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Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) - VOLUME 2 - Gizele Zanotto (OrG.) Edição PPGH/UPF Passo Fundo/RS - 2018 [2] FICHA TÉCNICA Organização do volume: Gizele Zanotto Editoração: Gizele Zanotto Imagem de capa: Daniel Confortin Disponível no formato eletrônico. ISS 2318-6208 [3] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) - Volume 2 - Gizele Zanotto (OrG.) Passo Fundo/RS – novembro de 2018 [4] Paula Rafaela da Silva (PUCRS) Paulo César Carbonari (CDHPF/IFIBE) Paulo Pinheiro Machado (UFSC) Renilda Vicenzi (UFFS) Ronaldo Bernardino Colvero (UNIPAMPA) Silvana Winckler (UNOCHAPECÓ) Thaís Janaina Wenczenovicz (UERGS) COMISSÃO CIENTÍFICA Airton Adelar Mueller (UNIJUI) Alisson Droppa (UNICAMP) Ancelmo Schörmer (UNICENTRO) André Luiz Faisting (UFGD) Aristeu E. Machado Lopes (UFPel) Arlene Renk (UNOCHAPECÓ) Artur Henrique Franco Barcelos (FURG) Cândido Moreira Rodrigues (UFMT) Cláudia M. Mattos Brandão (UFPel) Daniéle Xavier Cali (UFSM / AHMSM) Darlan De Mamann Marchi (UFPel) Denize Grzybovski (UPF) Dhion Carlos Hedlund (FURG) Dilceu Roberto Pivatto Junior (UFRGS) Eliane Cristina Deckmann Fleck (UNISINOS) Esio Francisco Salvetti (CDHPF/IFIBE) Eunice Sueli Nodari (UFSC) Glaucia Vieira Ramos Konrad (UFSM) Gustavo Biasoli Alves (UNIOESTE) Humberto José da Rocha (UFFS) Ianko Bett (MMCMS) Janilton Fernandes Nunes (UNIPAMPA) Joana Bosak de Figueiredo (UFRGS) Luciana da Costa de Oliveira (IFRS) Luísa Kuhl Brasil (PUCRS) Marcelo Vianna (UNISINOS) Maria Emília Bottini (URI/Erechim) Marlon Borges Pestana (FURG) Marluza Marques Harres (UNISINOS) Marta Rosa Borin (UFSM) Mauro Dillmann (UFPel) Melina Kleinert Perussatto (UFFS) Patricia A. Fogelman (Universidad de Buenos Aires) COMISSÃO ORGANIZADORA Adelar Heinsfeld (UPF) Alessandro Batistella (UPF) Ana Luiza Setti Reckziegel (UPF) Gerson Luís Trombetta (UPF) Gizele Zanotto (UPF) Ironita A. Policarpo Machado (UPF) Felipe Cittolin Abal (UPF) Janaína Rigo Santin (UPF) João Carlos Tedesco (UPF) Jacqueline Ahlert (UPF) Luíz Carlos Tau Golin (UPF) Marcos Gerhardt (UPF) Mário Maestri (UPF) Rosane Márcia Neumann (UPF) Jenny González Muñoz (UPF) Discentes Andreia Aparecida Piccoli (UPF) Andre de Souza Pereira (UPF) Augusto Diehl Guedes (UPF) Caroline da Silva (UPF) Djiovan Vinícius Carvalho (UPF) Jonas Balzan (UPF) Waleska Sheila Gaspar (UPF) [5] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS SUMÁRIO Modernidade e história do tempo presente: algumas reflexões pertinentes ao “cadeião” de Londrina – PR 680 Kawanni dos Santos Gonçalves Biopoder e discurso: uma análise história do período ditatorial brasileiro 686 Laís Franciele de Assumpção Wagner e Lucas Dalmora Bonissoni A instalação de grupos norte-americanos no setor industrial do Brasil e o onopólio das subsidiárias de energia elétrica e telefonia 696 Lauren dos Reis Bastos A atuação internacional nos conflitos na antiga Iugoslávia e a resistência do Kosovo 700 Leonardo Pires da Silva Bellanzon Nacionalismos e genocídio – o fim da Iugoslávia 706 Leonardo Pires da Silva Bellanzon Homossexualidade e representação: análise de uma reportagem da revista Veja da década de 1970 715 Leonardo da Silva Martinelli História e imprensa: algumas propostas teóricas de análise a partir da revista Veja 724 Leonardo da Silva Martinelli A Rio Pardo colonial: a formação de suas praças e estrutura urbana inicial 731 Lucas Lopes Cunha Brasil x Argentina: uma proposta de análise da rivalidade durante a década de 1970 740 Luciano Anderson Breitkreitz A elite política passofundense entre 1945 e 1989: uma proposta de estudo 749 Luiz Alfredo Fernandes Lottermann O Piauí em esforço de guerra: mobilização patriótica e Guarnição da Província 1864-1866 755 Marcelo Cardoso Mudanças socioambientais provocadas pela modernização da agricultura no norte do Rio Grande do Sul: 1950-1970 764 Marcos Paulo de Oliveira Junior Pós-Abolição em Palmas/PR: trabalho e interação social (1888-1900) 774 Maria Claudia de Oliveira Martins Evasão e elisão fiscal: um problema socioeconômico 783 Maria Elena Amaral Ferreira Bueno e Adriana Margarida Mignoni [6] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A estética do frio, um novo recorte de fronteira 793 Maria Goreti Betencourt O controle da subjetividade cultural e dos direitos humanos: o “cidadão” e o “mercado” 803 Mariana Chini e Joline Picinin Cervi "Eu sei tudo”: a figura feminina na sua primeira edição 809 Marília Guaragni de Almeida A construção da identidade friulana na Itália e no Brasil (RS) 817 Marinilse Marina Busato Remanescentes da cultura negra em São Luiz Gonzaga-RS: trajetória e memórias do Clube Recreativo Imperatriz 827 Marisete de Mattos Morais O casamento e suas representações na fotografia: Relações sociais, poder e transformações 838 Maristela Piva e Janaína Rigo Santin Museu Municipal de Três Arroios: a narrativa da história na exposição de longa duração 847 Fabíola Pezenatto, João Paulo Corrêa e Maurício da Silva Selau O início da década de 1960 e a formação do Sindicato Dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo: quem são os primeiros associados? 858 Milena Moretto Arquitetura e patrimônio: intervenções contemporâneas em edifícios históricos 864 Monique Villani e Gerson Luís Trombetta (De)Colonialidade do Saber no Campo dos Estudos Organizacionais: possibilidades identificadas no panorama da produção científica brasileira 873 Nadiesca Manica dos Santos, Priscila Sampaio de Moraes, André da Silva Pereira e Denize Grzybovski A metodologia de ensino marista na formação de “bons cristãos e virtuosos cidadãos” – Passo Fundo (1906-1950) 885 Natália Carla Vanelli Escravidão: a realidade pós-abolição e o caso dos “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil” 891 Pamela De Almeida Araújo e Maira Angelica Dal Conte Tonial Biopoder x empresas transnacionais : a ingerência na soberania dos estados 896 Pamela De Almeida Araújo e Maira Angelica Dal Conte Tonial Do direito terreno ao divino sobre a terra: A Relação do Movimento Dos trabalhadores Sem Terra e a Pastoral da Terra na Região Sudoeste do Paraná Pâmela Pongan [7] 904 Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A disputa pela terra e os conflitos fundiários na região Sudoeste do Paraná 910 Paola Nahuana Grazzi Torres e Pâmela Pongan Hipátia de Alexandria: busca filosófica e liberdade 918 Paola Rezende Schettert A colônia Getúlio Vargas/RS através da análise fotográfica 925 Patricia Lilian Mokfa Processos crimes de infanticídio: uma proposta de abordagem historiográfica 937 Paula Ribeiro Ciochetto O Die Serra Post, as fontes em língua alemã e o estudo da história dos colonos da região serrana do Rio Grande do Sul na primeira metade do século XX 944 Paulo Adam As contradições no processo de Reassentamento dos Afogados do Passo Real na década de 1980 950 Pedro Vicente Stefanello Medeiros A Ferrovia do Trigo como Patrimônio Cultural 957 Renan Pezzi As comemorações do 25 de julho de 1956, no Rio Grande do Sul 965 René Ernaini Gertz A Revista Veja e o Plebiscito de 1993 977 Roberto Biluczyk O processo migratório da Região do Vale do Rio do Peixe/SC: características da frente pioneira de colonização 985 Roberto Carlos Rodrigues Perspectivas sobre o conceito de poder em administração: Análise Sistemática de Artigos Empíricos (1990-2018) e Uma Proposta de Definição Abrangente 993 Rodolfo Henrique Cerbaro e André da Silva Pereira A imigração italiana pelos braços das mulheres imigrantes 1004 Rodrigo Paste Ferreira A Biblioteca do Brigadeiro Silva Paes: práticas médico-cirúrgicas no sul da américa portuguesa setecentista 1010 Rogério Machado de Carvalho Análise iconográfica das ações cívico-sociais do Exército na Fronteira Brasil/Argentina na década de 1970 Ronaldo Zatta e Ismael Antônio Vannini [8] 1020 Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Representações em jogo: a Segunda Guerra Mundial e suas forças armadas em conflito, na franquia de jogos digitais Call Of Duty 1028 Ruggiero Moreira O processo de emancipação de São Miguel das Missões na década de 1980: o patrimônio em disputa 1037 Sandi Mumbach Ataque a guarnição de São José do Norte 1049 Santa Giovana Mendes Giordani A imigração numa perspectiva dos direitos fundamentais e os processos de inserção na sociedade 1057 Silvana de F. M. da Silva A conquista da Terra Indígena Toldo Chimbangue 1066 Silvana Winckler e Arlene Renk Contexto político jurídico brasileiro da implementação dos assentamentos na Fazenda Annoni (1970 a 1990) 1073 Simone Lopes Dickel A essência da arquitetura está no kitsch? 1085 Tábara Varissa Petry A influência do processo de internacionalização da agricultura brasileira na expansão da fronteira agrícola 1092 Tiago Dalla Corte Migração italiana e alemã: o caso da Comunidade de Boa Esperança- Crissiumal/ RS 1099 Tiara Cristiana Pimentel dos Santos e Ronaldo Bernardino Colvero Túneis do tempo. Paleotoca de Xaxim, produto da megafauna regional 1109 Valdirene Chitolina Mecanismos de coerção no Contestado: uma análise sobre a organização política dos redutos 1124 Vanderlei Cristiano Juraski Na disputa das memórias: a caracterização dos objetivos da luta armada na memória de seus militantes (1968 – 1972) 1136 Vinícius de Oliveira Masseroni Vargas e o mundo rural: um olhar sobre os discursos (1930-1945) 1149 Vitória Comiran O desespero epistemológico em Fernando Pessoa: uma análise historiográfica 1156 Vitória Ulinoski Moch O Juizado de Paz e a sua atuação em Santa Maria (1830-1850) Viviane Siqueira Alves [9] 1166 Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Cartas e diários no teatro de operações: o cotidiano da guerra contra o Paraguai no Rio Grande do Sul 1174 Wagner Cardoso Jardim História, política e escrita epistolar: a correspondência de Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto (FrançaBrasil, 1894) 1186 Waleska Sheila Gaspar A Bacia Platina nas primeiras quatro décadas do século XVI: descoberta e representação europeia 1197 Yúri Batista da Silva “Aqui jaz”: Cemitério Vera Cruz e a devoção a Maria Elizabeth 1207 Francielle Moreira Cassol Do templo ao camelódromo: O kitsch e a construção do imaginário religioso oriental no Brasil 1217 Daniel Confortin A análise interdisciplinar entre direito e economia: uma perspectiva do trabalho escravo no Brasil e suas consequências econômicas Augusta Agne Feldmann e Lisiane Zuchetto [ 10 ] 1230 Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Modernidade e história do tempo presente: algumas reflexões pertinentes ao “cadeião” de Londrina – PR Kawanni dos Santos Gonçalves1 Resumo: Inaugurada em 1939, a antiga cadeia pública de Londrina (no Paraná) – ou o “Cadeião” – esteve ativa por mais de cinquenta anos, sendo totalmente desocupada em 1994. Em seguida, o espaço ficou abandonado por anos até ser revitalizado e transformar-se, desde 2014, no Sesc Cadeião Cultural. Londrina tornou-se município, oficialmente, em 1934. A cadeia pública, portanto, acompanhou o desenvolvimento da cidade desde meados (e no decorrer) do século XX; hoje, ressignificada em patrimônio local. Objetiva-se, em longo prazo, estudar a circularidade dos discursos que envolveram o Cadeião enquanto esteve ativado. Para tanto, faz-se necessário contextualizar esse período, inclusive no campo historiográfico. Desse modo, o presente artigo visa relacionar concepções de modernidade – tal como dos autores Walter Benjamin e Marshall Berman – e considerações acerca da História do Tempo Presente – a partir de Agnès Chauveau, Philippe Tétard e Henry Rousso, por exemplo. Afinal, “a instituição prisional surge como um símbolo e uma esperança de modernidade” (DORES, 2003), discurso ratificado, de fato, na inauguração do Cadeião. Abordar-se-á, igualmente, noções relacionadas ao conceito de território – imprescindível para a posterior compreensão da especificidade das fronteiras estabelecidas pela instituição prisional na área central do município de Londrina. Popularmente conhecida como “Cadeião”, em 1939, inaugurou-se, em madeira e através de custeio comunitário, a antiga cadeia pública de Londrina (Paraná). Dois anos depois, passou à alvenaria e permaneceu ativa por mais de cinquenta anos. Elaborada em período de vultosas expectativas de progresso, a cadeia foi totalmente desocupada em decorrência de suas “condições desumanas” em janeiro de 1994. Construída com capacidade para sessenta detentos, o espaço abrigou mais de duzentos presos na década de 1980. Apesar de seus longos anos em funcionamento, prevaleceram memórias de dor e sofrimento; de fato, muitos londrinenses desejavam a demolição do prédio, ação que chegou a ser iniciada – mas rapidamente foi interrompida – no ano de sua desocupação. Entretanto, por vinte anos o prédio esteve abandonado, aguardando a concretização de inúmeros projetos que não se desenvolveram até que, em 10 de dezembro de 2014, em comemoração ao aniversário dos oitenta anos de Londrina, o Serviço Social do Comércio (Sesc) inaugurou o “Sesc Cadeião Cultural” a partir de um projeto de revitalização da antiga cadeia pública. Além da manutenção da estrutura original do prédio, o Sesc manteve “Espaços Memória” no local, como o piso original, duas celas, alguns escritos na parede original, enfim, trilhas da antiga cadeia. No cotidiano, o espaço é um centro cultural com diversas atividades e serviços oferecidos pelo grupo, como teatro, cinema, oficinas artísticas, aulas de instrumentos musicais, entre outros. Oficialmente, Londrina tornou-se município em 1934. Portanto, o Cadeião acompanhou o desenvolvimento da cidade desde meados (e no decorrer) do século XX; hoje, ressignificada em patrimônio local. Objetiva-se, em longo prazo, estudar a circularidade dos discursos que envolveram o Cadeião enquanto esteve ativado; em última instância, as sociabilidades (e fronteiras) da cadeia pública, a dinâmica desse espaço ainda estigmatizado. Para tanto, faz-se necessário contextualizar esse período, inclusive o campo historiográfico no qual nos inserimos. Desse modo, o presente artigo visa, brevemente, relacionar considerações acerca da História do Tempo Presente – a partir de Agnès Chauveau, Philippe Tétard e Henry Rousso, por exemplo – e concepções acerca da Modernidade – tal como dos autores Marshall Berman, Reinhart Koselleck, e Walter Benjamin. Abordar-se-á, igualmente, noções relacionadas ao conceito de território – imprescindível para a posterior compreensão da especificidade das fronteiras estabelecidas pela cadeia pública na área central do município de Londrina. Bolsista CAPES (2018). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), na linha de pesquisa Linguagens e Identificações, sob a orientação do Prof. Dr. Emerson César de Campos. Especialista em Patrimônio e História pela Universidade Estadual de Londrina (2018) e graduada em História pela mesma Universidade (2017). E-mail: kawannisg@gmail.com. 1 [ 11 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Histórias do Tempo Presente Em meados do século XX, a herança dos Annales ampliou as possibilidades de problemas, de abordagens e de objetos na História — consoante o medievalista francês Jacques Le Goff. Desse modo, novos também eram os desafios dos historiadores. Experenciávamos o breve século XX, e já entre os anos 1950 e 1970, embora timidamente, a historiografia contemporânea estendeu-se aos anos muito próximos, a um passado recente: [...] o historiador é cada vez mais parte integrante do contemporâneo — porque a força da história passadista, factual e historicista se esfumaça diante de uma demanda social insistente, resolutamente ancorada no presente e no modo “interpretativo”. Em sua intervenção pública, a história, como a medicina ou a ciência da ecologia, é um fator de compreensão do presente e vetor de opinião para o corpo social. (CHAUVEAU; TÉTARD, 1999, pp.35-36). A história do tempo presente institucionaliza-se em 1978, com a criação do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP) em Paris, por François Bedárida. Houve bastante resistência em considerar o tempo presente como objeto da História. Mas, afinal, a historiografia sempre disserta a respeito de determinado presente, seja referente a um passado longínquo ou a um passado recente. O que singulariza aquela historiografia é que [...] tiene por objeto los acontecimentos o fenómenos sociales que constituyen recuerdos de al menos uma de las generaciones que comparten um mismo presente histórico, pone al descubierto las relaciones complejas y conflictivas de um presente que, encuanto passado muy reciente, se historiza a sí mismo. En este nuevo género historiográfico, la cuestión de la memoria trasvasa todas las dimensiones del problema de lo histórico y, en lo que a la dimensión temporal importa, relaciona el tempo de la memoria com el tempo de la historia. (MUDROVCIC, 2013, p.81). Nesse contexto, duas críticas que se estabeleceram dizem respeito à proximidade do autor com relação ao tema — e sua parcialidade —, e ao próprio estudo do presente, no qual uma história imediata, por exemplo, se confundiria com jornalismo. Com relação à primeira crítica, a parcialidade é sempre preocupação do historiador, independente do tema ou período abordado, é critério de cientificidade. Quando trabalhamos nosso presente, devemos ser mais atentos no exercício de “recuo” das subjetividades na análise de um objeto. Além disso, reconhecer que jamais seremos imparciais é também um modo de estabelecer limites e reforçar o rigor e a seriedade intelectuais necessários ao trabalho acadêmico: Nem por isso o perigo deve proibir uma reflexão (...). Uma história serena não significa uma história asséptica (...): assumir a subjetividade é meio caminho andado para controlá-la. (SIRINELLI, 1991 apud CHAUVEAU; TÉTARD, 1999, p.29). Quanto à segunda crítica, o historiador não se reduz à explanação dos fatos ou mesmo à análise do cotidiano, como os jornalistas o fazem. Buscamos as percepções e as condições históricas, observadas a longo ou médio prazo, nas quais e pelas quais os fenômenos se desenvolvem. Enfim, o objetivo do historiador é fornecer bases explicativas razoáveis, plausíveis, ao recorte de suas temáticas e temporalidades, o que o historiador do tempo presente também realiza. A despeito da provisoriedade de nossas hipóteses, [...] tais explicações plausíveis são uma grande contribuição ao cenário desordenado de acontecimentos do tempo presente. Mesmo com todas as carências evidentes, uma primeira sistematização desse emaranhado de acontecimentos e de informações pode constituir um ponto de partida mais qualificado para futuras [ 12 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS análises, não só de cunho histórico, o que configura outra função da História do Tempo Presente. (PADRÓS, 2004, p. 204). Mencionamos o breve século XX; os fenômenos que ocorreram em âmbito nacional e mundial, conforme indicados na citação anterior, demandavam esclarecimentos, sobretudo as guerras mundiais, as ditaduras latino-americanas e o advento da URSS. Henry Rousso (2016, p.19), um dos participantes do IHTP, inclusive explicita que essa historiografia se acha em todo lugar em que o passado recente deixou marcas a ferro quente, nos corpos, nos espíritos, nos territórios, nos objetos. Além disso, François Hartog, estudando o modo como lidamos com nossas categorias temporais – passado, presente e futuro –, advoga que, sobretudo no último terço do século XX, há um presentismo2 adjacente à sociedade contemporânea. Por sua vez, para o historiador Rousso (2016), o que delimita o presente de determinada sociedade é sua última catástrofe. Nesse sentido, para esse autor, O passado tornou-se assim uma matéria sobre a qual se pode, ou mesmo se deve, constantemente agir para adaptá-lo às necessidades do presente. Ele é doravante um campo de ação pública. A exigência da verdade própria da atividade histórica transformou-se em exigência social de reconhecimento, em políticas de reparação, em discursos de desculpa e “arrependimento” em relação às vítimas das últimas catástrofes recentes. Foi nesse contexto que se desenvolveu uma nova história do tempo presente, chamada, logo depois de instituída, a responder aos desafios da amnésia de um passado próximo enunciado em sua versão mortífera, às necessidades da reparação que exige muita perícia, às exigências de um discurso onipresente sobre a memória [...]. (ROUSSO, 2016, p.30). Henry Rousso, a partir de suas considerações, remete a historiografia do tempo presente a eventos de grandes e trágicas repercussões que, sem dúvida, marcaram profundamente o cenário do século XX. Entretanto, nessa perspectiva, como o Cadeião de Londrina poderia ser inserido? Trata-se, afinal, de um espaço cujas memórias ainda ressoam nas gerações presentes. O presente artigo, desse modo, visa aproximar a ideia da última catástrofe às considerações acerca de nossa própria modernidade. Autores como Marshall Berman, Reinhart Koselleck e Walter Benjamin trazem reflexões pertinentes para a elaboração desse sentido. Modernidade ontem, hoje e amanhã Segundo o sociólogo António Pedro Dores, a instituição prisional é produto da modernidade e representa um movimento de civilização em relação a políticas racionalistas e humanistas: Refúgio de ressocialização para aqueles que ponham em causa as regras de civilidade que permite a vida urbana e em sociedade; garantia de igualdade formal no tratamento de toda a transgressão e de todo o transgressor, através de um sistema de transformação em tempo de prisão da culpa abstracta dos crimes cometidos em concreto; espaço de investimento filantrópico e de espírito de solidariedade para com os seres humanos caídos, digamos assim. (DORES, 2003, p.26). De fato, localizado no centro da cidade de Londrina, ao final da Rua Sergipe – caracterizada por conter casas de tolerância e prostituição noturna em meados do século XX –, o Cadeião foi inaugurado como símbolo do progresso em Londrina — conforme noticiou a imprensa: HARTOG, F. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução de Andréa S. de Menezes, Bruna Breffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina de A. Silva e Maria Helena Martins. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 2 [ 13 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Com a presença do capitão Fernandes Flores, chefe de polícia do estado, será inaugurada hoje às 14 horas a cadeia pública de Londrina. O prédio, que no gênero é um dos melhores do estado, será um atestado de nosso progresso e dos sentimentos de humanidade do nosso povo; pois foi este, pelos expoentes do comércio e da indústria local que, de fato, atendendo ao apelo do tenente Luiz dos Santos, forneceu dinheiro e materiais para a construção do edifício. (Paraná Norte, 22. dez. 1939 apud PELLEGRINI, 2014, p.22, grifo nosso). Anos depois de sua desativação, todavia, enquanto o prédio da cadeia estava abandonado, indagou um consultor de vendas ao jornal Folha de Londrina: [...] como pessoas de bom nível cultural podem querer restaurar um lugar que só recebeu tristezas e causou problemas a muitas vidas, dizendo que aquilo é um patrimônio histórico? Não conheço ninguém que vai ter saudades do Cadeião. Vamos demolir aquilo que é um atraso para aquela região da cidade. (Folha de Londrina3, s/p, 06. set. 2008, grifo nosso). A exemplo dos problemas que envolveram a antiga cadeia pública de Londrina, outros presídios do país apresentam situações semelhantes de péssima infraestrutura e superlotação, além de denúncias de maus-tratos. O Brasil, atualmente, contém uma das maiores populações carcerárias do mundo. Entretanto, não é preciso transitar de símbolo de esperança a símbolo da barbárie para compreendermos a contradição inerente às modernas instituições prisionais: sua própria existência significa que outras instituições, como a escola ou o estado social, já falharam. (DORES, 2003). Para os autores Berman, Koselleck, e Benjamin, contradição é um termo definidor dos tempos modernos. Filósofo estadunidense e marxista, Marshall Berman (1986, p.14) define modernidade como um tipo de experiência vital partilhada pelos seres humanos, hoje, em termos globais: A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. O autor divide, então, a história da modernidade em três fases – congruente às três fases do capitalismo, possivelmente em decorrência de sua formação marxista. A primeira fase, entre os séculos XVI e XVIII, não há consciência de uma comunidade moderna; trata-se do início de uma experiência particular própria da modernidade. A segunda fase, transitória, inicia-se com a Revolução Francesa e suas reverberações, referindo-se ao público do século XIX. Finalmente, no século XX, temos a terceira fase, na qual há uma cultura mundial do modernismo, grosseiramente, em termos quantitativos e qualitativos. Berman argumenta que, no decorrer dessas fases, o turbilhão de fenômenos e essa vida radicalmente contraditória na sua base das sociedades modernas nos desconectaram do passado ou de nossas raízes. À semelhança do filósofo, o historiador alemão Koselleck (apud DUARTE, 2012), estudando a história das relações com o tempo na cultura alemã, constata uma nova experiência temporal no período entre 1750 e 1850, ou seja, no período de consolidação da segunda fase da modernidade. Segundo Koselleck, a era moderna, e as transformações que introduz de modo acelerado, distancia experiência (passado) e expectativa (futuro) progressivamente. Se até meados do XVIII, o futuro se assemelharia ao passado – a ponto de conceber-se uma historia magistral vitae –, na modernidade ulterior há a emergência não de um futuro passado, mas de um CALVI, Lucas. Folha De Londrina, Londrina, 06 <http://www.folhadelondrina.com.br/opiniao/cartas-653929.html>. 3 [ 14 ] set. 2008. Folha Opinião, Cartas. Disponível em: Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS [...] futuro aberto, indeterminado e indeterminável pelas experiências passadas, o passado cessou de “ensinar”. A radicalidade do futuro, vivido no presente como aceleração, separou as dimensões do tempo, anulando a utilidade da experiência passada. (DURTE, 2012, p.74). Os diversos acontecimentos da modernidade tornaram sua característica a sensação de surpresa, de ruptura da continuidade. Denota essa nova experiência temporal, para Koselleck, o próprio conceito de progresso, em que se deixa manifestar uma certa determinação do tempo, transcendente à natureza e imanente à história. (KOSELLECK, 2006, apud DUARTE, 2012, 74). Há, no conceito de progresso, a ideia de desenvolvimento progressivo em relação ao futuro. No campo da historiografia, Koselleck considera as filosofias utópicas da história, nos séculos XIX e XX, como uma tentativa dissimulada de neutralização e despolitização da existência, baseada em uma visão utópica da vida social como inerentemente pacífica. (DUARTE, 2012, 82). Assim, no campo da filosofia da história, Koselleck explicita a contradição da modernidade. A crítica do historiador alemão reside na pretensão de neutralidade dos discursos historiográficos legitimadores de determinados movimentos políticos desses períodos. Koselleck (DUARTE, 2012, 83) denunciava o caráter ideológico arbitrário e o potencial totalitário dessas filosofias que, para o autor, foram vetores da crise sociopolítica europeia a partir da Revolução Francesa, culminando em regimes totalitários. Em síntese, da crise experenciada na modernidade. Crítico literário, o judeu-alemão Walter Benjamin (1892-1940), no início do século XX, alertava para a fragilidade na crença do progresso. Em 1940, em suas teses Sobre o conceito de história, a partir de sua característica linguagem metafórica, destaca-se a nona tese com o quadro Angelus Novus, de Paul Klee (pintor e poeta suíço, naturalizado alemão; 1879-1940). Na descrição metafórica do anjo da história, Benjamin (1987, p.226) traça suas perspectivas a respeito do Progresso: Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. Benjamin, portanto, tece críticas à obtusa fé no progresso técnico e econômico do capitalismo que, para o autor, não significa progresso social. Ao contrário, para Benjamin o progresso ameaça a humanidade – por isso o amontoado de ruínas que cresce até o céu – e implica na concepção homogênea, vazia e mecânica do tempo histórico, própria do historicismo. (LÖWY, 2002, p. 205). Desse modo, traçam-se críticas à perspectiva idealizada e acrítica do progresso na modernidade. As distopias – como a obra Admirável mundo novo (1932), do escritor britânico Aldous Huxley (1894-1963) – contrapõem-se às utopias. Portanto, evoca-se também um pessimismo em relação aos tempos modernos. No entanto, não se trata de um pessimismo fatalista, mas, em alguma medida, revolucionário. Marshall Berman, por exemplo, constrói suas concepções a partir de Marx e Nietzche, cujas vozes compartilham, segundo o filósofo, sua rápida e brusca mudança de tom e inflexão [...] na tentativa de expressar e agarrar um mundo onde tudo está impregnado de seu contrário, um mundo onde “tudo o que é sólido desmancha no ar”. [...]. É uma voz que conhece a dor e o terror, mas acredita na sua capacidade de ser bem sucedida.[...]. Irônica e contraditória, polifônica e dialética, essa voz denuncia a vida moderna em nome dos valores que a própria modernidade criou, na esperança – não raro desesperançada – de que as modernidades do amanhã e do dia depois de amanhã possam curar os ferimentos que afligem o homem e a mulher modernos de hoje. (BERMAN, 1986, pp.21-22, grifo nosso). De fato, a modernidade caracteriza-se por vozes que denunciam a vida moderna em nome dos valores que a própria modernidade criou. [ 15 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS À semelhança de Berman, Benjamin igualmente descende dos pensamentos de Marx e Nietzche, embora revogando algumas de suas prerrogativas. Não abordaremos no presente artigo o desenvolvimento, bastante particular, do pensamento benjaminiano. Michael Löwy, em Walter Benjamin: aviso de incêndio, o faz prodigiosamente. Interessa ressaltar que, para Walter Benjamin (1987, p. 226), o anjo da história, ao invés de perceber no passado simplesmente uma cadeia de acontecimentos, deve ver uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Nesse sentido, o autor aproxima a ideia de progresso à ideia de catástrofe. Essa consciência, portanto, possibilita a ruptura da continuidade desse progresso destrutivo próprio da modernidade. Por isso, segundo Benjamin, o dever de escovar a história a contrapelo, ou seja, visibilizar na historiografia que a tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção [...]. (BENJAMIN, 1987, pp. 225-226). Considerações finais As peculiaridades próprias aos tempos modernos, conforme dissertamos, de fato, se espelham em inúmeras narrativas envolvendo o Cadeião de Londrina, sobretudo no contexto da díade barbárie/civilização. Nesse processo, é essencial pensar, conforme dissertam Haesbaert e Limonad, O território em tempos de globalização (2007). Ou seja, considerar uma nova identidade sócio-territorial própria da modernidade. Os autores distinguem três possibilidades de abordagens da concepção de território conforme a dimensão social priorizada – não exclusiva, uma vez que tais dimensões fundem-se em certa medida: jurídico-política (a partir de concepções de Estado-nação, fronteiras políticas e limites político-administrativos), culturalista (considerando-se lugar e cotidiano, identidade e alteridade social, cultura e imaginário) e econômica (discorre-se na esteira da divisão territorial do trabalho, das classes sociais e das relações de produção). (HAESBAERT; LIMONAD, 2007, p.45). Sem aprofundar as discussões no presente artigo, a longo prazo, interessa a dinâmica da abordagem culturalista para refletir esse espaço estigmatizado da cadeia pública. Em linhas gerais, a empatia da História não deve favorecer os dominadores, mas os dominados; e sua narrativa deve estar a serviço da emancipação das classes oprimidas. (LÖWY, 2002, p.2001). Ou seja, o judeu-alemão Walter Benjamin – que se suicida em 1940, na iminência de sua fuga da França para a Espanha – conclama, em certa medida, a politização explícita da historiografia em favor da ruptura de um progresso sociopolítico destrutivo da humanidade. Não é essa, também, a proposta da História do Tempo Presente? Desse modo, compreender a modernidade enquanto nossa última catástrofe é essencial para a compreensão de fenômenos próprios dessa modernidade a respeito dos quais a historiografia do tempo presente disserta. Referências BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: ______. 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[ 17 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Biopoder e discurso: uma análise história do período ditatorial brasileiro Laís Franciele de Assumpção Wagner1 Lucas Dalmora Bonissoni2 Resumo: Foram cerca de 20 longos anos que perdurou o período de ditadura militar no Brasil. Durante todo esse período houve diversos acontecimentos e atitudes que foram utilizados a fim de justificar uma “revolução”, ocorrida, sobretudo com argumentos de defesa do Brasil à implementação do comunismo. Este período que teve início na década de 1960 e foi caracterizado pela utilização da violência, repressão e suspensão de direitos civis por parte do Estado que adotou posição intolerante contra aqueles que não aceitaram as medidas autoritárias estatuídas. Durante todo o período ditatorial, o governo utilizou de discursos autoritários, os quais tentaram demonstrar que se estaria tentando salvar o país e, por esta razão, justificava-se a tortura e morte de diversas pessoas, pois seria necessário que alguns “traidores” fossem mortos para que a sociedade brasileira pudesse sobreviver. Na época utilizava-se de diversas formas de políticas para controlar e censurar atos que fossem em desfavor ao que se tentava programar como verdades pelos ditadores militares. Diante deste cenário, o presente trabalho buscará analisar, primeiramente o conceito de biopoder, que na ótica de Michel Foucault, se define principalmente de duas formas correspondendo, primeiramente numa análise anátomo-política do corpo e, na segunda concepção, como uma biopolítica da população. Enquanto a primeira diz respeito aos dispositivos disciplinares que são utilizados no interior de instituições, tais como escola, hospital, prisão etc., e são encarregados principalmente de extrair do corpo a força produtiva, o qual se dá através de controles, como do tempo e do espaço. Já a segunda, a biopolítica da população é voltada principalmente a sistemas de regulação das massas, que, utilizando-se de estratégias de governança, através dos diversos saberes, permitem gerir situações voltadas a diversos aspectos, tais como a migração, epidemia, saúde, etc. O presente artigo também buscará focar na análise de Foucault sobre a política, o discurso e a verdade e o poder, além da problemática dos argumentos utilizados à época, evidenciando a extrapolação da lógica para as relações sociais. Ao final do artigo buscar-se-á discutir os desenvolvimentos contemporâneos das tecnologias do discurso e do poder, buscando focar em como o conceito de biopoder e a análise histórica ditatorial permite auxiliar na compreensão das formas atuais de governo. Por esta razão que a hipótese deste trabalho está na verificação dos discursos e das “verdades” que foram construídas com o intuito que os brasileiros viessem a aceitar referidas atitudes por entender que o Brasil precisaria ser salvo do comunismo. Por esta razão que as concepções trazidas por Michel Foucault são imprescindíveis para a compreensão destas “verdades” estatuídas na época da Ditadura Militar. INTRODUÇÃO Foram cerca de 20 longos anos que perdurou o período de ditadura militar no Brasil. Durante todo esse período houve diversos acontecimentos e atitudes que foram utilizados a fim de justificar uma “revolução”, ocorrida, sobretudo com argumentos de defesa do Brasil à implantação do comunismo. O presente trabalho objetiva num primeiro momento levantar e analisar os acontecimentos históricos ocorridos em especial em abril de 1964 no Brasil, em que houve a violação da Constituição e o presidente João Goulart legalmente eleito foi deposto, tendo então os militares assumidos o poder. 1 Advogada. Mestranda em Direito com linha de pesquisa na área de Relações Sociais e Dimensões do Poder pela Universidade de Passo Fundo – UPF. Especializanda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Especialista em Direito Tributário e Empresarial pela Faculdade Meridional – IMED, 2012. Bacharel em Direito pela Universidade de Passo Fundo – UPF, 2010. E-mail: laisfranciele.a.w@gmail.com 2 Mestrando em Direito pela Universidade Passo Fundo (UPF), vinculado à linha de pesquisa Relações Sociais e Dimensões do Poder, email: lucasdbonissoni@hotmail.com [ 18 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Este período que teve início na década de 1960 foi caracterizado pela utilização da violência, repressão e suspensão de direitos civis por parte do Estado que adotou posição intolerante contra aqueles que não aceitaram as medidas autoritárias estatuídas. Constata-se que após ser instaurada a ditadura no Brasil, o discurso inicial contra o comunismo passou a ter um novo rumo, através de um discurso para justificar a intervenção militar diante do então perigo comunista. Muitas medidas foram tomadas pelo Governo militar, tais como a vigilância e a censura dos órgãos de informação que apenas poderiam narrar às ameaças iminentes do comunismo e a necessidade da intervenção militar como estratégia política para evitar este acontecimento. Diante deste cenário histórico dentro da ditadura militar, em especial o marco de abril de 1964, o presente trabalho buscou analisar e conceituar o biopoder, na ótica de Michel Foucault. Para o autor o biopoder se define principalmente de duas formas: a primeira como uma análise anátomo-política do corpo e, na segunda concepção, como uma biopolítica da população. Enquanto a primeira diz respeito aos dispositivos disciplinares que são utilizados no interior de instituições, tais como escola, hospital, prisão etc., e são encarregados principalmente de extrair do corpo a força produtiva que se dá através de controles, como do tempo e do espaço; a segunda, biopolítica da população é voltada principalmente a sistemas de regulação das massas, que, utilizando-se de estratégias de governança, através dos diversos saberes, permitem gerir situações voltadas a diversos aspectos. O presente artigo também buscou focar na análise de Foucault sobre o poder em relação à política, o discurso e a verdade, além da problemática dos argumentos utilizados à época, evidenciando a extrapolação da lógica para as relações sociais. Ao final do trabalho busca-se discutir os desenvolvimentos contemporâneos das tecnologias do discurso e do poder, buscando focar em como o conceito de biopoder e a análise histórica ditatorial permite auxiliar na compreensão das formas atuais de governo. 1. O Discurso que antecedeu o Golpe de 1964 Dentre diversos fatores ocorridos em anos que antecederam o deposto do presidente João Goulart em 1964, o presente trabalho se limitará a apenas alguns pontos específicos, em especial os fatos ocorridos em março e abril de 1964. Na época o Brasil estava enfrentando uma série crise econômico e política. Segundo Miranda, João Goulart apenas retomou os poderes plenos em janeiro de 1964 em que se restabeleceu o presidencialismo, tendo o parlamentarismo durado menos que um ano (2014, p. 481) e, diante das diversas dificuldades em governar, considerando não obter o apoio necessário no parlamento, o presidente Jango passou a percorrer com uma série de comícios públicos, com argumentos mais reformistas. (2014, p. 483). Um de seus principais discurso foi o que ocorreu em 13 de março de 1964 na Central do Brasil, em que, dentre outras demandas, frisou principalmente a necessidade da reforma agrária, entre outros. Em seu discurso, através dos trechos abaixo selecionados, é possível perceber este cunho reformista, pois se utiliza de argumentos democráticos a fim de frisar a necessidade de uma reforma de base: [...] Aqui estão os meus amigos trabalhadores, vencendo uma campanha de terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu presidente, na presença das mais significativas organizações operárias e lideranças populares deste país. Chegou-se a proclamar, até, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse a dona da democracia, e a proprietária das praças e das ruas. Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas. [...] [ 19 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Perdem seu tempo os que temem que o governo passe a empreender uma ação subversiva na defesa de interesses políticos ou pessoais; como perdem igualmente o seu tempo os que esperam deste governo uma ação repressiva dirigida contra os interesses do povo. Ação repressiva, povo carioca, é a que o governo está praticando e vai amplia-la cada vez mais e mais implacavelmente, assim na Guanabara como em outros estados contra aqueles que especulam com as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo e que sonegam gêneros alimentícios e jogam com seus preços. [...] Essa Constituição é antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio -econômica já superada, injusta e desumana; o povo quer que se amplie a democracia e que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facultado participar da vida política através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e seja assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações religiosas ou ideológicas. [...] O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é “progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”. [...] Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária. Sem emendar a Constituição, que tem acima de dela o povo e os interesses da Nação, que a ela cabe assegurar, poderemos ter leis agrárias honestas e bemintencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais profundas. [...] Como garantir o direito de propriedade autêntico, quando dos quinze milhões de brasileiros que trabalham a terra, no Brasil, apenas dois milhões e m eio são proprietários? [...] 3 Da análise das partes selecionadas do discurso de Jango na Central do Brasil, é possível compreender a extensão da reforma de base pretendida pelo presidente João Goulart, o qual pretendia reformas consideráveis na Constituição. Além da reforma de base consubstanciada principalmente pela reforma agrária, João Goulart também argumentava na reforma democrática na participação do povo permitindo o voto a todas as pessoas maiores de 18 anos, incluindo as analfabetas. Neste ponto em questão, é importante ressaltar que a ideia trabalhada pelo presidente não foi bem vista, pois, a aprovação da possibilidade de voto dos analfabetos seria um meio fraudulento que possibilita a estelionatários políticos angariar votos em cima dos desfavoráveis. A real reforma de base democrática deveria conceder a todos os brasileiros o acesso às Escolas. Miranda destaca, no que se refere à análise jornalística da reforma de base proposta por João Goulart, foi possível constatar a forma como seu discurso era visto, para o Diário de Notícias, a discussão sobre a reforma de base, servia como mera camuflagem e corresponderia a uma ameaça à democracia e à Constituição, como forma de um projeto de legalização de um partido comunista. Já o jornal Tribuna da Imprensa interpretou esta tentativa de reforma de base como um verdadeiro ato falso a esconder o real desejo de ditatorial de Jango o qual pretendia fechar o Congresso Nacional e abrir os caminhos ao comunismo. (2014, p. 486). 3 Discurso de Jango, na Central do Brasil. [ 20 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS No entanto, o Correio de Notícias, sempre se manteve na cautelaridade, afirmando que nenhum ato concreto contra a legalidade foi tomado pelo governo e por esta razão não justificaria o pânico antecipado. (MIRANDA, 2014, p. 491) Já o Jornal Última Hora ressaltou que o comício de Jango nada mais deixou claro o plano de governo o qual já havia falado desde sua eleição e que em nenhum momento em seu comício deixou claro a vontade em fechar o Congresso ou impor as medidas que entende necessário através de meios ilegais (MIRANDA, 2014, p. 491) Daí já é possível extrair a ideia – através da imprensa, em sua maioria – a polarização do discurso de Jango indo desde a ideia de um discurso coerente com seu plano de governo, dentro da legalidade e com cautela – Última Hora e Correio de Notícias –, bem como com um discurso golpista e esquerdista, com propósitos comunistas e contrários à legalidade e democracia – Tribuna da Imprensa e Diário de Notícias. E este fato se dá, principalmente porque em 04 de outubro de 1963 o [...] Presidente enviou ao Congresso pedido de autorização para decretar o Estado de Sítio. A comoção foi enorme e a oposição à medida reuniu quase a unanimidade das forças políticas. O episódio é revelador das dificuldades encontradas por Goulart para manter sua política “equilibrista”. À esquerda e à direita, ninguém entendeu o objetivo do governo, cada lado achando que o Estado de exceção representaria um golpe perpetrado pelo grupo oposto. Vendo-se isolado, o governo não teve alternativa senão recuar e retirar o pedido. A confusão e incerteza reinantes aumentaram o temor dos anticomunistas, cada vez mais preocupados com a movimentação dos setores esquerdistas. (MOTTA, 2000, p. 317). Diante disso, após o discurso feito na Central do Brasil, onde resta cristalino sua propensão ao comunismo, principalmente quando se refere aos dizeres “Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas”, merece atenção especial, porquanto, os anticomunistas se autodenominavam de democratas e se autointitulavam defensores da democracia, não aceitando ideias comunistas. Na época, diversos acontecimentos que sucederam ao discurso de João Goulart que contribuiu para que os opositores do presidente viessem a reforçar a tese de que ele agiria contra a legalidade, aumento aliados que vieram a se opor ao Jango, os quais antes o defendiam. (MIRANDA, 2014, p. 489-490) Diante das especulações acerca da possibilidade do presidente João Goulart estar tramando um golpe para fechar o Congresso, opositores passaram a se reunir em manifestações, tendo se destacado a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que ocorreu em 19 de março de 1964, em São Paulo: A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi o “comício da Central” do lado conservador, ou seja, se constituiu em evento altamente impactante no que tange à mobilização antiesquerdista. Sua preparação, por sinal muito cuidadosa, reuniu toda a elite paulistana em verdadeira frente anticomunista e antiGoulart, que conseguiu levar para a região da Praça da Sé enorme massa humana. (MOTTA, 2000, p. 326) Constata-se que a reunião de grupos da Marcha da Família ocorreu contra o comunismo que estava correndo o risco de ser implantado no Brasil. Segundo, Motta, embora o presidente João Goulart ficasse na corda bamba entre a direita e a esquerda, eram evidentes suas tendências ao comunismo e o risco estava cada vez mais evidente após o comício feito uma semana antes no Rio de Janeiro. (2000, p. 311-312). Pode-se destacar no discurso lançado na Marcha da Família que o povo que se reuniu lutava contra os ideais ideológicos comunistas, referindo o mal dos “vermelhos” ao convívio da família brasileira: Povo do Brasil, A Pátria, imensa e maravilhosa, que Deus nos deu, está em extremo perigo. (...) [ 21 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Deixaram infiltrar-se no corpo da Nação, na administração, nas Fôrças Armadas e até nas nossas igrejas os servidores do poder totalitário, estrangeiro e devorador. Não defendemos a nossa casa enquanto era tempo, quando era fácil, e, agora, as fôrças do mal, da mentira e da demagogia ameaçam a própria vida da família brasileira. Mas hoje, na praça pública, no dia da família, essa multidão imensa veio, espontâneamente, responder ao chamado das mulheres brasileiras (...). Reformas, sim, nós as faremos, a começar pela reforma da nossa atitude. De hoje em diante os comunistas e seus aliados encontrarão o povo de pé. (...) Fiéis às nossas religiões, fiéis à nossa Constituição, fiéis à nossa pátria construiremos o Brasil autêntico, livre, forte e feliz. Com Deus, pela Liberdade, marchemos para a salvação da Pátria! (MOTTA, 2000, p. 327) Diante de todo este cenário de incertezas e polarização política, começou uma forte corrente favorável à derrubada do Presidente João Goulart, sendo que todas as condições estavam postas e as pessoas preparadas para isso, no entanto, faltava apenas uma fagulha para que tudo viesse á tona e, segundo Motta, ela veio uma semana após a Marcha da Família e se deu pela “revolta dos marinheiros” o qual convenceu os oficiais para a necessidade de existência de um processo revolucionário. (2000, p. 329-330) Neste ponto em específico, é imperioso ressaltar que para os militares e a imprensa, a solução dada pelo presidente em conjunto com o ministro da Marinha, tendo liberado os marinheiros presos, representou uma verdadeira afronta à hierarquia militar, tendo sido sondado a possível infiltração dos comunistas para a eclosão da revolta dos marinheiros. Segundo o Diário de Notícias e a Tribuna da Imprensa, as reivindicações dos marinheiros foram criminosamente coordenadas pelo Executivo a fim de desestabilizar das Forças Armadas, correspondendo a um verdadeiro desrespeito às normas, à legalidade e ao regime constituído. (MIRANDA, 2014, p. 503-504). A situação como foi resolvida pelo Executivo evidenciou, ao menos aos anticomunistas, como um ato atentatório à hierarquia militar, considerando que os marinheiros rebeldes deveriam ter recebido a correta disciplina, não tendo sido feito, logo referido fato serviu para desestabilizar o aparato militar, dando forças à teoria conspiratória de que João Goulart resistiria e implantaria o comunismo no Brasil. Nesse sentido, Miranda ressalta que a mídia deteve importância significativa na interpretação dos fatos ocorridos: O Correio da Manhã, mesmo sem fazer menção aos comunistas, também condenou a interferência de civis na solição de um caso militar e exigiu uma postira rigorosa do presidente João Goulart. Não cabia a ele analisar se as reinvidicações dos marinheiros eram justas ou não, mas sim manter-se fiel à Constituição e restabelecer imediatamente a autoridade e a disciplina que eram os sistentáculos do regime e da nação (CM, 29/03/1964, p. 6). (2014, p. 504) Ainda, no dia 30 de março de 1964, João Goulart procedeu com um novo discurso feito na festa de posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos, em que salientou que o problema maior estaria na minoria privilegiada e que a reforma que pretendia fazer era perfeitamente constitucional e dentro da legalidade e o eram a fim de beneficiar o povo. Relatou que a constituição não era intocável e que não iria permitir a desordem em nome da ordem. (MIRANDA, 2014, p. 505-506) Referido discurso de João Goulart foi o verdadeiro estopim, pois deixou claro que seus ideais comunistas seriam, mais cedo ou tarde, implantado sob o argumento de uma justiça social equilibrada e justa, que seria uma evolução legislativa na medida em que a própria sociedade estava avançando para referido objetivo, quando na verdade a massa maioria, ao que parece, pela Marcha da Família, quer era contra as ideias de esquerda. [ 22 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Após o discurso feito por João Goulart no dia 30 de março, os jornais começaram a pressionar, enquanto o jornal Última Hora, por exemplo, que requeria que o Congresso tomasse parte na votação das reformas de base, o Diário de Notícias, ainda estava apontando a necessidade de restabelecimento da ordem e da disciplina militar, como porta de saída do presidente, precipitando, assim, o movimento golpista. (MIRANDA, 2014, p. 507). E, enfim, no dia 31 de março eclodiu-se o golpe militar, o qual foi provocado em decorrência da necessidade de intervenção contra o comunismo. A partir da análise do discurso exarado após o ato golpista resta cristalino que ele se deu no sentido de resguardar o Estado e o povo do comunismo: Agora é a Nação tôda de pé, para defender as suas Fôrças Armadas, a fim de que estas continuem a defendê-la dos ataques e das insídias comunistas. Neste grave momento da História, quando os brasileiros, patriotas e democratas, vêem que não é mais possível contemporizar com a subversão, pois a subversão partindo do Govêrno fatalmente conduziria ao “Putsch” e à entrega do País aos vermelhos, elevemos a Deus o nosso pensamento, pedindo-lhe que proteja esta Pátria Cristã, que a salve da Guerra fratricida e que a livre da escravidão comuno-fidelista1. A virilidade do movimento cívico que reinstalou o império da lei e da liberdade no País, que demonstrou a aversão do povo brasileiro à comunização, que repudiou a agitação e a opressão, repercutiu de modo intenso em todo o mundo. O II Exército (...) acaba de assumir atitude de grave responsabilidade com o objetivo de salvar a Pátria em perigo, livrando-a do jugo vermelho. É que se tornou por demais evidente a atuação acelerada do Partido Comunista para a posse do poder, partido agora mais do que nunca apoiado por brasileiros mal avisados que nem mesmo têm consciência do mal que se está gerando. O IV Exército (...) cumpre o importante dever de manifestar sua solidariedade aos companheiros da 4a Região Militar e 4ª Divisão de Infantaria (...). Não seria possível que a evidência de uma infiltração comunista insólita e consentida pelo Governo, culminada com os lamentáveis acontecimentos do dia 26 próximo passado, deixasse de provocar a revolta generalizada a que estamos assistindo (...). Rio-grandenses, brasileiros! Eu não poderia nesta hora fugir ao meu dever. Frente à ameaça clara e aberta de intervenção, cujo processo está em marcha, só tenho um caminho: incorporar-me àqueles que, em todo o Brasil, lutam para restaurar a Constituição e o direito, livrando a nossa pátria de uma agitação comunista! Atendendo à geral e angustiosa expectativa do Povo Brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e evitaram se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa Terra. (...) Ao rendermos graças a Deus, que atendeu as orações de milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares que se levantaram em nome dos supremos interesses da Nação! (MOTTA, 2000, p. 333334) Assim, com o Ato Institucional n. 1, de 09 de abril de 1964, editado pelos Comandantes e Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sob o fundamento de uma revolução necessária, se investiram no Poder Constituinte no intuito de destituir os poderes próprios do presidente João Goulart, assumindo o poder até que novas eleições fossem feitas através do Congresso: [ 23 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do Pais. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional. (BRASIL, Ato Institucional n. 1, 1964, grifo nosso) Assim, com um argumento de revolução vencedora e sobre tudo sob o pretexto de salvar a pátria do Comunismo, é que se justificou o golpe de abril de 1964 pelas forças armadas. A partir e então, diversas outras medidas foram tomadas pelos presidentes em exercício durante a ditadura militar. Aparentemente o golpe de 1964 foi clamado pelo pela maior parte do povo brasileiro com evidente receio de que o presidente democraticamente eleito, João Goulart fosse implantar o comunismo no Brasil. O período ditatorial acabou perdurando por cerca de 20 anos e, diversos atos institucionais foram editados, sempre sob o pretexto anticomunista. Daí, como já sabemos, passou-se a censura aos meios de comunicação, diversas prisões foram efetuadas com o intuito de combate aos traidores comunistas que estariam tramando contra o país, justificando assim diversos atos atentatórios contra o ser humano e sua dignidade, a perseguição e a repressão eram justificadas para evitar a subversão da ordem estabelecida. Diante disso é possível compreender que durante todo o período ditatorial, o governo utilizou de discursos autoritários, sob o argumento de uma falsa democracia ocorrida após a “revolução vencedora”, os quais tentaram demonstrar que se estaria tentando salvar o país e, por esta razão, justificava-se a tortura e morte de diversas pessoas, pois seria necessário que alguns “traidores” fossem mortos para que a sociedade brasileira pudesse sobreviver. Na época utilizava-se de diversas formas de políticas para controlar e censurar atos que fossem em desfavor ao que se tentava programar como verdades pelos ditadores militares. Assim, através de argumentos sofistas, cada vez mais os direitos e liberdades do cidadão eram ceifados. O que no início poderia parecer uma intervenção justa para a sociedade brasileira, para salvar a pátria do comunismo iminente, passou ao longo do período ditatorial a se tornar um verdadeiro pesadelo da teoria da conspiração, tirando a paz e o sossego de muitos brasileiros. 2. Análise do discurso à luz da teoria do biopoder de Michel Foucault A hipótese deste trabalho está na verificação dos discursos e das “verdades” que foram construídas com o intuito que os brasileiros viessem a aceitar referido golpe militar de 1964 por entender que o Brasil precisaria ser salvo do comunismo. Por esta razão que as concepções trazidas por Michel Foucault são imprescindíveis para a compreensão destas “verdades” estatuídas na época da Ditadura Militar. [ 24 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Segundo Cavalcanti, o discurso que desencadeou a deposição de João Goulart, já estava sendo utilizada muito tempo antes à data do golpe, em abril de 1964, demonstrando o quanto o discurso e a disseminação da “verdade do perigo comunista” tomou tamanha proporção a justificar um golpe militar e, um dos principais fenômenos da extrapolação do discurso do perigo comunista foi à instauração do medo, que até o golpe militar era voltado à própria implantação do Comunismo no país, mas que após o golpe, manteve-se o mesmo fenômeno do medo, embora com foco voltado para os próprios governantes ditatoriais que agiam repressivamente contra os “traidores” da pátria. (2015, p. 14) No que se refere ao conceito de biopoder, Foucault o conceitua como uma [...] série de fenómenos que me parece bastante importante, a saber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder. Em outras palavras, como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, voltaram a levar em canta o fato biológico fundamental de que o ser humano constitui urna espécie humana. É em linhas gerais o que chamo, o que chamei, para lhe dar um nome, de biopoder. Então, antes de mais nada, um certo número de proposições, por assim dizer, proposições no sentido de indicações de opção: não são nem princípios, nem regras, nem teoremas. (FOUCAULT, 2008, p. 03) Em A filosofia analítica da política, de 1978, o autor já trabalhava a ideia de que regimes totalitários nada mais seriam do que a radicalização de mecanismos políticos os quais já estariam presentes na modernidade, mas que utilizariam do aparato militar como instrumento instrumentos de repressão a fim de dispor de um verdadeiro controle disciplinar, com o intuito permanente de adestrar os corpos humanos através dos mais variados meios de subjetivação de poder. (FURTADO, CAMILO, 2016, p. 37). Este ponto chama a atenção como um dos mecanismos de poder trabalhados por Foucault na obra Vigiar e punir em que o autor trabalha na descrição de alguns mecanismos disciplinares que se dedicam a repartir os espaços, ordenar os indivíduos, com o intento de treiná-los e os mantendo sob permanente vigilância. Na mencionada obra, o filósofo refere à necessidade de vigiar, como forma de disciplina hierárquica: O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam. Lentamente, no decorrer da época clássica, são construídos esses “observatórios” da multiplicidade humana para as quais a história das ciências guardou tão poucos elogios. Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes, dos feixes luminosos, unida à fundação da física e da cosmologia novas, houve as pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um saber novo sobre o homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para utilizá-lo. (FOUCAULT, 1999, p. 196) Na obra o autor trabalha de forma extensiva diversos mecanismos disciplinares de vigilância, treinando, de certa forma, através do medo de punição, os corpos humanos para uma constante obediência. Este fato resta evidente no golpe militar e em todo tempo que perdurou a ditadura militar, pois através de atos de repressão e vigilância constante o Estado adestrava seu povo contra o comunismo e empregava o medo nas pessoas de tomarem atitudes e serem considerados traidores da nação, casos em que seriam severamente punidos. [ 25 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Veja-se que esta vigilância constante se justificava como forma de controle e poder, pois os corpos obedientes, punidos se fosse preciso, atuariam como força produtiva à serviço do governo e, nestes casos, não apresentariam perigo àqueles de detivessem o poder, pois assim ocorreu no marco ditatorial, sob o prisma de um discurso autoritário contra o comunismo, o governo militar utilizava-se da vigilância e punição para manter o controle e o poder, através de discursos que implantavam o medo de serem considerados traidores e, portanto, serem punidos como tais. Segundo Jean Delumeau, o medo é caracterizado diante de uma situação de ameaça, que não só ocorre contra indivíduos, mas também contra toda a coletividade, ou seja, ao estudar os discursos e as práticas que emitiam signos de perigo e de ameaça associados às esquerdas, é possível compreender os desdobramentos políticos que o medo desempenhou no período em estudo. (CAVALCANTI, 2015, p. 15-16) A produção desse sentimento concorreu para legitimar projetos, justificar práticas e direcionar políticas de Estado, pois o discurso da necessidade de combater o inimigo foi justificado pelo temor de que as forças de esquerda triunfassem no país, concorrendo para legitimar, por conseguinte, a intervenção militar. Daí que permite a compreensão de que [...] a história do que foi dito é refazer, em outro sentido, o trabalho da expressão: retomar enunciados conservados ao longo do tempo e dispersos no espaço, em direção ao segredo interior que os precedeu, neles se depositou e aí se encontra (em todos os sentidos do termo) traído. Assim se encontra libertado o núcleo central da subjetividade fundadora, que permanece sempre por trás da história manifesta e que encontra, sob os acontecimentos, uma outra história, mais séria, mais secreta, mais fundamental, mais próxima da origem, mais ligada a seu horizonte último. Essa outra história que ocorre sob a história, que se antecipa (FOUCAULT, 1987, p. 140) Nessa linha de raciocínio, através da temática do biopoder é possível compreender que Foucault percorre duas linhas de forças envolvidas na produção de subjetividades do poder, que no caso do golpe e no período que perdurou a ditadura militar pode ser enquadrado da seguinte maneira: Enquanto que de um lado está o poder totalizante que criou aparatos estatais os quais foram capazes de governar populações através de um discurso de medo e vigilância constante; de outro lado este poder era complementado através de técnicas individuais, consistentes na punição de pessoas que seriam consideradas traidoras, cujas práticas eram destinadas a dirigir as pessoas de modo permanente. A análise histórica e as técnicas de poder em relação ao biopoder trabalhado por Foucault se torna de grande relevância para a compreensão da sociedade atual, pois permite evidenciar a ação das duas linhas de forças mencionadas acima, bem como que um dos principais mecanismos de constituição e manutenção dos regimes ditatoriais é o medo, dado através de discursos, o que constitui um dos elementos mantenedores das relações políticas e sociais nas ditaduras. CONCLUSÃO Com o presente trabalho, é possível concluir que os fatos históricos narrados pela ditadura militar e o estudo das técnicas de poder do discurso e do biopoder na concepção foucaultiana, permitem retirar dos conhecimentos e das técnicas de manipulação utilizadas pelos militares, um aparato discursivo embasado no medo. Este aparato deu início principalmente na Marcha da Família, após o discurso de João Goulart na Central do Brasil, ambos em março de 1964, em que no discurso do presidente, deixou claro suas ideologias comunistas. Embora em seu discurso não reste claro a forma como o presidente João Goulart iria proceder, pois em nenhum momento expressa nitidamente que a forma adotada iria contra a legalidade, as forças opostas [ 26 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS ao pensamento comunista se antecederam ao que eles acharam que seria um golpe por parte do próprio presidente, o que, na concepção dos militares, justificou a intervenção militar como uma revolução vencedora. [ 27 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS REFERÊNCIAS BRASIL, Ato Institucional n. 1, de 09 de abril de 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.htm. Acesso em out/2018. CAVALCANTI, Erinaldo Vicente. O medo em cena: a ameaça comunista na ditadura militar (Caruaru, PE 1960-1968). 2015. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. ______. Segurança, território, população. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2008. ______. Vigiar e Punir, nascimento da prisão. 20 ed. Editora Vozes: Petrópolis, 1999. FURTADO, Rafael Nogueira Furtado. CAMILO, Juliana Aparecida de Oliveira. O Conceito de Biopoder no Pensamento de Michel Foucault. 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[ 28 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A instalação de grupos norte-americanos no setor industrial do Brasil e o monopólio das subsidiárias de energia elétrica e telefonia Lauren dos Reis Bastos1 Resumo: O presente artigo é parte integrante de um projeto de dissertação de Mestrado, e tratará sobre duas empresas norte-americanas, cujos investimentos foram efetivados no Brasil e, principalmente no Rio Grande do Sul, a partir de 1920. Tem por objetivo analisar o monopólio criado pela American Foreign Power Company, nos domínios da energia elétrica, bem como pela International Telegraph and Telephone, no âmbito da telefonia. Igualmente, serão verificadas as condições que permitiram as respectivas instalações no setor industrial do Brasil, as negociações, convênios e mediações estabelecidas com o governo estadunidense, a fim de que os referidos grupos empresariais tivessem a mobilidade necessária no cenário político regional. Palavras-chave: American Foreign Power Company. International Telegraph & Telephone. Empresas. Estados Unidos. Rio Grande do Sul. Abstract: This article is an integral part of a master's thesis project, and will deal with two US companies, whose investments were made in Brazil and, especially in Rio Grande do Sul, from 1920. It aims to analyze the monopoly created by the American Foreign Power Company, in the domains of electric energy, as well as by the International Telegraph and Telephone, in the scope of telephony. Likewise, the conditions that allowed the respective facilities in the industrial sector of Brazil, the negotiations, agreements and mediations established with the US government will be verified, so that the said business groups had the necessary mobility in the regional political scene. Keywords: American Foreign Power Company. International Telegraph & Telephone. Companies. United States. Rio Grande do Sul. INTRODUÇÃO O governo de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul se notabilizou pela sua ideologia políticopartidária, movimentos sociais e atos de cunho nacionalista, que exigiram do governo federal uma maior flexibilidade e diplomacia junto ao governo estadunidense e empresas estrangeiras aqui instaladas. Logo no principiar do século XIX, o desenvolvimento tardio da indústria brasileira exigiu uma movimentação dos entes federais, a fim de propiciar autonomia e progresso ao recém-nascido setor industrial. Isso não seria possível sem os recursos indispensáveis da energia elétrica e telefonia, que auxiliaram o crescimento interno, trazendo investimento e técnicas modernas para os setores. As empresas que aqui se estabeleceram encontraram facilidades na realização dos contratos de concessão com os governos estaduais, além de vantagens para expansão do serviço, que contava com produção, distribuição e transmissão de energia e comunicação. Asseguradas com um prazo de mais de 30 anos para exploração dos setores, a American & Foreign Power Company e a International Telegraph & Telephone começaram a sofrer interferências, principalmente no estado do Rio Grande do Sul, após constatação da deficiência do serviço prestado, que sofria com apagões, racionamentos, interrupção das linhas e material obsoleto. Ademais, apesar da falta de investimento posterior e solicitações de financiamentos públicos, os lucros remetidos às empresas matriz, localizadas nos Estados Unidos, ainda eram significativos, situação que chamou atenção de diversos políticos e gestores. As atividades, portanto, começaram a ser contestadas, situação que culminou nos já citados atos do governador, que encampou a concessão, retomou o serviço e expropriou o patrimônio, indenizando-os ao Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Bolsista da Fundação Universidade de Passo Fundo. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Advogada. Contato pelo e-mail lreisbastos@gmail.com 1 [ 29 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS valor que julgava correto. Antes da efetivação de todas essas situações, os contextos sociais estadunidense e brasileiro favoreceram a chegada das empresas, influenciaram na permanência e exploração dos serviços e foram fatores determinantes na tomada de decisão do governador. 1. O CONTEXTO HISTÓRICO E EXPANSÃO DO MERCADO ESTADUNIDENSE Os aspectos internos da política e economia estadunidense foram determinantes para a chegada das empresas estrangeiras no setor de serviços públicos da América Latina e, especificamente do Brasil e Rio Grande do Sul, então indispensável fazer uma breve contextualização do momento histórico atravessado pelos Estados Unidos entre o final do século XIX e início do século XX. O ponto de partida consiste na chegada de aproximadamente 4 milhões de imigrantes, entre os anos de 1869 até 1892 (BANDEIRA, 2005, p.42). O movimento nos portos impulsionou o crescimento demográfico, que aliados à constante evolução do capitalismo industrial e bancário, promoveram o desenvolvimento da nação e de novas formas de organização econômica, cujas atividades passaram a contar com grandes empresas e trustes, detentores de uma parcela significativa do mercado interno. Wall Street passou a contar com um governo à parte, que não se contentou apenas com o limite territorial do próprio país, mas passou a exigir da administração pública uma posição mais enérgica com relação ao comércio exterior e à expansão dos negócios. Analisando a solicitação dos grupos comerciais e verificando a possibilidade de crescimento externo, do alargamento simbólico de sua soberania e de controle sobre as empresas, o governo estadunidense promoveu a expansão do mercado ao mesmo tempo em que limitou a atuação interna dos monopólios e trustes. A concentração do poder junto aos grandes grupos, se tornou fato preocupante, à medida em que ocorreu a estagnação do livre comércio interno, a imposição de preços elevados e a falta de opção do consumidor, que se via obrigado a participar do jogo proposto pelos grandes grupos (SZMIDT, 2011, p. 52). Assim, diante do quadro que se apresentava internamente, o governo dos Estados Unidos sancionou em 1890 a lei Sherman Act, que impôs diversas medidas para assegurar a ampla concorrência e livre comércio, restringindo a atividade interna dos trustes, monopólios e limitando a concentração de poder econômico. Por conseguinte, fundamental acrescentar que as diretrizes ideológicas que o governo estadunidense alimentava, também justificavam a expansão almejada, pois não havia convicção maior que o Destino Manifesto, “tendência para o messianismo nacional, que marcou a formação e impregnou a cultura do povo americano” (BANDEIRA, 2005, p. 27). A ideologia foi primeiramente construída pelos cerca de 9 milhões de judeus que imigraram para os Estados Unidos, no período compreendido entre os anos de 1883 até 1914. O pensamento puritano transformou a América em terra prometida, povoada por predestinados eleitos por Deus, com o intuito de propagar suas leis de maneira justa e igualitária. A união dos diversos povos que desembarcaram nos Estados Unidos e as suas qualidades cristãs fomentaram o sentimento de grandeza e superioridade, que formou a identidades da nação. Convictos dessa ideia e fielmente absortos em sua predestinação no novo mundo, os governantes posteriores fizeram disso seus projetos de administração e expansão territorial, encontrando uma legitimação para não aceitar normas ou qualquer disposição referente ao Direito Internacional. (BANDEIRA, 2005, p. 28-29). Não bastasse todo o conjunto interno desenhado, a atmosfera internacional facilitou o avanço estadunidense, pois o término da primeira guerra mundial e a consequente derrocada das principais potências europeias, levou à reorganização geopolítica do globo. A inserção e crescimento de nações que ainda possuíam fôlego econômico, foi substancial para impulsionar o comércio exterior, cenário que possibilitou aos Estados Unidos mais visibilidade e crescimento internacional, tanto no âmbito econômico quanto político, permitindo-os delegar sua soberania a diversas instituições, que passam a contar com um cheque em branco frente ao cenário internacional (BANDEIRA, 2005, p. 29). A convergência de interesses, e a soma de todos os ingredientes mínimos acima expostos, contribuiu para o lançamento dos grupos ao mercado externo, procurando principalmente a expansão na América [ 30 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Latina, cujo território apresentava baixo desenvolvimento industrial, possuindo apenas uma rede limitada de comércio com a Europa. 2. AS EMPRESAS: AMFORP E IT&T A referida expansão, portanto, “contemplou” o Brasil com o aporte de empresas dispostas a investir capital nos diversos ramos industriais e de serviços que se encontravam em uma lenta evolução, estagnando qualquer perspectiva de desenvolvimento nacional. Tencionando reverter a situação apresentada, os serviços que mais receberam investimentos estrangeiros, foram os setores de energia elétrica e comunicação, com o aporte de empresas como a American & Foreign Power Company (AMFORP) e a International Telegraph & Telephone (IT&T), respectivamente, que constituíram subsidiárias para atuação, a partir de grupos empresariais de nacionalidade estadunidense. Diante da formação das subsidiárias, fundamental discorrer acerca da natureza e do histórico jurídico da formação dessas empresas. A AMFORP foi criada em 1924, com o intuito de gerenciar os investimentos externos, que há muito já estavam sendo efetivados na América Central, pelo grande grupo da General Electric a qual ela pertencia, bem como para adquirir empresas menores, que anteriormente tinham uma produção e distribuição “independente” de energia, mas que após a aquisição, passaram a integrar o todo (FERREIRA, SILVA, SIMONINI, 2012, p. 3). Assim, a constituição externa da principal responsável pela energia elétrica do país era incluía a General Electric, matriz e razão da Electric Bond & Share, subsidiária responsável pela eletrificação, transportes, além de demais serviços como fornecimento de água e gás. Consoante já referido, após o maciço investimento realizado na América Latina, restou formada a subsidiária AMFORP, que por sua vez adquiriu diversas outras pequenas concessionárias de serviços para produzir e distribuir energia, dando andamento à monopolização do setor. O início de suas atividades no Brasil ocorreu a partir de 1920, embora os investimentos na América Central fossem anteriores, pois já em 1917 a Bond & Share fixou suas bases no Panamá (FERREIRA, 2012, p. 4). Dez anos após começou a adquirir algumas concessionárias brasileiras, em uma sucessão (trocar termo – braços) de pessoas jurídicas, com diferentes registros e regiões de atuação, mas todas com a mesma finalidade e sob os olhares atentos da AMFORP. O princípio da subsidiariedade era necessário à medida em que o número de aquisições aumentava e o dever de acompanhar diretamente as atividades crescia, mantendo o caráter de subordinação à empresa matriz. No Rio Grande do Sul, a AMFORP veio a adquirir em 1927, a Companhia de Energia Elétrica Riograndense (CEERG), com atuação exclusiva em Porto Alegre e região metropolitana, assim como a The Riograndense Light & Power Syndicate, em 1930, que operava na cidade de Pelotas. Juntas, as empresas pertencentes à General Electric, com a gerência da AMFORP, controlavam cerca de 70% da capacidade de energia elétrica no país (SILVA, 2015, p. 81). Para compreensão da atuação da AMFORP, necessário verificar que apesar das várias razões sociais e pessoas jurídicas por ela utilizada, a sua apresentação perante os consumidores se dava exclusivamente através do nome da companhia adquirida, ou seja, o grupo mantinha o status “nacional” da empresa subsidiária, que prestaria o serviço direto ao consumidor. O nome da AMFORP, seu logotipo e slogan originais raramente apareciam no contexto brasileiro, demonstrando a intenção de ocultar sua origem, bem como sua subserviência e convergência com os interesses nacionais, para que não despertasse no brasileiro, seja o consumidor ou a própria classe política, um sentimento negativo de apropriação indevida ou até mesmo inflames nacionalistas que pudessem prejudicar o trabalho aqui realizado (FERREIRA, 2013, p. 7). Por conseguinte, a implementação estrangeira no setor de comunicações e traduz de maneira mais simples, no que concerne à constituição das empresas e gerenciamento do serviço. O setor era conduzido pela IT&T, que pertencia a um dos maiores trustes dos Estados Unidos, o Grupo Morgan, que juntamente com outros impérios financeiros, serviu de pretexto para o já citado Sherman Act (SILVA, 2015, p. 85). Quando do início de suas atividades no Brasil, a empresa instalou a Companhia Telefônica Nacional (CTN), [ 31 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS no ano de 1927 para atuação no Rio Grande do Sul, com funcionamento semelhante ao que já estava acontecendo na Companhia Telefônica Brasileira, atuante no Rio de Janeiro e em São Paulo, subsidiária de um grupo Canadense. Embora de uma trajetória mais simples do que aquela verificada pela AMFORP, a IT&T foi igualmente questionada no que se refere à prestação de seus serviços e remessa de lucros. As duas concessionárias estavam sendo alvo de diversas reclamações dos consumidores, que eram alvo constante de apagões, racionamentos de energia e contavam com precário serviço telefônico, com redes e instalações obsoletas. O descontentamento, que afetava igualmente a classe política, estava pautado desde o governo dos interventores estaduais, motivando discursos na Assembleia Constituinte em 1947, além da formação de comissões e grupos de trabalho com o intuito de analisar e fiscalizar a atuação das companhias. Por consequência, a deficiente prestação do serviço levou o governo gaúcho ao maior ato nacionalista já realizado, encampando sua concessão, retomando os serviços do setor e indenizando ao valor que acreditava ser justo. Esses atos exigiram do governo federal uma destreza e diálogo com o governo dos Estados Unidos, que aliaram as medidas à ideia nacionalista e comunista, pelas quais faziam oposição ferrenha. Todavia, esses atos do executivo foram motivados pelas circunstâncias vinculadas ao contrato de concessão, bem como à insatisfação que se apresentava há anos nos diversos espaços da sociedade, sendo interrompida por Leonel Brizola que assumiu a responsabilidade pelos atos e posterior prestação dos serviços pelo próprio governo estadual. CONCLUSÃO Diante disso, podemos concluir que as companhias estadunidenses tiveram o incentivo necessário, tanto do próprio governo onde foram constituídas, quanto do governo brasileiro, onde estavam estabelecidas as subsidiárias e de onde receberam todo o incentivo para exploração dos serviços. Inegável que trouxeram inúmeras vantagens e contribuíram para o desenvolvimento do setor industrial, com suas várias pessoas jurídicas e se espalhando por todo o território nacional, comprometendo-se com as diretrizes e planos de eletrificação, construindo as ferramentas necessárias para patrocinar o desenvolvimento do país. Restou claro de que as companhias procuraram fazer grandes investimentos assim que aqui chegaram, sendo interrompidas essas aplicações após a crise de 1929 havida nos Estados Unidos e que tiveram consequências em todo o globo, com maior ou menor influência. Após a constituição de todas as subsidiárias, com o prazo de contrato e a confiança estatal asseguradas, a exploração das concessões prosseguiram até o decaimento dos serviços e a encampação dos mesmos. A natureza jurídica das companhias e os contextos sociais que proporcionaram suas instalações, são fatores indispensáveis para o entendimento dos atos de encampação realizados pelo governador Leonel Brizola. REFERÊNCIAS BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. FERREIRA, Ângela Lúcia; SIMONINI, Yuri; SILVA, Alexsandro F. C. A penumbra da luz: redes técnicas brasileiras e a gestão da AMFORP entre 1952 a 1963. In: II Simpósio Internacional: Eletrificação e Modernização Social. São Paulo, 2013. ______. Os donos da luz: sistemas de gestão e redes técnicas no território brasileiro. O caso da AMFORP (1927-1939). In: CAPEL, Horacio; CASALS, Vicente. (Org.). Capitalismo e história da eletrificação, 1890-1930: capital, técnica e organização do negócio elétrico no Brasil e Portugal. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2013, p. 117-135. SILVA, Marco Antônio Medeiros. A última revolução: o governo Leonel Brizola no Rio Grande do Sul, 1959-1963. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. [ 32 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS SZMIDT, Daniel. A política externa brasileira ao longo do período Rio Branco (1902-1912): o olhar da imprensa e da diplomacia estadunidense e argentina. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2010. [ 33 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A atuação internacional nos conflitos na antiga Iugoslávia e a resistência do Kosovo Leonardo Pires da Silva Bellanzon1 Resumo: Os conflitos internos da República Socialista Federativa da Iugoslávia, no contexto da crise do socialismo no Leste da Europa, somados à crise política e econômica a que país estava submetido levaram-no a se desintegrar formando novos países independentes na Península Balcânica. No processo de independência das repúblicas que compunham a Federação houve o desencadeamento da Guerra da Bósnia, considerado o conflito mais violento na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em que nacionalistas da Sérvia e da Croácia promoveram um massacre contra bósnios muçulmanos. A intervenção internacional para a pacificação do conflito foi feita por intermédio de organismos como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que, entre outras ações, enviaram tropas para as chamadas “zonas de segurança”, estabelecidas em regiões do território bósnio com o objetivo de proteger a população muçulmana da violência a ela dispensada. O Kosovo, assim como a região de Vojvodina, no norte na Sérvia, conquistou sua autonomia, mas, encontrou resistência do governo iugoslavo quanto à sua independência resultando em tensões e conflitos naquela região. Com a colaboração da ONU e da OTAN intervindo nos conflitos e nas negociações de paz, a resistência kosovar levou a então província a declarar sua independência em 2008. Contudo, o reconhecimento do Kosovo ainda é limitado, uma vez que a Sérvia não o considera um país, mas, apenas uma província autônoma. Este trabalho busca analisar os conflitos que envolveram toda a região da antiga Iugoslávia durante a segunda metade da década de 1990 e o início dos anos 2000, bem como a resistência e luta por autodeterminação e independência do povo kosovar e ainda observar alguns aspectos da forma como a comunidade internacional reagiu aos conflitos da região e como se deu a sua atuação no processo de pacificação. Contexto político-social da Iugoslávia das décadas de 1980 e 1990 A Iugoslávia Socialista foi estabelecida ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, na região dos Balcãs, no sudeste da Europa. A federação era composta pela união das repúblicas da Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Montenegro, Macedônia e Kosovo. A crise do socialismo no Leste da Europa, juntamente com as crises internas da Iugoslávia, levaram o país à desintegração no início da década de 1990 (KIRKPATRICK, 2007). Os conflitos étnicos e religiosos protagonizados por sérvios, croatas e bósnios, durante o processo de independência da Bósnia-Herzegovina, resultaram na promoção de uma limpeza étnica contra a população muçulmana daquele país. O confronto mais expressivo no processo de desintegração da Federação Socialista, foi a Guerra da Bósnia, considerada como o mais violento conflito na Europa desde o fim da Segunda Guerra (1939 – 1945). A década de 1980, na Iugoslávia, foi marcada pelo agravamento de uma crise econômica iniciada em meados da década anterior e pelo ressurgimento de tensões motivadas por sentimentos nacionalistas. Em 1980, foi aprovada uma constituição que tinha entre seus objetivos unificadores, promover a rotatividade entre os governantes da Iugoslávia, para garantir que todas as repúblicas – ou etnias – tivessem um representante à frente da administração do país a cada período legislativo. Entretanto, sem a figura de Josip Broz Tito, presidente e principal líder iugoslavo que faleceu naquele mesmo ano, e com a economia iugoslava se deteriorando os desejos de independências se intensificaram. Os sérvios, com presença expressiva também na Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Croácia, se mostraram o grupo mais radical na expressão de seu nacionalismo. Com o desejo de formar a “Grande Sérvia” - projeto expansionista que pretendia transformar em território de domínio sérvio grande parte da Graduado em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História (PPH) da mesma universidade, na linha de História Política. 1 [ 34 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS região que compunha a Iugoslávia - não aceitavam que as demais repúblicas da federação se tornassem independentes. Entretanto, não houve objeção dos sérvios, tampouco das demais nacionalidades, quando, em 1991, a Macedônia proclamou a sua emancipação após referendo realizado com a população, e sem conflitos. Em junho daquele ano a Eslovênia conseguiu separar-se da Iugoslávia por meio de um breve enfrentamento armado, mas sem muitas perdas humanas. A Croácia declarou a sua independência no mesmo período em que a Eslovênia, porém a resistência sérvia foi maior e mais incisiva, contando com o apoio da comunidade servo-croata, o que resultou em um conflito que só teve seu encerramento seis meses depois, no décimo quarto pedido de cessar-fogo da comunidade internacional (ALVES, 2013). Naquele momento das tensões nos Bálcãs, acredita-se que a interferência internacional, na tentativa de resolver o conflito, acabou por acentuar a violência desencadeada pelos sentimentos nacionalistas e desejos de controle sobre áreas do território da antiga Iugoslávia (WOODWARD, 2008). Nos meses que se seguiram, houve o estabelecimento da República Srpska, na região da Bósnia-Herzegovina onde a presença de sérvios era maciça. A milícia sérvia presente em território bósnio contava com o apoio de milícias montenegrinas e do exército iugoslavo, da mesma forma, forças paramilitares croatas também se fizeram presentes nas regiões da Bósnia onde aquele grupo era maioria, enquanto os bósnios, sem armamento equivalente e sem contingente suficiente, estavam encurralados (BOSE, 2007). Segundo a antropóloga Andréia Carolina Schvatz Peres (2011), calcula-se que vinte mil mulheres e meninas bósnias tenham sido violentadas sexualmente. Muitas delas eram mantidas presas quando engravidavam, para que não abortassem e assim os soldados garantiam a descendência sérvia ou croata, e com o assassinato dos homens bósnios, reduziriam o índice de natalidade do grupo bosníaco. Este termo foi empregado posteriormente para diferenciar bósnios de outras religiões, dos bósnios muçulmanos. Este trabalho realiza apontamentos acerca da atuação internacional para a pacificação do conflito, bem como a resistência do Kosovo, província sérvia cuja maioria da população é de origem albanesa e também sofreu repressões ao longo do período de desintegração da antiga federação iugoslava. A pesquisa é realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001. A atuação internacional Deve-se observar que uma das primeiras medidas tomadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), logo após a eclosão dos conflitos de independência da Eslovênia e da Croácia, foi a emissão da Resolução 713, em 25 de setembro de 1991, que versava sobre o embargo à Iugoslávia. [...] de acordo com o capítulo VII da Carta das Nações Unidas, todos os Estados devem, com o propósito de estabelecer a paz e a estabilidade na Iugoslávia, implementar imediatamente um embargo geral e completo a todas as remessas de armamentos e equipamento militar a Iugoslávia até decisão em contrário do Conselho de Segurança, precedida de consulta entre o Secretário-Geral e o Governo da Iugoslávia. A intenção era criar condições para que a Iugoslávia conseguisse resolver seus problemas internos, no que tangia às questões das independências e conflitos nacionalistas. A mesma Resolução apelava para que não houvesse interferência de outros países nos conflitos iugoslavos, pois o CSNU entendia que a situação deveria ser resolvida pela própria federação, por se tratar de um problema interno. Por meio da Conferência Internacional para a Antiga Iugoslávia (em inglês, The International Conference on the Former Yugoslavia - ICFY), foi elaborado pela Comunidade Europeia juntamente com a ONU o plano Vance-Owen, proposto em janeiro de 1993 e que definia a divisão do Estado bósnio em nove cantões, três para cada nacionalidade, e com Sarajevo sendo um distrito internacionalmente administrado (GUIMARÃES, 2012). Bosníacos e bósnios croatas aceitaram a proposta do plano, pois receberiam mais território do que possuíam naquele momento, mas por serem obrigados a abrir mão de partes dos territórios [ 35 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS sob seu domínio, os servo-bósnios se opuseram ao plano. A partir daí houve a intensificação do conflito. Bósnios croatas tentaram dominar os territórios que seriam seus, de acordo com o plano Vance-Owen, realizando a expulsão das demais etnias destas regiões e os servo-bósnios aumentaram a ofensiva no enclave bosníaco de Gorazde (APOSTOLOVA, 1994). Segundo Karin Von Hippel (2004), a Força de Paz das Nações Unidas (em inglês United Nations Peace Force – UNPROFOR) inicialmente instalada na Croácia para a desmilitarização das milícias locais, durante o processo de independência, teve tropas deslocadas para a Bósnia em meados de 1992. A princípio, a tarefa da UNPROFOR era apenas a manutenção de ajuda humanitária e observação das forças combatentes, mantendo-se imparcial. No início de 1995, os servo-bósnios demonstraram os primeiros sinais de seu enfraquecimento, tendo sob seu comando uma área territorial maior do que podiam administrar. Contribuindo ainda para a redução da força da República Srpska, os bosníacos, com o apoio dos bósnios croatas, aumentaram seu poder bélico e assim passaram a enfrentar e combater as forças servo-bósnias (WOODWARD, 2008). Nesse processo, o comandante Ratko Mladic organizou uma ofensiva às zonas de segurança de Zepa, Gorazde e Srebrenica em julho daquele ano. Apenas Gorazde não foi tomada na investida, enquanto Zepa e Srebrenica foram dominadas pelos servo-bósnios de Mladic (ALVES, 2013). No dia 11 de julho, as forças da República Srpska promoveram o massacre de Srebrenica, que deixou aproximadamente oito mil homens e meninos muçulmanos mortos. Em agosto de 1995, o CSNU autorizou a OTAN a bombardear posições da República Srpska, no que ficou conhecido como Operação Força Deliberada. No dia 30, a região de Gorazde foi bombardeada para impedir que Mladic a tomasse, e o resultado alcançado foi o esperado: o comandante abriu mão da localidade (ALVES, 2013). João Marques de Almeida (2003), afirma que a autoridade nas questões de segurança foi passada da ONU para a OTAN em 20 de dezembro de 1995. A Força de Implementação (IFOR) estabelecida pela organização contou com 60 mil homens que substituiriam a UNPROFOR, e no âmbito da segurança pública, seria a última autoridade na interpretação e prática de assuntos militares, sem interferência de civis nas decisões táticas. A ação da OTAN na Bósnia-Herzegovina teve, entre seus objetivos, ajudar o país a estruturar-se nas questões de defesa. A SFOR, além da manutenção da paz, ajudou na criação das forças armadas bósnias e na formulação de uma política de segurança nacional (ALMEIDA, 2003). No que tangia a questões humanitárias, a OTAN ajudou na atuação da ACNUR, que foi muito delicada. Estimava-se que no início de 1996 havia um milhão e duzentos mil refugiados na Bósnia, e o Tratado de Paz garantia-lhes o direito de retornar às suas casas, contudo havia muito ressentimento por partes dos grupos étnicos do país (BIEBER; GALJIAS; ARCHER, 2014). Antes da Guerra, na Bósnia-Herzegovina, esses grupos conviviam pacificamente e os casamentos interétnicos eram comuns. Com o ódio incitado durante o conflito, as relações entre os grupos tornaram-se hostis. A paz e a segurança foram reestabelecidas na Bósnia-Herzegovina, os refugiados tiveram seu direito de regresso garantido, construíram-se novas instituições políticas e as atividades administrativas foram retomadas, entretanto, o país ainda almeja alcançar o principal objetivo do Acordo de Dayton: a construção de uma Bósnia multiétnica, democrática e desenvolvida O caso do Kosovo O Kosovo foi libertado do domínio do Eixo, durante a Segunda Guerra Mundial, no outono de 1944, pelos Partisans, mas, a população albanesa sofreu retaliação e foi criada uma administração interina cujos postos foram ocupados por sérvios e montenegrinos, grupos minoritários na região. Em 1945, a recém-criada assembleia do Kosovo e Metohjia aprovou uma resolução que reincorporava o território à Sérvia, com a garantia de que haveria apoio econômico, político e cultural do governo popular da Iugoslávia. No mesmo ano o Kosovo e a região de Vojvodina se tornaram províncias autônomas com direito a 25 cadeiras no parlamento da federação, 15 para Vojvodina e 10 para o Kosovo (BISERKO, 2012). A política de fraternidade e união entre os povos da Iugoslávia parecia funcionar para os outros grupos nacionais, Sonja Biserko (2012) aponta que para o Kosovo e a população albanesa a situação não havia mudado. Os albaneses kosovares não [ 36 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS acreditavam que uma Iugoslávia unificada lhes daria emancipação e eles continuariam sendo um símbolo de dominação eslava, sobretudo sérvia. Ainda segundo Biserko, a população albanesa era vista com desconfiança pelas autoridades porque poderiam ser uma espécie de espiões buscando informações para a “pátria mãe” e, portanto, eram naturalmente suspeitos do que quer que fosse. Pela constituição de 1974, Kosovo e Vojvodina foram estabelecidos como constituintes da federação iugoslava e passaram a ter quase o mesmo status que as demais repúblicas que a constituíam. A partir de 1978 o nacionalismo kosovar se intensificou com a celebração do centenário do que seria o surgimento da nação albanesa. Com o estreitamento dos laços culturais do Kosovo com a Albânia, os sérvios da região sentiram-se subjugados, uma vez que eram os kosovares que decidiriam e conduziriam as relações políticas da província. Àquela altura, as diferenças linguísticas também se tornaram um empecilho, afinal, muitos sérvios jamais haviam aprendido albanês e isso fez com que muitos deles se mudassem do Kosovo (PAVLOVIC, 2009). A partir de 1982, os meios de comunicação sérvios passaram a demonizar os kosovares, acusando-os de terrorismo, estupro etc. Sonja Biserko (2012) aponta que a mídia sérvia foi responsável pela incitação a uma histeria coletiva contra os kosovares justificando uma onda de violência contra os habitantes do Kosovo de origem albanesa. Durante o período de desintegração da Iugoslávia, as questões a respeito do povo kosovar e seus desejos de independência foram deixados de lado pelo governo central da Iugoslávia. O Kosovo declarou sua independência no final de 1990 e seu primeiro presidente foi o pacifista Ibrahim Rugova. Jasminka Udovicki e James Ridgeway (2000), afirmam que após a independência houve um período de resistência “nãoviolenta” no Kosovo que durou até 1997. Segundo Jeanne Kirkpatrick (2007), isso se deveu ao fato de que as atenções da Sérvia e da comunidade internacional se voltaram para os conflitos na Bósnia e toda energia e esforços foram direcionados para a região, retirando a questão do Kosovo de suas agendas imediatas. Para Biserko (2012) e Kirkpatrick (2007) as hostilidades sérvias contra o Kosovo foram retomadas em 1995, após o acordo de paz de Dayton, que colocou fim à Guerra da Bósnia. Isso porque tal acordo não incluiu a questão do Kosovo em seus debates, para que assim não dificultasse a negociação com o líder sérvio, Slobodan Milosevic, uma vez que a prioridade era o fim do conflito na Bósnia-Herzegovina. Em outubro de 1998, houve uma reunião entre os ministros de defesa do Conselho do Atlântico Norte, que autorizaram ataques aéreos à Iugoslávia, na intenção de pressionar Milosevic a cumprir as exigências das Resoluções nº 1160 e nº 1199, que estabeleciam as medidas pacificadoras citadas. Aguilar (2003) afirma que a ofensiva teve efeito e Milosevic estabeleceu um acordo com o representante estadunidense Richard Holbrooke, autorizando a interrupção dos ataques do exército iugoslavo no Kosovo e o estabelecimento de uma missão de observação da OSCE (Organization for Security and Co-operation in Europe) para a certificação de que o acordado estaria sendo cumprido. Aos poucos, milhares de refugiados retornaram ao Kosovo e o Exército de Libertação do Kosovo (ELK) se desestabilizou após os conflitos com o exército iugoslavo, ocorridos naquele mês (BISERKO, 2012). A elite política sérvia estava descontente com os acordos de Milosevic e receberam o acordo entre ele e Holbrooke com histeria, acusando-o de vender o Kosovo para permanecer no poder. A crítica mais feroz entre os políticos sérvios veio do presidente do Partido Democrata Sérvio, Vojislav Kostunica, que afirmou que o acordo Milosevic-Holbrooke deixaria o Kosovo fora do sistema legal da República Federal da Iugoslávia, podendo ser interpretado como alta traição. Em contrapartida, havia aqueles que apoiavam o acordo e acreditavam que ele poderia garantir a unidade da Sérvia e da Iugoslávia, além de prevenir a federação de intervenção internacional, o que poderia desestabilizar o país politicamente (BISERKO, 2012). No começo de 1999, mesmo com o acordo Milosevic-Holbrooke e as sanções da ONU contra a Iugoslávia, as hostilidades e a violência ainda estavam presentes no Kosovo. O exército iugoslavo continuava a invadir vilas e cidades kosovares matando os homens, estuprando as mulheres e espalhando o terror (KIRKPATRICK, 2007). Uma reunião para negociar o estabelecimento da paz no Kosovo foi organizada em Rambouillet, na França, em fevereiro de 1999. Estiveram presentes os representantes da Grã-Bretanha, França, Estados Unidos, União Europeia, Rússia e da OSCE, que havia enviado observadores ao território kosovar. Da mesma maneira foram convidados a OTAN, líderes kosovares albaneses e o presidente Milosevic, que enviou um representante. O líder sérvio não se fez presente, porque como afirma Jeanne [ 37 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Kirkpatrick (2007), a OTAN estava em descrédito para ele. A autora cita três motivos pelos quais Milosevic duvidava que a OTAN empregasse uma ofensiva por meio de ataques aéreos, como havia alertado que faria: A organização não havia pressionado a Iugoslávia para que comparecesse à reunião como havia feito anos antes, durante as negociações de Dayton, que puseram fim à Guerra da Bósnia; a OSCE ainda contava com observadores civis desarmados em território kosovar, e para Milosevic a organização nãos os colocaria em risco bombardeando o território; por fim, o presidente Clinton estava relutante em enviar tropas terrestres ao Kosovo. Depois de semanas de debate, o acordo de Rambouillet falhou e não houve negociação de paz. Esgotadas as tentativas de negociação, só restava uma única tentativa de estabelecer a paz: a guerra. Os EUA e a OTAN concordaram em dar suporte ao Kosovo fornecendo armamento e empenhando ofensivas contra o exército iugoslavo, da mesma forma que haviam feito com a Croácia e a Bósnia no início da década de 1990. Havia a preocupação de que o envio de tropas para o Kosovo significasse a invasão de um Estado soberano – no caso, a Iugoslávia – mas, o Grupo de Contato 2 havia decidido em Rambouillet que se fosse para proteger os kosovares, não seria invasão. “A campanha nacionalista de Milosevic havia se tornado um chocante reino de terror direcionado aos kosovares civis, incluindo crianças” (KIRKPATRICK, 2007, p.258). Os bombardeios à região se iniciaram no final de março de 1999, ativando o que ficou conhecido como Operação Força Aliada. Por mais de setenta dias diversos pontos da região foram castigados pelos bombardeios da OTAN, incluindo a capital sérvia, Belgrado, a kosovar, Pristina, e a montenegrina, Podgorica. Os ataques realizados tanto por aviões, quanto por mísseis disparados por navios posicionados no Mar Adriático, atingiram alvos estratégicos, como prédios da administração do governo. Estradas, ferrovias e aeroportos foram destruídos pelos ataques. Milhares de pessoas foram mortas e outras tantas fugiram da região e apesar da violenta ofensiva a Iugoslávia continuava resistindo. Milosevic conquistou o poder a partir do discurso em defesa das minorias sérvias, dessa forma, sabia que a mobilização da opinião pública poderia ser um trunfo a seu favor e sua estratégia foi tentar sensibilizar a opinião pública internacional. A propaganda sérvia tratou de mostrar ao mundo os erros dos ataques da OTAN, como imagens de civis mortos em ataques aéreos e bombardeios e o problema dos refugiados, causado pela guerra em território sérvio e kosovar (AGUILAR, 2003). Após o fim da guerra no Kosovo, as ações de intervenção internacional foram no sentido de prover o mínimo de estabilidade política, econômica e social para a região. Os organismos presentes no Kosovo trataram de questões como garantir a retomada da autonomia da então província, estabelecer termos e regulamentação para que a economia e a política pudessem caminhar também de forma autônoma, da mesma forma que a justiça. Outro esforço foi no sentido de tornar viável a coexistência de outros grupos étnico/nacionais, como sérvios e montenegrinos, no território kosovar. Esse foi um objetivo que sempre esteve presente nas intervenções internacionais nos países da antiga Iugoslávia, uma vez que, ancestrais ou produzidos na contemporaneidade, os ódios entre os grupos nacionais que compuseram a Iugoslávia, de fato existiram. Em fevereiro de 2008, o Kosovo declarou sua independência da Sérvia, contudo a minoria sérvia boicotou a declaração. Mais de cem países, como Alemanha, Itália, França, Croácia e Montenegro já reconheceram sua independência, entre as exceções estão a Sérvia, a Rússia e o Brasil. Referências Bibliográficas AGUILAR, Sérgio Luiz Cruz. 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Contudo, ao longo de sua história aquela porção da península balcânica, no sudeste da Europa, esteve sob o domínio de diversos povos e impérios que contribuíram para a formação cultural das populações locais, influenciando nas religiões praticadas, nos costumes e nos idiomas, acentuando as diferenças entre os grupos nacionais. Quando a federação socialista da Iugoslávia se formou, povos que não se reconheciam como uma mesma nação tiveram suas autonomias suprimidas em favor de interesses supranacionais, que buscaram manter coesa a federação que congregava os povos da Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Kosovo, Montenegro e Macedônia. Sob o comando do Marechal Tito, líder político que governou o país desde sua formação até sua morte, em 1980, as diferenças e agitações nacionalistas foram administradas. Ao longo da década de 1980, os sentimentos nacionalistas voltaram a dar o tom das relações entre as repúblicas iugoslavas gerando conflitos que levaram o país à sua desintegração na década de 1990. Juntamente com as declarações de independência veio a escalada da violência na região que fez ressurgir a perseguição a grupos específicos, trazendo à cena dos conflitos políticos europeus o genocídio. Este trabalho discute elementos acerca dos nacionalismos, da violência, do genocídio e da reorganização geopolítica naquela região europeia, na última década do século XX. Palavras-chave: Nação; Nacionalismos; Iugoslávia; Conflitos. Os conceitos de Nações e Genocídio e o nacionalismo na Iugoslávia dos anos 1990 Ao longo da década de 1990 diversos conflitos de caráter político, religioso ou étnico, nos permitiram observar algumas mudanças na organização do espaço geopolítico de alguns países e regiões ao redor do globo. No sudeste europeu, a região dos Bálcãs foi um dos palcos desses conflitos que geraram guerras civis, resultando na emergência de seis novos Estados soberanos, a partir da dissolução da República Federativa Socialista da Iugoslávia, entre eles a Bósnia-Herzegovina. O território faz fronteira com a Croácia, a Sérvia e com Montenegro e, apesar de sua proximidade com o Mar Adriático, não possui costa marítima. A diversidade étnico-cultural da região permitiu que diversos povos coabitassem a Bósnia, resultando em uma miscigenação de sua população. O idioma bósnio tem grande proximidade com o croata e com o sérvio, sendo todas línguas eslavas, bem como o grupo étnico que deu origem às nações balcânicas. Contudo, essa particularidade em relação a seus vizinhos, foi também o principal motivo dos conflitos ocorridos após sua independência. As diferenças entre os principais grupos da região, como religião e nacionalidade, foram acentuadas como medida de reafirmação das individualidades de cada grupo. A pesquisa é realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001. Conforme sugere Eric Hobsbawm (2013), as definições dos conceitos de nações e nacionalismos se originaram por volta do século XVIII e, ao longo do tempo, sofreram modificações de acordo com o momento histórico e o contexto em que se inseriram. Ao longo do século XX, os mapas geopolíticos de todos os continentes, se modificaram. Colônias se tornaram independentes, reinos e impérios se dissolveram permitindo o surgimento de novos Estados, países que se reagruparam em uma única federação, federações se desintegraram, e muitas dessas situações tiveram como principal motivador os nacionalismos. O surgimento de novas nações e os sentimentos nacionalistas que permitiram às suas populações reconhecer-se Graduado em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História (PPH) da mesma universidade, na linha de História Política. 1 [ 40 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS enquanto tal viabilizou, por exemplo, aos países colonizados, a luta por sua autonomia e independência. O nacionalismo exacerbado e muitas vezes motivado pelo ódio inter-étnico promoveu conflitos e massacres a populações inteiras. Na década de 1990, a Europa foi palco destes massacres e vimos ressurgir os campos de trabalho forçado, de estupro, a promoção do genocídio e limpeza étnica (AGUILAR, 2003; ALVES, 2013). Nos Balcãs, populações que haviam convivido de forma relativamente pacífica por mais de trinta anos, sob o estandarte de um mesmo Estado, declararam guerra umas às outras em defesa de um território nacional, buscando estabelecer a primazia de sua nação e sua superioridade sobre as demais. Se considerarmos idioma, religião e cultura como promotores de uma consciência “nacional”, o que leva um suíço francófono católico a se identificar com um protestante de língua alemã e se reconhecerem como uma mesma nação suíça? Se território – um Estado – for levado em consideração, por que esse sentimento não foi desenvolvido entre bósnios e sérvios, na antiga Iugoslávia, ou entre tutsis e hutus em Ruanda? Partindo de uma discussão teórica sobre as definições dos termos “nação” e “nacionalismo”, buscaremos observar o que apontam historiadores representativos acerca do assunto e pensar o caso da Iugoslávia, considerando o que pode ser aplicado a este caso e os pontos que convergem ou divergem daqueles apontados pelos autores analisados. Em 1945, com o fim da Segunda Guerra, por meio da recém-fundada Organização das Nações Unidas, os Aliados instituíram um tribunal militar internacional, na cidade de Nuremberg, na Alemanha, para julgar os crimes cometidos pelos nazistas contra a humanidade. Embora a ideia de soberania de um Estado impedisse que outros países interferissem em questões internas e no tratamento dispensado a seus cidadãos, as lideranças europeias e estadunidenses passaram a considerar que este tratamento também fosse um indicador de como aquela nação se comportaria em relação a seus vizinhos. Gradativamente, o tribunal de Nuremberg passou a enfraquecer a couraça do Estado, ao levar a julgamento autoridades europeias por crimes cometidos contra seus próprios cidadãos, deixando implícito a possíveis futuros perpetradores de atrocidades que já não lhes caberia como defesa o apoio de seus governos ou as fronteiras de suas nações. Raphael Lemkin, advogado judeu polonês, foi o principal responsável pela campanha para que o termo “genocídio” fosse incorporado ao vocabulário dos promotores de Nuremberg e assim disseminá-lo e empregá-lo no direito internacional. Até aquele momento (1946), o termo utilizado era “crimes contra a humanidade”, que havia sido utilizado para condenar os turcos, durante a Primeira Guerra, pelo aniquilamento da população armênia. Lemkin, que perdera parte de sua família no Gueto de Varsóvia e em campos de concentração nazistas, durante a perseguição aos judeus, empenhava-se em popularizar o termo para que o crime fosse caracterizado e assim proibi-lo. Ao falar sobre os esforços do advogado polonês, Samantha Power (2004) escreve: A guerra, obviamente, matou mais indivíduos na história que o genocídio e também deixa os sobreviventes permanentemente marcados. Mas Lemkin argumentou que quando um grupo era alvo de genocídio – sendo efetivamente destruído em sua vida física ou cultural – a perda era irreparável. Mesmo os indivíduos que sobrevivem ao genocídio ficam para sempre destituídos de uma parte inestimável de sua identidade. Em fins de 1946, em uma das primeiras reuniões da Assembleia Geral da ONU, enquanto Raphael Lemkin tentava efetivar seu projeto de incorporação da palavra genocídio ao vocabulário jurídico, uma alternativa ao termo foi proposta por alguns participantes, sendo substituído por “extermínio”. Contudo, com a insistência de Lemkin e com o apoio que já havia angariado, a proposta foi rejeitada, pois se acreditava que a definição do advogado polonês era mais abrangente e indicava a destruição cultural separadamente da destruição física dos grupos humanos, impelindo os Estados a reagirem antes que tal processo de destruição fosse concluído. Em dezembro, uma resolução foi aprovada por unanimidade condenando o genocídio como a negação do direito de existência a grupos inteiros, que revolta a consciência da humanidade e é contrária à lei moral e ao espírito e objetivos da ONU. O Comitê Jurídico da ONU realizou a Convenção do Genocídio em agosto de 1948, em Genebra, na Suíça. Lemkin esteve presente e continuou sua campanha para ver formalizadas as diretrizes que tipificavam [ 41 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS o crime. O rascunho aprovado na ocasião e submetido à Assembleia da Geral, foi aprovado no dia nove de dezembro daquele ano e definia como genocídio: Qualquer um dos seguintes atos cometidos com o intuito de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, dos seguintes modos: A. Matando membros do grupo; B. Causando grave dando físico ou mental aos membros do grupo; C. Infligindo deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para acarretar sua destruição física no todo ou em parte; D. Impondo medidas destinadas a impedir nascimentos no grupo; E. Transferindo à força crianças do grupo para outro grupo. (POWER, 2004. p.83) A partir de então, a interferência dos países signatários da convenção, caso algum Estado estivesse permitindo ou promovendo genocídio contra a sua população, tornou-se uma exigência. Estes países ficaram responsáveis por tomar providências para prevenir, suprimir e punir o crime. Aquela convenção tornou-se a primeira ocasião em que a ONU adotou um tratado de direitos humanos. Samuel Guimarães (2008) conceitua nacionalismo, afirmando que a ideia de superioridade de uma nação sobre outras tem origem na concepção de que divindades teriam escolhido um povo – nação – como eleito. É o caso do povo judeu, por exemplo, cujas consequências políticas são observadas até o hoje no Oriente Médio. Outro exemplo, citados por Guimarães, é o caso japonês, em que o Imperador era considerado Filho do Sol e, portanto, o elo entre o povo japonês e uma divindade suprema. Contudo, Eric Hobsbawm (1995) chama a atenção para a dissociação da identificação de grupos da ideia de nacionalismo, para que não se confundam os termos. Ao trabalhar diretamente com os conceitos de nação e nacionalismo, Hobsbawm (2013) acredita que as tentativas de definições dos termos “nação” e “nacionalismo”, são insatisfatórios, sobretudo quando são simplificados como questões relativas apenas a idioma ou etnia, ou em uma combinação de critérios como idioma, território, história e traços culturais comuns. Para o autor, o que define esses conceitos é algo mais complexo e dinâmico que isso e afirma não considerar “nação” como uma entidade social originária ou imutável, mas como algo pertencente a um período particular e historicamente recente. Concorda com as ideias de Ernest Gellner, ao associar o surgimento de nações à existência de um Estado-nação e considera que são os Estados que formam as nações e os nacionalismos, e não o contrário, porém, o já citado caso do povo judeu é uma exceção a este modelo, uma vez que o nacionalismo judaico já se colocava como elemento identitário, mesmo com a diáspora judaica e antes do estabelecimento de um Estado judaico - Israel. Hobsbawm (2013) comenta ainda que as nações surgem no contexto de um estágio particular de desenvolvimento econômico e tecnológico. (...) as nações são, do meu ponto de vista, fenômenos duais, construídos essencialmente pelo alto, mas que, no entanto, não podem ser compreendidas sem ser analisadas de baixo, ou seja, em termos das suposições, esperanças, necessidades, aspirações e interesses das pessoas comuns, as quais não são necessariamente nacionais e menos ainda nacionalistas. (2013, p.19). O autor vê a constituição do termo “nação” como dual, por acreditar que as ideologias oficiais do Estado não são, necessariamente, representações daquilo que está na mente dos cidadãos e que suas identidades nacionais não se esgotam em si mesmas, mas advêm de um conjunto de outras identificações que estruturam o ser social, e afirma acreditar ainda que os fatores que implicam na identificação nacional podem mudar e se deslocar no tempo e no espaço (HOBSBAWM, 2013). No tocante às manifestações nacionalistas do século XX, Hobsbawm acredita que houve em todo o mundo um avanço do princípio da nacionalidade e que o apelo por uma comunidade imaginária da nação [ 42 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS parece ter conquistado algum espaço. Na primeira metade desse século, sobretudo em razão das regiões colonizadas, os movimentos por libertação e independência nacional, foram os principais agentes de emancipação política de diversos países. Os movimentos observados ao final do século XX são essencialmente separatistas e, portanto, buscam acentuar as diferenças étnicas, linguísticas e religiosas. Entretanto, Hobsbawm (2013) atribui aos governos socialistas, principalmente no pós-Segunda Guerra, o sucesso em governar países multiétnicos, limitando em seu interior os efeitos do nacionalismo, como foi o caso da Iugoslávia socialista, sob o comando do Marechal Josip Broz Tito. Todavia, não podemos deixar de considerar o caso da Espanha, cuja unidade multinacional foi mantida pelo governo cristão de direita do General Francisco Franco e se manteve por mais de três décadas. A revolução na Iugoslávia obteve êxito evitando que as nacionalidades no interior de suas próprias fronteiras se massacrassem entre si, por um longo tempo das suas histórias, e, apesar de essa conquista estar hoje infelizmente se desagregando, as tensões nacionais, pelo final de 1988, ainda não tinham levado a uma única fatalidade. (HOBSBAWM, 2013, p.239). Michael Löwy (2000), assim como Hobsbawm, faz sua análise sobre o nacionalismo e o internacionalismo a partir de uma perspectiva marxista. Afirma que o nacionalismo possuiu um caráter paradoxal ao longo do século XX: serviu ao imperialismo e às forças reacionárias permitindo as investidas da Primeira e da Segunda Guerra e justificando, como aparato ideológico, o massacre de armênios e judeus. Contudo, teve papel de elevada importância no processo de libertação nacional e independência de povos colonizados e, também, contribuiu para que alguns processos de revolução socialista ganhassem o apoio das massas, como foi o caso da Iugoslávia. Reconhece as dificuldades em se definir o que é nacionalismo e aponta, entre outras visões, a proposta de Otto Bauer, onde cada nação possui um caráter nacional específico, sendo esta, antes de qualquer coisa, “o produto de um destino histórico comum. (...) a nação não é apenas uma cristalização de acontecimentos do passado, um ‘pedaço solidificado de história’, mas também ‘o produto jamais acabado de um processo contínuo’.”. (LÖWY, 2000, p.77). Corroborando o que diz Bauer, Löwy afirma que uma nação não pode ser definida apenas a partir de critérios objetivos, mas fatores subjetivos, condições históricas, como perseguições, opressões e discriminações também são importantes e devem ser considerados, embora apenas uma comunidade que partilhe desses fatores pode ou não, se definir como uma nação. Sobre o avanço dos nacionalismos no século XX, o autor afirma que uma análise possível é a de que “o nacionalismo é uma ideologia burguesa e sua influência sobre as massas é uma das formas principais que a dominação ideológica da burguesia toma nas sociedades capitalistas” (LÖWY, 2000, p.85). Entretanto, reconhece que embora válida, essa afirmação não é suficiente para explicar a atração do nacionalismo. Para se pensar em uma possibilidade menos reducionista, Löwy acredita que deva se levar em consideração as condições materiais concretas e as tendências irracionais, como fanatismo religioso ou fascismo, pois considera o nacionalismo uma ideologia irracional, uma vez que esta não consegue apontar um critério racional que justifique a proeminência de uma nação sobre outras. Completa sua argumentação afirmando ainda que com muita frequência o nacionalismo não repousa sobre nenhuma realidade histórica e cultural e simplesmente serve de ideologia oficial para Estados mais ou menos artificiais, cujas fronteiras são o produto ocidental da colonização e/ou da descolonização. (LÖWY, 2000, p.86). Ernest Gellner (1997) inicia seu livro afirmando: “Fundamentalmente, o nacionalismo é um princípio político que argumenta que deve haver congruência entre a unidade nacional e a política”. (GELLNER, 1997, p.13). Para o autor, tal princípio pode ser violado quando, por interesses divergentes, os limites políticos e [ 43 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS geográficos de um Estado não incluem toda a população que se identifica como uma mesma nação, ou quando este Estado abriga igualmente uma comunidade nacional e outros grupos menores que não se encaixam naquela comunidade. Há ainda a possibilidade de diversas nações coabitarem um mesmo Estado de forma que nenhuma delas possa se definir como nação principal. Assim, o nacionalismo seria um ideário de legitimidade política, cujo objetivo seria a estabilidade interna de um Estado, e que afirmaria que os limites étnicos não deveriam se contrapor aos políticos (GELLNER, 1997). Gellner acredita que não há espaço no mundo para que todos os grupos que se compreendem como nações, se autodeterminem como unidades políticas autônomas e independentes. O Estado tem legitimidade para manter a ordem social e possui agentes oficiais para garanti-la, como a polícia e os tribunais. Segundo o autor, o problema do nacionalismo não surge em sociedades desestatizadas, o que significaria que sem um Estado que determine os limites políticos do território, não há reinvindicações nacionalistas por parte daqueles que habitam tal região. O surgimento dos nacionalismos não teria ocorrido por ausência dessa unidade política ou por sua questionável legitimidade ou existência, e sim pela sua presença e manifestação, com o poder centralizado, e por imposições políticas e morais como norma. As nações, assim como os Estados, seriam uma possibilidade e não uma necessidade humana universal e que o Estado teria surgido sem a ajuda da nação (GELLNER, 1997). Para que uma comunidade, que eventualmente tenha se identificado como nação, se formasse e se mantivesse, Gellner apresenta duas possibilidades de elementos catalisadores: a adesão voluntária, a identificação e a solidariedade, ou o medo e a coerção. O nacionalismo teria formado as nações, pois a partir do agrupamento e do desenvolvimento de uma cultura comum, aqueles indivíduos teriam optado por conviver apenas com seus pares. Contudo essa nova cultura comum ao grupo, seria resultado de uma compilação de elementos culturais herdados historicamente (GELLNER, 1997). O autor acredita que nesse ponto seria possível “reviver” línguas mortas, inventar tradições que restaurem essências originais completamente fictícias, e para ele o nacionalismo consiste da imposição de uma cultura desenvolvida em detrimento de outras, o que implica na difusão de um idioma mediado pela escola, revisto academicamente e que atenda a uma estrutura e conjunto de regras definidos burocraticamente. Embora Gellner acredite que os nacionalistas neguem esse panorama de sobreposição de culturas, ele afirma que, de fato, é o que se observa. Benedict Anderson (2008) aponta que embora o nacionalismo tenha grande influência sobre o mundo moderno, são escassas as teorias plausíveis sobre o assunto e não são suficientes, pois considera os termos “nação, nacionalidade e nacionalismo” de difícil definição. Nem mesmo Hugh Seton-Watson, considerado por Anderson o autor do melhor e mais abrangente texto sobre nacionalismo, consegue definir de forma categórica os termos citados, mas acredita que o fenômeno existiu e continua a existir (ANDERSON, 2008). Anderson parte da ideia de que nacionalidade e nacionalismo são produtos culturais específicos e que é preciso que se compreenda sua origem histórica e suas transformações ao longo do tempo. O autor propõe o significado de nação como “comunidade política imaginada”, que é limitada e ao mesmo tempo soberana. É imaginada porque os indivíduos pertencentes a uma mesma nação jamais conhecerão a totalidade de seus companheiros, mas ainda sim, reconhecem a comunhão existente entre eles. Essa comunidade é limitada, pois, segundo Anderson, até mesmo a maior das nações possui fronteiras finitas, para além das quais haverá outras nações. Esse grupo, que eventualmente se percebe enquanto nação é imaginado como comunidade porque independente da hierarquia e desigualdade presentes nela, “a nação sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal.” (ANDERSON, 2008, p.34). No estabelecimento de estruturas organizadas como os estados nacionais, Anderson afirma que enquanto estes são novos e históricos, as nações a que eles dão expressão política são originadas em um passado imemorial, desta forma o nacionalismo não estaria alinhado a uma ideologia política, mas aos grandes sistemas culturais que o precederam. Entre os elementos que levaram essas comunidades a se agregar, o autor cita o idioma, sobretudo quando associado a uma cultura religiosa, como o cristianismo que promoveu a difusão do latim no mundo cristão e islamismo que fez o mesmo com o árabe no mundo muçulmano; os reinos dinásticos, que contribuíram na medida em que a sociedade organizada sob esta forma de governo se reconhecia como parte do sistema; e a concepção da temporalidade em que a cosmologia e [ 44 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS a história se confundem, e as origens do mundo dos homens são essencialmente as mesmas (ANDERSON, 2008). Contudo, com o declínio dessas convicções apresentadas por Anderson, o Capitalismo – principalmente o editorial – emerge como fator responsável pela clivagem entre cosmologia e história. O fim da Iugoslávia Como resultado da crise econômica da segunda metade da década de 1970, no início dos anos 1980 o índice de desemprego na Iugoslávia aumentou, e consequentemente houve queda no consumo e na produção interna. No campo internacional, a Federação perdeu acesso a recursos financeiros disponíveis no mercado internacional e viu sua dívida externa aumentar, sem que tivessem recursos para saldar seus compromissos. A alternativa foi o corte de subsídios com o consequente aumento dos preços e da inflação. A Comunidade Europeia e as organizações internacionais comportaram-se de modo desastroso ao impor cronogramas de pagamentos e políticas de austeridade, que levaram o país à beira do colapso. As medidas financeiras impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e a pressão do Ocidente obrigaram o governo a aplicar algo em torno de 1/5 das receitas totais do país para pagamento de sua dívida internacional. Os salários reais caíram 40% entre 1978 e 1983, e oscilaram neste patamar no restante da década [...] Bancos e fábricas fecharam, greves e passeatas tornaram-se rotina em todo o país. O governo ficou sem condições inclusive de pagar seus soldados, acabando com sua última tentativa de manter o federalismo. (AGUILAR, 2003, p.72). Diante desta situação a Iugoslávia foi perdendo importância no cenário europeu. Sua posição estratégica e sua função de “ponte” entre os blocos comunista e capitalista foram perdendo força na mesma medida em que o próprio comunismo se enfraquecia no Leste Europeu. Jeanne Kirkpatrick (2007) afirma que a queda dos regimes comunistas da Europa revelou oportunidades de autodeterminação por parte dos vizinhos da Iugoslávia, na porção oriental do continente europeu, o que aos poucos encorajou os desejos nacionalistas das repúblicas da Federação. Especialmente para o povo sérvio, que sempre manteve vivo o desejo expansionista de formar a “Grande Sérvia”. A crise econômica acentuou as diferenças entre as províncias mais ricas e as mais pobres, não havia um líder que, como Tito, conseguisse manter a federação e nem uma ideologia que mantivesse a união. Esses pontos, levantados por Sérgio Aguilar (2003), somados aos sentimentos nacionalistas dos povos de cada república que formava a Iugoslávia, levou alguns observadores a crerem que a desintegração seria inevitável. Slobodan Milosevic foi uma das figuras mais marcantes naquele momento da história da Iugoslávia, por expressar abertamente seu nacionalismo. Político comunista sérvio e defensor de sua etnia, em duas ocasiões, em 1987 e em 1988, quando líder do Partido Comunista Sérvio, hostilizou a comunidade albanesa do Kosovo. No primeiro momento, durante uma manifestação que acontecia na região, dirigiu-se aos sérvios dizendo que jamais alguém iria maltratá-los, em alusão aos albaneses kosovares (AGUILAR, 2003) no ano seguinte prometeu que faria a Sérvia unificada novamente, retirando a autonomia do Kosovo e de Vojvodina, e controlando os votos das duas províncias (KIRKPATRICK, 2007). Eleito presidente da Sérvia em 1989, Milosevic passou a controlar a mídia e a fazer propaganda contra croatas, agitando os nacionalistas daquela república, como o político e ex-Partisan, Franjo Tudjman. Ao assumir a presidência da Croácia, em 1990, Tudjman também passou a hostilizar os sérvios que viviam em seu país, expulsando-os da polícia e da administração civil, sob a justificativa de que estes cidadãos poderiam representar alguma ameaça à Croácia, com o projeto da “Grande Sérvia”. A partir de 1987 a Eslovênia também passou a demonstrar seu desejo de independência, afirmando que a situação da república estaria melhor fora da Federação Iugoslava. Tais demonstrações também podiam ser observadas na Bósnia-Herzegovina e na Macedônia, apenas Montenegro não se opunha a manter-se unido à Sérvia. [ 45 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A partir de 1990 as tensões se acirram e iniciam-se os processos de independência. Em fevereiro daquele ano, o partido comunista esloveno se emancipa da Liga da Iugoslávia e nas eleições, o presidente do Partido Democrata Cristão, Lojze Peterle, torna-se o Primeiro-Ministro, enquanto o comunista Milan Kucan assume a presidência do país. Diante da recusa de Belgrado – capital da Sérvia e sede do governo Iugoslavo em reconhecer a soberania da república eslovena, Peterle e Kucan convocam um referendo para saber se a população era a favor de uma Eslovênia “soberana e independente”. Mesmo proibido pela Iugoslávia, o referendo ocorreu em dezembro de 1990 e o “sim” teve 88,5% dos votos. A independência foi marcada para 25 de junho de 1991. Na tentativa de impedir que isso acontecesse, a Sérvia entra em guerra com a Eslovênia, mas devido a pouca presença de sérvios naquela república, o conflito durou apenas dez dias e teve um saldo de 45 mortes, sendo a maioria por parte do exército iugoslavo. Jacques Sémelin (2009) analisa como o nacionalismo extremo, observado nos Bálcãs, foi sendo construído e disseminado, e a maneira como os bósnios, especialmente os muçulmanos, foram sendo classificados como inimigos dos sérvios e dos croatas, por meio de uma propaganda xenofóbica. A ideologia contida em discursos que intencionalmente bestializavam o grupo que se pretendia dominar – os bósnios – pode ser compreendida como um elemento que impulsionou o massacre. A concepção de identidade dá-se pela percepção da diferença, por isso, embora sejam povos eslavos, os croatas, sérvios e bósnios ainda hoje se considerem grupos distintos. A influência das culturas romana, bizantina e árabe; o catolicismo romano, o cristianismo ortodoxo e o islamismo, são elementos que construíram as identidades daqueles grupos e que os diferencia de forma objetiva. O autor afirma ainda que Freud acreditava que embora os homens fossem semelhantes, haveria neles uma necessidade de se exagerar a importância de pequenas diferenças, e que acabaria por gerar hostilidade (SÉMELIN, 2009). A análise que Sémelin (2009) faz da construção do “inimigo”, afirma que por meio de um discurso inicial sugere-se que determinado grupo seria o motivo do flagelo de uma nação. Pouco a pouco esse discurso se encorpa e encontra respaldo na população, de modo geral, fazendo com o que o “indesejável” seja facilmente identificado e rejeitado, aumentando a hostilidade e justificando a violência empregada contra esse grupo, por aqueles que incorporam o discurso. O ápice desse processo é quando a eliminação física desse grupo passa a ser apreendida como uma medida necessária para uma limpeza ou purificação da nação. Aqueles que se pretendiam neutros, não apoiando o discurso de ódio contra determinados grupos, tampouco se manifestando em defesa destes, acabam se tornando coniventes com a situação, logo, possuem sua parcela de culpa por permitir que tais medidas sejam aplicadas. Assim como os judeus foram estigmatizados na Alemanha nazista e considerados indesejados e passíveis de eliminação física, religiosa e cultural, os bósnios também o foram, por parte da Sérvia nacionalista, da década de 1990. O modelo de processo utilizado pela Eslovênia foi seguido nas demais repúblicas. Em fevereiro de 1990 a Croácia realizou a eleição presidencial que levou Franjo Tudjman ao poder. A Igreja Católica apoiou a União Democrática Croata, partido do presidente eleito, e a diáspora croata nos Estados Unidos e no Canadá, também ajudou a financiar a campanha. Como a presença de sérvios era mais significativa nesta república, a resistência também foi maior. Os sérvios da região da Krajina, na fronteira com a Bósnia, proclamaram-se região autônoma através de plebiscito e a região passou a ser protegida por uma milícia que expulsou a polícia croata da região. Warren Zimmermann, embaixador dos Estados Unidos, observou que a hostilidade croata aos sérvios era sistemática e com conivência das autoridades omissas, desta forma o embaixador recomendou que Washington não atendesse ao pedido de assistência técnica da polícia de Zagreb, capital da Croácia, para não aumentar o poder de repressão croata (ALVES, 2013). Em maio de 1991, a Croácia organizou referendo e 92% dos votos foram a favor da separação total da federação. A Comunidade Econômica Europeia (CEE) tentou intervir e pediu para que a Croácia e a Eslovênia adiassem em três meses suas independências, alegando que o próximo presidente da Iugoslávia seria um croata, segundo o sistema de rodízio de etnias no poder da federação, mas o pedido não foi atendido e a Croácia proclamou sua independência junto com a Eslovênia em junho de 1991. Branislav Radeljic (2012) afirma que a mídia local e internacional encorajou e apoiou os conflitos internos da Iugoslávia, colaborando para a representatividade de croatas e eslovenos no desejo de conquistar suas independências. Apesar de a Sérvia estar diretamente envolvida no conflito, a mídia local não produzia [ 46 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS notícias com as mesmas informações e teor que a mídia ocidental. Isso porque havia o controle da mídia, por Milosevic. A religião como fator a ser considerado no processo de desmembramento, pode ser observada a partir do momento em que as igrejas tornam-se uma importante ferramenta de propaganda nacionalista, afirma o autor. A Igreja Ortodoxa Sérvia apoiava abertamente o expansionismo sérvio, enquanto a Igreja Católica, com forte presença na Eslovênia e a na Croácia, foi fundamental na defesa dos interesses desses países. O Vaticano foi responsável por levar muitos países ocidentais a reconhecerem essas independências A agitação dos servo-croatas aumentava e a Guarda Nacional Croata não conseguiria conter a situação devido às suas deficiências de treinamento e equipamento. O Exército iugoslavo já tinha sido orientado a invadir as regiões sérvias da Croácia e em resposta, o presidente Tudjman mobilizou o país para a “Guerra de Libertação”. O conflito durou seis meses e teve quatorze pedidos de cessar-fogo por parte da comunidade internacional, o último sendo efetivamente assinado em 3 de janeiro de 1992. A Macedônia foi o primeiro país da Iugoslávia a declarar independência sem conflitos, em 8 de setembro de 1991, seguido por Montenegro, no início do século XXI. Os macedônios não eram separatistas, mas o nacionalismo da Eslovênia e da Croácia fez com que, em 1990, o presidente macedônio Kiro Gligorov também ameaçasse deixar a federação, o que de fato ocorreu no ano seguinte. Em todo o processo de desintegração da Iugoslávia, o conflito mais violento aconteceu na BósniaHerzegovina. Localizada na região central da Iugoslávia, a república apresentava a interação social que Tito teria desejado para toda a Iugoslávia. Mesmo com a variada composição étnico-religiosa de sua população, os grupos mais expressivos conviviam sem grandes problemas, e ao contrário das demais repúblicas da federação, croatas, sérvios e bósnios não viviam em regiões definidas, mas coabitavam as mesmas aldeias, localidades e cidades. A convivência pacífica permitiu inclusive os casamentos interétnicos e nem mesmo o reconhecimento da “nacionalidade muçulmana” estimulou a segregação identitária, apenas garantiu os mesmos direitos indistintamente a todos os cidadãos da Bósnia-Herzegovina. Quando em 1990 houve o estabelecimento do pluralismo partidário, formaram-se três grandes partidos baseados nas nacionalidades e remanescentes políticos comunistas juntaram-se ao Partido Social Democrata, único partido supranacional. Nas eleições parlamentares em novembro daquele ano, cada etnia representada por cada um dos três partidos teve o montante de votos relativo à quantidade de eleitores bósnios muçulmanos, sérvios e croatas. Em dezembro, seguindo o esquema rotativo, Alija Izetbegovic, bósnio e muçulmano sunita, assume a presidência da federação. Foi o suficiente para que radicais nacionalistas sérvios e croatas alardeassem a possibilidade de a Bósnia-Herzegovina transformar-se em um cantão islâmico na Europa. Apesar de os sérvios já estarem preparados para a ruptura, muçulmanos e croatas ainda aparentavam estar unidos. Dada a situação, com o avanço dos sérvios para defender a República de Krajina na Croácia, cruzando o território bósnio, Izetbegovic declarou que defenderia a soberania da BósniaHerzegovina. Em outubro de 1991 o parlamento aprovou um memorando sobre independência da república e o reconhecimento de sua soberania e desligamento da Iugoslávia, O plebiscito para oficializar a decisão dos bósnios ocorreu entre fevereiro e março de 1992 e foi boicotado pela comunidade sérvia, mesmo assim em 4 de março a independência da Bósnia-Herzegovina foi declarada. Ao final daquele mês a comunidade sérvia que estava reunida em Pale, cidade a dez quilômetros da capital Sarajevo, proclamou a “entidade nacional sérvia”, a República Srpska, vinculada ao que restara da Iugoslávia (Sérvia e Montenegro). Em 6 de Abril a Comunidade Europeia reconheceu a independência da Bósnia. No mesmo dia, os sérvios instalados nas montanhas ao redor da capital da Bósnia-Herzegovina, comandados por Radovan Karadzic, atacaram a cidade. Embora já ocorressem outros episódios violentos pelo país, um dos mais marcantes foi o cerco a Sarajevo que durou de 5 de abril de 1992 a 29 de fevereiro de 1996 e teve como saldo 14 mil mortes, entre elas, estima-se que 1.500 crianças morreram. Ao mesmo tempo, em todo o país, era realizada uma “limpeza étnica”, ou seja, a eliminação dos não sérvios. Em maio de 1992 a Organização das Nações Unidas acolheu a Bósnia-Herzegovina, a Croácia e a Eslovênia como membros, e interveio humanitariamente no conflito com o envio de tropas da Força de Proteção das Nações Unidas (UNPROFOR). O ataque das milícias sérvias à Bósnia-Herzegovina foi apoiado por Milosevic e pelo exército sérvio, algum tempo depois de a guerra haver iniciado os croatas que apoiavam os bósnios, recuaram e voltaram a repensar a divisão da Bósnia entre Croácia e Sérvia. [ 47 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A imprensa internacional noticiava e veiculava imagens da Guerra da Bósnia. Fotos de pessoas desnutridas e maltratadas como os judeus durante o Holocausto. Jornais e agências de notícias denunciavam campos de concentração semelhantes aos utilizados pelos nazistas durante a Segunda Guerra. “A maioria dos centros de suplício, estupros e massacre eram mantidos por paramilitares sérvios. Mas havia também campos croatas de concentração de muçulmanos.” (ALVES, 2013). Em maio de 1993, a ONU criou o Tribunal Internacional para a Antiga Iugoslávia, em Haia, nos Países Baixos. Durante a Guerra da Bósnia, o estupro sistemático de muçulmanas adquiriu um sentido mais perverso, o que levou o Tribunal Penal Internacional a tipificar estupros coletivos como crimes de guerra. O Massacre de Srebrenica também foi um episódio marcante daquela guerra. A ONU havia criado áreas de segurança para proteger a população que vinha sendo atacada pelos nacionalistas de Karadzic. As cidades de Srebrenica, Zepa e Gorazde, eram enclaves muçulmanos no território da chamada República Srpska, onde os soldados das tropas internacionais deveriam proteger a população de possíveis tentativas de invasão. No dia 11 de Julho de 1995, comandados pelo general Ratko Mladic, os sérvios invadiram Srebrenica ceifando a vida de mais de 8 mil homens e meninos, a maioria com tiro a queima roupa e na nuca (ALVES, 2013). O episódio foi reconhecido como o primeiro caso de Genocídio na Europa desde o Holocausto. Em 30 de Agosto de 1995 a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) realizou uma ofensiva contra os sérvios na região de Sarajevo, através de bombardeio e pediu a Mladic que retirasse suas tropas e armamentos da região. Em 5 de outubro foi assinado um cessar fogo e em novembro, Bósnia-Herzegovina, Sérvia e Croácia, assinaram o Acordo de Dayton que pôs fim à Guerra da Bósnia. O resultado final foi aproximadamente 100 mil bósnios, sérvios e croatas mortos e 2 milhões de refugiados. O mapa geopolítico dos Bálcãs passou a contar com cinco novas repúblicas independentes após a desintegração da Iugoslávia: Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Iugoslávia e Macedônia. O processo de estabelecimento desses novos países custou milhares de vidas sacrificadas em função de ideologias nacionalistas. Em 2003 a Iugoslávia extinguiu definitivamente o antigo nome e passou a ser uma federação de duas repúblicas, Sérvia e Montenegro. (HASTEDT, 2004). Em junho de 2006, em referendo popular, foi decidido por mais uma separação passando a existir a República da Sérvia e a República de Montenegro. Referências Bibliográficas AGUILAR, Sérgio Luiz Cruz. A guerra da Iugoslávia: uma década de crise nos Bálcãs. 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[ 48 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS [ 49 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Homossexualidade e representação: análise de uma reportagem da revista Veja da década de 1970 Leonardo da Silva Martinelli1 Resumo: O presente estudo é uma análise de uma reportagem na revista Veja, de 1972, sobre a homossexualidade, que tem como eixo condutor um evento ocorrido em Minas Gerais: o “Primeiro Simpósio Sobre Homossexualismo”, relatado pelo periódico. Busca-se analisar a representação da homossexualidade nesta edição atrelada ao contexto que a censura impôs em defesa da “moral e os bons costumes” e as vozes acionadas para argumentar sobre o tema. Parte-se de uma análise cultural a partir da categoria gênero para lançar o olhar sobre a questão. Metodologicamente apoia-se na análise de conteúdo temático para pensar a imprensa, seus usos e potenciais nas (re)apropriações das representações coletivas partilhadas na sociedade. O objetivo geral a partir desta discussão é compreender a representação e posicionamento dado pela revista, nesta edição, à homossexualidade. Palavras-chave: Homossexualidade, gênero, ditadura, revista Veja. Considerações iniciais O presente estudo é uma análise de uma reportagem na revista Veja, de 1972, sobre a homossexualidade, que tem como eixo condutor um evento ocorrido em Minas Gerais: o “Primeiro Simpósio Sobre Homossexualismo”, relatado pelo periódico. Num período de censura e repressão a homossexualidade que ameaçava a “moral e bons costumes”, a revista Veja informou aos leitores sobre o tema e, de modo geral, positivamente nesta edição. Fato que não assinala um posicionamento geral da revista mantido ao longo dos anos a respeito da questão homossexual, que oscilou no período civil-militar, e teve reduzidas representações que não destacaram o sujeito de forma estigmatizante. No entanto, irá ser discutida parte da seção “Comportamento” que trouxe o tema em pauta. O objetivo geral é, a partir desta discussão, compreender a representação e posicionamento dado pela revista, nesta edição, à homossexualidade. Parte-se de uma análise cultural a partir da categoria gênero para lançar o olhar sobre esta sexualidade. Metodologicamente apoia-se na análise de conteúdo temático para pensar a imprensa, seus usos e potenciais nas (re)apropriações das representações coletivas partilhadas na sociedade. Atenta-se aos significados da mensagem e como este dizer torna representativo um não dito (silenciamentos) ou um dito nas estrelinhas que é analisado concomitantemente. O leitor verá que o texto foi dividido apresentando, inicialmente, elementos conceituais que embasarão o olhar lançado, seguindo a análise propriamente dita. Entre o dizer e o como dizer As sociedades e grupos sociais são organizados a partir das concepções culturais que integram os valores e saberes dos distintos povos. Com base neste sistema define-se o que é correto e errado; bom e ruim; normal e anormal; o tolerável e o intolerável. As sexualidades, da mesma forma, foram construídas a partir de determinados entendimentos compondo um discurso que busca regular a vida dos sujeitos. Os saberes científicos e jurídicos, criados à sombra deste mesmo discurso, conferiram um grau de inteligibilidade a determinadas práticas e expressões sexuais relegando as demais à marginalidade. Criou-se, assim, uma heteronormatividade que investe nos corpos sexuados a fim de moldá-los de acordo com o modelo binário preconizado. Tal tentativa – um determinismo cultural externo – longe de corresponder ao intento, deixa Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo (2016) e mestrando em História na mesma instituição. Bolsista Capes. Email: leonardos.martinelli@gmail.com 1 [ 50 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS evidentes as lacunas e sujeitos que ultrapassam estas fronteiras e lançam seu desejo afetivo-sexual a pessoas de mesmo sexo/gênero. Por isso, pensar as homossexualidades exige a compreensão do processo de longa duração no qual foi inscrita e atentar as oscilações espaciais e temporais constituintes dessa historicidade. Ao mesmo tempo, atua na elaboração de representações sobre a mesma, intensificada pela imprensa e os usos que os sujeitos sociais dela fazem. Para Joan Scott (1995, p. 96) “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e “gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”. Judith Butler (2017) com sua teoria da performatividade do gênero complementa este saber ao dizer que o gênero é construído sobre um sexo, mas que não se apresenta sempre da forma esperada e não é estático. Este entendimento nos possibilita lançar olhares múltiplos sobre a questão e analisar os mecanismos reguladores que, insistentemente, tentaram padronizar as sexualidades não hegemônicas. No processo de longa duração percebe-se a aversão à homossexualidade, vista inicialmente como uma prática abominável pelo conjunto de leis hebraicas que compôs a base do emergente cristianismo. Posteriormente, tal “mal” foi ampliado aos sujeitos homossexuais sendo punidos de forma severa, criminalizados. Se em determinados momentos históricos foi permitida, com o passar do tempo à repressão a mesma ampliou-se consideravelmente variando de acordo com a legislação de cada território. No Brasil, “herdeiro” do cristianismo, tal concepção depreciativa das relações homossexuais foi – e ainda é – preservada e reproduzida com momentos de menor e maior intensidade, como no período da ditadura civilmilitar. Nestes governos de caráter autoritário, reprimiram-se as homossexualidades, termo entendido conforme James Green e Renan Quinalha (2015, p. 11), que englobava não somente os gays, mas também demais sujeitos como lésbicas, travestis, transexuais, dentre outros. Ocorreram vários tipos de violência a estes sujeitos, mas também se censurou a imprensa. Apresentar o tema de maneira positiva era visto como uma ameaça à protegida “moral e bons costumes” (COWAN, 2015). Mesmo sob o perigo de reportar temas do tipo, os veículos de imprensa apresentaram informações e mensagens sobre os mesmos. Os mais explícitos tinham grandes chances de ser apreendidos. Os mais contidos não se isentavam deste temor, no entanto, poderia escapar desse olhar de vigilância caso a visibilidade da matéria não fosse ampliada, ou os censores julgassem como inofensiva. A reportagem analisada trata-se de uma publicação da revista Veja do ano de 1972, edição 203, que apresentou em parte da seção “Comportamento” o tema que iria abordar sob o título “Homossexualismo”. O termo referia-se a sujeitos que eram vistos como doentes por estarem em desacordo com aquilo que se acreditava ser o “normal” – a heterossexualidade. Era uma terminologia bastante usual no período e considerada uma doença pelos saberes médico-legais. A seção em questão é uma das que costumou trazer temáticas voltadas ao comportamento e atualidades da época, juventude, modernidade. É preciso destacar que a seção não fez parte de todas as edições, embora descontínua, tinha uma frequência considerável, com pequenos hiatos. Em uma lauda, dimensão considerável tratando-se do tema e espaço concedido à reportagem, Veja discute o chamado “Primeiro Simpósio sobre Homossexualismo” realizado em Belo Horizonte. A imprensa é um recurso bastante profícuo ao disseminar mensagens, informações e representações sobre aquilo que reporta. Trazendo do espectro social os elementos com os quais constrói e elabora a edição, possibilita aos leitores um contato diversificado de temáticas e proporciona novas informações aos que já sabiam sobre o reportado, mas também informando aos que não sabiam do ocorrido, e a sua maneira. Neste aspecto, difunde representações que são (re)apropriadas de distintas maneiras pelos leitores a partir daquilo que foi divulgado. Nota-se que estes entendimentos não são estáticos, mas imersos num universo de circularidade cultural2 que pluraliza as compreensões e acentua ou reconstrói as representações desses sujeitos. O conceito de representação é utilizado conforme Roger Chartier (1991, p. 183) que a entende como coletivas e criadas no mundo social, por isso, considera “estas representações coletivas como as matrizes de 2 Entendida conforme GINZBURG, 2006. [ 51 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS práticas construtoras do próprio mundo social”. Junto a esta contribuição podemos citar a distinção que Sandra Jovchelovitch realiza a respeito do que chama de representações sociais na esfera pública e da esfera pública. As representações na esfera pública são entendidas como representações sociais na sociedade. Estas, através dos meios de comunicação são selecionadas, criam-se narrativas e, por conseguinte, representações da esfera pública que se direcionam a realidade dos sujeitos interconectando-se – representações na esfera e da esfera pública, pois para a autora, a ação destes veículos “informam e formam a esfera pública” (JOVCHELOVITCH, 2000, p. 86). Aliando estas duas dimensões do conceito, voltadas à imprensa, desenvolve-se a análise. Diante da parcialidade de toda fonte, torna-se necessário situá-la ao seu contexto de produção e circulação atrelado a escala ampla no qual está inscrita. Por isso, é preciso “produzir uma análise que busque surpreendê-la [imprensa] na complexidade de suas articulações e desfazer o mito de sua objetividade”, para tanto, prosseguem as autoras, “supõe uma atitude crítica frente à memória por ela instituída e fazer emergir de nossos trabalhos outras experiências, vozes e interpretações, que deem visibilidade a outras histórias e memórias” (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 260). Perseu Abramo (2016) ao pensar a grande imprensa destacou padrões de manipulação que a mesma faz uso ao publicar suas informações. Esses padrões integram estratégias possíveis que propiciam distintas interpretações em detrimento desta maneira de reportar. Ao pensar a construção de representações pela imprensa verifica-se a versatilidade com que podem ser compreendidas a partir da escolha da maneira de dizer pelos veículos de informação. Os padrões apontados pelo autor são: ocultação, fragmentação, inversão e indução. A partir dos mesmos é possível refletir a respeito da própria elaboração do que foi publicado e não somente da publicação em si. O entendimento e a capacidade de decodificação modificam-se a partir destes conhecimentos. No entanto, nem todos os leitores consideram essas possibilidades de forma premeditada, constante, ou têm o domínio e habilidades para fazê-la. Nesse sentido, múltiplas leituras e interpretações são possíveis. Eis que uma delas é apresentada e analisada a seguir. A homossexualidade em discussão De forma explícita e clara, o título que foi apresentado em parte da seção “Comportamento” do dia 27 de julho de 1972 ganhou destaque. Sem rodeios ou jogos de linguagem, anunciava objetivamente a discussão que seria apresentada: “Homossexualismo”. Tema polêmico e vigiado pela censura, era uma das razões para apreender periódicos, proibi-los, tudo em defesa da preservação da “moral e bons costumes”. Esta faz parte, também, das construções culturais criadas pelos grupos sociais, logo não é universal, mas circunscrita a determinados povos e ao compartilhamento destes saberes com demais. A cultura, então, permite compreender como esses entendimentos foram construídos. “A história cultural, tal como a entendemos” pontua Roger Chartier (1990, p. 17), “tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”. E a imprensa auxilia nessa atividade, falando de uma realidade e ao mesmo tempo tornando-a narrativa e direcionando novamente aos sujeitos. Situações que estão interconectadas. Com as devidas proporções, assemelhasse, em parte, ao “círculo hermenêutico” proposto por Paul Ricoeur a respeito da narrativa na operação historiográfica, elaborada numa fase intermediária entre o sujeito que escreve e o leitor a quem se destina (BARROS, 2011). Em meio a esta narrativa jornalística elaborada por Veja e difundida ao público consumidor, verificase, inicialmente, o enunciado que apresentou a questão: Para um grupo de beatas, era uma nova tentação de Belzebu, para arruinar a moral da tradicional família mineira. Para parte da população da cidade, era um assunto escabroso demais para ser debatido em público. Para estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais, não houve divulgação suficiente, senão haveria um público bem maior (VEJA, n. 203, p. 62). [ 52 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS As primeiras palavras que introduzem o tema são negativas. Primeiro, a menção as beatas e a Belzebu, cuja homossexualidade está intimamente associada à ideia de algo ruim, coisa do demônio, um mal. Tal entendimento é representativo de uma ideologia dominante que vê a heterossexualidade como o modelo natural, criado por Deus, portanto, o “correto”. A afronta a este modelo, pela homossexualidade, seria algo do “mal”, para desviar as pessoas do caminho “certo” contrariando os mandamentos atribuídos a Deus. Não obstante, a prática sexual era chamada de sodomia em referência a uma interpretação do texto bíblico que associa o ato como causa à punição divina que teria caído sobre as cidades de Sodoma e Gomorra. Desta forma, este discurso tem sido reproduzido através do tempo e quando não utilizado nestas palavras, manifesta-se pelo uso de outros termos e interpretações também depreciativas. Esse entendimento cristão ajudou a construir as bases das sociedades ocidentais, portanto, esteve – e está – presente na mentalidade das pessoas, sujeito a (re)construções e olhares plurais. Por isso, “ao longo da história do pensamento ocidental, sempre que o Cristianismo deixa marcas de sua influência, está presente a crença no diabo” (NOGUEIRA, 2002, p. 8). O segundo argumento trazido pela revista menciona a magnitude do tema que, naquele momento, não era receptivo, mas “escabroso”. Tornava visível o fato de que não se podia falar sobre. Quando muito, neste caso, a partir de uma forma não encorajadora. É preciso recordar que esta sexualidade era vista como um desvio pelos saberes médico-legais, logo, falava-se de “doentes”. O último argumento trazido informa da participação no evento que é descrito posteriormente: “Primeiro Simpósio Sobre Homossexualismo”. Constata-se, de imediato, a limitação do evento. Pouca divulgação, poucos participantes, imprimindo um sentido de fracasso. De acordo com as informações divulgadas, trinta pessoas estavam presentes, das quais a maioria estudantes de medicina, além de um endocrinólogo, psicólogo, padre e líder espírita. A menção aos presentes revela as áreas do saber em torno das quais o tema foi discutido, ou seja, a medicina e a religião. Ainda, a fala de um homossexual no evento limitou-se, de acordo com a revista, a um sujeito. De maneira sarcástica, diz: “Dos 4% de homossexuais que, segundo estimativas, existem no mundo, só um indivíduo se manifestou”. Mas prossegue, informando de que sujeito se tratava: “Pedindo anonimato por ser casado e pai de três filhos, um senhor circunspecto confessou ser homossexual e ter vindo ali a procura de apoio religioso para a sua condição, pois o desprezo público já lhe era indiferente” (VEJA, n. 203, p. 62). A revista cita um homossexual confesso que parece ter se manifestado no evento. Não está claro se algum representante de Veja esteve no evento ou se soube do fato. Contudo, o drama pessoal não foi escondido, tratando-se de um sujeito casado que vivia uma relação com a esposa, tinha filhos e por essa razão pediu pela discrição. A busca era por apoio espiritual, pois o estigma social “lhe era indiferente”. Isto assinala duas questões importantes para pensar: a primeira é que mesmo numa relação heterossexual ainda sofria “desprezo”, ou seja, sua sexualidade ou a expressão da mesma não estava escondida – e nem poderia fazê-lo – mas visível; a segunda é que devido a sua “condição” e não se sentindo bem consigo mesmo, precisava de apoio e o faz em direção à religião. Este termo utilizado pela revista relaciona a homossexualidade a um estado, uma condição de ser homossexual. E como foi destacada, esta condição para grande parte das pessoas e pelos saberes médico-jurídicos, era de um sujeito que tinha uma patologia. Como poderia estar bem se mesmo inserido dentro da heteronormatividade – casado, pai de família como preconizava a “moral e os bons costumes” – ainda sofria estigma? Como viver sua homossexualidade – tinha o entendimento de sê-lo – numa sociedade discriminatória? A quem recorrer numa situação como esta para buscar conforto espiritual, emocional? Dilema que, possivelmente, muitos tiveram que enfrentar (e ainda enfrentam). Sobre as ideias suscitadas no evento, Veja explicita o cenário de discussões: “Com intensa participação de todos os presentes, o simpósio foi um autêntico campo de batalha verbal em que estatísticas, provas de laboratório, teorias científicas e doutrinas religiosas eram brandidas como armas” (VEJA, n. 203, p. 62). Nota-se o campo de disputas no qual as questões que envolvem a sexualidade e, especialmente, a homossexualidade, estão inseridas. Deve-se atentar que os sujeitos presentes acionam diferentes saberes e teorias aos quais estão vinculados para compreender o objeto. Na sequência, Veja destaca as tentativas de um psiquiatra brasileiro em reorientar o homossexual para a heterossexualidade através de tratamento por eletrochoque e analítico. No entanto, nas palavras do [ 53 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS psiquiatra citado na reportagem, “o tratamento psicanalítico, mesmo prolongado, está quase sempre fadado ao fracasso”. Traz informações, também, de como o procedimento era realizado e o abandono deste método por profissionais da Europa e Estados Unidos, inferindo ser algo ultrapassado, cujos centros tidos como modelo, citados acima, já não consideravam este tratamento. Mas sim, “essa terapia é substituída modernamente pela integração do homossexual ao seu meio ambiente, respeitando suas escolhas eróticas e destruindo seu conflito neurótico com uma sociedade hostil ao seu comportamento”. A menção a “escolhas eróticas”, ideia que é rejeitada atualmente, contradiz-se com a “condição” citada mais acima. Se o sujeito era assim, vinculado a um estado de ser tido como doentio não teria a possibilidade de escolha, apenas aderir ou não a esses desejos. Contudo, nos meandros da década de 1970, bem como em outras temporalidades, a ideia da homossexualidade como “sem-vergonhice”3 também se fazia presente, atrelada a outras representações. Possivelmente uma mescla entre as representações em constante circulação na esfera pública. Ampliando positivamente o olhar a questão, cita Freud que diz: “O homossexualismo é uma variante válida da sexualidade, com muitos de seus representantes dotados de alta cultura e profundo senso ético” (VEJA, n. 203, n. 62). As disparidades entre as próprias colocações podem ser verificadas na fala do diretor do Instituto Brasileiro de Informação e Parapsicologia que, segundo Veja, era entidade promotora do evento. No entanto, a revista diz que o autor falou como presidente da Associação dos Jornalistas Espíritas de Minas Gerais. Talvez, um posicionamento que não poderia ser tomado por um membro do grupo promotor ou assinalasse a participação em outros grupos; ainda, pode ter sido uma relação estabelecida pelo argumento que apresenta, vinculando-o, desta forma, ao grupo religioso. Em sua fala, destaca: Para o espiritismo, o homossexualismo não é uma anormalidade nem deve ser condenado. O homossexual não deve procurar experiências heterossexuais, pois irão desequilibrá-lo ainda mais. A união de duas pessoas que se amam, sejam elas hetero ou homossexuais, é a manifestação de Deus nos seres humanos (VEJA, n. 203, p. 62). Não se limitando a esta arguição acrescenta em tom encorajador aos homossexuais, vítimas “de uma falsa moral e uma falsa ética social a lutarem pela sua própria libertação” (VEJA, n. 203, p. 62). Posicionamento positivo em relação à homossexualidade, embora tido como aversivo pela preocupação constante dos setores de vigilância com este explícito ou implícito estímulo. Tal ideia é desenvolvida por Benjamin Cowan ao frisar o aspecto “subversivo” associado à homossexualidade que, em suas pesquisas, permitem verificar a preocupação dos setores dirigentes com estas sexualidades dissidentes no período civilmilitar. Para o autor, esta questão é resultado de sua comparação aos ideais comunistas de revolução no qual a homossexualidade faria parte da derrubada dos valores morais instituídos, sendo, portanto, ameaçadora ao projeto político-social protegido pelos governantes do período civil-militar, e tão prejudicial quanto os “inimigos” comunistas (COWAN, 2015). Sob os olhares vigilantes dos governantes, e ainda, com a conivência dos sujeitos sociais, a homossexualidade esteve sob constante monitoramento. Devido ao entendimento partilhado da heterossexualidade naturalizada e até divinizada no discurso fundador judaico-cristão, componente do discurso dominante, criou-se o pano de fundo da construção desta moralidade. Os que infligiam a ordem estabelecida deviam ser controlados. Mesmo assim, nem a censura, tampouco os mecanismos repressivos foram capazes de extinguir esta sexualidade ao longo da história. Quando muito, silenciá-la de uma memória oficial, “coesa”. Visíveis ou não, estes sujeitos existiam. É indagador que uma argumentação positiva tenha sido expressa, em 1972. E ainda, apresentou um entendimento religioso que relativizava os preceitos cristãos hegemônicos no país e disseminados pelos intérpretes da fé. Uma manifestação de respeito, apoio, desqualificando o aspecto pejorativo atribuído por 3 Confira FRY; MACRAE, 1985. [ 54 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS muitos e apresentando um entendimento que preconizou pelo “amor de Deus” as relações homossexuais, além de um estímulo para “libertação”, como destacou o presidente da Associação de Jornalistas Espíritas. Dando ensejo a relação homossexual há, ao centro da reportagem, uma imagem de dois sujeitos de mãos dadas andando pela rua. A imagem apresenta ambos vestidos em conformidade com as roupas designadas culturalmente como masculinas ou para homens. No entanto, não há informações aos leitores se a imagem foi no evento, se a mesma registra algo que ocorreu no Brasil ou se é do exterior, que se considera mais provável. Logo abaixo, uma legenda: “Homossexuais: compreensão”, reiterando um elemento positivo em relação à homossexualidade, ilustrada pela imagem. Outro elemento de discussão foi quanto às causas da homossexualidade. Nesta reflexão o médico endocrinólogo da UFMG destacou que as questões relacionadas à endocrinologia não eram as causas desta sexualidade. Ao que a revista complementou dizendo que alguns estudos nos Estados Unidos e países da Europa verificaram a falta de hormônios que poderia estar relacionada a esta condição. No entanto, a revista Veja, falando em nome do médico, informou que estes estudos ainda eram pouco conclusivos e apresentavam fragilidades, logo, deveriam ser tratados com cautela (VEJA, n. 203, p. 62). As tentativas de descobrir as causas da homossexualidade levaram vários especialistas a debruçaremse sobre esta questão, mas resultados definitivos ou aproximados, ainda eram pouco creditados. Mais do que saber as razões que levam os sujeitos a sentirem esta atração pelo mesmo sexo/gênero, carecem de um questionamento do porquê de não poder expressar esta sexualidade. Para isso, seria preciso reconstruir os pilares de sustentação de determinados saberes de forma crítica e inteligível. A passos lentos, mas contínuos, os mesmos já podiam ser vistos no horizonte, ou seja, mesmo que em número reduzido, havia aqueles que comungavam de representações e entendimentos mais coerentes e não discriminatórios inclusive por meio de idiossincrasias religiosas. Ronaldo Canabarro destaca o esforço de distintas áreas do saber em encontrar respostas a respeito da homossexualidade que, em muitos casos, focam-se apenas na descoberta. A passagem a seguir pode esclarecer ainda mais essa questão. De um lado, um número expressivo de essencialistas busca incessantemente a “verdade sobre o sexo” que estaria escondida pelos meandros da Biologia, Psiquiatria, Sexologia, Genética e tantas outras disciplinas do saber. De outro, culturalistas, estruturalistas e pós-estruturalistas promovem incontáveis debates sobre os discursos e suas produções político-somáticas. Em meio a tudo isso, há pessoas, suas identidades (ou a ausência delas) e suas histórias (CANABARRO, 2015, p. 13 – grifo do autor). A revista demonstrando um conhecimento ampliado a respeito tema citou um livro que diz não ter sido mencionado no evento. Tratava-se da obra O sexo equívoco de Martin Hoffman e Evelyn Hooker; exemplar que havia tradução em português. De acordo com Veja, os autores “advoga[vam] a adoção, pelos Estados Unidos, de uma legislação liberal com referência aos homossexuais, como a aprovada na Inglaterra e na Alemanha há poucos anos” (VEJA, n. 203, p. 62). É preciso destacar que a legislação e o tratamento dado aos homossexuais tiveram variações, mas oscilantes num padrão geral estigmatizante e pejorativo. Singularidades que compõem o aparato cultural de cada grupo social e podem ser verificadas em espaços diferentes. No entanto, um levante representativo do início do movimento homossexual nos Estados Unidos ocorreu em 1969, com a revolta de Stonewall. Os homossexuais enfrentaram os policiais no bar que costumavam frequentar, cansados das repressões, ampliadas pelo fato de sua sexualidade. A partir daí, o movimento começa a se ampliar, torna-se público e espalha-se pelo mundo. Mesmo assim, leis punitivas em decorrência de sua homossexualidade ainda eram vigentes. As conquistas que asseguraram melhores condições aos homossexuais se deram aos poucos, assim como a maioria das reivindicações sociais normalmente o são. Sob lutas, enfrentamentos, visibilidade, militâncias é que determinadas representações passam a se colidir de forma mais intensa, como as que dizem [ 55 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS respeito às sexualidades dissidentes. A comparação a estes países europeus deve-se a posturas mais coerentes tomadas, que no momento, pelos exemplos citados, são exemplos favoráveis a causa homossexual. Destacando um trecho do “Relatório Wolfenden” da Inglaterra, Veja destaca a retirada de penalidades a “adultos que consintam de livre vontade e em lugares fechados na prática do homossexualismo”. A Inglaterra que já punira personalidades como Oscar Wilde por sua homossexualidade, agora, abria caminho para uma aceitação. Serem permitidas relações homossexuais num espaço privado reforça o idealismo do comportamento vitoriano. No entanto, como seria a visibilidade pública de dois sujeitos homossexuais? Se a prática poderia ser aceita desde que escondida, e as demais expressões desta sexualidade? Que a relação sexual já era realizada com ou sem restrições parece irrefutável. Mesmo assim, o sentido dado à mensagem, que carece de maiores reflexões, cumpre o papel de informar e o faz positivamente. A analogia do destaque aos países europeus, em parte, parece ser contraditória. Se o movimento homossexual ganhou destaque nos Estados Unidos, significou que o mesmo havia deixado à dianteira e devia agora seguir o exemplo de outros. Ou quiçá, seguir em favor do movimento que lá floresceu. Pois como destacou Veja, é uma forma de diminuir a “discriminação nos empregos e elimina[r] os policiais venais e a prostituição masculina de que são vítimas os homossexuais americanos” (VEJA, n. 203, 62). Acionando novamente a questão religiosa para desenvolver sua exposição, Veja reforça a fala do sujeito que não se identificou e que havia ido a procura de apoio religioso ao evento. Teria dito: “Desejo encontrar um caminho para salvar minha alma perante Deus”. Fala que assinala o discurso cristão de salvação conquistado seguindo os preceitos bíblicos e dos intérpretes da fé em detrimento de um comportamento e sexualidade que se opõe ao discurso. Se não estava em conformidade com aquele modelo, estaria fadado ao inferno? Ao lugar dominado pelo tentador Belzebu mencionado pelo possível dizer das beatas que iniciou esta reportagem? Tal ideia presente no imaginário das pessoas poderia ser perturbadora, mas talvez, seus desdobramentos sociais tivessem maior desconforto do que uma preocupação a posteriori. Atenta-se ao fato de que mesmo inserido na heteronormatividade, enfrentava esses problemas sociais. Era visto como diferente e por esta razão, tratado de forma distinta. Reconhecia-se como homossexual, ao passo que este desconforto viria do estigma dos demais que, mesmo sendo casado e tendo filhos, era identificado como homossexual. Quê sua família dizia sobre isso? Possuía um comportamento mais feminino? Quais razões levaram a este estigma? Indícios que seu próprio entendimento de ser homossexual e buscar ajuda naquele espaço específico indicam tratar-se de um sujeito informado. Um sacerdote destacou: É urgente a solução do problema em nossas casas, em nossos escritórios, em nossos centros de ensino. Se uma sociedade condena o homossexual, nós devemos criar para ele uma sociedade de que ele precisa para sobreviver: uma sociedade que tenha misericórdia e lhe restitua seus direitos de integrar-se numa comunidade e de colaborar para ela com seus talentos. Não basta respeitar o homossexual. Precisamos abrir-lhe perspectivas que o tirem de sua condição de repulsa e de inferioridade (VEJA, n. 203, p. 62). No trecho citado, verifica-se uma representação, em parte, positiva ou condescendente com os homossexuais. Mesmo manifestando-se desta forma, o padre jamais contrariaria os princípios e fundamentos basilares do catolicismo por ele representado. Dizer que a relação homossexual é igual a heterossexual contraria os valores desta crença milenar e desdobra-se sobre os princípios da doutrina que também teriam que ser revistos. Mas não o faz desta maneira, pois além das críticas, receberia prováveis punições perante os seus pares. Difundindo suas palavras de apoio sentimental no intuito de acalmar um sujeito que buscava por ajuda, destaca a “misericórdia” que se deveria ter para com estas pessoas, bem como a necessidade de sua aceitação na sociedade. Palavras que denotam certa piedade para com estes sujeitos, embora um entendimento tendencialmente positivo, tendo em vista que muitos sujeitos faziam questão de rejeitar de forma explícita. No entanto, Veja destaca que o mesmo fala de forma particular e não em nome da Igreja. Ou seja, as responsabilidades são de total responsabilidade do mesmo e não um posicionamento da [ 56 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS instituição religiosa, que jamais questionou – ou questiona – a relação heterossexual vista como natural e divina. A fala do sacerdote esclarece, também, uma ideia bastante comum entre os membros do clero católico: sujeito e ato para a Igreja eram coisas distintas. Num passado não tão distante, a sodomia (relação sexual entre pessoas de mesmo sexo) era julgada e condenada pelos clérigos do Tribunal da Santa Inquisição. O pecado “nefando” que estes sujeitos estavam cometendo perante os olhos da Igreja era uma ameaça, digno de inquérito. Mesmo os homossexuais possuindo uma expressão sexual e identitária particular que os diferenciava dos demais, a mesma não parecia ser algo de igual proporção de vigilância como a cópula em si. 4 A palavra que nomeia este sujeito – não apenas o ato –, criada no século XIX, como nos lembra Foucault (1988), caracteriza de forma mais pontual um determinado sujeito que passa a ser analisado pelas ciências médicas. Nesta reportagem foi a terminologia utilizada, “homossexualismo”, trazendo representações negativas construídas por esta mesma área no imbricativo com os discursos cristãos propagados que adquirem credibilidades distintas. No entanto, as idiossincrasias dentro deste universo religioso são múltiplas. Como destacou o antropólogo Clifford Geertz (2015) trazendo o exemplo de Gilbert Ryle a respeito da piscadela, analisando-a como categoria cultural, pode-se estender tal teia de conexões as interpretações 5 dos textos bíblicos – e narrativas jornalísticas – e as próprias reapropriações dos leitores que poderiam significar e ressignificar as representações coletivas. Deve-se atentar a compreensão deste dizer no contexto em que foi emitido e publicizado. Tais espaços também acarretam certo controle do conteúdo da mensagem reportada. E, por conseguinte, da circularidade das representações na esfera pública e da esfera pública como sinaliza Jovchelovitch (2000). Considerações finais Pensar a homossexualidade no período da ditadura civil-militar requer considerar os mecanismos historicamente construídos de repressão e que, neste período, como salienta Renan Quinalha (2017), foram ampliados com um projeto de censura específico por meio de um controle exercido pela política sexual. Ao mesmo tempo em que havia aversão a estes sujeitos tidos como “subversivos”, falava-se deles em razão da visibilidade que os homossexuais conquistam a partir da contracultura e do movimento norte-americano que se difunde. Isso “força” a imprensa, demais sujeitos e órgãos governamentais a voltar atenção específica a este grupo. Por isso, dada a conjuntura, era um assunto que possivelmente se fazia presente nas conversas interpessoais, especialmente nos grandes centros que recebiam este público que migrava para a cidade. Em decorrência disso, reúnem-se membros de campos distintos do saber preocupados em pensar e refletir a respeito destas transformações. Belo Horizonte ganha dimensão ampliada por ser o local que sedia a realização do evento. Mesmo com pouca participação, segundo informou a revista, a discussão foi empreendida com os sujeitos que lá estiveram. Os mesmos eram integrantes da área da medicina e religião (católicos e espíritas) que representam polos distintos, haja vista que os graus de cientificidade e inteligibilidade acionados são completamente distintos. As vozes explícitas que tiveram espaço na reportagem para arguir sobre a homossexualidade partiu de um psiquiatra, além de uma frase do conhecido Freud. Do grupo religioso duas vozes foram expressas por um espírita e um padre. O homossexual também destaca seu posicionamento que se aproxima a busca espiritual e de conforto expressa pelas doutrinas religiosas. A representação da homossexualidade, nesta reportagem, revela o universo ambíguo do contexto social dos anos 1970 em que representações coletivas divergentes contrastavam-se com reelaborações e entendimentos plurais. Sob um controle vigilante dos órgãos de censura, não se podia falar de qualquer Ver o trabalho de Luiz Mott a respeito da ideia de desperdiçar sêmen: MOTT, 2001. Carvalho chama atenção ao significado que Geertz destaca como algo único dentro de um sistema cultural que irá interpretar tais questões a partir desta lente, ao passo que Chartier aponta para os diversos significados mesmo numa dada cultura, resultado de tensões entre representações. Cf. CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. O conceito de representações coletivas segundo Roger Chartier. Diálogos, Maringá, DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1, p. 143-165, 2005. 4 5 [ 57 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS assunto, especialmente sobre questões políticas e morais. No entanto, o fato desta reportagem ter sido publicada nos permite apresentar algumas hipóteses. A primeira se refere à forma com que foi iniciada a reportagem acionando elementos do imaginário e relembrando de sua associação ao mal, as coisas ruins. Numa primeira leitura, uma conotação pejorativa, portanto, possível de ser publicada. Um segundo aspecto que se distancia dessa questão é pontuado pelos saberes médico-legais, especialmente a psicologia. Há o enaltecimento da palavra “fracasso” quando discute as tentativas de retorno ou alinhamento à heterossexualidade. Destaca-se o fato de não ser possível conquistar os resultados desejados, ao contrário, tal empreendimento já estava desacreditado em países como Estados Unidos e na Europa que conferem um status hierárquico e de valoração a argumentação. A ilustração de dois sujeitos de mãos dadas no centro da reportagem e uma legenda simpatizante indica um modo positivo de encarar a homossexualidade. É preciso considerar tais questões dentro de seu próprio contexto, pois os argumentos utilizados na construção da reportagem não estão desconectados, mas atrelados, e no todo, apresentam a representação da revista Veja sobre o acontecimento. No entanto, não se deve tomar uma única edição como base para um posicionamento geral da revista ao longo da ditadura civil-militar, pois muitas outras edições assinalam menções e representações dos homossexuais de forma negativa. Por outro lado, a análise exposta sinaliza possíveis lacunas que a censura à imprensa não conteve. 