário platino, já deixa
explicito toda a motivação que levou Caboto e seus homens a entrarem no Rio de Sólis e em seguida ao rio
Paraná e demais afluentes, todos representados nos mapas de Diogo Ribeiro de 1529. Motivação está que
pode ser considerada como aceita pelo imaginário europeu.
Nesses mapas, bem como no mapa de Alonso de Chaves de 1535 nenhuma alusão é feita ao estuário
platino enquanto Rio da Prata. Nos dois mapas de 1529, Diego Ribeiro atribui toda região com o nome
“Tierra de Sólis”, enquanto que no mapa de 1535, o nome Sólis aparece apenas na legenda como primeiro
explorador da região, logo abaixo do grande nome “El Gram Rio De Paraná” destacando ainda mais a
importância que o rio Paraná teve nesse período. Contudo, o mapa Português de 1534 do cartografo Gaspar
Viegas não atribui nenhum nome ao estuário platino, seja com o nome Rio de Sólis entendido como nome
espanhol, seja com o nome Rio da Prata, português.
Ao passo que é conhecido que havia a intensão de proteger certos lugares considerados importantes
no Novo Mundo impedindo que outras coroas adquirissem o conhecimento destes, conforme aponta Maria
Portuondo em um estudo sobre monarquia espanhola
Se documentos que revelassem as coordenadas geodésicas, as características, as
costas e os recursos hidrográficos e naturais do Novo Mundo fossem produzidos e
circulassem publicamente, poderiam, nas mãos dos inimigos ser utilizados para
atingir o Novo Mundo e causar danos ao patrimônio da Coroa e às pessoas cuja
proteção era obrigação do estado. (PORTUONDO, 2009, p. 7 apud BONATO, 2018,
p. 100).
8
Adição feita por Gandini (2016).
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Figura 3 – Detalhe do mapa de Gaspar Viegas de 1534. Biblioteca Nacional da
França.
Fonte: Exemplar colorido da Gallica – Biblioteca Nacional da
França. [http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b52503224r].
E, aceitando que o estuário platino era entendido como o meio pelo qual se poderia obter infindáveis
quantidades de metais preciosos como ouro e prata, além de outros, é possível considera-lo como uma dessas
localidades que, conforme aponta Portuondo, seria melhor que suas características e utilidades fosse
mantidas sob sigilo. Muito embora, ao passo que se conhece a intencionalidade das coroas ibéricas, incluindo
Portugal que “a proibição da disseminação de cartas náuticas e descrições históricas sobre as recentes
descobertas portuguesas datam de ainda mais cedo, 1481” (BONATO, 2018, p. 101), a dificuldade de
realmente mantê-las em segredo eram imensas.
Entre essas dificuldades, destacam-se os viajantes e cartógrafos que ao longo dos anos poderiam, ora
prestar serviços para uma coroa, ora para outra. Apenas para elucidar, o próprio Américo Vespúcio, já
mencionado neste artigo prestando serviços a coroa portuguesa, a partir de 1508 torna-se capitão-mor da
Casa de Contratacion de Sevilla; importantes cartógrafos portugueses como Lopo Homem e Jorge Reinel
possuem diversas acusações de prestação de serviços clandestinos para coroa espanhola; além disso, o
sobrevivente Enrique Montes que auxiliou na expedição de Caboto com informações e Gonçalo de Acosta,
conhecido como Bacharel e que viajou pela região platina com Moguer, irão prestar serviços a Martin Afonso
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de Sousa e seu irmão Pero Lopes de Sousa que navega o rio por ele chamado de “Santa Maria” até o boca do
rio Paraná no ano de 1531, ou seja, pouquíssimo tempo depois do retorno de Moguer a Espanha.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da década de 1520, mais precisamente em 1523 com o Mapa de Turim, o Rio da Prata
descoberto pelos europeus em 1516 com Juan Diaz Sólis passa a ser nomeado em diversos mapas pelo nome
Rio Jordan, nome presente em diversos outros mapas anteriores ao ano de 1516. Isso fez com Roberto
Levillier chegasse a conclusão de que o rio da Prata só poderia ter sido descoberto pelos europeus muitos
anos antes em uma das expedições de Vespúcio pela costa brasileira, o que por sua vez não encontra amparo
em outras fontes.
A importância do rio da Prata para os europeus na primeira década após sua descoberta mostra-se
pouco relevante, sendo mais associado a morte de Sólis. Contudo, a partir das expedições de Moguer e
principalmente Caboto, esta percepção mudará no próprio continente europeu.
Não se sabe exatamente se houve uma tentativa direta de barrar que informações sobre as
possibilidades da região fossem adquiridas por outras Coroas para além da espanhola. Contudo, o que
Caboto e sua tripulação acreditavam ser possível alcançar, e que foi imediatamente transposto para os mapas
de Diogo Ribeiro de 1529, configura como um dos casos em que Maria Portuondo defende que a coroa
espanhola tinha intenção de proteger.
No entanto, caso tenha sido esse o caso, é evidente que tal objetivo falhou. Em Portugal, já em 1531, é
possível notar, conforme apontou a Rainha Izabel, a utilização do nome “Rio da Prata” para referir-se ao rio
descoberto por Sólis, enquanto na própria Coroa espanhola utiliza-se o nome Rio de Sólis. O imaginário,
ainda que construído majoritariamente por agentes e ex-agentes da Coroa espanhola foi rapidamente
incorporado pelo governo português que anos mais tarde tentará argumentar a partir da suposta viagem de
João de Lisboa a anterioridade lusa na região.
O nome Rio da Prata creditado pela historiografia como descendente da expedição de Caboto se
mostra de certa forma verídico, ainda que este não seja um nome espanhol para o rio, mas sim português, no
mínimo em termos oficiais, o que não anula a possibilidade de que ele tenha sido gerado no próprio
continente americano e talvez até anterior a expedição de Caboto.
REFERÊNCIAS
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“Aqui jaz”: Cemitério Vera Cruz e a devoção a Maria Elizabeth
Francielle Moreira Cassol1
Resumo: O presente trabalho objetiva demostrar a importância do Cemitério Municipal Vera Cruz
enquanto espaço de memória, de sociabilidades, de rituais de passagem, de práticas de devoção, ou seja, de
um patrimônio material e imaterial da comunidade Passo-fundense, enquanto local de veneração a “santa
popular” Maria Elizabeth de Oliveira. O cemitério foi inaugurado em primeiro de janeiro de 1902 e foi o
primeiro cemitério municipal da cidade, o mesmo se desenvolveu acompanhando o crescimento urbano e
afastando os mortos do centro da cidade. Muitas vezes a “última morada” demonstra em sua arquitetura os
interesses e preferências do finado enquanto vivo, bem como, os de sua própria família, deixando assim
registrado seu nível socioeconômico ou mesmo sua posição social. Nesse contexto, possuir uma sepultura
rica em ornamentos, de grande porte, repleta de esculturas e símbolos sacros pode significar proteção divina,
um descanso eterno, em paz e mesmo sua distinção social, visto que, este cemitério mesmo sendo um campo
santo é também um espaço privado e que despende certo investimento econômico. Nesse espaço cemiterial
conseguir um bom lugar para ser enterrado ou mesmo adquirir um terreno é uma forma de garantir um
patrimônio material, mas também de construir um lugar de lembranças e de práticas de socializações como
nos enterros, velórios, um local a ser visitado e cultuado pelos familiares. O Cemitério, a devoção a Maria
Elizabeth, assim como diversas sepulturas do cemitério Vera Cruz destacam-se enquanto patrimônios locais,
lugar histórico, um local repleto de lembranças, memórias, valor arquitetônico, artístico, devoção e beleza.
Palavras-chave: cemitério; local de memória; devoção
INTRODUÇÃO
A devoção aos santos de cemitério, assim como o temor da morte e do morrer são práticas que
continuam existindo na contemporaneidade refletindo assim o contexto e a crise social vivida neste. Além
disso, deve-se pensar, o que refletem manifestações como esta? um desabafo da população? o cansaço de
tanta exploração ? o medo do desconhecido? ... todas essas problematizações nos fazem refletir: no porque
ainda recorremos a esse tipo de explicação ou solução ?
E nesse contexto torna-se necessário entender o processo de formação de uma santa, como se
configura como santa e porque a cidade lhes escolheu para ser um ícone de devoção e assim também o
cemitério Vera Cruz, como polo de atração. Para isso, utiliza-se de uma corrente historiográfica que se inicia
no Brasil a partir da década de 1980, a saber, a Nova História, pois esta dispõe de novos temas, problemas,
objetos e fontes. Nesse contexto, tornou possível dar voz aos dominados (não vê-los só como dominados), aos
que não eram contabilizados ou enfatizados na escrita da História, a partir do estudo de seus
comportamentos e de suas atitudes diante da sua realidade ou sobre ela.
Philippe Ariés preconizava que desde o século XIX já era perceptível à mudança de atitude e da
mentalidade perante a morte, essa se consolidaria no transcorrer século XX, denominada por ele de a “morte
invertida”. Assim, durante o transcorrer do século XX pode-se presenciar, de certa forma, uma espécie de
afastamento do homem da morte e dos ritos que envolvem o morrer. Norbert Elias, afirma que os rituais
fúnebres da atualidade atestam que estes “foram esvaziados de sentimento e significado”. Na ótica do mesmo
autor, isso deve-se principalmente ao medo da morte, especialmente a morte solitária de uma velhice
abandonada, sem parentes, ou mesmo de alguém que lhes ofereça uma lágrima, uma prece, uma dor. Para
minimizar o temor do desconhecido que é suscitado com o contato ou a proximidade da morte, o homem
tende a se afastar, a evitar e a reprimir os pensamentos que recordam a morte, ou mesmo incorporem a fé na
imortalidade (ELIAS, 2001, p.36). Para Ariés (2003), isso seria um retrato da prevalência do silêncio e da
proibição das questões da morte, onde as manifestações aparentes de dor, pesar e luto estavam fadados à
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Doutoranda em História na UPF.
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extinção. Por outro lado, o que se pode levantar até o momento é que mesmo com todo o empenho em se
afastar, diminuir ou mesmo acabar com o morrer, a dor, a saudade e o crer em algo além da morte, não se
extinguiram. Para a presente investigação, e para pensarmos os patrimônios cemiteriais contidos do
Cemitério Municipal Vera Cruz, em Passo Fundo, far-se-á o recorte a partir de três lápides, a saber, jazigo de
Maria Elizabeth de Oliveira, Mausoléu dos Expedicionários e Urna 78 (localizada em frente ao túmulo de
Maria Elizabeth).
1. Cemitério Vera Cruz: uma visita ao passado
Por volta de 1835, Cabo Neves (figura “ilustre” da História Passo-fundense) cedeu às terras que
seriam o berço de Passo Fundo, construindo a partir daí o primeiro cemitério da cidade que se tem notícia.
Esse primeiro cemitério localizava-se no cruzamento das atuais ruas Independência e General Netto, ao lado
da primeira Igreja que o município acolheu e local em que foram enterrados os primeiros responsáveis pelo
nascimento e desenvolvimento da cidade. A criação deste cemitério, em acordo com os preceitos vigentes foi
destinada somente aos moradores católicos, mas, por outro lado, motivou a construção de um outro local
onde pudessem ser enterradas pessoas não católicas, localizado em frente ao atual Quartel. Anos depois, com
a Proclamação da República (15/11/1889), o catolicismo como religião obrigatória foi cancelado no Brasil.
Com isso, a necessidade da existência de dois cemitérios consequentemente se extinguiu. Ao mesmo tempo e,
nesse contexto surgiu em Passo Fundo a construção da Gare com a chegada do trem, em 1898, tornando
impossível que o centro da cidade continuasse a manter o cemitério católico. Nesse contexto, o Coronel
Gervásio Annes (PRR), ordenou a desapropriação de parte das terras determinando que os dois cemitérios
fossem transferidos para um único lugar que seria o primeiro cemitério considerado laico.
Mesmo o primeiro cemitério local sendo considerado público (do latim –publicus – relativo ou
pertencente ao povo, à população; diferente do privado; que serve para o uso de todos 2), os enterros de
algumas pessoas não eram permitidos de acordo com a cultura de boa parcela da sociedade. Todos os
moradores passo-fundenses não católicos falecidos não eram bem vistos no “campo santo” do primeiro
cemitério. Dado esse déficit houve a necessidade de um novo local para os sepultamentos e a criação do
segundo cemitério, ao qual atendesse a outras culturas religiosas a partir do ano de 1840. “O espaço de
enterro – também chamado cemitério luterano – foi organizado por Johann Adam Schell 3, imigrante
germânico, e se localizava na área da atual Praça Fredolino Chimango, em frente ao quartel (ZANOTTO,
2015, p.35)”. Entretanto, na virada do século XIX para o século XX, as novas constituições e traçados
urbanos, bem como, as exigências sanitárias para as cidades levou Passo Fundo a criação de seu primeiro
cemitério verdadeiramente público 4.
O Cemitério Municipal Vera Cruz de Passo Fundo/RS foi inaugurado em primeiro de janeiro de 1902
e foi o primeiro cemitério municipal da cidade, o mesmo se desenvolveu acompanhando o crescimento
urbano e afastando os mortos do centro da cidade. Muitas vezes a “última morada” demonstra em sua
arquitetura os interesses e preferências do finado enquanto vivo, bem como, os de sua própria família,
deixando assim registrado seu nível socioeconômico ou mesmo sua posição social. Nesse contexto, possuir
uma sepultura rica em ornamentos, de grande porte, repleta de esculturas e símbolos sacros pode significar
proteção divina, um descanso eterno, em paz e mesmo sua distinção social, visto que, este cemitério mesmo
sendo um campo santo é também um espaço privado e que despende certo investimento econômico. Nesse
espaço cemiterial conseguir um bom lugar para ser enterrado ou mesmo adquirir um terreno é uma forma de
Conforme dicionário Pibreram. https://www.priberam.pt/dlpo/p%C3%BAblico
Considerado como o primeiro comerciante do município, Johann Adam Schell – mais conhecido como Adão Schell – veio da Alemanha
para o Estado e, em 1836, passou a morar em Passo Fundo. A residência onde morava e mantinha seu comércio está situada na Av.
Brasil, esquina com Teixeira Soares. O prédio já reformado ainda carrega a história do comerciante através de uma placa, que
homenageia e agradece Schell e sua esposa, considerados os primeiros imigrantes alemães da cidade. O estabelecimento construído e
gerenciado por Schell durante muitos anos se chamava Casa para Todos e vendia principalmente artigos de cama, mesa e
banho. http://www.diariodamanha.com/noticias/ver/11430/Do+primeiro+comerciante+%C3%A0s+grandes+redes+de+varejo
4 Segundo Monteiro (2007); Zanotto (2015), muitas das ossadas do primeiro e do segundo cemitério de Passo Fundo foram transferidas
para o Cemitério Municipal Vera Cruz.
2
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garantir um patrimônio material, mas também de construir um lugar de lembranças e de práticas de
socializações como nos enterros, velórios, um local a ser visitado e cultuado pelos familiares. Mais de um
século se passaram desde a inauguração do Cemitério Vera Cruz e, as práticas fúnebres, assim como, as
relações com a morte em muito se alteraram.
Personagens da história de Passo Fundo, como Adão e Ana Schel, Coronel Chicuta, Coronel Lolico,
Lalau Miranda e Wolmar Salton, encontram-se representados no Cemitério Vera Cruz por meio de suas
sepulturas. O presidente do Instituto Histórico de Passo Fundo - Fernando Miranda, afirma ser o local um
museu a céu aberto. “Por meio das construções e obras de arte, é possível saber como os passo-fundenses
lidavam com a morte, sua situação econômica e política, religiosidade e etnias, entre outros aspectos” 5,
explica. Miranda destaca a riqueza das obras de arte encontradas no Cemitério, principalmente as estátuas de
mármore, granito e bronze. Atualmente um guia tem sido distribuído gratuitamente, promovendo um novo
olhar para a história local, bem como, para a última morada, uma vez que o Cemitério Vera Cruz concentra
amplo patrimônio artístico e histórico.
A proposta do Instituto Histórico de Passo Fundo, em parceria com o
Arquivo Histórico Regional, é propor um novo olhar para o Cemitério Vera
Cruz a partir da criação do Guia de Visitação que apresenta um mapa de um
percurso a ser seguido. “A ideia é que o Cemitério seja visto não com aquele
olhar tradicional, de quem vai no cemitério para fazer uma visita a alguém
que faleceu, mas com um olhar cultural e um olhar voltado para história”.
Carregado de simbologia, mensagens e estátuas, o Cemitério Vera Cruz
carrega, também, a história da cidade. O cemitério é uma fonte histórica: os
personagens que participaram da história da cidade e do estado estão
enterrados ali e a própria arquitetura apresenta parte de épocas vivenciadas
aqui.
Os traçados e as organizações sócio hierárquicas contidas nas cidades foram transferidas para o
desenho/organização dos cemitérios contemporâneos. Se nos centros urbanos determinadas personalidades
com determinados poderes aquisitivos possuem condições para morar no centro e erguer nestes locais seus
bustos e monumentos, (ou seja, cristalizar suas histórias e memórias), também assim ocorre com
determinadas parcelas da população que acabam tendo de ocupar locais mais distantes ou menos
glamorosos, como os bairros, loteamentos, vilas e favelas. Para Bellomo apud Zanotto (2015, p.40).
Os cemitérios reproduzem a geografia social das comunidades e definem as
classes sociais. Existe a área dos ricos, onde estão os grandes mausoléus; a
área da classe média, em geral com catacumbas na parede, e a parte dos
pobres e marginais. A morte igualitária só existe no discurso, pois na
realidade, a morte acentua as diferenças sociais. As sociedades projetam nos
cemitérios seus valores, crenças, estruturas socioeconômicas e ideológicas.
Essa geografia societária, estas subdivisões econômicas, mas também ou principalmente sociais
(pobres, classe média e ricos), podem ser transpostas nos cemitérios também para os que são: “sempre
lembrados”, os “lembrados uma ou duas vezes ao ano” e os “esquecidos”6. Pois, aqui nos interessam para
além dos suntuosos túmulos – suas arquiteturas e estéticas - as histórias, as memórias, as identidades dos
viventes, ou melhor, dos morrentes. E assim, a história da cidade, de seus habitantes e daqueles que por aqui
passaram. Vemos desse modo, os cemitérios como locais de memória e esquecimento, mas mais ainda, de
conhecimento.
5
6
Disponível em: http://historiaupf.blogspot.com.br/2014_10_01_archive.html
Neste estudo “os esquecidos” serão representados pelos mortos da Urna 78.
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Urna 78
Ainda segundo Chartier (2002), deve-se pensar nas lutas de classe por representação e nos
mecanismos utilizados pelos grupos sociais para se imporem uns sobre os outros. Assim, túmulos, jazigos,
objetos, estatuária, imagens, catacumbas, criptas, oferendas, sepulturas e às vezes cemitérios inteiros
refletem quem o morto foi em vida, o que se pensa sobre o além-vida, ou o que se quer que se lembre deste;
com suas consequentes diferenciações sociais. Nesse contexto, a história é a ciência que pretende dar conta
das transformações da sociedade, já a memória coletiva, esta insiste em assegurar a permanência do tempo e
da homogeneidade da vida, como um intento de mostrar que o passado permanece. Enquanto a história é
informativa, a memória é comunicativa.
Os cemitérios e túmulos enquanto lugares de memória (ou seja, um espaço físico que é suporte de
um espaço imaterial e imaginário) corroboram com a possibilidade de preservação e valorização de
memórias individuais e coletivas e que nos viabilizam o estudo e a compreensão do humano, de
manifestações e crenças produzidas em um espaço, além de suas ideias, preferencias e identidades. Isso, pois
os lugares de memória são espaços que sempre evocam o passado, mas que também, muitas vezes, projetam
o futuro. Para Nora (1993) "Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória
espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios
fúnebres”.
2. Quem lembramos e quem esquecemos: memórias eleitas e deslembrança
Na doutrina católica existe uma área chamada de escatologia. A escatologia, também chamada de
novíssimos7, nos auxilia pensar a morte e o morrer, pois esta fala do destino final de todos os homens. No
Compêndio de catecismo da Igreja Católica encontramos os quatro novíssimos que nos interessam, a saber,
Morte, Juízo, Inferno e Paraíso. No Brasil, desde a chegada de Portugal e consequentemente da colonização,
a doutrina católica guiou e influenciou no tratamento dos mortos, seus funerais, orações, missas e enterros,
assim como, no imaginário humano sobre os mortos e o além-vida e o temor a estes. Segundo Schmitt
(1999),
(...) se o corpo de um afogado desapareceu e não pode ser sepultado segundo
o costume, ou ainda se um assassinato, um suicídio, a morte de uma mulher
no parto, o nascimento de uma criança natimorta apresentam para a
comunidade dos vivos o perigo de uma mácula. Esses mortos são geralmente
considerados maléficos. Essa dimensão antropológica e universal do retorno
Mistura a filosofia e a teologia que fala sobre o destino do homem e do mundo, é estudo das profecias concernentes ao fim desta era e a
volta de Cristo.
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dos mortos está presente, entre outras na tradição ocidental, desde a
Antiguidade, na Idade Média e até no folclore contemporâneo “.
Nesse contexto, o medo da morte e dos mortos pode ser superado por meio do intermédio de pessoas
com dons extraordinários, assim como em Maria Elizabeth de Oliveira – A santinha de Passo Fundo. Para
além da discussão patrimonial e de direito a preservação de uma memória em especial, pensar no que é
preservado dentro do espaço cemiterial, muito tem haver com como lidamos com a morte, o morrer e os
nossos mortos.
Maria Elizabeth de Oliveira nasceu na cidade de Passo Fundo, no dia 6 de fevereiro de 1951.
Entretanto, seus pais, Leda de Oliveira e Alcides de Oliveira eram naturais do município de Lagoa Vermelha.
Em função dos estudos Maria Elizabeth veio morar em Passo Fundo com seus avós, tendo estudado no
Ginásio Menino Jesus e mais tarde no Grupo Escolar Protásio Alves. A breve vida de Maria Elizabeth
segundo registros destacou-se, entre outros, por participar de modo intenso da vida religiosa citadina e da
moral pregada pelo catolicismo, visto que, além de participar de coral religioso, também auxiliava os padres,
na Igreja Matriz Santa Terezinha (FABIANI, 2009).
Em 1965 ano de seu falecimento, também os pais de Maria Elizabeth mudaram para a cidade, vindo a
residir na Avenida Presidente Vargas, avenida esta que viria a ser o lugar onde a menina sofreria um acidente
em 28 de novembro daquele ano. No dia de sua morte, Maria Elizabeth encontrava-se com um grupo de
amigas, na esquina das ruas Padre Valentin com a Avenida Presidente Vargas, quando em torno das 15hs de
um domingo, uma Kombi (MORENNO, 1994) dirigida por Gentil Lima subiu a calçada desgovernadamente,
atropelando o grupo de jovens que ali se encontravam. Maria Elizabeth chegou a ser levada ao hospital local
São Vicente de Paulo demonstrado em seu corpo externamente apenas um ferimento no pé, todavia,
internamente a mesma encontrava-se com uma séria hemorragia, que a levou a morte.
A morte brusca de uma jovem passofundense, com menos de quinze anos, segundo os jornais e
pessoas contemporâneas ao fato, relatam que este acidente chocou a cidade inteira. Logo após o ocorrido, a
história de que Maria Elizabeth de Oliveira havia previsto sua própria morte, escolhido seu caixão e a roupa
que “usaria por toda a eternidade” e a aceitado abnegadamente espalhou-se rapidamente.
Entre as características destacadas por Barbosa na biografia de Maria Elizabeth há “a singularidade
da menina” enquanto modelo de conduta moral, não só para as moças da época, mas para todas as futuras
gerações de mulheres. Além disso, a primeira edição do livro traz várias imagens da menina, o relato do
momento em que a mesma previu sua própria morte, a narrativa do dia em que ela escolheu seu caixão e o
vestido em que seria enterrada, bem como, a exposição de alguns dos “milagres” ligados a Maria Elizabeth e
que auxiliaram a compor o quadro de sua suposta santidade (FABIANI, 2014). Não obstante, o próprio
Barbosa (padre e biógrafo de Maria Elizabeth) relata em seu livro ter já em 1966, ou seja, um ano após a
morte da “Santinha”, ter recorrido à intersecção da mesma, inúmeras vezes e, assim recebido graças.
Também, destacamos estar presente, tanto na biografia quanto nos relatos dos jornais locais, o fato de que,
quem recorre a Maria Elizabeth: ganha ou sente o cheiro de rosas, estes é que serão atendidos. Essa presença
das rosas é bem recorrente nos relatos dos fieis, ora diz-se que a menina, quando viva, era apaixonada por
rosas vermelhas. No contexto das devoções em cemitérios, “os mortos se tornam os intermediários mais
próximos para os quais apelar em caso de perigo, para levar orações e pedidos, pelo caminho hierárquico, até
os grandes santos e a Madona, de onde virá a intervenção milagrosa” (VOVELLE, 2010, p.35).
No cemitério Vera Cruz, da cidade de Passo Fundo, a devoção a Maria Elizabeth de Oliveira realizada
diariamente junto a seu túmulo pode-se encontrar a pagação de promessas por meio da distribuição de
preces através de “santinhos”. A promessa estabelece a relação entre o santo e o devoto. Nesse contexto, a
função do milagre é mudar a realidade em um curto espaço de tempo. Essa relação pressupõe que o devoto
deve oferecer algo em troca para receber o que precisa. A Igreja reconhece o ato de distribuição de milheiros
de “santinhos” como meio de promover e propagar as devoções. Nesse contexto, se deve atentar para o fato
de que o limite entre o que é devocional institucionalmente e o que não o é, é bastante tênue.
No que se referem ao uso das imagens, estas são consideradas extremamente importantes e
estratégicas no convencimento do santo e na propagação da fé. As imagens da “santa” auxiliam o devoto a
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materializar a crença e focar seus esforços no crer sobre o extranatural. Essas imagens estratégicas não se
restringem somente ao santo ou santa, mas também na arquitetura do próprio cemitério, nos jazigos e nas
esculturas presentes nos mesmos, que são carregados de efígies do Romantismo repletos de emoção e
expressividade.
A maior forma de expressão, convencimento e estratégia católica encontra-se no culto as santas. Esse
culto serve a instituição como forma de fixar valores por intermédio de modelos a serem seguidos pelos fieis.
Durante boa parte da história do catolicismo o santo mártir é o principal modelo de santidade, geralmente
relacionados a casos de morte bruta, acidentes e casos de superação. No caso de Maria Elizabeth de Oliveira a
sua santidade gira entorno de sua morte prematura (aos 14 anos), bem como por possuir o dom da previsão.
A partir de Chartier (2002), pode-se compreender como o devoto em boa parte dos cultos a figura do mártir
esta pautada em sua morte e em seu sofrimento demasiado. A morte nesse contexto, algo que é temido pelo
humano, por seu desconhecimento, é ressignificada quando tratamos de casos excepcionais como o de Maria
Elizabeth.
Em muitas municipalidades é comum a visita, particular ou em grupo, aos cemitérios e túmulos,
principalmente no dia de finados, a saber, dois de novembro de cada ano. No que se refere às visitas aos
jazigos,
“se acercan a la tumba de sus seres queridos para mantenerla limpia y
adornada com luces y flores, esta visita debe ser una muestra de la relación
que existe entre el difunto y sus allegados, no expresión de una obligación,
que se teme descuidar por una especie de temor supersticioso”. 8
Como este estudo também é voltado para a temática da morte, faz-se necessário pensar, em o que a
Igreja diz sobre este e o purgatório, pois segundo a mesma, parte do imaginário e do medo da morte
encontra-se no que se pensa sobre estes. Isso, porque segundo a Igreja Católica, o purgatório é o lugar que a
maioria das pessoas temem e dispensam suas preces. Por outro lado, quando se trata das devoções às almas
de santos e santas de cemitério, o que é o caso do presente estudo, o que se percebe é que estas preces
destinam-se muitas vezes a elevar a alma da “santa” ao reino do céus junto a Deus e a todo o seu panteão; o
que pode ser comprovado através dos textos contidos nos “santinhos” encontrados no Cemitério Vera Cruz.