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O olhar será direcionado a revista Veja atentando para as representações que são construídas e divulgadas para o público consumidor. A partir de uma breve historicidade das revistas no Brasil serão pontuadas possibilidades de análise que contribuam no entendimento das mensagens reportadas valendo-nos das contribuições de autores como Pierre Bourdieu, Roger Chartier, Sandra Jovchelovitch, dentre outros. Palavras-chave: Representação, imprensa, revista Veja. Considerações iniciais Neste ensaio serão discutidas algumas propostas teóricas de análise da imprensa, em especial das revistas, a partir de reflexões que tem como eixo condutor a semanal Veja. A proposta visa articular alguns recursos disponíveis desses periódicos e suas potencialidades na elaboração de reportagens e possibilidades de leitura. Parte-se da ideia de Jovchelovitch de que as reportagens constroem representações a respeito daquilo que publicam e permitem interfaces com outras representações influenciando no desenvolvimento das relações sociais. Tais questões são pensadas numa análise direcionada a revista Veja. Veja e o cenário de revistas no Brasil Um dos papéis desempenhados pela imprensa nas sociedades e grupos sociais se dá por meio da informação, formando e/ou transformando as ideias daqueles que nela estão inseridos ou dela comungam. Desde as transformações no século XV ocasionadas pelo surgimento da prensa a recepção das mensagens se tornou mais dinâmica. Se antes eram centradas na oralidade ou nos manuscritos, a partir daí passam a apresentar-se de distintas formas com a ampliação do acesso ao mesmo conteúdo, pois anteriormente os copistas imprimiam suas especificidades ao material. As relações estabelecidas entre os sujeitos com os impressos no espectro social permitem compreender parte de sua realidade, pois sua produção se volta para o mesmo universo em que foi produzida. Nesse sentido, as notícias selecionadas bem como a maneira de reportá-las incidem na construção ou reelaboração das formas de pensar que irão influenciar os leitores e aqueles que mantêm um contato com tais materiais ou ideias. Por sua subjetividade e estar vinculada a interesses específicos dos proprietários ou do órgão que a administra, a imprensa foi deixada de lado pelos historiadores. Somente com as transformações advindas com a “Nova História” quando os paradigmas historiográficos passaram a ser questionados juntamente com a objetividade das fontes é que pode ser incluída. O entendimento de que nenhuma fonte é neutra devendo, portanto, ser tratada desta forma possibilitou a inclusão de novos materiais ao ofício. Permitiu maior liberdade ao profissional da História ao dispor de inúmeras possibilidades no exercício de sua função. Nesse contexto, a imprensa passou a ser utilizada demonstrando as potencialidades de análises e compreensão das relações sociais. As revistas integram esses veículos de imprensa e proporcionam análises diferenciadas em razão do aparato construtivo e valorativo que apresentam. De acordo com Ana Luiza Martins (2001, p. 40), as revistas Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo (2016) e mestrando em História na mesma instituição. Bolsista Capes. Email: leonardos.martinelli@gmail.com 1 [ 60 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS eram moda na Europa no século XIX. Ao longo dos anos transformaram-se de acordo com as necessidades e contexto social introduzindo características e formatos que atendiam ao público consumidor. Diferente dos jornais, que tendem a ter circulação diária, as revistas circulam com um espaçamento maior de tempo, havendo semanais, quinzenais, mensais, semestrais ou anuais, por exemplo. O formato encadernado e suas diversificações segmentárias permitiram a escolha de temáticas específicas voltadas a determinados grupos sociais. A utilização de ilustrações que ampliam as possibilidades de entendimento das mensagens aliadas ao dinamismo dos recursos técnicos a torna atrativa. A revista Veja surgiu em 1968 durante o governo civil-militar brasileiro trazendo uma proposta inovadora em seu formato. Era uma revista semanal de informação que ingressava no mercado brasileiro inspirada em modelos internacionais e pertencente ao Grupo Abril. Na época, somava-se a outras do mesmo grupo como Cláudia e Realidade. Segundo Thomaz Souto Corrêa (2012 p. 207), as revistas são divididas no mundo em dois blocos: as revistas de consumo, destinadas ao grande público, que são vendidas em bancas e em outros pontos de varejo e por assinaturas; e as especializadas, que em sua maioria são gratuitas, chegam a seus leitores por mala direta e tratam de temas que interessam a segmentos específicos de grupos de profissionais. Veja está inserida nas revistas de consumo, num formato que alia os suportes imagéticos e textuais. No entanto, o perfil textual sobressai. Em seus primeiros anos de circulação a dificuldade de aceitação no mercado brasileiro fez os proprietários cogitarem seu fechamento. A relutância teria sido manifestada pelo filho do sócio majoritário, Roberto Civita, que segundo Corrêa (2012, p. 220) dizia ao pai: “Me dá mais três meses”. Mantendo-a no mercado, Veja posteriormente alcançou grande público a partir de transformações realizadas com o passar do tempo. Trazia assuntos diversos em seções que indicavam temáticas específicas como “Brasil” (em sua maioria assuntos políticos); ou “Comportamento”, “Vida Moderna” e “Gente” (questões voltadas à cultura e modernidade). Não era ortodoxa essa divisão, no entanto, de modo geral, contemplava temáticas que tendiam a uma abordagem específica. Possivelmente destinadas a leitores que preconizavam também por esses assuntos, encontrando-os nestas seções. As mesmas variaram ao longo dos anos, sendo introduzidas novas, enquanto outras substituídas e/ou incorporadas em algumas edições. Como a revista circulava semanalmente não informava os leitores com a mesma rapidez que os jornais diários. Assim, havia vários assuntos da semana que poderiam ser tratados. A elaboração das reportagens e apuração dos acontecimentos possibilitava um espaço de tempo maior para debruçar-se sobre os eventos. Conforme Gabriel García Márquez citado por Marília Scalzo (2014, p. 13): “A melhor notícia não é a que se dá primeiro, mas a que se dá melhor”. Nesse intento, a circulação semanal pode ser de grande valia quando bem elaborada. Scalzo (2014, p. 14) chama a atenção a um elemento das revistas que precisa ser discutido: seu caráter “educador”. Segundo a autora, as revistas auxiliaram na formação de parcela dos leitores por possibilitar acesso a informações que não eram possíveis através de outros meios. A partir de tal consideração cabe questionar sua influência sobre os leitores e o ideal de educar que nos parece perigoso de ser utilizado desta maneira. É notório o fato desses veículos trazerem informações aos consumidores que passam a entrar em contato com ideias e notícias das quais podiam não ter acesso. No entanto, ao direcionar nosso olhar sobre este semanário (Veja), não vemos sua ação como algo educador sobre os leitores, tendo em vista que esse processo não se dá pela simples aquisição de conhecimento, mas por sua reflexão crítica. Gramsci (2001) chama a atenção para a ideologia partidária presente nos discursos que nos permite atentar ao papel dos veículos de informação e os direcionamentos dados enfatizando enfoques nas notícias em detrimento de outros. As matérias são organizadas e selecionadas de modo a conferir legitimidade ao conteúdo reportado transparecendo objetividade àquilo que está sendo informado. Esse educar mais parece a formação e [ 61 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS construção de um habitus, como assinala Pierre Bourdieu (1989; 2007), o qual será enfatizado adiante ao discutir os entendimentos das mensagens reportadas pelos leitores. Nesse sentido, a revista não é entendida como uma forma de educar, pois tal processo pela ação da imprensa tende a direcionar os leitores a observarem os acontecimentos e notícias sob a lente fornecida por esse periódico. E aqui é necessário frisar a diferença entre informação e conhecimento. Educar pressupõe o desenvolvimento de habilidades e competências capazes de significar as informações e torná-las úteis e utilizáveis em distintas situações apreendidas através de um processo pedagógico. Parece-nos inapropriado pensar a imprensa enquanto cumpridora desse papel. Diante das disparidades com que a imprensa reporta os mesmos acontecimentos quando comparados, muitas vezes parece que estamos diante de situações distintas pela forma como apresentam as informações. Em síntese, trata-se de abordagens que são pautadas por visões de mundo diferentes que condicionam e direcionam o olhar do leitor. A revista Veja é um exemplo, mas não o único, tendo em vista que os demais periódicos também usam e partem de princípios semelhantes. Voltando a falar da revista é preciso destacar a segmentação no mercado. Isso ocorre devido ao direcionamento e a finalidade a que se destina. É uma estratégia que se volta necessariamente ao público alvo concorrendo com outras revistas de mesmo perfil. Veja foi a primeira semanal de informação, no entanto, logo foram criadas outras que lhe faziam concorrência como IstoÉ e Época. As revistas, quando criadas, carregam consigo as utopias de seus idealizadores que veem nelas os benefícios que trariam a população e/ou negócio empresarial. Muitas correspondem a esta expectativa enquanto outras decaem vertiginosamente não conquistando a empatia do público leitor. A história de muitas revistas ocorreu entre estes extremos, com momentos de auge, prestígio, ao passo que outras sequer chegaram a esta fase. A aceitação ou não do tipo de revista decorre das próprias questões do contexto em que está inserida e no qual deve ajustar-se. Fazer uma revista onde um número reduzido de pessoas tem interesse em adquiri-la é inviável se a proposta empresarial visar – e normalmente o é – o lucro. Nesse sentido, as mesmas devem adaptar-se continuamente no intuito de manter-se no mercado. Outra medida que ampliou as possibilidades de contato com as revistas se deu com o advento da internet e sua posterior difusão. A revista Veja possui um acervo no site do Grupo Abril que permite o acesso às edições desde as iniciais até as mais recentes mediante cadastro. Tal mecanismo difunde as mensagens a um público de leitores que tem interesse em ler a revista, embora não a adquiram fisicamente. Essa influência sobre os diferentes grupos sociais de leitores amplia a adesão aos valores e representações criadas e publicadas por esse veículo de imprensa. A utilização pela mídia dos recursos digitais promove sua imagem pela publicidade compartilhada nas redes sociais, bem como das notícias e discussões emitidas. Porém, ao mesmo tempo em que amplia sua divulgação corre os risco dessa imagem não ser positiva, uma vez que nesse meio as discussões entre as distintas interpretações são colocadas a par num ambiente de divergências. O resultado pode ser profícuo tendo em vista que o aprendizado resultado de discussões pautadas numa argumentação racional potencializam os entendimentos podendo concordar ou não com a mensagem e o posicionamento tomado. Nesses espaços é criada outra possibilidade para compreender as mensagens reportadas que se ampliam novamente para os diversos leitores, e não apenas “o sujeito” a quem a revista Veja se destina. As mensagens nas diversas formas que se apresentam promovem a difusão de conteúdos que são significados. Essa operação permite a construção de representações a respeito dos inúmeros temas cujo alimento intelectual é partilhado pelos sujeitos que estiveram em contato com esses materiais. Portanto, as representações são elementos constituintes das relações sociais e compreendê-las em suas interconexões atreladas a ação da imprensa na esfera pública permite maiores entendimentos da realidade de cada época. A construção de representações pela imprensa Representações são imagens, símbolos, significados que nos vem à mente quando entramos em contato com componentes que exigem uma capacidade de abstração para entender a mensagem implícita ou até mesmo explícita apresentada. Roger Chartier (1991, p. 183) assinala que as representações coletivas são [ 62 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS criadas no mundo social e se destinam a ele, ou seja, retornam novamente para o espectro social no qual foram gestadas mantendo esta vinculação e permitindo a própria construção da realidade. Os sujeitos constroem representações que assumem um significado e que são partilhadas com os demais. Essa diversidade é resultante da ação de forças mobilizadoras que possibilitam variações e/ou transformações na maneira como essas representações coletivas são criadas, percebidas e legitimadas socialmente. A imprensa também age como construtora/criadora de representações sobre os diversos temas que aborda e apresenta-os de determinada forma que reforça a objetividade. A notícia reportada aparece de modo a convencer o leitor de que aquilo que está sendo informado foi assim ou deve ser entendido daquela maneira. É um posicionamento do periódico que vai ao encontro dos anseios e interesses dos proprietários, reconhecidos e/ou (re)apropriados pelos consumidores. A valoração que o veículo de comunicação terá, em parte, advém desses elementos. Sandra Jovchelovich (2000) ao discutir representação realiza uma distinção entre as representações sociais na esfera pública e representações sociais da esfera pública. As primeiras seriam aquelas do espectro social partilhadas pelos sujeitos nos espaços públicos. Ao passo que as representações sociais da esfera pública seriam as construídas e difundidas pela imprensa dos espaços públicos. Dois exemplos distintos que apesar de estreitamente vinculados podem não corresponder um ao outro. As representações divulgadas pela imprensa podem ser aquelas partilhadas por determinados grupos sociais, sejam hegemônicos ou não, ou ainda, podem ser criadas outras representações que ao serem publicadas irão se contrapor a representação que os leitores têm. No entanto, é preciso pontuar a diferença entre os entendimentos das mensagens decorrentes das múltiplas possibilidades de reapropriação e apreensão. A capacidade dos leitores de decodificar a mensagem é resultado de um esforço que vai além do conteúdo manifesto. Nesse sentido, haverá leitores que irão compreender a mensagem preconizada pelo redator e outros que buscarão comparar o explícito com o implícito para analisar as reportagens. Logo, terão outro entendimento. Essa questão reitera o elemento de circularidade cultural – como exemplificado por Carlo Ginzburg (2006) – em que a compreensão das mesmas reportagens se dará de maneira distinta entre os sujeitos que, por sua vez, irão significar as palavras e mensagens a partir de suas experiências ou, dito de outra forma, devido ao seu capital cultural – utilizando a expressão de Bourdieu (2007). Problema de que se ocupou também Chartier (1990) ao considerar também em suas análises as práticas de leitura e maneiras de apropriação dos escritos ao invés de unicamente a forma como os textos se apresentavam. Sendo assim, a assertiva do autor quanto à história cultural nos fornece as bases para compreender a sociedade: “A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 17). Portanto, a partir da imprensa é possível perceber como as representações são construídas e como a mesma é dada a ler. Nesse sentido, as reportagens não são tomadas unicamente em seu sentido informativo, mas também como recursos que ao mesmo tempo em que estabelecem a conexão entre notícia e leitor constroem representações sobre as temáticas publicadas. Frente a isso, é necessário destacar a construção de visões de mundo que a imprensa difunde e que influenciará o grupo que mantém contato com tais impressos, a exemplo da revista Veja. Veja direciona-se a um público específico da sociedade, classe média ou superior. Nesse sentido, uma vez que esse público seja delimitado as matérias reportadas irão se circunscrever as características e estilo de vida desse grupo. A aproximação entre esses elementos acarreta uma maior aceitação dada a representatividade que é reconhecida por meio da revista. Entretanto, essa questão precisa ser pontuada. As notícias divulgadas por Veja tendem a manter uma relação estreita com a realidade social de seus leitores. Contudo, a revista não apenas reforça uma representação social desse grupo a respeito dos temas de que trata, mas também corrobora e alimenta esse tipo de representação. Essa ideia é melhor compreendida a partir das contribuições de Pierre Bourdieu, especificamente a partir da ideia de habitus. [ 63 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS De acordo com Bourdieu (2007; 1989), habitus é uma incorporação das estruturas sociais pelos sujeitos num determinado contexto, que irão interiorizar e reproduzir esses elementos. No entanto, essa reprodução pode não ser homogênea, mas irá se operar a partir de um modelo pré-estabelecido do qual os integrantes fazem parte e comungam. Nesse sentido, opiniões e visões de mundo serão partilhadas pelo grupo em razão desse habitus, construindo uma teia de sujeitos que se posicionarão de forma semelhante aos demais por sentirem-se integrantes do grupo e compactuarem com as mesmas ideias. A partir do exposto, entende-se que a revista Veja contribuiu para a formação do habitus de seu público leitor na medida em que o alimenta através das mensagens divulgadas e representações construídas. Essa ação constante pouco a pouco delimitou um grupo que se distingue dos demais em função desse olhar semelhante direcionado aos posicionamentos tomados frente à realidade do qual o periódico ajuda a expressar. Nesse sentido, as contribuições de Chartier e Jovchelovich parecem pressupor uma circularidade de recepção das mensagens reportadas em que as representações coletivas entram em contato com outras representações que são construídas pela imprensa. A legitimidade pretendida de impor umas sobre as demais acentua as relações de poder engendradas nesse movimento. Ressalta Chartier (2011, p. 23): “As representações possuem uma energia própria, e tentam convencer que o mundo, a sociedade ou o passado é exatamente o que elas dizem que é”. Percebe-se que Veja se coloca como portadora de um determinado discurso e apresenta-o a seus leitores, embora o entendimento e concordância com o que está sendo dito passa pelo crivo do julgamento pessoal e suas relações. Portanto, Veja toma partido dos assuntos publicados ao passo que este fator não se limita a intenção preconizada estando imersa no quadro circular de recepção que pluraliza as compreensões e adesão. Somado a estas questões é necessário ressaltar as estratégias e técnicas que os veículos de imprensa podem utilizar fazendo com que a informação divulgada, da forma como foi construída, conduza o leitor a uma dada interpretação. Tal discussão foi destacada por Perseu Abramo em Padrões de manipulação na grande imprensa (2016), no entanto, tais componentes podem ser estendidos e analisados sobre outros veículos de imprensa. A questão que se coloca é referente à realidade apresentada pela imprensa. Abramo (2016, p. 37-38 – grifo do autor) chama a atenção para situações em que a mesma é distorcida como pode ser observado em sua fala: “É uma realidade artificial, não-real, irreal, criada e desenvolvida pela imprensa e apresentada no lugar da realidade real”. Logo, a realidade é representada pela imprensa assumindo dimensões que irão variar. Tomemos o exemplo de um acontecimento em que um sujeito qualquer presencia. O fato ganha destaque e é reportado pela imprensa. Se este mesmo sujeito ler a notícia irá verificar as ênfases que foram dadas podendo ou não corresponder ao ocorrido. Mesmo considerando a olhar interpretativo e subjetivo do sujeito que foi direcionado ao momento em si. A mesma matéria quando lida por outro leitor distante do ocorrido que recebe esta informação pelo periódico irá ter outro entendimento sobre o acontecimento. Se compararmos, ainda, com outros veículos de informação iremos constatar a diferença no modo como apresentam o ocorrido. Isso é demonstrativo das singularidades que cada periódico imprime a reportagem e a manipulação da realidade pode ser um dos recursos utilizados, portanto, deve-se ter cautela na realização da análise. De acordo com Abramo (2016, p. 39), não é esporádica a manipulação que a imprensa realiza podendo ser mais incisiva sobre algumas matérias e não sobre outras; e não é exclusiva de um periódico, no entanto, tal prática pode ser observada por meio da análise dos padrões elencados. Os padrões de manipulação que se referem à imprensa e que podem ser utilizados para análise das publicações, conforme Abramo (2016, p. 40-50), são os seguintes: • Padrão de ocultação: É aquele em que a notícia ou fato não aparece noticiado pela imprensa, é ocultado como se não merecesse estar na pauta. [ 64 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS • • • Padrão de fragmentação: Ocorre quando o fato entra na pauta da reportagem, mas passa por uma seleção que decide quais elementos publicar podendo ainda estar descontextualizados produzindo outra interpretação. Padrão de inversão: Essa prática inverte o essencial da matéria tornando-o secundário e esse processo pode apresentar-se de distintas maneiras que conforme o autor são: a) Inversão da relevância dos aspectos; b) Inversão da forma pelo conteúdo; c) Inversão da versão pelo fato citando dois extremos: frasismo e o oficialismo e d) Inversão da opinião pela informação. Padrão da indução: É o resultado das manipulações que induzem o leitor a apreensão de uma realidade criada não condizente com a realidade. Deve-se destacar que além destes padrões o autor cita outro referente aos meios televisivos e rádio o qual não será mencionado em razão da delimitação da revista Veja como objeto de análise para conduzir este ensaio reflexivo sobre as possibilidades teóricas de análise para os impressos. Nesse sentido, a imprensa nos oferece várias possibilidades de compreender as relações sociais. Ao mesmo tempo em que divulga informações sobre a vida social, estas retornam para o mesmo espaço em que foram produzidas gerando novas associações entre os sujeitos significando suas representações. Representações partilhadas que integram os agentes e que posteriormente recriam ou publicam-nas através da imprensa. As revistas, especialmente, são veículos de informação que dispõem de uma vasta gama de técnicas que permitem criar vários tipos de representações a cerca das temáticas abordadas. Aliando textos e imagens com uma diagramação mais flexível em contraponto com outros tipos de periódicos maximiza a mensagem pretendida. É um recurso diferenciado que demonstra ser uma fonte de pesquisa muito profícua. Considerações finais Nesta discussão buscou-se demonstrar alguns elementos que são fundamentais para compreender a ação da imprensa na sociedade. Os veículos de imprensa são muito profícuos para realizar análises históricas na medida em que nos colocam a par de informações sobre uma determinada realidade sendo que a mesma foi reportada aos sujeitos do período em questão. Isso permite avaliar as duas situações históricas no qual está inscrita. Somado aos diversos temas que suscitam pesquisas torna-se de grande valia e nos abre diversas possibilidades. Como propulsora para empreender esta reflexão a revista Veja permitiu que se observassem alguns aspectos que são necessários para entender o papel da imprensa e que devem ser considerados quando se utiliza este tipo de fonte. Desta forma, realizou-se uma discussão teórica apontando possibilidades de pensar e analisar a imprensa considerando as particularidades inerentes ao fazer jornalístico, mas também a influência desses escritos sobre os leitores. Assim como analisado, as representações criadas e/ou construídas pela imprensa entram em contato com as representações coletivas dos sujeitos que podem se contradizer e resultar no surgimento de novas. Nesse aspecto, a recepção das mensagens divulgadas imersa num discurso que legitima a fala da revista a respeito dos assuntos tratados se remete aos consumidores que irão se (re)apropriar de tais significados de maneiras distintas. Embora aos poucos se possa verificar a delimitação de um grupo específico que compartilha destas visões de mundo. Mais do que algo unilateral, a circularidade que permite essa pluralidade de significações deve ser compreendida dentro desta vasta teia de relações sociais mantidas através de relações de poder. Partindo das contribuições de Bourdieu entende-se que essa conexão opera por meio de uma luta simbólica engendrada no interior desse sistema que pretende impor uma determinada representação sobre as demais. Reitera-se o papel da imprensa nesse universo conforme destaca Bourdieu (1989, p. 15): “O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”. [ 65 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Nesse sentido, a revista Veja enquanto veículo de informação contribui para a construção de determinadas representações que irão manifestar-se a partir das suas publicações. Essa influência irá distinguir e delimitar as fronteiras de outros grupos. Por isso, como salienta Marialva Barbosa (2007, p. 153), “conseguir audiência é sempre conseguir poder”. E a valoração por essa aquisição é notória do prestígio conferido pelos leitores, que, uma vez que estejam em contato com tais materiais, lentamente irão incorporar o habitus desse grupo. Por isso, pensar a imprensa em suas múltiplas faces permite que se possa compreender o universo em que as relações sociais são estabelecidas verificando as estratégias utilizadas para reportar as notícias e informações. As possibilidades teóricas aqui apontadas podem servir como base para ampliar os olhares que são direcionados a esses impressos, independente do tema e enfoque atribuído a cada pesquisa. História e imprensa são, portanto, áreas que permitem um diálogo bastante profícuo e que demandam grande atenção. Referências ABRAMO, Perseu (com colaboração de Laura Caprigliole et. al.). Padrões de manipulação na grande imprensa. 2. ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2016. BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Tradução de Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. _____. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: DIFEL, 1990. _____. Defesa e ilustração da noção de representação. Tradução de André Dioney Fonseca e Eduardo de Melo Salgueiro. Fronteiras, Dourados, MS, v. 13, n. 24, p. 15-29, jul./dez. 2011. _____. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191, jan./abr. 1991. CORRÊA, Thomaz Souto. A era das revistas de consumo. In: MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de (Org.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 207-232. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. 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Por ter sido colonizada inicialmente por portugueses e brasileiros atuantes no exército dos Dragões, o núcleo urbano de Rio Pardo se origina com a construção da fortaleza Jesus, Maria, José para defender o território português das tentativas de ataques espanhola e indígenas. A ocupação do mesmo espaço pelos familiares desses militares e a posterior chegada de algumas famílias açorianas consolidou o desenho português na escolha dos espaços públicos da cidade. A abertura e nomenclatura das ruas estava de acordo com o que exigia as Ordenações Reais, além da construção dos prédios institucionais, que ao redor do sítio da praça eram construídos. O crescimento demográfico da freguesia impulsionou sua expansão e novos espaços foram escolhidos para edificar praças, igrejas e casas comerciais, permanecendo o hábito português e preservando a semelhança com freguesias e vilas do restante da colônia. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como finalidade analisar o contexto de ocupação da cidade de Rio Pardo, Rio Grande do Sul, na metade do século XVIII e a formação de sua estrutura urbana inicial, enfatizando o espaço da praça com irradiadora urbana dentro do colonialismo português. Para tal estudo, se utilizou de leituras de autores clássicos da história do Rio Grande do Sul, de Rio Pardo, do urbanismo colonial português, e do urbanismo em solo brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Praças, Rio Pardo, Urbanismo Colonial. As origens do povoamento da Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul estão remotas ao período aurífero vivido pela população colonial brasileira da época. É uma consequência da irracionalidade do povo que ao deixar que cultivar trigo e passar a alimentar-se apenas de carne, o fez em números exagerados e quase extinguiu o gado existente nas pradarias ao longo do rio São Francisco2 Guiados por esta situação, os lagunenses receberam, por volta de 1720, ordens de avançar em direção ao sul ocupando os campos do Tramandaí, como eram conhecidas as pradarias do nordeste rio-grandense (WEIMER, 2004), iniciando, então, o povoamento da área que até então era considerada inútil. Em 1740, Jerônimo Dorneles de Menezes e Vasconcelos recebe sua carta de sesmaria, que delimitava sua propriedade as proximidades do Guaíba. A tendência era, vinte após a saída de Laguna, seguir ocupando a margem leste do território. A ocupação das terras indígenas, a rivalidade fronteiriça com a Espanha e a perda de Colônia do Santíssimo Sacramento para os mesmos castelhanos em 1735, obriga Portugal a tomar medidas mais sérias a fim de proteger seus domínios. E neste contexto é ordenada a construção do forte de Rio Grande, como explica Weimer: “A conquista, em 1735, da Colônia do Sacramento pelos castelhanos também exigia uma ação militar efetiva. O comandante José da Silva Paes que fora encarregado de construir um sistema de fortificações para proteger a vila do Mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Maria, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 2 Para Weimer (2004) “o redobrado consumo destes animais alertou para sua extinção e este foi um dos motivos que levou a coroa portuguesa a tomar atitudes mais drásticas, no sentido da anexação dos campos sulinos que haviam se povoado com gado de raça franqueira, que havia sido introduzido através das missões jesuíticas.” (p. 94) 1 [ 67 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Desterro foi mandado com sua esquadra ao sul com o tríplice encargo de reconquistar a Colônia do Sacramento, expulsar os espanhois que haviam se estabelecido em Montevidéu e construir um forte em Rio Grande.” (WEIMER, 2004, p. 95) A ajuda enviada pelo governador paulista para dar apoio aos militares se constituiu em um núcleo urbano que viria formar a vila de Rio Grande, que segundo Weimer (2004), “se constituiria num erro estratégico, porque o tornava vulnerável”. Cristóvão Pereira de Abreu e seus homens se estabelecem na península entre a lagoa e o mar e, quando foi fundada a paróquia de São Pedro de Rio Grande, ele recebe ordens de avançar para ocupar as margens do canal da lagoa dos patos. Depreende-se, então, que a ordem da construção de um forte em Rio Grande é a gênese do povoamento no local. As origens da Vila de Rio Grande estão intimamente ligadas ao militarismo português e seu desejo de manter o território. Leonardo Marques Hortencio e Maturino Santos da Luz, em artigo apresentado no ano de 2011 apresentam também outras circunstâncias pelas quais o território do Rio Grande foi colonizado. Segundo os autores: “Para garantir a posse de Colônia e para explorar os rebanhos de gado, para abastecer especialmente Minas Gerais, Portugal incentiva a ocupação do território litorâneo situado entre Laguna e Colônia. Assim, são colonizadas as faixas entre as lagoas e o oceano, e, posteriormente, uma linha perpendicular à primeira, da foz do Jacuí até Rio Pardo.” (HORTENCIO, LUZ, 2011, p. 3) Para os autores, a briga pela posse e posterior defesa da Colônia do Sacramento e a exploração do gado xucro, que primeiramente foi criado nos primeiros aldeamentos jesuíticos e depois se debandou após as invasões bandeirantes, motiva Portugal a incentivar a colonização do continente de Rio Grande, que receberia então moradores de São Paulo, Laguna, Rio de Janeiro e de Colônia do Sacramento. Posterior a esses movimentos colonizatórios, surge outro grupo candidato a colonização e expansão do território gaúcho: os ilhéus de Açores, os Açorianos. A primeira tratativa de enviar casais açorianos à Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul remonta ao ano de 1738, quando “o Conselho Ultramarino português dirigiu-se ao rei, sugerindo que casais das ilhas fossem ao Presídio do Rio Grande de São Pedro” (TORRES, 2004), como mostra a transcrição disposta em Torres (2004): “[...] visto se achar estabelecida a fortificação do Rio Grande de São Pedro que V. Majestade se sirva querer tomar a última resolução nas consultas que o Conselho tem posto na real presença de V. Majestade para os transportes dos casais das ilhas para o mesmo estabelecimento, porque só por este meio se poderá evitar a grande despesa que precisamente se há de fazer com os transportes dos mantimentos do Rio de Janeiro por falta de cultivadores que naquelas vastíssimas terras os fabriquem, além de ficarem, estes, também igualmente servindo para a sua necessária defesa, e ser do interesse do Estado acrescentarem-se o número de povoadores, o que para crescer consideravelmente as rendas reais do mesmo Estado, assim nos dízimos das terras que cultivarem como também nos direitos das alfândegas dos gêneros a que precisamente hão de dar consumo, matéria esta que se faz digna da alta e grande compreensão de V. Majestade.”(COLEÇÃO de documentos de José da Silva Paes, 1949 apud TORRES, 2004) [ 68 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Podemos observar na citação acima mais de uma justificativa para a emigração dos ilhéus dos Açores: a agricultura, para o cultivo dos mantimentos, visando evitar despesas com o transporte dos mesmos do Rio de Janeiro ao à Vila de Rio Grande; a defesa do território do Continente, de domínio português, mas frequentemente ameaçado por investidas castelhanas; a vontade de ter aumentadas as rendas reais do Estado, através do crescimento demográfico da Vila; e por último e intimamente ligado aos três, temos o fortíssimo interesse do Estado de aumentar consideravelmente a população da Vila. Este último que seria a força motriz por trás dos demais anteriormente citados, por propiciar um contingente cada vez maior, elevando-se sucessivamente e aumentando a força produtora do Continente. Segundo o mesmo autor: “O aspecto mais destacado que impulsionou a colonização açoriana no sul do Brasil deveu-se à pressão demográfica e à concentração territorial, associada a um fraco crescimento econômico das ilhas. Além disso, o arquipélago foi assolado por vulcanismo, abalos sísmicos e cataclismas que deixaram apreensiva a população.” (TORRES, 2004) Os infortúnios naturais que assolavam a ilheta motivaram as inscrições dos casais para a viagem e impulsionaram a vinda de milhares de açorianos ao Continente de Rio Grande. A chegada dos açorianos a Rio Pardo é datada de 1753: “Fracassado o intento de por em prática o tratado, e tendo os açorianos destinados ao Rio Grande do Sul chegado em 1753, a solução foi assentá-los nas regiões já ocupadas e na colonização da margem norte do rio jacuí.” (HORTENCIO. LUZ, 2011, p. 8) E sobre o surgimento de Rio Pardo é citado pelos autores de tal maneira que: “Foi neste contexto de ocupação do vale do Jacuí que surgiu Rio Pardo, a partir da fundação da Fortaleza Jesus, Maria e José (1753), consequência do Tratado de Madrid. Com isso, Rio Pardo passou a ser centro logístico de operações militares portuguesas no processo que se iniciava de delimitação de fronteiras e da ocupação da área das Missões.” (HORTENCIO. LUZ, 2011, p. 9) Ao falarem sobre os primórdios da civilização riopardense, os autores destacam a importância de uma fortaleza militar na região para com o povoamento. Assim como aconteceu na Vila de Rio Grande, a Freguesia de Nossa Senhora do Rio Pardo é fruto de uma base militar, primeiramente construída para realização da defesa do território português e materializada na figura da fortaleza, por onde se estruturou os princípios de Rio Pardo. É importante salientar, ainda sobre a ocupação do espaço de Rio Pardo e a construção da fortaleza, que dentro de um período litigioso entre as Coroas, o Tratado de Madri, assinado em 1750 propicia a ereção da base militar. A partir do tratado, Gomes Freire de Andrade é escolhido para fazer a demarcação das novas terras portuguesas e espanholas, e para isso ele ordena a construção de dois depósitos avançados, um em Santo Amaro e outro em Rio Pardo. Essa ordem parte ainda no ano de 1751, e os depósitos serviriam para guardar mantimentos e munição durante o inverno. Pela sua localização, logo recebe ordens para tornar-se uma fortaleza, o que acontece em meados do ano de 1752. Para Macedo (1972), os primeiros açorianos assentado em Rio Pardo foram: “Alojados na rua velha, entre os arroios do Couto e Diogo Trilha, próximo de um destacamento dos Dragões ali sediado para a defesa dos acessos por terra [ 69 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS ao Alto da Fortaleza, do qual distava cinco quilômetros.” (MACEDO, 1972, p. 36) Vemos então dois modelos de colonização em Rio Pardo. O militar, através da Fortaleza Jesus, Maria e José e o açoriano, em localidades que hoje fazem parte do bairro de Ramiz Galvão. “O assentamento inicial da população, entretanto, se dá longe do forte, na atual Vila de Ramiz Galvão. Posteriormente, começa a se formar o centro definitivo da povoação, no divisor de águas, atual Rua Andrade Neves. Com a invasão espanhola em Rio Grande, o centro se desloca para a área ao redor da praça da atual Igreja Matriz, mais próxima da Fortaleza, por questões de segurança. Assim, a estrutura urbana definitiva se configura, definindo o centro histórico – atual pólo turístico da cidade.” (HORTENCIO. LUZ, 2011, p. 20) Como foi compreendido a partir da citação acima, o centro da cidade remodela-se transferindo-se para o entorno da fortificação, mas ao analisarmos a planta da Fortaleza Jesus, Maria e José, percebemos que esse centro pode ter sido – com uma parcela enorme de chance -, enviado para o interior da fortificação, onde possivelmente se localiza hoje a Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário, a praça desta igreja e uma mixórdia de casas de diferentes modelos arquitetônicos e idades dispares. Para sustentar devidamente essa afirmação, devemos identificar e analisar alguns aspectos presentes na historiografia que aborda o tema: Observando a figura 1, que é uma imagem da planta da Fortaleza Jesus, Maria e José, percebemos que a praça de armas representada na planta pela letra “A” está à frente da igreja, representada no mesmo local pela “C”, onde, segundo Laytano: “Os fieis cumpriam as suas devoções na Ermida da Sagrada Família, que existia, desde 1753, no Alto da Fortaleza, conforme tradição em Rio Pardo que fala da ermida junto do templo de Jesus, Maria, José, na zona do forte do mesmo nome.” (LAYTANO, 1946) Figura 1 Fonte: Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial (REIS FILHO, 2000) [ 70 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A citação de Dante de Laytano aqui transcrita mostra que em período anterior à invasão castelhana em Rio Grande, Rio Pardo já possuía uma atividade religiosa, composta e praticada nesta ermida, ereta desde 1753. Apropriando-nos de um trecho de Weimer (2004), compreendemos que: “Desta aproximação entre colonizadores e indígenas surgiram os primeiros aldeamentos mestiços, como as tradicionais formas de aldeias indígenas em meio à qual era erigida uma cruz e uma igreja.” (WEIMER, 2004, p. 74) Este “meio” que está presente na citação do autor, transforma-se depois em centro de diversas povoações, cada uma com características próprias, mas contendo, com bastante frequência, a confrontação da igreja com um largo: “Se a tradição medieval exigia a confrontação da igreja com um largo, a forma como se procedeu a este contato, veio a valorizar ainda mais esta solução que atribuía destaque plástico ao templo [...]” (WEIMER, 2004, p. 74) A partir destes aspectos, podemos entender as materializações da igreja e da praça como espaços centrais urbanos de uma povoação, como constata Júnia Marques Caldeira: “Na antiguidade greco-romana, a praça era o espaço urbano mais importante, o que também vai acontecer nas praças das primeiras cidades coloniais brasileiras. Nela se encontram todos os edifícios administrativos e cívicos: a casa da redenção, câmara, cadeia, praça do pelourinho. É ela o centro irradiador da cidade.” (CALDEIRA, 2007, p. 11) É provável, então, a partir destes estudos realizados, que a transferência do centro urbano de Rio Pardo, que crescia linearmente em um ponto alto da cidade, hoje conhecido como Rua Andrade Neves, tenha acontecido para dentro da fortificação, pelo já conhecido motivo da invasão castelhana em Rio Grande, em 1763, tornando o clima inseguro aos arredores de Rio Pardo. E tendo acontecido desta maneira, propiciou no local um crescimento de residências e populacional, além de comercial, sendo ligado diretamente mais tarde com o antigo centro da cidade, pela rua popularmente conhecida como Rua da Ladeira. A FORMAÇÃO DAS PRAÇAS NO BRASIL COLONIAL E NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DE RIO PARDO A partir dos escritos acima, podemos começar a tratar das primeiras praças de Rio Pardo e traçar um parâmetro para suas formações. Tendo em vista que somente duas praças são estudadas, as praças Dr. Protásio Alves, situada a frente da Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário e a Dr. Pedro Alexandrino de Borba, localizada a frente da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis. Tomando a colonização da cidade como embasamento, seus primeiros povoadores e seu traçado urbano característico, conseguiremos ao menos levantar uma hipótese sobre a formação da primeira praça citada. Analisando uma transcrição presente em SANTOS (2001), contextualizaremos o fato ordenado para o Ceará Grande com o ocorrido em Rio Pardo. Diz o seguinte: “[...] e na sua praça hei de fazer levantar o pelourinho, assinando-lhe área suficiente e também para todos os edifícios públicos, como seja para a igreja, [ 71 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS que sirva para matriz, em que se louve a Deus, casa da Câmara, cadeia e açougue, e mais oficinas públicas e para habitação de cada um dos seus moradores em particular, alinhando as ruas que há de ter, e os quadrados das suas casas com igualdade.” (REVISTA do instituto apud SANTOS, 2001, p. 57) Observando a transcrição percebemos a ligação existente entre a praça e as principais edificações da cidade. Dentre elas, destaca-se a igreja, sendo Matriz ou simples capela. Caldeira (2010) explica como aconteceu nas cidades portuguesas, o novo processo de urbanização, e que foi herdado pelas colônias portuguesas na América: “[...] com o processo de valorização estética da praça, muitas cidades tiveram a oportunidade de associar às intervenções a reconstrução de edifícios institucionais e religiosos, como Casas de Câmara, Igrejas Matrizes e Misericórdias (hospitais).” (CALDEIRA, 2010, p. 25) Complementando esta explicação, podemos citar Rossa (2001): “Os ‘rossios’, ‘terreiros’ ou ‘largos’ junto às portas das cidades, por regra sempre exteriores [...], foram gradualmente reformados em praças onde frequentemente se construiu de novo a casa da Câmara, o quase inseparável açougue e se ergueu o pelourinho. São espaços, equipamentos ou instituições velhos com novo significado, atribuições e poder, símbolos de um Estado já bem enraizado.” (ROSSA apud CALDEIRA, 2010, p. 25) No caso de Rio Pardo foi desta maneira que se deu, a partir da instalação da fortaleza, quando foi erigida a Ermida da Sagrada Família para que os soldados e seus familiares instalados no local, pudessem realizar suas orações e cultos católicos. A praça das armas, da qual já falamos em momento anterior, localizava-se, segundo a planta de 1754, a frente da ermida, ou como está registrada na planta, a frente da igreja. Segundo a mesma autora: “A configuração dos espaços de caráter religioso aparece na formação dos chamados largos, terreiros, adros e campos. Simbolizam a presença das diversas ordens religiosas existentes no contexto urbano português e que desempenharam um papel importante na colonização brasileira.” (CALDEIRA, 2010, p. 29) A presença destas ordens religiosas presentes em todos os momentos da colonização portuguesa mostra a ligação do Reino com a igreja católica, a dependência moral da população inteira e a participação da igreja nos processos de colonização, seja pela catequese dos povos indígenas nos primórdios da colonização, seja pela importância na urbanização, onde exibia-se imponente perante outras edificações que estruturavam o núcleo urbano. Weimer (2004) descreve o primeiro movimento urbanizatório de Rio Grande da maneira que “em lugar de destaque estava implantada a igreja com um alargamento fronteiro”. Trata-se, portanto, da igreja sendo confrontada pelo espaço que originaria uma praça. Da mesma maneira ocorreria em Rio Pardo. A ereção da fortaleza e a ermida que nela estava, juntamente com a praça das armas a sua frente, constituemse do urbanismo português, caracterizado na cidade por dois movimentos, o militar e o açoriano. Segundo o pesquisador Luiz Carlos Schneider, que categorizou os momentos da evolução urbana riopardense em fases: [ 72 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS “Esta fase (a primeira) vai de 1750 a 1809: há forte influência portuguesa na arquitetura. Surgem a fortaleza, o Solar do Almirante Alexandrino – primeiro sobrado da povoação -, a Casa da pólvora, a Capela de Santo Ângelo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário, a Igreja São Francisco, a Capela de São Nicolau, o porto e alguns espaços públicos como a Praça da Matriz.” (SCHNEIDER apud VOGT, ROMERO, 2010, p. 33) Portanto, essa declaração de Schneider afirma que a Igreja Nossa Senhora do Rosário e sua respectiva praça são da mesma época, reforçando a hipótese do surgimento das duas. No caso de Rio Pardo, como não houve um prévio planejamento, a praça é o marco zero da ocupação, e dentro dos costumes urbanísticos coloniais portugueses, confrontava a Ermida da Sagrada Família, primeiro templo existente, dentro dos limites da fortaleza. A forma como surgiu o largo da Igreja São Francisco não é diferente. Para falar da construção desta igreja, devemos retroceder à construção da primeira igreja Matriz da cidade, inaugurada em 1779. Vejamos Macedo: “A Matriz naquela data inaugurada era uma construção bastante rústica, de taipa de barro, que deveria servir a toda população, como de fato durante muitos anos ainda serviria, apesar do estado de ruínas bem cedo constatado pelos fieis que começavam a se organizar em irmandades.” (MACEDO, 1972, p. 31) As irmandades atuantes em Rio Pardo nos fins do século XVIII eram as seguintes: os Confrades do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores e a Ordem Terceira de São Francisco. Segundo o mesmo autor, as duas primeiras congregavam dos mesmos irmãos, por isso eram inseparáveis. A última é provável que tenha se estabelecido no estado a partir da chegada de Cristóvão Pereira de Abreu, ao que foi criada uma irmandade na localidade de Porto do Dornelles. Cita o autor: “Parece não restar dúvida de que essa imagem (a de São Francisco das Chagas) era a mesma em torno da qual se organizara a Irmandade no Porto do Dornelles com o pessoal de Cristóvão Pereira de Abreu.” (MACEDO, 1972, p. 32) A partir da transferência da imagem de São Francisco das Chagas para Rio Pardo, será estimulada a criação de uma Irmandade para a veneração do Santo, como diz Macedo (1972): “Funcionava apenas há seis anos (a Matriz) quando recebeu uma imagem de São Francisco das Chagas que, segundo a notícia, teria estimulado a criação da Ordem Terceira, ou teria sido solicitada pelos fieis que desejavam criar essa Ordem.” (MACEDO, 1972, p. 31) O arcediago Vicente Zeferino Dias Lopes narra este episódio, ocorrido nos finais do século XVIII: “Tendo sido depositada na Matriz de Rio Pardo uma grande imagem de São Francisco das Chagas mandada sair do porto por alguns Terceiros de Viamão e de outros lugares que para ali se saíram mudados, solicitaram a criação de uma Ordem Terceira a qual lhes foi concedida por provisão de D. José Joaquim Faustino Mascarenhas Castello Branco, de 17 de outubro de 1785; e por ocasião de sua inauguração o vigário Fernando José de Mascarenhas Castello Branco designou um altar especial na mesma Matriz e nele se [ 73 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS colocou a imagem.” (EMENTÁRIO eclesiástico do Rio Grande do Sul desde 1737, do. n° 13 apud MACEDO, 1972, p. 32, 33) A criação da Ordem Terceira em Rio Pardo tem, portanto, uma ligação com a mesma Ordem do Porto do Dornelles, local onde a imagem esteve por vinte anos antes de ser enviada à Rio Pardo. Em Porto do Dornelles ela motivou a criação da Ordem, da mesma maneira que aconteceu em Rio Pardo, após a sua chegada. A construção de um templo para a nova Ordem presente na cidade é requerida pelos membros desta no mesmo período em que os confrades do Senhor dos Passos requerem um templo também. Não se sabe ao certo a data em que a Ordem Terceira faz este requerimento, mas presume-se que seja em um momento próximo do requerimento feito pelos confrades, em 1797. Sobre isso, comenta o autor: “Pela mesma época a Ordem Terceira de São Francisco deve ter tratado de mudar-se da Matriz, porque em 1802 davam início ‘à execução de uma Capela num terreno doado por Antônio Borges Coelho’, doação esta confirmada e revalidada por provisão régia de 26 de junho de 1810.” (MACEDO, 1972, p. 41, 42) Em 1812 o templo é inaugurado e logo iniciam as realizações das missas aos domingos e demais festividades, no entanto, as obras ainda não tinham cessado, o que significa que a igreja ainda estava em fase de construção, como nos mostra Macedo (1972): “No entanto, o período dentro do qual foi iniciada a construção desta capelamor podemos classificar como o primeiro da vida daquele templo. O espaço que vai do ano de 1802, data da doação do terreno, a 1812, ano em que é inaugurado e nêle se inicia a celebração de missa aos domingos, devemos entender como a primeira fase da vida da igreja. Ainda inacabada estava quando recebeu as célebres imagens de madeira que ainda lá se encontram.” (MACEDO, 1972, p. 42) Ao fazer uma análise das ruas que cercam a Igreja São Francisco, Weimer (2004) explica que “parece ter sido a primeira ampliação do povoado” (p. 100). Sobre a expansão, é provável que tenha acontecido após a expulsão dos castelhanos em Rio Grande, no ano de 1776, quando irradiados por uma aura de segurança decidiram se afastar da fortaleza. Hortencio e Luz (2011) tratam da igreja como sendo consequência da praça. “Iniciada em 1802 (Capela São Francisco das Chagas), em um dos lados de uma praça criada para recebê-la, e inaugurada em 1812.” (p. 16). Diferente da Igreja Nossa Senhora do Rosário, construída em local onde se encontrava a Ermida da Sagrada Família e posteriormente a primeira Igreja Matriz, é provável que a Igreja São Francisco tenha tido um prévio planejamento espacial, levando em conta a sua praça localizada em sua frente e como disse o autor. Pegando a primeira igreja como exemplo, vimos que sua praça é consequência da ereção dos templos que ali foram edificados, inexistindo um planejamento direto entre ela e a praça, diferentemente da segunda, onde a praça foi construída para receber o templo. E a fim de estipular um período para sua construção, podemos dizer com certa segurança que se não for do último ano do século XVIII, ela é dos dois primeiros anos do século XIX. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALDEIRA, Júnia Marques. A praça brasileira, trajetória de um espaço urbano: origem e modernidade. (tese de doutorado). Campinas, 2007. [ 74 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS ________. A praça colonial brasileira. (artigo acadêmico). Brasília, 2010. COSTA, Adriana Schwindt da. Patrimônio histórico e cultural em territórios urbanos: um estudo acerca do conjunto edificado da área central da cidade de Rio Pardo – RS. (dissertação de mestrado). Santa Cruz do Sul, 2006. HORTENCIO, Leonardo Marques. LUZ, Maturino Santos da. A influência da imigração portuguesa na criação das freguesias no século XVIII no Rio Grande do Sul: o caso de Rio Pardo. (artigo acadêmico). Rio de Janeiro, 2011. LAYTANO, Dante de. Guia histórico de Rio Pardo. Porto Alegre, 1979. MACEDO, Francisco Riopardense de. Rio Pardo, a arquitetura fala da história. Porto Alegre, 1972. REIS FILHO, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo, 2000a. __________. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial: recursos para a renovação do ensino de História e Geografia do Brasil. (artigo acadêmico). Brasília, 2000b. ROBBA, Fábio. MACEDO, Sílvio Soares. Praças brasileiras. São Paulo, 2002. SANTOS, Paulo Ferreira. Formação de cidades no Brasil colonial. Rio de Janeiro, 2001. SCHNEIDER, Luiz Carlos. Patrimônio arquitetônico-urbanístico e evolução urbana: um estudo da área central da cidade de Rio Pardo - RS. 2001. 268 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Santa Cruz do Sul, 2001. TORRES, Luiz Henrique. A colonização açoriana no Rio Grande do Sul (1752-63). (artigo acadêmico). Rio Grande, 2004. VOGT, Olgário Paulo. ROMERO, Maria Rosilane Zoch (orgs.). Uma luz para a história do Rio Grande, Rio Pardo 200 anos: Cultura, arte e memória. Santa Cruz do Sul, 2010. WEIMER, Günter. Origem e evolução das cidades rio-grandenses. Porto Alegre, 2004. _____. (org.) Urbanismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1992. [ 75 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Brasil x Argentina: uma proposta de análise da rivalidade durante a década de 1970 Luciano Anderson Breitkreitz1 Resumo: Se há um consenso entre brasileiros e argentinos, é que sim, nós discordamos em praticamente tudo. É bem provável que não sejamos tão diferentes quanto o imaginário popular nos indica. Possivelmente nossas diferenças estão muito mais em um imaginário popular e em um âmbito de coletividade do que na individualidade de cada brasileiro ou argentino. Nossas diferenças parecem estar muito mais no campo das intensões do que propriamente no campo das ações, e esta é uma realidade que é bastante perceptível. Mesmo que ambos os países disputem a hegemonia econômica, política, e até mesmo bélica em alguns momentos, é necessário destacar que os dois países sempre deixaram transparecer a muito mais as suas semelhanças do que as suas diferenças. A Copa do Mundo é a maior competição do futebol e reúne os principais atletas e seleções. Centenas de profissionais de comunicação se envolvem no processo de cobertura jornalística inundando de informações os receptores apaixonados, ou não, pelo esporte bretão. A ampla cobertura da imprensa sobre a Copa do Mundo de 1978 traz diferentes abordagens do evento, que deixa transparecer a rivalidade existente entre as seleções participantes, e dentre todos os clássicos do futebol mundial, um deles nos prende a atenção: Brasil X Argentina. É papel do historiador aproximar notícias esportivas de fatos relevantes que aconteciam fora do campo de futebol. Como já foi citada em uma ampla bibliografia, a rivalidade entre Brasil e Argentina não começou no futebol, o esporte apenas absorveu os atritos sociais e políticos. Durante a realização da Copa do Mundo de 1978, os dois países passavam por um período de ditadura política. Nos dois países estavam instaurados governos militares e sem eleições diretas para presidente. Também é necessário considerar que no período a ser estudado, o governo militar exercia uma forte censura à mídia, e a solução encontrada por muitas empresas de comunicação era se associar ao governo militar para manter suas atividades. Se há um consenso entre brasileiros e argentinos, é que sim, nós discordamos em praticamente tudo. É bem provável que não sejamos tão diferentes quanto o imaginário popular nos indica. Possivelmente nossas diferenças estão muito mais em um imaginário popular e em um âmbito de coletividade do que na individualidade de cada brasileiro ou argentino. Nossas diferenças parecem estar muito mais no campo das intensões do que propriamente no campo das ações, e esta é uma realidade que é bastante perceptível. Mesmo que os países disputem a hegemonia econômica, política, e até mesmo bélica em alguns momentos, é necessário destacar que os dois países sempre deixaram transparecer a muito mais as suas semelhanças do que as suas diferenças. Fazendo um trocadilho com o esporte, o pontapé inicial pode ser dado no futebol. Na verdade a ideia de utilizar futebol como objeto de pesquisa histórica é pouco comum, porém, está longe de ser inédita 2. Também consideramos que a rivalidade, não apenas no futebol, mas em diversos âmbitos sociais, como por exemplo na política, também já foi alvo de muito estudo 3, mesmo assim, cabe neste momento, um aprofundamento de algumas questões relativas ao futebol e a rivalidade, bem como a maneira que serão abordadas neste trabalho. De fato, o futebol, como a maioria dos esportes, é excelente terreno para a construção e confrontação de juízos sobre a nação. E é justamente porque os esportes se constituem em “domínio menor” da sociedade que apresentam enorme abertura às mais diversas apropriações ideológicas. Tratando-se da atuação da seleção brasileira de futebol, chega a ser impressionante o modo como se passa, sem nenhuma mediação 1 Cronista Esportivo e Docente. Graduado em Comunicação Social (UPF), Mestre em História Regional (UPF) e Doutorando em História Regional (UPF). 2 FILHO, Mário. O Negro no Futebol Brasileiros. Mauad X. 1947. GALEANO, Eduardo. O Futebol ao Sol e à Sombra. L&MPoket. 1995. 3 FOER, Franklin. Como o Futebol Explica o Mundo. Jorge Zahar Editor. 2004. KUMPER, Saimon. Football Against the Enemy. The times. 1994. [ 76 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS considerável, da avaliação do time para a avaliação do povo. As vitórias da seleção nacional evidenciam a capacidade do povo brasileiro, enquanto as derrotas são nada menos que denúncias de sua indigência. O futebol, em si, já pode ser analisando enquanto objeto de uma pesquisa histórica, FRANCO JÚNIOR (2007) associa o surgimento do futebol na Inglaterra com a realidade histórica que o país vivenciava. Para o autor é impossível dissociar o surgimento do futebol com a revolução industrial, já que ambos baseiam-se na competição, secularização, produtividade, igualdade de chances, supremacia dos mais hábeis, especialização de funções, qualificação de resultados e fixação de regras. FRANCO JÚNIOR (2007) cita o historiador Robert Levine ao definir o esporte como uma “metáfora da dinâmica social”, pois a regulamentação do esporte faz parte de um processo que visa dominar o corpo, submetendo-o a um poder socialmente instalado. Desta forma surgem o capitão do time, o presidente do clube, o representante da federação, conselho disciplinar e confederação, constituindo micro-sociedades à imagem e semelhança da macro-sociedade que as cria e acolhe. WISNIK (2008, p. 75-76), considera essencial entender que, ao dar forma lúdica ao mito da concorrência universal, o futebol criou o campo simbólico onde essa concorrência muda de sentido em dois aspectos. O primeiro no campo social, já que é apropriada por agentes que não teriam oportunidade no campo da competição econômica (operários ingleses ou brasileiros pobres, por exemplo). O segundo no campo simbólico, já que a concorrência se dá em código corporal e não verbal, irradiante de sentidos não determinados, desfrutando de um estatuto correspondente ao da autonomia da obra de arte. ALVES (2006 p.33 a 37) expõe o futebol sob o ponto de vista do torcedor, onde sua a maior motivação por apoiar incondicionalmente um time está no prazer de ver o adversário derrotado. Ele propõe uma analogia entre o futebol e o sadismo, onde a maior alegria do torcedor é, de alguma maneira, humilhar o oponente. O autor faz uma reflexão sobre o cotidiano de qualquer pessoa, que se diverte com o sofrimento alheio, citando como exemplo a televisão, onde os desenhos animados têm no seu ápice e ponto mais engraçado quando o vilão “quebra a cara”, mas não de forma definitiva, já que na cena seguinte ele está completamente reestruturado para novamente fazer o espectador se divertir com o mesmo mecanismo. Esta lógica é aplicada inteiramente ao futebol, onde o torcedor busca matar moralmente o adversário, mas tendo consciência que na rodada seguinte ele vai estar completamente recuperado para ser novamente alvo do ataque e da diversão. Se, por um lado, o prazer de superar um adversário é uma das grandes forças atrativas no futebol, por outro, a derrota torna-se um grande martírio. A rivalidade, independente do resultado em campo, exerce uma influência direta no cotidiano das pessoas e na sua autoestima, se referindo a questões que extrapolam o campo. Uma derrota em um clássico, por exemplo, e é o caso de Brasil e Argentina, define o rumo iniciado e norteado nos bastidores das seleções. Ao utilizar o futebol como um conceito de guerra simbólica, baseado em FRANCO JUNIOR, (2007 – P. 235 a 237) considera-se que toda a sociedade consente alguma forma de violência considerada legítima (prisão, tortura, execução, sacrifício) para controlar violências ilegítimas (roubo, coação, assassinato). Se muitas culturas aceitaram ou aceitam a ideia de sacrifício ritual de alguns indivíduos, todas concordam explicita ou implicitamente com a ideia da guerra como sacrifício coletivo. A morte de certo numero de pessoas, oferecidas aos deuses ou à sociedade, significa a sobrevivência das outras. A guerra é síntese e ápice dessa crença. Se a guerra, conforme a célebre definição de Carl Von Clausewitz, é “continuação – ou prevenção – da política por outros meios”, talvez não seja casual que nas culturas hindus, islâmicas e judaicas, que aceitam o sacrifício ritual, o futebol não tenha a mesma difusão que no Ocidente Cristão. Futebol é guerra simbólica. A linguagem usada nele tem expressões significativas, como “matar a bola”, “matar a jogada” ou “matar o jogo”. O jogador encarregado de fazer a maior parte dos gols é o “artilheiro”, o “matador”. O representante do time junto ao árbitro é conhecido por uma patente militar, “o capitão”. Certos futebolistas, devido a disposição em campo ganham o apelido de “guerreiro”, outros devido a sua força física são chamados de “tanque”. A própria partida é o “confronto”, o “duelo”, o “embate”. É o treinador que, como um general, mantém a tropa em boas condições de vencer. É ele quem determina as regras ao grupo, quase sempre enfatizando as virtudes militares da camaradagem e disciplina, mantendo a equipe unida na concentração (termo de sentido militar). O treinador, da mesma forma que o general, é [ 77 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS quem define a tática a ser empregada. É aquele que escolhe a disposição de seus homens no terreno de jogo e as ações conjuntas que eles devem executar pra melhor defender e atacar (mais uma vez, vocábulos militares). Na formulação mais elementar, o futebol é o jogo no qual quem está com a bola ataca, quem não está se defende. O dado fundamental é a ocupação neste espaço. Analisando o futebol como uma guerra simbólica, não é de surpreender que uma das principais rivalidades do esporte mundial, seja entre Brasil e Argentina. Pode-se entender que, as divergências entre os dois países, acabe convergindo para uma solução simbólica entre as seleções dos dois países. Brasil e Argentina tem um histórico de aproximação e afastamento bastante constante no âmbito político, que pode ser observado desde o processo de formação dos dois países. CERVO (1994, P.14) entende que as relações internacionais são orientadas por dois sistemas de determinação, nos quais se localiza parte da explicação desejada, inicialmente aquele que age na origem correspondente a determinadas forças históricas que são fatores de propulsão de acontecimentos, o sistema da causalidade, e aquece que age no fim correspondente aos desígnios, ambições, objetivos e metas que as sociedades, os Estados e suas lideranças consignam como incumbências da política, o sistema de finalidade. RECKZIEGEL (1996), considera que a característica maior do relacionamento brasileiro-argentino, mesmo que intercalado por momentos de amizade, ou até mesmo certa indiferença, foi o constante estado de rivalidade. Muitas vezes não oficialmente declarado, o antagonismo permeou essas ligações na medida em que suscitou desconfianças e prevenções mútuas. Esse contexto de rivalidade foi animado, antes de qualquer coisa, pela pretensão de liderarem as nações do bloco sul-americano, ou seja, pelo desejo de hegemonia regional. (P.30). Procurando as raízes dessa disputa, RECKZIEGEL (1996) se reporta, ao século XIX, pois ao longo dele, o Império brasileiro e os governos argentinos manobraram em busca de influência junto aos pequenos Estados limítrofes, notadamente o Uruguai, Paraguai e Bolívia: Observamos, já em 1820, o choque entre os dois países pela posse da Cisplatina; em 1852, o Brasil moveria guerra contra o ditador portenho Rosas, acusado de tentar restabelecer o Vice-Reinado do Prata, espécie de condomínio regional, liderado pela Argentina e que incluía Paraguai, Uruguai e Bolívia (...) Um outro episódio nas relações Brasil-Argentina , no final do século XIX, configurar-se-ia na disputa pelo território de Palmas de Missiones. O rumoroso caso, que envolveu dois renomados chanceleres, Zeballos e visconde de Rio Branco, acabou sendo arbitrado pelos Estados Unidos, que se pronunciaram favoravelmente ao Brasil (...) Os atritos entre os dois países voltaram a ocorrer no início do século XX, evidenciando um dos momentos de maior tensão nessa relação. Os incidentes iniciaram-se em 1906, com as acusações constantes do ministro do Exterior argentino, Zeballos, a respeito do que ele considerava armamento excessivo da Marinha brasileira, o que viria a contrariar o princípio de equivalência naval entre as duas nações. Zeballos não poupava críticas ao militarismo e ao imperialismo brasileiros. Note-se aí que o chanceler argentino nada fazia de original uma vez que essas posturas já haviam sido invocadas no século anterior por Alberti, um intérprete do ódio e da desconfiança ao Brasil, (Reckziegel P. 31 e 32). Contudo, dentre os fatos que mais chamam a atenção (RIECKZIEGEL 1996) nas relações de rivalidade entre o Brasil e a Argentina, um em especial é considerado o ápice nessas relações de conflito: No ano de 1908, no episódio do telegrama n° 9, quando a chancelaria Argentina interceptou um telegrama cifrado de Rio Branco à delegação brasileira no Chile; tendo-o decifrado, mandou publicá-lo na imprensa portenha de forma deturpada, dando-lhe caráter de intriga contra a Argentina. Rio Branco, respondeu publicando o Código Diplomático Brasileiro e o texto original do telegrama para demonstrar que a versão divulgada na Argentina fora falsa. Consequentemente. Em comentário sobre o acontecido, Rio Branco diria [ 78 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS depois: “Mais do que nunca é preciso que nos ponhamos em estado de defesa contra esse vizinho, desde que loucos como Zeballos ali podem agitar a opinião”. (P. 32 e 33). Na década de 1940, surgiria um outro foco de tesão entre Brasil e Argentina, cujo ponto-chave eram as pretensões imperialistas dos Argentinos. Em 1943, um Grupo de Oficiais Unidos (GOU), sob a liderança de Juan Domingo Perón, lançou um manifesto no qual especificava que seu objetivo era a formação de um bloco de regimes, semelhante ao dos países hispano-americanos vizinhos, a fim de isolar o Brasil e de combater a influência norte-americana na região. RECKZIEGEL (1996. P. 35) cita uma passagem do documento: “uma vez que o Brasil caia, o continente sul-americano será nosso”, alusão inconfundível ao entrave que o Brasil representava aos planos hegemônicos argentinos. Essas intenções, contudo, tiveram de ser contidas, especialmente em função da Guerra Mundial, que obrigou a Argentina a estabelecer relações comerciais com o Brasil de forma mais intensa uma vez que suas fontes tradicionais de importação da Europa estavam bloqueadas. Contudo, não pode-se analisar a rivalidade entre Brasil e Argentina somente a através dos meios oficiais, sejam políticos ou diplomáticos. RECKZIEGEL (1996. P. 36), lembra que em alguns períodos, a diplomacia oficial esforçava-se para manter as relações governamentais em níveis amistosos, seguindo a tática inaugurada por Rio Branco. Para demonstrar esse procedimento, parece-nos adequada a expressão harmonia oficial, utilizada por Hilton (1983), que sugere a existência de questões que ocorriam à margem das relações diplomáticas propriamente ditas. A década de 1950, por exemplo, inaugura um novo capítulo na história da rivalidade BrasilArgentina. Os anos que coincidiram com os mandatos de Vargas e de Perón seriam de uma tensão tão exacerbada que, talvez, somente encontrem similaridade na época de Rio Branco e de Zaballos. Numa primeira análise, esse período se apresentaria para as relações entre ambos os países como de aparente simetria. De um lado, os dois passaram a dispor dos requisitos básicos que lhe permitiram rápidos processos de industrialização, ou seja, manterem fortes vínculos de dependência com o sistema internacional. Tanto Brasil quanto Argentina, foram capazes de realizar um processo de substituição de importações durante a década de 1930 que, se mantido em um longo prazo poderia conduzir a uma transformação estrutural em suas economias. Por outro lado, ambos se viram direta ou indiretamente, envolvidos na inserção da América Latina em um projeto político internacional; no que se refere ao aspecto político, a orientação populista-nacionalista e a estrutura pareciam também aproximá-los. Evidentemente, essa similitude político-ideológica dos governos Vargas e Perón não significou, de forma alguma o abandono de uma postura competitiva entre as nações. RECKZIEGEL (1996. P. 38) esclarece que ao lado das semelhanças, haviam diferenças fundamentais, sobretudo no que diz respeito à direção dada à política externa de cada governo. FROTA (1991) ao discutir as relações entre Brasil Argentina, considera a origem da rivalidade tem origens no século XV, remetendo a um período histórico anterior, inclusive, ao chamado descobrimento do Brasil, em 1500. Nos anos finais de 1400, quando Espanha e Portugal discutiam a divisão das terras localizadas a oeste da Europa: Quando – no século XV – Portugal e Espanha iniciaram o ciclo expansionista dos descobrimentos, os interesses das duas coroas geraram conflitos, procurando as suas diplomacias resolver as questões jurídicas através dos respectivos títulos das possessões descobertas. Recorreu-se às bulas papais como a “Inter Coetera” (1493), pela qual, o meridiano divórcio de cem léguas a oeste de Cabo Verde, estabelecida limites entre as possessões lusas e espanholas. Pelo Tratado de Tordesilhas (1494), ficou estabelecida a medida de 370 léguas a oeste da linha traçada anteriormente. Assim, quando Cabral chegou ao Brasil, já eram portuguesas as terras descobertas. As correntes colonizadoras lusas não tardaram a encontrar resistência por parte de corrente espanhola, que efetuava também a ocupação do seu espaço territorial. [ 79 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Descoberto o rio da Prata pelos espanhóis, o rei português, D. João III, dividiu o seu domínio em doze Capitanias Hereditárias dentro de uma estratégia inicial de contenção de espaço geopolítico. A implementação dessa estratégia já evidenciava os desígnios de incorporação daquele rio ao território português. Os interesses brasileiros no rio da Prata, no século XIX, representaram a continuidade da política portuguesa, cuja expansão em direção ao Prata foi assinalada com a fundação da Colônia do Sacramento. Os efeitos dessa política, contudo, só se fizeram notar em toda a sua extensão, após o período de ruptura da união das duas coroas peninsulares, iniciado sob Felipe II. (FROTA P.23) O período do Brasil Colônia também nos mostra algumas situações bastante relevantes, que ajudam a fomentar a rivalidade entre os dois países, e em alguns momentos com tentativas bastante evidentes de impor a soberania de Portugal às terras que pertenciam aos espanhóis. FROTA (1991). Desta, em especial o período em que a Coroa Portuguesa transferiu-se para o Rio de Janeiro: Com a invasão napoleônica na Península Ibérica, deu-se a transferência da corte portuguesa e a elevação do Brasil à condição de Reino Unido de Portugal e Algarves (1808 – 1821). A situação brasileira com essa transformação, foi ímpar no panorama americano de então. Instalada a Corte no Rio de Janeiro, foi encaminhado ao Cabildo de Buenos Aires um pedido do exame da conveniência de que a infanta de Espanha, Carlota Joaquina, fosse reconhecida... “como cabeça do governo no Rio de Janeiro e a seu marido como protetor natural dos direitos do rei espanhol”. O Cabildo, habilmente negou tais pretensões, preferindo manter-se fiel ao rei da Espanha. Tentativa similar deu-se mais tarde com a volta de D. João VI a Portugal. A ocupação portuguesa da Banda Oriental contrariava a Espanha, assim num ato de “doble fundo”, reconheceu-se as Províncias Unidas do Rio da Prata, ou seja, desejou-se legitimar a forma de anexar, reconhecendo-se a identidade da nova nação. Foram as ambições territoriais lusas que levaram a Espanha a preparar a expedição capitaneada por D. Pedro de Mendoza (1953). Deu-se então a primeira fundação de Buenos Aires, numa tentativa de impedir a fixação portuguesa no Prata. As lutas e rivalidades na região foram, pois, o produto da confrontação luso-espanhola pelo controle desse ponto chave na América do Sul. (FROTA P. 24 e 25). Contudo, não há como dissociar a influência dos fatores geopolíticos nas relações Brasil e Argentina. Em relação às políticas externas dos dois países, sempre houve um país que buscou a manutenção do equilíbrio na balança de poder entre Brasil e Argentina. FROTA (1991) nos traz o exemplo do caso ocorrido no ano de 1908, quando o secretário norteamericano Root propôs ao Brasil a divisão de seu couraçados com a Argentina, negando-se Rio Branco a considerar tal proposta. Ao contrário dos desejos norte-americanos, no ano seguinte, o parlamento brasileiro aprovou uma resolução pela qual acrescentaria além dos três navios já encomendados, um dreadnought e um cruzador a cada 3 anos, além de destroieres, submarinos e um total de oito dreadnought. As rivalidades impediriam a formação de um bloco dos neutros atuando contra os interesses norteamericanos. A linha de política exterior norte americana para com a Argentina não foi mais dura, em função do alvorecer da 1ª. Guerra Mundial, Pelo seu lado, a Argentina Retribuiria com animosidade a essa política. A atuação política exterior brasileiro-argentina, no curso da primeira metade do século XX, foi marcada por acontecimentos fundamentais para sua compreensão. No plano externo, tivemos a Primeira Grande Guerra, a crise mundial, e a Segunda Grande Guerra; no plano regional, a guerra do Chaco, a questão do ABC e, no [ 80 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS plano interno, a subida de Getúlio Vargas e de Peron ao poder. As rivalidades entre Brasil e Argentina continuaram existindo, sendo um dos fatores de peso nas respectivas estratégias de política exterior de ambos os países. (FROTA P. 55 e 56). Contudo, houve um período especial nas relações de divergências entre o Brasil e Argentina ficaram um pouco mais evidente. A década de 1970, em que os dois países tinham como sistema de governo ditaduras comandadas por militares, as duas nações também passaram por período bastante conturbados. No âmbito do futebol, o Brasil em 1970 conquistava a Tricampeonato Mundial, no que foi destacada pela mídia nacional como uma das maiores seleções de todos os tempos. Mas foi neste período que a Argentina ascendeu para o cenário futebolístico mundial, não apenas promovendo uma Copa do Mundo em seu território, mas também conquistando seu primeiro título, e desta forma ameaçando quebrar a hegemonia que o Brasil havia conquistado na América do sul desde 1958. O aumento na rivalidade entre os dois países não se refletiu apenas dentro de campo MELLO (1996 P.145 e 146), enfatiza que a rivalidade entre Brasil e Argentina na década de 1970 atingiu, sua máxima intensidade com o conflito político-diplomático que teve como ponto focal o problema da compatibilização das represas de Itaipu e Corpus. A acirrada polêmica entre as potências desenvolveu-se em dois níveis distintos: um ostensivo e oficial, o outro camuflado e oficioso. O primeiro dizia respeito aos óbices técnicos e diplomáticos que envolviam a construção de ambas as represas em um rio internacional contíguo e de curso sucessivo; o segundo, abrangia uma dimensão estratégica e geopolítica com repercussões no equilíbrio de poder regional. De acordo com a posição da diplomacia argentina, o empreendimento brasileiro-paraguaio, situado a montante do rio Paraná, deveria estar subordinado a um mecanismo de consultas prévias entre as partes interessadas como forma de evitar prejuízos sensíveis e permanentes à futura hidrelétrica de Corpus, um projeto argentino-paraguaio a ser edificado 200 quilômetros a jusante de Itaipu, no trecho fluvial pertencente em condomínio aos dois países. MELLO (1996 P.148) destaca que os argentinos temiam também que a compatibilização com Itaipu resultasse em prejuízos insanáveis à rentabilidade econômica de Corpus, que com isso perderia seu poder compensador como uma das peças-chave do tabuleiro platino. O valor estratégico de Corpus estava exatamente em seu papel de contrapeso à presença de Itaipu: o projeto binacional argentino-paraguaio poderia reequilibrar parcialmente a balança de poder e neutralizar relativamente a preponderância brasileira no Paraguai por meio do incremento da parceria argentina com o país guarani, que retomaria a pendularidade política em relação aos poderosos vizinhos. Candeas (2005) avalia que as aproximações entre Argentina e Brasil ocorreram até os anos 70 de forma irregular – perpassando regimes tão diversos como os de Urquiza, Mitre, Roca, Sáenz Peña, Justo, Perón e Frondizi – e se intensificaram desde os anos 80 – passando igualmente por governos tão díspares como os de Videla, Alfonsín, Menem, Duhalde e Kirchner. Essa constatação sugere que a natureza do relacionamento com o Brasil passou de conjuntural a estrutural, independentemente do regime político (ditadura, democracia) ou da situação econômica (inflação, crise, estabilidade, crescimento). Por outro lado, é evidente que o aprofundamento da democracia e do desenvolvimento econômico fortalece estruturalmente a relação bilateral, no sentido de maior integração. Porém, o autor também destaca que no período de 1962 a 1979 há um momento onde a rivalidade acaba ficando mais evidente. O “espírito de Uruguaiana”, que se tratava de uma cooperação mútua expressa na Declaração de Uruguaiana assinada pelos presidentes Jânio Quadros e Arturo Frondizi em 1961, não sobrevive ao ciclo de regimes militares na Argentina e no Brasil. Ainda durante as presidências civis de Guido (1962-1963) e Arturo Illia (1963-1966), aprofunda-se o clima de convulsão política com hostilidades entre as próprias Forças Armadas. A Argentina, dominada por setores de direita, aprofunda o alinhamento com os Estados Unidos: condena Cuba, envia navios para a quarentena estabelecida na questão dos mísseis e apoia a intervenção na República Dominicana. Apesar disso, o nacionalismo conserva elementos da “autonomia heterodoxa”: Certamente não é o único ponto de atrito entre a diplomacia de Brasil e Argentina, como pode ser visto anteriormente, mas a questão de Itaipu é uma questão central na relação entre os dois países. O interesse estratégico na região onde se localizada a hidrelétrica de Itaipú é de longa data, como relata Lopes [ 81 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS (2013), que destaca que desde a chegada à América pelos europeus, a região da Bacia hidrográfica do Rio da Prata sempre foi considerada estratégica para o desenvolvimento de toda a região; a bacia possui a segunda maior extensão territorial de toda a América Latina (com mais de três milhões de km quadrados), atrás somente da bacia amazônica; os principais rios da bacia são: o Paraná, Paraguai e o Uruguai, sendo que todos esses nascem em território brasileiro e convergem na fronteira uruguaio-argentina. Na região vivem mais de 80 milhões de pessoas, divididos entre os cinco países que compõem a bacia: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. O Paraguai é o único país no qual 100% do território nacional está inserido na macro região da bacia, sendo esse percentual na Argentina de 37%, na Bolívia 19%, no Brasil 17% e no Uruguai 80%. Apesar da totalidade do território Paraguaio pertencer à macro região, os dois eixos de poder são da Argentina e do Brasil. enorme potencial energético da bacia também é de extrema importância. Formada pelas sub-bacias dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai e por seus respectivos afluentes, o Rio da Prata é de fundamental importância para toda a bacia, pois é um estuário fruto do encontro dos rios Paraná e Uruguai com o Oceano Atlântico; tem mais de 300 km de comprimento, largura que chega a 200 km e descarga média de 23.300 m3 por segundo, perdendo na América do Sul somente para a do Amazonas. Importante notar que a maior parte da população argentina vive na região conhecida como vertente atlântica, inclusive Buenos Aires está às margens do Rio da Prata. O Paraguai inteiro é influenciado pelos seus grandes rios; além de seu território estar inserido sob um dos maiores aquíferos do mundo, o Guarani, o país está dividido ao meio pelo Rio Paraguai, que além de delimitar parte da fronteira com o Brasil ao nordeste e a Argentina ao sudeste, atravessa a capital Assunção e divide o território nacional em duas partes: oriental e ocidental. Os conflitos bilaterais, causados majoritariamente por questões fronteiriças, foram se intensificando e na década de 1960 foi constituída a Comissão Mista de Limites e Caracterização da fronteira BrasilParaguai; então o governo brasileiro passou a cogitar a realização de obras do aproveitamento hidrelétrico no Salto Grande de Sete Quedas, o que a princípio desagradou o governo Paraguaio. Diante da impossibilidade do consenso através da comissão e a iminência de mais um conflito armado entre Brasil e Paraguai, negociações diplomáticas foram iniciadas e uma reunião entre os ministros das Relações Exteriores de ambos os países ocorreu em Porto Presidente Stroessner e Foz do Iguaçu, nos dias 21 e 22 de Junho de 1966, o resultado dessa reunião foi uma ata que ficou conhecida como Ata de Iguaçu. Uma vez que a área de litigio seria alagada, o litigio deixa de existir. O que a ata também estabelece,é que nem Brasil, nem Paraguai podiam se aproveitar dos recursos de forma unilateral. Além disso, toda a energia elétrica que eventualmente fosse produzida na região seria igualitariamente dividida em partes iguais para os dois países. Claro que havia muitos aspectos por trás da ata e da ideia de Itaipu, desde questões práticas, como necessidade de aumentar o potencial elétrico do Brasil e Paraguai, seja para ampliar a preponderância Brasileira sob o Paraguai e consequentemente sob toda a Bacia do Prata, entretanto o chanceler Gibson Barboza afirmava que o principal motivo era encerrar um conflito fronteiriço entre Brasil e Paraguai na região conhecida como Sete Quedas. Apesar da Ata das Cataratas ter diminuído os conflitos fronteiriços naquele momento, já não dava mais todas as respostas necessárias para encerrar definitivamente, e o questionamento em relação de onde seria exatamente a fronteira continuava sendo feito pelo Paraguai. Obviamente, ao perceber essa aproximação do Paraguai com o Brasil e as futuras intenções e possibilidades propiciadas pelo aproveitamento hidrelétrico, a Argentina não reagiu bem e tentou de diversas formas cancelar ou ao menos ter algum grau de ingerência acerca disso. Como se sabe, a partir de meados do séc. XIX, a história das relações bilaterais de Argentina e Brasil foi marcada por intensas disputas de poder sobre a região. Foram muitas as hipóteses alarmistas defendidas por Buenos Aires, a mais conhecida era de que Buenos Aires iria submergir; mas havia outras como que parte do território argentino e do Cone Sul viraria um grande deserto, que o lago Itaipu seria assoreado em questão de meses, etc. Por vezes a campanha contra da Argentina atrapalhou no financiamento do projeto, por parte do Banco Mundial, bem como na credibilidade internacional do projeto. [ 82 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A Argentina firmara com o Paraguai o Tratado para a construção da usina hidrelétrica de Corpus, nos mesmos moldes de Itaipu (a Argentina acreditava que o empreendimento seria capaz de reequilibrar a balança de poder e neutralizar a preponderância brasileira); temia que a geração de energia de Corpus fosse comprometida, dependendo da altura da barragem e da água liberada, produzindo um enorme prejuízo financeiro. Além disso, do ponto de vista geopolítico o Governo Argentino temia que Itaipu desenvolvesse e influenciasse a região de tal forma que o frágil nordeste argentino, região de missiones, virasse um satélite brasileiro, assim como as regiões paraguaias limítrofes com o Brasil (MELLO, 1996). Brasil e Paraguai tiveram que se utilizar de vários instrumentos diplomáticos e jurídicos, com muita habilidade e sutileza, para não criar uma crise política na região e conseguir dar continuidade ao projeto, diante das investidas contrárias da Argentina. Pelo fato do Rio Paraná ser um elemento importante na bacia do Prata, ficou acordado entre as três partes que Brasil e Paraguai informariam previamente a Argentina acerca das decisões e possíveis intervenções na região; aspecto esse em acordo ao Tratado da Bacia do Prata, proposto pela Argentina e assinado por todos os países que compõem a Bacia. A construção de uma usina hidrelétrica tão próxima a gigante Itaipu traria consigo algumas implicações técnicas. O represamento e o controle artificial do fluxo de águas, feitos por Itaipu, poderiam afetar diretamente o potencial gerador de Corpus, que fica a jusante de Itaipu, e de acordo com especialistas argentinos a usina só seria economicamente viável com uma cota de água entre 105 e 115 metros acima do nível do mar; o fato das águas do Rio Paraná serem águas internacionais que compõem a macrorregião da Bacia do Prata implica na posição argentina de defesa do princípio de indivisibilidade dos recursos naturais compartilhados regulamentado pelo direito internacional. Todos esses argumentos foram largamente utilizados pela diplomacia Argentina que sustentava o princípio de consulta prévia acerca de Itaipu, ou seja, todos os passos a serem tomados por Brasil e Paraguai relativos à Itaipu deveriam passar por uma consulta prévia da Argentina. O Brasil alegava que esse princípio restringiria a sua soberania, uma vez que todas as decisões deveriam ser submetidas ao julgamento de outro Estado. E juridicamente alegava que não havia qualquer impedimento para a utilização dos rios no trecho sob sua jurisdição, a menos que seu uso pudesse causar grandes danos em territórios alheios, o máximo que a diplomacia brasileira se dispunha a fazer era a facilitação na obtenção de informações e uma cota máxima de 100 metros. O conflito entre Argentina e Brasil, que se agravara após a assinatura do Tratado de Itaipu e a consumação do projeto de Corpus, ganhava ares militar com demonstrações de poder pelas forças armadas e constantes debates acalorados pelas impressas locais, dentro das possibilidades, visto que a censura barrava grande parte das opiniões e/ou informações que não lhes eram interessantes; importante ressaltar que nesse período, ambos os países consideravam a possibilidade de desenvolverem tecnologias capazes de futuramente produzir armas nucleares, fator esse que contribuiu ainda mais para a possibilidade de haver um confronto armado. A necessidade argentina de produzir mais energia para crescer economicamente era real e não há dúvidas de que uma usina como Corpus contribuiria de forma determinante para tal fim; entretanto, diante de todo o histórico de conflitos e a oposição Argentina declarada à Itaipu, é possível afirmar que as convicções e necessidades geopolíticas influenciaram mais que a necessidade econômica na elaboração do projeto. Itaipu, sem nenhuma ingerência Argentina seria, portanto, o golpe decisivo para a consolidação da preponderância brasileira sob o Paraguai, além de possibilitar ao Brasil o apossamento da água requerida pelos projetos argentinos e imiscuir-se no Uruguai, país até então considerado como integrante da área de influência de Buenos Aires. Lopes (2013) avalia que com um posicionamento mais equânime diante do impasse, a Argentina, em Março de 1977, propõe a negociação acerca do aproveitamento hidrelétrico da região de forma tripartite (Argentina, Brasil e Paraguai). O Brasil não aceita, uma vez que considera um retrocesso, por estar incluso o princípio da consulta prévia, então o chanceler Azeredo da Silva afirma que aspectos referentes às cotas de Itaipu devem ser decididos entre Brasil e Paraguai e àqueles referentes às cotas de Corpus, entre Argentina e Paraguai, com a prerrogativa que nenhum dos empreendimentos cause inundação ou destruição em território alheio, e mais uma vez argumenta que é simplesmente uma questão de soberania. [ 83 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Para Bandeira, (1993, P. 236), o que, na realidade, o Governo de Videla pretendeu, consciente de que a relação de poder com o Brasil, na Bacia do Prata era desfavorável à Argentina, foi aumentar sua capacidade de negociação e, de certo modo, impor uma política de equilíbrio. Assim, durante a VIII Reunião dos Chanceleres da Bacia, em Brasília (7 a 9 de dezembro de 1976), o Almirante Cezar Augusto Guzetti, na qualidade de Ministro das Relações Exteriores e Culto, propôs uma negociação global entre os dois países, sobre as diversas questões do seu relacionamento bilateral, entre as quais, segundo indicou, o comércio, a construção da ponte sobre o rio Iguaçu, os transportes marítimos (fretes), a cooperação técnica, inclusive no campo nuclear, a pesca e o trigo, bem como o aproveitamento hidrelétrico dos rios Uruguai (Garavi, San Pedro e Roncador) e Paraná (Corpus e Itaipu). Azeredo da Silveira aceitou discutir todos os pontos, exceto o do aproveitamento do rio Paraná, sob a alegação de que se tratava de uma decisão de Governo e não da Chancelaria. O clima para o diálogo, entretanto, não se restabeleceu. Brasil e Argentina se olharam com profunda suspeita. As acusações mútuas de manter "interesses" imperialistas em ambos os lados da fronteira levaram a "hipóteses nacionais de conflito" que, ao longo do tempo, provaram nunca se concretizar. Tantas suspeitas, às vezes fundadas, muitas outras vezes, apenas imaginárias, levaram, no entanto, a que as duas nações se envolvessem em disputas estéreis e se tornassem absorvidas pelo isolamento mútuo. O Brasil e a Argentina, os dois maiores e mais importantes países da América do Sul, foram vistos durante toda a sua história como rivais quando, de fato, seu único destino possível é seria parceria para um desenvolvimento mútuo. Separado, a história ensina e demonstra, eles foram uma presa fácil para os projetos de turno imperiais e sua capacidade de interagir com as grandes potências foi escassa se não fosse nula. Se, como resultado dessa fútil suspeição, as duas nações proclamassem ofensas e até danos, hoje é urgente rejeitá-las, lançando no esquecimento velhas "escaramuças" da história. Retornando ao exemplo da França e da Alemanha, que forjaram a Europa unificada, infligiram terríveis danos uns aos outros e ainda assim esqueceram-se de dar lugar à única possibilidade que lhes deu história: realizar a unidade européia. Contudo, diferentemente do que aconteceu na Europa, os dois maiores países da América do Sul, que viram na década de 1970 uma profunda superfície de atrito, partiram para a década de 1980, a exemplo do contexto sócio/cultural global, um esforço de aproximação mútua. Esforço que ao longo das décadas mostrou-se ineficaz, entre outros fatores pelo desconhecimento mutuo e pelo sentimento de rivalidade já enraizado nas teias de representações das sociedades dos dois países. REFERÊNCIAS ALVES, Rubem. O Futebol Levado a Riso. Lições do Bobo da Corte. Campinas, Versus Editora, 2006. BANDEIRA, Luis Alberto Moniz Bandeira. Estado Nacional e Política Internacional na América Latina: O Continente nas relações Argentina – Brasil (1932 – 1992). 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Pretende-se aqui aferir dados e características como partido político, profissão, grau de instrução, filiação, idade, local de nascimento, sexo, classe social, etnia, religião e etc. Desse modo, buscar-seá compreender, por meio do estudo coletivo de suas vidas, compreender seus interesses, ações políticas, ideologias e discursos. Entende-se que elite consiste naquelas pessoas que ocupam cargos chave, o topo, na estrutura de poder ou de distribuição de recursos. Nesse sentido, têm-se essas pessoas como os dirigentes, os abastados, os privilegiados, grupos que dispõe de poderes, influência e privilégios (HEINZ, 2006, p. 7).Para tanto, será utilizado o método prosopográfico ou biografias coletivas que, segundo Flávio Heinz (2006, p.9): “A prosopografia, ou o método das biografias coletivas, pode ser considerado um método que utiliza um enfoque de tipo sociológico em pesquisas históricas, buscando revelar as características comuns (permanentes ou transitórias) de um determinado grupo social em dado período histórico. As biografias coletivas ajudam a elaborar perfis sociais de determinados grupos sociais, categorias profissionais ou coletividades históricas, dando destaque aos mecanismos coletivos – de recrutamento, seleção e de reprodução social – que caracterizam as trajetórias sociais (e estratégias de carreira dos indivíduos)”. Através do estudo coletivo das biografias dos atores da política do município, será possível, então, identificar e analisar seus interesses, discursos, ideologias, ações e posições políticas. Bem como, tentar responder a questões fundamentais: “quem são?; de onde vêm?; o que fazem?; como pensam?” (HEINZ; CODATO, in: CODATO: PERISSINOTO orgs, 2015, p. 256). O estudo procurará analisar o perfil das elites, verificando se houve ou não mudanças significativas ao longo do tempo. Pretende-se aqui estudar o perfil das elites políticas do município de Passo Fundo entre 1945 e 2016. Elite essa que, segundo Gatti, “estava diretamente ligada a economia e constituía-se assim, de fazendeiros, comerciantes, médicos e advogados.” (GATTI, 2008, p.16). Para Flávio Heinz, a elite consiste naquelas pessoas que ocupam cargos chave, o topo, na estrutura de poder ou de distribuição de recursos. Nesse sentido, têm-se essas pessoas como os dirigentes, os abastados, os privilegiados, grupos que dispõe de poderes, influência e privilégios (HEINZ, 2006, p. 7). Ainda, define as elites como produto de uma seleção social ou intelectual (CHARLE, 1994, p.46, apud: HEINZ, 2006, p. 8). Para Busino, elite faz referência a uma minoria que dispõe, em uma sociedade determinada, em um dado momento, de privilégios decorrentes de qualidades naturais valorizadas socialmente (por exemplo, a raça, o sangue etc.) ou de qualidades adquiridas (cultura, méritos, aptidões etc.). O termo pode designar tanto o conjunto, o meio onde se origina a elite (por exemplo, a elite operária, a elite da nação) quanto os indivíduos que a compõem, ou ainda a área na qual ela manifesta sua preeminência. (BUSINO, 1992, p. 9, apud: HEINZ, 2006, p. 7). O intervalo temporal aqui proposto contempla o chamado “período democrático” entre 1945 e 1964, em que se situam os governos democraticamente eleitos entre a queda do presidente Getúlio Vargas, após a ditadura do Estado Novo e o golpe militar de 1964; os mais de vinte anos de governos militares, entre 1964 e 1 Mestrando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo. [ 86 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 1985; bem como as eleições municipais que ocorreram com o processo de redemocratização do país entre 1985 e 1989. Considerando os períodos destacados anteriormente, buscar-se-á, então, aferir informações quanto a partido político, grau de instrução, local de nascimento, filiação, religião gênero, média de idade e ocupação profissional e etc. dos prefeitos e vereadores de Passo Fundo. Trata-se de conhecer as propriedades sociais mais requisitadas em cada grupo sua valorização ou desvalorização através do tempo; conhecer a composição dos capitais ou atributos cultural, econômico ou social, e sua inscrição nas trajetórias dos indivíduos; enfim, conhecer os modelos e/ou estratégias empregados pelos diferentes membros de uma elite para alicerçar uma carreira exitosa e socialmente ascendente ou, em outros casos, evitar - mediante mecanismos de reconversão social - um declínio ou uma reclassificação social muito abrupta. (HEINZ, 1998, in: HEINZ, 2006, p.09) Através do estudo coletivo das biografias dos atores da política do município, será possível, então, identificar e analisar seus interesses, discursos, ideologias, ações e posições políticas. Bem como, tentar responder a questões fundamentais: “quem são?; de onde vêm?; o que fazem?; como pensam?” (HEINZ; CODATO, in: CODATO: PERISSINOTO, 2015, p. 256). O estudo procurará analisar o perfil das elites, verificando se houve ou não mudanças significativas ao longo do tempo. Justificativa e revisão historiográfica: Passo Fundo tornou-se município em 1857 ao se desmembrar de Cruz Alta, instaurando sua Câmara de Vereadores. Até o ano de 1930 a cidade foi governada por intendentes, ora eleitos, ora nomeados para o cargo. Entre os anos de 1931 e 1936 os prefeitos municipais passam a ser eleitos. Com o advento do Estado Novo (1937-1945), os mandatários municipais passaram a ser indicados pelo interventor estadual, que por sua vez era nomeado pelo governo federal (GATTI, 2008, p.16). Situada no Planalto Médio gaúcho, Passo Fundo na década de 1940, já era um polo regional desenvolvido. Dividido em oito municípios, contava com expressivo potencial educacional, comercial, agrícola, industrial servido por extensa malha rodoviária e ferroviária, estrutura administrativa e moderno sistema de urbanização, distinguindo-se entre os demais municípios da região, razão pelo qual era denominado pela imprensa de Metrópole da Serra. (BENVEGNÚ, 2006, p.17). Durante o período democrático, diversos partidos surgiram no município: Partido Social Democrático (PSD), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), União Democrática Nacional (UDN), Partido Libertador (PL), Partido de Representação Popular (PRP), dentre outros. Entretanto, apenas os três primeiros concentravam maior força eleitoral e estavam no centro da disputa política local. Tendo em vista os diferentes partidos políticos que figuraram entre 1945 e 1964, é necessário que se faça o cruzamento das características dos políticos passofundenses com os partidos políticos, tentando definir um padrão das lideranças de cada agremiação. Com o Golpe Militar de 1964, o governador do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, transfere temporariamente a sede do governo estadual para o quartel da Brigada Militar em Passo Fundo, colocando o município centro político do estado. Durante a Ditadura, entra em vigor o Ato Institucional número 2 (AI 2), que, dentre outras medidas, extinguia os partidos políticos: “A legislação partidária forçou na prática a organização de apenas dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), agrupando os partidários do governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), reunindo a oposição.” (FAUSTO, 2018, p. 262). [ 87 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Nesse sentido, será estudado também o realinhamento das lideranças políticas de Passo Fundo após o estabelecimento do bipartidarismo. Não há estudos sobre o panorama político do município durante o Regime Militar e o pósredemocratização. Contudo, este estudo permitirá abordar, pelo menos brevemente, a conjuntura política da cidade nos períodos. Bem como, a partir da reabertura política com a queda do Regime Militar, estabelecer o comportamento da elite política diante do novo cenário. Tendo o município de Passo Fundo como centro regional do Planalto Médio, há que se situar a pesquisa nos termos da História Regional. Martins (2009) define: “A História Regional é a que vê o lugar, a região e o território como a natureza da sociedade e da história, e não apenas o palco imóvel onde a vida acontece”. Em se tratando de história regional “não se pode perder de vista o fato de que o âmbito regional possui uma história própria, um conjunto de relações sociais delimitadas, um espaço de memória, de formação de identidades e de práticas políticas específicas” (RECKZIEGEL, 1999, p.19). Entretanto, não se pode perder a noção de que, apesar de poder apresentar características específicas, o a dimensão regional está inserida em um contexto mais amplo. “O que se pretende afirmar, enfim, é que a dita história regional tem, simultaneamente, características universais e particulares.” (RECKZIEGEL, 1999, 21). Deve-se portanto, buscar entender quais as características universais que se replicam no âmbito regional e quais são aquelas que tornam o regional particular. O estudo das elites pelo método prosopográfico permite conhecer as características comuns e divergentes do referido grupo ao longo do período proposto. Tal estudo ainda não foi realizado para investigar a parcela dirigente da política passofundense. Segundo Flávio Heinz e Adriano Codato (in: CODATO; PERISSINOTO, 2015, p.249): Sabe-se que estudos sobre elites podem iluminar transformações históricas de uma dada sociedade. Mais concretamente, podem nos dizer algo sobre essas mudanças se tomarmos as variações nos perfis das classes dirigentes como uma proxy de processos bem mais amplos, tais como a entrada e saída de grupos e classes do restrito círculo das elites políticas, os movimento de mobilidade social e substituição geracional, as transformações dos prestígios relativos dos diferentes ofícios ao longo do tempo, a densidade dos aparelhos de representação (legislativos, partidos) e a operação dos seus respectivos filtros institucionais (...). A pesquisa possibilitará estabelecer o perfil da elite política de Passo Fundo: profissões, gênero, ideologia, partido político, crença religiosa, etnia, classe social e etc. e suas transformações ao longo do tempo. Trata-se, com isso, de investigar o sentido das ações políticas, ter informações a respeito da sua mobilidade social, bem como auxiliar a desvendar os motivos da mudança (ou não mudança) ideológica ou cultural, e caracterizar a estrutura da sociedade e suas movimentações (STONE, 1981, p.45-46, apud HEINZ, 2006, p. 9). A importância analítica dada ao estudo das propriedades e das trajetórias coletivas de um conjunto de agentes pressupõe um esquema interpretativo do mundo social. Esse esquema deriva, por sua vez, de dois princípios subjacentes: em primeiro lugar, o foco em agregados concretos de indivíduos, historicamente situados, é central para se entender o funcionamento do mundo social (no lugar de grandes abstrações teóricas como “classe social”, por exemplo); em segundo lugar, seus atributos, enquanto grupo, são relevantes para explicar tanto seus comportamentos efetivos (opções, decisões concretas, disposições subjetivas), como a configuração assumida pelas instituições (“Estado”, “regime político”, etc.). (HEINZ; CODATO, in: CODATO; PERISSINOTO orgs, 2015, p. 269) [ 88 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Estudo este que precisa ser realizado, visto que, para a elite política local, encontram-se apenas dados dispersos e bibliografias do tipo who’s who, que podem ser utilizados como fontes para esta pesquisa, entretanto não trazem reflexões sobre os dados. Justifica-se, portanto, pela possibilidade de analisar mais a fundo os caminhos da política municipal, identificando rupturas e permanências nas características da classe dirigente. Características estas que podem variar, condicionadas ao contexto político nacional, estadual e municipal. Objetivos Analisar o perfil da elite política passofundenses no período em foco. Compreender as ações, interesses e discursos da elite política de Passo Fundo no período proposto. Evidenciar as transformações e permanências das características da elite política do município. Fontes de Pesquisa e metodologia Ao longo da pesquisa pretende-se utilizar como fontes jornais, necrológios, anais da Câmara de Vereadores. Para alcançar os objetivos da pesquisa será utilizado o método prosopográfico, ou biografias coletivas, que pode ser considerado um método que utiliza um enfoque de tipo sociológico em pesquisas históricas, buscando revelar as características comuns (permanentes ou transitórias) de um determinado grupo social em dado período histórico. As biografias coletivas ajudam a elaborar perfis sociais de determinados grupos sociais, categorias profissionais ou coletividades históricas, dando destaque aos mecanismos coletivos – de recrutamento, seleção e de reprodução social – que caracterizam as trajetórias sociais (e estratégias de carreira dos indivíduos). (HEINZ, 2006, p. 09) A prosopografia é então a busca por características comuns na história de determinados grupos da sociedade. Assim, o método “parte do pressuposto de que é possível interpretar condicionantes sociais a partir de dados empíricos recolhidos das biografias de indivíduos do grupo que se quer estudar.” (VARGAS, p. 136, in: SOARES; SILVA, 2017, p.136). O método consiste em delimitar o universo a ser pesquisado, estabelecendo um conjunto de questões padronizadas sobre a vida dos atores estudados (STONE, 1981, p. 45-46, apud HEINZ, 2006, p. 09). Contudo, a prosopografia não se resume à produção de tabelas de frequência com informações sócio-profissionais e de carreira sobre agentes políticos do passado, a partir de dados pré-construídos, mas à produção de uma base de dados que, em boa medida, reúna um conjunto de evidências fabricadas pelo pesquisador, isto é, informações que reconheçam o aspecto lacunar do perfil produzido como estruturado socialmente. E que busque superar esse aspecto com pesquisa documental minunciosa. (HEINZ; CODATO, in: CODATO; PERISSINOTO orgs, 2015, p. 253) O método das biografias coletivas possibilita estender a análise de elites políticas e outros grupos em períodos de tempo mais distantes do presente, possibilitando ganhos explicativos no que se refere a padrões de comportamento político. (HEINZ; CODATO, in: CODATO; PERISSINOTO, 2015, p. 251). Os jornais O Nacional e Diário da Manhã serão utilizados. Embora a partir de 1950 a imprensa brasileira tenha passado por algumas transformações, de “jornal de opinião” para “jornal de informação”, os [ 89 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS grupos jornalísticos citados continuaram com características políticas. É claro, representavam os ideários de seus proprietários. “Devemos ter em mente que os jornais, e igualmente os jornalistas, apesar desta roupagem de imparcialidade e verdade que nos passam cotidianamente”. (KARAWEJCZYK, 2010, p. 143) O Nacional foi fundado em 1925, por Theófilo Guimarães. A partir da década de 1940 passou ao controle de Múcio de Castro, de postura republicana e trabalhista. Na década de 1960, Castro rompe com o Partido Trabalhista Brasileiro e adere ao Movimento trabalhista Renovador, e passa a utilizar o periódico como instrumento de oposição ao PTB e ao trabalhismo (BENVEGNÚ, 2006, p.19). O jornal Diário da Manhã era de propriedade do jornalista e político Túlio Fotoura, estreitamente ligado a Nicolau de Araújo Vergueiro. Também de ideal republicano. Em 1945, Fontoura ingressou no PSD. O jornal marcou forte oposição ao trabalhismo e a Getúlio Vargas. O jornal foi alvo de “conflituosos acontecimentos em 1954”, após a morte de Getúlio (BENVEGNÚ, 2006, p.19). Os jornais oferecem algumas vantagens quando utilizados como fontes históricas, tais como: a periodicidade (constituem-se como arquivos do cotidiano); e a possibilidade de inserção do fato num contexto histórico mais amplo (ZICMAN, 1985, p.90). A mesma autora ainda alerta: Por outro lado devemos lembrar que na Imprensa a apresentação de notícias não é uma mera repetição de ocorrências e registros mas antes uma causa direta dos acontecimentos, onde as informações não são dadas ao azar, mas ao contrário denotam as atitudes próprias de cada veículo de informação, todo jornal organiza os acontecimentos e informações segundo seu próprio “filtro”. (ZICMAN, 1985, p.90) Complementando Zicman, “Também não se deve esquecer da ilusão de transparência, verdade e objetividade que a linguagem jornalística impõe ao nosso imaginário e, assim, deve-se ficar atento a esse ponto, ao incorporar qualquer matéria de um periódico no corpus documental de uma pesquisa.” (KARAWEJCZYK, p. 143, 2010). Portanto, a análise crítica do jornal como fonte se faz necessária em virtude do provável direcionamento político e ideológico presente nos escritos. Há também a possibilidade de se utilizar algumas referências bibliográficas, tais como o livro CÂMARA Municipal de Passo Fundo 1857 - 1988. Galeria de ex-vereadores de 1947 a 1988. Passo Fundo: Berthier, 1988., disponível tanto no Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, como no acervo da Câmara Municipal de Vereadores. O arquivo da casa legislativa do município conta ainda com alguns outros trabalhos do tipo who’s who. Essas referências contêm dados preciosos para a efetivação da pesquisa, pois contém diversos dados biográficos dos vereadores eleitos e suplentes de todas as legislaturas até o ano de 1988. Considerações finais A pesquisa prosopográfica aqui proposta possibilitará então que se conheça o perfil das elites políticas do município de Passo Fundo. Espera-se comprovar que esta elite é composta por homens brancos, com maioria de profissionais liberais e políticos profissionais, basicamente pertencentes às classes médias e altas. Bem como, buscará evidenciar se houve ou não alteração nas características da elite com a passagem das diferentes conjunturas políticas nacionais, estaduais e municipais, explicando de que forma essas mudanças ou permanências se dão. Referências bibliográficas BENVEGNÚ, Sandra Mara. Décadas de poder. O PTB e a ação política de César Santos na metrópole da Serra. 1945-1967. Dissertação de mestrado defendida em Passo Fundo: 2006. [ 90 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS CHARLE, Cristophe. Como anda a história social das elites e da burguesia? Tentativa de um balanço crítico da historiografia contemporânea. In: HEINZ, Flávio (org). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. CODATO, Adriano. Elites e instituições no Brasil: uma análise contextual do Estado Novo. Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. FAUSTO, Bóris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2018. GATTI, Isaura de Moura. Partido Social Democrático: formação e fragmentação em Passo Fundo (19451950). Dissertação de mestrado defendida em Passo Fundo: 2008. HEINZ, Flávio. O historiador e as elites – à guisa de introdução. In: ______ (org). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 224 p. HEINZ, Flávio. Notas sobre o uso de anuários do tipo “who’s who” em pesquisa prosopográfica. In: ______ (org) História social de elites. São Leopoldo: Oikos, 2007. HEINZ, Flávio; CODATO, Adriano. A prosopografia explicada para cientistas políticos. In: CODATO, Adriano; PERISSINOTO, Renato (orgs). Como estudar elites. Curitiba: UFPR, 2015. 319 p. KARAWEJCZYCK, Mônica. 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Projeto História. São Paulo, n. 4, jun. 1985. [ 91 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O Piauí em esforço de guerra: mobilização patriótica e Guarnição da Província 1864-1866 Marcelo Cardoso1 Resumo: Este artigo analisa a mobilização e guarnição no período da guerra entre o Império do Brasil e a República do Paraguai de 1864 a 1866 na província do Piauí. Quando teve início o conflito as Províncias do império enviam forças armadas disponíveis para o campo de luta. O Piauí em 1865 manda todo o Corpo de Guarnição de 1ª linha e Companhia de Polícia, ficando no primeiro momento o policiamento e guarnição sendo feito por destacamentos de guardas nacionais. Nesse sentido é importante analisar a política imperial de mobilização de homens para o “teatro de guerra” e a efervescência de patriotismo na província. A metodologia do trabalho foi a pesquisa e análise de fontes bibliográficas, periódicos, relatórios de presidentes de província. Há importantes trabalhos sobre a Guarda Nacional, Exército e Corpo de Polícia que indicam a organização do Estado imperial no Brasil no período. No trabalho prioriza-se o viés de uma “História Militar” que não reduz a compreensão das instituições militares a fenômenos sociais que a determinariam, mas busca fazer uma reflexão sobre a interação entre forças armadas e sociedade. Palavras-chave: História, Guerra, Piauí, mobilização, Guarnição. Introdução Este trabalho estuda o esforço de guerra na província do Piauí a partir da mobilização de homens e instituições para lutar contra a república do Paraguai em 1865. Os quem não foram à guerra, lutar no campo de batalha, partilhavam do esforço para mantê-la na província com doações e gestos patrióticos. Nesse sentido, busca-se analisar a reorganização do Estado 2 imperial no Piauí, perante a situação que ficou a província, quando foram as duas principais instituições da Força Pública mobilizadas para a campanha no sul. Essa análise espelha-se na nova abordagem da história militar brasileira que é produzida da interação entre forças armadas e sociedade3. A guerra entre o império do Brasil e a República do Paraguai veio provocar um afloramento do sentimento de pátria que atingiu todas as províncias do império e contribuiu para a fortalecimento do Estado nacional brasileiro4. Esse sentimento foi provocado pela tensão existente na região do Prata, repassada pelo governo central as províncias. No Piauí era feita pelos dirigentes do poder local que recebiam do governo central pedidos de força para a guerra. Os periódicos em circulação na província auxiliavam na divulgação das ideias de defesa da pátria, convocando o povo para cumprir o dever patriótico. Os primeiros anos da guerra foram selecionados para compor esta análise porque estão marcados mais intensamente pelos chamados de defesa da pátria, na acepção mais próxima, que o termo foi utilizado Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, Área de Concentração: História, Poder e Cultura; na Linha de Pesquisa: Fronteira, Política e Sociedade. Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Especialista em Metodologia da Pesquisa e do Ensino de História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e Graduado em História (Licenciatura) (UESPI). E-mail: macaseixa@hotmail.com 2 Aqui emprega-se a ideia de Estado segundo a acepção feita por Fernando Catroga (2011, p.7) como dimensão institucionalizada do poder sobre uma população concreta e sobre um determinado território que traça seus limites face ao estranho e extingue as fronteiras no seu interior. Nesse sentido faz necessário deter o monopólio da violência e do direito. 3 CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2004. Nesse sentido complementa-se que é consenso nos estudos atuais de história militar que “militares brasileiros não se encontram isolados da sociedade abrangente, embora possam guardar uma relativa autonomia em alguns aspectos e épocas específicas” (CASTRO; IZECKSOHN; KRAAY, 2004, p.12). O que torna complicado tratar a história militar como estando desligada da história mais ampla da sociedade de onde soldados e oficiais são recrutados. 4 Sobre o assunto Catroga (2011) diz que “coube à <<nação>> fazer a ponte entre o <<Estado>> e a <<pátria>>, tarefa que terá a sua objetivação maior no Estado-nação moderno”. Essa transformação teria como passos debates acerca do conceito de pátria e nação que não confunde-se com o de Estado. Nesse sentido diria que “os conceitos de pátria e de nação têm origem e significados diversos – o primeiro pressupõe o acto de concepção, enquanto o segundo indica o de nascimento. Mas é um facto que eles acabaram por se cruzar. Na modernidade, a nação está na pátria, mas exige um território (real ou imaginário) e uma população”. (CATROGA, 2011, p. 16-17) 1 [ 92 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS no século XIX quando foi distinguida do nacionalismo e definida como uma “ideologia do sentimento” 5. Nesse entendimento, a pátria é desenhada como mátria ou seja “como mãe, a pátria transubstancia a <<população>> numa fratria de com-patriota, na qual os <<irmãos>>, os <<patrícios>>, são incitados a reconhecerem-se como <<filhos da pátria>> e, portanto, a aceitarem, em nome da honra e do juramento, sacrificar-se pela <<mãe comum a todos>> (Cícero)”6. É comum no início de batalhas, como forma de encorajamento, a apelação que ecoa da ideia pregada de pátria. Esse foi o uso feito na batalha de Salamina quando defendeu-se o avanço dos gregos em nome da patria “Avante, filhos dos Gregos, libertai a vossa Pátria, libertai os vossos filhos e as vossas mulheres, os santuários dos deuses dos vossos pais e os túmulos dos vossos antepassados: a luta, hoje, é por tudo isto!” 7. A Província vai à guerra em defesa da pátria O Paraguai da década de 1860 vinha ressentindo-se cada vez mais do diminuto papel que lhe era reservado em assuntos internacionais, nutria um desejo nacional de potência, vinha amparado em sucessos econômicos e grande contingente militar 8. Existiam problemas não resolvidos com limites externos nas fronteiras brasileira, argentina e boliviana que aumentavam as dificuldades da navegação em especial no Mato Grosso9. Para complementar o quadro favorável ao conflito, Francisco Solano López, estava determinado a marcar presença nos rumos dos acontecimentos regionais. Entedia necessário fazer frente às intervenções imperialistas de Brasil e Argentina perante os estados menores, Uruguai e Paraguai. A tentativa era a construção de um terceiro Estado resultante da união de Uruguai, Paraguai, Corrientes, Entre-Ríos e missões rio-grandense que tivesse condições de impor-se perante os grandes10. Sobre o assunto afirma Johny Santana de Araújo que o Paraguai “buscava ter voz ativa na problemática do Prata e participar das grandes decisões”11. A guerra mediada por Paraguai inimaginável na avaliação feita por Brasil e Argentina fazia os anseios desse Estado não vir ter peso na política externa, quase sempre eram desqualificados. No entanto, López “agia por si, tanto é que, ao atacar os dois países, não foi em socorro dos blancos, e essas atitudes, que desnortearam diplomatas e políticos de então, são hoje mais compreensíveis” 12. O rompimento das relações diplomáticas, entre o império brasileiro e o governo Uruguaio, provocado pelo incidente entre navios da Marinha Imperial e da Marinha Uruguaia foi razão para agravar a crise na região quando o governo paraguaio protestou estabelecendo uma condenação formal de qualquer ação intervencionista do Brasil13. A intervenção brasileira na República Oriental teve como consequências por parte do governo paraguaio a captura do vapor brasileiro, Marquês de Olinda, que dirigia pelo Rio Paraguaio em direção a Mato Grosso. No dia 13 de dezembro o Governo Paraguaio declarou guerra ao Brasil, em 26 CATROGA, Fernando. Ensaio republicano. p. 10. Fundação Francisco Manuel dos Santos. Lisboa, Portugal. 2011. Idem. 7 Idem. 8 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil.p.120. Editora Universidade de Brasilia. 2002. Ainda sobre o fortalecimento militar do Paraguai Johny Santana de Araújo diz que Solano Lopes ao retornar ao seu país de viagem à Europa onde fez contato com empresas de armamentos e tomou contato com ideias do imperador Napoleão III onde despertou “as glorias militares do passado”. Isso fez como que “ao retomar ao seu país, levou ao extremo as preocupações com o fortalecimento militar do Paraguai, inicialmente intensificando os projetos de defesa que o presidente anterior havia iniciado; e, ao mesmo tempo, aumentando os efetivos do exército paraguaio, tendo conseguido, em dois anos, reunir 80 a 100.000 homens, equipados com fuzis e com uma boa artilharia”. (ARAÚJO, 2009, p. 28) 9 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil.p.121. Editora Universidade de Brasilia. 2002. 10 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil.p.121. Editora Universidade de Brasilia. 2002. 11 ARAÚJO, Johny Santana de. BRAVOS DO PIAUÍ! ORGULHAI-VOS. SOIS DOS MAIS BRAVOS BATALHÕES DO IMPÉRIO: a propaganda nos jornais piauienses e a mobilização para a guerra do Paraguai (1865-1866). p.29. TESE (Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História. Niterói, 2009. 12 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil.p.121. Editora Universidade de Brasilia. 2002. 13 ARAÚJO, Johny Santana de. BRAVOS DO PIAUÍ! ORGULHAI-VOS. SOIS DOS MAIS BRAVOS BATALHÕES DO IMPÉRIO: a propaganda nos jornais piauienses e a mobilização para a guerra do Paraguai (1865-1866). p.33. TESE (Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História. Niterói, 2009. 5 6 [ 93 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS início o ataque e invasão da província de Mato Grosso. No início de 1865 a guerra contra o Paraguai estava certa, mas acreditava-se que seria rápida como diz Araújo: [..]grande parte da população brasileira vislumbrava a possibilidade de um conflito com o Paraguai e tinha como primeira impressão de que seria uma guerra rápida. Acreditava-se que o exército brasileiro retornaria coberto de glórias, concepção fortemente reforçada pela idéia de recuperação da honra e do território invadido 14. A guerra do Paraguai estendeu-se até 1870, durando cerca de 5 anos, marcados pela luta travada contra, principalmente, Solano Lopes. O conflito deixou marcas nos países envolvidos e outras mais fortes na região do Prata. Exemplo disso ocorreu na cidade de Rosario (Argentina) quando o povo “arrancou o escudo de armas do Consulado Paraguayo, arrastou o pelas ruas, e, depois de espingardeado juntamente com a effigie de Lopez, foi tudo atirado ao rio”15. Essa revolta era muito mais contra a afronta do ditador na região. Em Rosário, em ata, pelos influentes, a manifestação foi declarada como tendo a intenção de “quebrar o signal da nefanda autoridade de Lopez, e não o symbolo de uma nacionalidade irmã”16. O sentimento de revolta, amor e defesa a pátria pode bem aplicar-se ao que sentiu o povo brasileiro quando sentiu sua honra ameaça pela captura do vapor brasileiro “Marquês de Olinda”. Nesse sentido era necessário mobilizar as províncias e ir à guerra em defesa da honra da pátria. Em 1931 Anísio Brito publicou a obra intitulada “Contribuição do Piauí na Guerra do Paraguai” nas primeiras páginas do trabalho destaca o despertar da consciência de nacionalidade provocada pela explosão de sentimentos nativistas, como pela repulsa às invasões estrangeiras que teriam contribuído na preparação para a independência. Nesse conjunto destaca as agitações do período da regência e coloca no topo destas agitações “a do Prata, alheia, estranha, é verdade, para nós, e não entraríamos, na – vida dos vizinhos -, se não nos determinassem muitas e fataes circunstancias” 17. No dia 12 de julho de 1865 o presidente Franklin Américo de Menezes Doria dirigia-se aos membros da Assembleia Legislativa Provincial a fim de relatar as situações que ocorriam no império e província. A primeira mensagem a ser transmitida era a notícia da boa saúde do Imperador e da “Augusta família Imperial”, abria ressalvas acerca do casamento da princesa, “a srª dona Isabel, com o príncipe, o sr. Dom Luiz Philippe, Conde d’Eu”18. A notícia que abre a mensagem do presidente, dando ênfase ao bem-estar da família Imperial, deixa entrever uma preocupação comum à elite dirigente do império qual seja vigor do Estado imperial. O presidente da província, com relação a política externa, lembrava a vitória alcançada pelas armas imperiais contra o Estado Oriental do Uruguai que havia sido encerrada com o convênio de 20 de fevereiro. Seguia o relatório informado sobre outra guerra provocada pelo “insólito e bárbaro” procedimento do presidente da república do Paraguai. Era exaltado o patriotismo do país em relação a “grande luta internacional” para vingar os “ultrajes feitos a nossa soberania e os danos que nos têm sido causados pela perversidade de Solano Lopez”19. Sobre a mobilização que vinha ocorrendo nas províncias do Império informava que: [...]Como por encanto, as províncias têm regorgitado com centenas e centenas de voluntários da pátria, os quais briosamente correm aos campos da peleja. Relativamente, já não é pouco talvez o que ella tem feito. Central, pouco populosa, Idem. LIGA E PROGRESSO. p.4. Número 98. Anno IV. Theresina, Quarta-feira, 7 de junho de 1865. Disponível em http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso: 14.10.2018. 16 Idem. 17 ANÍSO BRITTO. Contribuição do Piauhy na guerra do Paraguay. P.4. Imprensa Official. Theresina. 1931. 18 PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província Franklin de Américo de Menezes Doria à Assembleia Legislativa. 12 de julho de 1865. 19 PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província Franklin de Américo de Menezes Doria à Assembleia Legislativa. 12 de julho de 1865. 14 15 [ 94 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS pobre, tão avezada aos hábitos da guerra como a que for menos afeita a eles, temos visto, não obstante, muitos de seus filhos, abandonando casa, família e haveres, virem de todos os pontos, talvez de longas léguas, até esta capital se oferece em defesa da nação20. A história sobre o assunto desta guerra foi registrada pelo padre Joaquim Chaves em obra intitulada “O Piauí na Guerra do Paraguai” que relata os primeiros episódios dizendo que “o Brasil se levantará como um só homem para lavar a afronta que a falsa fé acaba de receber do Paraguai; e o governo Imperial saberá cumprir com os deveres de sua missão” 21 e continua: [...]apesar da importância destas notícias, não há razão para que o espirito público se sobressalte. O Império dispõe de bastante força e conta com o patriotismo de todos os brasileiros para que fique à mercê de qualquer governo, por mais fraco que seja, que se lembre de provocar-lhe os brios.”22 As medidas imediatas tomadas pelo império contra o Paraguai chegam às mãos do governo provincial, constando de circular do Ministério dos Negócios da Justiça, no dia 26 de dezembro de 1864 e continham autorização para aumentar o número de praças do Exército e Armada, criar corpos de voluntários que “em auxílio dos mesmos Exército e Armada pugnem pela desafronta da honra nacional nas repúblicas do Uruguai e Paraguai”23, a recomendação era ativar o recrutamento na província para o fim indicado e que fosse apelando para “o patriotismo do povo, tão interessado como o governo imperial em sustentar a dignidade do país, promova a organização de alguns daqueles corpos” 24. Nota-se que a ênfase era garantir homens para a guerra seja pelo patriotismo, senão pela força do recrutamento sob argumento de pugnar pela honra e dignidade do país. Em 22 de fevereiro o presidente recebeu ordem do governo imperial para fazer marchar com toda a brevidade o corpo de guarnição que no dia 10 do mês de março já marchava em estado quase completo contando de 20 oficiais e 310 praças, com 3 médicos e um farmacêutico do corpo de saúde do exército 25. A 11 de abril foi a Companhia de Polícia, que por intermédio de seu comandante interino ofereceu-se ao presidente da província para tomar parte na guerra, contando de 3 oficiais e 80 praças26. O fato oficial é que em 1865 o presidente da província do Piauí, em pouco mais de 2 meses, contava que haviam partido para a campanha do Sul 814 homens, sendo 475 voluntários da pátria 27. Assim como estas outras manifestações de esforço na província do Piauí iriam surgir no início da guerra para lutar ou apoiar os que estavam no campo de batalha contra a desafronta à nação, em defesa da honra vilipendiada. Nem todos vão a guerra, mobilização e manifestação patriótica Quando a notícia da guerra com o Paraguai se espalhou houve grande mobilização, a velha prática do recrutamento forçado utilizado como mecanismo de controle social e para engrossar as linhas da força do exército durante as guerras não foi necessária 28. No início da guerra houve uma grande quantidade de voluntários que se apresentaram para defender a pátria, uma das razões que teria levado ao alistamento espontaneamente foi a confiança em “[...]uma guerra curta e rápida, como foram, desde a década de 1850, as Idem. JOAQUIM CHAVES. O Piauí na Guerra do Paraguai.p.7. Cadernos Históricos 4. Da Academia Piauiense de Letras. 22 Idem. 23 Idem. 24 JOAQUIM CHAVES. O Piauí na Guerra do Paraguai.p.8. Cadernos Históricos 4. Da Academia Piauiense de Letras. 25 Idem. 26 PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província Franklin de Américo de Menezes Doria à Assembleia Legislativa. 12 de julho de 1865. 27 PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província Franklin de Américo de Menezes Doria à Assembleia Legislativa. 12 de julho de 1865. 28 KRAAY, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Brasil Imperial. Diálogos. DHI/UEM. v.3. 1999. 20 21 [ 95 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS intervenções brasileiras no Prata”29, com o passar do tempo iam surgir críticas sobre a duração do conflito que havia se tornado uma “luta de posições, em 1866” e poderia causar a ruína do país, somava-se as reclamações oriundas da retomada da prática do recrutamento forçado30. Um fator que Contribuiu de forma decisiva para grande número de voluntários foram as “convocações que exaltavam o patriotismo” realizadas por meio da divulgação na impressa com destaque em Teresina os jornal A imprensa, Liga e Progresso e O Piauhy e por meio da propaganda oficial do governo Imperial e Provincial31. Essa impressa de caráter oficial não era unânime no império, sofrendo dos partidos de oposição duras críticas que eram dissipadas ao público por seus veículos de comunicação. Destaca-se no império o periódico liberal e oposicionista Diário do Povo32 que logo iria denunciar a violência cometida no recrutamento e nas designações para a guerra. A impressa como divulgadora das ideais do governo, com caráter oficial, bem como a de oposição não era uma particularidade do Império do Brasil. Nesse sentido mostra Mariana Peréz em “Poder polítco y prensa política: entre la libertad de imprenta y el control de la opinión (Entre Ríos, 1862-1870)” que na américa hispânica, a província Entre-Ríos, mantinha uma imprensa com característica diversa e intenso debate público 33. Em 7 de janeiro de 1865 o decreto imperial nº 3371 criava corpos com a denominação de voluntários da Pátria34, para o serviço de guerra, em circunstâncias extraordinárias, estabelecendo as condições e fixava as vantagens que lhes ficava competido. Em sintonia com a determinação imperial, o presidente da província do Piauí, Dr. Franklin Américo de Menezes Dória, em 1º e em 24 de fevereiro de 1865 enviou ofícios aos comandantes superiores instalando-lhes o alistamento de voluntários em todos os batalhões da Guarda Nacional estacionados na capital e no interior. A aceitação de homens no início, prontos a ir à guerra foi tamanha, que “em Teresina, aberto o voluntariado na Secretaria Militar do Palácio da Presidência, choveram as inscrições”35. O periódico “Liga e progresso” informava o embarque da Companhia de Polícia da província do Piauí para a guerra “na manhã do dia 11 do mez próximo passado teve lugar, com a solenidade possível, o embarque, no Urussuhy, do corpo policial desta província com destino ao sul composto de 80 praças de pret, um tenente comandante e dous alfres” 36. Era lembrado no jornal que o número de praças que existia na Companhia Policial, a pouco meses, era de 56 e achavam-se destacados em várias partes da província “d’onde vierão com toda pressa, em virtude de ordem da presidência” 37. O comandante efetivo era o major Antonio Joaquim de Lima e Almeida que não marchou junto por se achar licenciado pela Assembleia Provincial indo em seu lugar o comandante interino, Manoel Hilario da Rocha. O presidente, sobre o esperado do Piauí em termos de patriotismo em prol da guerra, dizia: DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai.p.264. Francisco Fernando Monteoliva Doratioto. São Paulo: companhia das letras, 2002. 30 Sobre o recrutamento em tempo de paz é necessário compreender tal prática no Brasil para além da violência empreendida por um Estado forte contra uma população frágil, mas como um sistema “onde contribuiu o Estado, a classe de senhores de terras e escravos e boa parte dos pobres livres, e da qual cada participante tirou benefícios significativos” (KRAAY,1999, P.115). Em tempo de guerra a prática era intensificada, dada a necessidade de expansão militar, gerando dúvidas sobre quem seria recrutado. 31 ARAÚJO, Johny Santana de. BRAVOS DO PIAUÍ! ORGULHAI-VOS. SOIS DOS MAIS BRAVOS BATALHÕES DO IMPÉRIO: A propaganda nos jornais piauienses e a mobilização para a guerra do Paraguai 1865-1866. p. 19. Tese. (Doutorado). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2009. 32 DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita guerra: Nova história da Guerra do Paraguai.p.270. Francisco Fernando Monteoliva Doratioto. São Paulo: companhia das letras, 2002. A crítica da opinião pública acerca da guerra ia aumentar não só no Brasil, mas também em países que compuseram a Tríplice Aliança na Guerra contra o Paraguai. Conforme María Victoria Baratta “ [...] la contenda despertaria crescientes críticas em la opinión pública y resistencias armadas importantes” (BARATTA,2014, P.99). 33 PÉREZ, Mariana. Poder político provincial y prensa política: entre la libertad de imprenta y el controle de la opinión ( Entre Ríos, 1862-1870). Quinto Sol. 22, n 3, septiembre-diciembre 2018. 34 Os Corpos de Voluntários da pátria foram criados devido a dificuldade que o governo imperial encontrou no primeiro momento para mobilizar os guardas nacionais para a guerra. Nesses corpos podiam alistar-se voluntariamente os cidadãos entre dezoito e cinquenta anos para servir no exército que tinha como incentivo do governo o soldo normal dos soldados das forças regulares de quinhentos réis diários e ainda “uma gratificação de 300 mil réis ao darem baixa no final da guerra. Nesse momento os voluntários teriam direito, ainda, a terras, na extensão de 49500 metros quadrados, nas colônias militares e agrícolas existentes em diferentes pontos do Brasil” (DORATIOTO, 2002, P. 114) dentre outras vantagens. 35 JOAQUIM CHAVES. O Piauí na Guerra do Paraguai.p.9. Cadernos Históricos 4. Da Academia Piauiense de Letras. 36 LIGA E PROGRESSO. P.4. Número 95, ano IV. Theresina. Sabbado 06 de maio de 1865. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018. Ver ainda Dissertação de mestrado que trata da organização e disciplina do Corpo de tropa Policial da província do Piauí (1835-1865) por Marcelo Cardoso (CARDOSO, 2018, p. 57) 37 Idem. 29 [ 96 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS S. exe. O sr. dr. Doria desejoso de ver o Piauhy, guardadas as proporções, ao lado de suas irmãs, que mais se hão destinguido pelos sentimentos de patriotismo, tem envidado todos os seus esforços para ver realizado tão nobre empenho, já dirigindo a sua palavra authorizada, já offirias do aos comandantes superiores dos municípios e correspondendo-se particularmente com as pessoas mais gradas da província afim de prestarem-lhe toda a cooperação possível.38 A demonstração inicial de patriotismo da província do Piauí contava com o esforço dos comandantes para mobilizar as “pessoas mais gradas da província” a ajudar no que fosse possível. Logo no primeiro momento elevou-se, em pouco tempo, o efetivo do Corpo Policial de 55 homens para cerca de 80 praças que estavam preparados para o embarque rumo ao Sul. Essa era “uma prova bem significativa da atividade e energia que tem desenvolvido”39 o presidente da província do Piauí que diz “Se o Piauhy mais não fizer não é certamente por falta de iniciativa da autoridade” 40. Nem todos vão a guerra, na ausência do corpo de guarnição e da Companhia de Polícia, e em virtude do art. 87 § 1º da lei nº 602, o presidente Franklin de Américo de Menezes Doria destacou 255 guardas nacionais para a guarnição da província do Piauí. Essa medida era possível devida às alterações feitas pela lei de 1850 que reforçava o caráter policial da Guarda Nacional, permitia que ficasse em tais circunstâncias subordinada à autoridade policial mais graduada. A mesma lei definia a participação da milícia no serviço ordinário e de destacamento quando não houvesse tropa de linha e de polícia para serviços ordinários41. O número de guarda nacionais para o serviço de policiamento em 1865 foi elevado para 305, distribuídos da seguinte forma: na capital 200, na cidade de Parnahyba 30, na cidade de Oeiras 20, na villa do Príncipe Imperial 20, na vila da Independência 10, na vila de Barras 7, na vila de S. Gonçalo 7, na vila de Jerumenha 7, na vila de Jaicos 4 e ainda informa que “Além d’estes destacamentos conservo um de 6 praças, na vila de Piracuruca, e outro de 5, na de S. Raimundo Nonato, subindo portanto o total dos guardas destacados a 318”42. Esse foi o efetivo da Guarda Nacional 43 que ficou fazendo a guarnição e o policiamento na ausência do Corpo de Polícia e força de 1ª linha do Exército. Havia os que não tinham ido à guerra, mas que estavam envolvidos pelo sentimento de patriotismo cooperando como podiam. Assim fez jovem e inteligente tenente Antonio Alvez de Noronha que “de hum caracter sisudo e bastante honesta” iniciou na capital Teresina o voluntariado de homens para a Polícia urbana44. Especial louvores foi dada a iniciativa, cognominada de “tão patriótica idéia” que contou com o empenho, para seu melhor resultado, dos que não haviam partido para o Sul. Em 3 de abril de 1865 era noticiado que “a semelhança do que tem feito em outras partes, grande número de cidadãos de todas as classes offerecerão se para policiar a cidade na ausência das tropas, em Idem. LIGA E PROGRESSO. P.4. Número 95, ano IV. Theresina. Sabbado 06 de maio de 1865. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018. 40 Idem. p.4 41 FERTING, André. Clientelismo político em tempos belicosos: a Guarda Nacional da Província do Rio Grande do Sul na defesa do Império do Brasil (1850-1873).p.136-137. Santa Maria. Ed. da UFSM, 2010. Nesse mesmo trabalho o autor exemplifica os serviços ordinários de guarnição desempenhados pelos guardas nacionais como sendo “escolta de presos, vigiar remessas de dinheiro pertencentes ao Império” (FERTING, 2010,p. 137). 42 PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província Franklin de Américo de Menezes Doria à Assembleia Legislativa. 12 de julho de 1865. 43 Jeanne Berrance de Castro destaca o serviço na Guarda Nacional com o fim de preservar a tranquilidade pública que podia ser dentro ou fora do município, porém quando fora estava limitada aos motivos de “insuficiência de tropa de Polícia e de Linha, na escolta de dinheiro ou valores da Nação, na condução de presos” (CASTRO, 1977, P. 37-38) dentre outras excepcionalidades. No início da mobilização para a guerra foi cogitada a possibilidade de mobilizar esta força para completar o efetivo do Exército que ia ao Sul, porém apesar de numerosa “não se traduzia em força militar real, pois os guardas nacionais, embora considerados auxiliares do Exército em caso de guerra, eram despreparados para o combate” (DORATIOTO, 2002, p. 112). Essa força limitava-se a fazer serviços internos nas províncias em auxílio ao policiamento. 44 LIGA E PROGRESSO. P.4. Número 93, ano IV. Theresina. Quarta-Feira 19 de abril de 1865. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018. 38 39 [ 97 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS auxilio à guarda nacional destacada”45 que não supria todas as necessidades do serviço. Os voluntários que desde 18 de março daquele ano faziam o policiamento urbano contavam um número de oitenta igual ao que foi formado na Companhia Policial para marchar à guerra. O jornal “Liga e Progresso” acrescentava em outras edições acerca da polícia urbana de Teresina, capital da província, informando que o número dos cidadãos “tão patrioticamente se tem oferecido para policiar a cidade, durante a noite, vai sendo consideravelmente aumentado” 46. Nesse sentido justificava aos leitores a satisfação em publicar tais fatos porque “[...]não so levamos ao conhecimento publico, actos tão dignos de louvores, como rendemos ao mesmo tempo uma grata homenagem ao patriotismo de tão prestimosos cavalheiros, que se fazem credores da maior estima e respeito dos seus cidadãos” 47. O sentimento de patriotismo aflora de várias formas na província do Piauí. As “ofertas patrióticas” feitas pelos que não foram a guerra, mas compreendiam a importância da ação imperial, estava presente nas diversas autoridades. Assim fez o dr. Juiz de direito da comarca de Príncipe Imperial, Joaquim Pires Gonsalves da Silva, que ofereceu 15% dos seus vencimentos para as despesas extraordinárias do estado enquanto durasse a guerra48. Joaquim Pires Gonçalves da Silva também tomou iniciativa de abrir subscrição no seu município entre os cidadãos para ajudar nas despesas da guerra tendo formado uma lista que completou 32 nomes de cidadãos que doaram donativos para as despesas da guerra na comarca de Príncipe Imperial, consta completa no periódico analisado, e totaliza a arrecadação de 885$000 reis49. Estes atos de patriotismo eram elogiados e divulgados como deixa entrever os dizeres no jornal que “S. exe. O sr. presidente agradeceu não só a oferta, como louvou o patriótico serviço que o dicto juiz de direito prestou agenciando a subscripção-e também agradeceu aos subscritos”50. Em 27 de abril de 1865 foi organizada uma sociedade beneficente, inaugurada no palácio da presidência, tinha como finalidade proporcionar as famílias dos piauienses que se alistassem voluntários da pátria um seguro meio de subsistência “garantindo-lhes o pão quotidiano”51. Na sociedade beneficente foram aclamados como membros das comissões as seguintes pessoas: “presidente honorário – O exm. Sr. dr. Franklin Americo de Menezes Doria” e para Commissão Central o “Presidente- o sr. major Joze de Araújo Costa”, secretário – o sr. capitão Raimundo Theotonio da Morada, “Thesoureiro – o sr. Antonio Gomes de C” dentre outros componentes. A comissão de uma sociedade patriótica na vila de Barras, composta dos senhores, dr juiz de direito Candido Gil Castelo Branco, promotor público Manoel Rufino de Sousa e professor David Moreira Caldas fez uma oferta patriótica quando “acaba de remeter ao presidente da província, em nome da mesma sociedade, a quantia de 200$ reis para auxílio do fardamento dos voluntários da dita villa, os quais, a 12 de março ultimo irão em numero de 41”52 os redatores do jornal completavam ao dizer que os atos patrióticos pesavam sem comentários e traziam em si o mérito real dos que o praticam. Outros Oferecimentos Patrióticos feitos por cidadãos da província seguem abaixo para avaliar o quanto a dita guerra veio a envolver cada pedaço do território do Piauí que havia homens ligados a nação integrados em um só corpo pela guerra que não exigia apenas o esforço daqueles que foram lutar no campo de batalha, mas dos que aqui ficavam prontos a sacrificar-se para restituir a honra ameaçada. 45 LIGA E PROGRESSO. P.3. Número 94, ano IV. Theresina. Segunda-Feira 3 de abril http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018. 46 LIGA E PROGRESSO. P.4. Número 93, ano IV. Theresina. Quarta-Feira 19 de abril http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018. 47 Idem. 48 LIGA E PROGRESSO. P.4. Número 95, ano IV. Theresina. Sabbado 06 de maio http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018. 49 Idem. 50 Idem. 51 Idem. 52 LIGA E PROGRESSO.Theresina. Anno IV. Numero 94. Segunda-Feira. 1 de maio http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso 14.10.2018. [ 98 ] de 1865. Disponível em: de 1865. Disponível em: de 1865. Disponível em: de 1865. Disponível em: Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS –S Exc. o Sr. Franklin Doria, ofereceu 1:000$ reis, deduzido de seus ordenados, para as urgências do estado. Os Srs. Inspecto da tesouraria geral, capitão Fernando da Costa Frere, tesoureiro, coronel Thomaz d’Aquino Ozorio, dr. Procurador fiscal e os demais empregados d’aquella repartição offereceram 10% de seus ordenados. - O sr. dr. Newton Cesar Burlamaque ofereceu 10% dos seus vencimentos como engenheiro geral e provincial até a conclusão da guerra. O sr. dr. Juiz de direito da comarca, Antonio de Souza Mendes Junior, também ofereceu 10% de seus ordenados. -O sr. coronel comandante superior da guarda nacional do município das Barras, Francisco Feliz Correia, offereceu-se a machar para o serviço da guerra com todos os seus subalternos. -O sr. coronel comandante superior da guarda nacional da Parnaiba, ofereceu-se para o mesmo fim com todos os seus superiorados que o quiserem acompanhar. -O sr. capitão da guarda nacional Antonio José de Araújo Bacellar ofereceu 100$ reis para as despesas da guerra, e ao mesmo tempo prestou-se gratuitamente a comandar o destacamento da guarda nacional d’esta capital. -O sr. alferes Abilio Cesar Ribeiro oficialmente ofereceu-se grátis para comandar o destacamento da guarda nacional da cidade da Parnahiba, assim como a concertar a sua custa 20 armas pertencentes aquele destacamento. -Os srs Firmino Alves dos Santos e companhia offereceram 300 para as despesas da guerra. -O sr. dr. Constantino Luiz da Silva Moura ofereceu 15% de seus vencimentos de médico contractado para o serviço da guarnição d’esta capital. -Os srs. Capitão Joaquim de Lima e Castro e alferes Bemjamim José Teixeira, além de 10% de seus ordenados de empregados públicos, offereceram-se gratuitamente a fazer o serviço relativo a suas patentes, no destacamento da guarda nacional d’esta capital, quando desocupados53. Fica a entrever que todos deveriam em nome da pátria doar algo e o bem mais valioso, último, seria a vida. No caso dos mais humildes, nutridos do sentimento de patriotismo, não houve resistência, iriam ser os primeiros a ser sacrificados em nome da pátria. Aos que não entediam a razão do sacrifício, por algum motivo, coube a resistência que não é improvável ter existido no momento inicial que os anos seguintes iriam marcar com mais nitidez. Essa é outra verdade da história que acabo de narrar, a história do não patriotismo, após o clamor inicial da grande mobilização feita pelos dirigentes do poder central e provincial a resistência ia ficar mais nítida. Considerações Finais A guerra do Paraguai com Brasil contribuiu para amalgamar o Estado Nacional por meio da institucionalização do poder central sobre a população e o território. Fortaleceu o sentimento de união e luta em prol de uma causa comum, tida como justa e digna pela elite dirigente, terminando por integrar as diversas províncias entre si e os homens dentro destas unidades provinciais. As consequências foram a extinção de fronteiras no interior do Estado e a definição de limites com Estados vizinhos. A ordem do dia era mobilizar todos a ponto de envolverem-se na guerra em nome da pátria. As ordens vinham do poder central, chegavam ao presidente da província, iam repassadas à lideranças locais encarregadas de arregimentar as forças. Esse esforço de mobilização contava com o auxílio da imprensa 53 LIGA E PROGRESSO.Theresina. Anno IV. Numero 90. http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso 14.10.2018. [ 99 ] Segunda-Feira. 27 de março de 1865. Disponível em: Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS periódica na propagação das causas da guerra, na mobilização, doações patrióticas e informações de quem partia para a luta. A historiografia sobre o tema na província do Piauí durante algum tempo incorporou os discursos dos periódicos e falas das autoridades que enalteciam o patriotismo dos voluntários no conflito. Existe, no entanto, uma produção que visa fazer uma revisão desta interpretação considerando que houve resistência variadas em ir à guerra. A elite buscava fazer ofertas patrióticas, quando não mobilizar para a guerra, os que não tinham nada a oferecer buscavam outras formas de resistência. Referências bibliográficas ANÍSO BRITTO. Contribuição do Piauhy na guerra do Paraguay. Imprensa Official. Theresina. 1931. ARAÚJO, Johny Santana de. BRAVOS DO PIAUÍ! ORGULHAI-VOS. SOIS DOS MAIS BRAVOS BATALHÕES DO IMPÉRIO: a propaganda nos jornais piauienses e a mobilização para a guerra do Paraguai (1865-1866). TESE (Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História. Niterói, 2009. CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2004. CATROGA, Fernando. Ensaio republicano. Fundação Francisco Manuel dos Santos. Lisboa, Portugal. 2011. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Editora Universidade de Brasilia. 2002. CASTRO, Jeanne Berrance de. 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Poder político provincial y prensa política: entre la libertad de imprenta y el controle de la opinión (Entre Ríos, 1862-1870). Quinto Sol. 22, n 3, septiembre-diciembre 2018. PIAUÍ, APEPI. Relatório do presidente da província, Franklin de Américo de Menezes Doria, à Assembleia Legislativa. 12 de julho de 1865. LIGA E PROGRESSO. Número 98. Anno IV. Theresina, Quarta-feira, 7 de junho de 1865. Disponível em http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso: 14.10.2018. LIGA E PROGRESSO. Número 95, ano IV. Theresina. Sabbado 06 de maio de 1865. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018. LIGA E PROGRESSO. Número 93, ano IV. Theresina. Quarta-Feira 19 de abril de 1865. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018. LIGA E PROGRESSO. Número 94, ano IV. Theresina. Segunda-Feira 3 de abril de 1865. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso: 14.10.2018. LIGA E PROGRESSO.Theresina. Anno IV. Numero 90. Segunda-Feira. 27 de março de 1865. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso 14.10.2018. [ 100 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Mudanças socioambientais provocadas pela modernização da agricultura no norte do Rio Grande do Sul: 1950-1970 Marcos Paulo de Oliveira Junior1 Resumo: A pesquisa busca compreender as transformações socioambientais, pós-introduzidas pela modernização da agricultura no Norte do Rio Grande do Sul, onde atualmente se encontram os municípios de Carazinho, Não me-Toque. Esse recorte regional está articulado com o processo global de transformações da agricultura e precisa ser compreendido nesse contexto. O recorte temporal começa um pouco antes do auge da modernização da agricultura na região, que ocorreu por volta de 1960 e se estendeu até os anos de 1970. A pesquisa emprega os referenciais conceituais e metodológicos da História Ambiental e utiliza como fontes: mapas de agrimensores, jornais. Conclui-se, preliminarmente, que as principais mudanças socioambientais foram o desmatamento para abertura de novas áreas agrícolas e a contaminação do meio ambiente pelo uso de agroquímicos. Palavras-chave: Socioambiental. Modernização. Agricultura. 1. Introdução O presente artigo tem como objetivo compreender as transformações socioambientais, introduzidas pela modernização da agricultura, transformações essas analisadas desde sua origem, o seu impacto, tendo por base de que qualquer atividade que o homem exerça no meio ambiente provocará um impacto ambiental. Esse impacto, no entanto, pode ser positivo ou não. Infelizmente, na grande maioria das vezes, os impactos são negativos, acarretando degradação e poluição do ambiente. Por questões metodológicas, este artigo será organizado em três subdivisões. Na primeira, pretende-se compreender como se deu as primeiras transformações socioambientais na região. Na segunda, buscar-se-á justificar a opção metodológica de analisar como o processo de modernização foi chegando até esse colono e pequeno agricultor. E na terceira buscamos identificar os impactos ambientais que essas mudanças socioambientais causaram na região. 1.1 As transformações socioambientais antes do processo de modernização Impactos socioambientais são alterações sofridas no meio ambiente e que foram provocadas por determinadas ações ou atividades, impactando sobre a qualidade de vida, a saúde humana, a economia urbana e modificar ainda mais o meio ambiente e os ambientes construídos. Os impactos socioambientais têm origem na atividade humana. A principal vilã socioambiental é a indústria, que utiliza recursos naturais e despeja resíduos e poluentes nos meio ambientes. Nosso recorte temporal O recorte temporal começa um pouco antes do auge da modernização da agricultura na região, que ocorreu por volta de 1960 e se estendeu até os anos de 1970, e regional se delimita onde atualmente se encontra os municípios de Carazinho e Não-me-toque, que até os dias de hoje a agricultura é uma das principais atividades econômicas da região. Quando falamos em região é sempre algo complexo e necessário, ela não é predefinida nem juridicamente, nem economicamente, nem mesmo naturalmente, ela será sempre um recorte, ou seja, a separação de uma parte dentro de um todo maior, que dependerá sempre da problemática que se pretende analisar. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF), na linha de pesquisa: Espaço, Economia e Sociedade. Graduado no Curso de História Licenciatura da Universidade de Passo Fundo. Membro do Núcleo de Estudos Históricos do Mundo Rural (NEHMuR). Email: marcos_0407@outlook.com 1 [ 101 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS De acordo com Herédia, [...] la matriz etimológica de la palabra podría ser ubicada em la ciência geográfica, em cuanto su naturaliza responde, dentro de las ciências sociales y humanas, a la dimensión espacial. Sin embargo, podemos encontrarla em la terminologia de historiadores, literatos, sociólogos, economistas. De alli que sea conveniente formular ciertas precisiones em cuanto a su uso y significado em determinados sistemas de conocimiento. (HERÉDIA, 1996, p. 292) Como afirma a autora, região pode ser entendida como algo constituindo um espaço geográfico criado pelo homem, e que o homem a modifica. O significado de região não pode ser visto de forma separada da natureza e do meio geográfico, pois ambos se completam, adquirindo conexão própria, compondo os elementos que provém da investigação do meio com aqueles outros que formam o fundamento ideológico das pessoas. Ainda sobre história regional, outro conceito importante, é o de espaço, que vem a ser caracterizado “segundo Milton Santos como um fato social, produto da ação humana, uma natureza socializada que interfere no processo social, pela carga de historicidade possível de ser construída” (RECKZIEGEL, 1999, p. 15 – 22). Com base no conceito analisamos mapa, um de Maximiliano Beschoren, que foi um engenheiro, jornalista, e meteorologista alemão, que fez um mapa detalhado da região norte no ano de 1875, retratado em seu livro “Impressões de Viagem na Província do Rio Grande do Sul”, esse estudo parte do mapa de Beschoren para o mapa atual da região e assim analisaremos quais foram as transformações socioambientais pela modernização do campo. BESCHOREN, M. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989. [ 102 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS (Googlemaps) Como podemos observar nos dois mapas, as regiões onde havia mato, não se tem mais, atualmente encontramos campos de cultivo de soja, e também no mapa de Beschoren de 1875, ainda não existia o município de Não- me- toque. Que preliminarmente conclui se que o município é fruto dessa modernização consequentemente uma transformação socioambiental com imenso impacto ambiental. Se a História da Humanidade tem um “cenário” com certeza os homens modificam esse “cenário” conforme suas atitudes para com ele através do tempo. Impactos ambientais geram transformações socioambientais, sejam eles impactos positivos ou negativos, a realidade é que de uma visão filosófica o homem tem que lidar com as consequências do seu próprio comportamento ao longo do tempo. O Rio Grande do Sul, antes dos colonos imigrantes, estava ocupado por matas de pinhais e várias outras arvores que constituíam sua parte de mato, sendo esse um rico mato principalmente para tribos indígenas que aqui estavam, dentre as inúmeras tribos em sua maioria encontramos kaigangs, os quais seriam os grandes responsáveis ou “semeadores’ de tantas araucárias encontradas nessa região, devido ao consumo do famoso pinhão, semente da arvore araucária, que fazia parte de sua dieta, e que por consequência iam espalhando pelos matos adentro outras sementes de araucária”. Segundo Notzold: Estes grupos exploravam o meio em que viviam de acordo com a época do ano, dando origem assim a diversos sítios arqueológicos (sítios habitação, maior permanência do grupo; sítios acampamentos, menor permanência; sítios oficina, local de extração de matéria-prima). Sua alimentação baseava-se na caça de animais de pequeno e médio porte e na coleta de frutos, raízes e principalmente do pinhão, que eles encontravam em grande quantidade nas araucárias, vegetação característica de sua região. (NOTZÖLD. 2003, p.48.) Essa transformação socioambiental, causada pelo impacto ambiental da dieta das tribos Kaigangs abre nossa pesquisa como sendo a primeira ação do homem sobre nossas matas, esse pode ser um impacto positivo, afinal não há uma exploração abusiva da planta, mas sim um replantio, claro que não podemos esquecer que de modo involuntário, onde acontecia de maneira natural sem uma consciência ambiental. Com as políticas de imigração e sua grande promessa de terras para colonos, os territórios indígenas foram sendo dizimados pouco a pouco e todos os grupos kaingang e caciques que viviam no Sul do Brasil foram praticamente conquistados e aldeados no século XIX, provocando assim mais um impacto ambiental, se por um lado temos a dieta indígena que espalhou araucárias pelo Sul, temos a vinda do colono que destrói a mata para fazer lavouras, queimadas e desmatamento desenfreado tomaram conta da região Sul do Brasil no [ 103 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS século XIX. A tomada da maioria dos territórios indígenas do Sul provoca não só o fim de uma cultura, mas como também afetou completamente no “serviço ambiental”, segundo o biólogo Henry Phillippe Ibanes de Novion: Os serviços ambientais prestados pela natureza fornecem produtos como alimentos, remédios naturais, fibras, combustíveis, água, oxigênio etc.; e garantem o bom funcionamento dos processos naturais como o controle do clima, a purificação da água, os ciclos de chuva, o equilíbrio climático, o oxigênio para respirarmos, a fertilidade dos solos e a reciclagem dos nutrientes necessários, por exemplo, para a agricultura. Ou seja, os serviços ambientais são as atividades, produtos e processos que a natureza nos fornece e que possibilitam que a vida como conhecemos possa ocorrer sem maiores custos para a humanidade. Outros exemplos de serviços ambientais são: a produção de oxigênio e a purificação do ar pelas plantas; a estabilidade das condições climáticas, com a moderação das temperaturas, das chuvas e da força dos ventos e das marés; e a capacidade de produção de água e o equilíbrio do ciclo hidrológico, com o controle das enchentes e das secas. Tais serviços também correspondem ao fluxo de materiais, energia e informação dos estoques de capital natural. A continuidade ou manutenção desses serviços, essenciais à sobrevivência de todas as espécies, depende, diretamente, de conservação e preservação ambiental, bem como de práticas que minimizem os impactos das ações humanas sobre o ambiente. (NOVION. 2011, p.53) Os povos indígenas e comunidades tradicionais, que historicamente preservaram o meio ambiente e usaram de modo consciente e sustentável seus recursos e serviços, são também responsáveis pelo fornecimento desses serviços ambientais, são o que se chama de provedores de serviços ambientais. Ao permitir que o ambiente mantenha suas características naturais e siga fornecendo os serviços ambientais, estes povos e comunidades garantem o fornecimento dos serviços ambientais que são usados por todos. Os serviços de preservar a natureza e suas características, conservar a biodiversidade, fornecer água de qualidade (porque preservam a mata na nascente e na margem dos rios) é só mais um exemplo do que esse conflito entre indígenas e colonos e a “conquista” desses colonos causou em níveis ambientais. Dessa maneira com a campanha de incentivo a imigração, organizada pelo governo brasileiro no século XIX, tinha um interesse econômico, porém com o acesso a compra de terras facilitada e incentivando a agricultura nas terras que eram matos, os colonos começam suas atividades que sem controle e sem uma educação ambiental ou consciência ambiental nenhuma, mudaram para sempre a paisagem geográfica do Rio Grande do Sul, aumentando e muito seus campos, explorando cada vez mais essa natureza, sem dar nada em troca de forma abusiva e sem freio. A colonização alemã e Italiana começou pela intenção de povoar o Rio Grande do Sul, garantindo a posse do território ameaçado pelos vizinhos Castelhanos. Além disso, outro objetivo da busca de alemães e italianos era recrutar soldados mercenários para reforçar o exército brasileiro, recém-independente. Para falarmos um pouco da agricultura do Rio Grande do Sul, não podemos deixar de falar sobre a imigração já que ela que da a origem para o plantio da região Sul do Brasil, para começarmos a pensar em agricultura voltamos para a colonização da região sul que começou por volta do ano de 1648 com os portugueses fundando a Vila de Paranaguá a mais antiga cidade da região sul do Brasil e do Paraná. Com a Proclamação da República no Brasil, as terras devolutas passaram para os estados, assim como a responsabilidade pela colonização. No Rio Grande do Sul, o governo positivista defendeu a imigração espontânea e a colonização particular. Rapidamente, o planalto gaúcho foi transformado em zona colonial, com a instalação das colônias novas de iniciativa pública e privada, atraídas pelas possibilidades de exploração do comércio de terras e pela obtenção de lucros fáceis. Os imigrantes chegados ao Brasil encontravam uma realidade muito diferente da proposta feita pela propaganda em seu país de origem. A propaganda de terras com o pagamento em prazo estendido e [ 104 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS facilitado, não mencionava que essas terras eram mato, assim que instalado o Colono europeu começa o processo de queima e derrubada do mato, “limpeza”, para poder começar a plantar. Esse processo começou com uma agricultura familiar de forma totalmente manual. Os imigrantes europeus que vieram para cá não vieram sós, com eles vieram toda sua cultura e seu molde de vida e produção, a forma de vida não foi muito modificada só importada e um pouco adaptada, construíram casas nos moldes europeus, e trouxeram até seu folclore fixado até hoje nas regiões de imigração que hoje é conhecida no mundo inteira como pedaço da Europa no Brasil. A agricultura era baseada na produção de excedente, produziam entre famílias para consumo próprio e para comércio, com isso a agricultura aqui instaurada não se detinha a um só plantio até pelo clima temperado, mas sim de um diversificado agrário. Plantava se de tudo, mas destaca se o fumo, arroz, trigo, soja, cebola, batata, com esse modo de plantio diversificado os agricultores criavam certo tipo de ligação com os comerciantes, atacadistas ou a própria indústria, que beneficiou este tipo de produção. Na região norte do Rio Grande do Sul, mais precisamente na região onde hoje se encontra os municípios de Carazinho e Não- me-toque, não foi diferente, os colonos alemães também chegaram nessa região, porém já havia a presença de lusos portugueses que deram origem a Grande fazenda não me toque, após é claro expulsar os indígenas de suas terras. Na época das instalações das fazendas pelos portugueses em 1827, muitas recebiam denominações como Invernada Grande, Pessegueiro, Invernadinha, e uma delas, pela denominação nos chama atenção, pois denominou-se Fazenda Não-Me-Toque. Sua existência é confirmada por uma escritura pública encontrada no Cartório de Registro de Imóveis de Passo Fundo, datada em 20 de julho de 1885.(SCHERER. 2004,p.34) As terras do hoje município de Não-me-toque, como em outros municípios da região, tiveram a presença de índios como primeiros habitantes nativos. A partir de 1827, começaram a chegar na região do Planalto Médio elementos lusos, iniciando a atividade pecuária nas grandes estâncias por eles instaladas. Em meados do século XX, os descendentes de italianos e alemães buscaram na Colônia Nova do "Alto Jacuhy" (hoje Alto Jacuí) melhores condições de vida e, nos lotes de terras adquiridos, começaram a dedicar-se à agricultura e à extração de madeira, bem como instalação de pequenas fábricas e casas comerciais, tornando Não-Me-Toque sede da Colônia do Alto Jacuhy (1900). (SHERER, 2004,p.18-24) A religião e a educação foram sempre as molas propulsoras do pequeno povoado que passou à vila, fazendo parte das terras de Rio Pardo, Cruz Alta, para posteriormente tornar-se distrito de Passo Fundo e Carazinho. A partir de 1949 começam a chegar os imigrantes holandeses e o município passa a ser o berço da imigração holandesa no Rio Grande do Sul. Em 18 de dezembro de 1954 foi criado o município de Não-MeToque, sendo instalado em 28 de fevereiro de 1955. A sua população é composta, principalmente, por descendentes de alemães, italianos, holandeses e uma parcela de portugueses, que vivem até hoje em sua grande maioria por meio de atividades agrícolas providas da modernização da agricultura. 1.2 A modernização da agricultura e as mudanças socioambientais provocadas Quando falamos em modernização, não podemos esquecer de que ela não é só uma questão de industrialização ou de novas tecnologias, mas sim um conjunto de novos olhares, e modos de se viver a vida em sociedade através desses meios providos pela modernização, porém para entrarem de modo social essas novas tecnologias devem ser aceitas no âmbito social em massa, construindo assim um novo pensamento e em uma escala de processo continuo um novo homem. De acordo com o teórico social Peter Wagner, a modernização pode ser vista como um processo e como uma ofensiva. A primeira visão é comumente projetada por políticos e pela mídia, e sugere que é o desenvolvimento, originando novos dados tecnológicos ou leis ultrapassadas, que tornam a modernização necessária ou preferível. Esta visão critica as dificuldades da modernização, visto que implica que são estes [ 105 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS desenvolvimentos que controlam os limites da interação humana e não o contrário. A visão que considera a modernização como uma ofensiva argumenta que tanto o desenvolvimento e as novas oportunidades tornadas disponíveis por ele, são moldados e controlados por agentes humanos. Logo, este ponto de vista vê o processo como um produto do planejamento e ação humanos, um processo ativo capaz de ser tanto alterado quanto criticado. A modernização é muito mais provavelmente, um dos mais influentes acontecimentos numa sociedade. Nessa transição de agricultura familiar, para maquinários e agroquímicos, podemos destacar nos agricultores o novo pensamento que Segundo Ponting há uma mudança no modo de pensar a relação Homem e Natureza. Essa mudança de atitude pode ser um desdobramento da degradação ambiental causada pelo uso abusivo e descontrolado dos recursos naturais, e os problemas decorrentes desse processo diversas partes do globo. Assim, a história humana se apresenta também como a história do ambiente, por andarem juntas, pelas ações do homem ter impacto direto em seu meio ambiente. Com a modernidade o homem se desvincula da natureza, e se tranca em um pensamento e uma filosofia de vida onde só o homem é o protagonista e passa a ver a natureza como um recurso para adquirir um fim. O homem passa a se ver como dominador no caso da natureza e vai se sobrepuser a ela, então é ai que começa “a mecanização do planeta” é nesse ambiente ideológico que a ciência moderna se formou e que ainda a influência de forma significativa. A partir dos anos 80 a mecanização do campo começou a ser intensificada, essa transformação segundo George Martine é denominada de “caificação” que seria a mudança e evolução do modo de produção e cultivo agrícola, que antes era praticamente todo manual e familiar, e que com a mecanização passou a ser muito mais moderno e fácil e também mais produtivo e rápido, substituindo o trabalho braçal pelas maquinas. Essa caificação era vista como a solução global para a agricultura e para a sociedade. No Brasil essa visão revolucionaria nos meios de produção começa a partir de 1960, tendo a região Sul e São Paulo como referência em produção agrícola obtendo a maioria de tratores do país. Essa modernização foi acontecendo de forma compulsória devido aos financiamentos agrícolas facilitados e incentivados, já com o viés de obter tal modernização para fins econômicos, pois a partir da mecanização a produção seria exorbitante. A modernização da agricultura não ocorreu de forma isolada no Brasil, mas sim como um fenômeno mundial. Este processo constitui uma etapa da evolução da agricultura, baseada nas transformações tecnológicas, insumos, máquinas e equipamentos, tendo como ponto de partida a revolução verde. A modernização da agricultura pode ser caracterizada pela mudança da base técnica da produção agrícola iniciada depois da segunda guerra mundial, com a maior utilização de equipamentos e insumos, cuja resultante foi o aumento imediato da produtividade dos fatores. O processo de modernização acarretou uma integração técnica intra-setorial entre a mercantilização da agricultura, ao mesmo tempo em que promove a substituição de elementos internos do complexo rural por compras extra-setoriais, como máquinas e insumos, e, desta forma, induz à criação de indústrias de bens de capital e insumos para o setor agrícola (COSTA, 2002,p.44). A modernização ligou-se à Revolução Verde, um programa encabeçado pelo grupo econômico Rockfeller, que: Tinha como objetivo explícito contribuir para o aumento da produção e da produtividade agrícola no mundo, através do desenvolvimento de experiências no campo da genética vegetal para a criação e multiplicação de sementes adequadas às condições dos diferentes solos e climas e resistentes às doenças e pragas, bem como da descoberta e aplicação de técnicas agrícolas ou tratos culturais mais modernos e eficientes (BRUM, 1985, p. 59). [ 106 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS De acordo com o sociólogo Antônio Andrioli, a Revolução Verde baseava-se em três elementos interligados: 1) a mecanização, através da produção de tratores, colheitadeiras e equipamentos; 2) a aplicação de adubo químico, pesticidas e medicamentos para a criação de animais; 3) o progresso na biologia, através do desenvolvimento de sementes híbridas e novas raças de animais com potencial produtivo superior (2008, p. 103). Esse grande interesse econômico pautado na agricultura mundial, tinha um discurso de preocupação com a população do mundo, onde um estudo feito pelos empresários do grupo Rockfeller, propagou na imprensa mundial que o mundo poderia vir a sofrer com uma grande crise de alimentos para a população, sendo assim a Revolução Verde seria o grande programa para sanar a fome no mundo. Como podemos observar a Revolução Verde não sanou a fome no mundo, porém transformou a agricultura em agronegócio e expandiu o capitalismo também para o mundo rural. Então a partir do ano de 1960 começa esse alto investimento na modernização da agricultura, que grosso modo identificamos que o maior produtor teve acesso a tecnologias de pesquisa de solo, crédito fácil, e assistência técnica, a fim de produzir tanto para o comércio externo quanto o interno. Enquanto que o pequeno agricultor ficou com o velho plantio tradicional e familiar, se baseava na produção de excedente e comercializava com os pequenos mercados urbanos, os mesmos que devido comercializar com a massa urbana de baixo poder aquisitivo segurava o preço dos produtos em baixa também. Essa modernização foi denominada "dolorosa" por Graziano e "modernização conservadora" por vários autores, tendo em vista que o processo de reestruturação produtiva se deu sem a alteração da distribuição da posse da terra em espaços agrários concentrados, especializados em atividades intensivas em capital (soja, milho, trigo, etc.). Com isso, houve o favorecimento das grandes propriedades e a concentração da terra, sob o forte apoio do Estado, que se revelou socialmente seletivo, com as propriedades sendo conduzidas por tecnologias poupadoras de emprego, trazendo consequências negativas para os trabalhadores rurais, ocasionando a migração forçada de milhares de famílias do interior para os centros urbanos (MENDONÇA et al., 2002). Além do êxodo rural a modernização da agricultura causou em muitos lugares do mundo impactos ambientais gigantescos, transformações socioambientais permanentes e visíveis nos dias atuais, tais como: surgimento de cidades, desmatamento, auto índice de doenças causadas pelo uso de agrotóxicos, a morte precoce de inúmeros agricultores que fizeram e fazem uso de agrotóxicos. Como podemos ver no mapa de Beschoren, a localização do atual município de Não- me- toque e grande parte dos arredores de Carazinho, eram em grande parte de mata ciliar, com grande presença de araucárias. Segundo a historiadora Eunice Sueli Nodari o desmatamento no sul do Brasil não se deu só por ser uma forma lucrativa, mas também pelo pensamento dos colonos de que a floresta é o grande empecilho da lavoura. É claro que com a modernização do campo, também temos novas áreas como a agroindústria que movimentou o comércio da madeira no século XX no Brasil, fortalecendo grande parte da economia nacional do período. Grande exemplo disso são as madeireiras nos municípios vizinhos que em sua grande maioria estão fechando as portas por falta de madeira na região. A modernização da agricultura nessa teve inicio na região pelo município de Não-me-toque, mais precisamente com a chegada dos imigrantes holandeses, a partir de 1949, que já tinham certa “experiência” com maquinas agrícolas. Segundo a pesquisadora Sandra Pedroso Cunha A partir de 1930, a atividade agrícola nas terras de Não-Me-Toque, passou a exigir novas formas de adubação nas lavouras e o uso de máquinas agrícolas. Esse progresso na agricultura torna imprescindível a implantação da lavoura mecanizada. Em 1948, começam a chegar as primeiras famílias neste estado do Rio [ 107 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Grande do Sul, sendo os Rauwers e Melis as primeiras famílias a chegarem em Não-Me-Toque. Juntamente com os holandeses chegou a mecanização agrícola que impulsionou nossa região. E assim Não-Me-Toque vai se desenvolvendo em todos os setores: saúde, religião, educação, agricultura…Logo, a partir de 1949, com a chegada dos imigrantes holandeses, experientes na mecanização das lavouras, propiciou um avanço com a fabricação de máquinas agrícolas. Surgem empresas que passam a trabalhar com sementes selecionadas. Todos esses aspectos justificam a fama do município, além de ser pioneiro no uso de tratores, plantadeiras, colheitadeiras, tornando Não-Me-Toque popularmente conhecida como “Capital da Lavoura Mecanizada.(CUNHA,2004,p.27) Esse processo de modernização, da um salto a partir de 1960, não só na região de Não Me Toque e Carazinho, mas também no âmbito mundial. Com os altos investimentos na agricultura a Revolução Verde de Nelson Rockfeller e seu grupo de empresários famintos por lucros, surgem com eles vários estudos sobre a terra e também vários incentivos ao agricultor do próprio governo nacional brasileiro. A Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), ira surgir exatamente nesse contexto, mais precisamente no ano de 1957, o programa rural existente até os dias atuais, iniciou seus trabalhos no sul com a Operação tatu. A Operação Tatú, como ficou conhecido o Plano Estadual de Melhoramento da Fertilidade do Solo, na década de 1960, viria para resolver o problema da falta de fertilidade do solo. Com a disseminação do uso do calcário e o consequente aumento dos níveis de cálcio e magnésio, a Operação Tatú elevou a produtividade agrícola. (EMATER, 2011) Hoje, já se percebe um progresso com base no avanço da ciência do solo, através da geração do conhecimento ao longo do tempo. Nos anos 1960 eram encontrados problemas de fertilidade. Já nas décadas de 1970 e 1980, as dificuldades estavam na conservação. De lá para cá houve grandes evoluções. Atualmente, as maiores preocupações são com problemas climáticos, o controle de emissão de gases e o cuidado com o descarte de dejetos a fim de não afetar o solo.( EMATER,2011,p.1). A partir de 1967, A modernização da agricultura e seu pacote tecnológico apresentam os herbicidas, fertilizantes, fungicidas, ou seja, venenos e adubos químicos, produzidos pela indústria com objetivo de combater as pragas e auxiliar no aumento da produtividade. Segundo Nodari: Os agrotóxicos eram parte do pacote tecnológico da modernização agrícola ou revolução verde e, portanto, sua percepção e sua utilização estavam totalmente conectadas com uma série de tecnologias agrícolas, como fertilizantes sintéticos, calcário, tratores, sementes certificadas e demais implementos agrícolas. Para convencer os agricultores a utilizar tais tecnologias, o governo brasileiro e os estados utilizaram a concepção e métodos de extensão rural importados dos EUA e criaram, a partir da década de 1950, escritórios de assistência técnica, contratando técnicos agrícolas, engenheiros-agrônomos, veterinários e economistas domésticos. No estado de Santa Catarina, foi criada a Associação de Crédito e Assistência Rural do Estado de Santa Catarina (Acaresc), em 1957. Na sequência, crucial para a disseminação dessas tecnologias foi a implantação de um amplo e generoso sistema de crédito rural a partir do regime militar de 1964...(2017,p.78) Com novas técnicas e equipamentos modernos, o produtor passa a depender cada vez menos da “generosidade” da natureza, adaptando-a mais facilmente de acordo com seus interesses. Um grande exemplo de tal feito seria os parreirais mineiros, logo que só se cultivava uva na região Sul do Brasil, hoje [ 108 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS graças aos agrotóxicos podemos plantar praticamente tudo em qualquer lugar do mundo, sem depender das condições climáticas naturais de tal região. Esse processo incentivou a prática de monocultivos, o uso de sementes geneticamente modificadas, a forte mecanização do campo e o uso dos pacotes agroquímicos. Quase toda a tecnologia que surgiu na revolução verde, desde as máquinas aos agrotóxicos, foi proveniente de adaptações de pesquisas e equipamentos utilizados na guerra. A produção e a comercialização dos agro venenos no Brasil e no mundo se concentra na mão de seis grandes empresas transnacionais, que controlam mais de 80% do mercado de venenos. São elas: Monsanto, Syngenta, Bayer, Dupont, Dow e Basf. Os agrotóxicos chegaram ao Sul do país junto com a monocultura da soja, trigo e arroz, associados á utilização obrigatória desses produtos para quem pretendesse usar o crédito rural. Hoje em dia, os agrotóxicos encontram- se disseminados na agricultura convencional como uma solução de curto prazo para a infestação de pragas e doenças. Com essa ‘obrigação’ de comprar e usar os agrotóxicos os agricultores acabaram gerando uma grande contaminação do meio ambiente mesmo sem saber. Na Europa não foi muito diferente, além dos problemas ambientais é necessário observar que a fome de todos os famintos não teve fim. No entanto, por esse caminho a agricultura está cada vez mais subordinada à indústria, que dita as regras de produção de acordo com a sua demanda. 1.3 Os impactos ambientais que essas mudanças socioambientais causaram na região O presente artigo permitiu a compreensão de parte do processo de modernização da agricultura no, município de Carazinho e Não Me Toque, dos incentivos e do trabalho de imprensa, Emater e do Governo brasileiro. Considerando que a atual região de Carazinho e Não Me Toque, desde a sua colonização foi fortemente marcado pela agricultura, advindo dos indígenas, caboclos e dos povos europeus, a agricultura fora parte do cotidiano, rotina de trabalho dos indivíduos então nas décadas de 1960 a 1970 a houve a modificação da agricultura convencional para a entrada da modernização, na introdução do uso de máquinas, equipamentos, agrotóxicos e agroquímicos refletindo assim, não só no meio rural mas também no urbano. Além das empresas representantes das indústrias de insumos e equipamentos para a agricultura que estão até hoje em funcionamento, temos o auxilio da Emater impulsionando esse processo de modernização que continua em andamento dia após dia. A pesquisa, na interpretação de suas fontes, nos permitiu compreender o contexto em que estavam inseridos, preenchendo algumas lacunas da história do processo de modernização da agrícola do município de Carazinho, ao mesmo tempo em que nos abre espaço para novas indagações e muitos temas que podem ser explorados por meio de novas pesquisas históricas. Não podemos deixar de questionar, os vários rumos que nossa pesquisa nos traz, as várias facetas e também o caráter dessa modernização que era “solução”, mas que apresenta uma grande preocupação com lucros. A quem serviu essa modernização? , a pesquisa nos deixou claro de que essa modernização foi benéfica para grandes agricultores e que os pequenos produtores ainda continuaram um bom tempo com a mão de obra familiar. O desmatamento, a contaminação das águas e do solo são problemas que impactam a atualidade, mas cuja origem está há algumas décadas, por ocasião da intensificação do processo de industrialização e da utilização intensa dos bens naturais orientados para atividades agrícolas. Transformações socioambientais, em sua grande maioria permanente, como praticamente o fim das florestas de araucárias, o surgimento de uma cidade, advinda do processo de modernização. REFERÊNCIAS: ANDRIOLI, A. I. O fim da picada: plantas transgênicas em expansão na América Latina. In: ANDRIOLI, A. I.; FUCHS, Richard. (Org.). Transgênicos: as sementes do mal. A silenciosa contaminação de solos e alimento. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008. [ 109 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS ASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. ARNOLD, David. The problem of Nature. Oxford: Blackwell, 1996. ASDAL, Kristin. The problematic Nature of Nature: the post-constructivist challenge to environmental history. History and Theory, n.42-1, 2003. BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de viagem na Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989. BRUM, Argemiro Jacob. Modernização da agricultura: trigo e soja. Ijuí: Fidene, 1985. CARVALHO, Miguel Mundstock Xavier de; NODARI, Eunice Sueli; NODARI, Rubens Onofre. “Defensivos” ou “agrotóxicos”? História do uso e da percepção dos agrotóxicos no estado de Santa Catarina, Brasil, 19502002. 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[ 110 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS [ 111 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Pós-Abolição em Palmas/PR: trabalho e interação social (1888-1900) Maria Claudia de Oliveira Martins1 Resumo: O presente artigo tem o propósito de analisar os caminhos percorridos pelos ex-escravizados após a abolição da escravidão, no que se refere ao trabalho e interação social, constatando-se que, para além da questão de garantir a sobrevivência, tratava-se da luta por conquistar espaço no mundo dos indivíduos livres. Uma luta extremamente espinhosa, em razão dos vários obstáculos que se apresentavam às relações sociais e às oportunidades de promoção pessoal para os egressos do cativeiro. Para os referidos estudos foram consultadas fontes cartoriais, eclesiásticas, atas da Câmara de Palmas e processos da vara criminal do fórum daquela cidade, no período entre 1888 e 1900. O fim da escravização legal no Brasil, que perdurou por cerca de três séculos, impôs aos egressos do cativeiro o desafio de encontrar o seu espaço e serem aceitos no “mundo dos livres”. Desafio árduo, ao se considerar que a liberdade concedida por meio da Lei Áurea não teve respaldo de leis e nem ações efetivas voltadas a garantir oportunidades e direitos civis, políticos ou sociais àqueles que deixaram o cativeiro. Conforme Lima (2005, p. 308), [...] (havia uma) perspectiva pouco promissora de acesso aos atributos positivos que revestiam a noção de ‘liberdade’ como ideal e horizonte de expectativa: o acesso à propriedade e a um ofício remunerado que permitisse viver dignamente por si, a garantia de poder construir autonomamente seus vínculos de sociabilidade e pertencimento. Desse modo, coube aos próprios libertos estabelecer estratégias para a vida em liberdade. Decidir, diante de uma gama limitada de possibilidades, o que fazer e como contornar as dificuldades que se lhes apresentavam. O lócus deste estudo foi a Comarca de Palmas, que se localizava a sudoeste da Província do Paraná, mas que se destacava por sua posição geopolítica estratégica, alvo de litígio entre províncias nacionais e de disputa internacional, com a Argentina. Caracteristicamente rural e ancorada economicamente na pecuária (criação e invernagem de muares, cavalares e gado vacum), utilizou-se da mão de obra cativa em escravarias pequenas e médias, as quais poderiam contar desde um indivíduo, até pouco mais de vinte escravos2(MARTINS, 2017 p.29 e 35). Por sua vez, as fontes utilizadas para este artigo foram os registros eclesiásticos da Cúria Metropolitana, as atas da Câmara Municipal e os processos da Vara Cível e Criminal do Fórum de Palmas/PR, os quais expressaram, direta e indiretamente, o cotidiano e relações pessoais e de trabalho dos libertos de 1888. Abolição em Palmas A notícia da extinção da escravidão negra foi comunicada aos camaristas de Palmas por via telegráfica, em 14 de maio de 1888 e não provocou reações de entusiasmo, tampouco de protesto. Ao contrário da vizinha Guarapuava, na qual se noticiou a resistência de alguns senhores escravistas em Mestre em História pela UPF- Universidade de Passo Fundo. E-mail: claudia.om@terra.com.br Este trabalho pautou-se em Helen Osório, que qualifica como pequenas as escravarias da atividade pecuária rio-grandense com até 9 cativos e grandes, aquelas cujo número de escravos seja de 40 ou mais indivíduos (OSÓRIO, 2005 p. 4). 