Segundo Bettencourt (p.136-137), “os cristãos deram continuidade ao que havia preconizado Judas
Macabeu (+ 160 a. C.), que julgava ser útil o sufrágio dos vivos para a purificação dos mortos antes de chegar
ao paraíso”. A partir do que preconizou Macabeu pode-se pensar nos meios do sufrágio do fiel em relação a
seus santos, assim como, a Maria Elizabeth; talvez um dos mais fáceis seja a distribuição dos “santinhos” já
mencionada anteriormente, o que, entretanto é dispendioso para quem encontrasse em certa classe
socioeconômica. Além dos ditos santinhos, os fieis de cemitério, além do local de culto, não se distinguem
dos devotos de igrejas ou de outras religiões. Na pagação de promessas, ou seja, no selar o pacto com a
“santa” estes utilizam-se da distribuição e entrega de velas, flores, placas, fotografias, bilhetes e mesmo
cópias de orações escritas a mão, estes chamam-se ex-votos. Assim o ex-voto, “é um objeto oferecido ao santo
como resultado de uma promessa e de um favor recebido cuja doação havia sido prometida anteriormente.
Uma das funções do ex-voto é dar a conhecer o favor recebido, realizado a divulgação dos poderes do santo”
(2015, p. 84).
No contexto local, no Mapeamento do Patrimônio Imaterial de Passo Fundo 9, entre os patrimônios
de cunho religioso podemos destaca: crenças afro-brasileiras, Benzedeiras/Curandeiras/Rezadeiras, a
Marcha para Jesus, Procissão de São Cristóvão, a Romaria Arquidiocesana de Nossa Senhora Aparecida e a
Romaria e Festa em Honra a São Miguel Arcanjo. No que se refere ao patrimônio 10 material municipal de
Directorie
Sobre
la
Pledad
Popular
y
Liturgia:
Principlos
y
Orientaciones.
http://www.buenaprensa.com/Content/Images/uploaded/Pdfs/Directorio%20de%20Liturgia.pdf
9https://www.academia.edu/24251378/Mapeamento_do_Patrim%C3%B4nio_Imaterial_de_Passo_Fundo_RS
10 Segundo informações repassadas em 2015 pela Arquiteta Marielen Colpani, Coordenadora do Núcleo de Patrimônio Histórico da
Secretaria de Planejamento da Prefeitura os tombamentos já realizados – em caráter temporário ou permanente - são: Pórtico Nossa
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Passo Fundo, o Jazigo de Maria Elizabeth de Oliveira é tombado desde o ano de 2007 através do – Decreto n°
183. Segundo esse decreto,
Art 1º Declara bem integrante do patrimônio histórico-cultural do
Município de Passo Fundo, para fins de tombamento provisório, nos termos
da Lei nº 2.997/95, a edificação em alvenaria, com área de 19,55m²,
conhecida como o jazigo de Maria Elizabeth Oliveira, localizada na Quadra
1a-20, junto ao Cemitério Municipal da Vera Cruz. Parágrafo único. As
características do jazigo, incluso a volumetria e fachada principal, devem ser
preservados, observando o seu aspecto original e a Lei nº 2.997/95 11.
No caso de Maria Elizabeth, em que a devoção, a expressa do patrimônio (material e imaterial) e o
local de memória é o seu jazigo e o Cemitério Vera Cruz, estes ganham novos usos e se tornam uma espécie
de santuário. Para Fabiani (2007, p.330), o Cemitério Municipal da Vila Vera Cruz, em Passo Fundo, pode
ser considerado um local privilegiado, pois guarda uma qualidade excepcional, única. O Cemitério, nesse
caso, representa um dos lugares sagrados que envolvem o fenômeno; têm a intenção de ser como um veículo
de passagem e de contato entre os devotos e sua santa. Esse espaço sagrado representa o recinto no qual se
pode tornar possível atingir o nível da transcendência.
Túmulo de Maria Elizabeth de Oliveira
“santinho” de Maria Elizabeth
Outro jazigo tombado como patrimônio cemiterial pelo município desde o ano de 2012 é o Mausoléu
dos expedicionários (ex combatentes da Revolução de 1932), que neste mesmo ano obteve seu restauro
completo, por uma junta do exército. Construído originalmente para ser o “descanso final” do Capitão Jovino
da Silva Freitas (que faleceu na epidemia de grupe espanhola de 1918), o mausoléu foi doado anos mais tarde
Senhora Aparecida – Decreto n° 47/2008; Jazigo de Maria Elizabeth de Oliveira – Decreto n° 183/2007; Estádio Wolmar Saltom –
Decreto n° 108/2007 (não existe mais); Casa Dipp – Decreto n° 89/2007; Silo – Decreto 236/2006; Casa João Café – Decreto n°
235/2006; Ruína – Decreto n° 234/2006; Moinho – Decreto n° 233/2006; Edifício n° 378 Av. General Neto – Decreto n° 232/2006;
Igreja Matriz “Nossa Senhora da Conceição” - Decreto n° 231/2006; Casa Morch – Decreto n° 230/2006; Quartel do Exército – Decreto
n° 229/2006; Escola Protásio Alves – Decreto n° 229/2006; Caixa D'água – Decreto n° 227/2006; Casa Della Méa – Decreto n°
226/2006; Hotel Glória– Decreto n° 122/2014; Clube Caixeral– Decreto n° 123/2014; Banco Popular – Decreto n° 3911/2002 ( não
existe mais); Companhia Cervejaria Brahma – Lei n° 3275/1997; Bebedouro – Lei n° 3043/1995; Banco Itaú – Lei n° 2955/1994; Prédio
do Texas, do Instituto Educacional – Lei n° 2937/1994; Igreja Metodista – Lei n° 2906/1993; Capela São Miguel – Lei n° 2696/1991;
Prédio da Antiga Gare – Lei n°2671/1991; Escola Municipal Padre Vieira – Lei n° 2535/1989; Cemitério do Capitão Fagundes dos Reis –
Lei n° 7481/1957; Conjunto Arquitetônico ( Academia Passofundense de Letras, Museu, Teatro) – Lei n° 2608/1990.
11 file:///D:/USERS/Desktop/santinhas/dec_183_07.pdf
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pela própria esposa ao III/8º Regimento de Infantaria do Exército a fim de guardar as ossadas de pracinhas
de guerra. Em entrevista da época da entrega da reforma, o ex prefeito Airton Dipp salientou que:
Foram combatentes e pracinhas da revolução de 1932 que orgulham Passo
Fundo. Este Mausoléu foi doado ao Exército nacional e isso é uma
homenagem aos que fizeram parte da História de Passo Fundo. Fica o
registro e os nossos parabéns ao Exército e à família 12.
Para Tedesco (2011, p.49), “se refletirmos sobre o que se convencionou chamar “memória
patrimonial”, veremos que essa é uma memória social, quando não coletiva, de um grupo bem identificado e
expresso pelos símbolos cristalizados e referidos”, a exemplo do Mausoléu (abaixo).
Mausoléu dos Expedicionários
Nesse contexto segundo Tedesco (2011, p. 52), “há um culto aos templos, aos obeliscos, a torres
funerárias, como se estivessem confrontando a aceleração dos tempos, a transitoriedade da vida moderna”.
Desse modo, alguns monumentos são facilmente deslembrados ou derrubados, enquanto permanecem
“figuras do esquecimento”, pois seu significado esvaiu-se no transcorrer no tempo ou na memória social.
Nessa conjuntura, torna-se fundamental para a permanência de um bem, de um patrimônio, de uma
memória a constante repetição e a reatualização da lembrança através de seus rituais de comemoração. No
caso do Cemitério Vera Cruz, em Passo Fundo, esta rememoração e comemoração acontece principalmente a
cada dia dois de novembro, pois, se os rituais de lembrança se mantiverem, a memória dos tempos pode ser
relegada ao esquecimento (HALBAWACHS, 1990).
Esta memória patrimonial reflete as representações que os grupos sociais fazem de si mesmos, que
na verdade são reflexos dos seus modos de ser, de seus objetos, de seus valores, enfim, de sua identidade.
Nesse contexto, toda a cultura humana, todo o fazer humano pode tornar-se digno de ser eleito patrimônio e
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http://www.pmpf.rs.gov.br/interna.php?t=19&c=11&i=5642
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assim, digno de preservação e propagação às gerações posteriores. Assim, quando um fazer, uma estátua, um
jazigo, um monumento tornar-se patrimônio de um grupo, é ele que fará a ligação entre os partícipes deste
grupo, desta coletividade, bem como, dará a noção de continuidade entre as sociedades pretéritas, presentes
e futuras (quem sabe). Tudo isso, porque, o patrimônio nada mais é, do que uma herança do passado para o
presente e que almejamos legar as próximas gerações, pois, trata-se do um conjunto de bens, sejam estes
matéricos ou imatéricos que identificam uma comunidade frente aos demais e que expressam a sua
identidade. O patrimônio cemiterial, nesse contexto, é um bem precioso e silencioso, é uma expressão de um
tempo, uma memória, um viver.
A ideia central que perpassa todo este estudo constitui-se da reflexão de que a partir dos três objetos
de estudo, a saber, Jazigo (devoção) de Maria Elizabeth de Oliveira, Mausoléu dos Expedicionários e
Túmulo/Urna “78”; o que é eleito e consequentemente preservado e valorizado enquanto patrimônio está, na
verdade, completamente relacionados com o que selecionamos devido à atribuição de determinados valores,
sejam estes estáticos, arquitetônicos, históricos, etc. Um bem, um objeto, um jazigo, um monumento, uma
memória, uma crença só é verdadeiramente rejeitada e posteriormente esquecida quando não mais reflete os
valores, desejos, anseios e projeções da comunidade que o elegeu enquanto patrimônio. Para Abreu e Chagas
(2003), “as memórias que envolvem patrimônio coletivo, podem construir mitos entorno de figuras que
encarnam grupos, coletividades, heróis sacralizados”. Nos dois primeiros casos, o patrimônio cemiterial
tende a ser legado as próximas gerações, mas no caso da memória dos ocupantes da Urna 78, só o tempo
dirá. Nesse contexto, devemos lembrar do/dos imaginário/os em torno da morte, da crença e da guerra.
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Do templo ao camelódromo:
O kitsch e a construção do imaginário religioso oriental no Brasil
Daniel Confortin1
Resumo: A imagem de Buda é um dos mais poderosos ícones religiosos da história, sendo facilmente
reconhecida através de várias culturas e estando presente em diversos ambientes e contextos pelo mundo.
Mas quais foram seus caminhos até o Brasil? Buscaremos aqui traçar um percurso reverso que nos leve desde
as imagens de resina do camelódromo até o ídolo de ouro do templo, comparando modos de ver e de
relacionar-se. Trata-se de um projeto de pesquisa em andamento, com informações ainda parciais, que busca
estabelecer pontes conceituais e estéticas entre a cultura luso-brasileira e os países asiáticos do passado
colonial lusitano. Teremos como recorte temporal a fase final das famosas "carreiras das Índias", período
entre o século XVIII e XIX, e como objeto de estudo as características "chinesices" tão caras à corte e à
burguesia da época, presentes no barroco mineiro. Assim, tais ligações terão como base bens de consumo,
notavelmente escultóricos e decorativos, considerados como kitsch ou de “mau gosto”. Nossa hipótese de
trabalho é que, no momento da chegada do Kasato Maru (1908) os imigrantes defrontam-se com uma cultura
imaginária pré-existente sobre o mundo que deixaram e que vai permear o desenvolvimento do Budismo no
país. Esta abordagem tem como objetivo desenvolver uma narrativa marginal de aproximação através da
antiarte (representada pelo kitsch), do sentimentalismo, do consumo barato, da devoção religiosa piegas e
das suas respectivas trocas internacionais. Para além de determinar a importância do kitsch na construção do
imaginário religioso oriental no Brasil, buscaremos também estabelecer os sentidos do kitsch religioso nas
sociedades asiáticas e a possível influência do orientalismo reverso.
1 Introdução
Em 1998, ao estudar o estilo de desenvolvimento de software proposto por Linus Torvalds, seu
colaborador Eric Raymond sistematizou no ensaio “A Catedral e o Bazar” os princípios básicos que levaram
um sistema operacional livre, feito de maneira colaborativa, ao sucesso mundial em apenas cinco anos. O
título é uma metáfora ao modelo de gerenciamento proposto, respectivamente, pelas grandes companhias
comerciais e pelas comunidades livres unidas pelos laços tênues da internet. Como o próprio Raymond
confessa, até o final dos anos 1990 os softwares mais importantes “[…] necessitavam ser construídos como as
catedrais, habilmente criados com cuidado por mágicos ou pequenos grupos de magos trabalhando em
esplêndido isolamento” (RAYMONDS, 1998, p. 5). Mas o Linux subverteu essa lógica ao decentralizar
funções, liberar atualizações constantes e promover uma inédita promiscuidade criativa, ou seja, "[…]
nenhuma catedral calma e respeitosa aqui - ao invés, a comunidade Linux pareceu assemelhar-se a um
grande e barulhento bazar de diferentes agendas e aproximações" (RAYMONDS, 1998, p. 5).
A lógica participativa proposta por Torvalds tinha como base a participação dos usuários como codesenvolvedores, estes eram incentivados a participar do processo e dar feedbacks quanto a satisfação das
próprias necessidades. Com o tempo, por meio de uma metodologia livre e participativa, usuários tornavamse hackers e passavam à então seleta casta dos escritores de código. O título desta pesquisa faz referência a
este modelo, posto em prática por Torvalds, e a metáfora que o explica, proposta por Raymonds,
transportados para o campo da estética religiosa e da cultura material.
Nossa hipótese é de que existe uma dinâmica criativa na oposição destes modelos que extrapola a
esfera da cultura regional, operando como facilitadora na assimilação de conceitos complexos da cultura
oriental. A questão da influência do kitsch (conceito que trataremos melhor a seguir) como vetor nessa
transposição de fronteiras culturais surge já em solo brasileiro em um terreiro de Umbanda. A formação
deste imaginário religioso com elementos orientais na cultura brasileira através de objetos cotidianos é o
1 Bacharel em Design (ULBRA, 2006) e Filosofia (UPF, 2016), Mestre em Educação (UPF, 2016) e Doutorando em História.
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escopo desta pesquisa pois consideramos que é através da “lógica de camelódromo”, democrática e
promíscua, do kitsch que elementos da iconografia indiana, chinesa e japonesa conseguiram permear a
religiosidade regional.
2 O lado de dentro e o lado de fora
Já em minha pesquisa anterior2 busquei, nas fronteiras com as “Índias Orientais”, comparar o uso das
imagens na educação dentro do contexto monástico budista com as preconcepções estabelecidas no ocidente.
Ao adentrar no imaginário indiano e tibetano foi possível, ao mesmo tempo, efetuar um diálogo construtivo
acerca de temas tangenciais que definiam os contornos do uso prático da iconografia. Entre eles estavam, por
exemplo, a relação entre professor e aluno no período védico do subcontinente, o uso tardio da oralidade e a
importância da linguagem gestual que levavam para um uso especial das imagens como encapsuladores de
significados complexos. Além disso havia na raiz da identidade iconográfica budista, resquícios de uma
herança das conquistas alexandrinas que floresceu entre as fronteiras do mundo grego (em Gandhara, no
atual Afeganistão) e indiano (Magadha, região que reúne os estados do centro-norte do subcontinente).
Buscaremos aqui tratar desta permeabilidade de limites territoriais (e imaginários) e da fertilidade de suas
respectivas fronteiras.
Para isso é necessário definir os conceitos de limite e fronteira. De acordo com Golin (2004) toda a
fronteira é um processo de construção histórica que tem como centro um limite estabelecido. O limite é
orientado para dentro, a fronteira para fora (como já diz o nome). O limite sinaliza a separação, corta o
espaço, a imaginação, a identidade e o tempo. Já a fronteira é a zona molhada de contaminação, um espaço
de complexidade, mistura e miscigenação. Como afirma o autor: “O caráter aberto e desafiador da fronteira
contrasta com a necessidade de precisão do limite, que precisa estar objetivamente demarcado na topografia
como artificialidade inserida pelo Estado político” (GOLIN, 2004, p. 14). Com isso, a singularidade das
fronteiras é impossível de ser enquadrada em um único esquema teórico. Ou seja, não existem regras claras
para os conceitos de limite e fronteira, ora estes acentuam aspectos geopolíticos e econômicos de soberania
nacional ou segurança, ora se transformam em espaço de interação entre identidades e culturas. No caso da
pesquisa proposta buscaremos tratar da controversa característica nômade das imagens como peões da
armada cultural.
O filósofo francês Michel Onfray (2009) em sua teoria sobre a viagem vincula o nomadismo ao
processo de formação identitária das fronteiras estabelecendo, através do mito judaico-cristão de Caim e
Abel, nos arquétipos do nômade e do pastor, as duas forças opostas que estabelecem os contornos regionais.
Este embate entre o nacionalismo do camponês e o cosmopolitismo do nômade, ou ainda, de acordo com as
profissões dos irmãos bíblicos “[…] o pastor de rebanhos e o camponês lavrador, o homem dos animais em
movimento contra o do campo que permanece” (ONFRAY, 2009, p. 11). Onde a errância tem sua origem em
uma maldição divina que assola até hoje aqueles homens, mulheres, imagens e ideias que vivem em trânsito
para além de seu local de origem.
Assim as fronteiras históricas e imaginárias são determinadas por um processo, ao mesmo tempo, de
diálogo e exclusão, onde coexistem a necessidade da criação de identidade e uma ânsia por “contaminação”.
Em resumo “por mais que ganhem espaço os conceitos de compartilhamento, involucramento, interface, a
fronteira histórica dimensiona-se pela tensão e pela ambiguidade.” (GOLIN, 2004, p. 24).
Outro conceito importante que deve ser esclarecido é o de “região”. Trata-se de um conceito relativo,
ou seja, a região é um espaço social construído historicamente e só tem sentido em relação ao todo. Além
disso a própria fronteira “[…] tomada como epicentro geopolítico somente pode ser dimensionada na sua
relação com região e o Estado” (GOLIN, 2004, p. 59). Na visão do historiador Patrick Geary (2005) a ideia de
nações surge justamente no século XIII a partir do regionalismo de uma Europa em constante
2 Pesquisa de Mestrado em Educação no PPGEdu – UPF finalizada no ano de 2016: CONFORTIN, Daniel. A imagem na educação
budista indo-tibetana. 230 f. : il. ; 30 cm. Orientação: Profª. Drª. Graciela René Ormezzano. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade de Passo Fundo, 2016.
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reestruturação, por conta de guerras, migrações e conquistas que resulta na solidificação de uma identidade
telúrica coletiva. A nação, em seu ideário do senso comum, é portanto um conceito muito recente, um ser
andrógino (“mãe-pátria”) imaginário oriundo daquilo que Lévi-Strauss (1908-2009) convencionou chamar
de “ilusão totêmica” que visa distinguir homens e povos por meio de diversos recursos simbólicos.
O viajante desagrada o Deus dos cristãos, assim como indispõe príncipes,
reis, homens do poder desejosos de realizar a comunidade da qual sempre
escapam os errantes impenitentes, associais e inacessíveis aos grupos
enraizados. Todas as ideologias dominantes exercem seu controle, sua
dominação ou mesmo sua violência sobre o nômade. Os impérios se
constituem sempre sobre a redução a nada das figuras errantes ou dos povos
móveis. (ONFRAY, 2009, p.12)
O conceito de nação assume assim uma dimensão sagrada que acaba por se transformar no anseio pela
imortalidade, ou ainda, na vontade de pertencer a uma coletividade imperecível. Este sagrado secular
substitui formas mais primitivas de culto e forma uma história muitas vezes distorcida que prima pela
unidade e pelo domínio. Sendo assim nação e a tradição unem-se na classificação de pessoas e no
estabelecimento dos limites. Do nacionalismo surge o anseio imperial e, posteriormente, a ampla dominação
colonial europeia que define os destinos do mundo até hoje, criando o “outro” no oriente através da ideologia
do orientalismo, como veremos a seguir.
3 Orientalismo e filosofia
A era do colonialismo europeu teve inúmeras consequências materiais e sociais para os demais povos
do mundo. Mas além destas questões, transformou a maneira com que vemos os povos para além do Bósforo
(sem falar dos povos africanos) legando para estes uma alteridade sem rosto. Para tal colonização do espírito
o intelectual palestino Edward W. Said cunhou, ainda na década de 1970, o termo “Orientalismo”. O conceito
serve para designar um grupo de saberes científicos, artísticos, literários e imaginativos. Não apenas sobre o
espaço geográfico mas também sobre o imaginário, construído pelo ocidente (em especial ingleses, franceses
e estadunidenses). Ele se caracteriza por uma visão exótica, inferior e misteriosa do oriental, insinuando a
necessidade de sua dominação. Podemos listar três situações onde o conceito é usado: nas pesquisas e
escritos sobre o oriente, no estilo de pensamento baseado em distinção maniqueísta entre oriente e ocidente,
e na autorização institucionalizada para assuntos Orientais.
Não se deve supor que a estrutura do Orientalismo não passa de uma
estrutura de mentiras ou de mitos que simplesmente se dissipariam ao vento
se a verdade a seu respeito fosse contada. Eu mesmo acredito que o
Orientalismo é mais particularmente valioso como um sinal do poder
europeu-atlântico sobre o Oriente do que como um discurso verídico sobre o
Oriente (o que, na sua forma acadêmica ou erudita, é o que ele afirma se).
[...] O Orientalismo, portanto, não é uma visionária fantasia europeia sobre o
oriente, mas um corpo elaborado de teoria e prática em que, por muitas
gerações, tem-se feito um considerável investimento material. O
investimento continuado criou o Orientalismo como sistema de
conhecimento sobre o Oriente, uma rede aceita para filtrar o Oriente na
consciência ocidental, assim como o mesmo investimento multiplicou - na
verdade, tornou verdadeiramente produtivas - as afirmações que transitam
no Orientalismo para a cultura geral. (SAID, 2007, p. 33)
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Para Said estas representações do Oriente não são somente ilusórias (aliás, este sequer é o ponto do
discurso) mas que operam com um sentido determinado, dentro de um cenário histórico, intelectual e
econômico. Este labirinto começa ser desvendado atualmente, com passos muito lentos, através da
interconexão informática propiciada pelas comunicações e, principalmente, pela emergência das nações
asiáticas como potências mundiais. Apesar disso os fantasmas do fanatismo religioso e dos diversos false
flags aos quais somos expostos seguidamente desde 2001, teimam em perpetuar o espírito orientalista.
Nas ciências humanas, especialmente nos ramos da filosofia e da história, segue um ranço romântico
que dificulta qualquer estudo sério (especialmente no Brasil) sobre a cultura oriental. Para o fortalecimento
do campo se fez necessária muita paciência e cuidado para não cair nas mesmas armadilhas de décadas
passadas. Em sua introdução ao pensamento de Nagarjuna, Ferraro e Vieira (2016) consideram haver dois
extremos que devem ser evitados ao abordar qualquer aspecto da cultura oriental. O primeiro consiste em
considerar o pensamento eurocêntrico como de alguma forma superior e o colocar como intérprete por
direito de uma cultura que não é sua. Um exemplo citado pelos autores é “[…] a interpretação de textos
budistas fortemente marcada por um viés kantiano” (FERRARO; VIEIRA, 2016, p.13). Um segundo erro
seria, ao contrário, tentar menosprezar a tradição ocidental como um mero desdobramento da sabedoria
oriental “[…] de tal forma que a primeira não passaria de uma espécie de espelhamento, no âmbito da cultura
ocidental, da verdade já obtida pelo Oriente” (FERRARO; VIEIRA, 2016, p. 14).
Nunca é demais lembrar que toda a filosofia se encontra em um determinado contexto cultural e este é
determinante para sua história. Sendo assim, em um contexto globalizado se faz necessária a
descentralização cultural (de maneira direta, terminar com seu caráter meramente eurocêntrico) e abolir os
padrões culturais previamente impostos para sua validação. Somente assim, por meio da igualdade de
condições, pode se instaurar um verdadeiro diálogo e não mais uma relação de escravidão intelectual.
Os diversos discursos filosóficos apresentam zonas de convergência, sem que
eles tenham um recobrimento integral e sem que suas diferenças sejam
também eliminadas. Essas imbricações convidam, antes, ao diálogo e à
comunicação entre elementos irremediavalmente diferentes, em vez de
mutismo entre as partes e as negligências recíprocas. As imbricações nos
oferecem a oportunidade de identificar aqueles pontos para os quais há
convergências de posição, sem que isso implique a eliminação de pontos
conflitantes. […] Afinal, se as teses filosóficas são passíveis de crítica, isso
obviamente vale tanto para os topos filosófico ocidental quanto para o
oriental. (FERRARO; VIEIRA, 2016, p. 16)
A cultura asiática é responsável por metade de toda a história humana (em questão populacional,
talvez bem mais que isso) e ainda assim é desconsiderada desde a educação básica até o conhecimento
erudito. A gestão de sua diversidade é um laboratório, um campo fértil para pesquisas, nas diversas áreas do
conhecimento acadêmico. Mesmo existindo uma hierarquia epistemológica clara onde a razão europeia é
soberana inquestionável, como já mencionamos, o fechamento apresenta corrosão desde o início do século
passado com a migração japonesa para o continente americano, o sincretismo e a música africana, seguido do
questionamento do paradigma moderno e, posteriormente, através dos diversos movimentos contraculturais.
O caminho que escolhi em pesquisas anteriores para ajudar na desconstrução destas barreiras foi o
estudo da cultura material. Por exemplo, para compreender a profusão de imagens surgidas no seio do
Budismo (uma religião que, em teoria, prega o ateísmo e o autoaperfeiçoamento) recorremos às origens das
primeiras imagens como ferramentas para representar a ausência de Buda enquanto professor máximo.
Estas imagens surgem, em realidade, do culto as relíquias do próprio Buda e de outros praticantes ilustres. O
Budismo adere então ao movimento bhakti3, oferecendo ao leigo o caminho da devoção, mesmo assim “[…]
3 Movimento que enfatizava a relação pessoal com a divindade. Localiza-se nas raízes dos movimentos renunciantes e na composição da
literatura Upanixade.
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as representações antropomórficas não significaram o fim do culto às relíquias, objetos ou locais sagrados,
elas coexistem desde a época do próprio Buda, indicando o aspecto material e humano de um fenômeno
transcendente” (CONFORTIN, 2016, p. 107).
A observação nos leva até uma dinâmica que evidencia um paralelismo entre a prática erudita e leiga,
onde a segunda transforma materialmente a primeira e acrescenta elementos afetivos e emocionais na esfera
religiosa. Para a atual pesquisa nossa hipótese leva em conta esse diálogo buscando apontar objetos de uso
cotidiano (especialmente caraterizados como kitsch) como a porta de entrada da cultura asiática, em seu
aspecto popular, na Europa e nas Américas. Aliás, um feito português. Ao analisarmos o já clássico trabalho
do Prof. José Roberto Teixeira Leite sobre as chinoiseries podemos constatar o mérito de Portugal na
promoção do imaginário indiano e chinês, com importantes repercussões em território brasileiro.
4 A Carreira da Índia e as chinoiseries4
É estranho perceber o quanto, ainda hoje, as identidades nacionais seguem se recrudescendo.
Sabemos, já mencionamos isso anteriormente, que a concepção do ideário nacional é relativamente recente e
tem como base uma memória (na maioria das vezes) distorcida e um senso artificial de identidade. Seu
passado é incerto e não temos como prever seu futuro. Para Golin “a gênese praticamente insolúvel da
representação da nação como unidade é que ela se constituiu, coincidentemente, no mesmo processo de
formação do capitalismo moderno e que ambos são inapartáveis.” (2004, p. 75). As tendências, no entanto, é
de que as fronteiras continuem a existir, muito longe da utopia humana dos românticos. Desta maneira os
territórios e as culturas devem ser estudadas dentro dos jogos de poder e saber planetários, ainda assim, nos
lembra o autor, na maior parte do tempo, a experiência de pertencer a uma nação é tênue e superficial.
Portugal foi o primeiro Estado-Nação europeu e inaugurou a globalização por meio de suas
navegações. O chamado Extremo Oriente foi alcançado comercialmente primeiro pela Carreira das Índias
portuguesa, seguida das Companhia das Índias inglesa (1600), holandesa (1602) e francesa (1664). Segundo
a diretora do Museu Nacional do Azulejo de Lisboa, Maria António Pinto de Matos, já em 1502 o planisfério
de Cantino “[…] de origem portuguesa, apresentava pela primeira vez uma imagem minimamente realista de
muitas regiões asiáticas, onde figurava a terra dos chins, de onde vinham pérolas e almizquer e porçolanas
finas e outras muitas mercadorias. (MATOS, 2014, p.48). O Rei D. Manuel I solicita em 1507 que o Vice-rei
da Índia, D. Francisco de Almeida, enviasse porcelanas chinesas em cada carga destinada a terras
portuguesas. Seis anos depois é enviada a primeira expedição à China, sendo o capitão Jorge Álvares o
primeiro português a ali chegar. De acordo com Matos “a viagem da China revelou-se tão rentável como a
Carreira da Índia, que ligava Cochim a Lisboa, que além de morosa exigia vultuosos investimentos” (MATOS,
2014, p.49).