1 2 [ 112 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS conceder liberdade aos seus cativos, os palmenses não esboçaram nenhuma reação neste sentido (pelo menos, que se preserve o registro). Uma mensagem formal de felicitações à Princesa Isabel foi enviada apenas em 28 de junho do mesmo ano, rogando ao Presidente da Província que a fizesse chegar à sua destinatária. Imagem 1– Comunicado sobre a decretação do fim da escravidão no Brasil Fonte: Biblioteca do IFPR – campus Palmas Imagem 2- Mensagem de felicitações à Princesa Isabel Fonte: Livro de correspondências e atas da Câmara de Palmas. Biblioteca IFPR. Não há um informe preciso quanto ao número de pessoas que ainda se achavam em situação de escravização na comarca palmense, naquele momento. Os dados oficiais mais próximos daquela data encontravam-se em relatório provincial do 2º semestre do ano de 1886 3, em tabela na qual era informada a distribuição de cotas do Fundo de Emancipação e que mencionava a quantidade de escravos dos municípios paranaenses. De acordo com aquele documento, ainda havia 227 cativos em Palmas. Dada a sua quantidade relativamente baixa (em relação a outras locais do país) seria possível, então, considerar desnecessária a mão de obra escrava naquela Comarca? Pensar que não faria nenhuma falta? Àquela altura, teria sido substituída por trabalhadores imigrantes ou perdido sua importância para os fazendeiros locais? Por certo, não. Conforme informado em trabalho precedente, a imigração europeia para os locais mais distantes do litoral e das capitais ocorria em volume e ritmo mais lento do que o desejado. Tais Relatório do Presidente da Província do Paraná, Faria Sobrinho, p. 17. Data: 30 de outubro de 1886. Disponível em http://www.arquivopublico.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/rel_1886_b_p.pdf Acesso em 30 de agosto de 2018. 3 [ 113 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS informações eram prestadas pela Inspetoria Geral de Terras e analisadas com manifesta preocupação, pelo próprio presidente da província. Palmas estava incluída entre os diversos pontos da província que receberam imigrantes europeus de forma lenta e em pequenos grupos (MARTINS, 2017 p. 98-99). Algumas das fazendas da região, como a Caldeiras 4 e a Santa Tecla5, foram vendidas exatamente nos anos subsequentes a 1888, o que pode indicar certa desilusão com a retração dos negócios da pecuária, em queda após a década de 1860 e a perda dos trabalhadores escravizados. Nos anúncios publicados no jornal 6, recomendava-se a fazenda Caldeiras como um bom espaço para a fundação de colônias. Seus proprietários indicavam novos usos àquele espaço. Aos proprietários de terras que permaneceram em suas atividades e aos antigos senhores de escravos palmenses em geral, coube reelaborar seus estratagemas para garantir trabalhadores, preferencialmente gratuitos ou em condição muito aproximada ao trabalho sob regime de escravidão. E eles não hesitaram em fazer uso dos expedientes que lhes eram possíveis, como as alforrias condicionais, as quais se avolumaram naquela localidade nos anos que antecederam a abolição (59,3% condicionais contra 40,7% incondicionais, entre os anos de 1880 e 1888), seguindo a tendência nacional (MARTINS, 2015 p.56). Também empregaram o expediente de requerer a tutela dos filhos das mulheres libertas, utilizando-se dos vínculos familiares como meio de retê-las junto aos antigos sítios de trabalho, além de explorar como mão de obra os menores, até completarem 21 anos 7. Do exposto acima, contudo, não se depreenda que não houve escolha para aqueles que alcançaram a liberdade. Ou ainda que os mesmos tenham se comportado de forma apenas reativa, sem traçar seus próprios projetos e estratégias para a vida em liberdade. É este o ponto que queremos desenvolver a seguir. Vida cativa e vida livre O cativeiro negro em regiões de pecuária guardou algumas peculiaridades em relação ao trabalho forçado nas regiões em que predominaram outras atividades econômicas. Entre as referidas singularidades estava uma maior liberdade de ir e vir, motivada pela necessidade de recolher e transportar animais dentro dos limites da propriedade e fora dela, incluindo participar de tropas que iam buscar animais no Rio Grande do Sul ou levá-los a Sorocaba. Esta liberdade relativa, contudo, não equivalia à ausência de controle, mas provavelmente um monitoramento em nível até mais elevado, dado que ao deslocar-se o cativo era vigiado pelos olhares do capataz ou líder da tropa e também pela desconfiança das pessoas livres por onde passassem. Ademais, cumpriam tais atividades aqueles cativos que se mostrassem confiáveis ao senhor, uma vez que lhe eram individualmente conhecidos. Conforme Monsma (2011, p.2) A força de trabalho relativamente pequena [...] significava que mesmo os grandes estancieiros conheciam seus escravos por nome, se moravam nas suas propriedades. No caso dos estancieiros que moravam nas cidades, seus capatazes tinham conhecimento individual dos cativos. Também é digno de destaque o fato de que as próprias tarefas diárias requeriam o uso de ferramentas que poderiam facilmente ser utilizadas como armas, como cordas facões, machados e foices, que eram necessárias para abrir picadas e resgatar animais do plantel, consertar cercas e cumprir outros encargos, como o corte de árvores tombadas (WACHOWICZ, 1987 p.60). Wachowicz, em relação ao Paraná e Monsma, quanto ao Rio Grande do Sul (nas obras precedentemente citadas), abordaram este aspecto do trabalho de cativos em zonas de pecuária. Enquanto o Proprietário até 1890: Luiz Lustosa de Souza Menezes. Proprietário até 1898: Estevão Ribeiro do Nascimento Júnior 6 A República- edições 00090, 00091 e 00092, abril de1890. 7 Utilizar-se dos serviços do menor constava entre as prerrogativas senhoriais previstas no parágrafo 1º do artigo 1 da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm Acesso em 05 de agosto de 2018. 4 5 [ 114 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS historiador paranaense limitou-se a constatar o uso daquelas ferramentas potencialmente perigosas, sem aprofundar discussões, Monsma creditou tal situação a um risco calculado, que o senhor abraçava com base em laços de fidelidade estabelecidos com sua pequena escravaria, que lhe reconhecia a autoridade. As ferramentas/armas eram usadas, ainda, para defesa, diante do ataque de animais selvagens ou, ainda, de grupos indígenas que resistiam em se submeter ao aldeamento e a situação de verem-se privados de suas terras ancestrais nos Campos de Palmas (MARTINS, 2017 p.50-51). É importante destacar que as características acima mencionadas não podem ser tomadas como indicativo de uma relação paternal entre senhores e cativos, ou que assinalasse equidade social. Ao contrário, havia limites muito bem traçados entre o que era permitido aos escravizados e o que correspondia à sociedade livre e branca, entre a participação social que lhes era admitida e o que lhes era vedado. Desta forma, tiveram que planejar meios de superar as interdições impostas, bem como as instituições e legislações que não os incluíam. Isso tanto quando ainda se encontravam em condição de escravização, quanto na medida em que adquiriram liberdade. Em condição cativa, foram utilizados estratégias como o estabelecimento de relações “verticais”, ou seja, naquela sociedade hierarquizada, estabelecer vínculos com pessoas mais bem posicionadas socialmente. Entre os referidos vínculos, os de compadrio. Além disso, na condição livre, buscaram se aproximar daquilo que identificava uma pessoa livre: um sobrenome, uma família “respeitável”, ou seja, que seguisse os preceitos religiosos e morais vigentes, aliado ao viver “de si” e morar “sobre si”. Modos de ser e de agir que os fizessem aceitos na comunidade. Indiciariamente, os libertos palmenses tentaram cumprir com esses requisitos e é sobre suas ações e decisões após a liberdade que trataremos na sequência. Primeiramente, voltamo-nos à questão da “respeitabilidade”. Quanto à oficialização dos casamentos, Isabel Reis (entre outros pesquisadores brasileiros), aventa a possibilidade de que o aumento na quantidade de relações oficializadas a partir da Lei de 1871 8, poderia estar ligado a um possível estratagema para incluir-se entre os libertos pelo Fundo de Emancipação (REIS, 2007 p.205). Deste modo, o móvel daquelas iniciativas seria totalmente pragmático, com vistas à liberdade. Entretanto, é possível pensar se a oficialização dos relacionamentos por meio do sacramento religioso católico também não seria parte de um projeto para obter aceitação social, ao partilhar ou demonstrar comunhão com os ritos e convenções morais comuns àquela sociedade e que adquire especial sentido a partir do momento em que a liberdade deixa de ser um projeto, para tornar-se realidade. Breve olhar sobre o livro de matrimônios da Cúria Diocesana de Palmas indicou que no ano de 1889, vários casais de egressos do cativeiro legitimaram suas uniões. Entre eles pode-se citar: Ignácio José da Luz e Theresa Maria Libania (09/03/1889), além de Saturnino José de Souza e Maria Alexandrina dos Santos (09/03/1889) todos ex-escravos; Lourenço Antonio de Paula e Maria Quitéria de Jesus (21/03/1889), em que ela havia sido cativa; Matheus Tigre da África e Prudência Carneiro (10/04/1889) e Benedicto Manoel Antonio e Clemência Maria da Conceição (29/04/1889), casais em que ambos os cônjuges são escravos; Francisco da Costa Ribeiro e Michaella Josepha (07/08/1889), no qual ambos são ex-escravos e ele é descrito como “natural da África”. São idosos. A probabilidade de que seus relacionamentos tenham se iniciado após a libertação não pode ser desconsiderada, ainda que pareça improvável. A dificuldade em comprovar que já eram precedentes, por outro lado, decorre de fatores como a omissão do registro da paternidade dos filhos de mulheres escravas que não fossem casadas. A menção ao nome do pai, caso fosse regularmente feita, seria um bom indicativo de quando se formaram os casais. Assim, um dos meios mais comuns para identificar relacionamentos duradouros, porém não oficializados, é por intermédio de documentos outros que façam menção ao casal (como em processos de tutelas ou em registros de ocorrências policiais, nos quais constava que a escrava ou liberta “vivia com fulano de tal”) ou por meio de informação do pároco, quando assumiam no matrimônio os filhos tidos antes do casamento. A Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, entre outras disposições, decretava a criação de um fundo para a emancipação gradual de escravos e os critérios de classificação dos cativos a serem emancipados foram definidos por decreto (complementar àquela lei) nº 5.135, de 28 de novembro de 1872, artigos 24 a 26. 8 [ 115 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Encontramos, ainda, mais 08 registros de filhos de libertos que se casaram ao longo do ano de 1889. Considera-se a possibilidade de um número mais ampliado de casamentos, mas somente foram admitidos para este trabalho aqueles em que houvesse no registro uma menção expressa à condição de anterior de escravizado (dos noivos ou seus pais). Para aqueles que já haviam nascido fora do cativeiro, pesava ainda mais a necessidade que se impunham, de enquadrar-se nas normas sociais. Tais dados refletem o que igualmente constataram Rios e Mattos (2004, p.187), especialmente para o período imediato pós 1888. Segundo aquelas pesquisadoras A busca coletiva de legalizar as relações familiares constituídas ainda sob o cativeiro é um índice expressivo das expectativas formadas a partir dessa nova condição de liberdade. Esta atitude se ligava a uma preocupação ainda maior. A de construir uma imagem positiva da pessoa e da família como parte de um conjunto de valores socialmente reconhecidos e reforçados, a que chamaremos de “reputação”. Legitimar a união e regularizar a situação dos filhos era uma maneira de colocar-se em igualdade com os casais brancos constituídos pelos chamados “homens bons”, mostrar que partilhavam dos mesmos valores daquele segmento social. E é o que parece haver sucedido com Thereza e Benedicto dos Santos Martins, ex-cativos que se casaram em 21 de agosto de 1888 e na ocasião não somente formalizaram sua relação como casal, como também reconheceram como legitimamente seus, dois dos cinco filhos de Thereza (Sebastiana e Olímpio, nascidos em 1883 e 1887, respectivamente), o que denotava relação estável e anterior. Comprometeram-se a criar, juntos, as demais crianças: Pio, Benedicto e Luiza. Em 1899, os dois rapazes constavam como lavradores e estavam aptos a votar, conforme registro no Livro de qualificação de Eleitores estaduais do município9. Aparentemente, transcorridos onze anos, a família havia se aproximado da mencionada “reputação” ao morar e viver sobre si, bem como pela aquisição de direitos políticos, mesmo que limitados 10. Trabalho e interação social Quanto ao trabalho, a condição livre supostamente ampliava as possibilidades para o exercício de outras atividades, pois o antigo cativo não mais ficaria restrito ao que lhe era imposto pelo senhor. O Censo de 1890 indicou, para Palmas, pessoas pretas e mestiças11 atuando em funções na atividade artística12, manufatureira e de transportes, as quais não constavam nos dados apresentados pelo Censo de 1872, bastante limitado13. Indicava também uma pequena participação de mestiços e de nenhum negro no ramo comercial. Ao mesmo tempo, ambos os levantamentos censitários apresentavam membros destes grupos como servidores domésticos, da atividade agrícola e pastoril, o que indicia a permanência nos mesmos sítios e atividades (MARTINS, 2017 p.91-92). Compreensivelmente, pode-se pensar: - Para onde ir e o que fazer, quando muitos passaram anos e décadas dentro da mesma fazenda, repetindo dia após dia as mesmas atividades? Sabe-se que muitos egressos do cativeiro mantiveram-se vinculados aos mesmos locais de seu cativeiro como agregados ou como Biblioteca IFPR- campus Palmas. Livro de qualificação de Eleitores estaduais do município. Alistamento eleitoral concluído em 31 de outubro de 1899, p.19-20. 10 Os direitos políticos garantidos aos relacionados no livro de qualificação correspondiam a escolher os membros do colégio eleitoral que escolheriam aquele que iriam compor a Câmara dos Deputados. GRAHAM, Richard. 1997. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. 11 As categorias “negro” e “mestiço” estão propostas no próprio censo. 12 O termo “artista”, segundo jornais cariocas da década de 1870, era utilizado para se referir aos seguintes ofícios: ferreiro, pedreiro, carpinteiro, marceneiro, pintor, tipógrafo, artistas mecânicos e até mesmo aos engenheiros (MORAES, 2017 p.7). MORAES, Renata Figueiredo. Escravidão e liberdade no século XIX: o diálogo entre trabalhadores livres e escravizados no Rio de Janeiro (1870-1888). XXIX Simpósio de História Nacional –ANPUH. Brasília, 2017. Disponível em http://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1501865423_ARQUIVO_RenataFigueiredoMoraes-Anpuh-ST095.pdf Acesso em 02 de setembro de 2017. 13 O Censo de 1872 foi o primeiro organizado pelo Império e teve como características ser pouco detalhado e possuir um viés urbano. Também foi bastante falho na coleta dos dados. 9 [ 116 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS empregados, em condições não muito diversas àquelas dos tempos de escravização. Contudo, independentemente da decisão de ficar ou de partir, que condições de trabalho os libertos encontraram? Vargas (2016, p.10) responde de forma concisa a esta pergunta, ao afirmar que A construção do mercado de trabalho – ou a superação definitiva da inexistência de trabalho assalariado do período anterior – criou novas possibilidades de dominação e novas relações de trabalho, as quais por sua vez fizeram uso das mesmas práticas patriarcais e autoritárias. Em Palmas, poucos contratos de trabalho foram registrados no tabelionato local, o que faz supor que a maioria dos acordos de trabalho tenha sido feitos informalmente, no qual as partes empenhavam “apenas” a sua palavra. Entre os contratos preservados à consulta na atualidade, a maior parte deles foi firmado com libertos do sexo masculino. Consta apenas um referente à contratação de uma antiga escrava para a realização de trabalhos domésticos, que a mesma já realizava como escravizada. Em relação ao salário proposto, este era extremamente baixo (80 mil réis anuais, ou seja, pouco mais de 6 mil réis ao mês), na comparação com o que era oferecido para as mesmas funções, em São Paulo (em torno de 20 mil réis mensais) (TELLES, 2011). Há que se considerar, contudo, o fato de que no caso paulista a atividade doméstica seria realizada no meio urbano, enquanto Eva (a escrava mencionada) desempenharia suas funções na fazenda de seu antigo senhor, o que pode ser um fator de diferenciação. Ainda sim, é possível afirmar que as condições de vida de Eva seguiriam extremamente precárias, mesmo se tornando assalariada. Por comodidade, no sentido do que lhe facilitasse o desempenho das funções, ou justamente em função de sua falta de recursos, tornou-se agregada na fazenda a qual trabalhara compulsoriamente como escravizada. Sem um local de moradia próprio, ao menos garantia a si e à sua família um pequeno espaço para a roça e criação de animais, que lhe permitiria subsistir. No que tange aos deveres da contratada, detalhados no documento, estava a “obrigação de obedecer em tudo que lhe fosse ordenado”, sem contestação 14. O referido trecho impunha a liberta um modo de proceder muito aproximado ao que se exigia de um escravizado, pautado na obediência e subordinação. De acordo com Barbosa, a regulação do trabalho sob o controle dos empregadores, neste período, era um misto de “força e favor” (BARBOSA, 2016 p.15). Fontes como os registros da vara criminal, inusitadamente, permitiram coletar informações adicionais quanto às ocupações profissionais assumidas no pós-abolição, confirmando as palavras de Rodrigues (2015, p.100), para quem estas fontes permitem “recuperar aspectos da experiência dos escravizados, sua maneira de pensar e atuar no espaço de vivência”. Em nossas pesquisas, os dados pessoais relatados por testemunhas e pelos envolvidos diretamente nos processos (acusados e vitimas) possibilitou saber, por exemplo, que parte das mulheres seguiram como costureiras ou como lavadeiras, mas na forma autônoma de prestação de serviços. Foi o caso da liberta Merenciana, cuja contestação à qualidade de seu trabalho acabou em rusga resolvida na polícia15. Dois anos após sua libertação encontramo-la cuidando das roupas de sua clientela. As permanências, contudo, vão além de continuar morando em Palmas e realizar as atividades já conhecidas. Prosseguem as difíceis condições de sobrevivência, agora na vida em liberdade. Indica-se no processo que seja representada pelo Ministério Público, uma vez que “[...]se acha ainda sob a pressão do ônus do cativeiro, tirando esmolas para remir-se, com o prazo de dois anos não tendo arrimo algum”. Também parece se aplicar a parda Anna, que declarou nos autos policiais ser lavadeira 16. Já em condição livre, num dos dias em que voltava da beira do rio, recebeu xingamentos e foi agredida fisicamente. Sobre a supracitada escrava, Eva Ferreira (também nominada como Eva Maria da Conceição) e seu contrato de trabalho, ver mais em MARTINS, Maria Claudia de Oliveira. Fronteiras fluidas : escravidão e liberdade na Comarca de Palmas/PR (1860-1900). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Passo Fundo, 2017. 15 Fórum Municipal de Palmas/PR – vara criminal. Sumário de culpa. Queixosa: Merenciana Preste(s) dos Santos, parda, liberta, residente em Palmas. Ré: Rosalina (de Tal). 16 Fórum Municipal de Palmas/PR – vara criminal. Corpo de delito de Anna liberta, 1888. 14 [ 117 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Reagiu e a discussão decorrente motivou o processo policial. A ocorrência que envolveu Anna pode ser interpretada como uma situação pontual ou, ainda, como um indício das dificuldades de inserção e acolhimento por parte da “porção branca” daquela sociedade. Diante dos vários obstáculos para a vida digna em liberdade, foi possível perceber que muitos egressos do cativeiro estabeleceram moradia próxima uns dos outros, na região da cidade conhecida como rocio17. A pesquisadora Lurdes Lago menciona uma possível doação de terrenos naquela área, adquiridos por um grupo de “cidadãos” palmenses interessados em manter próximo a si os ex-escravizados, mas esta informação não se confirma em nenhuma das fontes atualmente disponíveis à consulta (LAGO, 1987 p. 208). O que se mostra muito mais fácil de confirmar é que foram feitas algumas solicitações de terras (pequenas metragens) naquele espaço de administração pública, por meio de aforamento 18, nas quais a iniciativa partiu de pessoas “de cor” libertas precedentemente ou por ocasião da Lei Áurea. Sobre a concessão de cartas de foro, Findlay (2018 p.4) explica que o aforamento foi muito utilizado no Brasil como instrumento de povoamento, na medida em que as autoridades locais costumeiramente concediam aos solicitantes as terras do patrimônio público, visando ao mesmo tempo promover a ocupação territorial, estimular a produção local e aumentar as rendas governamentais com a cobrança do foro. A perda do domínio útil sobre o terreno concedido apenas se daria em caso de não pagamento dos valores devidos, por três anos consecutivos. Há registro de que a liberta Emília Maria da Conceição, casada com Germano Ferreira dos Santos, recebeu 30 metros no rocio da cidade. Por sua vez, Bento Manoel Francisco, esposo de Maria Eva de Jesus (ambos haviam sido cativos do fazendeiro Francisco de Assis Araújo Pimpão) foi uma das pessoas que constou como proprietário de 100 m de terreno, adquirido por carta de foro. Para além do local de morada, detinha apenas a posse de dois animais e era descrito como “miserável”. Vinte anos após a extinção da escravidão no Brasil, ambos os casais permaneceram em Palmas e o fato de não terem perdido os direitos a seus terrenos denota que cumprira as obrigações financeiras assumidas, mesmo com todas as dificuldades enfrentadas19. É importante destacar que os casos citados são apenas demonstrativos e não expressam o total de egressos do cativeiro que passaram a morar na região do rocio palmense após a liberdade. Por outro lado, não somente as moradias vizinhas aproximaram os ex-escravizados. Um dos elementos que oportunizava interação e que, em Palmas, indicia uma pequena, talvez embrionária organização como grupo social, eram as festas conhecidas como fandangos. De acordo com Corrêa (2016, p.414), essas festas com música e danças, tratavam-se de “[...] uma espécie de ‘baile popular’ associado indistintamente a negros libertos, mulatos livres e brancos pobres”. Tais bailes, na visão elitista, eram eventos nos quais grassava a promiscuidade, a libertinagem. Logo, deveriam ser rigorosamente controlados (era necessário solicitar autorização e pagar a taxa estabelecida na municipalidade) e, quando possível, reprimidos. A história de ressio ou rossio (também grafado como rocio) em português mostra que a palavra significou sucessivamente ‘baldio’, isto é, o que resta por cultivar, ou fica para trás ou fora de terreno cultivado e terreno que está para trás ou fora de povoação [...] Conforme o Dicionário da Língua Portuguesa 2003, da Porto Editora, não designa o centro de uma cidade. Segundo este dicionário, rossio tem as seguintes definições: “1. praça pública; 2. terreiro espaçoso; 3. terreno fruído, outrora, em comum, pelos habitantes de uma povoação”. De acordo com José Pedro Machado, no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa é “nome próprio dado a vários campos ou largos citadinos de Portugal, antigamente, fora das muralhas ou da área urbana”. Após o terreno desbastado e preparado, serviam para semeadura de cereais, para hortas ou para pastagem de gados da comunidade. Segundo Robert Ricard (no “Bulletin Hispanique”, 56.º, 1954), é espaço aberto no limite, entre a aglomeração urbana e o campo circundante. ISCTE- Instituto Universitário de Lisboa, PT. Disponível em https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/rossio/11134 Acesso em 30 de setembro de 2018. 18 Aforamento = transferência do domínio útil e perpétuo de um imóvel, mediante pagamento de um foro anual, certo e invariável. O aforamento estava presentes no Livro Quarto das Ordenações Filipinas. 19 Biblioteca do IFPR – campus Palmas. Lançamentos dos terrenos do rocio- 1908. 17 [ 118 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS No Código de Posturas elaborado pelos camaristas de Palmas, os artigos 44 e 45 20, respectivamente, eram muito claros quanto a necessidade de solicitar autorização e pagar a taxa estabelecida na municipalidade para a realização dos bailes. Isso já os limitava, uma vez que nem todos teriam condições de arcar com os custos. Também era enfatizado que “nos fandangos dentro do quadro urbano não serão permitidos vozerios, algazarras ou barulho que incomode os vizinhos”. Não à toa a ocorrência das referidas festas se tornaram verificáveis por intermédio dos autos policiais lavrados à época, pois facilmente poderia haver intervenção policial, por denúncia de outras pessoas da cidade ou por problemas diversos ocorridos durante as festas. O fandango realizado na casa de Joaquim Floriano de Morais terminou em agressão física entre o mesmo e sua ex-companheira Isabel Maria dos Santos, sendo motivada por ciúmes, conforme relataram partícipes da festa21. Assim, foi um dos casos documentados pela polícia palmense. Os dados pessoais revelados pelas testemunhas permitiram saber que se tratavam de antigos escravizados, como Joaquim Gregório dos Santos e Merenciana Prestes dos Santos (que não eram familiares e nem formavam casal). Seus depoimentos indicam que se conheciam, bem como aos promotores da festa e demais convidados e que não era a primeira vez que o grupo confraternizava. Situação similar ocorreu em outro processo, no qual a outrora “ingênua” 22 Eudócia depõe como testemunha na denúncia contra Luís Pestana, agregado em uma das fazendas palmenses, que invadiu o fandango promovido por um vizinho 23. Há que se destacar que não há (ou pelo menos, não foram preservados), registros de mesmo teor em relação a pessoas pertencentes às camadas mais abastadas daquela sociedade. Evidentemente realizavam suas próprias festividades. Seria possível que nunca se altercassem? Para o momento fica a constatação de que, caso tenha acontecido, tudo era habitualmente abafado. Até porque eram justamente os chamados “cidadãos” de Palmas (brancos, de estratos sociais mais elevados) que exerciam a autoridade local. Outra constatação é a de que camadas sociais mais abastadas não se misturavam às festas dos negros, mestiços e pobres, uma vez que em nenhum momento sua presença é citada. Independentemente dos pequenos atritos e confusões, bailes como os supracitados podem ser pensados como espaços de confraternização entre pessoas que se aproximavam e identificavam por laços do passado ou por sua condição social comum. Diferiam do associativismo negro nos clubes que se formaram nos anos e décadas seguintes ao fim da escravidão, por suas características de improvisação e organização muito menos complexa, embora fossem igualmente espaços de sociabilidade e de (re)afirmação da identidade coletiva. Dito de forma bastante simplificada, eram os momentos do encontro e da diversão, num ambiente em que as pessoas que, de alguma forma, se sentiam aceitas e em condições sociais de igualdade. Talvez por isso mesmo, se permitissem extravasar mais livremente as ações e o sentir. E também por isso mesmo, quem sabe, estivessem constantemente sob o controle e ação policial. Considerações finais Sem desconsiderar possíveis pressões e ardis dos antigos senhores, com relação aos egressos do cativeiro não se pode dizer que tenham se submetido tão somente às condições de trabalho, vida e moradia que lhes foram apresentados no pós-abolição, posto que no contrato de Eva, no matrimônio de Thereza ou nas roupas lavadas por Anna não se pode desconsiderar ter havido escolhas conscientes entre ficar ou partir, sobre onde morar, em que atividade trabalhar, entre outras decisões tomadas naquele momento. O fim da escravidão conduziu à necessidade de rever as dinâmicas sociais, posto que a partir da Lei Áurea o mundo dos livres ganhara “novas cores” e o que se viu foi aqueles que detinham o poder econômico, político e projeção social traçarem suas estratégias, a fim de não ver abalada a sua condição. Contudo, para Biblioteca IFPR- campus Palmas. Atas da Câmara Municipal. Fórum Municipal de Palmas/PR – vara criminal. Auto policial lavrado em 02/08/1889. 22 Ingênuo: denominação utilizada para designar os filhos livres de mulheres cativas nascidos a partir da Lei Imperial nº 2.040, de 28 de setembro de 1871 (também chamada de Lei do Ventre Livre). 23 Fórum Municipal de Palmas/PR – vara criminal. Auto policial lavrado em 1908 (não consta a data exata) . 20 21 [ 119 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS os que haviam saído da condição de escravização iniciava-se ali um longo caminho para encontrar o seu lugar social, superando históricas interdições. Coube a eles próprios a tarefa de construí-lo, passo a passo, em razão da ausência de políticas públicas de inserção e das dificuldades cotidianas. Neste contexto, o apoio mútuo, as casas próximas e a confraternização entre os membros daquele mesmo grupo ajudaram-lhes a marcar, objetiva e subjetivamente, seu espaço. 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Dessa forma, o texto não pretende encerrar a discussão sobre o tema, mas trazer questionamentos como: será que os contribuintes serão capazes de exercer a cidadania fiscal? E o Estado, será capaz de praticar sua função de promotor da igualdade social? Talvez, incentivar o debate e a reflexão possa ser também, um exercício de cidadania. Palavras-chave: Elisão Fiscal. Evasão Fiscal. Função socioeconômica dos tributos. 1. Introdução A arrecadação incidente sobre os diversos setores produtivos é necessária para a manutenção do Estado e para aplicação na melhoria da qualidade de vida da população. O ideal é que esta tributação seja suportável e melhor distribuída, para que todos contribuam de forma justa e possam, assim, se beneficiar desta contribuição (PERTUZATTI; MERLO, 2005). Assim, entende-se a tributação como necessária para que o Estado cumpra sua função de promover o bem comum, a igualdade e a justiça, por meio do desenvolvimento social e econômico. Em geral, os indivíduos não gostam de pagar impostos e, podendo, não o fazem. Este comportamento traz grandes repercussões ao desenvolvimento social e econômico, pois os tributos formam a principal receita do Estado. “O problema da sonegação fiscal é tão antigo quanto os impostos em si” (SIQUEIRA; RAMOS, 2005, p. 556). No Brasil, a cultura do não pagamento de tributos talvez seja resultante da elevada carga tributária e do baixo retorno à sociedade, aliada aos casos de corrupção. Uma das pressuposições decorre do desconhecimento da importância do Estado como regulador da vida em sociedade (GRZYBOVSKI; HAHN, 2006). Apesar dos inúmeros esforços empregados pela autoridade tributária brasileira, a evasão fiscal no Brasil ainda é significativa. Por outro lado, existe a figura da elisão fiscal. Uma forma lícita de pagar menos tributos. O planejamento tributário é o caminho mais adequado segundo Pilati e Theiss, (2016); Gonçalves, Nascimento e Wilbert, (2016); Torres, (2013), para planejar os gastos tributários, sua redução ou postergação. Em tempos de recessão e alta competitividade, diminuir os custos e evitar saídas de caixa tem sido uma opção legal a que muitas empresas estão recorrendo (GLASER, 2010). Diante do exposto, a questão que permeia este ensaio teórico é: em relação à função socioeconômica dos tributos, a evasão e a elisão fiscal podem ser similares? Este questionamento tem origem no fato de serem duas formas diferentes de pagar menos tributos, uma ilícita (evasão) e outra totalmente legal (elisão). Porém, ambas diminuem a entrada de recursos para o Estado. Recursos esses necessários para o desenvolvimento de políticas públicas, que devem beneficiar todos os cidadãos. Nesse sentido, o presente ensaio teórico tem por objetivo discutir se há similaridade entre a elisão e a evasão fiscal, no que diz respeito à função socioeconômica dos tributos. Considerando a Especialista em Contabilidade e graduada em Ciências Contábeis pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Mestranda em Administração (UPF). Docente na Universidade de Passo Fundo. E-mail: elenabuenoupf@gmail.com 2 Especialista em Estratégias de Aprendizagem (FABE). Contadora (URI - Erechim). Docente no Centro de Ensino Superior Riograndense – CESURG. E-mail: logus.contabilidade@gmail.com 1 [ 121 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS obrigatoriedade dos tributos na vida das pessoas físicas e jurídicas, bem como o fato de ser a fonte de financiamento do Estado para a prestação de serviços públicos em prol de toda a sociedade, torna-se necessário debater o valor socioeconômico do tributo, o cumprimento dos deveres tributários por todos os cidadãos e o direito destes em acompanhar as ações públicas na aplicação destes recursos. Este ensaio justifica-se por avançar na discussão sobre evasão e elisão fiscal, especialmente por relacioná-las com a função socioeconômica dos tributos. Existem alguns estudos, com temas correlatos que envolvem educação fiscal, evasão, elisão e planejamento tributário, como os de Cabello (2012) que buscou verificar se as empresas que adotaram práticas de planejamento tributário apresentaram menor taxa efetiva de impostos. Gomes (2012) observou se a característica da governança corporativa influenciou nas práticas de gerenciamento tributário. Borges, Pereira e Borges (2015) buscam identificar os fundamentos que caracterizam a educação fiscal dos indivíduos. Santana, Gonçalves e Matos (2015) buscam compreender a associação entre a elisão fiscal e a responsabilidade social corporativa. Porém, não foram encontrados debates sobre a similaridade de ambas quando relacionadas à função socioeconômica dos tributos, especificamente nos estudos nacionais. O presente ensaio está organizado inicialmente com a apresentação de um apanhado histórico sobre a tributação no Brasil. Em seguida, são expostos os conceitos de evasão e elisão fiscal, os argumentos sobre planejamento tributário e suas particularidades, especialmente as relacionadas à elisão fiscal. Na sequência, busca-se evidenciar o valor socioeconômico do tributo. Por fim, as considerações finais procuram sistematizar os debates e propor outros questionamentos que podem servir como sugestões para estudos futuros. 2. Evolução histórica do sistema tributário nacional desde a Constituição de 1891 até a atualidade Conforme Oliveira (2018), a partir do ano de 1891 até a década de 1960, período em que se realizou a primeira e mais extensa reforma de sua estrutura, o sistema tributário nacional não passou de um simples instrumento arrecadatório. Já, a Constituição de 1934 representou um avanço ao estender aos municípios competência para cobrar impostos próprios. A Constituição de 1946 inovou na redução da alíquota de exportação de 10% para 5% com o intuito de garantir maior competitividade à produção nacional no exterior, definir constitucionalmente um sistema de compartilhamento de impostos entre a União, Estados e Munícipios e determinar que a União destinasse um percentual mínimo de suas receitas para promoção do desenvolvimento regional, especificadamente nas regiões do norte e nordeste. Como não representaram mudanças que de fato contribuíssem para a expansão da carga tributária e com um sistema tributário obsoleto a crise econômica tornou-se inevitável ao final desse ciclo de expansão brasileira. A reforma tributária de 1965-1966, além de organizar as bases tributárias de acordo com as bases econômicas, também, eliminou tributos e os substituiu por outros, transformou alguns impostos cumulativos em impostos sobre o valor agregado, ampliou as bases de incidência e as alíquotas, almejando aumentar a arrecadação, redefiniu as competências tributárias das três esferas do governo e manobrou diversos tributos para estimular a produção, os investimentos e o consumo. Sob a ótica do crescimento econômico, a política econômica e tributária implementada nesse período obtiveram resultados excepcionais, gerando um acréscimo anual na economia de 10%. O extraordinário crescimento da economia no período de 1969-1973, conhecido como “milagre econômico brasileiro”, permitiu a acomodação entre as classes sociais que apoiavam o regime militar e as que não o apoiavam. Entretanto, a partir da metade da década de 1970 os sinais de uma crise econômica foram anunciados. A crise da dívida externa no início da década de 1980 levou à exaustão as fontes externas de financiamento da economia e Estado brasileiro, levando-o a recorrer as fontes internas, desse modo, agravando a crise. Diante da situação precária, as bases de sustentação do regime militar ruíram, abrindo espaço para um novo governo civil, concomitantemente a arrecadação tributária vergou diante da crise econômica desse período gerando um processo hiperinflacionário que perdurou até 1994, com o lançamento o Plano Real. [ 122 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A Constituição de 1988 foi alicerçada nos princípios da democracia e justiça social em oposição a mais de vinte anos de arbítrio do regime militar. Foi estabelecido na nova Carta Magna o comprometimento com a igualdade, a universalidade e com a isonomia na cobrança de impostos, o que na prática não ocorreu. Contudo, a Constituição de 1988 fundiu os impostos especiais transformando-os no Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e Comunicação (ICMS), mas não avançou na proposta original que propunha a instituição de imposto amplo sobre o valor agregado. Desse modo, a exploração expansiva das contribuições sociais tornouse o caminho preferido pelo governo federal para reverter a perda de recursos imposta pela Constituição de 1988. Já em 1989 seria criada a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). O Plano Real criado em 1994 foi erguido para colocar ponto final a hiperinflação no Brasil. Para viabilizá-lo foi realizado um “ajuste fiscal provisório” com o intuito de proporcionar ao governo condições financeiras para cobrir seus desequilíbrios e evitar o endividamento para financiá-lo. Nesse período, além da ampliação temporária das alíquotas do imposto de renda das pessoas físicas e alíquotas das contribuições sociais, também, foi criada a Contribuição sobre Movimentação Financeira (CPMF), que deixaria de ser cobrada somente no ano de 2008. Ajustado com o crescimento econômico do Plano Real nos primeiros anos, a carga tributária se expandiu, fazendo com que o governo Collor gerasse um superávit primário de 5,6% no Produto Interno Bruto (PIB), sendo considerada uma façanha, causando a falsa impressão de que para o governo de Fernando Henrique Cardoso a situação fiscal encontrava-se consideravelmente razoável e que prosseguiria estável. Foi nesse clima de otimismo que na época o secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, encaminhou para votação sua proposta de reforma do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ). Aprovada no final do ano de 1995 a alíquota do imposto sobre o lucro tributável das empresas reduziu de 25% para 15%, entre outras reduções de alíquotas e isenções, ficando clara a preferência do então secretário em favorecer os setores mais ricos da sociedade, que na verdade já não necessitavam de tanta generosidade, uma vez que, como meio de reduzir impostos ou até mesmo de isentá-los recorriam aos chamados “paraísos fiscais”. Apesar, de todas as mudanças foi inevitável o naufrágio do Plano Real na sua primeira fase (19941998), e o progressivo endividamento do país tanto interna quanto externamente. Como consequência no final de 1998 o governo negociou um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de US$ 41,5 bilhões para o período de 1999-2001. Com esse acordo o país se tornaria refém do neoliberalismo também nas áreas da política fiscal e tributária, passando a orientar sua administração a partir desse ano, cujos fundamentos permanecem até a atualidade, perdendo a importância como instrumento de política econômica do Estado e sendo transformadas em simples fiadoras do processo de estabilização, voltadas exclusivamente para garantir receitas para pagamentos de juros da dívida e preservação da riqueza financeira, mesmo sendo necessário o sacrifício das políticas públicas oferecidas à população. Ao se comprometer com essa estrutura e passar a dar prioridade absoluta para os princípios da responsabilidade fiscal, compromisso que seria renovado por todos os demais governos após Fernando Henrique Cardoso: Lula, Dilma e Temer, o Brasil renunciou a manipulação da política fiscal e da tributação no sentido do desenvolvimento e diminuição de desigualdades. Nesse contexto, o que se sobressai é o fato de que nenhum governo tenha apresentado qualquer proposta de reforma da tributação direta ou dos impostos incidentes sobre a renda e o patrimônio. Sendo assim, mesmo nos governos Lula e Dilma, quando ocorreram avanços na redução das desigualdades no país, o resultado dessa conquista deveu-se mais ao manuseio do gasto público do que as mudanças tributárias. Desse modo, o sistema tributário permaneceu em constante regressão e, no ano de 2015, momento em que o crescimento desapareceu, as políticas sociais perderam espaço no orçamento e começaram a ser consideradas fator de comprometimento do princípio da responsabilidade fiscal, tornando inevitável o processo de ampliação das desigualdades. Daí a necessidade de reforma do sistema tributário brasileiro e o seu resgate como instrumento de desenvolvimento econômico. Sem essa reforma, continuará operando apenas como mero instrumento de ajuste fiscal, atuando como força contrária ao crescimento econômico e à igualdade. [ 123 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Diante da crescente carga tributária e da necessidade de diminuição dos custos, segundo Pilati e Theiss (2016) os contribuintes se deparam com duas formas de redução destes encargos tributários. Uma delas totalmente legal, denominada de elisão fiscal, e outra forma completamente ilegal, por meio da chamada evasão fiscal. 2.1 Evasão fiscal: um fenômeno complexo A prática da evasão fiscal é cometida após a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, objetivando reduzi-la ou omiti-la, sendo, portanto, contrária à lei. A evasão fiscal está prevista na Lei nº 8.137/90, (Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo). Esta lei define que constitui crime contra a ordem tributária, suprimir ou reduzir tributo mediante, dentre outras condutas, a omissão de informações, a prestação de informações falsas, a falsificação ou alteração de documentos fiscais. A evasão fiscal reduz a transparência da organização e fomenta oportunidades de desvio de recursos em benefício próprio, por parte dos gestores (SIQUEIRA; RAMOS, 2006). Para Rizzi (2014), a evasão fiscal caracteriza-se por ser um meio ilícito de afastar o pagamento de tributos, uma vez que na evasão ocorre o fato gerador, mas o contribuinte, valendo-se das mais diversas formas de falsificação (“notas-frias”, “notas-calçadas”), entre outros tipos de simulação, não paga o valor devido. A autora cita como exemplo a empresa que possui uma filial, mas simula para o fisco que as unidades são empresas distintas, apenas para reduzir a carga tributária. Em termos econômicos, os problemas da sonegação têm origem no fato de as variáveis que definem a base tributária, como rendas, vendas, rendimentos, riqueza, entre outras, não serem claramente percebidas (SIQUEIRA; RAMOS, 2005). Ou seja, um sujeito externo não pode observar o valor real da base tributária de um determinado indivíduo, consequentemente não conhece sua verdadeira responsabilidade tributária. Desse modo, o contribuinte pode levar vantagem da informação imprecisa que a administração tributária detém sobre sua responsabilidade e distorcer a base de cálculo para tributação. Em síntese, a maioria dos sonegadores não declara toda a sua obrigação. Siqueira e Ramos (2006) argumentam que, além de os contribuintes pagarem muitos tributos, há um sentimento generalizado de que o governo não destina com eficiência os valores arrecadados, o que pode contribuir para o aumento da sonegação. Segundo Santiago (2010), a evasão também está na pirataria, na informalidade, entre os profissionais liberais, nas pequenas e médias empresas, sendo sensivelmente menor entre as empresas de grande porte, por estarem sujeitas a uma fiscalização mais acirrada da parte dos órgãos arrecadadores e à auditoria independente obrigatória. Portanto, conforme citam Pertuzatti e Merlo (2005), a evasão pode ser ainda mais geral e abranger todos os que desfrutem uma permissividade que lhes permita não pagar impostos. A evasão fiscal segundo Siqueira e Ramos (2006), é um fenômeno muito complexo, pois a conduta do contribuinte é influenciada por vários fatores, tais como os aspectos da justiça tributária, a prevalência das normas sociais, a avaliação dos benefícios públicos recebidos e a possibilidade de tal ato ser detectado e punido. Segundo os autores, inicialmente a análise econômica da evasão fiscal focou-se em como o comportamento sonegador pode ser demovido por meio da ameaça de identificação e aplicação de sanções. Contudo, o crime de sonegação fiscal é elidido, ou seja, suspenso, pelo pagamento a qualquer tempo (mesmo depois de iniciado o julgamento em última instância) do tributo evadido, acrescido das multas e juros legais (SANTIAGO, 2010). O autor ainda comenta que, a extinção total da punibilidade talvez constitua um estímulo à aposta na incapacidade do Fisco de descobrir o ilícito e, em ocorrendo a descoberta, o pagamento resolve o problema em definitivo. Afirma também que, a frequente concessão de anistias, utilizadas como instrumento de arrecadação, fere o princípio da igualdade, prejudicando os contribuintes que cumprem pontualmente com suas obrigações. Na opinião de Siqueira e Ramos (2006), a ideia é a de que o contribuinte realiza um estudo minucioso dos custos e benefícios resultantes da sonegação, levando em consideração que os incentivos para cumprimento fiel das obrigações tributárias não são claros. Além disso, a complexidade do cenário econômico, a diversidade de leis e a possibilidade de exercer atividades econômicas informais, somadas à [ 124 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS “benevolência” da autoridade tributária, aos casos recorrentes de corrupção por parte dos governantes, parecem levar o contribuinte a decidir acerca da sonegação. De acordo com o texto de John Christensen (2007) do Secretariado Internacional da Rede pela Justiça Fiscal, nos últimos 50 anos, de modo clandestino, as elites profissionais e seus poderosos clientes construíram uma economia global paralela, por vezes denominada de “paraísos fiscais”, com o intuito de evadir impostos e regulamentações territoriais. Essa economia promove suporte habilitador de bancos, escritórios jurídicos e contábeis, pequenas assembleias legislativas e pequenos sistemas judiciários e intermediários financeiros associados, que por sua vez, se ajustam para servir de “interface extraterritorial (offshore)” entre as economias ilícita e lícita. Tal interconexão tem facilitado à evasão de capitais dos países pobres para os ricos, e promovido a sonegação fiscal. Os negócios sigilosos e os tratamentos especiais atenuam a própria democracia, diminuindo o crescimento econômico ao promover gratificações sem esforços e ao desviar investimentos, sendo considerada uma das principais causas do crescimento da corrupção, que trabalha por meio de uma conspiração entre o setor privado e os governos que protegem as atividades dos paraísos fiscais. O abuso fiscal internacional deve tornar-se o próximo embate pelo desenvolvimento internacional e contra a corrupção, a desigualdade e a globalização. O sigilo extraterritorial é considerado um obstáculo importante para rastrear os fluxos de dinheiro ilícito e combater as ações corruptas. Para agregar esse dinheiro às transações comerciais, esquemas complexos são arquitetados, simulando o lucro do crime e da sonegação fiscal com a utilização de estruturas extraterritoriais. Pelo menos US$ 1 trilhão de dinheiro ilícito entra, anualmente, em contas dos paraísos fiscais, sendo que, fração da metade desse montante tem origem nos países em desenvolvimento. O índice de fracasso no rastreamento dessas operações é espantosamente alto. As técnicas utilizadas para lavagem de dinheiro e sonegação de impostos incluem: paraísos fiscais, empresas e fundos offshore, fundações, bancos correspondentes, diretores interpostos, transferências eletrônicas fictícias, entre outros. A sonegação de impostos corrompe os sistemas fiscais do estado moderno e prejudica a capacidade de promover serviços exigidos por sua cidadania, representando a forma mais ampla de corrupção, privando a sociedade de verbas públicas e autênticas. Entre os sonegadores estão instituições e indivíduos de renda alta, tais como, banqueiros, advogados e contadores. É importante ressaltar que nem todo o capital que deixa os países em desenvolvimento permanece fora, uma fração retorna mascarada como investimento estrangeiro direto. Para o autor, uma das soluções para o problema seria o fortalecimento da cooperação internacional. Uma troca de informação eficaz entre as autoridades nacionais, também, seria considerada um avanço para superar os problemas da evasão de capitais e da sonegação fiscal. Os obstáculos criados pelo sigilo bancário poderiam ser superados por cláusulas de anulação introduzidas nos tratados internacionais. O segredo dos fundos offshore poderia ser reduzido pela exigência de registro das informações principais sobre a identidade do administrador e das pessoas beneficiadas. Acordos poderiam ser feitos sobre marcos internacionais para taxação das multinacionais com base no lugar onde realmente seus lucros são gerados. Entretanto, a principal barreira para avançar na consecução dessas metas é a falta de cooperação política dos governos das principais nações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), todos eles importantes paraísos fiscais. Diante do exposto, cabem alguns questionamentos acerca da questão debatida neste estudo: será que a decisão da evasão é simplesmente econômica? Será que o contribuinte pratica tal ato por desacreditar no Estado? Será que os contribuintes que sonegam, sabem da possibilidade lícita de redução de impostos? Ou será que a evasão é resultado de uma benevolência judicial? 2.2 Elisão fiscal: uma prática legalmente permitida Para Amaral (2002), a elisão fiscal é um conjunto de procedimentos previstos em lei ou não vedados por ela, que visam diminuir o pagamento de tributos. Sendo um direito do contribuinte, a fazenda pública deve respeitá-lo. Não havendo ilegalidade na conduta do contribuinte, em legitimamente afastar ou diminuir [ 125 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS a obrigação tributária, sua conduta deve ser respeitada pelo fisco, que não poderá cobrar qualquer valor adicional e nem aplicar alguma sanção (RIZZI, 2014). A principal característica da elisão fiscal é a utilização de meios permitidos ou não proibidos em lei, para desonerar o contribuinte. São adotadas medidas legais que evitam a ocorrência do fato gerador, a redução da base de cálculo ou da alíquota, sem que isso gere multa ao contribuinte, ou seja, a elisão fiscal pode ser entendida como um “benefício fiscal” decorrente da lei ou em falhas na legislação, que permitem ao contribuinte reduzir sua carga tributária. Nesse sentido, Rizzi (2014) destaca a necessidade de reconhecer que, as hipóteses em que é facultada a realização de negócios sem ter de contribuir para o fisco são restritas e pressupõe a atuação dentro dos limites estabelecidos pela lei, não havendo espaço para simulação, fraude ou dolo. Uma vez que o contribuinte escolhe, de forma lícita, a maneira menos onerosa de tributação, o fisco se vê obrigado a respeitar sua escolha, pois se trata de direito do contribuinte ser tributado da forma menos onerosa. Dessa forma, Glaser (2010) cita como exemplos de elisão fiscal os benefícios obtidos com alguns incentivos fiscais, tais como PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador) e as doações para projetos culturais. Já Gonçalves, Nascimento e Wilbert (2016) estudaram a subvenção governamental, que pode se dar através de doações, subsídios, isenções tributárias, entre outros. Este tipo de incentivo, porém, exige que as empresas retornem parte da riqueza gerada, através de benefícios positivos para a sociedade, ou seja, o Estado pressupõe que os benefícios gerados possam superar os custos da renúncia fiscal. Porém, às vezes, a elisão fiscal pode ser considerada abusiva, conforme estudos de Torres (2013); Moreira (2003); Santana, Gonçalves e Matos (2015), que tratam da responsabilidade social corporativa e geração de riqueza. Neste sentido, o Código Tributário Nacional (CTN), por meio da Lei Complementar 104 de 2001, teve acréscimo em seu Art. 116, do parágrafo único que trata de norma antielisão, atribuindo à autoridade administrativa o poder de desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo. Cabe ressaltar que este acréscimo ainda é motivo de discussão, pois se questionam sua eficácia e aplicabilidade (PILATI; THEISS, 2016). Face ao exposto, seguem alguns questionamentos que permeiam o objetivo do presente ensaio: será que os contribuintes que adotam a elisão em sua prática econômica, o fazem apenas para maximizar os lucros? Ou será que o fazem por desacreditar no Estado, diante dos crescentes casos de corrupção? 2.3 Planejamento tributário: uma ferramenta lícita para o aumento da competitividade Os cidadãos, segundo Gonçalves, Nascimento e Wilbert (2016), estão sujeitos à tributação de seus bens, rendas e consumos por meio das mais diferentes leis, alíquotas, fatos geradores e formas de pagamento. Com o aumento da carga tributária no Brasil e a preocupação em reduzir os custos operacionais nas empresas, surge a necessidade de práticas que representem uma economia de tributos. Glaser (2010) salienta que o planejamento tributário envolve uma ação lícita adotada antes da ocorrência do fato gerador. Desse modo, o planejamento tributário é uma forma lícita de minimizar os custos fiscais, sem violar a lei (PILATI; THEISS, 2016). Para Glaser (2010), a crescente competitividade do mercado faz com que o planejamento tributário seja uma ferramenta indispensável na busca da lucratividade, fator indispensável para a sobrevivência das empresas. Dessa forma, administradores, empresários, consultores, contadores e diversos profissionais, tanto da área tributária quanto societária, buscam alternativas legais para enfrentar a elevada carga tributária, através desta ferramenta. Na opinião de Pilati e Theiss (2016), o planejamento tributário pode ser compreendido como direito intrasferível da empresa, a fim de planejar seus gastos tributários, obter redução parcial, total ou postergação desses gastos, e aumentar o resultado operacional da organização. O contribuinte poderá, dessa forma, estruturar seu negócio da maneira que julgar apropriado e procurar por meio de uma alternativa lícita diminuir seus impostos. Contudo, esse processo exige conhecimento e análise prévia da legislação tributária vigente, principalmente em decorrência de um Sistema Tributário complexo como o brasileiro. [ 126 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Se considerarmos que os tributos integram o preço dos bens e serviços, é natural aos empresários, buscar a redução de seu valor e aumentar sua lucratividade (ANDRADE FILHO, 2015). O autor ainda cita que, o planejamento tributário não é encontrado apenas nas empresas. A busca pela menor carga tributária pode ser feita por pessoas comuns, a exemplo da dona de casa que escolhe o produto com o menor preço. Assim, todos os contribuintes possuem o direito de estruturar e organizar o seu negócio ou sua vida pessoal, da forma que melhor lhes convém, além de procurar a redução de custos em seu empreendimento e, inclusive, em seus impostos pessoais. Cabe ressaltar que, para muitos, a elisão fiscal é sinônimo de planejamento tributário, pois utiliza apenas dos preceitos legais para redução do imposto. Além disso, é feito antes da ocorrência do fato gerador, característica do vocábulo “planejamento” que, segundo Andrade Filho (2015), significa a ação de projetar cenários futuros com certa antecedência e premissas técnicas. Para Hilgert (2012), no exercício do direito à livre organização privada dos negócios, o contribuinte busca meios de reduzir ou até mesmo evitar integralmente o seu encargo fiscal, utilizando-se de planejamento tributário, especialmente as pessoas jurídicas, que têm por fim a maximização do lucro. Para Glaser (2010) e Andrade Filho (2015), todo administrador tem o dever de maximizar os lucros e minimizar as perdas das empresas, a fim de assegurar sua sobrevivência no mercado, planejando o menor ônus possível para a empresa. Neste sentido, mesmo que por meio do planejamento tributário o Estado diminua a arrecadação de tributos, pressupõe-se que esse processo seja momentâneo, pois ao proporcionar maior competitividade às empresas, estimula o crescimento do emprego e renda, reduz desigualdades sociais e auxilia o desenvolvimento de algumas regiões. Assim, cabem mais alguns questionamentos acerca do assunto debatido neste ensaio: será que o planejamento tributário decorre apenas da elevada carga tributária imposta aos brasileiros? Será que os contribuintes que utilizam da possibilidade lícita de redução de impostos, consideram também a redução de receitas pelo Estado e consequentemente a sua influência nas políticas públicas? Será que o planejamento tributário vai de encontro ao princípio da solidariedade social? 2.4 Função socioeconômica dos tributos Segundo os estudos da Escola de Administração Fazendária - ESAF (2014), o tributo acompanhou a evolução do homem desde as primeiras sociedades. Historiadores sugerem que as primeiras manifestações tributárias foram voluntárias, como forma de presentear os líderes por seus serviços ou sua atuação em favor da comunidade, sendo que, posteriormente, passaram a ser compulsórias, quando os vencidos de guerra eram obrigados a entregar parte ou a totalidade de seus bens aos vencedores. Depois dessa época, os chefes de Estado passaram a estabelecer uma contribuição pecuniária a ser paga pelos seus súditos, originando os tributos. No Brasil, sabe-se que a história dos tributos teve início com a chegada dos portugueses, especialmente com as capitanias hereditárias, quando Portugal nomeou os primeiros funcionários tributários que tinham por função a arrecadação de impostos à Fazenda Real. O tributo atualmente tem grande significado social. É o maior responsável pelo financiamento dos programas e ações do governo nas áreas da saúde, previdência, educação, moradia, saneamento, meio ambiente, energia e transporte, entre outras. A questão tributária como exercício da solidariedade, pressupõe que os cidadãos estão contribuindo, por meio do pagamento de tributos, para que todos possam usufruir destes benefícios. No entanto, é preciso zelar sempre para que os princípios constitucionais sejam observados e para que os recursos arrecadados possam ser aplicados em obras e serviços que atendam às necessidades da população como um todo, e, principalmente, da parcela mais pobre (ESAF, 2014). Neste sentido, Andrade Filho (2015) cita um dos princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988 que é o “princípio da solidariedade”, ou seja, ser solidário com os mais necessitados, tendo consciência de sua contribuição e de seus esforços para o bem-comum. Porém, o valor solidariedade não pode ser imposto, apesar de não excluir o dever que todos têm em contribuir com o Estado, para a realização do interesse público. Dessa forma, o dever de solidariedade acaba sendo imposto pela norma tributária, que [ 127 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS obriga o sujeito a tornar-se solidário em razão de uma circunstância que independe da sua vontade de contribuir, ou seja, o sujeito é convocado a ser solidário ainda que não considere a existência do outro. Tratase, portanto, de uma solidariedade vazia de conteúdo moral ou ético. Assim, segundo a ESAF (2014) para que o Estado cumpra sua função social de promover o bem comum, a igualdade e a justiça, por meio do desenvolvimento social e econômico, é imprescindível que em sua estruturação normativa e em seus objetivos estejam estabelecidos princípios de igualdade e justiça social e fiscal. Significa dizer que os princípios constitucionais não podem ser apenas declarações de boas intenções. No Brasil, os tributos são suportados, principalmente, pelos assalariados e consumidores, pois a maior carga tributária incide sobre os bens de consumo. Nesse sentido, para Hilgert (2012), o dever fundamental de pagar tributos está relacionado com o princípio da capacidade contributiva, que consiste na concretização do princípio da igualdade em matéria tributária, ou seja, aqueles que possuem mais riqueza contribuam mais do que aqueles que têm menos. Segundo a autora, considerada a capacidade econômica, atinge-se a equidade na distribuição do encargo tributário e, consequentemente, a redistribuição de renda e riqueza, proporcionando uma vida digna também à classe social menos favorecida. Contudo, a carga tributária no Brasil além de complexa, é considerada injusta, pois aqueles que auferem menos renda estão sujeitos à mesma tributação daqueles que recebem uma renda mais elevada, ou seja, grande parte da arrecadação de impostos decorre da tributação indireta sobre o consumo. Grzybosvski e Hahn (2006) ressaltam que para parte da sociedade as obrigações tributárias são fontes de conflito e de insatisfação, pois entendem que os impostos pagos não retornam em forma de benefícios adequados, ou seja, em melhoria das condições de vida da população. Talvez essa concepção decorra do desconhecimento da importância do Estado como garantidor do interesse público, da falta de consciência cidadã e da educação fiscal por parte de toda a sociedade. Outrossim, sabe-se que a elisão fiscal, ainda que lícita, reduz a arrecadação de tributos essenciais à manutenção das atividades praticadas pelo Estado que, em tese, deveriam subsidiar o bem-estar social. Desse modo, Gonçalves, Nascimento e Wilbert (2016), advertem que a tributação é necessária para o bemestar de todos, sendo que, se a população deixasse de cumprir suas obrigações tributárias, não haveria mais serviços públicos aos cidadãos. Nesse sentido, o Estado realiza ações com a finalidade de estimular a iniciativa privada a realizar investimentos que deveriam retornar à sociedade em forma de geração de empregos, renda e tributos (GONÇALVES; NASCIMENTO; WILBERT, 2016). Na visão dos autores, os incentivos fiscais são exemplos de elisões decorrentes da própria lei. No entanto, o objetivo dos incentivos não é simplesmente a redução da carga tributária destas entidades, sendo necessária uma contrapartida para que as mesmas sejam concedidas. Assim, quando uma entidade recebe assistência governamental na forma de subvenções de qualquer tipo, determinado tributo deixa de ser aplicado em serviços públicos. A expectativa é que as entidades que receberem esses incentivos possam devolvê-lo em benefícios para a sociedade. Outro fator de impedimento ao desenvolvimento social e econômico está relacionado à economia informal. Tais atividades e seus rendimentos geralmente não são informados ao governo, ocasionando aos trabalhadores informais, aumento de lucros a partir da evasão fiscal (VASCONCELOS; FERREIRA; BESARRIA, 2017). As consequências dessas práticas são as perdas no orçamento público, reduzindo a arrecadação de impostos e contribuições, principalmente, para a seguridade social e, por conseguinte, a disponibilidade de recursos para melhorias na saúde, educação, assistência social e demais serviços públicos. A partir do exposto, são feitos mais alguns questionamentos sobre tão importante tema: será que os contribuintes conhecem seu dever de pagar impostos e o direito de acompanhar sua aplicação? Será que a educação fiscal disseminada nas escolas promoveria o comportamento de cidadania fiscal nos futuros contribuintes? Será que o Estado está disposto também a se reeducar e rever políticas anticorrupção mais efetivas? Ou será que tudo isso é resultado de uma crise generalizada de valores? [ 128 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 3. Considerações Finais Este ensaio teórico procurou debater se há similaridade entre evasão e elisão fiscal em relação à função socioeconômica dos tributos. Através de uma revisão crítica de estudos envolvendo o tema, percebese que este é um assunto complexo, pois trata de questões subjetivas, ou seja, relacionadas a atitudes e à percepção de justiça social, que podem variar em decorrência de diversos fatores. Além disso, parece que este quadro está ligado a um comportamento histórico, permeado por diversas tentativas infrutíferas do poder público, em especial desde a Constituição de 1891 até os dias atuais. De um lado tem-se a tributação, compreendida como um dever de cooperação que possibilita a atuação estatal nas mais diversas áreas, especialmente na vida social e econômica das pessoas. Essa é a compreensão de uma cidadania ativa, participativa e solidária. Nesse sentido, o tributo é visto como um instrumento que pode e deve ser utilizado para promover mudanças e reduzir as desigualdades sociais. O cidadão, consciente da função social do tributo, é capaz de participar do processo de arrecadação, aplicação e fiscalização do dinheiro público. Em compensação, do outro lado estão os contribuintes que questionam a adequada gestão do gasto público por parte dos governantes, assim como o emaranhado de leis e situações geradoras de obrigações fiscais. Muitos, de forma lícita, como no caso da elisão, procuram reduzir a carga tributária de suas operações com a finalidade de garantir sua lucratividade e permanência no mercado. Essa prática é, inclusive, defendida por juristas, pois além de ser legal, pode reverter em preços mais acessíveis para os bens de consumo, incentivar a geração de empregos, entre outros benefícios para a sociedade. Porém, existem aqueles que questionam tais práticas e são favoráveis às normas da antielisão, embora ainda não regulamentadas, alegando que a falta de arrecadação é contrária ao desenvolvimento da nação. Além disso, existem os que não têm esta preocupação e, talvez mais pela percepção de uma inadequada administração dos recursos públicos e pela corrupção de alguns governantes, sentem-se motivados a sonegar e utilizar de meios ilícitos para reduzir o pagamento de tributos e, assim, aumentar sua lucratividade. Cabe ressaltar que, em ambos os casos, o Estado perde em arrecadação e, neste sentido, evasão e elisão fiscal talvez possam ser similares. Dessa forma, a função socioeconômica dos tributos parece carecer de uma discussão mais profunda. Além disso, como exposto pela própria Secretaria da Receita Federal em sua Cartilha de educação fiscal, talvez não sejam apenas atos isolados que permitirão a construção de uma verdadeira moral tributária, mas sim uma mudança significativa na forma como o Estado se relaciona com o cidadão-contribuinte. Talvez, quando o contribuinte conhecer a função socioeconômica dos tributos e, o Estado viabilizar a correta aplicação dos recursos públicos, promovendo a justiça social, será possível a construção de uma cidadania fiscal. Nesse sentido, o presente ensaio não tem a intenção de encerrar o debate, ao contrário, pretende provocar novas discussões sobre um tema tão importante para a manutenção de uma sociedade justa e equilibrada, não só em termos fiscais, mas morais. Referências AMARAL, G. L. A Aplicação da Norma Geral Antielisão no Brasil. Curitiba (PR): Juruá, 2002. ANDRADE FILHO, E. O. Planejamento tributário. 2. ed. São Paulo Saraiva 2015. BORGES, E. F; PEREIRA, J. M.; BORGES, G. M. C. 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O recorte sobre fronteira será balizado por duas representações: as semelhanças simbólico-estéticas que existem entre a milonga, comum a músicos do Brasil, Uruguai e Argentina, que foram expressas no documentário através de imagens de paisagens (culturais),e as manifestações plásticas que por sua vez também são expressas nas obras de Molina e Berega. A tentativa de definir uma nova fronteira é perpassada por esse viés, ou seja tanto a música quanto a arte plástica pode ser recortada por expressões estéticas distintas mas reproduzindo o mesmo território. Palavras chave: estética, costumbrismo, milonga, paisagem, fronteira. 1-Sobre região e fronteira O conceito de região não assumiu uma denominação pacífica, existem vários estudos que pretendem dar conta de explicar ou definir minimaente a região conforme um contorno específico. Assim o conceito de região se amplia de acordo com os enfoques das ciências. A geografia percebe o espaço natural e o político, a economia as entradas e saídas de capital e as relações próximas entre si, a historia por sua vez da mesma forma que a etnologia e a sociologia percebem esse conceito a partir das relações de poder. “a historia regional não se constitui em um método e nem possui um corpo teórico próprio. É uma concepção de recorte espacial do objeto estudado.” (Viscardi 1997,pg. 84. ) Ainda segundo a autora, a definição de região é um problema para os pesquisadores, também devido aos critérios definidores do espaço regional,..”a região só pode ser vista no âmbito do enfoque sistêmico. Desta forma a região se constitui em um subsistema de um todo mantendo com ele interrelações.”( Viscardi 1997,pg.87) Neste estudo não se pretende definir propriamente um conceito de região e fronteira, senão discutir as possibilidades que um enfoque de região e fronteira poderiam ter se visto sob o viés da estética 2. Bourdieu (1989 p.114) diz que A fronteira nunca é mais que um produto de uma divisão a que se atribuirá maior ou menor fundamento na “realidade” segundo os elementos que ela reúne, tenham entre si semelhanças mais ou menos numerosas e mais ou menos fortes”. De forma que conceituar região passa por valores diferentes de acordo com o posicionamento social, histórico, geográfico político e econômico. Neste artigo, porém, abordaremos a fronteira pela segmentação estética, o que por outro lado não inviabiliza nenhum dos conceitos apresentados. Para tentar trabalhar um pouco essa ideia, propomos uma analogia entre o documentário “A Linha Fria Do Horizonte”, que aborda a questão da musicalidade compartilhada entre artistas brasileiros, argentinos e uruguaios e e o trabalho de dois artistas costumbristas que pertencem a países e tecnicamente à regiões políticas e econômicas diferentes, bem como também não foram contemporâneos, muito embora ambos tenham vivido no século XX. Esses artistas expressam suas culturas usando signos praticamente idênticos. São eles o argentino Florencio de los Angeles Molina Campos, conhecido por Molina Campos, nascido em 21 de agosto de 1891 e falecido em 16 de novembro de 1959, em Buenos Aires na Argentina. E o Mestre em Comunicação e Semiotica, doutoranda em Historia bett@upf.br A estética aqui é vista pelo viés de Kant, como algo produzido pelo sentimento, funcionando intermediado pela razão e pelo intelecto. São os sentimentos subjetivos que formam o juizo do gosto, sendo portato subjetivo.Sendo o prazer o elemento que faz essa ligação e não provas intelectivas. 1 2 [ 131 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS outro é o brasileiro Luiz Alberto Pont Beheregaray, conhecido como “Berega”, nascido em 1934 na cidade gaúcha de Uruguaiana e falecido também em Uruguaia em 9 de abril de 2012. Para dar um entendimento maior sobre o trabalho de ambos e como isso pode representar uma outra forma de definir região é importante considerar o que caracteriza o gaúcho em ambos países Argentina e Brasil. Ao passo que na Argentina o debate entre intelectuais gira em torno de decidir se o gaucho desempenha um papel positivo ou negativo na construção da identidade nacional (isto se deve ser incluido ou excluido), no Brasil, o gaucho é utilizado unanimimente por intelecutais para construir a identidade regional do Rio grande do Sul, No Brasil portanto, o debate não se estabelece em torno da inclusão ou exclusão do gaucho, mas em torno de como e por quem ela deve ser definida (Oliven, 2006, p. 65) Desta forma é que propomos uma reflexão sobre a fronteira permeada pela construção simbólica estética “qualquer enunciado sobre região funciona como um argumento que contribui - tanto largamente quanto mais largamente é reconhecido – para favorecer ou desfavorecer o acesso da região ao reconhecimento e por este meio a existência ( Bourdieu, 1989,p.120 ) Ilmar Mattos citado por Claudia Viscardi (1997. P.87) salienta que os critérios para definição regional não podem ser só físicos, mas devem derivar do entrecruzamento entre as dimensões espacial e temporal...assim sendo o espaço regional é socialmente constituído através das diferentes experiências históricas vividas por seus atores. ” 1.2- A linha fria do horizonte O documentário A Linha Fria do Horizonte mostra a obra e o pensamento de um grupo de músicos do sul do Brasil, Argentina e Uruguai que compartilham em suas obras os sentimentos e as paisagens dos locais onde vivem ignorando as fronteiras entre países. Logo no inicio Victor Ramil 3 diz que ao responder uma entrevista onde foi perguntado como era produzir musicalmente fora do centro, ele diz que não está a margem de um do centro, senão no centro de uma outra história. Penso que por aqui poderia se construir uma discussão importante a respeito do que significa fronteira sob o viés da estética. Para Bakhtin (2011 p. 175), o objeto estético é um “acontecimento artístico vivo” ,ou seja, não é algo puramente teórico, mas um acontecimento, um produto do ato de existir, e deve ser compreendido em seu contexto de existência e na relação com seus participantes. Primeiramente devemos levar em conta que o objeto estético é produzido por um autor, que é o “centro organizador do conteúdo-forma da visão artística” (Bakhtin, 2011, p. 173), possui uma ideologia, um lugar no mundo, uma voz que dialoga com vozes de outros e imprime essas marcas em sua criação estética. Outro elemento muito importante a ser considerado é o contexto no qual esse objeto é produzido, pois, ainda de acordo com o autor, a obra não adquire sentido de forma isolada, mas deve ser encarada em seu contexto, porque (Bakhtin, 2010, p. 16) “a autonomia da arte é baseada e garantida pela sua participação na unidade da cultura, tanto que a definição sistemática ocupa aqui um lugar não só singular, mas também indispensável e insubstituível”. Então, esse objeto estético passa a ter valor somente quando está inserido no sistema cultural. Além de considerar esses aspectos, também devemos observar a composição do objeto estético de forma integral, ou seja, nos três elementos que o constituem, de acordo com Bakhtin (2010), que são a forma, o conteúdo e o material. Todas as três são indissociáveis, interrelacionadas e possuem o mesmo grau de importância dentro da obra, pois formam uma unidade. 3 Vitor Ramil é musico, compositor e escritor gaúcho. [ 132 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A forma não pode ser entendida independentemente do conteúdo, mas não pode ser independente da natureza do material e dos procedimentos por ele condicionados. Ela é condicionada a um dado conteúdo, por um lado, e à peculiaridade do material e aos meios de sua elaboração por outro. (Bakhtin, 2011, p. 178) No documentário em particular, aparecem os diferentes artistas já construindo uma espécie de conceito a cerca da fronteira permeada pela visão artistica, ou seja para eles as fronteiras acabam por serem mais ou menos definidas pelas afinidades estéticas que penetram seus universos compositivos. Uma reflexão sobre a identidade própria da região, em conflito e diálogo com um sentimento de identidade global. Entre eles estão os brasileiros Vitor Ramil e Marcelo Delacroix, os uruguaios Daniel Drexler, Jorge Drexler e Ana Prada e o argentino Kevin Johansen. E ao fim e ao cabo a paisagem por exemplo que é compartilhada pelo sul do Brasil pela Argentina e Uruguai configuram uma forma especial e particular de fronteira natural. A linha fria do horizonte, como foi denominada, acaba formando um território criativo que conecta propostas musicais estéticas que se confundem, se inteconcetam e dialogam. Tudo isso atravessado pelas imagens de Luciano Coelho mostrando um cenário relacionado com o frio em paisagens amplas, com a neblina e a chuva presentes em vários momentos. Essa é a estética que concilia o significado tanto musical quanto plástico. Os compositores falam sobre suas obras e sobre suas influências tanto entre eles mesmos quanto da própria música que todos compartilham. A milonga é o estilo musical que permeia todo o documentário. O compositor Drexler por exemplo que é uruguaio fala da milonga produzida por Victor Ramil como uma mistura anglo saxônica e salienta que a milonga é um hibrido típico dessa zona. Ela traz aspectos na complexidade musical, da bossa nova e do samba por exemplo, sendo Ramil, portanto muito mais brasileiro do que ele (Victor), pensa que é e muito menos brasileiro do que muitas pessoas pensam que ele seja. Por sua vez Victor Ramil diz que Jorge Drexler é mais brasileiro que uruguaio justamente pelas influencias culturais que esse artista sofreu ao longo de sua vida. Paralelo a esse documetário há uma apresentação feita por Vitor Ramil em Genebra em 2003, onde o autor pretende uma introdução a um conceito interessante sobre uma estética que unisse países diferentes em cenários semelhantes, ao que Ramil chamou a Estética do Frio. Apresentei A Estética do frio em francês no Théâtre Saint-Gervais em Genebra, Suíça, no dia 19 de junho de 2003, como parte da programação Porto Alegre, un autre Brésil. O texto foi escrito para a ocasião. De lá para cá mudou um pouco. Que futuramente continue nunca sendo o mesmo. Eu me chamo Vitor Ramil. Sou brasileiro, compositor, cantor e escritor. Venho do estado do Rio Grande do Sul, capital Porto Alegre, extremo sul do Brasil, fronteira com Uruguai e Argentina, região de clima temperado desse imenso país mundialmente conhecido como tropical. Vitor Ramil Porto Alegre, novembro de 2004. Na conferencia Vitor Ramil diz que em um mês de junho muito quente em Copacabana, cidade em que viveu cinco anos, estava ele no apartamento tomando chimarrão seminu, assistindo televisão, quando o âncora do telejornal anunciava um carnaval fora de época no Nordeste, e a fala do jornalista acentuava a normalidade daquela situação como se o carnaval independente da época fosse de fato uma ocorrência cultural corriqueira para todos os brasileiros. Em paralelo no mesmo telejornal o âncora anunciava um frio que antecipava um inverno rigoroso no Rio Grande do Sul, porém o tom do jornalista se modificava como se estivesse falando de algo absolutamente fora da realidade brasileira citando o frio do sul como de um inusitado clima europeu,ou seja, não do mesmo Brasil que se estava falando. [ 133 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Desta forma Ramil percebeu o quanto distante ele próprio estava, isolado dentro do seu pais. Na sequência de suas reflexões o artista fala sobre o sentimento de não identidade que muitas vezes circula entre os nativos do Rio Grande do Sul. Repercutido em conceitos ou ações separtistas e o desejo de se criar a força uma figura que institucionalize e justifique o fato de ser sul riograndense ou gaúcho. Segue o autor A palavra gaúcho é, hoje em dia, um gentílico que designa os habitantes do Rio Grande do Sul, e o estereótipo do gaúcho é um dos mais difundidos nacionalmente, se não o mais difundido: misto de homem do campo e herói, que o escritor brasileiro Euclides da Cunha, em seu clássico Os Sertões, definiu como essa existência- quase-romanesca. Popularmente, é visto como valente, machista, bravateiro; um tipo que está sempre vestido a caráter e às voltas com o cavalo, o churrasco e o chimarrão.( Ramil 2004.p. 8) Esse é o traço comum com os vizinhos uruguais e argentinos que também possuem seu gaucho como um homem do campo, na verdade esse personagem, cria uma aproximação com os uruguaios e argentinos e nos “estrangeiriza” em relação ao resto do Brasil. Neste caso as fronteiras se equacionam de outra forma particularizadas pelas afinidades culturais, não economicas, não geograficas e nem historicas propriamente ditas. Existe também o gauchismo ou tradicionalismo que tenta criar uma identidade baseada no estereótipo e que de certa forma pretende caracterizar o povo riograndense como gaúcho de forma geral. A maior parte do Brasil é tropical, sendo subtropical o Sul apenas, neste caso a relação com o resto do Brasil se perde nesse quesito, mas aproxima o Sul aos países vizinhos que compartilham o mesmo tipo de clima, gerando um tipo particular de paisagem que cria obrigatoriamente também um imaginário coletivo. Uma coisa que parecia diferenciar o sul do resto do Brasil e aproximar o mesmo Sul de alguns países latinos era justamente o frio. Esse frio cria uma paisagem própria, hábitos específicos e uma identidade que aproxima os de fora da fronteira política muito mais do que os que estão em um mesmo território político. De certa forma o frio simboliza o Rio Grande assim como também é simbolizado por ele. Segue Ramil em sua especulaçáo sobre a estética do frio Ao me perguntar por onde começar a busca de uma estética do frio, minha imaginação respondeu com uma imagem invernal: o céu claro sobre uma extensa e verde planície sulista, onde um gaúcho solitário, abrigado por um poncho de lã, tomava seu chimarrão, pensativo, os olhos postos no horizonte. Pampa, gaúcho... Que curiosa associação! Eu fora acometido por um surto de estereótipo? Não. Pampa e gaúcho estavam ali porque eu me transportara ao fundo do meu imaginário, lá onde, tanto um como o outro, têm o seu lugar. O pampa pode ocupar uma área pequena do território do Rio Grande do Sul, pode, a rigor, nem existir, mas é um vasto fundo na nossa paisagem interior. (Ramil. 2004.p. 19) A milonga está relacionada a essas condições dadas pela paisagem, as mesmas são transformadas pelas obras plásticas, (no caso particular de Molina e Berega) com os recursos simbólicos da cor e da própria forma compositiva onde o personagem é retratado. E para falar sobre a expressão dessa estética do frio Vitor Ramil usa a milonga na categoria musical para criar tambem uma paisagem estética. Assim como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, inexistindo no resto do Brasil.... A milonga me soava uma poderosa sugestão de unidade, a expressão musical e poética do frio por excelência. (Ramil 2004, p. 22)…. Que outra, se não essa, escolheria o gaúcho solitário da minha imagem para se expressar diante daquela fria vastidão de campo e céu? Que outra [ 134 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS forma seria tão apropriada à nitidez, aos silêncios, aos vazios? Em sua inteireza e essencialidade, a milonga, assim como a imagem, opunha-se ao excesso, à redundância. Intensas e extensas, ambas tendiam ao monocromatismo, à horizontalidade. O frio lhes correspondia aguçando os sentidos, estimulando a concentração, o recolhimento, o intimismo; definindo-lhes os contornos de maneira a ressaltar suas propriedades: rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza, melancolia. (Ramil, 2004 p.23) 1.4- A interface Molina e Berega Esta mesma descrição que Ramil faz da paisagem que a milonga sugere pode ser avaliada com relação à estética plástica que envolve as obras de Molina e Berega. Berega assumidamente valorizava as obras de Molina Campos, que teve durante dez anos, suas obras reproduzidas pelos calendários Alpargatas na Argentina. E mesmo Berega que teve suas obras reproduzidas por vinte anos nos caledários Ipiranga no Rio Grande do Sul, apresentava os mesmos recursos sígnicos,portanto ambos falaram de uma região física e histórica comum que é o pampa no geral. Também ambos ilustraram calendários com temáticas do campo da vida simbólica do cidadão dos pampas, o uso do cavalo,e paisagens abertas. Berega trabalhou no calendário Ipiranga por vinte anos das décadas de 79 a 99 e Molina ilustrou o calendário Alpargatas na Argentina nas décadas de 30, 40 com reedição póstuma em 60. Ambos caracterizam seu trabalho com um tom humorístico próprio mas que ao mesmo tempo os aproxima, Molina representa o gaúcho dos pampas argentinos e Berega o gaúcho dos pampas sul rio-grandenses. Embora a questão do gaúcho seja também um outro conceito que tem contornos simbólicos, é interessante estabelecer essa lógica. Figura 1- Berega fig, 1-Berega- Título: Lindo Moço Ano / meses: 1986 / janeiro-fevereiro (lâmina calendário) -trabalhos feitos entre 20 /06/1985 e 20/08/1985. http://www.berega.com.br/ [ 135 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 2- Molina Campos fig. 2-Molina Campos- https://br.pinterest.com/sandyenquin/florencio-molina-campos/ Figura 3- Berega fig. 3-Berega Título: Gineteando Ano / meses: 1982 / janeiro-fevereiro (publicação) - originais feitos de 15/05/1980 (início) à 03/07/1980 (fim) http://www.berega.com.br/ [ 136 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 4- Molina Campos fig. 4 Molina Campos- https://br.pinterest.com/sandyenquin/florencio-molina-campos/ Conforme se pode observar nas imagens ambos artistas apresentam características muito próximas em termos de signos. As duas primeiras e duas últimas mostram o clássico signo do cavalo, a indrumentária caracterizada basicamente pela tradicional bombacha, bota, lenço e a faca na cintura. Nas duas primeiras o personagem aparece tranquilo sobre o cavalo solto no pampa. Esse tipo de imagem é comum no imaginário tanto no sul do Brasil, quanto na Argentina e Uruguai, o que pode traduzir um tipo especial de fronteira no âmbito tanto do imaginário quanto dos signos que as imagens sugerem. Ou seja, um sujeito solitário em uma paisagem que pode ser identificada com o inverno, solto na vastidão circulado pelo céu e pelo campo. Nesta paisagem o silêncio canta... (uma milonga talvez?) O “drama” da solidão no pampa (característico da milonga) é substituído por uma “existência” sem estes conflitos específicos. É o que os quadros de Molina e Berega traduzem. Nas duas últimas o mesmo personagem está enquadrado na mesma paisagem vasta e vazia (fria) onde o grande movimento é dado pela “gineteada” e o salto que o cavalo faz ao dar ação e sugerir alegria,tem até um certo contorno lúdico, de alguma forma. A mesma paisagem aberta posicionando o personagem no limite do céu com o horizonte “brincando” ao fazer sua “lida” cotidiana, margeia esse imaginário do gaúcho pampeano solitario mas não infeliz, senão, quem sabe, livre e “dono” do espaço que o circunda. É esse imaginário que os artistas marcam com muita qualidade técnica, deixando os subtextos para a interpretação dos sujeitos que de um jeito ou outro estão inseridos nesse contexto, configurando um outro recorte de fronteira, circunscrita pela subjetividade que a fruição estética permite. É importante nessa altura especificar o que se quer dizer quando se fala em signo e a representação deste no imaginário humano. Para Peirce, teórico da semiótica americana, citado por Santaella (2000), o signo é aquilo que está no lugar de outro (o seu objeto) e que representa algo para alguém e que por consequência de si forma cadeias de significados. Assim o objeto neste caso é todo o complexo que envolve tanto o personagem quanto seus adereços, o significado disso é a ação do signo na mente dos sujeitos que o interpretam e para entenderem o signo antes precisam de outras informações como por exemplo estarem inseridos em uma determinada cultura que ofereça o amparo para o entendimento dessa ou daquela representação mediada por esse signo. [ 137 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Segundo Peirce: O pensamento tem três elementos: a função representativa que o torna representação; a aplicação denotativa, ou ligação real, que põe um pensamento em relação com outro; a qualidade material, que dá ao pensamento sua qualidade(Cf. CP, 5. 290.) Portanto, um signo vem recheado de significações culturais. Neste caso o próprio animal (cavalo) o tipo especifico de personagem e a paisagem solitária suscita uma forma especial de tótem que pode ser reconhecido pelo seu clã. Neste caso o clã acaba por ser composto por pessoas cujas nacionalidades não importam realmente porque se reconhecem em um recorte particular de fronteira estética. Oliven (2006) cita, Marcel Mass referido no texto fazendo uma analogia entre o clã primitivo e a sociedade moderna: O clã tem seu tótem a nação sua bandeira, a nação tem seu culto a Pátria e o clã tinham o culto aos ancestrais animais-deuses. Segue, Oliven, dizendo que Durkeim enfatiza a questão do emblema nos povos primitivos ou o tótem que era um emblema um signo que representava segurança, sendo assim, o totem é uma bandeira um signo que diferencia esse clã de outros. Para Levi-Strauss os tótens servem também como identidades que cada clã assume para difereciar uns de outros. “Se como Weber, a nação “é uma comunidade de sentimentos que normalmente tende a produzir um estado próprio”, é preciso invocar antigas tradições (reais ou inventadas) como fundamento “natural” da identidade nacional que está sendo criada, Isso tende a obscurecer o caráter historico e recente dos estados nacionais “...assim como o estado -nação procura delimitar e zelar por suas fronteiras geopoliticas, ele tambem se empenha em demarcar as fronteiras culturais, estabelecendo o que faz e o que não faz parte da nação” (Oliven 2006, p. 20) As imagens de Molina foram influenciadas por suas experiências com os homens do campo de onde tem sua origem. Ao ser contratado pela fábrica Argentina Alpargatas para fazer uma série de desenhos para seus calendários, essas lembranças ganharam força entremeadas por um humor ao mesmo tempo inocente e mordaz. Esses calendários eram usados em bares, restaurantes e armazéns de bairros, que finalizado o ano acabavam servindo de quadros costumbristas, fruídos pela população em geral. Berega também desenhou motivos gaúchos para o calendário Ipiranga distribuídos nas redes dos postos para clientes e funcionários. Do mesmo modo que Molina, Berega inspirou-se em lembranças de sua infância no interior de Uruguaiana. Embora apresente um estilo que varia da cena mais narrativa até as imagens caricatas associadas as charges, há uma interelaçãoo entre os dois, desde a temática até a construção da própria composição plástica. Ambos os artistas que foram auto didatas, não apresentando portanto, uma escola artística especifica, mostram claramente um pensamento comum que ao mesmo tempo também representava o imaginário coletivo de uma população em particular. O aparelhamento de ambos é o que sugere uma diluição das fronteiras simbólicas, e justamente o tratamento dado aos seus trabalhos que repercutem o imaginário de uma regi!ão ampliada que compreende o Rio Grande do Sul como um todo e a Argentina. Mesmo que não represente a realidade vivida pela maioria dessas populações, uma vez que grande parte vive em espaços urbanos, é possível afirmar que as imagens podem ser fruídas por essas populações sem sentimento de estranheza, muito antes pelo contrário. Mesmo para quem não vivenciou na prática esses ambientes ainda assim sendo gaúcho de uma certa forma sente-se pertencente e em alguma medida representado. Esse conforto é importante na integralização de ego do sujeito, é isso que de algum jeito esse imaginário social representa. o imaginário social é composto por um conjunto de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma cultura, um substrato ideológico mantido pela comunidade. Trata-se de uma produção coletiva, já que é depositário da memória que a família e os grupos recolhem de seus contatos com o cotidiano. Nessa dimensão, identificamos as diferentes percepções dos atores em relação asi [ 138 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS mesmos e de uns em relação aos outros, ou seja, como eles se visualizam como partes de uma coletividade (Morais,1997. p 94) E também se poderia dizer que a musicalidade dessas cenas poderia ser uma milonga, tudo isso cercado pela sensação térmica do frio invernal. Nas imagens de Berega ainda há uma consideração verbal do artista ( não discutido neste estudo), que demonstra na fala todo uma construção linguística que remete a esse imaginário, independente aqui da discussão tradicionalista ou não.O imaginário para Pesavento(1995) é uma representação, evocação onde o visivel evoca algo do ausente. Como já foi introduzido, Oliven também reintera, que a figura do gaúcho sofreu um longo processo de elaboração cultural até obter o atual significado gentilico de habitante do estado. Augusto Meyer diz que o gaúcho passou de uma imagem pejorativa como sendo vagabundo e errante até meados do seculo XIX quando começa a designar também o peão de estância. Até a mitificação proposta por José de Alencar sobre o Centauro dos pampas. Nas demandas intelectuais sociológicas o gaúcho é visto como diferente do nordestino através do meio ambiente, pela superioridade politica provinda da guerra: “o gaucho é socialmente um produto do pampa, como politicamente é um produto da guerra” “ O que ocorre no Rio grande do Sul parece estar indicando que atualmente para os gauchos só se chega ao nacional através do regional, ou seja, para eles só é possivel ser brasileiro sendo gaúcho antes. A identidade gaúcha é atualmente reposta não mais nos termos da tradição farroupilha, mas enquanto expressão de uma distinção cultural. Quando se pretende comparar o Rio Grande do Sul do resto do pais, apontando diferenças e construindo uma identidade social, é quase inevitavel que esse processo lance mão do passado rural do estado e da figura do gaúcho, por serem estes os elementos emblematicos que permitem ser utilizados como sinais distintivos” (Oliven 2006 p.193) Neste caso, vale considerar a questão do imaginário presente na elaboração simbólica que caracteriza não apenas o habitante do Rio Grande do Sul que se denomina gaúcho bem como populações vizinhas como é o caso em questão da Argentina, e não circunscrever um discurso regionalista per si. O discurso regionalista é um discurso perfomatico, que tem em vista impor como legitima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada – e como tal, desconhecida – contra a definição dominante, portanto, reconhecida e legitima que a ignora.”( Bourdieu, 1989, p. 116) Cabe aqui recordar a imagem criada por Vitor Ramil para descrever o que seria uma cena que representaria o imaginário invernal dos pampas gaúchos e argentinos. Assim como a milonga tem um fundo de melancolia e vastidão aqui essas imagens também evocam esse mesmo sentimento, muito embora o fundo humorístico aproxime nosso imaginário ligado pela estética do Kitsch, que é em última instância um tipo de arte mais próxima da emoção de conforto que o cotidiano nos traz do que necessariamente a fruição da chamada grande arte que precisa de um backgroud para ser fruída. No instante em que o processo inventivo não se sustenta em uma etnia dominante, mas na referência estilística de um grupo marginal e multirracial, a identidade tradicionalista pode ser construída contemporaneamente através de uma militância que se desenvolve simbolicamente no “entre-lugar”, na fronteira, o lugar [ 139 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS imaginário em que todos podem se involucrar, independente da origem e da classe social. (Golin Pág. 100, 102) Seguindo na questão que pretendíamos sobre o que se pode identificar como uma fronteira regional a partir da referência estética é que se fez esse paralelo musical e plástico. As fronteiras com significado geográfico ou mesmo histórico se diluem em nome de uma identidade criada pelo imaginário de um grupo Bourdieu citado por Vizcardi(1997. p. 87-88) diz que a divisão regional não existe na realidade, pois esta mesma realidade é representação que dela fazemos. Desta forma, a delimitação reginal é estabelecida por quem vive e passa a compor o imaginário daqueles que a ela se referem. A identidade regional é, pois, um produto da construção humana.” Portanto, conforme a autora os objetos dos historiadores passa a ser também as diversidades culturais produzidas pelas populações como mitos, vestimentas, os locais de residência a própria literatura, enfim. Por este viés é que se justifica este estudo, quando traz como objeto não apenas o imaginário de um povo em particular mas como esse imaginário pode ser expresso estéticamente e consequentemente como isso pode de certa forma configurar um circunscrito regional, uma nova fronteira margeada pelo uso comum de uma mesma mentalidade. Finalmente o que se percebe em termos de imaginário construído seja histórico ou não é que existe sim um contorno de fronteira circundando uma região constituida pela estética que Vitor Ramil chamou de estética do frio para abarcar o estado musical unindo Brasil sul, Argentina e Uruguai mas há também o mesmo processo no campo da arte visual através das obras costumbristas de Molina e Berega, igualmente construindo um imaginário que configura uma fronteira de signos fruida por pessoas que pertencem a outras formas de fronteiras, mas que acabam irmanando uma região visual e musical, recriando uma fronteira que na verdade nem é questionada. Ou seja , já não é mais uma questão puramente acadêmica, senão uma forma de “ver” que abarca um espaço compartilhado por brasileiros, argentinos e uruguaios com o mesmo vigor. Esse novo espaço que é apreendido pelos sentidos humanos aproxima inexoravelmente pessoas, significados e territorios. Talvez seja uma configuração de fronteira importante para ser aprofundada enquanto conceito. Bibliografia: BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética. 6. Ed. São Paulo: Hucitec, 2010. BAKHITN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. GOLIN, Tau. Tradicionalismo e modernidade conservadora no “estado-marca”. In: BOEIRA, Nelson. Rio Grande em debate: conservadismo e mudança. Porto Alegre: Sulina, 2008. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993 MORAES Dênis. 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É essencial que se criem espaços capazes de respeitar as diferenças sociais e culturais, e o direito pode servir como ferramenta para essa criação. No entanto, é necessário que se leve em conta a totalidade dos indivíduos, e não só aqueles caracterizados como "cidadãos", bem como, é imprescindível que o "mercado" não sirva como meio legítimo de exclusão social. Objetiva-se, portanto, através de um trabalho hipotéticodedutivo, com abordagem qualitativa e método de procedimento bibliográfico, discutir como o conceito de “cidadão” é capaz de afetar o controle da subjetividade cultural e dos direitos humanos e como o “mercado” econômico é capaz de influenciar na distribuição destes direitos entre os sujeitos. Palavras-chave: Cidadão. Direitos Humanos. Imigração. Mercado. Multiculturalismo. INTRODUÇÃO A lógica operacional do presente ensaio é hipotética-dedutiva, sendo sua abordagem de pesquisa qualitativa, e seu método de procedimento bibliográfico. Ademais, no que tange aos procedimentos técnicos, tem-se aqui uma pesquisa bibliográfica, baseada em livros, artigos e periódicos. No tocante aos objetivos, este ensaio busca discutir como o conceito de “cidadão” é capaz de afetar o controle da subjetividade cultural e dos direitos humanos, principalmente frente a relações inter-territoriais quando os indivíduos adentram espaços diferentes de seu local de origem no papel de migrantes 3, bem como, compreender como o “mercado” econômico é capaz de influenciar na distribuição dos direitos humanos entre os sujeitos. A relevância desta discussão dá-se em face do crescente aumento na mobilidade humana internacional, de modo que se buscará delimitar quais são as principais motivações que levam a este nomadismo e de que modo os migrantes são recepcionados em territórios desconhecidos por eles, além de buscar compreender qual o papel dos direitos humanos na proteção e garantia dos direitos dos migrantes. Mestranda em Direito na Universidade de Passo Fundo (UPF). Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior). Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho (UNINTER). Especialista em Teologia (UNESA). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (UPF). Bacharel em Filosofia (UNISUL). Integrante do Projeto de Pesquisa “Estado de Direito, Sistemas de Justiça e crítica jurídica: horizontes de uma ‘nova política’” (UPF-RS). E-mail: mar.chini@hotmail.com 2 Mestranda em Direito na Universidade de Passo Fundo (UPF). Bolsista FAPERGS/CAPES. Especialista em Direito Previdenciário (LFG). Bacharel em Direito (ULBRA). Integrante do Projeto de Pesquisa: “Proteção Jurídico Ambiental Transnacional e o Paradigma da Sustentabilidade no Novo Constitucionalismo Latino Americano”. E-mail: jolinepcervi@gmail.com 3 A Lei de Migração brasileira (nº 13. 445, de 24 de maio de 2017) diferencia as modalidades de migração da seguinte forma: “Art. 1º [...] § 1º Para os devidos fins desta Lei, considera-se: I – (VETADO); II - imigrante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil; III - emigrante: brasileiro que se estabelece temporária ou definitivamente no exterior; IV - residente fronteiriço: pessoa nacional de país limítrofe ou apátrida que conserva a sua residência habitual em município fronteiriço de país vizinho; V - visitante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que vem ao Brasil para estadas de curta duração, sem pretensão de se estabelecer temporária ou definitivamente no território nacional; VI - apátrida: pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, segundo a sua legislação, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002, ou assim reconhecida pelo Estado brasileiro”. (LEI DE MIGRAÇÃO, 2017). 1 [ 142 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 1 SUBJETIVIDADE CULTURAL, DIREITOS HUMANOS E “CIDADÃO” Um dos maiores desafios do multiculturalismo 4 na atualidade se apresenta na imigração, pois o movimento de pessoas através de fronteiras desafia o “senso ético de convivência” e a “ideia de reconhecimento da dignidade humana”. Há uma grande necessidade de que se criem espaços abertos a todas as pessoas, onde as diferenças sejam respeitadas, social e culturalmente, sendo que o direito pode ser uma ferramenta valiosa para garantir aos indivíduos reconhecimento e segurança (RUBIO, 2014, p. 46). Mas tal ferramenta deve ser utilizada com cuidado, pois pode trazer consequências contrárias às desejadas, criando diferenças ao invés de amenizá-las, como é o caso da consagração de certos indivíduos como “nacionais”, conceituação que exclui os demais, atribuindo personalidade moral a um grupo e deixando os demais fora da ordem implementada (OST, 1999, p. 93). Ou seja, os indivíduos que não são considerados como cidadãos perdem sua identidade, tanto pessoal quanto cultural, e acabam sem conseguir acesso a direitos que lhes seriam fundamentais caso carregassem uma simples conceituação baseada no nascimento, seja em termos territoriais ou consanguíneos. Com a aparição da ideia de cidadania na era moderna, foi suposto que as divisões de classes, até então fortemente implementadas, estivessem abolidas, constituindo-se uma igualdade de todos os indivíduos perante a lei. Entretanto, tal igualdade pode ser considerada até mesmo ficcional, visto que os direitos humanos, por exemplo, estão condicionados à condição de cidadão, e esta tem péssimas consequências para três quartos da população mundial (CAMPUZANO, 2016, p. 163 e 164). Cada vez mais, fortificam-se ideias de “dentro” e “fora” em relação ao Estado, de modo que os considerados “nacionais” afirmam suas identidades e presença, “numa relação ambivalente com o seu oposto, o estranho, o estrangeiro” (SANTOS; LUCAS, 2016, p. 20). É necessário que haja a figura do diferente para que se possa, então, criar o conceito de normalidade, e com ele, a ideia de pertença. É interessante notar que as ideologias totalitárias ao longo do tempo exerceram violência e dominação sobre os nômades, e do mesmo modo atuaram o nacional-socialismo e o stalinismo, o primeiro perseguindo “os judeus e os ciganos, cosmopolitas, sem raízes, sem pátria e sem terra”, e o segundo, perseguindo “semitas e os povos pastores das repúblicas caucasianas ou sul-siberianas” (SANTOS, 2016, p. 67). Isso demonstra que para os que controlam a subjetividade dos indivíduos não basta a proteção da cultura nacional, deve haver também o rechaço àquilo que parece inadequado e não incorporável à esta cultura. Pode-se notar, portanto, que “pertencer é também uma forma de negar acessos, de não pertencer a outro lugar” (LUCAS, 2016, p. 95). O indivíduo que está “dentro” não pode estar ligado a outras culturas, outras linguagens, outros conhecimentos. Assim: [...] a modernidade reforçou essa lógica do ‘dentro’ e do ‘fora’ e lhe outorgou um estatuto jurídico. Construímos a pertença de modo ambivalente e inventamos o estranho, o estrangeiro, o inimigo, a ameaça que vem de fora e que deve lá ser mantida ou que está dentro e deve ser eliminada jogando-a para fora (LUCAS, 2016, p. 95). Hall faz uma distinção entre “multicultural” e “multiculturalismo”, em que diz que o primeiro “descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade ‘original’”, e o segundo “refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais” (HALL, 2009, p. 50). Já Santos, entende que “a expressão multiculturalismo designa, originalmente, a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades ‘modernas’. Rapidamente, contudo, o termo se tornou um modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. Existem diferentes noções de multiculturalismo, nem todas de sentido emancipatório. O termo apresenta as mesmas dificuldades e os mesmos potenciais do conceito de ‘cultura’, um conceito central das humanidades e das ciências sociais e que, nas últimas décadas, se tornou um terreno explícito de lutas políticas (SANTOS, 2003, p. 26). 4 [ 143 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Assim, todo aquele que não satisfaz as expectativas culturais e mercadológicas do território onde se encontra estabelecido é considerado diferente, estranho à civilização moderna, incapaz de contribuir com o crescimento estatal. Na modernidade, a globalização5 e a grande onda migratória criam, então, uma indagação no que diz respeito ao universalismo dos direitos humanos, tentando descobrir se estes seriam uma categoria éticojurídica com abrangência universal, ou se para que tais garantias possam ser consideradas como direitos deveriam responder às exigências de validade e eficácia de cada estado soberano em que se encontrem os indivíduos (BARRETO, 2004, p. 279). Mbaya (1997, p. 21) também traz à tona o tema da universalidade dos direitos humanos frente à diversidade cultural, e diz que “a percepção dos direitos humanos está condicionada, no espaço e no tempo, por múltiplos fatores de ordem histórica, política, econômica, social e cultural”. De fato, “frequentemente, o discurso sobre a globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios. Na verdade, a vitória é aparentemente tão absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena” (SANTOS, 2004, p. 244), “morte, fome, violência não foram experimentadas do mesmo modo por nações invadidas e invasoras” (SANTOS; LUCAS, 2016, p. 21). Existe atualmente, inclusive, uma abordagem assimilacionista que pretende que os imigrantes “abandonem seus costumes e práticas originais, adequando seu comportamento de acordo com os valores e normas da maioria” (SANTOS, 2016, p. 33), mas isto nem sempre é uma possibilidade, de modo que Lucas (2016, p. 95) questiona: “o que fazer, porém, quando não se é bem-vindo em nenhum lugar? Mover-se? Para onde?”. A resposta a este questionamento torna-se cada vez mais complexa diante dos fluxos migratórios atuais e do crescente aumento no número de campos de refugiados criados para relegar o “outro” ao lado de “fora”. No entanto, existe a possibilidade de falar-se em direitos humanos universais, sendo que, Bobbio (1994, p. 165), por exemplo, traz a ideia de um universalismo jurídico, que seria formado para atender as necessidades de um Estado mundial único, desenvolvendo-se o positivismo jurídico em um nível tão extremo que se constituiria um Direito positivo universal. Entretanto, mais do que um Direito positivo universal, é necessário que se tenha o direito de ser igual quando a diferença inferioriza, e diferente quando a igualdade descaracteriza (SANTOS, 2004, p. 272). 2 A ATUAÇÃO DO “MERCADO” NO CONTROLE DA SUBJETIVIDADE CULTURAL E DOS DIREITOS HUMANOS Por vários motivos, a versão hegemônica do Ocidente, que se baseia em um forte capitalismo, tem sido responsável por priorizar tanto ideiais ou valores: como liberdade, igualdade, progresso e desenvolvimento, quanto instituições: como o Estado, o mercado, a Igreja, “deixando de lado ou subordinando as pessoas” à tais valores e instituições (RUBIO, 2014, p. 62 e 63), esquecendo-se de que as mesmas deveriam servir ao ser humano, e não o contrário. No sentido de fazer com que os indivíduos cooperem com o sistema hegemônico destas sociedades Ocidentais, modelam-se, então, formas de “adestramento dos indivíduos”, que acabam se auto-afirmando apenas à medida em que se adaptam aos imperativos do sistema, sendo que o que irá caracterizar a identidade do indivíduo moderno é o “despojamento de sua dimensão de sujeito”, com o fim de sua autonomia e criatividade, de modo que ao perder as características identitárias, o indivíduo “transforma-se num ator que executa o papel por outros projetado”, a modelagem de atores sociais evita que se criem Para Santos, “aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de facto, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização. Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações. Em rigor, este termo só deveria ser usado no plural. [...] Proponho, pois, a seguinte definição: a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival” (SANTOS, 2004, p. 244). 5 [ 144 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS sujeitos históricos, e com isso, controla-se a produção de identidades e detém-se o direcionamento das práticas sociais (RUIZ, 2003, p. 116 e 117). Durante sua caminhada, a modernidade estendeu, “tanto espaços de inclusão e reconhecimento, como espaços de exclusão e colonização” (RUBIO, 2014, p. 65) e com o desenvolvimento do sistema capitalista criaram-se grandes instrumentos de racionalização da vida coletiva, onde a ciência moderna e o direito estatal moderno dominaram os espaços, juntamente com o mercado, que se tornou hegemônico e passou a controlar as demais instituições (RUBIO, 2014, p. 71). Assim, a realidade acaba sendo substituída por teorias e instituições, eliminando-se os contextos e as relações humanas, bem como a temporalidade e as próprias condições de existência das pessoas, de modo que apenas uma minoria é privilegiada em detrimento dos demais (RUBIO, 2014, p. 77). Para Rubio (2014, p. 99 e 100), embora as lutas liberais tenham sido fruto de um processo de libertação, as mesmas preservaram apenas a liberdade de poucos, sendo que com o advento do sistema capitalista, tal divisão se acentuou, pois com a adoção deste sistema, a classe burguesa subiu ao poder, mas esqueceram-se os demais coletivos que passaram a buscar a libertação da exploração e da marginalização social, como a classe operária, as mulheres e os negros, os quais se viram obrigados a adaptar-se à forma já institucionalizada pelos que controlavam o poder. Entende-se, portanto, que a força do livre mercado, o controle da economia pelo Estado, a liberdade individual e a igualdade (relegada apenas ao texto legal) não podem ser contrapostos pelos indivíduos, sob pena de, como dizem Lucas e Santos (2015, p. 23): o Diabo “tomar o corpo dos que se arvoram a esses sacrilégios aos valores modernos”. Ou seja, todo aquele que tentar opor-se a estas forças institucionalizadas, corre o risco de ser relegado ao status de inimigo da modernidade e do desenvolvimento. O capitalismo tem cada vez mais uma dominação complexa e um modo mais sofisticado de oprimir as classes e as nações consideradas inferiores (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 41), assim, na visão do capitalismo atual, “a errância, a ausência de domicílio, o desemprego, a incapacidade de participação nas sociedades de consumo” trazem à tona a exclusão do mercado formal e “o sedentarismo da permanência sob as pontes, as ruas, as calçadas, as estações de metrô e os bancos das praças públicas” (SANTOS, 2016, p. 68). Nesse sentido, ao buscar-se uma segurança para as classes dominantes em relação aos sedentários permanentes, citados acima, renegam-se os direitos dos demais indivíduos, rompem-se os ideiais de solidariedade e os vínculos sociais, e todo aquele que é considerado perigoso ou diferente, é excluído, renegado, aniquilado (RUBIO, 2014, p. 81). Assim, a institucionalização/positivação jurídico-normativa de valores que se materializam mediante formas de repressão político-jurídica ao tipo do pastor-nômadecosmopolita-imigrante tem sua origem no rechaço deste modo-de-ser do camponês-sedentário-nacionalista. É a materialização jurídica do rechaço do “outro”, do “diferente”, por aqueles que têm pretensões de constituir um mundo sobre bases estritamente igualitárias exclusivistas. O “mau” a ser reprimido, punido, é o de fora, o estrangeiro, o outro diferente que causa temor por ocupar os espaços dos nacionais-sedentários que não saem do seu lugar e tampouco quebram seus laços de origem com a terra natal, e que por isto são os “bons” que merecem ser protegidos nesta relação (SANTOS, 2016, p. 73 e 74). As políticas migratórias se tornam parte desta estrutura de segurança nacional e proteção dos “bons”, de modo que se desenvolvem tecnologias cada vez mais avançadas para controlar as fronteiras e manter os estrangeiros “fora”, pois estes são vistos como uma ameaça, no sentido de poderem estar ligados ao terrorismo internacional, ao narcotráfico, ou à delinquência de modo geral. Além disso, a ameaça é vista também como relacionada à cultura ou as formas de vida do país receptor, sendo que os “nacionais” temem que os estrangeiros mantenham seus hábitos, sua língua e sua religião, podendo mesclá-los ou subjugar a cultura predominante do país (SANTOS, 2016, p. 39). [ 145 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS No entanto, quando a repressão aos indivíduos estrangeiros falha, ou é amenizada, entram em cena os meios de comunicação e de difusão de ideais hegemônicos Ocidentalizados, de modo que a democracia torna-se um produto de mercado, e é utilizada para dar a falsa impressão de que através dela todos os indivíduos são integrados, mesmo quando estejam excluídos do exercício do poder político e democrático (RUBIO, 2014, p. 108 e 109). A busca de entender-se o voto como ideal de perfeição transforma a política em uma cota de poder e as eleições em operações de mercado, assim, “o quantitativo (o número de votos) passa a ser mais importante que o qualitativo (os conteúdos dos programas políticos e das reivindicações e demandas populares)”. Dessa forma, a cidadania acaba mandando apenas simbolicamente, pois com o esvaziamento de conteúdo do papel dos cidadãos, o poder político passa a ser exclusivo das instituições que representam o Estado, sendo que “o exemplo mais grotesco de simplificação é aquele em que só representam a democracia o voto e as eleições” (RUBIO, 2014, p. 111 a 116). É necessário, portanto, encontrar-se um modo de preservar os direitos das pessoas independentemente da pertença ou não ao papel de cidadão de um Estado soberano, o que já se vem tentando fazer através dos direitos humanos que são invocados para preencher o vazio deixado pelos projetos emancipatórios ao longo da história (SANTOS, 2004, p. 240). Deve-se perceber, também, que são as relações e práticas pessoais e sociais, sejam elas jurídicas ou não, que “nos dão a justa medida se fazemos ou não fazemos direitos humanos, se estamos construindo processos a partir de relações baixo dinâmicas de reconhecimento, respeito, e inclusão ou através de dinâmicas de império, dominação e exclusão” (RUBIO, 2014, p. 128). Rubio (2014, p. 125 e 126) traz uma verdade bastante perturbadora no que diz respeito aos direitos humanos, visto que, para ele, tem-se uma concepção pós-violatória dos direitos humanos - a qual “circunscrita a esfera de sua reivindicação judicial” -, onde se ignora ou faz pouco caso da etapa préviolatória, de modo que “fica a impressão de que os direitos humanos só existem quando já foram violados, não importando aquela dimensão da realidade que os constrói ou destrói antes da atuação do Estado”. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir deste ensaio pode-se compreender que o conceito de cidadão afeta o controle da subjetividade cultural e dos direitos humanos frente as relações inter-territoriais, pois a partir da consagração de certos indivíduos dentro desta definição de cidadania – que leva em conta o local de nascimento ou consanguinidade -, os que ficam de fora acabam excluídos e perdem sua identidade, tanto pessoal quanto cultural, visto que se fortificam, cada vez mais, ideias de “dentro” e “fora” em relação ao Estado e o conceito de cidadão se fortalece através do rechaço ao seu oposto, que é o estrangeiro. Além disso, o mercado também influencia na distribuição ou contenção dos direitos humanos entre os sujeitos, ao fazer com que aqueles que não satisfaçam suas expectativas sejam considerados incapazes de contribuir com a civilização moderna, sendo que para sentirem-se parte do sistema, acabam se deixando moldar por meio do despojamento de suas características de sujeito, perdendo a autonomia e a criatividade e executando somente aquilo que já foi previsto pelo próprio mercado. Ademais, os migrantes são recepcionados em territórios desconhecidos por eles a partir de uma lógica assimilacionista que busca a adequação de seus comportamentos aos costumes do território em que adentram, abandonando suas próprias práticas culturais. Desta forma, compreende-se que o papel dos direitos humanos na proteção e garantia da subjetividade individual é o de garantir que as diferenças sociais, culturais, religiosas e regionais sejam respeitadas, garantindo reconhecimento e segurança aos indivíduos. REFERÊNCIAS [ 146 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS BARRETO, Vicente de Paulo. Multiculturalismo e direitos humanos: um conflito insolúvel? In: BALDI, César Augusto. Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico; introdução: Tercio Sampaio Ferraz Júnior; tradução: Claudio de Cicco e Maria Celeste C. J. Santos; revisão técnica: João Ferreira. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 4ª edição, 1994. BRASIL. Lei de Migração nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm - Acesso em: 27/06/2018. CAMPUZANO, Alfonso de Julios. Inmigración y multiculturalidad: uma aproximación desde la universalidad de los derechos. In: CAMPUZANO, Alfonso de Julios. LUCAS, Doglas Cesar. SANTOS, André Leonardo Copetti. 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[ 147 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS "Eu sei tudo”: a figura feminina na sua primeira edição Marília Guaragni de Almeida* Resumo: A presente comunicação enquadra-se no espaço de pesquisa referente a escritas e leituras, dentro do âmbito da imprensa feminina na modernidade, ao perscrutar a presença das mulheres em uma revista brasileira. Tem-se então uma análise da primeira edição da revista brasileira “Eu Sei Tudo”, com circulação em junho de 1917 em todo o Brasil, voltada a observação da figura da mulher e de como os magazines buscavam atingir o público feminino. Assim, o trabalho tem o objetivo de problematizar as discussões de gênero no início do século XX, momento crucial no desenvolvimento das ideias feminista e no ganho de força dos movimentos em prol da reivindicação de direitos. Por se tratar de um período marcado pelo patriarcalismo e ao homem como principal membro da sociedade, a delimitação se dará sobre a figura das mulheres em matérias, anúncios, textos, notícias, receitas, desenhos e imagens que vieram a retratá-las. Com isso, a ênfase principal e a figura da mulher, no contexto da época, e de como os avanços no Movimento Feminista eram mostrados nas mais de 140 páginas da primeira edição. Como também, o recebimento por meio do público e a própria formulação das pautas a serem circuladas nas edições seguintes. INTRODUÇÃO O presente texto tem como objetivo contribuir para os estudos que abordam sobre a História das Mulheres, com ênfase no feminino frente aos avanços do feminismo no início do século XX, através da revista brasileira Eu Sei Tudo. Conhecida como “Magazine mensal ilustrado”, foi lançada na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1917, pela Companhia Editora Americana 1. Sua sede se encontrava no nº 12 da Praça Gonçalves Dias, com a organização e gerencial de Arthur Brandão, que assinava como responsável pelas matérias presentes no magazine. Assim, o escopo deste trabalho busca analisar a primeira edição da Revista Eu Sei Tudo, qual seja, a 001 de 1917 no mês de junho, que circulou até o ano de 1958, sendo vendida semanalmente ao preço de 60 francos para assinantes de fora do Brasil, e 2$000 reis em circulação nacional, mensal, e 25$000 reis a anual (passando a ser 30$000 após a 3ª edição). Sua paginação variava de 100 a 150 páginas, sendo que a referida edição continha 150 páginas. A revista buscava falar de assuntos variados, e os mais corriqueiros encontrados nas páginas são tecnologias, fatos históricos, ciências, avanços e informações de nível nacional e internacional. O título da revista já informava aos leitores o que eles poderiam esperar, saber de tudo a respeito dos mais variados assuntos e temas que viessem a ser interessantes, todos dispostos no mesmo periódico mensal. A proposta aqui disposta é a de examinar como a primeira edição da revista retratou e buscou informar os indivíduos do sexo feminino sobre os avanços feministas de forma nacional e internacional. Ainda, como esta edição de número 001, investigou-se através das páginas como o magazine perscrutou cativar o sexo feminino por meio de matérias, anúncios, histórias, imagens, contos, poemas, sessões e fatos que refletiam a presença feminina no momento histórico2 da circulação da primeira edição. Graduada em história pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), atualmente mestranda do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Email: mariliaalmeida_10@hotmail.com. 1 Importante editora do período, responsável pela publicação e edição da revista editava a Revista da Semana/A Scena Muda a primeira revista sobre cinema do país. Outro fator crucial da editora e a forte presença e influência dos Estados Unidos da América nas publicações. 2 Salienta-se que é obrigatória uma visão voltada ao contexto histórico da época, neste momento os ideais feministas ganhavam força por se tratar da Primeira Onda, ou seja, as primeiras reinvindicações das mulheres frete a igualdade de gênero e muitas destas informações chegavam tempos depois no Brasil, como também eram tratadas conforme a vontade do corpo editorial e do editor chefe. * [ 148 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Tem-se também o diferencial das cores, visto que a revista se auto-intitulava multicolorida, pois trazia suas capas cheias de cores, com imagens nítidas e desenhos, mas ainda fazia uso das páginas pretas e brancas, nas dimensões 26,5 x 17,5 cm, encadernadas em brochura e impressas em papel de ótima qualidade. As fontes utilizadas encontram-se disponíveis para todo e qualquer indivíduo que se interessar pelos fatos no site da Biblioteca Nacional Digital, com o acervo completo da Revista Eu Sei Tudo3. A partir deste ponto, foi observado o teor da primeira edição, como a forma que a escrita, os fatos, as matérias e as informações eram direcionadas à mulher. Catalogaram-se todas e quaisquer informações que se direcionassem ao sexo feminino, sendo de caráter informativo ou apenas para entretenimento. Autores que fazem parte do referencial teórico buscam caminhar e fomentar a interpretação dos fatos presentes, de forma que suas linhas proporcionam um modo a entender como a figura feminina era retratada na época. Para isso, utiliza-se Foucalt (1978), Pedro (2008), Burke (2006), Bardin (2011), Pollak (1992), Aleksiévitch (2016), entre outros, para análise de conteúdo, relações de poder, presença da mulher na sociedade, gênero com categoria de análise, memória, história cultural, cultura presente na época, a maneira como ela era retratada nas páginas das revistas e sucessivamente absorvida por leitores de ambos os sexos. À vista disso, os resultados obtidos têm o retrato da mulher não só como dona de casa ou responsável pela família. Destarte, nesse momento (ano de 1917), a mulher interessa-se por conhecimentos gerais, informações, fatos históricos, como ainda quer saber das conquistas que o movimento feminista vem realizando. Reverbera que o momento não é o mais favorável à figura feminina, mas retratá-la de modo não somente como sexo frágil é considerado um avanço significativo. Outro ponto é a presença de notícias, imagens e fatos direcionados aos dois sexos no mesmo magazine, mostrando que a representatividade feminina era um importante meio de se conquistar mais leitores e assinantes. Outrossim, aumentar o interesse por diversos assuntos, não somente com os já tratados com femininos, e assim acrescer o campo de conhecimento das mulheres e fomentar a busca por uma igualdade, indo de encontro ao sistema patriarcal 4 que se encontravam. A MULHER PELAS PÁGINAS DA EU SEI TUDO Logo ao abrir as primeiras páginas da revista, encontra-se um emaranhado de informações, como também uma escrita refinada se utilizando do português correto e da época. Visando o público feminino, onde os editores supunham que as mulheres não se interessariam por assuntos científicos, a revista buscou explorar temas femininos voltados ao lar, ao belo, a família, ao amor, às relações conjugais, educação dos filhos, trajes, penteados, comportamento, maneiras de portar-se, e afins. A edição número 001 traz a figura feminina mostrando interesse por poesia, cantos, narrativas fictícias, moda, apetrechos, produtos de beleza, sendo que a mulher sempre era mostrada com roupas da moda da época. Seja em imagens ou em caricaturas, a beleza era ponto importante da revista. 3https://bndigital.bn.gov.br/artigos/eu-sei-tudo-magazine-mensal-illustrado/ acessado em 08 de set de 2018. O Patriarcalismo tem como definição ideológica a supremacia do homem nas relações sociais, o homem como detentor e responsável do sustento familiar. O termo patriarcalismo vem do grego pater, ou seja, pai. Ver: SAFFIOTI, Heleieth I. Gênero, patriarcado, violência (2011). 4 [ 149 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 2 - Caricatura das vestimentas da época Fonte – Revista EU SEI TUDO (1917) – Edição nº001 Direcionado exclusivamente a figura da mulher, tinha-se a sessão “Dedos de Fada: Crochet e Bordados” que apareceu na primeira edição e constantemente se fez presente para informar e ensinar novos pontos para as damas da sociedade. Neste aspecto, a figura da mulher alinha-se à feminilidade e à delicadeza de um ponto de bordado e crochet. A própria sessão já reflete a forma como se via a mulher neste momento histórico. Foucault (1979) direciona-se principalmente às relações de poder, pois para o autor o poder reprime, e ao mesmo tempo produz efeitos de saber e verdade, que refletem o que a sociedade está acostumada a reproduzir, muitas vezes aceitando algo que reprime, e se torna verdade pelo número de vezes que é repetido: Trata-se (...) de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações(...) captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que organizam e delimitam (...)Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício. (FOUCAULT, 1979, p.182). A ideia trabalhada por Michel Foucault (1979) acaba por ser refletida em uma das matérias encontradas nas páginas 18, 31, 37, 41, 70 e 74, que mostram a mulher em diferentes faces aplicadas a distintos tipos de relação de poder. Dentre as páginas supracitadas, duas refletem a contextualização histórica da história das mulheres. Intitulada: “As consequências da guerra – Um novo perigo” mostrava as mulheres participando da Primeira Guerra Mundial, retratadas como um perigo presente. Quando se dizia < Temos homem ao leme > isso significava que todos podiam dormir sossegadamente porquanto a direcção estavam garantida e não havia risco de desnorteio ou desorientação. Mas que dizer agora que tantas embarcações, sobre tudo nos serviços fluviais de França e de Inglaterra estão entregues a equipagens femininas? (EU SEI TUDO, 1917, p.18). [ 150 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Os editores colocam a presença feminina em face de importantes campos de guerra como fator de risco, e que acabavam por gerar uma maior preocupação e mobilização dos homens, para caso de alguma das mulheres agir de forma errada. Ressalta-se que a presença feminina sempre se fez presente em inúmeras atividades da história. A Revolução Francesa, por exemplo, é um dos maiores marcos da importante presença das mulheres. Porém, poucos são os estudos que falam a respeito. A citação referida anteriormente coloca com grau de preocupação e desconfiança a presença da mulher na Primeira Guerra Mundial, passando à população que elas não seriam tão capazes como se um homem estivesse nesta posição. Todavia, ao continuar a leitura da matéria, encontra-se um parágrafo que coloca a mulher como proativa e inteligente, conquistando seu espaço facilmente e ganhando reconhecimento em todas as posições que fossem efetivadas. Ora, aconteceu depois que a guerra se prolongou muito além do que haviam imaginado os mais pessimistas. Quase tez anos se passaram... Durante esse tempo as mulheres invadiram todos os ramos de atividade e, com inteligência admirável, com facilidade de assimilação maravilhosa, ganharam em todas essas profissões novas para seu seco, pericia irrepenhensivel. Agora eil-ashabituadas a viver como seu trabalho bem remunerado, a gosar a independência que lhe vem de honorários fartos, ganhos com seus próprios esforços... Estarão ellas dispostas a abrir mão subitamente de todas essas vantagens quando terminada a guerra, os milhões de operários hoje mobilisados nas linhas de frente voltarem à vida civil? (EU SEI TUDO, 1917, p.18). Ao mesmo tempo em que coloca a mulher como peça importante e capaz, critica-se a volta desta à sociedade no pós-guerra, pois é neste meio que se cria a competitividade entre os sexos ao ter a disputa pela mesma vaga. Figura 3 - Mulheres ao leme Fonte – Revista EU SEI TUDO (1917) – Edição nº001 [ 151 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 4 - Escola de motorneiras em Giasgow Fonte - Revista EU SEI TUDO (1917) – Edição nº001 Figura 5 - Uma equipe de <impressoras> em Londres. (...) Hoje todos esses serviços estão aos cuidados de mulheres (1917) Fonte - Revista EU SEI TUDO (1917) – Edição nº001 Neste momento histórico, as mulheres assumiram responsabilidades que antes não lhes cabia. E como consequência, cerca de 20% da força de trabalho da indústria manufatureira passou a ser feminina, sendo que isso aconteceu ao realizarem a substituição da mão de obra masculina, que foi a guerra, para a feminina. Ademais, tem-se números de mais de 21 mil mulheres que serviram aos seus respectivos países. Fatos como a presença destas nos fronts, sendo como enfermeiras, fuzileiras, soldadas ou substituindo os homens na indústria, foram fator importante e crucial para que se aprofundasse a busca pelo sufrágio universal, e assim conquistarem mais direitos frente à sociedade. 5 Por se tratar de uma revista com influência Americana, afinal fora organizada e comercializada pela Companhia Editora Americana, matérias como estas acabavam por ter um grande impacto na sociedade brasileira. Além do mais, serviam para contrapor, e até mesmo diminuir a expectativa colocada nas matérias e em suas informações. Ver: Lettie Gavin na obra American Women in World War I: TheyAlsoServed (Mulheres Americanas na Primeira Guerra Mundial: Elas Também Serviram, em tradução livre), 2006. 5 [ 152 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 6 - A elegância masculina no início do século XX Fonte - Revista EU SEI TUDO (1917) – Edição nº001 Em caixa alta, bem ao centro, e com uma imagem de homens bem trajados, a revista colocava: “O costume Masculino Ideal”, definindo ao longo do corpo do texto, frases como: “A moda masculina, ao contrario da que embeleza e arruína o sexo frágil, caractetiza-se pela uniformidade” (EU SEI TUDO, 1917, p. 37). Assim, tira-se o foco das mulheres presentes na guerra, e o coloca novamente em beleza e vestimentas. Outro ponto que a revista carrega, é o de classificar a mulher como esposa: “A esposa no oriente e no ocidente”, como também: “Qual a melhor compreensão dos deveres conjugares?”. Na matéria, o tema principal é o casamento e as causas variadas que levam à falência do mesmo. Fica subentendido que a causa principal de um relacionamento falho seja de toda responsabilidade da mulher, muito por seu comportamento, modo de vestir, atitudes e afins. “Ora, diante d’essas verdades, se atendermos a que toda a afeição sentimental tem por base a admiração parece claro que o melhor meio de defender o casamento é manter e alimentar a beleza.” (EU SEI TUDO, 1917, p.44). E ainda: E isso do que menos se cuida e cabe a mulher a maior responsabilidade neste erro. Desde que se casa, a mulher se considera dispensada de sua taceirice para com o marido: continua a apurar os cuidados de sua toiletie para se apresentar na rua e na sociedade; ao marido apresenta-se de qualquer modo, imaginando que ele rem obrigação de continuar a adora-la seja como for. Muito mais inteligente é o critério da oriental que casada julga-se mais do que nunca obrigada a encantar o companheiro da sua existência (EU SEI TUDO, 1917, p.41). Ao analisar este trecho da revista, percebe-se como a mulher era tida como inferior e totalmente voltada ao marido. Neste tocante, Bourdieu (2010) coloca que se trata de uma relação social que oferece a lógica da compreensão da dominação masculina para com a feminina, em prol de um principio préestabelecido pela sociedade patriarcal, onde o princípio simbólico é reconhecido tanto pelo dominante, o homem, como pelo dominado, a mulher. De tal forma, na referida citação do magazine, percebe-se que a mulher é tida como dominada, e os fatos que levam ao fracasso de um casamento se relacionam exclusivamente à fisionomia ou cuidados que a mesma tem consigo. [ 153 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrecendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria de uma construção social naturalizada (BOURDIEU, 2010, p.32). A ideia de Bourdieu é importante para que se possa compreender o grupo social no qual a revista circulava. Deste modo, tem-se que mesmo com algumas notícias, não tantas como as voltadas ao público masculino, se constata que informações sobre as mulheres se faziam presentes nas páginas da revista Eu Sei Tudo. Em uma sociedade onde o sexo masculino era o detentor da força econômica e social, circular notícias, não somente sobre beleza, comportamento e entretenimento para o publico feminino é um considerável avanço. Por se tratar de uma análise de conteúdo, é necessário foco nas mensagens, na escrita e no gênero empregado na narrativa, para assim compreender o sujeito que será tratado nas matérias. Isso ocorre porque em muitas delas não se emprega o “ele” diretamente, deixando aberta a possibilidade de a notícia ser tanto para o sexo feminino, como para o masculino. Em meados do século XX, se ter matérias sem o emprego do sujeito é uma forte ferramenta para que presença feminina seja pontual e evidente em todos os âmbitos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Isto posto, a presente comunicação analisou a primeira edição da revista Eu Sei Tudo e buscou observar a presença de material que pudesse fomentar e aumentar o campo da História das Mulheres. Através de matérias, informativos, anúncios, textos, crônicas, narrativas, imagens e mais tudo que pudesse apresentar fatores que identificassem e direcionassem a figura feminina. Posteriormente, interpretou-se que o almanaque6 visava o publico feminino sim, ora voltando à sua representatividade perante o mundo e o Brasil, ora buscando colocar a mulher como submissa e totalmente dependente do marido. Os dois lados aqui descritos qualificam a política desenvolvida pelo editorial, afinal, as duas formar de explicitar a mulher vendiam exemplares, e muito disso acontecia por ser esse o padrão da mulher que consumia o magazine. Ao referir-se a um padrão de mulher da época, é necessário observar-se que a sociedade era patriarcal e capitalista. Os meios midiáticos, como jornais, magazines, folhetos e almanaques possuíam a finalidade de grande comercialização, e as pessoas que os assinavam eram de classe média, média alta, e alta. Desse modo, as mulheres que possuíam contato com tais informações não se viam influenciadas pela necessidade de, por exemplo, receber o mesmo que os homens ao realizar a mesma função. Também, o sufrágio universal7 não era tido como algo que pudesse modificar a vida das mesmas. Entretanto, atingir as páginas de uma revista nacionalmente conhecida com temáticas variadas, e até mesmo matérias voltadas exclusivamente para as mulheres e seus feitos é algo consideravelmente importante. Por se tratar de um periódico mensal, os leitores esperavam o mês para informar-se sobre as notícias do Brasil e do mundo, e as mulheres faziam parte deste grupo. Além de acompanharem os fatos narrados, por ser uma revista ilustrada, puderam acompanhar através das imagens os feitos e conquistas das mulheres na história. O presente trabalho busca analisar apenas a revista de número 1, tendo em vista que a mesma acaba por retratar em outros momentos da história a presença feminina. É um mero recorte do mês de junho de 1917, sendo que a revista avançara até 1958. Observa-se que o voto feminino acaba por acontecer enquanto a revista ainda circulava, como tantos outros avanços que favoreceram e auxiliaram na propagação dos ideais feministas trazidos na primeira onda, passando pela segunda 8 e tendo algum efeito na história. Termo bastante utilizado para referir-se a revista Eu Sei Tudo durante o período de circulação. No Brasil as mulheres só puderam exercer o direito ao voto no ano de 1932, e nos EUA 1920. 8 A Segunda Onda é datada na década de 1960, dois anos após o fim da revista. 6 7 [ 154 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS São poucos os estudos que analisam a revista aqui citada, sendo que a primeira edição foi a introdução de um estilo diferente de alastramento da informação, pois além de retratar assuntos variados, a revista buscava mostrar por intermédio de imagens a realidade vivida pelo mundo. Também as ideias desenvolvidas no corpo do texto fazem parte de uma pesquisa de Mestrado, inserindo-se na grande área da cultura com ênfase no debate de gênero e feminismo através das páginas da revista Eu Sei Tudo, com a análise da influência deste meio de informação na vida das mulheres que se atualizavam através do magazine do ano de 1917. Aponta-se que foi respeitada a ortografia vigente no período da publicação das revistas nas citações diretas e indiretas, para que se pudesse interpretar fielmente a linguagem utilizada ao público. Com isso, tem-se uma maior proximidade com as falas e mensagens direcionadas ao grupo feminino. REFERÊNCIAS ADICHIE, Chimanda N. Sejamos todas feministas. 1ª Edição, Companhia das Letras, ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. 1ª Edição – Traduzido do Russo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.2016. AMARAL, Marise Basso. Natureza e representação na pedagogia da publicidade. In: Estudos Culturais em educação. Porto Alegre: Editora Universidade/UFGRS, 2000. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jaqueline. O que é feminismo? São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 2007. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto, Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 2011. 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Este contexto, associado ao movimento do Risorgimento que buscava impulsionar a população italiana para uma retomada das raízes romanas, resultou através dos esforços da dinastia de Savoia, na unificação da Itália, que mesmo após a centralização do poder, não apresentou melhorias significativas. Assim, o sonho da propriedade da terra, aliado a propaganda emigracionista para o Brasil, levou muitos italianos a darem início ao abandono da pátria, e a consequente emigração em massa para o Rio Grande do Sul, com ênfase no período de 1876-1901. Palavras-chave: Itália. Friuli Venezia Giulia. Emigração. Brasil The construction of friulian identity in Italy and Brazil (RS) Abstract: The article seeks to make a brief analysis of the conflictive Italian triple border region of Friuli Venezia Giulia, which suffered from territorial disputes in favor of border proximity with other territories, leading to population dissatisfaction, especially with regard to the collection of high values of taxes, the difficulty in acquiring land, and, consequently, the impoverishment of the territory. This context, associated with the Risorgimento movement that sought to boost the Italian population for a revival of the Roman roots, resulted in the efforts of the Savoia dynasty, in the unification of Italy, that even after the centralization of power, did not show significant improvements. Thus, the dream of land ownership, together with the emigrationist propaganda for Brazil, led many Italians to start abandoning their homeland, and the consequent mass emigration to Rio Grande do Sul, with emphasis on the period of 1876-1901. Key words: Italy. Friuli Venezia Giulia. Emigration. Brazil Introdução A Itália nos séculos XIV e XV, era dividida em vários reinos que eram Estados independentes, também chamados de cidades-Estados que guerreavam entre si, visto que durante o período medieval as cidades já eram importantes centros mercantis. Dessa forma, a Península era dividida e governada por famílias da realeza francesa e austríaca, por nobres italianos, e em parte pelos Estados Papais, que exerciam forte influência perante a população, além do Reino da Sicília (Casa de Savoia 2). Neste sentido, é importante frisarmos que as monarquias também eram, e em alguns casos continuam sendo sistemas políticos, tendo o monarca como líder do Estado. Portanto, apesar da Península Itálica ser considerada para o período rica e populosa, enfrentava sérios problemas de divisão territorial e consequentemente de identidade, assim, não havia uma unidade propriamente dita, pois variavam em cada região, desde as leis que divergiam, assim como o idioma, a moeda e a política. “Importante destacar, desse modo, que a Itália era então conhecida apenas como uma expressão geográfica” (CARNIERI, 2013, p. 24), e não como uma unidade. Cidades importantes como Veneza, Pisa, Gênova, Milão e Florença adquiriram sua independência econômica, e assim ampliaram sua influência e capital. É pertinente salientarmos que muitas famílias, entre elas os Médici, enriqueceram em função da manufatura, exportação e do comércio no Mediterrâneo, Doutoranda em História pela Universidade de Passo Fundo-UPF. Bolsista Fapergs. E-mail: mcbbusato@gmail.com. Neste breve artigo comenta-se superficialmente sobre questões que estão sendo abordados de forma profunda na tese de doutorado. 2 O termo Casa de Savoia, pode ser escrito como Casa di Savoia, em italiano, ou em alguns casos Casa de Saboia, optamos por Casa de Savoia. 1 [ 157 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS formando dinastias locais que expandiram-se para várias partes da Europa, seja pela via comercial ou matrimonial, como foi o caso de Catarina di Medici 3 coroada rainha em função do casamento com o rei da França Henrique II. Portanto, as disputas para controle comercial, territorial e consequentemente por poder e influência eram bastante comuns e significativas, dividindo ainda mais a Península. Este fator associado as diversas invasões de outros povos, principalmente em função das fronteiras próximas e domínios de território, transformaram a Itália em um verdadeiro mosaico com distintas culturas e sentimentos diversos de pertencimento. Além dos conflitos internos, a Itália lutava contra as invasões francesa e espanhola. Inicialmente foram obrigados a submissão da Espanha, entre 1559-1713, mas devido a Guerra da Sucessão Espanhola, a Áustria passa a dominar parte do território italiano. Ainda, em consequência das Guerras Napoleônicas, o norte e o centro da Itália foram invadidos, dessa forma: A França pós-revolucionária do Diretório, já envolvida em um projeto expansionista napoleônico, invadirá a cidade de Veneza em 1797, dividindo o território do norte da Península Itálica com o Império Austríaco. No período que se segue até o Congresso de Viena (1815), as dominações francesas e austríacas suceder-se-ão na região setentrional italiana, tendo, a figura do invasor, ora a imagem dos departamentos franceses, ora das províncias austríacas. A partir de 1815, o Império Habsburgo consolidar-se-á como força dominante na região, assumindo a administração do norte peninsular até a vitória do projeto de unificação da casa de Savoia, em 1866 (BENEDUZI, 2011, p. 33). Com o passar dos séculos e com a evolução da tecnologia marítima, outras partes da Europa passaram a aventurar-se em alto mar, mas focando em cruzar o Atlântico, e assim competir economicamente com a Itália, dessa forma, a Península inicia um processo de pauperização em relação a população campesina, e consequentemente, a proximidade fronteiriça permitiu diversas invasões e domínios territoriais, especialmente nas regiões do norte da Itália. À vista disso, suas repúblicas perderam a autonomia política, já que as regiões italianas passaram a ser disputadas com maior intensidade, “na verdade, a península se tornou um território colonial das potências Imperiais do continente” (CARNIERI, 2013 p. 26). Portanto além dos conflitos internos, havia a problemática de controle fronteiriço, ou seja, a Itália não conseguia resolver as disputas territoriais com outros povos, sendo que a fronteira sempre foi destaque de conflitos. Referente a definição de fronteira, Lia Osório Machado, afirma que “a fronteira está orientada “para fora” (forças centrífugas), enquanto os limites estão orientados “para dentro” (forças centrípetas). A fronteira é considerada uma fonte de perigo ou ameaça porque pode desenvolver interesses distintos aos do governo central” (MACHADO, 1998, p. 2). Assim, o contexto político que definia a Europa era de disputas. Em fins da Idade Média e início da Idade Moderna, as monarquias da França, de Portugal e da Espanha procuraram reforçar seu domínio e seu poder diante das particularidades regionais, dos nobres e de outras forças que se opunham à centralização administrativa. Na Alemanha e, em especial, na Itália, contudo, esse processo esbarrou em resistências muito maiores de cidades e aristocracias mercantis ricas e poderosas, o que ajuda a compreender como a Itália continuou dividida em vários Estados rivais (CARNIERI, 2013, p. 25). Por consequência, o interesse na unificação da Itália pala casa de Savoia, aliado entre outras questões, a determinados interesses políticos e econômicos, levou à ênfase e criação de um sentimento nacionalista. Fato que não ocorreu de imediato, até mesmo em função do sentimento de pertencimento regional, mas para tanto, iniciou-se um processo de ressurgimento das veias históricas, comparando os 3 Medici –escrita conforme o idioma italiano. [ 158 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS nascidos em solo italiano com os romanos e seus feitos no passado remoto, de vitórias e resistências, trazidos a luz pela burguesia intelectual italiana do século XIX, para assim, fomentar o discurso de nação. Neste sentido dá-se origem ao movimento que conhecemos como Risorgimento. Independente dos esforços da Itália em promulgar um sentimento nacional, a população das regiões com suas complexas particularidades, iniciavam em pouco tempo após a unificação, uma grande emigração em direção ao Brasil, esse movimento também pode ser entendido a primeiro momento pelo incentivo da Itália na saída dos emigrantes, também como uma revolução da própria população por melhores condições financeiras, ou ainda, pela descrença em melhorias socioeconômicas a curto prazo, mesmo após a unificação. Em nosso recorte de estudo analisaremos brevemente a questão da emigração friulana para o Rio Grande do Sul, o Friuli Venezia Giulia foi selecionado por suas características especiais. 1.2 Contexto territorial do Friuli Venezia Giulia Sabe-se que a região do Friuli foi anexada oficialmente ao Reino da Itália, em 1866, mas que este local engloba muitas particularidades se comparada com as demais regiões da Itália recém unificada, pois o território atualmente nomeado de Friuli Venezia Giulia, está localizado ao nordeste da Itália. Sendo limitado ao norte pela Áustria, a leste pela Eslovênia, ao sul é banhada pelo mar Adriático, e a oeste delimitado pelo Vêneto (Itália). Portanto, no extremo norte da região encontra-se a tríplice fronteira: Itália- Áustria- Eslovênia. O nome dessa região indica uma composição de duas áreas geográficas distintas, mas ambas derivam do latim "gens Iulia" (a família à qual Júlio César pertence). Friuli originalmente 'Forum Julii' era o nome de um centro comercial, construído pelos romanos, na atual cidade de Civedale. Venezia Giulia, por outro lado, é um nome recente provindo dos venezianos, já que o Friuli pertencia a República de Veneza. Esta região também era chamada de Trivêneto (Três Venezas), pois mesmo durante determinados períodos pertencer ao Império austríaco eram assim chamadas como forma de ressaltar uma suposta identidade italiana. Bertonha, referente ao nacionalismo explana: O Trentino era uma região basicamente camponesa, com forte componente conservador, enquanto a de Trieste girava em torno do porto e do seu hinterland eslavo. Os italianos tinham direitos e representação regional, mas muitos se viam ameaçados pela crescente germanização ou eslavização dessas províncias e alguns desejavam a incorporação ao Reino da Itália, enquanto outros acreditavam que era possível ser italiano e, ao mesmo tempo, súdito austríaco (BERTONHA, 2018, p. 109). Após a Primeira Guerra Mundial, o território do Friuli Venezia Giulia fazia parte da região do Vêneto, juntamente com algumas áreas da antiga Iugoslávia. Após a Segunda Guerra Mundial, partes do território de Veneza Giulia foram perdidos, e a região do Friuli foi reunida com o que restava da mesma. A República de Veneza, entre os séculos XV e XVI estendeu seus limites por toda a região do Vêneto (Bérgamo, Bréscia e Mântua, na Lombardia, e Udine, no Friuli). [ 159 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Tabela 1: Divisão territorial 4 1815-1865: Todo o território que inclui as províncias atuais de Udine, Pordenone, Gorizia e Trieste está sob domínio austríaco. 1866: Friuli italiano. O Friuli que se torna parte do Reino da Itália com o nome da província de Udine inclui um vasto território desde o rio Livenza até o rio Judrio, desde o mar até Pontebba. Faz fronteira a norte e a leste com os territórios austríacos de Klagenfurt, Plezzo, Tolmino, Gorizia. Para o oeste com os territórios de Portogruaro, Oderzo, Conegliano, Vittorio Vêneto e Cadore. 1866: Friuli austríaco. As cidades de Gorizia, Gradisca, Cervignano, Aquileia, Aiello, Tarvisio, parte de Pontebba ainda estão sob administração austríaca. 1919-1926: Após a I Guerra Mundial os territórios que haviam permanecido com a Áustria (Gorizia, Tarvisio, Cervignano, Aquileia, etc.) tornam-se parte do Reino da Itália sob a província de Udine, sendo rebatizada como Friuli. A província italiana de Trieste é uma administração independente a partir de 1923. 1927: É estabelecida a província de Gorizia, que se separa de Udine. Inclui os territórios do distrito de Monfalcone, e os do distrito de Idria. Nesta redistribuição do território para Udine os municípios do distrito de Cervignano e o distrito de Tarvisio são confiados. 1947: Com o tratado de paz que concluiu a Segunda Guerra Mundial, as fronteiras nacionais são retocadas em função da transferência de alguns territórios para a Iugoslávia. Como resultado, a província pré-existente de Gorizia é modificada, o que reduz seu território. A partir desta data, até hoje, ela inclui os municípios de Gorizia, Capriva, Cormons, Doberdob, Dolegna del Collio, Farra d'Isonzo, Fogliano-Redipuglia, Gradisca, Grado, Mariano del Friuli, Medea, Monfalcone, Moradabad, Mossa, Romans d'Isonzo, Ronche dos Legionários, Sagrado, San Canzian d'Isonzo, San Floriano, San Lorenzo, San Pier d'Isonzo Savogna d'Isonzo Staranzano Turriaco Villesse. A província de Udine permanece territorialmente inalterada. 1954: Define-se a província de Trieste, além do acordo assinado, a nível internacional, incluindo os municípios de Duino-Aurisina, Monrupino, Muggia, San Dorligo della Valle Sgonico, assim como a capital de Trieste. 1963: A partir da província de Udine municípios são destacados no Tagliamento direito para formar a nova província de Pordenone, que inclui, além da cidade capital, também os municípios de Andreis, Arba, Arzene, Aviano, Azzano X, Barcis, Brugnera, Budoia, Caneva, Casarsa della Delizia, Castelnuovo del Friuli, Cavasso Nuovo, Chions, Cimolais, Claut, Clauzetto, Cordenons, Cordovado, Erto e Casso, Fanna, Fiume Vêneto, Fontanafredda, Frisanco, Maniago, Meduno, Montereale, Morsano al Tagliamento, Pasiano di Pordenone, Pravisdomini Roveredo em piano, Sacile, San Giorgio della Richinvelda, San Martino al Tagliamento, San Quirino, San Vito al Tagliamento, Sequals, Sesto al Reghena, Spilimbergo, Tramonti di Sopra, Tramonti di Sotto, Travesio, Vajont, Valvasone, Vito d ' Asio, Vivaro, Zoppola. Fonte: Archivio di Stato di Udine. Disponível de forma pública em: http://www.friulinprin.beniculturali.it/ricerca.html#utilita. <Acesso em: 25 de out. de 2018>. A questão do espaço entre o Friuli e Venezia Giulia, é uma divisão muito antiga, e as duas áreas foram fundidas em uma região autônoma somente entre 1954 e 1975, em diferentes fases. Historicamente, a área era uma terra onde se encontraram pessoas e culturas distintas, que entraram em confronto com identidades étnicas e linguísticas. Ainda hoje na região fala-se muitas línguas: italiano, friulano, esloveno, alemão e vêneto em Friuli, com o acréscimo do croata em Venezia Giulia. Ainda existem tensões e divergências sobre os territórios que compõem a parte do Friuli, e de Venezia Giulia. Conforme explana Grossutti: 4 Tradução minha. [ 160 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A região central do Friuli (atual província de Udine) e Friuli Ocidental (atual província de Podernone) foram anexadas à Itália em 1866, juntamente com o Vêneto, e imediatamente após a Terceira Guerra de Independência, enquanto o Friuli oriental (o chamado condado de Gorizia e Gradisca) permaneceu sujeito ao império austro-húngaro até o final da Primeira Guerra Mundial. O primeiro também é conhecido como Friuli “italiano”, o segundo como Friuli “austríaco”. Em 1968, da província de Udine se separou a parte da chamada “Destra Tagliamento” (o Friuli ocidental) que se tornou a atual província de Podernone5 (GROSSUTTI, 2015, p. 106) O autor ainda explica que as famílias que saíram da região do Friuli para o estado do Rio Grande do Sul, são provenientes da parte do Friuli “italiano”, cuja população já era adepta a migrações internas, principalmente pela proximidade fronteiriça. No caso do Friuli “italiano”, o território faz divisa com o Vêneto, mas de qualquer maneira, analisando o espaço territorial da região – atualmente possui 7.845 Km² e aproximadamente 1.213.532 mil habitantes, é relativamente pequeno. Assim as mesclas culturais com as demais partes da região e fronteiras foram inevitáveis, tendo o maior destaque na questão linguística, chamada de língua ou idioma friulano, que é uma mistura dos dialetos e/ou idiomas usados neste espaço, que foi trazida pelos imigrantes deste contexto para o Brasil, e continua sendo usada nesta parte da Itália. Vale ressaltar que existiram questões problemáticas na colonização do Rio Grande do Sul entre os grupos vindos, especialmente em nosso estudo, das regiões do Friuli e Vêneto, pois a maioria dos friulanos compreendia e falava o italiano usado no Vêneto, mas o contrário não era habitual, gerando muitas vezes, situações conflituosas nas colônias. Figura 1: Atual mapa do Friuli Venezia Giulia Fonte: Diáriu de su movimentu linguìsticu. 5 Tradução minha, o texto original está em italiano. [ 161 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Disponível de forma pública em: https://salimbasarda.net/ateras-limbas/sa-limba-friulana-finas-issa-cununu-standard-comunu/attachment/mapa-friuli. <Acesso em: 25 de out. de 2018>. Consequentemente, os costumes da região são considerados uma colcha de retalhos. Portanto, após a anexação destas regiões ao Reino da Itália (1866), Roma foi tomada pelo rei (1870), assim a unificação da Península Itálica fundou-se em um único Estado. Desse modo, a anexação de Roma com o Reino da Itália ocorre somente em 1870, em função da retirada das tropas francesas do solo italiano, salientando que neste período ocorria a unificação alemã, assim os povos germânicos liderados pelo Reino da Prússia declaravam guerra à França. Referente a análise do contexto europeu anterior e pós unificação e guerras, Bertonha advoga: Religião, posicionamento político e identidades regionais sempre foram elementos que reforçavam ou relativizavam a nacional na maior parte dos casos conhecidos historicamente e, (...) todos esses elementos estão presentes, ao lado de outros prémodernos, como a fidelidade monárquica ou à casa reinante. Trabalhá-los é o único caminho de recuperar a trajetória dos trentinos e friulanos no Brasil (BERTONHA, 2018, p. 126). Portanto, a população desta parte da península, que em tempos pertencia à Itália, e em outros à Áustria, consequentemente possuía em evidência um sentimento mais regionalista do que nacional, até mesmo em função do nacionalismo ser inicialmente trabalhado após todo o contexto da unificação. Assim, imigrantes também da região do Friuli “italiano” seguiram caminho na grande emigração italiana para o Brasil, em nosso caso de estudo, em específico para o Rio Grande do Sul, onde passaram a dividir novamente território com os vizinhos vênetos - considerados em maior número na colonização do estado sulista, e em menor número com os trentinos e demais italianos de outras áreas. 2. A emigração italiana para o Rio Grande do Sul O maior fluxo emigratório para o Rio Grande do Sul abrange o período entre 1876 e 1901, em prol do frágil quadro econômico e político da Itália, e associado a propaganda emigracionista para o Brasil, onde era prometido principalmente terra para os imigrantes instalados no estado sulista. Porém, os imigrantes que chegaram ao Brasil após 1854, a maioria vênetos, tiveram que pagar pelas terras adquiridas, ainda que, no ano de 1867 tivesse sido criado um novo regulamento que estimulava a emigração mediante algumas vantagens, entre elas o pagamento da terra que poderia ser feita em até dez anos, a gratuidade da viagem do Rio de Janeiro até o lote colonial, além de auxílio para os recém-chegados e assistência médica e religiosa por doze anos (HEREDIA, 2001). Em função do grande número de imigrantes que se direcionava para a região Sul, o acordo foi suspenso e manteve-se apenas o crédito para aquisição de terras e 15 dias de trabalho para a abertura de estradas. Portanto, os interesses relativos à emigração para o Brasil possuíam características distintas. Em São Paulo, a chegada de imigrantes italianos representava a substituição gradual da mão de obra escrava nas lavouras de café. Já no Rio Grande do Sul, o processo foi colonizatório, ou seja, com o objetivo de formar, em pequenos lotes, colônias agrícolas essenciais para a produção de gêneros alimentícios, além da defesa da fronteira, e do “branqueamento” da população. No caso específico da atual região do Friuli Venezia Giulia a possibilidade da emigração para a parte sul do Brasil começa a ser anunciada por volta de 1872. Em função da resistência do governo austríaco em aceitar, ou até mesmo incentivar a emigração desta parte do território para o Brasil, acaba que são os friulanos da parte italiana envolvidos neste movimento além-mar (GROSSUTTI, 2013). É importante destacarmos que tanto os imigrantes trentinos, quanto friulanos vieram em número muito inferior aos imigrantes vênetos, “mesmo assim, eram numerosos o bastante para acrescentar um novo elemento de [ 162 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS identidade ao complexo caleidoscópio da imigração italiana no Brasil” (BERTONHA, 2018, p. 108). Sendo interessante os registros de saída dos friulanos em direção a América Latina. Em 1878, de fato, nas colunas do “Boletim da Associação Agrária Friulana”, Gabriele Luigi Pecile indica Ampezzo, Forni di Sopra, Buja, Gemona, Cimolais, Frisanco, Cordenons, Fontanafredda, Rived`Arcano, Roveredo in Piano, Caneva e Polcenigo entre os relativamente poucos municípios da então província de Udine, que possuem emigrados no Brasil (...). Com o crescimento das próprias famílias, com o nascimento dos filhos, os matrimônios de muitos destes e a criação de novas famílias, os pioneiros e seus descendentes procuravam sempre mais ao norte, nas zonas ainda não populadas, novas disponibilidades de terras para cultivar (...). A procura de novas terras tinha encorajado boa parte dos agricultores friulanos a alcançar o interior do Brasil, mas também da Argentina a partir de 1877 (GROSSUTTI, 2013, p. 4). O maior desejo dos emigrados era: ser dono da sua terra. Ambição comum para a maioria dos povos, mas muito difícil de ser realizada no contexto econômico europeu da época, os italianos percebiam que na permanência na Itália, também aqueles com melhores condições financeiras corriam o risco da falência, afinal uma das causas da imigração italiana: “non fu la miséria, ma la paura della miséria6” (GROSSUTTI, 2009, p. 1). Portanto, observando as inúmeras particularidades do Friuli Venezia Giulia, buscamos acompanhar em nosso estudo que está sendo desenvolvido, a trajetória de algumas famílias friulanas instaladas no Rio Grande do Sul, pois acreditamos que a partir destas buscas é possível atingir um contexto muito mais amplo. “Logo os laços parentais, consanguíneos ou não consanguíneos, amizades e alianças surgem como fundamentais no processo de ocupação de novas frentes, na proliferação das unidades de produção e na formação de novas comunidades” (VENDRAME, 2016, p. 206). As redes sociais que se formaram em torno de determinadas famílias friulanas nos interessam para a compreensão de uma dinâmica muito mais ampla que envolve desde questões políticas, econômicas, práticas sociais, crenças, até o estopim para conflitos étnicos culturais que tiveram início desde a Europa. Em consequência, nossa análise pretende abranger desde as complexidades do ponto de partida (Itália e suas divisões fronteiriças), até as adaptações ou resistências que transcorreram inicialmente no Rio Grande do Sul. Esta imigração em específico possui características distintas, no próprio processo da unificação e criação de uma identidade italiana, quanto na construção desta identidade no estado sulista do Brasil. Assim, pretendemos perceber os fatores que impulsionaram a saída de determinada leva de imigrantes da região do Friuli “italiano”, até a instalação inicial em Bento Gonçalves que fazia parte da colônia Dona Isabel até meados de 1890, e sua fixação na Linha Zamith, que configurou-se como distrito da localidade, rebatizado como município de Monte Belo do Sul. Nos interessa observa como ocorriam as relações destes friulanos com o restante dos italianos também instalados em Monte Belo do Sul, e alastrando-se para a colônia de Guaporé, mas sempre em linhas distintas, já que a ocupação do espaço ocorreu de forma a separar os friulanos do restante dos colonos. Salientando que a manifestação linguística era distinta, além dos próprios costumes e ofícios. Darcy Loss Luzzato, defende que; (...) até entre os pobres, os mais pobres são discriminados. E essa deve ter sido uma das razões porque os friulanos – i furlani, segundo seus vizinhos vênetos – eram tão malvistos. Dominados e explorados ora pelos vênetos, ora pelos germânicos, constituíram a população mais pobre do Norte da Itália. Também contribuiu para esse desprezo o fato de utilizarem uma língua que, embora de raiz latina, era e é de difícil compreensão por parte dos vênetos, lombardos e trentinos. (O interessante é 6 Não foi a miséria, mas o medo da miséria. [ 163 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS que nas cidades maiores, em especial entre a burguesia friulana, dava-se preferência à utilização do vêneto, em prejuízo do friulano. Isso demonstra o respeito que esse povo tinha e ainda tem pela cultura vêneta) (LUZZATTO, 1993, p. 61). Em sentido oposto ao pensamento de Luzzato em relação aos friulanos e suas práticas identitárias e econômicas, existem diversos provérbios italianos criados nas colônias pelos próprios imigrantes, entre eles: se si vuole correre fuori di soldi solo passare per un furlan 7. Dessa forma, focamos em perceber como a identidade dos friulanos se construiu de forma distinta dentro da própria Europa, e por gerações no Rio Grande do Sul, e além. Em nossas fontes documentais encontramos relatos de que na Itália eram chamados de austríacos e aqui no Rio Grande do Sul não eram vistos como propriamente italianos, dessa forma, esforçaram-se no fortalecimento do próprio grupo, seja pelas moradias próximas, migrações internas em conjunto, formando redes de compadrio, de parentela e principalmente através dos casamentos consanguíneos. A família como base nas colônias europeias era essencial. Neste sentido, Giralda Seyfert (1985) reflexiona sobre as formas de transmissão do patrimônio fundiário e também sobre os matrimônios endogâmicos entre famílias de camponeses do vale do Itajaí Mirim (SC). Onde a endogamia é justificada pela comunidade de diversas maneiras, “por razões de ordem étnica, religiosa, e também por considerações acerca dos valores camponeses. No primeiro caso, são admitidos os casamentos entre colonos de origem italiana e alemã” (SEYFERTH, 1985, p. 23). A autora prossegue destacando que os casamentos com caboclos são desqualificados, em função de serem considerados sem o mesmo apego à terra e ao trabalho, como os imigrantes alemães e italianos. Ainda, destaca que em muitos casos os casamentos endogâmicos também se dão como uma forma de manutenção de uma identidade camponesa, e acima de tudo, da terra. Apesar de se tratar de comunidades distintas, a análise de Seyferth que também se dá em prol do estudo de comunidades europeias, condiz com nosso tema, pois novamente a questão da terra – problema vivenciado desde a Europa- aparece como preocupação central de manutenção no Brasil. Quanto as mobilidades, tanto internas quantos externas, em inúmeros casos as famílias vêm se mostrando como base e ponte para a imigração, seja pelo suporte financeiro, quanto pela identidade étnica. Catarina Zanini dialoga. Dessa forma, na reconstrução da identidade étnica e suas particularidades, a família desempenha um papel fundamental como aquela rede de relações sociais baseada no sangue e no parentesco (mas não só) por meio da qual a imigração como um processo maior se particulariza e adquire formas, cheiros, cores e a experiência de personagens vivos. É pelas reconstruções da trajetória do emigrado doméstico, da família, que trajetórias são traçadas e se estabelecem redes de troca de informações e de partilha das dificuldades e dos êxitos (ZANINI, 2004, p. 61). Pretendemos explanar na pesquisa que está em andamento, como a imigração italiana muitas vezes vista como uma unidade em termos de ofícios, costumes, culturas e crenças possuía suas particularidades, e que em alguns casos, não foram imediatamente amenizadas ou adaptadas com os demais grupos de italianos. Conforme estamos averiguando existiu resistência entre os grupos por gerações, isto não significa que determinadas adaptações não foram feitas no Brasil, mas o que estamos tentamos mostrar é que existiu a manutenção de identidades próprias, familiares, construídas a partir de uma série de questões, que geraram entraves e conflitos entre os imigrantes. Ou seja, o conceito de que em terras brasileiras as diferenças que existiram na Itália foram rapidamente esquecidas não condiz com o cenário que estamos pesquisando. Sendo Se quiser ficar sem dinheiro é só passar por um friulano. Frase que mistura na ortografia o italiano formal e os dialetos aqui miscigenados. 7 [ 164 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS comum uma reconstrução de identidades, ainda que próprias, e com fortes indícios europeus, mas readaptas com costumes típicos da localidade, especialmente os alimentares. Em diversos estudos o historiador Emílio Franzina defende que no Rio Grande do Sul, apesar de todas as misturas culturais se criou uma unidade italiana mais forte que na própria Itália, apesar de reinventada e adaptada conforme as necessidades do período. Consequentemente, mesmo partindo de uma Itália unificada, todo o processo de nacionalismo, regionalismo e sentimento de pertença, ocorria de forma lenta. Portanto, defendemos que ainda no transcorrer de 1860 até 1900, período de maior emigração para o Brasil, os imigrantes não se sentiam ligados unicamente a Itália, mas sim a sua província, este fator associado a oportunidade de uma nova vida ítala no RS, fomentou a mescla de novos costumes. Para o historiador italiano Giovanni Levi. A identidade italiana no Rio Grande do Sul não existe, é uma mescla de loucuras. O problema é que não é a mesma loucura, são muitas loucuras. Se aceitarmos as diferenças vamos fazer a pergunta: Porque alguém faz referência à identidade? Um motivo é para discriminar o outro. Outra pergunta: porque fazer parte de uma identidade? Ela serve para nos diferenciar dos outros, dizendo que somos diferentes (LEVI, 2015, p. 254). Criou-se uma ilusão de que vivemos no Rio Grande do Sul uma cultura própria da “grande Itália”, mas os costumes, hábitos alimentares, dialetos, crenças e até mesmo determinadas praticas consideradas religiosas - benzimentos, não existem há tempos na atual Itália, e foram aglutinadas com as culturas africana e indígena, povos que já habitavam o Brasil, antes das emigrações alemã, italiana, entre outras. Portanto, a grande emigração italiana para o Rio Grande do Sul, proporcionou uma nova oportunidade de reconstrução cultural em um país além-mar, reconstrução com início na saída da Europa, em função das fronteiras próximas e particularidades regionais, talvez não de forma homogênea, mas a maior parte dos imigrantes ítalos em sua própria convivência de viagem deram origem a um processo de mistura dialetal e cultural que mesmo com determinadas resistências foi intensificada no Rio Grande do Sul, e com o passar das gerações, miscigenado com outros costumes próprios dos povos natos do país. Considerações finais Buscamos explanar sobre o contexto político e social da Península Itálica, suas particularidades em função da fronteira, em especial com à Áustria. Além da insatisfação dos contandini8 em relação à política, economia, impostos e dificuldade em aquisição de terra, e que mesmo após a unificação italiana não apresentou melhorias significativas. Isto, associada a propaganda emigracionista para o Brasil fulminou em um movimento emigratório em massa, com ênfase no período de 1876-1901, onde foram criadas diversas colônias no sul do país com o intuito de receber estes colonos, já que a intenção do estado era principalmente em interesse colonizatório, além da proteção da fronteira, ou seja, novamente essa população estaria envolta em questões fronteiriças, além do interesse governamental em “branqueamento” da população, e ainda, em crescimento econômico voltado para a agricultura na pequena propriedade rural. Em vista disso, a emigração para o Brasil tinha características distintas, os italianos direcionados para o Rio Grande do Sul, cuja maior leva eram provenientes do Vêneto, vinham com o intuito de ocupar lotes rurais, de colonizar o território, enquanto outros permaneciam, por exemplo, em São Paulo, substituindo gradativamente à mão de obra escrava9. Ainda, pretendeu-se demonstrar que a Itália era uma colcha de retalhos, repleta de culturas e costumes próprios em cada região, levando os imigrantes a trazerem para a Mérica essas mesclas culturais, Utilizamos este termo pois os italianos com ofício voltado também para a agricultura eram assim chamados na Itália. Utilizamos a análise comparativa com o estado de São Paulo, pois não convêm em nossa breve analise aprofundar sobre a imigração italiana e/ou colonização em outras partes do Brasil. Nossa intenção com estes exemplos foi meramente demonstrar as principais diferenças entre um processo colonizatório, e outro de substituição de mão-de-obra escrava. 8 9 [ 165 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS já que a questão fronteiriça propiciava significativas trocas sociais. Assim, os imigrantes instalados no Rio Grande do Sul, que já vinham com determinada bagagem cultural, adaptaram muitos de seus costumes em função do novo contato com os habitantes natos do Brasil, mas a miscigenação étnica, durante as primeiras gerações, não ocorreu de forma significativa para a maior leva. Desse modo, independente da região de saída dos imigrantes italianos, é importante frisar que a família continuou como base central no Brasil, seja como forma identitária para os grupos com idiomas distintos, mesmo que fossem da mesma nação, seja por questões de perpetuar culturas e costumes específicos, seja por afinidades, ou manutenção econômica -terra, mas os laços sanguíneos e as redes de parentela, ao menos no que se trata no Rio Grande do Sul, foram os protagonistas para a adaptação em um novo mundo. Referências bibliográficas BENEDUZI, Luís Fernando. Nostalgia, alegoria e restus: processos de desconstrução na elaboração identitária vêneta no Rio Grande do Sul. 2005. Disponível em: <http://www.periodicos.ulbra.br>. _____. Mal di paese: As reelaborações de um Vêneto imaginário na ex- colônia de Conde D`Eu. Tese de doutorado em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2004. 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VENDRAME, Maíra Ines. O poder na aldeia: redes sociais, honra familiar e práticas de justiça entre os camponeses italianos (Brasil/Itália). São Leopoldo: Oikos; Porto Alegre: ANPUH-RS, 2016. VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. História, região e poder: a busca de interfaces metodológicas. Locus revista de História, Juiz de Fora, vol. 3, 1997, p. 85-98. Disponível em: <locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/view/2274>. ZANINI, Maria Catarina Chitolina. A família como patrimônio: a construção de memórias entre descendentes de imigrantes italianos. Campos (UFPR), Curitiba, v. 5(01), p. 53-67, 2004. [ 166 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Fontes primárias Registros sacerdotais; Assentos de registros públicos ou privados (civis, imobiliários, censitários, etc.) [ 167 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Remanescentes da cultura negra em São Luiz Gonzaga-RS: trajetória e memórias do Clube Recreativo Imperatriz Marisete de Mattos Morais1 Resumo: Os negros trazidos da África e vendidos no Brasil para trabalho escravo, influenciaram diversos costumes dos brasileiros, desde o período colonial até a atualidade, sejam eles na cultura, religião, política, economia e sociedade. Buscando valorizar a cultura afro-brasileira, nas últimas décadas, leis e decretos são promulgados, datas comemorativas instituídas, campanhas contra o racismo e em prol das tradições negras são realizadas. A importância do estudo deste tema é conduzir alunos da educação básica e a população em geral, a reconhecer e valorizar esta influência para a sociedade a qual estão inseridos. A partir daí, para fortalecer a contribuição dos negros na sociedade brasileira e rio-grandense, diferentes pesquisas procuram registrar e enaltecer a cultura afro-brasileira, um deles é sobre os clubes negros. A presente pesquisa busca trazer o tema para a comunidade são-luizense, registrar a história de um espaço desconhecido ou pouco lembrado e que necessita ser preservado em São Luiz Gonzaga-RS: o Clube Recreativo Imperatriz, fundado em 1943, destinado aos negros e pessoas da classe popular do município. Objetiva-se identificar seus remanescentes, escrever sobre seus fundadores e famílias negras residentes na cidade, investigar elementos que comprovem suas vivências como espaço de convergência política, tentativa de integração, local de lazer e resistência cultural, identificando seus atrativos como biblioteca, participação nos carnavais de rua, festividades diversas, entre outros. Assim, questiona-se os motivos que levaram as famílias a fundar um clube negro, de que forma as autoridades, sociedade em geral e seus integrantes contemplavam o clube; que papel e contribuições políticas, sociais e culturais o espaço desempenhou no município. Para isso, utiliza-se de conceitos e histórias de clubes sociais negros, bem como uma trajetória dos africanos no Brasil, Rio Grande do Sul e região das Missões, além de abordar concepções de memória em consonância com a História Oral. O estudo utiliza-se de concepções de “negritude”, onde não se refira especificamente à questão da etnicidade dos indivíduos que frequentam o clube, mas presentes nos fatores culturais, identitários e simbólicos representados. A pesquisa utiliza-se de entrevistas que reconstroem o cotidiano do clube, seu surgimento e outros acontecimentos relevantes, que será empregada juntamente com as fontes oficiais como atas, estatuto, leis municipais, livros, jornais, códigos de postura, boletins de ocorrência, entre outros. Neste sentido, contribuirá para a escrita deste ponto da História são-luizense, pois ainda não há registros históricoscientífico. Servirá também de subsídio para professores e alunos, auxiliando no conhecimento da trajetória dos negros na cidade, além de contribuir para leituras e ampliação do acervo de história local. A definição de Clubes Sociais Negros é realizada, por meio da Ata da Reunião da Comissão Nacional de 29 de fevereiro de 2008: “Os Clubes Sociais Negros são espaços associativos do grupo étnico afro-brasileiro, originário da necessidade de convívio social do grupo voluntariamente constituído e com caráter beneficente, recreativo e cultural desenvolvendo atividades num espaço físico próprio. ” (ESCOBAR, 2009, p. 61) Os negros se organizaram e construíram seus lugares de socialização, tendo como objetivo, acumular valores para auxiliar nos funerais dos associados e familiares, além de investir em educação e defesa dos direitos da população negra. Os clubes e as associações negras estão espalhados por todo o Brasil. No Rio Grande do Sul do século XIX, surgiram os primeiros clubes negros. A Sociedade Floresta Aurora, de Porto Alegre, fundada em 1872 é um exemplo de resistência negra. Também foi criado um time de futebol, a popularmente conhecida como Liga dos Canelas Pretas, organizada no início da década de 1910, em Porto Alegre, destinado a oferecer lugares de convívio social e aprimoramento físico aos postergados dos clubes das elites. em História – PPGH – UFSM-RS. E-mail: marimoraishistoria@hotmail.com Professora da Rede Estadual de Ensino - Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio - Instituto Estadual Rui Barbosa-SLG; Pós-graduada em Orientação Educacional - UFFS Cerro Largo; Pós-graduada em Metodologia do Ensino de História e Geografia UNINTER-PR; Graduada em História - URI-SLG; 1Mestranda [ 168 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS As vias férreas, seguindo as perspectivas das formas de trabalho do pós-abolição, foram as primeiras atividades a empregar mão de obra negra, garantindo dignidade, crescimento profissional e inserção social. Surgem assim, diversos clubes como o Clube 13 de maio de Santa Maria-RS, fundado por ferroviários negros e a Sociedade Floresta Montenegrina de Montenegro-RS, criada por policiais militares e ferroviários. Atualmente, o Rio Grande do Sul obtêm mais de cinquenta registros de clubes que lutam ou lutaram contra as dificuldades financeiras, resistindo à falta de auxílio e buscando maior valorização da sociedade. Neste cadastro, pretende-se inserir o Clube Imperatriz de São Luiz Gonzaga, para preservação de sua memória e história. Em São Luiz Gonzaga, no século XX havia vários clubes, dentre eles o Clube União Operária, a Sociedade Atlética São-luizense, Clube dos Subtenentes e Sargentos, o Clube Imperatriz e o Clube Harmonia. O Clube de elite branca (Harmonia), de classe intermediária abrangendo os trabalhadores, pessoas de boa condição financeira e brancos (União, Sargentos, Sociedade Atlética) e o Clube para os negros, no início de sua fundação e mais tarde, também para as pessoas pobres da periferia que não podiam entrar nos demais (Imperatriz). Esta disposição de clubes, demonstra claramente a exclusão entre classes sociais. A principal forma de participação social dos negros e pobres era por meio do Clube Imperatriz, chamada oficialmente de Sociedade Literária e Recreativa Imperatriz. Mesmo havendo outros clubes na cidade, eles eram considerados de elite sendo que negros e pobres não podiam associar-se. Dias (2017) expressa que: “a gente não pode desfazer do Clube Harmonia, mas os morenos não entravam lá, nem as pessoas pobres, aí vinham para o nosso. Como não entrava foi criado um clube pra eles né”. FUNDAÇÃO E CONSTRUÇÕES A data de sua fundação é 24 de abril de 1943, conforme Santos (1987, p. 217) pela seguinte diretoria: Presidente: João Vasconeles, Vice-presidente: Paulino Hermenegildo dos Santos, 1º secretário: José Quintino Motta, 2º secretario: Manuel Alexandre de Oliveira, 1º tesoureiro: Brinaldo dos Santos, 2º tesoureiro: José Silveira Severo, Conselho fiscal: Viriato Oliveira, Trajano Alves da Silva e José Santos. Nas entrevistas, não foram elucidados os motivos para o nome do Clube Imperatriz, sabe-se que é comum entre os clubes, nomes e datas referentes ao período da abolição da escravatura. São exemplos o Clube Treze de Maio de Santa Maria - RS, por isso, pensa-se em duas hipóteses: O Clube adotou o título tão desejado pelos ex-escravos, Imperatriz, como forma de homenagem à princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea dando liberdade aos escravos; ou ainda por causa da Imperatriz D. Leopoldina, primeira esposa de Dom Pedro I, considerada uma das articuladoras da independência do Brasil, e que mantinha boas relações com as diferentes classes sociais, incluindo a dos escravos, condição que questionava e se horrorizava. O primeiro espaço em que se localizou o clube foi próximo ao hospital e depois perto do INSS 2, antes de receber o terreno onde se situa atualmente. Segundo Marques: Ele surgiu, a história que era o clube dos moreno, na época que tinha o dos brancos, surgiu por causa que é que o pessoal só dançava os moreno lá, mas com o tempo foi ... foi diversificando foi branco e moreno dançando lá. Ele começou lá, primeiro local que teve, um dos local, foi lá perto do hospital, na Rua Bento Soeiro de Souza onde é a casa do doutor Praxedes. (...) Até uma vez eu tive lá com o meu pai, eu tive lá no clube dos moreno, até o presidente era bem conhecido do meu pai, o que cuidava lá. (...) depois muitos anos ele teve ali, onde hoje é o INPS teve uma casa velha, teve uns tempo ali o clube. (...) até que a prefeitura cedeu aquele terreno lá. Ali é o último local, era um casebre de madeira, depois foi feito de material com muito sacrifício. INSS: Instituto Nacional de Seguro Social, antigo INPS-Instituto Nacional de Previdência Social, localizado em São Luiz Gonzaga na Rua Bento Soeiro de Souza, nº 2373, centro. 