As expedições portuguesas entre 1515 e 1518 são um grande sucesso comercial mas um igualmente
grande fracasso diplomático. Devido a vários fatores políticos e sociais, ao final a imagem do período o que os
portugueses conseguiram foi a criação de uma imagem de "[...] comerciantes gananciosos e guerreiros
sanguinários[...] eram também acusados de raptores de mulheres e canibais" (MATOS, 2014, p.51). Em
meados do século XVI os portugueses atingem o Japão pela primeira vez, o que traria consequências tanto
para as relações luso-chinesas quanto para o comércio europeu em geral. O estabelecimento português em
Macau e seu desenvolvimento resultou na proliferação de diversos relatos sobre a China e o Japão. De acordo
com a autora, inicialmente estes relatos mencionavam questões comerciais, políticas e de defesa. Em seguida
outras questões como roupas, crenças, práticas religiosas, organização social e política, administração e
urbanismo começaram a ganhar importância. Mesmo reconhecendo que a porcelana chega no velho
continente via rota da seda antes do século XIV destas sobram poucos exemplares. De maneira mais tardia,
Matos refere-se à 1500 peças arqueológicas recuperadas próximas ao Forte de São Sebastião, na Ilha de
Moçambique, considerada a maior e mais antiga carga de porcelanas que se tem notícias em um navio
europeu, afirma:
4 Chinesices, ou seja, objetos fabricados fora da China que tinham como objetivo imitar a estética asiática.
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Este conjunto, hoje parcialmente exposto no Museu de Marinha, na Ilha de
Moçambique, é majoritariamente de porcelana branca decorada a azulcobalto vivo sobre vidrado com figuras humanos e motivos inspirados na
natureza, no bestiário mágico e na mitologia, muitos deles com desenhos
taoistas que reflectem os interesses do imperador Jiajing. (MATOS, 2014, p.
61)
Porém os portugueses não se contentaram em adquirir apenas as peças disponíveis no mecado local. A
história nos legou diversos exemplares encomendados pela coroa portuguesa e pelos jesuítas, as mais antigas
“[...] juntam à decoração tipicamente chinesa - animais mitológicos mais comuns, emblemática budista e
taoista, cenas quotidianas - as armas reais portuguesas, sempre em posição invertida e, por vezes, muito
deturpadas” (MATOS, 2014, p. 64) nesta fusão atrapalhada de dois mundos, os símbolos portugueses
dividiam espaço com outros elementos como "[...] o dragão entre nuvens e vagas, duas fênix a voar sobre
enrolamento de lótus e medalhões com paisagens naif com porco ou ave e outros motivos de
acompanhamento." (MATOS, 2014, p. 66)
Entre os séculos XVI e XVII estas mercadorias trazidas para a Europa eram de propriedade exclusiva
dos nobres e famílias burguesas abastadas. Nessa época o Ocidente se curva à moda das chinoiseries, as
cortes do continente travestiam-se de chineses em seus bailes e deleitavam-se com as histórias da Índia.
Além dos itens de vestuário e das tapeçarias eram as porcelanas as que mais atraiam atenção. O desejo de
consumo destes itens de luxo
"[...] acabou por despertar nos artífices e artistas europeus o desejo de lhes
copiar ou reproduzir as técnicas, formas e decoração. Assim, imitações em
faiança de porcelana chinesa começaram a ser manufaturadas em Delft,
Dresden, Nevers, Rouen, Bristol, Faenza e em dezenas de outras cidades,
antes de que por volta de 1709, em Meissen, Augusto o Forte lograsse com
que Böttger, seu alquimista transformado à força em oleiro, é verdade que se
beneficiando das pesquisas pioneiras do esquecido Tschirnhaus, finalmente
identificasse a matéria prima que faltava para a obtenção da verdadeira
porcelana, ao que se diz após observar como sua peruca enrijecera, depois de
polvilhada com uma argila abundante na Saxônia, e que outra coisa não era
senão caulim.” (LEITE, 2014, p. 121)
A produção de porcelana no estilo chinês se espalhou para por cidades como Viena, Ansbach,
Nymphemburg, Frankenthal, St. Cloud, Chantilly, Sevres, Chelsea, Bow, Derby, Worcester e outras "[...]
muitas exibindo na decoração padrões chineses de nuvens e montanhas, bambus, peônias, lótus, pássaros,
peixes, borboletas, morcegos, insetos, cenas mandarinescas e mesmo uns poucos motivos originais" (LEITE,
2014, p. 121). Mas não foi apenas através da porcelana que a cultura chinesa conseguiu permear as barreiras
da identidade europeia, no paisagismo as 36 estampas dos jardins imperiais do Padre Matteo Ripa que
circulavam em 1724, a descrição dos jardins pelo padre-pintor Jean-Denis Attiret por volta de 1743 e os
louvores aos jardins chineses de William Chambers, contribuíram para o abandono do modelo matemático e
racional francês. Também na música, no teatro e nas letras a influência oriental foi secular, algo que apenas
seria esquecido no reavivamento clássico da segunda metade do século XVIII.
O Brasil recebe tardiamente essa influência. De acordo o Prof. José Roberto Teixeira Leite não houve
nenhuma outra região brasileira mais influenciada pelo oriente que Minas Gerais. O autor relata que “[…] são
tão numerosos os exemplos de pintura decorativa de temática ou em imitação chinesas, o que levou a
originar a versão fantasiosa, até hoje arraigada no povo, segundo a qual artistas chineses teriam ali
trabalhado” (LEITE, 2014, p. 124). Com a ressalva que é um fato surpreendente a presença de escravos
chineses em Minas, nos começos do século XVIII, mas não consta que, entre eles, houvesse algum artista.
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Consta o nome de um único artista oriundo das colônias asiáticas portuguesas. Chamado Jacinto Ribeiro,
que executou pinturas na Vila do Carmo em 1711 e em Itabira do Campo em 1744. Ao que consta em um
termo de admoestação datado de 1721 era solteiro, pintor de ofício e natural da Índia. Nos lembra o autor que
o conceito de chinoiserie está ligado diretamente à cópia, não se tratando, portanto, de arte chinesa em si
"[...] mas de arte achinesada, epidérmica interpretação ocidental da complexa estética extremo-oriental: arte
de aparência, mas não de essência chinesa, chinesice em suma” (LEITE, 2014, p. 124). As chinoiseries são a
representação popular do orientalismo. Uma invenção europeia que registra claramente o imaginário
europeu. Contemporâneo ao surgimento do capitalismo e predecessor do kitsch industrializado que
dominaria o mundo logo em seguida. Foi a primeira intervenção oriental em mais de um milênio na Europa
cujos caminhos da rota da seda foram fechados com o advento do Islã.
Também econtramos esse tipo de obra nas pinturas da "capelinha chinesa" de Sabará, apesar de bem
mais tardias. É no arco-cruzeiro de Nossa Senhora do Ó as mais conhecidas chinesices do Brasil. Na Matriz
de Nossa Senhora da Conceição também podemos ver duas portas com chinesices em imitação de laca. Já em
Mariana, na capela-mor da Matriz da Conceição encontramos representações de "[...] letrados e mandarins, e
mesmo alguns europeus, em variadas poses e atitudes, ao ar livre ou sob pavilhões, caçando, perambulando
por jardins ou entre flores e pássaros, sob guarda-sóis ou a cavalo" (LEITE, 2014, p.126). No âmbito das
residências particulares cabe ressaltar a Praça Dom Joaquim (onde hoje funciona uma escola) podemos ver
figuras que se equilibram sobre nuvens em uma atmosfera chinesa e "[...] representações dos oito importais
taoistas" (LEITE, 2014, p. 127) pinturas que são atribuidas a Silvestre de Almeida Lopes e datadas do começo
do século XIX.
O Brasil certamente fazia parte das Carreira das Índias como indica a pesquisa de José Roberto do
Amaral Lapa (1969) intitulada “A Bahia e a Carreira da Índia”. Porém, especialmente a partir do século XVII,
os espanhóis passaram a usar o México como ponte entre China e Europa, mudando as rotas de comércio e
tirando a exclusividade portuguesa. A revolução industrial que se espalhou pelo norte da Europa trouxe outro
fator de democratização material, fenômeno que não foi, de maneira alguma, uniforme. Cabe agora
esclarecer melhor as características democráticas, emocionais do kitsch e como este pode ter sido, por sua
aparente insignificância de objetos de consumo fácil, a primeira brecha que a cultura asiática encontra no
ocidente. Ao fim, o kitsch acaba na louça da vovó, nas tapeçarias com motivos chineses e no “Buda” gordo 5
sob o qual ela deposita votos de prosperidade.
5 Viver o kitsch
Estava em Mumbai, a capital de Bollywood, no ano de 2010. Foi uma das minhas primeiras
experiências indianas, o início de uma caminhada de vários anos. Em um tuc-tuc vi uma cena que me
chamou atenção, eram várias pessoas reunidas em torno de um cartaz impresso em off-set de um dos filmes
do superastro Amitabh Bachchan 6 surrado pelo tempo. Em torno do cartaz foram dispostos adereços como
flores de plástico, guirlandas, côcos quebrados, estatuetas de plástico de vários deuses incluindo Lakshmi,
Ganesha e Hanuman, velas de diversas cores e comida, muita comida. Um dos homens que ali estavam se
moveu em direção ao cartaz com um incenso na mão esquerda e comida na direita, enquanto os demais
mantinham as mãos postas em oração. Quanta surpresa eu tive, naquele templo ao ar livre para uma
celebridade, quando o homem ofereceu comida na boca impressa no cartaz. Perguntei ao motorista do tuctuc em pleno engarrafamento de fim de tarde o motivo do gesto. Ele simplesmente me disse que Bachchan
estava doente e os fiéis queriam que ele se recuperasse logo. Não era um ídolo de bronze como nos templos
do sul, não era algo sublime como as esculturas budistas no estilo Gupta, era um ator de cinema, em um
templo de construção espontânea bem ao estilo bazar.
5 Na realidade a representação de Budai, um monge chinês que ecoa a figura dos antigos sábios taoistas. Temática que será aprofundada
no decorrer da pesquisa.
6 Um dos atores mais conhecidos de Bollywood. Teve seu auge nos anos 1970 e já participou de cerca de 200 filmes locais.
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Em minha pesquisa anterior explorei a relação da cultura indiana com a imagem através do conceito
de darshana7 que “[…] não é apenas ver, darshana é uma prática de visão na qual aquele que contempla é
transformado pelo objeto contemplado, ou onde o participante participa da sacralidade da imagem ou
relíquia” (CONFORTIN, 2016, p. 105). Mas aqui temos outros elementos que servem de base para
aprofundarmos o estrangeirismo kitsch. O que é esse mau gosto tão familiar, esse estilo sem estilo com um
sabor universal? Para Abraham Moles o kitsch está nas entranhas da própria arte, é uma etapa prévia do
desenvolvimento do gosto estético apurado, quase uma pedagogia por tentativa e erro. Mas, acima de tudo, o
kitsch é um modo de estar no mundo e determinar relações que vai além do objeto em si, ele “[…] precede e
ultrapassa estes suportes, ele constitui um estado de espírito que, eventualmente, se cristaliza em objetos”.
(MOLES, 1994, p. 11). Esta atitude kitsch nasce no início do século XIX com a ascensão da burguesia
europeia apoiada pela sociedade de massa e “[…] baseia-se em uma civilização consumidora que produz para
consumir e cria para produzir, em um ciclo cultural onde a noção fundamental é a de aceleração” (MOLES,
1994, p. 20).
Podemos elencar duas grandes etapas do kitsch. A já citada ascensão da sociedade burguesa e seu
estilo de vida, que coincide com os primeiros passos da globalização e da revolução industrial. E o atual
neokitsch que parte do consumismo das grandes lojas, feiras, camelódromos e shopping centers, e mais
recentemente do hiperconsumismo digital. A facilidade de acesso e o apelo emocional proporcionado pelo
kitsch por mais de dois séculos resulta em um povoamento do imaginário ao qual já estamos acostumados.
As louças verdes comuns em toda a casa brasileira, a jarra de plástico em forma de abacaxi, o escapulário da
romaria, as fotomontagens da infância e a escultura de gesso pintado de Nossa Senhora Aparecida são
apenas alguns exemplos deste fenômeno. Existe uma ligação direta com o fator emotivo que estabelece a
tônica das relações do homem na sociedade de consumo. Trata-se de uma estética dinâmica diferente da
filosófica onde conceitos como “belo” ou “feio”, “útil” e “inútil” não se aplicam. Isso cria uma estética de
acúmulo e complexidade que determinam o seu reconhecimento intuitivo.
O kitsch opõe-se à simplicidade: toda a arte participa da inutilidade e vive do
consumo do tempo; neste sentido, o kitsch é uma arte pois adorna a vida
cotidiana com uma série de ritos ornamentais que lhe servem de decoração,
dando-lhe o ar de uma complicação estranha, de um jogo elaborado, prova
das civilizações avançadas. O kitsch é, portanto, uma função social acrescida
à função significativa de uso que não serve mais de suporte mas de pretexto.
(MOLES, 1994, p. 26)
Em parte podemos atribuir essa estética carnavalesca ao processo de alienação oriundo da fabricação
em larga escala (ao menos este é o argumento clássico de seus críticos). Sendo assim, a tradição artesanal
raras vezes é kitsch, o atelier de um oleiro ou de um marceneiro são seus opostos. O produtor e o consumidor
kitsch não tem consciência do todo produtivo e age no mundo de maneira parcelada e, algumas vezes,
desprovida de significado “[…] O processo alienante do kitsch emerge desta relação, semelhante ao desvio do
artesanato em um bricolage (do it yourself) desprovido de significação econômica e cultural.” (MOLES, 1994,
p. 40). Talvez por conta disso a arte de viver do kitsch está alinhada com o homem comum. O artista curva-se
perante o consumidor como rei pois é praticamente impossível viver próximo ao sublime das grandes obras
de arte e objetos religiosos portadores de uma aura sagrada. Desta relação surge, por exemplo, a figura do
designer em suas diversas formas.