2 [ 169 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Em 1961, por meio da Lei nº. 410, o clube negro recebe doação um terreno da Prefeitura Municipal, durante o mandato do Prefeito João Loureiro: Autoriza a aquisição de um imóvel João B. Loureiro, Prefeito Municipal de São Luiz Gonzaga: - Faço saber que a Câmara Municipal e eu sanciono a seguinte lei: Art. 1º - É o Prefeito autorizado a adquirir, por escritura pública, a Eduíno Adelino Klein, pela quantia de Cr$120.000,OO, um terreno sito nesta cidade, quadra 366, rua Venâncio Aires, com 10 (dez) metros de frente por cerca de 59 (cinquenta e nove_ metros de frene a fundo. Art. 2º - O terreno adquirido pelo art. 1º será doado à Sociedade Imperatriz sediada nesta cidade, para nele ser construído a sede da Sociedade dentro dois anos a contar da data desta Lei, findo os quais reverterá ao patrimônio do município caso não lhe seja dado finalidade constante desta lei. Lei nº 3 – A despesa constante da aquisição prevista no art. 1º será ocorrida com recursos a serem indicados. Art. 4º - a presente Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Gabinete do Prefeito em São Luiz Gonzaga, 10 de novembro de 1961. A Prefeitura Municipal comprou os terrenos de Eduíno Adelino Klein e conforme a lei realiza a doação ao Clube. Nos anos seguintes, conforme documentos, realizam-se os trâmites legais como pagamento de imposto de transmissão de “inter-vivos”. A escritura pública desta transação somente é lavrada no Cartório de Registros de Imóveis em 21 de maio de 1963, representada pelo prefeito e o presidente do clube: Certifico que a fls. 236 do livro nº 3-AI foi feita hoje sob o nº 39.873 transcrição do imóvel que o CLUBE LITERÁRIO E RECREATIVO IMPERATRIZ, Sociedade civil com personalidade jurídica, com sede nesta cidade, representada por seu presidente Manoel Alexandre de Oliveira, brasileiro, casado, militar, residente e domiciliado nesta cidade; adquiriu da PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO LUIZ GONZAGA, representada por seu Prefeito Municipal – Joao Belchior Loureiro , eu costuma assinar João B. Loureiro, brasileiro, casado, residente e domiciliado nesta cidade, devidamente autorizado conforme Lei Municipal nº 410, de 10 (dez) de novembro de 1961, [...] desde já cede e transfere ao mesmo outorgado donatário toda a posse e domínio, direitos e ação que sobre o aludido imóvel ora doado exerciam, para que o mesmo donatário possa usar e gozar nos termos das cláusulas e condições: 1º - que sobre o imóvel objeto da presente doação seja construída a Sede Social do outorgado donatário Clube Literário Recreativo Imperatriz; 2º - que no caso de não cumprir a sociedade no prazo de dois anos, a contar desta lei, o estipulado na cláusula primeira, findo este prazo, reverterá ao patrimônio da Prefeitura Municipal de São Luiz Gonzaga; [...] Deste documento, também pode-se retirar uma nova constatação: o Presidente da época, Manoel Alexandre de Oliveira, é descrito como militar, sendo elucidado pelos entrevistados que havia grande participação de militares do exército em sua fundação. Sobre clube e o presidente: Conheci, era um velhinho magrinho, quando eu peguei aqui ele já era bem velhinho já, [...] fazia pouco que tinha entrado, foi logo logo que eu tinha entrado e um ano e pouco ele faleceu. (NENÊ, 2018) [ 170 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Eu acho que 1970 por aí 71 que o sargento Alexandre fundou. [...].E era Clube como é que eu vou te dizer, era restrito pros morenos, só moreno, por isso que se chama clube dos moreno. No início só entrava negro, só depois que depois que ele foi embora, não sei quanto tempo ele ficou, mas deve ter ficado uns 5, 6 anos. O finado Alexandre foi embora, morreu até esse senhor, deixa eu ver ele morava lá na Monsenhor Wolski, lá pra baixo da rodoviária antiga. (BUENO, 2018) O presidente do clube aqui era bem bem preto, esqueci o nome. [...] É esse ai, Tenente Alexandre tenente do exército ele. É ele faleceu lá em Santo Angelo. [...] Ele era daqui, mas depois ele foi embora prá lá né. [...]morava numa casa térrea como essa aqui, mas a filha quis morar num apartamento, sei que o velho foi pro apartamento e lá ficou muito chocado de ta dentro daquele apartamento sei que deu um AVC no velho e morreu lá. Mas era muito legal ele. Antigamente quando eu ia a Santo Ângelo eu encontrava ele, nós conversava e as gurias estão lá uma é advogada que eu sei moram lá em Santo Ângelo. (SGT. ROQUE, 2018). Manoel Alexandre de Oliveira, de origem negra, foi um dos fundadores do Clube Imperatriz, sendo secretário na primeira diretoria e quem recebeu o terreno para a construção do clube, permaneceu longos anos na diretoria e lutando para manter o clube e suas tradições. Haviam ainda, outros militares negros no clube: “Seu Adão Marques era um morenão alto, foi tempo sócio aqui era da diretoria, depois faleceu a esposa dele faleceu. [...] Esse Adão também era militar, era do quartel, era sargento, também foi transferido e morreu.(NENÊ, 2018) Também são citados: “Tinha a Mercedes aqui, acho que a Mercedes já morreu, uma frequentadora daí, depois ela casou, ela vinha ali quando ela era moça, antes dela casar, era negra, professora. (BUENO, 2018) No novo endereço é construído um salão de madeira com o apoio do poder público, como expressa Santos “com o auxílio da Prefeitura Municipal, do Comércio, e dos próprios associados, a diretoria conseguiu construir sua sede própria” (1987, p. 217). Por volta de 1975, Nenê assume a diretoria do Clube e este, passa por grandes mudanças. Eu me associei, e aí tava caindo tinha um pé direito lá e uns ferro atravessado assim para ele não abrir ai nós fizemos uma campanha, um senhor de idade também foi responsável, porque outros queriam a dançar e nada mais. Ai eu, o seu Gibson e o Seu Diamantino fomos lá no horto, nós não tinha dinheiro pra fazer né, fomos lá e perguntemos se ele não nos fornecia material, ai ele perguntou quem é o responsável? Eu, digo eu faço encomenda e o que atrasar eu pago, como de fato, foi difícil, mas nós concluímos tudo isso aqui, isso não tinha, só a partezinha de tábua de traz, já caiu os pedaços em carnaval caiu afundo com gente com tudo, bem no canto lá não deu para fazer o baile, era um dia de casa cheia, aí eu assumi todas as dívidas dele para parque, parque eu doei pra eles, 100 metros de parque que eu fiz uma doação, ai fui 5 anos presidente, ai terminamos, concluí. (NENÊ, 2018) Neste período também, Nenê passa a defender a abertura do clube para as demais etnias e descreve um acontecimento que chama de lamentável: Este clube por ser um clube já de racismo naquela época é muito forte, eu tive um baile aqui que deu uma briga medonha, ele era uma entrada aqui até aqui, e chegou um rapaz loiro num carro, eu acho que era taxista, [...] ele era cabelo loiro cabeludo e ele chegou aqui de táxi, estacionou lá daquele lado na frente e ele desceu, chegou, falou com o seu Timóteo, perguntou se ele podia frequentar, ai o seu Timóteo saiu [ 171 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS lá e veio três, não lamentavelmente o senhor não pode entrar, mas porque eu não sou humano? E aí começou e se atracaram, olha vou te dizer, aquilo surgiu tanta faca revólver era gente voando, eu também me fui na esquina, brigaram cortaram ele ali do lado de lá da rua, cortaram ele na cabeça ai ele pegou entrou dentro do esplanada que ele tinha um taxi e se foi pro hospital, daqui a pouco tapou de polícia aqui, já não gostam muito de polícia foram embora. Mas foi horrível [...] não deixaram ele entrar. É lamentável, um fato desse. (NENÊ, 2018) Assim, o local passa gradativamente a fazer a abertura para brancos, obtendo maior, participação das classes sociais pobres, ou seja, o clube acaba perdendo a característica de clube negro e começa a receber todas as pessoas interessadas em associar-se. As que mais empenham-se são as de classe pobre que também eram barradas nos clubes centrais, mas em períodos de auge do Clube, vinham pessoas brancas de boa condição social. Era clube dos moreno, era só moreno que frequentava, barbudo não frequentava, cabeludo não frequentava, calça jeans não frequentava, era uma energia total, era só moreno, abraça aqui dentro também não se abraçava, é, não se abraçavam, beijo era tirado pra fora, e vou te dizer, e ai quando nós pegamos começou a vir gente, o finado D.D. e a dona Z. D., o N. M. e a esposa, E.M, o presidente de um bairro, N.T., tem a assinatura deles tudo ai, todo esse pessoal ai, e como que eu vou chegar numa gente dessa que não eram (para entrar) ai eu fiz uma reunião e começamos a tirar isso ai, [...] É eu comecei a fazer reunião e conversar com o pessoal vamos abrir, como é que não ia abrir [...] uns quantos da diretoria que são os antigo ainda, que tu falava não, não vai mudar nada, mas a transformação já fizemos esses cálculos fazem 43 anos mais ou menos, que começou a mudança, ai nós fomos tirando as normas antigas. [...] E aí fomos transformando ele e teve uma época que era coisa mais linda isso aqui nós fazíamos sábado e domingo isso aqui era cheio, (NENÊ, 2018). O clube também realizava constantes ações em busca de auxilio de para melhorias, conforme consta na Certidão de Registro 2933, onde o clube passa a integrar o registro de entidades civis para habilitação ao recebimento de auxílios do Estado, sendo inscrita e registrada em 16 de abril de 1973. Na década de 1980, sofre um incêndio criminoso: Lá nós tinha bastante coisa, mas é que botaram fogo uma vez lá e queimou é ata antiga, de fundação da época que foi fundado de mil novecentos e quarenta e poucos tudo queimou. (...) Foi um camarada que ficou brabo lá com outro rapaz que trabalhava lá e botou fogo ... botou fogo por malvadeza né ... queimou mais o histórico do clube todos os documentos queimou ... antigo né ... ata antiga claro pra saber quando é que foi fundado tudo aquele homem botou fora. (..) era tudo de madeira pegou fogo, ainda bem que acudiram com tempo, mas queimou só o que era interessante né. (...) foi lá por volta de 1984 ou 85 (MARQUES, 2017) Botaram fogo nele, teve um rapaz aqui, nós descobrimos depois de passado o tempo, mandado de outro que queria assumir aqui, tinha comprado uma gasolina dele, é morto. Aqui na frente tinha uma parte que era de tábua, não tinha isso aqui ainda e ele veio e despejou pela janela a gasolina, tava cheio de caixa de som ali, mas eu tinha deixado um posando aqui porque era um roubo assim, vinham aqui roubar bebida e tudo. E ele virou a gasolina e o rapaz sentou o cheiro, tava acordado e sentiu o cheiro da gasolina, pensou da onde gasolina, quando ele viu ele [ 172 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS saltou correndo, veio aqui puxou as caixa, mas ainda queimou e não pode ver quem era, a janela era lá e o fogo se alastrou, mas tinha um tapete e o tapete que encharcou ele consegui puxar pro meio do salão, e ai foi ele me ligou de vereda pra mim vim, naquela época era telefone só no gancho ai eu vim aqui tinha queimado parede essas caixas de som, um banco que era do clube e um horror de papel, Tinha uma pratilerinha assim, lá de madeira aquela não se aproveitou nada. Aí fomos na delegacia, aí tem prova de alguém que foi? Eu sabia mais ou menos quem foi, mas não podia acusar o rapaz também, aí passou umas duas semanas ele veio numa reunião aqui e eu peguei ele aí eu conversei com ele apertei, é mas não foi eu, foi tu sim e apertei até, apertei apertei apertei ele que ficou condenado, mas não confessou. (NENÊ, 2018) A partir deste episódio, com a estrutura de madeira bastante danificada, a diretoria do clube e os sócios novamente se empenham em reconstruir o clube, desta vez de alvenaria. De acordo com Brum: O seu Gibson reuniu a diretoria pra ver se podiam, concordavam em fazer de material né ... como o clube não tinha nada de fundos, eles foram na Caixa para ver se conseguiam um empréstimo e conseguiram, porque o clube era de madeira e já estava atado assim sabe com arame, tava querendo cair. Ai eles fizeram de material. A reconstrução do clube seguiu com o dinheiro do empréstimo, assim como realizaram festas e promoções para arrecadar fundos. No ano de 1990, a edificação já estava concluída, mas ao longo dos anos, pequenas reformas são realizadas, assim como adequações das instalações em 2013, devido avaliação conforme leis de manutenção do espaço, portas de acesso e cuidados com a segurança e capacidade de frequentadores. IMAGEM POSITIVADA: ESTATUTO DO CLUBE RECREATIVO IMPERATRIZ Conforme o Estatuto do Clube, registrado em 25 de abril de 1944, ele se destina à realização de danças, músicas, leituras, jogos lícitos e demais diversões. No entanto, as festividades realizadas eram controladas, no que se refere à vestimenta e comportamento, pois havia normas de convivência, que eram cobradas de todas os integrantes. Segundo o Livro de Atas, ocorreram várias expulsões do quadro social por motivos variados, falta de pagamento das mensalidades, brigas durante o baile, bebedeiras e mau comportamento. Aparece frequentemente em atas a exclusão de sócios por falta de pagamento e expulsões por comportamento inadequado. Conforme o Estatuto do Clube Recreativo Imperatriz: Artigo 11º. Serão eliminados: Parágrafo 1º: Os sócios que deixarem de pagar três meses de mensalidade: Parágrafo 2º: os que pedirem por escrito sua eliminação; Parágrafo 3º: Os que no recinto do Club desacatarem ou ofenderem qualquer sócio, família ou convidado; Parágrafo 4º: indenizar danos em utensílios do Club; Parágrafo 5º: Os que praticarem ações indecorosas que manchem a reputação; Parágrafo 6º: os que desviarem dinheiro da sociedade a si confiado ou se negarem. (25 de setembro de 1944). Baseados neste artigo, a ata nº 04, de 09 de abril de 1959, expressa que: “foram desligados do quadro social da sociedade os sócios L.O. e O.S. por falta de pagamento, enquadrado no artigo 11, parágrafo primeiro do Estatuto da Sociedade”. Na ata nº 10, de 09 de julho de 1969: [ 173 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A reunião da diretoria resolveu dispensar das funções de tesoureiro o Senhor sócio A.R.F. e suspender por (60) sessenta dias o mesmo sócio por ter comparecido ao salão embriagado acompanhado de dois visitantes estranhos do Club e desacatar o diretor de mês e o primeiro secretário, no uso de suas funções de presidente visto a ausência do vice-presidente que está enfermo e o outro para a capital. Ao que se refere ás roupas e comportamento os entrevistados expressam que: No começo teve, teve um estatuto, não podia entrar, claro, mal vestido não entrava, sujo não entrava de chinelo não entrava, principalmente quando tinha baile, chapéu na cabeça não podia entrar lá dentro (Marques, 2017). Tudo controlado, era uma sociedade, mulher era bem vestida, minissaia não dançava, homem com o cabelo comprido não entrava, barbudo também não e rosto colado também não, se teimasse era chamado na diretoria. No começo aquilo ali era lindo... e tinha os jogo de bocha que eles faziam né tinha, dava baile no sábado e domingo tinha reunião dançante a tarde, as tarde tinha terminava as seis horas”. (Brum, 2017) Fizeram a proposta pra mim se eu queria ser presidente, fazer uma chapa daí eu fiz, apresentei, fui aceita, modifiquei bastante coisa assim que entrava todo mundo né do jeito que queria, ai fui modificando, digo não entrar de bermudinha, homem de bermuda, chinelo havaiana, essas coisas não né! e mudei um pouco e sou presidente até agora ali (Dias, 2017) Estas ações no Clube possuem o objetivo de manter uma identidade positivada, os padrões de comportamento de seus frequentadores e o respeito mútuo. Há ainda, vários outros acontecimentos no clube que foram punidos com suspensão de sócios e, não resolvendo, fez-se a expulsão, sem importar o tempo de participação ou cargo que desempenhava na diretoria. Por outro lado, os entrevistados relatam, que em alguns períodos o clube passou por momentos perigosos, no que se refere à manutenção da ordem, sendo necessário atitudes firmes para recuperar o clube. Começou a diminuir o pessoal os sócios e pega fase de muita bronca, chegavam aqui da Auxiliadora, chega gente, meu Deus, tu tinha que ta preparado, podia dá uma revolução era cada um facão deste tamanho e queriam entrar. Aí eu fui tomando a peito de novo. [...] começou a bagaceirada vim e aí tu tinha que enfrentar foi dando problema começar a falar hoje eu tu fala assim, o Imperatriz tá bom, é mas matam muita gente lá. É esse é o comentário, brigam demais. Mas o que que a gente vai fazer, na rua a polícia tu chamava vinha, e ai a gente tinha que tomar peito, eu, eu passei por momentos pesados aqui, mesmo, mesmo, mesmo. Ai começou as rusgas as peleias, tinha gente ai que chegava queria entrar não tinha dinheiro pra pagar, como é que tu vai deixar,se todo mundo vai pagar, não eram sócio, como é que tu vai deixar. Tudo isso vai dando um comentário assim ó que, agora graças a Deus, essa aqui assumiu, (refere-se a presidente atual) ta melhorando, ta dando bailes ótimos, já está sendo comentado de novo, mas foi sofrido pra levantar ele é uma trajetória de história diversa. (NENÊ, 2018) É anarquia mesmo virou agora daqui uns 20 anos para cá, até então era de fundamento. Eu tenho, eu tenho dois facão ali guardado que eu achei ali de faca de mesa, faca de mesa bastante eu tenho por ali, umas eu fiquei outras eu botei fora, e [ 174 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS facão tem uns dois guardado no galpão que a gente achava deixaram tudo em cima do muro que brigaram brigavam vinha gente da Vila daquela Vila lá da Vila Trinta e da Vila Auxiliadora, uma vez deu uma briga aqui na frente de casa. Agora não, agora até que parou um pouco eu não vejo mais. (BUENO, 2018). BAILES, CARNAVAIS E OUTROS ATRATIVOS O Clube destacou-se por participar dos carnavais de rua, ter escolha de rainhas, garota do bairro, produzir bailes de finais de semana e festividades diversas, como churrasco para os sócios, cancha de bocha e ainda por possuir uma biblioteca. E o clube tinha biblioteca, tinha tudo essas coisa, tinha livros tinha uma peça sabe era excelente o lugar assim que tinha essas coisas, tinha uma salinha que tu guardava chapéu, casaco (...) tinha uma cancha de bocha (...) o pessoal se divertia bastante, [...] no momento que eu tive no clube eu fiz escolha das garotas do bairro, nem lembro mais o que eu fiz no clube, ah, o aniversário do clube eu fazia na data que foi fundado eu fazia sorteio essas coisas. (Dias, 2017) A biblioteca era um dos espaços de grande importância do Clube, pois em seu Estatuto menciona que um dos objetivos do clube é a promoção de leituras. Tinha ela lá, aonde tinha esse armário era muito bonito era madeira mesmo, com vidro tudo, mas foi o que mais [destruiu com o incêndio). Esses livros de história assim, eu nunca me passou pela cabeça ler a não ser um livro que o seu Pedrinho Vieira Marques, nos adquirimos, um do seu Pedrinho e tinha outro um que fez, acho que é um promotor que fez uma história de São Luís e fez dos clube tudo. Quem quisesse ler vinha aqui e pegava só que devolvia, esse seu Pedrinho, na época nos adquirimos ele saiu uma fortuna era um livro com toda história de São Luís de ponta a ponta onde tinha meu pai, um dos 10 primeiros comerciantes foi colocada no livro. E aqui do Imperatriz foi colocada toda a diretoria. (NENÊ, 2018) Sobre os carnavais, as festividades eram muito conhecidas e descritas pelos entrevistados. Eu tinha uns treze pra quatorze anos quando eu vim pra São Luiz, eu era empregada e dali do clube lá bem ali no alto lá, onde tem uma árvore grande ali, perto do capitão, aquele que morreu, Januário, é então de lá não tinha casa pra cá assim que tapasse né se via bem o clube, ai era os bloco ensaiavam na rua né e se via que era tudo gente morena, até a finada Maria Capica eu acho que era das donas uma das que faziam os eventos da ... da banda esse ... dos blocos ... ela era bem negra ... bem negra. Acho que era daqui, porque eu conheci ela aqui ... aqui em São Luiz, e ela morreu ... ela foi embora pra Porto Alegre, as filha dela, tinha umas filhas muito, morena bonita, é, eles eram bem moreno e ela que fazia tudo era com ela. (Brum, 2017) Na época que eu fui a rainha lá, a cadeira, o sofá da rainha era um sofá daqueles antigos, vocês nem viram acho, e aí uma colcha por cima que sentava assim eu me lembro que você sentava assim se achava o máximo. No desfile de rua, meu Deus eu fui dentro de um jipe e meu irmão dirigindo, atrás, isso não tenho na foto sabe, [ 175 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS porque não foi tirado, foi tirado de frente assim né, onde pegou só o jipe que eles tiraram, era todo esse pessoal moreno sabe, e dai eles fizeram de folhas as fantasias com as coisas do mato que era, eu lembro que eu ria bastante sabe digo meu deus eu já não tava tanto na era deles lá pra trás, eu era jovem naquela época. (Dias, 2017) Os carnavais eram momentos também de socialização das classes, conforme descreve Bueno: Carnaval vinha gente do Clube Harmonia tudo pular ai, por exemplo tinha vizinhos que moravam aqui em baixo, tudo já faleceram, meu pai minha mãe tudo iam tudo iam no clube tudo iam dançar na época de carnaval. vinha vinha gente do Clube Harmonia ali pular, e era Clube dos moreno, não entrava branco, branco não entrava, só na época de carnaval entravam esses porque eram vizinho. Vinham lá faziam o, como é que se diz os blocos e vinham pular ali, a mãe dizia e naquele tempo era bem bom ali, era social. Os bailes em geral eram muito frequentados pela comunidade, como descreve Morais: Eu to com 81 anos desde que começou sempre nós vinha, me lembro bastante do Luís preto com a família, eles eram da diretoria aquele tempo, mas eu não lembro muito. A sim nós vinha nos bailes e eram bem bom, era cheinho [...]. O pessoal mais era só daqui mesmo, os moreno, pessoal moreno, tudo os morenos [...] as vezes misturava o pessoal, já tinha mudado um pouco né. Faz uns 50 anos que venho, e continuo igual né, toda vez que ela ta aqui eu to junto aqui. (Refere-se a filha, presidente atual) (MORAIS, 2018) Em alguns momentos, havia o entrosamento entre as comunidades negras na região, como descreve o Sgt. Roque, que em São Luiz Gonzaga frequentou apenas uma vez o Clube Imperatriz em um aniversário, mas na sua cidade, Santo Ângelo, antes da transferência, além do Clube do Exército, frequentava o Clube Princesa Isabel, Tinha lá o Princesa Isabel lá em Santo Ângelo, os senhores lá e outros da diretoria, disseram vamos fazer agora no aniversário do nosso Clube que era o Princesa Isabel vamos convidar esqueci o nome do Tenente, tinha um tenente do exército que era presidente do Imperatriz, (refere-se a Manoel Alexandre de Oliveira,, rememorado mais tarde) então eles se conheciam então convidaram, mandaram convidar esse pessoal do Imperatriz aí foi esse casal com as filhas foi mais gente, foram em Santo Ângelo lá, foi um entrosamento de sociedade né com o Imperatriz aqui e o Princesa Isabel lá de Santo Ângelo, ai eles foram lá no baile. [...] Acho que isso foi em 63 por ai, 62 por ai. (SGT. ROQUE, 2018) Após um tempo o Sargento Roque foi nomeado presidente do Clube Princesa Isabel e conforme descreve, passou também a abrir para pessoas brancas. Na época que esse outro era presidente só entrava preto, branco não entrava lá, o nosso lá o Princesa Isabel era só a raça. Aí deu a caso de um fiscal de lá, a filha dele ir casar, ó vou fazer o casamento de fulana aí no clube, não pode fazer, aí eu já abri pra todo mundo, não veio só preto, veio mais branco e transformemos o clube né deu uma crescida boa porque ai já começamos a deixar essas pessoas entrarem cresce mais ai nesse meio de tempo, já sai promovido fui embora, não vi mais como é que ficou lá. (SGT. ROQUE, 2018). [ 176 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Havia também organizações de festas e bailes em benefício a pessoas carentes. Na Ata nº 33, de 20 de julho de 1983, a Diretoria do Clube destina a renda líquida de um baile ao Conselho Popular para auxílio na compra de remédio e leite aos fragilizados da cidade. Segundo Dias (2017) “faziam a doação de bastante coisa para as pessoas carentes, dos arredores do clube que naquela época era considerado bairro”. Alguns atrativos, com o tempo foram terminando, atualmente, a diretoria realiza bailes todos os sábados, o clube apresenta-se em bom estado de conservação e seu público é bastante diversificado, sendo em sua maioria moradores dos bairros e vilas. O Clube oferecia carteira aos sócios, sendo possível frequentar os bailes e demais atrativos, apenas os que estivessem em dia com seus pagamentos. Concluindo, a Sociedade Literária e Recreativa Imperatriz era um clube negro, desde a sua fundação, em 1943 até por meados dos anos 1975, sendo que as mudanças sociais, de pensamento e de público, levaram a uma abertura gradativa às demais etnias, tornando-se um clube multiétnico, sendo frequentado principalmente pela classe popular até hoje. As contribuições das memórias já expressadas pelos mais antigos integrantes do Clube, famílias negras, vizinhos da rua, contribuíram para a escrita da história do Clube, pois elas se entrelaçam e se completam aos documentos, atas informações de jornais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Atas do Clube Recreativo Imperatriz. 1959-2018; BENTO, Claudio Moreira. O negro e descendentes na sociedade do Rio Grande do Sul (1635-1975). Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1976; CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Editora Contexto, 2012; CARR, David. A narrativa e o mundo real: um argumento a favor da continuidade. In: Malerba, Jurandir. 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Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2017; BUENO, Neuza Maria Aquino. Neuza Maria Aquino Bueno. Depoimento (02 de outubro de 2018). Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2018; DIAS, Leda Jussara Brum. Leda Jussara Brum Dias. Depoimento (23 de maio de 2017). Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2017; FAGUNDES, Eva Morais. Eva Morais Fagundes. Depoimento (04 de outubro de 2018). Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2018; MARQUES, Gibson de Mattos. Gibson de Mattos Marques. Depoimento (27 de junho de 2017). Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2017; NASCIMENTO, Sueli Gonçalves do. Sueli Gonçalves do Nascimento. Depoimento (11 de setembro de 2018). Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2018; NENÊ. Marcelino Santana Brum. Depoimento (04 de outubro de 2018). Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2018; SGT.ROQUE. Roque Fernandes Fortes. Depoimento (02 de outubro de 2018). Entrevistadora: Marisete de Mattos Morais, São Luiz Gonzaga, 2018; [ 178 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O casamento e suas representações na fotografia: Relações sociais, poder e transformações Maristela Piva1 Janaína Rigo Santin 2 Resumo: O presente artigo reflete sobre as formas como o casamento foi representado artisticamente na realidade brasileira, onde há o predomínio de registros fotográficos. As fotos de casamento demarcam a memória histórica de uma época, e trazem elementos para interpretar o próprio casamento, seus ritos e desdobramentos, como no caso do divórcio. Bahia (2005) comenta que o ato de fotografar é um modo de representar a imagem de um modo de vida, e ao se classificar o que é passível de ser fotografado, demarca-se limites de ruptura e transformação de um mundo social. O casamento, é um dos principais ritos de passagem, e encontra-se em quase todas as sociedades. Simbolizaria uma alteração irreversível da situação social do casal que, proveniente de dois ramos da família, une-se para formar uma terceira (LEITE, 1991). Encontra-se inúmeros ritos matrimoniais, entre os quais o vestido de noiva e o retrato. Os rituais buscam dar significado e fixar na memória coletiva a lembrança da cerimônia, com palavras e gestos estabelecidos pelos costumes. E, como uma parte quase insubstituível, o retrato acaba sendo o legitimador e faz parte da publicidade do casamento. Estudos indicam que a indumentária da noiva tem sofrido pequenas mudanças e é mantida com alguns elementos essenciais, tais como: véu, grinalda, saia, buquê, luvas. Segundo Santos (apud Scheneid; Michelon, 2013, p. 8) “tudo indica que o uso do véu seria uma referência a Vesta, deusa mitológica virgem, que, entre os romanos, era a protetora do lar e simbolizava a pureza e a perfeição”. Outro símbolo, relacionado à indissolubilidade do casamento é a aliança (o círculo de ouro representaria o compromisso eterno, e, presente no dedo anelar da mão esquerda como símbolo de submissão). Flores, como símbolo de virgindade, compõe igualmente a figura da noiva. Deste modo, não é por nada que se virgindade tem como simbologia a flor, a destruição da virgindade tem sido denominada de defloração. (SCHENEID E MICHELON, 2013). Os retratos foram muitas vezes, (e ainda o são) objetos de exibição e distribuição entre convidados e parentes que não puderam comparecer, e desenvolviam assim, funções de integração até mesmo entre membros que haviam imigrado para o Brasil, com os que haviam ficado na terra de origem. Constituem, pois, a memória da família. Porém, ainda que os casamentos tenham se modificado ao longo do tempo, e outros formatos de família tenham sido estruturados, a necessidade de registrar em imagens os rituais de passagem continua sendo uma tônica marcante no contemporâneo. Contudo, também se modificaram os modos de fazer os registros. Da época das fitas cassete, gravações em vídeos, chegamos a época da “selfie”, onde o registro em vídeo permite em tempo real compartilhar com “o mundo inteiro” o acontecimento. Parece que registrar o casamento, hoje em dia, também responde a um ditame contemporâneo, que repousa na necessidade de ser visto, “reconhecido” e “curtido”. Como se, precisássemos “imortalizar” o momento vivido, para que ele possa ser significado como existente. Sendo assim, “as fotografias não são representações ou provas da realidade, mas colocam-se como produtoras de olhares, de modos de ver e compreender o mundo, produzindo, ao mesmo tempo, o próprio mundo” (DIAS, 2016, p.87). Introdução O presente artigo busca refletir sobre as formas como o casamento foi representado artisticamente, e ao investigarmos as representações artísticas de casamento, observamos que especialmente na realidade brasileira, os principais registros são fotográficos. Todavia, encontramos também estudos evidenciando como o casamento foi retratado em algumas revistas de circulação, regional, e nacional. Assim, este ensaio buscará analisar se as fotos de casamento, entendidas como um recurso artístico e também demarcadores de memória histórica, trazem elementos para pensarmos o próprio casamento, seus ritos e seus desdobramentos, como no caso do divórcio. Além do mais, amplia-se a discussão no sentido de verificar Psicóloga e Psicoterapeuta. Especialista em Diagnóstico Psicológico. Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS) Doutoranda do Programa de Pós- graduação em História da UPF. Profª Titular II da Universidade de Passo Fundo (UPF). 2 Janaína Rigo Santin é Pós-Doutora. Professora da UPF nos cursos de Direito, PPGH e PPGD .E-mail: janainars@upf.br 1 [ 179 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS como algumas revistas trouxeram ao longo do século XX as imagens do casamento, especialmente através de charges, e de que forma estas imagens refletem os condicionantes culturais de uma época, e, portanto, a representação de casamento em determinado período histórico. Neste sentido, conforme aponta Bahia (2005) o ato de fotografar é um modo de representar a imagem de um modo de vida. E ao se classificar o que é passível de ser fotografado, vai-se demarcando alguns limites de ruptura, as relações de poder e transformação de um mundo social. Acreditamos que, ao estudar a representação do casamento no Brasil, possamos levantar elementos para ampliar o olhar sobre o fenômeno do casamento, assim como sobre sua dissolução e as relações de poder da época, bem como os desdobramentos dos novos formatos de família hoje vivenciados. Sobre o casamento no Brasil: alguns recortes Sinteticamente podemos dizer que o casamento no Brasil vai se modificando ao longo dos anos, assim como os modelos de família e as relações de poder. De acordo com Samara (2004) no Brasil predominou desde a colonização o modelo de família patriarcal, onde o relacionamento entre seus membros “estimulava a dependência na autoridade paterna e a solidariedade entre parentes” (p. 10). Esta família tinha uma feição complexa, e incorporava em seu núcleo diversos integrantes: parentes, afilhados, agregados, escravos, o que conferia a família uma espécie de organização típica, rendendo-lhe o nome de família extensa. Para Samara (2004), neste modelo o chefe de família cuidava dos negócios e buscava preservar a linhagem familiar, além de exercer sua autoridade sobre a mulher, filhos e demais integrantes. Esta autora refere que esta descrição de família foi muito explorada por estudiosos como Gilberto Freyre, mas que em verdade caracterizava o ambiente rural. Contudo, argumenta que se voltamos o olhar para a sociedade paulista, observar-se-á que o modelo de família extensa não é marcante, já que o número de elementos na maioria dos casos pertencentes à família ficava em torno de um a quatro elementos. Assim, as famílias eram predominantemente nucleares, com poucos filhos, já que a mortalidade infantil contribuía para isto. Já o concubinato traz uma nova tonalidade às relações familiares, e vai justificar a alta incidência de crianças ilegítimas. Vai se observar que desde o período colonial “havia uma certa resistência por parte da população em casar, preferindo viver em concubinato” (SAMARA, 2004, p.41). Para esta autora os casamentos eram opção de uma parcela da população, representando a união de interesses, especialmente entre a elite branca. Assim, sendo visto como uma ato social de grande importância, teria como finalidade última “preservar a fortuna e manter a linhagem e pureza do sangue” (SAMARA, 2004, p. 44). De acordo com Pimentel (2005) o projeto colonizador de Portugal no Brasil teria se pautado pela disciplina e pela domesticação dos costumes para realizar o desbravamento e povoação da colônia portuguesa na América. Assim, a catequese cristã e a colonização procuravam conter o sexo dentro do casamento. Esses mecanismos acabavam por sujeitar as pessoas. Ser casado significava para a sociedade da época o uso do sexo dentro da legalidade, de acordo com os limites impostos. Observou-se, entretanto, que o celibato era frequente nas famílias paulistas (final do século XVIII e início do XIX) e o recenseamento indicou que muitas vezes, ao invés de se encontrar um casal, se encontrava “homens ou mulheres solteiros que viviam solitários com seus filhos ilegítimos” (SAMARA, 2004, p. 19). Isto parece denotar uma certa resistência aos apelos da Igreja Católica em sacramentar estas relações. A opção pela união não sacramentada também ocorria nas camadas mais pobres da população, onde a escolha do cônjuge é influenciada por critérios menos seletivos. Nader (1997), por sua vez, indica que por uma tradição histórica, a mulher vai ter sua vida atrelada à família, o que implicava na obrigação de submeter-se ao domínio do homem, seja seu pai ou esposo. A identidade feminina vai assim sendo construída em torno do casamento, da maternidade, da vida privadadoméstica. Nesse contexto, a mulher vai ocupar o lugar de obediente a seu marido. Foi-lhe atribuída uma inferioridade com relação ao homem, e até mesmo acreditava-se que a mulher era incapaz de exercer outras atividades, se não aquelas domésticas e do cuidado com os filhos. Afinal, estas fariam parte da natureza da mulher, estavam intrínsecas ao “ser mulher”. Estes modelos familiares vão legitimando as relações de poder da época e a superioridade do homem, assegurando-lhe o poder que lhe foi dado desde a criação do mundo e que foi muito observado no Brasil Colônia, período em que se observa que as mulheres ocupavam essa posição; criadas para casar, ter filhos. Formavam-se, em fato, “acordos familiares de interesses mútuos e a função do casamento era a de gerar grandes famílias, em que a mulher era responsável por toda a organização” (EMÍDIO; VALENTE E SILVA, 2007, p.6). [ 180 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Com o passar do tempo, esse papel de esposa, mãe, companheira submissa ao homem, vai sofrer mudanças, acompanhando as mudanças do mundo e na sociedade, como a entrada da mulher no mercado de trabalho e o movimento feminista. Tudo isso vai trazer a possibilidade às mulheres de questionarem seu papel e de se posicionarem como sujeitos com desejos e necessidades. Nader (1997) assinala que assim foi se desconstruindo uma imagem da mulher delicada e doce sempre submissa e a espera de seu marido. As mulheres, aos poucos, passam a traçar novos caminhos e vão demarcando novas configurações ao seu papel. Nesta luta, as mulheres passaram a buscar fora da proteção do lar novos sentidos para a sua vida. Começaram a exercer a atividade profissional e a buscar seus direitos como cidadãs. O trabalho feminino foi conquistado fora do contexto doméstico e as mulheres passaram por uma evolução no seu papel social. Portanto, o papel da mulher modifica-se, e estas modificações vão se refletir também no modelo de família, que se transforma aos poucos. Um passo importante e significativo que passa a dar um novo formato às famílias e aos casamentos foi a Lei do Divórcio, aprovada em 1977. No mesmo sentido, as Constituições seguintes foram marcando e trazendo novas versões sobre a dissolução do casamento. Na opinião de Melo (2004) a Constituição de 1988 foi marco no tocante aos novos direitos da mulher e à ampliação de sua cidadania. A Constituição Federal de 1988 tentou romper com um sistema legal fortemente discriminatório em relação ao gênero feminino. De acordo com Cano et al. (2009), em fato, o divórcio e o recasamento já estavam ocorrendo antes mesmo da regulamentação pela via de lei. Porém, não eram reconhecidos ou aceitos socialmente, e se constituíam em temas velados ou evitados nas redes sociais e familiares. Deste modo, a modificação na lei trouxe à tona os diversos modelos e padrões de família, os “novos” modelos familiares, decorrentes de reorganizações conjugais, separações, novas formas de união e recasamento. E acompanhando este fenômeno, o que vai se observar nas décadas seguintes é um aumento significativo no número de divórcios e separações no Brasil. Vale citar que os números de divórcio ocorridos no Brasil, entre os anos de 1993 e 2003 havia crescido 44%. (CANO, et al, 2009, p.214). Hoje, vivemos em uma sociedade em que já não é generalizada a obrigação de casar, tendo diminuído muito o sentimento de reprovação pelo divórcio e até mesmo pelo aborto. Assim, os jovens, explica Turkenicz (2013), dispõem de outras referências de vida que não se restringem ao casamento e a maternidade. Os Retratos de casamento: ritos e significados O casamento, bem assinala Leite, é um dos principais ritos de passagem, e encontra-se em quase todas as sociedades. “Simboliza uma alteração irreversível da situação social do casal que, proveniente de duas famílias ou de dois ramos da família, une-se para formar uma terceira” (1991, p. 182). Para este autor, o casamento, em grande parte estaria mais ligado à passagem da moça donzela a esposa e anjo tutelar de nova linhagem. O que se vai observar são inúmeros ritos matrimoniais, entre os quais o vestido de noiva e o retrato. Assim, estes rituais buscam dar significado e fixar na memória coletiva a lembrança da cerimônia, com palavras e gestos estabelecidos pelos costumes. E, como uma parte quase insubstituível, “o retrato vem sendo o legitimador e faz parte da publicidade do casamento. Não só torna pública uma relação como, com o passar do tempo, acaba se confundindo com a lembrança do próprio casamento”. (LEITE, 1991, p. 182). Também Bahia (2005) comenta que o ato de fotografar é um modo de representar a imagem de um modo de vida. Assim, vai se classificando o que é passível de ser fotografado, como uma cerimônia, que podem ser ritos de passagem que demarcam os limites de ruptura e transformação de um mundo social. A foto ao reproduzir um rito de passagem congela o fato único e repete mecanicamente aquilo que jamais se repete na existência. Mas, ao repetir o tempo aprisionado do rito, o grupo isola um único incidente da sua história, reproduzindo-o para além do próprio fluxo ininterrupto do tempo, transformandoo em algo atemporal. Neste sentido, evidenciam a permanência das regras sociais que estão para além dos fatos isolados ressaltando a força da coletividade por detrás das imagens dos indivíduos (BAHIA, 2005, p. 351). A prática de fotografar está assim relacionada aos momentos extra cotidianos, que tendem a expressar um tempo que marca uma ruptura seguida de transformações na rotina da unidade doméstica. Bahia (2005) refere que a particularidade desse tipo de foto implica que no centro destas imagens não estão os indivíduos, e sim os papéis sociais que representam. [ 181 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Nesta perspectiva vale citar o estudo de Michelon e Schneid (2015) que observaram fotografias de noivas em álbuns de família no Brasil, produzidas entre as décadas de 1920 e 1960. A maioria das imagens analisadas pelos autores foram construídas na emulsão fotográfica com base de prata, antigo modo se se produzir as fotografias. As fotos acabam indicando modos de sentir, pensar e representar, estritamente históricos, essencialmente localizados no tempo e no espaço. O modo como eram compartilhadas estas fotos, enviando para parentes, colocando em um altar na sala de visitas, também alerta para o desejo de que aquele momento, sagrado na veste, no cenário, nos adornos, na aparência das coisas, fosse um postulado da união irrevogável, até que a morte viesse para um dos nubentes. Assim, o registro desta cerimônia transcendia a própria e elencava a noiva como o selo das expectativas (MICHELON; SCHNEID, 2015, p.2). Pode-se observar através do estudo, que os vestidos de noiva, como qualquer outra peça da indumentária feminina, eram influenciados pelas tendências de moda da sua época. E ainda que a moda seja efêmera, e se modifique com o passar do tempo, parece que desde a era Vitoriana a indumentária da noiva tem sofrido pequenas mudanças e é mantida com alguns elementos essenciais, tais como: véu, grinalda, saia, buquê, luvas. Assim, na análise da indumentária das noivas os autores concluem que as vestimentas matrimoniais traduzem a sociedade daquele momento, que exigia da mulher no casamento a concordância com os padrões vigentes (MICHELON; SCHNEID, 2015). Ainda no que tange às fotografias de casamento, os autores consideram o véu um instrumento da indumentária muito simbólico. Segundo Santos (apud MICHELON; SCHNEID, 2013, p. 8) “tudo indica que o uso do véu seria uma referência a Vesta, deusa mitológica virgem, que, entre os romanos, era a protetora do lar e simbolizava a pureza e a perfeição”. Já no que se refere ao noivo, os autores não observaram vestimenta especial ou símbolos específicos, como no caso das noivas. Ao longo das três décadas analisadas eles apresentaram-se sempre de ternos escuros, camisa branca, lenço branco no bolso do paletó, gravata ou gravata borboleta escura ou clara e sapatos pretos. (MICHELON; SCHNEID, 2013). Destaca-se ainda outro símbolo que os autores observaram nos ritos do casamento: a aliança. Esta seria o signo da indissolubilidade do casamento, e o círculo de ouro representaria o compromisso eterno, e, presente no dedo anelar da mão esquerda como símbolo de submissão (MICHELON; SCHNEID, 2013, p. 8). Flores, como símbolo de virgindade, compõe igualmente a figura da noiva. Deste modo, não é por nada que se virgindade tem como simbologia a flor, a destruição da virgindade, tem sido denominada de defloração. (SANTOS apud MICHELON; SCHNEID, 2013, p.9). Michelon e Schneid (2013) explicitam que as fotografias não substituem a experiência vivida, mas geram sobre ela a possibilidade de uma nova experiência memorial. Ela acaba por ser uma evidência histórica e protagonista da história, sendo portanto, um instrumento portador de memória. Segundo Leite (1991) os retratos são objetos de exibição e distribuição entre convidados e parentes que não puderam comparecer, e desenvolvem assim, funções de integração entre membros que haviam imigrado para o Brasil, com os que haviam ficado na terra de origem. Passam, pois, a construir a memória da família. O casamento em transformação: o que as charges denunciam Um trabalho muito interessante foi desenvolvido por Queluz (2006), quando analisou as representações da mulher presentes na revista de humor: A Bomba, de 1913, editada em Curitiba, no Paraná. A autora comenta que a caricatura do início do século XX, de um modo geral, voltou-se para a cidade, para os que nela viviam e transitavam. Deste modo, a caricatura reciclava os discursos da ciência, da arte, da publicidade, da moda, do teatro, da imprensa, e buscava dar sentido à experiência urbana. Ainda em um contexto do advento da República, das reformas urbanas e das inovações técnicas, Queluz (2006) entende que: a imprensa investiu num novo horizonte de imagens e o humor gráfico teve um papel importante nesse processo. Mesmo em meio a um ranço moralista, a agência da contestação foi dada às mulheres. Ao zombar do espaço almejado pela mulher e do espaço que ela realmente ocupava na sociedade, as caricaturas deixavam entrever as instâncias de luta, ao mesmo tempo, que davam voz, criavam / integravam novos espaços (p.16). [ 182 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A figura feminina era muito constante nas charges e, ainda que não fosse a maioria, nem por isso a presença das mulheres era menos instigante ou polêmica. Rachel Soihet, ao comentar sobre as representações femininas, lembra que “o recurso da ironia e da comédia foi um poderoso instrumento para desmoralizar a luta pela emancipação feminina e reforçar o mito da inferioridade e da passividade da mulher” (apud QUELUZ, 2006, p.16). Ela afirma também que a charge teve um papel importante nesse processo. De todo modo, ainda que esta análise seja importante nos estudos das artimanhas de dominação e exclusão da mulher em diversos setores, Queluz (2006) questiona que há uma riqueza do próprio mecanismo da caricatura e da linguagem paródica. Afinal, a ambiguidade e a ironia dessas imagens acabam por revelar também as novas conquistas e os outros caminhos trilhados pelas mulheres. Esta autora, ao analisar as caricaturas da revista Bomba, percebe que os caricaturistas, em muitos momentos, destacam a atuação da mulher, sua participação nas decisões, quando sugerem mudanças de padrões, até mesmo na moda. Assim, vai se observar que as mulheres são representadas tomando iniciativas, o que causa espanto, e é evidenciado nos desenhos das charges. Também seu papel no casamento e na família é exposto e questionado. Neste sentido, vale destacar uma das charges que a autora analisa no texto, e que ao mostrar um casal, na sequencia de dois desenhos, (espécie de história em quadrinhos), mostrará na primeira homem e mulher próximo um ao outro, e no segundo, distantes. As imagens ainda vem acompanhadas da seguinte legenda: Na véspera do casamento: I - Amamo-nos tanto... E se nos casássemos? - Era nisso que estava pensando II - Estamos tão aborrecidos... e se nos divorciássemos? - Estava pensando justamente nisso. (A Bomba, n. 12 – 30 set. 1913, apud QUELUZ, 2006, p. 19) No entendimento de Queluz (2006) já era uma tradição cômica europeia ironizar os hábitos burgueses. Deste modo, observa-se que no final do século XIX os caricaturistas referiam-se à hipocrisia do casamento indissolúvel, numa sociedade decadente em que o adultério era uma prática aceita, que com o divórcio apenas seria amenizada. Nesta perspectiva vale a pena citar ainda outra charge analisada pela autora, que retrata o desenho de um homem conversando com uma senhorita, supostamente em um banco de jardim. A moça está sentada, de saias, bem vestida, e o rapaz, de terno e em pé, inicia o diálogo. O texto que acompanha a charge, é nominado de “Precocidade Moderna”, e segue abaixo: Ele – Então a senhorita não pretende casar? Ela (15 anos) – Talvez, mas tenho medo de uma coisa... Ele – Do que? Ela – De logo ficar enjoada do marido. (H. Scotti. A Bomba, n. 4 – 10 jul. 1913, apud, QUELUZ, 2006, p.20) Queluz (2006) destaca, que embora o tema das charges seja o casamento, a ameaça do divórcio e o questionamento desta instituição feito por parte das mulheres é o que sobressai. Há uma zombaria ao espaço almejado pela mulher e do espaço que ela realmente ocupa na sociedade. As caricaturas, na opinião da autora, deixariam entrever as instâncias de luta, as sutilezas dos discursos, e ao mesmo tempo que dão voz, criam e integram novos espaços. As charges e caricaturas dão visibilidade às tensões entre a busca da emancipação feminina e as imposições culturais, produzindo um discurso polifônico e dialógico, reconstruindo o olhar sobre o outro. Deixam entrever as práticas cotidianas do espaço da cidade e a re-articulação das relações sociais. (QUELUZ, p. 21) Observa-se uma antevisão sobre os sonhos femininos, e que provavelmente revelavam as mudanças que vinham sendo sentidas nos padrões de comportamento urbanos. A charge, enquanto componente artístico, vai representar esteticamente o que vai se observando no cotidiano. Todavia, há que se refletir sobre o resistência da sociedade brasileira sobre o divórcio. Se pensarmos que 1913 a temática do divórcio já [ 183 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS estava estampada em jornais e revistas no Brasil, e que a Lei do Divórcio só será aprovada em 1977, temos aí 64 anos de discussões e enfrentamentos à temática. Ainda nesta esteira de análise de como as charges podem ter contribuído para colocar em questão os papéis de gênero e, em especial, o lugar do casamento na vida da mulher, encontramos outro trabalho muito interessante realizado por Bonadio e Boaventura (2013). Estas autoras buscaram observar como as imagens em conjunto com o design gráfico desempenharam papel importante na imprensa feminina. Para tanto, elas analisaram as ilustrações e layouts do designer gráfico Alceu Penna para as seções femininas da revista A Cigarra, 3 no período entre 1947-1955. As autoras esclarecem que nas décadas de 1940 e 1950, as reportagens veiculadas na revista Cigarra eram produzidas pela mesma equipe de O Cruzeiro e abordavam principalmente temas leves, como esportes, costumes e fatos curiosos. As seções de humor, literária e feminina eram também bastante atrativas em termos visuais, especialmente a partir de 1947, quando a revista ganha mais páginas coloridas e aprimora seus layouts e efeitos gráficos. Dentre os artistas gráficos que atuavam na revista, estavam Armando Alves Pacheco (1913-1965), André Le Blanc (1921-1991), Santa Rosa (1909-1956) e Alceu Penna (1915-1980). Os três primeiros atuaram especialmente na seção literária e o último nas colunas dedicadas às mulheres. (BONADIO; BOAVENTURA, 2013, p. 661). As autoras focalizam este período de Alceu Penna na revista, e suas ilustrações na seção literária. Ele não só teria ilustrado as colunas femininas, como produziu uma determinada identidade visual para o espaço, no período 1947-1955, quando sua participação na revista é largamente ampliada. Alceu Penna já era um artista gráfico bastante conhecido no País, especialmente pela seção “As Garotas”, que era veiculada na revista O Cruzeiro desde novembro de 1938. Porém na Revista Cigarra, merece destaque sua seção intitulada: “O Marido de Madame”. Nesta, o artista gráfico traz à baila um outro modelo de casamento. A esposa, por ele representada, foi chamada de Lolita, e, ainda que aparentasse ser uma jovem adulta, vestia-se seguindo as linhas da moda parisiense. A personagem, ocupou, ao lado do seu marido Gonçalo, duas páginas por edição durante seis anos, entre 1948 e 1954. Nestas charges as mulheres que Alceu representava pareciam reverter situações comumente associadas à submissão feminina. Bonadio e Boaventura comentam sobre o trabalho de Alceu Penna: Ainda que o principal personagem masculino fosse denominado Gonçalo, o título da história referia-se a ele apenas como marido, trazendo aqui uma inversão curiosa, pois, na época, o comum era as mulheres verem seus nomes suprimidos em prol dos sobrenomes dos esposos. Nas colunas sociais, as mulheres eram denominadas Srª Fulana ou Srª. Beltrano, perdendo seus primeiros nomes e consequentemente parte de sua identidade o [...] Já no quadrinho de A Cigarra, Gonçalo (de quem não sabemos o sobrenome) era, no título e nas histórias, o “Marido de Madame” ou o marido de Lolita. O casal quebra ainda com a imagem exemplar da família nuclear, pois não tem filhos e em nenhuma das tiras há indícios de que estão planejando tê- los. As histórias revelam também que a dupla vivenciava uma relação conjugal um pouco “fora do comum”, pois apesar de Gonçalo ser o provedor do lar, era a esposa quem possuía poder e domínio sob o marido. Ainda que o humor atenuasse a situação, a história deixa evidência que era Lolita quem tomava as decisões em casa – mesmo estas decisões se baseassem, sobretudo em seus caprichos ou desejos de consumo. Desta maneira, “O Marido de Madame” aponta uma alteração no modelo vigente, pois o marido é que está associado a uma imagem de submissão na relação conjugal. (2013, p. 673) De fato, a sessão “O Marido da Madame” trará ainda outro modelos relacionais a serem discutidos. Gonçalo será apresentado lavando a louça. As autoras ressaltam,que na obra de Alceu Penna ele utilizou um recurso gráfico interessante ao representar o homem, no caso Gonçalo. O desenho de Gonçalo era feito em uma escala menor que a esposa, que na maioria das vezes vinha representada em primeiro plano (e portanto, maior que o marido). Também os tipos usados na grafia do título reforçam o papel submisso de Gonçalo, A Cigarra, de acordo com Bonadio e Boaventura (2013, p.654) “foi uma das mais longevas revistas já publicadas no Brasil. Lançada em 1914, circulou até 1975, perfazendo, portanto, mais de 60 anos de existência. Em seus primeiros anos era editada em São Paulo por Gelásio Pimenta, seu editor-fundador”. Assim, entre os anos de 1940 e 1950, sob a direção de Frederico Chateaubriand a revista atingiu o auge de sua popularidade. 3 [ 184 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS pois a palavra “marido” vinha grafada em caixa baixa e letra de traços finos, e em contrapartida “madame” era grafada em caixa alta, em tamanho grande, com contornos em preto e miolo em vermelho. Na análise do trabalho de Alceu Penna, Bonadio e Boaventura (2013) depreendem também a crítica ao perfil feminino, até então idealizado. Afinal, Lolita não sabia cozinhar, e em inúmeras ocasiões, irá alimentar o marido com enlatados ou sanduíches. Lolita também não sabe costurar, outra tarefa frequentemente associada a uma boa esposa e, assim, é Gonçalo quem aparece pregando botões na camisa. Outro detalhe, após a refeição, Lolita aparece fumando e conversando animadamente com as amigas, enquanto Gonçalo, arruma os pratos e lava a louça na pia. São charges na década de 40 e 50. Isto é muito interessante. Penna também questionou um dos preceitos comumente veiculados na imprensa feminina, o da obediência ao marido. As charges mostram Gonçalo recebendo as ordens de Lolita e, na maioria das vezes, obedece sem pestanejar. Assim, como uma seção em que Lolita viagem sozinha e o esposo fica em casa. Bonadio e Boaventura (2013), concluem que embora se tratasse de uma personagem de ficção, Lolita poderia ser uma moça à frente do seu tempo que começava a romper com os papéis estabelecidos. Começava a ser descortinado um perfil individualista que ganharia mais espaço na sociedade após a Segunda Guerra, até tornar-se dominante no final do século XX. Ressaltam, ainda, que uma das questões mais colocadas nos debates acerca dos estudos de gênero, quando relacionados à produção imagética, é que geralmente as imagens que povoam a arte e a cultura de massas são produzidas por e para os homens. Todavia, se há o questionamento das questões de gênero, e ainda, de uma forma tão bem-humorada, Alceu Penna acaba por interpelar sobre o modelo de casamento vigente e suas possíveis transformações. Arte, representação e a funcionalidade de “ser visto” Os textos lidos e analisados nos permitem pensar que a fotografia ou as charges parecem contar uma história sobre o vivido e as relações de poder. Os casamentos vem se modificando ao longo do tempo, outros formatos de família foram sendo estruturados, e as imagens denunciam estas realidades. Todavia há que se notar que a necessidade de registrar em imagens os rituais de passagem continua sendo uma tônica marcante no contemporâneo. Neste aspecto Leite (1991) reforça que o retrato de casamento vai passar a ser um ritual complementar ao rito de passagem (casamento), desde os primórdios da invenção e difusão comercial da técnica fotográfica. E ainda que tenha havido uma diminuição dos casamentos, bem como, podemos acrescentar, uma alteração sensível nos modos relacionais e sexuais das uniões, muitos desses ritos vigoram, e “o retrato de casamento se conserva um ritual legitimador da família, funcionando mesmo como um elo de gerações e de concórdia, quando, depois de uma união não aprovada, o casal se legitima e é aceito pelas famílias de origem” (LEITE, 1991, p. 183). O que se vai observar é que as despesas com o fotógrafo, material fotográfico, cerimonialista, mesmo em famílias de parcos recursos, passaram a fazer parte dos orçamentos festivos, e da ostentação dos trajes que marcam a festa do casamento. Os modelos de casamento tem se modificado, é uma realidade. Mas as exigências ao ritual de casamento tem permanecido. Também se modificaram os modos de fazer os registros. Tivemos a época das fitas cassete, gravações em vídeos, até chegarmos agora na época da “selfie”, onde o registro em vídeo permite em tempo real compartilhar com “o mundo inteiro” o acontecimento. Parece que registrar o casamento, hoje em dia, também responde a um ditame contemporâneo, que repousa na necessidade de ser visto, “reconhecido” e “curtido”. 4 Dockhorn e Macedo (2008) ponderam que atualmente o desejo já não mais é visto pelo sujeito como um instrumento de modificação e reinvenção de si mesmo, da ordem social e do mundo. Ao contrário, os destinos do desejo apontam para uma direção exibicionista e autocentrada, na qual o espaço de intersubjetividade torna-se esvaziado e desinvestido. Enfim, a reflexão sobre os modos de subjetivação contemporânea, fazem parte desta “formato” de como se faz o registro de casamentos hoje em dia, todavia, não vamos enveredar nesta discussão, já que esta temática rendaria outro artigo. Nossa tentativa centrou-se em pensar como vem sendo feita a representação artística do casamento. Pudemos ver, que especificamente no Brasil, o registro do casamento é marcado pela fotografia. Mas na imprensa, o casamento foi apresentado através das charges, quando com humor, criticava-se e se denunciava as transformações que esta instituição foi sofrendo ao longo do tempo. Slavutzky (2014) e outros autores tem Curtir uma foto nas redes sociais, tem representado para boa parte das pessoas, uma prova de popularidade, de valorização social, e denota um hábito em nossos dias, que de acordo com alguns autores marca o narcisismo do sujeito encontrando novas formatos de expressar-se no contemporâneo. 4 [ 185 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS chamado a atenção para o poder do humor de transformar a realidade, diminuindo o poder do medo. O papel do humor é muito interessante neste sentido, visto que, nas palavras de Slavutzky, “O humor cria uma realidade ilusória, a partir da própria realidade. A ilusão gerada pelo humor é criativa e facilita as relações com a realidade externa, é na verdade uma nova visão sobre ela” (2014, p.331). A arte, como exposto, tem ajudado a registrar a história e a sensibilizar para o que foi vivido. Porém, atualmente o casamento vão é visto mais como o único ritual de fundação de uma família. Talvez hoje se case por razões diferentes do que se casou um dia. Há um sentido prático no casamento, bem aponta Leite (1991): dividir o aluguel, obter o visto, registrar os filhos da união. Uma expectativa nova nos casamentos hoje em dia é que eles devem ser felizes. Existe até mesmo a fantasia de que será uma alegria permanente, o que também leva ao número grande de divórcios e separações, pois, há muita dificuldade em lidar com as frustrações em um relacionamento. Enfim, o casamento se transformou, e o número de divórcio vem aumentando. Novos formatos de família são uma realidade. Mas, parece que o que não muda é a necessidade de registrar a união, o que poderia estar ligado a uma necessidade da memória individual e coletiva. Como se, precisássemos “imortalizar” o momento vivido, para que ele possa ser significado como existente. Sendo assim, “as fotografias não são representações ou provas da realidade, mas colocam-se como produtoras de olhares, de modos de ver e compreender o mundo, produzindo, ao mesmo tempo, o próprio mundo” (DIAS, 2016, p.87). Referências BAHIA, Joana. O uso da fotografia na pesquisa de campo. Vivência. UFRN. n. 29, pp. 349-360, 2005. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/vivencia/sumarios/29/PDF%20para%20INTERNET_29/3_DOSSI%C3%8A_ima gens/CAP%203_JOANA%20BAHIA.pdf. Acesso em dez., 2017. BONADIO, Maria C.; BOAVENTURA, Thais F. Diálogos - Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História. (Maringá. Online), v. 17, n.2, p. 649-683, mai.-ago./2013. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/36026/18639. Acesso em Dez., 2017. CANO, Débora Staub et al . 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No ano de 2017, Três Arroios comemorou o centenário da colonização e o 30º aniversário de emancipação. O poder público municipal promoveu um conjunto de atividades para celebrar a data reconhecendo o trabalho e dedicação do povo tresarroiense e de entidades que contribuíram com o desenvolvimento social, econômico e cultural do município que está com um dos melhores índices de desenvolvimento socioeconômico (IDESE) no país. A partir do século XXI houve um esforço para que a história local fosse registrada. Três publicações, com apoio do poder público, foram elaboradas. As publicações versam sobre a história do município desde a colonização até o ano da respectiva publicação (2004, 2013 e 2017). Escritos numa perspectiva factual, são evidenciados os principais passos do desenvolvimento econômico, político e cultural de Três Arroios. A valorização da história e da cultura estão presentes na política de gestão e no período de 2013 a 2016 foi realizado o restauro da Casa Canônica. A edificação, construída em 1944, foi cedida em comodato para a Prefeitura Municipal que com recursos da Lei de Incentivo a Cultura (LIC) do RS implantou a Casa da Cultura. A edificação abriga espaços administrativos e conta com sala de estudos e cozinha experimental para cursos e oficinas, um auditório para palestras e eventos culturais, e um espaço privilegiado no sótão onde será implantado o Museu Municipal que busca preservar os testemunhos materiais da história municipal e valorizar a identidade do povo tresarroiense. As funções básicas de um museu são apresentadas pela nova museologia com um tripé de atuação bem definido: salvaguarda, pesquisa e comunicação. Ao longo de 2018 a contratação de assessoria técnica especializada em museologia fez com que os trabalhos para implantação do museu efetivamente ocorressem com base nos princípios e técnicas apropriadas, resultando no projeto da exposição de longa duração que está em processo de montagem. O acervo a ser exposto foi coletado com base na pesquisa temática para a exposição e passou por tratamento técnico visando sua conservação. Uma nova abordagem para a trajetória histórica e cultural do município é apresentada na exposição, promovendo uma “reescrita da história” por meio de temas relevantes e de uma narrativa que valoriza a memória coletiva ao invés dos fatos de forma isolada, evidenciando pontos cruciais para compreender o município. Além de um ponto turístico relevante para o município e região, o museu será um espaço importante para a prática pedagógica, o diálogo e a promoção da memória coletiva, estando aberto ao público, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento. Três Arroios é um munícipio da região Alto Uruguai no Norte do Rio Grande do Sul. A colonização foi organizada pela Companhia Luce, Rosa e Cia, com o assentamento das primeiras famílias em fevereiro de 1917. O centenário da colonização, em 2017, foi celebrado com diversas atividades que valorizaram a história do município e a memória de seus habitantes. Neste contexto, se insere o Museu Municipal de Três Arroios que apresenta uma nova abordagem para a trajetória histórica e cultural do município na exposição de longa duração, promovendo uma “reescrita da história” por meio de temas relevantes e de uma narrativa que Historiador pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) – Criciúma/SC (2000), Mestre em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianópolis/SC (2006) e Doutorando em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia. Sócio da Viés Cultural: Museologia e Patrimônio - Imbituba – SC. mauricio@viescultural.com.br 2 Licenciatura em Ciências Sociais, pela Universidade Federal da Fronteira Sul, UFFS – Erechim, Especialização em pedagogia empresarial e educação corporativa pela UNINTER- Erechim. fabiolapezenatto@gmail.com 3 Museólogo pelo Centro Universitário Barriga Verde (UNIBAVE) - SC (2010) e sócio da empresa Viés Cultural: Museologia e Patrimônio. - Imbituba – SC. viescultural@viescultural.com.br 1 [ 188 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS valoriza a memória coletiva, ao invés dos fatos de forma isolada, evidenciando pontos cruciais para compreender o município. A Colonização Após a proclamação da República, a colonização no Brasil passou para a responsabilidade dos Estados. No Rio Grande do Sul a Lei n.⁰ 28 de 05 de outubro de 1899, regulamentada pelo Decreto n.⁰ 313 de 04 de julho de 1900, definiu parâmetros para que terras devolutas ainda existentes pudessem ser colonizadas. A região Norte do Estado, conhecida como Alto Uruguai, passou a ser estudada para implantação de colônias. Este processo contribuiu para que caboclos e indígenas, presentes nestas áreas, fossem direcionados para outros locais ou reservas demarcadas pelas Comissões de Terras 4. A colonização de Três Arroios foi organizada pela Companhia Luce, Rosa & Cia, que iniciou sua atuação no Norte do Estado em 1916. A principal sede na região ficava em Barro (atual Gaurama) onde havia a estação da Estrada de Ferro mais próxima da área da colônia. Esta companhia era responsável por organizar a infraestrutura das ruas e estradas, demarcar os lotes e gerenciar a venda e o recebimento dos valores relativos aos lotes coloniais. Os lotes rurais tinham 25ha cada e os lotes urbanos 1250m². Marcado pela presença de famílias de origem alemã, a ocupação do solo em Três Arroios começa em 17 de fevereiro de 1917, com migrantes das antigas colônias do Rio Grande do Sul e outras vindas diretamente da Europa5. Pouco depois chegam migrantes de outras nacionalidades, em especial italianos. A procura pelas terras na região do Alto Uruguai era estimulada: pela escassez de terras à venda nas colônias velhas, forçando as novas gerações de descentes de imigrantes a mudarem para outras regiões; a fertilidade do solo; a proximidade com a Estrada de Ferro; e também a fuga dos constantes conflitos armados que marcaram a luta pelo poder político no Rio Grande do Sul durante a República Velha 6. Três Arroios no início da colonização, 1917 Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios CHIAPARINI, Enori José et all. Erechim: retratos do passado, memórias do presente. Erechim: Graffoluz, 2012. ZAHNER, Alexandre. Conhecendo Três Arroios: o Príncipe dos Vales do Alto Uruguai. Erechim: Editora São Cristóvão, 2004 6 CHIAPARINI, Enori José et all. Erechim: retratos do passado, memórias do presente. Erechim: Graffoluz, 2012. 4 5 [ 189 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A emancipação No contexto Sul brasileiro as sedes das colônias desde sua fundação tinham potencial para em pouco tempo formar uma vila. A médio e longo prazo, conforme o nível de desenvolvimento econômico, podiam se tornar municípios. A emancipação era sinônimo de vitória para os primeiros moradores e seus descendentes, pois marcava o progresso obtido por aquela coletividade que se esforçara a iniciar o povoamento em uma nova fronteira agrícola. Na década de 1920 era notável o aumento das construções de residências e aumentava o número de casas de comércio abertas em Três Arroios. No alto da colina se destacava a edificação da escola e da igreja, que cumpriam importante papel na formação social da colônia, coordenados pela ordem franciscana que atendeu a população, nos primeiros tempos do povoado, com serviços que a princípio eram de competência do Estado. Três Arroios no início da década de 1920 Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios O desenvolvimento marcado pela agricultura, impulsionou o setor de serviços e as industrias artesanais começaram a se estabelecer para atender os moradores locais. Esta evolução fez as lideranças locais lutarem por mudanças administrativas. Pela Lei nº 244, de 08 de julho de 1953, Três Arroios foi elevado a Distrito de Erechim. Nas décadas de 1950 e 1960 houve grande movimento pela emancipação de municípios em todo o país. Na região do Alto Uruguai alcançaram esta condição: Gaurama (1953), Aratiba (1955), Viadutos (1959), Severiano de Almeida (1963) e Mariano Moro (1966). Uma Assembleia Geral foi organizada em Três Arroios, no ano de 1965, para discutir a proposta de emancipação. Com 171 eleitores favoráveis, foi formada uma Comissão pró-emancipação. Entretanto, o sonho da transformação em município teve que ser adiado, pois, quando foi oficializado o pedido para a emancipação, houve mudanças na legislação. No início dos anos 1980, a evolução das tecnologias e a chegada da eletricidade nas comunidades do interior transforma a maneira de produzir no campo. A mecanização da lavoura e a chegada da primeira colheitadeira, novas formas de armazenamento de alimentos e sua distribuição, alteram o cotidiano rural. Nesta época a Emater põe em prática o Plano Estadual de Extensão Rural (popular projetão) que colocou extensionistas próximos às famílias de produtores rurais, contribuindo para melhora dos resultados econômicos, uma vez que os conhecimentos técnicos postos em prática aumentavam a produtividade. Gradativamente os produtores migraram da produção de subsistência para uma agricultura comercial, reestruturando as propriedades em busca de melhores rendimentos. A agricultura comercial [ 190 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS trouxe diversificação da produção no munícipio, mas especializou as propriedades com produção de suínos e aves na forma integrada, o aumento da produção leiteira, o cultivo de frutas e a diversificação da produção de grãos. Este processo deu novo impulso econômico ao município e estimulou as lideranças políticas e a comunidade a buscar a emancipação. No dia 11 de setembro de 1985, foi realizada uma reunirão no salão do Grêmio Esportivo Tresarroiense na qual se constatou que Três Arroios possuía os requisitos para ser emancipado. Com a aprovação dos presentes uma nova Comissão Pró-Emancipação foi eleita. No dia 20 de setembro de 1987 realizou-se o plebiscito com a presença de 1417 eleitores, dos quais 1342 votaram SIM. A Lei Estadual n.⁰ 8.422 de 30 de novembro de 1987 oficializou a criação do município de Três Arroios. Três Arroios na década de 1980, após a emancipação Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios Após a emancipação, Três Arroios gradativamente organizou sua infraestrutura. Com autonomia administrativa os serviços à população se tornam mais acessíveis. O município possui um dos melhores IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do país. O desenvolvimento local oportunizou o aumento no núcleo urbano e a diversificação do comércio local e do setor de serviços. O turismo é uma atividade que aos poucos começa a aproveitar seu grande potencial em razão das águas termais e das belezas naturais. O setor industrial, em expansão, contribui para a melhora dos índices econômicos. A sustentabilidade é o grande desafio para o futuro, de forma que o município se desenvolva e mantenha a qualidade de vida de sua população. [ 191 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Vista aérea de Três Arroios em 2015 Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios Centenário de colonização e a valorização da história A comemoração que uma comunidade faz no centenário de sua colonização marca a coletividade, celebrando as realizações de gerações que se sucederam na construção daquele povoado, depois uma vila, mais tarde uma cidade. Estes momentos festivos são mobilizados, para reforçar os laços identitários, e promover uma memória, valorizando a trajetória histórica dos membros desta comunidade. Pois como aponta Gillis Nós temos que ser lembrados de que memória e identidades não são coisas fixas, mas representações ou construções da realidade, fenômenos subjetivos em vez de objetivos. Estamos constantemente revendo nossas memórias para adaptar as nossas identidades atuais. Memórias nos ajudam a fazer sentido no mundo em que vivemos; e “trabalho de memória” é, como qualquer outro tipo de trabalho físico ou mental, embutido em relações complexas de classe, gênero e poder que determinam o que relembrado (ou esquecido), por quem e para que fim.7 No ano de 2017, Três Arroios comemorou o centenário da colonização e o 30º aniversário de emancipação. O poder público municipal promoveu um conjunto de atividades para celebrar a data reconhecendo o trabalho e dedicação do povo tresarroiense e de entidades que contribuíram com o desenvolvimento social, econômico e cultural do município. Neste sentido, memórias foram mobilizadas neste contexto para valorizar a trajetória histórica dos habitantes de Três Arroios, evidenciando suas memórias em torno das celebrações do centenário do município que coincidiu com o trigésimo aniversário de emancipação política. Entre as atividades da programação do centenário ganhou destaque a Maratona Fotográfica, que possuía como tema: “Registros além da Memória - Resgatando o Centenário da nossa História”. O principal propósito era envolver a população na busca por registros fotográficos para valorizar o legado deixado pelos GILLIS, John. Memory and Identity: the History of a Relationship. In: GILLIS, John (ed.) Commemorations: the politics of national identity. Princeton: Princeton University Press, 1994. 7 [ 192 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS colonizadores do município. Mais de 120 fotografias foram inscritas, revelando imagens, que muitas vezes, ficam guardadas em álbuns de família 8. As fotos participantes foram ampliadas e tratadas por estúdio especializado. Em seguida, foram disponibilizadas a um corpo de jurados, que escolheu as melhores, através de vários critérios. Em evento na Casa da Cultura, ficaram em exposição para visitação do público. Os vencedores com as melhores fotos foram premiados e o conjunto de fotos participante da Maratona foi amplamente divulgado por meio de uma exposição itinerante que percorreu diferentes locais do município. Hoje estas imagens compõem o acervo do Museu Municipal de Três Arroios. A maratona fotográfica foi premiada em primeiro lugar na área cultura do 2⁰ Prêmio Boas Práticas na Gestão Municipal promovido pela FAMURS (Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul)9. A mobilização da comunidade foi o principal resultado da maratona, uma vez que olhar as fotografias antigas possibilitaram refletir sobre a trajetória de vida por ela percorrida, onde as imagens apresentam um valor importante para a memória visual e sociocultural de um povo e seu ambiente de vida, na perspectiva de uma releitura histórica do espaço em que esta população está presente há um século. Evento de entrega da premiação aos vencedores da Maratona Fotográfica Fonte: Acervo da Diretoria de Meio Ambiente de Três Arroios Desta forma, a maratona mobilizou a memória da comunidade sobre seu passado e seu significado no presente. Pollak destaca entre as características da memória, está o a condição de que ela é seletiva. Nem tudo fica gravado, nem tudo fica registrado 10. O caráter seletivo da memória é reforçado pela noção de pertencimento afetivo11 ao grupo ao qual um determinado indivíduo pertence, pois o sentimento de continuidade presente naquele que se lembra é o que faz com que uma dada memória permaneça. “Assim, situações vividas só se transformam em memória se aquele que se lembra sentir-se afetivamente ligado ao grupo ao qual pertenceu. Aliás, ao qual pertence, pois só se faz parte de um grupo no passado se se continua afetivamente a fazer parte dele no presente”12. A memória, apesar de parecer algo estritamente individual, tem por suporte um grupo social, com o qual a mesma é compartilhada, sem realizar uma ruptura entre o passado e o presente porque só Projeto da Maratona Fotográfica “Registros além da Memória- Resgatando o Centenário da Nossa História”. Prefeitura Municipal de Três Arroios. 9 Projeto de Três Arroios é vencedor na categoria Cultura do Prêmio Boas Práticas da FAMURS. Jornal Boa Vista, Erechim, edição do dia 06 de julho de 2018. 10 POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. 11 Noção elaborada por M. Halbwachs citada por D’ALÉSSIO, Márcia Mansur. Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 13, n. 25/26, set/92-ago/93, p. 98-9. 12 D’ALÉSSIO, p. 98. 8 [ 193 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS retém do passado aquilo que ainda é capaz de viver na consciência do grupo que a mantêm. Mas ao mesmo tempo em que essa memória é seletiva e mantida por um determinado grupo, ela também é uma construção, na medida em que está sujeita a flutuações, transformações e mudanças constantes, mediadas pelo presente em que o grupo vive, de modo que a memória é também uma construção do passado e está aberta e em constante evolução13. Assim, as pessoas que fazem parte de um determinado grupo mantêm suas lembranças, que são pessoais e, ao mesmo tempo, coletivas, pois como explicou Pollak com base nos elementos constitutivos da memória, esta seria composta por acontecimentos, personagens e lugares e que os indivíduos têm experiências pessoais, das quais participam diretamente e experiências do grupo, com as quais têm contato e que nem sempre participa, mas que marcam de tal forma uma coletividade que ganham destaque e passam a ser incorporados nas narrativas dos que compõem o grupo. O município de Três Arroios valoriza muito as tradições culturais dos primeiros colonizadores, seu passado e sua história. Preserva lugares, espaços e memórias que são passadas de geração a geração. A população se sentiu valorizada, ao buscar em suas residências, os registros antigos em fotografias, para compartilhá-los com toda a comunidade. Deste modo, contribuiu para o sucesso da maratona fotográfica não só no sentido formal do evento, mas principalmente na mobilização da memória coletiva. A partir do século XXI houve um esforço para que a história local fosse registrada. Três publicações, com apoio do poder público, foram elaboradas: Conhecendo Três Arroios de Alexandre Zahner, Três Arroios: Nossa História de autoria da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto, e Cem Anos de História: Três Arroios-RS também de autoria da Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto. As publicações versam sobre a história do município desde a colonização até o ano da respectiva publicação (2004, 2013 e 2017). Escritos numa perspectiva factual, são evidenciados os principais passos do desenvolvimento econômico, político e cultural de Três Arroios. Embora relevantes como fontes de informação, estas obras carecem de uma reflexão mais profunda sobre o significado histórico dos eventos relatados. É significativo que das três obras, duas tenham sido publicadas, respectivamente, nas gestões de Lírio Antônia Zarichta e Luís Valdecir Pertuzatti, eleita em 2012 para o período 2013 a 2016, e reeleita neste ano, para o período 2017 a 2020. A valorização da história e da cultura estão presentes na política de gestão desta administração, que vem desenvolvendo estratégias para que a memória seja preservada e os munícipes conservem as referências do passado. Umas das ações mais significativas desta política de valorização da história municipal, foi realização do restauro da Casa Canônica, concluído no ano de 2016. A edificação foi cedida em comodato para a Prefeitura Municipal que com recursos da Lei de Incentivo à Cultura (LIC) do RS implantou a Casa da Cultura. A Casa Canônica foi construída na década de 1940 e tornou-se uma das referências arquitetônicas de Três Arroios. Em essência sua preservação por meio do restauro e atribuição de uso como Casa da Cultura, consubstancia o que Nora articula com o conceito de “lugares de memória”. Para ele "os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notoriar atas, porque estas operações não são naturais"14. Partindo desta premissa, os lugares de memória são como espaços de ritualização, onde uma “memóriahistória” permite a representação de lembranças comum dos indivíduos, construindo uma narrativa que se apresenta coletiva, mesmo composta por particularidades de cada indivíduo. Em função dessa identidade coletiva, os grupos desenvolvem símbolos que se tornam comum a todos, como representações de sua identidade. Dessa forma a memória é variante, se projetando em diversos símbolos, espaços e tempos, os lugares de memória, que permite que o indivíduo estabeleça identificação com seu espaço de vivência. Nesta perspectiva, o processo de restauro da Casa Canônica buscou adaptar a edificação ao novo uso, uma Casa de Cultura, que por sua finalidade, reafirma uma função de memória para um patrimônio 13 14 POLLAK, p. 200-212. NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, nº 10, dezembro de 1993. [ 194 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS identitário de Três Arroios, seja por seu símbolo religioso, arquitetônico ou mesmo pelo seu uso atual. Para tanto, algumas intervenções visando melhorar os espaços foram feitas, porém sempre deixando claro para o visitante o que é material original e o que foi inserido atualmente. [ 195 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Casa Canônica antes e no início das obras de restauro Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios Casa Canônica durante as obras de restauro Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios A madeira, elemento de grande importância para a edificação foi tratada e conservada, retirando-se os forros para manter aparente a estrutura de cobertura e valorizando o trabalho magnífico de carpintaria da época. O restauro valorizou a história e memória coletiva ao mostrar a importância do patrimônio histórico às futuras gerações e preservar a edificação que é parte da identidade do município. [ 196 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Casa Canônica após a conclusão das obras de restauro Fonte: Acervo Museu Municipal de Três Arroios A edificação abriga espaços administrativos e conta com sala de estudos e cozinha experimental para cursos e oficinas, um auditório para palestras e eventos culturais, e um espaço privilegiado no sótão onde será implantado o Museu Municipal que busca preservar os testemunhos materiais da história municipal e valorizar a identidade do povo tresarroiense. A reescrita da história no Museu Municipal As funções básicas de um museu são apresentadas pela nova museologia com um tripé de atuação bem definido: preservação, pesquisa e comunicação. Para Desvallées e Mairesse15, essas funções podem ser organizadas por “[...] preservação (que compreende a aquisição, a conservação e a gestão das coleções), a pesquisa e a comunicação. A comunicação, ela mesma, compreende a educação e a exposição”. É imprescindível perceber que essas funções não são executadas individualmente, elas exigem um comprometimento coletivo e inter-relacionado. Ao longo de 2018, a Prefeitura Municipal de Três Arroios investiu na contratação de assessoria técnica especializada em museologia para a implantação do Museu Municipal de Três Arroios. Isto possibilitou que os trabalhos efetivamente ocorressem com base nos princípios e técnicas apropriadas, resultando no projeto da exposição de longa duração que está em processo de montagem. Com base no tripé de atuação museológico, a equipe contratada junto com a equipe da Prefeitura desenvolveu atividades de pesquisa, preservação e comunicação para que a exposição de longa duração cumprisse seu objetivo maior, o de valorizar a memória coletiva dos habitantes de Três Arroios que por meio de uma narrativa que promove reflexões sobre a história do município. Uma pesquisa sobre a história do município foi realizada a partir da leitura das obras produzidas no município, por livros publicados sobre Erechim, município do qual Três Arroios obteve sua emancipação, entrevistas com moradores, consulta a fotografias do acervo do Museu e de particulares, pesquisa em documentos no Arquivo Histórico de Erechim, Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul, na Prefeitura Municipal e nos museus da região do Alto Uruguai no Norte do estado gaúcho. Foi possível construir uma nova abordagem para a trajetória histórica e cultural do município, promovendo uma “reescrita da história” por meio de temas relevantes e de uma narrativa que valoriza a memória coletiva ao invés dos fatos de forma isolada, evidenciando pontos cruciais para compreender o município. DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Tradução: Bruno Brulon Soares, Marília Xavier Cury. ICOM: São Paulo, 2013. p. 22-23. 15 [ 197 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Na exposição, estes temas foram divididos por núcleos temáticos que evidenciam a formação do núcleo colonial, a evolução política, as transformações que marcaram um povoamento com agricultura de subsistência para uma agricultura comercial, as indústrias artesanais, a música problematizada como parte da identidade local, e o papel da ordem religiosa franciscana na formação de Três Arroios, quando estruturou a assistência religiosa, educacional e social nos primeiros tempos do povoado, assumindo funções que eram, a princípio, dever do Estado. Um destaque é a formação dos espaços de sociabilidade do município, marcados por muito tempo pelas festas de família, casamentos, festas religiosas, e principalmente pelas Casas Comerciais, popularmente conhecidas como bodegão. Estes estabelecimentos ofereciam ao cliente o necessário para a sobrevivência da sua família. Era o local para as transações financeiras, as trocas comerciais e a reunião de amigos. Nestes espaços se discutiam problemas do local e as possíveis soluções, se tinha acesso as notícias que chegavam de outros locais por meio do comerciante, e, se podia ter acesso a um pouco de lazer, em meio as duras rotinas da lida na agricultura. Como recurso expositivo, foi montada uma casa comercial, semelhante as existentes em Três Arroios, nas décadas de 1940 e 1950. O visitante poderá reviver esta experiência e/ou ter contato com esta memória. A narrativa da exposição utilizou como estratégia de comunicação a seleção de imagens e a produção de textos explicativos, que em conjunto com o acervo, oportunizam uma leitura e reflexão sobre a história do município, ativada por uma memória coletiva. O acervo a ser exposto, foi coletado com base na pesquisa temática. Deste modo, os objetos recebidos em doação foram fruto de uma seleção prévia, em que mais do que a quantidade, se privilegiou a qualidade do acervo e seu potencial de contribuir para a construção da narrativa histórica. Todo o acervo passou por tratamento técnico de conservação preventiva, visando melhorar a sua condição de exposição e sua preservação, pois ao aceitar uma peça a instituição assume toda a responsabilidade pela mesma, devendo mantê-la como suporte da memória local. Deste modo, o trabalho de conservação, colabora para a preservação do acervo existente e reforça a importância do tripé de atuação da museologia. Por fim, a exposição é para o público, a face mais visível do trabalho dos museus. É na exposição, principalmente na de longa duração, que as instituições museológicas apresentam, por meio das narrativas construídas, o conteúdo que pretendem comunicar. No caso do Museu Municipal de Três Arroios, a narrativa é construída sobre a história do município, cuja sede, fez um século de existência em 2017. Como forma de ampliar as possibilidades de conhecimento sobre a história local, a narrativa da exposição oferece uma leitura autônoma ao visitante. Mais do que construir uma única versão, a divisão em temáticas relevantes, permite que o público, por meio de suas memórias, construa sua compreensão do processo histórico municipal. Assim, a narrativa histórica compreende uma função mais ampla do que o simples fato de expor um tema. Ela necessariamente deve provocar no seu leitor uma reflexão sobre a sua condição de participante desta história. O que diferencia a narrativa histórica clássica, presente em geral nos livros, em relação a narrativa da exposição, é que no museu, o visitante faz seu percurso permeado por textos, imagens e testemunhos materiais da história, confrontando o visitante com seu passado, vivido diretamente por ele ou pelos seus antepassados. A ativação da memória coletiva torna o visitante sempre um co-autor da exposição. No caso específico do Museu Municipal de Três Arroios, a exposição oportuniza uma narrativa histórica que possui um fio condutor sobre a trajetória de cem anos de colonização. Entretanto, esta narrativa não é linear, e aborda os temas que a pesquisa revelou como mais importantes para a cultura dos habitantes do município. A disposição do conteúdo fornece uma síntese histórica de Três Arroios para os turistas, mas principalmente, uma explicação mais profunda sobre a identidade local aos habitantes do município. Conclusão [ 198 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A narrativa da história pode chegar ao público por diferentes meios. As exposições museológicas permitem apresentar narrativas sobre a história de forma sintetizada mesclando textos, objetos e imagens, compondo um roteiro de interpretação ao visitante. Entretanto, cada visitante interpreta a narrativa a partir das suas experiências pessoais, ativando diferentes conhecimentos e memórias vividas junto ao coletivo. Isto faz que, a narrativa proposta, com base na memória coletiva, enfatize a autonomia do indivíduo frente ao conteúdo, oportunizando reflexões sobre a trajetória histórico-cultural. As questões centrais, abordadas em cada núcleo da exposição, ativam reflexões sobre as principais transformações e permanências nos saberes e fazeres locais, colocando os visitantes como sujeitos de sua própria história. Por fim, além de um ponto turístico relevante para o município e região, o museu será um espaço importante para a prática pedagógica, o diálogo e a promoção da memória coletiva, estando aberto ao público, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. CHIAPARINI, Enori José et all. Erechim: retratos do passado, memórias do presente. Erechim: Graffoluz, 2012. D’ALÉSSIO, Márcia Mansur. Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 13, n. 25/26, set/92-ago/93. DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Tradução: Bruno Brulon Soares, Marília Xavier Cury. ICOM: São Paulo, 2013. p. 22-23. GILLIS, John. Memory and Identity: the History of a Relationship. In: GILLIS, John (ed.) Commemorations: the politics of national identity. Princeton: Princeton University Press, 1994. IBRAM. Subsídios para a elaboração de planos museológicos. Brasília DF 2016. JULIÃO, Letícia. Museu, Patrimônio e História: Cruzamentos Disciplinares. In: XVI ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 2015, João Pessoa: ANCIB. p. 95 LADKIN, Nicola. Gestão do Acervo. In: Como Gerir um Museu: Manual Prático. França: ICOM, 2004. p. 1732. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001847/184713por.pdf>. p. 18-25. MICHALSKI, Stefan. Conservação e Preservação do Acervo In: Como Gerir um Museu: Manual Prático. França: ICOM, 2004. p. 55-98. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001847/184713por.pdf>. p.57 NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, nº 10, dezembro de 1993. POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v.5 n.10. 1992. PREFEITURA MUNICIPAL DE TRÊS ARROIOS. Cem Anos de História: Três Arroios - RS. Porto Alegre: Novagraff, 2017. PREFEITURA MUNICIPAL DE TRÊS ARROIOS. Três Arroios: nossa história. Porto Alegre: Corag, 2013. ZAHNER, Alexandre. Conhecendo Três Arroios: o Príncipe dos Vales do Alto Uruguai. Erechim: Editora São Cristóvão, 2004. [ 199 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O início da década de 1960 e a formação do Sindicato Dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo: quem são os primeiros associados? Milena Moretto1 Resumo: A década de 1960, no Rio Grande do Sul, é marcada pela consolidação de diversos sindicatos rurais, justamente pela formação da FAG- Frente Agrária Gaúcha- em outubro de 1962, pela iniciativa de bispos da Igreja Católica. Segundo Tedesco, a FAG tornou-se a “porta-voz de sua instituição de origem, porém, com ênfase política no meio rural” (p. 300, 2017). Sendo assim, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo (STR) foi fundado por agricultores com a participação do Irmão Urbano Maximo, o qual representava a FAG nesta região, no ano de sua consolidação. Percebemos neste trabalho os primeiros associados do STR e quais eram as principais características procuradas para agregarem ao quadro social da entidade, como, por exemplo, a questão de que os associados eram pequenos proprietários de terras, variando de 3,2 hectares até 35,8 hectares; sendo que, em grande parte, a terra explorável diminuía consideravelmente, tendo como plantação principal produtos como a soja, o trigo e o milho. Além da agricultura, a maioria das residências possuíam criação de bovinos, equinos e suínos, e não apresentavam, em grande parte, implementos agrícolas, ou quando tinham eram simples, como carroça e arados. O STR, além de filiar pequenos proprietários de terras, procurava incorporar em sua instituição arrendatários, parceiros, posseiros e uma grande parte de seus membros eram assalariados rurais. Esses dados, citados acima, foram retirados das primeiras fichas de associados presentes no STR de Passo Fundo, e são constatações iniciais de uma pesquisa para TCC, onde será abordado com maiores informações a constituição desse Sindicato, bem como quem são as pessoas que o construíram. Introdução Este trabalho tem por objetivo compreender a consolidação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo (STR) no início da década de 1960 e quem foram os seus primeiros associados. Em um primeiro momento contextualiza-se o surgimento do STR, o qual foi fundado por agricultores com a participação do Irmão Urbano Maximo, sendo que o mesmo representava a Frente Agrária Gaúcha (FAG) nesta região, no ano de sua consolidação. Além disso, apresenta-se a importância dos movimentos sociais pela luta de terra, como por exemplo a FAG, para o surgimento dos sindicatos rurais no Rio Grande do Sul. Em um segundo momento percebe-se os primeiros associados do STR e quais eram as principais características procuradas para agregarem ao quadro social da entidade, como, por exemplo, a questão de que os associados deveriam ser pequenos proprietários de terras ou assalariados rurais. Este tópico será divido entre o sujeito, a ocupação do sujeito, e a posse do sujeito, sendo que se extraiu os dados das primeiras fichas de associados presentes no STR de Passo Fundo, e são constatações iniciais de uma pesquisa para TCC, onde será abordado com maiores informações a constituição desse Sindicato, bem como quem são as pessoas que o construíram. A década de 1960 e o início das formas organizativas em torno da terra de Passo Fundo Nos primeiros anos de 1960 percebe-se novas formas organizativas no cenário nacional, estadual e regional com a pretensão de reivindicar reformas, uma legislação favorável aos pequenos agricultores, e complementações sociais de direitos que já existiam no meio urbano, isto influenciado pelas Ligas Camponesas, movimento de transformações sociais e políticas no campo a partir da metade de 1950, além do Graduando do V nível do curso de História da Universidade de Passo Fundo. Atua como bolsista voluntária de Iniciação Científica sob a orientação da Professora Dra. Ironita Policarpo Machado com o Projeto de Pesquisa Práticas político-jurídicas e econômicas no processo de ocupação do espaço e da constituição da sociedade sul brasileira entre 1930 a 1990. Email: milenamoretto@hotmail.com. 1 [ 200 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Partido Comunista Brasileiro (PCB), dos movimentos da Igreja Católica, como por exemplo a Frente Agrária Gaúcha (FAG) e a Ação Popular (AP). Salienta-se que a partir de 1963 entra com mais ênfase uma força do Estado. As Ligas Camponesas foram as grandes impulsionadoras do movimento pela reforma agrária no Brasil. Iniciadas em Pernambuco, mais precisamente em Vitória de Santo Antão, as Ligas influenciaram diversas mobilizações de camponeses, os quais segundo Nora (2002) aderiram as ideias que pautavam-se na defesa dos interesses dos posseiros e foreiros, que, explorados pela estrutura do latifúndio subutilizado e pela política de concentração de terras, aceleravam o movimento de migração constante; organizavam resistência e procuravam agir como frente legal das lutas dos camponeses; reivindicavam a extensão dos direitos aos despossuídos e, também, acionavam, juridicamente, os desmandos dos latifundiários. O Partido Comunista do Brasil (PCB) foi outra grande força no meio rural na metade da década de 1950 e início de 1960, onde os militantes atuaram com grande força na União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB). Segundo Nora (2002), diferentemente das Ligas Camponesas o PCB desejava uma revolução no Brasil onde a primeira etapa, não deveria ser socialista, mas democráticopopular, de caráter antiimperialista e antifeudal. Sendo que a reforma agrária era entendida como a transformação radical da estrutura fundiária e liquidação do latifundiário, mantendo-se como uma bandeira central do partido, ao lado da reivindicação de aplicação da legislação trabalhista aos trabalhadores do campo. Entretanto, tais reivindicações passavam a ser condicionadas à formação de uma “frente única”, que reunisse o conjunto de forças interessadas no combate ao imperialismo norte-americano: a classe operária, os camponeses, a pequena burguesia urbana, a própria burguesia e, ainda, os setores latifundiários que possuíssem contradições com o imperialismo norte-americano. A revolução democrático-popular, vislumbrada pelo PCB, passava pela defesa de um caminho pacífico dentro da legalidade. Já a Igreja Católica, é a terceira organização de extrema importância para a compreensão do surgimento do sindicalismo rural e da luta pela terra, nesta existia o chamado sindicalismo cristão, protagonizado no Rio Grande do Sul pela Frente Agrária Gaúcha, o qual objetivava o combate ao comunismo e seu princípio básico era a rejeição da luta de classes e defesa da harmonia social. Ressalta-se, contudo, que exista ainda a Ação Popular (AP), oriunda dos setores leigos da Igreja e que possuíam posições mais radicais de apoio à luta camponesa. Nesta efervescência rural brasileira surge os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR), sendo que no município de Passo Fundo este consolidou-se em 25 de julho de 1962, organizados pela Frente Agrária Gaúcha, apoiada pela Igreja Católica do Rio Grande do Sul, a qual necessitava do meio rural para um afrontamento contra as Ligas Camponesas, ao Master e algumas ações apoiadas pelo Governo Brizola. Segundo Tedesco e Carini (2007), a Igreja conquistava os proprietários de terras através de um discurso em torno da função social da propriedade, da necessidade da reforma agrária dentro da lei e, em geral, nas terras públicas e nos latifúndios improdutivos com justas indenizações, além disso, criticava o comunismo e o capitalismo liberal depredador e concentrador de renda e propriedade. No entanto, ressalta-se que a instituição enfatizava a preservação da propriedade privada, e por consequência, a preocupação de não alterar as bases do sistema capitalista. Para o início do STR de Passo Fundo foram realizadas diversas reuniões, buscando a adesão de novos agricultores nas ideias sindicais católica, contendo a participação do Irmão Urbano Maximo, o qual representava a FAG nesta região. A ação da Igreja Católica, via FAG, em Passo Fundo foi muito presente, esta pautava-se como representante dos trabalhadores rurais assalariados e dos pequenos produtores, para Bassani (1986), sua ação sindical regulava as ações entre classes no setor agrícola, atuando dentro da legislação vigente, tendo sempre presente que a questão agrária era resultado da má distribuição de terras e do uso de métodos e técnicas atrasadas no processo produtivo, não se colocando, por exemplo, contra o latifúndio, mas sim defendendo os interesses dos pequenos proprietários. [ 201 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O protagonista do STR: reconhecendo os primeiros associados Para a compreensão do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo é necessário reconhecer quem foram os seus primeiros filiados, os quais aceitaram ideias oriundas da FAG e da Igreja Católica, e construíram um protagonismo sindical rural na região norte do Rio Grande do Sul. Salienta-se que, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo prossegue na ativa com características semelhantes em seu quadro social oriundas da década de 1960. Para a construção deste subtítulo foram extraídos os dados das fichas de filiação do STR, as quais contém na primeira folha o nome do associado, o seu número, a data de nascimento, sua filiação, o nome do conjugue e dados do mesmo, relação dos dependentes, residência do filiado, a data de admissão, o pagamento das mensalidades, o fundo de assistência medica e outros tipos de assistências ofertadas pelo sindicato. A segunda folha apresenta informações sobre a ocupação/patrimônio, relatando sobre o filiado, se o mesmo é proprietário e de quantos hectares de terras, quanto desses hectares são exploráveis e o quanto são exploradas, se possuem potreiro, mato, se o proprietário, arrendatário, parceiro, posseiro e/ou assalariado. Na segunda folha, também, aborda-se as principais culturas e criações, além de quais são os bens imóveis dos associados e se estes possuem implementos agrícolas. Para este trabalho foi utilizado as dez primeiras fichas de filiação do ano de 1962, ano de consolidação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo, as quais estão presentes no arquivo particular do sindicato. Os apontamentos retirados das fichas serão divididos em três pontos: o sujeito, a ocupação do sujeito, e a posse do sujeito, o primeiro aponta quem é o sujeito e onde este localiza-se, o segundo ponto exibe a propriedade deste indivíduo e o terceiro aspecto retrata qual era o cultivo, a criação e os bens deste associado. O primeiro item é o sujeito, nele é possível compreender quem são os associados do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo, fazendo com que seja apresentado de forma simples o pequeno proprietário de terra ou assalariado rural da década de 1960 no norte do Rio Grande do Sul. Pode-se retirar deste primeiro ponto dados pessoais dos proprietários, para que assim se possa perceber qual era o sexo predominante, se havia conjugue e quais os dados do mesmo, se o sindicalista possuía filhos e a quantidade deles, qual era a localização de sua moradia, abordando cidade e distrito pertencente, se a mensalidade estava em dia, bem como o dinheiro referente as assistências oferecidas pelo sindicato, através destes últimos dados pode-se identificar qual era a renda mensal/ semestral dos pequenos proprietários, se estes conseguiam pagar as mensalidades e qual era a média de arrecadação do Sindicato mensalmente/semestralmente. Como constatações iniciais percebe-se que os primeiros sindicalistas são pertencentes ao sexo masculino, sendo que, destes associados apenas um não é casado. Em relação a filhos constata-se que apenas um não apresenta filho e os demais possuem entre 1 a 12 filhos. Todos eram assíduos em seus pagamentos de mensalidade e do fundo de assistência médica, compreendendo assim que todos continham uma renda fixa, no entanto nesta fase inicial do trabalho não é possível ainda afirmar qual era a renda mensal destes pela falta de dados para as comparações. No gráfico abaixo percebe-se a localização das residências dos associados, compreendendo que em oito dos dez primeiros sindicalistas residiam no primeiro distrito, isto é, a região de Passo Fundo, mais precisamente na área do Jabuticabal, de Ernestina e de São Miguel, sendo que apenas dois se destoam residindo na região de Coxilha. [ 202 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Fonte: Fichas de filiação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo. O segundo ponto é a ocupação do sujeito, neste tópico é possível perceber como era o patrimônio dos sindicalistas rurais no início do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo, e a ocupação destas terras dos pequenos proprietários. Apresenta-se neste tópico se este filiado era proprietário de terra, relatando quanto de terra possuía e o quanto desta era explorada, além disso ele poderia ser também, ou apenas, arrendatário, parceiro, posseiro e/ou assalariado rural. Os dados retirados para a apresentação deste ponto foram os pertencentes a segunda folha no quesito ocupação/ patrimônio, constata-se que um dos associados não escreveu seus dados sobre este ponto. Salienta-se que neste início de sindicato apenas um é parceiro de terra, no entanto, este também era proprietário. Constata-se que o STR era formado exclusivamente por pequenos proprietários de terra, com propriedades variando de 3,2 hectares à 35,8 hectares. No gráfico abaixo apresenta-se o tamanho da propriedade dos dez primeiros associados, percebendo que quatro possuem uma propriedade variando entre 25 à 35,8 hectares, três constatam uma propriedade entre 3,2 à 15 hectares, e dois apresentam uma propriedade entre 15 á 25 hectares.Contudo, ressalta-se que a terra explorada diminuía consideravelmente, como por exemplo o caso do primeiro filiado o qual é proprietário de 25 hectares, sendo que apenas 18 ha. eram exploráveis, e no caso dele apenas era explorado 8 ha., os demais 17 ha. eram divididos entre potreiro e mato, não podendo ser assim utilizado. [ 203 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Fonte: Fichas de filiação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo. O terceiro segmento é a posse do sujeito, neste ponto debate-se como era formado as primeiras moradias e o que estes pequenos proprietários de terras produziam no norte sul-rio-grandense na década de 1960, apresentando seus cultivos e suas criações. Ressalta-se que, é de suma importância compreender o que era produzido nesta época para assim posteriormente, analisar como o pequeno proprietário de terra/ sindicalistas estava inserido na sociedade e na produção de alimentos. Verifica-se que o principal cultivo no início do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo era a soja, sendo que oito dos dez primeiros filiados produziam no mínimo 1 hectare dela, além de sete produzirem milho, quatro produzirem trigo, e mais algumas plantações como mandioca, feijão, batata e tomate. Em relação a criação compreende-se que todos os filiados possuíam bovino, oito possuíam suíno e sete equino, apresentavam, também, algumas criações de galinhas, ovelhas e mulas. Todos os associados continham casa de madeira, variando de 5x8 m² a 8x10 m², 8 possuíam galpão, apenas dois continham algum tipo de automóvel, sendo que os demais implementos agrícolas eram simples como arados e carroças. Considerações finais A pesquisa referente a consolidação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Passo Fundo (STR) no início da década de 1960 e quem foram os seus primeiros associados está em fase inicial, sendo que o processo a qual se encontra, de digitalização de fontes, é fundamental para a continuidade da mesma. Todavia, já se pode constatar que os primeiros associados residiam numa região próxima de Passo Fundo, a propriedade variava entre 3,2 hectares até 35,8 hectares , sendo que, em grande parte, a terra explorável diminuía consideravelmente, a plantação principal era produtos como a soja, o trigo e o milho. Além da agricultura, a maioria das residências possuíam criação de bovinos, suínos e equinos, e não apresentavam, em grande parte, implementos agrícolas, ou quando tinham eram simples, como carroça e arados. O STR, além de filiar pequenos proprietários de terras, procurava incorporar em sua instituição arrendatários, parceiros, posseiros e uma grande parte de seus membros eram assalariados rurais. [ 204 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Referência: BATISTELLA, Alessandro. O movimento operário e sindical em Passo Fundo (1900-1964): história e política. 2007. 267 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2007, p.267. BASSANI, Paulo. Frente Agrária Gaúcha: ações políticas e ideológica da Igreja Católica no movimento camponês. Porto Alegre: UFRGS, 1986, p.166. LINHARES, Maria Yedda; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Terra Prometida: Uma História da Questão Agrária do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1999, p.211. MACHADO, Ironita P. Entre Justiça e Lucro: Rio Grande do Sul 1890-1930. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2012, p.336. MACHADO, Ironita A. Policarpo et al. Indígenas, quilombolas e agricultores: história e conflitos agrários no sul do Brasil. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2018, p.116. NORA, Helenice Aparecida Derkoski Dalla. A Organização Sindical Rural no Rio Grande Do Sul e o Surgimento do Sindicato dos Trabalhadores Rurais De Frederico Westphalen (1960 – 1970). 2002. 150 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2002, p. 151. PEREIRA, Josei Fernandes. ELOS E CORRENTES: História do Cooperativismo e do Crédito no Rio Grande do Sul (1902-1930). Porto Alegre: Sescoop/rs, 2013, p.213. PICOLOTTO, Everton Lazzaretti. 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Analisar como são realizadas estas intervenções e todo o seu processo desde o surgimento dos imóveis até os dias atuais é essencial para que seja possível compreender e entender o que foi modificado, qual o grau das mudanças realizadas em todos os aspectos, se estas foram de âmbito positivo ou negativo, se houve preocupação com o histórico das edificações, quais as técnicas utilizadas, buscando assim entender se as funções ali desenvolvidas são realizadas com aptidão sem prejudicar os elementos históricos, mantendo todas suas características e importâncias culturais preservadas e protegidas para as futuras gerações. Na maioria dos casos as adaptações são indispensáveis para o imóvel comportar tal função, porém, muitas vezes as transformações se tornam irreversíveis, muitas devido ao descaso, falta de conhecimento dos usuários ou pela falta de execução de um projeto adequado. Atualmente muitas destas intervenções causam uma descaracterização de certas edificações, através de alterações na sua arquitetura, estrutura e interior, perdendo parte de sua essência histórica e identidade. "A maioria dos edifícios antigos deve sua longevidade ao fato de ter sido continuadamente utilizada. Ao longo de sua história, porém, eles sofreram alterações para atender a novas funções, que, não raras vezes, resultaram na modificação de sua aparência. O que hoje conhecemos é, frequentemente, o resultado de sucessivas adaptações que possibilitaram sua sobrevivência." (LYRA, 2006, p. 53). A intervenção em uma edificação que já tem uma identidade definida requer muita cautela, ainda mais quando se tratam de características arquitetônicas que representam uma cultura ou período específico. A combinação entre o novo e antigo pede sensibilidade para que haja integração entre ambos e a valorização desejada da edificação. O monumento arquitetônico, seja ele qual for, representa um manancial de histórias e situações herdadas repletas de conteúdos imprescindíveis. Qualquer projeto que se realize neste patrimônio deve reconhecer e refletir a responsabilidade e o respeito pela autenticidade do legado, propondo uma intervenção de continuidade adaptada, tirando partido das particularidades (muitas vezes exclusivas) de cada testemunho. (VAZ, 2009). Princípios de Intervenções nos Bens Arquitetônicos Devido as alterações necessárias para atender seus usuários inúmeros edifícios históricos sofrem/sofreram modificações em suas características físicas para adequar-se a determinadas funções, na maioria dos casos alterações realizadas sem o devido planejamento embora seja esse o único motivo da sobrevivência destes imóveis perante o tempo, resistindo ao abandono e esquecimento. A busca pela preservação das construções históricas vem tomando força desde a idade média e renascimento, onde os papas juntamente com alguns artistas iniciaram o processo de salvaguardar bens patrimoniais, passando a compreender a real importância dos próprios. Do mesmo modo, as civilizações romanas e gregas também reconstruíram edificações destruídas por batalhas ou pelo tempo, aplicando suas técnicas construtivas e particularidades, reutilizando-as. (VAZ, 2009) 1 Autora e mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade de Passo Fundo. E-mail: monique_villani@outlook.com 2 Autor e orientador. Professor Doutor e Pesquisador na área de Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade de Passo Fundo. E-mail: gersont@upf.br [ 206 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A readaptação, na maioria dos casos, porém, é a condição para sobrevivência do edifício quando sua função original desaparece ou quando as características de sua arquitetura já não mais satisfazem às necessidades e exigências da sociedade. A história da arquitetura é uma história de substituições e a maioria dos edifícios que sobreviveram às mudanças sociais corresponde àqueles que passaram por adaptações. Os demais foram substituídos ou abandonados. (LYRA, 2006, p.56) A reconstrução de edificações históricas por variados povos dificulta a identificação dos mesmos devido as variadas técnicas construtivas aplicadas, sem especificação de datas e responsáveis, criando uma miscigenação de cultura, isto é, muitas caraterísticas indenitárias em um mesmo monumento. Apesar da destruição de inúmeras edificações, muitas foram adaptadas por novos grupos, ganhando novas atividades e usos, logo, prolongando a vida das mesmas, onde outras sem desenvolvimento algum, sofreram pelo desaparecimento. (VAZ, 2009) Em Roma, poucas edificações da Antiguidade não se arruinaram, mantendo-se razoavelmente íntegras, ao menos em seu exterior. A razão dessa sobrevivência reside no fato de terem sido adaptadas, ao longo de sua história, a usos diversos daqueles para os quais foram concebidas. (LYRA, 2006, p. 54) Com a preservação dos monumentos ganhando valorização pela igreja e estado surgiram grandes nomes que defendiam teorias sobre a preservação e intervenção nas edificações, onde aplicavam suas teses e ideias. As linhas de pensamentos eram distintas, porém, com o mesmo objetivo, salvaguardar tudo que fosse considerado de importância histórica. Enfim, a primeira norma de conduta ligada ao “como preservar” é manter o bem cultural, especialmente o edifício, em uso constante e sempre que possível satisfazendo a programas originais. Mas isso não é fácil. O grande problema é que os movimentos preservadores sempre já encontram as construções de interesse arruinadas, mutiladas, aviltadas por acréscimos espúrios, descaracterizadas e muitas vezes irrecuperáveis no seu aspecto documental. (LEMOS, 1981, p. 69) A intervenção variava de acordo com o pensamento defendido pelo intervencionista, onde a partir disto organizava e defendia suas teorias, técnicas e práticas. Outro fator relevante para tal ação era o estado em que o bem se encontrava, o uso pretendido e sua real importância arquitetônica e histórica para o local, onde através deste levantamentos se definiam e realizavam as operações. Conforme Braga (2003), Viollet-le-Duc (1814-1879) fora um dos grandes nomes do restauro estilístico, pois tinha teorias que apoiavam a restituição da edificação, onde era importante utilizar técnicas e materiais mais atuais de construção alterando o projeto original se necessário. Por outro lado, de forma antagônica havia John Ruskin (1819-1900), defendia o anti-restauro e a conservação sobre a edificação, mas não a intervenção, onde a mesma possuía um período de vida que deveria ser respeitado. Com linhas de pensamentos que ficavam entre Le-Duc e Ruskin, Camillo Boito (1836-1914) aprovava a preservação, mas se caso fosse preciso intervir, este deveria ser feito de uma forma suave, defendendo a percepção da diferença de estilos e técnicas entre o novo e o antigo. Com outros pensamentos surgiram ainda outros grandes nomes, como Alois Riegl, Gustavo Giovanonni, Cesare Brandi, Luca Beltrami, todos criando novos conceitos sobre como preservar, conservar e o modo de intervir, onde cada um defendia suas teses e as aplicava em suas obras. Devido à necessidade de estabelecer regimentos sobre estes bens, criou-se as doutrinas internacionais, inicialmente na Europa mas que logo alastrou-se pelo mundo, havendo a busca por princípios de orientação de preservação e restauro do patrimônio arquitetônico, para que estes fossem realizados de forma padronizada e cautelosa por todos. Segundo com Braga (2003), em 1931 criou-se a Carta de [ 207 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Atenas durante o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, com objetivo principal de expressão de cultura, valorização dos monumentos, técnicas e legislação de conservação, sendo um grande marco para o início dos princípios de preservação. Somente em maio de 1964 institui-se a Carta de Veneza, onde foram reavaliados os critérios da Carta de Atenas, aprimorando-a. Conservação então definiu-se como manutenção permanente, com o entorno fazendo parte do monumento. Há o uso de técnicas modernas que devem ser reconhecidas, distinguindo as intervenções em todas as suas épocas, indiferente de seus estilos. Dentre anos outras iniciativas surgiram buscando a qualificação das restrições anteriores, foram criadas também, a Carta de Burra, Cracóvia, Conferência de Quito, Carta de Restauro, Carta de Florença, Carta de Washington, Recomendação de Paris, Carta do Patrimônio Industrial dentre outras, todas ações para aprimorar e englobar os temas relacionados. Intervenções no Brasil No Brasil, algumas iniciativas foram tomadas, legislações foram criadas sobre patrimônio, tombamentos, planos diretores, leis municipais e estaduais, mas ainda é pouco devido a grandiosidade de monumentos históricos que o país agrega, onde a maioria não possui proteção alguma, muitos deles lutando pela sobrevivência. Os governos, especialmente os estaduais, têm que aquilatar a enorme responsabilidade que lhes pesa nos ombros, representada por importantíssimos centros históricos hoje à beira da descaracterização total graças, antes de tudo, à inoperância de meia dúzia de decisões ou providencias mais demagógicas ou políticas do que efetivamente práticas e sinceramente imaginadas como base em honesta avaliação do que realmente valem aqueles bens de interesse social. (LEMOS, 1981, p. 104) Conforme Lemos (1981), a preservação é preciso pois revela relações espaciais e intenções plásticas de uma técnica construtiva histórica e de uma arquitetura uniforme ou não, estando diretamente ligada ao espaço urbano e a população que ali habita sendo portanto a identidade do local, que assim ocasiona uma ligação entre os elementos. A cidade é um acúmulo de vivências e de construções que se sobrepõem como camadas arqueológicas. Inexiste o núcleo histórico puro, e é certo que a cidade em que vivemos será o núcleo histórico do futuro. Se houver futuro – porque se a cidade que está sendo construída hoje tiver arquitetura e espaços públicos desprezíveis, a ponto de merecer ser demolida, as futuras gerações estarão desprovidas de memória e de identidade. Nessa condição, estarão, provavelmente, condenadas à barbárie. (BONDUKI, 2010, p.369) Muitas destas edificações, as mais contempladas histórica e arquitetonicamente são tombadas ou possuem algum tipo de cuidado específico, tem alguma utilização nobre como prefeituras, museus, bibliotecas, mesmo não sendo este o histórico do uso, porém, que exige uma frequente manutenção, ocasionando consequentemente a preservação das mesmas. O monumento arquitetônico, seja ele qual for, representa um manancial de histórias e situações herdadas repletas de conteúdos imprescindíveis. Qualquer projeto que se realize neste patrimônio deve reconhecer e refletir a responsabilidade e o respeito pela autenticidade do legado, propondo uma intervenção de continuidade adaptada, tirando partido das particularidades (muitas vezes exclusivas) de cada testemunho. (VAZ, 2009) [ 208 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Querer e saber “tombar” monumentos é uma coisa. Saber conservá-los fisicamente e restaurá-los é algo que se baseia em outros tipos de conhecimento. Isso requer uma prática específica e pessoas especializadas, os “arquitetos dos monumentos históricos”, que o século XIX precisou inventar. (CHOAY, 2001, p. 149) A intervenção em uma edificação que já tem uma identidade definida requer muita cautela, ainda mais quando se tratam de características arquitetônicas especiais que representam a cultura de povo ou um período histórico específico. A combinação entre elementos do novo e antigo exige muita sensibilidade e sutileza para que haja integração entre ambos, criando uma valorização ainda maior do monumento. A introdução de melhorias estruturais e funcionais torna-se inevitável, e de certa forma desejável, para assegurar a sua conveniente utilização prática face às exigências contemporâneas, pressuposto base para garantir a sua manutenção. Do mesmo modo que, embora se admita a “suavidade” de uma intervenção deste tipo, muitas vezes recorrendo a técnicas e materiais tradicionais, existe uma eminente necessidade de assumir com convicção a própria inovação que caracteriza a nossa Era e o recurso a tecnologias e materiais que não existiam na altura. Deverá ser interiorizada esta “possibilidade”, não obrigatoriamente claro, mas retendo conscientemente que a nova intervenção deverá fazer parte da história. (VAZ 2009, p.137) Muitas edificações históricas que não possuem um caráter extremamente importante para determinado local, não tem algum tipo de proteção institucional e não são de propriedade pública, são de cunho particular, onde os proprietários tem o total poder sobre o edifício, decidindo as intervenções que este sofrerá conforme as necessidades e utilidades, que na maioria dos casos não há relação ao antigo uso, passando por novas atividades. Muitas edificações que perderam sua função original não foram demolidas, mas sim reaproveitadas em algum novo uso para atender as necessidades atuais. (LYRA, 2006) A maioria dos edifícios antigos deve sua longevidade ao fato de ter sido continuadamente utilizada. Ao longo de sua história, porém, eles sofreram alterações para atender a novas funções, que, não raras vezes, resultaram na modificação de sua aparência. O que hoje conhecemos é, frequentemente, o resultado de sucessivas adaptações que possibilitaram sua sobrevivência. (LYRA, 2006, p. 53) Na maioria dos casos as adaptações são indispensáveis para comportar tal função, porém, muitas vezes as transformações se tornam irreversíveis, muitas devido ao descaso, falta de conhecimento dos usuários ou pela falta de execução de um projeto adequado. Atualmente muitas destas intervenções causam uma descaracterização de certas edificações, através de alterações na sua arquitetura, estrutura e interior, perdendo parte de sua essência histórica e identidade. Modernização: procedimento novo, que despreza de forma mais aberta o respeito que se deve ao patrimônio histórico, põe em jogo o mesmo desvio de atenção e a mesma transferência de valores pela inserção do presente no passado, mas sob a forma de um objeto construído, e não de um espetáculo. Modernizar não é, nesse caso, dar a impressão de novo, mas colocar no corpo dos velhos edifícios um implante regenerador. (CHOAY, 2001, p. 217) De acordo com Bonduki (2010), utilizar bens preservados para uso comum da sociedade como universidades, parques, habitação social, áreas de lazer, também é importante para que o patrimônio [ 209 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS especificado seja considerado coletivo e não apenas de uso alheio, criando perspectivas de preservação com a população, fazendo com que haja a conscientização da importância dos mesmos. A ideia subjacente a qualquer de uma destas “re-intervenções” é introduzir algo de novo, em menor ou maior grau. Sendo a reabilitação uma operação que pretende reintroduzir “vida” a um edifício desactivado ou devoluto, visando uma apropriação controlada, compatível e respeitadora do imóvel, adequada à herança cultural e ao ritual de espaços do objecto a reabilitar. Limita-se no fundo à introdução do mínimo indispensável ao novo uso, procurando com isso minimizar o impacto no significado cultural do lugar. Operações como a reconversão e a renovação, menos sensíveis aos aspectos da autenticidade física patente na matéria original, associam-se a intervenções mais profundas com muitas alterações e com a introdução de novos elementos. (VAZ, 2009, p. 07) Introduzir um novo uso a uma edificação requer muita sensibilidade do projetista, é necessário interferir com soluções tipológicas que não descaracterizem a mesma, devendo primeiramente estudá-la para depois intervi-la, buscando manter os valores que esta transmitiu e transmite perante toda sua história, sem comprometer sua identidade, mas sim valorizando-a. (VAZ, 2006) Intervenções Atuais Os critérios de intervenções nas edificações histórica vieram sofrendo adaptações com o tempo segundo Braga (2003). Outras iniciativas foram criadas com intensão de aprimorar estas práticas, adequando-se as necessidades da atualidade. Dentre as variadas possibilidades de se intervir em uma edificação há algumas mais utilizadas atualmente: • Restauração: busca devolver ao bem suas características, sendo esta utilizada para imóveis de grande importância histórica; • Conservação: nada mais é do que manter o bem em seu estado íntegro; • Anastilose: há a reconstituição/recomposição de alguns fragmentos da obra para deixa-la mais completa; • Retrofit: muito utilizados nos dias de hoje há a adaptação do espaço para novas atividades com atualização de instalações; • Rearquitetura: adaptação ao novo uso, criação de um anexo contemporâneo que une-se ao antigo, havendo uma conexão entre ambos. Em outras palavras, deve-se verificar se a nova função é condizente com as vocações daquela tipologia arquitetônica e, o mais importante, com a vocação daquele monumento. Embora reutilizações completamente diversas das funções originais tenham salvado do desaparecimento muitos monumentos, pode-se considerar que tais fatos foram excepcionais, possuindo cada tipo arquitetônico um leque finito de vocações de uso. (LYRA 2006, p. 57) O próprio Brasil vem sendo ótimo exemplo no prolongamento da vida de algumas edificações históricas e na execução destas ideologias, pois possui várias edifícios que sofreram intervenções [ 210 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS contemporâneas para sobreviver e que hoje são pontos de referência devido sua arquitetura, história e função recebendo muitos visitantes diariamente, muitos são museus, centros culturais e bibliotecas, com objetivos sociais voltados à população, garantido assim uma vida continua, utilização, valorização e reconhecimento dos mesmos. • SESC Pompéia: um grande modelo de intervenção que ocorreu em uma antiga fábrica de Tambores em São Paulo por Lina Bo Bardi, o estabelecimento foi construído em meados do século XIX e após anos de funcionamento veio por encerrar suas atividades. A ideia de reutilizar o ambiente ocorreu devido a arquiteta responsável descobrir que o local já era utilizado como meio social pela comunidade do entorno. Com o projeto pronto, logo iniciou-se a obra que teve início em 1977 e foi terminada em 1986. Houve então a intenção de manter a edificação existente da antiga fábrica assim como suas características iniciais e cada pavilhão passou a receber uma nova função, como administração, ateliês, restaurante, cozinha, oficinas, etc. Além disso, três novos blocos em formas prismáticas para uso esportivo foram realizados, interligados por passarelas em diferentes ângulos. Com uma área total de 23.571,00m², a obra é toda adaptada para receber seus visitantes, apresenta um conexão de uma arquitetura brutalista e industrial sendo esta a identidade marcante do local. (FLORES, MARQUES, 2014) SESC Pompéia – São Paulo Fonte: Archdaily, Pedro Kok, Fernando Stankuns, Flickr Beatriz Marques, 2013. • Pinacoteca de São Paulo: o edifício do Liceu de Artes e Ofícios foi projetado no final do século XIX em estilo neoclássico da época, porém nunca fora concluído, então em 1998 foram executadas as primeiras adaptações do edifício para receber a Pinacoteca. O arquiteto responsável Paulo Mendes da Rocha foi muito cauteloso em suas intervenções, teve como principal objetivo manter as características principais do edifício, como o tijolo aparente no interior e exterior, realizando apenas adaptações para melhorar os aspectos funcionais do local com aplicação de passarelas, rampas, escadas, coberturas, iluminação, pisos e demais elementos. A obra de 10.815,00 m² é um dos locais mais visitados de São Paulo por sua referência cultural e arquitetônica. (ALMEIDA, 2012) [ 211 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Pinacoteca de São Paulo – São Paulo Fonte: Archdaily, Nelson Kon, 2015. • Museu do Pão: localizado em Ilópolis no Rio Grande do Sul é mais um exemplar onde demonstra que as intervenções são primordiais para dar seguimento à vida das edificações. O antigo moinho de farinha de milho que estava abandonado hoje é oficina de ensino para aprendizes locais e também museu, recebendo visitação de muitas pessoas anualmente. Possui uma área de 830,00m² e a intervenção foi realizada pelos arquitetos Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, finalizada no ano de 2007. O moinho construído em 1930 todo em madeira tem características arquitetônicas colonial italiana e para sua complementação dois novos blocos foram criados em forma totalmente oposta, vidro, concreto e estrutura metálica, criando assim uma conexão entre ambas. (FERRAZ, 2012) Museu do Pão - Ilópolis Fonte: Archidaily, Nelson Kon, 2011. Com os exemplos demonstrados pode-se observar que ambas edificações estavam sofrendo com a “inutilidade”, falta de manutenção, descuido e intempéries do tempo, sendo apenas mausoléus ocupando o espaço e prestes a desaparecer em meio às construções contemporâneas, embora representassem um manancial importante de cultura e identidade para seus devidos entornos. O Museu do Pão assim como a Pinacoteca de São Paulo já apresentavam-se historicamente importantes mas não possuíam o total [ 212 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS reconhecimento, já o SESC Pompéia era visto apenas como uso industrial, que através das modernizações e adaptações ambas obras ganharam uma nova vida e um novo uso, reconhecendo assim suas memórias e identidades, sendo que hoje são edifícios extremamente importantes para as cidades onde estão localizadas. O uso destas intervenções é essencial para dar segmento à vida destas e de outras tantas edificações, para que prossigam sendo utilizadas tendo seu espaço perante o urbano, mesmo que o uso seja distinto do princípio. O cuidado com a escolha da intervenção a ser realizada e a maneira de execução é essencial para que não haja perda da identidade do edifício, sem que o novo se sobressaia ao antigo, fazendo com que ambos se destaquem mas cada um em suas peculiaridades, preservando a história e valorizando ainda mais a cultura e arquitetura do local. Por outro lado, um conhecimento adequado das técnicas construtivas empregadas em uma determinada edificação aliado ao conhecimento histórico sobre as mesmas e sobre os materiais de construção, é extremamente valioso para a datação desta obra e pode prestar importantes contribuições para a filiação da mesma. (BRAGA, 2003, p.51) Estas intervenções devem ser realizadas de forma elaborada, primeiramente pelo reconhecimento do bem arquitetônico, para que haja uma compreensão por completa do mesmo, como levantamentos históricos e arquitetônicos, após, vem a segunda fase, esta que é a intervenção propriamente dita, que deve ser realizada seguindo as normativas impostas e o projeto elaborado. (VAZ, 2009) Conforme Lyra (2006), cada edificação seja ela qual for, representa uma história em sua face, pertence a uma comunidade, família ou cidade na qual há uma identificação ali relacionada. Com o conhecimento da obra pela população e intervencionistas a prática de uma novo uso no mesmo é facilitada onde há uma adaptação devida sua familiaridade com o local onde se encontra. Todo o monumento constitui marco histórico na memória colectiva. Para ser considerado património, é porque lhe é reconhecido um certo e determinado valor intrinsecamente ligado à identidade e produto daquela nação. O significado cultural justifica o interesse comum e pode ser tão diverso como o valor artístico, científico, histórico, paisagístico, social ou técnico. A questão central reside na compreensão do seu contributo. Não se justifica mantê-lo por ele ser velho, antigo, diferente ou bonito, mas sim por ter alguma qualidade própria à sua autenticidade, testemunha do tempo em que foi construído e de todo o tempo que já venceu para chegar até nós. (VAZ 2009, p.05) Introduzir um novo uso há uma edificação é mais que dar-lhe uma nova vida, uma nova oportunidade de prolongar sua permanecia perante ao meio urbano, é permitir que seja vista, lembrada e consequentemente respeitada, é poder lhe oferecer o reconhecimento pelo que representou e ainda representa em toda sua existência, onde muitas vezes somente através da intervenção e a adaptação é possível oferecer tamanha gratificação. Desse modo, percebemos que necessariamente o termo preservar deve ser aplicado com toda a amplitude de seu significado. É dever de patriotismo preservar os recursos materiais e as condições ambientais em sua integridade, sendo exigidos métodos de intervenção capazes de respeitar o elenco de elementos componentes do Patrimônio Cultural. (LEMOS, 1981, p.26) Conforme Vaz (2009), os monumentos arquitetônicos tem além da missão de transpassar a história e conhecimento, a incumbência de passar sensibilidade e a admiração pelo passado ainda presente, para as [ 213 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS futuras gerações, denominando como o modo de preservar a memória e salvaguardar o passado, devido seu valor civilizacional, documental, histórico ou artístico. No entanto, o que se tem notado com o envelhecimento das cidades é que, cada vez mais, o olhar preservacionista deve ser aplicado, seja pelos que preservam os testemunhos do passado seja pelos que constroem o presente e planejam o futuro. Cada imóvel, cada canto de cidade, seja ele recente ou antigo, deve ser visto sob um olhar preservacionista, seja para manter, seja para eliminar, seja para modificar ou para introduzir o novo em qualquer contexto. A tarefa de preservar o passado, construir o presente e planejar o futuro, tecendo o fio da história, coloca os planejadores e executores das cidades na condição de missionários. (BRAGA, 2003, p.14) Vaz (2009), afirma que atualmente conservar um edifício é estar dando ênfase a sua caraterística especial na arquitetura, no fator documental e sentimental, mas além disso é dar valor a um tempo histórico marcante, é manter o passado no presente e principalmente preservá-lo para o futuro. Conclui-se que o antigo e o novo podem ter lugar no património e nele conviver de forma harmoniosa. Esteticamente, a obra final não tenderá a ser pior por isso. Certamente que dará mais trabalho compatibilizar passado e presente, em prol de um e de outro, mas cuja recompensa será um futuro mais rico e seguramente mais autêntico. (VAZ, 2009, p.149) As ações preservacionistas devem sim ser estudadas, projetadas e executadas, para que haja a valorização necessária e apropriada das edificações históricas assim como suas longevidades perante o tempo e espaço. Zelar pelo que representa a identidade de um povo e sua história é zelar por todas as vidas, passadas, atuais e futuras, garantindo o prolongamento da cultura, do respeito e conhecimento. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Paula Aparecida Santini. Unidade da Pinacoteca de São Paulo de Botucatu. UNESP, 2012. Disponível em: < https://alsafi.ead.unesp.br/bitstream/handle /11449/11799 9/almeida_pas_tcc_prud.pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso em: 01 mai. 2018. BONDUKI, Nabil. Intervenções urbanas na recuperação de centros históricos. Brasília, 2010. BRAGA, Márcia. (org.). Conservação e restauro: arquitetura. Rio de Janeiro: Ed. Rio de Janeiro, 2003. 1-128 p. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 5ª ed. São Paulo, 2001. 282 p. FERRAZ, João Grinspum. O Museu do Pão caminho dos moinhos. 2ª ed. Porto Alegre, 2012. 95 p. FLORES, Anelis Rolão; MARQUES, Andresa Pinheiro. Intervenção em pré-existência: Estudo de caso do SESC Fábrica da Pompéia. 2014. Disponível em: https://www.periodicos.unifra.br/index.php/disciplinarumALC/article/view/817> Acesso em: 01 mai. 2018 LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. O que é patrimônio histórico. Ed. São Paulo, 1981. 111 p. LYRA Cyro Corrêa. A importância do uso na preservação da obra de arquitetura. Revista do programa de pósgraduação em eba artes visuais, UFRJ, Rio de Janeiro 2006. v.1, p. 53-57. Disponível em: <http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp- content /uploads/2012 /01/ae13_c yro_lyra.pdf>. Acesso em: 04 out. 2017. VAZ, Raquel Maria Filipe Álvares Guedes. Património: Intervir ou interferir?. Tese de mestrado - Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2009. 155 p. Disponível em:<https://estudogera.sib.uc.pt/jspui/bitstream/10316/12523/1/dis serta%C3%A7%C3%3 o _final.pdf>. A cesso em: 04 out. 2017. [ 214 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS (De)Colonialidade do Saber no Campo dos Estudos Organizacionais: possibilidades identificadas no panorama da produção científica brasileira Nadiesca Manica dos Santos Priscila Sampaio de Moraes André da Silva Pereira Denize Grzybovski Resumo: O objetivo do artigo é analisar a possibilidade (de)colonialialidade do saber no campo dos estudos organizacionais (EORs) brasileiros, tomando como base a produção científica brasileira. Especificamente fezse o mapeando dos textos que apresentam a temática “colonialidade do saber” e deles foram extraídos os dados que permitiram identificar as comunidades acadêmicas, autores, mensurar o volume de artigos em relação ao número de autores que dedicam suas pesquisas ao tema, a configuração da rede de relacionamentos e elaborar uma lista dos principais periódicos que dedicam espaço para publicação do tema. Trata-se de recorte de um projeto de pesquisa maior que se propõe a mensurar o nível de conhecimento dos docentes dos cursos de graduação em Administração, ofertados nas universidades participantes do Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas, sobre o tema (de)colonialidade nos EORs. Entende-se que o professor do ensino superior é um agente de construção da pluridiversalidade em diferentes áreas do conhecimento. Em suas práticas pedagógicas, talvez esteja reproduzindo legado epistêmico do eurocentrismo e, assim o fazendo, constrói barreiras intelectuais que impede o futuro profissional de compreender o mundo organizacional a partir do seu próprio mundo e das epistemes que lhes são próprias. A literatura sobre a colonialidade do saber aponta este tema sendo debatido entre pesquisadores situados nos centros e nas periferias da produção da geopolítica do conhecimento nas ciências sociais e se caracteriza pelo conhecimento produzido fora dos centros hegemônicos. Por meio do legado epistemológico eurocêntrico centralizador, patriarcal e racialista, os estudos nas ciências sociais não são compreendidos a partir de realidades próprias e desenvolvidos a partir de geo-história específicas e interconectadas, cuja razão pode estar no desconhecimento do tema, na ausência de um debate temático mais efetivo nas instituições de ensino superior brasileiras. Para aproximar-se do campo, fez-se uma pesquisa exploratória por meio da técnica bibliométrica em duas bases de dados (Scielo Brasil; Spell) exclusivamente sobre a produção brasileira. Os anais do Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da Administração (Rede ORD/UFSC) foram investigados como complemento às bases de dados, por ser espaço ímpar de debate nos EORs brasileiros. Palavras-chave de busca: decolonialidade, descolonialidade, colonialidade, póscolonialidade. Filtro: ciências sociais. Foram identificados 15 artigos na base de dados Spell, 26 artigos na base Scielo Brasil e 4 artigos nos anais do Colóquio, totalizando 45 artigos. Para tabular os dados foi utilizado o Nvivo Plus®, versão 11. A análise de cluster indicou 6 artigos repetidos e 3 fora do escopo, sendo 36 artigos submetidos à análise. A temática é pouco estudada no Brasil, com destaque para dois pesquisadores e três IESs (FGV/UnB/UFRGS). Cadernos EBAPE.BR, Revista Sociedade e Estado e Anais do Colóquio são os principais veículos. O debate é incipiente no Brasil e isolado em determinados grupos. A legitimação da decolonialidade do saber amplia o pensamento fronteiriço e cria condições possíveis de coexistência ampla entre saberes do Sul e do Norte. Palavras-Chave: Decolonialidade; Pós-colonialidade, Eurocentrismo. [ 215 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS INTRODUÇÃO A colonialidade do saber é tema de debate entre pesquisadores situados tanto no centro quanto nas periferias da geopolítica do conhecimento nas ciências sociais e se caracteriza pelo conhecimento produzido fora dos centros hegemônicos (DUSSEL, 2000; WOOD JR; PAES DE PAULA, 2004; LANDER, 2005; QUIJANO, 2005; BALLESTRIN, 2013; FARIA; WANDERLEY, 2013; ASSIS, 2014; FARIA; ABDALLA, 2014; ABDALLA; FARIA, 2015 CARVALHO FILHO et al., 2015; ABDALLA; FARIA, 2017; CARVALHO FILHO et al., 2017; LEAL;MORAES, 2017). O legado epistemológico eurocêntrico centralizador, patriarcal e racialista que caracteriza a mainstream nos EORs impossibilidade que autores/pesquisadores críticos provoquem reflexões mais amplas e instiguem a compreensão de fenômenos organizacionais a partir de realidades próprias e desenvolvidas por meio da geo-história específica e interconectada local (WALSH, 2007, ABDALLA; FARIA, 2015). O ensino colonial da Administração apresenta uma formação técnico-funcionalista e reprodutora acrítica de modelos importados do centro (CARVALHO FILHO et al, 2015; CARVALHO FILHO et al., 2017; LEAL; MORAES, 2017). Por isso questiona-se qual é a configuração da produção científica brasileira sobre (de)colonialidade e quem são os pesquisadores que conseguiram superar as adversidades do campo? Quais são os periódicos científicos que se propõem a contemplar tal tema e provocar reflexões críticas no campo da Administração? O objetivo do presente artigo é analisar a possibilidade (de)colonialialidade do saber no campo dos estudos organizacionais (EORs) brasileiros, tomando como base a produção científica brasileira. Especificamente fez-se o mapeando dos textos que apresentam a temática “colonialidade do saber” e deles foram extraídos os dados que permitiram identificar as comunidades acadêmicas, autores, mensurar o volume de artigos em relação ao número de autores que dedicam suas pesquisas ao tema, a configuração da rede de relacionamentos e elaborar uma lista dos principais periódicos que dedicam espaço para publicação do tema. A noção de colonialidade proposta por Quijano (1992) refere-se à relação do poder na formação de um sistema de dominação mundial, o qual permeia as esferas do trabalho, a autoridade científica, a supremacia de uma comunidade científica e seus contornos teóricos, epistemológicos e ontológicos orientados por dimensões objetivistas da realidade. Colonialidade distingue-se de colonialismo uma vez que colonialismo é uma forma de dominação política, administrativa e militar, enquanto colonialidade se refere ao padrão de poder global mais complexo e profundo (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007; CARVALHO FILHO et al., 2015), de caráter universal e que naturalizou a objetividade do mundo a partir da concepção da sociedade capitalista-liberal (LANDER, 2005). Apesar de extinto o colinialismo base da relação entre as antigas colônias e as potencias europeias, o poder social ainda está permeando os critérios originados da relação colonial (QUIJANO, 1992); a dinâmica de dominação se mantém por meio da manutenção, reformulação e velamento (ou não) das estruturas de poder, seja na dimensão econômica, política ou epistêmica (CARVALHO FILHO et al., 2015). Na ideia de promover e legitimar a pluriversalidade dos saberes, ampliando o pensamento fronteiriço para construir condições possíveis de coexistência ampla (ABDALLA; FARIA, 2017) é necessário descolonizar o colonizador e o colonizado (MIGNOLO, 2010). A descolonização da Administração, enquanto campo de conhecimento pode promover a construção da pluridiversalidade em substituição ao quadro de disfuncionalidade geo-epistêmica caracterizado pela subalternização de diversos saberes (CARVALHO FILHO et al., 2017). O campo para o desenvolvimento de estudos decoloniais no ensino superior é amplo (LEAL; MORAIS, 2017), assim, o presente estudo é um recorte de um projeto de pesquisa maior que se propõe a mensurar o nível de conhecimento dos docentes dos cursos de graduação em Administração, ofertados nas universidades participantes do Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas, sobre o tema (de)colonialidade nos EORs. Apresenta-se um panorama da produção científica brasileira sobre (de)colonialidade nos estudos organizacionais (EOR), mapeando comunidades acadêmicas, autores, volume de artigos/autor, rede de relacionamentos e principais periódicos. [ 216 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O estudo apresenta-se em cinco seções, além da introdução. Na seção dois são apresentados os fundamentos teóricos sobre de(colonialidade) e colonialidade, de(colonialidade) no ensino em Administração. Na terceira seção a metodologia desenvolvida neste estudo. Por fim, apresentação dos resultados e as considerações finais. 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1 A de(colonialidade) e colonialidade do saber Introduzido pelo sociólogo peruano Anibal Quijano, o conceito de “colonialidade” surge no final dos anos 1980, trazendo um novo sentido ao legado do termo colonialismo, particularmente como foi conceituado durante a Guerra Fria, junto com o conceito de “decolonização” (e as lutas pela libertação na África e na Ásia). Desde então, a colonialidade foi concebida e explorada por diversos autores como o lado mais escuro da modernidade (DUSSEL, 2000; WOOD JR; PAES de PAULA, 2004; LANDER, 2005; QUIJANO, 2005; BALLESTRIN, 2013; FARIA; WANDERLEY, 2013; ASSIS, 2014; FARIA; ABDALLA, 2014; ABDALLA; FARIA, 2015; CARVALHO FILHO et al., 2015; FARIA; GUEDES; WANDERLEY, 2015; ABDALLA; FARIA,2017; CARVALHO FILHO et al., 2017; LEAL; MORAES, 2017). Para elucidar o conceito, Quijano (2005) argumenta, em primeiro lugar, sobre o processo de globalização e a modernidade. O processo de globalização começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado, instaurando um novo padrão de poder mundial. Modernidade é o conhecido período que se abre a partir da América, vinculado ao processo de eurocentrização do capitalismo, alcançando traços definitório a partir do final do século XVIII. A atual fase do poder colonial e capitalista pressiona para a deturpação daquelas trações específicas, inclusive pela reversão do conflito social em torno da ampliação da igualdade social, da liberdade individual e da solidariedade social (QUIJANO, 2002). Uma das premissas desse poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa à experiência básica da dominação colonial, permeando as dimensões mais importantes no mundo incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo (QUIJANO, 2005). Essa premissa, portanto, exprime a origem do caráter colonial, que se mantém duradouro e estável, implicando uma narrativa histórica universal que tem a Europa como único sujeito significativo (LANDER, 2005). Essa matriz de poder, expressada por meio da colonialidade, ainda encobre o fato de que a Europa foi produzida a partir da exploração político-econômica das colônias (ASSIS, 2014). Ao desconsiderar o contexto histórico desse padrão de dominação, esconde-se a dependência histórica- estrutural de produção da América e da Europa (QUIJANO, 2005). A constituição social atual é reflexo desses fluxos históricos de poder desenvolvidos por essa matriz (MIGNOLO; OLIVEIRA, 2017). Tal sistema é responsável pela macroorganização social, que acontece por meio dos instrumentos de controle da organização social, como a política, o direito, as formas de produção material, o imaginário e as formas intelectuais, tornando-os hegemônicos e dominantes (MIGNOLO, 2005). A colonialidade fundamenta a lógica do desdobramento da civilização ocidental (QUIJANO, 1992). Diferenciando a noção de colonialismo, cuja origem é a relação entre as antigas colônias e as potencias europeias, a colonialidade se refere a uma complexidade e uma maior profundidade do poder (CASTROGÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007; CARVALHO FILHO et al, 2015). O poder social ainda está permeando os critérios originados da relação colonial, exercendo de forma hegemônica o controle da subjetividade/ intersubjetividade, e em particular no modo de produzir conhecimento (QUIJANO, 2002). Nessa perspectiva, colonialidade é caracterizada como um tipo de relação social constituído pela co-presença permanente de três elementos: dominação, exploração e conflito (QUIJANO, 2002). O pensamento decolonial propõe a superação desses elementos por meio da trans-modernidade, promovendo pluriversalidade dos saberes, ampliando o pensamento fronteiriço para construir condições possíveis de coexistência ampla (ABDALLA; FARIA, 2017). Diferentes tipos de propostas de pesquisadores e praticantes do Sul global procuram desvelar a violência totalitária da modernidade eurocentrista e os [ 217 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS conhecimentos subalternizados (MIGNOLO, 2005; 2010; 2011). A emancipação intrínseca à mudança do conhecimento não necessariamente deve refutar as contribuições que não venham do “colonizado” que busca a emancipação, mas valorizar saberes conectados a diferentes locus de enunciação, contribuindo para tratar dos problemas de escala global, superando a “modernidade” (BALLESTRIN, 2013). No entanto, a emancipação latino-americana passa também pela contribuição de intelectuais que estão posicionados do lado dos opressores (BALLESTRIN, 2013). A de(colonialidade) e o projeto emancipatório envolvem os grupos sociais oprimidos, marginalizados e excluídos, rompendo com a reprodução de padrões e percepções do mundo estabelecido pela modernidade eurocentrista, pensando para além da ordem posta, por meio de um novo olhar sobre o que é legítimo (SANTOS, 2002). A decolonialidade permite construir sua própria racionalidade por meio do dialogo simétrico, propondo a inversão das ordens estabelecidas, desmistificando àqueles que negam a historicidade e atenção a interesses particulares (BALLESTRIN, 2013). Ballestrin (2013), afirma que por meio do confronto dos saberes é que se inicia a resistência e rompe-se o controle institucionalizado do conhecimento. O ensino, assim como outros domínios, sempre aconteceu privilegiando o ponto de vista eurocentrado em detrimento das histórias de outras culturas, negligenciando a riqueza dos diferentes contextos. A partir das perspectivas abordadas, entende-se que a legitimação da pluriversalidade dos saberes amplia o pensamento fronteiriço, construindo condições possíveis de coexistência ampla entre os saberes do Sul e o Norte. Os intelectuais deste campo, no entanto, afirmam que é necessário descolonizar tanto o colonizador, quanto o colonizado para superar os elementos de dominação, exploração e conflito. A pluriversalidade do conhecimento se propõe não apenas ao contato entre o ocidente e outras civilizações, mas uma configuração transmoderna articulada, promovendo um giro epistêmico capaz de gerar novos conhecimentos e percepções de mundo, sem perder de vista a colonialidade do poder, do saber, e do ser. 2.2 De(colonialidade) no ensino em Administração A temática da de(colonialidade) do saber para a área da Administração, com viés ligado á Gestão, é percebido como lado “sombrio” (IBARRA-COLADO, 2006). De acordo com Faria e Abdalla (2014), esse campo vem sendo fomentado pelo sistema hegemônico neoliberal eurocêntrico comandado pelos Estados Unidos (EUA) para a preservação e fortalecimento de um padrão capitalista de poder que rearticula e radicaliza a dicotomia centro-periferia em escala global. No contexto da Administração, e especificamente ao considerarmos a trajetória da Administração Pública no Brasil, também se observa que esta tem sido fortemente ligada a estruturas e mecanismos de dominação dos países centrais sobre os periféricos dentro do sistema mundo moderno/colonial. Vale ressaltar que os cursos da área de Administração já surgem, no Brasil nos anos 1950, veiculado através da transposição de paradigmas de países mais desenvolvidos (FISCHER, 1984). No ensino da Administração abrange a formação técnico-funcionalista que vem sendo ainda desafiado, na prática, por pedagogias alternativas conectadas ao crescente interesse de acadêmicos pela teorização decolonial, esse desenho dominante fragiliza o papel de ciência transformadora que a Administração pode assumir (SARAIVA, 2011). Muitos estudos no campo da Administração emergem do pensamento Decolonial, mas não de forma submersa (ROSA; ALCADIPANI, 2014). Os autores Faria e Wanderley (2013) destacam a dificuldade da produção do conhecimento decolonial nos estudos em Administração, em destaque o Brasil, em virtude da dimensão geopolítica. Tendo em conta a globalização e a expansão das fronteiras do conhecimento, têm-se algumas vertentes relevantes dentro do assunto. A transformação do que não é conhecimento, e se torna conhecimento, ou seja, muitas instituições que se voltam ao centro dominante se apropriam do não conhecido e transformam de algum modo em conhecimento, assim aumentando o número de áreas do conhecimento e produção acadêmica (FARIA; WANDERLEY, 2013). Em destaque ao espaço geopolítico comentado pelos autores, é necessário entender as realidades da América Latina, por três vieses. A primeira se da por meio das características do desenvolvimento dos [ 218 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS estudos de organização da administração, havendo uma tendência de falsificação ou até imitação do conhecimento gerado. A segunda destaca o papel desempenhado em virtude do termo “organização” fazendo-se o uso de forma sintética a fim de facilitar a comparação de realidades diferentes e a terceira a maneira que é contemplada os problemas organizacionais (IBARRA-COLADO, 2006). 3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Com o objetivo de responder o problema de pesquisa, este estudo caracteriza-se como uma pesquisa descritiva-exploratória, orientada pela estratégia da técnica bibliométrica, com abordagem quantitativa dados. A técnica bibliométrica consiste na aplicação de métodos matemáticos e estatísticos com o intuito de descrever e quantificar a comunicação escrita relacionada a uma determinada temática (PRITCHARD, 1969). No método bibliométrico é esperado que os autores atendam às Leis que regem esses estudos, são elas: lei de produtividade de autores de Lotka; lei de dispersão de periódicos de Bradford; e lei de frequência de palavras de Zipf (CHUEKE; AMATUCCI, 2015). O objetivo da Lei Bradford é Identificar os periódicos mais relevantes e que dão maior vazão a um tema em específico, a partir disso é possível verificar quais periódicos científicos exercem maior atração sobre o assunto, refletindo na quantidade de publicações do tema (CHUEKE; AMATUCCI, 2015). A Lei de Zipf observa a frequência em que aparecem determinadas palavras ou palavras-chave em um texto (CHUEKE; AMATUCCI, 2015). O objetivo é estimar os temas mais recorrentes relacionados a um campo de conhecimento nos textos estudados, formando uma classificação, a primeira palavra mais citada no texto, a segunda, a terceira e assim por diante (CHUEKE; AMATUCCI, 2015). A Lei de Lotka expressa a quantidade de artigos, relacionando à produtividade dos autores, cujo objetivo é levantar o impacto da produção de um autor numa área de conhecimento especifica, a partir d critério tamanho-frequência (CHUEKE; AMATUCCI, 2015). Com base nas leis de Lotka, Zipf e Bradford (CHUEKE; AMATUCCI, 2015), a pesquisa foi desenvolvida nas seguintes etapas: análise da produção de artigos, mapeamento das comunidades acadêmicas; identificação dos autores; quantidade de artigos por autor; redes de relacionamento; quantidade de artigos publicados; periódicos que mais publicam sobre o tema e; identificação das palavras que mais aparecem nos estudos. A pesquisa foi realizada nas bases de dados Spell e Scielo, como complemento, foi pesquisado os anais do Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da Administração, dada a relevância deste colóquio para a temática apresentada. Os dados foram coletados no período de 28/07/2018 à 18/09/2018. As palavras utilizadas foram “decolonialidade”, “descolonialidade”, “colonialidade” e “póscolonialidade”, filtrando por “ciências sociais”. Foram encontrados 15 artigos na Spell, 26 artigos na Scielo e 4 artigos nos anais do Colóquio, totalizando 45 artigos. Para analisar os dados do estudo foi utilizado o programa Nvivo Plus®, versão 11. Por meio da análise de cluster no Nvivo Plus® foi verificado que 6 artigos se repetiam e 3 artigos se distanciavam da temática. Após esse filtro, foram analisados 36 artigos. Quanto a análise e interpretação de dados deste estudo, foi utilizado o programa Nvivo Plus®, versão 11. Por meio da analise de cluster no Nvivo Plus® foi verificado que 6 artigos se repetiam e 3 artigos se distanciavam da temática. Após esse filtro, foi realizada análise de estatística descritiva dos dados (HAIR JR. et al., 2005) de 36 artigos. 4 RESULTADOS E DISCUSSÕES Após a classificação dos 45 artigos científicos sobre “decolonialidade”, “descolonialidade”, “colonialidade” e “pós-colonialidade”, filtrando por “ciências sociais”, eliminando os artigos que se repetiam e os artigos que se distanciavam da temática, foram analisados 36 artigos de acordo com as categorias propostas com base nas três leis: análise da produção de artigos, periódicos que mais publicam sobre o tema, mapeamento das comunidades acadêmicas; identificação dos autores; quantidade de artigos por autor; redes de relacionamento; quantidade de artigos publicados e; identificação das palavras que mais aparecem nos estudos. [ 219 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS [ 220 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 4.1 Quantitativos de Publicações A Figura 1 apresenta o número de publicações sobre colonialidade, distribuídas por ano. Os dados indicam que o tema passa a ser considerado relevante para poucos pesquisadores a partir de 2013, tendo seu ápice em 2015 com a realização de um evento científico com este propósito. A tendência é de crescimento. Figura 1 – Número de publicações sobre colonialidade, por ano. Fonte: dados da pesquisa No período 2007-2011, que não há publicações nos periódicos nacionais, evidencia variância de 11,02. O desvio padrão é de 3,32 dos 36 elementos analisados. Mediana 2, intervalo de 0 a 9 artigos produzidos. Na Tabela 1 são apresentados os periódicos nos quais aparece mais de um artigo sobre colonialidade publicado. Tabela 1 – Principais periódicos de publicação Principais Periódico/Eventos Quantidade de artigos Cadernos EBAPE 8 Revista Sociedade e Estado 7 Anais Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da Administração 4 Revista de Administração de Empresas 2 Outros com apenas uma publicação 15 Total 36 Fonte: dados da pesquisa Em relação à quantidade de periódicos que publicaram artigos sobre o tema, foram identificados 19. Destes, 15 possuem apenas uma publicação e 4 presentam mais de uma. Destacam-se, nesta lista, os periódicos Cadernos EBAPE e Revista Sociedade e estado, com maior número de publicações no período, respectivamente 8 e 7. Analisando a média por periódicos não chega a 2 artigos, com desvio padrão de 2,10 e [ 221 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS variância da amostra de 4,43. Retirando os 15 periódicos com apenas uma publicação temos uma média de 5 artigos por periódico, com desvio padrão de 2,75 e Variância da amostra de 7,58. O periódico Cadernos EBAPE.BR, classificado pela Capes no estrato Qualis A2, é patrocinado pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas. No seu escopo privilegia textos que promovem o debate de temas relevantes na Administração, mas estimula análises na perspectivas interdisciplinares e críticas. O periódico Sociedade e Estado, por sua vez, está classificado no estrato Qualis B1 e publica artigos originais que apresentam a notória diversidade de abordagens teóricas e metodológicas no campo das ciências sociais. 4.2 Autorias e instituições de origem Dentre os 36 artigos selecionados para análise foram identificados 42 autores, evidenciando uma média de 1,16 autores por texto, cuja amplitude de número de autores varia de, no mínimo, 1 (um) artigo e, no máximo, 7 artigos. O desvio padrão da amostra de produção cientifica por autor é de 1,05 e variância de 1,11. Os autores que mais publicaram sobre o tema colonialidade estão relacionados na Tabela 2. Alexandre Farias (FGV/RJ) representa 39% dos textos publicados. Tabela 2 – Relação de autores e número de publicações sobre colonialidade Número de Autor Vínculo institucional publicações Fundação Getúlio Vargas/Rio de Alexandre Farias 7 Janeiro Wendell Ficher Teixeira Universidade Federal de Alagoas 3 Assis Joaze Bernardino-Costa Universidade de Brasília 3 Sergio Wanderley Fundação Getúlio Vargas/Rio de Janeiro 3 Mauricio Abdala Universidade Federal do Espírito Santo 2 Rafael Alcadipani EAESP-FGV 2 Ana Lucia Guedes Universidade do Grande Rio 2 Maria Ceci Misoczky Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2 Soma 24 Fonte: Os autores (2018) Dentre outros autores, três publicaram três artigos sobre decolonialidade: Wendell Ficher Teixeira Assis, que atua no nordeste do país, Joaze Bernardino-Costa, que está no centro-oeste, e Sergio Wanderley, atuando na região sudeste. Em conjunto eles representam 15% dos autores que mais publicam no tema. Contudo apenas Joaze Bernardino Costa é autor especialista nos debates sobre colonialidade e que utiliza integralmente as teorias decoloniais e a perspectiva do pós-colonialismo em suas pesquisas. Com menor expressão nas publicações sobre colonialidade estão: Mauricio Abdala, Rafael Alcadipani e Ana Lucia Guedes, atuantes na região sudeste, e Maria Ceci Misoczky, na região sul. Os demais autores identificados possuem apenas uma publicação. Para gerar as redes de colaboração entre autores e instituições/centros de pesquisa, foi utilizado o software Nvivo Plus®, versão 11. Após a codificação dos “nós” formados pelos autores e por instituição/centro de pesquisa, obteve-se o cluster apresentado na Figura 2, cuja análise por similaridade de codificação e usando a métrica de coeficiente de correlação de Pearson revela a rede de coautoria formada por Alexandre Faria, Sergio Wanderley e Mauricio Abdala como de maior representatividade. A maioria dos [ 222 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS autores não estão integrandos à rede brasileira de pesquisadores que se propõe a refletir sobre (de)colonialidade nos estudos organizacionais. Figura 2 – Cluster de autores e rede de relações Fonte: Dados da pesquisa (2018). Na Tabela 3 estão relacionadas as instituições de ensino superior (IESs) às quais estão vinculados os autores dos artigos analisados. A Fundação Getúlio Vargas – representada por uma escola localizada no Estado de São Paulo e a outra no Rio de Janeiro – detém a maior representatividade por seus pesquisadores terem produzidos 10 artigos, mesmo que 7 deles tenham sido produzidos por apenas um pesquisador. A Universidade de Brasília e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul ocupam a segunda posição, com a penas 4 artigos cada. A produção institucional média é de 1,95 artigos, com o desvio padrão de 2,10 e variância de 4,44. A rede de relacionamentos entre instituições revela poucas parcerias. A Fundação Getúlio Vargas, por meio de Alexandre Faria, relaciona-se com as universidades Castelo Branco, Grande Rio e do Ceará. Tabela 3 – Principais Universidades Principais Universidades Quantidade de artigos que aparecem Fundação Getúlio Vargas 10 Universidade de Brasília 4 Universidade Federal do Rio Grande do Sul 4 Universidade Federal de Alagoas 3 Universidade Federal de Santa Catarina 3 Universidade do Vale do Rio dos Sinos 2 Outras Universidades (15 universidades) 1 [ 223 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Soma 27 Fonte: dados da pesquisa Na Figura 3, o cluster de IESs às quais estão vinculados os autores revela iniciativas individuais dos pesquisadores e não interesses institucionais em ampliar ou provocar o debate a respeito do tema. Os dados permitem afirmar que o debate é incipiente no Brasil e isolados Figura 3 – Relação entre universidades Fonte: dados da pesquisa As evidências observadas na distribuição geográfica dos pesquisadores que se propõe a debater o tema colonialidade revelam fragilidades institucionais e articulações políticas para pensar uma rede densa, com poder de conduzir/liderar um debate em direção ao desafio da hegemonia da ordem neoliberal e eurocêntrica. Com um debate centrado conhecimento e colonialidade, o neoliberalismo e o eurocentrismo se apresentam distante do tema central apresentado pelos autores brasileiros supracitados. Na Figura 4, elaborada a partir da frequência de palavras encontradas nos 36 artigos analisados e limitada a 100 palavras mais citadas com menos de 8 caracteres, o cluster central é formado por um conhecimento sobre o desenvolvimento do pensamento sobre a colonialidade no contexto da modernidade, valorizando questões de contexto. [ 224 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 4 – Palavras mais citadas nos artigos científicos sobre colonialidade Fonte: Dados da pesquisa Individualmente, as palavras mais citadas são: desenvolvimento (15 artigos, 524 repetições), administração/management (13 artigos, 953 repetições), colonialidade (13 artigos, 713 repetições), conhecimento (12 artigos, 886 repetições) e colonialismo (12 artigos, 387 repetições) e modernidade (11 artigos, 613 repetições), além de outras palavras com menor número de repetições. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo foi apresentar um panorama da produção científica brasileira sobre decolonialidade, por meio de uma pesquisa descritiva com a utilização de técnicas bibliométricas. Os resultados mostram que a temática é pouco estudada no Brasil, com destaque para dois pesquisadores (Alexandre Farias e Wendell Ficher Teixeira Assis (e três IESs (FGV/UnB/UFRGS). Os Cadernos EBAPE.BR, Revista Sociedade e Estado e Anais do Colóquio são os principais veículos de disseminação desta temática. A nuvem de palavras apresenta uma grande concentração em torno das palavras “conhecimento”, “colonialidade”, “colonial” e “modernidade”, indicando a preferência dos autores destas palavras para a divulgação do trabalho. O debate sobre colonialidade e decolonialidade é incipiente no Brasil e isolado em determinados grupos. Entende-se que por meio da legitimação da decolonialidade do saber é possível ampliar o pensamento fronteiriço e criar condições possíveis de coexistência ampla entre saberes do Sul e do Norte. Assim, é possível promover a construção da pluridiversalidade em substituição ao quadro de disfuncionalidade geo-epistêmica caracterizado pela subalternização de diversos saberes. Por fim, o presente estudo encontra limitações, sugere-se a continuidade dos estudos, ampliando para outras bases de dados e dando ênfase ao conteúdo das discussões teóricas dos trabalhos utilizando-se de uma revisão sistemática, buscando promover maior compreensão da discussão teórica adotada nos trabalhos. [ 225 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 6 REFERÊNCIAS ABDALLA, M. M.; FARIA, A. Em defesa da opção decolonial em administração: rumo à uma concepção de agenda. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EPISTEMOLOGIA E SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, 3, 2015, Florianópolis. Anais do... Florianópolis: UFSC, 2015. ABDALLA, M. M.; FARIA, A. 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[ 227 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A metodologia de ensino marista na formação de “bons cristãos e virtuosos cidadãos” – Passo Fundo (1906-1950) Natália Carla Vanelli1 Resumo: O presente trabalho analisará o papel que a Congregação dos Irmãos Maristas e do Colégio Nossa Senhora da Conceição na difusão e fortalecimento do catolicismo na região de Passo Fundo, durante entre os anos de 1906 a 1950. Neste contexto, frente a laicização Estatal, as autoridades eclesiásticas empenham-se fortemente na consolidação de um catolicismo, mais sólido e profundo no país, sendo o campo educacional um espaço estratégico para os novos objetivos da Igreja Católica. É nesse intuito que a Congregação dos Irmão Maristas chega ao Brasil, para educar e evangelizar os jovens dentro da doutrina da fé cristã. Através de seus educandários em modelo de internato, aplicavam a da metodologia de ensino confessional, para assim, além de realizar a normatização e adequação social de seus estudantes, educava-se e catequizava-se dentro dos processos do catolicismo. Analisa-se a presença dessas instituições e a importância das mesmas para a construção da personalidade e do caráter dos estudantes, bem como as marcas que a mesma deixava na subjetividade de seus internos. Palavras-chave: Catolicismo, educação confessional, metodologia de ensino, subjetividade, Marista. A Cultura, que é o produto dessa divisão mágica, tem valor de sagrado. E, de fato, essa consagração cultural submete os objetos, pessoas e situações que ela toca em uma espécie de promoção antológica que se assemelha a uma transubstanciação. [...] a negação da fruição interior, grosseira, vulgar, venal, servil, em poucas palavras, natural, em que se constitui como o tal sagrado cultural, traz em seu bojo a afirmação de superioridade daqueles que sabem satisfazer com prazeres sublimados, requintados, desinteressados, gratuitos, distintos, interditados, para sempre o simples profano. É assim que a arte e o consumo artístico estão prédispostos a desempenhar, independentemente da nossa vontade e de nosso saber, uma função de legitimação das diferenças sociais.” Pierre Boudieu Em plena Era Napoleônica (1799-1815) - no auge da laicização estatal e perseguição religiosa 2 –, foi fundado o Instituto dos Irmãos Maristas 3 (1817) por Marcellin Joseph Benoît Champagnat 4. A atuação de Champagnat iniciou-se no cume de fenômeno político-social de mudança radical na história francesa e mundial. Graduada em História na UPF-Universidade de Passo Fundo. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF), na linha de pesquisa: Cultura e Patrimônio. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8117653H2 . E-mail: nataliacvanelli@gmail.com. 2 PIERRARD, Pierre. História da Igreja. São Paulo: Edições Paulinas, 1982. p.221. 3 Instituto dos Irmãos Maristas das Escolas (Fratres Maristae a Scholis - F.M.S) é o nome de uma ordem religiosa fundada em 2 de janeiro de 1817, no pequeno vilarejo de La Valla, França, por Marcelino Champagnat. A ordem religiosa apesar de seguir e propagar a doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana não era reconhecida como congregação religiosa, nem pela Igreja nem governo francês, fato esse que somente se modificou para a primeiro nos anos de 1936 e para o segundo em 1851. 4 Nasceu em 20 de maio de 1789, em Marlhes, aldeia de montanha no centro Leste da França, perto de Lyon, na França. Filho de João Batista e Maria Chirat, estudava em casa, pois tinha medo da escola e dos métodos e castigos educacionais utilizados pelos professores. Com 14 anos, entra para o seminário onde anos depois junta-se a um grupo de seminaristas que projeta fundar uma Congregação que abrange padres, religiosas e leigos, levando o nome de Maria- a "Sociedade de Maria"- para cristianizar a sociedade. Em 1817, aos seus 27 anos, reúne seus dois primeiros discípulos formando os irmãos Maristas. Em 1836, a igreja reconhece a Sociedade de Maria e lhe confia a missão da Oceania. Morre aos 51 anos de idade em 6 de junho de 1840. O papa João Paulo II canonizou Marcelino Champagnat no dia 18 de abril de 1999, na praça São Pedro no Vaticano, reconhecendo-o como santo da Igreja Católica. 1 [ 228 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Apesar de ativo e propagador da fé católica, o Instituto Marista ainda não era reconhecido pela Igreja Católica como Congregação religiosa -cenário esse que veio a modificar-se somente no ano de 1936 -. Durante o século XIX, a Igreja Católica promoveu uma nova onda de missões catequizadoras para a Ásia, África e Oceania, sendo o Instituto Marista integrante e participante dessas missões. 5 Foi a partir desse momento que a Congregação Marista e as ideias de Marcelino Champagnat difundiram-se para várias partes do mundo, inclusive para a América e o Brasil, no final do século XIX. No período de transição do Império brasileiro para a República, o Brasil possuía um número muito baixo de dioceses, cada uma delas com escassos sacerdotes. Sacerdotes esses em constante crise devido à nova ordem civil de laicidade estatal. Outro acontecimento que agravava fortemente o quadro de decadência do catolicismo brasileiro durante o fim do século XIX foi a má reputação do sacerdócio. A menção a padre não representava exatamente um religioso como exemplo de vida, pois muitos não seguiam os dogmas religiosos nem o juramento religioso que faziam na ordenação. Alguns viviam na “farra”, envolvidos com o alcoolismo constante e/ou até possuíam família. Outros sacerdotes serviam famílias poderosas envolvidos com o crime e com a vida “irregular” 6. Os registros sobre a situação e atuação dos religiosos no raiar da república demonstra a degradação do prelado brasileiro. O mesmo sem estrutura física adequada para desempenhar a contento suas funções religiosas (com poucas paróquias - as que existiam velhas e necessitando de reformas), sem estruturação financeira (pois anteriormente a laicização estatal o dizimo era de propriedade do Estado) e sem legitimação popular (uma vez que suas autoridades brasileiras não eram vistos como respeitosos e dignos, sendo desleais e corruptos com seus propósitos e pregações) acarretaram no desleixo e depreciação dos religiosos católicos. Decide-se então na Assembleia Episcopal realizada em São Paulo em agosto de 1890, presidida pelo Bispo Dom Marcelo Costa, que a Igreja Católica como instituição iria aumentar seu horizonte religioso, reconquistar seu prestígio como instituição e seus fiéis e, principalmente, contrapor-se-ia a expansão dos colégios protestantes7, ainda em pequeno número no início do século XIX. Facilitariam assim a vinda das congregações religiosas europeias para o Brasil, a fim de recristianizar a população e reafirmarem-se como a religião com maior poder de influência no país. Frente à laicização do Estado, a Igreja Católica e suas lideranças perceberam que teriam que conquistar um novo espaço no cenário da república brasileira, e que deveriam de fato conquistá-lo. Inicialmente as lideranças religiosas visavam expandir e solidificar a fé católica em terreno brasileiro através das massas, doutrinando a população, para assim poderem solidificar-se através da legitimação e confirmação ideológica de seus ideais 8. Essa pregação iniciou-se pelas dioceses, paróquias, capelas, e escolas, apostando no âmbito devocional como o grande campo de propagação ideológica. O campo educacional foi percebido como um espaço estratégico para os novos objetivos da Igreja Católica no país. Nesse campo poderiam controlar o jogo de ideia e a mentalidade dos alunos, que por consequência chegaria a suas casas e seus descendentes, legitimando a instituição católica através do imaginário9. Outro fator muito importante que fez com que as lideranças políticas sul rio-grandenses investissem na vinda das congregações religiosas europeias era o cenário cultural e religioso do Rio Grande do Sul, era que se via surgir uma esfera da vida humana religiosa bipartidária. De um lado católicos e do outro e não católicos responsáveis pelo controle de áreas importantes da sociedade, uma vez que nessas lideranças LANFREY. Irmão André. História do Instituto – Da aldeia de Marlhes à expansão mundial (1780-1907). São Paulo: Instituto dos Irmãos Maristas Casa Geral- ROMA. 2015. V1.p.23. 6 MEDEIROS. Marcia Maria. Cara ou Coroa – Católicos e Metodistas no Planalto Médio Gaúcho (início do século XX).Passo Fundo: UPF . 2007. p.38. 7 AZZI, Riolando. A Igreja Católica na formação da sociedade brasileira. São Paulo: Editora Santário, Aparecida, 2008. p.19. 8 GIOLO, Jaime. Estado & Igreja na implantação da República Gaúcha: a educação como base de um acordo de apoio mútuo. SérieEstudos-Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB 27 (2013). p. 137. 9 AZZI, Riolando. A presença da Igreja católica na sociedade brasileira e formação das dioceses no período republicano. In: SOUZA, Rogério Luiz; OTTO, Clarícia (Org.). Faces do Catolicismo. Florianópolis: Editora Insular, 2008. p.21. 5 [ 229 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS estavam as bases das regras da moral e bons costumes que deviam fazer parte do comportamento e do ideário social10. Os Irmãos Maristas chegaram no Rio Grande do Sul, por iniciativa do Padre Rudgero Separa Stenmanns, vigário da cidade de Bom Princípio, no ano de 1897. A congregação dos Irmãos Maristas chega a Passo Fundo no ano de 1906 e, no mesmo ano funda o Colégio São Pedro. 11 Em Passo Fundo, a Igreja Católica assumiu os espaços deixados pelo Estado, fixando-se firmemente na estrutura sócio-política que o contexto lhe apresentava. Através dos colégios confessionais, já que o estado não dava conta da parte educacional, expandiu sua atuação junto à sociedade, inserindo-se no seio da população, não somente por missas e sermões eucarísticos12 Em 1908, o proprietário da casa onde funcionava o Colégio São Pedro, o senhor Aníbal de Primio, vendeu o referido imóvel. Em razão disso, os irmãos Maristas procuraram uma nova sede, alugando uma edificação de Lucas Annes na Avenida Brasil. Eleito o novo Intendente Municipal, o senhor Gervásio Annes, irmão de Lucas, resolveu suprimir a contribuição financeira concedida ao Colégio São Pedro 13. Em 1928 surgiu a oportunidade desejada pelos religiosos para retornarem à Passo Fundo. Os padres Palotinos14 retiraram-se da paróquia da cidade e seu imóvel foi colocado à venda. Após examinar o imóvel, o mesmo foi comprado pela Congregação Marista para transformá-lo no Ginásio Nossa Senhora da Conceição. As primeiras preocupações decorrentes e ações realizadas pela direção da Congregação que assumiu o Colégio Conceição no ano de 1928 foram adaptar a edificação e construir os prédios necessários para efetuação do “tão clamado e desejado do Curso Ginasial 15” (escola secundária vocacionada para a preparação dos alunos para acederem a uma universidade) e Internato; oficializar o ensino mediante consecução e Inspeção Federal e instalar o Juvenato 16 (estudos e formação de jovens para a vida eclesiástica e exercício do magistério religioso) para candidatos à vocação Marista. Em 1º de março de 1929 realizou-se a abertura do novo Ginásio do Colégio Marista Conceição, tendo início nesse dia a trajetória do colégio na cidade, com 78 alunos matriculados17. Nesse sentido, os Educandários e Colégios em modelo de Internato 18 são vistos, pela elite, como grandes alicerces e aliados no processo de disseminação dos hábitos e costumes sociais que estão em voga. As crianças e jovens são confiados a um grupo de pessoas que, através de uma metodologia e um sistema educacional, prometem educar e moldar aqueles indivíduos semelhantes a seus pares, devolvendo-os à suas famílias, prontos para o convívio social adulto. 10 MEDEIROS. Marcia Maria. Cara ou Coroa – Católicos e Metodistas no Planalto Médio Gaúcho (início do século XX).Passo Fundo: UPF . 2007.p.111. 11 HENZ. Ir. Alfredo. Maristas no Brasil Meridional. Porto Alegre: CMC, 2000. 28. 12 MEDEIROS. Marcia Maria. Op.Cit. Passo Fundo: UPF . 2007. p.48. 13 COLUSSI, Eliane Lucia. Aspectos da maçonaria em Passo Fundo: 1876 - 1925. Passo Fundo: EDIUPF, 1998.p.336. 14 Os Padres Palotinos (S.A.C.) são uma sociedade de vida apostólica da Igreja Católica Apostólica Romana fundada em 1835 com o nome de Sociedade do Apostolado Católico (societas apostolatus catholici) pelo Padre Vicente Pallotti, declarado santo, durante o Concílio Vaticano II, pelo Papa João XXIII em 20 de janeiro de 1963. Em Passo Fundo, no ano de 1905 assumiram a direção da Paróquia de Passo Fundo e permaneceram até o ano de 1928. 15 Nos países germânicos, tradicionalmente, o ginásio constitui uma escola secundária vocacionada para a preparação dos alunos para acederem a uma universidade, com caraterísticas muito semelhantes às dos tradicionais liceus da Europa latina. Os ginásios têm origem na Reforma Protestante ocorrida no século XVI. O primeiro sistema de escolas a ministrar um ensino ginasial surgiu na Saxónia em 1528. Segundo o sistema educativo do tipo germânico, os ginásios destinam-se aos alunos com maior vocação académica. Estes alunos, são filtrados à saída do ensino primário, por volta dos 10 a 13 anos, só aos melhores sendo permitido aceder ao ginásio. Tradicionalmente, o ginásio foca-se nas humanidades e nos estudos clássicos, com o seu currículo a incluir normalmente o ensino do latim e do grego antigo. Outras modalidades do ensino ginasial incluem as línguas modernas, as ciências, a economia e as tecnologias. 