A mãe de santo não precisa de uma estátua de bronze chola indiana, assim como os fiéis fãs de
Amitabh Bachchan nunca sequer pensariam em erigir um altar feito de mármore branco. Isso seria
demasiado distante, demasiado “fora do lugar” ou pouco adaptado à vida comum. Mas ai repousa uma de
suas características básicas, o kitsch é um estilo de vida, uma maneira de se relacionar com o mundo, é algo
que está ao nosso alcance sensível e intelectual.
7 Para mais informações sugiro consultar: ECK, Diana L. Darsan: Seeing the divine in India. Delhi: Motilal Banarsidass, 2007.
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6 Os Maha Rajas do Ocidente
O kitsch surge dessa oscilação de expectativas nunca plenamente satisfeitas e facilidade de consumo.
E, se por um lado, as porcelanas provenientes da Carreira das Índias no século XVI, ou as esculturas
belíssimas trazidas pelos franceses do Oriente durante a era napoleônica, eram exclusividades da nobreza e
da burguesia europeia, por outro a era da reprodutividade técnica trouxe para a casa do trabalhador comum
imagens extremamente competentes dessas riquezas com um preço acessível. Ao unirmos estes fatores com
uma suposta falta de educação estética temos as propriedades clássicas do fenômeno: curvas “macarrônicas”
ao estilo art nouveau altamente complexas, profusão de elementos, enriquecimento inconsequente de
superfícies com representações, símbolos e adornos; contraste de cores puras complementares, tonalidades
de branco, vermelho, violeta, lilás e a combinação de todas as cores do arco-íris; materiais “desonestos” que
raramente se apresentam como realmente são.
No Brasil o carnaval é uma representação do kitsch apoteótico, uma realidade adornada pela famosa
entrevista do carnavalesco Joãozinho Trinta em 1980 quando sentencia que “o povo gosta de luxo, quem
gosta de miséria é intelectual”8. A grande festa popular brasileira serve de exemplo para a tipologia dos
grupos do kitsch que conta com quatro elementos. O primeiro é o empilhamento, um conjunto kitsch é
constituído por objetos diversificados empilhados em um volume de espaço com superfície restrita até,
praticamente, tornarem-se um só. Em seguida temos o caráter heterogênico dos objetos que não tem relação
direta uns com os outros em uma espécie de surrealismo combinatório inconsciente. Podemos citar também
o aspecto antifuncional já que não existem funções definidas nem regras utilitárias de empilhamento. Por fim
o kitsch é sempre autêntico, resultando em
[…] um lento desenvolvimento, uma acumulação triunfante, troféus de
viagens e testemunhos de exotismo, troféus de ascensão social ou
socioeconômica, penhores de uma sedução pelo mercado e de um
pensamento artístico atomizado que percebe claramente o objeto, e mal o
conjunto, e que só conhece a coerência do sedimento ou da pilha, da
sequência de tentações, e que não consegue captar a sequência do projeto
global. (MOLES, 1994, p. 61)
O lixo e o luxo do carnavalesco fazem parte de uma oposição dialética do kitsch que tem como papel
estimular a emotividade onde o “[…] mau gosto do bom gosto, mistura das categorias, alegria de viver e
ausência de esforço, tudo misturado na marmita da anti-arte.” (MOLES, 1994, p. 67). Existe aqui uma
mistura típica das fronteiras, pois o kitsch não é inovador mas também não faz parte da tradição. O objeto
está, ao mesmo tempo, bem e mal situado misturando diversas influências culturais mas não pertencendo a
nenhuma cultura em especial. Ainda, como em um bazar marroquino, ele busca tomar de assalto todos os
sentidos sem nenhum pudor e trazendo a tona os mais diversos tipos de sentimentos execrados pelos estetas.
O shopping center é certamente um bom exemplo, assim como são os complexos turísticos asiáticos, os
caminhões indianos e a sala de ioga da madame rica da Redenção. Mas ainda melhor é a grande feira de
produtos baratos (até hoje chamados de “1,99” a despeito de seu teto de preços haver mudado há décadas) e
o clássico camelódromo.
Com relação à estética e religião tradicionais, Moles ressalta o valor pedagógico do kitsch que passa
“[…] por um processo de depuração constante, constrói-se o bom gosto através de uma ascensão por
filtragem e em função de diversos critérios, a educação, o dinheiro etc.” (MOLES, 1994, p. 82).
Especificamente para o devoto o kitsch religioso assume duas direções: 1) Souvenir, futilidade intencional
8 Trata-se de uma referência indireta à uma reportagem televisiva, para mais informações acesse
https://extra.globo.com/noticias/rio/joaosinho-trinta-povo-gosta-de-luxo-quem-gosta-de-miseria-intelecual-leia-outras-frases3470006.html
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opõe-se à ideia tradicional de artesanato; 2) Distorção de função e seu deslize para a decoração. Para o autor
a religião secular do consumo faz uso do apelo a maioria, adaptando “[…] as normas da arte aos desejos
latentes da maioria na medida em que a religião é capaz de captar essa emoção” (MOLES, 1994, p. 48). Mas
estes sentimentos religiosos “superficiais” do qual o mercado faz uso são intrinsecamente condenáveis? Será
possível chegar a experiência do sublime a partir do kitsch? E, finalmente, como estes valores impactam no
imaginário da prática religiosa?
7 Um culto envergonhado
O filósofo americano Robert C. Solomon traz contribuições importantes acerca destas questões. Para
ele, nos setores estéticos e religiosos atuais é melhor ofender ou chocar do que dar espaço para os tipos de
sentimentos proporcionados pelo kitsch. O sentimentalismo aqui não é acusado apenas de mau gosto mas
também, em um nível ético, representar falhas graves de caráter. A questão não é se o kitsch é uma arte ruim
ou boa (ou se é arte) mas se os sentimentos por ele provocados são benéficos ou, por outro lado,
considerados imorais ou perigosos.
O autor argumenta que o kitsch parece ser traído por sua própria perfeição pois estimula as melhores
emoções como compaixão, simpatia e deileite, porém sem a “profundidade” que requerem seus críticos. por
que os sentimentos por ele provocados são considerados imorais e perigosos. Por conta disso lista várias
alegações quer recaem, a seu ver indevidamente, sobre o kitsch. As principais delas dão conta de que o kitsch
provoca emoções excessivas, que estas são manipuladas e falseadas. Aqui cabe perguntar que é uma emoção
real? Para alguns autores, como Kundera citado por Solomon, o kitsch fornece uma emoção de “segunda
mão”, ele evoca emoções através de objetos inapropriados. Para o autor, no entanto, se trata de um processo
de lembrança, ou seja, aqueles atraídos pelo kitsch religioso não buscam o divino na estátua de veludo do
Cristo Redentor. Eles já possuem devoção própria e usam a estátua como lembrança de sua devoção. Trata-se
de uma questão de poder.
"[...] the 'high' class of many societies associate themselves with emotional
control and reject sentimentality as an expression of inferior, ill-bred
beings, and male society has long used such a view to demean the
'emotionality' of women, I am tempted to suggest that the attack on
sentimentality also has an ethnic bias, Northern against Southern Europe
and West against East." (SOLOMON, 1991, p. 9)
O mesmo poder exercido ao desfigurar, homogeneizar culturas diversas e milenares sob o rótulo
simplificado de “orientais”, como algo raro e exótico que deve ser estudado sem lambuzar as mãos. Como
propõe o economista indiano Amartya Sen, esta é a tônica das três abordagens orientalistas clássicas:
exotismo, maestria e curadoria. Os dois primeiros fortemente relacionados com o poder explícito do
colonialismo e o terceiro marcado por certa dissimulação e curiosidade sistematizada sobre coisas pouco
familiares (SEN, 2005, p. 141). Um oriente irracional e inferior, rótulos também aplicados ao feminino.
Primiano (2015) cita passagens do Concílio Vaticano II onde diversos movimentos defendiam a simplificação
da arquitetura e do ritual dando ênfase à celebração eucarística e colocando a devoção pessoal em segundo
plano, depois do concílio "[...] a plain aesthetic became even more common in Catholic churches as altar
rails, votive candles and statues of saints were removed" (PRIMIANO, 2015, p. 293).
McDannell (1995) cita conversas registradas durante o período que associam o kitsch das imagens
produzidas em massa na frança à excessiva prática devocional das mulheres católicas "[...] what was at stake
was not merely art or kitsch, the mas or devotions to the saints, but whether the church was to be
masculine or feminine, a place for men or for women." (MCDANNELL, 1995, p. 174). A religiosidade kitsch
é colaborativa, open source, livre e feminina, em plena oposição ao templo patriarcal. Talvez essa seja sua
grande vantagem que possibilite o trânsito de ideias nômades entre culturas. É, ao mesmo tempo, um mate
entre devotas e uma possessão, enquanto o sublime fica por conta da homilia patrística.
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O moralismo ortodoxo considera que o kitsch dá vergonha, é irracional e fonte de falsas emoções. Mas
para Solomon, ao contrário, ele é apenas um meio para atingir emoções religiosas genuínas tornando
próximo por meio da familiaridade aquilo que é distante, o sentimento do sublime, a experiência mística. O
autor defende que a objeção real ao kitsch tem a ver com uma aversão às emoções em si, ao sentimentalismo
feminino e, principalmente, com determinados sentimentos considerados piegas, doces e nostálgicos. Mas o
que é o tão falado “sublime” que críticos, filósofos e historiadores tanto procuram (e negam sua presença no
kitsch)? Será que é realmente possível avivar sua presença em objetos julgados de mau gosto? Se sim, como
isso ocorre? Para refletir acerca destas perguntas regressamos brevemente ao início do século XX e suas
vanguardas, resgatando a ideia de “aura”.
8 Considerações finais
Esta é uma pesquisa em andamento, não temos conclusões para apresentar (quando isso é possível?).
O que buscamos é uma compreensão mais aproximada de um fenômeno estético que marca a religiosidade
popular brasileira. Segundo Herwitz (2010) o kitsch foi, no início do século XX, o grande inimigo das
vanguardas que buscavam um caminho para fugir da perda da aura proposta por Walter Benjamin ( ).
Tratava-se de uma política artística revolucionária e higienista onde buscava-se abrir o caminho para o novo,
“[…] apagar o passado, limpar a mesa para a nova arquitetura e para novas pessoas, imagens de construção e
constituição histórica, que vieram a dominar” (HERWITZ, 2010, p. 126).
Ironicamente o sublime e a ideologia das vanguardas também foram elementos empregados em
regimes totalitários. Walter Benjamin alertou sobre estes perigos afirmando que estas artimanhas usam o
sublime como forma de deificação do líder, atraindo a emoção da massa em direção de um ídolo. A
verdadeira aura evoca uma noção de distância intransponível. O kitsch é o oposto, encurta distâncias e torna
o objeto familiar.
Chegamos assim aos questionamentos finais da proposta de pesquisa. Estes veículos de poder, de
acordo com nossa hipótese, parecem ser mais efetivos na medida em que seus meios carecem de uma aura
reconhecida publicamente. As chinoiseries não teriam se tornado moda na França do século XVII se elas
representassem a alta cultura chinesa ou indiana. Elas foram assimiladas pela sua familiaridade,
simplicidade de interpretação e ausência de estilo definido (ou estilo falseado). O mesmo se pode dizer das
porcelanas encomendadas por portugueses, espanhóis e outros países europeus. Eles sequer sonhavam o
poder do imaginário que estas peças continham, talvez por isso sua assimilação foi fácil e transbordou para
os séculos seguintes como peças tradicionais de decoração inclusive no Brasil.
O que buscaremos determinar a partir desta pesquisa é como se dá, de maneira mais precisa, esse
movimento em um mundo globalizado inundado pela cultura pop. Especificamente como os valores culturais
das religiões asiáticas desprovidos de aura viajam pelo kitsch e, em outro contexto (como em uma templo
budista, uma sala de ioga ou um altar de umbanda), estes são ressignificados ou “ressublimados”. Outra
preocupação é a consistência desta ressignificação em contraste com aquela presente em seu país de origem:
Há, dessa forma, um deslocamento geográfico e cultural próprio da
globalização. Ocorre a presença do kitsch porque, para atender ao mercado
consumidor, o produto exportado precisa se adequar à cultura local [...]
perdendo assim, na maioria das vezes, suas características originais, quer na
aparência, quer na maneira de utilização. (SÊGA, 2010, p. 65)
Uma nova questão que deve se colocar é se estes elementos culturais uma vez transplantados
permanecem superficiais ou são passíveis de aprofundamento. Por exemplo, um menino que tem contato
com um filme de Bruce Lee ou com a estátua de cerâmica verde de Buda na sala de sua tia tende a reforçar o
orientalismo ou aprofundar-se no conhecimento da cultura do asiática?
Por fim analisar o impacto deste tipo de apropriação na cultura original é também um fator importante
para a pesquisa. Os cenários possíveis desta análise são as antigas colônias portuguesas na Ásia sob a
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influência da esfera cultural indiana e chinesa, assim como o Japão por seu longo histórico de interações com
Portugal e Brasil. Para isso serão necessários períodos de imersão etnográfica, pesquisa documental e
arqueológica (quando disponíveis), elementos que serão descritos com mais detalhes no item seguinte.
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A análise interdisciplinar entre direito e economia: uma perspectiva do
trabalho escravo no Brasil e suas consequências econômicas
Augusta Agne Feldmann1
Lisiane Zuchetto2
Resumo: O método interdisciplinar de estudo entre Economia e Direito apresenta alguns desafios que
devem ser superados entre as duas disciplinas, como os problemas metodológicos e de comunicação. Além
disso, busca-se a evolução legislativa das relações de emprego, trazendo à baila o trabalho escravo na
atualidade. O impacto econômico que as relações escravagistas trazem para a sociedade é de extrema
importância, eis que é utilizada mão de obra barata e nenhum direito é assegurado aos trabalhadores. Tendo
em vista os aspectos observados, o direito e a economia se interligam, pois as consequências econômicas do
trabalho escravo são perceptíveis em toda a sociedade e não apenas para os envolvidos na prática ilícita, ou
seja, empregado e empregador.