16 Estágio de estudos e formação, em certas ordens ou congregações católicas, de jovens para a vida eclesiástica e exercício do magistério religioso. Estabelecimento de ensino e preparação de jovens para a carreira religiosa. 17 LIVRO de Atas do Colégio Marista Conceição. Livro 01. Data 1910 –1939.p.53. 18 O sistema de internato é composto, além do corpo docente e discente, por uma grande estrutura de um complexo físico, onde os estudantes transitam regradamente entre salas de aulas, dormitório, refeitórios, biblioteca, áreas verdes, etc; O regime de internato inclui alojamento durante os dias úteis e/ou também durante o fim de semana. Geralmente são localizados em áreas rurais ou afastadas do centro das cidades. [ 230 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Para Erving Goffman os Internatos fazem parte de um círculo muito estreito, ao qual ele denomina Instituições Totais. Segundo o autor19, as instituições totais se caracterizam por serem estabelecimentos fechados que funcionam em regime de internação, onde um grupo relativamente numeroso de internados vive em tempo integral. A instituição funciona como local de residência, trabalho, lazer e espaço de alguma atividade específica, que pode ser terapêutica, correcional, educativa etc. A Instituição total é aquela que controla ou busca controlar a vida dos indivíduos a ela submetidos, substituindo as possibilidades de interação social por "alternativas" internas. Para o autor, o internado começa a agir de maneira que o seu “eu” passa por transformações dramáticas do ponto de vista pessoal e do seu papel social. A criança inserida em um modelo de internato, seja religioso ou não, sofre um processo de “supressão do eu” gerando o enclausuramento da “concepção de si mesmo” e seu ethos20, que são formadas na vida familiar e civil e não são aceitas pela sociedade aparente e suas normativas. Fazendo-o perder seu conjunto indenitário e segurança pessoal, gerando desequilíbrio e suscetibilidade ao ideário propagado na instituição ao qual o estudante está submetido. Os estabelecimentos fechados por muros que delimitam seu território apresentam algumas características distintivas: os indivíduos internados têm, como parte de suas obrigações, uma participação visível nos momentos adequados às atividades do estabelecimento. Isso exige deles uma mobilização da atenção e do esforço muscular, além de certa submissão pessoal à atividade em questão. Essa participação obrigatória na atividade do estabelecimento é considerada como um símbolo do compromisso e da adesão do indivíduo, implicando também a aceitação por ele das consequências da participação para uma definição de sua natureza, papel e posição de internado. Os problemas de adesão visíveis nas atividades programadas do estabelecimento são indicadores do modo como os indivíduos se adaptam ou não ao papel e definição que o estabelecimento lhes impõe. 21 Dessa maneira, encontrando-se isolado, o aluno passa a desenvolver um sentimento de abandono, um desejo de anonimato e os contatos com o mundo externo e com a realidade (que não seja a da própria instituição de ensino) são evitados. Inexoravelmente, para ser aceito no grande contexto, o indivíduo despoja-se de suas defesas e satisfações, enfim, aprende a viver sob as condições que lhes são apresentadas. O esforço alheio é incorporado por meio de “coerção particular” (o coagido obedece involuntariamente), pois necessita seguir as regras que o local onde está inserido impõe, como horários para realização de tarefas, grade curricular, atividade práticas, doutrinas religiosas (em casso de colégios religiosos, conventos ou seminários) bem como a ideologia que é disseminada. O período em que estudante fica internado e subjugado constitui uma parte significativa do período vital total do indivíduo; pois é nessa fase etária, segundo Vygotsky, que os sujeitos solidificam sua personalidade, suas concepções de certo e errado, bem e mal, através de suas relações de exemplificação para com o meio ao qual estão inseridos. 22 Portanto esse lapso de tempo no qual o indivíduo vive como internado pode deixar marcas profundas na sua subjetividade. A linha que separa a personalidade os internos do contexto e da ideologia da Instituição de ensino onde encontra-se submetido torna-se tênue. Uma vez que, inicialmente o interno, ao se encontrar isolado e GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.p.20. Ethos é uma palavra usada para descrever o conjunto de hábitos ou crenças que definem uma comunidade ou nação. O ethos são os costumes e os traços comportamentais que distinguem um povo, os traços sociais e afetivos que definem o comportamento de uma determinada pessoa ou cultura. 21 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.p.17-18. 22 BENELLI, Sílvio José. O internato escolar como instituição total: Violência e subjetividade. Psicologia em Estudo, Maringá: v. 7, n. 2, p. 19-29, jul./dez. 2002. Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/O%20internato%20Escolar%20como%20institui%C3%A7%C3%A3o%20total%20Viol%C3%AAncia%20e%20Subjetividade..pdf>. Acesso em 19.07.2018. p.19. 19 20 [ 231 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS totalmente submerso – nem sempre de maneira voluntária- ao contexto ideológico e de regramentos, adere e reproduz, inconscientemente, características e práticas difundidas pela entidade ao qual está vinculado. As práticas sociais foram o grande instrumento para a “modelagem” da subjetividade dos indivíduos internos, pois conforme demonstra Benelli, um estudante de colégio interno acaba por sentir orgulho de pertencer a essa instituição de ensino; uma vez que o mesmo não perde totalmente seus direitos civis e a duração de sua permanência no internato é limitada, sabendo que retornará ao meio social. Como membro da comunidade escolar, o estudante depende em grande medida do que o colégio lhe proporcione quanto ao seu bem-estar, alojamento, recreação, saúde, etc. Ele também está bastante sujeito ao sistema de autoridade e controle institucional (normas sobre a admissão, expulsão, regulamentos, aproveitamento acadêmico e comunitário e condições de graduação). 23 Foucault demonstra, ao estudar o funcionamento do poder nas sociedades modernas, que nos conventos e no exército, já existiam (há muito tempo) meios e processos disciplinadores e de subordinação. “Mas as disciplinas se tornaram no decorrer do século XVII e XVIII formas gerais de dominação” 24. Para Beneelli “seriam uma sofisticação da tecnologia conventual monástica que, apesar de implicar a obediência a um superior, tinha como objetivo principal o aumento do autodomínio” 25. Sendo essa a metodologia empregada pela Congregação Marista em seus colégios -metodologia baseada no modelo de ensino Lazarista- pois nos primórdios da fundação da Comunidade (1822) houve, na França, um contato direto entre esses grupos religiosos. Champagnat, movido de seu ideário de catequização e evangelização utiliza-se do modelo de ensino Lazarista para formatar a metodologia Marista 26. Baseada em Colégios de Internatos, em modelos Confessionais, ou seja, vinculado a igrejas ou confissões religiosas. A escola confessional baseia os seus princípios, objetivos e forma de atuação numa religião, diferenciando-se, portanto, das escolas laicas. Para essas escolas o desenvolvimento dos sentimentos religiosos e moral nos alunos é o objetivo primeiro do trabalho educacional, procurando ter um embasamento filosófico-teológico. Ao abordar uma metodologia religiosa, a Congregação Marista buscava formar “bons cristãos e virtuosos cidadãos” ao “tornar Jesus Cristo conhecido e amado”. Foi com a catequese como forte aliada no internato que os Irmãos Maristas conseguiram enraizar-se e difundirem seus ideais na sociedade passofundense, transformando e formando a subjetividade e o caráter de muitos jovens e estudantes internos. Conforme a Constituição e Estatutos dos Irmão Maristas, era dever dos mesmos, e, por consequência dos estudantes Cada dia, louvamos a Mãe de Deus pelo terço ou outra prática de piedade marial [...] Levamo-los a rezar muitas vezes a essa Boa Mãe e a imitá-la. [...] asseguramos aos jovens uma catequese marial. Dedicamo-nos inteiramente a esse ministério (catequese) confiantes na ajuda do Senhor e na proteção de Maria. Nessa percepção os colégios em modelo de internato mostram-se totalmente eficientes para a finalidade de propagar e disseminar o processo civilizatório. “Educa-se para a vida”, deixa-se de lado os modos rudes, descobre-se rotinas, normas, para assim aprender a conviver corretamente em sociedade. Nesse contexto os Colégios Maristas também além de terem esse papel de possuírem o papel de ensinar, possuem o papel de educar, tanto subjetivamente como na fé católica. BENELLI, Sílvio José.Ibid.. 2002. Acesso em 19.07.2018.p.21. FOUCAULT, Michel. (1999b). Vigiar e punir: nascimento da prisão. 21ª ed. Petrópolis: Vozes. p.118. 25 BENELLI, Sílvio José. Idem. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103166X2004000300008&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em 19.07.2018. p.249. 26 ZIND. Ir. Pierri, F.M.S. Seguindo os passos de Marcelino Champagnat. Centro de Estudos Maristas: Belo Horizonte, 1988. p.205. 23 24 [ 232 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Portanto, nesse sentido, progresso significa dominação. Dominação do “eu”, eu psicológico, dos instintos -considerados grosseiros e impulsivos- a fim da construção de um “eu” aceito socialmente. E nesse contexto dominação, por consequência, significa civilidade, evolução. Bibliografia AZZI, Riolando. A presença da Igreja católica na sociedade brasileira e formação das dioceses no período republicano. In: SOUZA, Rogério Luiz; OTTO, Clarícia (Org.). Faces do Catolicismo. Florianópolis: Editora Insular, 2008. AZZI, Riolando. A Igreja Católica na formação da sociedade brasileira. São Paulo: Editora Santário, Aparecida, 2008. BENELLI, Sílvio José. A instituição total como agência de produção de Subjetividade na sociedade disciplinar. Estudos de Psicologia, Campinas, v.21, n.3, p.237-252, setembro/dezembro 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103166X2004000300008&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em 19.07.2018. BENELLI, Sílvio José. O internato escolar como instituição total: Violência e subjetividade. Psicologia em Estudo, Maringá: v. 7, n. 2, p. 19-29, jul./dez. 2002. Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/O%20internato%20Escolar%20como%20institui%C3%A7 %C3%A3o%20total%20Viol%C3%AAncia%20e%20Subjetividade..pdf>. Acesso em 19.07.2018. Constituição e Estatutos dos Irmãos Maristas. FOUCAULT, Michel. (1999b). Vigiar e punir: nascimento da prisão. 21ª ed. Petrópolis: Vozes. GIOLO, Jaime. Estado & Igreja na implantação da República Gaúcha: a educação como base de um acordo de apoio mútuo. Série-Estudos-Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB 27 (2013). GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. HENZ. Ir. Alfredo. Maristas no Brasil Meridional. Porto Alegre: CMC, 2000. LANFREY. Irmão André. Marcelino Champagnat e os Irmãos Maristas – Professores congregacionistas no século XIX-. Brasília: UMBRASIL União Marista do Brasil. 1999. LIVRO de Atas do Colégio Marista Conceição. Livro 01. Data 1910 –1939. MEDEIROS. Marcia Maria. Cara ou Coroa – Católicos e Metodistas no Planalto Médio Gaúcho (início do século XX).Passo Fundo: UPF . 2007. PIERRARD, Pierre. História da Igreja. São Paulo: Edições Paulinas, 1982. p.180-297. ROSSO. Miriam Maraschin; SIQUEIRA. Rosimar Serena. A formação educacional e culturalde Passo Fundo. In: DIEHL, Astor Antônio (Organizador). Passo Fundo: Uma história, várias questões. 1.ed. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 1998. p. 97. SERPA. Élio Cantalício. Igreja e poder na Primeira República. In: SOUZA, Rogério Luiz; OTTO, Clarícia (Org.). Faces do Catolicismo. Florianópolis: Editora Insular, 2008. ZIND. Ir. Pierri, F.M.S. Seguindo os passos de Marcelino Champagnat. Centro de Estudos Maristas: Belo Horizonte, 1988. [ 233 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Escravidão: a realidade pós-abolição e o caso dos “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil” Pamela De Almeida Araújo1 Maira Angelica Dal Conte Tonial 2 Resumo: O mundo do trabalho acompanha a sociedade desde a sua existência, pois desde o início o ser humano precisou utilizar sua força laboral para defender-se e manter-se coletando e caçando para sua própria subsistência. Porém, ao decorrer da história, o mundo do trabalho passou por uma série de transformações, levando o homem, a assumir papéis diferenciados no contexto social e, em determinados momentos da história, ser impelido à feitura de trabalhos forçados, contra a vontade. Num primeiro momento a escravatura teve um contexto sócio político e num segundo momento a característica mercadológica. E, somente, após a abolição da escravatura, datada de 13 (treze) de maio de 1888, com a instituição da Lei Áurea, o Brasil declarou oficialmente o fim da escravidão. Assim, supostamente as relações de trabalho forçadas deveriam ter encerrado seu ciclo histórico, mas passado mais de um século da extinção oficial da escravidão, porém, a realidade que se constata no Brasil hoje é um pouco diferente do idealizado. Embora, existissem legislações no Brasil para evitar abusos, ainda hoje persiste a memória escravagista no país que conta, sobretudo, com a não efetividade dessas normas. O que ocasionou no ano de 2015 a condição de réu do Estado Brasileiro, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por conivência com o trabalho escravo no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. O Brasil foi condenado pela Corte, em sentença datada de 20 de outubro de 2016, com a determinação de indenizar por danos imateriais os resgatados, bem como, tomar medidas legislativas que tornassem imprescritíveis os crimes de redução de pessoas à escravidão e suas formas análogas. Tornando-se, em pleno século XXI, o Brasil, o primeiro país condenado nessa matéria pela OEA (Organização dos Estados Americanos). A presente pesquisa objetiva realizar uma análise sobre o mundo contemporâneo do trabalho e a situação de trabalhadores condicionados a laborar em situação análogas as de escravos, porém, agora revestido de novas características. Nesse sentido a busca histórica se tornará essencial para a definição e contextualização do fenômeno do trabalho escravo, que será abordado especificamente no Brasil, com recorte histórico específico, dos avanços e retrocessos pósabolição da escravidão e, principalmente após o caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. “Querer ser livre é também querer livres os outros” (Simone de Beauvoir) INTRODUÇÃO O mundo do trabalho acompanha a sociedade desde a sua existência, pois desde o inicio o ser humano precisou utilizar sua força laboral para defender-se e manter-se coletando e caçando para sua própria subsistência. Porém, ao decorrer da história, o mundo do trabalho passou por uma serie de transformações, levando o homem, a assumir papéis diferenciados no contexto social e, em determinados momentos da história, ser impelido à feitura de trabalhos forçados, contra a vontade. A escravidão perpetua-se mas a cada época busca contornos diferentes. A partir do caso Trabalhadores Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil verifica-se a escravidão num novo contorno em que a dignidade do trabalhador é aviltada. A presente pesquisa objetiva realizar uma análise sobre o mundo contemporâneo do trabalho e a situação de trabalhadores condicionados a laborar em situação análogas as de escravos, porém, agora revestido de novas características. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo-RS, com ênfase na linha de pesquisa Jurisdição Constitucional, Integrante do Grupo de Pesquisa Dimensões do Poder, Gênero e Diversidade e do Grupo Direitos Humanos e Democracia na América Latina, Bolsista Capes, pam.ufg@gmail.com . 2 Mestre em Direito pela Unisinos, Doutoranda pelo do Programa de Pós Graduação em Direito da Univali, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo, e-mail: mairatonial@upf.br . 1 [ 234 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 1. A REALIDADE PÓS-ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO BRASIL E A LIBERDADE DO TRABALHO A grande maioria dos historiadores brasileiros, segundo Silvia Hunold Lara (1998, p.26), tratam a história do trabalho no Brasil, a partir do final do século XIX e início do século XX, num contexto de um trabalho livre (assalariado), também tomado por conta dos imigrantes, já que os ex-escravos poderiam não deter a mesma qualificação daqueles. Entretanto, para a autora, “a história social do trabalho no Brasil contém, em si mesma, um processo de exclusão: nela não figura o trabalhador escravo. Milhares de trabalhadores, que durante séculos, tocaram a produção e geraram riqueza no Brasil ficam ocultos [...]” (LARA,1998, p.26). Toda essa análise é feita pela autora Silvia Hunold no seu artigo intitulado “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. A autora realiza uma crítica à historiografia de transição e a teoria da substituição do escravo pelo imigrante, principalmente no século XIX, em que segundo a autora, há um tremendo hiato que separam essas fases e que muitos livros de história não dispõem (LARA,1998, p.27-28). Nesse sentido, relata a autora que esse hiato do período de transição da escravidão (em que o labor era exercido por seres coisificados) para a formação do mercado de trabalho livre, assalariado (lugar dos sujeitos históricos) no Brasil é marcado por uma exclusão dos escravos da sua própria história. Isso se deve em razão de que “em nome da justiça e da humanidade burguesas, os abolicionistas erigiam-se em procuradores dos oprimidos, excluindo-os das lutas pelas liberdades [...]” (LARA, 1998, p.28). E são muitos os tipos de liberdade e lutas pela liberdade. Escreve ainda a autora que, no período do século XIX e início do XX , as “noções diferentes de liberdade e trabalho livre estiveram em luta”, em razão disso, nos deparamos com a dificuldade em entendermos a liberdade como “a possibilidade de vender ‘livremente’ a força de trabalho em troca de um salário”. (LARA, 1998, p.28). A autora aduz que estudos têm revelado novos aspectos das relações entre escravidão e liberdade nas últimas décadas do século XIX . Nesse sentido, a autora afirma que Reid Andrews analisa as primeiras décadas do pós abolição e detecta a presença de vários trabalhadores negros em diversas ocupações, seja no mercado urbano, seja no rural. Depoimentos coletados na imprensa da época relatam que “para o liberto, as demandas relativas às condições de trabalho eram até mais importantes que o nível dos salários: buscavam afastar qualquer reminiscência característica com a escravidão, tendiam em não aceitar empregos em plantações onde tinham sido escravos, preferiam viver longe de seus patrões, procuravam retirar mulheres e crianças do trabalho. Diante deste tipo de demandas, que do ponto de vista dos libertos eram funcionais na definição de liberdades” O ser humano “coisificado” e tratado como propriedade de outrem é marca característica comum da escravidão anterior a Lei Àurea (Lei n.3.353, de 13 de maio de 1888), que aboliu, ao menos formalmente, essa forma de escravidão. Todavia, mesmo após a abolição formal, se vê que a escravidão se perpetuou no tempo, de modo que assumiu e assume novas conotações. O ser humano coisificado na escravidão dos séculos passados distingue-se do modo contemporâneo de escravidão. A liberdade humana do trabalhador é restringida não somente por meios diretos, mas indiretos também. Levando-se em consideração que coerções podem ocorrer de maneira física e moral, de modo a cercear as escolhas de um trabalhador. Até mesmo após a abolição os ex-escravos puderam impor, segundo Silvia Hunold, exigências maiores que aquelas dos imigrantes em situações em que a escolha era possível. Não obstante, a experiência escrava moldou as ações e reivindicações dos libertos no período pós-abolição, segundo a autora “a marginalização dos negros não aparece mais como ‘marcas’ da escravidão, da falta de habilidades para o [ 235 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS mercado trabalhista [...] mas se explica por uma análise que leva em conta os confrontos entre trabalhadores e seus patrões”, além das tensões raciais. (LARA, 1998, p.35). Importante mencionar que os direitos trabalhistas podem funcionar, como bem adverte a historiadora Angela de Castro Gomes (2012, p.169), como uma “ponta de lança para a defesa dos direitos da pessoa humana numa sociedade que se quer democrática”, ou pelo menos se pretende ainda ser democrática. Nesse contexto cabe trazer a visão do economista Amartya Sen, quando afirma que o êxito de uma sociedade deve ser avaliado primeiramente de acordo com as liberdades substantivas que os membros dessa sociedade desfrutam. (p.33) Já que ter mais liberdade melhora o potencial das pessoas para cuidar de si mesmas e influenciar o mundo, que segundo Sen, são questões centrais do desenvolvimento. 2. RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO BRASILEIRO POR VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS Verifica-se ainda que não obstante o ser humano ser “coisificado” na escravidão anterior a Lei Àurea (Lei n.3.353, de 13 de maio de 1888), ainda persiste novos modos de escravidão, com outras conotações diferentes, que pode ser direta ou indiretamente, com coerção física ou moral, de modo a violar direitos humanos, bem como atingir a dignidade do trabalhador, seja com a ação ou omissão do Estado. Nesse sentido cabe destacar o conceito de dignidade definido por Sarlet: a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2007, p. 383) Nesse contexto, importantes organizações internacionais e regionais se consolidaram, sobretudo após a Segunda Grande Guerra Mundial. As organizações surgiram de modo a estabelecer propósitos de preservação dos direitos humanos, dignidade humana, o desenvolvimento, dentre outras funções. É o caso da Organização internacional do Trabalho (OIT) e Organização dos Estados Americanos (OEA), dentre outras. Para o presente capítulo e desenvolvimento do trabalho a maior ênfase será dado à OEA. A OEA se constituiu como importante organização regional fundada em 1948, com sede em Washington, cujos países-membros se comprometeram defender os interesses do continente americano. Nesse contexto surgiu a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, um tratado internacional entre os países-membros da OEA, mas também conhecida a Convenção como o Pacto de São José da Costa Rica que foi celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 e promulgado no Brasil pelo Decreto número 678, de 6 de novembro de 1992. Para dar cumprimento ao contido na Convenção, foram criados dois órgãos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. No preâmbulo da Convenção se fala em respeito aos direitos humanos essenciais, justiça social e regime de liberdade pessoal, no âmbito interno do quadro das instituições democráticas. Ressalta-se ainda a importância dos princípios consagrados em Cartas e Declarações internacionais, reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser humano livre só poderia ser realizado isento do temor, miséria, bem como, com a criação das condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos. [ 236 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Não obstante a maior ênfase na proteção dos direitos civis e políticos, os direitos sociais e econômicos são tratados apenas no Capítulo III da Convenção, num único artigo, o artigo 26 da Convenção que tratou como um compromisso do Estado com seu desenvolvimento progressivo. Todavia em complementação à proteção dos direitos sociais na Convenção foi aprovado o Protocolo de San Salvador. O referido Protocolo é adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O Brasil o ratificou em 1996 e o pacto entrou em vigor em 1999. Nesse contexto cabe salientar o que os Estados Americanos signatários da referida Convenção convieram no seu artigo 6º: Artigo 6º - Proibição da escravidão e da servidão 1. Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas. 2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de proibir o cumprimento da dita pena, imposta por um juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso. No Protocolo de San Salvador os Estados também convieram respectivamente nos artigos 6º, 7 e 8º o direito ao trabalho , bem como a condições justas, equitativas e satisfatórias de trabalho e também direitos sindicais. Os artigos declaram a importância dos Estados adotarem medidas de modo a garantir a plena efetividade do direito ao trabalho. Todavia esse trabalho exercido de modo que inclua oportunidades de obter meios para uma vida digna. O Brasil, no entanto, não honrou com o propósito Convenção e teve que ser responsabilizado internacionalmente, por violações da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. 2.1 Caso dos Trabalhadores da fazenda Verde Vs. Brasil É importante salientar que antes mesmo do Estado brasileiro ser condenado pela primeira vez pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no final de 2016 pelo caso dos Trabalhadores da Fazenda Verde. Não obstante a existência de normas internacionais, existe no âmbito interno brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil que inclui os valores sociais do trabalho como um dos princípios fundamentais da República. Ainda assim, mesmo o trabalho considerado um direito fundamental, haja vista estar elencado entre os direitos sociais e uma série de direitos trabalhistas previstos no rol do artigo 7º da Carta Magna, infelizmente não são garantia de efetividade. 3. CONCLUSÃO A realidade pós-abolição brasileira é ainda marcada pela escravidão, mas com novas características, atualmente temos a escravidão contemporânea. Num primeiro momento a escravatura teve um contexto sócio político e num segundo momento a característica mercadológica. E, somente, após a abolição da escravatura, datada de 13 (treze) de maio de 1888, com a instituição da Lei Áurea, o Brasil declarou oficialmente o fim da escravidão. Assim, supostamente as relações de trabalho forçadas deveriam ter encerrado seu ciclo histórico, mas passado mais de um século da extinção oficial da escravidão, porém, a realidade que se constata no Brasil hoje é um pouco diferente do idealizado. Embora, existissem legislações no Brasil para evitar abusos, ainda hoje persiste a memória escravagista no país que conta, sobretudo, com a não efetividade dessas normas. Entre os anos de 2003 e [ 237 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 2017, foram resgatados 43.696 (quarenta e três mil seiscentos e noventa e seis) trabalhadores em situação análoga à de escravo no Brasil. Ainda que o Estado Brasileiro tenha sido condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por conivência com o trabalho escravo no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, verifica-se a necessidade de dar continuidade à busca de mecanismos para maior proteção ao sujeito nos casos que envolvem essa violação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANJOS, Fernando Vernice Dos. Análise Crítica da Finalidade da Pena na Execução Penal: ressocialização e o direito penal brasileiro. 2009. 175 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Departamento de Direito Público, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-13042010- 145345/pt-br.php Acesso em: 17 abr. 2015. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou Controle Social: uma abordagem crítica da “reintegração social” do sentenciado. Disponível em: http://scholar.googleusercontent.com/scholar?q=cache:aCUXurUWjUJ:scholar.google .com/+preven%C3%A7%C3%A3o+especial+negativa&hl=pt-BR&as_sdt=0 . Acesso em: 10 de abr, de 2015. 163 Silvia Hunold Lara. ESCRAVIDÃO, CIDADANIA E HISTÓRIA DO TRABALHO NO BRASIL. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/11185 Acesso em 10 de set de 2018 [ 238 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Biopoder x empresas transnacionais : a ingerência na soberania dos estados Pamela De Almeida Araújo1 Maira Angelica Dal Conte Tonial 2 Resumo: Objetiva-se com a presente pesquisa realizar uma análise sobre o mundo contemporâneo do trabalho e a influência das empresas transnacionais na soberania dos povos, pois é sabido que alguns Estados terminam por ceder a pressões advindas de grandes corporações modificando inclusive seu próprio ordenamento jurídico. A nova era - da pós modernidade - como muitos gostam de nominar, trouxe a diversas nações o medo do fenômeno da perda da soberania. Explica-se: os Estados que antes se apresentam como mecanismos autônomos e soberanos em determinados momentos aceitam flexibilizar sua soberania em prol de ouros interesses. No direito do trabalho esse fenômeno se apresenta de forma bastante clara. Se antes o homem trabalhava apenas para seu próprio sustento, com o passar do tempo, essa relação com o mundo do trabalho foi se modificando. Na contemporaneidade, observa-se que o mercado de trabalho está dominado por grandes empresas, que empregam grande parte da população mundial e que compreendem um imenso poderio e influencias políticas. O presente trabalho buscará analisar, primeiramente o conceito de biopoder, denominação proposta por Michel Foucault, que traz reflexões sobre ações que interferem nas características vitais da existência humana, inclusive referente ao mundo do trabalho. Este fenômeno que Foucault chama de biopoder, que a partir da forma de governamentabilidade adotada pela Empresa transnacional, busca a partir de práticas e regras próprias exercer seu poder econômico tanto sobre seus empregados, quanto a sociedade que geral, haja vista que através da utilização de discursos próprios influencia sobremaneira na própria economia e soberania estatal. Introdução Objetiva-se com a presente pesquisa realizar uma análise sobre o mundo contemporâneo do trabalho e a influencia das empresas transnacionais na soberania dos povos, pois é sabido que alguns Estados terminam por ceder diante às pressões advindas de grandes corporações modificando inclusive seu próprio ordenamento jurídico. O presente trabalho buscará analisar, primeiramente a compreensão do fenômeno da transnacionalidade e como ele se posiciona no âmbito do direito laboral eposteriormente o conceito de biopoder e como o mesmo age na governabilidade adotada pela empresa transnacional . 1. Globalização e Transnacionalização no mundo do Trabalho Se antes o homem trabalhava apenas para seu próprio sustento, com o passar do tempo, essa relação com o mundo do trabalho foi se modificando. O mundo do trabalho passou por várias fases: desde o dispêndio da força humana para sua própria mantença, após relações subordinadas forçadas de trabalho (escravidão),relações hibridas de prestação de serviços (servidão) . Essa relação homem X trabalho, passou por constantes mudanças e continua sofrendo a ingerência de mutações. Os moldes da vida e da cultura atuais não são mais os mesmos comparados aos do século passado. Passadas gerações, a relação de trabalho e sua inserção no mundo - então globalizado - ainda causam severos impactos nas comunidades. Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo-RS, com ênfase na linha de pesquisa Jurisdição Constitucional, Integrante do Grupo de Pesquisa Dimensões do Poder, Gênero e Diversidade e do Grupo Direitos Humanos e Democracia na América Latina, Bolsista Capes, pam.ufg@gmail.com . 2 Mestre em Direito pela Unisinos, Doutoranda pelo do Programa de Pós Graduação em Direito da Univali, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo, e-mail: mairatonial@upf.br . 1 [ 239 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Uma das principais causas das mutações laborais deve-se ao fenômeno da globalização mecanismo responsável pela integração mundial, que flexibilizou as soberanias dos Estados - o que anteriormente era considerado como Estados absolutos (soberano na sua essência), hoje cede a pressões internacionacionais. Devido àscausas financeiras, as empresas buscam se adequar aos moldes financeiros mundiais o que leva algumas corporações lesar os trabalhadores no que tange aos direitos fundamentais e sociais internacionalmente consagrados. Na contemporaneidade, observa-se que o mercado de trabalho está dominado por grandes empresas, que empregam grande parte da população mundial e que detém um imenso poderio e influências políticas. No conexo globalizado em que se encontra o mundo atualmente, as empresas têm optado por expandir suas atividades produtivas para territórios onde a rigidez da legislação trabalhista será mais mitigada - ou seja - na impossibilidade de se reduzir o valor das matérias primas (para transformar a empresa mais competitiva), trabalha-se na redução do valor da mão de obra. Esse fenômeno tem ocasionado o deslocamento de grandes empresas a países que permitem que a sua legislação interna passe por processos modificativos a fim de atender os interesses dessas grandes corporações. A nova era - da pós-modernidade-como muitos gostam de nominar, trouxe a muitas nações o medo do fenômeno da perda da soberania. Explica-se: os Estados que antes apresentam como mecanismos autônomos e soberanos em determinados momentos aceitam flexibilizar sua soberania em prol de ouros interesses. Sob a ótica das empresas transnacionais, a concorrência (muitas vezes desleal) acarreta a utilização da mão de obra barata em benefício burlando legislação trabalhista e às vezes tributária. Assim, as grandes corporações acabam fechando as suas portas quando as legislações garantidoras de direitos fundamentais e sociais acabam protegendo os trabalhadores. Assim, frente à instabilidade da economia mundial, as empresas transnacionais procuram se enquadrar nos moldes atuais de uma globalização que se direciona no sentido inverso do bem estar social, levando os trabalhadores a um sério prejuízo. Dessa forma, Zambotto declara: Com a globalização, o mundo empresarial mostra-se cada vez mais competitivo. Essa competitividade faz com que o empregador tenha que se adaptar às necessidades do mercado, precisando reduzir gastos, e tal economia acaba por refletir em prejuízo ao trabalhador, o qual é o pólo mais fraco da relação de trabalho. Assim, com a flexibilização,o empregado tem se submetido a situações degradantes, como redução salarial, jornada de trabalho excessiva, sem falar nos efeitos indiretos como a exploração demasiada do trabalhador, fazendo com que ele se submeta a uma carga de trabalho descomunal, situações na qual tem-se um funcionário trabalhando por quatro. (ZAMBOTTO, 2014, s.p.) Importante ressaltar que em relação ao Direito do Trabalho, a Constituição Federal, alçou os diretos laborais como diretos fundamentais, trazendo no bojo do artigo sétimo alguns direitos que devem ser respeitos na confecção de todo e qualquer contrato de trabalho. A legislação infraconstitucional, principalmente por meio da Consolidação das Leis do Trabalho e também demais legislações esparsas, trouxeram as bases sobres as quais uma relação de trabalho deve se regrar, para que não haja infringência aos direitos fundamentais dos trabalhadores. Além de convenções e recomendações internacionais.Neste sentido, tais documentos legais devem ser respeitados e observados. Ocorre que, a busca pela competitividade tem gerado por parte de algumas empresas a necessidade de adaptações ao ordenamento jurídico, de forma a tornar a legislação protetiva menos incisiva nas relações laborais, ou seja, mais permissiva ao atendimento dos interesses financeiros. [ 240 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Assim, as empresas (geralmente de cunho transnacional) que aqui se instalam, usando como exemplo o caso brasileiro, devem se submeter às regras impostas pelo ordenamento constitucional e infraconstitucional aqui posto. Isso porque, o estado é soberano e o Poder Legislativo, Executivo e Judiciário de forma articulada definiram como deve ser gerido o Estado Brasileiro, No entanto, em determinados momentos, observa-se a ingerência de mecanismos externos que pressionam a mudança da legislação interna para atendimento de seus interesses. Historicamente o Brasil passa por um processo de construção de mecanismos que consolidam o mecanismo protetivo trabalhista. Caso emblemático pode ser trazido neste momento, no que tange as recentes alterações em nosso ordenamento jurídico laboral - teriam sido pressões externas que fizeram com que a nossa Consolidação das Leis do Trabalho sofresse alterações para possibilitar uma maior flexibilidade nas relações laborais? Opoder emana do povo e em eu nome deve ser exercido, à medida queexistem influências externas a soberania nacional entra em colapso. A transnacionalidade é um fenômeno que surgiu da globalização que enfatiza o capital como o principal fator econômico em escala planetária que, por sua vez, altera as relações jurídicas internacionais.Assim relata Stelzer: A Transnacionalização pode ser compreendida como um fenômeno reflexivo da globalização, que se evidencia pela desterritorialização dos relacionamentos político-sociais, fomentado por sistema econômico capitalista ultra valorizado, que articula ordenamento jurídico mundial à margem da soberania dos Estados. A transnacionalidade insere-se no contexto da globalização e liga-se fortemente com a concepção do transpasse estatal. Enquanto a globalização remete à idéia de conjunto, de globo, enfim, o mundo sintetizado como único; Transnacionalização está atada à referência de Estado permeável, mas tem na figura estatal a referência do ente em declínio. (STELZER, 2009, p. 21) Na atualidade, os Estados ganharam características transnacionais impulsionados pelo fenômeno da globalização. No contexto empresarial, o fator econômico é transferido de uma empresa situada em um Estado para as filiais em outros Estados. Dessa forma, Chacon explica: Na virada do século XX para o XXI, os Estados vão deixando de ser nacionais e plurinacionais e passam a ser – os que para isso dispõem de poder econômico e científico-tecnológico, por tanto militar e político – Estados transnacionais: Seu poder econômico lhes é dado por suas empresas também transnacionais, no sentido, antes definido, de sediadas num Estado-nação e dele projetadas em outros. Empresa transnacional e Estado transnacional acompanham-se, braços da mesma cultura-civilização que os gerou e mantém, cultura significado o que são os seus homens, e civilização, o que fazem, aquela seiva desta. (CHACON, 2002, p. 19) Porém, o processo da transnacionalização acarreta um mal às relações trabalhistas internacionais. As grandes organizações, aquelas que detêm o capital, necessitam de um número muito maior de trabalhadores ao passo que, no cenário internacional, quando as pessoas se direcionam para o seu bem-estar e para a sua qualidade de vida, podem estar caminhando ruma à flexibilização de direitos fundamentais e sociais (o que favorece as empresas irregulares). Nesse contexto, Bauman apresenta: Devido à total disseminação das regras de livre mercado e, sobretudo, ao livre movimento do capital e das finanças, a ‘’economia’’ é progressivamente isentada do controle político; com efeito, o significado primordial do termo ‘’economia’’ é o de ‘’área não política’’. O que quer que restou da política, espera-se deve ser tratado pelo Estado, como nos bons velhos tempos – mas o Estado não deve tocar em coisa [ 241 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS alguma relacionada à vida econômica: qualquer tentativa nesse sentido enfrentaria imediata e furiosa punição dos mercados mundiais. (BAUMAN, 1999, p. 74) Esse é um dos desafios que a sociedade global enfrente na atualidade no âmbito das relações internacionais de trabalho em decorrência da globalização por serem demandas novas e complexas que não encontram respostas na atual estrutura jurídica. A realidade que se enfrenta em decorrência da flexibilização dos direitos sociais se torna um ciclo visando sempre o lucro das corporações e a utilização de mão de obra barata para gerar menos custos. Em âmbito internacional, a fiscalização nas empresas irregulares é muito difícil, ficando essa incumbência para o Estado defender os direitos trabalhistas. Assim Pasold: A flexibilização dos direitos fundamentais corrobora a ação antiética promovida pelas empresas ou corporações transnacionais. O Estado transnacional deverá pautar sua formulação – política, econômica, social – pela proteção às pessoas pelos critérios adequados nos quais se percebem o significado das múltiplas interretroações entre as culturas do mundo. A partir dessa experiência do ser-comoutroparticipam interesses de cunho político preparados para elaborar esse novo espaço democrático. (PASOLD, 2010, p. 127) Para Edgar Morim, citado por Gabriel Ferrer, sustenta que énecessária a realização de uma política normatizando a globalização para evitar o retrocesso. Deve-se assegurar o interesse geral por meio de novos modelos de vida e de Democracia. (FERRER, 2012, s.p.) A Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem por objetivo tutelar os direitos sociais e fundamentais dos trabalhadores nos países que ratifiquem as suas Convenções ou Recomendações. Dessa forma, os autores Paixão, Rodrigues e Caldas explicam: No âmbito da OIT, é interessante destacar a Declaração relativa aos princípios e direitos fundamentais do e no trabalho. Essa Declaração foi adotada em 1998 e por ela os Estados Membros, quer tenham ou não ratificados os convênios nela compreendidos, comprometem-se a respeitar e promover os direitos inseridos nas seguintes categorias: a liberdade de associação e a liberdade sindical e o efetivo reconhecimento do direito de negociação coletiva; a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório; a abolição do trabalho infantil e, finalmente, a eliminação da discriminação no que diz respeito ao emprego e ocupação. (PAIXÃO; RODRIGUES; CALDAS, 2005, p. 354) Frente à instabilidade econômica que se refletem nas relações trabalhistas internacionais, as Constituições dos Estados devem garantir os direitos fundamentais e sociais, principalmente o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois não se pode transferir o ônus do mercado financeiro global para a parte mais fraca da relação trabalhista. Em âmbito internacional, se estuda uma nova cultura empresarial como forma de fortalecimento das relações trabalhistas internacionais e garantir a efetividade dos princípios internacionalmente consagrados para o trabalho digno. É nesse contexto que, em 1999, o Secretário Geral da ONU fezum convite ao setor privado para que, juntamente com diversas agências das Nações Unidas e atores sociais, contribuísse na busca de uma economia global mais sustentável e inclusiva.O objetivo que ficou conhecido como ‘’Global Compact’’ é encorajar o alinhamento das políticas e das práticas empresariais com os valores e os objetivos aplicáveis internacionalmente e universalmente acordados. Esses valores foram separados em dez princípios-chave, nas áreas de direitos humanos, direitos do [ 242 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS trabalho e proteção ambiental. Essas áreas foram escolhidas por possuírem um potencial efetivo para influenciar e gerar mudanças positivas na sociedade. Os dez princípios são os seguintes: 1. As empresas devem apoiar e respeitar a proteção de direitos humanos reconhecidos internacionalmente na sua área de influência; 2. Assegura-se de sua não participação em violações de direitos humanos; 3. As empresas devem apoiar a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva; 4. Apoiar a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório; 5. Apoiar a erradicação efetivado trabalho infantil; 6. Apoiar a eliminação da discriminação no emprego; 7. As empresas devem adotar uma abordagem preventiva para os desafios ambientais; 8. Desenvolver iniciativas para promover maior responsabilidade ambiental; 9. Incentivar o desenvolvimento e a difusão de tecnologias ambientalmente sustentáveis: 10. As empresas devem combater a corrupção em todas as suas formas, incluindo extorsão e suborno. (PAIXÃO; RODRIGUES; CALDAS, 2005, p. 357-358) Os direitos sociais devem ser defendidos e efetivamente aplicados no âmbito interno de cada Estado, dessa forma qualquer pessoa nesse contexto migratório terá os seus direitos sociais garantidos com o objetivo de evitar o retrocesso e atender os anseios da sociedade. (TONIAL, 2009, p. 32-33). Assim, que a busca da dignidade da pessoa humana e sua proteção pelo Estado será sempre objetivo a ser alcançado. Nesse intento passar-se-á a discorrer sobre o pensamento de Michael Foucault, sobre o biopoder e sua aplicabilidade nas relações laborais. 2. O Biopoder e a sua aplicabilidade no mundo do Trabalho Neste contexto desenhado acima,a presente pesquisa também migrará para o uma inter-relação com o pensamento de Michel Foucault, assim que, buscará analisar, primeiramente o conceito de biopoder, que traz reflexões sobre ações que interferem nas características vitais da existência humana, inclusive referente ao mundo do trabalho. A ideia de biopoder, sua conceituação e seu estudo é de suma importânciana contemporaneidade, visto que no ápice de uma quarta revolução industrial e com o avanço gigantesco das ciências médicas e biológicas, a vida pode ser um alvo fácil da manipulação. Por um lado, se utilizada para o bem da sociedade, será louvável, porem se utilizada em seu verniz negativo, poderá gerar efeitos nocivos. Define-se biopoder “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral do poder” (Foucault, 2008, p. 3). Importante ressaltar que Foucault, em suas obras e em especial nas décadas de setenta buscou trabalhar o fenômeno do poder. E, numa interessante abordagem, buscou demonstrar que, o poder estádiluído em esferas na sociedade, como ele denomina "micro-poderes". Neste sentido ele tenta desconstituir aquela idéia padrão de que o poder somente emana do Estado, como monopólio e único titular. Interessante que adotando uma nova forma de pesquisa e valendo-se de metodologias diferenciadas utilizase do que ele vem a denominar "genealogia" para fazer esse entendimento das diferentes formas de poder permeados na sociedade. Valendo-se desta leitura de que o poder encontra-se dissipado na comunidade, assegura o autor que "o poder opera de modo difuso, capilar, espalhando-se por uma rede social que inclui instituições diversas como a família, a escola, o hospital, a clínica"(Furtado; Camilo2016, p.35). Tal concepção vai de encontro ao que a doutrina tinha como premissa para a justificação do poder - assim entendido como aquele que emana do Estado e tem na soberania seu justificador. Seguindo o entendimento de Furtado e Camilo, que analisando o pensamento de Foucault, afirmam“Exercer o poder torna-se possível mediante conhecimentos que lhe servem de instrumento e [ 243 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS justificação. Em nome da verdade legitimam-se e viabilizam-se práticas autoritárias de segregação, monitoramento, gestão dos corpos e do desejo"(Furtado; Camilo2016, p.35) . Nesse sentido Diniz e Oliveira"Esta denominação é utilizada pelo fato de individualizar o sujeito e usar técnicas disciplinares para utilizá-lo. Ao lado do poder disciplinar, surgirá no final do século XVIII um tipo de poder que será nominado por Foucault de biopoder" (Diniz; Oliveira, p.144). Alça-se, nesse novo entendimento de poder uma questão interessantíssima, qual seja, o homem e seu corpo passam a ser espaços de desenvolvimento do poder, assim: Os mecanismos disciplinares se integram, então, aos mecanismos de segurança e à biopolítica, numa perspectiva mais ampla que é a do poder sobre a vida, do biopoder. É na articulação da anatomopolítica dos corpos (que caracteriza os mecanismos disciplinares) com a biopolítica das populações (enquanto mecanismos de regulação e segurança) que teriam se produzido esse poder e esse saber sobre a vida, o investimento maciço sobre a vida e seus fenômenos, a partir de uma tecnologia refletida e calculada e da introdução da população como objeto de intervenção política, de gestão e de governo.(Martins e Junior, 2009, p. 162) Este fenômeno que Foucault chama de biopoder, é que transportado para o objeto da presente pesquisa busca-se perquirir, pois, a partir da forma de governamentabilidade adotada pela Empresa transnacional, poderá esta buscar a partir de práticas e regras próprias exercer seu poder econômico tanto sobre seus empregados, quanto a sociedade que geral, haja vista que através da utilização de discursos próprios influencia sobremaneira na própria economia e soberania estatal. Visto acima que o fenômeno da globalização ocasionou um forte impacto nas relações laborais, bem como, demonstrou que a fragilização do mercado de trabalho fica bastante atrelado ao impacto ocasionado na ingerência das empresas transnacionais na soberania e autodeterminação dos Estados. Porém, esse fenômenojá havia sido previsto por Foucault, que conseguia captar no biopoder um espaço interessante para a expansão de um processo dominatório de poder “um domínio de saber novo que é a economia política” (Foucault, 2004, p. 79) Furtado e Camilo, analisando a obra de Foucault e as relações do mundo do trabalho faz interessante observação: Fator determinante na configuração do pensamento neoliberal americano será a chamada teoria do capital humano. Duas principais implicações desta teoria podem ser apontadas. A primeira refere-se à tomada do trabalho e do trabalhador como objetos centrais das estratégias neoliberais (Foucault, 2008b). Entendendo-se por capital tudo o que pode ser futuramente revertido em fonte renda, o trabalhador passa a ser considerado o principal elemento produtor de riquezas. O sujeito que trabalha torna-se, portanto, capital humano, estando suas capacidades físicas e psicológicas envolvidas diretamente no processo produtivo. "(Furtado; Camilo 2016, p.40) E ainda, seguindo a mesma linha de pensamento traz: Por conseguinte, o capital humano deve ser melhorado, aperfeiçoado, de forma a tornar-se o mais rentável possível. Isto impõe ao neoliberalismo a necessidade de gerar conhecimento sobre o comportamento individual e coletivo, de assegurar a escolarização e saúde dos indivíduos, situando a população no centro de massivos investimentos estatais "(Furtado; Camilo 2016, p.40) [ 244 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS E, abordando as relações de trabalho, Foucault, faz abordagens específicas do fenômeno capitalista no processo laboral. Entendendo o Autor ser a disciplina um mecanismo de "docilização" do empregado, bem como, a melhor utilidade do mesmo. Assim Pelizzaro "Não é, pois, o poder enquanto elemento de coerção ou de violência que está posto por Foucault, mas o poder enquanto relação estratégica, enquanto um conjunto de tecnologias por meio das quais ele é exercido."(Pelizzaro, 2013 p.155). Ou seja, busca-se a maior produtividade do colaborador, à medida que - sem formas violentas - mas sutis de dominação, obtém os intentos almejados pelos detentores dos meios de produção, assim Foucalt: [...]esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo,que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidadeutilidade, são o que podemos chamar ‘disciplinas’. Muitos processos disciplinares existem há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII formulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custos a e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes (FOUCAULT, 2010, p.133). Neste contexto a utilização de métodos, conforme estudados e explicitados por Foucault poderão ser importantes mecanismos de manipulação do poderio econômico de empresas transnacionais. Conclusão Assim, analisando-se o fenômeno da globalização no mundo do trabalho, e atentando-se ao principal fator abordado nessa pesquisa, qual seja: o avanço do fenômeno transnacional e a forma com que as empresas têm afrontado a soberania dos Estados buscaram discorrer um pouco sobre a fragilidade das relações de trabalhado e a mitigação da proteção estatal. Da mesma forma, utilizando-se dos estudos desenvolvidos por Foucault, onde em seus apontamentos retira do Estado a supremacia do poder (atribuindo-se a outras esferas e instituições), valesea presente pesquisa do conceito de biopoder - para que se possa entender a forma com a qual as empresas transnacionais utilizam-se de seu poder para com seus colaboradores e com a sociedade de forma geral. Bibliografia: BAUMAN, Zygmunt. 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A implantação dessa política favoreceu as grandes propriedades e relegou ao esquecimento e à indiferença a pequena área de terra que era voltada basicamente para a subsistência e comércio local, forçando esses pequenos agricultores a deixarem suas terras e se mudarem para as cidades, situação que se agravou com a construção de usinas hidrelétricas que deixaram muitos agricultores sem terras, pois as desocupações não proporcionaram auxílio posterior. A partir desses acontecimentos, muitas instituições e movimentos surgiram para lutar com esses pequenos agricultores pela conquista de seus direitos. Nesse sentido, esse artigo procura refletir o movimento dos sem-terra da região sudoeste do Paraná a partir da influência da Pastoral da Terra. Pois, a partir da lenda da Terra Prometida e da Doutrina Social da Igreja, criou-se a Pastoral da Terra que buscava construir e implantar projetos de desenvolvimento visando a “agroecologia” que resultaria em relações harmoniosas entre os homens e o meio ambiente. Assim, esse trabalho busca realizar uma compreensão mais apurada sobre presença da Pastoral da Terra no sudoeste do paraná nos anos 1980 e sua participação nos movimentos destes trabalhadores sem-terra, desde sua concepção, organização e movimentações na região, presente em suas ocupações, acampamentos e nos conflitos, trabalhando a partir da ideologia cristã do direito divino e terreno da terra. Palavras-chave: Pastoral da Terra; Doutrina Social da Igreja; Agroecologia; Movimento dos Sem Terra. Abstract : During the military government present in Brazil in the 1960’s until the 1980’s it was established an agrarian policy of modernization of the agriculture, which meant the formation of an agricultural production to industrialization levels. The implantation of this policy favored the big properties and relegated to the forgetfulness and to the indifference the small areas of land which was oriented to the subsistence and to the local market, forcing these small farmers to leave their lands and to move to the towns, situation that was intensified by the building of hydroelectric power plants which left many farmers without their lands, for the vacancies didn´t provide further aid. From these events, many institutions and movements arised to militate with these small farmers for the conquest of their rights. This way, this article intend to think about the landless movement of the southwest region of Paraná from the influence of the Pastoral da Terra. For, starting from the legend of the Promised Land and the Social Doctrine of the Church, the Pastoral da Terra was founded, which pursued to build and to implant development projects looking for the “agroecology”, which would result in harmonious relationships between men and environment. This way, this work means to make a more accurate comprehension about the presence of the Pastoral da Terra in the southwest of Paraná in the 1980’s and its participation in the movements of these landless workers, since its conception, organization and movements in the region, present in their possesions, camps and in the conflicts, working from the Christian ideology of the divine and earthly land right. Keywords: Pastoral da Terra; Social Doctrine of the Church; Agroecology; the Landless Movement. Mestranda no Programa de Pós-Graduação de História na Universidade de Passo Fundo – PPGH/UPF. Bolsista PROSUP/CAPES. Email: ppongan@hotmail.com 1 [ 247 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Introdução O governo militar vigente no Brasil nos anos 60 a 80 introduziu uma política agrária de modernização da agricultura, nomeada como Revolução Verde, que objetivava a formação de uma produção agrícola a patamares de industrialização. A implantação dessa política favoreceu as grandes propriedades e relegou ao esquecimento e a indiferença à pequena área de terra que era voltada basicamente para a subsistência e comércio local, forçando esses pequenos agricultores a deixarem suas terras e se mudarem para as cidades. Na região sudoeste do Paraná não foi diferente, porém essa situação se agravou com a construção de usinas hidrelétricas que deixaram muitos agricultores sem terras, pois as desocupações não proporcionaram auxílio posterior. A partir desses acontecimentos, muitas instituições e movimentos surgiram para lutar com esses pequenos agricultores pela conquista de seus direitos. Direito a terra, a produção, a uma vida digna com sua família. Nesse sentido, fundou-se na região sudoeste do Paraná nos início dos anos 80 o Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste (MASTES), que posteriormente se anexou ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que se organizava em nível nacional batalhando pela Reforma Agrária. Nesse contexto, destaca-se a participação da Comissão Pastoral da Terra criada em 1975, e atuante no sudoeste desde 1978, nos movimentos destes trabalhadores sem terra, desde sua concepção, organização e movimentações na região, presente em suas ocupações, acampamentos e nos conflitos, trabalhando a partir da ideologia cristã do direito divino e terreno da terra. Consequências do agronegócio A vitória alcançada pelos posseiros na Revolta culminada em 1957 na região sudoeste, e suas consequências posteriores, fizeram com que muitos agricultores migrassem para a região concebendo uma estrutura fundiária ocupada por três diferentes formas: pequenos agricultores que produziam para sua subsistência; proprietários de grandes fazendas de gado e empresas exploradoras de madeira; e de trabalhadores rurais que vendiam sua força de trabalho nas grandes fazendas. (PRANDO, 2010) A introdução de medidas econômicas conhecidas como Revolução Verde pelo governo militar na década de 60, buscava industrializar a agricultura brasileira elevando-a a um patamar de negócios, visando o aumento da produtividade agrícola para exportação. Assim, o pequeno agricultor que praticava um produção de subsistência foi prejudicado, pois essa política governamental era projetada exclusivamente para proprietários de médio e grande porte. A introdução do modelo tecnológico internacional produziu o empobrecimento e a saída considerável de pequenos agricultores rurais para a cidade. A perda das pequenas áreas rurais era eminente, visto as dificuldades impostas [...] que não permitia uma evolução dos pequenos produtores rurais nos moldes tecnológicos. (PRANDO, 2010, p.36). Ainda segundo Prando (2010), essa ação de modernizar a agricultura tinha dois intuitos referentes a forma escolhida para aumentar a produção agrícola. A primeira defendia a reforma agrária, e a outra, a adesão de pacotes tecnológicos para os agricultores sem mexer na questão das terras. Nesse contexto, optou-se pelo processo de modernização sem dar relevância a reforma agrária, mas simplesmente ao processo produtivo, que estava firmado nas grandes concentrações de terras nas mãos de poucos, ignorando os pequenos proprietários e suas terras. Durante esse período, segundo Bonin (1991), houve no país incentivos para entradas de empresas estrangeiras, principalmente voltadas para a produção de sementes, máquinas agrícolas, agrotóxicos, tratores, além de estimular investimentos de capital estrangeiro nos processos de produção, até então [ 248 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS subsidiado pelo governo, que financiava os grandes grupos econômicos e desconsiderava a pequena propriedade rural. Desta forma, a agricultura se firmou como uma atividade que demandava de insumos industriais e que oferecia produtos para processamento nas indústrias, ocasionando a emersão de complexos industriais com intensa intervenção pública, através de créditos agrícolas. Entretanto, “[...] o crédito agrícola, além de seletivo e concentrador, fora concedido a juros negativos aos grandes produtores e à agroindústria” (FLEURY, 2015, p.35) Assim, a Revolução Verde acertou de maneira expressiva a vida do camponês do sudoeste que, impossibilitado de se associar ao proposto, já que essas políticas de incentivo eram voltadas exclusivamente aos grandes proprietários, teve de se desfazer de modo indesejado de suas terras. Com isso, o número de trabalhadores sem-terra cresceu expressivamente em todo o país, inclusive no sudoeste, nos anos 70, fomentando a concepção de movimentos defensores da reforma agrária. No sudoeste, segundo Prando (2010), o aumento dos trabalhadores sem-terra foi consequência também da construção de hidrelétricas, que atingiu os pequenos produtores por conta das barragens. A política adotada pelo governo ditatorial afetava gradualmente os pequenos agricultores da região, acentuando-se nos anos 80. Cada vez mais, estes que não seguiam as mudanças impostas foram empurrados do campo para a cidade, sendo obrigados a se desfazerem de suas propriedades, que, muitas vezes, eram vendidas para quitar as dívidas adquiridas na busca de se adequar conforme as normas da “nova agricultura” (PRANDO, 2010). Essa modernização levou a perda de incontáveis pequenas propriedades rurais baseadas na subsistência, que, no período era altamente disseminado na região sudoeste do Paraná. Anteriormente, a Revolta dos Posseiros de 1957, marcada pela luta, fez com que agricultores vendessem sua força de trabalho em grandes fazendas. É certo que muitos agricultores migraram para essa região em busca de melhores condições de vida, o que tornou a região e o momento propícios para a constituição de movimentos e organização que buscavam defender os agricultores familiares. A luta pela terra no sudoeste Posterior a Revolta dos Posseiros, instalou-se o Grupo Executivo para as Terras do Sudoeste do Paraná (GETSOP), com o objetivo de delinear e efetivar a colonização, medir, demarcar e dividir os lotes, construir estradas, postos de assistência à agricultura, escolas, incentivar o associativismo (LAZIER, 1998). A partir desses trabalhos, os posseiros conseguiram se estabelecer em suas terras. Entretanto, outras conjunturas sociais e políticas, mais uma vez, prejudicaram os trabalhos e projetos dos colonos que se fundamentavam na agricultura de subsistência. Os planos políticos para o campo da agricultura buscava colocar a produção agrícola subordinada ao capital industrial, gerando oportunidades de lucro para os grandes latifundiários e indo de contramão aos anseios dos pequenos produtores. A grande concentração de terras nas mãos da minoria e o excessivo êxodo rural iniciado em todo o país nos anos 70, por consequência dos projetos políticos de mecanização da agricultura conforme já mencionado, favoreceu o nascimento de ideias e a união de milhares de famílias para lutar em favor dos prejudicados. A ida forçada para a cidade e a perda das terras possibilitaram a formação de organizações que lutassem aos lado dos agricultores por seus direitos e pela consumação da reforma agrária. “[...] a modernização no campo apresentou-se como um ‘elemento ao mesmo tempo desestruturador e estruturador das relações sociais’, pois significou uma nova composição de forças a partir da qual emergiu o ‘sem-terra’” (BATTISTI, 2006, p.75). A política econômica definida para o campo acarretou que ele precisasse cada vez menos dos recursos naturais e cada vez mais de recursos processados e produzidos nas indústrias, gerando um grande índice de trabalhadores assalariados e afetando fortemente a agricultura familiar, que foi excluída mais ainda das políticas públicas, dado que o sistema de crédito e subsídio favorecia exclusivamente as grandes [ 249 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS propriedades, que consequentemente, com a venda das pequenas propriedades, aumentavam sua concentração de terras (FERNANDES, 1999). Nesse contexto, o Movimento dos Sem Terra no Sudoeste – MST do Paraná – teve sua oportunidade de lutar contra a desigualdade no campo. Segundo Battisti (2006), este se constituiu como forma de organização dos agricultores que não se encaixavam no método moderno de produção que tinha uma intenção seletiva e beneficiava somente os poderosos. A primeira ação concreta do movimento foi a ocupação da Fazenda Anoni no Município de Marmeleiro, em 1983. Segundo Battisti (2006), essa ação teve a participação de 650 famílias de trabalhadores sem-terra da região sudoeste paranaense, que se fixaram numa área de 4 mil hectares de terras improdutivas, que já havia sido totalmente explorada após a extração de madeiras na área. Neste mesmo ano foi formado o Movimento dos Agricultores Rurais Sem Terra do Sudoeste (MASTES), unindo os trabalhadores rurais de forma organizada e buscando encontrar soluções para os problemas que enfrentavam. Assim, segundo Danieli (2014), o MASTES tinha por objetivo lutar pela reforma agrária e construir ações que possibilitassem a dignidade do trabalhador rural para que este tivesse garantia sobre sua terra e pudesse trabalhar nela com segurança. O movimento se estruturou e cresceu rápido pelo sudoeste, tanto que em 1985 já estava presente em 20 municípios. A autora relata ainda que a primeira ocupação do MASTES se deu em 1984 na fazenda Imaribo, no munícipio de Mangueirinha, com uma área de 17 mil hectares ocupados por 91 famílias. A importância do MST e do MASTES era tão grande em todo o Paraná, que na cidade de Cascavel entre 21 a 24 de janeiro de 1984, realizou-se o Primeiro Encontro Nacional dos Trabalhadores que criou oficialmente o MST (FERNANDES, 1999). Ambos os movimentos tiveram apoio de outras organizações e movimentos. No sudoeste, os trabalhadores obtiveram apoio da ASSESOAR (Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural), de Sindicatos Rurais e da Comissão da Pastoral da Terra (CPT). Este trabalho irá se ater às atividades efetuadas por esta última organização em relação às ações do MST. A Pastoral da Terra e os Sem Terra no Sudoeste A Comissão da Pastoral da Terra (CPT) foi criada oficialmente em junho de 1975 durante o encontro de Bispos e Prelados da Amazônia. O evento foi convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), mas teve participação também de representantes de outras igrejas cristãs, e teve como objeto de discussão as ações necessárias para promover ao trabalhador do campo o protagonismo de sua história, dando suporte e acompanhamento em sua organização e trabalho (CPT NACIONAL, 2010). A CPT, desde sua concepção em âmbito nacional, buscou criar espaços de interação política para os trabalhadores rurais, proporcionando o contato entre os integrantes do MST de diferentes estados e regiões, visando uma troca de experiências e a convivência entre os iguais. No sudoeste paranaense, a atuação da Igreja Católica no âmbito do campo iniciou-se de forma efetiva nos anos 1960, baseada na Doutrina Social da Igreja, resultado das modificações do Concílio Vaticano II (1962-1965). Sua presença ajudou no surgimento de lideranças na região, porém um dos primeiros trabalhos foi o acompanhamento de migração de agricultores na região sul do país que vinham para o sudoeste dentro da política governamental conhecida como “Marcha para o Oeste”, com o objetivo de ocupar terras de fronteira. Nesse contexto, a congregação Sagrado Coração de Jesus envia ao Brasil um grupo de missionários e padres belgas em 1963, que tinham como função acompanhar de perto as ações no campo (DANIELI, 2014). É nessa realidade que, em 1966, constitui-se a ASSESOAR, formado por 33 jovens militantes da Juventude Agrária Católica (JAC), amparados pelos padres belgas, que buscavam promover melhorias na vida dos trabalhadores rurais e desenvolver a agricultura familiar baseada na Doutrina Social Cristã (CALLEGARI; ALBA, 2016). [ 250 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Porém, é somente em 1978 que os agricultores vão participar ativamente na ASSESOAR, passando a assumir a entidade, o que proporcionou uma maior aceitação e representatividade dela entre os trabalhadores rurais. Uma prova disso são os números de participantes em Assembléias que, em 1976, foi de 43 pessoas, em 1977, de 50 pessoas e, em 1978, de 169 pessoas. Foi nesta Assembléia geral que foi eleito o primeiro agricultor como presidente da ASSESOAR (CALLEGARI; ALBA, 2016, p.10). A CPT e a ASSESOAR, unindo-se a outras entidades, como sindicatos por exemplo, fizeram um trabalho em conjunto, apoiando-se, para assim, formarem a base para a organização dos sem-terra no sudoeste nos anos 80. De início, os agentes da CPT encontraram nos agricultores um medo e um receio enorme de lutar por seus direitos, o que era de se esperar, já que viviam em uma ditadura que ceifava todo movimento contrário a ela. Outra preocupação presente entre os agricultores era sobre a questão da propriedade privada, para a qual os agentes usaram da Bíblia e do Estatuto da Terra (1964) como ferramenta para sensibilizar e afirmar que o direito à terra estava previsto nas leis dos homens e nas leis divinas. Esses setores progressistas da igreja e a CPT foram essenciais para a superação da noção moralista em relação a propriedade e introduziram a noção de direito à terra. [...] a noção de direito a terra de trabalho foi articulada na 18º Assembléia Geral da CNBB, em Itaici (1980), no documento ‘Igreja e Problemas da Terra’. Também a Igreja de Confissão Luterana do Brasil (IECLB) tratou da questão da terra no documento ‘Terra de Deus – Terra para Todos’, de 1981. (SCHREINER, 2002, p.171). A CPT fundamentava seu trabalho na Teologia da Libertação, usando a Bíblia para legitimar a ação e os moldes de vida e de trabalho dos pequenos agricultores, incentivando os trabalhadores sem-terra à luta. Formaram-se assim, ocupações e acampamentos, tendo como protagonistas a organização interna da CPT. A Pastoral reunia-se com os agricultores nas Comunidades Eclesiais de Base para discutir ideias, incentivar a reforma agrária, organizar o modo de vida nos acampamentos, referenciando-se em documentos elaborados pela própria Comissão, como, por exemplo, o caderno “Bíblia e a Terra”, de 1981, que relaciona os desígnios de Deus com o cotidiano dos homens. Esses documentos eram produzidos para auxiliar a CPT nos grupos de reflexão a despertar a consciência do problema da terra. (SCHREINER, 2002). O caderno “Bíblia e a Terra” é uma espécie de roteiro para grupos de reflexões e se organizava em três partes: o problema da terra no Antigo Testamento; a terra no Novo Testamento e na Igreja dos primórdios; e a terra e a Igreja dos nossos tempos. O caderno ainda abordava como deveriam ser realizadas as reuniões: de forma calma, analisando os problemas com criticidade, as leituras deveriam ser feitas com voz firme, e as reuniões deveriam iniciar com cantos para que todos se sentissem a vontade. (PERIN; NADEL; GEEURICKX, 1981). O caderno faz uma contextualização entre os cristãos desde o Antigo Testamento até o Concílio Vaticano II. Apresentando que tanto os primeiros cristão quanto os primeiros padres pós concílio permaneceram na perspectiva e nos ideais de ajuda mútua entre os homens. Afirmando que “[...] a igreja, quando hoje defende a propriedade individual da terra e dos meios de produção, sempre insiste que [...] mesmo sendo propriedade privada deve servir a todos” (PERIN; NADEL; GEEURICKX, 1981, p.42). Defende ainda que a terra deve servir a todos e que “a história do uso da terra é uma constante luta entre o projeto (plano) de Deus e a realidade do pecado e egoísmo até parece que, sempre de novo, o egoísmo vence: os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres” (PERIN; NADEL; GEEURICKX, 1981, p.46). [ 251 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A partir desse roteiro do caderno, os agentes da CPT ligavam a história do cristianismo com a realidade do Sudoeste nos anos 80, buscando mostrar aos agricultores que Deus tende a justiça e defende a igualdade de condições de terras a todos e do uso para o trabalho. A CPT manteve-se firme ao lado dos sem-terra mesmo após as ocupações, tanto que quando se instalava um novo acampamento, fixava-se uma cruz no local onde os agricultores estavam dispostos a ficar (BONIN, 1991). Dentro dos acampamentos, a Pastoral realizava reuniões periodicamente, abordando questões de organização do local como produção, segurança, saúde e bem estar, visando garantir que os agricultores permanecem nos acampamentos com uma estrutura mínima de condições básica de vida. Outro tema abordado nas reuniões é a questão de Deus quanto ligado a terra, próximo do povo que sofre (SCHREINER, 2002). Partindo desse princípio de um Deus presente, preocupado com a vida dos agricultores, manifestado na luta e nas ocupações dos sem-terra, a CPT se firmou entre os agricultores, ajudando-os a lutar por uma terra onde poderiam produzir e construir uma vida digna. Considerações Finais A CPT, presente no Paraná desde os anos 70, inicialmente com o objetivo de ajudar os atingidos pelas barragens das usinas hidrelétricas, e no sudoeste mais especificamente desde 1978 também com esse intuito, foi uma grande e ativa cooperadora na formação dos movimentos sociais dos trabalhadores sem-terra. A Pastoral se uniu com outros movimentos como o MASTES e o MST buscando defender e auxiliar os trabalhadores rurais em sua luta pelo seus direitos quanto a terra. Agiu diretamente nas comunidades, trabalhando com os indivíduos, com as famílias e em grupos, num processo de sensibilização, reflexão, criticidade e solução dos problemas enfrentados pelo homem do campo, principalmente quanto a má distribuição de terras, embasando-se na Bíblia quando instrumento de ação e política, incentivando um ideal de luta. Posterior as ocupações, a CPT trabalha a organização interna social dos acampamentos, realizando reuniões abordando temas básicos de vida diária, visando estabelecer as famílias e construir uma comunidade. Em toda ação da CPT destaca-se o uso do divino, das abordagens de um Deus presente, que luta, que deseja a justa distribuição de terras e que se preocupa com o seu povo, ideia essa que era enriquecida pela produção de material contendo a mística cristã e a luta pela terra, ligando passado e presente. Porém, é a união dessas formas de abordagem e de trabalho da CPT que ajudaram os agricultores na luta pela terra e que fez do sudoeste e de seu povo um exemplo de labuta pela tão desejada reforma agrária. Referências Bibliográficas BATTISTI, E. As disputas pela terra no Sudoeste do Paraná: os conflitos fundiários dos anos 50 e 80 do século XX. Campo-Território: revista de geografia agrária, n.2, p.65-91, 2006. BONIN, A. A. A luta pela terra no Paraná. 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[ 253 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A disputa pela terra e os conflitos fundiários na região Sudoeste do Paraná Paola Nahuana Grazzi Torres1 Pâmela Pongan2 Resumo: A região Sudoeste do Paraná tem sua história diretamente vinculada à luta pela terra, concebida pelos camponeses como espaço de relações e de trabalho, de produção e reprodução biológica e social e pela elite como fonte de poder (político/econômico). Essas concepções diferentes diante do papel da terra estabeleceram a origem de conflitos de interesses entre os grupos sociais regionais. No Sudoeste, a luta pela posse da terra possui dois marcos essenciais: a Revolta dos Posseiros de 1957 e os conflitos da década de 1980. A primeira confrontou o capital comercial, fruto da comercialização de títulos de terra, com camponeses posseiros (agricultores familiares). O segundo confrontou ocorreu entre os agricultores familiares, mini fundistas e sem-terra, contra o capital industrial e comercial, essencialmente das áreas da madeira e da pecuária. A partir desta perspectiva, neste trabalho buscaremos analisar os movimentos pela posse e uso da terra ocorridos na região Sudoeste do Paraná desde a Revolta de 1957 às ocupações, acampamentos e assentamentos do MASTES/MST, visando dar ênfase aos aspectos históricos, antropológicos e sociológicos. Destacando o significado e a abrangência das lutas, considerando o confronto de opiniões e as influências destas na organização dos projetos de intervenção e no comportamento das bases dos movimentos sociais da região. Assim, mais que fazer a analise dos fatos, procura-se compreender a realidade historicamente essa contraditória do processo de ação e luta dentre o meio social do sudoeste paranaense, tratando de questões complexas como a do imaginário e da identidade coletiva. Palavras-chave: Luta pela Terra; Resistência; Revolta de 1957; Movimento dos Sem Terra. Abstract : The Southwest region of Paraná has its history directly linked to the struggle for land, conceived by peasants as a space of relations and work, of biological and social production and reproduction, and by the elite as a source of power (political/ economic). These different conceptions of the role of land have established the origin of conflicts of interest among regional social groups. In the Southwest, the struggle for land tenure has two essential milestones: the 1957 Posseiros' Revolt and the conflicts of the 1980s. The first confronted commercial capital, the result of the commercialization of land titles, with peasants (family farmers). The second confrontation occurred between family farmers, mini landowners and landless, against industrial and commercial capital, essentially in the areas of wood and livestock. Emphasizing the meaning and scope of the struggles, considering the confrontation of opinions and their influence in the organization of intervention projects and in the behavior of the bases of the social movements of the region. thus, rather than analyzing the facts, it seeks to understand the historically contradictory reality of the process of action and struggle among the social environment of the south-west of Paraná, dealing with complex issues such as the imaginary and collective identity. Keywords: Fight for the Earth; Resistance; Revolt of 1957; Movement of the Landless. Introdução O Sudoeste do Paraná possui em sua historia uma grande ligação com a questão da terra uma vez que historicamente a mesma foi o cerne que desencadeou um cenário de disputas entre camponeses e elites agrárias, os quais concebiam a terra de formas contrarias enquanto o camponês tinha uma visão de que a terra era seu espaço de vivencia e subsistência voltada ao trabalho e as relações a elite percebe a mesma como uma fonte de poder seja ele político ou econômico. Foram essas divergências de idéias que eclodem como a origem dos conflitos que surgiram na década de 60 e posteriormente 80, em relação a posse de terra, conflitos esses compostos por diversos grupos sociais da época. A mesma possui por sua vez dois grandes: o primeiro é a Revolta dos Colonos de 1957, a qual Graduada em História pela UniparUniversidade de ParanaenseCampus de Francisco Beltrão nauhannah@hotmail.com@hotmail.com 2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação de História em História Regional na Universidade de Passo Fundo -PPGH/ UPF. Bolsista Capes – ppongan@hotmail.com 1 [ 254 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS apresentou o confronto ao capital comercial, fruto da comercialização de títulos de terra e também da madeira, com camponeses posseiros (agricultores familiarese moradores urbanos). O segundo confrontou ocorreu entre os “agricultores familiares, minifundistas e sem terra, com o capital industrial e comercial, principalmente das áreas da madeira e da pecuária”. (VERONESE, 1998, p. 69-70). Segundo Feres alinhava-se de fato no Sudoeste do Paraná, a luta constante em meio a dois pólos extremos que norteavam o processo de ocupação do território: de um lado, a elite composta pelo monopólio fundiário, e do outro, os pequenos proprietários, camponeses composta pela divisão de pequenas propriedades. “A fronteira da colonização mostrava-se o terreno ideal para esse confronto”. (FERES, 1990, p. 508). A revolta de 1957 se deu em um contexto agrário nacional no qual se predominava a estagnação do governo esse orientado por ideais econômicos e tecnocráticos, acusado por parcelas expressivas da igreja católica, estudantes, intelectuais, operários e ate mesmo a imprensa. No território do Sudoeste do Paraná, após a resolução das questões de posse das terras por meio de um conflito aberto e armado, entre agricultores e as instituições colonizadoras, deu se o inicio de um processo de modernização na agricultura o qual constitui-se sobretudo, na transformação da base tecnológica fundamentada por meio do capital industrial. O qual, partindo da cidade, faz a absorção e recria o campo com significados diferentes, modificando a produção agrícola em setor de produção industrial esse subordinado aos imperativos e submetida as exigências do capital. (GOMES, 2001, p. 41). No ano de 1984 em janeiro, o Paraná foi sede do Encontro Nacional de Fundação do Movimento dos Sem Terra (MST) e o I Congresso Nacional do MST, o qual teve delegados de 23 estados, onde definiu-se o lema: Ocupar é a única solução. O Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste do Paraná (MASTES), No anseio da busca de seu espaço, enfrentam os latifundiários e o Estado, se estabelecendo e resistindo dentro de acampamentos improvisados por dias messes e até mesmo por anos. A revolta dos Colonos de 1957 O cenário em que a Revolta de 1957, conhecida também como Revolta dos Colonos se dá é de transformações no modo de exploração capitalista no campo isso em uma esfera nacional, a qual manifestouse nos diversos modos. É nessa época que a produção agrícola tem sua iniciação no mercado da agroindústria. Para uma melhor compreensão a cerca deste movimento se faz necessário retomar como ocorreu o início da colonização dessa região, a qual tem como marco a criação do Território Federal do Iguaçu e a instalação da Colônia Agrícola General Osório (CANGO), no começo da década de 1940, com o intuito de promover de forma dirigida a colonização ao longo da fronteira com a Argentina. De acordo com Lazer (2005): O Sudoeste do Paraná, era uma região fértil e rica, que foi muito disputada, causando conflitos jurídicos, políticos e sociais. A Argentina e o Brasil disputaram a região. Os Estados do Paraná e Santa Catarina também entraram em conflito pela área. Essa desavença pela posse das terras envolveu também a Cia. De Estradas de Ferro São Paulo – Rio Grande, a CITLA, o Governo Federal, o Governo do Paraná e, principalmente posseiros. (LAZER, 2005, p146). Essa vinda em massa à região se dava devido a procura por melhores condições de vida, pelos colonos catarinenses e gaúchos os quais não tinham noção das adversidades que teriam que enfrentar para poderem realizarem suas ambições e sonhos envolvendo a questão da nova terra. Com a implantação da CANGO, a migração vinda do Rio Grande do Sul e Santa Catarina obteve um maior impulso e o fluxo de migrantes, ocorreu de forma desordenada em maior quantidades, excedendo [ 255 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS assim a capacidade de atendimento da colonizadora; em 1950, a população regional ultrapassava os 200 mil habitantes. A movimentação de deslocamento vindo do Rio Grande também influenciou na ocupação desse território. Segundo Zarth (1997): No final do século a pressão demográfica sobre as colônias velhas, fundadas sob o sistema de pequenas propriedades, impulsionou colonos excedentes para as novas áreas disponíveis. [...] as áreas florestais do Alto Uruguai foram definitivamente transformadas em zonas agrícolas, inclusive ultrapassando o Rio Uruguai e chegando ás terras do oeste catarinense e sudoeste paranaense. (ZARTH, 1997,p.29). Nessa época a especulação a cerca dessa área cresce significativamente gerando assim o inicio das disputas pela terra. Tais disputas tiveram maior percussão em 1945 com a vitória jurídica de José Rupp essa proveniente de uma ação que perdurava a dezoito anos, contraria a empresa Brazil Railway Co., devido ao fato da mesma ter sido encampada pelo governo Federal em 1940, se deu um crédito a Rupp junto ao Poder Público Federal. Assim Rupp aliado a Mário Fontana, amigo do Governador Lupion, o qual de certa forma tinha influência junto ao Governo Federal, criaram a Clevelândia Industrial e Territorial Ltda. (CITLA) com o intuito de viabilizar a colonização do sudoeste paranaense. Tempo depois, Fontana compra os direitos de Rupp e, por influição de Lupion, em uma operação que se deu na ilegalidade, em 1950, a CITLA faz a aquisição das Glebas das “Missões” e do “Chopim” compradas do Governo Federal, por meio da Superintendência das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União (SEIPU). O que chama a atenção é o valor que foi declarado nessa negociata o entre a CITLA e a SEIPU valor este de 10 milhões de cruzeiros. Segundo Wachovicz (1987) esse valor: Era uma importância ínfima, por uma área quatro vezes maior do que o então Distrito Federal, possuidora de inúmeros recursos hidrelétricos e detentora da maior reserva de pinheiros do Brasil, calculada em 3 milhões de árvores adultas” (WACHOVICZ, 1987, p. 151). Na escritura da CITLA o território se refere a 475.200 há. , incluindo a extensão de terra referente à CANGO, a qual possuía na época mais de 3 mil colonos assentados, bem como as sedes dos distritos de Francisco Beltrão, Capanema e Santo Antônio. A qual continha a maior reserva de pinheiros adultos do território brasileiro, com a quantia superior a 3 milhões de árvores as quais poderiam ser industrializadas, milhões de árvores de madeiras de lei, bem como a exorbitante quantia de erva-mate as quais estavam prontas a serem exploradas (FERES, 1990, p. 505-6). A mesma foi denunciada pela oposição estadual, essa liderada pelo PTB, tal fato teve uma enorme repercussão na imprensa nacional. Em decorrência desse fato, o Tribunal de Contas da União acaba negando o registro da escritura à CITLA, com a alegação de inconstitucionalidade. Assim, o Conselho de Segurança Nacional manda ofícios a todos os Cartórios da região vetando o registro da escritura da CITLA. Porém o Governo Lupion, cria em Santo Antônio do Sudoeste um Cartório de Registro de Títulos e Documentos, onde essas escrituras eram feitas. Nesse momento existia uma grande tensão entre os poderes estadual e federal, este baseado em uma lógica político-econômica e partidária. Entretanto deve-se ser considerado que no Sudoeste, naquele momento a existia uma maior e significativa independência do estado em relação à União. Com a ascensão da oposição - PTB e UDN – ao poder Estadual, com o Governador Bento Munhoz da Rocha Neto em 1951, o governo tenta impedir a grilagem. Ocorre também incentivos a migração de gaúchos e estimulo os colonos ao não pagamento à CITLA, por parte de políticos locais, afinados com o projeto de Vargas á região, o que desencadeou na pressão contra os jagunços. Nesse cenário que ia se delimitando, os s [ 256 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS colonos, na busca por legitimar suas posses e facilitar a produção, derrubaram os pinheiros, impossibilitando o projeto de Fontana para a região de instalar uma fábrica de celulose, de modo, que o mesmo passou então a vender as terras. De acordo com Feres no Sudoeste, se delimitava a luta perdurável entre os extremos s pólos de ocupação do território brasileiro: de um lado o monopólio fundiário composto pela elite, de outro a divisão da terra em pequenas propriedades, essa composta pelos camponeses, pequenos proprietários. “A fronteira da colonização mostrava-se o terreno ideal para esse confronto” (FERES, 1990, p. 508). De forma simultânea os projetos de colonização da CANGO assentavam os colonos, passaram a se desenvolverem projetos de colônia esses diretos do Estado e também por meio da iniciativa privada. Serra (1992) A colonização oficial e empresarial privada provocou pelo menos dois efeitos imediatos: dinamizou o avanço da frente pioneira [...] paralelamente provoca a valorização das terras e, como efeito contraditório, desperta a cobiça de grupos políticos e econômicos que vêm na apropriação de grandes áreas, aparentemente ainda sem dono, um meio facil de enriquecimento e de ascesao ao poder (SERRA, 1992,p.75). Vale ressaltar que em 1956 volta ao governo do Estado Lupion e, devido a pressão dos financiadores de sua campanha, força Fontana a ceder boa parte da Gleba Missões às empresas colonizadoras "Comercial e Agrícola Paraná Ltda." e "Apucarana Ltda.", as quais para que os colonos a assinassem a confissão de dívida das terras, partem ao recrutamento de jagunços esses criminosos profissionais; parte vindos de diversas regiões como Norte do Paraná, Argentina e Paraguai (WACHOVICZ, 1987, p. 32). Othon Maeder afirmava que, os tinham ao seu dispor armamentos diversos como revólveres, metralhadoras e jeeps preparados para o “serviço” que se delimitava a matar, assaltar, surrar e o que fosse necessário a sua função. O mesmo ainda discorre que, diversas atrocidades foram realizadas nessa época como mortes, desaparecimentos, espancamentos, mutilações, estupros, assaltos, saques, incêndios, extorsões entre outras. Sendo que tais crimes ficaram impunes, pois em geral, as autoridades não possuíam o interesse em descobrir e punir os responsáveis. Eis a “a razão porque, nos cartórios daquelas regiões, não há prova de que hajam sido mortos posseiros ou colonos”. (MAEDER, 1958, p. 32) Esse tipo de atitude ou mesmo o envolvimento de autoridades nesses crimes é confirmado por Wachovicz (1987, p. 172): “autoridades do governo do Estado colaboraram nesse esquema. Nas delegacias de polícia da região Sudoeste, foram colocados delegados submissos, que acatavam inclusive ordens emanadas dos gerentes das companhias”. (WACHOVICZ, 1987, p. 172). O Estado na esfera federal permanecia-se distante e omisso em vinculação aos problemas fundiário. Não foi tomadas nenhuma atitude em relação ao abaixo-assinado subscrito por mais de 2 mil pessoas o qual fazia a denuncia da violência exercidas pelas companhias e o envolvimento da polícia, por parte do então presidente Juscelino Kubitschek em 07 de abril de 1997, esse subscrito pelos colonos Rosalino Albano da Costa e Augusto Pedro Pereira. Na busca de defender-se dos jagunços, vários colonos uniam-se a bandidos e praticaram assim arbitrariedades. Wachovicz (1987) discorre que colonos da fronteira da região de Capanema recorreram a Pedro Santin, figura conhecida da época na região pela conduta de valentão e contrabandista de gado argentino o qual negociava suas cargas com açougues da região. O mesmo reuniu 11 colonos e atacaram e atearam fogo ao escritório da Colonizadora Apucarana em Lajeado Grande., os que saiam para fora do prédio eram eliminados. Nos conflitos de Apucarana, na região de fronteira, o acontecimento de maior repercussão que resulta no levante dos revoltosos, foi o assalto à caminhonete, episodio este desencadeado no dia 14 de setembro de 1957, no quilômetro 17 da estrada Santo Antônio a Lajeado Grande. Devido a um alerta em relação a uma emboscada encabeçada pelo grupo de Santin, os superiores da companhia colonizadora desistiram de ir a uma reunião, ordenando que o motorista e um jagunço dessem carona a quem estivesse na estrada. A mesma concretizou-se, ocorrendo a morte de sete pessoas,sedo que os colonos mataram cinco de seus pares. “Um dos atacantes inclusive participou do assassinato de seu próprio pai, que havia pedido [ 257 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS carona”. (WACHOVICZ, 1987). A situação se tornou desesperadora e em 2 de outubro de 1957, ocorre um dos principais acontecimentos históricos do Sudoeste o qual teve repercussão nacional. Os principais jornais e revistas do país enviam repórteres e fotógrafos à região. Enquanto os políticos oposicionistas resolveram agir. (WACHOVICZ, 1987, p. 190). Iniciam-se assim, os conflitos, que culminam no movimento de massa conhecido por Revolta Camponesa, Levante dos Posseiros ou Revolta dos Colonos, em 10 de outubro de 1957, dia em que pegam em armas milhares de colonos e posseiros e invadem e tomam posse dos principais municípios do Sudoeste do Paraná, expulsando e substituindo as autoridades constituídas. Veronese (1998, p. 71) afirma que a organização e iniciativa da Revolta se deu a partir dos colonos posseiros, através da constatação da ausência de uma ação efetiva do Estado para tornar-los proprietários legais das terras nas quais os mesmos já viviam e exploravam. Boneti (2005, p. 119) assim discorre que os comerciantes, estes parte do segmento sócio-político econômico dominante, assumem nesse momento o papel de divulgar, orientar e liderar o movimento. Torna-se claro que os revoltos tiveram decisivo apoio dos comerciantes e profissionais liberais, com vinculação a grupos econômicos e/ou partidos de oposição ao então vigente governo. Porém os posseiros assumiram a revolta devido ao fato de conceberem a propriedade da terra como espaço de trabalho e relações, local esse que garantia a sua produção e a reprodução da vida e diferentemente do grupo fundiário que a percebe como fonte exclusiva de poder. A imensa repercussão e o êxito do movimento levaram presidente Juscelino Kubitscheck, a dar um ultimato a Lupion, que, para fugir da intervenção, acabou por sacrificar seus interesses econômicos e amigos, fechando assim as colonizadoras. Mesmo com a expulsão das companhias imobiliárias, a luta permaneceu em prol da transformação dos posseiros em proprietários. Então em 1962, o então Presidente João Goulart criou o Grupo Executivo para as Terras do Sudoeste do Paraná (GETSOP) com o intuito de resolver de forma definitiva a questão das posses. De acordo com Martins (1994, p. 64-5), os conflitos do Sudoeste do Paranaense atingiram de forma direta um dos principais mecanismos de reprodução do poder oligárquico: a grilagem de terras, a qual não constituía ainda uma questão social e política. A singularidade do Sudoeste “estava no fato de que a terra era usada fundamentalmente para obter retornos econômicos e não retornos políticos” em contrapartida com a tradição histórica nacional. Conflitos da década de 1980 Na região Sudoeste do Paraná, após a resolução das questões da posse de terra por conflito aberto, e armado, entre os posseiros, pequenos agricultores e empresas colonizadoras, inicia-se o processo de modernização da agricultura que se constituiu, na transformação da base tecnológica norteada pelo capital industrial. A cidade faz a absorção e recriação do campo com outros significados, modificando a “produção agrícola em um setor da produção industrial subordinada aos seus imperativos e submetida às suas exigências”. (IANNI, 2004, p.48). De acordo com Oliveira (1991) a modernização implicou no aumento significativo considerável da quantidade de estabelecimentos conduzidos por posseiros, de 109.016 estabelecimentos em 1940 para 1.054.542 em 1985. dessa maneira, a modernização no campo se mostrou como um “elemento ao mesmo tempo desestruturador e estruturador de relações sociais”, pois o mesmo significou uma nova composição de forças a partir da qual emergiu o “sem-terra” (GOMES, 2001, p.41). Um novo cenário começou a se delimitar, grande parte da população rural transfere-se para as cidades como decorrência da modernização conservadora, agravando o caso da marginalização de ampla parcela da população, o que se reflete em diversos aspectos como, por exemplo, e a concentração de renda e capital, bem como a possibilidade do surgimento das grandes mobilizações operárias do ABC paulista - área mais industrializada - e dos agricultores familiares do Sul do país. Ao fim da ditadura militar, a questão agrária se apresentava como um dos mais complexos problemas nacionais. No Sudoeste o movimento de luta pela terra, expressava uma fase de reorganização da vida dos agricultores os quais haviam integrado essa ordem constituída através das novas relações estabelecidas com [ 258 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS a introdução da modernização do campo. A luta volta à tona de maneira sistemática em 1983, quando 650 famílias de “sem terra” da região Sudoeste do Paraná e Oeste de Santa Catarina ocuparam em Marmeleiro/PR4 mil hectares de terras da Fazenda Annoni, sitiada na divisa com o estado de Santa Catarina. Os donos residiam no Rio Grande e a terra estava improdutiva após a mesma ter sido utilizada para extração de madeira. Durante o confronto direto entre ocupantes e jagunços, um sem terra foi morto, fortalecendo desse modo a luta, culminando no assentamento dos ocupantes. A maneira improvisada dessa ocupação resultou em diversas dissidências e rupturas, seja entre os ocupantes, ou mesmo entre os chamados “canais de apoio”. Essa debilidade foi utilizada pelo Estado para emperrar o processo de desapropriação,(o qual apenas foi concluído em 1998), e os políticos dessa região se utilizaram dessa situação durante várias eleições para angariação votos desses posseiros, sob a promessa de legalização da posse. De acordo com Santos (2000) fica evidente a violência política exercida pela classe dominante, com a finalidade de “provocar efeito de demonstração para silenciar, punir e docilizar os vivos” uma “tecnologia de poder eficiente” e que é “alimentada pela impunidade” (SANTOS, 2000, p. 03). Porém o exemplo “negativo” da Fazenda Annoni influenciou a criação de um movimento estruturado pelos sem terra na região e que, posteriormente, passaria a denominar-se Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste (MASTES). Essa criação se deu a partir de um cadastramento, o qual foi realizado pelos sindicatos, com apoio da CPT e da Ong Assesoar. Depois do debate e análise da situação, as organizações e lideranças dos agricultores familiares tomam a decisão por aderir a um trabalho de base, criando assim consequentemente as Coordenações Municipais e, mais tarde, da Coordenação Regional dos Agricultores Familiares Sem Terra que, em 1986, tornar-se-ia o MASTES. O desejo de emancipação, e autonomia esteve presente desde a origem do movimento que, o qual em seu primeiro planejamento definia: O MASTES, nosso movimento, é uma coordenação autônoma que autodetermina-se em suas decisões e ações [...]; o MASTES terá uma coordenação escolhida pelos trabalhadores, com a função de garantir a execução das decisões do movimento e o cumprimento dos princípios. O movimento tinha como objetivos iniciais uma mistura de propósitos como “promover a organização dos trabalhadores na luta pela conquista e fixação à terra e desenvolver nos agricultores a consciência de classe; terra para quem nela trabalha e dela precisa” e projeções de difícil alcance um tanto utópicas, mais muito características do momento como a “construção de uma nova ordem social”. A estratégia aplicada foi o trabalho de base, que almejava sensibilizar as comunidades em relação aos problemas enfrentados pelos jovens agricultores como a falta de perspectivas devido ao processo de modernização da agricultura; destacando a legitimidade e legalidade de seus interesses através da transmissão de informações que legitimavam o direito/disponibilidade de terra e, bem como, leituras/reflexões bíblicas e de autoridades religiosas, leituras como Igreja e Problemas da Terra, A luta pela terra na Bíblia, Queremos a terra e Puebla para o povo, foram utilizadas. Em 1984 e 1985, o MASTES, que já estava estruturado, organizou grandes manifestações, em forma de atos públicos e passeatas, seguidas de ocupações de terra e acampamentos, envolvendo 1881 famílias de sem terra. Os sem terra, na busca pelo seu “espaço vital”, da “terra prometida”, confrontaram o Estado e os grandes latifundiários, na resistência dentro de acampamentos improvisados durante meses e ate mesmo anos. Nesse processo de negociação entre assentados e órgãos estatais, os mesmos se valiam e intercalavam-se em argumentos emocionais, políticos e legais, exemplo disso é o uso do Estatuto da Terra como referencial legal. Segundo Gomes (2001, p. 104), o acampamento se tornou uma estratégia de pressão e negociação com o intuito de agilizar o assentamento definitivo. No ideal dos sem terras, a participação no significa a possibilidade de “voltar a ser lavrador, de recuperar o direito de viver, de comer, de tomar remédio, de ter um teto, de dar escola para os filhos,” momento de esperança retornar a viver. [ 259 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS De acordo com Feres o acampamento é o instante de ruptura, no qual criam-se novos caminhos e estratégias. E o que condiciona as chances de vitória são a capacidade de resistência do acampamento. Pois essa é a fase mais difícil da luta, que pode durar por um tempo indefinido. (FERES, 1990, p.561). Posteriormente a uma enorme resistência, por parte dos sem-terra no ano de 1985 entre julho e agosto, 350 das 1881 famílias que compunham a MASTES foram assentadas pelo Estado. Segundo o levantamento do IPARDES de 1989, mais de 50% dos assentados do Paraná eram da região Sudoeste, esses descendentes dos participantes do movimento de 1957 sendo filhos ou netos desses agricultores, o que deixa evidente a marca da resistência, herança essa de luta deixada de geração para geração, mesmo que esses tenham lutado contra a expropriação, em momentos e condições distintas. Na nova luta por terra e dignidade, a experiência dos antepassados foi importante. Os agricultores familiares têm o exemplo na Revolta de 1957 de que para a garantia da existência enquanto grupo social é fundamental a luta pela terra. Pois os direitos e a cidadania apenas são alcançados se efetivados por eles mesmos é não como algo vindo de outros, em expressão de um gesto de solidariedade humana. (VERONESE, 1998, p. 72). Os resultados de tais mobilizações unidos a realidade locam deram um impulso ao movimento o qual se expandiu rapidamente, passando de 9 municípios em 1985, á 20 em 1987. Nessa época, os latifundiários da região , depois da visita de Ronaldo Caiado ou qual tornar-se-ia mais tarde o coordenador nacional, a parti de uma organização formam a União Democrática Ruralista (UDR), aliados a alguns setores do Estado e a paramilitares, com o intuito de reprimir e isolar o movimento através do apoio da sociedade, cria-se assim uma aliança de forças repressivas entre governos e fazendeiros. Nesse momento os governantes trazem como parte de suas estratégias os despejos violentos, a repressão aparece em modo de lei e o Judiciário, na grande maioria dos casos se mostra como instrumento de legitimação desses despejos, de processos e mesmo de prisões á lideranças e militantes do movimento. A primeira medida que geralmente era utilizada era o despejo legal dos ocupantes, medida esta tomada pelo proprietário que, apelava a autoridade do Estado. Esses despejos eram extremamente violentos. Um caso que teve bastante repercussão na região, foi o despejo do acampamento da Fazenda Corimbatá: Em fins de dezembro, um pelotão de choque da polícia estadual, armado de metralhadoras e gás lacrimogêneo, executa o despejo. A tropa policial foi apoiada pelas prefeituras de Chopinzinho, Coronel Vivida, São João, São Jorge e Verê. Alguns agricultores foram presos e mulheres e crianças foram feridas. Os ocupantes foram jogados à beira da estrada, sem as barracas (destruídas pela polícia) e sem alimentos (as reservas foram ou apreendidas ou destruídas). (FERES, 1990, p. 620). Ao que se refere ao Sudoeste, seja em 1957 ou na década de 1980, percebe-se que nem mesmo a violência policial ou paramilitar teve a capacidade de conter a luta (FERES 1990, p. 576). De acordo com Wanderley (1996), uma das mais fundamentais dimensões das lutas dos camponeses brasileiros se centra no esforço na construção de um “território” familiar, local este de vida e de trabalho, que tem a capacidade de guardar a memória da família e de reproduzi-la para as gerações futuras. As lutas pela terra no território do Sudoeste do Paraná evidenciam o que defendia Martins (1994) de que é um equivoco afirmar que historicamente que os camponeses são conservadores e que as transformações sociais não se dariam através dos mesmos. O mesmo embasado pela história das lutas camponesas, a partir do século XVIII, afirma que esses sujeitos são fundamentais desestabilizadores da ordem social e política tradicional. Em 1986, o MASTES por meio de uma determinação nacional, incorporou em seu Plano de Ação propostas para a Constituinte, o que posteriormente culminou em uma emenda popular essa com mais de um milhão e meio de assinaturas, favorável à Reforma Agrária. A datar da emenda popular, procurava-se garantir uma maior pressão política sobre o Estado em prol da aceleração do processo de discussão do Programa Nacional de Reforma Agrária, tal pressão, se [ 260 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS mostra principalmente na maneira de acampamento/ocupação. Ao fim de 1986, nas terras paranaenses existiam 44 acampamentos com cerca de 4.626 famílias. A estratégia implantada em 1987 de “ocupar e resistir” fez com que o Estado agiliza-se as desapropriações nas áreas de conflito. A luta pela terra teve sim suas vitorias por se assim dizer em favor aos assentados, talvez uma das maiores tenha sido o assentamento de 1.604 famílias nos 27 mil hectares do maior latifúndio do Sul do país da década de 1990 Giacomet Marodin, este com 83 mil hectares da madeireira, após diversas ocupações nas quais os sem-terra tinham sido retirados de forma violenta por jagunços e forças polícias. Considerações finais A revolta de 1957 criou as condições para fomentar a luta das terras, mesmo que se tenha implantado no campo a modernização exploração da terra e da mão de obra, a agricultura familiar ainda predomina, adaptando-se enfrentando alguns desafios de forma organizada. Nos anos 80, com a crise do crédito e o excedente de mão de obra, muitos agricultores ficaram sem terra, mas foram capazes de se organizar em torno do movimento dos trabalhadores rurais sem terra (MST). Os conflitos da década de 1980 que envolviam as lutas pela terra, envolvendo os agricultores familiares tiveram na revolta de 1957, o exemplo de que, para que sua existência seja garantida enquanto um grupo social se faz essencial a luta pela terra, uma vez que seus direitos, sua cidadania só são alcançadas e efetivadas a partir da luta dos próprios sujeitos. A história da região sudoeste é um exemplo rico de luta, que demonstra que a luta pela terra, é uma luta que se dá nas esferas política, social, econômica e cultural, e que o seu alcance implicaria na acarreta na organização e mobilização, bem como na adesão social, efeito do reconhecimento da sociedade ao direito à vida, ao trabalho e à dignidade. As disputas pela terra no Sudoeste Paranaense,sejam a da Revolta de 1957 ou as disputas fundiárias da década de 1980, são a prova de que a partir de movimentos sociais, da organização se pode alcançar os resultados almejados, como o direito a terra, é possível se mudar a história por meio da superação de desafios, e mostrar que o povo pode sim ser protagonista. Referências Bibliográficas FERES, João B. Propriedade da terra: opressão e miséria; o meio rural na históriasocial do Brasil. Nijmegen/Holanda: CEDLA, 1990. GOMES, Iria Z. Terra & subjetividade: a recriação da vida no limite do caos. Curitiba: Criar, 2001. 198 p. IANNI, Octávio. A era do globalismo. 8. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. 256 p. LAZIER, Hermógenes. Análise histórica da posse de terra no Sudoeste do Paraná. 3 ed. Francisco Beltrão: Ed. Grafit, 1998. LAZIER, Hermógenes. Paraná: terra de todas as gentes e de muitas histórias. 3 ed. Francisco Beltrão: Ed. Grafit, 2005. MARTINS, José de Souza. 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Paraná, Sudoeste: ocupação e colonização. 2. ed., Curitiba:Vicentina, 1987. 248 [ 261 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Hipátia de Alexandria: busca filosófica e liberdade Paola Rezende Schettert1 Resumo: Hipátia de Alexandria, filósofa do Egito romano do século V, destacou-se pela coragem de ensinar filosofia diante da eminência avassaladora do cristianismo da época. A ousadia da filósofa, decorrente não somente do seu paganismo, como também de sua presença feminina em um mundo masculinizado na sociedade de modo geral e, na filosofia, de modo específico. Isso, portanto, retrata seu espírito crítico e contra-hegemônico que se traduz em uma postura formativa de si mesmo e do outro. Influenciada, sobretudo, pelo neoplatonismo, assume o monismo de Plotino diante do dualismo de Platão. Frente a isso, pretendemos apresentar um pouco da vida desta filósofa e como el nos inquieta diante da vida, uma vez que a filósofa foi, para ela, um exercício vital e constante de si mesmo. Deste modo, apresentaremos como Hipátia assume uma posição filosófica a partir da qual passa a exercer o papel de mestra. Neste contexto, trataremos da seguinte questão: em que consistia este papel filosófico de Hipátia quando referimo-nos à formação humana? A liberdade de pensamento é, segundo o que defenderemos um dos maiores ganhos do processo de formação do homem quando esta é pensada desde a filosofia hipatiana. INTRODUÇAO Hipátia foi uma filósofa que, como os demais filósofos do período, também transitou por outras áreas como matemática, geometria e astronomia. Neste ensaio temos a pretensão de apresentar o pensamento de uma filósofa que viveu em um momento histórico em que as mulheres eram absolutamente desconsideradas do meio intelectual. Para marcar o valor e importância de seu pensamento na época, demonstraremos a relação de sua filosofia com a filosofia de Platão e de Plotino, além de analisarmos as mudanças filosóficas no pensamento da Antiguidade Tardia através da filósofa. Diante desse objetivo, precisaremos compreender Plotino com a ideia do nous, uno e monismo e diferencia-lo de Platão, especialmente ao que diz respeito à sua maneira dualista de pensar o homem, o conhecimento e a vida, de modo geral, a partir do mundo das ideias e do mundo das sensações. A pretensão é trazer ao debate acadêmico uma filósofa que transgrediu algumas regras em um contexto turbulento e de profundas mudanças: a ascensão do poder das ideias cristãs contra o paganismo que decaía. Acredita-se que o tema é relevante por não haver muitos estudos sobre Hipátia de Alexandria e sua filosofia, devido às dificuldades de fontes e, especialmente, pelo o fato da filósofa não nos ter deixado nada escrito. Porém, o desafio é tentar traçar um breve caminho sobre a filosofia hipatiana e as influências de Platão e Plotino sob ela, como a filósofa buscou unir tais ideias. E sem esquecer o período em que Hipátia viveu: um momento de mudanças drásticas no pensamento, comportamento e cultura em Alexandria. ASPECTOS HISTÓRICOS DA VIDA DE HIPATIA Hipátia viveu em Alexandria, que era um centro cultural, político e de conhecimento durante o Império Romano. Não se tem precisão sobre o seu nascimento e morte, Dzieslka (1995, p.80) cita que a filósofa nasceu em, aproximadamente, em 370, porém não há fontes seguras de seu nascimento. Dzieslka (1995) descreve Hipátia como uma mulher livre, que transitava tranquilamente por Alexandria, cidade que resguardava a cultura greco-romana em seu Museu e Biblioteca. E dentro dessa cultura a filósofa foi influenciada. Ao mesmo tempo, Alexandria era uma cidade que abrigava o judaísmo, paganismo e o cristianismo em ascensão. Acadêmica do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo, II semestre. Licenciada em História, 2011/ UPF. Orientada pelo Professor Dr. Miguel da Silva Rossetto. 1 [ 262 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Dessa maneira, a filósofa irá agregar e conviver com diversas religiões. Em seus ensinamentos demonstrava conhecimento de Platão, Aristóteles, Plotino e os expunha com maestria. Era considerada grande influência política com relações sociais renomadas dentro do Império romano: Y por muy deseable que sea volver a examinar la vida y la muerte de Hipatia a luz de los hechos, son muy pocas, como veremos en las fuentes, las prubas directas que han llegado hasta nosotros. Sabemos, sin embargo, que, durante el periodo de madurez de Hipatia, sus enseñanzas y actividades filosoficas em Alejandría atraen a um considerable número de jóvenes, los cuales, impresionados por sus dotes espirituales e intelectuales, la aceptam como maestra. (DZIELSKA, 1994,p. 41) Como exposto, o que nos chegou de fontes sobre Hipátia foi muito pouco. Ela não nos deixou nada escrito. Mas, ao longo dos tempos buscou-se sobre ela através de escritos de Sócrates Escolástico (viveu no início do séc. V d.C ), que fora um historiador do período e em cartas entre seus discípulos. A maioria dessas cartas provém de Sinésio de Cirene, onde se conservou 156 cartas dirigidas à Hipátia e outros colegas do mesmo círculo, porém não se encontrou cartas da própria filósofa (Idem). Esses seguidores de Hipátia foram pessoas influentes em Alexandria: arcebispos, o prefeito Orestes, bispo Cirilo, Sinésio que obtém poder como arcebispo da Igreja, pessoas que administravam dentro do Império. Segundo Cabeceira (2014), o prefeito imperial Orestes via seguidamente e consultava a filósofa sobre questões administrativas de Alexandria. A mesma autora relata que a conversão de Orestes ao cristianismo ocorreu por questões políticas, assim ele visava se adequar ao momento para obter maior prestígio. Orestes, para Cabeceira (2014), fora influenciado fortemente por Hipátia e pode se supor que ela enfraqueceu a fé cristã do político. Suposição realizada pelos oponentes de Orestes e daqueles que não viam com bons olhos o respeito do prefeito pela filósofa. Pois, era uma afronta o prefeito de Alexandria se aconselhar com uma mulher. Logo, devido essa abertura de Orestes e aproximação à filosofia demonstra que ele não estava praticando somente o cristianismo. Seus oponentes poderiam supor que era uma fraqueza do prefeito ou que este não estava convicto e expressando a sua fé de batismo. O prefeito teve que lidar com os conflitos entre judeus e cristãos: ocorriam diversos ataques entre os integrantes das religiões. Orestes tenta apaziguar os conflitos, já Cirilo como bispo expulsa os judeus e se aproveita do momento de tensão. (CABECEIRA, p. 19). O poder masculino começa a se delimitar nesse momento e para as religiões monoteístas (judaísmo e cristianismo) a mulher era submissa ao homem. Tal idealização pode ser observada no Antigo Testamento através de Adão e de Eva (Gn: 3, 6-16), por exemplo, onde a mulher é descrita como inferior ao homem (este era a grande obra da criação), a mulher como responsável pela expulsão do Paraíso. Pois, foi Eva quem trouxe a maçã, ou seja, quem trouxe o pecado e o ofereceu ao homem. Uma boa justificativa para afirmação do cristianismo: o papel de Eva na Bíblia. Cirilo analisava que a filósofa tinha algo subversivo que fazia as pessoas se revoltarem (GLEICHAUF, p. 20). A tensão estava posta: Hipátia sofrendo ataques pessoais de sua relação com Orestes, defensora da filosofia, aceitava alunos de diferentes religiões e de diferentes visões de vida; assim no contexto de ascensão do cristianismo e de seu extremismo não irá terminar muito bem ou de forma dialógica, que provavelmente Hipátia transmitia. Sabendo que “se movía com gran naturalidade entre los hombres y no retractaba facilmente de sus opiniones. Además, de acuerdo com el antiguo ideal de dedicar uma vida al servicio de la ciência, permanció soltera” (Idem, p.21): é possível considerar que em um momento de transição, onde a Igreja Católica começa a ter poder e prestígio e também entre os judeus que percebiam que as mulheres tinham a missão de ter filhos, que Hipátia e seu posicionamento não foram bem aceitos e presumível de serem combatidos. Sobre a morte da filósofa, Sócrates Escolástico descreve (apud Gleichauf, p. 21- 22): “ de tal suerte que diversos exaltados, encabezados por monjes conspiraron entre todos y atacaron a la mujer por la espalda em uma ocasión cuando regressaba a su casa. La arrancaron de su carruaje y la arrastaron juntos a la iglesia que se conoce com el nombre [ 263 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS de Kaisarion. Allí, la despojaron de sus ropas y desgarraron su cuerpo com trozos de conchas marinas. Despedazaron a la mujer miembro a miembro y llevaron después los pedazos a um lugar llamado Kikaron para quemarlos” Cabeceira (2014, p. 19) traz outra versão de Gleichauf, mas semelhante da morte de Hipátia: em que João de Nikiu, um detrator da filósofa, cita que Pedro, crente convicto e fanático: “encontrou a pagã numa imponente cadeira, provavelmente proferindo uma conferência. Ela foi levada por Pedro e outros cristãos até a igreja, despida e arrastada pela cidade acarretando sua morte. Coincidentemente ao registro de Sócrates, nesta versão de João de Nikiu, o corpo dela também foi queimado quando ela já estava morta.” Apesar de variar um pouco, as versões da morte de Hipátia concordam em algo: fora violenta a sua morte. Talvez, até simbólica, como maneira de exterminar uma mulher que mostrava que podia sim filosofar, ser matemática, pensar sobre astronomia em um mundo dominado por homens. Exterminar um símbolo de que era possível dialogar e conviver em meio aos judeus, cristãos e pagãos. E além disso, juntar o Uno de Plotino com ideais platônicos e também, talvez, utilizar-se de ideais cristãos sobre o transcendente. HIPÁTIA E SUA FORMAÇAO Nossa filósofa dedicou-se a diferentes áreas do conhecimento humano. Relembrando que naquele momento não existia a separação das áreas do conhecimento ou ciências: uma pessoa poderia ser um astrônomo, matemático, filósofo ou cientista ao mesmo tempo. A separação das ciências será consolidada na modernidade. É relevante ressaltar que Hipátia foi privilegiada por participar da aristocracia e esta também foi uma cientista, sendo responsável pela criação do hidrômetro (CABECEIRA, p.11) que tinha a função de contabilizar o volume da água. Por esse motivo, Hipátia é mais reconhecida na área matemática, em que fora orientada e influenciada por seu pai Teón, este que auxiliava como membro da biblioteca e Museu de Alexandria, além de ter comentado obras de Ptolomeu e Euclides (MARTINELLI, 2016, p.78). Dzielska (1994) em sua pesquisa aponta que para sabermos sobre a escola hipatiana foi preciso a análise das cartas de Sinésio à Herculiano (este também aluno da filósofa) e de Sinésio à Hipátia. Antes de adentrar e tentar elaborar um pouco da filosofia hipatiana, é significante compreender como ela entrou em contato com Platão: através de Plotino: Hipatia irradia conocimientos y prudência derivados del “divino” Platón y de Plotino, su sucesor. Por intermedio de los dos, posee el don de comunicar com el mistério divino, lo que inclina a sus alumnos a atribuirle la “santidad” que Sinesio, em todos sus escritos, atribuye a Platón, como hacen todos los filósofos neoplatónicos del período; lo consideram maestro indiscutible de la filosofia y del conocimiento del mundo de las formas divinas. (DZIELSKA, 1994, p.60) Entende-se que Hipátia teve contato com Platão através da filosofia de Plotino, para tal ir-se-á abordar o conhecimento do mestre Platão. Para uma breve análise do pensamento de Platão, faremos uso do capítulo VII do livro A República, onde o filósofo traz o famoso mito da caverna e faz essa analogia sobre a busca do conhecimento e o filosofar. Para Platão estamos no mundo das sombras e, não conseguiremos sair dele senão buscarmos o conhecimento verdadeiro (episteme). Assim há os que estão presos na caverna, nós como maioria, e ocorre de um prisioneiro conseguir se libertar. A libertação não é fácil: é um processo difícil e dolorido. A libertação pode ser interpretada como a busca do conhecimento pelo filósofo que não é simples e fácil, demanda tempo e exercício. Platão vai delinear sobre o mundo [ 264 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS dos sentidos e o mundo das ideias, e assim explicá-los através de sua alegoria. Para ele, o filósofo deve sair da caverna através da educação e buscando em seu intelecto ideias que já existiam ali (reminiscência) para poder acessar a verdade e a essência de tal (eidos). O sair da caverna é se desprender e ver o que há além das sombras, ou seja, essas sombras não são a verdade e o conhecimento em si; mas sim imagens breves e crenças que não chegam a formular uma verdade, mas uma imagem que pertence ao mundo sensível que não é a verdade e o conhecimento encontrado através da racionalidade. A ascese é a educação do filósofo, sair do mundo das imagens para buscar o bem supremo que nada mais é que a verdade no mundo das ideias e do conhecimento. Mas essa libertação não é fácil: [...] quais seriam as consequências da libertação desses homens, depois de curados de suas cadeias e imaginações, se as coisas se passassem do seguinte modo: vindo a ser um deles libertado e obrigado imediatamente a levantar-se, a virar o pescoço, andar e olhar na direção da luz, não apenas tudo isso lhe causaria dor, como também o deslumbramento o impediria de ver os objetos cujas sombras até então ele enxergava. Como achas que responderia a quem lhe afirmasse que tudo o que ele vira até ali não passava de brinquedo e que somente agora, por estar mais próximo da realidade e ter o rosto voltado para o que é mais real, é que ele via com maior exatidão; e também se o interlocutor lhe mostrasse os objetos, à medida que fossem desfilando, e o obrigasse, à custa de perguntas, a designá-los pelos nomes? Não te parece que ficaria atrapalhado e imaginaria ser mais verdadeiro tudo o que ele vira até então do que quanto naquele instante lhe mostravam? (Rep., VII, 575, 515 D) Nessa passagem Platão remete a saída do mundo das imagens para o mundo do conhecimento: a ascensão da alma ao inteligível. Essa busca não é fácil: ter ciência de sua ignorância, analisar que há diferentes possibilidades de conhecimento, ver os ‘objetos’ que antes eram sombras ou borrões, ou seja, perceber que somos limitados, mas que se pode buscar os ‘objetos’ ou o conhecimento através desse exercício proposto pelo filósofo. Para Platão: [...] no limite extremo da região do cognoscível está a ideia do bem, dificilmente perceptível, mas que, uma vez apreendida, impõe-nos de pronto a conclusão de que é a causa de tudo o que é belo e direito, a geratriz, no mundo visível, da luz e do senhor da luz, como no mundo inteligível é dominadora, fonte imediata da verdade e da inteligência, que precisará ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria, tanto na vida pública como na particular. (Rep., VII, 579, 517 B-C) Para Platão o Bem supremo é o logos, o auge do conhecimento e para atingi-lo é necessário o exercício filosófico e o distanciamento do mundo sensível, é se aproximar do inteligível. Já Hipátia não irá se distanciar completamente do mundo sensível devido à influência posterior de Plotino. E, nisto, reside o elo de diálogo entre os três filósofos sob o qual pretendemos situar nossa leitura sobre Hipátia. Mas, Hipátia será inspirada por essa busca pelo Bem supremo, como propõe Platão. Gleichauf (2010, p.21) diz que, “el cuerpo es uma atadura, de la que uno debe escapar paso a paso”. A saída da caverna em direção à luz como é demonstrado por Platão, influenciou o pensamento de Hipátia, pois para ela, o corpo ou o material deve ser abandonado para ocorrer a busca do mundo inteligível.. O corpo é um empecilho, uma atadura que deve ser abandonado aos poucos de acordo com o que nossa mestra ensinava. Em seguida, vamos analisar a filosofia de Plotino para após liga-la a Platão e a Hipátia. Reale (1990, p. 339) elucida que Plotino organiza seu sistema em três hipóstases: o Uno, o Nous e a Alma. Ele pensa o Uno, um ser perfeito e ilimitado, criador de tudo, infinito, que ao criar não perde nada de si. Dessa forma: Plotino descobre o infinito na dimensão do imaterial e o caracteriza como potência produtora ilimitada. E, consequentemente, como o ser, a substância e a inteligência [ 265 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS haviam sido concebidos na filosofia clássica como finitos, Plotino coloca o seu “Uno” acima do ser e da inteligência (Idem, p. 340). Ou seja, há a ideia de um ser perfeito que é quem emana luz em círculos sucessivos (Idem, p. 342), aqui se pode esboçar a ideia do divino e a valorização dessa busca por algo que está além do plano material. É a primeira hipóstase de Plotino, o primeiro caminho: o Uno. E é o caminho final que as outras hipóstases seguem para se unir ao Uno. O Uno é um ser que cria os demais e assim, cria o Nous que é uma forma de espírito que se origina pelo Uno. Não é um ser, mas um campo de ideias, um lugar que existe a ideia de matéria: O Espírito plotiniano torna-se o Ser por excelência, o Pensamento por excelência, a Vida por excelência. É cosmos inteligível no qual o Todo ecoa em cada Ideia e, vice-e-versa, no qual cada Ideia se reflete no Todo. É o mundo da pura Beleza, já que a Beleza é essencialmente forma. (Idem, p.343) A segunda hipóstase é derivada do Uno (que se autocria, sem perder nada de si) que irá se tornar o Ser. Já a terceira hipóstase é a Alma: a Alma seria esse último estágio, que nasce do Nous, algumas almas permanecem no mundo das ideias como espírito. Outras dão forma aos seres. Esse método plotiniano dá a entender que a Alma deve chegar ao Uno, mas para isso ocorrer deve-se meditar e abdicar de bens terrenos. É aqui que aproximamos Hipátia e seus ensinamentos: a mestra tentou apresentar essas ideias aos seus discípulos. Desapego às posses, compreensão dos mistérios da alma através da contemplação e meditação. Segundo Cabeceira (2014, p.31) Plotino influencia sobre a ideia de Belo, que é preciso se desapegar ao material, ao que julgamos beleza nos corpos e nas coisas; para isso se deve voltar à alma. Aqui, é preciso de meditação para se retornar ao intelecto, ao espírito para assim acessar o Uno elevado. A aproximação de Plotino: as hipóstases o nous e as almas, até chegarem à hipóstase superior: o Uno a criadora, deveria ocorrer pela meditação, voltar-se ao interior de si para chegar ao Ser criador de tudo. Sinésio em suas cartas descreve Hipátia como bem-aventurada, segundo Dzieslka (2004, p.60), que a mesma autora cita que é por intermédio de Platão e de Plotino que se encontram os mistérios divinos do espírito na filosofia hipatiana. Hipátia guia seus alunos ao encontro do divino através de ensinamentos de Platão. Assim, de acordo com Dzielska (2004, p.61) os alunos deveriam “de un enérgico esfuerzo de la inteligência y el corazón descubran en su fuero interno ‘el ojo enterrado dentro de nosostros’”. A mesma autora discorre que esse Olho Intelectual é como um “filho luminoso da razão”. Essa ideia de um Olho intelectual se aproxima de Plotino, que dizia que a alma deveria se voltar ao Nous até alcançar o Uno através da meditação. A filosofia hipatiana busca o êxtase, pois se liberta das amarras corpóreas e da matéria, buscando o espírito, o inteligível. Para depois se extasiar com o Uno, o mais elevado nos céus que não pertence ao mundo terreno: De ahora en adelante esta vida verdadera estará siempre subordinada a la razón, a utilizar los instrumentos cognitivos para buscar primero la sabiduría eterna, mas adelante para someterse al éxtasis que eleva a otra dimensión de la existência y a la fusión directa com el Uno. (DZIELSKA,2004, p.62) Também Platão se imbrica com Plotino: elevar-se ao Uno através dos ensinamentos de Platão, do inteligível: “Vivir la vida de acuerdo com la razón es la meta de los seres humanos. Busquemos esa vida; pidamos a Dios la divina sabiduría” (Ep. 137) 2. Marcação referente à carta de Sinésio. In:. DZIELSKA, Maria. Hipatia de Alejandría. Tradução José Luis López Muñoz. Espanha: EPubLibre, 2004. p.63. 2 [ 266 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Dzieslka expõe sobre a sabedoria que Hipátia buscava, uma busca pelo divino e pelos seus mistérios deixando as ‘amarras corporais’ e da matéria para chegar ao Ser elevado: La sabiduría que ordena al ser humano que reconozca y entienda sólo las cosas divinas y lo empuja a buscar lo indefinible y misterioro también lo eleva por encima de la perfección corporal. La elevación del ser humano más ala de su cuerpo significa que em su búsqueda de Diós queda libre de afectos, vive em armonia consigo mismo, indiferente a las cosas del mundo. Em consecuencia, el caminho por el que Hipatia conduce a sus discípulos hacia lo que ellos llaman "la“unión com lo divino” requiere um gran esfuerzo cognitivo y también la perfeción ética. (DZIELSKA, 2004, p.63) Ou seja, a elevação ao Uno, a busca pela sabedoria está acima de questões corporais ou de bens. A harmonia é buscada na interioridade para se voltar ao divino. Após essa busca em si, passa ao Nous até chegar ao Uno. Em termos platônicos é deixar o mundo sensível para encontrar no inteligível a sabedoria. Porém, Hipátia percebe o ser superior que se origina de Plotino. Frente essa breve compreensão das origens da filosofia hipatiana, buscar-se-á analisar o conceito de liberdade de pensamento. Parte-se da premissa referente ao contexto de Hipátia: disputas entre judeus e cristãos na política, onde o judaísmo não via com bons olhos uma mulher independente e com uma posição de poder, a ameaça que ela significava pela proximidade com o prefeito e autoridades de Alexandria. Uma mulher que andava livremente pela cidade, com ensinamentos filosóficos e espirituais poderia ser uma grande afronta às tradições monoteístas do Egito. E uma questão que ficou na mente da autora do presente artigo: será que a perda ou inexistência de escritos hipatianos é ao acaso? Nossa filósofa traz conceitos ontológicos, pensa a existência e a transcendência até o Uno. Não é uma filósofa da physys, mas sim, de questões além do meio visível, questões de interioridade e encontro com algo superior. Não se pode abrir mão do desconhecimento da filósofa no meio acadêmico. E não só dela, pensamos no Ocidente uma filosofia masculinizada, onde os principais nomes são os fundadores do que chamamos de Filosofia. Rosa (2015) problematiza o fazer filosófico e o que é Filosofia: as mulheres não tem nenhuma contribuição em nosso pensamento? E afirma: “Assim, subverter é transcender. Uma transcendência que se faz ao caminhar com as mulheres e no caminhar das mulheres na Filosofia.” (Idem, p. 35) E para Hipátia, onde reside a liberdade? Não seria na relação com a verdade, com as ideias? A liberdade para ela não residia justamente em exercitar-se filosoficamente? Uma prática que não era comum, nem aceitável por parte das mulheres? Esse exercício racional do espírito não é justamente o que dá ao sujeito o acesso à sua liberdade? Hipátia transgrediu. Talvez não fosse a intenção da filósofa, acredito que ela buscava a liberdade e o diálogo das ideias. Buscava o conhecimento supremo através da união com o Uno através de regras de desapego ao sensível. E a filósofa caminhava em uma linha tênue política e religiosa. Em um momento conturbado entre judeus e cristãos principalmente, onde os segundos cresciam. E já os judeus não aceitavam uma mulher em uma posição de destaque: como mestre, aquela que tinha acesso ao conhecimento e o transmitia à elite de Alexandria. Também se destaca o descontentamento dos cristãos devido à política. Orestes como prefeito escutava muito Hipátia: como uma mulher na Antiguidade Tardia conseguiu esse poder? Talvez não fosse intencional ou talvez as condições de vida aristocrática de Hipátia privilegiaram-na. Não temos como responder muitas questões com clareza. Mas podemos perceber a relevância do exercício filosófico e da liberdade deste. Exercício filosófico que ocorria entre pessoas de diferentes religiões. Será que essa atitude de reunir diferentes credos em um mesmo ambiente não pode ser considerada uma transgressão e a valorização da liberdade? Liberdade filosófica para pessoas em posições religiosas e talvez políticas diferente. Um espaço que a filósofa permitia e criou como lugar para possibilidades filosóficas: possibilidades de judeus, cristãos e pagãos estudarem e filosofarem juntos; posicionamentos políticos adversos, talvez deixados de lado até certo ponto para estudar geometria, astronomia ou filosofia. [ 267 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A busca filosófica para chegar à sabedoria divina e a extensão disso por parte de Hipátia aos alunos, demonstra a insistência, ou o fato de se acreditar na abertura dos humanos. Acreditar que era possível uma mulher instruída guiar homens políticos ou de cargos importantes no momento de ascensão cristã. Além de a filósofa ter que conviver com a ideia bíblica da submissão feminina. Repensar o que é liberdade em tempos de suprimir ela, de ditar regras e ainda existir uma mulher filósofa. Entender que mulheres foram e são seres atuantes na filosofia e demais ciências que são espaços masculinos, que é possível conviver com essas diferenças, buscar o conhecimento e o fornecer. REFERÊNCIAS: BÍBLIA. Eva e depois Adão comem do Fruto proibido. Tradução de João Ferreira de Almeida. L.C.C: Publicações Eletrônicas. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/biblia.pdf>. Acesso em 10 de out. de 2018. CABECEIRA, Ana Clara da Silva. A vida de Hipácia de Alexandria: representações de gênero na Antiguidade Tardia. 2014, 43 f. Monografia (Licenciatura em Filosofia)- Universidade de Brasília, Brasília. Disponível em: < http://bdm.unb.br/handle/10483/8067>. Acesso em 05 de out. de 2018. DZIELSKA, Maria. Hipatia de Alejandría. Tradução José Luis López Muñoz. Espanha: EPubLibre, 2004. Disponível em: < https://pt.scribd.com/document/349532925/Dzielska-Maria-Hipatia-De-Alejandria-pdf>. Acesso em 03 de jun. de 2018. GLEICHAUF, Ingebord. 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Justifica-se o recorte temático dado a sua relevância e ausência de estudos nessa linha. Partindo do conceito de representação de Chartier (1991), objetiva-se perceber como os fotógrafos representaram a formação da colônia de Getúlio Vargas, no que diz respeito aos espaços fotografados, a instalação dos colonos em seus lotes, a correlação entre colonização e ferrovia, a organização do espaço urbano da colônia no início do século XX; e contribuir para o conjunto de estudos historiográficos sobre a história social. Palavras-chave: Colônia Getúlio Vargas; colono/imigrante; análise fotográfica INTRODUÇÃO As cidades, assim como as pessoas, têm personalidade. Tem seu jeito próprio, qualidades, defeitos, características que distinguem umas das outras. E tem uma história, formada pela soma das histórias de todos os que ali vivem ou viveram. Uma parte desta história vai sendo contada, escrita e incorporada à cultura da população. Outra parte fica impressa no espaço urbano e é contada pelos próprios recantos, pelas ruas, pelas construções. Do prédio mais antigo ao mais recente, as construções testemunham a passagem dos homens pelo lugar, mostram como vivem e o que são capazes de construir. (DETONI, M. G., 1989, p. 7) Este artigo tem por objetivo analisar as imagens fotográficas do período de 1908 a 1934 e identificar as representações construídas sobre a mão de obra do colono na construção da colônia de Getúlio Vargas, situada no norte do Rio Grande do Sul, mais especificamente no que concerne à configuração de seu espaço e seus sujeitos. Patricia Lilian Mokfa, graduada em História pela Universidade de Passo Fundo, Mestranda PPGH/UPF Bolsista FUPF 50%, e-mail: patriciamokfa@yahoo.com 1 [ 269 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Mapa 1: Cidade de Getúlio Vargas localizada no norte do Rio Grande do Sul, que será o palco de estudo. Fonte: https://wikitravel.org/pt/Rio_Grande_do_Sul Durante esse período de renovação, historiadores como Jacques Le Goff e Marc Bloch irão expandir em muito a noção de documento e dos objetos da história. Como a máxima de Marc Bloch: “A diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca pode e deve informar-nos sobre ele” (1941-1942, p. 63). O conjunto de imagens foi constituído por vários fotógrafos, muitos dos quais não identificados, que registraram a formação e o crescimento dessa colônia. O conjunto fotográfico, composto por cerca de 200 imagens de temas os mais diversos, está no acervo sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas (IHGGV). Logo, essas fotografias deixaram de circular e passaram a integrar uma coleção de uma instituição privada, para “participarem de um intercâmbio de um mundo visível e invisível” (POMIAN, 1984, p.66) As primeiras fotografias feitas foram por um fotografo não identificado que registrou 45 imagens a partir de 1908 a 1913 início da colonização, que cruzou pela então sede da Colônia Erechim (atual Getúlio Vargas), seguindo em direção a Paiol Grande e Marcelino Ramos. Após, ele prosseguiu viagem a Santa Catarina e ao Paraná doando essas imagens para o arquivo de Erechim RS. Como um exemplo desse circuito de produção e consumo da imagem, temos a pequena colônia de Getúlio Vargas, inicialmente registrada nas imagens – feitas pelos primeiros fotógrafos itinerantes – de retratos de famílias em suas propriedades, imagens estas divulgadas nos mais diferentes suportes. [ 270 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 2. Getúlio Vargas no rastro de sua história Inicialmente chamado de Paiol Grande e, depois, sucessivamente, de Boa Vista, Boa Vista de Erechim, José Bonifácio e, dividindo então Getúlio Vargas e Erechim como muitos outros povoados do Brasil, Getúlio Vargas surgiu à margem de uma estrada de ferro. No caso, a estrada de ferro que ligava o Rio Grande do Sul a São Paulo. A fotografia é uma importante fonte histórica para o estudo da imigração e da colonização. Para Ana Maria Mauad (2004), o historiador deve partir do pressuposto de que a fotografia é um testemunho válido, não importando se o registro foi feito para documentar um fato ou representar um estilo de vida: As fotografias guardam, na sua superfície sensível, a marca indefectível do passado que a produziu e consumiu. Um dia já foram memória presente, próximas àqueles que as possuíam, as guardavam e colecionavam como relíquias, lembranças ou testemunhos. No processo de constante vir a ser recuperam o seu caráter de presença num novo lugar, num outro contexto e com uma função diferente. Da mesma forma que seus antigos donos, o historiador entra em contato com este presente/ passado e o investe de sentido, um sentido diverso daquele dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio de ser estudado. (MAUAD, 2004, p. 26). Foi na primeira metade do século XX que a utilização da máquina fotográfica tornou-se popular. Para além da crescente e veloz evolução tecnológica que a acompanhou, a fotografia passou a figurar como um discurso da verdade, importante documento comprobatório de um acontecimento. A fim de conhecer as diferentes sociedades e sua organização, a fotografia consiste em uma importante fonte de pesquisa. Para Charles Monteiro, A fotografia é um recorte do real. Primeiramente, um corte no fluxo tempo real, o congelamento de um instante separado da sucessão dos acontecimentos. Em segundo lugar, ele é um fragmento escolhido pelo fotógrafo pela seleção de tema, dos sujeitos, do entorno, do enquadramento, do sentido, da luminosidade, da forma, etc. Em terceiro lugar, transforma o tridimensional em bidimensional, reduz a gama das cores e simula a profundidade do campo de visão. Ela é também uma convenção do olhar herdada do Renascimento e da pintura, que é necessário aprender para ver. A câmara fotográfica capta mais e menos do que o nosso olho pode ver. (MONTEIRO, 2006, p.12). Segundo Borges (2005, p. 80), “seus discursos [da fotografia] sinalizam lógicas diferenciadas de organização do pensamento, de ordenação dos espaços sociais e de medição dos tempos culturais”. Já Susan Sontag destaca que: Por meio das fotos, acompanhamos da maneira mais íntima e perturbadora o modo como as pessoas envelhecem. Olhar para uma velha foto de si mesmo, de alguém que conhecemos ou de alguma figura pública muito fotografada é sentir, antes de tudo: como eu (ela, ele) era muito mais jovem na época. A fotografia é o inventário da mortalidade. Basta, agora, um toque do dedo para dotar um momento de uma ironia póstuma. As fotos mostram as pessoas incontestavelmente presentes num lugar e numa época específica de suas vidas; agrupam pessoas e coisas que, um instante depois, se dispersaram, mudaram, seguiram o curso de seus destinos independentes. (SONTAG, 2004, p. 43). A cultura dos povos, manifestada por seus costumes, habitação, monumentos, mitos e religiões, passou a ser gradativamente documentada pela câmara fotográfica. Paisagens urbanas e rurais, obras de [ 271 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS implantação de estradas de ferro, conflitos armados e expedições científicas passaram a ter seu lugar diante das máquinas fotográficas. Seja a fotografia um tipo de arte ou de pura técnica, surge no debate a questão de seu caráter documental: o homem passa a ter uma outra opção de acesso a outras realidades que antes lhe eram transmitidas através de relatos escritos, em sua maioria (KOSSOY, 2001). Toda fotografia traz consigo uma história. É um resíduo, um vestígio do passado. Contudo, enquanto tecnologia de registros fotográficos de seu tempo, no qual a técnica e a ciência eram sagradas, foi de certa forma, sacralizado. As fotografias passaram a ser consideradas, enquanto registros instantâneos da realidade, como “testemunhos da verdade” KOSSOY, 1993, p. 13), o que atribuiu a elas um certo estatuto de credibilidade, tornando-a um espelho fiel dos fatos. Observando-se tais questões, uma fotografia produzida no passado também pode ser considerada uma espécie de monumento, pois, como destaca (LE GOFF 1984, p. 103), todo documento reflete “o esforço das sociedades históricas para impor ao futuro, voluntária ou involuntariamente determinada imagem de si próprias”. Dessa forma, podemos dizer que toda imagem fotográfica tem atrás de si uma história. Se, enquanto documento, ela é um instrumento de fixação da memória e, nesse sentido, mostra-nos como eram os objetos, os rostos, as ruas, o mundo, ao mesmo tempo, enquanto representação, ela nos faz imaginar o não manifesto, a emoção e a ideologia do fotógrafo. A fotografia, assim compreendida, deixa de ser imagem retida no tempo para se tornar uma mensagem que se processa através do tempo, tanto como imagem/documento quanto como imagem/monumento. Sua importância é ressaltada por Le Goff (2003), o qual a coloca entre as manifestações mais significativas da memória coletiva. A fotografia revolucionou a memória: multiplicou e a democratizou, dando uma precisão e uma “verdade” visual nunca antes atingida, permitindo, assim, preservar a memória do tempo e da evolução cronológica. 3 Origem do colono/imigrante e emancipação de Getúlio Vargas/RS Segundo Silva (2011, p.136) faz a seguinte consideração sobre o “colono”: “Ser colono, sob a ótica dos governantes, era a equivalente, a ser pequeno proprietário agrícola, fixado a terra, respeitador das leis e das autoridades e, sobretudo, ser um produtor de gêneros voltados a 'avolumar as rendas do Estado’”. E para Dorigon e Renk (2013, p. 13): “A palavra ‘Colono’ foi uma categoria administrativa estabelecida pelas autoridades do Império a esses imigrantes e assimilada pelos agricultores como sinal positivo na construção da identidade”. Era a propriedade de terra que o colono estava interessado. Um dos objetivos era buscar “melhorar de vida” e ter a perspectiva e a possibilidade de “dar um conforto à família”. Atrair o colono em comprar as terras e explorar madeira foi uma prática comum entre os colonizadores. O colono tinha o papel de preencher o “vazio demográfico na região” e trazer o desenvolvimento esperado pelos governantes. (RADIN, 2012, p. 77) salienta: “A propriedade da terra representava acima de tudo a grande possibilidade de dar o conforto à família, de formar uma comunidade de fé, também, espaço da solidariedade no enfrentamento das dificuldades típicas desse tipo de colonização.” Com a colonização Getuliense ali se instalaram imigrantes europeus e/ou descendes. Destes, predominavam os de origem italiana, que chegaram na colônia por volta de 1910 através da ferrovia, ao longo de vários anos, modificaram a fisionomia social da região com seus valores espirituais, culturais e materiais. Grande parte dos imigrantes, não só os italianos, como citei a cima vinham em busca de uma vida melhor para si e para suas gerações. Ainda hoje é possível perceber interferências dos imigrantes oriundos desses países, especialmente na arquitetura e na culinária da cidade, alguns germânicos, poloneses, alemães e judaicos. Praticavam costumes e hábitos culturais mais de origem europeia; falavam e ensinavam aos seus filhos a língua de origem. Radin, (2009) utiliza a categoria “ocupação” para designar o período anterior à colonização, condizente ao espaço do indígena e do caboclo, “colonização” para designar o período decorrente à colonização, onde a terra passa a ser comercializada pelas companhias colonizadoras em pequenos lotes e apropriação. Grandes extensões de terras foram legalizadas pelo sistema de posse tendo por base a Lei de [ 272 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Terra de 1850. No final do século XIX e início do século XX, tinha-se o entendimento de que seria legítimo “tornar para si aquilo que era considerado abandono, no caso as terras”. O novo município reivindicou o tradicional nome de Erechim junto ao governo do estado, justificando o valor sentimental por ter sido nesse local a primeira sede da colônia. O pedido, contudo, foi negado, sendo sugerido o nome de Getúlio Vargas: Em 18 de dezembro de 1934, finalmente, tornou-se realidade a emancipação do povoado que se chamava colônia Erechim, pelo decreto estadual nº 5788. O distrito de Sananduva, pertencente a Lagoa Vermelha, foi excluído do território ao emancipar-se e o território do novo município ficou constituído pelo 2º e 4º distritos de Erechim –Povoado Erechim e Erebango – e pelo distrito de Sete de Setembro, território do município de Passo Fundo e que, mais tarde, passaria a pertencer a Tapejara, quando este se emancipo. (OLIVEIRA; FORLIN; CRENDENE, 1984, p. 36) Desde o princípio de sua história conhecida, a cidade de Getúlio Vargas/RS foi sendo transformada principalmente através da ação dos imigrantes/migrantes. Naquele momento em que todos estavam mais preocupados em sobreviver, não era comum produzir registros com o intuito de guardar documentos históricos para a posteridade. No entanto, já havia certa cultura da imagem – as atividades na nova terra, mesmo que em pequena escala e não disseminadas, foram retratadas por lentes fotográficas. Nesse sentido, se uma das funções da fotografia é a de aproximação com o real, estas imagens trazem o efeito de sentido de que possuem uma capacidade especular. Colonização e ferrovia estavam fortemente interligadas nesse processo e no discurso do governo, representando ambas a modernização e o progresso. Podemos acompanhar a trajetória da apropriação de terras, atraindo imigrantes e colonos e colocando em prática o processo predeterminado por agentes políticos e econômicos do Estado, que previa tirar de cena o índio e o caboclo. A ferrovia deu sustentação ao projeto de colonização, como meio de transporte de pessoas, além de servir de fronteira e de via para escoar a produção; portanto, teve o papel de animar a vida econômica e de proteger a fronteira. Referindo-se à formação de Getúlio Vargas, Ângelo Fabris destaca que: Em 1911, com a chegada do trem e a inauguração da Estação Férrea Erechim, as ligações para a capital, para as colônias velhas e para os outros estados foram estabelecidas. Com o trem vieram mais imigrantes, na maioria italianos, alemães e poloneses, que formaram a base da população e da força de trabalho, possibilitando o maior desenvolvimento da região. A partir de 1924, com o apoio da comunidade, um grupo de moradores levantou a bandeira de emancipação e, em 18 de dezembro de 1934, o governo federal decretou a criação do município de Getúlio Vargas. Ficaram ligados ao município os distritos de Erebango, Ipiranga, Floriano Peixoto e o bairro Estação, agora municípios que integram a região. (FABRIS, 2014, p. 6) [ 273 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 1: Estação Erechim (1910) - hoje Estação. Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas. Fotógrafo não identificado. Os imigrantes europeus chegaram à colônia de Erechim, a partir de 1910. Encontraram uma infraestrutura em fase de execução, um órgão oficial de colonização em atividade a seu benefício e uma ferrovia, além da hospitalidade e do espírito de ajuda de compatriotas aclimatados e experientes, que falavam os mesmos idiomas. Nesse contexto de 1910, o trem representa a modernidade. Já a estação de trem figura como um ponto privilegiado para a tomada das fotografias da colônia, como podemos observar na figura 1, que traz um retrato da estação de trem e o seu movimento, representado pelos freteiros, responsáveis pelo transporte de mercadorias e pessoas que chegavam e partiam. Além da localização da Estação Férrea, a figura 1 e 2 também permite analisar homens com boas vestimentas e com o mínimo de objetos e malas; a charrete e a o cavalo, símbolos de status social, completam na foto o desejo de ascensão social e econômica. O local na figura 1 parece pertencer à zona rural, em função da terra batida, das casas de maneira ao fundo e da mata com bastante árvores. [ 274 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 2: Imigrantes e migrantes chegam pela ferrovia na cidade de Estação (1910). Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas. Fotógrafo não identificado. Na figura 2, imigrantes chegam pela ferrovia na cidade de Estação, transportados para a sede da colônia em 1910. Percebem-se homens com boas vestimentas, acompanhados de crianças e sem malas e objetos particulares. Ao chegarem, os colonos europeus e os imigrantes das colônias velhas encontraram aqueles antigos moradores, com suas capoeiras (áreas desmatadas), roças (plantações de milho), mandioca, feijão), extraindo e cancheando erva-mate. Geralmente possuíam pequenas criações de animais domésticos (porcos, aves, vaca leiteira, terneiros), bois e cavalos, pois os únicos meios de transporte existentes eram o lombo, o burro e a carrocinha. Em sua maioria, eram descendentes de paulistas ou vindos de outros lugares. Dentre eles, havia também alguns descendentes de alemães e italianos. As famílias que chegavam iam se instalando um tanto desordenadamente na área da Praça Júlio de Castilhos e à frente do quadro ferroviário (CHIAPARINI, 2012, p. 43). Vários problemas surgiram no início das atividades de assentamentos coloniais de imigrantes. Dentre os mais citados compreendem a viagem realizada dos grandes centros até os lotes coloniais devido à dificuldade que apresentavam os meios de transportes frente à condição geográfica. O imigrante procedia de uma realidade diferenciada do meio rural e urbano. Em geral, vivia em seu habitat rural relativamente urbanizado, inserido no contexto europeu. Ao emigrar para o Rio Grande do Sul, antes da I Guerra Mundial, estradas, ferrovias e meios de transporte variados já eram comuns em diversas regiões fora do Brasil. A viagem rumo à nova propriedade iniciava com o carregamento das malas nas mulas ou nas costas. Reservavam-se cavalos mansos para as mulheres e as crianças mais novas. Geralmente, os homens e os filhos seguiam a pé ou revezavam-se na maioria dos animais. Os imigrantes seguiam a viagem em fila indiana; à frente, ia o responsável pelo grupo, acompanhado de funcionário da empresa colonizadora. Parava-se para almoçar e para o descanso de homens e animais. As regiões designadas, como assinalado, raramente havia estradas como as conhecidas em solo, sendo o caminho realizado por picadas abertas na mata. Não raro, precisava-se abrir o caminho com auxílio do facão e expressivo esforço físico. [ 275 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura3: Imigrantes e migrantes chegam na área da mata, para divisão de lotes (1910). Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas(IHGVV). Fotógrafo não identificado. Com a observação de detalhes presentes em fotografias como essas, pode-se entender melhor as lembranças dos que viveram naquela época. Era preciso organizar e dividir os lotes, derrubar árvores para então cortar as toras para a construção de abrigos e abrir caminhos em meio à mata fechada - e esta tarefa exigia força masculina. Mulheres e crianças viriam depois para a Colônia, quando houvesse uma pequena infra-estrutura para recebê-los. Naquele instante congelado, as toras começavam a ser organizadas, após a limpeza dos troncos e a abertura de uma clareira. Ao fundo, nota-se que a floresta era densa, e que uma das espécies que a constituíam era a Araucária, ou pinheiro-do-Paraná. Homens protegidos por roupas compridas, chapéus e botas para enfrentar as intempéries do clima, insetos e animais da floresta. O trabalho era braçal, com instrumentos como foices e enxadas. A acomodação dos imigrantes nas hospedarias e barracões, enquanto não fossem destinados a seus lotes também trouxe dificuldades aos imigrantes e Empresas Colonizadoras. Era difícil acomodar número tão grande de pessoas, com costumes e dialetos diferentes, em pouco espaço. A título de exemplo, podem-se citar as Colônias de Ijuí e Boa Vista do Erechim, onde os imigrantes ficavam dispostos em um barracão, esperando a designação dos lotes, nem sempre considerando suas diferenças linguísticas e condições físicas - quente e mal ventilados -. Alemães, italianos, judeus e poloneses dividiam o mesmo espaço. No momento da instalação no lote colonial, a edificação da residência estava entre as mais importantes para início do empreendimento. Em geral, foi o colono que edificou sua casa, utilizando-se de material encontrado na propriedade: barro, madeira, palha e pedra. Os pregos, algumas vezes utilizados pelos imigrantes alemães e italianos, não foram utilizados na arquitetura polonesa. Os poloneses utilizaram sobretudo o sistema de encaixes de madeira - blocausse -, usado na Polônia durante vários séculos, sobretudo na área rural. [ 276 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 4: Grupo de imigrantes e migrantes prontos para a construção de casas (1910). Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas(IHGGV). Fotógrafo não identificado. Na figura 4, grupo de colonos que faziam mutirões de homens, com ferramentas em mãos, prontos para dominar a mata, sendo que utilizavam a sua força braçal e animal (carro de boi – transporte de pedras, pedregulhos, terra), ajudavam manter trechos mais próximos de sua moradia. Os interesses coletivos (escolas, conservação de estradas, comercialização de produtos) se resolviam mais dentro da própria comunidade local (Linhas). A recuperação de estradas se dava através de mutirões, uma vez por ano. Os imigrantes não eram exigentes no que se referia à moradia, já que a situação habitacional era difícil. “As casas eram pequenas e mal ventiladas. Antes de emigrarem, muitos camponeses moravam em casas locadas. Muitas casas - chalupa - eram desconfortáveis, sem instalações sanitárias, assemelhando-se às choças medievais.” (TEMPSKI, 1971; p.309-313). [ 277 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figuras 3 e 5: Início do povoamento em Erechim, atual Getúlio Vargas (1913). Rua 3, Av. Borges de Medeiros nos primórdios da colonização (1913). Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas. Fotógrafo não identificado. Nas figuras 3 e 5, percebe-se o início do povoamento em Erechim, atual Getúlio Vargas, em 1913, na Rua 3, Av. Borges de Medeiros, nos primórdios da colonização. Trata-se de uma representação do espaço urbano, com poucas ruas abertas, sem postes de luz, algumas casas pequenas feitas de madeira e outras um pouco maiores com bastantes janelas e portas grandes; uns dos meios de transporte, que aparece na imagem, era a charrete; a rua era de terra batida. Animais também eram criados, em pequena quantidade, tais como vaca, cachorro, galinhas, porcos, para a subsistência da família e dos vizinhos próximos, que compravam leite, galinhas, ovos, banha de porco e uma parte da carne. As famílias também faziam trocas de alimentos, pois, no início da colonização, não havia como guardar carnes por muito tempo, de modo que estas eram repartidas entre os vizinhos. Os colonos desenvolviam a agricultura familiar, plantavam e criavam o que precisavam à sua manutenção, e sobras serviam para vender e obter dinheiro. Acreditavam que a cada ano construiriam dias melhores com base na vontade, saúde e recursos que dispunham. Para Chartier, o conceito de representação é a “pedra angular de uma abordagem a nível da história cultural”, pois permite articular três modalidades de relação com o mundo social: Primeiramente, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; em seguida, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns “representantes” (instâncias coletivas ou pessoas) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade (CHARTIER, 1990, p. 23). Assim, a história cultural se definiria, por um lado, como “a análise do trabalho de representação, isto é, das classificações e exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e conceituais próprias de um tempo ou de um espaço” (CHARTIER, 1990, p. 27), e, por outro, “como o estudo dos processos com os quais se constrói um sentido. Rompendo com a antiga ideia que dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto, único — o qual a crítica tinha a obrigação de identificar — dirige-se às práticas que pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo” (CHARTIER, 1990, p. 27). [ 278 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Conclusão Ao analisar as imagens, não há como ficar passivos. Elas incitam nossas lembranças, nos fazem pensar sobre o passado, a partir do dado de materialidade que persiste na ideia retratada2. Qual é, pois, a natureza desses registros? Qual é o papel do fotógrafo? Quais são as imagens que compõem o colono/imigrante como construtor da cidade? As respostas a tais indagações supõem o exame das fotografias e o contexto das publicações onde estão inseridas. O fotógrafo, na maioria das vezes, sequer era identificado nas fotos, o que sugere outras reflexões acerca da autoria e do estatuto da fotografia para aquela coletividade naquele contexto. Desse modo, as fotografias caracterizam, num primeiro momento, a chegada dos imigrantes/migrantes após o desenvolvimento dessa cidade a partir da mão de obra do colono em querer colonizar o local. As fotografias enquanto recursos imagéticos nos permitem analisar a visibilidade e invisibilidade dos fenômenos sociais revelando uma modalidade de olhar o trabalho do colono para desfazer a mata e construir a cidade atual a partir das lentes do fotógrafo e da sociedade daquele momento. Para Kevin Lynch, A cidade é uma construção no espaço, mas tão vasta que os nossos sentidos deixam de alcançar o espaço quando este existe mais além. Apreendemos, por isso, a cidade por partes e nesse processo a nossa mente retém as memórias e os significados mais importantes, que mais nos marcam ao longo da vida, de algum modo associando-os ao espaço que suporta fisicamente esses acontecimentos; estabelecem-se assim relações com partes da cidade, as quais se transformam nas mais significantes. (LYNCH, 1997, p. 11). Assim, a imagem urbana colonial cumpre a tarefa de demarcar e assinalar o espaço – lugares e geografia. Deste modo, ela é pontual e traça o percurso da cidade; ademais, organiza a cidade, torna-a simbólica e representativamente eficiente. O seu reconhecimento supõe a percepção coletiva que a consagra e que faz circular valores, referências e identidades urbanas. Referências BORGES, Maria Elisa Linhares. História & fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. CHARTIER, Roger. A história cultural - entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. CHIAPARINI, Enori José. Erechim: retratos do passado, memórias do presente. Erechim, RS: Graffoluz, 2012. KOSSOY, Boris. A Fotografia como fonte histórica: introdução à pesquisa e interpretação das imagens do passado. SP: SICCT, 1993. ______________. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editoria, 2001. DETONI, M. G. Erechim e sua Arquitetura antiga. A Voz da Serra, Erechim, p. 7, 9 abr.1989, Caderno Especial. DORIGON, Clóvis; RENK, Arlene. Juventude rural, produtos coloniais e produtividade. Chapeco: Argos, 2013. 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[ 280 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Processos crimes de infanticídio: uma proposta de abordagem historiográfica Paula Ribeiro Ciochetto1 Resumo: Pretende-se nesta comunicação, apontar algumas considerações acerca do uso e interpretação dos processos crimes de infanticídio, ocorridos no Rio Grande do Sul, entre os anos de 1891 e 1922. Os processos judiciais se configuram como um lugar de busca pela verdade e seus efeitos, neles estão contidas as falas dos homens da lei, testemunhas e rés, evidenciando relações de poder, assim como aspectos do cotidiano destas pessoas. Sendo assim, serão apresentadas algumas possibilidades de abordagem historiográfica. Palavras-chaves: Infanticídio. Verdade. Poder. Esta comunicação é parte das reflexões presentes na dissertação “Um crime que salva a vergonha: moralidade e medicina legal nos processos de infanticídio (Rio Grande do Sul, 1891-1922)”, que propôs através da análise de 15 processos crimes de infanticídio, identificar com o saber médico legal investigou o corpo das mulheres acusadas de terem cometido tal ato criminoso. Procurando perceber a construção de uma imagem e de um discurso que poderia, muitas vezes, influenciar no parecer final do processo, culminando na absolvição ou condenação da ré. Para tanto, foram analisados também, os elementos que construíram o discurso jurídico acerca da moralidade feminina. As fontes documentais estão disponíveis no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) e no Arquivo Histórico de Santa Maria (AHSM). Foi possível chegar até elas, através de um levantamento documental realizado de forma aleatória, procurando os processos que tinham mulheres como rés. Ao final da pesquisa totalizou-se 26 processos crimes de infanticídio, cometidos entre os anos de 1891 a 1951. Porém, na dissertação foram utilizadas 15 deles, referentes aos anos de 1891 a 1922, devido ao contexto histórico abordado. Estas fontes são provenientes de 10 cidades daquele estado, e dentre elas apenas uma encontra-se preservada no AHSM, as demais localizam-se no APERS. O Rio Grande do Sul foi o cenário da análise, sendo entendido como um espaço que proporciona a problematização dos objetivos propostos. O período de consolidação da República possibilitou a elaboração de uma série de padrões morais, que tinham como uma de suas finalidades a adequação das condutas dos populares dentro dos padrões aceitos por alguns membros da sociedade. Este estado, após a Proclamação da República, diferente do que ocorreu com o restante do país, que tornou-se liberal, adotou o Positivismo, que neste território foi reelaborado por Júlio de Castilhos. O Positivismo se caracterizava como um sistema de ideias elaboradas no século XIX, pelo filósofo francês Augusto Comte. Segundo Weber, “idealizou-se uma filosofia baseada na ciência, para tentar reorganizar a sociedade em uma proposta político-religiosa, em que as coisas deveriam estar em perfeita ordem para a orientação ética da vida moral”.2 Nos processos crimes temos não apenas a fala dos advogados, promotores, juízes, mas também, principalmente a partir de 1907, a incorporação intensa do saber médico ao judiciário brasileiro, com o intuito de instrumentalizá-lo e conferir-lhe um aparato técnico-científico.3 Os médicos legistas tornaram-se integrantes do cotidiano judiciário, atuando nos exames de flagrantes, e nos processos em que seus pareceres 1Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (PPGH/UFSM), Mestra em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH/UFSC). paulaciochetto@yahoo.com.br. 2 WEBER, Beatriz Teixeira. Positivismo e ciência médica no Rio Grande do Sul: a faculdade de Medicina de Porto Alegre. História, Ciências e Saúde – Manguinhos. Vol.5. n.03. Rio de Janeiro. Nov. 1998/Fev.1999. Disponível: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010459701999000100003&lang=pt >. Acesso em: 17 Jul. 2012, p. 34. 3 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. [ 281 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS clínicos eram fundamentais para a construção da “verdade” dos crimes, investigando corpos de réus, rés e vítimas. Considerando os objetivos e delimitações presentes na referida dissertação, foi possível, pensar as fontes que foram utilizadas para a análise historiográfica. Assim, serão feitos alguns apontamentos acerca dos processos crimes enquanto fonte histórica, pensando a relação entre a verdade, a história, poder e sujeitos. Um olhar sobre as fontes: verdade, poder, sujeitos A historiadora Michele Perrot afirma que o infanticídio, principalmente de meninas “é uma prática muito antiga, que perdura maciçamente na Índia e, principalmente na China, por causa da delimitação a um único filho”.4 Nota-se que no Brasil, este cenário por vezes se repetiu, e ainda se repete. Algumas mulheres continuam a cometer crimes contra a vida de seus filhos, o que pode estar relacionado às tradições culturais, econômicas, fatores psicológicos e pressões sociais. Na sociedade em que vivemos, essas práticas são condenadas, pois muitos consideram que há vida desde o momento da concepção. E assim, o historiador Adriano Prosperi nos fala: O gesto da mãe que mata o filho torna o episódio desconcertante e ameaçador. Aconteceu, pode voltar a acontecer e, de fato, continua a acontecer; e, a cada vez que acontece, o gesto sempre desperta reações profundas porque rompe o sentido de continuidade da vida e atinge a raiz da esperança como projeção da espécie no futuro.5 Entende-se que essas práticas continuam acontecendo não apenas no Brasil, mas no mundo, e que são julgadas de diferentes maneiras, conforme sua temporalidade e espacialidade. Em alguns lugares são aceitas, em outros não são oficiais, mas estão presentes entre a população e nas práticas clandestinas. Deste modo, o historiador que tem as fontes criminais como seu objeto de análise, deve considerar que: “a partir do momento em que um comportamento é definido como crime e, enquanto tal, é proibido e punido, torna-se possível estudar a repetição do próprio crime, as variações das leis que lhe dizem respeito, as modificações na percepção social e no juízo aplicado a ele”. 6 Ainda segundo Prosperi, “modificam-se as palavras que indicam os crimes e, com elas, [...], modificam-se também os próprios crimes”,7 assim como as versões que se podem construir sobre eles. Nos processos crimes, a versão final constitui-se como verdade, uma versão verdadeira elaborada pela Justiça. A busca pela verdade nesses processos, segundo Zenha, 8 se distingue da ação do ato criminoso, pois este não nos é possível de alcançar, e o considerado verídico, se constitui das versões apresentadas no documento pelos homens da lei, como advogados e juízes. O fato nos escapa, ficou perdido no tempo, no que Prosperi afirma ser [...] dois fios distintos que se entrelaçam em proporções e formas diferentes em cada vida: o fio cinzento daquilo que se repete a cada geração e que se expressa como ‘nada de novo de baixo do sol’, e aquele outro fio que apresenta uma única vez, [...], o tom inconfundível de uma cor destinada a nunca mais reaparecer.9 PERROT, Michele. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007, p. 98. PROSPERI, Adriano. Dar a alma: a história de um infanticídio. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 26. 6 Ibid, p. 29. 7 PROSPERI, 2010. 8 ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no cotidiano da pobreza. Revista Brasileira de História. v. 5, nº10. São Paulo: Marco Zero, 1985. 9 PROSPERI, op. cit., p. 28. 4 5 [ 282 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O “fio cinzento”, do qual ele nos fala, se relaciona aqui, a repetição das práticas infanticidas por mulheres de diferentes países e épocas; e o “outro fio”, é o ato em si, perdido no tempo. Os processos criminais trazem os indícios do que pode ter ocorrido, mas isto não é necessariamente o objetivo principal buscado pelo historiador que faz uso desta fonte documental. Ao lermos as falas contidas nessa documentação, podemos ter acesso, em parte, a sociedade local, aos códigos de valores, conflitos, padrões de moralidade; considerando que essas falas agiam de acordo com a intenção de quem as proferia, em um determinado tempo e entendimento, poderiam influenciar ou não na sentença dos processos. O historiador Carlo Guinzburg nos fala que os autos processuais “diretamente acessíveis ou [...] indiretamente, podem ser comparados à documentação de primeira mão recolhida por um antropólogo em seu trabalho de campo e deixada para historiadores futuros”. 10 Na busca pela verdade do que teria acontecido, os juristas elaboraram uma série de questões para o interrogatório aplicado aos réus e testemunhas; as respostas, sem que houvesse esta intenção, acabam por contribuir com o trabalho do historiador, que se aproxima da fonte após anos de sua elaboração, e procura captar aspectos dos processos sociais e do cotidiano através de sua análise, e dos dados involuntários nela contidos. 11 Destacamos que ainda que historiador e juiz se aproximem na medida em que ambos, de certo modo, possuem o mesmo objeto como alvo de suas investigações, seus olhares se distanciam, de modo que para um, a busca pela “verdade” é seu objetivo principal, e as provas adquiridas ao longo dos autos corroboram para isto, culminando na absolvição ou condenação do réu, assim a “margem de incerteza tem um significado puramente negativo”.12 Para o historiador a margem de incerteza se configura em suas pesquisas deste sempre, pois o passado é impossível de ser alcançado, porém ao usar a narrativa pode-se buscar reconstruílo. Nesse mesmo sentido, Gaddis faz uma analogia ao comparar o trabalho do historiador e do artista, nos dizendo que os historiadores, [...], empregam a abstração para superar uma restrição diferente, que é o distanciamento no tempo de seu objeto de estudo. Os artistas coexistem com os objetos os quais representam, sendo possível para eles mudar a perspectiva, ajustar a luz, ou mover o modelo. Os historiadores não podem fazer a mesma coisa: o que eles representam está no passado, que nunca poderá ser alterado. Porém eles podem, por meio da forma peculiar de abstração que conhecemos como narrativa, retratar o movimento através do tempo [...].13 A documentação histórica muitas vezes, apresenta lacunas que fazem com que os historiadores, através da narrativa, possam tentar preenche-las a partir de possibilidades históricas, e assim a pesquisa pode não ser “centrada na contraposição entre “verdadeiro” e “inventado”, mas na integração, [...], de “realidades” e “possibilidades”.14 Para Albuquerque Júnior, o passado pode ser pensado como uma “invenção”, composto por discursos e práticas através dos tempos, e [...] embora a narrativa histórica não possa ter jamais a liberdade de criação de uma narrativa ficcional, ela nunca poderá se distanciar do fato de que é narrativa e, portanto, guarda uma relação de proximidade com o fazer artístico, quando recorta seu objeto e constrói, em torno deles, uma intriga.15 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 313. Ibid. 12 GINZBURG, 2007, p. 315. 13 GADDIS, John L. Paisagens da história. Como os historiadores mapeiam o passado. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 29. 14 GINZBURG, loc. cit. 15 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 63. 10 11 [ 283 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Porém deve-se atentar para a cientificidade da pesquisa histórica, para o rigor teórico e metodológico. O termo “invenção” deve ser interpretado como a tentativa de responder os questionamentos do historiador através das possibilidades históricas. O campo jurídico, conforme Bourdieu pode ser pensado como o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam os agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social.16 O direito de dizer é exercido por aqueles envolvidos nos processos, arrolados nos autos, aquilo que é dito é dito com significância, algumas vezes sob orientação dos advogados, outras de forma ainda “espontânea”. São relatos de fragmentos de acontecimentos da vida daquelas pessoas. As falas ao serem interpretadas pelos homens da lei adquirem um sentido, que por eles poderá ser considerado uma “visão legítima”, uma reconstrução verdadeira do momento e do ato em análise. Esta interpretação possível aos juristas é fruto do que Bourdieu afirma ser “ilusão da sua autonomia absoluta em relação às pressões externas”. 17 Se pensarmos que na citação anterior Bourdieu nos fala que a interpretação dos textos consagram a visão por eles considerada legítima do mundo social, logo, podemos sugerir que o mundo social interfere nas tomadas de decisões dos juristas, seus juízos de valores, seus conceitos morais. Nesse sentido, Rinaldi nos fala que “com a noção de campo jurídico, pensamos o tribunal do júri como parte de um universo jurídico relacionado à nossa sociedade, entendendo que sua dinâmica e funcionamento são ligados às nossas representações sociais”.18 Nos processos crimes há falas que nos remetem ao que Bourdieu chama de “apropriação”, uma linguagem jurídica marcada pela mistura de elementos retirados da língua comum. Acarretando em uma “neutralização”, que seria obtida por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impersonalidade do enunciado normativo e para construir o enunciador em sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objetivo.19 Os enunciados ao mesmo tempo em que pretendiam fazer do enunciador um ser imparcial, emitiam juízos de valores presentes na sociedade. Nos processos crimes de infanticídio, isso pode ser identificado nos enunciados ou palavras que remetem significados moralizadores, normalizador e normatizadores acerca das rés, tais como: “mãe solteira”, “trabalhadora”, “honesta”, “vergonha de seus atos”, “desnaturada”, “mulher desonrada”. Tais enunciados possuem efeito universal, e fazem “referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético”.20 Quando pensamos em atos criminosos, no uso da Justiça para desvendá-los, e na sociedade em que os envolvidos se inserem, torna-se interessante pensar a reflexão de Dezalay, da qual faz uso Bourdieu “a BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2 ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 1998, p. 212. Ibem, ibidem. 18 RINALDI, Alessandra de Andrade. Marginais, delinquentes e vítimas. Um estudo sobre a representação da categoria favelado no Tribunal do Júri da cidade do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 301. 19 BOURDIEU, op. cit., p. 215. 20 Ibid, p. 216. 16 17 [ 284 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS sensibilidade à injustiça ou a capacidade de perceber uma experiência como injusta não está uniformemente espalhada e [...] depende estreitamente da posição ocupada no espaço social”. 21 Nas páginas dos processos crimes, têm-se acesso a homens e mulheres populares, e também a membros da elite. Essas pessoas interagem entre si, detalhando seus espaços de convivência, onde se relacionam e evidenciam seu cotidiano através das inquirições. Além da exposição, em parte de seu cotidiano, podemos vislumbrar aspectos do sistema de ideias e códigos morais que regiam a sociedade em que elas estavam envolvidas. Assim como a distinção de condutas, do que é considerado lícito e ilícito em uma sociedade, e pelos sujeitos que a constituem, tendo em vista o lugar em que eles se encontram. Do mesmo modo que podemos encontrar diferenças nas vivências, podemos nos deparar com tentativas de enquadramento social e cultural, principalmente por partes dos populares em relação à elite – especialmente em situações singulares como no encontro com o judiciário – sendo que são geralmente, os membros desta classe social que estabelecem as diferenças. No que se refere à diferença, Bourdieu nos fala que esta somente se torna [...] visível, perceptível, não indiferente, socialmente pertinente, se ela é percebida por alguém capaz de estabelecer a diferença [...]. A diferença só se torna signo e signo de distinção [...] se lhe aplicamos um princípio de visão e de divisão que, sendo o produto da incorporação da estrutura de diferenças objetivas [...] está presente em todos os agentes.22 A distinção aparece nos processos até mesmo como um meio de classificação dos sujeitos neles envolvidos, nos mostrando como as diferenças agem na sociedade, assim elas tornam-se “diferenças simbólicas e constituem uma verdadeira linguagem”. 23 O espaço social ocupado pelos indivíduos demarca as diferenças, as distinções, e está inscrito na subjetividade, marcado por agrupamentos e pertencimentos. No que se refere ao discurso jurídico encontrado nos processos crimes, estes podem ser entendidos “como jogos estratégicos de ação e reação, de perguntas e respostas, de dominação e de esquiva, como também de luta”.24 A ação dos agentes da lei nos processos pode ser subjetiva, pois não se alcança a verdade total sobre o acontecimento, mas podem tentar aproximar-se dela, através das testemunhas, interrogatórios, da ciência e das práticas, espaços de ação e reação dos sujeitos. Os processos se constituem como um campo de disputa pela versão verdadeira, ainda que se queria como objetivo e generalizador. Nesse sentido, Foucault aponta: [...] existem, na nossa sociedade, ou pelo menos, em nossas sociedades, vários lugares onde a verdade se forma, onde um número de regras do jogo são definidas – regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas subjetividades, certos domínios do objeto, certos tipos de saber – e por conseguinte podemos, a partir daí, fazer uma história externa, exterior da verdade”.25 A busca pela verdade, do que realmente teria acontecido no memento do ato criminoso, foi constante nos processos crimes de infanticídio, seja através dos interrogatórios, da análise do corpo das rés ou do recém-nascido. Porém, Foucault26 alerta que é primordial atentarmos para os efeitos do discurso da verdade. Os desdobramentos deste discurso, nos casos analisados podem resultar na condenação ou absolvição das rés. Ibid, p. 232. BOURDIEU, Pierre. Razão práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p.23. 23 Ibid, p. 22. 24 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003, p. 09. 25 FOUCAULT, 2003, p. 11. 26 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 21 22 [ 285 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Os processos judiciais se configuram como um lugar de busca pela verdade e seus efeitos; são fontes privilegiadas para o estudo dos populares, pois é aí que os encontramos e podemos analisá-los com um maior cuidado e riqueza de informações. Porém, em relação as mulheres, Perrot afirma que elas [...] aparecem apenas quando perturbam a ordem, o que justamente fazem menos que os homens, não em virtude de uma natureza rara, mas devido à sua fraca presença, à sua hesitação também em dar queixa quando elas são vítimas. Consequentemente, os arquivos de polícia e de justiça, infinitamente preciosos para o conhecimento do povo, homens e mulheres, devem ser analisados na forma sexuada de seu abastecimento.27 Sendo assim, devemos perceber o documento histórico em toda sua integridade, identificando quem o escreveu, para quem escreveu e com qual objetivo, especialmente no caso de processos crimes, onde o aparato judicial era composto exclusivamente por homens, e talvez, os próprios depoimentos femininos tenham sido modificados, censurados, antes de chegarem aos tribunais. 28 Em relação aos interrogatórios, Perrot nos diz que estes “permitem abordar, de alguma forma, as mulheres das classes populares em suas realidades cotidianas. Ouve-se o eco de suas palavras que os comissários de polícia, ou os próprios policiais, esforçam-se para registrar, e mesmo por traduzir”.29 A invisibilidade foi considerada comum das mulheres e perpetuada pelas religiões, sistemas políticos e manuais de comportamento.30 As mulheres seriam responsáveis pela vida comum e ordinária, construída de “mil atos mecânicos”, esfera privada e secundária, sem necessidade de ser relatada. Porém, neste espaço mais privado que público encontraram estratégias para burlar ou mesmo romper o que havia sido imposto a elas, como normas e regras de conduta. Ao longo da História, houve uma proliferação de imagens acerca das mulheres; porém estas imagens eram provenientes, muitas vezes, de descrições de mulheres feitas pelos homens, podendo ser então, a imagem que os homens faziam delas e não precisamente como elas se percebiam. Em alguns momentos, são homens escrevendo sobre mulheres, sendo que estes que circulavam pelos setores públicos da sociedade, da sua economia, da política e estavam envolvidos mais diretamente com a apreciação das condutas. As mulheres foram, por muito tempo, mais imaginadas do que descritas: Os tênues vestígios que elas deixaram provêm não tanto delas próprias [...] como do olhar dos homens que governam a cidade, constroem a sua memória e gerem seus arquivos. O registro primário do que elas fazem ou dizem é midiatizado pelos critérios de seleção dos escribas do poder. Indiferentes à vida privada, eles dedicam-se à vida pública, em que elas não participam.31 O corpo feminino foi objeto de análise do masculino, os homens falavam sobre ele, do que seria correto, desde a sexualidade até o comportamento. As mulheres pouco falavam de si, e as poucas coisas que elas produziram “são elas mesmas que destroem, [...] julgam sem interesse. Afinal, elas são apenas mulheres, cuja vida não conta muito. Existe até um pudor feminino que se estende à memória. Uma desvalorização das mulheres por si mesmas. Um silêncio consubstancial a noção de honra”. 32 Esta noção honra é que levaria muitas a cometerem infanticídio, uma situação limite em que a partir dela, a mulher teria sua vida exposta, assim como aquilo que tinha de mais íntimo: seu corpo. PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005. FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORI, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000. 29 PERROT, 2007, p. 27. 30 Id., 2005. 31 DUBY, Georges; PERROT, Michele (orgs.). História das mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, 1990, p. 09. 32 PERROT, 2007, p.17. 27 28 [ 286 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O infanticídio, segundo Perrot, era o recurso “de camponesas, jovens, sozinhas na maioria das vezes criadas, no campo ou na cidade, que, tendo procurado dissimular a gravidez sob as pesadas dobras da saia ou do avental, [...], veem-se literalmente coagidas a matá-la para preservar a honra”.33 A honra está ligada a sexualidade34 feminina. E no caso dos processos, é posta em questão pelos homens que compunham o aparato jurídico, e também por aqueles que são arrolados como testemunhas nos inquéritos. Sendo assim, podemos afirmar que os processos crimes se constituem como uma importante fonte histórica, e que sua análise possibilita o entendimento acerca das relações sociais e entre os sujeitos neles envolvidos, do sistema jurídico do período, apontando códigos de valores sobre o permitido e o ilícito na sociedade, principalmente em casos de crimes em que os únicos acusados seriam mulheres, como o infanticídio. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007. BOURDIEU, Pierre. Razão práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. ______. O poder simbólico. 2 ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 1998. CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. DUBY, Georges; PERROT, Michele (orgs.). História das mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, 1990. FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORI, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. 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São Paulo: UNESP, 2003, p. 17. 34 A sexualidade é aqui entendida “de uma maneira mais ampla, definida como a construção social desses usos, a formatação e ordenação dessas atividades, que determina um conjunto de regras e normas, variáveis de acordo com épocas e sociedades. Essas regas e normas proíbem uma série de atos sexuais e prescrevem outros, e determinam as pessoas com as quais tais atos podem ou não e devem ou não ser praticados”. LHOMOND, Brigitte. Sexualidade. In: HIDRATA, Helena; LABORIE, Françoise (orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Ed. UNESP, 2009, p. 231. [ 287 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS [ 288 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O Die Serra Post, as fontes em língua alemã e o estudo da história dos colonos da região serrana do Rio Grande do Sul na primeira metade do século XX Paulo Adam1 Resumo: A comunicação, resultante de uma mescla de estudos anteriores e atuais, reflete sobre a importância do jornal Die Serra Post e de outras fontes em língua alemã, bem como de seus problemas e diferenciais em relação a outras, como forma de trazer novos elementos para a história regional. Este artigo, resultante de uma mescla de estudos anteriores e atuais, reflete sobre a importância do jornal Die Serra Post e de outras fontes em língua alemã, bem como de seus problemas e diferenciais em relação a outras, como forma de trazer novos elementos para a história regional. No tocante a formação do Rio Grande do Sul, no quesito da colonização e povoamento com imigrantes europeus não ibéricos, há aspectos ou temas em que a maior parte, as principais, isto se não as únicas fontes escritas estão em língua estrangeira, as faladas por estas populações migrantes, dentre elas o alemão. Para falar o mínimo, há seguramente importantes fontes escritas em alemão, e provavelmente em italiano e outras línguas, ainda não exploradas ou mesmo já exploradas, que podem vir a fornecer interessantes respostas se inquiridas pela historiografia contemporânea. Evidentemente havia no Rio Grande do Sul colônias apresentando uma uniformidade étnica definida nas quais imperava um monolinguismo, em paralelo com outras multiétnicas. Muitas das colônias mistas eram marcadas por uma profusão de línguas, como em Ijuí, colônia fundada na região do planalto em 1890, onde o Padre Cuber comenta que se falavam 19 línguas, o que fez com que ele a chamasse de “Babel do Novo Mundo” (CUBER, 1975, p. 30). Mesmo neste caso, para muitos, Ijuí seria uma colônia germânica, pela grande difusão da língua alemã na localidade. Conforme Martin Fischer, memorialista de certa importância na localidade, “o que deu a Ijuí aquele cunho especial de tratar-se aparentemente de uma colônia alemã foi a aglomeração das massas de teuto-russos, de austríacos e, principalmente, de teuto-brasileiros, além de um bom punhado de teuto-poloneses, de teuto-húngaros e de teuto-romenos”. Destes, os teuto-russos, vindos em levas em épocas diferentes, constituíram um grupo relativamente numeroso. Entretanto, o autor, possuidor de aguda percepção acerca das nuances entre grupos que aparentemente eram vistos como alemães, indica que estes grupos étnicos apenas falavam o alemão como sua língua materna, e eram, por isso, em geral tratados como alemães, embora se distinguissem consideravelmente uns dos outros nos caracteres e costumes (FISCHER, 2002, p. 36, 58-59). Evidencia-se, por conta da presença dos imigrantes europeus de modo geral e germânicos em particular na formação demográfica do Rio Grande do Sul, um mundo que existia em alemão, ou seja, comunicava-se, lia, expressava-se e pensava na língua de Goethe ou algum dialeto aparentado nesta família linguística, como o pomerano ou o hunsruck. A língua alemã foi usada na comunicação usual entre as pessoas, neste caso sendo mais comum algum dialeto, e no ensino e na imprensa colonial que se organizou para atender estas populações, lhes propiciando informação e formação, sendo então empregado o alemão gramatical. Neste sentido, o uso do alemão enfrentou duas situações de restrições importantes. A primeira delas por ocasião da 1ª Guerra Mundial, principalmente na imprensa, e a segunda no contexto do Estado Novo e da chamada nacionalização implementada por aquele regime, quadro ainda agravado pela deflagração da 2ª Guerra Mundial. Neste contexto, a imprensa em língua estrangeira, e a alemã em particular, foram proibidas sendo que a interdição do uso de idioma estrangeiro se estendeu ao ensino. Este 1 Paulo Adam trabalha no IFFarroupilha, Mestre em História pela UPF e doutorando na mesma instituição. Correio eletrônico: pauloadam2@gmail.com [ 289 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS segundo processo de restrição e/ou interdição foi o mais acentuado e feriu de morte o mundo de fala germânica, que apesar de um ressurgimento posterior de uma certa imprensa alemã, dali para diante apenas sobreviveu de forma fragmentada e definhou com o envelhecimento da população. A difusão da língua alemã nas áreas de colonização com imigrantes teutos fazia com que as organizações associativas por eles fundadas utilizassem-se desta língua em sua comunicação, como é perceptível na história de três das mais importantes delas: a Bauerverein – Associação Riograndense de Agricultores, a Volksverein - Sociedade União Popular e as Uniões Coloniais 2. Os informativos impressos destas entidades, o Bauerfreund da Bauerverein, o Skt. Paulusblatt da Sociedade União Popular, e o Nachrichtenblatt, no caso da Liga das Uniões Coloniais, eram editados em alemão, embora deste último também houvesse uma edição em português. Entretanto a versão em alemão era em quantidade muito maior que a edição em português, como em 1931 por exemplo, quando a tiragem alemã alcançou 14.750 exemplares e a portuguesa apenas 2.7703. O cotidiano destas entidades se desenvolvia em alemão. Para servir de exemplo, os nomes dos órgãos constitutivos da Liga das Uniões Coloniais Riograndenses eram denominados em alemão: a Assembleia Geral, por exemplo, era a Bundesversammlung (SCHALLENBERGER, 2009, p. 390). Uma carta enviada por Luiz Kling, então gerente da Liga das Uniões Coloniais em Porto Alegre, para a União Colonial de Nëu Württemberg (atual Panambi), datada de 16 de outubro de 1934, evidencia que muitas das correspondências das Uniões Coloniais eram escritas em alemão 4. No relatório da Diretoria da Liga encaminhado ao seu 2º Congresso, consta que dentre as funções da secretaria, estava a tradução dos documentos manuseados na rotina da entidade do alemão para o português e vice-versa5. Eugênio Zimmermann, Presidente do Conselho Fiscal da Cooperativa Sul Riograndense de Banha em 1936, relata que as reuniões da entidade eram particularmente demoradas por que as correspondências e documentos eram lidos em alemão e português 6. Até a década de 60 os relatórios anuais da Cooperativa Sul Riograndense de Banha, sediada em Cruz Alta, organização fundada pelos colonos sob os auspícios das Uniões Coloniais, ainda eram escritos em formato bilíngue, português e alemão7. O último veículo de imprensa que persiste sendo publicado no Brasil em alemão é o Skt. Paulusblatt. Sua existência começou em 1912, com o fim da Bauerverein e a formação do Volksverein - Sociedade União Popular. No período inicial, até 1934, o padre Teodoro Amstad ocupou as funções de redator e editor da revista. Este veículo surge das deliberações do Congresso Católico de Venâncio Aires, que o cria como instrumento de formação e informação da Volksverein. Liga-se, portanto, a manutenção de uma identidade étnica e religiosa, ou seja, dos alemães católicos no sul do Brasil. A revista continuou a circular até 1941, quando foi proibida a imprensa alemã no Brasil. Foi retomada em 1948 e, desde então, circula em edições mensais até o presente momento (Klauck, 2009). Sofreu uma breve interrupção no final de 1988, quando se viu principalmente sem recursos humanos para coordenar a publicação, mas voltou a ser publicada ainda em 1989 com a criação da Fundação Theodor Amstad (Hammes, 2012; Seibth, 2012), que assumiu o encargo. Parece que muito contribuiu nesta sobrevivência a atuação de abnegados escritores e leitores, sendo inclusive conduzidas campanhas no intuito de manter e aumentar o rol de assinantes. A Bauerverein, ou seja, a Associação Riograndense de Agricultores, surgiu em 1899, com o propósito de atuar na defesa dos interesses econômicos dos colonos de origem germânica e na construção do seu bem-estar material e espiritual. Em 1909, por força das normativas legais, esta organização foi fracionada e dela surgiram diversos sindicatos agrícolas. Em 1912, os colonos teuto-católicos se rearticularam em torno da Sociedade União Popular - Volksverein. As Uniões Coloniais, também remanescentes da Bauerverein, que se espalhavam por diversos municípios, conjugada com a experiência das Selbschütz, que eram grupos de autodefesa organizados na região colonial serrana pelos colonos, com anuência do poder público, por ocasião dos conflitos armados nos anos 20, se articularam em 1929 na Liga das Uniões Coloniais Riograndenses. Em 1932, a Liga das Uniões Coloniais se transformou em um sindicato central. Posteriormente, a transformação das Uniões Coloniais em consórcios cooperativos fez com que a Liga deixasse de ser uma central sindical para se tornar uma central das cooperativas. 3 Noticiário da Liga das Uniões Coloniais. Edição de fevereiro de 1932. MAHP. 4 Documentos da União Colonial de Panambi. MAHP. 5 Noticiário da Liga das Uniões Coloniais. Edição especial de 01.04.1931. MAHP 6 Jornal Correio Serrano. Edição de 18.01.1936. MADP. 7 Relatórios da Cooperativa Sul Riograndense de Banha. MAHP. 2 [ 290 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O Die Serra Post Os jornais Die Serra Post e Correio Serrano, o primeiro em alemão e o último em português, foram editados na região colonial do noroeste do Rio Grande do Sul, onde desfrutavam de grande prestígio. A origem dos dois veículos remonta a história de Roberto Löw, nascido em 1872 na cidade de Praga, então parte da Áustria. Formado em Direito pela Imperial Universidade Alemã de Praga, deixou a Europa em 1900 e migrou para o Brasil. Perambulando pelo Rio Grande do Sul, exerceu diversas ocupações, sempre no jornalismo. Por dois anos dirigiu em Porto Alegre o ‘Koseritz Deutsche Zeitung’, jornal outrora fundado por Carlos Von Koseritz. Em 1911 Löw fundou seu próprio jornal, sediado em Cruz Alta, o Die Serra Post, voltado para a população migrante de fala alemã, transferindo-o em 1912 para Ijuí, onde o instalou junto a Praça da República, com uma livraria e uma tipografia anexas (BINDÉ, 2012, p. 150-153). Em 1914 Roberto Löw viajou para a Europa com o intuito de comprar equipamentos gráficos. Mas por conta da Primeira Guerra Mundial, lá permaneceu 5 anos, sendo inclusive convocado para o exército austro-húngaro. No período da ausência de Roberto Löw, o jornal permaneceu com a esposa, Júlia Löw e o gerente, que por conta das restrições linguísticas durante o conflito, decidiram publicá-lo em português, com o nome de Correio Serrano. De volta ao Brasil, Roberto Löw manteve os dois jornais, sendo o alemão como suplemento do Correio Serrano. A edição alemã voltou a ser restringida entre 1941 e 1946, por conta do novo conflito mundial. Em 1928, seu filho, Ulrich Löw assumiu a direção dos jornais, cargo que exerceu até 1978, quando o Correio Serrano foi vendido (BINDÉ, 2012, p. 150-153). Roberto Löw continuou muitos anos como editor, escrevendo e assinando artigos nos dois jornais. Além do dois jornais, também editaram por muitos anos o Serra Post Kalendar, um anuário com informações diversificadas, mas com importante aporte de conteúdo local, discutindo a problemática local. O Correio Serrano, e o seu congênere em língua alemã, foram de grande importância em Ijuí e na região norte e noroeste do Rio Grande do Sul, registrando as problemáticas vividas pela população. É possível exemplificar com propriedade o envolvimento destes veículos de comunicação, e em particular do publicado em alemão – o Serra Post - em um gama considerável de temas de interesse colonial e regional por meio de três grandes questões: o desenvolvimento agrícola regional, a questão da banha e a cobertura da organização de autodefesa dos colonos por ocasião das revoluções de 1923 e 1924. Três questões que apresentam nuances importantes quando veiculados em língua alemã. O desenvolvimento agrícola regional desde logo tomou a atenção de Roberto Löw e outros articulistas do Serra Post. Isto é perceptível no seu envolvimento na formação de duas importantes entidades destinadas a alavancar o progresso nesta área: uma sociedade agrícola, chamada de Bauernhilfe e uma estação experimental agrícola, também chamada de Colônia Modelo. A diretoria da Bauernhilfe era composta de lideranças ligadas ao Sínodo Rio-Grandense e aos jornais Correio Serrano/Die Serra Post, sendo o editor, Roberto Löw, o presidente. A entidade manteria nos anos seguintes no jornal um encarte intitulado Landwirtschaftliger Ratgeber, bimestral, pelo qual difundia “notícias de interesse do setor agrícola, veiculava informações sobre o mercado agrícola, instruía sobre o manejo do solo, sobre técnicas de plantio e de armazenamento e sobre a introdução de novas culturas” (SCHALLENBERGER, 2009, p. 377). Do mesmo modo, o grupo Serra Post/Correio Serrano manter-se-ia ligado a Colônia Modelo, sendo que Ulrich Löw integraria a diretoria da mesma. Discutindo a organização da Colônia Modelo e a centralidade da sua ação em torno da suinocultura, os veículos, em 1934, produziram uma forte crítica. Não querendo pôr em “dúvida os excelentes serviços prestados por aquela organização na melhoria dos rebanhos vacuns e suínos”, inclusive reconhecendo que a “distribuição de animais caprichosamente selecionados entre os colonos produtores de banha e leite, tem produzido excelentes resultados”, o articulista aponta que os setores em que “a ação da colônia modelo tem sido lenta, não correspondendo, ao que parece, as suas verdadeiras finalidades, é na agricultura e na avicultura”. Neste sentido, cobra da entidade um trabalho mais forte na questão dos grãos “com o fim de vendê-los por preços razoáveis aos colonos”, e a realização de “estudos experimentais sobre cereais e gramíneas”, e o mesmo em relação a avicultura, “procurando introduzir no município raças apuradas e que [ 291 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS mais se adaptem a produção de ovos e carne”. Provavelmente tendo claro o desembocar da crise da banha, o articulista recomendava à Colônia Modelo “dedicar maior atenção aos demais ramos das indústrias rurais”. 8 Em outra edição, o artigo veiculado no órgão de imprensa apontava que “a luta pela vida e a consequente luta pelos mercados, é cada vez mais ativa. O porvir não deve nos encontrar dedicados exclusivamente a um ou dois produtos”. 9 E completava sua análise salientando que em matéria de cultivo, “estamos atrasados, não só na falta de técnica dos nossos produtores, senão, e principalmente na pouca variedade”. Graças a cobertura desenvolvida por estes veículos é possível reconstituir, de uma forma mais ampliada, a história do principal produto econômico da região colonial - a banha e os seus desdobramentos e conexões. A forma engajada com que assumiram a questão da banha, explica a situação em que se viram envolvidos: a de responder à acusação de serem “um jornal alemão”, por ser escrito neste idioma, no caso do Serra Post, e sobretudo, porque “alemães são os seus diretores”10. Conforme o autor da acusação ao Correio Serrano/Serra Post, não lhe “assistia o direito” de criticar o monopólio da banha estabelecido do Estado, uma vez que “atacar o Sindicato seria o mesmo que agredir o Governo do Estado, por que foi o Governo quem criou o Sindicato e o amparou”, argumentação que o jornal ijuiense rebateu afirmando que com ela, o articulista pretendia “repetir o sacramento da santíssima trindade”, ao aludir as estreitas ligações entre o Governo do Estado e o Sindicato da Banha 11. Segundo o Correio Serrano, estas acusações foram inspiradas no que “os magnatas da banha” haviam soprado no ouvido do articulista. No contexto da crise da banha, o debate estabelecido na imprensa regional e estadual alcançou a envergadura correspondente ao tamanho da economia colonial. O Correio Serrano/Die Serra Post, que assumira a um bom tempo a defesa da economia colonial, se põe a questionar a postura do Sindicato da Banha, cobrando do mesmo “uma justificação insofismável sob a redução dos preços que parecia injusta à população colonial”.12 De fato, o Correio Serrano/Serra Post se alça a condição de porta-voz da colônia, como quando reproduz o raciocínio veiculado originariamente no Serra Post: Devia supor-se que a baixa do câmbio provocaria uma alta de preços. O sindicato monopolizado entretanto não acha necessário de prestar contas aos colonos que lhe são entregues sem defesa e assim os motivos deste novo assalto ao bolso da população colonial ficar-nos-á sempre sem o devido esclarecimento.13 Neste debate, a questão da cotação internacional da banha e dos preços pagos na região ganhou relevo especial, por conta do impacto direto do preço do produto em Ijuí. Assim, se fazia necessário esmiuçar o funcionamento do mecanismo dos preços. Dentre vários aspectos, se discutia o caso da exportação da banha para a Alemanha. A argumentação seguida pelo Serra Post dava conta que a banha era colocada no mercado de Hamburgo, no valor de 1,20 marcos alemães, sendo que a cotação do marco estava em Rs. 3$800, o que daria em 4$560 por quilo de banha. Destes, deveria ser subtraído 1$650, que era o preço de compra na região em 1931, $200 de frete, $250 de custos de refinação e outras despesas, rendendo assim um lucro de 2$460 por quilo de banha. 14 A década de 1930 representou o auge dos conflitos em torno da produção da banha, acompanhada com detalhes pelas páginas do Correio Serrano. O comércio, e principalmente a exportação da banha, se mostrava um universo intrincado e complexo. E para o colono, a leitura das notícias publicadas no meio regional e a formação de uma opinião acerca da circulação regional e internacional da banha e da sua Jornal Correio Serrano. Edição de 21.02.1934. MADP. Jornal Correio Serrano. Edição de 05.12.1934. MADP. 10 Jornal Correio Serrano. Edição de 22.08.1934. MADP. Na edição de 25.08.1934 o Correio Serrano informa que o órgão de imprensa no qual teria sido publicada a acusação é o Jornal da Manhã, de Porto Alegre, permanecendo o nome do autor incógnito. 11 O Sindicato da Banha foi um cartel montado em 1928 pelos grandes comerciantes de banha do Rio Grande do Sul, com apoio do governo do Estado, capitaneado na época por Getúlio Vargas, com o objetivo de controlar o mercado da banha. A principal consequência da formação do cartel foi a derrubada do preço da banha comprada dos colonos (ADAM, 2015). 12 Jornal Correio Serrano. Edição de 24.09.1931. MADP. 13 Jornal Correio Serrano. Edição de 24.09.1931. MADP. 14 Jornal Correio Serrano. Edição de 24.09.1931. MADP. 8 9 [ 292 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS cotação, era uma tarefa hercúlea. Por meio de sua cobertura, o Correio Serrano, e o Serra Post, em alemão, informavam o meio colonial sobre os caminhos e descaminhos tomados por este importante produto da economia regional, ao mesmo tempo que também formava esta opinião. A medida que o colono se via apartado da atividade da banha e a expectativa dos rendimentos dela minguaram consideravelmente, a inteligência que se expressava no Correio Serrano e no Serra Post, replicando em alguns momentos a análise que a banha era, por volta de 1935, um ‘assunto morto’, indicavam que a alternativa era a qualificação do colono e a diversificação das suas atividades como forma de competir num meio cada vez mais competitivo. O que evidencia a antiguidade do discurso da qualificação do colono. Destaca-se na cobertura do Correio Serrano/Serra Post a análise do mecanismo dos preços, ficando evidente que a cotação internacional da banha não era o principal elemento que atuava na conformação do preço, nem sequer a dinâmica da oferta e procura. Na verdade, pelo noticiário parece não haver muita lógica nas altas e quedas do preço da banha, uma vez que no ano de pouca oferta o preço cai, no ano de exportação considerável o preço igualmente cai e contraditoriamente quando a produção interna decai também são anunciadas exportações volumosas. A grande questão era o movimento de acúmulo de capital realizado pelo Sindicato da Banha, revelado nos lucros consideráveis que o trust realizava. Por isso mesmo é compreensível a animosidade que o mesmo angariou em parcelas importantes da sociedade, pelo menos da região colonial, animosidade para a qual o Correio Serrano, na sua área de alcance, deve ter contribuído. Nos anos 20, outro tema já merecera a cobertura do Serra Post. Trata-se da organização dos colonos para enfrentar os dissabores dos conflitos bélicos que sacudiram quase todo o Rio Grande do Sul por ocasião das chamadas Revoluções de 1923 e 1924. Assim, por meio da leitura do jornal Serra Post e do Serra-Post Kalendar de 1926 é possível constatar que os colonos constituíram algo em torno de 23 organizações de Selbstschutz na região do planalto, que ao que tudo indica, são na sua maior parte Ligas, congregando associações ou sociedade de autodefesa que se organizavam nas localidades, majoritariamente na área rural. Assim, nesta região são elencados: Ijuí – Serra Cadeado (Augusto Pestana), Ijuí – Ramada (Ajuricaba), Vila Ijuí, Ijuí – linhas 4-7 (margem direita do Rio Ijuí), Fachinal (parte norte de Ijuí), Burity (interior de Santo Ângelo), Rincão Vermelho (Roque Gonzales), Nëu Württemberg (Panambi), Cerro Pelado (Porto Xavier), Bello Centro (Santa Rosa), Porto Feliz (Mondaí, em Santa Catarina), dando ainda detalhes quanto a sua organização e principais eventos que marcaram sua existência. Mas no próprio texto se reconhece que o quadro é incompleto, havendo muitas lacunas 15. A estes, por conta de apuração em outras fontes, pode ser acrescido ainda as organizações de Serro Azul (Cerro Largo), Pirapó, Xingu, General Osório (Ibirubá), Condor, Erechim (tardiamente), e Pejuçara, embora desta última inexistam informações maiores. O texto do Serra Post Kalendar, fazendo uma síntese de tudo o que fora publicado no jornal Serra Post, para introduzir e justificar o fenômeno dos Selbstschutz estabelece uma analogia com o oeste americano de 100 anos antes, que era, assim como o planalto do Rio Grande do Sul, uma “área fronteiriça da cultura” onde “as coisas acontecem da mesma forma”. Ou seja, quando os cidadãos, desassistidos pelo governo, pela sua distância ou impotência, são levados ao “procedimento natural, ou melhor, o procedimento original da sociedade humana: todos os habitantes de uma colônia formam uma união armada e lutam pela vida e propriedade contra aqueles que por inimizade ou necessidade se tornam assaltantes e ladrões” 16. O acervo no Museu Antropológico Diretor Pestana (MADP) de Ijuí guarda o Correio Serrano e o Serra Post, digitalizados e disponíveis ao público, ao passo que o Serra Post Kalendar se encontra em formato físico. Lamentavelmente, a digitalização, feita na década de 1990, tem sérios problemas de nitidez, o que atrapalha bastante a leitura do material e a pesquisa. Os estudos em curso apontaram uma diferença considerável de conteúdo no Correio Serrano e Serra Post no tocante aos três assuntos mencionados: a questão agrícola, o problema da banha e a organização dos colonos nos Selbstschütz por ocasião das Revoluções de 1923 e 1924. Serra-Post Kalendar, 1926. pp. 115-132. MADP. A reportagem parece ser fruto tanto do conhecimento acerca do tema do autor, ou autores, como foi derivado do retorno das diversas sociedades ainda existentes quando da indagação enviada pela redação Serra Post. Algumas lacunas permaneceram precisamente porque muitas sociedades não enviaram informações. 16 Serra Post Kalendar de 1926, p. 115. MADP. 15 [ 293 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS No tocante a questão agrícola, embora apareça nos dois veículos a discussão do problema, o suplemento Landwirtschaftliger Ratgeber foi exclusivo da versão alemã. Embora não fosse muito grande, restrito a 4 páginas, ao que se sabe, salve alguns apontamentos de Schallenberger (2009), permanece sem nenhum outro estudo que lhe desvende o conteúdo. O problema da banha mereceu o gasto de papel e tinta em ambas as versões, com a ressalva que certos textos e análises permaneciam exclusivos da alemã, como por exemplo, textos escritos por colonos refletindo a questão. Por fim, a organização dos Selbschütz foi quase que exclusivamente tratada na versão alemã, ao passo que o desenrolar geral do conflito foi noticiado na versão em vernáculo, o que leva a inevitável interrogação de o porque disto. A existência por si só de considerável material ainda inexplorado constitui enorme potencial para o desenvolvimento de pesquisas historiográficas no campo da história regional e, principalmente no caso das fontes mencionadas, para o estudo dos processos de migração e colonização do planalto do Rio Grande do Sul. Entretanto, a língua alemã e a fonte gótica utilizada na impressão se constituem nos principais entraves para a leitura e elucidação deste material. REFERENCIAS BINDÉ, Ademar Campos. Ijuí – histórias revividas: 100 anos de emancipação. Espumoso: Gráfica Líder, 2012. CUBER, Padre Antoni. Nas margens do Uruguai. Ijuí: MADP, 1975. FISCHER, Martin. A Colonização de Ijuí – uma retrospectiva histórica, sociológica e étnica. In: Etnias diferenciadas na formação de Ijuí. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. HAMMES, Hugo. A Sociedade União popular de 1960 a 1988. In: RAMBO, Arthur Blásio & ARENDT, Isabel Cristina (Orgs.) Cooperar para prosperar: a terceira via. Porto Alegre: Sescoop/RS, 2012. 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[ 294 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS As contradições no processo de Reassentamento dos Afogados do Passo Real na década de 1980 Pedro Vicente Stefanello Medeiros Resumo: Este trabalho discute o processo de reassentamento dos atingidos pela barragem do Passo Real, na década de 1980. A partir de 1967, para a construção da Usina Hidrelétrica do Passo Real, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul desapropriou 23.000 hectares de terras na região de Cruz Alta, Ibirubá e Espumoso, desalojando milhares de famílias. Em 28 de agosto de 1968 foi assinado entre o Estado, através da CEEE (Comissão Estadual de Energia Elétrica) e a União, representada pelo IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária), posteriormente transformado em INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O objetivo do estudo é problematizar o chamado “Acordo de Cooperação”, pelo qual o Governo Federal assumia a responsabilidade do reassentamento dos desalojados, com base no faro de que nos anos 1970 mais de 500 famílias foram reassentadas, contudo, chegam os anos 1980 e diversos agricultores e seus descendentes não foram reassentados se reconhecendo como os “Afogados do Passo Real”, assim, através de documentos encontrados no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos e nos arquivos do INCRA/RS, também, analisar as contradições inerentes às ações das autoridades responsáveis no reassentamento dos desalojados. A partir de 1965, para a construção da Usina Hidrelétrica do Passo Real, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul desapropriou 23.000 hectares de terras na região do Alto Jacuí, mais especificamente nos munícipios de Cruz Alta, Ibirubá e Espumoso, desalojando milhares de famílias. Em 28 de agosto de 1968 foi assinado entre o Estado, através da CEEE (Comissão Estadual de Energia Elétrica) e a União, representada pelo IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária), posteriormente transformado em INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o chamado “Acordo de Cooperação”, pelo qual o Governo Federal assumia a responsabilidade do reassentamento dos desalojados 1. De acordo com um relatório da CEEE, datado de 8 de setembro de 1969 2, foram desapropriadas 3129 propriedades rurais, sendo destas 1498 na margem direita do Rio Jacuí e 1631 à margem esquerda. Neste sentido, segundo dados do INCRA 3, aproximadamente 1600 famílias de agricultores foram atingidas. Deste total, 1050 optaram pelo reassentamento em novas terras em um primeiro momento. Assim, o órgão federal teria desapropriado em uma primeira etapa 16.449,36 hectares. Dentre estes, foram 9.774,37 hectares pertencentes à Fazenda Boa Vista localizada no município de Cruz Alta, 3.064,1878 hectares desapropriados da Fazenda Colorados, situada no mesmo município e 3.140,1003 hectares da Fazenda Itaíba, encontrada nos municípios de Ibirubá e Santa Bárbara do Sul. Este processo de reassentamento foi institucionalmente elaborado como um Projeto Integrado de Colonização (PIC). Estes projetos desapropriavam uma área conforme as normas do Estatuto da Terra e a repartiam de forma parcimoniosa para serem disponibilizada aos agricultores que a compravam mediante o pagamento em 20 anos, deste modo obtendo o título legal das propriedades. Neste processo, também, havia fomento de crédito para a aquisição de utensílios e maquinário, bem como a realização de estudo técnico acerca das condições de exploração agrícola dos terrenos.  Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense. Doutorando em História pela Universidade de Passo Fundo. http://lattes.cnpq.br/7457607247729782 medeirospvs@gmail.com 1 LORENZON, Algir (Org.). AFOGADOS: Até Quando? Relatório da Comissão Especial dos Agricultores Desalojados do Passo Real. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas. S/d. 2 CEEE – Relatório acerca das propriedades que tiveram suas terras atingidas pelas águas da bacia de alagamento do Passo Real. 08/09/1969. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. 3 Projeto Integrado de Colonização Sarandi (Gleba I – Invernada do Butiá) – Ministério da Agricultura – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA Coordenadoria Regional do Rio Grande do Sul – Publicado em dezembro de 1972. [ 295 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Neste sentido, o então Projeto Integrado de Colonização – Passo Real reassentou 528 famílias. Posteriormente, visando à recolocação das famílias restantes, o INCRA ampliou o Projeto Integrado de Colonização – Sarandi4, desapropriando a Invernada do Butiá, pertencente à Firma SAGRISA – Comercial e a Agrícola Ltda. Também foram desapropriadas a Fazenda Sarandi, propriedade de Ernesto José Annoni e, ainda, a antiga Estação Experimental Engenheiro Luiz Englert, mediante um entendimento entre o Governo do Estado com o Ministério da Agricultura para a passagem ao patrimônio do INCRA de parte da área não lotada do Núcleo Colonial de Reforma Agrária de Sarandi. Contudo, estes Projetos Integrados de Colonização desenvolvidos pelo INCRA não foram suficientes para reassentar todas as famílias que foram atingidas pela construção da barragem do Passo Real. Em 1986 a Prefeitura de Fortaleza dos Valos 5 enviou à Superintendência do INCRA/RS um dossiê advogando em favor dos atingidos pela barragem. O conteúdo dos documentos evidencia a situação de diversos desalojados que por mais de 12 anos estiveram à espera de uma solução, vivendo em condições precárias. Encontramos várias listas com nomes de desalojados candidatos ao reassentamento cujo somatório representa mais de 300 famílias. Dentre os trabalhadores rurais desalojados encontramos pequenos proprietários, arrendatários, parceiros e meeiros, que tiveram seus meios de sobrevivência destruídos pela implantação da barragem. Neste sentido, podemos elucidar o caso de A.P. M, mediante um requerimento encontrado no arquivo do referido sindicato6. Em 1969, quando da desapropriação, A.P.M, arrendava à cinco proprietários uma área que perfazia 100 hectares. Possuía três tratores e uma automotriz, sendo financiado pelo Banco do Brasil. A.P.M também era proprietário 2,5 hectares oriundos da herança de sua esposa, I.G.S, e também havia comprado outros 2,5 hectares com recursos próprios. Vindo a desapropriação, A.P.M perdeu tudo, inclusive o maquinário, ficando sem condições de pagar o financiamento pendente. Em 1986, A.P.M vivia na área urbana de Fortaleza dos Valos, com sete filhos maiores de idade, também em situação de desamparo. Em uma observação, no fim do documento, podemos entender a situação de A.P.M: “A pobreza e a desesperança, não consegue abater seu A.P.M e sua família, tem sobrevivido da esperança de um dia reconquistar tudo o que a BARRAGEM levou”. Também podemos apreciar alguns quadros onde o agricultor perdeu parcialmente sua terra. Esta foi a situação de N.F.C7, que antes do alagado plantava 35 hectares em parceria com o sogro. Em 1986, como a maior parte de suas terras ficaram submersas, plantava 4 hectares onde possuía moradia, mas sem condições mínimas de sobrevivência. Trajetória parecida teve N.P.S 8. Em 1969 morava na comunidade rural do Rincão dos Valos trabalhando em parceria com T.S. Quando a água chegou, N.P.S perdeu o pedaço de terra que lhe era cedido, perdendo também, a fonte do sustento de sua família. Em 1986 N.P.S estava com 53 anos e, conforme a observação no fim do documento, era considerado: “uma pessoa caridosa, que reparte o pouco que tem, ajudando os ainda mais pobres; Pessoa reconhecidamente honesta”. No requerimento de D.F.S 9, é possível contemplar o esforço desempenhado por um desalojado para manter sua família após o alagamento. Até 1969, D.F.S plantava de 8 a 12 hectares com animais de tração. Em 1986, D.F.S, casado com E.L.S, tinha 10 filhos, sendo 6 maiores de idade, e plantava 3 hectares que havia recebido de herança da esposa. Além de possuir 3 vacas de leite e algumas galinhas onde morava, tinha que caminhar mais de 2km para plantar uma área de 2,5 hectares cedida por um parente. Na observação consta que a família era numerosa, e organizada poderia produzir mais. Contudo, não tinham as condições necessárias para tanto, pois viviam em situação de extrema pobreza. Além de arrendamentos e parcerias em terras cedidas por parentes e amigos, muitos desalojados necessitavam trabalhar como diaristas em propriedades alheias, para complementar sua escassa renda. Este foi o caso de I.M.M, que na época da desapropriação vivia nas terras do pai. Seu pai, A.B.M, possuía 3,5 Este “PIC” teve origem através do primeiro processo de desapropriação da Fazenda Sarandi em 1962, em ação decorrente das mobilizações e acampamentos realizados naquele ano pelo MASTER – Movimento dos Agricultores Sem Terra – na região. 5 Emancipado de Cruz Alta em 1982, Fortaleza dos Valos é o município com maior área alagada pela barragem. 6 Requerimento A.P.M. Desalojado do Passo Real. 8/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS. 7 Requerimento N.F.C. Desalojado do Passo Real. 10/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS. 8 Requerimento N.P.S. Desalojado do Passo Real. 08/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS. 9 Requerimento D.F.S. Desalojado do Passo Real. 10/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS. 4 [ 296 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS hectares e só foi indenizado sobre 1,5 hectares. Deste modo, em 1986, I.M.M tinha 37 anos, casado com 2 filhos menores, cultivava 4 hectares de seu sogro onde lhe pagava uma taxa de 20% da produção. Assim, para incrementar o sustento da família, trabalhava como diarista em granjas 10 de terceiros. Mediante a leitura destas fontes, evidenciamos o difícil panorama enfrentado pelos desalojados do Passo Real que em meados dos anos 1980 ainda não haviam sido reassentados. Este cenário nos possibilita perguntar por que estes trabalhadores rurais, prejudicados pela barragem, não foram reassentados como as demais famílias que ainda nos anos 1970 tiveram o acesso a terra através do acordo celebrado entre o INCRA e o governo do Rio Grande do Sul. Ainda não temos todas as respostas, no entanto, os requerimentos já referenciados nos dão algumas pistas do que pode ter acontecido. No requerimento de I.M.M encontramos a seguinte sentença: “NIGUÉM TEM COMPROVANTE ALGUM, TANTO DE DOCUMENTOS como destas INSCRIÇÕES. Perguntado por que? DIZEM que o Dr. J.B ficava de mandar depois...”. Analisando os outros requerimentos, mais da metade dos documentos trazem uma referência a um tal Dr. J.B vinculado ao INCRA, que entre 1969 e 1971 era responsável por inscrever os desalojados nas listas para reassentamento. Os requerentes alegaram inscrever-se com o Dr. J.B e nunca terem recebido os comprovantes. Ainda não podemos tirar nenhuma conclusão definitiva, entretanto, tais evidências permitem questionarmos os métodos burocráticos adotados pelo INCRA na seleção dos desalojados, que acentuaram ainda mais as contradições daquele processo. Futuramente, no decorrer de nossas pesquisas, mediante um cruzamento de fontes mais acurado, poderemos tecer reflexões mais consistentes sobre essa matéria. Neste momento, com as fontes que possuímos o que sim, podemos fazer com mais cabedal, é discutir as manifestações e a mobilização dos desalojados na luta pela terra. Os atingidos pela barragem do Passo Real ficaram conhecidos como “Afogados”, pois assim foram denominados em alguns documentos da Comissão Especial dos Agricultores Desalojados do Passo Real, criada em 1983 pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, para solucionar os conflitos entre os reassentados e os proprietários da Fazenda Annoni11, que contestavam sua desapropriação na justiça há mais de dez anos. Assim, a denominação “Afogados”, se consolidou quando o deputado Algir Lorenzon publicou o já referenciado Relatório da Comissão com o título “AFOGADOS: Até Quando?”. O termo ganhou mais amplitude pelo destaque que a imprensa deu a matéria naquele ano, muitas vezes se referindo aos agricultores como “Afogados”. Apesar de tais referências, é possível que tal alcunha tenha aparecido há alguns anos antes. Em seu livro de memórias, o Prefeito de Ibirubá entre 1963 e 1968, Olavo Stefanello, havia sido procurado pelos atingidos para que intervisse em seus clamores. Assim, Olavo teria os denominado de “Afogados”: “Os afogados do Passo Real, como eu os denominei, só aceitariam sair de suas terras pacificamente se a CEEE e os governos lhe dessem outras terras, assentando-os não distante dali e com a mesma infraestrutura” (STEFANELLO, 2008: 227). O então Prefeito de Ibirubá também relata que se entrevistara com os Presidentes Castello Branco, Costa e Silva e Médici, dizendo que “como a solução ideal e necessária” tardou em vir, muitas audiências e reuniões foram realizadas sem que o problema fosse resolvido (STEFANELLO, 2008: 227). Para além da origem de tal denominação, é interessante analisar como os atingidos forjaram uma identidade na luta pela terra e se reconhecendo como “afogados” clamaram por justiça social. Em um Granja é como coloquialmente se referem à propriedades rurais, independente do tamanho, na região do Alto Jacuí. Embora a Fazenda Annoni também tenha recebido Afogados do Passo Real, ela foi palco de um processo mais amplo, abrigando trabalhadores rurais sem terra de diversas partes do Rio Grande do Sul. Neste sentido é interessante contemplar a dissertação “A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE DA TERRA NO PROCESSO DE DESAPROPRIAÇÃO DA FAZENDA ANNONI (1972-1993)” de Simone Lopes Dickel (2016): A Fazenda Annoni, localizada na região Norte do Rio Grande do Sul, pertencente aos municípios de Pontão e Sarandi, ganhou espaço nos noticiários no ano de 1985. Ficou conhecida quando foi alvo da maior ocupação de terras no Brasil até então, coordenada pelo recém-criado Movimento dos Sem Terra (MST) no início do período democrático. No ano de 2015, a ocupação, que contribuiu para tornar a fazenda um dos símbolos da reforma agrária, feita por mais de 1500 famílias de sem-terra, completou 30 anos. No entanto, antes disso, um conflito importante – e pouco conhecido em torno da desapropriação da Annoni – acontecia desde o início da década de 1970, envolvendo os desapropriados (família Annoni) e a União. Parte remanescente do grande latifúndio regional denominado Fazenda Sarandi, que foi palco constante de conflitos em torno da terra por diferentes sujeitos, a Annoni teve seu decreto de desapropriação baixado em 1972, no entanto, pouco se sabe sobre o processo judicial de desapropriação. O conflito na justiça, que rendeu a este processo judicial o título de um dos maiores processos cíveis vistos no Brasil até então, perpassa as décadas 1970, 1980 e 1990 e se estende até os dias atuais. 10 11 [ 297 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS documento sem data intitulado “Os Afogados do Passo Real”12 encontrado nos arquivos do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos, o processo histórico em questão é referenciado como a “triste e desumana história dos Afogados do Passo Real”. No documento é relatada a desapropriação de mais de 1600 propriedades rurais, em sua maioria minifúndios, para a instalação da barragem. Também sinaliza as famílias que já foram reassentadas e cobra das autoridades responsáveis uma atitude para solucionar o problema que agoniza as famílias que por mais de 12 anos esperam o reassentamento. O texto em questão também ressalta o apoio do movimento sindical, considerando os sindicatos dos trabalhadores rurais de Cruz Alta, Ibirubá, Espumoso e Fortaleza dos Valos. Ademais, agradece o apoio da Federação dos Trabalhadores Agrícolas do Estado (FETAG-RS) no amparo aos sindicalistas filiados e também cita o empenho das Prefeituras e Câmara de Vereadores das cidades atingidas na ajuda aos Afogados na luta pela terra. Neste sentido é salutar apreciar outro documento, uma nota de solidariedade elaborada pela Regional Sindical dos Trabalhadores Rurais do Alto Jacuí, datada de 11 de outubro de 1983. A referida Regional Sindical era composta por 12 municípios e representava mais de 20 mil sindicalistas. A nota de solidariedade assinala que era de conhecimento público a angustiante situação daquelas famílias, suas vidas incertas e errantes em função da morosidade dos órgãos oficiais responsáveis em reassentá-los: Nesse momento em que os “AFOGADOS DO PASSO REAL”, passaram a ser reconhecidos, lutam organizadamente pela conquista de seus legítimos direitos e clamam por Justiça Social, nós, dirigentes dos Sindicatos signatários, HIPOTECAMOS NOSSA SOLIDARIEDADE, IRRESTRITO APOIO ÀS REIVINDICAÇÕES dos COMPANHEIROS e dispomos a auxiliá-los na sustentação de tão justo movimento13. Neste ínterim, outro documento, encontrado no sindicato de Fortaleza dos Valos, nos revela como os Afogados alicerçaram sua identidade e constituíram um discurso firme na luta pela terra. No documento intitulado “O Manifesto dos Afogados da Barragem do Passo Real” elaborado em viagem a Porto Alegre, os trabalhadores alegaram esclarecer às autoridades quem eles eram: Afogados do Passo Real, não vadios. “Afogados” por que as propriedades, onde tirávamos o nosso sustento e para nossos filhos, está de baixo da água da barragem e por isso estamos há 13 anos nessa situação de pobreza porque hoje nós somos: biscateiros, meeiros, arrendatários, peões, empregados e muitos de nós sem emprego... Nós não podemos mais ficar em silêncio14. No decorrer do texto, os Afogados atestam que não podem ficar em silêncio por que, se agissem de tal forma, estariam traindo seus próprios filhos, que lhes poderiam dar esperança, e se lhes devolvessem as terras, poderiam voltar a trabalhar como faziam há 13 anos. Também sinalizam que tal situação aconteceu por que antes eles não “enxergavam”, mas no seu agora estavam unidos e fortes, pois tinham do seu lado os sindicatos, as Igrejas e algumas autoridades. Por conseguinte, os Afogados relatam que ficaram extremamente ofendidos com uma publicação feita por pessoas “que ocupam cargos importantes” em um Jornal de Cruz Alta: que eles já haveriam vendido suas terras ou que já tinham sido indenizados. Assim, tendo sua legitimidade questionada por determinados setores da sociedade, percebe-se que os Afogados se ancoraram na construção de uma identidade que os unia e que lhes dava consistência para reclamar por justiça social e consolidar a luta pela terra. Neste sentido, fizeram uma cobrança às autoridades Os Afogados do Passo Real. S/D. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. Nota de Solidariedade. Regional Sindical dos Trabalhadores Rurais do Alto Jacuí. 11/10/1983. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. 14 O Manifesto dos Afogados da Barragem do Passo Real. 08/11/1983. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. 12 13 [ 298 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS superiores, cobrando uma posição do Governador do Estado, Jair Soares, que em sua campanha havia prometido dar uma “chance” com terras e trabalho para os colonos e empregados. Além disso, se dirigiram à Assembleia Legislativa, reclamando aos deputados que foram eleitos para cuidar dos “nossos direitos”. Referente ao INCRA sinalizaram que este deveria lutar “com nós e por nós”, dizendo que é para tal fim que ele existe. Também se referiram a FETAG, assinalando que esperavam que a entidade continuasse os incentivando como tinha feito até então. O mesmo disseram das autoridades locais e das pessoas da comunidade, confiando que estes compreendessem sua situação. No fim do documento, os Afogados sentenciaram que era seu direito ficar no Rio Grande do Sul, por que foi ali que perderam suas terras. Este aspecto vai ao encontro do que disse o Ex-Prefeito de Ibirubá, Olavo Stefanello, que os trabalhadores só aceitariam sair de suas terras se fossem reassentados em lugares não distantes e com a mesma infraestrutura. Esse aspecto também pode ser corroborado com outro documento, uma declaração15 feita pelo agricultor A.B, que alegou ao Governador Jair Soares que não queria ir para as terras que lhe foram designadas no Salto do Jacuí pelo seguinte motivo: “Alego que as terras concedidas pelo Governo do Estado, são bem inferiores em área do que aquela que fomos desapropriados, e que a produção que venha a serem produzidos sobre as mesmas, não cobrirão as despesas de manutenção pessoal e familiar”. Portanto, se entende que os Afogados exigiam que o reassentamento fosse realizado em regiões próximas e em condições semelhantes ou superiores a que se encontravam antes do alagamento. Neste caso, as terras não poderiam ser menores ou de qualidade inferior, ou seja, que não possibilitasse a manutenção e a reprodução da economia familiar. Este aspecto nos permite discutir os Afogados do Passo Real enquanto camponeses. Para Márcia Motta e Paulo Zarth (2009: 11), no Brasil a condição camponesa seria bastante diversa, incluindo proprietários, posseiros e pequenos arrendatários, e desde extrativistas e agroextrativistas até quilombolas e os novos poliprodutores resultantes dos assentamentos de Reforma Agrária. Para reconhecer a forma camponesa não basta considerar a especificidade da organização interna à unidade de produção e à família trabalhadora e gestora dos meios de produção alocados. É necessário a compreensão mais ampla do mundo cultural, político, econômico e social em que o camponês produz e se reproduz: Da coexistência com outros agentes sociais, o camponês se constitui como categoria política, reconhecendo-se pela possibilidade de referência identitária e de organização social, isto é, em luta por objetivos comuns, ou mediante a luta, tornados comuns e projetivos (MOTTA & ZARTH, 2009: 10-11). Assim, é possível reconhecer os esforços desempenhados pelos desalojados do Passo Real como uma forma de luta camponesa, já que ao se reconhecerem mediante a identidade de Afogados, se organizando em torno de objetivos comuns na busca por seus direitos legítimos. Em março de 1988, o Delegado regional do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD) enviou ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos um documento 16 no qual pedia colaboração para o cadastramento dos desalojados, dando um sinal que iria reassentá-los. A questão, no entanto, é que somente teriam prioridade às pessoas que estivessem na situação de agricultores sem-terra, não priorizando aqueles que tivessem terra ou estivessem empregados, ou em condições razoáveis. O problema é como medir as tais “condições razoáveis”. O fato de o sujeito estar empregado não o desqualificaria como sem terra, talvez fosse a única solução circunstancial para sustentar sua família. No caso dos Afogados que ainda tivessem um pedaço de terra, de todo modo não era o que possuíam antes do alagado, e na maioria dos casos não era suficiente para sua manutenção. Declaração A.B. 18/06/1984. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. Delegado Regional do MIRAD no Rio Grande do Sul. 11/03/1988. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. 15 16 [ 299 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Ainda não conseguimos aferir o tamanho dos lotes propostos pelo MIRAD nesses reassentamentos. Entretanto, através da solicitação de cinco Afogados 17, é cabível dizer que as glebas eram inferiores àquelas distribuídas nos primeiros Projetos Integrados de Colonização, que os outros desalojados receberam. Assim, os Afogados, V.S.C, O.R.J, S.S, F.L.S, e A.S solicitavam, de “forma singela”, a igualdade no recebimento de lotes com os que já foram reassentados: Saiba V. Sª, que nós, em nossa maioria, trabalhamos de empregados em estabelecimentos rurais, nestes longos anos recebendo salários mínimos e alguns ainda percebendo percentagens sobre as colheitas, trabalhamos arduamente, pois temos nossas famílias para sustentar, na alimentação e educação para fornecer para nossos filhos e esposas, e sempre mantivemos a esperança de que um dia o Governo Federal representado hoje pelo MIRAD, nos concederia um pedaço de terra, mas não pensávamos que o mesmo seria tão pequeno, em relação aos sofrimentos e angústias guardadas por estes longos anos. Assinalamos, portanto, o caráter de perseverança e de resistência dos Afogados na luta pelo seu justo direito a terra. Como se nota, na solicitação, os trabalhadores enfatizaram seu trabalho árduo assentado na esperança de que um dia a justiça fosse feita. Contudo, encontramos o caso de um Afogado 18 que quando recebeu a possibilidade do tão sonhado acesso a terra, já não tinha mais condições de seguir em frente. O senhor A.M.S desistiu da proposta de reassentamento do MIRAD, motivo: alegou não ter mais condições de trabalhar por estar muito doente. Tais exemplos demonstram que, depois de longos anos, a simples cessão de um lote de terra, não era para muitos afogados, a solução para um problema que se inseria em uma equação muito mais complexa. Neste sentido, sinalizamos que precisamos seguir com nossas pesquisas primárias, para elaborar um panorama mais sólido dos reassentamentos em fins dos anos 1980, o que faremos em ocasião futura. Considerações finais Os projetos de reassentamento dos atingidos pela barragem do Passo Real não deram conta de abarcar todas as famílias prejudicadas. Assim, muitos desalojados, que por mais de doze anos compartilhavam uma angustiante espera, resolveram romper o silêncio, e juntos, se empenharam na justa luta pela terra. Estes trabalhadores rurais, arrendatários, parceiros, meeiros, empregados, diaristas e pequenos proprietários, se uniram, a partir de suas reivindicações em torno de uma identidade, os Afogados do Passo Real, que foi sendo forjada e consolidada conforme a luta pela terra avançava. Obstinados pela conquista de suas demandas, marcharam firme e cobraram de todas as autoridades competentes, as promessas que lhes foram feitas e que não foram cumpridas. Quando tiveram sua idoneidade questionada por alguns setores da sociedade, não esmoreceram, e de cara limpa mostraram a todos quem eram, trabalhadores determinados que reclamavam direitos legítimos. É importante lembrar que os Afogados não se manifestaram sozinhos, tiveram o apoio da FETAG e de todos os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais da região do Alto Jacuí, que hipotecaram sua solidariedade na busca por justiça social. Também foi importante o auxílio prestado pelas autoridades locais, como a Prefeitura de Fortaleza dos Valos, que elaborou um denso compêndio de documentos comprovando a legitimidade dos reclamantes e tentando buscar caminhos para a solução daquela contenda. Por um lado, ficou claro que a simples concessão de um pedaço de terra não significaria o fim dos problemas e da luta. Os Afogados tiveram que resistir em suas justas exigências não querendo dar um passo atrás. Alguns companheiros de luta não puderam seguir em frente, o tempo agiu e sem condições de saúde, tiveram de desistir. Tal fato não diminuiu a seriedade do esforço destes trabalhadores rurais que se 17 18 Solicitação Afogados. S/D. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. Termo de desistência. 22/04/1988. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. [ 300 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS manifestaram e se mobilizaram legitimamente. A água pode ter alagado a terra onde muitos nasceram, mas os Afogados que dali emergiram, construíram um importante passo na luta pela terra no Brasil. [ 301 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS FONTES: CEEE – Relatório acerca das propriedades que tiveram suas terras atingidas pelas águas da bacia de alagamento do Passo Real. 08/09/1969. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. C.H. E Passo Real/Gleba92. 11/05/1965. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS. Declaração A.B. 18/06/1984. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. Delegado Regional do MIRAD no Rio Grande do Sul. 11/03/1988. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. LORENZON, Algir (Org.). AFOGADOS: Até Quando? Relatório da Comissão Especial dos Agricultores Desalojados do Passo Real. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas. S/D. Nota de Solidariedade. Regional Sindical dos Trabalhadores Rurais do Alto Jacuí. 11/10/1983. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. O Manifesto dos Afogados da Barragem do Passo Real. 08/11/1983. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. Os Afogados do Passo Real. S/D. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. Projeto Integrado de Colonização Sarandi (Gleba I – Invernada do Butiá) – Ministério da Agricultura – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA Coordenadoria Regional do Rio Grande do Sul – Publicado em dezembro de 1972. Requerimento A.P.M. Desalojado do Passo Real. 8/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS. Requerimento D.F.S. Desalojado do Passo Real. 10/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS. Requerimento N.F.C. Desalojado do Passo Real. 10/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS. Requerimento N.P.S. Desalojado do Passo Real. 08/12/1986. Arquivos da Superintendência do INCRA/RS. Solicitação Afogados. S/D. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. Termo de desistência. 22/04/1988. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos. REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS: DICKEL, Simone Lopes. A função social da propriedade da terra no processo de desapropriação da Fazenda Annoni (1972-1993). 2016. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo. LEAL, Giuliana Franco. O poder dos donos da terra: um balanço das organizações de proprietários e empresários rurais na década de 90. Raízes, vol. 22, nº. 02, 2003. MOTTA, Márcia & ZARTH, Paulo (orgs.). Formas de resistência camponesa: visibilidade de conflitos ao longo da história, vol.2: concepções de justiça e resistência nas repúblicas do passado (1930-1960). São Paulo: Editora Unesp; Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário, NEAD, 2009. STEFANELLO, Olavo. Esmeraldas cá na terra, estrelas lá no céu. São Paulo: Editora Gente, 2008. WOORTMANN, K. "Com parente não se neguceia": o campesinato como ordem moral. In: ANUÁRIO ANTROPOLÓGICO 87. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1990. p. 11-73. WOORTMANN, K. Migração, família e campesinato. In: WELCH, C. A. et al. (Org.).Camponeses brasileiros: leituras e interpretações clássicas: v. 1. São Paulo: Unesp; Brasília: Nead, 2009. p. 217-238. [ 302 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A Ferrovia do Trigo como Patrimônio Cultural Renan Pezzi1 Resumo: O presente trabalho analisará a Ferrovia do Trigo como patrimônio histórico para o município de Guaporé e região dos vales do rio Taquari e Guaporé. Com os primeiros projetos de construção remetendo ao ano de 1910. O processo de construção passou por diversas etapas e interrupções, sendo concluído apenas no ano de 1978, ainda na década de 1980 os trens de passageiros tiveram suas atividades suspensas, e em 1996 as linhas férreas foram concedias à iniciativa privada, a partir disso, os espaços, ao longo do trajeto entre os municípios de Guaporé e Muçum, acabaram sendo abandonados, e hoje se encontram em estado de detrimento e/ou esquecimento. Muitos projetos para a implementação de um trem turístico vêm sendo discutidos e apresentados ao longo dos anos, porém, nenhum deles discute a importância histórica e patrimonial da ferrovia. Nesse sentido, este trabalho se compromete em discutir esses locais e na possibilidade da utilização dos mesmos como espaço de memória e para fins turísticos. Palavras-chave: Ferrovia, patrimônio, memória, turismo Nesse artigo pretendemos analisar, a partir do processo histórico da construção e posterior concessão da EF-491, popularmente conhecida como Ferrovia do Trigo, como a mesma pode ser considerada um patrimônio histórico e também cultural, nesse sentido, para compor o trabalho, na maior parte, foram utilizadas obras bibliográficas de autores locais que, a partir de diferentes pontos de vista, abordam o tema selecionado, desde a parte econômica, passando pelo contexto histórico e, por fim, a patrimonial. Outra importante fonte para a pesquisa foram as matérias de periódicos da região e documentos oficiais do município de Guaporé. No Brasil a preocupação com a preservação do patrimônio histórico remete à década de 1920, onde a falta de cuidado com os bens materiais arquitetônicos culturais colocava em risco a sua conservação. Um exemplo disso já era o descaso com as cidades históricas, o que na época chamou a atenção de algumas, dando início a um movimento que buscava a conscientização da população para a necessidade de preservar determinadas obras da arquitetura colonial. Uma vasta e diversificada lista de intelectuais da sociedade, que posteriormente se integraram ao modernismo, desde o início do século XX, alertavam para as possíveis perdas irreparáveis dos monumentos do Brasil caso não houvesse uma política preservacionista. Foram as cidades históricas mineiras o grande achado deste grupo. Nestas, monumentos e núcleos urbanos estavam abandonados, porém, mantendo a integridade estilística que contavam a história e refletiam a tradição almejada. (TOMAZ, 2010. p.9) A questão patrimonial é algo que está em constante e crescente discussão no meio acadêmico. Partindo disso é que vamos propor um estudo que busque destacar o conhecimento e da preservação como patrimônio cultural desta ferrovia, tanto para a região de Passo Fundo, como para os vales do Guaporé e Taquari, durante as décadas de 1950 a 1990. Algo que muito se discute na sociedade diz respeito à utilização e investimentos na malha ferroviária do Brasil. Nesse sentido, tomamos como exemplo os países europeus, onde esse tipo de transporte surgiu e vem sendo utilizado e ampliado desde então, seja no transporte de pessoas, como também nos demais tipos de cargas. Desde a privatização das linhas férreas na década de 1990, grande parte das estradas de ferro do país se encontram em estado de abandono, ou possuem uma pequena frota circulando. Breve histórico da Ferrovia do Trigo 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF), na linha de pesquisa: Cultura e Patrimônio. E-mail: renan_renan010@hotmail.com [ 303 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A região norte do estado do Rio Grande do Sul era a grande produtora de trigo e posteriormente se tornou de soja, sendo que a principal forma de escoamento das imponentes safras era feita a partir do transporte ferroviário. Podemos enfatizar a região de Passo Fundo no que diz respeito à produção de grãos, ou moageira. A região de Passo Fundo destacou-se primeiramente com a produção do o trigo, que por várias décadas era o principal produto da agricultura. Tempos depois foi substituído por outro cereal também de grande importância, a soja. Sobre o início do cultivo de trigo, Tedesco destaca que: Especificamente na região de Passo Fundo, segundo Parizzi, em 1858, já se falava deste cereal na Câmara Municipal. Na primeira estatística agrícola organizada pela instituição figura uma plantação de 1 600 Kg, cuja colheita teria produzido 19 200 Kg, ou seja, um rendimento diminuto. Em 1875, a cultura ocupava no município uma extensão de 654 400 m², sendo o quarto produto no ano; a terra era preparada a enxada, e o processo consistia em roçar, derrubar e queimar as matas para após fazer a plantação (TEDESCO, SANDER, 2005. p. 98) A passagem do trem, com certeza, beneficiou a imensa maioria dos produtores do norte riograndense. Nesse sentido, foram várias as categorias que viram um futuro mais próspero. Porém, um problema que se observava estava relacionado à distância e o tempo que o trem gastava para chegar até Porto Alegre. Primeiramente o trajeto era feito através da linha que saia de Passo Fundo, seguia para Santa Maria e após para Porto Alegre. Essa era uma viagem de em média 24 horas, percorrendo cerca de 550 Km. Sendo assim, Cristiane Secchi, destaca que, ainda no final do século XIX, apresentaram-se as primeiras iniciativas para a construção da atual Ferrovia do Trigo. Segundo os projetos, a mesma deveria iniciar no município de Lajeado e seguir pelo Rio Taquari, com destino final a cidade de Passo Fundo. Isso diminuiria o tempo para 8 horas, um quarto do que era gasto com o trajeto antigo, e então o trajeto teria pouco mais de 300 Km. (SECCHI, 2008. p.46) Em 1910 aconteceram as primeiras movimentações do governo e órgãos responsáveis para o início da construção dessa nova estrada de ferro. No entanto, pouco tempo depois, em 1914, os mesmos estiveram paralisados por conta da Grande Guerra que estava acontecendo na Europa. Então, após o final do conflito (SECCHI, 2008. p.46), o governo brasileiro se encontrava em um período de muita instabilidade e crise financeira, juntando tudo isso às tensões no governo Vargas, a partir de 1930, ainda podemos destacar a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em matéria publicada no jornal Correio do Povo2, em 1973, é destacado que foi aprovado o projeto de engenharia final para a construção e que os investimentos do Ministério dos Transportes, para a modernização do transporte ferroviário nacional, chegavam a 11 bilhões e 800 milhões de cruzeiros para o triênio 1973-75. A matéria ainda destaca que “no caso específico da L 35, 3 que mudaria de nome para EF-491, as inversões financeiras se justificam plenamente em face da demanda de transporte de produtos para a região, onde se alinham o trigo em grão, farelo de soja, sorgo, calcário, cimento, fertilizantes, derivados de petróleo e outros ”. A inauguração da Ferrovia do Trigo estava prevista para o ano de 1977. No entanto, um novo atraso na conclusão das obras adiou para o ano seguinte esse acontecimento. E foi somente em dezembro de 1978, após 68 anos, que oficialmente ocorreu a entrega da EF-491, em uma cerimônia contando com a presença do então Presidente da República, General Ernesto Geisel. Na manhã do dia 8 de dezembro de 1978, o presidente chegou ao Aeroporto de Passo Fundo, sendo recebido pelo Prefeito Wolmar Salton, seguindo até a nova Gare do município, onde proferiu um discurso e posteriormente iniciou a viagem inaugural com destino final a cidade de Porto Alegre. Antes disso seria feita mais uma parada na cidade de Guaporé, onde também 2 3 FERROVIA DO TRIGO TEM SEU PROJETO FINAL DE ENGENHARIA. O Correio do Povo, 31 ago. de 1973. Este foi o primeiro nome dado para a Ferrovia do Trigo. [ 304 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS estava programada a inauguração da estação ferroviária da cidade e, para descerrar uma placa alusiva aos 75 anos de emancipação do município. É fato que uma multidão aguardava a chegada da autoridade. Os trens de passageiros iniciaram suas atividades na linha Passo Fundo-Porto Alegre no final do ano de 1979. Antes disso já trafegavam pela Ferrovia do Trigo outros trens transportando as safras de soja e trigo da região Norte do RS. O abandono do transporte ferroviário brasileiro, no caso da Ferrovia do Trigo, aconteceu pouco tempo depois da inauguração oficial, muito por conta das novas rodovias e praticidade desse tipo de transporte. E também pela questão do alto consumo de diesel dos trens em comparação aos caminhões, segundo alegavam o governo e os órgão responsáveis. Segundo Ana Julian Faccio e Aldomar Arnaldo Rückert, o modelo de privatização brasileiro tomou impulso durante o governo Collor. Porém, no início dos anos 1980, já havia sido criada a Comissão Nacional de Desestatização (CND). O processo de desestatização do setor ferroviário foi iniciado a partir do momento em que a RFFSA passou a integrar o PND (Plano Nacional de Desestatização). A rede foi dividida em seis grandes malhas, sendo que o processo de concessão dessas iniciou em 1996, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e a malha da região sul foi leiloada para a América Latina Logística (ALL), no ano de 1997. (FACCIO, RÜCKERT, 2014. p.55) Foi durante os dois mandatos de Fernando Henrique (1995 – 2002) que a política de desestatização foi aplicada com mais força, onde vários ramos da economia sofreram privatizações ou concessões. Alicia Gimenez, mostra que para FHC o avanço destas práticas possibilitaria que, com a entrada de capital estrangeiro, as áreas estratégicas da economia nacional poderiam superar os déficits causados pela “má administração pública” dessas empresas. A autora ainda destaca que: O papel do Estado como provedor do desenvolvimento econômico e dos principais setores da infraestrutura estava saturado. Claro que o processo de privatizações sofreu severas críticas de diversos grupos, tanto de grupos de esquerda, movimentos sindicalistas e até membros do próprio governo. Porém, tais críticas não impediram que boa parte das empresas estatais fosse entregue à iniciativa privada, muitas vezes por valores muito abaixo do real valor de mercado, sob o argumento de que tais empresas seriam melhor administradas e trariam mais lucros ao país se ficassem nas mãos de capitalistas, já que para o governo não seria mais possível manter um número tão grande de empresas em sua maioria endividadas. (GIMENEZ, 2013. p.14) Revitalização do patrimônio e utilização com fins turísticos Diferente de Passo Fundo, a cidade de Guaporé não se desenvolveu às margens da ferrovia, pois a estrada de ferro possuía o seu traçado um pouco distante dos antigos limites urbanos. Atualmente existem algumas residências nas proximidades da linha, porém as mesmas não foram construídas no local por conta da passagem do trem. Pelo contrário, o então Bairro Ferroviário começou a receber moradias apenas nos anos 1990, durante os processos de concessão da EF-491. Talvez um fato que tenha barrado o crescimento da cidade para aquela região, seja por conta do curto período de tempo em que o trem de passageiros tenha estado em operação. Depois que os trens húngaros 4 encerraram as atividades, não havia mais motivos para, por exemplo, o desenvolvimento de um comércio no local. Como vimos anteriormente, a construção de uma Estrada de Ferro era necessária para o escoamento mais eficaz da produção da região norte do Rio Grande do Sul, pois Passo Fundo se destacava como um dos maiores produtores de trigo e posteriormente de soja. Já Guaporé, em determinado período, entre as décadas “Os trens húngaros foram anunciados pelo governo federal no final de outubro de 1973. Ficaram com esse nome por terem sido importados da Hungria (fabricante: Ganz-Mavag) em troca de café brasileiro.” Fonte: Disponível em: <http://www.estacoesferroviarias.com.br/trens_sp_3/trem%20hungaro.htm> Acesso em julho de 2018. 4 [ 305 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS de 1920 – 40 também era um dos municípios de destaque na produção desses cerais. Porém, ao longo do tempo, vários de seus territórios se desmembraram e deram origem a muitos outros municípios da região, como destacado por Giovani Balbinot. Segundo o autor, o município de Guaporé, após os processos de emancipação, acabou com apenas 20% do seu tamanho original, o que levou a um processo de mudança na orientação econômica para a indústria joalheira e têxtil. (BALBINOT, 2014. p.136) Atualmente, após o encerramento da linha de passageiros com o Trem Húngaro em 1982, as diversas estações ao longo do trajeto foram sendo abandonadas. Hoje, algumas se encontram parcialmente destruídas. Durante muito tempo os poderes públicos dos municípios que compreendem o trajeto Guaporé – Muçum, estiveram unidos na realização de projetos que buscassem implementar um roteiro turístico pela região através dos trilhos. O primeiro projeto para um trem turístico surgiu em 1999, pouco tempo após a concessão da malha ferroviária, conforme matéria do jornal Tribuna da Serra5, sob o título de “Guaporé busca atrair turistas com trem Maria Fumaça”. Nesta matéria é destacado o cenário da Ferrovia do Trigo na região de Guaporé e Muçum. A ideia era de implementar um passeio com uma locomotiva Maria Fumaça, fazendo a rota entre os dois municípios pois, segundo cálculos, a ferrovia teria viabilidade econômica e poderia ajudar a impulsionar o turismo nas cidades. No mesmo ano, 1999, um oficio foi encaminhado para o então Ministro de Estado dos Transportes, com o objetivo da liberação de passageiros, dando destaque para o fato de que a Ferrovia do Trigo possuía, no trecho Guaporé – Muçum, seus “maiores atrativos”, sendo esses os viadutos e túneis, juntando com a paisagem serrana dos vales que acabam “proporcionando panorama de invejável beleza e imponência”. O documento segue evidenciando o objetivo da utilização da linha férrea com fins turísticos, segundo: Com o objetivo de desenvolver o turismo na região e gerar emprego, solicitamos a liberação da linha de passageiros para exploração turística ferroviária pela Prefeitura Municipal de Guaporé, aos finais de semana e feriados (...) salientamos, também, que o nosso município é polo na industrialização da semi-jóia e possui um dos autódromos mais belos e seguros do país. Isso, somado ao grande turismo desenvolvido pela região de Caxias do Sul, proporcionará maior oportunidade de visitação pública, gerando o aumento de nossas divisas e trabalho a nossa população.6 Em resposta, o Secretário de Transportes Terrestres Substituto, Carlos Guterres Parada Júnior, encaminhou ofício com anexo de uma “cópia da Norma Complementar nº 8, de 8/8/2000, publicada no DOU (Diário Oficial da União), em 10/8/2000, a qual estabelece diretrizes para tratamento de solicitações relativas à prestação de serviço excepcional de transporte ferroviário de passageiros” 7. Tal norma indica que a liberação das linhas sob concessão é destinada, conforme Art. 2º, apenas no “atendimento de órgãos ou entidades sem fins lucrativos; na realização de eventos específicos e isolados, de natureza cultural; duração pré-estabelecida; ou descontinuidade na prestação dos serviços”. 8 Analisando os exemplos acima citados, podemos perceber que, na primeira tentativa, a implantação de um roteiro turístico envolvendo a Ferrovia do Trigo foi barrada por um ponto nas diretrizes do Ministério dos Transportes. Vale ressaltar que, na época não existia um projeto bem elaborado para colocar em prática um roteiro turístico ferroviário e cultural na região. Sendo assim, nos anos seguintes, os municípios que compõem a região de abrangência da ferrovia entre Guaporé e Estrela e formam a Associação dos Municípios de Turismo da Região dos Vales (AMTURVALES); firmam uma união para discutir possíveis propostas e projetos de turismo envolvendo o transporte ferroviário. Tal associação possui um papel muito importante Guaporé busca atrair turistas com trem Maria Fumaça. Tribuna da Serra. p.3. Guaporé. 22 jul. de 1999. Prefeitura Municipal de Guaporé, Ofício 168-99. 7 Ministério dos Transportes Secretaria de Transportes Terrestres, Ofício Circular nº 017/STT/MT. 8 Diário Oficial da União, 10/08/2000. Seção 1, p. 15. 5 6 [ 306 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS para que assim sejam propostas novas práticas, que visam o turismo. Essa união entre os municípios fortalece seus ideais. Em 2010, na cidade de Guaporé, ocorreu uma cerimônia de entrega simbólica dos vagões para serem utilizados no transporte de passageiros no roteiro turístico, bem como o lançamento de uma campanha que visava a implantação do trem turístico até o ano de 2014, sob o título de Copa pelo Rio Grande. Na imagem abaixo pode ser observado o convite para estas cerimonias. Figura 1: Convite para cerimônia de entrega dos vagões e campanha Copa pelo Rio Grande Fonte: Acervo da Prefeitura Municipal de Guaporé. 2010 Na ocasião, como descrito em matéria publicada no jornal Informativo Regional, os representantes das principais entidades ligadas ao projeto participaram da entrega simbólica dos seis vagões doados pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (DNIT), os quais seriam restaurados e posteriormente usados para o passeio.9 O projeto não foi concretizado até o presente e os municípios ainda estão à espera da revitalização e entrega definitiva dos vagões. Junto a isso, aguardam a liberação da empresa responsável pelos serviços atuais das linhas, para a circulação do trem turístico. Como salienta matéria publicada no site da AMTURVALES: Ainda restam alguns estudos técnicos da viabilidade de se trazer um ‘veículo’ como esse e processos com o Governo Federal (Dnit) e com a ALL para a implantação deste trem”, diz Arruda. Entre os trâmites para a implantação do “Trem de Passageiros” está a liberação da linha férrea (direito de trânsito), em determinados horários, pela América Latina Logística (ALL), detentora da concessão. Outro “problema” é a documentação liberatória do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) para que se coloque um trem de passageiros na linha, que há tempos é ocupada somente por trens de carga. Arruda salienta que existem várias regras da Agência Nacional de Transporte Terrestres (ANTT). 10 Entrega de Vagões e lançamento da Copa pelo Rio Grande acontece hoje. Informativo Regional. Guaporé. p.4 30 abr. de 2010. Ferrovia do Trigo: Trem turístico deve ser implantado em 2015, disponível em: < http://www.amturvales.com.br/noticias/ferroviado-trigo-trem-turistico-deve-ser-implantado-em-2015> Acesso em, jun. de 2018. 9 10 [ 307 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Sobre essas questões que andam atrasando a implantação do roteiro turístico, podemos ainda destacar um avanço nas negociações por parte do DNIT, conforme ofício encaminhado ao Prefeito Municipal pelo órgão,11 no dia 04 de abril de 2016. Neste, referindo-se ao pedido de cessão de uso gratuito de bem imóvel, no caso, a Estação Ferroviária de Guaporé, com prazo de vigência do contrato por 20 anos, conforme nota do DOU12. A partir dos documentos mencionados e das matérias jornalísticas, pudemos analisar que, desde os primeiros anos pós concessão a Ferrovia do Trigo, esta demostrava ter uma valiosa importância para os municípios da região. Nesse sentido, o turismo seria uma alternativa para gerar mais empregos e PIB para as cidades. O próximo passo é a conscientização da população sobre a preservação dos patrimônios. Nesse trabalho focamos especialmente no caso da cidade de Guaporé e de seu complexo ferroviário. Como já analisado anteriormente, a construção se encontra em estado de abandono e parte dela é utilizada como moradia, sendo interessante a revitalização e realocação das pessoas que hoje lá vivem em outras regiões da cidade. Em 2006, foi instituída pelo Poder Público Municipal a lei nº 2699/2006, cuja finalidade é a de preservação do patrimônio natural e cultural do município, juntamente com o tombamento dos mesmos. O Art 2º descreve o seguinte: O patrimônio natural e cultural do Município de Guaporé é constituído por bens móveis ou imóveis, de natureza material ou imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, existentes em seu território e cuja preservação seja de interesse público, dado o seu valor histórico, artístico, ecológico, bibliográfico, documental, religioso, folclórico, etnográfico, arqueológico, paleontológico, paisagístico, turístico ou científico. (GUAPORÉ, 2006) Se tal lei for aplicada corretamente, possibilitará elevar a importância do complexo ferroviário da cidade de Guaporé, no sentido do valor histórico cultural e turístico regional. Aqui, já apresentamos os principais motivos pelos quais a EF-491 possui importância histórica e cultural para a região. E que pode ser considerado com um dos bens integrantes da preservação do patrimônio histórico e da memória da população local, e também para viabilizar e consolidar os projetos de recolocação da linha de passageiros. Sobre o turismo ferroviário no Brasil, citamos o trabalho de Vera Lúcia Borges e Clara Fraga. As autoras abordam a utilização das linhas férreas construídas durante a República Velha, as quais atualmente servem como roteiros turísticos. Sobre isso, é destacado que: Com o passar do tempo, os viajantes e os residentes foram associando aos trens em circulação referências à prosperidade e euforia daquele período que parece ter sido passado pelas gerações. Provavelmente, a sensação de idealização por momentos vividos no passado, associado às lembranças de felicidade, seja, no presente, importante componente de apelo para este mergulho no passado da história do país sob o barulho da Maria Fumaça. Dito de outra maneira, na atualidade, os trens levam seus passageiros ao mergulho no tempo de crescimento do Brasil marcado por fortes elementos culturais que podem ser potencializados como produtos turísticos ímpares em prol do desenvolvimento do turismo ferroviário no País. (BORGES, FRAGA, 2015. p. 12) 11 12 DNIT Ofício nº 208/2016/CGPF/DIF/DNIT. Diário Oficial da União, 22/03/2016. Seção 3, p. 107. [ 308 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Um importante ponto abordado pelas autoras pode ser utilizado para este trabalho. Em uma das conclusões em que se trata a respeito da importância de se investir no transporte ferroviário como atrativo turístico, cita-se que é válido por estar ligado ao passado das regiões onde o mesmo é implementado. A proposta leva os passageiros a uma viagem no tempo, de volta a um período onde o “progresso” chegaria junto com os trilhos e seria anunciado ao som do trem. Assim, podendo amenizar a frustração da população que hoje observa a situação na qual se encontram a maioria das Estradas de Ferro do país. Considerações finais Seria importante, caso o projeto de um trem turístico se concretize, a revitalização do espaço e a conscientização do poder público para que o mesmo possa integrar a lista de bens tombados, de tal forma que possibilite a preservação e reconhecimento do mesmo como patrimônio histórico e cultural do município e região. Com a ferrovia sob concessão da ALL, a única expectativa para a volta dos trens de passageiros está por conta da aprovação e implementação de um roteiro turístico. Também foi possível observar nessa parte do trabalho, que existe empenho dos governos municipais e no setor privado para que, enfim, os projetos saiam do papel. Focando no complexo ferroviário da cidade de Guaporé onde, o local precisa passar por uma revitalização para então poder atender aos turistas e à população local que, se constituído o projeto, passarão a utilizar o seu espaço. É válido aqui destacar que, num primeiro momento, seria uma ideia quase que utópica tentar recuperar todos os patrimônios ferroviários das cidades presentes no percurso. Porém, é necessário que os principais estejam em boas condições para a utilização, sendo a cidade em questão um dos polos destacáveis para o desenvolvimento do projeto. Nesse sentido, a mesma deve apresentar uma estrutura condizente. Dessa forma, seria interessante, em um primeiro momento, a inclusão do complexo ferroviário de Guaporé na lista dos patrimônios tombados do município. O próximo passo poderia ser a revitalização do espaço, transformando-o novamente em um lugar com a devida capacidade para atender o público que passará a frequentá-lo. Na observação deste último aspecto, podemos destacar o estudo de Alexandre Concari. Seu trabalho consiste em um projeto arquitetônico de revitalização do complexo, juntamente com a criação de um parque urbano. O projeto é bastante ambicioso, porém possui importância, tendo em vista que, a partir deste será elevada a relevância do local para o patrimônio cultural da cidade. Entre todas as propostas de revitalização de todo o espaço apresentadas por Alexandre Concari uma das que mais chama a atenção é a da revitalização e posterior utilização do antigo edifício da Estação Ferroviária: A proposta para o edifício da Estação Ferroviária, consiste em ativar o edifício e seu entorno, agregando novos usos, como visto no programa de necessidades, não somente como ponto final do trajeto do Trem turístico. A proposição do Museu da Memória Ferroviária no antigo armazém, junto ao Café Vagão, atrai outros públicos ao local mantendo-o ativo nos demais dias. A presença da Secretaria do Turismo no segundo pavimento, movimenta o complexo com o fluxo necessário à sua operação, em um ponto estratégico da cidade junto a um setor de informações turísticas para os visitantes que podem a partir daí conhecer outros atrativos da cidade. (CONCARI, 2017. p. 70) A ideia proposta se assemelha a outro projeto de revitalização de importante patrimônio tombado e posteriormente utilizado por órgãos públicos. Nos referimos ao prédio que no passado serviu como a sede de uma das maiores e mais importantes indústrias da cidade e região, o qual passou por uma ampla reforma e serve como sede do Arquivo Histórico Municipal, Junta Militar e demais serviços públicos do município. Sendo assim, constituiu-se em uma boa forma de aproveitamento e também preservação dos espaços integrantes ao patrimônio cultural. [ 309 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Feita a primeira parte de reconhecimento, tombamento e revitalização do patrimônio ferroviário, passamos para outra importante etapa: a da conscientização da população para a conservação dos espaços. Nesse ponto devemos focar na população como um todo. Porém, algumas propostas interessantes podem ser tomadas como, por exemplo, a inclusão de temas ligados ao patrimônio cultural e sua preservação nas escolas, onde os professores poderão levar os jovens alunos para aulas extraclasse posteriormente aos assuntos teóricos, tratados em sala de aula. Desse modo, os estudantes poderão acompanhar na prática quais são os patrimônios de sua cidade e o porquê da importância de preservá-los. A participação popular é um dos fatores que melhor contribuem para a preservação da história de determinado local. E é através do povo que podemos determinar se um espaço ou construção tem o devido valor histórico para aquela comunidade e assim ser preservado. Como apresentado por Ana Paula Wickert, em um estudo sobre o patrimônio cultural do distrito de Evangelista, no município de Casca, a opinião popular teve grande relevância para o trabalho de reconhecimento do patrimônio cultural. Neste caso, a maioria dos moradores da localidade, em um parecer, mostrou-se favorável às práticas de preservação. (WICKERT, 2004. p.72) Dessa forma, como analisado anteriormente, acreditamos que a união entre os estudos históricos, arquitetônicos e a participação da população, aliados aos órgãos públicos municipais e regionais, são a maior arma contra o descaso e o abandono de parte da história de um lugar específico. Referências bibliográficas BALBINOT, Giovani. Desenvolvimento econômico do município de Guaporé: a agroindústria da banha do couro (1892-1980). 2014. BORGES, V.L.B. & FRAGA, C. (2015). Turismo e Ferrovia no Brasil: Um estudo sobre as heranças da primeira República. Política e Planejamento do Turismo. XII Seminário da Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Turismo – ANPTUR. Natal, Rio Grande do Norte. CONCARI, Alexandre. Revitalização Do Patrimônio Ferroviário De Guaporé. 2017. 85 f. TCC (Graduação) - Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, 2017 FACCIO, Ana Julian; RÜCKERT, Aldomar Arnaldo. Infraestrutura Ferroviária e Privatização: o Caso do Ramal Passo Fundo - Marcelino Ramos na Região do Alto Uruguai/RS. Revista de Geopolítica, Natal, v. 5, n. 1, jan. 2014. GIMENEZ, Alicia Ribeiro Pinto de Andrade. Privatizações no Governo FHC e a Evolução do Transporte Rodoviário no Brasil. 2013. 42 f. TCC (Graduação) - Curso de Ciências Econômicas, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2013. GUAPORÉ, Lei nº2699/2006, de 16 de junho de 2006. Dispõe sobre a preservação do patrimônio natural e cultural do município de Guaporé e institui o fundo de proteção do patrimônio cultural de Guaporé. Guaporé. 2006 SECCHI, Cristiane. Ferrovia do Trigo: uma História Sobre os Trilhos (1940-1980). 2008. 152 f. TCC (Graduação) - Curso de História, Univates, Lajeado, 2008. TEDESCO, João Carlos; SANDER, Roberto. Madeireiros, comerciantes e granjeiros: lógicas e contradições no processo de desenvolvimento socioeconômico de Passo Fundo (1900-1960). Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005. TOMAZ, César Paulo. A preservação do patrimônio cultural e sua trajetória no Brasil. Revista de História e Estudo culturais vol.7, n°2. 2010 WICKERT, Ana Paula. Linha 15: patrimônio, memória e cultura. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2004. [ 310 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS As comemorações do 25 de julho de 1956, no Rio Grande do Sul René Ernaini Gertz* Resumo: Como mostram os trabalhos de Roswithia Weber, a partir de 1924 ocorreram comemorações do 25 de julho, simbolizando o início da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Ainda que se tratasse de uma data específica aos alemães e descendentes, tentou-se dar um cunho mais geral ao evento, designando-o como “Dia do Colono”, como a homenagear o conjunto dos imigrantes que deram origem a um sistema de pequena propriedade no estado. Esses festejos se adensaram ao longo da década de 1930, mas foram interrompidos pela política de nacionalização, durante o Estado Novo (1937-1945). Depois da guerra, eles recomeçaram de forma muito tímida, mas há indícios de que em 1956 eles novamente atingiram uma intensidade comparável à do período anterior à política de nacionalização. É este o tema desta apresentação. Este ensaio faz parte de um projeto de pesquisa histórica intitulado “O rescaldo da Segunda Guerra Mundial no Rio Grande do Sul”. Há bibliografia respeitável sobre manifestações verbais, movimentos e ações para pensar, definir, fortalecer o “caráter nacional” brasileiro, a “identidade nacional”, ao longo do século XX. Entre outras facetas do tema, está a preocupação em determinar as características necessárias para uma pessoa ou um grupo ser um “típico ou verdadeiro brasileiro” – e sua contrapartida, isto é, aquele(s) que não apresentaria(m) as qualidades de cidadão pleno. Nesta perspectiva, ganharam importância imigrantes e descendentes, em especial aqueles vindos de alguns países. É muito provável que japoneses e descendentes tenham despertado as maiores preocupações, tanto entre parcelas da população quanto entre uma elite pensante e agentes de Estado. Judeus, negros, poloneses e descendentes, alemães e descendentes vêm a seguir. Debates e medidas a respeito se aprofundaram a partir de 1930, e tudo isso desembocou naquilo que ficou conhecido como uma generalizada “campanha de nacionalização”, após a decretação do Estado Novo, em 1937 (GERTZ, 2014b). Aqui interessam, especificamente, alemães e descendentes, no Rio Grande do Sul. Em relação a eles, cabe destacar – sem entrar numa “avaliação” ou no estabelecimento da “verdade” sobre essa polêmica – que havia, por um lado, longa tradição de prevenção contra eles, com desconfianças quanto à sua lealdade ao Brasil, a suas qualidades de cidadãos brasileiros, por parte de intelectuais, de setores da sociedade em geral e de agentes de Estado; por outro lado, havia, entre eles, de fato, defensores da preservação da pureza genética e da identidade cultural, eventualmente, até religiosa. Duas palavras resumem as posições derivadas dessa realidade. Por um lado, aqueles que faziam restrições a essa população naquilo que tange à sua integração e lealdade ao país falavam em “perigo alemão” (GERTZ, 1991); por outro lado, a palavra “germanismo” caracterizava aqueles que diziam que alemães e descendentes deveriam – para serem úteis à sua “nova pátria” – evitar a miscigenação e o abandono de suas características étnico-culturais, com destaque para a língua (GERTZ, 1987, p. 92-105). Como escreveu Giralda Seyferth (1989), tratava-se de “dois discursos étnicos irredutíveis”. Como tais, o confronto verbal, que vinha de longa data, alcançou um ápice a partir de 1938, com a “campanha de nacionalização”, desembocando, em considerável número de oportunidades, em violências físicas, nos anos seguintes, até o final da Segunda Guerra Mundial. E é ao “rescaldo” desses acontecimentos – alguns dos quais literalmente marcados pelo fogo – que se refere o projeto em que se insere o presente estudo. Para uma compreensão adequada da situação, é necessário um pequeno recuo no tempo, ao menos em relação àquilo que aconteceu dentro da “colônia alemã”, a partir de 1924. A revolução de 1923, entre Borges de Medeiros e Assis Brasil, quebrou a espinha dorsal política daquele. Está muito claro que uma Graduado em História pela UNISINOS; mestre em Ciência Política pela UFRGS; doutor em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim; ex-professor na PUCRS e na UFRGS; aposentado. E-mail: gertz@cpovo.net * [ 311 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS parcela da população percebeu esse fato, e começou a lutar em favor de uma maior autonomia para serem governados, dentro de seus respectivos municípios, por representantes locais – e não mais por chefes do executivo impostos pelo Partido Republicano Rio-Grandense, muitas vezes vindos de fora das comunas. Isso se refletiu nas eleições de 1924, mas, sobretudo, nas de 1928. Esse contexto mostra que, durante a segunda metade da década de 1920, ao menos uma parte da população da “colônia alemã” se mobilizou em termos políticos, sociais, econômicos, mas também em termos culturais, no sentido de recuperar uma autoestima que havia sofrido sérios arranhões durante a Primeira Guerra Mundial (GERTZ, 2002, p. 124-150). Os festejos do centenário da imigração alemã, em 1924, se inserem nesse processo (WEBER, 2004). Nos anos seguintes, sobretudo após a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha – fato visto por aqui como uma recuperação da autoestima também na “pátria-mãe”, após as humilhações sofridas com a Primeira Guerra Mundial –, a mobilização pela cultura e identidade próprias, específicas do grupo, teve um incremento perceptível. Palavras como “movimento pró-25 de julho” ou campanhas por “nosso dia” foram popularizadas. E essa mobilização foi favorecida pelo governo Flores da Cunha (1930-1937). Se os novos detentores do poder em Santa Catarina iniciaram uma política de “nacionalização” das populações “estrangeiras” logo após a revolução de 1930, o governo daqui agiu em sentido oposto, não se cansando de destacar seu bom relacionamento com as “colônias” alemã e italiana. Para exemplificar ações concretas nesse sentido, seja citado apenas o fato de que, em 1934, o dia 25 de julho, dia da chegada dos primeiros imigrantes alemães a São Leopoldo, foi declarado feriado estadual, como “dia do colono”. Livros enaltecendo a presença e a contribuição de imigrantes alemães e descendentes foram publicados com chancela oficial ou por uma “Comissão Pró 25 de Julho” (PORTO, 1934; SOVERAL, 1935; ARBEITSGEMEINSCHAFT..., 1936; CENTRO..., 1936). Durante o Estado Novo, após a deposição de Flores da Cunha e a implantação da “campanha de nacionalização” também no Rio Grande do Sul, que, em muitos casos, degenerou em violenta perseguição contra tudo que fosse “alemão”, desapareceu qualquer manifestação político-cultural pela “germanidade”. Terminada a guerra, este processo foi retomado, ainda que de forma lenta. As pesquisas a respeito ainda são embrionárias, e as indicações aqui feitas são lacunares e provisórias. Além disso, deve-se ter em mente que conveniências políticas interferiram, reforçando a necessidade de cuidados em manifestações e atos a respeito, eventualmente registrados. Assim, é sintomática, por exemplo, uma manifestação feita no dia 25 de julho de 1946 na Assembleia Nacional Constituinte. Ainda que lá estivessem dois deputados de sobrenome alemão com vínculos históricos na “colônia alemã” do Rio Grande do Sul, Gaston Englert (PSD) e Arthur Fischer (PTB), foi Osório Tuiuti (com Flores da Cunha, a bancada gaúcha da UDN) quem apresentou congratulações pela passagem do “dia do colono”, enfatizando que essa data foi instituída, em1934, pelo seu agora colega de bancada. Mesmo que tivesse feito referências a todas as correntes imigratórias, destacou que “justa homenagem é prestada ao benemérito colono alemão – grande, se não o maior, fator do rápido progresso sulino” (ANAIS DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1949, p. 198). Mesmo sem poder arrolar indícios – e muito menos fontes comprobatórias –, pode-se aventar a hipótese de que os “representantes” da “colônia alemã” do Rio Grande do Sul não tiveram coragem ou não consideraram oportuno falar sobre o assunto, enquanto um integrante do mais representativo partido de oposição ao status quo que vigorou nos anos anteriores aproveitou o tema para dar uma estocada nos seus adversários. Objetivamente, os eleitores das regiões de colonização alemã se “manifestaram” nas eleições regionais de 1947, elegendo para a Assembleia Constituinte estadual 16 deputados de sobrenome inequivocamente alemão, entre 55, perfazendo quase 30%, um índice, com certeza, superior ao de descendentes de alemães no conjunto da população. 1 Isso, óbvio, não significa que todos eles se sentissem “representantes” dessa parcela da população – cite-se, por exemplo, Otto Alcides Ohlweiler, eleito pelo Partido Comunista Brasileiro, o qual, muito provavelmente, não se preocupava com essa questão. Mas, inversamente, alguns dos eleitos sem sobrenome expressamente alemão também podem ser vistos como 1 Entre os signatários da Constituição estadual de 1947 constam apenas 10 sobrenomes expressamente alemães. [ 312 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS “representantes” dessa população, como, por exemplo, Alcides Flores Soares Junior (UDN), Antônio Campani (PSD)2 e Luiz Alexandre Campagnoni (PRP). Na continuidade, como deputados estaduais da primeira legislatura pós-guerra, vários desses parlamentares defenderam a causa de alemães e descendentes. Como essa história também ainda precisa ser estudada, para uma avaliação mais precisa, cabe referir algumas manifestações reproduzidas fora dos anais da Assembleia, em publicações na forma de folhetos ou brochuras, uma delas, do deputado Wolfram Metzler (1947), do Partido de Representação Popular (PRP), sucedâneo da Ação Integralista Brasileira dos anos 1930. Metzler fora preso durante o Estado Novo por supostas ou efetivas atividades nazistas, vindo agora, como deputado, apresentar sua defesa, a qual, porém, era também uma defesa da população de origem alemã.3 Cabe destacar também a ação do deputado Bruno Born, eleito pela UDN, luterano militante, que em, no mínimo, duas oportunidades se apresentou como advogado da causa aqui abordada. Numa delas, proferiu um discurso “festivo”, no sentido de rememorar o “dia do colono” (BORN, 1948). Considerando que o clima ainda era tenso, a fala foi parecida com a de seu correligionário Osório Tuiuti, no ano anterior, na Câmara dos Deputados, evocando a importância de todas as correntes imigratórias, mas como a data (25 de julho) se refere à chegada dos primeiros alemães a São Leopoldo, o recado subentendido estava claro. Na segunda oportunidade, o tom já foi bem mais incisivo, pois claramente crítico em relação à demora para reconstruir o monumento ao imigrante alemão em São Leopoldo, depredado em 1942 (BORN, 1950). Num campo totalmente diferente da arena política em que desenrolaram os fatos recém citados, cabe referir a existência de um movimento conhecido por “Socorro Europa Faminta”, SEF, centrado no Rio Grande do Sul, entre 1946 e 1949. Ecumênico, reuniu católicos e luteranos num esforço de angariar e remeter produtos e dinheiro para a população da Alemanha assolada pelos efeitos da guerra (FERNANDES, 2005; 2015, p. 413-429; GOODMAN, 2015, p. 113-154). Abstraindo de seu papel caritativo em relação aos alemães, lá da Alemanha, os autores que estudaram essa associação e sua obra teceram algumas considerações sobre intenções e efeitos sobre a população de origem alemã daqui, do Brasil, em especial do Rio Grande do Sul. Evandro Fernandes, ao referir-se ao padre jesuíta Balduíno Rambo, uma das principais lideranças da SEF, escreveu: Entretanto, mais do que uma simples atitude de caridade cristã, a SEF mostrou-se como um recurso para a reconstrução dos antigos laços culturais com a Alemanha, assim como uma possibilidade para o restabelecimento do antigo projeto de germanidade que havia sofrido um profundo revés no Brasil com o desencadeamento da Segunda Guerra Mundial [...]. Pe. Rambo acreditava num projeto de germanidade para as colônias alemãs [do Brasil], apesar dos abalos provocados pela Campanha de Nacionalização do Estado Novo e das tentativas feitas pela Igreja Católica Brasileira em acabar com o germanismo (FERNANDES, 2005, p. 142-143). E acrescentou: Seu pensamento era seguido por pessoas dos mais diversos campos de atuação como igrejas, escolas, comércio, empresas e nos segmentos políticos ligados à etnia alemã. Estes buscavam, no pós-guerra, uma rearticulação de suas ações a nível local e nacional, a fim de conseguir voltar a cultivar os valores culturais alemães, dos quais o discurso germanista era portador (FERNANDES, 2005, p. 143). Glen Goodman, por sua vez, escreveu o seguinte a respeito da SEF: Apesar desse sobrenome italiano, seu pai se chamava Ludwig Alois Campani, originário de Innsbruck/Áustria. Nascido em Porto Alegre, começou sua carreira profissional como balconista na firma comercial de Carlos Naschold, tendo se tornado, posteriormente, caixeiro-viajante dessa firma, com atuação concentrada em regiões de colonização alemã (como já acontecera com seu pai). Foi casado com Ana Sybilla Junges. Em 1949, fez parte da comissão organizadora dos festejos dos 125 anos de imigração alemã (PETRY, 1950, p. 26). Com isso, de fato, foram eleitos, no mínimo, 17 deputados “alemães”, em 1947, perfazendo mais de 30% do total. 3 Mais informações sobre a biografia de Metzler cf. em TONINI, 2003. 2 [ 313 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Os organizadores desenvolveram uma multiplicidade de discursos adotando narrativas da esfera pública brasileira – colocando a SEF e seus benfeitores, claramente, dentro da nação [brasileira] –, mas, ao mesmo tempo, advogando uma nova configuração da germanidade. Essa nova germanidade deixava pouco espaço para clivagens confessionais que haviam dividido a comunidade germanobrasileira antes do Estado Novo.4 Eles tomaram de empréstimo e ressignificaram o “alemão” homogeneizado e imaginado que a campanha de nacionalização havia estabelecido como seu alvo. Nesse sentido, a SEF ajudou a reconfigurar ideias tanto de uma cidadania brasileira quanto de uma identidade alemã em meio ao processo de redemocratização do Brasil (GODMAN, 2015, p. 142). Não se trata, aqui, de analisar a validade ou a correção das interpretações e conclusões desses dois autores, mas apenas de registrar um episódio que, sem dúvida, mobilizou parcelas da população de origem alemã, com efeitos sobre sua autopercepção. Mas, além desses fatores subjetivos, a virada da década de 1940 para de 1950 registrou alguns elementos objetivos que não podem ser esquecidos, neste contexto. Em maio de 1949, foi constituída a República Federal Alemã, isto é, foi criado um novo Estado alemão nos territórios ocupados pelos aliados ocidentais. Isso significava não só o reaparecimento de uma “pátria-mãe”, mas também uma provável retomada de relações diplomáticas normais com o Brasil, trazendo de volta funcionários alemães, que muitas vezes tinham tido alguma influência, direta ou indireta, na vida de alemães e descendentes (as relações diplomáticas foram, formalmente, restabelecidas em 1950, a nova embaixada alemã foi aberta em 1951, e o primeiro consulado pós-guerra em Porto Alegre foi instalado em 1º de setembro de 1952) (BANDEIRA, 1994, p. 53-65; OLIVEIRA, 2005). No ano de 1950, também se registraram as primeiras vitórias judiciais de empresas e cidadãos que tiveram seus bens depredados em agosto de 1942. Após pendenga judicial na qual o governo do Rio Grande do Sul argumentara que a União era responsável pelos estragos, já que, na época, o estado-membro da federação estava sob intervenção federal, o Supremo Tribunal Federal decidiu que caberia ao governo do estado arcar com eventuais indenizações. E a partir deste momento, tribunais gaúchos começaram a tomar decisões favoráveis aos demandantes. No mesmo ano de 1950, o Congresso Nacional decidiu liberar os bens dos “súditos do Eixo”, confiscados por legislação do Estado Novo, em 1942. Ainda que essa devolução não fosse geral e irrestrita, significou um avanço. Tudo isso levou a pequenas modificações no clima de inserção das populações de origem alemã na esfera política. Se nas eleições estaduais de 1947, no Rio Grande do Sul, haviam sido eleitos 16 – na verdade, 17 – deputados de sobrenome alemão, entre um total de 55, esse número recuou nas eleições para o parlamento gaúcho de 1951. Mesmo assim – enfatizando que nomes não são um indicador inequívoco para medir “representação”, ainda que não possam ser desprezados como um elemento que, no mínimo, denota tendências –, os dados não sugerem um enfraquecimento ou uma neutralização da presença das regiões de colonização alemã na arena política. Nas eleições de 1950 para governador do estado, pela primeira vez, desde 1824, um cidadão de sobrenome alemão concorreu ao cargo – Edgar Luiz Schneider, pelo Partido Libertador. E entre os deputados federais gaúchos, a “bancada teuta” passou de dois, em 1945, para quatro, agora, cabendo destacar que os quatro podiam ser considerados representantes efetivos da “colônia alemã”, pois todos eles, com certeza, falavam alemão, e não haviam se comportado como “renegados étnicos” 5, durante a guerra. Também não eram representativos de uma elite socioeconômica ou intelectual encastelada em Porto Alegre, mas, sim, do povo do interior do estado: Wolfram Metzler, havia nascido em Porto Alegre, como médico, porém, clinicara pelo interior; Nestor Jost era de Candelária, e havia atuado também em São Lourenço do Sul; Willy Carlos Fröhlich era de Santa Cruz do Sul; e Germano Dockhorn vinha de Três de Maio, então ainda distrito de Santa Rosa. Sob o ponto de vista da procedência partidária, o primeiro foi eleito pelo PRP, o último pelo PTB, e os dois outros pelo PSD, indicando para um relativo pluralismo políticoideológico. Lembre-se o caráter expressamente interconfessional do empreendimento. Essa é uma expressão que os “germanistas” costumavam aplicar àqueles que, apesar de cidadãos de origem alemã, faziam questão de ignorar – ou até menosprezar ou amaldiçoar – suas origens. 4 5 [ 314 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS As eleições para a segunda legislatura estadual do pós-guerra realizaram-se em 1951. Ao constatar um recuo de 16 [17] deputados com sobrenome alemão, em 1947, para 10, deve-se ressalvar que dois nomes não foram computados nesta contagem. Um é o de Teobaldo Neumann (PTB), pois ele deve ser classificado, de forma inequívoca, como “renegado étnico”, já que, na qualidade de policial durante o Estado Novo, era referido como uma das pessoas com quem os descendentes de alemães menos simpatizavam. Entre os 52 policiais denunciados pelo procurador do estado João Bonumá, em 1947, por arbitrariedades cometidas contra “súditos do Eixo”, durante a guerra, encontram-se 14 sobrenomes inequivocamente alemães, com destaque especial para Neumann e Ernani Baumann (GERTZ, 2018a, p. 208-214). O outro nome de deputado omitido na contagem é o de Pio Müller da Fontoura – neste caso, por causa da “hibridez” do sobrenome, e não por referências desabonadoras entre descendentes de alemães. Infelizmente, não foi possível localizar informações a respeito de sua biografia; na verdade, ele até pode ter exercido alguma “representatividade” da população de origem alemã, pois fora prefeito de Santo Ângelo, antes de ser eleito deputado. Assim como os quatro deputados federais de sobrenome alemão eleitos no ano anterior, os 10 estaduais de 1951 podem ser considerados autênticos representantes da “colônia alemã” – com certeza, nenhum deles era “renegado étnico”. Alberto Hoffmann (PRP) era filho de fruticultores de Ijuí; Alfredo Leandro Carlson (PTB) de Santa Rosa; Ariosto Jaeger (PSD) de Santa Rosa; João Lino Braun (PTB), filho de colonos de Estrela; Helmuth Closs (PRP) de Lajeado; Mário Lampert (PSD) de Lajeado; Norberto Harald Schmidt (PL) de Santa Cruz do Sul; Romeu Roese Scheibe (PSD) de Lajeado/Arroio do Meio; Siegfried Emanuel Heuser (PTB) de Santa Cruz do Sul; Victor Oscar Graeff (UDN) de Passo Fundo/Carazinho. 6 Mais uma vez, temos uma procedência maciça (de fato, exclusiva) do interior do estado, fato que, em tese, reforça a representatividade das regiões “coloniais”. Deve-se destacar também que havia uma distribuição relativamente ecumênica naquilo que diz respeito à filiação partidária desses representantes da população de origem alemã: três deputados de cada um dos dois grandes partidos (PSD e PTB), perfazendo, juntos, 60%, um do PL e também um da UDN; quanto aos dois deputados filiados ao PRP, evidenciavam uma pequena super-representação deste partido quando se verifica sua densidade eleitoral no conjunto do estado. Ainda que Roswithia Weber (2004, p. 133-145) tenha mostrado que as referências ao 25 de julho, em São Leopoldo, tenham sido relativamente tímidas em 1947 e 1948, no ano seguinte “os sinos voltam a repicar” – sem, contudo, terem sido erradicadas todas as arrestas. De qualquer forma, aqueles que estavam mais interessados numa normalização da situação consideraram os resultados, no mínimo, satisfatórios, pois a editora da família Rotermund – envolvida havia década na produção de material impresso para a “colônia alemã” (DREHER, 2014, p. 82-95) – editou uma brochura de 75 páginas, organizada por Leopoldo Petry (1950), fornecendo um quadro dos festejos e dando uma impressão do espírito que os norteou. A publicação inicia com uma fotografia que destaca a presença do governador Walter Jobim junto o monumento ainda não recuperado da depredação sofrida em 1942. Na longa apresentação (p. 1-23, além do “prólogo”, p. III-IV), Leopoldo Petry não só destacou as contribuições de imigrantes alemães e colonizadores descendentes, em diversas áreas da vida humana, mas denunciou, de forma expressa, os erros cometidos durante a guerra contra essa parcela da população gaúcha: “Durante a última guerra mundial, muito teve de sofrer o elemento germânico no sul do Brasil, devido à sua ascendência. As perseguições, as mais injustas, foram movidas não somente a súditos alemães, mas também a brasileiros de origem teuta” (PETRY, 1950, p. 21). Uma comissão organizadora de “nosso dia” publicou longa “proclamação” no Diário de Notícias de Porto Alegre, no dia 24 de julho. Por iniciativa do deputado federal Osório Tuyuty de Oliveira Freitas, os Correios e Telégrafos emitiram três carimbos para homenagear a imigração e colonização alemã – com o monumento ao imigrante em São Leopoldo; o monumento da colonização em Novo Hamburgo; e a casa da Feitoria Velha. O Correio do Povo de Porto Alegre publicou, no dia 26 de julho, longa reportagem com relato do transcurso das comemorações em São Leopoldo. Figuras de destaque do cenário político estiveram Obviamente, neste momento, vale a observação já feita em relação à legislatura de 1947 de que a “representação” da “colônia alemã” não se dá, necessariamente, só através de deputados de sobrenome alemão. Nesta eleição de 1951, cabe citar, no mínimo, Nestor Pereira, originário de Taquara, cuja atuação caberia averiguar sob este ângulo. 6 [ 315 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS presentes e discursaram: o governador Walter Jobim; Edgar Luiz Schneider, deputado estadual, ex-reitor da então Universidade de Porto Alegre; Frederico Guilherme Schmidt, deputado estadual. Na Câmara Federal, o deputado gaúcho Osório Tuyuty de Oliveira Freitas pronunciou longo e detalhado discurso. O poeta Mansueto Bernandi, que havia exercido o cargo de prefeito de São Leopoldo de 1919 a 1923, cometeu uma poesia que começava com a seguinte estrofe: “Rebentos de lusitanos, de alemães e de italianos e de outros grupos arianos disseminados aos mil do norte ao sul do Brasil” (PETRY, 1950, p. 24-43). As últimas 23 páginas da brochura (PETRY, 1950, p. 50-63) foram dedicadas ao monumento ao imigrante em São Leopoldo, que continuava na mesma situação em que o haviam deixado os depredadores de 1942. Através da apresentação da história do próprio monumento, mas, sobretudo, da história dos esforços que vinham sendo desenvolvidos para sua restauração, desde 1946, sem êxito, certamente se pretendeu colocar em evidência as tarefas que estavam colocadas para uma futura mobilização pela causa mais geral da população de origem alemã do estado. As dimensões e o êxito dos festejos forneciam motivo para otimismo. É sob este pano de fundo que deve ser vista a criação de duas instâncias que se mostrariam longevas: o jornal Brasil-Post7, com sede em São Paulo, em 1950, e a Federação dos Centros Culturais 25 de Julho, em 1951, com sede no Rio Grande do Sul (GERTZ, 2018b). Na verdade, trata-se de duas faces da mesma moeda, pois parte muito significativa das pessoas envolvidas nesses dois empreendimentos foram as mesmas, e os organizadores da segunda imaginaram que o jornal seria um importante fator de divulgação da mesma. No decorrer do tempo, fizeram-se sentir, porém, algumas divergências, e até atritos, ainda que não se tivesse chegado a uma ruptura. Naquilo que segue, a atenção se concentrará, exclusivamente, na Federação. Como ela teve vida longa, sobrevivendo até hoje, como FECAB (Federação dos Centros de Cultura Alemã no Brasil); teve uma antecessora de nome muito semelhante, nos anos 1930 (Federação 25 de Julho), e como partes constitutivas, como componentes (já que se apresentava como “federação”) “centros culturais 25 de julho”; e, ainda, pelo fato de que toda essa mobilização (incluindo a fundação do jornal) tivesse girado em torno da “ideia do 25 de julho”, do “25. Juli-Gedanke”, tudo isso tem levado a certa falta de precisão por parte de alguns historiadores.8 Desde meus primeiros escritos sobre o “germanismo” (conceito que tem tudo a ver com a Federação e seus ideólogos e militantes), venho criticando o enfoque historiográfico que costuma supervalorizar essa ideologia, esse movimento. Sua existência e alguma eficácia não podem, evidentemente, ser negadas, de forma alguma, no entanto, não se pode partir do pressuposto de que se algum pastor, padre, jornalista, professor insistisse no tema essa era, ipso facto, a forma de pensar e de agir do conjunto da população de origem alemã. E isso fica, mais uma vez, muito claro na história da Federação dos Centros Culturais 25 de Julho, fundada em 1952 (GERTZ, 2018b). Faço essa afirmação com base na análise de extensa documentação de Fritz Rotermund, o “pai do 25 de julho”, em especial de sua correspondência do ano de 1956. A Federação dos Centros Culturais 25 de Julho significou a rearticulação do movimento “germanista” (em grande parte, as pessoas eram as mesmas da década de 1930). Claro, no pós-guerra, não se encontram mais insistências expressas sobre a preservação genética da pureza étnica, por exemplo. A insistência em definir a principal organização eclesiástica luterana, o Sínodo Riograndense, como “igreja étnica”, “Volkskirche”, foi substituída, ao menos por uma parcela do clero, por uma autocrítica e uma tentativa de “abrasileiramento”. Sem entrar em detalhes, pode-se dizer que os objetivos concretos da Federação eram três: a) manutenção da cultura alemã, com incentivo à literatura, ao canto, ao teatro, ao lazer; b) decretação do 25 de julho como feriado, de preferência do nível municipal até o federal; c) legislação para que as autoridades educacionais permitissem o ensino da língua alemã nas escolas, ao menos naqueles estados com índice significativo de população de origem. 7 8 A respeito do jornal, cf. WOLFF, 2010. Um exemplo dessa falta de precisão, na minha opinião, ocorre na tese de Glen Goodman (2015, p. 155-185). [ 316 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A Federação enfrentou três problemas básicos, desde sua fundação: a) a desconfiança de instâncias diplomáticas alemãs no Brasil; b) a falta de uma base de sustentação material; c) a ausência de “centros culturais” a congregar. Se é verdade que o primeiro cônsul alemão em Porto Alegre, Rudolf Pamperrin, mostrasse certa abertura para uma aproximação e um fomento da cultura e da identidade de alemães e descendentes no Brasil, o consulado de São Paulo e a própria embaixada no Rio de Janeiro ficaram alarmados com acontecimentos envolvendo cultivadores do “movimento 25 de julho”, naquele estado e em Curitiba, de onde, inclusive, foi noticiada a visita de representantes da “colônia alemã” do Chile durante a qual teriam sido registradas manifestações nazistas. Mesmo que, no decorrer dos anos, a representação diplomática tivesse acabado de assumir uma posição menos crítica, a ênfase continuou sendo a de fomentar e difundir uma cultura alemã de alto nível, nos campos cultural e científico, para toda a população brasileira – e não uma cultura alemã “popular” ou folclórica, que devesse atingir, sobretudo, os “alemães” (BARBIAN, 2014, p. 272277; GOODMAN, 2015, p. 176-183). Em todo caso, não há registros de que – ao menos na década de 1950 – a Alemanha tenha dado apoio material para o cultivo do “25 de julho”. Os outros dois problemas enfrentados pela Federação dos Centros Culturais 25 de Julho, a rigor, estão intimamente ligados entre si, pois a falta de uma base de sustentação material derivava justamente da ausência de centros que, com seus filiados, aportassem dinheiro para suas atividades. Historiadores foram induzidos a erro de análise pelo fato de que o Centro Cultural 25 de Julho de Porto Alegre efetivamente deu origem à Federação. A existência deste centro já foi referida em 1949, mas ele viria a ser formalizado em 1951. E foi a partir desse impulso inicial que derivou a ideia e a concretização da Federação, inclusive figuras de destaque nesta última estiveram presentes na fundação daquele, como Fritz Rotermund e Bruno Born. Os analistas, porém, não se deram conta de que a “colônia alemã” de Porto Alegre é uma coisa, e a “colônia alemã” do interior do estado é algo totalmente diferente. Sim, há uma mística de que ambas se compõem de “alemães”, mas – abstraindo de uma pequena elite socioeconômica e intelectual do interior – esta última é composta por “alemães” totalmente diferentes, com interesses econômicos, sociais, políticos, educacionais, culturais, educacionais, com uma “mentalidade” que tem pouco a ver com a população de origem alemã da Capital. Ainda que o Centro Cultural 25 de Julho de Porto Alegre se declarasse defensor dos mesmos princípios que a Federação, não há qualquer dúvida de que ele, muito logo, evoluiu para uma associação cultural-recreativa de massa, interessada em fornecer a seus associados as tradicionais Geselligkeit e Gemühtlichkeit, sociabilidade e “aconchego” alemães, característica que preserva até hoje. Ainda que seus associados pudessem confessar-se, verbalmente, à “germanidade”, dificilmente se preocupariam em ofertar somas consideráveis de dinheiro para a promoção da mesma. Essa indisponibilidade dos porto-alegrenses para financiar um movimento cuja sede se localizaria em São Leopoldo, e cuja utilidade, aparentemente, só uma parte reconhecia, está documentada na correspondência de Fritz Rotermund, o primeiro secretário-geral da Federação, mesmo antes da formalização da mesma (relembrando que se trata do “pai do 25 de julho” e de uma figura central na Federação, não só pelo cargo formalmente exercido). Uma série de cinco cartas trocadas entre Rotermund e Benno Mentz, importante empresário de Porto Alegre, e figura de destaque naquilo que tange à mobilização político-cultural na Capital e nas regiões de colonização alemã do vale do rio dos Sinos, no mínimo desde os festejos do centenário da imigração alemã, em 1924, além de proprietário e mantenedor da Fundação Frederico Mentz (seu pai), constituída de uma enorme quantidade de fontes sobre imigração e colonização alemã no estado, dá uma ideia daquilo que ocorria (RAMOS, 2015). Em carta de 10 de junho de 1951, Rotermund escreveu a Mentz: mais uma vez está se aproximando o 25 de julho, e mais uma vez constato que dependo exclusivamente das minhas limitadas possibilidades para os preparativos e a divulgação. Estou a ponto de afirmar que [agora] dependo mais que nos últimos anos. Lamento esse fato tanto mais por ter vivido na esperança de que em função das atribuições que o Sr. me delegou, me garantiria toda a ajuda e todo o apoio necessário. [ 317 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Numa carta-resposta, com data do dia seguinte, Mentz fez uma série de comentários, lamentando que Rotermund estivesse sozinho, mas não lhe dando uma resposta inequívoca, apenas lembrando tê-lo alertado de que “o trabalho sempre recai sobre alguns poucos que precisam sacrificar-se pela coletividade”. Aparentemente decepcionado com essa resposta, Rotermund voltou à carga, em carta de 13 de junho, reconhecendo que Mentz mantinha a importante instituição que guarda a história de alemães e descendentes no Rio Grande do Sul, mas ponderou que aquilo que “é o mais importante e o mais necessário é a preservação e o estímulo à nossa germanidade 9, a qual se fundamenta na tradição e na língua”, esta seria a divisa do “25 de julho”. Em 21 de março do ano passado [1950], o Sr. se comprometeu, frente a um grupo que estava comigo, a liderar essa tarefa, prometendo disponibilizar um capital de mais de 1.000 contos, a fim de financiar o “movimento 25 de julho”, além de apoiá-lo moralmente. O Sr. me designou não só a presidir esse “movimento”, mas expandi-lo de forma eficiente e sólida. Mas relativo ao apoio financeiro nunca tive uma resposta de sua parte. Numa carta-tréplica de 15 de junho, Mentz tentou justificar-se em relação à ausência de ajuda financeira de sua parte: “Depois do encontro de 21 de março de 1950, só muita pouca gente se mostrou interessada na causa, motivo pelo qual toda a coisa precisou ser repensada em dimensões muito menores”, dando a entender que aquilo que seria possível fazer, nessas condições, caberia à sua própria fundação. Apesar de que essa troca de cartas não tenha levado a um rompimento das relações, Mentz escreveu mais uma, com data de 16 de junho, informando que soube que Rotermund esteve em Porto Alegre, mas não lhe telefonou, “motivo pelo qual é difícil estabelecer uma colaboração”.10 Os centros culturais filiados pelo Brasil a fora poderiam ter sido outra fonte de financiamento. Infelizmente, não foi possível ter acesso à documentação anterior a 1956, mas na deste ano há referências muito esparsas ao citado centro de Porto Alegre, sem qualquer destaque ou entusiasmo – e só. Em outras fontes há referências a centros em Panambi, no Rio Grande do Sul, e em Blumenau, Santa Catarina, no entanto, na relativamente rica correspondência de Rotermund do citado ano não há nenhuma referência a eles, havendo algumas referências a conflitos dentro de grupos supostamente simpáticos ao “25 de julho” em outros estados, como Paraná e São Paulo. Por tudo isso, ao contrário de uma eficaz instância de regermanização das populações de origem alemã, a Federação dos Centos Culturais 25 de Julho não passou de um pequeno grupo de, literalmente, não mais de dez abnegados gaúchos empenhados na causa. 11 Não significa que não tenha havido nenhum vínculo com o conjunto da população de origem alemã ou mesmo só de uma parcela significativa, e que a repercussão de seu trabalho tenha sido totalmente nulo. Um exemplo pode ilustrar uma aceitação relativamente bem-sucedida. Em 1955, foi publicado pela editora Rotermund um cancioneiro com músicas populares alemãs, elaborado por Theo Kleine, chamado Frisch gesungen. Há registros de uma boa vendagem. Neste caso, podemos imaginar que integrantes de corais, pastores e professores tenham adquirido o livro como instrumento útil para seu trabalho cotidiano, para seu lazer, e não por amor à ideologia do “germanismo”. Infelizmente, o espaço não permite fazer uma análise da correspondência de Rotermund, por isso posso apresentar apenas uma avaliação geral, sem possibilidade de transcrever o conteúdo específico da documentação. Uma primeira constatação derivada do manuseio das cartas é a falta de dinheiro, uma lamúria que atravessa as correspondências dos doze meses do ano (1956). Mas estão também registrados fracassos programáticos. O professor Willy Fuchs, responsável pela política educacional das escolas ligadas ao Sínodo Riograndense, e o padre jesuíta Balduíno Rambo tinham afirmado que, em tratativas junto à No texto alemão está a palavra “Deutschtum”. Devo o acesso a essas cartas a Rosangela Cristina Ribeiro Ramos. Elas se encontram no Acervo Benno Mentz – DELFOS – PUCRS. Os grifos estão no original. 11 Nominalmente envolvidos aparecem os nomes de Albano Volkmer, Balduíno Rambo, Bruno Born, C. O. Kortz, Fritz Rotermund, Leopoldo Petry, Theo Kleine. 9 10 [ 318 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul, haviam chegado a um acordo – incluindo uma minuta já redigida – para a edição de um ato legislativo que permitiria o ensino de alemão nas escolas gaúchas, uma importante bandeira da Federação. Só que, de repente, apareceu, no Correio do Povo, um artigo de uma pessoa, identificada na correspondência como “D’Avila”, que pôs tudo a perder, sem que a Federação se sentisse em condições de reagir com qualquer gesto. 12 Somente perto do final do ano, a editora Rotermund conseguiu colocar no mercado um folheto redigido por Leopoldo Petry (1956) intitulado Pátria, imigração e cultura que se posicionou em relação a esse assunto Em várias cartas, Fritz Rotermund destacou o sacrifício que sua empresa fizera para publicar esse panfleto, na esperança de que ele seria vendido em massa, pelo interior do estado, a preço muito barato. Seguiu-se uma grande atividade epistolar para pessoas conhecidas de todos os recantos do Rio Grande do Sul e de outros estados, oferecendo o “produto”. Depois de algum tempo, o próprio Rotermund expôs o resultado: houve apenas uma única resposta positiva, de um grupo de pessoas de Rolante, enviando dinheiro e pedindo alguns exemplares. No mais, fracasso total nas vendas. A maioria das cartas respondendo ao apelo por ajuda à causa do “25 de julho” feito por Rotermund está vazada em termos respeitosos, diplomáticos. Mas várias são claramente críticas, até virulentas. Assim, uma carta do pastor Alfred Simon, de Pelotas, datada de 14 de novembro de 1956, lembra que nos anos 1930 ele editou um jornal que, entre outras coisas, defendia a causa do “25 de julho”, mas quando entrou em rota de colisão com nazistas ninguém veio ajudá-lo; vieram os problemas da guerra, depois da guerra, o prédio da igreja está em estado muito precário, “mas não tomei conhecimento de nenhuma atitude da direção do movimento 25 de julho para ajudar”, motivo pelo qual não só não iria ajudar, mas condenava essa campanha.13 Há também uma grande quantidade de cartas aos deputados estaduais e federais da “bancada teuta” – todas redigidas em alemão –, censurando os parlamentares por falta de empenho a favor da declaração do 25 de julho como feriado e da implantação da língua alemã nas escolas. Há, inclusive, referências aos problemas que estava enfrentando aquele que provavelmente era considerado o mais destacado e erudito ideólogo da causa do “25 de julho”, o padre jesuíta Balduíno Rambo. É que a arquidiocese de Porto Alegre lhe teria imposto silêncio em relação ao tema “germanidade”. Em resumo, aquilo que transparece nas cartas do arquivo de Fritz Rotermund é uma situação de evidente desânimo em relação à Federação dos Centros Culturais 25 de Julho. E essa não é uma impressão apenas daquele que lê essa correspondência agora, cerca de 60 anos depois. Os próprios atores contemporâneos tinham essa sensação. Por isso – para terminar –, apresento alguns pequenos trechos de uma carta que comprova isso. Apesar de Fritz Rotermund ter deixado, formalmente, o cargo de secretáriogeral, em 1955, sendo substituído por Theo Kleine 14, ele continuou sendo a figura central, pois tinha tradição como “pai do movimento 25 de julho”, era empresário do ramo gráfico (que podia patrocinar publicações), mantinha relações com muita gente considerada importante etc. Num primeiro momento, Leopoldo Petry assumira a presidência, mas a passara, muito logo, para Bruno Born, deputado estadual na legislatura iniciada em 1947, fora candidato a deputado federal, em 1951, mas não se elegera, ficando na suplência. Candidatou-se a prefeito de Lajeado, tendo sido eleito. Rotermund e Born eram muito amigos, de forma que a troca de cartas entre eles reflete um clima de muita sinceridade. Em virtude da absoluta falta de espaço, sou obrigado a restringir-me à transcrição de algumas poucas frases de uma longa carta (três páginas) de Rotermund a Born, de 16 de dezembro de 1956. Como se vê no Na correspondência, estão indicados os meses de fevereiro ou março como espaço temporal em que esse texto teria sido publicado. Como ainda não foi possível fazer uma pesquisa a respeito, não há como revelar o conteúdo exato nem identificar o nome completo do autor (teria sido Airton d’Avila Barnasque?). 13 Esta carta, como as demais a serem referidas de agora em diante, faz parte do arquivo Rotermund, depositado no Museu Histórico Visconde de São Leopoldo. 14 Há várias cartas que denotam certa decepção com Kleine, uma delas é explícita: ele simplesmente não teria tempo para dedicar-se à causa, pois era não só professor no Instituto Pré-Teológico, mas também diretor do internato. Além disso, há indícios de que havia algumas diferenças de concepção: Kleine, aparentemente, não se interessava muito pela agitação político-cultural, preferindo produzir materiais para o trabalho prático nas comunidades, como o citado cancioneiro Frisch gesungen. Nas décadas seguintes, Kleine se tornaria o secretário-geral perpétuo (e solitário?) da Federação, destacando-se – além da criação da Casa da Juventude, em Gramado – pela publicação de livros sobre temas ligados à “germanidade”. 12 [ 319 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS próprio texto, ela foi antecedida de outras que trataram do mesmo tema – e denota um clima de decepção, da primeira à última linha. “Há pouco eu revisei, como epístola deste domingo, tua confissão (Beichte) do dia 8 deste mês. Estou acostumado com esse tipo de notícias dignas do Livro de Jó”. “Se temo uma exposição ao ridículo, isso se deve ao fato de que manifestamos, ou havíamos manifestado, uma intenção frente à opinião pública, mas fracassamos na execução”. “Eu chamo a atenção para o fato de que nós nos chamamos Federação dos Centros, e queríamos sê-lo, mas não conseguimos sê-lo nem o somos”.15 “Não há dúvida de que vivemos numa profunda crise econômica, de forma que não deveríamos ficar pechinchando por ajuda financeira. Existe, porém, um mas: percebe-se essa mesma crise quando se trata de gastar em cinema, em apoio a atividades esportivas, em associações recreativas ou em festas?”. Voltou a lamentar o fracasso frente ao caso “D’Ávila”: “O fato de que, naquela oportunidade, a portaria já redigida sobre o ensino da língua não se concretizasse, nos jogou para trás, e nos expôs ao ridículo”. Por tudo isso, “tu mesmo dizes que dificilmente houve um momento tão apropriado quanto o atual para abandonarmos o barco”. “A mim me parece que este é o único caminho que nos resta para sermos justos para com nossa história”. * O leitor atento terá notado que está chegando ao final do texto e não viu nada a respeito dos festejos do “25 de julho” de 1956, anunciados no título. É que, mais uma vez, a evolução da escrita do texto se deu de tal forma que faltou espaço para aquilo que fora anunciado como tema central. Diante do fato de que é necessário encerrar, só resta fazer alguns brevíssimos comentários finais que apontem para a necessidade de retomar o tema, em outra oportunidade. O fato surpreendente desta história é que – mesmo em meio ao clima depressivo na Federação dos Centros Culturais 25 de Julho, a qual tinha como uma de suas principais metas a luta pela transformação da data em feriado, com a consequente celebração de festas alusivas – ocorreram, neste ano de 1956, os maiores atos comemorativos, desde a Segunda Guerra Mundial. Só para exemplificar, além de desfiles, discursos, com a presença de altas autoridades, o Diário de Notícias publicou um encarte de 64 páginas, a Revista do Globo dedicou um editorial e uma matéria de seis páginas (ZUKAUSKAS, 1956). O próprio Fritz Rotermund, que havia enfatizado que não participaria desse “circo” (Rummel), escreveu, em um documento datado de 28 de julho, provavelmente enviado para a Brasil-Post para subsidiar seu noticioso: “De fato, São Leopoldo vivenciou, sobretudo no dia 25 de julho 16, seu ‘grande dia’, numa dimensão que, provavelmente, não vivenciara nem durante os festejos do centenário (1924). Apesar de muitos milhares de pessoas terem assistido ao desfile, deve-se destacar que não ocorreu nenhum acidente ou incidente”. Tudo isso aponta, mais uma vez, para o erro evidente cometido por historiadores ao deduzirem uma suposta eficácia absoluta da ideologia “germanista”, atribuindo ao conteúdo das “falas” de militantes da causa a milagrosa capacidade de gerar realidade. Não existe espaço para desenvolver o raciocínio, mas para uma compreensão adequada das dimensões e do sucesso das comemorações do “25 de julho” em 1956 é necessário abandonar o “germanismo” como variável explicativa, e recorrer a uma análise que leve em consideração estruturas políticas, culturais, sociais, econômicas gerais daquele contexto, seja o nacional, o estadual, o municipal. Quem se restringe à análise das divagações dos “germanistas” não chega a lugar algum. Referências: Anais da Assembleia Constituinte (vol. XIX). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1949. ARBEITSGEMEINSCHAFT 25. 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[ 322 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A Revista Veja e o Plebiscito de 1993 Roberto Biluczyk1 Resumo: A imprensa se constitui em um excelente objeto de pesquisa ao historiador. O uso de periódicos para esse fim é reflexo das novas possibilidades surgidas no século XX, com os estudos desempenhados pelo Movimento dos Annales e a renovação cultural marxista. O olhar apurado do historiador ajuda a compor o conhecimento que pode ser extraído de páginas de revistas e jornais, contribuindo ao entendimento do desenvolvimento da sociedade e suas percepções. Esta pesquisa tem por objetivo analisar as representações do contexto histórico que conduziu e viabilizou a realização do Plebiscito sobre a Forma e o Sistema de Governo, em 1993, através da cobertura política efetuada pela revista Veja. Embora venha ganhando força ao longo dos anos, a pesquisa em periódicos requer grande atenção a fatores, como a parcialidade. Sobre isso, vários trabalhos acadêmicos se ocupam, ao retratarem os recursos de manipulação empregados por esse tipo de informativo. Outra barreira pode se apresentar na confusão entre História e memória, onde a segunda diz respeito a experiências pessoais do pesquisador, as quais podem se confundir com o panorama histórico e o contexto geral. A História do Tempo Presente vem conquistando lugar, neste contexto, dentro das observações contemporâneas, buscando a superação das barreiras outrora impostas. No Plebiscito, a campanha foi promovida em curto espaço de tempo, contando com horário político em rádio e televisão, onde cada uma das correntes buscou convencer o eleitor da eficácia da implantação de seu ideário. A disputa envolvia a implantação da monarquia ou a manutenção da república, bem como a permanência do presidencialismo ou a instalação do sistema parlamentarista, discussão viabilizada e prevista na Constituição Federal de 1988. Ante a tão delicado tema, se observados os movimentos de uma eleição tradicional, reservou-se engajamento aquém do esperado. Muito por essa razão, o resultado da votação não apresentou surpresas: a república presidencialista se consagrou no voto, enterrando as aspirações dos monarquistas e dos parlamentaristas, naquele momento. A cobertura de Veja sobre os acontecimentos também tem muito a dizer sobre a importância designada à decisão tomada naquele 21 de abril. Dentro do assunto, considerando as representações impressas na fonte, a pesquisa, a qual ainda se encontra em andamento, demarca fatores relevantes, com peculiar interesse aos estudos da História do Brasil. Após mais de cem anos da Proclamação da República e trinta anos depois de o parlamentarismo ser rechaçado por meio de uma consulta popular, o eleitor brasileiro foi chamado às urnas para votar no Plebiscito sobre a Forma e o Sistema de Governo, em 21 de abril de 1993. O inusitado expediente, viabilizado pela Constituição de 1988, fez com que a população tivesse oportunidade de escolher entre a Monarquia e a República, o presidencialismo e o parlamentarismo. Este artigo objetiva analisar o contexto histórico que conduziu e viabilizou a realização do Plebiscito, através das representações percebidas pela cobertura política praticada pela revista Veja. Naquele ano, o semanário publicado pela Editora Abril completava vinte e cinco anos de existência. Além disso, contava com o prestígio atribuído às denúncias que publicou e que ajudaram a derrubar do poder, no final de 1992, o presidente da República, Fernando Collor de Mello. Dessa maneira, emergia de forma peculiar no cenário editorial brasileiro, conferindo credibilidade especial às suas escolhas e posicionamentos, dentro das representações por ela praticadas. Breve contextualização política e legal do Brasil Ao passar por diversos estatutos, ao longo de sua História, o Brasil contou com um regime monárquico de governo, entre 1822 e 1889. Embora emancipado de Portugal, seu primeiro governante foi Dom Pedro I, da dinastia de Bragança. Por sua origem portuguesa, enfrentou o sentimento antilusitano desenvolvido após a instabilidade de seu governo. Dessa forma, renunciou em favor de seu filho Dom Pedro II, em 1831. O novo imperador contava com apenas cinco anos de idade. 1 Acadêmico do 8º nível do curso de História (L) da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: 104666@upf.br. [ 323 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Por isso, houve necessidade do desenvolvimento das regências, entre 1831 e 1840. “O período regencial é tradicionalmente visto sob perspectiva negativa, que o caracteriza como época anárquica e anômala, como empecilho à formação e à preservação da nação brasileira”. (BASILE, 2011, p. 55). Durante os governos regenciais, inúmeras e intensas revolta nas províncias, a exemplo da Farroupilha, da Cabanagem, da Balaiada e da Sabinada, entre outras. Apesar disso, com o desenvolvimento de novas pesquisas no âmbito histórico, a visão negativa sobre o período, tido como sala de espera à maioridade do legítimo imperador, vem paulatinamente se transformando. (BASILE, 2011, p. 56). A antecipação da maioridade de Dom Pedro II permitiu que ele assumisse o poder em 1840. Seguiria no cargo de imperador pelos quarenta e nove anos seguintes. Inicialmente, “D. Pedro II, muito jovem e sem grande experiência política, sofreu fortemente a influência dos políticos que o cercavam” (WERNET, 1997, p. 77). Nos últimos anos, especialmente após a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870), enfrentou descontentamentos, os quais incentivariam o movimento republicano. Historiadores como Dolhnikoff (2017, p. 153) afirmam que a monarquia brasileira tinha forte caráter elitista, garantindo a normatização da vida social e política, definida em meio a um cenário de disputas, divergências, crises e acordos, em uma sociedade hierarquizada, ou seja, desigual, com sustentação da ordem escravista. Esse modelo se amparava em uma estrutura jurídica e política que se utilizava de valores e do vocabulário liberal – liberdade, direito, entre outros. Assim, para Napolitano (2017, p. 9), toda essa contradição gerou forte desgaste no sistema monárquico, favorecendo a efervescência de ideias ligadas à proposta republicana e ao abolicionismo. Em 1889, a República seria implantada no Brasil. Sem consideráveis transformações nas posições ocupadas pelos atores do cenário político, apesar dos múltiplos e divergentes interesses, a mudança mais significativa foi a subtração da figura do imperador. O legado de atraso não seria, portanto, combatido por aqueles que se beneficiavam dessas estruturas consideradas arcaicas (NAPOLITANO, 2017, p. 8). Considerou-se, assim, como uma “obra de conciliação entre vitoriosos e derrotados” (LEMOS, 2009, p. 437). A Primeira República foi caracterizada pela dominância das oligarquias rurais do Sudeste. Em seus primeiros anos, porém, os militares, condutores do golpe que derrubou a monarquia, foram os primeiros mandatários. Seu processo político classifica-se como liberalismo oligárquico: a “coexistência de uma Constituição liberal com práticas políticas oligárquicas” (RESENDE, 2008, p. 91), aspectos tradicionalmente contraditórios. Os partidos políticos possuíam caráter estadual, com dominância do Partido Republicano Paulista e do Partido Republicano Mineiro. Após apresentar sinais de desequilíbrio nos anos 1920, novos personagens políticos contribuem com a mudança que se observaria em 1930. O sul-rio-grandense Getúlio Vargas ascende ao poder por meio da Revolução de 1930, mecanismo que não caracterizou alteração das relações de produção econômica, nem em substituição imediata de uma classe na instância política (FAUSTO, 2010, p. 116). Apresentando-se como um governo provisório, encarou resistências das antigas oligarquias dominantes, em especial a paulista. Entretanto, por meio de uma nova postura, permitiu uma radical mudança no país. Vargas instala, em 1937, a ditadura do Estado Novo. Em sua busca de legitimação, proporciona novas possibilidades às classes antigamente excluídas, como os trabalhadores. O Trabalhismo faz o Estado se antecipar a movimentos populares, concedendo novas leis em benefício do trabalhador (FERREIRA, 1997). A propaganda estatal, com inspiração nos regimes totalitários que assolavam a Europa de então, torna-se eficaz mecanismo governamental. “O uso dos meios de comunicação tinha como objetivo legitimar o Estado Novo e conquistar o apoio dos trabalhadores à política varguista” (CAPELATO, 1999, p. 171). Após a queda de Vargas, em 1945, as ideias do antigo presidente seguiram influenciando o panorama político nacional, através da composição de três partidos de atuação e relevância nacional – e não mais estadual, como antes de 1930: PSD e PTB, com inspiração getulista, e UDN, como opositora (FICO, 2016, p. 22). A partir de então, os governantes seriam eleitos pelo voto popular. Em 1951, o próprio Vargas ganharia as eleições e retornaria ao cargo pela via democrática, enfrentando crises, não concluindo o mandato, devido a seu suicídio. Seu substituto foi Café Filho, o vice. [ 324 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Juscelino Kubitschek, por sua vez, seria o mais bem-sucedido dos mandatários, exercendo sua governança do início ao fim do período delimitado, dentro do jogo democrático. Em 1961, a renúncia de Jânio Quadros causaria novo embate a expor as fragilidades da democracia brasileira. João Goulart, o vice, visto por setores da sociedade, como os militares, com desconfiança, estava em visita à China, de regime comunista, quando Jânio deixa o cargo. Após a Campanha da Legalidade, liderada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, Jango, como era conhecido, toma posse. No entanto, tem seus poderes limitados pela implantação do parlamentarismo, a partir de 1961. Desse modo, o parlamentarismo, proposto por muitos como uma fórmula capaz de dar maior flexibilidade ao sistema político, entrou em vigor pela porta dos fundos. Utilizado como simples expediente para resolver uma crise não poderia durar muito, como, de fato, não durou. (FAUSTO, 2004, p. 443). Descontente com o expediente que lhe fora imposto como condição à posse, durante todo o período, “de setembro de 1961 a janeiro de 1963, Jango manobrou cuidadosamente a fim de recuperar os poderes presidenciais, ganhando aprovação popular em um plebiscito para a abolição do Ato Adicional que havia estabelecido o sistema parlamentar” (SKIDMORE, 2007, p. 264). Desorganizado, o parlamentarismo do período contou com gestões conturbadas e polêmicas. Realizou-se em 6 de janeiro de 1963, um plebiscito que consolidou no voto popular o retorno do modelo presidencialista. Jango teria, finalmente, a oportunidade de exercer plenamente seu mandato. Entretanto, o governo Goulart fracassa em sua tentativa de promover profundas reformas, sendo derrubado em 1964 pelo golpe militar que implantaria uma ditadura militar de vinte e um anos no país. Durante a ditadura, manifestações sociais e democráticas foram fortemente reprimidas. A ebulição de movimentos como o “Diretas Já”, em 1983 e 1984, visavam o retorno das eleições para presidente, contrabalançando com as promessas de reabertura advindas ainda do final dos anos 1970. Tancredo Neves, eleito indiretamente em 1985, não tomaria posse, ao adoecer e falecer, logo em seguida. Com isso, José Sarney, seu vice, assumiu a presidência. A primeira eleição direta após vinte e nove anos elege Fernando Collor de Mello como presidente, em 1989. Marcado por instabilidade econômica e denúncias de corrupção, o governante renuncia pouco antes da conclusão de sua deposição, no final de 1992. Em seu lugar Itamar Franco, o vice, assume a presidência, já com a missão de encaminhar o Plebiscito previsto para 1993. Desde 1824, o Brasil contou com sete Constituições ao longo de sua história política. A primeira delas regeu o período monárquico. Com a Proclamação da República, uma nova Carta de leis se fez necessária, para atender novos anseios relativos à transformação da forma de governo. Inspirada no modelo norteamericano, configurou uma República Federativa liberal, (FAUSTO, 2015, p. 141). Já em 1934, o governo Vargas instalou um novo conjunto de leis, abandonando-o em favor de uma nova e transformada Carta em 1937, com a ditadura do Estado Novo. Com o fim do regime ditatorial varguista, em 1946, a Constituição deixa para trás princípios da carta anterior, vertendo-se para a questão democrática liberal, caracterizando-se por sua “tendência a uma democracia de leve conteúdo social” (SILVA, 1989, p. 20). Em 1967 é a vez do conjunto de leis da ditadura civil-militar ser outorgado, privilegiando os interesses dos mandatários ditadores. A atual Constituição está em vigor desde 1988, fruto da reunião de uma Assembleia Nacional Constituinte. De acordo com Fausto, “Havia um anseio de que ela não só fixasse os direitos dos cidadãos e das instituições básicas do país, como resolvesse muitos problemas fora de seu alcance.” (FAUSTO, 2004, p. 519). Por isso, a Assembleia ganhou amplo destaque no exercício de suas funções. O Artigo 2, Título X, da Carta de 1988, previa que no ano de 1993 ocorreria um plebiscito a fim de que a população pudesse deliberar sobre a forma e o sistema de governo. “No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de [ 325 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.” (BRASIL, 1988). Mais tarde, em 1992, a data da eleição foi antecipada para 21 de abril. A realização do Plebiscito A realização do Plebiscito em 1993 oportunizou ao eleitor a escolha da forma e do sistema de governo. A votação apresentava a opção entre a Monarquia e a República, o presidencialismo e o parlamentarismo, escolhidas separadamente no espaço da mesma cédula (CARVALHO, 2010). A disposição das informações no papel ainda contemplava a possibilidade da escolha de uma monarquia presidencialista. No entanto, a lei que regulamentou o processo não versava sobre a ideia, considerada, portanto, inexistente – logo, inviável. A concretização do processo eleitoral, em abril de 1993, coincidiu com um momento de instabilidade e enfraquecimento das instituições brasileiras, observadas com o longo desgaste do presidente Fernando Collor e a recente instalação do vice, Itamar Franco. Assim, a campanha foi realizada em curto espaço de tempo, com utilização de horário político em rádio e televisão. Por mais que entre a aprovação do Plebiscito e a realização do mesmo tivessem se passado cinco anos, os assuntos e eventuais discussões pertinentes não foram aprofundados no período. Na última hora, portanto, cada uma das frentes buscou convencer o eleitor dos pontos positivos de seu ideário e dos pontos negativos associados às demais ideias em concorrência (CARVALHO, 2010). A realização da votação se relaciona com a articulação do deputado federal constituinte Cunha Bueno (PDS-SP), o qual viabilizou a proposta de remoção de uma Cláusula Pétrea, datada de 1889, que impedia a contestação da República (NÉMETH-TORRES, 2008). Com isso, trazia a ideia de realizar um Plebiscito, a fim de que a população escolhesse entre a República e a Monarquia, sua forma de governo preferida. Sem crédito entre os constituintes, a ideia ganhou força ao obter o apoio dos parlamentaristas. O debate sobre o sistema de governo no âmbito da Assembleia Constituinte já havia aclamado a escolha pelo presidencialismo. Com isso, portanto, o parlamentarismo foi reprovado como sistema de governo para o Brasil. Insatisfeitos, os parlamentaristas se uniram com Cunha Bueno em prol da proposta plebiscitária, contemplando formas e sistemas de governo na mesma votação. A ideia foi, então, aprovada com ampla margem (NÉMETH-TORRES, 2008). Em fevereiro de 1993, com a regulamentação da votação, as frentes começaram a materializar suas campanhas. Os monarquistas parlamentaristas, por exemplo, elaboraram seus trabalhos enfatizando membros da Família Real, sem especificar quem seria o rei em caso de vitória da causa. Isso se deve pelas históricas desavenças familiares que separaram a realeza em dois ramos. Dentro dos próprios ramos havia divergências ideológicas, a exemplo da filiação de Dom Luiz Gastão e Dom Bertrand, o primeiro e o segundo da lista de sucessão oficial dos Orleans e Bragança, à TFP – Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – organização de extrema direita composta por católicos radicais. Apesar disso, Dom Luiz era concorrente declarado ao cargo (NEMETH-TORRES, 2008). Cunha Bueno seguia sendo a principal liderança em defesa da ideia monárquica. Já entre os republicanos parlamentaristas, o apoio dos mais diversos políticos da época tornava a frente multipartidária. O PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira – era, no entanto, o principal envolvido na defesa da corrente (CARVALHO, 2010). A frente salientava em sua defesa, ataques ao presidencialismo, taxando-o de corrupto, resgatando a lembrança do governo que havia sido deposto recentemente. No entanto, o movimento teve dificuldade em conciliar seu ideário com a explicação de informações e métodos complexos relativos ao sistema e desconhecidos do grande público, como a moção de desconfiança e a dissolução de um governo impopular. Tais fatores eram vistos como positivos pelos defensores (SERRA, 1993, pp. 13-14), mas confundiam a opinião popular. Por isso, Miguel (1996) enfatiza que “A proposta da frente parlamentarista pareceu complicada para o telespectador brasileiro” (MIGUEL, 1996, p. 30), destacando a importância da campanha televisiva na construção do conhecimento eleitoral. Por fim, os republicanos presidencialistas contavam com o slogan “Diretas Sempre”, alusivo ao movimento Diretas Já. Seus principais apoiadores, como Darcy Ribeiro, acusavam os parlamentaristas de [ 326 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS querem praticar um golpe através do Plebiscito, desde a concepção do pleito eleitoral até ao ideário inconsistente, em suas visões (RIBEIRO, 1993, p. 109). A monarquia também não era poupada em críticas por Ribeiro, ao salientar sua preferência pela manutenção do status quo: “É de chorar, porém, porque o aventureirismo parlamentarista poderá confundir o povo, seja divertindo com a brincadeira carnavalesca do retorno à monarquia, seja enganando com promessas milagrosas de um governo parlamentarista perfeito” (RIBEIRO, 1993, p. 110). Assim como os parlamentaristas, constituíam-se de membros de diversos partidos, apresentando dificuldade em unificar seu discurso público. O resultado não surpreendeu: a república presidencialista ganhou com relevantes percentuais. O índice de abstenção foi grande. Conforme Miguel (1996), “Poucas campanhas políticas encontraram um eleitorado tão desmotivado quanto a do plebiscito do dia 21 de abril de 1993” (MIGUEL, 1996, p. 1). Isso tudo demonstra falta de engajamento da população no processo, justificando-se pela pouca familiaridade do eleitor frente aos assuntos em questão. A cobertura de Veja sobre os acontecimentos também tem muito a dizer sobre a importância designada à decisão tomada naquele abril. A revista Veja: representações sobre o Plebiscito e a pesquisa histórica pela imprensa Os estudos historiográficos proporcionados pelo Movimento dos Annales e a renovação cultural marxista, ao longo do século XX, tornaram possível a utilização de periódicos da imprensa como fontes de pesquisa. Através de jornais e revistas pode-se perceber como se dava a visão de um evento histórico em seu próprio tempo, auxiliando na compreensão do desenvolvimento social (DE LUCA, 2008, p. 111). A possibilidade do uso de fatos relativamente recentes, tratados a partir da chamada História do Tempo Presente, viabilizou o surgimento de novos trabalhos. A proximidade temporal do pesquisador com o objeto de estudo deixou de ser tratada de forma negativa. Assim, a falta de distância, ao invés de um inconveniente, pode ser um instrumento de auxílio importante para um maior entendimento da realidade estudada, de maneira a superar a descontinuidade fundamental, que ordinariamente separa o instrumental intelectual, afetivo e psíquico do historiador e aqueles que fazem a história. (CHARTIER apud FERREIRA, 2000). Desse modo, a História pode contribuir de maneira especial à produção e organização de conhecimento, uma vez que, sendo contemporâneo ao acontecimento estudado ou estando mais próximo dele, o historiador pode recuperar dados que forneçam a imperativa fundamentação à pesquisa. O pesquisador se coloca como uma testemunha ocular da História em busca da superação de paixões, portando instrumental historiográfico de qualidade para contemplar todo o processo histórico. A pesquisa em periódicos requer atenção redobrada a fatores, como a parcialidade peculiar aos veículos de imprensa e a eventual confusão entre História e memória, onde a segunda diz respeito a experiências pessoais do pesquisador. Com o uso da revista Veja, a atenção não é diferente. Lançada em 1968, a publicação era tida como inovadora em seu mercado, pois “Era uma revista cheia de texto, que inaugurava no Brasil o gênero das Newsweeklies, revistas semanais de informação.” (CORRÊA, 2012, p. 218). O estranhamento inicial do público foi inevitável, uma vez que suas principais concorrentes de sucesso – O Cruzeiro e Manchete – utilizavam em suas páginas mais imagens e menos textos. Com o tempo, após pesados investimentos oriundos de sua editora, a Abril, consolidou-se no mercado, inspirando concorrentes, como IstoÉ e Época (CORRÊA, 2012, p. 222). O comportamento da revista desperta o interesse de pesquisadores, pela quantidade de informações perceptíveis em seus textos e imagens, utilizando técnicas metodológicas de análise. Nem sempre essas informações se limitam a uma simples notícia. Os jornais e as revistas muitas vezes apresentam reflexos de uma filiação partidária, oculta em seu discurso auto atribuído de “simples veículo de imprensa” (SILVA, [ 327 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 2005, p. 81). “As mídias não transmitem o que ocorre na realidade social, elas impõem o que constroem do espaço público” (CHARAUDEAU, 2015, p. 19). Por meio da Análise de Conteúdo e da Análise de Discurso, o pesquisador na área da História pode extrair os conhecimentos necessários para a composição de sua pesquisa. “Os textos jornalísticos devem ser compreendidos como uma representação que deixa entrever a sociedade da época retratada e as atitudes ali introjetadas”. (KARAWEJCZYK, 2010, p. 136). Ao que confere a realização do Plebiscito sobre a Forma e o Sistema de Governo, foram analisadas quinze edições da revista Veja, datadas de janeiro a maio de 1993. Por elas, é possível perceber as incertezas que regiam os acordes iniciais da disputa, ainda sem regulamentação no mês de janeiro. No campo das dúvidas, Veja apresenta em suas páginas dados de pesquisa, os quais indicam certo favoritismo da República parlamentarista. Acredita-se que tal fato se deva ao recente desgaste natural da imagem do presidencialismo naquele momento, motivado pela deposição do presidente anterior. Também se nota certo desprezo na abordagem da publicação em relação ao ideário monarquista. Considerável espaço é dedicado à apresentação da família Orleans e Bragança, em seus “amores, intrigas e estilo de vida”, como destaca o semanário. O tom folhetinesco e a pouca crença na seriedade dos monarquistas naquela eleição são fatores criticados, inclusive, por leitores na seção de “Cartas”. Com a regulamentação do Plebiscito, em 3 de fevereiro, a campanha se inicia de fato. Quantidade considerável de matérias salientavam que as campanhas não agradavam, por sua superficialidade e falta de concretude. Inúmeras referências negativas são feitas ao longo do período. Sem perspectiva de que a campanha deslanche e contribua para a erudição política do leitor/eleitor, o semanário publica seu próprio guia, a fim de explicar pontos de concordância e discordância com o discurso das frentes, um mês antes da eleição. Na medida em que o Parlamentarismo tem dificuldades em explicar suas ideias ao grande público, o conteúdo de Veja critica a corrente com mais veemência. Se inicialmente, procura reforçar a ideia de forma positiva, posteriormente expõe suas múltiplas fraquezas em sua eventual aplicação no cenário nacional. Nem por isso faz apologia aos presidencialistas. Igualmente critica as frentes, como também aumenta o tom contra a própria realização da votação. O Plebiscito passa e o enfoque das reportagens incide sobre a economia no governo Itamar Franco – às vésperas do Plano Real – e a reforma constitucional de outubro – já dispensada da alteração da forma e no sistema de governo, devido ao resultado favorável à República presidencialista. Com isso, pode-se entender que a cobertura do semanário sobre o assunto reflete o ritmo da campanha e a postura do eleitor, mesmo quando as paixões que impedem o pleno exercício da imparcialidade jornalística nos periódicos não são tão acentuadas, como no caso do Plebiscito. Ou seja, por meio da postura de Veja, o Plebiscito pode ser percebido em todas as suas nuances, colaborando para a pesquisa do historiador, o qual, com a adoção de critérios minuciosos, pode fazer uso desse recurso, especialmente para retratar pesquisas da História do Tempo Presente. Referências BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2000. BASILE, Marcelo. O Laboratório da Nação: A Era Regencial (1831-1840). In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial, volume II (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 53119. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Emenda Constitucional nº 2, de 25 de agosto de 1992. 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Todavia, sempre é importante analisar as condições específicas em que ocorrem esses processos migratórios e os fatores que os influenciam. Nesse sentido, este artigo aborda a migração na região do Vale do Rio do Peixe no início do século XX com o objetivo de compreender as características da Frente Pioneira que marcaram a forma de colonização desse movimento migratório. Para a elaboração desse trabalho, foram analisadas várias fontes bibliográficas e teóricas que abordam o assunto estudado. Verifica-se que ocorreram vários momentos de fricção entre os autóctones e as companhias colonizadoras e que a Frente Pioneira de colonização mudou o perfil de produção e da cultura de região do Vale do Rio do Peixe, sendo que as modificações ocorridas perduram até os dias de hoje. Palavras-chave: Migração, frente pioneira, Vale do Rio do Peixe. REGIÃO OESTE CATARINENSE O atual território do oeste catarinense, como grande parte do interior brasileiro, permaneceu por longos anos sem ser ocupado. Havia em Santa Catarina quatro grandes grupos indígenas que habitavam o território: os Carijó, no litoral; os Xokleng nas serras Geral e do Mar, planalto norte, planalto serrano e nas regiões do Médio e do Alto Rio Itapocu, Itajaí e Mirim; os Guarani, na região ribeirinha do rio Uruguai, desde Peperi-Guaçu até as proximidades da atual cidade de Concórdia e; os Kaingang, nas regiões altas do oeste catarinense, cobertas parcialmente por pinheiros, próximas ao estado do Paraná. Nos territórios do vale do Rio do Peixe havia a presença tão somente dos Kaingang (BILIBIO, 2017). A distância e ausência de adequado transporte para bens que poderiam ser produzidos fizeram com que o território do vale do Rio do Peixe ficasse desabitado por mais de três séculos. Essa região do meio oeste catarinense, antes da guerra do contestado, pertencia ao estado do Paraná e, em 15 de fevereiro de 1905, o governo do Paraná, por meio do Decreto nº47, fundou uma colônia na região da foz do rio do Peixe, com área de cerca de 12.000 hectares, para promover o povoamento, sendo que tal situação só se alterou com o início da construção da estrada de ferro no vale do Rio do Peixe (BILIBIO, 2017). FERROVIA COLONIZADORA O fator que impulsionou a colonização do oeste catarinense foi essa construção da estrada de ferro, cujas obras tiveram início em 1908, tendo como responsável pela construção do trecho catarinense, a empresa norte-americana Brazil Railway Company. A obra foi conhecida como “ferrovia colonizadora”. Ao término da construção da estrada de ferro, totalizavam cerca de dez mil trabalhadores recrutados pela empresa construtora, sendo que a partir da conclusão, muitos se espalharam pela região e provocaram grande miscigenação entre a massa predominantemente masculina e as índias locais. Tal população levava uma vida bastante simples, cultivava a terra através de sucessivos desmatamentos, visando à subsistência (RADIN, 2001). Essa população foi vista pelas autoridades e opinião pública como incapaz ou imprópria para o aproveitamento econômico do território. Por seu modo de vida, sua cultura e a sua forma de lidar com a produção, os caboclos foram representados como pessoas do sertão, preguiçosas, atrasadas, rudes, violentas 1 Licenciado em História pela UNOESC e Mestrando em História pela UPF. [ 331 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS e, em suma, inadequadas para promover o progresso da região, como imaginavam as autoridades. (BILIBIO, 2017). Tal elemento humano, que habitava essa região, não era considerado proprietário das terras que ocupava, mas sim um posseiro, intruso, sem cultura e marginalizado. Os colonos, Por sua vez, eram representados como trabalhadores, ordeiros, progressistas e mais preparados para difundir a “civilização”, a exemplo do que teria acorrido nas antigas áreas das colônias do Sul. (BILIBIO, 2017). Salienta-se que, quando se fala de colonização, reporta-se à relação de colonizadores e colonizados. O avanço do processo de colonização intensificou a apropriação privada da terra, fato que se constituiu em um novo modelo. Com ele, o modo de vida das populações nativas se enfraqueceu sobremaneira e o dos colonos foi firmando sua hegemonia (BILIBIO, 2017). A companhia norte-americana Brazil Railway Company recebeu como pagamento, sob forma de concessão, quinze quilômetros de cada lado da estrada, sem ser levada em conta qualquer posse anterior, legalizada ou não. Além disso, a mesma empresa teve como subsidiária a Brazil Development & Colonization que iniciou a apropriação territorial, encontrando muitos proprietários e posseiros às margens da estrada de ferro. Perante a situação, esses últimos foram desalojados. Foi então, a partir da construção dessa estrada, que cortou o estado catarinense ao longo de todo o Vale do Rio do Peixe, que se iniciou o processo colonizador oestino (PIAZZA, 1983). A empresa construtora da estrada de ferro reivindicou junto aos governos do Paraná e de Santa Catarina as terras que faltavam. Cabe mencionarmos aqui que o governo paranaense, a partir de 1911, à revelia do governo catarinense, passou a expedir títulos (terrenos já demarcados em ambos os lados da ferrovia nas duas margens do Rio do Peixe) à Companhia. Diante destes fatos, o governo autorizou a venda, em grandes glebas, a particulares, das terras concedidas, para que se formassem empresas colonizadoras próprias. Perante isso é que a Companhia construtora da ferrovia criou à subsidiária Brazil Development and Colonization Company, cedendo-lhe a maior parte das terras a que tinha direito. INÍCIO DA COLONIZAÇÃO E POVOAMENTO Enquanto perdurou o movimento do Contestado (1912-1915), os programas de colonização do Vale do Rio do Peixe e oeste ficaram paralisados. No ano de 1917, o governo deu um impulso para que as regiões fossem ocupadas, criando os municípios de Cruzeiro (hoje Joaçaba) e Chapecó. As empresas subsidiárias da construtora da estrada de ferro, além de passarem a implantar projetos de colonização diretamente, também passaram a transferir suas concessões a outras empresas colonizadoras que, naquele momento, estavam se estruturando no Rio Grande do Sul. O processo colonizador, interessando o oeste do Estado, somente começou de forma intensa em 1920. Primeiramente, foram feitas concessões pelo governo do Paraná e, mais tarde, pelo governo catarinense (CEPA, 1990). Nessa data, a região era povoada por caboclos e índios, os quais, com a colonização, buscaram se instalar em locais mais distantes. A empresa construtora da ferrovia repassou várias concessões a outras colonizadoras gaúchas e boa parte delas mantiveram suas sedes naquele Estado ou em cidades do interior. Algumas das empresas colonizadoras que atuaram nesta região foram: Bertaso, Chapecó-Peperi LTDA, Mosele, Theodore Capele. Além dessas citadas, outras de importância menor atuaram na região. Os donos das empresas de colonização no Rio Grande do Sul, diante da dificuldade de obter novas áreas para comercialização naquele Estado, passaram a atuar na venda das terras desocupadas no oeste catarinense. (RADIN, 2001). Ao se referir ao processo colonizador, impulsionado a partir de 1920, CEPA faz o seguinte comentário: [ 332 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS [...] não chegou a caracterizar uma marcha para o Oeste. Pelo contrário, iniciou-se predominantemente no sentido sulnorte, com os primeiros núcleos instalando-se no Vale do Rio do Peixe e no Alto Uruguai; a partir daí, as frentes deslocavam-se tanto para o oeste quanto para o norte (CERPA, 1990, p.23). Gaúchos e seus descendentes se fixaram no oeste catarinense, definindo o perfil cultural do habitante como “cataúcho”, uma mescla de gaúcho catarinense ao lado do catarinense gaúcho, sendo mais forte e duradoura a tradição sulista dos gaúchos em hábitos alimentares e folclore tradicionalistas (HACK, 2008). Sendo assim, a colonização em Santa Catarina e, em especial no Vale do Rio do Peixe, deu-se basicamente por imigrantes vindos do Rio Grande Sul no início do século XX. Essa emigração ocorreu em virtude da falta de terras para as famílias dos colonos, uma vez que as famílias iam crescendo e o sustento pela produção agrícola começou a ser ameaçado. Uma prática comum das famílias nesse período, que até então não tinham métodos eficientes para o controle da natalidade e mantiam a visão de que filhos consistiam em uma fonte de mão de obra para o trabalho na lavoura, e a para isso era necessário uma grande quantidade de filhos. Ocorre que os filhos dos colonos iam constituindo novas famílias a necessidade de novas terras ficava eminente. Dessa forma, o excedente populacional e as dificuldades do mundo que os cercava fez com que as famílias migrassem. As companhias colonizadoras estimulavam entre os colonos a ideia de que morar em novas terras seria a possibilidade de encontrar um mundo melhor – a Cocanha. Com isso, iniciou-se a migração para o oeste catarinense. Podemos perceber que essa migração dos colonos gaúchos, em especial, foi de certa forma uma “migração forçada”. Várias são as matrizes teóricas que se debruçam sobre esse fenômeno. Para Gaudemar (1977), a migração está vinculada à mobilidade do trabalho, ou seja, à propriedade que todo homem possui de vender sua força de trabalho e se deslocar de acordo com as regras ditadas pelo capital: A circulação das forças de trabalho é o momento da submissão do trabalhador às exigências do mercado, aquele em que o trabalhador, à mercê do capital e das crises periódicas, se desloca de uma esfera de atividade para outra; ou por vezes aquele em que sucede o trabalhador ser “sensível” a toda variação da sua força de trabalho e da sua atividade, que lhe deixa antever um melhor salário (GAUDEMAR, 1977, p. 194). Para Singer (1998), a mobilidade no capitalismo é uma “mobilidade forçada”, em decorrência, de um lado, da introdução de relações de produção capitalistas que acarretam à expropriação de camponeses, além da decadência ou atraso tecnológico em determinadas áreas e a falta de terras, provocando a carência de trabalho, e, de outro, da necessidade do trabalhador inserir-se em novas frentes. Assim: As migrações internas não parecem ser mais que um mero mecanismo de redistribuição espacial da população que se adapta, em última análise, ao rearranjo espacial das atividades econômicas. Os mecanismos de mercado que, no capitalismo, orientam os fluxos de investimento às cidades e, ao mesmo tempo, criam os incentivos econômicos às migrações do campo à cidade, não fariam mais que exprimir a racionalidade macroeconômica do progresso técnico que constituiria a essência da industrialização. Tal industrialização, sem que as características institucionais e históricas dela tivessem qualquer papel na determinação daquele processo […] (SINGER, 1998, p. 31-32). Portanto, a migração interna é um processo social, determinado historicamente, segundo causas estruturais quase sempre de fundo econômico: “Dadas determinadas circunstâncias, uma classe social é posta em movimento” (SINGER, 1998, p. 152). [ 333 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS [ 334 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS FRENTE PIONEIRA NO OESTE O processo de colonização da região do Vale do Rio do Peixe foi movido por fins mercantis, ao se desenvolver calcado na pequena propriedade familiar, como CEPA (1990), expõe que: Dividiam-se os lotes urbanos que formariam a sede dos distritos e delimitavam-se algumas pequenas chácaras ao seu redor. No interior os lotes coloniais a serem vendidos aos futuros colonos, eram demarcados com áreas entre 20 a 25 hectares, em geral 24,2 (10 alqueires paulistas), o que viria a caracterizar a área como “colônia”. Nas áreas que se prestavam as atividades agropastoris, eram demarcados lotes rurais de 100 a 1.000 hectares; estes, porém, tiveram pouca expressão, dadas as condições topográficas da região (CEPA, 1990, p.24). Essa conjuntura permitiu criar um sentimento comunitário e religioso. Isso porque os colonos se organizaram sua vida social, em grande parte, em torno dessas comunidades religiosas. Nesse sentido, os colonizadores replicaram o modelo das antigas colônias sulinas de imigrantes. Tal prática se constituiu em importante fator de organização social, tendo em vista que a presença do Estado pouco ou não existia, ou tardou ao chegar. Em torno dessas comunidades ou vilas surgiram, por iniciativa dos moradores locais, igrejas, escolas, cemitérios, centros comunitários, etc. Ao analisar esse cenário da colonização da região do Vale do Rio de Peixe podemos perceber as características dessa colonização como sendo a da frente pioneira. Ao falar sobre frente pioneira, Golin menciona que essa “ […] tenciona uma “nova sociabilidade”, fundada em novas formas de produzir, em alterações de mercado e nas relações sociais.” (GOLIN, 2002, p.31). Assim, o movimento da frente pioneira reflete a expansão geográfica do capitalismo, tendo como ponto fundamental a nova relação que se estabelece com a propriedade privada da terra: O ponto chave da implantação da frente pioneira é a propriedade privada da terra. Na frente pioneira a terra não é ocupada, é comprada. Desse modo, a renda da terra se impõe como mediação entre o homem e a sociedade. A terra passa a ser equivalente de capital e é através da mercadoria que o sujeito trava as suas relações sociais. Essas relações não se esgotam mais no âmbito do contato pessoal. O funcionamento do mercado é que passa a ser o regulador da riqueza e da pobreza. A alienação do produto do relacionamento faz com que as expectativas reguladoras do relacionamento sejam construídas de conformidade com as objetivações da sociedade capitalista (MARTINS, 1975, p. 47). A respeito da mobilidade geográfica Harvey comenta: [...]toda forma de mobilidade geográfica do capital requer infraestruturas espaciais fixas e seguras para funcionar. As migrações seriam, do ponto de vista do processo de desenvolvimento capitalista, condições necessárias à circulação inconstante do capital no espaço e sua acumulação efetivamente. (HARVEY, 2005,p.148). Ocorre, portanto, com a expansão da frente pioneira sobre a frente de expansão, toda uma mobilidade de infraestruturas para subsidiarem e apoiarem a reprodução do capital e sua circulação. Nesse sentido, para Harvey (2005), as migrações seriam do ponto de vista do processo de desenvolvimento capitalista, condições necessárias à circulação inconstante do capital no espaço e sua acumulação. [ 335 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Sendo assim, a frente pioneira “é constituída pela forma empresarial e capitalista de ocupação do território – é a grande fazenda, o banco, a casa de comércio, a ferrovia, a estrada, o juiz, o cartório, o Estado” (MARTINS, J S apud MICHELETTO; 2003, p.79) . Os sistemas simbólicos assim são criados pela frente pioneira, resultando nas estruturas dos poderes dominantes compostos pela Igreja e o Estado, que constroem uma dada realidade na fronteira para atender a um determinado fim: é estabelecido um sentido imediato de mundo para a manutenção de uma ordem para a reprodução ampliada do capital. Nas palavras de Bourdieu (1998, p. 10):“os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social [...] eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social”. Nesse sentido, na frente pioneira os elementos de poder simbólico são estabelecidos para legitimar uma ordem dominante produzida por uma classe dominante. A ordem material, isto é, das infraestruturas fixadas na frente pioneira, é concomitantemente estabelecida por um poder simbólico que ganha e expressa sentido através das ideologias externadas pelos detentores dos meios de produção. Assim: Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também a potência dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas sob a forma de idéias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as idéias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem entre outras coisas uma consciência, e é em conseqüência disso que pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda a sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham, entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como produtores de idéias, que regulamentem a produção e a distribuição dos pensamentos da sua época; as suas idéias são, portanto, as idéias dominantes da sua época (MARX; ENGELS, 1987, p. 29). Destarte, se as ideias de uma classe dominante são as ideias de uma época, as ideias que dominam a fronteira são as ideias de uma(s) classe(s) dominante(s) de determinada(s) época(s). Essas ideias vêm do poder político, econômico e dos símbolos, isto é, das estruturas criadas para legitimar e afirmar o poder dessa classe sobre os outros indivíduos. Portanto, é nesse contexto que são estabelecidas as relações de poder das classes dominantes na frente pioneira. Aliado a isso, para Martins (1982, p. 75): “é nessa frente que surge em nosso país o que se chama hoje, indevidamente, de pioneiro”. Para o autor, estes sujeitos são na verdade os pioneiros das formas sociais e econômicas da exploração e dominação vinculadas às classes dominantes e ao Estado. Assim, essa frente pioneira é essencialmente exploratória, pois está organizada socialmente sobre relações de compra e venda, inclusive da força de trabalho. ATIVIDADES ECONÔNICAS DESENVOLVIDAS NA REGIÃO OESTE CATARINENSE Com a intensificação do processo colonizador no Vale do Rio do Peixe a partir de 1920, a extração da madeira passou a ser a principal atividade econômica da região até 1940. Os primeiros imigrantes gaúchos que chegaram ao Vale do Rio do Peixe dedicavam-se à agropecuária (em especial à produção de milho, suínos e trigo), atividades semelhantes às que desenvolviam nas zonas de origem. Os colonos descendentes de alemães, procedentes da região de Santa Cruz (RS), trouxeram o cultivo de fumo à região. Esse, juntamente com a erva-mate e a madeira, produtos que se prestavam às precárias condições de transporte, [ 336 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS representavam a base econômica do oeste nesse período, permitindo o surgimento de casas de exportação (CEPA, 1990). O tipo de produção agrícola que se estabeleceu nesta área, como abordam Testa et al. (1996), foi o da predominância da família enquanto unidade organizadora do processo produtivo e do trabalho. Mas, mesmo a produção sendo familiar, essa não era somente para a subsistência e sim orientada para o mercado. Quanto ao transporte desses produtos, a erva-mate seguia de cargueiro (caminhão que transporta carga) para a Argentina e, pela ferrovia, ao Rio Grande do Sul e ao centro-sul do país. A madeira, no Vale do Rio do Peixe, era transportada pela ferrovia para o sudeste e mais para o oeste do vale, era transportada para a Argentina via balsas. O fumo era transportado para Santa Cruz (RS). Podemos notar a importância da ferrovia São Paulo - Rio Grande impulsionando as atividades extrativas da região, mas, acima de tudo, ela representou a integração da economia colonial gaúcha aos principais centros do país (São Paulo e Rio de Janeiro), como enfatiza o estudo do Instituto CEPA (1990). Esse aponta ainda que o oeste catarinense bem como o sudoeste paranaense viriam a constituir sucessivos espaços econômicos de expansão da economia colonial iniciada no Rio Grande do Sul que, naquela época, já apresentava excedentes populacionais. Podemos perceber que a estrada de ferro é o principal meio de escoação da produção da colonização de Frente Pioneira. Durante a década de 30, outro fator contribuiu para o comércio entre a região oeste catarinense e o centro do país. A demanda paulista de suínos vivos e banha fez com que o Vale do Rio do Peixe desviasse seu comércio com as antigas colônias gaúchas e passasse a comercializar com São Paulo. Em 1940, foram fundados três frigoríficos de suínos no Vale do Rio do Peixe que impulsionaram uma nova fase na economia regional: o da agroindustrialização. No mesmo ano, também se intensificou a colonização na direção do extremo-oeste do Estado e, concomitantemente, a abertura do mercado para suínos, via agroindústria, atingiu toda a região do Vale do Rio do Peixe até o extremo-oeste catarinense. Em razão da abundância de terras férteis e com preços acessíveis, clima favorável, proximidade com a estrada-de-ferro e a quantidade de mão de obra que migrou para essa região, o comércio local cresceu rapidamente e de 1940 a 1960, a região assumiu a primeira posição estadual na produção de suínos, bem como de milho e feijão. Foi nesse período que se desenvolveu o grande capital agroindustrial da região. Inicialmente, a economia foi comandada pela agricultura familiar voltada ao mercado interno, sendo que atualmente em toda a região oeste ocorre o predomínio das atividades econômicas ligadas direta ou indiretamente às agroindústrias e a indústria frigorífica. CONSIDERAÇÕES FINAIS É possível perceber que a colonização do Vale do Rio do Peixe e do oeste catarinense não foi espontânea, mas sistemática e programada, feita a partir de interesses do Estado, das colonizadoras e especuladores e sem levar em conta a população autóctone da região, características típicas da Frente Pioneira de colonização. No vale do Rio do Peixe e oeste catarinense, repetiu-se o mesmo modelo de ocupação das áreas de colonização gaúcha, baseado na pequena propriedade colonial, que era destinada à agricultura de subsistência e procurava atender ao mercado interno. As novas terras do meio-oeste e oeste catarinense absorveram o grande excedente populacional das áreas coloniais do Rio Grande do Sul. Assim, na medida em que eram ocupadas as terras em Santa Catarina, aliviava-se a pressão demográfica naquele estado. O modelo de colonização adotado nas novas terras favoreceu a continuidade da civilização agrária, em que os migrantes mantiveram-se ligados ao trabalho agrícola. Em virtude do tamanho dos lotes e, de modo especial, das limitações do próprio modelo, a expectativa de fazer fortuna frustrou-se novamente. Apesar disso, na visão dos agricultores, considerava-se um status de ser proprietário, ou mesmo estar ligado a terra. Os migrantes nas novas terras agiram conforme sua visão e seus princípios culturais, contribuindo, nesse sentido, para a marginalização dos caboclos, que, na região, ficaram cada vez mais distantes do acesso [ 337 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS a terra e às condições de sobrevivência. No entanto, muitos desses caboclos excluídos resistiram a essa forma excludente e perversa e permaneceram na região. Sendo assim, pode-se perceber que os coblocos contribuíram em vários aspectos para o crescimento tanto econômico quanto cultural da região meio- oeste e oeste catarinense. Hoje, conhecida como Vale do Rio do Peixe, a microrregião de Joaçaba é composta por vinte e sete municípios dentro os quais, onze são banhados pelo Rio do Peixe. Nessa microrregião estão localizadas três Agências de Desenvolvimento Regional (ADR): de Caçador, de Joaçaba e de Videira. A Agência de Desenvolvimento Regional de Joaçaba é composta pelos municípios de Água Doce, Capinzal, Catanduvas, Erval Velho, Herval d’ Oeste, Jaborá, Ibicaré, Joaçaba, Lacerdópolis, Luzerna, Ouro, Treze Tilhas e Vargem Bonita, A SDR de Caçador contêm os municípios de Caçador, Calmon, Lebon Régis, Macieira, Matos Costa, Rio das Antas e Timbó Grande (Figura 2); e a SDR de Videira abrange os municípios de Arroio Trinta, Fraiburgo, Iomerê, Pinheiro Preto, Salto Veloso, Tangará e Videira. Na região do Vale do Rio do Peixe a presença dos migrantes, em especial, italianos e alemães é bastante visível e, apesar da forte presença desses migrantes, pode-se perceber grande presença dos caboclos e índios através da miscigenação que foi um processo inevitável, fazendo com que o multiculturalismo prevalecesse na região. Através desse artigo não esperava-se concluir a temática sobre a colonização e povoamento da região oeste, mais contribuir como fonte para futuros trabalhos que poderão abordar essa mesma temática. Entende-se que os principais objetivos do trabalho foram alcançados e espera-se a continuidade dos estudos para melhor compreender o fenômeno da colonização no Vale do Rio do Peixe. REFERÊNCIAS BILIBIO, Rogério, Augusto et al. Centenário do Município de Joaçaba. Joaçaba: Unoesc, 2017. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. GAUDEMAR, Jean P. Mobilidade do trabalho e acumulação do capital. Lisboa: Estampa, 1977. 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Em administração, por envolver organizações que costumam ter algum grau de hierarquia, o conceito é utilizado de forma frequente e com definições variadas. Dado tal cenário, este artigo objetiva fazer uma revisão de como o conceito tem sido usado em textos empíricos que entrelaçam questões de poder com organizações, e se há tendências visíveis entre as definições utilizadas, enfocando a distinção individual/relacional no período 1990-2018. Para tanto, um número de 15 artigos foi selecionado, que enfoque poder em organizações e sejam empíricos, nas bases Scopus, Web of Science e Scielo. Com estes, se faz uma análise de conteúdo, objetivando apontar características das definições utilizadas. Além disto, em prol de avançar teoricamente, brevemente se delineia uma conceituação que, talvez, seja capaz de utilizar a essência tanto da perspectiva individual como da relacional: definir o conceito e de ser estrutural de forma a permitir a este certa maleabilidade conceitual. Conclui-se que, no âmbito relacional, a principal tendência é Foucaultiana. No individual, a categorização de French e Raven é a mais utilizada. Finalmente, percebe-se fragmentação nos usos. Palavras-chave: Poder; Administração; Conceituação Abstract : The conceptualization of power involves significant differences among authors in the social sciences. In business administration, because of handling organizations that usually have some degree of hierarchy, the use of the concept is frequent and with different definitions. Given said scenario, this paper aims to make a revision of how the concept is used in empirical texts which intertwine questions of power in organizations, and if there are visible tendencies among the used definitions, focusing in the distinction individual/relational for the period of 1990-2018. For said endeavor, we selected 15 articles after research, which focus power in organizations and are empirical, in the databases Scopus, Web of Science and Scielo. With those, we use content analysis, aiming to pinpoint characteristics of the definitions. Besides that, with the intent of advancing theoretically, we briefly delineate a conceptualization that, maybe, is capable of using the essence of both the individual and relational perspective: defining the concept and being structural in a way of allowing the concept to have conceptual malleability. We conclude that, in the relational scope, the main tendency is Foucauldian. In the individual, the categorization of French and Raven is the more used. Finally, we note fragmentation in the uses. Keywords: Power, Business Administration, Conceptualization INTRODUÇÃO Nas ciências sociais, o conceito de poder é com frequência considerado uma das noções centrais (RUSSELL, 2004 [1938]; DAHL, 1957; KEHOANE, NYE, 2001; SEGNINI, 2014), e sua utilização em administração é frequente, como uma busca bibliográfica sobre poder em organizações demonstra. Por exemplo, na Scielo (BERTERO, 1968; VARGAS, 1998; SILVEIRA, 2005 e sendo 15 resultados para “poder em organizações” e 394 para “poder” AND “organizações” nesta base), na Scopus (busca por “power in organizations” recupera 144 trabalhos, “power” AND “organizations” são 53.472 os achados) e na Web of Science (107 resultados por “power in organizations” e 10.504 por “power” AND “organizations”). Há, portanto, significante bibliografia entrelaçando administração e o conceito de poder, de modo a haver uma lacuna e certa importância em saber como o conceito, considerado como controverso (DAHL, 1957; NYE, 2001), é utilizado em diferentes trabalhos empíricos, sendo esta a justificativa para o presente. Nota-se que, mesmo existindo muitos artigos quando a procura é “power” AND “organizations”, mostrando significante [ 340 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS intersecção entre os temas, a quantia de trabalhos empíricos focando, de fato, poder em organizações (“power in organizations”), é diminuta no período, e o presente artigo consegue, assim, analisar estes artigos. Apesar de, como afirma Dahl (1957) e Regoli (1974), as pessoas geralmente terem uma noção intuitiva do que querem dizer por poder, uma sistematização do conceito tem permanecido difícil, como sugere o muito citado artigo de Dahl (1957) e, mais recentemente, autores como Nye (1990). Usualmente, ela se aproxima da ideia de influenciar ou controlar comportamentos dos outros (KOTTER, 2010), sendo, todavia, diferenciada por certos autores em individual ou diádica (relacional) (REGOLI, 1974; DUNBAR, 2004). Contudo, áreas em que o conceito se apresente com frequência, como relações internacionais e ciências políticas, objetivam ter uma definição rigorosa do mesmo, para não existir dúvidas significativas nos discursos e nas teorias que utilizam tal conceito, apesar de alguns autores não crerem ser tal possível (SCOTT, 2008). Em administração, o conceito também detém relevância, sendo frisado em obras seminais do campo, como no livro Imagens da Organização de Gareth Morgan (1997), assim como aparecendo, implícita ou explicitamente, frequentemente quando que se estuda algum tipo de relação hierárquica. Dado tal cenário de importância do conceito, a pergunta que se busca responder é: quais as tendências para o conceito de poder em administração em artigos empíricos datados entre 1990-2018? E, baseando-se na diferenciação entre definição individual e relacional, há como propor um meio termo que englobe características das duas? Para auxiliar a responder estas questões, inicialmente uma seleção de 15 artigos empíricos sobre administração e poder são utilizados, diversificados pelas bases onde são encontrados e observados pela classificação primária de Regoli (1974). A escolha se deveu ao relacionar poder com organizações e serem trabalhos empíricos. Objetiva-se prover recursos para se aproximar de responder à questão sobre como o conceito geralmente é definido em administração e, após, estilizar possibilidades de avanços teóricos. Em prol disso, primeiramente se demonstra um referencial com os principais autores sobre a conceituação de poder; depois, se expõe de forma mais ampla o método, os resultados, uma proposta de definição que busca unir as categorias, sendo, assim, mais abrangente, e as devidas conclusões. REFERENCIAL TEÓRICO: Poder e suas Definições O conceito de poder tem uma longa história que remete a antiguidade, e frente a definição do conceito em si já há pesquisas buscando defini-lo no século XVIII (BALDWIN, 2016), como Hobbes. Durante o século XX surgiram as formas mais utilizadas nos dias atuais. Entre estas, está a de influência (BLAU, 1964; HEYWOOD, 2000) e capacidade material (SINGER, 1980), utilizadas em relações internacionais e ciência política. Já em sociologia, a versão republicada de um clássico de Max Weber (2010) define poder como a “habilidade de pessoas ou grupos atingirem seus objetivos a despeito da oposição alheia”, enquanto Steven Lukes (1974) utiliza uma dualidade, definindo como a “capacidade de impactar o mundo ao nosso redor” e a “capacidade de dominar outros”. O campo da administração, por sua vez, geralmente utiliza o conceito como especificado em outras áreas, havendo poucos teóricos organizacionais que buscaram definir o conceito, com as devidas exceções de Pfeffer (1977) que o define como “habilidade de chegar a resultados almejados”, o que não difere muito de outras definições já previamente sistematizadas, e Mintzberg, que define como “capacidade de afetar os resultados organizacionais” (VARGAS, 1998). Talvez isto se dê dada a já significante bibliografia em outras áreas, ser um assunto controverso e o fato de administração ser um campo considerado mais aplicado, mas uma explanação requer pesquisas específicas e não é o intuito do presente. Inicialmente nesta seção se explana a evolução do tratamento do conceito, para depois frisar as definições de poder mais comumente utilizadas. Com isto se objetiva prover um delineamento das transformações sofridas pela análise do conceito de poder ao longo do tempo. Segundo Baldwin (2016) apesar de haver em geral acordo em relação a importância do conceito, sobre a definição do conceito de poder e termos correlatos como coerção e autoridade pairam discórdias. Ainda conforme Baldwin (2016), destaca-se que, pesquisado desde a antiguidade, com os trabalhos de Thucydides, Machiavelli e Aristóteles, apenas no século XX explicar o conceito passou a entrar na agenda e [ 341 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS ser um tópico seriamente enfrentado. Continua Baldwin afirmando que até os anos 1950, o considerado mais importante trabalho veio de Lasswell e Kaplan “Poder e Sociedade” e após a metade do século, o estudo sistemático e rigoroso se dá em várias disciplinas, como geografia, psicologia e filosofia. A presente sistematização foca na segunda metade do século XX em diante. Neste período de tempo, de acordo com Regoli (1974) existem duas escolas: a individualista e a diádica. A primeira enfoca prover uma definição para o conceito em si, enquanto a segunda trata poder como sendo algo relacional, aproximando, no mínimo, dois atores. Baldwin (2016) cita que a partir de Lasswell e Kaplan, a tendência de trabalhos é de trabalhar poder como algo relacional, mas o ideal não seria a capacidade de conciliar as duas definições? E a tendência se dá em administração no período temporal estabelecido para este trabalho? Assim, tem-se tais duas perspectivas as quais se trabalha, e sistematiza-se alguns conceitos de poder do século XX, em especial da segunda metade, segundo uma revisão de Regoli (1974): Quadro 1: Definições de Poder Autor Blau, 1964 brown, 1969 goldhammer; shils, 1939 WEBER, 1947 bierstedt, 1950 hobbes, 1937 lasswell; kaplan, 1950 PARSONS, 1968 BANFIELD, 1961 Dahl, 1957 definição Poder é todos os tipos de influência entre pessoas ou grupos, incluindo aqueles exercidos em transações de trocas, onde um induz outros a ceder a seus desejos por meio de recompensá-los por fazê-lo. Poder é a influência exercida por um homem ou grupo, através de quaisquer, da conduta de outros em maneiras pretendidas. Uma pessoa tem poder na medida em que influencia o comportamento alheio de acordo com suas intenções. Poder é a probabilidade de um ator numa relação social estar numa situação de satisfazer seus desejos, apesar de resistências, independente da base em que esta probabilidade se situa. Poder é uma força latente. Poder é a habilidade para obter alguns aparentes bens futuros Poder é participação na tomada de decisão Poder é a habilidade de um ator induzir ou influenciar outro para seguir suas diretivas ou quaisquer outras normas que ele suporta Poder é a habilidade de estabelecer controle frente o outro. (A) Tem poder sobre (B) na medida em que (A) consegue com que (B) faça algo que (B) normalmente não faria. Fonte: Adaptado de Regoli (1974) Nota-se a proeminência de definições que relacionam poder com influência, como Brown (1969) e Parsons (1968), havendo já nesse período tratamento de forma relacional, como Dahl (1957). Na presente análise sobre o emprego do conceito de poder em administração, se buscará averiguar se os mesmos utilizam uma ideia que tende mais para o individual ou o diádico/relacional, assim como com qual definição mais aparentam se assemelhar. [ 342 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Após os achados de Regoli, não foi encontrada outra revisão de conceito de poder utilizados, e vale adicionar à lista de Regoli alguns dos mais conceituados, como Foucault (1992), que vê poder de forma relacional, todavia por não se considerar um teórico (ALBUQUERQUE, 1995) frisa que sua tentativa de compreensão é mais um método do que teoria, e define como algo estrutural, nos termos que seria uma “complexa situação estratégica num dado ambiente social” (FOUCAULT, 1980) e French e Raven (1959) que utilizam cinco categorias para tentar chegar a essência do conceito: poder legítimo (autoridade), poder referente (pares hierárquicos), poder de recompensa (capacidade de recompensar), poder de especialista (referente ao conhecimento que se tem) e poder coercivo (uso da coerção). Também, a já citada definição de Steven Lukes (1974) aparece como uma definição bastante citada; artigos geralmente utilizam as definições já sistematizadas no esforço de Regoli. Por fim, ressalta-se a ideia de circuitos de poder de Clegg, que adentra a categoria relacional e concebe poder como intricado com linguagem e conhecimento (Clegg, 1989, 2007), e as definições de teóricos organizacionais já citadas, respectivamente Pfeffer (1977), em que poder é “habilidade de chegar a resultados almejados” e Mintzerg (1983) poder é “capacidade de afetar os resultados organizacionais”. As categorias teóricas utilizadas são delineadas no quadro síntese teórico a seguir, notando que a categorização primária segue Regoli (1974) e a secundária segue, em boa parte, o entendimento dos autores, e possíveis questionamentos podem ser levantados pelo leitor: Quadro 2: Categorias Principais Categorias Principais Individual Fonte: Elaboração dos Autores Relacional/Diádico Quadro 3: Categorização Secundária Categorias Secundárias (Conceituação de Poder Assemelhada a) BLAU, 1964 (Individual) BROWN, 1969 (Individual) GOLDHAMMER; SHILS, 1939 (Individual) WEBER, 1947 (Individual) BIERSTEDT, 1950 (Individual) HOBBES, 1937 (Individual) LASSWELL; KAPLAN, 1950 (Relacional) PARSONS, 1968 (Individual) BANFIELD, 1961 (Individual) DAHL, 1957 (Relacional) FOUCAULT, 1992 (Relacional) FRENCH E RAVEN, 1959 (Individual) LUKES, 1974 (Individual) CLEGG, 1989, 2007 (Relacional) PFEFFER, 1977 (Individual) MINTZBERG, 1983 (Individual) Fonte: Elaboração dos Autores O significado dos quadros é diferenciar entre compreensões de poder que podem ser categorizadas, primeiramente fazendo a maior delimitação categórica: se pode compreender poder ou provendo uma definição no sentido de o conceito ser uma entidade em específico, ou compreendendo como algo que escapa a delimitação de entidades, só podendo ser compreendido de forma estrutural. No segundo quadro, tem-se a aproximação em relação a esta categorização principal, ou seja, as definições dos autores caem em individual ou relacional/diádico, aproximando-se mais de uma ou de outra. MÉTODO Trata-se de pesquisa bibliográfica e qualitativa na qual se aplica uma análise de conteúdo. Bardin (2006) considera análise de conteúdo um aglomerado de técnica que analisa comunicação, em prol de inferir por meio de indicadores definidos. Segundo Chizzotti (2006) compreender criticamente o conteúdo manifesto ou latente e as significações está no cerne da análise de conteúdo. Como o conceito de poder vem [ 343 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS sendo utilizado em administração é o tema, fazendo com que a pesquisa por meio da análise de conteúdo seja geralmente adequada. A sistematização neste artigo do método busca seguir conforme o clássico de Bardin (1977), com algumas adaptações por ser qualitativo e bibliográfico. Na pré-análise se escolheu documentos bibliográficos seguindo o critério temporal (1990-2018) e enfocando o conceito de poder em administração. O corpus se perfaz numa análise geral dos textos escolhidos a partir do critério “power in organizations” e sua respectiva versão em português, enfocando a conceituação de poder e a categorização a priori entre conceituação individual ou diádica/relacional. Perante estas, se busca, também, apreciar frente qual definição citada no referencial mais se assemelha. O objetivo é explorar tendências na conceituação de poder em administração. Após a análise, sintetiza-se as partes dos artigos mais relevantes e que foram utilizadas pela pesquisa para determinar como categorizar, inferindo-se e interpretando-se. Os 15 (quinze) artigos selecionados foram obtidos nas bases Scopus, Web of Science e Scielo, ainda tendo por critério tratar sobre poder em organizações, se adequar ao prisma temporal (1990-2018), deter um corpus em que se expressar a análise possa auxiliar frente a classificação e a existência de tendência, e serem estudos empíricos. Apresenta-se o fluxograma de seleção da seguinte maneira, notando que se utiliza "Power in Organizations" como palavras-chave, entre 1990-2018: Figura 1: Fluxograma da Seleção de Artigos Fonte: Elaboração dos autores Nota-se que, segundo Zigarmi et al. (2015) há poucos estudos empíricos sobre poder, e foram selecionados artigos que enfoquem alguma aplicação empírica de poder. Isto porque acredita-se que são nestes em que principalmente o modo como o conceito é definido pode levar a avançar o status quo, já que lidam com algum cenário prático e não ficam apenas na criação de teorias, sendo como, de fato, o conceito de poder tem sido posto em uso. Apenas se descartou artigos empíricos que não tinham relação de fato com a conceituação de poder, ou seja, ignoraram a questão de definição. Neste caso, excluíram-se 85 artigos por razões como (1) não serem empíricos, (2) não utilizarem o conceito de poder de forma explícita e (3) não frisarem definições para o conceito. ANÁLISE DOS DADOS Os artigos selecionados foram analisados em sua inteireza para fins de averiguar a utilização do conceito de poder nos mesmos, contudo focou-se nas passagens em que tal conceito aparece de maneira mais contundente, porque é a parte do corpus textual que mais importa para o presente. Os artigos são tabelados com suas características principais, respectivamente, autor/ano/periódico, foco do estudo, principal passagem utilizada para classificação de poder, classificação entre individual ou diádico/relacional (categoria primária), e conceituação que mais se aproxima (categoria secundária), conforme a Tabela 1, vista em seguida. Vale notar que as passagens dos textos em inglês foram traduzidas para o português para melhor clarificação do conteúdo ao leitor, citando-se a página, para fins de se poder buscar, caso haja algum interesse. Utilizando da tabela, pode-se perceber uma diversidade significativa de tópicos que se entrelaçam [ 344 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS com poder no âmbito organizacional, assim como uma diversidade ampla de perspectivas. Há, também, periódicos colombianos, brasileiros, norte-americanos, o que provê a análise de generalidade, não se valendo apenas de como uma dada corrente de pensamento utiliza o conceito, mas como, ao redor do mundo, tem se trabalhado empiricamente o conceito de poder. Ainda que se faça um recorte textual, frisa-se que análises de todo o texto são necessárias, porque, em especial quando se trata de forma relacional, é o conjunto da obra que é necessário analisar para poder formalizar categorias. Cabe ainda frisar que a categorização leva em conta, em especial, o explicitado; não houve, assim, casos de inferência além do corpus textual, como busca por outros trabalhos dos autores para ver de que forma costumam definir. Autor/Ano/Periódico CORREIA; DIAS, 2018 Revista Pensamiento Americano, v. 11, n. 20. PRESLER et al., 2018 Sex Roles, v. 78, n. 78, p. 573-586 WILNER et al., 2017 Journal of Business Ethics, v. 141, n. 4, p. 677-691 ZIGARMI et al., 2015 Human Resource Development Quarterly, v. 26, n. 4, p. 359-384 Foco do Estudo Poder de dirigentes máximos de organizações Poder em Organizações enfocando mulheres oficiais militares júnior Organizações online e dificuldades com controle e resistência num espaço com limites não muito claros Uso de poder de líder e implicações para afeto e intenções de trabalho Recorte Textual “Recorrendo para este fim a um índice de medida formulado por Correia (2012) com base no conceito de distribuição do poder adotado por Sauder e Espeland (2009) que permite investigar o poder organizacional enquanto fenómeno dinâmico” (p. 90) “Ainda, a posição de oficial júnior é dupla porque assim como exercem autoridade para com níveis hierárquicos abaixo são sujeitas a autoridade a níveis hierárquico acima (maioria dos quais são homens)” (p. 4) “Poder não só envolve a habilidade de criar e influenciar” (p. 8) “Fineman (2000) define o termo "arenas emocionais" para descrever os contextos micro-político e de fluxo de poder nos quais emoções são realizadas para diferentes audiências como patrões, clientes, e colegas” (p. 3) "Este artigo busca aumentar o entendimento atual de poder estrutural no nível organizacional através de examinar como formas estruturais de poder implementadas por líderes afetam pessoas no nível [ 345 ] Classificação Primária Relacional/Diádico Individual Relacional/Diádico Relacional/Diádico Classificação Secundária FOUCAULT, 1992 (poder estrutural). Nota: Sauder e Espeland (2009) se baseiam em Foucault FRENCH; RAVEN (poder legítimo), 1959; BROWN, 1969; PARSONS, 1968; (poder como influência) FOUCAULT, 1992 (poder como estrutural, ocorrendo em fluxo) FOUCAULT, 1992 (poder estrutural) Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS TREADWAY et al., 2013 Journal of Management, v. 39, n. 6, p. 1529-1553 KENNY, 2012 Organization Studies, v. 33, n. 9, p. 11751193 MACALPINE; MARCH, 2005 Management Learning, v. 36, n. 4, p. 429-450 Papel de performance e habilidade política na influência social e poder interpessoal Identificação e afeto numa organização internacional de desenvolvimento Relações pessoais de raça em organizações e sua relação com poder psicológico individual” (p. 360) “Talvez mais simplesmente, poder pode ser visto como o potencial para exercer influência sobre outros” (p. 1533) “Segundo, evidente em todas essas definições é que a habilidade de influenciar outros é baseada na percepção e, assim, sujeita a manipulação e interpretação” (p. 1533) “Esse reconhecimento aparece próximo do tipo de reconhecimento desanexado discutido em relação a noção de Derek, na qual a presença e influência de estruturas de poder são simplesmente aceitadas” (p. 1186) “Nós começamos a usar o termo poder/identidade para expressar a complexa interação entre esses dois conceitos: a maneira que identidade individual produz diferentes poderes dependendo do contexto e as identidades específicas envolvidas” (p. 432) VAARA et al., 2005 Journal of Management Studies, v. 42, n. 3, p. 595-623 Linguagem e os circuitos de poder numa organização multinacional em processo de fusão "O que é importante para nossa presente análise é que linguagem e conhecimento também estão relacionadas com poder" (p. 597) TJOSVOLD et al., 2005 The Journal of Social Psychology, v. 145, n. 6, p. 645-661 Contextos sociais e uso de poder em uma amostra chinesa "Poder pode ser utilmente definido como ocorrendo quando uma pessoa é capaz de afetar os resultados de outras" (p. 646) COLEMAN, 2004 Journal of Applied Social Psychology, v. 34, n. 2, p. 297-321 Estudo experimental sobre poder organizacional e efeitos de priming “Trabalhando a partir de uma definição geral de poder, proposta por Salancik e Pfeffer” (1977) como a [ 346 ] Individual Relacional/Diádico Relacional/Diádico Relacional/Diádico BROWN, 1969; PARSONS, 1968; (poder como influência) FOUCAULT, 1992 (poder estrutural) FOUCAULT, 1992 (poder estrutural) CLEGG, 1989 (poder relacionado com conhecimento e linguagem); FOUCAULT, 1992 (poder estrutural, poderconhecimento) Relacional/Diádico DAHL, 1957 (definição de A em relação a B) Individual SALANCIK; PFEFFER, 1977 (poder como habilidade) Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS PEIRO; MELIÁ, 2003 Applied Psychology, v. 52, n. 1, p. 14-35 WALKER; NEWCOMB, 2000 Construction Management & Economics, v. 18, n. 1, p. 37-44 VARGAS, 1998 Revista de Administração contemporânea, v. 2, n. 3, p. 89-107 PHENG; MAY, 1997 Building Research & Information, v. 25, n. 3, p. 158-169 ATWATER, 1995 Group & Organization Management, v. 20, n. 4, p. 460-485 em decisões gerenciais de compartilhamento de poder Poder interpessoal formal e informal em organizações "habilidade de chegar a resultados almejados" (p. 299) O uso positivo de poder num grande projeto de construção “Muitas definições de poder emanam da de Weber (1947)” (p. 2) Configuração poder em empresa brasileira Sistemas de gerenciamento de qualidade, estudo de autoridade e empoderamento A relação entre poder supervisório e características organizacionais “Baseado nas fontes de poder identificadas por French e Raven, uma teoria bifatorial de poder é formulada e testada” (p. 14) “Poder de especialista e de referência são descritos como pessoais, pois largamente dependem dos atributos pessoais do indivíduo, como conhecimento e carisma” (p. 38) “Mintzberg (1983) preferiu abster-se de uma discussão maior de conceitos abstratos, definindo poder como sendo simplesmente a capacidade de afetar os resultados organizacionais.” (p. 91) “Poder refere à capacidade com que o gerente de qualidade tem de influenciar” (p. 159) Individual Individual Individual Individual “Há quatro tipos de poder: coercivo, de recompensa, especialista e de oportunidade” (p. 159) "Essas cinco bases de poder são teoricamente distintas" (p. 468) Individual FRENCH; RAVEN, 1959 (poder dividido em cinco categorias) WEBER, 1947 (poder como habilidade de satisfazer desejos apesar de resistências); FRENCH; RAVEN, 1959 (poder dividido em cinco categorias) MINTZBERG, 1983 (poder como capacidade de afetar resultados organizacionais) BROWN, 1969; PARSONS, 1968; (poder como influência); FRENCH; RAVEN, 1959 (poder categorizado) FRENCH; RAVEN, 1959 (poder dividido em cinco categorias) Fonte: Elaboração dos Autores Nota-se, portanto, oito artigos em que a definição seguiu a lógica individual, mais frequentemente utilizando o viés de French e Raven (1959), enquanto os outros sete artigos foram relacionais, em especial Foucaultianos. Há, assim, fragmentação em utilização individual ou relacional/diádica no período temporal 1990-2018 envolvendo artigos empíricos que tratem poder em organizações. Nota-se que a vasta maioria dos artigos empíricos neste período de tempo sobre poder em organizações e envolvendo as bases Scopus, Web of [ 347 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Science e Scielo foram praticamente exauridos, podendo existir alguns que foram deixados de fora, mas se tal ocorreu se deveu, em geral, a alguma característica do artigo que não se enquadrava nos quesitos estipulados pelo método. O ideal seria que tal fragmentação em definir o conceito não ocorresse; que, ao tratar de poder, houvesse um cenário de maior similaridade no tratamento, para que fosse possível congruência perante o mesmo. Entretanto, não só o mesmo é controverso como é lidado de maneiras categoricamente bastante diferentes; uns provem alguma conceituação individual (no qual há várias), outros veem como algo relacional (na qual, também há mais de uma visão). Assim o estado da arte em administração do conceito é de tal sorte que é lidado de maneiras amplamente diferente em trabalhos empíricos neste período temporal analisado. Dado tal cenário, é relevante buscar um meio termo em que seja possível haver, de um lado, uma definição geral para o conceito em si e, de outro, que permita uma análise estrutural. Será que tal é possível? INDIVIDUAL VS. RELACIONAL: Uma Proposta de Unificação Geralmente o individual exclui o relacional/diádico, porque este último se recusa a definir poder de uma forma em que “poder é x” “poder é tal entidade”, frisando, como Dahl (1957), Lasswell e Kaplan (1950), Clegg e Courpasson (2007), e Foucault (1992) no aspecto de ser visto de forma a aproximar dois agentes e variar com o contexto, e não como uma “entidade”. Assim as categorias aparentam ser mutuamente excludentes, porque se definir a entidade “poder”, acaba-se incapaz de averiguar toda a estrutura e relação que o construto deveria ser capaz de explanar. Contudo, pode-se pensar em maneiras de superar tal dualidade. Uma ideia possível, sugerida por estes autores a ser pensada, seria definir poder como “o que conta como meio de determinar a posição de um sujeito numa dada competição”, sendo esta uma definição capaz de (1) considerar poder uma entidade abstrata, (2) fazer com que seja possível variar conforma a estrutura pensada – que é formalizada por uma competição entre atores, a qual atua como a estrutura (3) permitir a utilização de contextos variados, porque “poder” pode ser, usando a conceituação proposta, transformado de acordo com a competição que se analisa. Por exemplo, numa situação hierárquica organizacional em que haja vários tipos de competições, como “quem detém o maior cargo hierárquico?” – poder seria posição hierárquica –, “quem detém maior respeito dos subordinados?”, – poder seria respeitabilidade – e “quem detém maior conhecimento técnico?”, – poder seria conhecimento técnico –, haveria a possibilidade, utilizando esta definição proposta, de se criar uma estrutura de competição para, a partir desta, definir poder como sendo uma entidade que se situa dentro da dada estrutura, e utiliza desta para ser definido. Tal ideia é embrionária e necessitaria pesquisas específicas e puramente teóricas para ser mais desenvolvida, e enfrenta problemas como possivelmente ser tautológica. Todavia, é capaz de fazer o conceito de poder ser modificado conforme o aspecto contextual/estrutural/relacional, e não faz uso de categorias taxativas, que acabam por inviabilizar outras que o autor do estudo empírico considere relevante usar. Além disso, e mais importante, não se priva de prover uma definição fixa para o conceito. Espera-se que possa ser uma proposta a auxiliar maiores estudos, e certamente problemas relacionados com o uso da mesma podem ser levantados, mas o fato é que é difícil trabalhar poder empiricamente de uma forma integrada num cenário em que há concepções tão divergentes, como esta pesquisa dos anos 1990-2018 em administração mostrou. CONCLUSÕES O objetivo do trabalho foi realizar uma pesquisa qualitativa e bibliográfica utilizando análise de conteúdo para observar tendências de definição de poder em artigos empíricos de administração no período 1990-2018 e brevemente propor possibilidades de avanços teóricos. Os achados demonstram que há fragmentação em uso de categorias individual/relacional, como teorizado por Regoli (1974) e Dunbar (2004). Na aproximação de definição utilizada, nota-se principalmente na categoria individual utilização do trabalho de French e Raven (1959) e na relacional de Foucault (1992). Com isto conclui-se que não há unificação de [ 348 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS viés para trabalhar com o conceito de poder de forma empírica para o período analisado nas bases da Scopus, Web of Science e Scielo. O cenário se mostra, em realidade, bastante diversificado entre as categorias definidas, ou seja, não há consenso em torno da definição do conceito e esta não aparenta estar avançando para uma pacificação do tema, isto mais de sessenta anos depois do artigo seminal de Dahl (1957). Espera-se que tal cenário de fragmentação na concepção de poder seja trabalhado seriamente por praticantes da administração com interesses em como tal conceito se situa no âmbito organizacional, uma vez que se utiliza uma pluralidade de noções cuja fragmentação pode fazer com que o interessado no assunto não seja capaz de utilizar a literatura conforme seus objetivos práticos, dada as diferentes percepções dada ao construto. No mínimo, este esforço permite ao leitor averiguar como tem sido as pesquisas empíricas frente o conceito de poder e pode ser utilizado como meio de averiguar quais estudos há maior interesse por parte do praticamente, que almeja compreender melhor o construto quando pesquisado empiricamente. Também, há possibilidade de utilização da diferenciação categórica para fins de explanar explicitamente onde o trabalho empírico sobre poder se situa, o que se percebe não ter acontecido por pesquisadores do construto. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. 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Nesta pesquisa será possível encontrar as funções desempenhadas por elas dentro da sociedade de imigrantes que se fixou na região interiorana do Espírito Santo. Para que esse trabalho fosse desenvolvido utilizei fontes bibliográficas inerentes ao tema, entrevistas com descendentes diretos dos primeiros imigrantes italianos da comunidade, documentos de época, além de outras fontes existentes. Com tal pesquisa sendo devidamente realizada e com as etapas necessárias de análises tendo sido concluídas, foi possível esclarecer questões importantes e mostrar que essas mulheres atuaram de forma tão concreta e direta no desenvolvimento da sociedade imigrante italiana Vendanovense assim como historicamente é atribuída aos homens imigrantes. Com sua atuação, ajudaram na acumulação de pecúlio necessário para que a comunidade de imigrantes italianos pudesse prosperar na sociedade capixaba e hoje obter grande destaque no cenário estadual nos campos da economia, agricultura, agroturismo e turismo das montanhas. Demonstro neste trabalho que as mulheres imigrantes italianas merecem ser reconhecidas e valorizadas, assim como se faz com os homens imigrantes italianos, e por esse motivo devem ser respeitadas e receber o reconhecimento que por anos lhes foi negado. Palavras-chaves: Imigrante, contribuição, feminina, desenvolvimento. O processo de imigração ao longo da segunda metade do século XIX e início do século XX para o Estado do Espírito Santo se difere dos demais Estados da região Sudeste, onde o objetivo principal era a ocupação dos espaços territoriais e não a absorção da mão de obra nas lavouras cafeeiras ou outras atividades econômicas ligadas ao fluxo imigratório. Dentro dessa realidade a formação do então Núcleo São Pedro de Venda Nova está diretamente ligada a expansão e ocupação territorial pelos imigrantes na região sul serrana do Estado do Espírito Santo. A predominância dos migrantes e imigrantes que se fixaram à região do atual município capixaba de Venda Nova do Imigrante eram provenientes do Núcleo Colonial Castello, considerado o 6º território da Colônia Rio Novo. As razões para o deslocamento destes grupos populacionais entre um núcleo colonial e outro foram os mais variados. A miséria e a pobreza de muitos habitantes, aliados ao solo de pouca fertilidade, juntamente com o isolamento e o descaso do governo, tornaram a vida ao longo do 6º território da colônia Rio Novo um verdadeiro martírio. Essa realidade ajudou a dar o impulso necessário ao deslocamento para as áreas mais interioranas e transformar o que antes eram quatro grandes fazendas escravistas e produtoras de café, no atual Município de Venda Nova do Imigrante. O período da chegada dos primeiros imigrantes na região do atual município de Venda Nova é um tanto quanto controverso. Segundo Novaes os primeiros imigrantes chegaram a Venda Nova por volta de 1892, sendo que em suas pesquisas essa data é atribuída a Antônio Venturim, no ato da compra da fazenda Viçosinha, região do distrito de São João de Viçosa. Posteriormente chegaria então, na atual sede do município, o imigrante Ângelo Altoé, comprando parte da Fazenda Providência e se instalando na mesma Doutor em Ciências da Educação pela Universidade Americana/PY revalidado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. Mestre em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo-UFES. Especialista em História Moderna e Contemporânea pelo Centro Universitário São Camilo. Professor de História do Instituto Federal do Espírito Santo. E-mail rpaste@ifes.edu.br. 1 [ 351 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS (NOVAES, 1980:127). Já para Cavati, o momento da chegada compreende aos anos de 1890 a 1893, sem dar uma certeza para tal fundação (CAVATI, 1973:53). Para Máximo Zandonadi, que foi autor de diversas obras a respeito da ocupação e desenvolvimento da região, os primeiros habitantes do lugar datam de 1891. Foram eles Ângelo e Giuseppe Altoé, que através da compra de parte da Fazenda Providência, deram início a ocupações do município (ZANDONADI, 1992:49), essa informação se refere a cede do atual município. E temos ainda os relatos de outro nome bastante conhecido na região, Euzaudino Venturini. Segundo ele, seu avô, Amadeo Venturim, chegou a região em 1891, e que Antônio Ventorini e Giovanni Ventorini, primos de seu avô, acompanharam tal ocupação e chegaram a região após a instalação de Amadeo no que hoje conhecemos como o distrito de São João de Viçosa. (LAZZARO, 1992:19). Não nos cabe definir quais desses nomes estão com a razão, o fato é que no início da década de 1890 iniciava-se a ocupação da região, junto com essa ocupação iniciava também a história de lutas e sofrimentos de muitos dos antepassados dos atuais habitantes do município. Devemos destacar que durante esse período o papel desempenhado pelas mulheres desses imigrantes sempre foi de grande importância. É comum encontrarmos apenas os referências masculinas nesse processo de ocupação, falamos de Amadeo, de Ângelo, Giovanni, entre outros tantos, mas em nenhum momento encontramos as referências as suas esposas, irmãs, filhas, companheiras, mães, etc. Não é normal encontrarmos pelas ruas da cidade a referência de que “foi minha avó que formou essa lavoura, foi minha bisavó que trabalhou nessas áreas”. É muito simplismo acreditarmos que os homens fizeram tudo que hoje aí está sozinhos, não podemos aceitar que as mulheres tiveram apenas o papel de meras observadoras do processo de construção de Venda Nova e de outras áreas do nosso Estado, do nosso País e do Mundo. Todo o esforço realizado pelos imigrantes foi válido, cada um fazendo sua parte, lutando como podiam. É nesse sentido que encontramos e nos impressionamos com a figura das mulheres. A elas cabia, já na Itália, uma grande variedade de tarefas dentro da sociedade peninsular. Sua figura será de grande importância em todas as etapas da formação da sociedade italiana, embora muitas vezes acabem sendo lembradas apenas pelas atividades tidas como “invisíveis”, tais como os trabalhos de casa, cuidar dos filhos e outras mais. Quando temos acesso aos problemas enfrentados pelos italianos em solo brasileiro, é comum despertarmos um misto de indignação e descrença pelas informações encontradas. Passamos a realizar as mesmas perguntas a cerca do assunto: seria possível que esses homens e mulheres realmente tiveram tamanho desafio para conseguirem prosperar na nova terra? Como puderam sobreviver a tamanhas provações? E tais questionamentos podem ficar ainda mais surpreendentes se julgarmos, de forma errônea, que as mulheres, por serem mais “frágeis”, deveriam sofre tanto quanto ou até mais que os homens, e por esse motivo seria difícil acreditar que haviam conseguido vencer esse desafio. O momento da chegada a região de Venda Nova já significava uma grande provação, a ausência de moradias muitas vezes tornavam os primeiros dias um verdadeiro tormento. As primeiras noites certamente nunca foram esquecidas por muitas dessas mulheres, os relatos, mesmo sendo de outras áreas, demonstram que a ausência de moradas dignas eram o primeiro grande obstáculo. Só depois de muita labuta subiam as primeiras habitações. Essas moradias eram muito rústicas e impróprias, porém era o que o momento podia oferecer, verdadeiras “ choupanas, grotescas, feias, porém sólidas e fortes, conforme pediam as circunstâncias [ ... ] o trabalho começava ao raiar do dia [ ... ] “ as acomodações e os objetos dessas casas eram os mais precários possíveis com “ leitos que [ ... ] magoavam o corpo: quatro paus fincados, um entrelaçado de cipó formando estrado, um magro colchão de capim [ ... ] ” (TAMANINI, 2006:27). Acordava-se cedo para preparar um rápido desjejum, que em muitos casos consistia apenas em uma fatia de polenta com um pouco de café. Após essa refeição inicial, cabia a essas mulheres preparar o almoço e as demais refeições do dia, que em grande parte das vezes eram levadas por elas mesmas na roça onde os serviços estavam sendo realizados. Pode-se perceber a extrema importância das mulheres para que a estrutura desenvolvida nessa sociedade não entrasse em colapso. Poupando tempo, poupando dinheiro, poupando capital que era reinvestido na propriedade. [ 352 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Era função das mulheres dar conta de preparar a merenda, o almoço, que era levado até o local onde os homens trabalhavam. Assim relata Teresa Dell’Armellina Serafini, você não sabe como era difici levá cumida pros meu irmón trabaiando lá no alto das derrubada. Hoje precisa umas 10 panelas pra fazê o cume que a mamãe fazia. (...) A gente saía daqui, de um lado um balaio pendurado, do outro um panelón daqueles preto, de ferro, subia aquele morro todo, era uma hora que gastava. Às veiz tinha taiadele2 e a mamãe botava taiadele na menestra3 (...) isso ia no panelón preto, e do outro lado do balaio ia uma polenta grande, só vendo. (...) Eu me alembro, nóis era minina e subia aquele morro. A gente chegava lá em cima cansada. E aí ficava lá trabaiando. Eu capinava, roçava, deriçava café, mas o pio de tudo era juntá café cum as mon. Olha, saía sangue das ponta dos dedo e a gente tinha que continuá trabaiando. (LAZZARO, 1992:64). Após cumprirem sua abrigação de levar a alimentação até o campo elas ainda eram aproveitadas nas atividades da roça. A rotina diária era o trabalho e mais trabalho, nem mesmo quando se ia para o local a ser trabalhado ou retornava da lavoura o trabalho era deixado de lado. Como os nonos e as nonas costumam dizer na região de Venda Nova, “ninguém dava viagem vazia”, ninguém ficava passeando entre as idas e vindas da casa para o trabalho, muito menos as mulheres, se na ida era necessário levar a comida dos homens em pesadas panelas e balaios, na volta sempre estavam com suas mãos ocupadas com cachos de bananas, inhame, abóboras, lenha entre outras coisas. Essa rotina era diária, era comum, às 4 horas da manhã, as mulheres já estarem na cozinha, ali preparavam os alimentos e começavam a realizar as primeiras atividades da casa. Tudo tinha que estar sempre preparado para nunca deixar faltar nada para os homens, as vontades masculinas eram a lei a ser seguida dentro das casas. Vivia-se em uma sociedade tipicamente patriarcalista, onde o homem é o grande chefe da unidade familiar. Segundo Pedro Altoé “na família italiana sempre existiu uma hierarquia, era o pai quem falava. Depois o filho mais velho e ia aquela seqüência.” (LAZZARO. 1992:56). Porém certos pontos poderiam ser analisados e discutidos, tal hierarquia seria justa? O que seria dessa sociedade, não só a de Venda Nova do Imigrante, mas de todas as sociedades formadas por imigrantes, sem a ação das mulheres? Os homens acordavam e já queriam seu café pronto, seu desjejum preparado, fosse um pedaço de polenta com ovo, fosse um pedaço de pão feito em casa com queijo, ou o que servisse de alimento. Uma vez que esses homens estavam pelos campos trabalhando, as mulheres continuavam a realizar suas tarefas dentro e ao redor da casa. Tratar dos porcos, cuidar das galinhas, tirar o leite, cuidar dos filhos, arrumar a casa, se preocupar em fazer o queijo, dar conta da horta que fornecia alimentos para a família, costurar, fazer o tricô, moer o milho para ter o fubá, que era utilizado no preparo da polenta, fazer a canjica do milho, etc. As atividades realizadas pelas mulheres dentro e ao arredor das casas eram inúmeras, além de ter que ajudar aos homens no trabalho das lavouras. E quando os homens chegavam dentro de casa não estavam preocupados se o dia das mulheres havia sido tão duro quanto o seu, queria a comida pronta, não importa a dificuldade que existisse, a função das mulheres era deixar tudo pronto para a alimentação dos seus maridos, filhos, netos, etc. Tais sofrimentos são comuns nas histórias dos descendentes de imigrantes italianos de Venda Nova do Imigrante, é fácil encontrarmos relatos que confirmam toda a dureza da vida das mulheres nos primeiros anos de vida no solo do antigo núcleo São Pedro de Venda Nova. É o que nos fala Anidis Venturim Pasti Desde criança eu sempre trabalhei na roça. Cum a idade de 7 anos mamãe deixou a cozinha para mim. Eu cozinhava, fazia tudo. Ainda as crianças para tomá conta. Talharim, tipo de macarrão feito em casa, muito comum na alimentação dos imigrantes e seus descendentes. Menestra ou Minestra. Espécie de canja, um tipo de sopa. Também é uma culinária típica de áreas de colonização italiana, nesse caso, Venda Nova do Imigrante. 2 3 [ 353 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS (...) Casei, continuei na roça, criando filho, um atrás do outro, trabalhando em casa e na roça. Eu capinava, deriçava café, plantava milho, feijão, arroiz, mas o pior da roça mesmo é capiná arroiz no meio do brejo. Carreguei muito café, mandioca, feijão, banana, milho, tudo nas costas. (...) Lavava a roupa a noite, passava a noite, cum aqueles ferro de brasa pesado, que demorava pra esquentá... remendava, porque durante o dia tinha que trabalhá na roça. A gente tirava leite, dava comida a galinha, cozinhava comida pra porco, fazia orta, molhava horta... (...)A gente trabalhava tanto que de noite sentava na cama pra rezá e nem conseguia, dormia. Os italiano era sistemático pra daná, as mulher não tinha direito a nada, só trabalhá. E elas trabalhava mais, os homens só trabalhava na roça e elas trabalhava na roça e em casa.(LAZZARO, 1992:109). Esse breve relato nos dá uma visão bastante aprofundada do que foi enfrentado pelas mulheres nos primeiros tempos da formação de Venda Nova do Imigrante. Anidis não é imigrante, seus avós eram imigrantes, sua criação foi baseada na criação que seus pais tiveram, sua realidade fora menos sofrida que a de sua mãe e avó, e mesmo assim deixa transparecer por tudo que as mulheres da sua época, e de antes dela, tiveram que passar. Como negar a importância dessas mulheres na história da formação do município de Venda nova do Imigrante? Muitos podem dizer que elas são lembradas, que seu trabalho é reconhecido, porém em nenhum momento temos livros descrevendo seus feitos, sua realidade. Não é possível encontrar nenhum material que faça referência a suas realizações em primeiro plano, com as mulheres como figuras principais. Sempre que seus nomes são lembrados eles aparecem em segundo plano, ofuscados pelos feitos dos homens. Quando iniciamos uma conversa com os descendentes de imigrantes do município vendanovense é certo escutarmos frases tais como “essa lavoura foi formada pelo meu avô, essas terras foram compradas pelo meu pai” entre outras. Ora, e as mulheres? Essas não ajudaram a comprar as terras com seu trabalho e seu suor? Também não contribuíram para a acumulação de pecúlio necessário para aquisição de novas terras? Quantas trabalhavam tanto quanto ou até mais que os homens, fosse em casa ou mesmo na lavoura de café, base econômica nos primeiros tempos da cidade. Homens e mulheres labutavam nos cafezais juntos, na hora do trabalho na lavoura muitas vezes não existia diferença entre os sexos. O trabalho era realizado da mesmo forma, embora não possamos negar que em certos aspectos, quando se tratava de força, os homens levavam uma certa vantagem sobre as mulheres. Mas mesmo assim, se lembrarmos das diversas atividades realizadas pelas mulheres, esta vantagem era superada. Segundo Saletto, que toma como base o padrão das fazendas paulistas para avaliar a adequação da quantidade de mão-de-obra à produção de café, “um trabalhador adulto, considerado uma “enxada”, se encarregava de 2 mil pés de café, e a mulher e filhos menores a partir de 12 anos, considerados “meiasenxadas”, cultivavam mil pés de café” (SALETTO1996:95). Por esses cálculos podemos perceber que a mulher dava conta de metade de pés de café que um homem adulto poderia tomar. Porém temos que lembrar que essas mulheres não se dedicavam apenas a esta atividade, elas ainda tinham, como foi visto anteriormente, diversas tarefas no seu dia-a-dia, além do trabalho na lavoura. Em todas as entrevistas realizadas para o desenvolvimento desta pesquisa, todos os entrevistados, tanto homens quanto mulheres, foram unânimes em dizer que entre as atividades realizadas nos trabalhos diários, as mulheres eram fundamentais, trabalhando as vezes mais que os próprios homens. Isso fica claro no relato do Sr. Benjamim Falqueto que conta sobra uma de suas tias, chamada Verônica Falqueto; segundo seu pai lhe falava, ela trabalhava banando 4 café igual a um homem; não perdendo em eficiências para os homens que a acompanhavam. Tal atividade ainda nos dias de hoje pode ser observada nas regiões do interior do município de Venda Nova, e em outras localidades. Banar o café é o ato de peneirar os grãos do café para poder retirar o excesso da sujeira contida entre os grãos. O indivíduo arremessa os grãos contidos dentro de uma peneira funda, feita de um tipo de taquara, ou bambu, para o alto e assim tenta separar a terra, as folhas e todo tipo de sujeira existente. 4 [ 354 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Dinheiro era artigo de luxo entre os habitantes da região de Venda Nova, Justina Venturini Pasti relata que antigamente não era moleza non! E pra fazê um tostón era muito difici. Eles nunca tinha dinhero, nunca, nunca, nunca. Tinha as coisa em casa por que colhia de tudo. E minha mãe sempre foi muito caprichosa. Tinha a horta dela com tudo. Era fejão de vage, era amendoim, era quiabo, de tudo, tudo. Aipim, batata doce, eu me lembro que mamãe plantava tomate (...)(LAZZARO, 1992, p. 78). Tais relatos nos demonstram que além de contribuir na produção dos gêneros que poderiam ser comercializados, e assim engordar o orçamento familiar, as mulheres ainda eram responsáveis pelas economias que poderiam ser feitas pelo simples fato de não ter que gastar com determinados alimentos ou produtos que as famílias necessitavam. Não raro essas mulheres atuavam em funções de direção das terras. Em casos de morte do marido, em casos de doenças, cabiam as mulheres as atividades de gerenciamento dos lotes de terras. Se ficar em suas propriedades na ausência do marido era fato normal, sair dessas propriedades e realizar atividades na comunidade em que estavam inseridas também não era atitude difícil de ser encontrada. Não raro as mulheres tinham que realizar longos trajetos a pé, ou no lombo de animais, para assim, com esta atitude, não necessitar retirar os homens de suas atividades diárias. Para essas imigrantes, função de auxílio e de direção em uma sociedade em formação era o que não faltava. Não apenas em atividades voltadas para a formação e desenvolvimento da propriedade elas estavam inseridas. Em um período que a presença de professores, médicos, padres, farmacêuticos eram raridades, a atuação do gênero feminino será indispensável, em muitos momentos eram elas que assumiam tais papéis . Em meio as matas, rios e todas as desventuras existentes teremos ainda a participação dessas mulheres no papel de parteiras, a elas cabia a tarefa de colocar no mundo os filhos dos moradores. Todas essas guerreiras que atravessaram o Atlântico e aqui desembarcaram, traziam com suas bagagens sonhos e esperanças. Aprenderam que o sonho pode se transformar em pesadelo, mais nem assim desistiram de tentar, lutaram com bravura e coragem, ajudaram seus parceiros a desenvolver o nosso país e nosso estado, passaram por inúmeros problemas e venceram. Não voltaram para suas casas na Itália com os bolsos cheios de riquezas, porém deixaram para seus descendentes riquezas ainda maiores. Histórias de um povo que não desistiu, não se curvou diante das dificuldades, lutou e enfrentou os desalentos de peitos abertos e ajudaram a construir o nosso presente. Mesmo com tantas realizações nas comunidades de descendentes de imigrantes italianos, caso de Venda Nova do Imigrante, o reconhecimento das mulheres não se faz tão importante quanto os dos homens. Vale frisar que não estou tirando o mérito das realizações e conquistas masculinas, não quero aqui dizer que os homens que trabalharam arduamente na formação do município devem ser deixados de lado. Todos sabemos de sua importância, de seus feitos, sem seu suor certamente a comunidade vendanovense não teria a beleza que hoje podemos nos deleitar. O que chamo atenção nesse trabalho é a falta de reconhecimento que muitas vezes as mulheres são vítimas, em poucas páginas tentei deixar claro que se os homens imigrantes fizeram grandes coisas, sem o auxílio feminino nada disso seria possível. E devemos lembrar ainda o fato de que mesmo com a atuação tão intensa dessas mulheres dentro das propriedades a elas, muito raramente, cabia alguma parte da herança familiar. Assim, os imigrantes e seus descendentes criaram regras próprias de sucessão, segundo as quais o último filho herdava a propriedade paterna, enquanto os outros homens recebiam propriedades formadas durante a vida do pai, e as filhas não recebiam terra. (SALETTO. p. 115, 1996) É entristecedor observarmos esta realidade, mesmo após anos de labuta junto da família, a elas cabia apenas um pequeno dote, quando este era dado. [ 355 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Ao pretender desenvolver tal pesquisa voltada para esse tema espero poder, no futuro, ajudar a esclarecer qual o devido lugar de nossas antepassadas. Entregar a elas uma vaga no carro da História de devido destaque e importância, não só as mulheres imigrantes italianas, mas a todas que já passaram por essa imensidão chamada terra. LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO CARVALHO, Regina Hees de, Santa Maria de Jetibá: uma comunidade teuto-capixaba. Mimeo. 1978. CAVATI, João Batista, História da imigração italiana no Espírito Santo. Belo Horizonte, Ed. São Vicente, s.d. 1973. COLBARI, Antonia. Familismo e ética do trabalho: o legado dos imigrante italianos para a cultura brasileira, in Revista Brasileira de história, São Paulo, ANPUH/Umanitas Publicações, vol. 17, nº 34, 1997. DE BONI, Luís Alberto. 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[ 356 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A Biblioteca do Brigadeiro Silva Paes: práticas médico-cirúrgicas no sul da américa portuguesa setecentista Rogério Machado de Carvalho1 Resumo: Esta comunicação contempla resultados parciais da minha participação como bolsista, desde março de 2017, no projeto Circulação e apropriação de saberes em obras manuscritas e impressas de Cirurgia na América Meridional do Setecentos. Nela, apresentamos e discutimos as práticas médicas empregadas no extremo sul da América portuguesa no século XVIII, a partir da análise de dois livros, a saber, Cirurgia Anatômica - Por perguntas e respostas (Monsieur LeClere, 1715, Trad. João Vigier) e O Practicante do Hospital Convecido (Manoel Gomes de Lima, 1756) que integravam a biblioteca particular do Brigadeiro José da Silva Paes, fundador da cidade de Rio Grande. Segundo Ana Cristina Araujo (1999) e Walter Piazza (1988), essa biblioteca era móvel, o que nos faz questionar sua relevância para o Brigadeiro, considerando os projetos metropolitanos de colonização e de ascensão social e política de Silva Paes. Ao apresentarmos estas duas obras de cirurgia do início do Setecentos, que se encontram na Biblioteca Riograndense, destacamos, primeiramente, os procedimentos terapêuticos que seus autores descrevem e indicam para o tratamento de ferimentos e enfermidades que poderiam acometer tanto os soldados, que, a serviço da Coroa portuguesa, atuavam nos conflitos fronteiriços, quanto os primeiros colonizadores. Na continuidade, ressaltamos as ações do Brigadeiro no que dizia respeito aos cuidados com a saúde dos súditos da Coroa portuguesa, na medida em que o projeto de expansão e ocupação do Continente de São Pedro passava pela manutenção e fixação dos colonos nas novas terras. Para compreender o processo de formação e as funções desempenhadas pelos cirurgiões no Setecentos, bem como os saberes e as práticas médico-cirúrgicas vigentes no período, recorremos aos trabalhos de FIGUEIREDO (2008), CARNEIRO (1994), WITTER (2005), MIRANDA (2004), ABREU (2007), FAUSTO, PALMA e CAMPOS (2013) e FILHO (1947), bem como aos dicionários de BLUTEAU (1712-28) e CHERNOVIZ (1890). Para entender o contexto histórico e político da região platina das primeiras décadas do século XVIII, nos valemos das obras de GOLIN (2015), KUHN (2014), PIAZZA (1988) e FORTES (1980). O trabalho de ARAUJO (1999) sobre a biblioteca do Brigadeiro foi fundamental para conhecermos melhor as práticas de leitura do período e a relação entre a posse de livros e os mecanismos de ascensão social próprias do período. Este artigo traz algumas considerações a respeito da minha participação como bolsista de iniciação científica UNIBIC. O projeto Circulação e apropriação de saberes em obras manuscritas e impressas de Cirurgia na América meridional do Setecentos, do qual faço parte, é orientado pela professora doutora Eliane Cristina Deckmann Fleck. Nele, desenvolvemos reflexões acerca das condições de saúde vigentes no extremo sul da América Portuguesa, a partir da transcrição e da análise de dois livros de medicina que se encontram na biblioteca Riograndense2 , cotejando-os com a bibliografia atual e a documentação existente do mesmo período. Nosso recorte temporal está vinculado ao tempo em que o Brigadeiro José da Silva Paes, fundador do Presídio Jesus Maria José, que deu origem à cidade de Rio Grande/RS, esteve no Brasil. Nosso maior objetivo é mostrar, através da análise de dois livros de medicina do século XVIII, qual importância dada pelas autoridades metropolitanas à saúde dos soldados e colonos do Continente de São Pedro. Acreditamos que essa preocupação com o atendimento de enfermos e com a garantia da saúde, no caso específico do Brigadeiro, também se devia ao seu projeto pessoal de ascensão política e social. Nesse sentido, sem tecer extensos comentários sobre o Brigadeiro Silva Paes e sem descrever sua extensa biografia,3 vamos tratar sobre o período em que esteve no Brasil como vice-governador do Rio de Janeiro. Sobre ele, podemos afirmar que sua origem burguesa não o impediu de galgar postos e benesses da Acadêmico de Licenciatura em História pela Universidade Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. (roggerio.carvalho@gmail.com) A Biblioteca Riograndense (Rio Grande/RS) possui uma sala chamada Silva Paes com várias obras de autores gaúchos. Nesta sala estão alguns volumes que faziam parte da biblioteca do Brigadeiro e são disponibilizadas para pesquisas. 3 Para um conhecimento completo da biografia do Brigadeiro ver PIAZZA (1988) e FORTES (1980) 1 2 [ 357 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS corte. O brigadeiro era engenheiro militar e foi por seus serviços que recebeu o Hábito de Cristo em 1719 (Piazza, 1988, p. 43). Durante o tempo em que foi assessor do Conselho Ultramarino tomou conhecimento do contexto da colônia brasileira, tendo sido um dos idealizadores das “Agoa da Carioca” (Piazza, 1988, p.39). Muito talvez por esse conhecimento do cenário brasileiro que foi designado vice-governador do Rio de Janeiro em 1735. No ano seguinte acompanha de perto o socorro a Colônia de Sacramento, onde em 1736, comanda in loco a situação do cerco espanhol a povoação lusitana. No seu retorno, em 1737, funda o presídio Jesus Maria José, marco que daria origem a primeira povoação oficial portuguesa em solo que hoje se chama Rio Grande do Sul. Sua preocupação com o sucesso do povoamento vai ao encontro dos projetos da corte portuguesa que, já em 1704 (Cesar, 1981, p. 62), manifestava interesse em povoar a Barra do Rio Grande, com o intuito de manter um cordão de apoio desde Laguna até a Colônia de Sacramento. Mesmo após se afastar do comando do Presídio, Silva Paes se preocupa com a situação dos colonos e soldados que mandara para lá. Sua inquietação com a saúde é inferida através da análise que fizemos de algumas cartas do brigadeiro durante seu período no Brasil. Como exemplo, principalmente de sua preocupação com o sucesso do projeto português de colonizar a região fica demonstrada em carta de 1736, quando se dirige a Montevidéu, comandando o socorro a Sacramento. Nela, o brigadeiro solicita que seja enviado Sebastião Gomes de Carvalho, homem qualificado nas artes cirúrgicas, segundo o próprio Silva Paes (Franco, 2003, p. 154). Podemos notar que bem antes da fundação do Presídio (1737), ele já solicitava esta provisão. Outro exemplo que temos é que, ao chegar para assumir o governo de Santa Catarina, ele observa que não há cirurgião e rapidamente solicita um, acrescentando que necessita também de uma botica, pois se soubesse que não ali não tinha, teria trazido a sua (Piazza, 1982, 69). Um segundo fato que podemos supor, através da afirmação acima, é que Silva Paes possuía uma botica particular. Quanto aos livros que, de acordo com Ana Cristina Araujo (1999), faziam parte da biblioteca particular do brigadeiro, sabe-se que eram 437 obras, sendo que 14 delas eram de cirurgia e medicina e, ainda, que era um acervo móvel. Ou seja, supõe-se que, pelo menos alguns livros, acompanhavam o brigadeiro e suas missões.4 Destas quatorze, duas obras são trabalhadas neste projeto de pesquisa: a Cirurgia Anatomica, e Completa, por Perguntas e Respostas, autoria de Monsieur Leclere (1661 – 1708), uma tradução de João Vigier do ano de 1715. E, também, O Practicante do Hospital Convencido (1756) que se constitui de uma monografia de Manuel Gomes de Lima (1727 – 1806). Ambas se encontram no acervo da Biblioteca Riograndense. Cirurgia Anatomica, por perguntas e respostas A primeira obra, com autoria atribuída a Monsieur Leclere, conhecido como François Pouppard, foi traduzida por um também francês, boticário em Lisboa, João Vigier, no ano de 1715. Esta obra é composta de várias edições e alguns historiadores sugerem se tratar de uma compilação de tratados, inclusive atribuindo ao autor apenas um capítulo de todo o livro 5. Por ser um tratado, nota-se uma descrição melhor das doenças e dos procedimentos necessários à sua cura. No último capítulo fala sobre os remédios que são necessários a um bom cirurgião, e isso, face ao contexto bélico que assolava a fronteira da América Portuguesa, era de suma importância. Como o próprio título sugere, o livro é organizado em perguntas e respostas. De um total de 393 perguntas – 167 questões são conceituais – este formato mostra como era útil a pesquisa desses procedimentos e conceitos, o que seria de grande praticidade no ambiente em que viviam os colonos e soldados. Walter Piazza (1988, p. 164) também comenta sobre a mobilidade da biblioteca do brigadeiro. Mas cita apenas as obras relativas ao seu trabalho. Ou seja, militares e de engenharia. 5 Segundo a Biographie Universelle, ancienne et moderne, Supplément (1845, p. 472 e 473), nos da conta que o tratado Cirurgia Anatomica foi publicado pela primeira vez em 1694, sob o nome Cirurgia Abrangente, com o autor assinando Gabriel Leclerc. Em nossas pesquisas, todas as referências de Gabriel Leclerc nos levam a Monseieur Leclere. A livre tradução do francês foi feita por mim. 4 [ 358 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Cartilagem que é? He huma parte que obedece, macia, que he quasi da natureza do osso, & que se acha sempre atada a seus extremos para os adoçar, & facilitar os seus movimentos. (Leclere, 1715, p. 9) O autor era bastante detalhista em suas descrições e também nas definições de cada doença e em relação aos procedimentos de cura para essas enfermidades. Considerando o escasso número de médicos existente na colônia, o didatismo do livro era útil para pessoas com pouca cultura e, ainda, de muita valia para aqueles encarregados das artes de curar, pois, muitas vezes, não havia um cirurgião por perto. Ainda nos capítulos iniciais (pág. 7), entre “ventosas, pinças, tenazes, bico de grou, bico de corvo, tirafundo, sacabalas, tentas cavas para fazer sair a urina da bexiga” e “ganchos para tirar os meninos mortos”, o autor procura orientar o leitor para o exercício da atividade. Descreve os instrumentos do cirurgião procurando destacar que alguns são portáteis e serviriam para suprir o prático em locais ermos ou em zonas de combate, aonde a instrumentação maior não seria possível. Que he o que chamais instrumentos portateis, & não portateis? Chamão se instrumentos aquelles que o Cirurgião traz no seu estojo de algibeyra, com sua cayxa de unguentos, & fios, se exercitar a cirurgia em Aldeas onde não haja botica; (Leclere, 1715, p. 5). A Sífilis sempre foi um problema junto às novas povoações e entre os militares. Nas palavras do Brigadeiro Silva Paes, o clima do Rio Grande era tão bom que não havia, “nem houve sezões, nem febres malignas, e Mulheres que eu tinha mandado do Rio, as mais corridas, e Galicadas 6, sem cura melhoraram, e pariram quase todas” (Cesar, 1981, p. 128). Lycurgo Santos Filho nos diz que “não há doenças climáticas”, mas as condições do ambiente “podem alterar e modificar a evolução de uma moléstia” (Santos, 1947, p. 32). O livro traz um capítulo inteiro sobre o Morbo Gállico, desde seus sintomas até os remédios para as diversas fases da doença. O que, sem dúvida, era de grande valia para os cirurgiões, dentro dos conhecimentos da época. Como diz a pesquisadora Nikelen Witter em seu trabalho Apontamentos para uma história da doença no Rio Grande do Sul – séc. XVIII – XIX (2005), assim como a sífilis, outras doenças foram transportadas pelos exércitos que circulavam – e interagiam – na fronteira meridional. O livro Cirurgia Anatomica (1715) nos traz um capítulo inteiro sobre as doenças venéreas. Além do morbo galico, traz definições sobre os cancros venereos, ou cavallos, e os buboens venereos. O morbo galico é, sem dúvida, o que mais toma espaço na explicação. Tanto na definição, passando pelo diagnóstico através da análise dos sintomas, quanto do tratamento com mercúrio. Aliás, a panaceia mercurial é ensinada detalhadamente em todo o seu processo (Leclere,1715, p. 191). Quando se faz uma leitura mais atenta, verifica-se que não há tratados ou conceitos específicos para a mulher. Através de uma única pergunta, o autor expõe detalhadamente o aparelho reprodutor feminino: A madre é o principal instrumento, e lugar aonde a geração se faz, é da figura de uma pera com a cabeça para cima: està situada entre o intestino recto, e a bexiga; he de uma substância carnosa, e membranosa: he retida em seu lugar por quatro ligamentos atados no seu fundo, dos quais os dois superiores são os ligamentos largos que vem dos lombos, e os dois inferiores são os que vem das verilhas, onde formão uma figura de pè de pato, que se extende aos ossos pubis, e à parte chata das coxas; o que faz com que as mulheres sejão sugeiras a mover cahindo sobre os geolhos. (Leclere, 1715, p. 84-85) Segundo o Dicionário de Rafael Bluteau (1789, p. 650), galicadas vem do galico, mal Francez, ou venéreo. Chernoviz (1890, p. 7) completa que galicar é sinônimo de Sífilis. 6 [ 359 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Na página 266 traz a descrição de um procedimento de cesárea. Um detalhe que chama atenção no texto é que em nenhum momento o autor se refere ao “bebê” ou “feto”. É sempre “menino”. No capítulo VI, página 168, o livro descreve os prognósticos e tratamentos de ferimentos com armas de fogo. Ressalta os pontos vitais em que um ferimento deste tipo significava a morte. No tratamento, chama a atenção a curiosa solicitação para que o cirurgião identifique a “qualidade da arma ou arcabuz” pois classifica as armas mais perigosas, explicando que quanto mais perigosa a arma, mais complicado seria o tratamento. No final da página 169 ainda solicita que o doente esteja na mesma posição que estava ao ser ferido, mostrando a importância de reconstituir a trajetória da bala para poder extrai-la pela mesma abertura. Como a sangria era um dos principais tratamentos, ele a sugere, mas com a advertência que se houvesse muita perda de sangue, se deveria apenas purgar. O intuito era aliviar a dor, e, por isso, indica os “remédios tópicos anódinos7” para ajudar no combate a dor. O autor de Cirurgia Anatomica segue descrevendo os procedimentos e os vários remédios existentes 8 para tratar as feridas feitas com armas de fogo. Para queimaduras com pólvora, um acidente que poderia ocorrer até mesmo durante os treinamentos, destaca que não se fazia necessário tirar os grãos da pele pois podiam se quebrar e entrar mais na pele. Segundo ele, “é necessário deixa-los vir a supuração”. “Cal viva em pó, nata de leite, mel escumado” misturados é um excelente unguento no tratamento desse tipo de ferimento. As escarificações9 profundas são indicadas quando o ferimento gangrenar. Adicione-se esterco de cavalo cozido em vinho para ser “aplicada em forma de cataplasma”. O autor reforça: “este remédio é aprovado”. O ambiente, considerado inóspito para os primeiros povoadores e soldados que provinham da área mais tropical do Brasil10, castigava e deixava suas marcas. Tau Golin (2015), ao comentar uma carta do Brigadeiro Silva Paes, destaca que as chuvas tornavam o terreno muito alagadiço. A água, por vezes, chegava à altura da cintura, quando montados. E nem todos tinham arreios. Diz Silva Paes: “Os soldados, os fiz montar em osso, e chegavam sempre tão molhados, sem terem com que remudar, que me causavam uma grande lástima”. (Silva Paes, apud Golin, 2015, p. 42). Nas moléstias que tinham como causa a umidade, o livro faz referências à frieira. Na página 124, o autor define o que são frieiras e na página seguinte indica o remédio adequado. Segundo ele: Lava-se, e se põe o calcanhar de molho em vinho cozido com pedra ume, e sal comum, logo se aplica uma cataplasma que se compõe juntando-lhe farinha de centeio, mel e enxofre. O sumo de rabãos quentes, aplicado com o unguento rosado, também é bom, ou óleo petróleo só. (Leclere, 1715, p. 125) Chernoviz ainda sugere “lavatorios com cachaça, aguardente camphorada, agua salgada ou misturada com vinagre, com agua de sabão, agua de Colônia, ou esfregar a frieira com limão” (Chernoviz, 1890, p. 1244). O Practicante do Hospital Na segunda obra, por se tratar de uma monografia, O Practicante do Hospital Convencido Dialogo Chirurgico sobre a Inflamação (1756), autoria de Manoel Gomes de Lima, já traz mais orientações para os 7 “Medicamentos de que tem as propriedades de acalmar a dor, como o ópio, o cloridrato de morfina, codeína, lactucario, éter, hypnone, etc.” (Chernoviz, 1890, p. 185). 8 Maria Regina Cotrim Guimarães, ao falar dos manuais de Tissot (1773), Buchan (1788) e Cullen (1788), comenta que “nesses manuais não serão encontradas” referências a farmacopeia brasileira por possuírem um caráter universalista. O que se aplica ao livro Cirurgia Anatomica, por este se tratar de uma tradução do francês. (Guimarães, 2005, p. 503) 9 “Escaras - Dá-se este nome à crosta resultante da mortifição de uma parte do corpo pelo fogo, pelo óleo de vitriolo, ou por algum outro cáustico violento” (Chernoviz, 1890, p. 1004). 10 Os primeiros povoadores, vindos de áreas tropicais, vieram de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Alguns casais fugiram do cerco à Colônia de Sacramento e outros de Laguna. Ver: Wiederspahn, 1979; Fortes, 1980 e 2001; José Honório Rodrigues credita também a existência de soldados do nordeste no conjunto de tropas sob o comando do Brigadeiro Silva Paes. Muitos destes ficaram se fixaram no presídio. (Rodrigues, 1954) [ 360 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS leitores, estudiosos e praticantes da cirurgia, do que propriamente práticas e procedimentos cirúrgicos. Em seu prólogo, deixa claro uma crítica que vai permear seu trabalho até a última página: A cirurgia em Portugal deixava muito a desejar em relação ao restante da Europa. O autor, apesar de fazer uso das técnicas de um holandês, elogia inúmeras vezes a cirurgia francesa, principalmente, quando se trata do ensino da Cirurgia. Manuel Gomes de Lima Bezerra nasceu em 04 de janeiro de 1757, em Ponte de Lima, e faleceu nesta mesma cidade em 06 de março de 1806. Médico, cientista de referência, acadêmico, escritor, Foi um erudito a quem nenhuma área do saber referente ao homem e à sociedade era indiferente, um intelectual de saberes e aplicações científicas especializadas, com particular realce na cirurgia e medicina, que se entregou a uma intensa actividade de associativismo, intercâmbio, renovação e divulgação científica 11. Já Pedro Vilas Boas Tavares, em seu trabalho “Manuel Gomes de Lima Bezerra: o discurso ilustrado pela dignificação da cirurgia” (2008) como um filósofo e “um erudito a quem nenhuma área do saber referente ao homem e à sociedade era indiferente”. (Tavares, 2008, p. 83) O que se nota em sua obra é a intensidade com que defende a cirurgia e o manifesto desejo de tornála tão eficiente e eficaz quanto, no seu julgamento, era a cirurgia francesa. Para ele, a situação em que se encontrava a cirurgia portuguesa estava ligada à falta de guerras em Portugal. Para ele, a cirurgia evoluía a partir de uma “nação de guerreiros”. Ele acrescenta que o ensino da cirurgia devia vir de vários autores e os professores deviam ler as obras nas várias línguas em que eram escritas. Nota-se por esta exigência que o autor não estava escrevendo para homens incultos nas artes da cirurgia. Conforme nos diz Adelino Cardoso, no pensamento de Boerhaave, o médico deveria conhecer não só medicina, mas ter uma formação científica que englobasse todas as ciências da natureza. (Cardoso, 2011, p. 156, 158). Para Manoel Gomes de Lima, sua obra é, segundo o próprio título, “fundado nas doutrinas do incomparável Boerhaave”. No Prólogo, seguindo a linha de Boerhaave 12, o autor destaca que em cirurgia se faz necessário “saber Latim, História Natural e a Economia do corpo humano”. Mais adiante, reitera “que não só a Física, Anatomia e a Patologia lhe são necessárias, mas a Matemática, a Botânica, e muitas outras”, são importantes no aprendizado. Na página 10, o autor questiona os cirurgiões portugueses que sabiam apenas a língua francesa, uma vez que o próprio estatuto francês exigia que o estudante, ou praticante de cirurgia, tivesse conhecimento de Latim, Física e Belas Artes. Para ele, era impossível que os portugueses que sabiam apenas francês aprendessem a arte da cirurgia se não lessem obras de autores médicos escritos em latim. O autor não foge a esta regra e cita, por toda sua obra, diversos autores para referenciar seu conhecimento e justificar seus argumentos. O livro O Practicante do Hospital Convencido é estruturado em duas partes. A primeira estabelece um diálogo sobre a inflamação entre um praticante da cirurgia e o autor. É nessa parte que ele estabelece todo o seu princípio crítico ao ensino da cirurgia em Portugal. Principalmente o fato de se estudar a cirurgia a partir da Cirurgia de Antonio Ferreira 13 (1670) que, segundo ele, independente do sucesso que tenha feito no passado, é insuficiente para o atual aprendizado da cirurgia. Nesse sentido, Manoel Gomes de Lima faz questão de ressaltar o conhecimento de Boerhaave e dá a ele um destaque à altura da fama que já desfruta. Dedica várias páginas à biografia de Herman Boerhaave, engrandecendo a carreira e a obra desse que trouxe novos conhecimentos referentes ao uso de “substâncias medicinais de origem mineral”. (Lemos, 1881, p. 132) A necessidade de ler vários autores é dada de forma bastante convincente. Para poder compreender os ensinamentos de Boerhaave, o autor sugere que o praticante tenha conhecimento da bibliografia sobre os Portal Ponte de Lima Cultural. Disponível em https://pontedelimacultural.pt/as-pessoas-subpag.asp?t=paginas&pid=1586. Acesso em 23 out de 2018. 12 Herman Boerhaave (1668-1738). A primeira obra influenciada por ele, escrita em português, foi A Matéria Médica (1735, 1738), escrita por Jacob Castro Sarmento. (Pinto, 2011, p. 166) 13 Antonio Ferreira (1616-1679). Sua obra marcou a cirurgia em Portugal. Estudou em Coimbra. Foi cirurgião no Hospital Real de Todos os Santos e, por merecimento, cirurgião-mor de D. Pedro II. Para Maximiano Lemos, Antonio Ferreira “ocupa na história da nossa cirurgia um lugar preponderante” (Lemos, 1881, p. 96). 11 [ 361 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS diversos assuntos que envolviam a medicina e cita vários exemplos de autores que se utilizaram desse meio. Sobre a inflamação, especificamente, divide os autores a serem discutidos – e citados por ele – em duas “classes”. Nessa divisão, tanto cita as obras de cada autor com sua biografia, quanto critica algumas. Mas procura sempre mostrar as qualidades de cada título. É, através delas que define, junto com seu pupilo, o que é inflamação: “a inflamação é um tumor preternatural 14, renitente, duro, vermelho, e quente, com dor punctoria, e algumas vezes com febre” (p. 41). Com o conhecimento dos antigos, o autor sugere que o praticante já conseguiria evoluir para um próximo passo, desde que conhecesse as publicações e descobertas de outros autores. Chama a atenção que todas as definições dadas pelo autor possuem um caráter didático. É através de analogias e exemplos, de certa forma corriqueiros, que torna os conceitos de fácil aceitação e entendimento. Exemplo disso, temos na explicação sobre a inflamação dos nervos, pois compara-os com uma corda de viola. Desta forma, torna o conhecimento do Fleymão, da Erysipela, Edema ou Scirro de fácil entendimento e compreensão. E, mantendo sua forma de pensar a respeito do ensino da cirurgia, Manoel Gomes de Lima faz uso de diversos autores para justificar seus conceitos e, como não poderia deixar de ser, do tratamento da inflamação. O autor encerra a primeira parte do livro com o reconhecimento do praticante de que sem o conhecimento do corpo humano e até da história natural ele não teria condições de ser um bom cirurgião. O autor ainda se propõe a ensiná-lo mais, desde que fosse nas horas em que não estivesse trabalhando com cirurgia. Ao citar o dr. Jacob de Castro Sarmento, que dizia que a cirurgia da Inglaterra pagava mais e só aprendiam as pessoas ricas, Manoel Gomes de Lima reitera que a cirurgia em Portugal se ganha pouco e se trabalha muito. Na segunda parte, Manoel Gomes de Lima procura demostrar como seu trabalho de cura se desenvolvia. Cita exemplos de curas em que foi protagonista no tratamento, sempre com sucesso. Na primeira observação mostra como curou um estiomeno15 do escroto em pouco tempo. Ao fazer o diagnóstico, imediatamente, solicitou uma sangria e mandou alimentar o doente com: caldos de galinha, e ameixas, e bebesse quanta agoa quisesse, cozida primeiro com cevada de França. Ordenei-lhe para de tarde hum Clyster emoliente de cozimento de Malvas, Mercuriaes, e folhas de Violas, por estar adstricto 16 de ventre, e receiteilhe para tomar sobre a Sangria huma Tizana compota de duas livras de cozimento de Raizes de Althea, e Golsaons, folhas de Parietaria, e Alface com duas oitavas de Cristal Mineral. Na parte mandei fomentar todo aquelle dia com hum cozimento de Flores de Sabugo, Arros do Telhado, Tanchagem, Pero Camoez e Alfavaca de Cobra em Leyte. (Lima, 1756, p. 160-161) (Grifos do autor) Neste pequeno trecho já podemos observar o quanto são importantes, para o autor, outros trabalhos já em desenvolvimento ou obras clássicas. É nelas que ele se espelha para determinar, na sua concepção, o que é necessário para a cura. Nas notas de rodapé, o autor procura mostrar todos os autores que referenciam seu trabalho. Sobre “quanta agoa quisesse” faz uso de DD. Peres Guttier, e Vasques. Justifica o uso do “Clyster Emolliente” pela própria qualidade do clister, “que obtudem a acrimônia, e abrandão, e lubricão o ventre he útil nas Inflammaçoens”. Quando indica a fomentação da parte afetada, faz uso de Ferreira, que representa a “Escola Antiga” e sugere o uso de “Repercussivos puros na inflamação dos testículos”, mas usa, também, autores que representam a “Escola Moderna”, que sugerem o uso de emolientes e anódinos. Todas Na definição do próprio: “Tumor é mesmo que inchação e vem do grego Oedos, que significa distensão para os lados, para diante e para o centro; e como por meio da tal inchação toma a parte maior crescimento, dizemos, que não é natural, mas preter, ou além do natural” (Lima, 1756, p. 41). 15 Segundo Bluteau, estiomeno significa comido da gangrena (Bluteau, 1789, p. 564). Para Chernoviz, dá-se este nome (Esthiomeno) a certas ulceras do rosto ou da vulva que se estendem, em profundidade, roendo os tecidos. A mesma palavra aplica-se também a certos dartros, e sobretudo ao lupo (Chernoviz, 1890, p. 1048). 16 Adstricto – mui apertado. De Adstringir; apertar, cerrar, unir (Bluteau, 1789, p. 30). 14 [ 362 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS as suas ações são fundamentadas em autores tais como Juncker, Hildano, Aecio Amideno, o próprio Boerhaave que nos casos de inflamação dos testículos, segundo o autor, aconselhava a “sangria largamente”. Manoel Gomes de Lima encerra sua observação dizendo que “foi cousa pasmosa de ver o como se reproduziu toda a parte dos testículos, que se tinha separado, e o como o escroto inteiramente se regenerou” (p. 167). Na segunda observação, o autor comenta sobre a M. Marcellina Antonia Leonisa Sandanha, uma freira Franciscana do Convento de Monchique. Esta moça de 25 anos, mais ou menos, sofria de um tumor na mama esquerda. Era um como huma laranja medíocre, desigual, duro, escuro, aderente ao peyto, com muytas veas negras em roda, e com dor, e picadas penetrantes de tempo em tempo. (p. 169) Neste caso, nota-se o respeito que o cirurgião possuía pelo trabalho do médico que não quis extirpar o tumor logo de início, que, segundo ele, era a melhor forma de curar. Como a doente não estava com “falta de animo naquele tempo” e havia solicitado com muita fé os cuidados do autor, isto, acrescentado do fato de que a paciente já se tratava com o “erudito” médico Antonio Mena Falcão, fez com que o autor optasse, sem muita fé, pela cura através de remédios e outros procedimentos. Novamente faz uso de vários autores 17 que indicam remédios para estes casos. Como não obteve resultado optou por extirpar o tumor, não sem antes fazer com que a enferma recebesse os sacramentos da Igreja e tivesse o acompanhamento do médico. Feita a cirurgia, começou o tratamento, e, posteriormente, viu, com proveito, que a chaga cicatrizava. Após isto, o autor inicia uma discussão a respeito da doença e discute com vários autores os procedimentos. Critica veementemente os cirurgiões que não adotavam a extirpação ou aqueles que preferiam se omitir sobre a doença. Para ele não havia idade que impedisse um cancro ou tumor de ser extirpado, “salvo se os inimigos da extirpação entendem, que hum Cancro he menos perigoso na massa do sangue, do que em as Glandulas de huma Mamma” (p. 180). Nessa discussão mantém sua crença na cirurgia francesa e julga que um cirurgião no alto de sua razão não negaria isso, já que a cirurgia francesa 18 acredita na extirpação do tumor para uma cura efetiva. Em uma terceira observação ele trata de um cancro ulcerado nos lábios e na face direita de José Pinto Lavrador, setenta anos. Segundo ele: Principiava este Cancro no meyo do Labio inferior, ou sphinter dos Beiços: estendia-se pela face sobre os Musculos Elevadores superior, e inferior, Zigomatico, e parte do Buccinator, e terminava no Sphinter superior. A vista era horrenda, a dureza em roda grande, e a chaga com lábios revirados, e com cheiro fétido” (p.180). (Grifos do autor) Neste caso, contando com a ajuda do cirurgião José de Sousa Feliz e de seu filho, tratou de extirpar logo o cancro. O tamanho do corte era tanto, que o autor não conseguiu juntar as partes. Fez uso de um procedimento semelhante à cirurgia do Lábio Leporino. Comenta que, um ano depois, encontrou o paciente curado daquele tumor. No entanto estava com um princípio de outro tumor. Escreveu para o cirurgião José de Sousa Feliz para que extirpasse assim que fosse possível. Reitera nesta observação a necessidade de se extirpar o tumor, não importando a idade. Uma rápida reflexão a respeito desse autor e de sua escrita nos indica um padrão de procedimento que justifica as suas colocações no início do trabalho. Nas primeiras páginas, ele comenta sobre a necessidade de conhecer mais de um autor e de se manter atualizado em relação à prática da cirurgia dos No início do tratamento o autor faz uso de Circulos de Oleo de Ouro sem frutos, como atestam os Cirurgiões Costa, e Monteiro. (Lima, 1756, p. 170) 18 Manoel Gomes de Lima não se furta a citar os autores franceses entre eles, Mr. Le Cat, cirurgião de Ruan, Mr. La Sone, médico da Rainha de França. Chega a citar um prêmio que a Real Academia de Cirurgia lança em 1738, para quem tivesse o melhor tratamento para o Cancro nas Mamas. 17 [ 363 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS outros países. Salienta, ainda, a necessidade de se saber para além do processo cirúrgico. Era, por isso, necessário o conhecimento de outras línguas, principalmente o latim, para poder conhecer os trabalhos de outros autores. Além das línguas, era necessário que se conhecesse anatomia, botânica, belas letras. Nota-se a imposição deste conhecimento de anatomia tanto no momento em que se iria extirpar o tumor, pois ele evitaria o corte de veias e artérias que determinaria uma complicação vital para o paciente, quanto no momento da indicação de unguentos e cataplasmas que se utilizassem de plantas com propriedades de cura. Considerações Diante de tudo que expusemos, podemos constatar o quanto a literatura médica era importante para as populações coloniais, principalmente as estabelecidas no extremo sul da América portuguesa. Considerando a forma atualizada e didática de exposição das obras aqui expostas, pode-se inferir as possíveis razões para que o Brigadeiro possuísse um tratado de cirurgia como o Cirurgia Anatomica, e completa. Sua leitura permitiria que o Brigadeiro acessasse um conhecimento sobre as teorias de medicina vigentes naquele período, o que nos leva a supor que ele tenha feito efetivamente a leitura do tratado Cirurgia Anatomica, e completa. O cotejo que fizemos com as cartas do brigadeiro, a bibliografia atual e as fontes demonstram que suas ações enquanto comandante militar e, principalmente, seu empenho para o êxito do projeto de colonização desenvolvido pela Corte portuguesa, denotam essa preocupação com a saúde. Independentemente do seu interesse pessoal. Por sua riqueza de detalhes e exposição de conceitos e procedimentos, que atendiam à demanda dos primeiros soldados e colonos no Continente de São Pedro, o Tratado de anatomia traz orientações mais precisas do que o Praticante do Hospital Convencido. Quanto a este último, não podemos afirmar que tenha sido utilizado por Silva Paes na sua passagem pelo Brasil, pois foi impresso em 1756, quando o Brigadeiro Silva Paes já se encontrava em Portugal. O fato de a obra integrar sua biblioteca pessoal é um indicativo de seu status social (Araujo, 1999) e, mesmo já contando uma idade avançada, pode-se supor que Silva Paes tenha tido acesso ao conteúdo da monografia e, portanto, à crítica que seu autor fez ao “estado em que se encontrava” a prática da cirurgia em Portugal e a sua posição sobre a relevância das traduções de obras de medicina para aquele país. BIBLIOGRAFIA ABRIL, Victor Hugo. Governança no Ultramar: conflitos e descaminhos no Rio de Janeiro (1725- 1743). 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[ 366 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Análise iconográfica das ações cívico-sociais do Exército na Fronteira Brasil/Argentina na década de 1970 Ronaldo Zatta1 Ismael Antônio Vannini2 Resumo: Esta comunicação têm o intuito de analisar as ACISO – Ações Cívico-Social realizadas na década de 1970, na fronteira Brasil/Argentina, através de parte do acervo iconográfico de uma extinta unidade militar do Exército Brasileiro, a 3ª Companhia do 33º Batalhão de Infantaria Motorizada. Tal organização militar, batizada pelo nome histórico de “Sentinelas do Sudoeste”, foi implantada na cidade de Francisco Beltrão/PR em meados da década de 1950, durante o conflito agrário conhecido como Revolta dos Posseiros; e, suprimida em 2001 por ocasião dos novos redirecionamentos das Organizações Militares que o Ministério da Defesa realizou no início do século XXI, culminando em sua substituição pelo 16º Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, oriundo de Passo Fundo/RS. Como proposta de pesquisa, que acreditamos ser uma contribuição inédita para a História Militar brasileira, nos propomos em discutir – valendo-se como fonte primária do Álbum Fotográfico da 3ª/33º BIMtz, que retrata a ações daquela unidade militar durante década de 1970 – como as ACISO foram operacionalizadas numa região sensível aos problemas de fronteira, sendo atuações criteriosamente planejadas, e intentas, no sentido de contribuir para a construção de um sentimento comunitário em prol do Exército brasileiro como instituição necessária, durante o Regime Militar brasileiro. Considerações iniciais Esta pesquisa têm o intuito de analisar as ACISO – Ações Cívico-Sociais realizadas na década de 1970, na fronteira Brasil/Argentina, através de parte do acervo iconográfico de uma extinta unidade militar do Exército Brasileiro, a 3ª Companhia do 33º Batalhão de Infantaria Motorizada. Tal organização militar, batizada pelo nome histórico de “Sentinelas do Sudoeste”, foi implantada na cidade de Francisco Beltrão/PR em meados da década de 1950, durante o conflito agrário conhecido como Revolta dos Posseiros; e, suprimida em 2001 por ocasião dos novos redirecionamentos das Organizações Militares que o Ministério da Defesa realizou no início do século XXI, culminando em sua substituição pelo 16º Esquadrão de Cavalaria Mecanizado, oriundo de Passo Fundo/RS. Como proposta de pesquisa, que acreditamos ser uma contribuição inédita para a História Militar brasileira, nos propomos em discutir – valendo-se como fonte primária do Álbum Histórico Fotográfico daquela Organização Militar, integrante do Exército Brasileiro, denominada 3ª/33º BIMtz, que retrata parte das ações daquela unidade militar durante década de 1970 – entre elas, selecionadas para este estudo, as ACISO que foram operacionalizadas numa região sensível aos problemas de fronteira, considerando-as, como atuações criteriosamente planejadas, e intentas, no sentido de contribuir para a construção de um sentimento comunitário em prol do Exército brasileiro como instituição necessária, durante o Regime Militar brasileiro. O processo de ocupação colonial e a presença militar na fronteira Brasil/Argentina A região de fronteira Brasil/Argentina, qual compreende geograficamente o Sudoeste do Estado do Paraná e o extremo Oeste de Santa Catarina, apresenta em sua ocupação colonial algumas características distintas daquelas tendencialmente perpetradas no sul do País. Inúmeros fatores de ordem política, judicial, militar e social, deram uma conotação, sobretudo conflituosa, no processo de colonização. Litígios entre o Estado do Paraná e a União Doutor em História pela UFPR. Vinculado ao Grupo de Pesquisa CNPQ “Cultura, Etnias, Identificações”. E-mail: ronaldozatta@yahoo.com.br . 2 Doutor em História. Professor do Curso de História da UNICENTRO - Campus de Coronel Vivida. Vinculado ao Grupo de Pesquisa CNPQ “Cultura, Etnias, Identificações”. E-mail: vaniniunicentro@gmail.com . 1 [ 367 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS desencadearam contendas pelas glebas de terras, que, posteriormente as disputas foram protagonizadas também por interesses particulares, empresas colonizadoras e pelos colonos posseiros. (GOMES, 2005). Enquanto a questão tramitava sub judice, o governo varguista, na ação da marcha para o oeste, intervém na região e cria uma colônia para incentivar a colonização a CANGO (Colônia Agrícola Nacional Osório) por um decreto de 1943. Tal projeto estimulou rápida e desenfreada migração de colonos, assentados ilegalmente nos lotes das glebas de terras do sudoeste. Devido ao embargo litigioso em que a região se encontrava os colonos não obtiveram os registros dos lotes, esta condição transformou os ocupantes em posseiros. (LAZIER, 1998). Uma companhia de capital norte americano adquiriu, também ilegalmente, a posse das mesmas glebas, já questionadas pelos governos e pelas famílias dos colonos posseiros. Tal contenda confrontou o interesse dos posseiros, que lutavam pelos lotes de terras, e os jagunços, que em nome das companhias pretendiam expulsar os ocupantes. Como pano de fundo, se deflagrava uma luta política entre os diferentes grupos de poder, que atingia diretamente a instância estadual e federal. Por conta disso, as autoridades instituídas na região representavam os interesses políticos conflitantes, e, no caso, posicionavam-se no sentido contrário aos posseiros. (COLNAGHI, 1994). Quando o embate armado atingiu proporções alarmantes, a imprensa nacional e internacional noticiavam o episódio do embate das guerrilhas agrárias, foi instalado um destacamento efetivo do Exército Brasileiro em Francisco Beltrão. A cidade também era a sede da companhia colonizadora e abrigava os escritórios das empresas imobiliárias. A princípio, tal destacamento se mantinha acantonado, como efetivo de forças a intervir no momento que fosse convocado. Quando o clima de instabilidade tomou conta da região, as autoridades políticas e militares observaram a necessidade de medidas e forças de controle. Tornara-se imperativo o deslocamento de efetivos militares, como forma de inibir o recrudescimento do conflito, no sentido de atuarem como mediadores entre os grupos envolvidos. No ano de 1954, um efetivo das tropas do Batalhão de Caçadores, provenientes de Joinville –SC e outro efetivo de Infantaria de Ponta Grossa- PR, se instalaram nas dependências da CANGO, em Francisco Beltrão. 3 Nos anos posteriores o efetivo militar foi ampliado, em 1957 fora destinado a Francisco Beltrão outro pelotão de Infantaria, constituído por quatro sargentos, cinco cabos e vinte e quatro soldados, comandados pelo tenente João da Cruz Filho.4 Em outubro de 1957, o embate entre os grupos chegou ao ápice, convulsionando articulações políticas da região, do Estado e da União. Os registros e as evidências do levante armado, quando seis mil colonos tomaram de assalto o controle do Sudoeste do Paraná, revelam que as forças militares foram decisivas para o controle do conflito. Vindo, posteriormente em 1962, por determinação da Casa Militar, que por sua vez estava subordinada diretamente à Presidência da República, operar, através do Grupo Executivo de Terras para o Sudoeste do Paraná – GETSOP, a medição e titulação dos lotes urbanos e rurais, trabalho que se prolongou até década de 1980, garantindo assim os direitos a propriedade da terra na região de fronteira. (WACHOWICZ, 1987). Importante entendermos o processo de colonização do Sudoeste do Paraná com a presença efetiva e decisiva das forças armadas. Forças apaziguadoras e mediadores de um sangrento conflito agrário, que, deve-se ressaltar, finalizado com uma inédita vitória dos pequenos colonos posseiros. No final, as terras foram desapropriadas e as famílias tiveram suas terras tituladas, permanecendo em suas propriedades. Nesta conjuntura, o Exército se define como instituição atuante e de prestigio na região. Gozando de status de referência para a ordem e paz entre a população. Destarte, a participação da instituição lhes rendeu no imaginário social local o título de “guardião” das terras em litígio. A normatização institucional das ACISO na década de 1970 O Exército brasileiro define as Ações Cívico-Sociais como atuações próprias militares, de intervenção social, explanadas como um: 3Boletim interno Nº 12,2 de 30 de Junho de 2000, da 3ª Companhia do 33º Batalhão de Infantaria Motorizada da cidade de Francisco Beltrão-PR. 4Boletim interno Nº 5, de 7 de Janeiro de 1957, do 13º Regimento de Infantaria da cidade de Ponta Grossa- PR. [ 368 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS “Conjunto de atividades de caráter temporário, episódico ou programado de assistência e auxílio às comunidades, promovendo o espírito cívico e comunitário dos cidadãos, no país ou no exterior, desenvolvidas pelas organizações das Forças Armadas, nos diversos níveis de comando, do aproveitamento dos recursos em pessoal, material e técnicas disponíveis, para resolver problemas imediatos e prementes”. (EXÉRCITO BRASILEIRO, 2018). Trata-se portanto, de uma didática para aplicação de técnicas que orientam a atuação militar, de caráter humanitário, executada por tropas comprometida com a solução de problemas emergenciais, sendo eles ocasionados por calamidades ou guerras; mas também, disposta na labuta da formação de espíritos cívicos comunitários, se valando dos meios diversos disponíveis para a ocasião. Há razões para acreditarmos que a orientação de aplicação de tropas militares em ACISO iniciou-se com a emulação do modelo militar americano, à partir dos acordos de 1942 e 1952, firmados entre Brasil/EUA após a vigência da Missão Militar Francesa (1919-1939), qual privilegiava a “cooperação, adoção de armas, equipamentos e doutrinas”. (SVARTMAN, 2016, p. 361). Pois, foi a partir daí que identificou a terminologia nos manuais de doutrinas militares daquela instituição, intensificada pela próxima relação que os EUA, militarmente, exerceram nas doutrinas de emprego do Exército brasileiro até 1985. Ainda no início dos anos 1970, sobre a aplicação de tropas militares em calamidades públicas, o Governo brasileiro se manifestou por lei, assinada pelo General Emílio Garrastazu Médici, preliminarmente, através do Decreto nº 67.347, em 5 de Outubro de 1970, qual estabeleceu diretrizes, e normas de ação, para defesa permanente contra as calamidades públicas, além de criar um Grupo Especial para os casos. O artigo 11 daquele decreto esclareceu, inicialmente, sobre as funções das Forças Armadas naquele tipo de operação: “Art. 11. Os Ministérios do Exército, da Marinha e da Aeronáutica darão apoio de pessoal e material necessários ao planejamento e execução de tarefas de socorro, ao transporte marítimo e aéreo de suprimento e as missões de busca e salvamento, nos âmbitos federal, estadual, territorial e municipal.” (BRASIL, Decreto nº 67.347 de 5 de Mar.1970). Desta forma, um embrião do que hoje é conhecido por Defesa Civil, que atua no âmbito de responsabilidade das Unidades Federativas, passava a ser prevista em lei federal, compondo um quadro que envolvia diversos ministérios. Sendo que as ações do Exército em calamidade pública passaram à estar previstas em situação de emergência, sendo elas provocada por fatores anormais, e adversos, que afetam gravemente a comunidade, mas em condições que privava total ou parcialmente do atendimento de suas necessidades, ou até mesmo ameaçando a existência ou a integridade de seus elementos. Os anos 70 do século passado reportam os ânimos mais intensos do Regime Militar brasileiro, no seio das Forças Armadas se intensificavam o combate aos comunistas, e os esforços dos atores envolvidos naquele contextos seguiam focado naquele sentido. Assim, em 1973, o Exército brasileiro efetiva seu recente encargo legal através da elaboração de estudos sobre calamidades públicas, que resultou na impressão do “Manual de Campanha C19-15 Distúrbios Civis e Calamidades Públicas”, qual foi aprovado pela Portaria n. 148 – Estado Maior do Exército em 29 de Ago. 1973. Vinculado à ideologia da Guerra Fria, bem como o combate internacional ao comunismo, este manual passou, primeiramente, a orientar os militares brasileiros integrantes das unidades operacionais, no exercício de ações de polícia, em seu planejamento e sua execução de atividades de “controle de distúrbios civis” 5; e, num segundo momento, uma orientação para campanhas de ACISOS. O fato é que as ACISOS já aconteciam, e a elaboração de material de orientação é fruto do pensamento militar que conduzia o Regime Militar brasileiro desde meados da década de 1960. O material produzido pelas 5 Na visão dos militares brasileiros, em 1970, o distúrbio civil poderia ser considerado uma quebra de ordem pública, uma alteração da paz social através do conflito de ruas ou atos contra autoridades de um governo instituído. [ 369 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS prensas militares direcionava as tropas no sentido de tratar como missões prioritárias, em operações de calamidades, a seguinte ordem de importância em suas atuações diretas: a) preservação da ordem pública; b) tentativa de evitar o pânico; c) proteção de instalações importantes; d) o controle de tráfego; d) o controle, circulação e evacuação de civis; e) a manutenção da ordem pública; f) a repressão ao saque; e, g) o fornecimento de serviços médicos de urgência. O Manual de Campanha C1915 de 1973, pensava as calamidades públicas sob a ótica da Guerra Fria, de fato, era filho de seu tempo! Elaborado em um período que muitos pesquisadores compreendem como o endurecimento do Regime Militar brasileiro, apresentou-se muito mais preocupado com a preservação da lei e da ordem pública, do que claramente com as questões emergenciais incitadas pela calamidades públicas. Assim, em sua essência a quebra da ordem pública e da paz social, seja por eventos naturais ou fabricados, necessitavam da intervenção direta do Estado militar para reparação, evitando o caos. Desta forma, a previsão em Manual para o combate à greves, tumultos e saques, antevia a preocupação com o reestabelecimento da normalidade afetada pelas calamidades. Interessante também, é perceber que, as Forças Armadas, em casos de calamidade pública, colaborariam com os ministérios civis, sempre que solicitadas, na assistência às populações atingidas e no estabelecimento da normalidade. A finalidade era apoiar autoridades civis, porém poderiam ter a responsabilidade de coordenar as ações, desde que houvesse a delegação de poderes. Segundo a mesma doutrina, uma preparação, ou mesmo ações preventivas que pudessem minimizar os efeitos de uma calamidade pública, também eram compreendidos como medidas a serem adotas pelas Forças Militares. Mesmo relegadas à um segundo momento, as operações emergenciais, em detrimento das operações de polícia, podem ser percebidas que as ACISOS eram percebidas pelos militares como uma resposta do Estado na situação do caos social, ou nas ocasiões de perturbação da paz social, vistas como necessários para garantir atos de autoridade de um governo instituído. O Manual C19-15 orientou as atividades de ACISOS do Exército brasileiro, desde a data de sua publicação em 29 de Ago. 1973 até 18 Dez. 1997, quando foi revogado pelo Manual de Campanha C19-15 Operações de Controle de Distúrbios, quando em aspectos de doutrina no emprego das Forças Terrestres, o Exército dividiu, em questões de instrução de operações, as operações de polícia vinculados aos caos de distúrbios, das operações de calamidades públicas e assistências emergenciais. A realização das ACISO na fronteira Brasil/Argentina na década de 1970 Para esta comunicação, nos propomos a analisar as imagens de três eventos de ACISOS empreendidas pelo Exército brasileiro na fronteira Brasil/Argentina nos 70 do século passado, cujos registros dos fotógrafos militares, com cunho memorial-institucional, compõe o Álbum Histórico da 3ª Companhia de Infantaria instalada em Francisco Beltrão/PR. Foram eles: 1) no ano de 1970, em Salgado Filho/PR; no ano de 1971 em Romelândia/SC; e, em 1974, em Santo Antônio do Sudoeste/PR. Na tentativa de seguir as orientações de LIMA; TATSCH (2009), em perceber a diversidade de usos que gerou este arquivo iconográfico militar, não tão somente a instituição de guarda, mas compreendendo os locais de origem de produção e o caminho de circulação da fotografia, é possível afirmar que a elaboração das fontes analisadas nesta pesquisa, os registros das operações de ACISO, representam uma doutrina de atuação de tropa sendo implantada pelo Exército brasileiro, em caráter nacional, como conteúdo iconográfico se apresenta como uma adequação de doutrina operacional inovadora para a época. Este material institucionalizado compôs uma série de registros elaborados, que o comando militar local repassava ao III Exército, como relatos de atividades desenvolvidas na faixa de fronteira. Considera-se importante realçar também, o histórico problemático da questão de fronteira com a República Argentina, a ocupação dessa faixa de fronteira através da Colônia Agrícola General Osório para fixação de fronteiras demográficas, os conflitos pela posse da terra que gerou a Revolta dos Colonos em 1957, a guerrilha de 1965 e estabilização local pela GETSOP, durante a década de 1970 e 1980, qual estava ligada ao Gabinete do Chefe Militar; situações em que o Exército brasileiro atuou diretamente. Bem como, o posicionamento ideológico do pensamento [ 370 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS militar brasileiro no combate ao comunismo internacional, que amargou nesta região de fronteira, em 1965, um foco guerrilheiro oriundo de exilados no Uruguai. Para exposição, preferiu-se exibir as ACISOS por mosaicos, em ordem cronológica de acontecimentos. No ano de 1970, o Acervo Fotográfico da 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada registra no município de Salgado Filho/PR, a primeira ACISO fotografada por aquela organização militar. Destaque foi o registro fotográfico de palestras, cujas notas afirmam ser sobre diversos assuntos de interesse daquela comunidade agrícolacolonial de fronteira. Destacado também, os auxílios veterinários, a vacinação infantil, o atendimento médico e a construção de pontes e de estradas. Mosaico 1. ACISO em Salgado Filho/PR em 1970. Fonte: Acervo Fotográfico da 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada. [ 371 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS No ano seguinte, em 1971, a mesma Organização Militar registra operações de ACISO no Estado de Santa Catarina, no município de Romelândia. O destaque daquela operação, de acordo com as notas do Álbum Histórico foram os atendimentos médicos domiciliares, a recuperação de 31 escolas públicas, mais de 5000 extrações dentárias e as cirurgias de remoção de cânceres sebáceos. Mosaico 2. ACISO em Romelândia/SC em 1971. Fonte: Acervo Fotográfico da 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada. A terceira oportunidade de emprego de tropas militares em operações de ACISO na Fronteira Brasil/Argentina, na década de 1970, pelo Exército brasileiro, registrada no Acervo Fotográfico da 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada, aconteceu em 04 Out. 1974. Desta vez, de caráter extraordinário, no município de Santo Antônio do Sudoeste/PR, quando aquele município, após ter sido assolado por forte vendaval, teve a presença dos fuzileiros de infantaria que realizaram assistência emergencial àquela comunidade. Outras ações da tropa foram descritas, podendo ser citadas: a vacinação para evitar a proliferação de doenças (epidemia) e consulta adultos; atendimento emergencial de feridos adaptando escolas públicas em hospitais de campanha; reconstrução de bairros e a assistência médica domiciliar com equipes de enfermeiros liderados por um Oficial médico. [ 372 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Também, é notável, que aturam como reforço, ou mesmo operando serviços públicos normais necessários à vida da população civil. Como por exemplo, no que se refere ao estabelecimento de comunicações através de posto rádio, o abastecimento de água potável, a regularização de transportes coletivos e a desobstrução de vias de tráfego. Mosaico 3. ACISO extraordinária em 04 de Outubro de 1974 em Santo Antônio do Sudoeste/PR. Fonte: Acervo Fotográfico da 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada. Análise iconográficas sumária das ACISO registradas no Acervo da 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada: - foram registradas por profissionais militares, com intenções militares de registro memorial, que enquadraram as cenas de modo a ressaltar uniformes, brasões e destacar militares perante os demais que realizavam as mesmas tarefas; - dos três eventos analisados, apenas um possuía caráter extraordinário, motivado por intempéries climáticas – sendo os dois primeiros, ações próprias de iniciativa institucional; - notável a foto do operador de rádio no Mosaico 2, onde a parede de fundo, sustenta um cartaz institucional do III Exército, citando um slogan de ação, que ao lado de uma imagem de criança, lê-se “PRECISO [ 373 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS DE VOCÊS... III EXÉRCITO... ACISO 1971”. Que, este item sustenta a hipótese de que as ACISO naquela região de fronteira foram um programa articulado com autoridades civis e criteriosamente planejado pelo comando militar. - que o evento de caráter emergencial, registrado em 1974 em Santo Antônio do Sudoeste/PR, houve uma despreocupação na tomada de cena dos registros fotográficos. Pois, ressaltou-se o aspecto traumático do evento em relação à presença militar na área. Algo não percebido nas imagens dos eventos anteriores registrado por aquela organização militar; - as ACISO foram realizadas sem a delegação de poderes das autoridades civis, mas de iniciativa militar, sendo visível nas imagens o apoio recebido de profissionais civis (engenheiros civis na construção de pontes, veterinários civis nas assistências e enfermeiras civis nos casos de atendimentos emergenciais). - até onde pode-se apurar, a 3ª Companhia do 33º Batalhão de Infantaria Motorizada produziu sua memória institucional iconográfica, selecionou suas melhores fontes iconográficas, através de enquadramentos destacáveis, mas não socializou seu uso, deixando-as relegadas aos arquivos militares. E que talvez, nem mesmo existisse tal intuito, já que, naquele momento e local, a preocupação com a questão da paz social aparenta estar mais vinculada à formação de espíritos nacionais do que a auto propaganda do regime; - que durante as ACISO, a tropa foi empenhada em missões que não se enquadraram perfeitamente no seu treinamento militar, sendo destacada para afazeres funcionais que agregaram valores morais na forma em que aquela comunidade de fronteira passou a perceber a presença dos integrantes do Exército, muito distinta do contexto nacional, onde o governo militar acentuava prisões e censuras aos contrários ao Regime. Referências bibliográficas ACERVO FOTOGRÁFICO DA 3ª/33º Batalhão de Infantaria Motorizada. BRASIL, Decreto nº 67.347 de 5 de Mar.1970, Estabelece diretrizes e normas de ação para defesa permanente contra as calamidades públicas, cria Grupo Especial e dá outras providências. Brasília, DF, Out. 1970. 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Devido a sua importância, este período foi, e ainda é, narrado e representado de diversas formas, a partir de diferentes pontos de vista. Os instrumentos utilizados para tais representações, são diversos, como por exemplo: filmes, livros, músicas, pinturas, poemas e mais recentemente, jogos digitais. A utilização dos jogos digitais para tal função, vem crescendo, principalmente, a partir do início da década de 1980, quando os jogos digitais começam a se popularizar e aumentar consideravelmente sua circulação no mercado. Devido a pluralidade de possíveis conteúdos (estéticos, de narrativa, de mecânicas) a serem desenvolvidos e utilizados nas plataformas que executam os jogos eletrônicos (consoles ou computadores), criar-se-ão diversas categorias de jogos digitais, sendo uma das principais, os First Person Shooter, popularmente conhecidos como FPS, que ganham maior visibilidade a partir década de 1990, principalmente, utilizando a Segunda Guerra como pano de fundo. A Segunda Guerra Mundial, portanto, foi o carro chefe das representações nos jogos digitais, durante muito tempo, dominando o cenário dos FPS durante quase uma década. Um fator que é de suma importância para o sucesso dos jogos com temática da Segunda Guerra Mundial, é o fato do conflito ser tido como uma “guerra justa” contra um inimigo poderoso e com intenções maléficas, sendo “fácil” estabelecer os Aliados como bons, em contrapartida dos nazistas maus. Assim, foi de fácil aceitação e propagação, a construção dos nazistas como os principais inimigos dos Estados Unidos e do “Mundo Ocidental Live”. Observando a crescente popularidade dos jogos eletrônicos em nossa sociedade, torna-se assim relevante compreendermos como se desenvolvem e como são trabalhadas as narrativas dos jogos eletrônicos, que utilizam diversos temas históricos, como pano de fundo, e como estes temas influenciam na construção do imaginário sobre o assunto. Buscamos, portanto, compreender de que forma a Segunda Guerra Mundial e as forças armadas que estavam em conflito são representadas nos FPS games da franquia Call of Duty, buscamos, também, interpretar quais são suas influências e como as características narrativas (tanto histórica quanto de gameplay) e os recursos audiovisuais são utilizados para expressar e reforçar certas representações e ideias. Conforme Dille e Platten, os videogames, são uma das expressões do crescente ramo de entretenimento em massa, sendo diretamente influenciados pelos demais meios de difusão deste tipo de entretenimento, como por exemplo, o cinema e a televisão (DILLE; PLATTEN, 2007, p. 2-12). Apesar de Dille e Platten usarem o termo “entretenimento em massa” para se referir ao mercado em que os jogos digitais estão inseridos, preferimos utilizar o conceito de “comunicação de massa” trabalhado por Thompson (2005). Para Thompson, em todas as sociedades humanas existe a criação e troca de conteúdo simbólico, esta troca, que se dá através da interação entre os seres humanos pode ser chamada de comunicação, por sua vez, toda comunicação é uma forma de ação, e toda ação é resultado de aplicação de “poder” (THOMPSON, 2005, p. 20-21). Nossa sociedade institucionaliza o poder, separando-o em diversas esferas e categorias e legando-o para instituições que tornam-se socialmente aceitas como portadoras legítimas de tais poderes, das quais Thompson cita o poder econômico (empresas), o poder político (o Estado), o poder coercitivo (polícia) e, aquele que para este trabalho é o mais relevante, o poder simbólico (THOMPSON, 2005, p. 21-25). 1 Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF); Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). Endereço eletrônico: ruggiero_h@hotmail.com [ 375 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O poder simbólico sempre foi relegado à instituições que historicamente acumularam os meios de informação e comunicação, como, as instituições religiosas e as instituições de conhecimento (igreja, escola, universidade) (THOMPSON, 2005, p. 24-25), contudo, com o surgimento da indústria da mídia, esta, rapidamente ascende como um dos principais meios de comunicação e propagação do conteúdo simbólico. “Contar histórias é um hábito tão antigo quanto o próprio homem” (FRANCISCO, 2011, p. 1), e a utilização dos jogos digitais para tal função, vem crescendo, principalmente, a partir do início da década de 1980, quando os videogames começam a se popularizar e aumentar consideravelmente sua circulação no mercado (LEITE, 2006, p.40-45). Devido a pluralidade de possíveis conteúdos (estéticos, de narrativa, de mecânicas) a serem desenvolvidos e utilizados nas plataformas que executam os jogos digitais (consoles 2 ou computadores), criar-se-ão diversas categorias de videogames, sendo uma das principais, os First Person Shooter3, popularmente conhecidos como FPS, que ganham maior visibilidade a partir década de 1990 (ROJAS,2014). O mercado de jogos digitais está mais recrudescente do que nunca, fato que podemos perceber através da quantidade de pessoas que este tipo de mídia atinge (até abril de 2016 era contabilizado um público de quase dois bilhões de pessoas (MCKANE, 2016) e também, através do número de vendas, principalmente, dos jogos Triple A4. Um dos jogos mais esperados de uma das franquias mais famosas do mercado: Call of Duty: Black Ops5, em 2011, vendeu 5,6 milhões de cópias somente no seu dia de estreia (LANDIN, 2011), este é um dos maiores exemplos deste mercado em crescimento. Analisando tais números de vendas, observamos, a popularidade dos jogos digitais em nossa sociedade, e assim, torna-se relevante compreendermos como se desenvolvem e como são trabalhadas as narrativas dos jogos digitais, que utilizam diversos temas históricos, entre os quais, a Segunda Guerra Mundial, como pano de fundo, e como estes temas influenciam na construção do imaginário sobre o assunto; identificamos, também, que a pesquisa acadêmica relacionada aos videogames ainda inicia seus passos no Brasil6. A Segunda Guerra Mundial durou seis anos (1939-1945) e além dos excessivos gastos econômicos (destinados para a guerra e para a reconstrução do mundo no pós-guerra) e da gigantesca destruição material, contabilizou: a morte de cerca de quinze milhões de soldados e dez milhões de civis, quatro milhões de prisioneiros de guerra foram mortos ou deixados para morrer (GILBERT, 2011b, p. 300-301) e quase quarenta e um milhões de refugiados pelo mundo (HOBSBAWN, 1995, p.58). Sendo um dos conflitos mais violentos e emblemáticos da história contemporânea, a Segunda Guerra Mundial, deixou marcas (culturais, políticas, sociais) na humanidade, sendo causa de modificações materiais e imateriais nas sociedades. Devido a sua importância, a Segunda Guerra Mundial, foi, e ainda é, narrada e representada de diversas formas, a partir de diferentes pontos de vista. Os instrumentos utilizados para tais representações, são diversos, como por exemplo: filmes, livros, músicas, pinturas, poemas e mais recentemente, jogos digitais. Para Fornaciari é importante que definamos qual é o termo que iremos utilizar para nomear nossas fontes, já que o termo que escolhemos para definir tal mídia (videogames, vídeo games, jogos digitais, jogos eletrônicos, jogos de computador) representa a visão que temos sobre ela (FORNACIARI, 2016, p. 30-33). Através de Fornaciari, podemos perceber que existe uma discussão sobre qual é o termo mais adequado a se utilizar, não temos a pretensão de definir qual é o termo correto de nos dirigirmos à tal mídia, No Brasil, o termo videogame é utilizado como um substantivo para plataformas especificas para os jogos digitais (Super Nintendo, Mega Drive, Play Station 4, XBOX One, etc.) e não para os jogos digitais em si. No presente trabalho ao utilizarmos a expressão “videogames” estaremos nos referindo aos jogos digitais. 3 Traduzindo como “Tiro em Primeira Pessoa”, buscando a imersão do jogador, a “câmera” é posicionada de uma forma que simule a visão do personagem do jogo. 4 Jogos “Triple A” são as franquias de jogos mais famosas, ou os jogos mais esperados, o termo tem o mesmo sentido ao utilizado para grande estreias no cinema, “blockbuster”. 5 Call of Duty é popularmente conhecido entre os jogadores e jogadoras pela sigla COD. 6 Acerca do trabalho acadêmico, voltado principalmente à área de História, temos de citar os trabalhos de Christiano Britto Monteiro dos Santos e Marco Fornaciari, que estão referenciados nesta obra, como sendo os principais trabalhos sobre o assunto na área da História, e ressaltamos sua importância e influência para nosso trabalho. 2 [ 376 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS assim, nossa opção foi a utilização do termo “jogos digitais”, para nos referirmos essencialmente aos jogos em si, porém, em certas ocasiões acreditamos que o termo “videogames” é melhor empregado, principalmente para nos referirmos a toda a indústria que envolve os jogos digitais, que engloba os “fabricantes de consoles (console manufacturers), as editoras (publishers), as desenvolvedoras (developers), as distribuidoras (distribuitors), os varejistas e o consumidor final (consumer)” (JHONS, 2006 apud FORNACIARI, 2016, p. 61) Assim, como os principais meios de entretenimento e comunicação de massa do século XXI, os jogos digitais utilizam a imagem para criar conteúdo ao seu público. Delimitar as fronteiras físicas e intelectuais (conceituais e simbólicas) do conceito “imagem”, é um desafio deveras complexo, pois, conforme Santaella Embora a palavra imagem nos conduza imediatamente à idéia de visualidade, o termo contém uma reserva de ambigüidade, pois “imagem” pode ser interpretada tanto como imagem visual estritamente quanto como um complexo indivizível e ambíguo de estímulos auditivos, visuais e emocionais [...] Essa noção polissêmica da imagem teve sua origem no termo grego eikon que abarcava todos os tipos de imagem, desde pinturas até estampas de um selo, assim como imagens sombreadas e espelhadas [...] (SANTAELLA, 2006, p. 174). Essa ideia de Santaella, é corroborada por Joly, que ao falar da história da imagem diz que “Consciente ou não, essa história nos constitui, e nos convida a abordar a imagem de uma maneira complexa” (JOLY, 1999, p.19), logo, compreendemos a multiplicidades de ideais e definições que o termo “imagem” abarca. Nos jogos digitais, portanto, a “imagem” não se resume ao agrupamento de pixels em uma tela, mas sim, às representações audiovisuais que nos são apresentadas e representadas por aparelhos e significadas pelo jogador. Ao trabalharmos os conceitos de imagem, representação e significação, como pontos centrais em nossa análise de jogos digitais, a abordagem teórica da semiótica se apresenta como coerente e apropriada para a análise das construções nos jogos digitais. A semiótica surge como disciplina somente no início do século XX, quando a “ciência dos signos” inicia sua busca em “estudar os diferentes tipos de signos interpretados por nós, estabelecer sua tipologia, encontrar as leis de funcionamento das suas diversas categorias” (JOLY, 1999, p. 29-30), porém, suas raízes remontam à antiguidade grega, pois Os antigos [...] Também consideravam a linguagem como uma categoria de signos ou de símbolos que servia para que os homens se comunicassem. O conceito de signo, portanto, é muito antigo e já designa algo que se percebe – cores, calor, formas, sons – e a que se dá uma significação. (JOLY, 1999, p. 30) Desta forma, podemos perceber como os signos são importantes social e culturalmente para os seres humanos, sendo utilizados na construção de representações e significações de diversos conceitos que são utilizados na comunicação e interação humana. Ligada inicialmente à linguística 7, a semiótica, com o tempo transversalizou seus conhecimentos para os demais campos acadêmicos; será, especialmente com o trabalho do norte americano Charles Pierce, que a semiótica expandirá definitivamente suas fronteiras para além da linguística (JOLY, 1999, p. 31-33). Pierce compreende os signos como: [...] um signo é “algo que está no lugar de alguma coisa para alguém, em alguma relação ou alguma qualidade”. 7 Joly destaca principalmente o trabalho de Ferdinand de Saussure [ 377 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O mérito dessa definição é mostrar que um signo mantém uma relação solidária entre pelo menos três polos [...]: a face perceptível do signo, “representamen”, ou significante; o que ele representa, “objeto” ou referente; e o que significa, “interpretante” ou significado. (PIERCE, apud, JOLY, 1999, p. 33) Através de Pierce, constatamos também que os signos estão presentes em toda a esfera de interação humana, na qual significamos os diversos signos naturais (fumaça, cheiro de pão, expressão corporal etc.) e as representações artificiais deles (contidos na língua, músicas, filmes etc.), a partir e em razão de nossos referenciais culturais e sociais porque “De fato, um signo só é ‘signo’ se ‘exprimir idéias’ e se provocar na mente daquele ou daqueles que o percebem uma atitude interpretativa” (JOLY, 1999, p. 29). Deste modo, podemos inferir que o mundo que nos cerca está repleto de signos, não excluso, os jogos digitais também se tornam, ressignificam e criam signos que nos são apresentados através de suas imagens – retornamos aqui à supracitada conceituação de Santaella (2006) e Joly (1999) de “imagem”, que exprime a multifacetada e complexa ideia que o conceito pode criar, reiteramos aqui nossa compreensão da “imagem” dos jogos digitais, não somente como o estímulo visual criado pelo programa, mas como a utilização do recurso audiovisual consoante à narrativa específica. Isto posto, concordamos com Joly, quando afirma que “abordar ou estudar certos fenômenos em seu aspecto semiótico é considerar seu modo de produção de sentido, ou seja, a maneira como provocam significações, isto é, interpretações” (JOLY, 1999, p. 29) 8, desta forma, ao analisarmos historicamente Call of Duty (significante) acreditamos ser necessário entende-lo como uma plataforma de mídia que comunica suas ideias (significado) através das interpretações criadas acerca da Segunda Guerra Mundial (objeto). Socialmente temos funções elencadas como importantes, como trabalhar ou estudar; secundariamente, então, o entretenimento em massa (cinema, artes visuais, jogos, música), teria por finalidade, ser uma espécie de distração às pessoas, uma forma de você se desligar do mundo que importa (trabalho, estudos), e se conectar (por um breve período de tempo) a um mundo onde essas preocupações “necessárias” e “reais” não interferem, logicamente, nossa conexão é temporária e cedo ou tarde voltamos para o “mundo real”. Esta fuga da realidade é comumente vista como prejudicial ao jogador e a sociedade, pois uma pessoa que vive no “mundo dos jogos” não aplica suas habilidades (físicas ou mentais) no “mundo real”, pois encontraria-se “inerte” na frente de um console ou computador (MCGONIGAL, p. 12-21). Para a designer de jogos digitais e escritora Jane McGonigal a “fuga” para o mundo virtual, está longe de ter sentido negativo. McGonigal entende que a “fuga” voluntária de bilhões de pessoas ao mundo dos jogos digitais, não é uma quebra na sociedade, mas uma nova forma de organização e interação entre as pessoas, para McGonigal, “o jogo é o oposto emocional direto da depressão” e uma nova maneira de entender a palavra trabalho, pois aos jogarmos, não estamos reduzindo ao nulo nossa atividade física e mental, para nos “conectarmos” ao jogo, outrossim, estamos alocando nossas habilidades cognitivas e motoras para vencer os obstáculos impostos a nós pelos jogos (MCGONIGAL, 2012, p. 36-39). Pelo trabalho de McGonigal é possível obtermos uma definição do que são jogos, principalmente jogos digitais, pois para ela, apesar da diversidade de temas, gêneros e complexidade tecnológica, os jogos “compartilham quatro características que os definem” (MCGONIGAL, 2012, p.30), as quais são: A meta é o resultado específico que os jogadores vão trabalhar para conseguir [...] a meta propicia um senso de objetivo. As regras impõem limitações em como os jogadores podem atingir as metas[...] elas liberam a criatividade e estimulam o pensamento estratégico. O sistema de feedback diz aos jogadores o quão perto eles estão de atingir a meta [...] O feedback em tempo real serve como uma promessa para os jogadores de que a meta é definitivamente alcançável, além de fornecer motivação para continuar jogando. Finalmente, a participação 8 Grifos do autor. [ 378 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS voluntária exige que cada um dos jogadores aceite, consciente e voluntariamente, a meta, as regras e o feedback. (MCGONIGAL, 2012, p.30-31)9 A concepção acerca das características definidoras dos jogos, por McGonigal, se mostra fundamental para o nosso entendimento de o que são os jogos digitais, porém, algo que para ela é simplesmente “um esforço para consolidar” os quatro pilares conceituais dos jogos (meta, regras, sistema de feedback e participação voluntária) (MCGONIGAL, 2012, p.31), para nós é, também, um dos principais elementos dos jogos, que não deve ser deixado de lado, ou elencado como uma força de auxílio nos jogos, mas, deve ser inserido como um dos conceitos fundamentais dos jogos digitais, esse elemento é a jogabilidade. O conceito de jogabilidade, é uma tradução e transfiguração do conceito em inglês, gameplay10. The gameplay is the component of computer games that is found in no other art form: interactivity. A game’s gameplay is the degree and nature of the interactivity that the game includes, i.e., how players are able to interact with the game-world and how that game-world reacts to the choices players make. (ROUSE, 2005, p. XX)11 Logo, através de Rouse, podemos compreender como os elementos audiovisuais dos jogos trabalham para que seja criada uma experiência diferente, inovadora e interativa aos jogadores, desta forma, a jogabilidade é um dos principais elementos a serem levados em consideração, pois é a forma como o jogador “vive” no mundo dos jogos, é a maneira como este utiliza os recursos audiovisuais dos jogos para se inserir e interagir na narrativa. Comparando as ideias de McGonigal e Rouse, podemos elencar como características fundamentais dos jogos: metas (objetivos), regras (que gerem o mundo em que o jogador se insere), sistema de feedback (conhecimento de para onde se deve ir no jogo, e o quão perto da meta você está), participação voluntária (compreender e aceitar as demais características) e jogabilidade (forma como o jogador interage com o mundo do jogo digital). Desta forma definimos o que os jogos são em si, mas nos carece compreender qual sua função social para nós. Conforme citado acima, os jogos comumente são observados como formas de fuga do indivíduo do mundo “real” (essa fuga pode ser encarada positivamente ou negativamente), o que demonstra que o jogo (principalmente o jogo digital) é visto como algo separado do “mundo real”, e se é separado, o é, por não estar ligado a nós e, dessa forma, não ser parte de nossa cultura, ideia que para Huizinga pareceria inconcebível. Antes de discutirmos as ideias de Huizinga, devemos apresentar uma questão que é salientada pelo tradutor de Huizinga que na língua portuguesa os conceitos de jogar e brincar são representados de forma separada, enquanto em outras línguas estes conceitos são abarcados por uma única palavra como por exemplo: to play (no inglês) e spielen (no alemão) (HUIZINGA, 2010, p.3). Partindo deste pressuposto, compreendemos que a forma como nossa sociedade vê os jogos, pode ser diferente da forma que as sociedades com matriz linguística alemã ou inglesa vê, a priori pela forma como é representada linguisticamente. Para Huizinga, o jogo é uma atividade universal em nosso planeta, que está presente não só para os seres humanos, mas também para os animais (HUIZINGA, 2010, p.3). Huizinga afirma que nas diversas sociedades existentes no mundo “É possível negar [...] a justiça, a beleza, a verdade, o bem, Deus. É possível negar-se a seriedade, mas não o jogo” (HUIZINGA, 2010, p. 6), assim, Huizinga universaliza o jogo entre sociedades humanas, as quais, apesar de suas diferenças estruturais foram capazes de criar jogos. Através de 9Grifos do autor Conceito que traduzimos como jogabilidade. 11 “A jogabilidade é o componente de jogos de computador que não é encontrado em nenhuma outra forma de arte: interatividade. A jogabilidade de um jogo é o grau e a natureza da interatividade que o jogo inclui, i.e., como os jogadores são capazes de interagir com o mundo-do-jogo e como este mundo-do-jogo reage as escolhas que os jogadores fazem.” [Tradução livre] 10 [ 379 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS seu discurso, Huizinga levanta sua tese de que o jogo, não é um resultado ou uma ação, cultural ou social, mas que ele, o jogo, é antecessor à própria sociedade (HUIZINGA, 2010, p. 3-30), fator que revela a importância dos jogos como atividade significante da humanidade. Apesar de criada para o entretenimento e o grande mercado, a análise sobre a narrativa construída sobre os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, na franquia Call of Duty12, torna-se importante, visto que, “Pode-se dizer que há historicidade em toda narrativa, mesmo a ficcional, pois ela parte sempre de um ponto do real” (FRANCISCO, 2011, p.20). A narrativa, então, é um dos meios pelo qual, os criadores dos jogos, inserem o jogador no “mundo do jogo” e comunicam-se com ele. Jogos que utilizam temas históricos, costumam situar-se no limiar entre a narrativa ficcional e a narrativa histórica, fato que não interfere na análise histórica sobre eles, pois: A narrativa histórica é uma ficção e interpretação no sentido de que a partir do momento em que o fato é narrado, seja ele um documento, ou um trabalho especializado, a narrativa passa por um processo de seleção por parte de quem conta e por parte de quem ouve. De maneira similar às efetuadas nas narrativas ficcionais. (FRANCISCO, 2011, p.21) Desta forma, a narrativa deve ser vista como uma expressão e representação criada para e pelo jogo, que assim como a narrativa histórica, reflete não a verdade sobre os fatos (algo que nem mesmo a História deve objetivar), mas, um ponto de vista. Para melhor analisarmos os jogos digitais como elementos de comunicação de massa, temos de inseri-los em um mundo capitalista globalizado, e recordar, que a esmagadora maioria de seus produtos é destinado ao mercado consumidor. Os jogos digitais são moldados pelo mundo que os cerca, tornando-se reflexos da sociedade que os produziu, logo, discursos (explícitos ou implícitos) serão a ele atribuídos e por ele assumidos. Portanto, analisar um jogo digital é também analisar a sociedade que o construiu e para isso, devemos compreender como as representações atuam no mundo social, que conforme Chartier: As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a universalização de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam [...] as percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) [...] (CHARTIER, 1990, p. 17 apud VARTULI; SIMAN, p. 4) Assim, teremos de entender cada jogo digital como uma representação de um contexto histórico, social e cultural, pois conforme Francisco a “Realidade exige presença, e pensando assim, somente o aqui e agora seria real, pois ele é verificado empiricamente. O trabalho com o passado é sempre um exercício de representação. (FRANCISCO, 2011, p.23)”. Essa representação, intencionalmente ou não, acabará por ofuscar ou extrapolar certos aspectos e conceitos que seu discurso legitima ou condena. O conteúdo interativo proposto para seu público, então, não se trata de uma massa neutra sem intencionalidades, mas um material que tem uma carga ideológica. Buscamos, portanto, compreender de que forma a Segunda Guerra Mundial e as forças armadas que estavam em conflito são representadas nos FPS games da franquia Call of Duty, buscamos, também como as características narrativas (tanto histórica quanto de gameplay) e os recursos audiovisuais são utilizados para expressar e reforçar certas representações e ideias. Para esta pesquisa, utilizamos como fonte, exclusivamente, FPS games da franquia Call of Duty, uma das maiores franquias de jogos das últimas décadas. A escolha da franquia de Call of Duty, se deu, não simplesmente pelo fato de os três jogos compartilharem a temática de Segunda Guerra Mundial, mas, por 12 O nome do jogo pode ser traduzido como: “Chamado para o Dever” ou “Chamado do Dever” [ 380 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS possuírem uma estrutura narrativa similar (tratam das campanhas militares dos Estados Unidos da América, do Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte e da União das Repúblicas Socialistas Soviética) 13. A franquia lançou ao mercado mais de vinte títulos de jogos digitais, destes, dez utilizam o tema da Segunda Guerra Mundial como material para sua narrativa, sendo que escolhemos como material para a presente análise os seguintes jogos: Call of Duty (ACTIVISION, 2003), Call of Duty 2 (ACTIVISION, 2005), Call of Duty 3 (ACTIVISION, 2006). Os jogos Call of Duty (ACTIVISION, 2003) e Call of Duty 2 (ACTIVISION, 2005) são desenvolvidos pela empresa Infinity Ward, enquanto o jogo Call of Duty 3 foi desenvolvido pela Treyarch, porém, apesar de serem desenvolvidos por estes estúdios é a empresa Activision Publishing, Inc. que é dona da “IP” (Intellectual Property)14, dos direitos autorais, de Call of Duty e também distribuidora do produto. O jogos Call of Duty (ACTIVISION, 2003) foi um exclusivo de PC, enquanto Call of Duty 2 (ACTIVISION, 2005) e Call of Duty 3 (ACTIVISION, 2006) foram lançados ao mercado em multi-plataformas: computador e XBOX 360 no primeiro caso; e no segundo caso Play Station 2 e 3, XBOX 360 e One, (KALOR, 2017). Embora o mercado de jogos digitais, não seja exclusivo da sociedade norte-americana, grande parte de sua produção é criada para e pelos Estados Unidos da América. Sendo os Estados Unidos um dos maiores consumidores de jogos digitais e um dos principais berços das grandes produtoras de jogos, é natural que a maioria dos jogos digitais, utilize signos e objetos, que ao serem significados e resinificados, sejam compreensíveis ao receptor, logo, as construções simbólicas dos jogos digitais, tendem a exprimir ideias e concepções que estejam inerentes a sociedade e ideário coletivo norte-americano. Dessa maneira, ao trabalharmos com jogos digitais, principalmente aqueles que têm como tema principal a guerra, devemos levar em conta o forte militarismo e belicismo presente na cultura norte-americana. Assim, ao trabalharmos com os três primeiros títulos da franquia de jogos digitais Call of Duty – Call of Duty (2003); Call of Duty 2 (2005) e Call of Duty 3 (2006)- entramos em contato com uma representação da Segunda Guerra Mundial e das forças em combate, que se dá a partir de estruturas simbólicas préestabelecidas, e embora tais representações, alcancem o caráter de “reais” e “históricas”, sua representação é resultado da cultura e da visão de mundo de seus produtores, logo, a guerra significada na franquia, é uma das possíveis representações da guerra, sendo impossível afirmarmos se é verdadeira ou falsa. Mesmo que o tema principal dos três títulos da franquia Call of Duty seja a Segunda Guerra Mundial, um dos conflitos mais violentos na história da humanidade, a violência representada na franquia, não aborda temas como o sofrimento (físico e psicológico) dos soldados, nem apresenta a violência causada pelos tiros e explosões, logo, a violência no jogo é mais simbólica do que “real” e se mostra de forma suavizada e romantizada. O principal símbolo estabelecido sob a franquia é a noção do esforço coletivo de guerra, em detrimento do individualismo (que era comumente representado nos jogos da época). Tal exaltação da coletividade se dá em duas características narrativas. Na primeira característica narrativa, é de fácil percepção que o personagem do jogador, em pouquíssimas ocasiões se encontra sozinho, o mesmo, sempre dispõe de seus aliados e companheiros para avançar contra as posições inimigas. Embora a maioria das ações “heroicas” apresentadas no jogo, fique a cargo do personagem controlado pelo jogador, este, não se apresenta como o personagem “principal” da narrativa, sendo apenas um participante que ganhou destaque. A segunda característica narrativa de Call of Duty, é a coletivização da representação do esforço de guerra em uma esfera macro. Assim, a franquia se distinguirá dos demais jogos digitais que utilizavam a Segunda Guerra como objeto, por não apresentar apenas o ponto de vista de um personagem, mas de diversos personagens que lutaram em diferentes contextos da guerra. O principal símbolo que será criado sobre Call of Duty (2003) será a representação da campanha soviética, que se mostra como uma quebra paradigmática nas narrativas construídas pelos meios de comunicação de massa norte-americanos sobre os russos/comunistas. 13 14 No terceiro título, exclusivamente, temos a representação das ações dos exércitos polonês e canadenses na franquia. Traduzido literalmente, “Propriedade Intelectual”. [ 381 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Ao observarmos o desenvolvimento da franquia, analisando seus três primeiros jogos, podemos perceber como internamente os símbolos construídos pelo primeiro título são paulatinamente questionados e modificados. O maior exemplo que podemos comparar são as diferenças estruturais que podem ser observadas ao compararmos os dois primeiros títulos da franquia ao terceiro. Em Call of Duty e Call of Duty 2, existe uma tentativa de se humanizar e personificar a guerra e os personagens digitais, tal construção dá-se, pela apresentação de documentos pessoais (fotografias, “troféus de guerra”, cartas) dos personagens os quais o jogador controlará; Em Call of Duty 3, a humanização do conflito se dá a partir da criação e do desenvolvimento da história e do caráter dos personagens “secundários”, que interagem com os personagens “principais”. A individuação dos personagens pertencentes à narrativa desconstrói o senso de coletividade evocado desde o primeiro título, exacerbando assim, uma individualização que se mostra crescente na franquia, bem como na sociedade que a significa. Outro elemento que se modificará no decorrer da produção da franquia será a representação da pluralidade e magnitude do esforço de guerra empregado pelos Aliados para a derrota do Eixo. Enquanto que no primeiro título da franquia, podemos claramente perceber que o esforço de guerra russo é representado como essencial para a vitória Aliada sobre a Alemanha (sendo os soviéticos a dominarem Berlim). No decorrer da franquia podemos perceber como a representação do esforço de guerra dos demais Aliados (principalmente os soviéticos) paulatinamente se arrefece em detrimento da demonstração da bravura e poderio representados pela ação das forças armadas norte-americanas. O ponto culminante da representação da importância dos Estados Unidos na guerra, se dá no terceiro título, no qual, as ações das demais forças armadas (francesas, canadenses, britânicas, polonesas), é suplantada pela norte-americana, que participa das maiores batalhas, e deve e se mostra como a perdição do exército alemão. Os jogos digitais (significantes), comumente utilizam temas (objetos) comuns à convivência e história da sociedade que os produz, para desta forma criar uma narrativa que não simplesmente é a sua visão sobre o objeto, mas é a ressignificação da visão social sobre o objeto (significado). Assim, devemos ler a franquia Call of Duty, como a construção de uma sociedade (ou grupo que partilha dos mesmos referentes) que, na relação entre o presente (a sociedade que o produz) e o passado (Segunda Guerra Mundial) busca não o questionamento sobre seu objeto, porém, busca, através de seu objeto e da sua significação e ressignificação a consolidação de suas “verdades” históricas, que por si, dão sentido e base a sua visão sobre si mesma. JOGOS DIGITAIS CALL OF DUTY 2. Produção Infinity Ward Inc. Santa Monica: Activision Publishing Inc., 2005. CALL OF DUTY 3. Produção Treyarch. Santa Monica: Activision Publishing Inc., 2006. CALL OF DUTY. Produção: Infinity Ward Inc. Santa Monica: Activision Publishing Inc., 2003. REFERÊNCIAS DILLE, Flint; PLATTEN, John Zuur. The ultimate guide to video game writing and design. New York: Watson-Guptill, 2007. FORNACIARI, Marco de Almeida. A Guerra Em Jogo: A Segunda Guerra Mundial em Call of Duty, 2003-2008. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense (UFF), 2016. FRANCISCO, Ricardo Jeferson Da Silva. Os Jogos De Interpretação De Personagens e Suas Perspectivas No Ensino De História. Dissertação. Universidade Estadual de Londrina, 2011. GILBERT, Martin. A Segunda Guerra Mundial. 2ª ed. Dom Quixote, 2011a. GILBERT, Martin. História do Século XX. 2ª ed. Dom Quixote, 2011b. HOBSBAWN, Eric J. A Era da Catástrofe. In: HOBSBAWN, Eric J. A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. 6. ed. 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Para isto, utilizamos os periódicos Tribuna Regional e Jornal das Missões, ambos de Santo Ângelo, bem como o processo emancipatório, presente na Assembleia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul. As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por um novo olhar ao passado da região, quando lideranças regionais buscaram afirmar os vínculos identitários com o passado do território. Neste processo, o sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo ganhou destaque pelas edificações que abriga, tornando-se um símbolo na construção da memória regional. Mas também, tornou-se instrumento de barganha de grupos políticos, que estavam interessados no desenvolvimento econômico regional através do turismo. Constatou-se que o patrimônio histórico de São Miguel das Missões despertou o interesse das lideranças de Santo Ângelo no momento em que foi vislumbrado como uma possibilidade ao desenvolvimento turístico e econômico. A partir disso foi ativado, utilizado e negociado nos processos discursivos dos grupos políticos, que acreditavam que o turismo, traria o almejado desenvolvimento econômico local. Neste processo, os periódicos foram instrumentos essenciais para a produção e reprodução dos discursos dos grupos políticos, bem como de interlocução destes com a comunidade. Neles o patrimônio era retratado pelo viés de cada grupo e conforme a estes convinha. No embate entre os dois grupos que polarizavam o cenário político de Santo Ângelo, expressos nas páginas dos periódicos, o patrimônio servia como ferramenta de disputa ao ser considerado bem ou mal administrado por parte dos gestores públicos. Em São Miguel das Missões, da mesma forma, o patrimônio histórico edificado foi utilizado como justificativa para a emancipação municipal, onde se acreditou também, que este traria desenvolvimento ao lugar. Evidencia-se um intenso processo de negociação dos grupos com referenciais do passado, produzindo seleções, apropriações e esquecimentos, o que acabou invisibilizando determinados grupos na memória regional, demonstrando que o patrimônio histórico constitui-se em um campo de disputas entre os grupos sociais. Palavras-chave: Patrimônio histórico; memória; grupos políticos; São Miguel das Missões. INTRODUÇÃO São Miguel das Missões é um município integrante da região das Missões 2, localizada na região noroeste do estado do Rio Grande do Sul. O mesmo abriga em seu território os remanescentes arqueológicos da antiga redução de São Miguel Arcanjo, detentor do título de Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, desde o ano de 1983, sendo o único patrimônio cultural da humanidade do Sul do Brasil. Desta forma, constitui-se como atração principal no cenário turístico da região, recebendo milhares de turistas anualmente. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, integrante da linha de Pesquisa Memória e Patrimônio, Mestre em História pelo mesmo programa. Graduada em História Licenciatura e Bacharelado pela UFSM (2015), sandimumbach@gmail.com. 2 Utilizamos o termo região das Missões para designar uma área geográfica localizada na região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, na qual encontram-se remanescentes arqueológicos correspondentes ao segundo ciclo reducional jesuítico-guarani no estado. 1 [ 384 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Sua história está diretamente ligada à redução de São Miguel Arcanjo, a qual fez parte da Província Jesuítica do Paraguai, nos séculos XVII e XVIII. A desagregação do projeto reducional ocorreu no final do século XVIII, devido a rearranjos e acordos entre as coroas ibéricas e suas colônias, bem como à delineação das fronteiras dos novos estados nacionais que surgiam no século XIX. As sete reduções da segunda fase, localizadas à margem esquerda do rio Uruguai ficaram conhecidas como Sete Povos das Missões, e foram consecutivamente destruídas, tanto por conflitos militares quanto pelos novos povoadores da região. Poucos vestígios restaram do período missioneiro no estado do Rio Grande do Sul. Em São Miguel das Missões encontram-se a maior parte deles, especialmente o mais famoso, a fachada da antiga igreja da redução. Este trabalho é fruto de reflexões desenvolvidas na dissertação de mestrado, defendida no ao de 2018 pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, e que integrou a linha de pesquisa Memória e Patrimônio. Em nossa dissertação de mestrado focamos o olhar sobre a década de 1980 em São Miguel das Missões, período em que o Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo foi incluso na lista de patrimônios da Humanidade da UNESCO, e também, período em que lideranças da comunidade mobilizaram-se na busca pela emancipação político-administrativa deste, que constituía-se como um distrito de Santo Ângelo. Neste processo, analisado ao longo da dissertação, e que discorreremos de maneira rápida neste artigo, o patrimônio histórico do período reducional, contido no território do município foi ativado3 de diversas maneiras e com diversas finalidades, produzindo ressignificações e apropriações. Portanto, o objetivo foi identificar como o patrimônio histórico de São Miguel das Missões foi utilizado por suas lideranças intelectuais e políticas no processo de emancipação político-administrativa, atentando para os interesses envolvidos aí e os discursos produzidos sobre o passado e o patrimônio histórico edificado. Utilizamos como fontes históricas para a construção do trabalho o jornal “Tribuna Regional” e o “Jornal das Missões”, ambos do município de Santo Ângelo, bem como documentos oficiais contidos no Memorial da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Visto que, no período delimitado por este estudo, as notícias referentes a São Miguel das Missões eram veiculadas nos periódicos de Santo Ângelo, fez-se uso dos mesmos que fornecem uma série de informações que permitiram compreender os discursos produzidos entorno do passado e dos patrimônios históricos pelos grupos políticos locais. Os documentos oficiais, por sua vez, explicitam a ativação e utilização destes mesmos elementos no processo emancipacionista pelas lideranças locais de São Miguel das Missões. Do abandono e depredação à patrimônio da humanidade, em meio século, o sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo e o município que surgiu em seu entorno, explicitam as contradições dos acionamentos de elementos do passado na região das Missões do estado do Rio Grande do Sul. Sua trajetória de preservação acompanha a evolução do conceito de patrimônio e das instituições de preservação em nossa sociedade. E mais do que isso, as intenções em sua preservação explicitam que a salvaguarda de elementos do passado se faz por questões ideológicas e atendendo a interesses e discursos de poder. No ano de 1978 foi criado o espetáculo “Som e Luz” em São Miguel das Missões, conferindo novas dimensões turísticas ao lugar. Nesse mesmo ano teve início o processo de emancipação políticoadministrativa do lugar, com a mobilização de lideranças locais que, dispostas a concretizar seus anseios, encaminharam toda a documentação necessária, arcando financeiramente com os custos desta. O processo teve andamento até o ano de 1982, tendo sido neste ano arquivado, sem motivos explícitos, provavelmente por barreiras burocráticas impostas pela legislação do período, ou ainda por disputas e interesses locais desfavoráveis a esta. Em 1985, encabeçado por novas lideranças locais, ele foi reaberto e culminou na emancipação político-administrativa de São Miguel das Missões em 1988, o que, conforme Ana Lúcia Goelzer Meira (2007), marcou muitas mudanças, principalmente com a criação de um plano diretor da cidade que possibilitou organizar e orientar o desenvolvimento urbano atendendo aos cuidados que necessitava o sítio arqueológico. Coube à Santo Ângelo criar novos artifícios de rememoração, que atraíssem os turistas e fizessem a população local lembrar o seu passado “missioneiro”. Esse passado é frequentemente ativado e 3 Conceito abordado por Llorenç Prats (1997). [ 385 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS constantemente comemorado em Santo Ângelo, cuja população orgulha-se em ressaltar que sua catedral católica é uma réplica fiel da igreja da redução de São Miguel Arcanjo. As ativações de elementos do passado, desenvolvidas na região das Missões do estado do Rio Grande do Sul, constituem-se em um processo complexo e contraditório, implicam em usos do passado, ressignificações, negociações e também esquecimentos, que se não problematizados, acabam por naturalizar desigualdades. “TRIBUNA REGIONAL” E “JORNAL DAS MISSÕES”: DISCURSOS CONVERGENTES E DIVERGENTES Os Jornais “Tribuna Regional4” e “Jornal das Missões5”, ambos do município de Santo Ângelo nos permitem fazer uma ampla análise do contexto político e social da década de 1980 na região das Missões. A análise de ambos os periódicos nos permite perceber os aspectos sociais, econômicos e culturais do período, mas de maneira ainda mais profícua, é possível perceber a polarização política no cenário do município, e como esta acabou se reproduzindo no distrito de São Miguel, que também nascia como município. Analisamos ambos os periódicos, compreendendo a importância da utilização destes como fonte primaria à construção do conhecimento histórico, tendo em vista que são construídos por indivíduos e grupos, e carregam, consigo, os discursos por estes defendidos. [...] A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por entender-se a imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses na vida social; nega-se pois, aqui aquelas perspectivas que a tomam como mero “veículo” de informações; transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se insere. (CAPELATO apud LUCA, 2008, p.118). A análise dos periódicos foi direcionada especialmente aos anos de 1983 e 1988, o primeiro recorte, ano em que São Miguel foi incluso na lista dos patrimônios da Humanidade da UNESCO, o segundo recorte, ano em que São Miguel tornou-se município. Na análise das publicações destes dois anos buscamos compreender o lugar do patrimônio histórico nos discursos produzidos pelos grupos políticos locais. Santo Ângelo, assim como os demais municípios da região das Missões, vivenciou um período de crise econômica e desfalques em seu setor agrícola nas décadas de 1970 e 1980. Com a intensificação dos eventos de valoração do patrimônio arqueológico, da antiga redução de São Miguel Arcanjo, suas lideranças políticas e econômicas visualizaram no patrimônio histórico do distrito a grande alternativa ao desenvolvimento econômico do município. Durante todo o ano de 1983 a comunidade santo-angelense aguardou com expectativa a inclusão de São Miguel na lista dos patrimônios da humanidade da UNESCO. Diversos eventos e festividades foram programados em Santo Ângelo, aguardando a declaração. Lideranças políticas e empresariais aproveitavam a euforia regional, para projetarem investimentos no setor turístico e incentivar a criação de toda a infraestrutura necessária para receber os milhares de turistas esperados. O clima na cidade era de euforia e grande aposta no setor turístico (Tribuna Regional, 15 dez. 1983) 6. 4 Fundado em 5 de julho 1967, com periodicidade semanal, foi “Criado sob a liderança de Luiz Valdir Andres, tendo como artífices diretos Cláudio Wilmar Schoroeder, Celso Bernardi e Carlos Alberto Bencke. Quatro jovens acadêmicos que a partir de então, passam a escrever a história de Santo Ângelo, fazendo um contraponto saudável e democrático aos outros jornais da época, através das páginas de Tribuna”. (INSTITUCIONAL. Jornal Tribuna Regional)4. 5Entrou em circulação em 15 de junho de 1983 entrou em circulação em Santo Ângelo 5. O grupo adquiriu também, no início da década de 1980, a emissora de rádio Santo Ângelo, que havia sido fundada na cidade na década de 1940. “Os anseios dos brasileiros por liberdade de expressão e retorno à democracia era o sentimento que mobilizava o país no início dos anos 80. Em Santo Ângelo, os empreendedores Marcelino Debacco e Adroaldo Mousquer Loureiro sentiam necessidade de alternativa nos meios de comunicação e em abril de 1983 fundaram a gráfica São Miguel” (INSTUITUCIONAL: História e linha editorial. Jornal das Missões)5. 6 SÃO MIGUEL Patrimônio da Humanidade: Já influi na economia de Santo Ângelo. Tribuna Regional, Santo Ângelo 15 dez. 1983. Caderno especial. [ 386 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O título de patrimônio da humanidade concretizado em dezembro de 1983 ao sítio arqueológico localizado no distrito de São Miguel, fez o município de Santo Ângelo abrigar o terceiro patrimônio da humanidade em terras brasileiras, e o primeiro do estado do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, é perceptível que a este município fosse interessante que São Miguel permanecesse como seu distrito, fato que pode ter contribuído para esta interrupção do processo emancipatório no ano de 1981. Logo nos primeiros dias, as notícias já davam conta de expor os reflexos do ocorrido na economia do município, como demonstra a edição de 15 de dezembro de 1983 do Jornal Tribuna Regional: O reconhecimento das Ruínas de São Miguel como Patrimônio da Humanidade, já está tendo reflexos diretos na economia de Santo Ângelo. Acontece que desde a própria semana em que foi anunciada oficialmente a decisão da UNESCO, aumentou de maneira significativa o movimento nos hotéis da cidade. Em toda semana passada e no decorrer desta destacou-se a presença de professores, pesquisadores e jornalistas provenientes das mais diversas regiões do Rio Grande do Sul e também de outros estados, que aqui ocorreram em busca de informações e fotografias sobre história e condições atuais das Ruinas Miguelinas. Infraestruturalmente preparados para esta situação, os empresários do setor fazem um balanço da realidade (Tribuna Regional, 15 dez. 1983). O movimento nos hotéis e na cidade era esperado não só para aquele mês, mas também para o ano que adentrava e os próximos. Santo Ângelo experimentava naquele dezembro um fluxo turístico jamais vivenciado, e projetava este como a grande possibilidade de desenvolvimento econômico do município. Emancipar o distrito de São Miguel, não deveria, nesse contexto, fazer parte dos planos de lideranças e autoridades de Santo Ângelo. A inserção do município em roteiros turísticos mais amplos era vislumbrada por lideranças de Santo Ângelo, que projetavam um roteiro turístico integrando os patrimônios do período reducional da Argentina e do Paraguai, trazendo um fluxo turístico constante às regiões. Um grande roteiro turístico internacional traria visibilidade à região, concretizando o turismo como a grande saída ao desenvolvimento econômico regional (Tribuna Regional. 10 dez. 1983) 7. Mas enquanto nas páginas do jornal Tribuna Regional, durante o ano de 1983, o clima era de euforia e comemorações sobre a declaração da UNESCO que concretizou-se em dezembro, as páginas do Jornal das Missões desferiam críticas à maneira como o patrimônio histórico de São Miguel vinha sendo tratado pelas lideranças de Santo Ângelo, e a maneira como os investimentos no turismo vinham sendo direcionados: A secretaria municipal de turismo descuidou-se de São Miguel e isso não vem de agora [...]. Na verdade Santo Ângelo possui hoje uma estrutura suficiente para assegurar turistas que venham a São Miguel: bons restaurantes, bons hotéis, algumas boates e bons locais para compras. Assim, os visitantes olhariam o passado das Missões, mas gastariam alguns tostões na sua capital (Jornal das Missões, 24 ago. 1983)8. O Jornal das Missões, apresentava um nítido contraponto ao que vinha sendo veiculado pelo jornal Tribuna Regional naquele ano. As farpas trocadas no ano de 1983, entre ambos os periódicos, eram apenas o início de uma longa história de utilização da mídia escrita no jogo político local, no qual o patrimônio histórico de São Miguel teria um lugar de destaque. 7 Arquivo particular do jornal Tribuna Regional. Prefeito Azeredo acredita em novo fluxo turístico. Tribuna Regional, Ano XVII Santo Ângelo/RS. 10 dez. 1983. 8 Arquivo particular do Jornal das Missões. Turismo nas missões: um potencial ainda inexplorado. Jornal das Missões, Ano I, Santo Ângelo/RS. 24 ago. 1983. [ 387 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Enquanto São Miguel era publicizada como curiosa e exótica, as lideranças de Santo Ângelo buscavam apresentá-la como moderna, oferecendo os demais serviços que ao turista pudesse interessar. Neste período, Santo Ângelo reivindicava o título de Capital Missioneira, indicando a sua vanguarda, em uma região que voltava seu olhar ao passado colonial. Cidade de porte médio bem planejada em termos urbanos, a Capital Missioneira destaca-se também no cenário gaúcho por ter emprestado a serviço o governo, muitos filhos ilustres. [...] A situação de Santo Ângelo como polo regional está condicionada à própria história, quando em 12 de agosto de 1707, era fundada pelo padre Diogo Hase, a Capital dos Sete Povos das Missões. As reminiscências deste período, de grande importância para a história do Rio Grande do Sul e do Brasil, encontram-se no distrito de São Miguel, onde as ruinas, das quais a Catedral é a mais importante, dão o testemunho da luta e da coragem de índios e jesuítas. [...] (Tribuna Regional, 30 abr. 1983)9. A justificativa para tal título baseava-se no contexto do período e no desenvolvimento comercial e industrial de Santo Ângelo, que a destacava no cenário regional. Mas também no passado, ligando o lugar ao período reducional e, principalmente, por abrigar os remanescentes da igreja da antiga redução de São Miguel Arcanjo em território de seu distrito. Compreendemos que nesse discurso, permeado de inferências ao passado e elementos do período em que viviam os sujeitos, buscava-se transmitir sempre uma imagem positiva de Santo Ângelo, tanto no contexto regional, quanto para sua própria população, procurando elevar autoestima desta e a relação dos sujeitos com o lugar. O período reducional era invocado como algo positivo, como um período próspero, a memória que se pretendia consolidar era fruto de uma seleção de elementos positivos do passado. O “Jornal das Missões” estampava matérias a respeito do sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, buscando evidenciar o descaso que o poder público tinha para com aquele lugar, destacando os problemas na preservação das edificações, buscando imprimir sua crítica à maneira como o governo municipal de Santo Ângelo vinha tratando o patrimônio histórico de seu distrito. Em matéria intitulada “Turismo nas Missões, um potencial ainda inexplorado”10, o jornal traçou um panorama do estado de conservação das edificações do sítio arqueológico, bem como estabeleceu duras críticas as autoridades responsáveis do município de Santo Ângelo, que segundo ele “traçam promessas e não as cumprem” (Jornal das Missões. 24 ago. 1983) 11. O Jornal recriminava ainda, o fato de as lideranças do município de Santo Ângelo não estarem explorando o imenso potencial turístico do distrito de São Miguel, e de possuir um total despreparo no trato com o turista. Nesse sentido defendia: “A redenção econômica de Santo Ângelo está no turismo” 12. A matéria prossegue trazendo também a fala de alguns entrevistados, um deles utiliza a seguinte frase: “A divulgação das Ruinas é feita mais fora do que na região”, e para isso a matéria apresenta a solução dada pelo mesmo entrevistado: “Introduzir uma matéria de História das Missões nos currículos escolares, ao seu ver contribuiria para aproximar a população de suas fontes históricas” 13. O fascínio das Reduções, com efeito, ainda hoje atrai levas de turistas dos mais distantes pontos – com predominância do Rio e São Paulo que diariamente desembarcam no pequeno e pacato distrito de São Miguel, a 56 quilômetros de Santo Ângelo, a sede. Em resposta defronta-se com uma estrutura turística 9Arquivo particular do jornal Tribuna Regional. SANTO ÂNGELO continua polo regional. Tribuna Regional, Ano XVII, Santo Ângelo/RS. 29 abr. 1983. 10 Arquivo particular do Jornal das Missões. Turismo nas Missões: um potencial ainda inexplorado. Jornal das Missões, Ano I, Santo Ângelo/RS. 24 ago. 1983. 11 Arquivo particular do Jornal das Missões. Turismo nas Missões: um potencial ainda inexplorado. Jornal das Missões, Ano I, Santo Ângelo/RS. 24 ago. 1983. 12 Idem. 13 Idem. [ 388 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS incipiente. Contenta-se, por força das circunstancias, com o Som e Luz, espetáculo iniciado em 1978 e hoje o chamariz único que justifica tal afluxo de pessoas. Sem quaisquer atrações paralelas, as Ruínas de São Miguel, secular capital dos 7 Povos, contam uma história de abandono, ainda não completamente resgatada, levando-se em conta seu rico potencial turístico que, entretanto, até o momento não produziu os frutos práticos desejados. (Jornal das Missões, 24 ago. 1983) 14. Podemos perceber que as críticas empreendidas pelo “Jornal das Missões” eram de ordem política, o patrimônio histórico era apenas um vetor entre as relações dos dois grupos políticos. Nesse sentido, se percebe que o potencial turístico regional era discurso comum a ambos, mas a maneira como o grupo que se encontrava à frente do governo municipal lidava com ele, tornava-se ferramenta da crítica oposicionista que, apesar de demonstrar preocupação com a situação do patrimônio histórico, estava mais interessada em utilizá-lo como instrumento de desmoralização do grupo a que se opunha. Desta forma, o patrimônio histórico, mais do que um interesse comum a ambos os grupos, torna-se um objeto de barganha no jogo político, possível de ser utilizado pelos grupos conforme seus interesses. ALMEJAM UM “RENASCIMENTO”: A EMANCIPAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DE SÃO MIGUEL DAS MISSÕES A intensificação dos processos de valoração do patrimônio histórico do período reducional, no distrito de São Miguel, como também a intensificação do número de visitantes que circulavam no local, e o contínuo crescimento urbano no em torno do sítio arqueológico, estimularam as lideranças locais a mobilizarem um movimento em busca da emancipação político-administrativa. Esta mobilização teve início no ano de 1978, quando iniciou-se o processo burocrático de solicitação da emancipação político-administrativa de São Miguel em relação à sede, Santo Ângelo 15. A solicitação de criação do município de São Miguel das Missões, conforme Processo nº1806/78-5 de 29/05/1978 tramitado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, possuía como ementa a seguinte designação: “Requerem providências de estilo e previstas em lei, no sentido de que seja concedido diploma legal, para coleta de elementos, visando à criação do município de São Miguel, antiga capital dos Sete Povos das Missões”. Como origem designava-se Pery Gonçalves de Oliveira16 e outros. Portanto, como se percebe na descrição do processo, no momento de buscar a autonomia político-administrativa local foi ao passado reducional que os indivíduos recorreram para justificar tal pretensão. Nas páginas iniciais do processo são apresentados os motivos para o pedido de emancipação de São Miguel das Missões. Nestas, através de elementos históricos e culturais locais, os membros da comissão emancipacionista buscavam justificar a necessidade do desmembramento. Os solicitantes apresentavam a necessidade do andamento e conclusão do processo para o “ressurgimento da São Miguel”, afirmando que, com a concretização da emancipação, seria possível retornar ao progresso e desenvolvimento que o lugar já tivera em outro tempos, remetendo a memória regional que consolidou os elementos do passado reducional17. O processo emancipatório iniciou-se no ano de 1978, teve uma pausa de três anos, retornando no ano de 1981, sendo neste mesmo ano arquivado, sem motivos explícitos expressos na documentação18. No ano de Idem. ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988. 16 Pery Gonçalves de Oliveira era presidente da primeira Comissão Emancipacionista formada em São Miguel das Missões, no ano de 1978, Conforme: ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988. 17 ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988. 18 No trabalho de dissertação de mestrado trabalhamos de maneira mais atenta ao contexto político da época, bem como ao contexto social bastante complexo na região naquele período. 14 15 [ 389 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 1985, um novo processo foi iniciado, anexando a este a documentação do processo anterior, sendo também, a comissão emancipacionista composta por novas lideranças. O processo se prolongou até 1988, tendo, neste ano, atendido a todos os pré-requisitos necessários. Em 29 de abril de 1988, através da Lei Estadual nº 8.584, São Miguel das Missões foi declarado município, passando a gerir-se política e administrativamente. No ano de 1978, a Assembleia Legislativa solicitou documentos que estavam faltando ao processo, mas estes só foram fornecidos pela comissão emancipacionista no ano de 1981. Da documentação de 1981 o processo dá um salto ao ano de 1985, quando uma nova comissão emancipacionista se formou solicitando um novo projeto de lei para a criação do município, e a anexação do antigo. A COMISSÃO EMANCIPACIONISTA DO FUTURO MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL, por seus membros que no fim assinam, pedem vênia para expor e solicitar o seguinte: 1.- Encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça dessa Egrégia Assembleia Legislativa, o Processo de Emancipação de São Miguel, desde 29 de maio de 1978; 2.- Passados vários anos não diminuiu o ardente desejo de emancipação, ao contrário, mais se avoluma a certeza da necessidade dessa providencia, como imperativo até de ordem internacional, pois, como é público, O MUNDO PROCLAMOU SÃO MIGUEL COMO UM DOS SEUS MONUMENTOS CULTURAIS, não faz muito. Esse fato relevantíssimo, PATRIMÔNIO CUTURAL DA HUMANIDADE, com justiça e merecimento, carregou sobre todos nós a responsabilidade de responder positivamente a tão nobre e significativo gesto internacional. Não podemos, de modo algum, permitir que a área historicamente vinculada à Redução seja comprometida em seu mínimo necessário visando a nossa Emancipação. Seria extremamente lamentável que outras pretensões emancipacionistas, ainda que merecidas, viessem a frustrar SÃO MIGUEL das suas condições mínimas naturais, que a própria história lhe reservou [...] 19. Percebe-se, no trecho apresentado, a intensa negociação com elementos do passado colonial empreendida pelas lideranças da comissão emancipacionista. Primeiro, recorre-se ao fato de São Miguel das Missões abrigar um patrimônio da humanidade em seu território, a emancipação político-administrativa é apresentada como uma resposta apropriada a tal aclamação. A autonomia do lugar é exposta como sendo uma consequência “natural”. A história, ou melhor dizendo, a seleção de alguns elementos do passado, era utilizada para justificar esta alegação. Para além dos meandros burocráticos de um processo emancipatório, com informações e detalhes (mapas, acordos, declarações, fotografias), atentamos a maneira como os grupos construíram uma retórica sobre o passado e como se utilizaram deste, e do patrimônio histórico local, buscando concretizar seus anseios políticos e econômicos. Transparecem elementos acerca da realidade destes indivíduos, sendo possível perceber que os mesmos eram pessoas de posses, constituindo um grupo de influência econômica, sendo, a maioria destes, comerciantes, agropecuaristas, médios e grandes proprietários rurais. Este grupo buscou, em suas narrativas, justificar a importância da emancipação do lugar, remetendo-se ao passado e ao patrimônio histórico. Para referirem-se a São Miguel, utilizavam a designação de Capital das Missões, ou Capital dos Sete Povos. O título, baseado no imaginário popular que edificou São Miguel Arcanjo como a mais pujante dos Sete Povoados reducionais, buscava fundamentar o argumento da necessidade da emancipação político-administrativa local, cuja ementa assim designa-se: “Requerem providências de estilo e previstas em lei, no sentido de que seja concedido diploma legal, para coleta de elementos, visando a criação 19SOLICITA CREDENCIAMENTO para a emancipação e São Miguel. Processo 4677/85-4, 07/06/1985. Folha 02. IN: ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988. [ 390 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS do município de São Miguel, antiga capital dos Sete Povos das Missões” (ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. 21 de Abril de 1988)20. Na visão destes indivíduos, o passado do lugar, por si só, já fornecia elementos suficientes para embasar a necessidade da autonomia político-administrativa. Um lugar que no imaginário popular, já ostentou o título de capital dos povoados missioneiros. Tal posto, na visão destes indivíduos, merecia a autonomia político-administrativa municipal. O emprego do termo “capital das missões” é recorrente em diversos documentos inclusos no processo emancipacionista, como demonstra o trecho: ISTO POSTO, REQUEREM, a Vossas Excelências se dignem a conceder-lhe o Credenciamento e ordenar todas as providências de estilo e previstas em Lei aplicáveis a matéria, a fim de que tenha lugar a coleta dos elementos precisos, a oportuna consulta plebiscitária e o DIPLOMA LEGAL que haja por bem proclamar a existência do MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL, antiga Capital dos Sete Povos das Missões, tendo como sede a área urbanística que circundam a majestosa Redução Miguelina (ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, vol.2, pag. 179)21. Tal pretensão era apresentada como consenso na comunidade miguelina 22, e como um anseio, não apenas dos grupos políticos, conforme menciona: INVOCAM OS DOUTOS SUPLEMENTOS DE VOSSAS EXCELENCIAS EM FAVOR DA EMANCIPAÇAO DE SÃO MIGUEL – PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE, por ser uma iniciativa genuína da Comunidade, não se tratando de interesses meramente políticos (ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, vol. 2, pag. 180)23. Constatamos que, apesar da aspiração à emancipação municipal ter sido narrada como uma vontade de toda comunidade local, na realidade não havia unanimidade, pois na consulta plebiscitária constatou-se que 638 votaram contra a emancipação político-administrativa, enquanto 2.480 votaram a favor da emancipação, 33 votaram branco, 27 anularam seu voto e 1.110 eleitores não compareceram 24. Portanto, a pretensão emancipacionista era anseio de grande parte da população, mas estava bem longe de ser um consenso na comunidade. As lideranças do distrito, aspirando à autonomia do lugar, embasaram seus discursos no passado e no patrimônio histórico como se a relação dos indivíduos da comunidade com este fosse consenso. Narraram o passado ressaltando a grandiosidade e o dinamismo que o lugar possuíra em tempos remotos. O patrimônio histórico edificado era usado como testemunha deste e, a emancipação político-administrativa, foi posta como a única saída possível para o “renascimento” do lugar, o qual traria “de volta” a prosperidade e o progresso do passado, como demonstra o trecho a seguir: Os Rio-grandenses, signatários desta petição, desejam e aspiram ardentemente que tenha lugar, ao amparo da Lei e do Direito, o surgimento de um novo município no cenário rio-grandense, o MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL, formado, que se deseja, pela área que outrora – constituiu, em parte, os domínios da fabulosa redução de São Miguel das Missões. É desnecessário assentar maiores informações a respeito ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988. 21 Idem. 22 Gentílico de São Miguel das Missões. 23 ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988. 24 Idem. 20 [ 391 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS da significação dessa redução, por que disto já cuidou suficientemente a história o “mapa mundi” registra um ponto inconfundível na América do Sul, dentre tantas outras relevâncias, representado pelas RUINAS DE SÃO MIGUEL, famosas pelo que representam e pelo que significam aos povos civilizados. Os atuais habitantes dessa região, inclusive os signatários deste petitório almejam um renascimento, isto é, reimplantar na já existente planificação urbanística de São Miguel, as bases da sede do município que se pretende criar, se vierem a contar, o que esperam, com o beneplácito de Vossas Excelências (ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. pag. 64, Grifo nosso) 25. Através da ativação de elementos do passado, da história e dos patrimônios históricos, construiu-se um discurso onde estes, selecionados e ressignificados, dariam legitimidade à criação do novo município. Processo esse que era apresentado como natural, tendo em vista sua trajetória apresentada como gloriosa. Esta forma de compor o discurso, apelativo ao desmembramento, mascarou as disputas entre os grupos políticos e os interesses econômicos que estavam por trás da solicitação. [...] É justo lembrar que São Miguel já existiu com todos os serviços e organizações anunciados pela história, não sendo, pois, a rigor, um ato de simples e modesta criação de um município, mas a proclamação de um ressurgimento valoroso e concreto, que está a merecer o reconhecimento da legislador, a fim de que renasça no palio da lei, com toda a sua pujança e dinamismo, a comunidade organizada, agora sob a forma de município, em tudo e por tudo alinhado aos anseios e diretrizes da Nação Brasileira (ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, pag. 63)26. Portanto, o processo emancipatório de São Miguel, além de marcar a autonomia política e administrativa do lugar, implicou também em uma nova relação das lideranças locais com o patrimônio histórico edificado, pois estes passaram também a gerir, pensar, organizar e produzir significações com o patrimônio histórico local. As ações culturais e turísticas passaram a ser organizadas pelo poder público local. Estes grupos políticos de São Miguel das Missões, que com a emancipação do lugar passaram a monopolizar os cargos da administração pública local eram formados por sujeitos advindos de diversos grupos étnicos, nesse sentido, são perceptíveis diversas contradições. Liane Maria Nagel (2001), ao tentar explicar esse processo de negociação, empreendido pelos sujeitos do lugar, no município de Santo Ângelo, problematiza algumas contradições deste: Assim, utilizam-se referências do passado histórico regional, inclusive “arquétipos” da história, que fixam imagens e discursos o tipo primitivo dos homens que estiveram presentes na remota formação histórica do Rio Grande do Sul, em lutas que se fizeram recuar ao avanço das fronteiras, especialmente nas disputas pelo gado e pela terra na região missioneira. Por outro lado, também se fazem presentes referências aos imigrantes como construtores e promotores do Desenvolvimento regional (p.16). Os descendentes de imigrantes de diversos grupos étnicos, por vezes, incorporam como seu o passado jesuítico guarani, cujas marcas se imprimem na paisagem do território regional. Em outras vezes, procuram a 25 ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988. 26 ASSEMBLÉIA Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Comissão de Constituição Justiça. Cria o Município de São Miguel das Missões. Processo 2258/88-9. 21 de Abril de 1988 [ 392 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS afirmação dos referenciais dos grupos étnicos que integram, buscando consolidar a imagem destes como pioneiros e responsáveis pelo progresso da região. Nesse sentido, percebe-se que o processo de negociação que empreende a construção da memória regional, ora valoriza determinado discurso, ora outro. Os processos de rememoração e esquecimento, que são ativados através da negociação com o passado, constituem-se em estratégias as quais os grupos recorrem e utilizam quando convém. [ 393 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscamos demonstrar que, na década de 1980, a consagração do Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo como patrimônio da humanidade pela UNESCO (1983) despertou o interesse de grupos políticos de Santo Ângelo. O patrimônio histórico edificado foi ativado e utilizado por estes grupos na década de 1980, que o consideravam a grande saída para o desenvolvimento econômico regional, através do turismo. Neste processo, os jornais “Tribuna Regional” e “Jornal das Missões” foram instrumentos essenciais para a produção e reprodução dos discursos dos grupos políticos, bem como de interlocução destes com a comunidade. Neles o patrimônio era retratado pelo viés de cada grupo e conforme a estes convinham. No embate entre os dois grupos que polarizavam o cenário político de Santo Ângelo, expressos nas páginas dos periódicos, o patrimônio servia como ferramenta de disputa ao ser considerado bem ou mal administrado por parte dos gestores públicos. Também foi possível percebemos através dos documentos oficiais do processo emancipacionista – mantidos no Memorial da Assembleia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul – os espaços de manifestação e interlocução dos grupos políticos, onde o patrimônio histórico era constantemente ativado e utilizado como justificativa ao desmembramento. Ao produzir representações culturais específicas, autodenominando-se missioneiros, os grupos vincularam seus referenciais ao passado do lugar. A estes grupos sociais que se consolidaram no poder público dos municípios, interessava buscar o desenvolvimento econômico através do setor turístico. Esse fato não impediu que, mais tarde, estes mesmos grupos buscassem conexões com os grupos étnicos imigrantes, evidenciando o uso de elementos do passado e do patrimônio histórico local como elemento de barganha. Negociar, nesse sentido, torna-se estratégia, permitindo a inserção dos indivíduos em vários contextos. Constatou-se que, de fato, o patrimônio histórico de São Miguel das Missões despertou o interesse das lideranças de Santo Ângelo no momento em que foi vislumbrado como uma possibilidade ao desenvolvimento turístico e econômico. A partir disso foi ativado, utilizado e negociado nos processos discursivos dos grupos políticos que acreditavam que o turismo em torno destes traria o almejado desenvolvimento econômico local. Em São Miguel das Missões, da mesma forma, o patrimônio histórico edificado foi utilizado como justificativa para a emancipação municipal, onde se acreditou também, que este traria desenvolvimento ao lugar. O período reducional era invocado como um período próspero, e o retorno dessa prosperidade era usado como justificativa para a emancipação pelos sujeitos políticos envolvidos. Portanto, o patrimônio histórico de São Miguel das Missões passou por diversos processos de ativação, apropriação, ressignificação, negociação e principalmente utilização. Os processos de ativação patrimonial perpassam por procedimentos de negociação entorno de referenciais do passado e do presente. Nesse sentido, acreditamos que o patrimônio histórico de uma comunidade possa sim ser utilizado como um recurso ao desenvolvimento regional, como um atrativo turístico, como um elemento de pertença e de alteridade. Porém, é preciso entender as contradições sociais produzidas neste processo complexo para, então, desnaturalizá-las. REFERÊNCIAS Bibliográficas BRUM, Ceres Karan. Identidade Missioneira? IN: QUEVEDO, Júlio. Missões: Reflexões e Questionamentos. Editora e gráfica Caxias, Santa Maria/RS. 2016. BRUM, Ceres Karan. “Esta terra tem dono”: representações do passado missioneiro no Rio Grande do Sul. Santa Maria. Editora da UFSM. 2006. BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. EDITORA UNISINOS. São Leopoldo/RS. 2003. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sai da modernidade. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo. 2000. CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo. Editora Contexto. 2012. 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Os agentes de informação destinavam-se a coletar e repassar informações, a seus comandantes, que eram responsáveis pelas disposições de comando da guarnição. O estudo baseia-se na Coleção Varela do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, do qual buscamos cuidadosamente fazer o mapeamento das fontes através de leitura e transcrição, com o objetivo de reunir o máximo de informações possíveis e passiveis de compreensão, localizando e identificando as informações pertinentes ao estudo. Um destes casos é a sequência de 14 cartas de Antônio Soares de Paiva, Coronel Comandante da Guarnição de São José do Norte, na qual dá parte de todos os movimentos de seus informantes a um oficial superior, a maioria destina-se a Manoel Jorge Rodrigues, e as cartas encontradas seguem de 10 de Julho de 1839 a 17 de Julho de 1840, o período de um ano, com espaçamento de meses entre as cartas. As cartas demonstram a preocupação do Coronel Paiva com a obtenção de informações, para melhor proteger a guarnição de São José do Norte. Justifica-se este trabalho pelo interesse em compreender o processo de coleta e repasse de informações, bem como as relações de reciprocidade e confiança entre comandante e comandado seguindo o sistema de hierarquia política da província. Objetivamos compreender os movimentos dos operadores envolvidos no circuito de comunicação, além de compreender como se deu o embate entre farrapos e imperiais. A intenção dos farrapos era de um ataque surpresa a cidade de São José do Norte, que estava sob o domínio do Coronel Comandante da Guarnição, Antônio Soares de Paiva, a mando dos imperiais, com o intuito de dominar São José do Norte, e a partir deste domínio passar a atacar a cidade de Rio Grande e tomar seu porto marítimo. As relações de reciprocidade e confiança entre comandante e comandado, segue o sistema de hierarquia política da província, e desta maneira podemos observar que a confiança dos agentes de informação do Coronel Paiva, é feita seguindo estes moldes, e por um longo período de tempo as atividades praticadas pelos informantes foi de grande ajuda, mesmo que tenham sido atacados em São José do Norte. Haviam sido informados e precavidos por seus informantes de um possível ataque, do qual não conseguiram previamente se preparar, mas que devido a esses avisos puderam fortificar sua resistência. O presente trabalho analisa o ataque a Guarnição de São José do Norte na madrugada de 16 de julho de 1840, relatada em carta de 17 de julho de 1840 por Antônio Soares de Paiva, ao Ministro da Guerra. Destina-se também a atuação dos informantes do Comandante Antônio Soares de Paiva no referido confronto. Os agentes de informação destinavam-se a coletar e repassar informações, a seus comandantes, que eram responsáveis pelas disposições de comando da guarnição. O estudo baseia-se na Coleção Varela do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Antes de iniciarmos devemos lembrar que o espaço de estudo será a Província de Rio Grande de São Pedro, criada em 28 de fevereiro de 1821. Como evento central, temos a Guerra dos Farrapos, sendo ela o principal conflito armado da província. Onde parte da elite rio-grandense, caudilha, defendendo seus interesses em 1835 durante a crise regencial no Brasil declara o rompimento com o império do Brasil, e em 1836 declara-se uma república, que durou até 1845. Dada a sua importância, muito já se escreveu sobre esse conflito. A historiografia abre espaço para os diferentes vieses inseridos na “Revolução Farroupilha” tanto no termo utilizado quanto nos demais estudos sobre o período, como por exemplo, o estudo da participação dos escravos na guerra dos farrapos, principalmente no episódio que contempla a chamada Batalha de Porongos 2, em novembro de 1844. Graduada em História pela Universidade de Passo Fundo, mestranda em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Santa_mendes@yahoo.com.br. 2 MENDES, Jeferson. O Barão de Caxias na Guerra contra os Farrapos. Dissertação de Mestrado. Passo Fundo, 2011, pp. 79-83. 