Palavras-chave:
The interdisciplinary analysis between law and economics:
A slave labor perspective in Brazil and its economic consequences
Abstract: The interdisciplinary study method between Economics and Law presents some challenges that
must be overcome between both subjects, as the methodological and communication issues. In addition, it
aims the legislative evolution of employment relations, bringing in the slave labor nowadays. The economic
impact that slavery relations bring to society is extremely important, considering the use of cheap labor and
that no rights are secured to the employees. Having in mind the aspects observed, law and economy are
interconnected, since the economic consequences of slavery are perceptible all over the society and not only
for those involved in the illicit practice, that is, employer and employee.
Keywords: Law And Economics. Economic Consequences. Interdisciplinarity. Slave Labor.
Introdução
Existe uma grande dificuldade no estudo interdisciplinar entre a economia e o direito. Decorre-se do
fato de sobrevoar inúmeros fatores, quase que impeditivos, de uma correta análise ser realizada entre as
matérias elencadas. O objetivo do estudo interdisciplinar é analisar a ordem jurídica e sua influência na
ordem econômica, porém, tal análise traz fatores que dificultam a relação entre Economia e Direito, tais
quais a correta comunicação, a organização do estudo e questões metodológicas.
A evolução legislativa do Direito do Trabalho ensejou em um forte combate ao trabalho escravo no
Brasil, sendo este país modelo de políticas públicas implementadas para a erradicação de tal prática.
Contudo, ainda existem inúmeros trabalhadores que exercem suas atividades profissionais em condições
desumanas, degradantes, configurando trabalho análogo ao de escravo. Em razão disso, os empregadores
lucram com a mão de obra escrava barata, porém acarreta prejuízos para toda a sociedade.
Assim, no último tópico tratar-se-á dos prejuízos econômicos que decorrem do uso de mão de obra
escravagista no país. Inúmeras empresas, dos mais variados setores de produção, aliciam trabalhadores e os
subordinam a jornadas exaustivas, baixa remuneração e precárias condições de trabalho. Consequentemente,
ao burlar o sistema, visam altos lucros, objetivando o interesse próprio e não o bem comum.
Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo – UPF. Linha de pesquisa Jurisdição Constitucional e Democracia. Bolsista
parcial UPF. Integrante do Grupo de Pesquisa Jurisdição Constitucional e democracia. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais ela
Universidade de Passo Fundo – UPF. Advogada inscrita na OAB/RS 107.695. E-mail: augustafeldmann@hotmail.com.
2 Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo – UPF. Linha de pesquisa Jurisdição Constitucional e Democracia. Bolsista
Capes. Assistente editorial da Revista Justiça do Direito. Advogada inscrita na OAB/RS 100.143. E-mail: lisizuchetto@hotmail.com.
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Isto posta busca-se demonstrar a ligação entre o trabalho escravo e suas consequências econômicas
para o país, fazendo uso da análise interdisciplinar entre Economia e Direito.
1. Direto e Economia: uma análise interdisciplinar
A análise interdisciplinar entre Direito e Economia é um estudo que possui grande valia para a
sociedade. Heloisa Borges Esteves, em sua tese de doutorado, discorre que a Teoria Pura do Direito de Kelsen
analisa as perspectivas idealmente válidas sob a análise jurídica, enquanto a economia investiga “o que
ocorre sob a hipótese de indivíduos racionais agindo em prol da maximização de seus objetivos” (ESTEVES,
2010, p. 31-32).
Assim, é possível afirmar que o conceito que melhor define a Análise Econômica do Direito é aquele
“conjunto de escolas de pensamento econômico que estudam, de alguma forma, o papel das normas e
sistemas jurídicos na vida econômica das sociedades”. Contudo, tal dualidade traz uma dificuldade aos
trabalhos apresentados sobre o assunto, qual seja que as obras acadêmicas que discorrem sobre a análise
interdisciplinar geram uma “confusão terminológica que pode levar a um erro fundamental na análise das
distintas disciplinas” (ESTEVES, 2010, p. 35).
Esteves reflete que há uma diferença de planos de análise entre Direito e Economia. Porém, deve-se
buscar compreender corretamente os efeitos concretos das normas:
[...] investigando não apenas em que medida as ações do mundo real se devem à
existência de normas jurídicas que as orientam e em que medida a existência de
certas normas jurídicas é condição necessária (e/ou suficiente) para as ações reais,
mas também se essas normas criam condutas regulares desejadas pelos tomadores
da decisão normativa (ESTEVES, 2010, p 36).
Nesse sentido, não se exige que a análise interdisciplinar obtenha as mesmas respostas, mas que suas
correntes de pensamento tornem-se coerentes e compatíveis entre si, sem que haja uma sobreposição de uma
disciplina em face da outra. Portanto, deve haver uma análise conjunta de forma interdisciplinar diante de
um caso concreto, para que, somente assim, possa existir uma eficaz contribuição do Direito na Economia e
vice-versa (ESTEVES, 2010, p. 36).
Everton das Neves Gonçalves e Marcia Luisa da Silva discorrem que a Análise Econômica do Direito
surge dentre os mecanismos de interpretação da lei, ou seja, “como aquele responsável por adotar critério de
justiça específico; a eficiência alocativa de recursos e a maximização de resultados, com o objetivo de
alcançar um bem maior, qual seja, a justiça econômica” (GONÇALVES, 2016, p. 122).
Por tanto, é possível afirmar que a interdisciplinaridade entre Direito e Economia traz benefícios
para ambos os lados, desde que analisada sob a mesma perspectiva. Ademais, os critérios adotados sob a
ótica jurídica, bem como a ótica econômica, são utilizados a fim de trazer à luz melhores soluções em face de
casos concretos. Porém, para que o sucesso da análise interdisciplinar seja obtido, alguns desafios devem ser
superados.
Inicialmente, cumpre ressaltar que muitos economistas tratam a disciplina de Economia com
superioridade em razão das demais, ignorando o fato de poder haver um benefício recíproco em caso de um
estudo interdisciplinar. Para tanto, é feito um isolamento da matéria econômica, sendo trazida à baila como
uma “hard science” (ESTEVES, 2010, p. 39). Além disso:
Tão importante quanto à busca pela integração das disciplinas econômica e
jurídica, então, passa a ser a identificação de objetos de pesquisa que poderiam
beneficiar-se da integração das disciplinas, bem como o exame dos aportes
possíveis de cada uma para os problemas propostos. É necessário, assim, que seja
feito um exame de ambas as disciplinas antes de ser proposta qualquer solução que
busque maior interação entre elas (ESTEVES, 2010, p. 41).
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Portanto, além de por fim à ideia de matéria superior, deve a Economia, em conjunto com o Direito
buscar os problemas adequados à análise interdisciplinar. Isso porque, nem todo o problema que busca uma
solução pode ser submetido aos enfoques de áreas distintas, haja vista que caso assim fosse poderia trazer, ao
invés de benefícios, malefícios a ambos os lados (ESTEVES, 2010, p. 41).
Esteves discorre em sua tese alguns problemas enfrentados pela análise interdisciplinar entre Direito
e Economia. Assim, tais problemas devem ser “superados para que a pesquisa interdisciplinar seja capaz de
contribuir para a solução de problemas de pesquisa” (ESTEVES, 2010, p. 42). Ao sanar os problemas
apresentados, os resultados tornar-se-ão enriquecedores para ambas as disciplinas.
É cabível trazer a baila apenas alguns problemas que foram enaltecidos por Esteves. Destaca-se, em
um primeiro momento, é a organização e coordenação da pesquisa interdisciplinar, eis que os pesquisadores
acabam por criar “equipes ou estruturas institucionais diferentes” (ESTEVES, 2010, p. 43).
Já a questão da comunicação, a autora afirma que “a correta compreensão e utilização de conceitos
científicos podem ser consideradas centrais em qualquer metodologia de pesquisa científica”. Por isso, há um
buraco negro na comunicação entre os pesquisadores, principalmente no que tange as definições técnicas
utilizadas (ESTEVES, 2010, p. 43).
Outra classe de desafio a ser superado é o da natureza científica e epistemológica. E assim conclui:
A abordagem interdisciplinar deve resolver o problema de construir objetos
científicos interdisciplinares a partir de visões particulares sobre as questões
levantadas, os conceitos utilizados, os métodos e instrumentos definidos, etc. A
superação deste desafio exige a identificação de uma problemática comum, ou seja,
um conjunto articulado de questões formuladas pelas diferentes disciplinas
envolvendo um tema e um objeto comum. Nesse sentido, a interdisciplinaridade é
muito mais um ponto de partida que de chegada (ESTEVES, 2010, p. 43).
Por fim, problemas são encontrados no que tange a avaliação dos resultados da pesquisa
interdisciplinar. Tal questão acaba por dificultar a pesquisa interdisciplinar justamente pelo fato de estar
intimamente interligada a outro problema, qual seja o da suposta superioridade da economia em face de
outras disciplinas (ESTEVES, 2010, p. 48).
Assim, a pesquisa interdisciplinar entre Economia e Direito acaba por enfrentar, além dos problemas
acima destacados, questões metodológicas “relacionados à integração das disciplinas jurídica e econômica”.
Logo, Direito e Economia ainda possuem uma linguagem distinta, o que indica uma metodologia própria de
cada área (ESTEVES, 2010, p. 49).
Por conta das razões acima apresentadas, o próximo tópico abordará as questões que envolvem o
trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil para que, posteriormente, os impactos econômicos de
tal atividade sejam trazidos à baila.
2.
O trabalho escravo no Brasil
Segundo Hebe Maria Mattos, em meados do final do período colonial, o Brasil possuía cerca de
3.500.000 habitantes. De toda a população, 40% eram mantidos sob o regime da escravidão. Por tal razão, é
de fácil conclusão que, quase a maioria dos cidadãos que aqui residiam, exerciam suas atividades de forma
escravagista (MATTOS, 2004, p. 16).
Em face de tal situação, o Império brasileiro não poderia manter-se inerte. Após diversos
movimentos abolicionistas, a Princesa Imperial Regente, sendo representada pelo Imperador D. Pedro II,
sanciona a Lei de nº 3.353, datada em 13 de Maio de 1888, também chamada de Lei Áurea. Supracitada lei
discorre, em seu artigo 1º, sobre a extinção da escravidão no Brasil (BRASIL, 1888).
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Assim, referida Lei Áurea possui papel de grande relevância, haja vista que até o momento de sua
promulgação, não havia no Brasil nenhuma regulamentação sobre o trabalho escravo. É possível, desta
forma, afirmar que fora a primeira lei que regulamentou as relações de trabalho.
Foi somente em 1891 que a Constituição Federal do Brasil reconheceu a liberdade de associação, pois
conforme dito, nada antes era regulado. Com as constantes modificações ocorridas na França após a Primeira
Guerra Mundial e a consequente criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) houve grande
fomento à produção de leis trabalhistas no país. Movimento contínuo, os inúmeros imigrantes que aqui
residiam, originaram movimentos operários, reivindicando melhores condições de trabalho e salários
(FERNANDES, 2013, p. 13).
Contudo, foi somente com a Constituição Federal de 1934 que o Direito do Trabalho fora tratado de
forma específica. Questões como a jornada de trabalho, férias anuais remuneradas e o descanso semanal
remunerado foram abordadas (FERNANDES, 2013, p. 13). Logo, é possível afirmar que pela primeira vez de
forma oficial, as relações entre empregado e empregador eram tratadas.
O Código Penal, em seu artigo 149, trata do crime de submeter alguém a condições análogas à de
escravo:
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou
acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a
finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual.
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa;
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se
I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a
pretexto de exercê-las;
II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com
deficiência;
III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de
hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade
hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar
organização criminosa (BRASIL, 1940)
Com o referido dispositivo legal, não somente o empregador é tipificado no crime de trabalho
escravo, mas também o indivíduo que alicia o laboreiro, retirando-o do convívio familiar e de sua residência
com falsas promessas, e o coloca em condições de trabalho desumanas.
Além disso, em 25 de abril de 1957, o Brasil ratificou a Convenção nº 29 da Organização
Internacional do trabalho. Tal Convenção é conhecida como Convenção sobre o Trabalho Forçado e discorre,
em seu artigo 2º, que é considerado como trabalho forçado ou obrigatório como sendo aquele “serviço
exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea
vontade” (BRASIL, 1957).
Assim, todo indivíduo que estiver sendo submetido à trabalho forçado, ou seja, aquele alheio a sua
vontade, lhe privando, principalmente a liberdade, está exercendo trabalho escravo.
Somente no governo de Fernando Henrique Cardoso que o Brasil impulsionou os movimentos de
erradicação do trabalho escravo. Fora criado o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, bem
como o Grupo Móvel de Fiscalização, em 1995. Tais programas continuaram sendo desenvolvidos no governo
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de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, momento em que fora lançado o Plano Nacional de Erradicação do
Trabalho Escravo (SCHWARZ, 2008, p. 81).
A chamada “lista suja” trata-se de um cadastro de empregadores que são flagrados utilizando mão de
obra análoga à de escravo. Tal cadastro é mantido pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A lista, que
foi criada em 2004, tem o estado do Pará na liderança do país com o maior número de empregadores na lista
suja nos últimos anos (EM DISCUSSÃO, 2011, p. 8).
Porém, o atual governo liderado por Michel Temer alterou alguns pontos do programa “Lista Suja”.
Em resposta, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirmou que a iniciativa federal de alterar as
regras de fiscalização e divulgação da referida lista ameaça “interromper uma trajetória de sucesso que
tornou o Brasil uma referência e um modelo de liderança mundial no combate ao trabalho escravo”
(RODRIGUES, 2017).
No dia 27 de Outubro de 2017, o Ministério Público do Trabalho publicou a nova versão da lista suja.
Contudo, não fora por livre e espontânea vontade: a publicação somente ocorreu por conta da uma decisão
judicial, que obrigava a divulgação do referido documento. O estado com maior número de empregados
trabalhando em condições análogas à de escravo é Minas Gerais, seguido do Pará e Mato Grosso e Santa
Catarina (FONSECA, 2017).
Segundo a ONG Repórter Brasil, na última lista suja divulgada, duas grandes empresas brasileiras
foram flagradas, quais sejam a JBS Aves e a Sucocítrico Cutrale. Dentre as violações cometidas pelas
empresas, destacam-se as jornadas exaustivas, a vedação do descanso semanal remunerado e péssimas
condições de higiene (MAGALHÃES, 2017).
Contudo, não é somente na agroindústria a incidência de trabalho escravo. Nas lojas de grife Animale
e A. Brand foi constatada a presença de migrantes bolivianos que tinham jornadas superiores a 12 horas por
dia, exercendo suas atividades em locais precários, percebendo um salário de R$ 5,00, em média, para
costurar peças que acabavam sendo vendidas por valores até 120 vezes superiores (REPÓRTER BRASIL,
2017).
Além destas, a loja de roupas Zara também teve constatação de trabalho escravo por três vezes. Os
empregados eram trabalhadores estrangeiros que vieram ao Brasil na busca por melhores condições de vida e
acabaram sendo submetidos a condições análogas à de escravo. O quadro encontrado pelos fiscais era de
contratações ilegais, trabalho infantil, condições degradantes, jornadas de até 16 horas diárias e o
cerceamento de liberdade (PYL, HASHIZME, 2011).
Segundo o Jornal Agência Brasil, no ano de 2016, estima-se que a escravidão moderna atingiu 45,8
milhões de pessoas no mundo todo. Já em 2015, constatou-se cerca de 35,8 milhões de pessoas vivendo em
tal situação (VERDÉLIO, 2016). Percebe-se, então, que apesar das atividades estatais na esfera global, o
número de pessoas exercendo atividades de forma escrava aumentou, ao invés de diminuir de um ano para
outro.
Enquanto isso, no Brasil, em 2014, constatou-se que 155,3 mil pessoas estavam sendo submetidas ao
trabalho em condições análogas à de escravo. Naquele ano, houve mais resgates na área de construção civil
do que no setor rural. Tal fato ocorreu em razão das construções para a Copa do Mundo, propiciando um
maior aliciamento de trabalhadores escravos (CAMPOS, 2014).
Ainda, a ONG Repórter Brasil afirmou que entre os anos de 1995 a 2015, uma média de 50 mil
pessoas foram resgatadas e libertadas do trabalho escravo no Brasil. Em sua maioria, os trabalhadores são
migrantes internos ou externos, os quais deixaram suas residências para exercer suas atividades em regiões
com crescente expansão agropecuária ou grandes centros urbanos, sendo atraídos por falsas promessas
(REPÓRTER BRSIL, s/d).
O trabalho escravo inicia quando indivíduos, que são chamados de “gatos”, recrutam pessoas de
regiões distantes da qual irá ser realizado o exercício das atividades, oferecendo boas oportunidades de
trabalho em fazendas, assegurando salário, alojamento e comida. Oferecem, ainda, “adiantamentos” para que
o empregado mantenha sua família por um tempo. Contudo, ao chegar ao local de trabalho, são
surpreendidos com uma situação oposta a aquela oferecida. Desde os custos com a passagem, até os
instrumentos de trabalho – como botas, luvas, facões, motosserras – assim como as despesas com
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alojamento e alimentação, são anotados em um caderno, aumentando a cada dia a dívida do trabalhador
(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2007, p. 22).
Os maus tratos e a violência são situações rotineiras no cotidiano daqueles trabalhadores que vivem
em condições análogas à de escravo. Há uma presença constante de humilhação pública e ameaças, o que
leva o trabalhador a um estado de constante medo. Em caso de reclamação por parte do laboreiro, este é
vítima de agressões físicas e psicológicas e, em caso de mutilações, são pagos valores irrisórios ao
trabalhador, como forma de recompensa pela parte do corpo perdida ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL
DO TRABALHO, 2007, p. 31-32).
Por tais razões, é de suma importância à abordagem do trabalho escravo, haja vista ser um fato muito
presente no cotidiano de diversos indivíduos. Porém, deve ser ressaltado que não são somente as condições
físicas e psíquicas dos trabalhadores que são afetados. A economia, como um todo, também acaba sendo
prejudicada, em razão de inúmeros fatores, como a ilegalidade dos contratos de trabalho, sonegação de
imposto, etc.
Portanto, no próximo e último tópico, tratar-se-á sobre o impacto econômico que o trabalho escravo
traz para o país.
3.
Os impactos econômicos do trabalho escravo
Conforme demonstrado fora, o trabalho escravo é uma realidade que é vivida por inúmeras pessoas,
em que pese já ter sido “abolido”. O Governo Federal busca adotar medidas que erradiquem tal prática,
apesar do atual presidente, Michel Temer, trazer à baila a discussão questões que acreditávamos estar
sedimentadas. Contudo, faz-se necessário analisar ainda os impactos econômicos que a prática ilegal da
escravidão traz para a economia, realizando uma análise interdisciplinar entre Direito e Economia.
Em recente entrevista dada à Jovem Pan, o coordenador do programa de combate ao trabalho
forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Antônio Carlos Mello, afirmou que a portaria do
presidente Michel Temer é retrógrada e causará impactos negativos aos olhos do mundo. Ressaltou, ainda,
que a decisão pode trazer inúmeros impactos econômicos ERCOLIN, 2017).
Ainda, segundo a ONG Repórter Brasil, um estudo publicado na Inglaterra afirmou que a “carne
brasileira exportada para a Europa é produzida por trabalhadores escravizados”. O objeto de estudo
discorreu que o baixo preço do produto decorre do fato da mão de obra escrava, que não gera pagamento de
salários dignos (SAKAMOTO, 2006).
O trabalho escravo é uma das formas mais odiosas de exploração humana,
repudiado por dezenas de signatários nas convenções da Organização Internacional
do Trabalho e pelo artigo IV da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hoje
não há no planeta um único país em que a escravidão seja defendida pelo Estado.
Não há, mesmo no receituário da mais liberal das doutrinas
econômicas, uma cláusula que garanta que lucros possam ser obtidos
através do assassinato e do aprisionamento de seres humanos. Os
cidadãos europeus, mais que qualquer sociedade no mundo, têm consciência disso.
Cobram ações de seus governos e adotam um comportamento responsável,
repudiando mercadorias produzidas com o sofrimento alheio (SAKAMOTO, 2006)
(grifo nosso).
Logo, o trabalho escravo, mesmo sendo repudiado por todos os países em esfera global, aceita os
lucros obtidos por meio de mão de obra escrava. Para isso, medidas protetivas são elaboradas via legislação,
visando o combate e a erradicação do trabalho em condições análogas à de escravo.
É cediço que as normas jurídicas precisam ser elaboradas visando os impactos econômicos de suas
consequências. Assim, ao obedecer todas as normas vigentes, o empresariado eleva o preço do produto a fim
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de suprir todos os custos previdenciários, trabalhistas e ambientais, trazendo ao mercado um produto que
respeite as garantias do cidadão.
Porém, causa uma discrepância no valor final do produto, haja vista que aquele obtido por meio
ilícito, ou seja, escravagista, acabará sendo mais barato do que aquele que cumpriu com seu papel social,
obedecendo às normas legais vigentes estabelecidas no país.
No Brasil, não há “qualquer condição de competitividade com o mercado estrangeiro, principalmente
dos produtos provindos do sudeste asiático, já que naqueles países, a exploração de mão de obra se dá de
inúmeras formas” (RAKAUSKAS, 2014, p. 7). Logo, por ausência de fiscalização e controle, a mão de obra
acaba sendo relativizada no Brasil, em razão do baixo custo de produção dos produtos da Ásia.
Assim, para que haja uma real concorrência entre tais produtos, os empregadores brasileiros acabam
por adotar medidas drásticas, acarretando em trabalhos degradantes, configurados como análogos à
escravidão. Deve, então, a atividade estatal, fiscalizar fortemente a entrada de produtos estrangeiros no
Brasil, a fim de erradicar o trabalho escravo no país, bem como vedar a compra de produtos advindos de tal
prática ilícita.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) atua para que o trabalho escravo permaneça apenas
como uma má recordação na sociedade. Estudos já identificaram 122 produtos vindos de mão de obra
escrava em cerca de 60 países distintos, causando um lucro aos empregadores de trabalho escravo de
aproximadamente US$31,7 bilhões anualmente (EM DISCUSSÃO, 2011, p. 7).
Assim, além de prejudicar o trabalhador, o trabalho em condições análogas à de escravo também traz
prejuízos à ordem econômica e financeira do país. Isso porque, quando a mão de obra utilizada é a escrava,
os direitos trabalhistas, previdenciários e sociais são fortemente violados, acarretando lucro aos
empregadores e prejuízo aos empregados e, indiretamente, a toda a sociedade.
Deve ser mencionado ainda que, ao contrário da antiga escravidão, o modelo escravagista atual é
detentor de altos lucros. Isso porque, além dos motivos já acima mencionados, caso uma doença acame um
empregado ou, até mesmo, a idade avançada chegue, o laboreiro é dispensado sem ter direito algum
assegurado, deixando seu labor sem perspectiva alguma (EM DISCUSSÃO, 2011, p. 7).
Já mencionado acima, a loja de grife “Animale” teve trabalho escravo detectado. A mesma peça que
era produzida por R$ 5,00, era vendida na loja por até R$ 698,00. Ora, uma única peça era supervalorizada,
sendo vendida por um preço exorbitante, diferente daquele preço de produção. Assim, é de fácil percepção
analisar o alto lucro que a empresa tinha e, em contrapartida, o baixo custo de produção.
A loja M. Officer, em São Paulo, foi condenada a pagar o valor de R$ 4 milhões por estar submetendo
empregados a condições análogas a de escravo, acrescido de R$ 2 milhões em razão do dumping social, por
conta da subtração de direitos trabalhistas para reduzir custos e obter vantagens sobre os concorrentes
(SAKAMOTO, 2017).
No caso da loja supracitada, o Ministério Público do Trabalho pediu a aplicação da lei 14.946/2013, a
qual prevê que as empresas condenadas por trabalho escravo em segunda instância, nas esferas trabalhista
ou criminal, tenham o registro do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) suspenso por
dez anos. Assim, no estado de São Paulo, o recado é claro: não serão admitidas empresas que visam obter
lucros a qualquer custo com mão de obra escrava (SÃO PAULO, 2013).
Uma evolução ocorreu em São Paulo com a aplicação da Lei 14.946/2013. Ambos os poderes,
Legislativo, Executivo e Judiciário, trabalharam juntos, buscando uma melhor qualidade de vida aos
empregados, propiciando condições dignas de trabalho. Um exemplo a ser seguido pelos demais estados da
federação.
Nesse sentido, deve ser feita uma análise sobre o Direito e a Economia, pois conforme visto ambas as
disciplinas, em que pese serem distintas, dialogam – e muito – entre si. No que tange as relações de emprego,
não pairam dúvidas sobre o seu objetivo principal, qual seja o bem comum e, como consequência, o incentivo
ao consumo.
Porém, as situações de trabalho análogo ao de escravo não permitem a felicidade dos trabalhadores,
tão menos visam o bem comum. O objetivo dos empregadores é apenas econômico, ou seja, lucrar com a fácil
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e barata mão de obra escravagista. Assim, quando detectado trabalho escravo, toda a sociedade acaba por
sofrer as consequências e prejuízos de tal prática ilícita.
“O trabalho escravo está inserido em parte do latifúndio brasileiro e, portanto, no agronegócio
internacional. Por isso, ações de combate devem ser adotadas não só pelo Brasil, mas por países que podem
lucrar com isso (SAKAMOTO, 2017)”. Apesar de inúmeras, as iniciativas estatais ainda não são suficientes
para erradicar o trabalho escravo e, com isso, não somente na esfera nacional, mas também internacional
acaba por beneficiar-se do labor escravagista.
Considerações finais
Direito e Economia, apesar dos obstáculos que serão apresentados, se complementam. Uma
disciplina auxilia a outra quando há lacunas para preencher, ou seja, no momento em que uma matéria, de
forma isolada, não possui aptidão para responder adequadamente a um caso concreto, une-se à outra para
que a melhor resposta possível seja oferecida.
Porém, diversos obstáculos devem ser superados para que haja a correta e adequada
interdisciplinaridade esperada entre Direito e Economia. As principais dificuldades da pesquisa
interdisciplinar, quais sejam a falta de comunicação e interpretação das normas, são mínimas ante as
eminentes e grandiosas conclusões que se pode obter com o referida estudo.
Quando oportunamente aludido, o trabalho escravo mostrou-se impiedoso para a sociedade como
um todo. Tal afirmação é advinda do fato de que a escravidão está presente na coletividade desde os tempos
mais antigos e que, não obstante a forte atuação legislativa, ainda existe incontáveis trabalhadores que
exercem suas atividades profissionais de maneira degradante.
O Brasil ainda é visto como exemplo para os demais países no que tange o combate ao trabalho
escravo. Sem dúvida, o forte aparato global, e nacional, vem empenhando-se para vedar o uso de mão de obra
escrava, haja vista as consequências quase que irreversíveis para os trabalhadores, em razão do abalo
psicológico e físico causado nas vítimas.
Porém, a sociedade também acaba por ser prejudicada com tal prática. Quando trabalhadores são
submetidos a labor degradante, sem respeito às leis trabalhistas e em desconformidade com o princípio da
dignidade da pessoa humana, o preço do produto produzido acaba por ser inferior ao daquele que respeitou
todos os preceitos legais.
Há, ainda, o caso de grandes marcas dos setores de produção. Conforme visto, empregadores
submetem seus empregados a jornadas exaustivas, sem o mínimo de segurança, pagando salários irrisórios
para, depois de pronto, o produto ser vendido de forma supervalorizada. Assim, objetiva-se apenas o lucro do
empregador, renunciando os direitos dos trabalhadores.
As leis são produzidas de forma a projetar o impacto econômico que possa vir causar suas
consequências. Portanto, deve o Poder Legislativo, em conjunto com o Poder Judiciário e Poder Executivo,
trazer a baila respostas estatais satisfatórias, com sanções mais severas para os praticantes de trabalho
escravo.
Somente com a forte atuação estatal o trabalho escravo pode ser combatido com eficiência,
projetando lucros para todos: empregador, empregado e Estado. Vivemos em um círculo vicioso, ou seja,
somente com a digna competitividade entre os produtos, os consumidores serão beneficiados e, em
contrapartida, a sociedade, como um todo, também lucra.
Portanto, ao aplicar corretamente a legislação trabalhista, assegurando aos trabalhadores todos os
direitos previstos em Lei, a sociedade, como um todo, é beneficiada. Além disso, ao vedar a prática de
trabalho escravo, a economia terá benefícios, oportunizando a concorrência adequada entre os produtores,
lucros condizentes com a qualidade de produção e trabalhadores satisfeitos ao exercer suas atividades,
possibilitando condições de labor e salários dignos, mantendo uma qualidade de vida decente a todos os
envolvidos.
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