1 [ 397 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Desta forma, o caso mais interessante que encontramos dentro do período que abrange a Guerra dos Farrapos, é a sequência de 14 cartas de Antônio Soares de Paiva, Coronel Comandante da Guarnição de São José do Norte, na qual dá parte de todos os movimentos dos informantes a um oficial superior, “Continuando a cumprir os meus deveres, ponho na prezença de V. Exa. a original parte que tive do Bombeiro da frente” 3, neste caso ao Tenente General Comandante em Chefe do Exército Manoel Jorge Rodrigues. Dentre as 14 cartas enviadas por Paiva, a maioria foi destinada a Manoel Jorge Rodrigues, as cartas encontradas seguem de 10 de Julho de 1839 a 5 de Julho de 1840, o período de um ano, com espaçamento de meses entre as cartas. No entanto, demonstram a preocupação em empregar agentes de espionagem, para a obtenção de informações, para proteger a guarnição de São José do Norte. “Na manhã de 8 do corrente, recolhendo-se hum Bombeiro, que havia mandado até o Estreito à indagar os movimentos dos rebeldes, obtive as minuciozas noticias, que, por copia, levo a prezença de V. Exa.: ellas parecem dignas de algum credito, até mesmo pela coherencia que tem as que aparecem vindas dessa cidade”4. A todo o momento, são empregados informantes para observar o inimigo, eles podem estar vigiando de longe, tanto quanto podem estar infiltrados no exército inimigo, “sendo huma do Bombeiro que conservo entre eles”5. Desta maneira, a função dos informantes é considerada de risco, de acordo com o serviço prestado, não podendo o mesmo ser descoberto pelas forças inimigas. “Tenho a honra de passar as mãos de V Exa. a copia junta, que neste momento recebo de nosso Bombeiro deste lado; por ella conhecerá V Exa. O juiso que os anarchistas fazem do nosso movimento. S. Exa. se dignará diserme o que convém que eu lhe mande diser para elle lá fazer constar, ou, emfim, o mais que V. Exa. julgar conveniente”6. O fragmento acima, além de dar parte do movimento dos inimigos, pede instruções para o prosseguimento do serviço de bombeamento, como o mesmo deveria proceder de acordo com as informações dadas (não temos acesso as informações dadas), também traz uma característica única, ao mencionar que remeteria “cópia da carta”, que havia recebido de um “bombeiro”, desta maneira, podemos aqui afirmar a existência de cartas escritas pelos informantes, que até então não tínhamos conhecimento. Normalmente as notícias eram compiladas e passadas para os demais oficiais, pelos comandantes das guarnições e das tropas, de maneira que as informações eram obtidas de diferentes formas, porém quase sempre repassadas da mesma forma, por cartas escritas pelos comandantes e não por subalternos, soldados e ou qualquer função de baixa patente. Contudo, a carta abaixo, demonstra a escrita de um bombeiro do Coronel Paiva: “Ilmo. Senhor. Hoje, 21 de Março d 1840. Participo a V. Sa. que de Mustardas só marchou parte da gente comandados pello Elias se ce acharão em São Simão e o resto se achavão em Mustardas com o Mingote e estavão esperando o resto da Cavalhada e gente do Estreito que no dia 19 dá se aVião de achar para marcharem para se reunir com o Canavarro deixando aqui huma polícia de 30 homens velhos e algumas crianças commandados pello Gutardo; O Canavarro se acha acampado entre capivari e palmares com quatro centos e tantos homens e troce com sigo huma purção de carretama com as famílias que elles vierão trazendo emganadas da laguna que já huma purção dellas [1v] se tem hido embora para a Laguna dizem por aqui que canavarro temciona dar hum asalto ahi no Norte, mais porem eu duvido que elle caia nessa; o que eu suponho he que elle com esse Voato quer ver se assim apanha lá toda acavalhada e gente de CV-7099 CV-7072 5 CV-7076 6 CV-7097 3 4 [ 398 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Mustardas e Estreito, pois elle bem necicitado está dessa cavalhada por se achar muito apé a força do citio de Porto Alegre se acha em movimento eja tem Marchado para abanda de Capivari; também sefalla que Marchou huma força rebelde do citio de 800 a 900 homens commandados por Antonio Manoel Agostinho e outros para hirem atacar a nossa força [2] que vem de São Paulo, que já tinhão sido vistas por elles rebeldes as nossas partidas dessa força no campo da vacaria e por isso mandarão aquella gente a toda apreça aver se os podião atacar e estão a espera deste rezultado para saberem o que handem deliberarem he por hora o quanto tenho aparticipar a V. Sa. pois não me descuido e estou com toda a cautella evigilancia de todos os movimentos do Inimigo e de que algum movimento ou movida pequena ou grande que seja ou logo emediatamente mandarei ou erei peçoalmente participar a V. Sa. mais com tudo deve estar agora com [2v] com alguma cautella athe ver o movimento do tal canavarro que julgo o que breve se saberá. Do bombeiro do Cel Pa Paiva. Norte”7. É claro que de acordo com uma maior quantia de missivas escritas, esses dois casos de relato escrito pelos informantes é raro, já que, essa tarefa era destinada aos comandantes. Todo esse processo de escrita seguia a hierarquia militar da província tanto pela redação das correspondências, quanto pelo fato de todos os comandantes reportarem-se a um oficial superior, a todo o momento os comandantes deveriam reportarse a seus superiores, e esperar respostas, do que deveriam fazer para dar prosseguimento nos seus movimentos e ações de suas tropas, além de muitas vezes necessitarem de apoio militar, para algum possível confronto. “Constando-se por participação do Bombeiro da frente, que acabo de receber com dacta de hontem, que os rebeldes se reunem em grande Numaro para virem evadir esta Praça como se manifesta da copia junta; julgo de meu dever comunicallo a V. Sa., para que se digne reforçar esta Guarnição com a força que puder dispençar, athe que se manifestem as marchas e tentativas dos mesmos rebeldes” 8. A preocupação do Coronel Paiva era de um possível ataque a sua guarnição, a carta é destinada então a Manoel Jorge Rodrigues e ao Coronel Comandante da Guarnição do Rio Grande, Jacinto Pinto de Araújo Correia, a quem pedia reforço, com a quantia de praças que pudesse dispensar. A última carta que encontramos do senhor Paiva, do qual emprega informantes para descobrimento do movimento dos inimigos foi em 5 de julho de 1840, da qual dá parte da movimentação dos farrapos: “Junto achará V. Exa. as duas partes do Bombeiro da frente e por elas verá a pozição que occupão os rebeldes, e as Invernadas de suas Cavalhadas”9. A intenção dos farrapos era de um ataque surpresa a cidade de São José do Norte, da qual como vimos estava sob o domínio do Coronel Comandante da Guarnição, Antônio Soares de Paiva, a mando dos imperiais, com o intuito de dominar São José do Norte, e a partir deste domínio passar a atacar a cidade de Rio Grande e tomar seu porto marítimo. CV-7100 CV-7110 9 CV-7114 7 8 [ 399 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS MAPA II: Cidade de Rio Grande e Vilarejo de São José do Norte Fonte: FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1938, p. 172. O ataque ocorreu na madrugada de 16 de julho de 1840, e foi relatada em carta de 17 de julho de 1840 por Antônio Soares de Paiva, que foi ferido na batalha, ao Ministro da Guerra e feito uma cópia da carta por Francisco Jozé d’Amorim, Tenente Graduado Servindo de Secretario, (na ausência do secretário), ao Tenente Manoel Jorge Rodrigues, da qual temos acesso: “Cópia. Ilmo. e Exmo. Sr. = Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Exa., que à huma hora da noite do dia 16 do corrente foi atacada esta Guarnição em todos os seus pontos pelos rebeldes, em numero de mil a mil e duzentos homens de todas as armas ao mando de Bento Gonçalves, e Crescencio, conseguindo forçár a Cortina entre as Batarias nº 2 e 3, e tomar as dittas Battarias, e invadir o centro da Villa; porém pagárão bém caro o seu arrojo, por quanto soffrerão hum fogo infernál [ 400 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS da nossa Furilaria, e das quatro batterias, que sempre conservamos, não tirando vantagem das duas que eles occupárão, pois que apenas a 3ª fêz tres ou quatro tiros contra a 4ª que occupava-mos, a mesma que lhe respondeu com hum vivo fogo, e também dirigido que os obrigou a encravar duas Peças, e a não fazérem mais fogo de Artilharia. A perda das duas Batterias foi devida a impiricia dos officiaes que as commandávão, a 3ª pela pouca vigiláncia com que estava o Capitão João Nepomoceno da Silva Portella do Corpo expedicionario d’artilharia, que nella foi prizioneiro; e a 2ª pela falta de actividade do 1º Tenente Bento João. No centro da Villa no Quartel do 2º Batalhão, e nas quatro Batterias que guarneciamos não cessou o fogo desde hûa hora ate as nove, ao qual respondia o inimigo corajosamente, fazendo toda a delligencia por sustentar os pontos que tinha gánho, ambicionando a possár-se de toda a villa para effectuar o saque que lhes éra prometido por seus maiores. Havião trez dias que huma forte Tempestade de vento privava a communicação dêsta Guarnição para a do Rio Grande e vice-versa, e por isso não era possivel recebermos socorros d’ali com a promptidão que as circunstancias exigião; com tudo às tres horas da noite chegarão tres Lanchas com 35praças, e às nove [1v] horas da manháá atracarão duas com mais 40, e já se divizávão, que sahião do Sul outras, que a remos forcejávão por soccorrermos, o que só poderão conseguir humas à tarde, e outras à noite. Nestas circunstancias com aquelle piqueno reforço chegado às nove horas como fica ditto me dicidi a mandár attacár as duas Batterias, que o inimigo possuia, e tivemos a filicidade de as ganhár com pouca perda nossa, porque o inimigo além de pouca resistencia se pôz em vergonhoza retirada, na qual foi acossado com metralha, e fuzilariadas Batterias, de que lhes resultou conciderável perda” 10. Foi um grande ataque a guarnição de São José do Norte, pelo que podemos observar da carta, as forças a mando de Bento Gonçalves estavam com um grande efetivo de soldados e a batalha não foi tão rápida, pois iniciou as 01 da madrugada e se estendeu até as 9 da manhã, com fogo intenso de ambos os lados. Segundo Tasso Fragoso “S. José do Norte estava provida de uma linha de trincheiras e que havia nessa linha, a distâncias apropridas, pequenos fortes ou, melhor, posições especiais para a artilharia, e talvez para flanqueamento, denominado baterias” 11, a tomada do povoado de São José do Norte, segundo Fragoso foi rápida, perto das duas e meia da madrugada já haviam dominado diversos pontos do povoado, e o inimigo estava a se esconder. Dessa forma, para que os imperiais saíssem de seus quartéis teriam de incendiar a praça, o que Bento Gonçalves se opôs a ideia, posto que, para isso teria que fazer vítimas inocentes, dessa forma pôs-se em retirada, “O inimigo na sua retirada acampou daqui tres Legoas, aonde se conserva ate hoje, blazonando de voltar com mais força a attacar novamente esta Guarnição”12, o que não ocorreu. Não houve um contra-ataque por parte dos farrapos, nem mesmo houveram outros combates grandiosos. Logo após, sucedeu a troca da administração, passando o comando do Exército ao Conde de Rio Pardo, que dentre os 14 meses de sua administração, que foram de 14 de abril de 1841 a 26 de junho de 1842, não envolveu-se em combates, “não se praticou nenhuma ação militar importante, nem se alterou a localização das tropas. Viveu-se na inércia. O chefe não teve nenhum pensamento estratégico ou, se teve, nunca o revelou”13. Com isso temos segundo Fragoso os únicos feitos das tropas no período de administração do Conde de Rio Pardo em ataques surpresas foram descritos desta forma: “Assim, em princípio de novembro de 1841, Francisco Pedro bateu a pequena guarnição rebelde de S. Gabriel, fazendo 23 prisioneiros e tomando 400 cavalos; CV-7116 FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1938, p. 173. 12 CV-7116 13 FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1938, p. 202. 10 11 [ 401 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS em fins do mesmo mês (a 25), João Propício, no Rinção Bonito, nas costas do Pequirí, derrota forças rebeldes, matando-lhes 120 homens, fazendo 182 prisioneiros, apossando-se da bagagem, e tomando 800 cavalos; e, em 20 de janeiro seguinte, o sobredito Francisco Pedro, sendo inesperadamente atacado por Bento Gonçalves com 300 homens, destroça a êste, o qual deixa em campo 36 mortos com 20 prisioneiros, 200 cavalos e toda a bagagem, ao passo que a fôrça legal só teve 3 mortos e 7 feridos” 14. Os feitos dos comandos das tropas de alguns oficiais faziam com que seu prestigio aumentasse cada vez mais, esse foi o caso do Tenente-coronel Francisco Pedro de Abreu. Em carta de José Maria da Silva Bitencourt, Brigadeiro Comandante a José Clemente Pereira e ao Conde de Rio Pardo comunica o desempenho das tropas de Moringue: V. Ex. Comunica o brilhante feito de armas praticado, em desempenho das ordens de V. Ex., participadas a esta Secretária de Estado no seu oficio nº 22, por uma pequena força do Exército Imperial comandada pelo Tenente-coronel Francisco Pedro de Abreu, no dia 26 de janeiro, junto ao passo do Cordeiro. E o mesmo Augusto Senhor, apreciando devidamente o distinto valor com que o referido tenente-coronel e a briosa tropa às suas ordens destroçou completamente em renhido combate superiores forças comandadas pelo principal chefes dos rebeldes Bento Gonçalves, há por bem determinar que V. Ex. louve, no seu Imperial Nome, a todos os oficiais, oficiais inferiores e soldados que tiveram parte em tão distinta ação, pelo denodo e bravura com que tão assinaladamente souberam coroar de novos louros as armas imperiais; e por ser de suas magnânimas intenções que não fiquem sem remuneração os serviços dos beneméritos que se distinguirem por gloriosos feitos de armas, houve por bem condecorar o bravo Tenente-coronel Francisco Pedro de Abreu com a insígnia de Oficial da Ordem Imperial do Cruzeiro e conceder ao Capitão Honorário do Exército Fernando Augusto Maximiliano Kersting o soldo correspondente ao mesmo posto. Como podemos observar as operações surpresas empregadas pelos imperais as forças farrapas, descritas por Fragoso vai de encontro a carta de José Maria da Silva Bitencourt, onde relata os feitos de Moringue, por mais que aparentemente não tenham exatidão da data do ocorrido. Além da condecoração e descrição dos feitos de Moringue, há a valorização de todos os envolvido na batalha, sendo eles oficiais de alta patente, oficiais inferiores e ou soldados, vangloriando a toda a tropa, que não apenas ganhou uma batalha, mas como se referiu José Maria “destroçou completamente” a tropa comandada por Bento Gonçalves. O alto oficialato era composto por: “alferes, tenentes, capitães, tenentes-coronéis, coronéis, brigadeiros e marechais”15. E quem compunha as forças do exército eram os homens pobres, libertos, criminosos entre outros, é neste fato que reside a necessidade de valorização dos soldados de baixa patente, pois havia uma certa dificuldade em recrutar o contingente necessário para o exército, de tal forma que, a carga do recrutamento recaia sobre os ombros dos comandantes militares. “A lógica do recrutamento militar refletia muito claramente as hierárquicas estruturas de poder, de sociabilidade, dos arranjos econômicos, enfim, da estrutura hierárquica da sociedade brasileira até o final do FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1938, p. 202. COMISSOLI, Adriano. Espadas e penas: o papel dos comandantes de fronteira nos circuitos de comunicação política da capitania do Rio Grande de São Pedro (século XIX). In: Postais: Revista do Museu Correio. Brasília: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, Departamento de Gestão Cultural, 2014, p. 16. 14 15 [ 402 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Império”16. Com isso, podemos afirmar que havia uma distinção social muito grande entre os que tinham força de mando militar e político, dos que apenas serviam no exército. Havia ainda “relações de clientela entre os comandantes militares” 17, relações estas que deixam ainda mais claro esta distinções sociais. Podemos caracterizar o clientelismo como: “cultura política fundamentada em relações pessoais e alicerçadas em trocas de favores, protagonizada por algum sujeito que detém o poder e concede a outrem quaisquer tipos de proteção/auxilio, para receber em troca fidelidade, apoios políticos e lealdades pessoais”18, buscavam com isso, na maioria das vezes, isenção do serviço militar. Ainda demonstra que não apenas a valorização destes homens chegava, mas que o soldo se fazia necessária como recompensa por seu atos de bravura, eram os comandantes responsáveis por manter suas tropas, com isso os comandados sentiam-se recompensados, e além de servirem nas tropas regulares, serviam ao seu comandante. Como é observado, esse processo segue o sistema de hierarquia militar da província, onde os comandados seguem seus comandantes, conforme se sentem protegidos ao seu mando, em todo esse processo podemos perceber e concluir que a confiança dos informantes a seus comandantes funcionava da mesma maneira, obviamente também mediante o valor recebido por estes agentes de informação, por prestarem um serviço de risco a suas vidas. Desta maneira, a confiança dos informantes do Coronel Antônio Soares de Paiva, é feita seguindo estes moldes, e por um longo período de tempo as atividades praticadas pelos agentes de informação, foram de grande ajuda. Por mais que tenham sido atacados em São José do Norte, haviam sido já informados e precavidos pelos agentes de informação de um possível ataque, do qual não conseguiram previamente se preparar, mas que devido a esses avisos puderam fortificar sua resistência, e com reforços de Rio Grande, puderam debelar o conflito, mesmo que, parte disso tenha ocorrido por desistência de Bento Gonçalves. Este é mais um dos casos em que tivemos a oportunidade de observar a atuação dos agentes de informação na Guerra dos Farrapos. Quiçá o melhor caso, do qual conseguimos acompanhar as diligencias dos bombeiros de 10 de Julho de 1839 a 5 de Julho de 1840, ao observarem o entorno do vilarejo, e com isso a possibilidade de precaverem-se, além da preocupação do comandante Paiva na guarda e manutenção do seu domínio e comando do vilarejo de São José do Norte. Referências CANCIANI, Leonardo; MUGGE, Miquéias H. As Guardas Nacionais e seus comandantes – um ensaio comparativo: as províncias de Buenos Aires e do Rio Grande do Sul (século XIX). In: MUGGE, Miquéias H.; COMISSOLI, Adriano. Homens e Armas: recrutamento militar no Brasil – século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2011. COMISSOLI, Adriano. Espadas e penas: o papel dos comandantes de fronteira nos circuitos de comunicação política da capitania do Rio Grande de São Pedro (século XIX). In: Postais: Revista do Museu Correio. Brasília: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, Departamento de Gestão Cultural, 2014. CV-7072 CV-7076 CV-7097 CV-7099 CV-7100 CV-7110 CV-7114 RIBEIRO, José Iran. "De tão longe para sustentar a honra nacional": Estado e Nação nas trajetórias dos militares do Exército Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, 2009, p. 7. 17 FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, 2007, pp. 170-171. 18 CANCIANI, Leonardo; MUGGE, Miquéias H. As Guardas Nacionais e seus comandantes – um ensaio comparativo: as províncias de Buenos Aires e do Rio Grande do Sul (século XIX). In: MUGGE, Miquéias H.; COMISSOLI, Adriano. Homens e Armas: recrutamento militar no Brasil – século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2011, p. 193. 16 [ 403 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS CV-7116 FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, 2007. FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: Almanak Laemmert, 1938. MENDES, Jeferson. O Barão de Caxias na Guerra contra os Farrapos. Dissertação de Mestrado. Passo Fundo, 2011. RIBEIRO, José Iran. "De tão longe para sustentar a honra nacional": Estado e Nação nas trajetórias dos militares do Exército Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, 2009. [ 404 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A imigração numa perspectiva dos direitos fundamentais e os processos de inserção na sociedade Silvana de F. M. da Silva1 Resumo: A migração é um fenômeno complexo que envolve de um lado questões político econômicas e de outro princípios e direitos fundamentais inerentes a pessoa humana. Diante deste cenário, milhares de pessoas sem perspectivas de vida, devido à pobreza, à falta de condições básicas de subsistência, às desigualdades, o desemprego, as doenças e as questões religiosas, abandonam suas famílias, seu círculo de amizades, seus relacionamentos e tudo que construíram em busca de melhores condições de vida. A imigração é uma realidade vivenciada por vários países e que vem se tornando, a cada dia, mais evidente no Brasil e em diversos Estados. Tornou-se um fenômeno micro e macro, pelo fato das cidades não estarem preparadas para acolher este contingente de pessoas que chegam com outra cultura, identidade, história e perspectiva de vida, e que muitas vezes vai de encontro à realidade local na qual buscam se estabelecer. Nesse sentido, se faz necessário, uma reflexão sobre a inserção do imigrante na sociedade brasileira, diante dos desafios enfrentados por eles quando chegam ao país de destino, quais sejam, a dificuldade de obter documentação que lhes permita trabalhar, o aprendizado da Língua Portuguesa para compreender ou falar o idioma nacional, o acesso à rede de saúde pública ou a impossibilidade de obter à educação para os filhos. Desse modo, compreende-se que refletir sobre os fenômenos imigratórios envolve identidade e cidadania, contudo, parece que estas ainda não são efetivadas nem no país de origem, nem no de adoção. Assim, tornase pertinente que cada vez mais estudos sobre imigração sejam realizados no Brasil, pois é premente a necessidade de compreensão acerca das transformações que podem advir da aceitação destes imigrantes, as quais podem ser de cunho econômico, político, social e cultural. Também, se faz necessárias ações conjuntas de diálogo, cooperação e reciprocidade para que desta forma, o diferente seja aceito e inserido na nova sociedade. O Brasil caminha a passos lentos nas questões de inclusão, e não é somente as leis que farão com que o imigrante seja inserido no contexto social e sujeito de direito e deveres. Introdução A migração é um fenômeno complexo que envolve de um lado questões, político-econômico e de outro, princípios e direitos fundamentais. Diante deste cenário, milhares de pessoas sem perspectivas de vida, devido à pobreza, à falta de condições básicas de subsistência, às desigualdades, o desemprego, as doenças e as questões religiosas, abandonam suas famílias, seu círculo de amizades, seus relacionamentos e tudo que construíram em busca de melhores condições de vida. É uma realidade vivenciada por vários países e que vem se tornando, a cada dia, mais evidente no Brasil e em diversos Estados. Tornou-se um fenômeno micro e macro, pelo fato das cidades não estarem preparadas para acolher este contingente de pessoas que chegam com outra cultura, identidade, história e perspectiva de vida, e que muitas vezes vai de encontro à realidade local na qual buscam se estabelecer. Nesse sentido, se faz necessário, uma reflexão sobre a inserção do imigrante na sociedade brasileira, diante dos desafios enfrentados por eles quando chegam ao país de destino, quais sejam, a dificuldade de obter documentação que lhes permita trabalhar, o aprendizado da língua portuguesa para compreender ou falar o idioma nacional, o acesso à rede de saúde pública, o acesso a educação, á moradia dentre outros. Desse modo, compreende-se que refletir sobre os fenômenos imigratórios envolve identidade e cidadania, contudo, parece que estas ainda não são efetivadas nem no país de origem, nem no de adoção, por isto, torna-se necessário estudos sobre a imigração no Brasil. Pois, é premente a necessidade de compreensão acerca das transformações oriundas da aceitação destes imigrantes, as quais podem ser de cunho econômico, político, social e cultural. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo. Graduada em Ciências Habilitação Matemática pela Universidade de Passo Fundo. Mestranda do Mestrado Stricto Sensu da Universidade de Passo Fundo. Especialista em Educação Socioambiental pela Universidade de Passo Fundo. E-mail: vannasilva@hotmail.com 1 [ 405 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Diante deste cenário, busca-se fazer uma reflexão sobre a complexidade dos processos de inserção do imigrante no país escolhido para dar início a uma nova vida, com ênfase nos direitos humanos e o respeito às diferenças. 1 Dos direitos humanos e dos direitos fundamentais na contemporaneidade A proteção aos direitos humanos é uma conquista da sociedade moderna, uma construção ou até mesmo invenção da modernidade, ainda, pode-se dizer que é um novo artefato social que emerge através dos tempos. Para Baldi (2004, p. 280), os direitos humanos não são manifestações abstratas da inteligência humana, mas encontram-se inseridos na situação histórica de cada cultura. Segundo Siqueira Junior e Oliveira: Os direitos humanos reconhecidos pelo Estado são denominados fundamentais, vez que, via de regra, são inseridos na norma fundamental do Estado, a Constituição. Para Konrad Hesse, “direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica de direitos fundamentais”. Com o intuito de limitar o poder público estatal, os direitos humanos são incorporados nos textos constitucionais, estabelecendo-se como verdadeiras declarações de direitos do homem, que juntamente com outros direitos subjetivos públicos formam os chamados direitos fundamentais. (2016, p. 44). Dessa forma, pode-se dizer que a expressão “direitos fundamentais” esta interligada a um número de direitos que surgem do direito natural e da evolução histórica e que deve ser observado pela sociedade. São direitos absolutos e naturais, podem ser denominados como direitos da personalidade num sentido mais restrito e direitos humanos num sentido mais amplo. (SIQUEIRA JUNIOR; OLIVEIRA, 2016, p. 48). Assim, a expressão direitos humanos se vincula a outras expressões, quais sejam, direitos naturais, direitos morais, direitos fundamentais, entre outros. Mas a expressão tem popularidade por ter sido empregada em 1948 pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Na visão de Ingo Sarlet, a concepção de acordo com a qual – pelo menos em grande parte os direitos fundamentais (assim como, em especial, os direitos humanos) encontram seu fundamento na dignidade da pessoa humana, quando contrastada com a noção de dignidade na condição de um direito (fundamental) á proteção e promoção dessa dignidade, foi percebida, como constituindo uma “dualidade de usos”, visto que a dignidade opera tanto como o fundamento (a fonte) dos direitos humanos e fundamentais, mas também assume a condição de conteúdo dos direitos. (2019, p. 98). Portanto, é possível afirmar que a base dos direitos humanos a nível internacional é formada por três pilares: a Carta de fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), a Carta do Tribunal de Nuremberg e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A primeira legitima uma preocupação internacional quanto aos direitos humanos, à segunda institui a responsabilidade da proteção desses direitos e a última, a Declaração, dispõe quanto ao grupo desses direitos considerando-os como indivisíveis, fundamentais e universais. (REIS, 2006, p. 33). O grande desafio que o tema de direitos humanos apresenta se relaciona com seu conceito e sua fundamentação. Em primeiro lugar porque veicula ideal de humanidade que se ampliam no tempo e no espaço, em segundo lugar porque são direitos fundamentais, inerentes a pessoa humana, bem como são valores universais, e em terceiro lugar porque são direitos necessários e que garantem uma vida digna aos indivíduos. [ 406 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Assim, segundo Baldi: Os direitos humanos referem-se, portanto e antes de tudo, a uma categoria de direitos que tem o caráter de abrigar e proteger a existência e o exercício das diferentes capacidades do ser humano, e que irão encontrar na ideia de dignidade da pessoa humana o seu ponto convergente. É em função dessa ideia, resultante da concepção do ser humano como dotado de diferentes capacidades naturais, é que se pode procurar critérios comuns, que possam responder ao desafio do multiculturalismo. (2004, p. 28). Quando se fala em direitos humanos, diz-se que eles não nasceram do progresso das relações comerciais entre os povos, mas nasceram da identificação dos valores que são comuns às diversas sociedades e grupos pertencentes a esta sociedade. Segundo as tradições Kantianas, as leis morais são fruto da razão do homem. (BALDI, 2004, p. 304-305). Na visão de Baldi: Os direitos humanos seriam, assim, a positivação dos princípios fundadores, que por sua natureza moral, asseguram o caráter de universalidade dessa categoria de direitos. Nesse sentido, é que se pode dizer, com Habermas, que o pensamento kantiano representa “uma intuição diretora” (1996:80) no projeto de estabelecer os fundamentos dos direitos humanos na época contemporânea. (2004, p. 305). Para Ramos (2005, p. 194) a noção de universalidade dos direitos humanos fica em completa contraposição com diversas tradições culturais e religiosas. Não se deveria ir em busca de um denominador comum em matéria de direitos humanos, mas sim aceitar que a pluralidade de culturas e religiões existem e precisam ser respeitadas, sendo reconhecidas a liberdade e a participação, com direitos iguais à todos. Nas palavras de Rubio: No que diz respeito a uma escala mundial, temos, no contexto da globalização, uma multiculturalidade muito clara. É óbvio e claro que existem diferentes tipos de sociedades multiculturais. E também um fato da factualidade vida ou existência de uma pluralidade de culturas no mundo e na nossa própria área geográfica. Isto tem consequências negativas (problemas e conflitos de identidade e de coexistência com base na distinção nós/eles ou outros), mas também positivas. E é neste espaço que a cultura jurídica tem que saber como se mover. O fato multicultural deve tomar isso como desafio intercultural, ou seja, como tarefa ou programa, como exigência legal que flui a partir da realidade de nossa situação histórica e se concentra numa humanidade que deve caminhar junto para conquistar e reconhecer os direitos plenamente humanos e para todos, sem exceção. [...] Este é o derradeiro desafio proposto para a imaginação jurídica: a incorporação consciente e explícita do multiculturalismo no mundo, sem incorrer em situações idílicas ou idealistas. (2014, p. 44-45). Os direitos humanos trazem em si uma vocação de universalidade, tendo por base o modelo de organização da sociedade, por serem direitos pertencentes a todos os homens, que, apesar das diferenças raciais, culturais, religiosas e ideológicas, são integrantes de uma única espécie no universo. Nesse sentido, pode-se dizer que as raízes filosóficas dos direitos humanos estão interligadas ao pensamento humanista, que inspirou as bases para a fundamentação filosófica dos direitos humanos. (GORCZEWSKI, 2009, p. 103-104). [ 407 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Nesse sentido, parte-se do princípio de que os direitos humanos não estão prontos, são construídos através da história, se radicam nas lutas de classes ao longo dos anos, são compreendidos como direitos inerentes á pessoa humana, onde cada indivíduo pode desfrutar de seus direitos sem distinção de raça, cor, gênero, língua, religião, entre outros. Conforme Gorczewski (2009), olhando esses direitos sob o viés da globalização, de um lado tem-se o avanço da condição humana, porém de outro se vê a sociedade retroceder alguns passos. O trabalho passa a ser comercializado como mercadoria, o meio ambiente é constantemente degradado, enquanto as fortunas se acumulam, a miséria e a fome se espalham, fomentando o crescimento da violência. Assim, por um lado a globalização pode ser um progresso para a condição humana. É uma alternativa à manutenção a qualquer custo da soberania do Estado, ao serviço militar obrigatório, a ameaça de destruição do planeta em uma guerra nuclear, á subordinação dos interesses individuais aos dos governantes sem que fosse possível neutralizar esse poder. Por outro lado, esta nova ordem, com Estados débeis, capital desregulado e economia internacionalizada, leva a sociedade a dar alguns passos para trás quanto aos avanços conseguidos nos últimos séculos. O trabalho humano passa a ser negociado como mercadoria, sujeito a lei da oferta e da procura, a degradação ambiental passa a ser uma forma constante, fortunas imensas se acumulam, os extremos sociais se acirram, a violência cresce, a fome a miséria e a morte rondam a sociedade. (GORCZEWSKI, 2010, p. 38). Julios-Campuzano, Santos e Lucas (2016) ressaltam que a globalização, em todas as suas facetas, tornou ainda mais evidente as trocas e os processos de interação humanas, em sua dimensão positiva e negativa. A noção de espaço-tempo foi se modificando e aos poucos se aproximando, e a expressão onde se diz que nenhum espaço é tão longe que não possa ser acessado de alguma maneira passa a fazer sentido. Por isto, o desejo de estar em outros lugares aumentam os processos de deslocamentos, e mesmo não tendo noção do que irá se encontrar do outro lado da fronteira, o encontro com o diferente e seu estranhamento sempre marcaram os processos de mobilidade urbana e os movimentos migratórios. Desta forma, importante considerar que, o estrangeiro, o imigrante, o refugiado, é o resultado objetivo da noção de identidade nacional como única possibilidade de acesso. Eles reforçam a ideia de pertença numa lógica ambivalente: conformam sua presença na relação com o seu oposto. O imigrante reforça a posição do cidadão nacional e vice-versa. (GORCZEWSKI, 2010, p. 22). Desse modo, passam a ocorrer muitas transformações relacionadas à perda de pertencimento e identidade, pois muda o local de residência, os laços de amizades, os vínculos familiares na maioria das vezes se perdem, ocorrem mudanças e transformações sociais, econômicas, políticas, as quais nem sempre são positivas. Assim, o imigrante que deixa sua pátria em busca do novo, nunca vai sozinho, leva consigo resquícios de sua cultura, que, de certo modo, adquiriu ao logo de seu desenvolvimento como ser humano. Nas palavras de Tedesco: Na velocidade do próprio cotidiano – na descontinuidade e na fragmentação do tempo – na “aceleração do tempo presente”, o homem toma consciência da perda de suas referencias mais imediatas, da destruição do passado, e volta-se para a necessidade de questionar a sua inserção social, de identificar laços comuns e criar, [ 408 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS na expressão de Pierre Nora, “lugares de memória” para suprir esses vazios. (2002, p. 21). Nesse sentido, a migração é vista como uma das principais forças que atuam na formação dos Estados modernos, bem como é responsável pelas reconfigurações políticas, econômicas e sociais da sociedade de hoje, pois provoca inúmeras transformações na vida dos indivíduos, assim como é um tema pertinente aos dias atuais. 2 Os processos de inclusão do imigrante na sociedade As primeiras migrações de nossos ancestrais estavam confinadas no continente africano, assim, acredita-se que há 100 mil anos atrás seus descendentes saíram da África para o Oriente Médio e de lá se dispersaram por todos os continentes do planeta, eram os chamados migrantes. Por isto a história da espécie humana ressalta que todas as pessoas atualmente vivas são descendentes de um pequeno grupo de seres humanos com origem na África Oriental. (BAUMAN, 2017, p. 69-70). Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), a denominação de imigração referese ao processo pelo qual os “estrangeiros se deslocam para um país, a fim de aí se estabelecerem”. Esse movimento de imigração pode advir de vários motivos, sejam pessoais, pela busca de trabalho e oportunidades, ou até mesmo para fugir de situações que podem ser de perseguições ou discriminações por motivos políticos ou religiosos, entre outros. (2009, p. 33). Nesse sentido ressalta Baraldi: As migrações internacionais, assim, só existem porque existem as fronteiras. Juridicamente deveriam constituir a exceção no sistema de Estados-nação, que constrói-se sobre a tríade: governo, povo e território, em que um povo estável (ou estabilizado), localizado em um território definido, é ligado a um governo e a um ordenamento jurídico que possui jurisdição (poder) sobre aquele território. O migrante é aquele membro de um Estado que se desloca para outro território e, portanto, se coloca sob a jurisdição deste outro Estado. (2014, p.16). É preocupante a forma com que grande parte do Ocidente responde ao problema da imigração, que é tratada como assunto alheio e que deve ser solucionado pelos países periféricos. Cabe, unicamente, autorizar o número de pessoas que podem entrar, repatriando aqueles que estão fora da cota legal concedida. Baumann destaca que: Hospitalidade significa o direito que tem um estrangeiro de não ser tratado de forma hostil pelo fato de estar em território alheio. O outro pode desprezar o estrangeiro, se isso pode realizar-se sem ruína deste, mas, enquanto o estrangeiro se comportar amistosamente em seu posto, o outro não pode combatê-lo com hostilidade. Não há nenhum direito de hóspede em que se possa basear essa exigência (para isso seria necessário um contrato especialmente generoso, pelo qual se limitasse o tempo de “hospedagem”), mas um direito de visita, direito a apresentar-se à sociedade, que tem todos os homens em virtude e direito da propriedade comum da superfície da Terra, sobre a qual o ser humano pode se estender até o infinito. (2017, p. 73). Rubio (2007, p. 84) ressalta que é necessário ter consciência de que este é um problema global que afeta a todos, é preciso buscar uma solução, e fazer com que o discurso emancipador de liberdade e [ 409 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS solidariedade seja reconhecido a estas pessoas que muitas vezes não falam a língua do país que as recebe e se expressam de maneira diferente. Acrescenta Habermas que: Uma nação de cidadãos é composta de pessoas que, devido a seus processos sociais, encarnam simultaneamente as formas de vida dentro das quais se desenvolveu sua identidade – e isso ocorre mesmo quando, como adultos, eles se libertaram das tradições da sua origem. Naquilo que é relevante para seu caráter, as pessoas são como entroncamentos numa rede adscritícia de culturas e tradições. A composição contingente do povo de um Estado, a unidade política, na terminologia de Dahl, determina também implicitamente o horizonte das orientações de valor, dentro do qual ocorrem conflitos culturais e os discursos do auto-entendimento ético-político. Junto com a composição social da cidadania também muda esse horizonte de valores. (2000, p. 165). O fenômeno migratório ocorre porque, em grande parte, o Brasil é um país emergente capaz de lidar com a crise mundial, além de ser um lugar com relativa segurança para que os povos que vêm de regiões conflituosas e precárias possam viver em condições dignas, bem como, assegurar o bem estar de sua família. A Constituição Federal do Brasil, no caput de seu artigo 5º, expressa, que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros, residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, identifica-se, assim, que assume como fundamental o princípio da igualdade. Deste modo, como assegurar a igualdade quando a realidade observada em âmbito nacional e internacional é o crescente aumento do desemprego e o avanço tecnológico, fatores que contribuem cada vez mais para que as pessoas encontrem dificuldades para se qualificar e adquirir habilidades e competências para não serem excluídas do mercado de trabalho. Por este motivo muitos são obrigados a imigrar sozinhos ou em grupos para outros países em busca de uma oportunidade profissional e melhores condições de vida. Neste processo de inserção dos imigrantes na sociedade, alguns obstáculos podem ser verificados, tais como o acolhimento, o domínio da língua e a questão da discriminação racial e xenofobia. Esses fatos em conjuntos ou isolados acabam se tornando um empecilho para os imigrantes se inserirem na sociedade ou viverem excluídos do convívio social. A primeira barreira a ser vencida é o acolhimento. Diante desta situação é possível perceber que as cercas, os muros, as divisas, as fronteiras, que separam Estados e regiões, são alguns dos problemas enfrentados pelos imigrantes quando chegam ao país de adoção, pois muitas vezes acabam sendo barrados logo na chegada, tornando-se vulneráveis. Á negação do acesso é mais forte do que a hospitalidade e a solidariedade que muito são defendidas e debatidas nos discursos sobre os direitos humanos. (JULIOS-CAMPUZANO; SANTOS; LUCAS, 2010, p. 23). Segundo Julios-Campuzano, Santos e Lucas: Ela coloca o peregrino e o imigrante não como simples viajantes, como turistas, mas como alguém que está em busca da salvação, da terra prometida, do lugar melhor para se viver; alguém que esta em fuga, salvando a sua vida temporal. E as razões desse processo são mundanas mesmo. Fugir da guerra, fome, violências, estabelecer novos lugares de poder, conquistar mais riqueza. Vivemos esse sonho da terra prometida até os dias atuais. (2016, p. 13). Um dos maiores problemas em relação à entrada dos imigrantes se dá em função do controle dos fluxos pelos países receptores, principalmente em relação à entrada de imigrantes em condições menos favorecidas, o que acarreta em medidas políticas, jurídicas, penais e administrativas muitas vezes repressivas em relação a este contingente de pessoas. [ 410 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Ressaltam Julios-Campuzano, Santos e Lucas (2016, p. 28), que os problemas que envolvem estes fenômenos não começam e acabam com o controle dos fluxos, especialmente os de entradas. É necessário considerar que este imigrante que abandona seu país de origem em busca de acolhimento passa por sérios problemas de adaptação à sua nova sociedade, muitas vezes até problemas psicológicos, relacionados com as motivações das migrações, bem como com suas consequências. Nas palavras de Julios-Campuzano, Santos e Lucas: Desde essa perspectiva crítico-problemática, não se pode ignorar que um dos principais problemas atinentes aos processos migratórios diz respeito à diferença cultural a ser vivenciada pelo imigrante diante da cultura ou das culturas do país recebedor e as consequências daí advindas em relação à configuração de sua própria identidade. (2016, p. 28). Ainda, segundo Julios-Campuzano, Santos e Lucas (2016), um dos grandes desafios enfrentados pelos países receptores, que muitas vezes exploram o trabalho destes, é gerir os processos de inserção dos estrangeiros, criando condições sociais e existenciais de forma a diminuir os traumas oriundos desta mudança de vida, fazendo com que este imigrante se sinta acolhido nesta nova sociedade e que o recomeço não seja tão traumático. Desse modo destaca que: No mundo inteiro há muitas incertezas em torno da presença de comunidades estrangeiras; percebe-se muita resistência ao outro, o que pode gerar, em curto prazo, conflitos de grandes proporções. Por exemplo, na Europa, confronta-se o etnocentrismo e a tolerância ao outro. A questão premente é como atender às reivindicações e respeitar os direitos dos migrantes, diante das legislações baseadas no poder e soberania do Estado-nações. A mobilidade contemporânea traz, além do dinamismo das migrações internacionais, a ilegalidade, o tráfico de pessoas, a xenofobia e a usurpação dos direitos do migrante. Para o enfrentamento destes problemas as ações não podem ser unilaterais, é necessário esforço conjunto de diálogo e cooperação, respeitando a soberania nacional, mas reconhecendo a complexidade das questões, para organizar foros internacionais. (JULIOSCAMPUZANO; SANTOS; LUCAS, 2016, p. 32). Neste contexto é possível perceber que o processo de imigração em seus vários aspectos acarreta mudanças comportamentais e emocionais. Assim, o imigrante terá que se adaptar ao novo, deverá aceitar as perdas e acima de tudo se permitir a participar dos processos de integração, tentando, aos poucos, deixar de lado suas raízes e sua bagagem cultural, e se inserir neste novo mundo, mas com a certeza de que continua sendo a mesma pessoa que abandonou sua terra em busca de dignidade e de uma nova identidade. Julios-Campuzano, Santos e Lucas comentam que: Cidades bem-sucedidas e as sociedades do futuro serão mais e mais multiculturais. Assim, gerir e explorar o potencial da diversidade cultural para estimular a criatividade e inovação, e, consequentemente, atingir prosperidade econômica e uma melhor qualidade de vida, tornam-se desafios a serem enfrentados não só no futuro, mas já nos dias atuais. A diversidade pode ser um recurso para o desenvolvimento de uma cidade se o discurso público, as instituições e os processos da cidade, bem como o comportamento das pessoas, levarem consideração a diversidade de forma positiva. (2016, p. 89). [ 411 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Segundo Tedesco (2015, p. 75) é impressionante como nossa capacidade de pensar e determinar a diferença entre os diferentes indivíduos da sociedade pode refletir o próprio critério de alteridade diante do outro individuo ou do grupo social ao qual ele pertence, seja por sua diferença de cunho racial, de gênero, de classe, de lugar, de origem, de geração, de pode econômico, etc. Assim, metaforicamente relacionamos esse processo de migração e acolhimento a porta que se abrem e se fecham, na perspectiva de frisar o quanto é complexa a relação entre os diferentes, principalmente em uma condição caracterizada pela vulnerabilidade e insegurança social que envolve diferentes atores, tanto no passado, com as migrações de escravos vindos da África quanto no presente, com as novas levas de imigrantes vulneráveis e dependentes de uma condição precária de trabalho no país de destino. (TEDESCO, 2015, p. 77). Os migrantes atravessam fronteiras geográficas, culturais, socioeconômicas e interpessoais. Este mesmo imigrante atravessa um período de estranhamento profundo em busca de uma nova identidade, e precisa de suporte que lhe restabeleça a confiança. Esta condição de vulnerável que lhe foi atribuída porque chega sem recursos econômicos, sem entender o idioma e pelo seu baixo grau de instrução, potencializa ainda mais sua fragilidade. (TEDESCO, 2015, p. 87). Dessa forma, o enfrentamento do diferente também é um desafio dos grupos dos acolhedores, pois os contatos ressignificam vidas, formas de agir e representações sociais. Ver o outro no seu antigo espaço de exclusividade é deslocar o seu próprio reconhecimento de ser sujeito e de pertencer a algum lugar ou ter determinada condição e status social. (TEDESCO, 2015, p. 88). O Brasil caminha a passos lentos nas questões de inclusão, e não é somente as leis que farão com que o imigrante seja inserido no contexto social e sujeito de direito e deveres. É necessário à implementação de políticas públicas que fortaleçam as desigualdades, pensadas numa perspectiva integral e transversal que possam favorecer a integração e prevenção de violação de direitos. Também, se faz necessárias ações conjuntas de diálogo, cooperação e reciprocidade para que desta forma, o diferente seja aceito e inserido na nova sociedade. Conclusão O presente trabalho fez reflexões acerca dos direitos humanos com base nos direitos fundamentais e no princípio da igualdade, com o propósito de efetivar o que determina a legislação pátria em relação aos direitos dos imigrantes. “Imigrantes” parece ser um termo pejorativo, explica-se, a acepção do termo remete a “algo desagradável”, neste sentido, tem-se observado a existência de países que sequer cogitam acolher imigrantes e outros que querem deportá-los. Contudo, depende de cada país acolher e aceitar esses imigrantes que chegam com outra cultura, outra identidade, buscando apenas, uma vida digna, o que em muitas vezes, já lhe foi negado. Em relação ao processo de inserção dos imigrantes na sociedade brasileira, alguns obstáculos podem ser observados, em especial, o acolhimento, a religião, o domínio da língua e a questão da discriminação racial e xenofobia. Esses fatos em conjuntos ou isolados acabam se tornando obstáculos para a adaptação deste imigrante que está chegando em busca de acolhimento. Vive-se numa sociedade onde a maior parte dos brasileiros se declara descendentes dos africanos ou assumem ser mestiça, mas, infelizmente, isso não garante ao imigrante estrangeiro, uma vivência harmônica [ 412 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS ou a garantia de que será aceito nessa nova sociedade, sobretudo, porque o imigrante chega em situação de extrema vulnerabilidade social, o que faz com que seja mais discriminado. Neste contexto, é preciso pensar formas de reconhecer esse imigrante que chega em busca de acolhimento, facilitando seu acesso a cultura da sociedade e dos grupos locais. Desta forma é possível romper as barreiras que separam o estrangeiro da sociedade, assim, este poderá se adaptar mais facilmente passando a viver de forma plena e integrada nesta nova sociedade, e não à margem dela. REFERÊNCIAS BALDI, César Augusto. (Org.). Direitos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. BARALDI, Camila Bibiana Freitas. Migrações Internacionais, Direitos Humanos e Cidadania SulAmericana: o prisma do Brasil e da Integração Sul-americana. Tese ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais para obtenção título doutor – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. 1 ed.- Rio de Janeiro: Zahar, 2017. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, CF: Senado, 1988. GORCZEVSKI, Clovis Direitos humanos, educação e cidadania: conhecer, educar, praticar. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009. GORCZEVSKI, Clovis. Direitos humanos e participação política. 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[ 413 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A conquista da Terra Indígena Toldo Chimbangue Silvana Winckler1 Arlene Renk2 Resumo: Este trabalho aborda o processo de demarcação da Terra Indígena – TI – Toldo Chimbangue, localizada na região oeste de Santa Catarina, nas proximidades dos rios Lambedor e Irani. O Toldo Chimbangue está estabelecido em uma área de 1963 hectares recuperada por indígenas kaingank no período imediatamente posterior ao final do regime militar no Brasil. O Decreto de demarcação data de dezembro de 1985. Até então, a área demandada era integralmente ocupada por população não indígena, constituída por descendentes de colonos europeus oriundos no Rio Grande do Sul. O processo de demarcação da TI implicou na declaração de nulidade dos títulos de propriedade agrária anteriores e na remoção dos agricultores ali estabelecidos. O conflito opôs, fundamentalmente, de um lado, agricultores, que contavam com o apoio do empresariado regional, de partidos políticos e de entidades de classe; e, de outro, indígenas articulados em rede de trocas de informações e solidariedade, com apoio da igreja diocesana de Chapecó e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Esse episódio antecedeu a política de demarcação de terras indígenas inaugurada pela Constituição brasileira de 1988, tendo-se baseado em laudos jurídicos e antropológicos que serviram de inspiração ao atual regime constitucional de tratamento da questão indígena, especificidade que justifica a relevância do estudo. Palavras-chave: Demarcação. Indigenato. Terra indígena. Toldo Chimbangue. Introdução O estatuto jurídico das terras indígenas está na origem de muitos conflitos sociais que envolvem a sua demarcação e as garantias que lhes são inerentes. Nesse sentido, acreditamos que a elucidação dos conceitos jurídicos poderá contribuir para a compreensão das situações conflituosas desde o viés da política indigenista e da legislação brasileira, notadamente sob a vigência da Constituição de 1988. Neste estudo, tomamos com caso a ser analisado a demarcação da Terra Indígena Toldo Chimbangue, por apresentar grande complexidade e por permitir-nos o exame de diferentes momentos da história recente das demarcações. Essa Terra Indígena está localizada no município de Chapecó, nas proximidades da foz do rio Lambedor, situado na bacia hidrográfica do rio Irani. A área demarcada é de 1963 hectares3 e se encontra habitada por indígenas Kaingang e Guarani, estes em caráter provisório, enquanto aguardam a demarcação de área demandada nos municípios de Cunha Porã e Saudades. Atualmente vivem na aldeia pouco mais de quinhentas pessoas. (BRINGHENTI, 2017). A pesquisa é bibliográfica e documental, com abordagem analítica, a qual favorece a formulação de conceitos e a caracterização de institutos jurídicos. Recorremos, de igual modo, à historiografia regional a fim de descrever o caso e seus rebatimentos na questão mais ampla que é a demarcação de terras indígenas no Brasil. A demarcação da TI ocorreu em duas etapas, sendo a primeira correspondente a 988 hectares, com decreto de expropriação datado de dezembro de 1985. Neste caso, o instituto do indigenato (direito congênito às terras tradicionalmente ocupadas) não foi adotado, optando-se pela desapropriação dos colonos que Doutora em Direito pela Universidade de Barcelona (UB). Docente dos programas de pós-graduação em Ciências Ambientais (mestrado e doutorado) e em Direito (mestrado acadêmico). 2 Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Direito pela Universidade de Barcelona. Docente dos programas de pós-graduação em Ciências Ambientais (mestrado e doutorado) e em Direito (mestrado acadêmico). 3 Um hectare da TI está localizado na comunidade de Sede Trentin, separado da TI, por ter sido ali identificado um cemitério indígena. 1 [ 414 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS haviam adquirido as terras. Estes foram indenizados pelas terras e pelas benfeitorias. Já na segunda etapa, sob a vigência da Constituição de 1988, adotou-se o parâmetro constitucional, segundo o qual as terras indígenas são direito originário, e não derivado, não cabendo indenização às famílias não indígenas removidas (BRINGHENTI, 2017; NACKE e BLOEMER, 2007). Terras indígenas: estatuto jurídico A questão indígena esteve presente desde as primeiras regulamentações jurídicas concernentes à terra no Brasil. Tércio Sampaio Ferraz Junior, com base nas pesquisas de Expedito Arnaud, chama a atenção para um registro histórico: [...] Alvará de 01.04.1680, ratificando o de 10.11.1647, que determinava que “os índios descidos do sertão” fossem senhores de suas fazendas, que lhes fossem designados “lugares convenientes, para neles lavrarem e cultivarem”, desobrigando-os de pagarem foro ou tributo, mesmo em sesmarias, posto que considerados “primários e naturais senhores delas”. : (ARNAUD, s/d, apud FERRAZ JUNIOR, 2004, 689-690): Esses dispositivos legais dão origem ao instituto designado como indigenato, considerando-se as terras do indigenato um direito congênito, originário e, portanto, distinguindo-as das terras devolutas. A Lei de Terras (Lei 601/1850) e seu regulamento, de 1854, estabeleceram que as terras destinadas à ocupação indígena seriam caracterizadas como usufruto, atendendo a uma perspectiva assimilacionista. (FERRAZ JUNIOR, 2004). Como terras devolutas 4 sob usufruto, não poderiam ser alienadas. Há uma divergência instalada no que diz respeito à manutenção, pela legislação imperial, do instituto do indigenato. A leitura da Lei de Terras leva ao entendimento de que o texto legal não reconhece o direito originário dos indígenas às terras. Esta postura é coerente com aquela adotada na Carta Régia de 1808, de Dom João VI, que instituiu “o princípio da ‘guerra justa’, pelo qual se poderiam escravizar os índios em conflito com os colonos, expropriando-os de suas terras, arrancando-os do seu habitat, anulando todos os avanços no sentido de um incipiente direito indígena” (ROSA e CASTELO BRANCO, s/d; n/p). O art. 12 da Lei de Terras dispunha que: Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias: 1º, para a colonisação dos indigenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de estradas, e quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º, para a construção naval. No entanto, predomina o entendimento de que o direito originário foi preservado. Essa condição jurídica foi mantida nas constituições da República de 1891, 1934, 1946 e 1967. Na Constituição atualmente em vigor, as terras indígenas são consideradas direito congênito a ser declarado (e não instituído) pelo decreto de demarcação. A Lei 601/1850 definia terras devolutas no art. 3º: Art. 3º São terras devolutas: § 1º As que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal. § 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei. § 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei. 4 [ 415 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A Constituição brasileira de 1988 declara, expressamente, que as terras indígenas são direito congênito das populações 5 indígenas. O texto constitucional (art. 231 6) reconhece aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, determinando à administração pública federal a obrigação de demarcá-las e protegê-las. O direito congênito, consagrado no instituto do indigenato, pode ser relacionado ao princípio do uti possidetis adotado por Portugal e Espanha no Tratado de Madri, que pôs termo às dúvidas acerca de limites territoriais entre as duas coroas em 1750. O Tratado de Madri (1750) adotou, dentre os critérios para demarcar as fronteiras dos dois reinos na América Latina, o princípio do uti possidetis, no qual se outorgou o direito à posse ao respectivo país ocupante. As coroas de Portugal e Espanha: [...] resolveram pôr termo às disputas passadas e futuras, e esquecer-se, e não usar de todas as ações e direitos que possam pertencer-lhes em virtude dos referidos Tratados de Tordesilhas, Lisboa, Utrecht e da Escritura de Saragoça, ou de outros quaisquer fundamentos que possam influir na divisão dos seus domínios por linha meridiana; e querem que ao diante não se trate mais dela, reduzindo os limites das duas monarquias aos que se assinalaram no presente tratado; sendo o seu ânimo que nele se atenda com cuidado a dois fins: o primeiro e principal é que se assinalem os limites dos dois domínios, tomando por balizas as paragens mais conhecidas, para que em nenhum tempo se confundam, nem deem ocasião a disputas, como são a origem e curso dos rios, e os montes mais notáveis; o segundo, que cada parte há de ficar com o que atualmente possui; à exceção das mútuas cessões, que em seu lugar se dirão; as quais se farão por conveniência comum, e para que os confins fiquem, quanto for possível, menos sujeitos a controvérsias. (TRATADO DE MADRI, 1750 - grifamos) A Constituição brasileira define ocupação tradicional no parágrafo primeiro do art. 231, ao dizer que são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios “aquelas por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas em suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.” (BRASI, 1988). A Constituição não faz referência a “povos”, e sim a “populações”, tendo em conta as implicações políticas dos usos destes termos. A adoção da primeira expressão poderia configurar o reconhecimento do plurinacionalismo. 6 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º. 5 [ 416 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Neste aspecto, houve avanço em relação à compreensão que até então prevaleceu e que restringia a extensão da terra indígena à parcela habitada e ao entorno da aldeia. A atual Constituição rompe com a perspectiva assimilacionista e reconhece o direito ao modo tradicional de vida e de relação com o território, tendo em vista as necessidades inerentes à reprodução social e cultural. Assim sendo, as áreas demandadas e efetivamente demarcadas ampliam-se em extensão. No entanto, o direito real conferido pela Constituição de 1988 aos povos indígenas é a posse usufrutuária permanente, mantendo-se as terras sob o domínio da União. Em outras palavras, os indígenas não podem alienar as terras porque as detêm em caráter de usufruto. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 fixou, no art. 67, o prazo de cinco anos, a contar de sua promulgação, para que as terras indígenas fossem demarcadas. Nas palavras de Ferraz Junior: [...] a demarcação não engendra nenhum direito às terras, pois tal direito é declarado originário (antecede à demarcação). Mas tem o sentido de conferir certeza e segurança ao exercício do direito, no que se refere ao seu conteúdo (faculdades) e objeto (terras ocupadas tradicionalmente). (FERRAZ JUNIOR, 2004, p. 695) Transcorridos trinta anos da promulgação da Constituição, a demarcação de terras indígenas segue sendo um desafio que se apresenta às autoridades administrativas e judiciárias e, evidentemente, à sociedade, chamada com frequência a se posicionar em face de conflitos agrários dela derivados. É de destacar a tramitação, no Congresso Nacional, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que pretende transferir a competência de demarcar terras indígenas do Poder Executivo ao Poder Legislativo, dando a este poder a possibilidade de rever demarcações já realizadas. A matéria vem gerando preocupação aos povos indígenas, que veem seus direitos ameaçados de restrições. Demarcação da Terra Indígena Toldo Chimbangue De acordo com Bringhenti (2017), a retomada da Terra Indígena Toldo Chimbangue foi referência para outros processos demarcatórios ocorridos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, tendo influenciado, inclusive, o processo constituinte: Foi a primeira comunidade indígena brasileira no século XX que recuperou as terras que estavam totalmente escrituradas, registradas em poder de camponeses. Isso marca também o processo de reinauguração de uma identidade étnica forjada na luta pela terra. A conquista do Decreto nº 92.253 de 30 de dezembro de 1985 foi uma longa ação que durou anos e demandou mais do que a pressão da comunidade e de seus aliados, ela mobilizou o país, deixou marcas na sociedade e na igreja diocesana, modificou o conceito de indígena e de Terra Indígena no oeste catarinense. O referido Decreto é resultado desta particularidade. (BRINGHENTI, Clovis Antonio, 2017, p. 25) As tensões sociais produzidas a partir da luta pela terra kaingang chegaram ao ponto de temer-se o confronto direito entre indígenas e camponeses e de demandar intervenção militar em momentos específicos7. Veja-se, por exemplo, notícia publicada no Jornal de Santa Catarina, datada de 27/08/1985: “Situação normaliza, mas PM fica na Sede [Trentin]. CHAPECÓ. Por medida de segurança, policiais militares continuam por mais alguns dias em Sede Trentin, a dez quilômetros do centro de Chapecó, onde índios Caingangue e colonos disputam 1885 hectares de terra. A questão, que dividiu a opinião pública, continua sem definição. A visita da comissão interministerial não trouxe resultados. Seus integrantes prometeram dar uma resposta do Governo Federal, mas não apresentaram datas.” (JORNAL DE SANTA CATARINA, 1985, n/p). 7 [ 417 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Até a edição do decreto demarcatório da TI Toldo Chimbangue, em todo o oeste catarinense havia uma única terra indígena demarcada: a Xapecó, datada do início do século XX (1902). Veio, na sequência, o reconhecimento administrativo do Toldo Pinhal (1996) e a formação da reserva indígena Aldeia Condá (2001), esta, decorrente da aquisição de terras em processo que envolveu o edital de outorga de exploração hídrica no rio Uruguai para a finalidade de produção energética, no qual foi vencedor o Consórcio Foz do Chapecó. Outra área encontra-se em disputa, reivindicada por indígenas guarani, nos municípios de Saudades e Cunha Porã, SC. Trata-se da terra do Araçá’í8, acerca da qual já foram emitidos laudos antropológicos e existe processo judicial em tramitação na Justiça Federal da 4ª. Região. De acordo com Fernandes e Piovezana (2015, p. 119): Todos estes casos têm em comum não apenas as tensões e os conflitos entre indígenas e agricultores, mas também a morosidade do processo de regularização fundiária e a fragilidade das decisões do indigenismo oficial em face às pressões políticas locais. (FERNANDES; PIOVEZANA, 2015, p.119) A área onde se localiza a TI Toldo Chimbangue fez parte, até o final do século XIX, da chamada fazenda Barra Grande, titulada em 1891 pelo governo do Paraná a José Joaquim de Moraes (BRINGHENTI, 2017, p. 3). Posteriormente foi vendida a Luís Vicente de Sousa Queirós, filho da Baronesa da Limeira, terratenente no oeste catarinense que vivia em São Paulo. Na região, o nome da Baronesa é conhecido por constar em muitas escrituras públicas de imóveis. Como relata Bringhenti, Posteriormente, em 1919 os herdeiros venderam-nas para a Empresa Colonizadora Luce & Rosa Cia Ltda. que as dividiu em lotes de 24 hectares (uma colônia) e as revendeu a camponeses. Nem José Joaquim de Moraes nem Luís Vicente de Souza Queirós tomou posse das terras. Tratava-se de região de floresta estacional decidual e não propícia à criação de gado. O interesse nas terras era para especulação. Ela só vai despertar interesse para a outra prática de uso do solo com chegada de famílias de camponeses oriundas das colônias velhas do Rio Grande do Sul e alguns vindos diretamente da Europa, a partir da terceira década do século XX. (BRINGHENTI, 2017, p. 3). À companhia colonizadora cabia a responsabilidade de livrar a terra dos indígenas. Naquela época, o termo “desintrusão” tinha significado oposto ao que agora ostenta: tratava-se de remover todo vestígio da presença indígena nas áreas colonizadas. 9 Não logrando êxito nesta empreitada, a Colonizadora Luce & Rosa vende a área aos irmãos Trentin, que dão seguimento ao projeto colonizador, repassando as terras a famílias camponesas. Avançando o processo de colonização com agricultores oriundos do Rio Grande do Sul, os indígenas do Toldo Chimbangue foram confinados numa área de 100 hectares, nas margens do rio Irani, considerada área fiscal. Ficaram somente 10 famílias. Trabalhavam como agregados e jornaleiros nas propriedades vizinhas. Algumas famílias venderam seus sítios, os quais foram regularizados pela colonizadora Luce & Rosa Cia. Ltda. Poucas famílias resistiram e permaneceram no local. Destacaram-se os “troncos velhos” Francisco Marcelino, Clemente Fortes e Ana Fortes, a Fen’Nó (BRINGHENTI, 2017). Ver: SILVA, José Valderi; RENK, Arlene. Guarani chiripa: oeste catarinense – uma região de conflitos. In: WINCKLER, Silvana; PEREIRA, Reginaldo; TEIXEIRA, Marcelo Markus. Cidadania, socioambientalismo, atores e sujeitos internacionais em diálogo com o Direito. [ebook] São Leopoldo: Karywa, 2018, p. 423-431. 9 “Segundo o Conselho Indigenista Missionário – Regional Sul (Cimi Sul), a alienação da terra aos irmãos Trentin ocorreu por dificuldades da empresa Luce &Rosa em remover os indígenas. Na escritura de compra e venda ficou acordado que os compradores ficaram responsáveis pela retirada dos intrusos existentes na gleba de terra vendida. Os Kaingang são tratados como intrusos” (BRINGHENTI, 2017, p. 4). 8 [ 418 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Nas palavras de Fernandes e Piovesana (2015, p. 116-117), a dinâmica foi a mesma em todo oeste catarinense: De índios que ocupavam terras nas bacias hidrográficas dos principais rios da região, articulados em amplas redes de sociabilidade, os Kaingang passaram ao confinamento. No Oeste de Santa Catarina apenas uma área foi demarcada: a TI Xapecó. Muitos não se ajustaram a este macro ordenamento territorial, ora buscando refúgio em áreas de difícil acesso, ora permanecendo “invisíveis” aos empreendimentos colonizadores, convivendo de maneira indireta e dissimulada com os nascentes núcleos coloniais. Permanecer nas franjas do processo colonizador foi a forma de resistência que possibilitou a retomada das terras tradicionais. Os kaingang nunca abandonaram completamente a região. Graças a essa presença, foi possível caracterizar a área como terra indígena tradicionalmente ocupada e – o que foi de suma importância – reorganizar a comunidade na luta pela demarcação. A luta pela retomada das terras contou com o apoio de lideranças indígenas da Terra Indígena Xapecó e da Pastoral Indigenista diocesana de Chapecó.10 Isso ocorreu no final da década de 1970. Bringhenti (2017, p. 12) descreve dois movimentos complementares: o primeiro consistiu no fortalecimento e formação da comunidade para conhecer os seus direitos e para se rearticular socialmente, reunir as famílias que estavam “espalhadas”; o segundo, implicou na busca por aliados de outras comunidades indígenas e na sociedade brasileira, “a começar pela sociedade regional especialmente a diocese de Chapecó”. A mobilização implicou em viagens à Brasília, onde acampavam à espera de resposta da administração pública federal. O processo de demarcação da TI Toldo Chimbangue teve início em 1982. A Funai criou o primeiro grupo de trabalho em agosto de 1982, sendo que a equipe apresentou uma proposta de demarcar 50 colônias. No entanto, o relatório foi elaborado sem o cumprimento das exigências legais, ou seja, sem os estudos antropológicos e o levantamento fundiário. Grupo Interministerial foi criado, por decreto, em 1983, para decidir sobre o direito indígena à terra. Na sequência, em 1984, novo grupo de trabalho foi constituído, desta vez integrado por antropólogas da UFSC e da FUNAI. (BRINGHENTI, 2017). A Terra Indígena Toldo Chimbangue está localizada na comunidade Sede Trentim, a menos de vinte quilômetros da zona urbana do município de Chapecó. A demarcação ocorreu em duas etapas, em 1985/1986 e em 2004. A relevância dessa experiência exitosa de renascimento de uma comunidade indígena repercutiu de modo amplo no cenário brasileiro. Como afirma Bringhenti (2017, p. 2), A conquista da Terra Indígena Toldo Chimbangue inspirou o movimento indígena nos processos de retomada de outras terras. A fundamentação antropológica e jurídica empregada no processo da conquista da Terra Indígena Toldo Chimbangue contribuiu para a formulação dos novos direitos indígenas assegurados na Constituição Federal de 1988. No âmbito do movimento indígena percebe-se que as ações de apoio a comunidade Kaingang do Toldo Chimbangue gerou uma reação em cadeia e consolidou a rede de trocas de informações e de solidariedade iniciado uma década antes. Neste sentido, a experiência da demarcação territorial do Toldo Chimbangue antecipou-se à Constituição de 1988 e definiu um novo parâmetro para o tratamento jurídico dos conflitos agrários envolvendo terras indígenas. 10 Nacke e Bloemer (2007, p. 60) afirmam: “Não se pode esquecer que houve a participação de muitos agentes sociais neste processo, entre os quais se destacam os agentes do CIMI, que participaram ativamente, localizando e recuperando documentos históricos, registros de batismos nas igrejas católicas, consultando e fornecendo advogados especializados, além do firme e coerente apoio do então Arcebispo da Arquidiocese de Chapecó, D. José Gomes”. [ 419 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS [ 420 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Referências BRINGHENTI, Clovis Antonio. A gênese do processo histórico de demarcação de Terras Indígenas no Brasil a partir da conquista da TI Toldo Chimbangue. Anais do XXIX Simpósio Nacional de História - - contra os preconceitos: história e democracia. Brasília, 2017. Disponível em: http://www.snh2017.anpuh.org/site/anais. Acesso em: 10/out./2018. FERNANDE, Ricardo Cid; PIOVEZANA, Leonel. Perspectivas kaingang sobre o direito territorial e ambiental no sul do Brasil. Ambiente & Sociedade n São Paulo v. XVIII, n. 2 n p. 115-132 n. abr.-jun. 2015. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A demarcação de terras indígenas e seu fundamento constitucional. Revista Brasileira de Direito Constitucional , n. 3, jan./jun. – 2004, p. 689-699. JORNAL DE SANTA CATARINA. “Situação normaliza, mas PM fica na Sede”. 27/08/1985, n/p. NACKE, Anelise; RENK, Arlene; PIOVESANA, Leonel; BLOEMER, Neusa Maria Sens. Os kaingang no oeste catarinense. Chapecó: Argos, 2007. ROSA, Hilário; CASTELO BRANCO, Tales. Direito dos índios à terra no passado e na atualidade brasileira Gênese do indigenato. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI67436,101048Direito+dos+indios+a+terra+no+passado+e+na+atualidade+brasileira. Acesso em: 10/out/2018. SILVA, José Valderi; RENK, Arlene. Guarani chiripa: oeste catarinense – uma região de conflitos. In: WINCKLER, Silvana; PEREIRA, Reginaldo; TEIXEIRA, Marcelo Markus. Cidadania, socioambientalismo, atores e sujeitos internacionais em diálogo com o Direito. [ebook] São Leopoldo: Karywa, 2018, p. 423-431. [ 421 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Contexto político jurídico brasileiro da implementação dos assentamentos na Fazenda Annoni (1970 a 1990) Simone Lopes Dickel1 Resumo: O presente texto visa discutir a partir de referencial teórico pertinente de modo a traçar um panorama do contexto político jurídico brasileiro no que se refere a reforma agrária nas décadas de 1970 a 1990, período em que ocorreu a implementação dos assentamentos na Fazenda Annoni. Este latifúndio foi desapropriado no início da década de 1970, e teve a função social da propriedade como pressuposto fundamental que possibilitou a desapropriação. Pretende-se apontar não apenas mudanças na legislação no que concerne a reforma agrária, mas também na própria concepção de reforma agrária, analisando sua influência no processo de reforma agrária na Annoni. INTRODUÇÃO Distante de fazer algum tipo de nova abordagem sobre a temática que é amplamente revisitada sob os mais diversos enfoques, a presente discussão constitui-se num esforço necessário de compreender o processo de assentamento, que resulta da ocupação da Fazenda Annoni em 1985, a partir do debate a nível nacional sobre a reforma agrária nos diferentes momentos históricos. Debatida de forma incansável, a concepção de reforma agrária pode sofrer mudanças nos diferentes contextos, para os sujeitos que a ela se referem ou sobre ela se debruçam para tentar compreender. Referenciado por muito tempo como assentamento modelo de reforma agrária (CAUME, 2006), o processo de transformação do grande latifúndio situado na região Norte do Rio Grande do Sul, desapropriado da família Annoni na década de 1970 por não estar cumprindo com sua função social, em um espaço de reforma agrária, foi um processo que permeou diferentes contextos, e mudanças no debate em torno da reforma agrária. Teve início no auge do regime militar quando o imóvel foi desapropriado. A história da desapropriação da Annoni toma outros rumos no período da redemocratização, quando diante das dificuldades do Estado em executar a reforma agrária, os movimentos sociais tornam-se protagonistas da luta pela terra. Ao mesmo tempo em que estes constituem um fato político mantendo a reforma agrária na agenda política da Nova República, grandes proprietários organizam a oposição política à reforma agrária. Ao analisar o contexto e a forma como o assentamento aconteceu, vemos a materialização de uma reforma agrária que não é consenso na sociedade, sobre a qual atuam diferentes forças políticas, distante de ser considerada uma política de estado, comprometido com a transformação do campo a partir da democratização do acesso à terra. Vemos também que os movimentos sociais se constituem na força capaz de fazer contraponto à falta de vontade política, somada a uma legislação que embora preconize a reforma agrária como forma de corrigir a estrutura fundiária tão desigual, deixa evidente nas suas entrelinhas uma concepção privatista da terra, que acaba favorecendo os grandes proprietários. Por isso pode se concordar com a ideia de Buainain (2008), de “reforma agrária por conflito”, para caracterizar o processo brasileiro que em pouco ou nada contribui para alterar o quadro histórico de concentração das terras nas mãos de poucos, para além da solução de conflitos mais pontuais. Trata-se então, de pensar a discussão em torno da reforma agrária nos diferentes contextos históricos, percebendo neles permanências e rupturas, mudanças na concepção de reforma agrária que interferem nas leis e políticas públicas, repercutindo ou sendo repercutidos pelos diferentes segmentos da sociedade civil que se organizam e passam a reivindicar a reforma agrária, ou se posicionar de modo contrário a ela. 1 Doutoranda em História pelo PPGH da Universidade de Passo Fundo, orientada pela professora Dr Ironita P. Machado. E-mail: simone.lopes.dickel@gmail.com [ 422 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Nesse sentido, o texto está dividido em três seções. Na primeira, será contextualizada a década de 1970 à luz do Estatuto da Terra, momento em que a fazenda foi desapropriada e o projeto de assentamento que serviu de pretexto para a desapropriação acabou não se efetivando; na segunda parte, o contexto do ressurgimento dos movimentos sociais e da grande ocupação em plena redemocratização; e na terceira parte, o início da década de 1990 quando o assentamento definitivo é concluído, e surgem aos assentados novos desafios como permanecer na terra, ao mesmo tempo em que no cenário nacional surgem críticas ao Plano Nacional da Reforma Agrária, bem como em relação ao processo de constituinte que resultou na Constituição de 1988. BREVE BALANÇO DA REFORMA AGRÁRIA NO ESTATUTO DA TERRA Caso atípico e por isso mesmo instigante, o decreto de desapropriação da Fazenda Annoni configurou um primeiro passo do Estado para a transformação daquele que era um território de latifúndio, em território de reforma agrária. Detalhe, em pleno regime militar. Sua atipicidade decorre do fato de que a legislação na qual a desapropriação foi amparada, o Estatuto da Terra, que com poucas modificações orienta ainda hoje a legislação brasileira no que se refere a reforma agrária, caracterizou-se por ter sido muito pouco utilizada para o fim de modificar a estrutura fundiária. Sua ineficácia ou inércia rendeu-lhe inúmeras críticas e a necessidade de elaboração de um Plano Nacional de Reforma Agrária, cujo objetivo seria tirar a reforma agrária do âmbito legal, e colocá-la em prática estabelecendo metas para sua concretização. Interessante notar, e não dá para fazer isso sem remeter ao contexto em que a primeira lei de reforma agrária foi feita, que a divisão entre duas grandes diretrizes, a política agrícola e a política fundiária, possibilitou ao Estatuto da Terra ser instrumento de transformações na agricultura, necessárias ao modelo de desenvolvimento econômico defendido pelos militares, sem modificar a estrutura fundiária brasileira. Isso foi possível mediante o processo de modernização amplamente apoiado pelo Estado através da concessão de crédito farto e barato, cujos resultados ao longo do tempo acabam por acirrar ainda mais as desigualdades e conflitos no campo. Nas palavras de Buainain (2008, P. 19) A modernização conservadora do latifúndio reforçou a concentração da propriedade da terra e o caráter excludente do modelo de desenvolvimento agropecuário; como regra geral, as “relações arcaicas” foram substituídas por relações de assalariamento temporário, embora, em muitas regiões, sem qualquer proteção legal. O Estatuto da Terra, elaborado por um Grupo de Trabalho designado por Castello Branco assim que assumiu a presidência da República, objetivava ser uma resposta a um certo consenso criado no início da década de 1960 no meio acadêmico e político de que a reforma agrária se constituía num imperativo ao desenvolvimento capitalista. Nesse contexto, nas palavras de Jose Graziano da Silva (1981, p. 39), “A reforma agrária visava então alterar a estrutura de posse e uso da terra no Brasil, para que pudesse haver um desenvolvimento mais rápido das forças produtivas no campo. ” Ela tinha caráter principalmente econômico, no sentido de tornar produtivas boa parte das terras que estavam ociosas e assim integrar o campo a economia nacional, atuando no sentido de ajudar superar o chamado “atraso brasileiro” (BUAINAIN, 2008, p. 28). O modelo de reforma agrária definido pelo Estatuto da Terra, que também tinha o objetivo político de amenizar os conflitos no campo sob a promessa de uma reforma agrária concedida de cima pra baixo, sem a pressão e participação popular, era concebida basicamente “como assentamento de famílias de pequenos produtores, Trabalhadores Rurais sem-terra, arrendatários, parceiros e meeiros em terras desapropriadas por interesse social”. (BUAINAIN, 2008, p. 29) Embora a possibilidade de desapropriação por interesse social tenha aparecido na Constituição Federal de 1946, a ideia de que a propriedade da terra não deveria contrariar os interesses da coletividade recebe uma importância maior no Estatuto da Terra, através do princípio da função social. O documento [ 423 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS define um conjunto de requisitos que a propriedade deveria atender para que seu uso estivesse em consonância com os interesses da sociedade, ou seja, para que ela cumprisse uma função social. Embora constituída por aspectos econômicos, sociais e ambientais, a função social na maioria das vezes acaba sendo utilizada como justificativa para a desapropriação de imóveis rurais quando o aspecto da produtividade é ferido, o que faz com que o aspecto econômico se sobreponha aos demais. O que é passível de compreensão, uma vez que a produção agrícola passa a ser bastante estimulada na época, tendo um importante papel no desenvolvimento capitalista. Stédile (2012) caracteriza as duas primeiras décadas de vigência do Estatuto da Terra, como 20 anos em que se priorizou apenas os projetos de colonização, através da distribuição de terras públicas na fronteira agrícola da Amazônia Legal. Nesse sentido, Ariovaldo Umbelino Oliveira (2007) caracteriza algumas práticas dos governos militares no que concerne a reforma agrária como uma contra-reforma agrária. Segundo ele “ como não era real a intenção do governo militar do Marechal Castelo Branco de fazer a reforma agrária quando assinou o Estatuto da Terra, parte de sua implementação foi sendo adiada. ” (2007, p. 122). No lugar da reestruturação fundiária, dois programas foram levados adiante pelos governos militares equivocadamente classificados como reforma agrária: os projetos de colonização implantados na Transamazônica pelo INCRA, e o PROTERRA que era parte da estratégia do governo no sentido de apresentar ao mundo financeiro capitalista e à própria sociedade brasileira que era possível fazer “reforma agrária” sem violência e sem contrariar os interesses dos latifundiários nordestinos. (OLIVEIRA, 2007, p. 122) A respeito das inúmeras e merecidas críticas ao Estatuto da Terra, enquanto os governos militares priorizavam os projetos de colonização na região Amazônica, na região sul do país, à medida que o campo se modernizava, cresciam as contradições e as tensões sociais, ressurgindo assim os conflitos agrários, fruto do descaso relegado aos pobres do campo resultado de políticas públicas que priorizavam as grandes propriedades. Contribuiu para engrossar o contingente de trabalhadores sem-terra no estado, a desapropriação de pequenos agricultores para os projetos de construção de hidrelétricas. A formação da barragem do Passo Real na região de Cruz Alta e Santa Maria, deixou centenas de famílias desalojadas. Conforme Seminotti (2008, p. 77) “a maioria dos indivíduos que ali residiam era constituída de posseiros, arrendatários, meeiros, filhos de proprietários, que segundo o decreto citado, não tinham direito à indenização. ” A expulsão daqueles que ficaram conhecidos como “afogados do Passo Real” criou uma demanda por reassentamento no estado. A construção da Barragem do Passo Real e a necessidade de reassentamento de muitas famílias foi o pretexto utilizado para desapropriar a Fazenda Annoni, através do Decreto nº 70.232. O imóvel estava classificado oficialmente como latifúndio por exploração, o que permitia legalmente que fosse desapropriado por não cumprimento da função social. Trata-se de um caso bastante peculiar de desapropriação no Rio Grande do Sul para fins de reforma agrária, pois conforme pode ser visto até agora, o Estatuto da Terra foi muito mais utilizado para fins de colonização, como é o caso dos Projetos de Integração Nacional (PIN), e mesmo para beneficiar as grandes propriedades como foi o caso do PROTERRA, na região Nordeste do país. O que acontece nos anos subsequentes à construção da Barragem que tem início ainda no final da década de 1960, e ao decreto de desapropriação, é uma longa espera pela solução definitiva do assentamento por parte dos chamados “afogados” do Passo Real, diante de uma legislação que possibilitou aos proprietários da Annoni uma série de embargos e dificuldades impostas à desapropriação sob o pretexto de defesa do direito à propriedade. Tais impugnações resultaram na complexificação do processo, fazendo com que ele perpasse décadas sem uma solução efetiva. Embora os colonos fossem instalados de modo provisório no imóvel rural, a fazenda era alvo de intensa disputa judicial entre os desapropriados e o Incra. Era um período permeado por incertezas sobre os rumos da propriedade. De acordo com a legislação vigente, no caso o Estatuto da Terra, as terras escolhidas para serem desapropriadas eram terras consideradas improdutivas, de acordo com critérios estabelecidos em lei, como o Grau de Utilização da Terra (GUT) e Grau de Eficiência na Exploração (GEE). Os fatores que complicaram a [ 424 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS desapropriação da Annoni foram; a possibilidade de modificação cadastral em vista do Decreto 70.231 2, e, portanto, o latifúndio por exploração podia adquirir status de empresa rural e tornar-se imune a desapropriação; além disso, a possibilidade de contradição acerca dos valores acertados em termos de indenização, que de acordo com Buainain (2008, p. 30) possibilitaram “aos proprietários recorrer na justiça e receberem, após os anos de processo judicial, valores de indenização muito superiores ao equivalente ao preço de mercado, devido simplesmente pela aplicação de juros e correção monetária sobre o valor original. Esse fato gerou, em particular nos anos 90 do século passado, uma das maiores distorções do programa de reforma agrária, já que em vez de punir o latifúndio improdutivo, conforme previa o Estatuto da Terra, acabou assegurandolhes enormes vantagens. As chamadas brechas na legislação, onde os proprietários encontram uma forma de barrar o processo de desapropriação sob o pretexto de um direito absoluto à propriedade, contribuem muitas vezes para tornar a reforma agrária não apenas complicada do ponto de vista legal, pois diferentes interpretações da lei permitem questionar a ação do Estado, mas também onerosa para o mesmo, em função da incidência de juros e correção monetária acrescidos ao valor global da indenização. O que de certa forma contribui para que os programas de reforma agrária configurem muito mais um programa oficial para manter viva a esperança, do que um projeto de desenvolvimento a ser realmente colocado em prática no país. A REDEMOCRATIZAÇÃO, O CONTEXTO DE RESSURGIMENTO DOS MOVIMENTOS DE LUTA PELA TERRA E A OCUPAÇÃO DA ANNONI O início da década de 1980 é caracterizado pelo processo de transição democrática, com a eleição indireta de Tancredo Neves em janeiro de 1985 e o gradual retorno das pautas sociais para o debate político. Apesar da ideia oficial de uma transição lenta, gradual e segura, diversos setores da sociedade levantam-se na busca de uma verdadeira ruptura com o período autoritário, o que de certa forma acabou não acontecendo. A respeito disso, vale lembrar que no final de década de 1970 surgiam no país movimentos como a Campanha da Anistia e a própria Campanha das Diretas Já, que pretendia contrapor-se ao processo de transição defendido pelos militares, mas acabou também sendo frustrada. Por isso, o historiador Carlos Fico (2012) caracteriza a transição democrática como um processo inconcluso, que não causou uma verdadeira ruptura com o passado ditatorial, o que de certa forma ajuda a explicar a fragilidade da nossa jovem democracia. No Sul do país, a resistência à um quadro de exclusão e miséria no campo decorrente de um longo processo histórico que foi agravado durante o período militar, fez ressurgir no Norte Sul-Rio-Grandense os conflitos pela terra. O chamado conflito de Nonoai, teve início com a resistência dos índios caingangues ao processo de intrusão dos colonos, e culminou com a expulsão de quase mil famílias de colonos da reserva indígena de Nonoai, coagindo o governo a pensar alternativas de emergência para resolução desses conflitos em torno da terra (MARCON, 1997, p. 48). A rebeldia em relação a situação de exploração no campo, com a qual foi conivente um regime que beneficiou ainda mais os grandes proprietários, alargando as desigualdades, ressurgiu na região desafiando o caráter policialesco que ainda revestia a repressão aos conflitos agrários. A existência do Estatuto da Terra, concebido incialmente como instrumento para realização de uma reforma agrária afim de coibir ou pelo menos diminuir os conflitos no campo, não mudou em quase nada Publicado em 3 de março de 1972, assim como o decreto 70.232 (decreto que possibilitou a desapropriação da Annoni), dispunha sobre a revisão cadastral dos imóveis rurais, estipulando um prazo para que os proprietários revissem a situação do seu imóvel rural, podendo alterar a classificação do mesmo mediante comprovação do status da propriedade. Tem-se no “Art. 1º. A revisão geral do cadastro rural, a que se refere o § 4º do artigo 46 da Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964, será realizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, em todo o território nacional, no período de 15 de março a 15 de junho de 1972, de acordo com os prazos fixados para cada região em Instrução do INCRA aprovada pelo Ministro da Agricultura.” 2 [ 425 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS esse quadro de exploração e miséria. Corroborando com esta posição, Antônio Marcio Buainain (2008) cita algumas considerações de Guedes Pinto (1995 p. 71) que resumem um balanço feito pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) na ocasião dos 15 anos da publicação do Estatuto da Terra. Dentre essas informações, é citado o número de famílias beneficiadas por projetos de reforma agrária, num total de 9327, enquanto os projetos de colonização beneficiaram 39948 famílias. Como resultado dessa inércia dos projetos de reforma agrária em detrimento dos projetos de colonização e incentivos à política agrícola, o índice Gini da distribuição da terra no Brasil havia passado de 0,731 na década de 1960 para 0,867. Além disso, o autor traz também “outros dados que mostram que a reforma agrária foi praticamente abandonada enquanto a política agrícola dirigida aos que têm Terra foi implementada em larga escala”. (2008, p. 32) A consequência no campo desse processo de modernização da agricultura mediante a “política agrícola voltada aos que tem terra” foi o aumento da concentração fundiária, aumentando o espaço ocupado pelas grandes propriedades, muitas delas modernizadas mediante concessões de crédito e incentivos fiscais, uma vez que o imposto pago pelas empresas rurais, como passam a ser chamados esses latifúndios modernizados e revestidos de caráter empresarial, era inferior ao que seria pago no caso dos latifúndios por exploração. Além da asfixia da pequena propriedade diante da pressão das grandes propriedades, a “revolução verde”, compreendida como um conjunto de transformações no campo no qual a adoção de novas tecnologias diminuiu a necessidade de mão-de-obra, gerou desemprego em grande escala no campo. Sem terras e sem trabalho, ou, com quantidade de terras insuficiente para sobreviver do seu trabalho nela, muitos pequenos produtores, meeiros, arrendatários, etc., pegaram o rumo das cidades, e o que encontraram lá foi desemprego, subemprego e miséria. Condições péssimas e um ritmo de vida com os quais muitos não conseguiam acostumar. Excluídos, à margem da sociedade, poder trabalhar na terra e dela tirar seu sustento era visto como a única oportunidade de uma vida menos sofrida. Esse contexto, associado à modernização conservadora, que José Francisco Graziano da Silva (1982) chama de “modernização dolorosa”, foi denunciado em documento da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) em 1981, em razão dos dezessete anos do Estatuto da Terra Hoje, tem os trabalhadores que enfrentar toda uma política agrária cuja tônica tem sido a separação do trabalhador da terra, através da penalização do minifúndio e do apoio, quase sem limites, à grande propriedade. A intervenção governamental no campo cresceu nesses dezessete anos, não no sentido de atender às necessidades das “legiões de assalariados, parceiros, arrendatários, ocupantes e posseiros que não vislumbram, nas condições atualmente vigentes no meio rural, qualquer perspectiva de se tornarem proprietários da terra que cultivam”, mas sim no de favorecer a grande propriedade, através de isenções e subsídios, de suporte financeiro a projetos antissociais ou, mais diretamente, de grandes obras públicas que se tornam, elas próprias, motivos de desassossego para a população trabalhadora rural. (CONTAG, Brasília (DF), 12 de novembro de 1981, p. 2) Assumida como bandeira de luta pela CONTAG, a reforma agrária está inserida num contexto mais amplo de lutas sociais, embaladas pelos ventos da democracia. Entretanto, diferente da década de 1960, nesse contexto ela não tem um caráter essencialmente econômico, pois a estrutura fundiária deixa de ser vista enquanto um entrave ao desenvolvimento da agricultura no país. A modernização conservadora criou um novo padrão em que o latifúndio deixou de ser sinônimo de atraso, podendo ser visto como um aliado ao modelo econômico vigente. Portanto, é colocada à prova a tese defendida na década de 1960, quando a reforma agrária era vista de forma mais consensual entre as diferentes correntes políticas e intelectuais, de que a modificação da estrutura fundiária era necessária ao desenvolvimento capitalista. Conforme assinala José Graziano da Silva (1981, p.39) “a estrutura agrária brasileira não constituiu empecilho ao processo de industrialização do país”. [ 426 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Entretanto, se por um lado as grandes cidades absorveram ao longo do processo de industrialização e urbanização boa parte desse contingente de sem terras e excluídos do campo em razão da modernização que manteve intacta a estrutura fundiária, o possível público da reforma agrária, é também verdade, de acordo com José Gomes da Silva, que “o campo mandou também para o setor urbano sua carga de problemas”. (1996, p. 183). Nesse sentido, nem tanto um instrumento necessário ao desenvolvimento econômico do país, mas a reforma agrária passa a ser vista como uma questão social, como solução ao contingente de excluídos do campo, que aumentam de forma decisiva as estatísticas do êxodo rural. É nesse contexto que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é gestado, de 1979 até 1984, ano de sua fundação a partir do 1º Encontro Nacional no Paraná, passando a aglutinar e organizar a resistência dos sem-terra ao processo que os colocava à margem da sociedade. De acordo com a definição de Bernardo Mançano Fernandes (2012, p. 496), o MST É um movimento sócioterritorial que reúne em sua base diferentes categorias de camponeses pobres – como parceiros, meeiros, posseiros, minifundiários e trabalhadores assalariados chamados de sem-terra – e também diversos lutadores sociais para desenvolver as lutas pela terra, por Reforma Agrária e por mudanças na agricultura brasileira. Assim, o Acampamento na Encruzilhada Natalino pode ser entendido como um ato de indignação à política fundiária do governo. Segundo Bernardo Mançano Fernandes “Essa forma de luta significa a recusa dos camponeses à modernização conservadora. Essa política do governo privilegia o grande capital e tem conduzido os camponeses à expropriação, à expulsão da terra, à exclusão, à miséria e a fome” (1999, p. 54). Sobre o papel das ocupações de terra e formação de acampamentos, estratégia adotada pelo MST, Fernandes (2008 p. 219) salienta que Por meio das ocupações de terra, os sem-terra mantem na pauta política a questão agrária. As ocupações de terra tornaram-se uma das principais formas de acesso a ela. É, portanto, uma forma de criação e recriação do campesinato. (...) A ocupação de terra é uma afronta aos princípios da sociedade capitalista. Mas, ao mesmo tempo, também é uma forma de desenvolvimento do capitalismo, porque as áreas ocupadas, quando transformadas em assentamentos, se tornam propriedades familiares, que produzem a renda apropriada em sua maior parte pelos capitalistas. Essa ação dos sem-terra pode então ser vista como uma discordância em relação ao caráter excludente que reveste o desenvolvimento capitalista brasileiro, privando os que desejam trabalhar na terra da condição de proprietários. Mas, ao mesmo tempo significa uma tentativa de inclusão no mesmo sistema, uma vez que ao ocupar a terra, esse pedaço de território capitalista, os assentados tendem a trabalhar a produzir também riquezas, muitas das quais acabam sendo apropriadas pelos capitalistas. Por isso o autor afirma que “um conflito por terra é um confronto entre classes sociais, entre modelos de desenvolvimento, por territórios”. É através das ocupações que o campesinato tende a se reconstruir. (FERNANDES, 2008, p. 199) Esse desejo de se inserir com mais dignidade na sociedade, mas também de se reproduzir socialmente através da produção camponesa, foi o que motivou as mais de 1500 famílias que cruzaram as cercas do latifúndio Annoni na madrugada do dia 29 de outubro. Conforme estudo de Bavaresco (1999), grande parte destes sem-terra tem origem no processo de minifundização na região norte do RS, sendo a saída de alguns dos filhos de casa, vista como um certo alívio ao grupo familiar que fica na terra. Cansados de esperar pelas promessas de governo, essas famílias se organizaram através do MST, para ocupar e pressionar a realização da reforma agrária. A escolha do latifúndio, próximo a Encruzilhada Natalino e as Glebas Macali e Brilhante, se deve ao fato de que esta fazenda que já integrou parte do grande complexo Fazenda Sarandi, estava em litígio [ 427 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS judicial, sem uma previsão concreta de resolução desde a década de 1970. Grande parte da fazenda estava ociosa, embora abrigasse algumas famílias destinadas a área desde o início da década de 1970, o que se constituía uma contradição justamente na região onde crescia o número de sem-terra. Um ano antes da ocupação, teve início a preparação do IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, promovido pela Contag, embalado pela Campanha das Diretas já e a esperança de uma ampliação da participação popular na tomada de decisões. Apesar de algumas discordâncias entre MST e Contag em relação ao caminho para alcançar uma reforma agrária de fato transformadora, a solução encontrada foi a conciliação, considerando-se o Estatuto da Terra como ponto de partida, mas explicitando-se a necessidade de elaborar uma nova proposta de lei (MEDEIROS, 1989, p. 169). Entre os principais aspectos da proposta que resultou da preparação do Congresso da Contag, a possibilidade de desapropriação de empresas rurais; pagamento das benfeitorias das terras desapropriadas em títulos da dívida agrária; estabelecimento de uma área máxima, estabelecida em módulos rurais, para os imóveis; perda sumária da propriedade, acima de três módulos, quando 50% de sua área agricultável não fosse utilizada; confisco para terras griladas ou com titulação duvidosa; distribuição gratuita de terra aos trabalhadores beneficiados pela reforma agrária; proibição de compra e venda de lotes nas áreas de assentamento. (MEDEIROS, 1989, p. 169) De acordo com Medeiros (1989), a proposta constituía um rompimento com a política agrária dos governos anteriores, e significou um estímulo à crença dos trabalhadores e do movimento sindical rural no atendimento de suas antigas reivindicações, pela forma como foi gestada e os princípios que guiaram sua formulação. Mas, por outro lado, essa aproximação do governo com os movimentos sociais soava como uma ameaça aos grandes proprietários, que passam a organizar uma oposição ferrenha à reforma agrária. Para contrapor e inviabilizar a realização da reforma agrária os pecuaristas e demais proprietários fundaram a União Democrática Ruralista (UDR). De acordo com Medeiros, a violência tem marcado o perfil da UDR, “Milícias armadas, coerção, espancamentos, perseguições, assassinatos reeditaram, de forma pouco sofisticada, a secular atitude dos proprietários fundiários ante qualquer iniciativa de organização e reivindicação dos trabalhadores. ” (MEDEIROS, 1989, p.188) Houve um certo otimismo em razão do caráter democrático diante da manifestação do interesse do governo em escutar as propostas dos interessados na reforma agrária. Conforme aponta Silva (1985, p. 11) “ o debate público da proposta de reforma agrária é antes de tudo uma conquista da longa luta de toda a sociedade brasileira, muito antes mesmo da Campanha das Diretas, pela participação das principais decisões do governo”. Mas, o adiamento da aprovação e a reformulação da proposta dava indícios de que faltava apoio político para a causa. (MEDEIROS, 1989) O resultado dos sucessivos recuos mediante investidas e pressões dos ruralistas ao frágil governo da Nova República, foram decepcionantes para aqueles que ousaram acreditar que desta vez a reforma agrária seria efetivada no país. De uma reforma agrária popular, pensada no coletivo e transformadora, nascia uma proposta “conciliadora” e descaracterizada, que tinha entre seus autores, alguns dos idealizadores do Estatuto da Terra. Embora o texto do documento e a exposição dos motivos da proposta mantivesse a “desapropriação por interesse social, estabelecendo uma meta de assentar 1,4 milhão de famílias entre 1985/89, a mudança do objetivo maior da proposta, de “mudar a estrutura fundiária do país” para “contribuir para modificar o regime de posse e uso da terra” representava por si um retrocesso (SILVA, 1997, p. 68). Em função dos conflitos entre o governo Sarney, a UDR (União Democrática Ruralista), e os camponeses sem-terra, posseiros, etc. o ministro do MIRAD, Nelson Ribeiro, acabou deixando o governo. “Os números referentes ao primeiro ano do Plano (85/86) traziam já, o fracasso da reforma agrária da "Nova República” de José Sarney. Havia sido atingido apenas 5% das metas das famílias assentadas e da área desapropriada” (OLIVEIRA, 2007, p. 126). No entanto, essa não foi a única frustração em relação a reforma agrária durante o governo Sarney. Com a nomeação de Jader Barbalho para a presidência do MIRAD, veio o Decreto-lei nº 2.363 de 23 de outubro de 1987, que feria muitos artigos do Estatuto da Terra e, de acordo com Medeiros (1989), seria “a [ 428 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS última pá de cal sobre as esperanças de que alguma reforma agrária pudesse ser implementada através da vontade política do governo Sarney”. O decreto, de acordo Oliveira (2007, p.128) definia que (...) as áreas em produção não poderiam mais ser desapropriadas para fins da Reforma Agrária. Assim, a desapropriação de áreas com produção de até 1.500 ha na Amazônia, 1.000 ha no Centro-Oeste, 500 ha no Nordeste e até 250 ha no Sul e Sudeste, não puderam mais acontecer. Além disso, para imóveis de até 10.000 ha, a desapropriação passava a incidir sobre apenas sobre 75% da superfície do imóvel, podendo os 25% restantes ficar sob controle do proprietário. Sendo assim, restava aos trabalhadores, que se organizavam para exigir uma resposta à ineficácia dos programas oficiais de reforma agrária, batalhar pela reforma agrária na Constituinte. “O plenário do Congresso Nacional tornou-se, durante a Constituinte, um espaço de lutas por excelência” (OLIVEIRA, 2007, p. 128), pois medindo forças com os movimentos socioterritoriais defensores de uma reforma agrária ampla, geral e irrestrita, a oposição a reforma agrária encabeçada pela UDR atuava no sentido de barrar este processo. José Gomes da Silva escreveu em 1989 o livro “Buraco Negro: A Reforma Agrária na Constituinte”, analisando os confrontos, mediações e propostas relativas a questão agrária durante o trabalho da Constituinte em 1987/88. De modo geral, os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte duraram 20 meses e 4 dias, e resultaram na auto-elogiada por Ulisses Guimarães de “constituição-cidadã” (SILVA, 1997, p. 72). Em relação a reforma agrária, os resultados do processo de eleições da Constituinte “embora não fossem claramente favoráveis aos trabalhadores, permitiram esperanças”. (MEDEIROS, 1989, p. 202) A conquista de apoio popular para a causa da reforma agrária angariada por diversas entidades tais como Campanha Nacional pela Reforma Agrária, Contag, CNBB, Cimi, CUT, CPT, MTST, refletiu na cooptação de um milhão e meio de assinaturas para um projeto de emenda popular. Este projeto de reforma agrária ampliava o potencial reformista do Estatuto da Terra e “o seu eixo era a tese de que à propriedade da terra rural corresponde uma obrigação social. ” (MEDEIROS, 1989, p. 202). Entretanto, a força política dos ruralistas refletiu na criação de um dispositivo que torna isenta de desapropriação a propriedade produtiva. “Com a vitória da política fundiária dos latifundiários, o governo Sarney sepultou o I PNRA. ” (OLIVEIRA, 2007, p 129) Enquanto isso, nas diferentes regiões do país os movimentos socioterritoriais promoviam ações, dentre as quais temos as ocupações de terras e formação de acampamentos que constituíam um fato político, fazendo com que a reforma agrária permanecesse na ordem do dia (MEDEIROS, 1989, p.204). Muitas dessas ações de questionamento e pressão em relação a reforma agrária saíram da Annoni, do acampamento que surgiu da grande ocupação de 1985. Enquanto a solução efetiva para o conflito judicial não acontecia, os acampados empreendiam diversas formas de luta e pressão para a realização da reforma no Estado, uma vez que a área da fazenda não comportava o total das famílias que ali acamparam. Essas ações, tais como caminhadas, a realização da Romaria da Terra, e tentativas de ocupação de outras áreas, tinham também o sentido de sensibilizar a opinião pública para a situação de vulnerabilidade das famílias que aguardavam ansiosamente ser contemplados com lotes de terra. Conforme frisa Medeiros, “uma das marcas notáveis da vida política brasileira nos últimos quarenta anos foi a emergência dos trabalhadores rurais na cena política, constituindo-se progressivamente como sujeitos sociais, numa trajetória descontínua, marcada por avanços e recuos, vitórias e derrotas” (1989, p. 210). Os debates e expectativas em torno das possibilidades criadas em relação a efetivação da reforma agrária, eram compartilhados entre os assentados, que viam com desconfiança as promessas ao mesmo tempo que se conscientizavam de que sem o protagonismo deles que eram os mais interessados na reforma agrária, ela jamais sairia do papel. Assim, os acampados entendiam que a permanência na área era a prioridade naquele momento, mesmo com todas as dificuldades que permeavam o cotidiano do acampamento. O acampamento Annoni durou um ano. Após decisões judiciais e a liberação de uma área maior, as famílias puderam se espalhar nas [ 429 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 16 áreas. Enquanto não haviam terras disponíveis no Estado para o assentamento das famílias, no “assentamento provisório” a divisão dos acampados em grupos levou ao que Bavaresco (1999) chama de descentralização do assentamento. As preocupações voltaram-se a sobrevivência através da produção agrícola nas pequenas extensões de terra destinadas a cada família. É nesse contexto, que tanto Igreja, quanto Movimento e Estado, passam a incentivar a cooperação agrícola, estratégia produtiva que passa a ser vista como alternativa viável em tempos de escassez de recursos. [ 430 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A CONCLUSÃO DE ASSENTAMENTO E A REFORMA AGRÁRIA NOS GOVERNOS COLLOR, ITAMAR E FHC A década de 1990 no Brasil foi influenciada pela emergência do chamado Paradigma do Capitalismo Agrário, fornecendo um novo arcabouço teórico para a interpretação dos conflitos agrários e desenvolvimento brasileiro. Esse aparato explicativo consolidou-se não apenas na academia, influenciando importantes pesquisas em torno da questão agrária, mas também refletiu na prática dos governantes, através de políticas públicas que utilizam essa forma de ver o campesinato dentro do desenvolvimento capitalista. Marcada pelos poucos resultados em termos de assentamento de famílias no país, a década vive mudanças a partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso. No entanto, é com esse mesmo presidente que a reforma agrária, após um reavivamento a partir do assentamento de um significativo número de famílias, é relegada ao esquecimento, seja pelo incentivo à chamada Reforma Agrária de Mercado, uma reforma agrária sem conflitos, seja pela judicialização dos conflitos por terra, freando o número de ocupações, criando uma ilusão de que não havia mais demanda para a reforma agrária, sendo ela descabida nesses novos tempos. Usando a definição de Abramovay (2012) de paradigma, vemos que o autor faz referência a Thomas S. Kuhn, pesquisador que tornou-se célebre pelo uso do termo nas ciências humanas. Segundo o autor, Kuhn mostrou que ao contrário do que se imagina, os cientistas não são indivíduos prontos a aceitar as novidades e desafios colocados pela ciência a partir das rupturas e mudanças que constituem sua evolução. Assim sendo, os cientistas trabalham dentro de uma certa “normalidade”. A liberdade na ciência “não significa que a comunidade científica autorize a pesquisar sobre qualquer coisa”. Haveriam instituições tais como universidades e conselhos de pesquisa responsáveis por julgar “a pertinência de cada pesquisa com base em um conjunto de crenças comunitariamente partilhadas pelos cientistas sobre o que, como e para quê pesquisar. E a esse conjunto de crenças que se dá o nome de paradigma”. (ABRAMOVAY, 2012, p. 30) Compreendidos enquanto diferentes modelos explicativos que não necessariamente anulam um ao outro, temos dois grandes paradigmas: o Paradigma da Questão Agrária e o Paradigma do Capitalismo Agrário, “como resultado das construções teóricas e metodológicas que procuram interpretar as realidades através de duas visões de mundo, sendo que uma tem a perspectiva de superação do sistema capitalista, enquanto a outra defende a sua manutenção. ” (FELICIO, 2011, p. 6) Tanto os conflitos agrários quanto o desenvolvimento agrário são vistos de forma diferente pelos dois modelos explicativos. Enquanto o Paradigma da Questão Agrária (KAUTSKY, 1986) defende a tese de que a questão agrária é estrutural e engendrada pelo avanço do capital na agricultura, “esta questão não pode ser solucionada pelo capitalismo e sua superação está na construção de uma outra sociedade” (FELICIO, 2011, p. 5), o Paradigma do Capitalismo Agrário defende que “os problemas agrários criados pelo capitalismo podem ser solucionados por ele próprio, não existindo uma questão agrária na perspectiva do outro paradigma”, sendo a agricultura familiar e o agronegócio apontados como soluções ao desenvolvimento. De acordo com Fernandes “um conflito por terra é um confronto entre classes sociais, entre modelos de desenvolvimento, por territórios. ” (2008, p.199). Enquanto no Paradigma da Questão Agrária, as ocupações de terra representam uma tentativa de recriação do campesinato, através da sua territorialização, que representa ao mesmo tempo uma disputa pelo território capitalista, mas também uma forma de resistência ao modelo hegemônico “e enfrentamento com o binômio latifúndio – agronegócio” (2008, p.220), para o Paradigma do Capitalismo Agrário, as ocupações de terra representam uma anomalia, algo que fere no amago o desenvolvimento capitalista, criando “um mal-estar quando o assunto é contestar o capitalismo”. Para este paradigma, “as perspectivas estão nas possibilidades de se tornar unidades do sistema. Assim, a agricultura familiar é mais uma unidade do sistema, que caminha segundo os preceitos do capital. ” (FERNANDES, 2007, p. 195) Para além da academia e das pautas e projetos de governo, os dois paradigmas espacializaram-se e foram incorporados também por movimentos socioterritorias. O MST, o mais organizado movimento sócioterritorial (OLIVEIRA, 2007, p. 139), responsável pela ocupação da Fazenda Annoni e que passa a se projetar em nível nacional a partir dessas experiências, usando como estratégia as ocupações de terra para [ 431 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS pressionar um governo com pouco apoio ou vontade de fazer reforma agrária, organizando a resistência dos camponeses ao processo de exclusão promovido segundo o Paradigma da Questão Agrária, pelo próprio desenvolvimento capitalista. A solução para a questão agrária perpassava pela redistribuição massiva das terras, território do latifúndio, e a adoção da reforma agrária enquanto modelo de desenvolvimento, em oposição ao agronegócio. (FERNANDES, 2009, p. 45) Compreende-se então a ocupação da Annoni e o processo de reivindicação da reforma agrária a partir de outras estratégias diversas, enquanto uma forma de questionamento à forma que o desenvolvimento capitalista assumiu, excludente e extremamente desigual. A ocupação em si trata-se do questionamento da própria concepção de propriedade privada enquanto um direito absoluto, elemento fundamental no sistema capitalista. Vista como uma afronta e geralmente de forma separada do desenvolvimento, a ocupação que gera o conflito por terras assume o papel de pressionar o governo para a formação de assentamentos, espaço de reprodução social camponesa, segundo o Paradigma da Questão Agrária, ou da agricultura familiar, de acordo com o Paradigma do Capitalismo Agrário. De espaço de resistência ao capitalismo através da estratégia produtiva própria do campesinato, à parte integrante do sistema capitalista, onde o camponês “profissionaliza-se” e deixa de resistir para integrar-se ao sistema. Enquanto os dois paradigmas competem, complementam e revezam-se para explicar a questão agrária e o desenvolvimento capitalista no campo, movimentos socioterritoriais criam fatos políticos, exigindo uma resposta do Estado, norteado por uma ou outra compreensão do problema agrário. Enquanto o MST preconiza a construção de uma nova sociedade a partir da reforma agrária, ou pelo menos a construção de um modelo alternativo ao hegemônico, conforme preconiza o Paradigma da Questão Agrária, a concepção oficial de reforma agrária vai aos poucos sofrer influência do Paradigma do Capitalismo Agrário, especialmente a partir do segundo governo FHC (FERNANDES, 2008, p. 193). Após os ínfimos resultados do Governo Collor, quando “os defensores de uma reforma agrária encabeçada pelo Estado, via desapropriação de terras, viam cada vez mais distante a realização de suas intensões” (FERNANDES, 2009, p. 47), e o “Programa da Terra” foi frustrado em função do impeachment, a limitação do poder estatal mediante desapropriações de terras para fins de reforma agrária continuou com Itamar Franco, que assumiu no lugar de Collor em 1992. Mesmo com o aumento das ocupações de terras, foram feitos apenas 127 projetos de assentamento, assentando 13.281 famílias. (FERNANDES, 2009, P. 48) Dentro desse quadro de aumento das ocupações e conflitos agrários pelas diversas regiões do país, a conclusão do assentamento da Annoni aconteceu em fases. No assentamento Encruzilhada Natalino fase 1 foram assentadas 57 famílias de agricultores desalojados pela Barragem do Passo Real (CAUME, 2006, p. 175). A medida que outras áreas de terra eram desapropriadas no estado, famílias acampadas na Annoni iam sendo assentadas, em municípios como Tupanciretã, Santiago e Guaíba. Na segunda fase, 35 famílias foram destinadas ao “Assentamento Holandês”, em 1987. Em função das dificuldades em desapropriar mais terras no estado, e do grande número de famílias que aguardava a liberação de novas áreas, a conclusão de assentamento na Annoni só aconteceu em 1993, quando mais de duzentas famílias passaram a ser beneficiárias de políticas públicas destinadas à reforma agrária. Embora não seja mérito desse texto, é importante ressaltar, a importância da presença do poder público nos assentamentos, uma vez que o sucesso ou não dos programas de reforma agrária dependem da “capacidade do poder público de implantar as condições estruturais mínimas necessárias para a viabilização da unidade social de produção”.(BAVARESCO, 1999, p. 271) isso porque, segundo Bavaresco, “em geral, os beneficiados pela reforma agrária chegam aos assentamentos completamente desestruturados materialmente para iniciar o processo produtivo.” Essa presença ou não do poder público depende muito da concepção de reforma agrária adotada. Nos primeiros anos após a conclusão do assentamento na Annoni, durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), foram criados 2.389 assentamentos, “esses números eram os mais altos registrados por um governo até então” (FERNANDES, 2009). Tais resultados, à medida que o governo Fernando Henrique atende às pressões feitas pelo MST mediante ocupações, empolgaram novas ocupações de terra pelo país, que aumentaram expressivamente. [ 432 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Especialmente a partir do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, o paradigma do Capitalismo Agrário passa a orientar as políticas públicas, quando é criado o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e o programa Novo Mundo Rural, que tinha como principais ações a criação de infraestrutura social nos assentamentos rurais, além da implantação da relação de compra e venda da terra como forma de inibir as ocupações (FERNANDES, 2008, p. 193). Na intensão de ajudar a integrar os assentados ao mercado mediante concessão de crédito, e de mostrar ao mundo uma reforma agrária via mercado, através do Banco Mundial, portanto, mediante compra e venda e “sem conflitos”, o governo encerra um ciclo de resultados expressivos em termos de reforma agrária como forma de resposta aos conflitos de terra. Passando então a apontar para uma solução dentro da lógica do capitalismo, em que a integração do camponês se dá a partir da compra da terra e sua profissionalização em agricultor familiar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora constantemente revisitado, ainda há diversos olhares possíveis de serem lançados de forma mais aprofundada sobre o processo de assentamento e a consolidação deste enquanto espaço de reforma agrária na Fazenda Annoni. A importância dessas análises, em que pese a importância histórica que constituiu a Annoni uma referência no país em termos de reforma agrária, está em compreender o papel dos diferentes sujeitos que protagonizam esse processo, e perceber como a reforma agrária é pensada e operacionalizada ao longo do tempo por aqueles que dela se apropriam transformando em bandeira de luta, mas também por aqueles que se veem diante do desafio de colocar os interesses da coletividade, ou de alguns grupos subalternos, uma vez que a reforma agrária não chega a ser um consenso na sociedade, acima do interesse privado, ou de grupos que exercem grande pressão política, ocupando cargos importantes no poder público. Espera-se com a discussão ter conseguido contextualizar as diferentes discussões em torno da reforma agrária, mostrando como a história da Fazenda Annoni situa-se neste processo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAVARESCO, Pedro Antônio. 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Tendo como concepção o âmago, a alma do habitador. No que se baseia, ter uma arquitetura viva e humana, transparecendo as necessidades e emoções referentes ao indivíduo/espaço, assim dando função ao ambiente de moldar-se ao seu explorador. A arquitetura pode introduzir esta ação e usá-la a seu favor, equilibrando as concepções sem deixar de agregar a riqueza conceitual. Estes elementos podem ser analisados nas construções religiosas, como as igrejas, que afirmam a importância e a necessidade do kitsch para a representação do sagrado, para a imaginação e a fé de seus seguidores. Palavras-chave: Arquitetura. Kitsch. Movimento. Is the essence of architecture in kitsch? Abstract : Reflecting on the active complexity of kitsch within contemporary architecture, at a time when influences are inspirations of different trends, how to classify this architecture? Is not kitsch a complementation and humanization where strength and essence are in need of the creation of a single space, classified and molded by the user? Having as its conception the core, the soul of the inhabitant. On what it is based, to have a living and human architecture, showing the needs and emotions regarding the individual / space, thus giving function to the environment to shape itself to its explorer. Architecture can introduce this action and use it in its favor, balancing the conceptions while adding the conceptual richness. These elements can be analyzed in religious constructions, such as churches, which affirm the importance and necessity of kitsch for the representation of the sacred, for the imagination and faith of its followers. Keywords: Architecture. Kitsch. Movement. Introdução No século XX nascia na uma nova visão de arquitetura, um novo estilo, distinto e enigmático. Apto a adaptar-se as concomitâncias na atual sociedade e economia, que sofriam com guerras e transformações econômicas. Seu conceito era projetar edificações com poder de expressar-se por si mesmas, dirigindo o olhar e as emoções perante suas linhas, formas, cores, luzes e materiais, na composição do espaço proposto. Para o arquiteto Le Corbusier a casa moderna não utilizava e necessitava de luxo, conceitualmente visava ser uma casa-instrumento, uma máquina de morar, afastada de qualquer sentimentalismo. “O homem moderno, para o arquiteto citado, é aquele que vive me um ambiente sem “objetos inúteis” e “ninharias ridículas” e prefere o conforto de um ambiente funcional como aquele que encontra no seu espaço de trabalho”. (TROMBETTA, 2015, p. 446-447). Uma obra pura e limpa, com a proposta de dar somente o necessário a seu usuário, sem a concepção de ornamentos e figurações. “Nenhum período da história da arquitetura foi mais criativo, mais destrutivo ou mais extenuante, quer para os arquitetos, quer para os inocentes espectadores”. (BLAKE, 1974 apud PORTOGHESI, 2002, p.57) Segundo o autor Portoghesi (2002), movimento moderno tão conhecido e impactante, trouxe uma maneira mecânica de sentir a arquitetura, a busca pela leveza e formas geométricas de traços simples associada a um espaço cuja função era produzir uma máquina de morar gerou edificações únicas e de personalidade marcante, porém humanamente sem vida, sem alma. A abstração de ornamentos e a preocupação com a forma desfocou a atenção aos desejos do principal elemento: o usuário. “Qualquer enfeite 1Arquiteta e Urbanista formada pela Universidade de Passo Fundo, Rs. Aluna do Curso de Mestrado em História, Patrimônio e Cultura. Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS. 79207@upf.br [ 435 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS ou outro tipo de objeto seria desnecessário e corromperia não só a funcionalidade da casa como a sua beleza”. (TROMBETTA, 2015, p. 447). A intenção de trabalhar a integração entre espaço interior com o exterior utilizando diferentes materiais e os próprios materiais que o movimento adotou para suas criações mostram mais um de seus equívocos, a falta de conforto ambiental e a problemática sustentável, que acarretam em concepções falhas e enigmáticas. Nascida para combater o desperdício dos ornamentos postiços impostos pelo gosto eclético oitocentista, a arquitetura moderna, ao ser adotada pelo capitalismo em ascensão por sua ética de austeridade e simplicidade, transformou-se paradoxalmente na arquitetura do desperdício de energia: Um gigantesco mecanismo de consumo dos limitados recursos da terra que, além de tudo, requer a renovação contínua do seu efêmero patrimônio. (PORTOGHESI, 2002, p.41) Para romper com padrões industriais, novas propostas arquitetônicas começaram a surgir em meados de 1930, em confronto com as ideologias modernistas. Assim caminhando para um novo estilo de arquitetura pós-moderna. Nesta nova forma de projetar foi inserida a história, a colagem e a justaposição de diferentes estilos. A memória e a ação das pessoas são pontos primordiais para o significado das obras, respeitando o passado e o usuário. (PORTOGHESI, 2002) A industrialização proporcionou novas possibilidades sociais e culturais, estimulando um novo perfil de indivíduo consumista, que se modifica conforme sua inserção e as possiblidades de ofertas oferecidas a ele. A população mais humilde teve acesso a produtos antes exclusivos da aristocracia. Resultando na sociedade globalizada atual, construindo seu próprio universo, categórico para conjuntura una e artificial ao qual existe alento e refúgio. A base do kitsch é o consumismo civilizatório, em uma cultura onde a produção acelerada é o enfoque, envolta em um ciclo que se produz para consumir, se cria para produzir. “O kitsch é uma forma patológica da arte, um aspecto de alienação contemporânea [...] (MOLES, 1972, p. 22) A medida que o movimento se expandia, o kitsch foi se introduzindo, agregado à arquitetura forma lúdica e simbólica, uma identidade que define a ação e expressão de sentimentos de cada indivíduo, tornando a edificação humanizada, aconchegante para quem a usa. Toda via, conceitos relativos a gostos pessoais podem ter diferentes opiniões, o que pode ser belo e harmonioso para o indivíduo “A” pode ser brega e inapropriado para o indivíduo “B”. Este é a grande fascínio gerado pelo kitsch. O termo “kitsch” tem inúmeras derivações, do inglês sketch, com significado de “esboço”, partindo de suposições oriundas da sua fusão no século XIX no comércio da arte, como uma maneira de mercadores desvalorizarem obras para adquiri-las com menor valorização. (TROMBETTA, 2015) Em Munique aparece por volta de 1860, originada do sul alemão pelo termo kitschen, adquirindo significados como atravancar, recolher do lixo e fazer móveis novos com velhos. Tendo ligação também com o verkitschen, que se relaciona a algo como trapacear, receptar, vender alguma coisa diferente do combinado ou utilizar astucia na execução de móveis para se passarem por antiguidades. (MOLES, 1972) “Trata-se de um conceito universal, familiar, importante, que corresponde, em primeiro lugar, a uma época da gênese estética, a um estilo marcado pela ausência de estilo, a uma função de conforto acrescentada às funções tradicionais, ao supérfluo do progresso”. (MOLES, 1972, p. 10) Apresentar o processo do kitsch, sua essência, significado e uso na arquitetura e ornamentação do espaço habitado, entender como classifica-lo para trazer a aceitação de sua linguagem, de suas mais profundas particularidades é o caminho mais coerente e complacente para encontrar o equilíbrio e usá-lo em favor da arquitetura. “O kitsch, entendido enquanto estilo, é a expressão de um projeto que renuncia a qualquer pretensão de atender aos valores tradicionais da arte, como a verdade e a autenticidade”. (TROMBETTA, 2015, p. 443) [ 436 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A trajetória das formas “A forma segue sua função”, frase protótipo da arquitetura funcionalista. Segundo os autores Guimaraes e Cavalcanti (1982), os métodos do funcionalismo estão especificados na Carta de Atenas. Tendo pormenorizado os itens como a abolição do ornamento, estruturação do espaço por economia de movimentos: ergonomia e estruturação por economia de meios: aproveitamento das condições de produção mecânica. O princípio básico funcional, ao estabelecer que os objetos deveriam ser determinados por sua função, traz em seu bojo a ideia de rigor, de disciplina e, portanto, de ascetismo. Acarretando como consequência uma luta sistemática contra todo e qualquer irracionalidade, vai de encontro a tudo que pareça fugir à função, inclusive a decoração. (GUIMARAES e CAVALCANTI, 1982, p.32) “Examinado sob o ponto de vista dos princípios da arquitetura funcionalista, o kitsch é um verdadeiro “escândalo estético””. (TROMBETTA, 2015, p. 447) “O kitsch pode ser compreendido como um “efeito colateral” do projeto moderno nas artes e arquitetura”. (TROMBETTA, 2015, p.442). Dentro dessas duas frases constata-se que a alusão a uma nova forma de arquitetura quando posta em prática pela maior parte de seus usuários teve uma repercussão oposta a proposta inicial, a necessidade do indivíduo de tornar seu ambiente humanizado com forte apelo por objetos tanto funcionais como antifuncionais correspondentes ao seu padrão de gosto criam cenários que seguem o perfil do homem contemporâneo, sendo supridos e substituídos dentro das possibilidades que cada cultura e época pode proporcionar. Levando em consideração o fato do capitalismo de forma estratégica vincular a ideia de funcionalidade com embelezamento, dando duplo sentido ao objeto, tornando o consumidor adstrito aos produtos industriais. “Afinal, os espaços domésticos inevitavelmente se relacionam com seus moradores. Assim como podemos analisar uma cultura através de seus produtos culturais, em menor escala podemos analisar um morador conforme a construção de seu lugar de habitação”. (TORTATO ; AHLERT, 215, p.168) A natureza dos objetos utilizados para a humanização dos espaços deve ser avaliada além do funcional e antifuncional, qual o valor que ele agrega? Analisando sua representação simbólica, sua composição com o contexto, sua carga emocional, referencial, sua artificialidade defronte ao ambiente natural, fatores esses que fundamentam qual a relação dele com o indivíduo/ entorno, classificando-o dentro de necessidades, questões decorativas, estéticas ou culturais. Como Portoghesi (2002) relata, alguns fatores foram marcantes para o fim da arquitetura moderna, como a participação de Fhilip Johnson, considerado hoje o patriarca do pós-modernismo, que em 1932, com a colaboração de Russell Hitchcock criou a fórmula do International Style, com a filosofia de uma natureza estilística, relativa e transitória. Outro elemento imprescindível para o marco transitório, é a afirmação que o estilo teve até data de morte, – ás 15h32 do dia 15 de julho de 1972, com a implosão do conjunto habitacional Pruitt-Igoe, construído em 1951. A obra priorizava a moradia para pessoas de baixa renda, setorizando o espaço urbano, trazendo áreas de integração, com caminhos, estares e áreas verdes, porém os espaços individuais eram repetitivos e remetiam a seus usuários a sensação de estarem em uma prisão. Desconsiderado pelos psicólogos e sociólogos qualquer forma de adaptação ou restauração pela conclusão de atribuírem a escolhas arquitetônicas grande parte da responsabilidade pelos atos de violência e vandalismo gerados por seus habitantes – na maioria negros - e indivíduos que viam no local potencialidade para marginalidade. A solução mais coerente foi a demolição, trazendo consigo grande carga negativa para um estilo correlato a grandes críticas populares. O ideal que originalmente justificava e conferia a conotação heroica à univalência da linguagem arquitetônica moderna era o mito da reforma social, a esperança de transformar a sociedade através da arquitetura, e assim evitar – segundo a teoria [ 437 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS de Le Corbusier - a revolução política. Mas que sentido pode ter esta univalência, depois da derribada do mito da esperança? Segundo Jancks, é hora de mudar a rota, ou melhor, é hora de perceber que os arquitetos à frente das novas investigações, aqueles que souberam compreender as exigências do nosso tempo antes e melhor que todos, já mudaram de rumo há quase vinte anos, e que sua luta prefigura as diretrizes de uma arquitetura diversa, tornada ao seio da história. (PORTOGHESI, 2002, p.61) A busca por uma expressão mais humanizada dentro da arquitetura eclode na despreocupação com o belo, referenciando a cultura e a história que a rodeia, uma fala popular que dentro de seus critérios reage contra as normas rígidas do funcionalismo. “O projeto funcionalista visa, sob esse ponto de vista, afastar a arquitetura de qualquer sentimentalismo”. (TROMBETTA, 2015, p. 446). Sobre a visão de Portoghesi (2002), o período pós-moderno difere-se do moderno por sua relação à tradição, vinculando sua arquitetura com outros estilos, como o barroco e o maneirismo. Uma continua evolução da sociedade e cultura usando padrões mais adequados e complexos. A base de estudos se dá pela observação da metamorfose sofrida nas casas pelos seus moradores. No qual identificam a relação de usuário e arquitetura nas suas vivências e experiências cotidianas. [...] não nega a tradição moderna mas a interpreta de forma livre, a integra e revê criticamente seus erros e acertos. Contra os dogmas da univalência, da coerência estilística pessoal, do equilíbrio estático ou dinâmico, contra a pureza e ausência de qualquer elemento “vulgar”, a arquitetura pós-moderna revalida a ambiguidade e a ironia, a pluralidade de estilos, o duplo código que lhe permite voltar-se ao mesmo tempo para o gosto popular, através da citação histórica ou vernácula, e para os especialistas, através da explicitação do método compositivo e do chamado “jogo de xadrez” da composição do objeto arquitetônico. (PORTOGHESI, 2002, p.61) Em alguns escritos o arquiteto Louis Kahn discorre a metodologia de interverter a relação formafunção, imputando a responsabilidade à forma de expressar a função do espaço, sendo flexível e adaptável a qualquer possibilidade de modificação. Repondo a arquitetura a si mesma e a sua história, abstraindo a tecnologia, a geometria rudimentar e a pintura abstrata. Deixando um legado seguido principalmente por Robert Venturi e Charles W. Moore. Nas propostas de Venturi suas ações eram consideradas mais realistas, propondo mudanças leves no cenário urbano com modificações de formas profundas no contexto. Uma reforma sem ilusões, considerado pelos pós modernistas o oposto da metodologia de arquitetos e urbanistas modernos que propunham conceber espaços novos impossíveis de serem executados. Já no desenvolvimento da arquitetura de Moore, o lugar é pensado com a presença ativa do homem e suas necessidades. Sua arquitetura é figurativa, buscando o gosto pessoal do cliente, sua história, desejo, sonhos e memória para transparecer na obra. (PORTOGHESI, 2002) As instituições são abrigos da inspiração. Escolas, bibliotecas, laboratórios, ginásios. Antes de acatar aquilo que é ditado pelo espaço, o arquiteto considera a inspiração. Ele se interroga sobre a sua natureza, sobre o que distingue uma inspiração da outra. Quando percebe tal diferença, ele não entra em contato com a sua forma correspondente. A forma inspira o projeto. (PORTOGHESI, 2002, p.105) Analisando o trajeto da arquitetura durante os estilos anteriores, os fatores de transformação e as causas coerentes levaram para a consagração do kitsch, um elemento popularmente inserido na cultura de massa, que possibilita de forma globalizada o acesso a produtos antes intangíveis a muitos indivíduos. Sua forma de inserção provém da cópia e imitação de elementos, que personalizam a vivência de cada cidadão, trazendo a realização de sonhos do espaço único e sagrado para o usuário que o comtempla. “Ainda que [ 438 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS pareça contraditório, a reprodução em massa de objetos decorativos contribuiu para afirmar a singularidade, a qualidade de “único entre todos””. (TROMBETTA, 2015, p. 444). Dentre as palavras de Sêga (2010) o kitsch é um assunto de estranhamento que segue perplexo e sem uma definição, de difícil interpretação. A confusão em seu significado muitas vezes acarreta em algo que é brega e de mau gosto. Mas que justificativas são sensatas e congruentes para classificar algo de mau gosto ou impróprio dentro de patamares arquitetônicos se conceitualmente ao olhar do consumidor o uso do kitsch está evidenciando sua individualidade, seu âmago. A personificação do indivíduo, representado pela linguagem do espaço habitável, classificado inconscientemente como seu refúgio. O kitsch, na relação com o ideário funcionalista, assume um papel transgressor na medida em que se instala nos ambientes construídos quando o arquiteto “dá as costas”. Os cenários kitsch montados nos exteriores e interiores das casas, com suas composições saturadas, bricolagem, objetos imitando elementos naturais (animais e plantas), uso de cores chamativas, exageros, mosaicos e referências religiosas realizam o propósito de criar “zonas de aconchego”, tornando o clima da casa mais divertido e acolhedor. (TROMBETTA, 2015, p. 448) Seguindo a análise de Trombetta (2015) a falta de compreensão do sentimentalismo propiciado pelo kitsch expõe críticas como: a produção ingênua e imatura de efeitos e expressões emocionais, dando o exemplo de enfeites de jardim, objetos produzidos de forma tosca, em gesso ou material similar que pela sua forma remetem a expressões de meiguice e ternura; a manipulação das emoções; a evocação de falsas emoções, que confere com a substituição de algo real que não se encontra disponível; releitura de emoções baratas e fáceis e a distorção das percepções do pensamento racional, ou seja, o kitsch é adotado como uma fuga para a criação do universo individual livre a qualquer sentimento proposto. Pode-se notar na arquitetura kitsch uma necessidade de criação individual, de personalização e afirmação social. Cada casa vai apresentar elementos diversos de outras, elementos esses que geralmente estão ligados à individualidade do proprietário. (GUIMARAES e CAVALCANTI, 1982, p.39) A questão secular continua a gerar polêmica dentro o meio social. O que está evidente é que a arquitetura contemporânea se encontra diversificada e sem um estilo único. Dentro de sua bagagem histórica, cultural e conceitual, o kitsch está onipresente, indiferente de estar tímido ou expressamente visível, ele sempre estará lá, seja na arquitetura, nos ornamentos de humanização dos espaços e na linguagem de sustentabilidade e reaproveitamento de objetos para fins distintos da proposta original. O kitsch pode ser criativo por várias razões. Por ser alternativo, econômico, sugestivo, oportuno, funcional, além de possuir uma gama de adjetivos que poderíamos atribuir-lhe. Ele complementa uma ideia, dá o toque desejado a um ambiente, porém nunca é original na sua criatividade, nem na sua essência. O seu aspecto alternativo acaba por resultar em uma solução adequada a uma situação ou a um problema em questão. Por mais exigentes e por mais conhecedores de estética da arte que formos, é quase impossível não sermos e não termos um pouco de kitsch em cada um de nós. (SÊGA, 2010, p.62) Uma forte tendência contemporânea é o reaproveitamento de objetos para a preservação de sua história e fins sustentáveis. Tanto inseridos na decoração de um ambiente como na composição arquitetônica da obra. Citando como exemplos os pneus, que depois de terem sua vida útil findada são aproveitados para fazer balanços, hortas, jardins, entre outros..., e o projeto do arquiteto David Hertz em uma encosta de Malibu, na Califórnia que utilizou asas de um avião 747 aposentado, para compor a cobertura da residência. [ 439 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS [ 440 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Kitsch no sagrado Intencionalmente o estilo moderno idealizava trazer para os templos religiosos uma arquitetura que transparecia a fé, o místico, o sagrado, se revelando pelo uso de materiais e seus efeitos, como linhas puras, a luz, cores, conceitos, criando representação de ambientações, cenas, tornando a obra arquitetônica a própria devoção e simbologia da crença. Aboliram qualquer uso de ornamentação e elementos decorativos, como imagens de santos e referências materiais e concretas para fazer tangível a função do espaço. Todos os méritos seriam dados para a forma e a linguagem arquitetônica, nada mais era necessário para o diálogo com o sagrado. Suscitando o empoderamento à edificação. Do ponto de vista psicológico e emocional, ao subtrair o kitsch o efeito do ambiente para muitos usuários perde o significado. A necessidade de elementos visíveis e materiais para afirmar crenças e manifestações sentimentais está muito presente na cultura, solidificando a premência do questionamento do que traz a essência para um projeto arquitetônico. Como as autoras Tortato; Ahlert, (2015) na sua narrativa salientam: [...] Há dezenas de milhares de anos pequenas grupos nômades carregavam consigo estatuetas representativas daquilo que compreendiam como fertilidade e produtividade; perpassando e complexificando a ritualística do culto às mais diversas divindades em tempos e estatuas colossais, até a expressão de suas inquietações individuais, seus temores e angústias, paralelamente a cenas de amor, de beleza, de alegria, criando relações decisivas entre expressão artística e sua concepção de subjetividade. (TORTATO ; AHLERT, 2015, p. 163) O desligamento com esses ornamentos se torna algo muito distante, pois é no próprio lar que ele se inicia, na decoração de suas áreas íntimas e jardins com imagens e esculturas que condensam a ideia de que estando ali materializados a proteção está garantida, cerimônias, oferendas propostas possuem mais força que somente singelas orações. Estes rituais automaticamente se estendem para ambientes de pregação que qualificam a extensão do lar. É da natureza do ser humano o apego ao ornamento, ao kitsch, independente do grau, todos necessitam a criação de uma ambientação aconchegante para entrar em seu próprio universo. Conclusão O kitsch é um questionamento delicado, principalmente relacionado a arquitetura. Quais são seus limites atingíveis para não descaracterizar a obra arquitetônica? Até que ponto o profissional pode interferir na ambientação do espaço perante o habitador, o usuário. Que referências abranger em uma cultura que vem de exageradas representações e o desprendimento ainda não se alcança para revelar uma arquitetura limpa que expresse seu significado por ela mesma. E nessa arquitetura limpa já se enquadra os materiais ecológicos, sustentáveis, que mais uma vez levam para o caminho do kitsch. De diferentes direções se chega ao mesmo elemento: o kitsch. Ele está presente no cotidiano. Mesmo não sendo um produto original ele tem o poder de se transmutar, e tornar-se original a partir do momento que é utilizado para um fim singular. Esse é o domínio que o indivíduo possui de seu espaço. Mudando o usuário as características e necessidades serão outras, o que levará a uma forma espacial totalmente distinta. Esto resulta ampliamente visible em el mundo de la arquitectura, especialmente si se considera como arquitectura la proyección y la fruición del ambiente físico em que vivimos, a todas las escalas dimensionales. Este ambiente. Hoy, há sufrido em primer lugar um processo de objetualización, de passo cada vez más rápido de la [ 441 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS naturaliza hacia la cultura través del objeto; la naturaliza se artificializa como deleite tecnológico y como creación de un microclima más adaptado a la supervivência social, pero esto sucede a través del objeto; la naturaleza se artificializa como deleite tecnológico social, pero este sucede a través de la incrustación, en la naturaleza misma, de los objetos produzidos por el hombre:[...] (GREGOTTI, 2015, p. 254-255) Cabe a coerência aos profissionais da área, arquitetos e urbanistas achar meios para a harmonia entre esse elemento tão enigmático com a concepção arquitetônica. Conhecer as particularidades de cada cliente e usar a favor na construção de um projeto onde a personificação se consolida e se humaniza revelando sonhos, desejos e mistérios cabíveis no mundo de fantasias uno. “El objeto kitsch reproduce de algún modo, en sus reglas de estruturación, este deplazamiento con respecto a lo real, que permite a la auténtica obra creadora una nueva colocación con respecto alo real y tal vez un nuevo conocimento del mundo”. (GREGOTTI, 1968, p.257) É a sua essência sendo transformada em matéria. O projeto pode ter o mesmo programa de necessidade para diferentes pessoas, como cozinha, sala de estar, dormitórios e banheiro, seguir formas contemporâneas, mas é na humanização que a mágica se dá. É nela que o kitsch nasce, floresce e melhor se encaixa na função arquitetural. “Elaborar sua morada de acordo com a sua filosofia de vida. ” (GUIMARAES e CAVALCANTI, 1982, p.95) Um questionamento que deve ser levantado em conta dentro da arquitetura religiosa, servindo como uma reflexão para o uso do kitsch é por que esse fenômeno acontece? Qual a necessidade da devoção pelas esculturas? O espaço consagrado, a obra em si não teria a responsabilidade de ser o canal para o divino? Como ser perceptível e sensível às formas e conceitos arquitetônicos, respeitando o espaço por ele mesmo. Talvez a resposta esteja nos sentimentos. A concepção figurativa é mais perceptível que a abstrata, tornando seu entendimento facilitado. O propósito do kitsch é esse, trazer emoção, está longe dele querer competir com a arquitetura. A forma exagerada de sua utilização é que atrasa o processo de entendimento e aceitação desse elemento tão complexo. Referências GREGOTTI, V. Kitsch y arquitectura. In DORFLES G. El kitsch. Antologia del mal gusto. Editora Lumen, 1968. p. 251-272. GUIMARAES, D.; CAVALCANTI, L. Arquitetura kitsch: suburbana e rural. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. MOLES, A. A. Que é o kitsch? In___. O kitsch. A arte da felicidade. Tradução de Sérgio Miceli. São Paulo, Perspectiva: ed. da Universidade de São Paulo. 1972. p. 9-22. PORTOGHESI, P. Depois da arquitetura moderna. Tradução e apresentação Ana Luiza Nobre. São Paulo: Martins Fontes, 2002. RICCHINI, R. Casa feita com peças de um avião 747. Disponível em <http://www.setorreciclagem.com.br/curiosidades/casa-reciclada-com-pecas-de-aviao/>. Acesso em: 06 ago.2018. SÊGA, C. M. P. O kitsch está cult. Revista Signos do Consumo, São Paulo, V.2, N.1, Jun. 2010. P:53-66. Disponível em <http://www.revistas.usp.br/signosdoconsumo/article/view/44361>. Acesso em: 06 ago.2018. TORTATO, B. A. ; AHLERT, J. . A embriaguez de consumo: uma introdução ao kitsch. Asa-Palavra (Brumadinho), v. 1, p. 163 -168, jan./jul. 2015. TROMBETTA,G. L. Entre a lágrima e a transgressão: a ambiguidade do kitsch no projeto moderno da arte e da arquitetura. História: debates e tendências, v.15, n.2, p. 441-450, jul./dez. 2015. [ 442 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A influência do processo de internacionalização da agricultura brasileira na expansão da fronteira agrícola Tiago Dalla Corte1 Resumo: Este estudo aplica os aportes teórico-conceituais da história regional para discutir a influência do processo de internacionalização da agricultura brasileira na transição dos séculos XX-XXI para a expansão da fronteira agrícola do país. Para tanto, investiga os fatores determinantes do processo de internacionalização da agricultura brasileira face ao período de reformulação da política agrícola na mudança de conjunturas ocorrida na década de 1990. Em razão da relevância da reformulação da política agrícola e da internacionalização da agricultura que acarretou a transformação do setor primário num dos mais dinâmicos da economia brasileira, é que se justifica esta pesquisa. Em sua análise, apresentam-se questionamentos sobre o ambiente econômico brasileiro e o impacto das reformas políticas sobre o setor agrícola, bem como reflete-se sobre a influência da aceleração da globalização em relação ao movimento de internacionalização da agricultura. No presente estudo, entende-se como internacionalização da agricultura o direcionamento do esforço produtivo para atender a demanda de commodities agrícolas pela comunidade internacional. Diante do exposto, procura-se identificar a relação entre a expansão da fronteira agrícola frente a consolidação do processo de internacionalização da agricultura. Palavras-chave: Agricultura brasileira; Fatores determinantes; Fronteira Agrícola; Internacionalização. The influence of the process of internationalization of brazilian agriculture in the expansion of the agricultural frontier Abstract: This study applies the theoretical-conceptual contributions of regional history to discuss the influence of the process of internationalization of Brazilian agriculture in the transition from the XX-XXI century to the expansion of the country's agricultural frontier. In order to do so, it investigates the determinants of the process of internationalization of Brazilian agriculture in view of the period of reformulation of agricultural policy in the change of conjunctures that occurred in the 1990s. Due to the relevance of the reformulation of agricultural policy and the internationalization of agriculture that led to the transformation of the primary sector in one of the most dynamic of the Brazilian economy, is that this research is justified. In their analysis, questions are raised about the Brazilian economic environment and the impact of the political reforms on the agricultural sector, as well as on the influence of the acceleration of globalization in relation to the internationalization movement of agriculture. In the present study, the internationalization of agriculture is understood as the orientation of the productive effort to meet the demand of agricultural commodities by the international community. In view of the above, it is sought to identify the relationship between the expansion of the agricultural frontier and the consolidation of the process of internationalization of agriculture. Keywords: Brazilian agriculture; Determining factors; Agricultural Frontier; Internationalization. INTRODUÇÃO Durante a aceleração do processo de globalização nos anos 1990, o cenário no qual o agronegócio encontrava-se envolto relacionava-se, cada vez mais, com a lógica do mercado. Essa era a racionalidade que conduziu a reformulação dos instrumentos de política agrícola e a redefinição do papel do Estado na agricultura (o qual era o provedor de confiança para a expansão econômica). A narrativa histórica sobre a transição da conjuntura econômica da agricultura brasileira consolidou-se com a normatização das políticas agrícolas, marcando o amplo processo de regulamentação de novos instrumentos de política agrícola (como, entre outros, a elaboração de leis e de subsídios específicos para a agricultura). Contudo, apesar da Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF). Mestre pelo Programa de PósGraduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF). Possui MBA em Gestão Estratégica do Agronegócio pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Economista. Docente da Faculdade de Economia, Ciências Contábeis e Administração da Universidade de Passo Fundo (FEAC/UPF). E-mail: dallacorte@upf.br 1 [ 443 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS reformulação dos instrumentos de política agrícola e econômica ter criado condições para a expansão da agricultura, essa só aconteceu a partir de 1995/96 com a melhora dos preços recebidos pelo produtor brasileiro. No início da década de 2010, os resultados e a dimensão alcançada pela agricultura apontavam-na como um do setores mais dinâmicos da economia brasileira. Em 2000, segundo a FAO, o Brasil ocupava o 6º lugar no ranking mundial de exportadores agrícolas. Já, em 2010, o Brasil alcançou a terceira posição no ranking mundial de exportadores agrícolas, ultrapassando Austrália, China e Canadá, ficando atrás, apenas, dos Estados Unidos e da União Europeia. No começo da década de 2010, o Brasil já ocupava a primeira posição de exportação de produtos como café, suco de laranja, açúcar e carne bovina. Ocupava, ainda, a segunda posição na exportação de importantes culturas como soja e milho. Nesse sentido, o agronegócio foi o setor com maior contribuição para o crescimento da economia brasileira nos últimos anos, representando, em 2012, aproximadamente, 22% do PIB brasileiro. Os estudos da FAO destacaram, também, que o resultado alcançado pela agricultura brasileira foi obtido com a manutenção de 69,4% da vegetação nativa brasileira, contra, apenas, 0,3% da manutenção da vegetação nativa europeia (FAO, 2012). Perante essa reflexão e confrontação de informações é que sobressai a pergunta que passa a ser investigada pelo presente estudo: Quais foram/são os fatores determinantes para a internacionalização da agricultura brasileira e quais os seus impactos sobre a expansão da fronteira agrícola? De acordo com o embasamento teórico que será apresentado, a resposta para essa questão é fundamental para que se compreenda os pontos de ruptura em sua conjuntura a partir dos quais a produção agrícola brasileira começou a ganhar destaque em relação à sua produção mundial e a fronteira agrícola consolidou a sua expansão. É diante da relevância do movimento de internacionalização da agricultura, a partir do qual o setor passou a caracterizar-se como um dos mais importantes da economia brasileira, que se justifica o presente estudo. Assim, tem-se como objetivo geral elaborar uma reflexão sobre o processo de internacionalização da agricultura brasileira e da sua relação com a expansão da fronteira agrícola. Para tanto, utilizou-se do aporte teórico da História Regional, o qual, entre outros ferramentais, permite a confrontação de fontes e a comparação entre o regional e o global. Convém mencionar que o estudo realizado perpassou pela investigação de diversas temáticas, em início, pela abordagem da conjuntura da agricultura brasileira no pósguerra e a interiorização do Brasil, em sequência, pelo estudo da transição de conjunturas, seguido pela investigação da ocidentalização da dieta alimentar, bem como pela pesquisa da expansão da fronteira agrícola e, por fim, pela relação das partes com o todo. Ressalta-se que os enfoques apresentados foram considerados como condicionantes, ainda que não diretos, para a exploração do objetivo geral deste trabalho. Dentro desse contexto, procurou-se desenvolver a discussão em torno do diálogo de fontes históricas previamente definidas, com destaque para a Revista de Política Agrícola (RPA), periódico que emergiu no período de transição de conjunturas no começo da década de 1990. O periódico RPA discute temas relacionados à política e à agricultura, sendo a sua publicação de responsabilidade do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Na elaboração e na avaliação do conteúdo da RPA, o Mapa conta com a colaboração de um corpo técnico atuante nas principais agências de pesquisa e companhias relacionadas à agricultura no país, como EMBRAPA, CONAB etc. É importante salientar que algumas Cartas de Política Agrícola foram assinadas pelos próprios ministros de Estado em exercício. As fontes históricas, de acordo com a metodologia, foram trabalhadas como não excludentes ou antinômicas, mas como complementares, optando-se pela soja como cultura de referência para este trabalho. A AGRICULTURA BRASILEIRA NO PÓS-GUERRA E A TRANSIÇÃO DE CONJUNTURA ECONÔMICA NA AGRICULTURA ENTRE 1990 E 1994 Foi no período do pós-guerra até a estruturação da nova ordem internacional (política, econômica e comercial), no final da década de 1980, que se presenciou o desenrolar de vários fatores que precisam ser [ 444 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS mencionados para a reconstrução do processo de internacionalização da agricultura brasileira. 2 O primeiro fator relaciona-se à instauração de políticas que favoreceriam a internacionalização da agricultura brasileira, a qual ocorreu quando a inflação começou a fugir de controle e quando a capacidade de importação atingiu níveis críticos (após a empolgação desenvolvimentista do período 1955/60). A rigidez estrutural da oferta agrícola foi apontada como a principal causa da elevação dos preços e, ainda, a agricultura começou a surgir como um grande potencial para alavancar e diversificar as exportações brasileiras. Nessa senda, a construção da oferta agrícola passou por um ambicioso programa de modernização. Ele teve início em 1965, com a Lei 4.829, de 5/11/65, que criou o Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), e com o Decreto-Lei 57.391, de 7/12/65, que reformulou a Política de Garantia de Preços Mínimos, e continuou nos anos posteriores com a ampliação dos estímulos à pesquisa agropecuária, por meio da criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), com o incentivo à extensão rural, por meio da criação da Empresa Brasileira de Extensão Rural (EMBRATER) no início da década de setenta, e com a implementação de vários programas independentes, como o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER), em cooperação com o governo do Japão, e de programas regionais como o POLOCENTRO. Entre os pontos destacados acima, deve-se discutir a importância da criação da EMBRAPA, a qual desenvolveu os pacotes tecnológicos para ocupação do bioma do cerrado, região onde a fronteira agrícola consolidou a sua expansão. Com a manutenção dos recursos pelo governo federal, a EMBRAPA logo se tornou um dos mais importantes sistemas de pesquisas dos países em desenvolvimento. A empresa pública apresentava elevados investimentos no treinamento de seus pesquisadores, por meio de graduação no exterior, garantindo-lhes todo o apoio operacional necessário. Como resultado dessa política, Schuh (1997, p. 18) relata que o sistema começou a gerar um fluxo contínuo de novas tecnologias para produção e, como consequência, observou-se uma elevação na produtividade que, como destacou o autor, foi muito importante durante a crise dos anos 1980. Ainda, durante esse período, o governo investiu no desenvolvimento de programas de graduação em Ciências Agrárias. O objetivo estava centrado na capacitação de novos pesquisadores para o crescente mercado agrícola. Contudo, é importante relatar que, com o agravamento da crise fiscal brasileira, na década de 1980, os responsáveis pela política reduziram o apoio aos programas de graduação e à EMBRAPA. Como consequência, ambos os sistemas passaram por um sério declínio, provocando a saída de técnicos especializados do Brasil, que foram em busca de empregos, tanto em organismos internacionais como na iniciativa privada. O segundo fator envolve a política brasileira de crédito agrícola, que, também, constituiu-se como um dos elementos determinantes para a expansão da fronteira agrícola. Tradicionalmente, a resposta dos encarregados da política para as crises na agricultura era a de fornecer crédito subsidiado para o setor. Barros (1991) afirma que, desse modo, o setor agrícola tratou de se beneficiar dessa política ao longo dos anos, aumentando a utilização do crédito subsidiado na década de 1970 e levando ao extremo essa política durante a crise dos anos 1980. Os relatos demonstram que as taxas de juros reais para o crédito agrícola chegaram a se situar entre 40% e 50% negativos. O volume de crédito agrícola era tão elevado que contribuiu para a eventual perda de controle da política monetária por parte do governo. Assim, convém informar, conforme dados do Banco Central do Brasil e do Ministério da Agricultura, Abastecimento e Pecuária, que o período de 1975 e 1982 apresentou a maior sequência de duração (um total de oito anos) de disponibilização de crédito agrícola pelo país. Nessa época, o volume anual disponibilizado de crédito agrícola encontrava-se acima de 80 bilhões de reais (ano base 2010). Segundo Schuh (1997, p. 19), esse crédito subsidiado compensou alguns dos recursos que foram subtraídos do setor pelas políticas comercial e cambial. Entretanto, a distribuição dos benefícios delas era bem diferente da política de distribuição dos impostos. Os relatos demonstram que esse crédito subsidiado aumentou o valor da terra. Ainda, os grandes proprietários consagraram-se como os agraciados pela elevação Nesse sentido, é possível observar os relatos contidos na Revista de Política Agrícola. Também, o artigo intitulado "Agricultura no Brasil: Política, Modernização e Desenvolvimento Econômico", do autor G. Edward Schuh, na página 18, retrata os significativos investimentos em pesquisa agrícola ocorridos no Brasil já no início da década de 70. 2 [ 445 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS dos volumes de crédito agrícola – em contrapartida dos pequenos proprietários. Além de exacerbar a distribuição muito distorcida da renda do setor, essa política também deu condições para que os grandes agricultores comprassem as terras de produtores menores. Dessa forma, esse movimento culminou na migração dos pequenos produtores para o mercado urbano de trabalho. Coelho (2001, p. 03) afirma que, no Brasil, o crédito rural oficial compõe a espinha dorsal do sistema de financiamento da agricultura. Já, os instrumentos de suporte à comercialização e à transferência de risco dependem pesadamente do apoio do Estado. Nesse sentido, pode-se afirmar que o volume de crédito agrícola, com destaque para os elevados volumes da década de 1970, foi o principal mecanismo de incentivo da abertura de novas áreas para cultivo e para a elevação da produção. O terceiro fator relevante refere-se às consequências da crise econômica da década de 1980. Ela teve efeitos salutares sobre a política econômica, já que teve que ser mais justa com a agricultura. Nesse período, a dívida externa precisou ser respeitada e houve a necessidade de atração de capital externo para a economia. Assim, como resultado, a proteção teve que ser reduzida, a taxa cambial ajustada, os impostos sobre a exportação reduzidos e as exportações estimuladas. A maior parte dessas reformas políticas estimulava a elevação da produção agrícola e a expansão da fronteira (COELHO, 1992). Com base na fonte da Revista de Política Agrícola e nos relatos dos autores discutidos sobre a caracterização da conjuntura da agricultura brasileira no pós-guerra e na interiorização do Brasil, é possível evidenciar que o grande agente por trás de toda essa evolução ocorrida é o próprio governo brasileiro. As grandes contribuições dele estão na disponibilização de recursos para produção via crédito agrícola subsidiado e no fomento à pesquisa. Essa expansão via governo está dentro de uma conjuntura econômica para a agricultura diferente da que se observa a partir da internacionalização, na qual um dos grandes fatores característicos é a redução do papel do Estado na agricultura. Os anos de 1990 começaram com novas perspectivas que foram estruturadas pensando no melhor desempenho da agricultura no médio prazo. O período ficou marcado no Brasil pela abertura ao comércio. Ainda, foi possível evidenciar que essas mudanças exigiram um grande esforço da agricultura brasileira no sentido de absorver novas tecnologias e na busca de mecanismos de mercados nos quais o aspecto central deveria ser a liberdade comercial e de preços (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E REFORMA AGRÁRIA, 1992). Assim, o início da década de 1990 marcou de forma auspiciosa os campos legal e institucional da agricultura brasileira. Nesse período, começou a ser concebida e implantada uma nova política agrícola com o objetivo de praticar um novo padrão de crescimento no setor. Este enfoque inédito assumiu importância maior no cenário da agricultura brasileira no momento em que mecanismos oficiais de subsídios ao setor estavam exauridos. A ação do Estado voltou-se, então, para o estabelecimento de um entorno macroeconômico e legal propício às atividades agropecuárias e ao fornecimento de serviços cujas externalidades eram elevadas, como obras de infraestrutura física e a oferta tecnológica. Logo, esse padrão baseava-se, fundamentalmente, em mais estímulos de mercado e em menos ações diretas de governo. Logo, a política agrícola zelava para que o setor não fosse tratado discriminatoriamente pela política macroeconômica, defendendo os princípios de mercado e apoiando o setor em negociações e na abertura de mercados externos (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E REFORMA AGRÁRIA, 1992). A expectativa no começo dos anos 1990 era de que a modernização da comercialização agrícola, em conjunto com as necessárias reformas estruturais, garantiria à agricultura brasileira uma transição com o mínimo de trauma de uma economia fechada para uma maior inserção no mercado mundial. É possível observar também que a volta do Brasil ao sistema financeiro internacional viabilizou novas fontes de investimentos produtivos para a agricultura e agroindústria. A partir de então, os objetivos da política governamental estariam direcionados para a consolidação do crescimento da agricultura, aumento da produtividade e maior liberdade de mercado (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E REFORMA AGRÁRIA, 1992). O ano de 1991 pode ser definido como o marco inicial da nova conjuntura econômica para o setor. Esse período foi delimitado com base nas sanções do Presidente Fernando Collor às denominadas Leis Agrícolas. Essas leis estabeleceram as diretrizes básicas para a ação de Governo no setor. Os desafios [ 446 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS enfrentados concentravam-se na estabilização da economia brasileira. O objetivo, assim, era criar um ambiente que permitiria o planejamento das atividades de médio e de longo prazo que favoreceriam o desenvolvimento do setor (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E REFORMA AGRÁRIA, 1992). Nesse contexto, ressalta-se que o discurso do período relacionava-se à mudança no papel do Estado no setor. Este deixaria de exercer uma função de protagonista no setor agrícola para desempenhar um papel de regulador, sendo responsável pela condução das políticas sociais. É sob essa perspectiva que se passa a buscar a abertura comercial e o acesso a novos mercados para a agricultura brasileira. Diante do exposto, estava formatada e normatizada a nova conjuntura econômica que desenvolveria o potencial da agricultura brasileira e a expansão de suas fronteiras agrícolas consolidadas dentro do processo de internacionalização. A INTERNACIONALIZAÇÃO DA AGRICULTURA BRASILEIRA: O IMPACTO DA NOVA CONJUNTURA NAS FRONTEIRAS AGRÍCOLAS Conforme os artigos de política agrícola, até esse período, as várias tentativas para integrar a economia brasileira no comércio mundial ou mesmo em blocos regionais tinham falhado em virtude da pressão direta dos beneficiários do protecionismo aliados a grupos nacionalistas. Além disso, até então, ignorava-se o princípio econômico elementar de que para aumentar as exportações é necessário também aumentar as importações e que o importante para o Brasil era o incremento do comércio exterior e não apenas um de seus componentes. O viés anti-importador do modelo em prática gerou a menor relação exportação/PIB do país entre as economias mais importantes do mundo à época. O Brasil foi o único país cuja posição no ranking dos exportadores não refletia a posição do ranking das maiores economias. Assim, as discussões dos artigos de política agrícola voltaram-se, novamente, para o crédito rural, sendo que o modelo implantado no Brasil, a partir de 1965, apresentou como uma de suas principais características a convivência de situações de exagerado paternalismo e de exacerbado rigor. Com relação ao exagerado paternalismo, podem ser citadas as regras e as condições altamente favoráveis em termos de juros e de volume de recursos colocados à disposição dos produtores no decorrer das décadas de setenta e de oitenta e, ainda, alguns perdões de dívidas aprovados na esteira de alguns planos de estabilização postos em prática na segunda metade dos anos 1980. É importante destacar que o crédito rural patrocinado pelo Estado permanecia sendo mundialmente um forte instrumento de estímulo e de apoio à atividade agrícola como fonte de capital e como um fator de equilíbrio na definição dos custos do financiamento. Todavia, existiram períodos nos quais a produção agrícola elevou-se de maneira considerável, sendo neles o crédito agrícola público restrito. Assim, é importante ressaltar Maia e Lima (2001, p. 836-838), que afirmam que a ocorrência de safras recordes em 1987, 1988 e 1989 no Brasil – período no qual o crédito rural encontrava-se em patamares reduzidos – indicou que a agricultura brasileira estava relativamente imune à crise econômica da década de 1980. Entre 1987 e 1990, pode-se observar um pico nos preços internacionais da soja. Logo, coloca-se em evidência a importância do preço da soja em detrimento de um ambiente econômico instável e da baixa oferta de crédito público para o setor. Houve um período de recuo nos preços após o pico de preços ocorridos entre 1987 e 1990. O declínio de preços atinge as safras de 1990 até 1993. Logo, o declínio de preços internacionais da soja apresenta-se como um fator de relevância a ser considerado para a explicação do declínio das safras seguintes. Após o recorde de 71,48 milhões de toneladas colhidas em 88/89, deu-se uma brusca interrupção no crescimento, o que coincidiu com a redução dos preços internacionais da soja. A safra de 89/90 apresentou uma redução de 18,47% na produção total de grãos brasileira, com uma produção de 58,28 milhões de toneladas. A safra de 90/91 apresentou nova redução, de 0,65%, com uma produção de 57,89 milhões de toneladas. Ainda, houve uma forte expansão da área cultivada no centro-oeste no período em que os preços da soja iniciaram sua trajetória de alta. Logo, pode-se afirmar que as discussões da Revista de Política Agrícola, ou seja, os temas relacionados, observados e pensados como fundamentais para a expansão da agricultura brasileira, não foram os temas determinantes para o processo de internacionalização da agricultura brasileira. Fundamentase essa visão na falta de trabalhos sobre a relação dos preços agrícolas com a remuneração dos produtores, [ 447 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS seus investimentos, a expansão de áreas e a elevação da produção. Não se pode reduzir a importância das discussões realizadas pela Revista de Política Agrícola, porém, deve-se refletir sobre a hierarquia dos fatores e das relações determinantes para a internacionalização da agricultura brasileira. As evidências caminham no sentido de afirmar que foi no suporte oferecido pelos preços dos produtos agrícolas e, consequentemente, nos retornos atraentes aos produtores, que o posicionamento da atividade agrícola e as decisões positivas sobre os altos investimentos necessários para os plantios das safras estavam embasados. Assim, é possível verificar que, internamente, o Brasil apresentava um conjunto de fatores condicionantes importantes para a expansão da produção agrícola e do agronegócio, contudo esses fatores não se apresentavam como suficientes para a internacionalização. Logo, embora não se tenha encontrado evidências sobre um real planejamento visando alcançar um objetivo de internacionalização, a transição de conjunturas moldou o setor agrícola para a internacionalização. Convém também ressaltar que há relação da abertura anual de áreas para cultivo no Centro-Oeste brasileiro com a venda de máquinas agrícolas a partir da elevação internacional dos preços da soja em 1996. Foi a forte abertura de áreas que acabou por consolidar o movimento de ocupação do território nacional. A aspiração de ocupação territorial no Brasil tem uma história longa cuja maior expressão ocorreu durante o regime militar. Nesse sentido, embora o processo de ocupação apresente muitos símbolos como a construção de Brasília, a construção da estrada Transamazônica e a política de crescimento populacional, a abertura do cerrado para a produção de soja é outra fase desse movimento. Uma variedade de políticas governamentais brasileiras e de programas específicos esforçaram-se em fomentar a produção de soja nos cerrados, o que consolidou a soja como o grande motor do crescimento demográfico e econômico dos cerrados. Ainda, é possível afirmar que o processo de internacionalização da agricultura apresentou como fator determinante para sua consolidação a importação de soja pela China. Entende-se que esse movimento acelerou os preços internacionais da soja, o que provocou aumento na abertura de áreas agricultáveis e na demanda de tecnologia e de bens de capital através do consumo de máquinas agrícolas. Dessa maneira, de acordo com os fundamentos apresentados, consolidou-se a relação de que a agricultura responde a preços. O processo de internacionalização da agricultura deu-se por meio da melhora dos preços para o agricultor, que foram responsáveis por acelerar o processo de interiorização brasileiro, por auxiliar o movimento de ocupação do território brasileiro e por reanimar a indústria de bens de capital para o setor primário. CONCLUSÃO Em linhas gerais, constatou-se que os determinantes para a internacionalização da agricultura brasileira estão relacionados com os preços recebidos pelo produtor, que, no caso da cultura de soja, são derivados principalmente dos preços internacionais da soja e da taxa de câmbio brasileira. Os preços internacionais da cultura de soja são estabelecidos pela oferta e demanda do produto, enquanto a taxa de câmbio, a partir de 1999, estabelecida com flutuante, é formada a partir da oferta e da demanda de moeda estrangeira. Ainda, esses elementos iniciam seus movimentos de convergência que resultam na elevação do preço recebido pelo produtor brasileiro a partir de 1995/96 e alcançam seu momento de maior relação em janeiro de 1999, com a liberação da taxa de cambio brasileira. Nesse momento, a taxa de câmbio passou por uma considerável desvalorização, o que elevou os preços da soja para o produtor brasileiro. É a combinação desses dois fatores necessários que se apresentam como determinantes para a efetivação do processo de internacionalização da agricultura brasileira e para a expansão de sua fronteira agrícola. Todavia, embora apresente-se a elevação dos preços internacionais e a desvalorização do câmbio e, consequentemente, dos preços finais ao produtor como fatores determinantes para a internacionalização da agricultura brasileira, convém referir que o resultado afirmativo para o crescimento e a sustentação da produção de soja no Brasil foi, também, uma resposta aos preços reagentes devido às consideráveis mudanças da demanda mundial por produtos derivados da soja. Isso, por sua vez, não representa uma simplificação da cadeia de eventos. Ainda, nesse contexto, deve-se destacar a velocidade de resposta oferecida pelos produtores brasileiros frente ao aumento de preços e de renda. A resposta rápida da agricultura brasileira, em termos de [ 448 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS ampliação de área para cultivo e de elevação da produção e produtividade, relacionou-se aos incentivos, à estrutura e às políticas agrícolas. Esses incentivos caracterizaram-se como elementos necessários ao processo de internacionalização. Entretanto, eles não foram suficientes para iniciá-lo. Importa mencionar que essa constatação cristalizou-se com a observação de que a região com maior abertura de área de cultivo foi a região centro-oeste (cerrado). Sem a criação de um pacote tecnológico para a produção nos cerrados, a abertura de áreas na região não aconteceria com a mesma velocidade. Contudo, sem a demanda chinesa, responsável por elevar os preços internacionais, não haveria motivação para a ampliação da produção nos cerrados. Logo, a criação de pacotes tecnológicos são entendidos como elementos necessários para o processo de internacionalização e de expansão da fronteira agrícola, porém não suficientes sem a entrada chinesa no mercado internacional (o que ocorreu entre 1995/96) e seus impactos sobre a renda e os preços recebidos pelo produtor brasileiro. Diante do exposto, demonstrou-se o impacto da transição de conjunturas sobre o papel do Estado brasileiro na economia e na agricultura, o qual passou a sua função para o setor privado e o livre mercado. Dessa maneira, é possível concluir que a década de 1990 consolida um nova relação do Estado brasileiro com a agricultura e com as fronteiras produtivas. Aqui se encerra esta pesquisa, mas não se esgota o tema e nem a história do processo em questão. As permanências dos segmentos ligados à conjuntura anterior estão conflitando com o modelo atual. Embora o Estado tenha se afastado da agricultura, alguns segmentos ainda ficaram sob sua tutela, permanecendo dentro da conjuntura anterior à internacionalização da agricultura. REFERÊNCIAS ALVES, E. R. de A.; CONTINI, E. Progresso tecnológico e desenvolvimento da agricultura brasileira. In: YEGANIANTZ, L. Pesquisa agropecuária, questionamentos, consolidação e perspectivas. Brasília, DF: EMBRAPA-DPU, 1988. BACEN. Banco Central do Brasil. Disponível em: <http://www.bacen.gov.br>. Acesso em: 7 dez. 2013. BARROS, G.S.C.; ARAÚJO, P.F.C. Oferta e demanda de crédito rural no Brasil: algumas evidências empíricas sobre seus determinantes. Piracicaba. CEPEA. 1991 BARROS, G.S.C; FURTUOSO, M.C.; GUILHOT0, J .J.M. O agronegócio na economia brasileira. 1994 a 1999. Piracicaba: Esalq/Cepea. Brasilia, 2001. COELHO, Carlos Nayro. 70 anos de Política Agrícola (1931-2001). Edição Especial - Revista de Política Agrícola. Brasília, DF, 2001. COELHO, Carlos Nayro (Ed.). Agricultura e Políticas Macroeconômicas de Combate à Inflação. Revista de Política Agrícola, Brasília-DF, v. 1, n. 1, p.14-15, 15 jan. 1992. Trimestral. FAO, FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION (FAO). FAOSTAT, 2012. Disponível em: <http://www.fao.org&gt>. Acesso em: 15 dez. 2017. IBGE. São Paulo: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 02 dez. 2017. IPEA. São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. Disponível em: <http://www.ipeia.gov.br>. Acesso em: 21 dez. 2017. MAIA, Sinézio Fernandes; LIMA, Ricardo Chaves De. Abertura econômica Brasileira e Seu Impacto Sobre as Exportações Agrícolas: Abordagem de Mundell-Fleming Usando Auto-regressão Vetorial. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, n. 32, p.822-841, nov. 2001. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA E REFORMA AGRÁRIA, (Elísio Contini, Editor). Carta da agricultura. Revista de Política Agrícola, Brasília-df, ano 1, n. 1, abr. 1992. Bimestral. SCHUH, Edward. A Agricultura no Brasil: Política, Modernização e Desenvolvimento Econômico. Revista de Política Agrícola, Brasília-DF, v. 6, n. 2, p.15-21, 01 abr. 1997. Bimestral. [ 449 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Migração italiana e alemã: o caso da Comunidade de Boa Esperança- Crissiumal/ RS Tiara Cristiana Pimentel dos Santos1 Ronaldo Bernardino Colvero2 Resumo: A migração italiana e Alemã no Noroeste do atual estado do Rio Grande do Sul, se deu devido a vários fatores como, o esgotamento de terras nas antigas colônias, estas que se situavam mais ao norte do estado e o incentivo a ocupação das terras do Noroeste, com intuito do governo de fortificação as fronteiras, principalmente com a Argentina. As terras do Noroeste chamaram atenção pois eram terras que ainda não haviam sido cultivadas pelo homem europeu, os colonos as chamavam “terra nova ou roça nova” a atual cidade de Crissiumal, foi o último município em que as terras ainda eram devolutas a ser cultivado. O objetivo deste trabalho e escrever como que ocorreu a migração dos colonos para esse espaço e a posse das pequenas propriedades, através das terras devolutas. Para a o desenvolvimento desta pesquisa operacionalizamos ela a partir da heurística. nos propomos também a trabalhar na perspectiva da subjetividade testável. Todas estas questões sempre nos apropriando das bibliografias pertinentes ao tema proposto para ser pesquisado e a pesquisa nas fontes documentais. Portanto o trabalho desenvolve a história do minifúndio em Crissiumal na comunidade de Boa esperança, partindo dos desmembramentos dos municípios, de palmeiras, após Três Passos, até chegar no município de Crisssiumal. A imigração no atual estado do Rio Grande do Sul, iniciou no início do século XIX, com a chegada dos Alemães e mais tarde dos Italianos, projeto implementado pelo império brasileiro e continuado após o advento da república com intuito de melhorar a defesa das fronteiras brasileiras, ampliação da oferta de mão de obra no meio rural e nas cidades, na perspectiva de um possível aumento da economia brasileira. Em se tratando de imigração “A saída encontrada pelas elites para substituir a mão de obra escrava foi realizar uma intensa propaganda na Europa, em especial na Itália, na Alemanha e na Espanha, para atrair os camponeses pobres e excluídos pelo avanço do capitalismo industrial no final do século 19 na Europa.”(STEIDILE, 2011 p. 25) dessa forma o território continuou na mão dos grandes proprietários de terras, e a vinda dos imigrantes com a ilusão, de terem suas próprias terras, pois uma grande parcela dos imigrantes foram trabalhar nas plantações de café nos estados de São Paulo e Minas Gerais, outros permaneceram nas cidades. Muitos acumularam um pouco de dinheiro e mais tarde compraram suas terras, outros compraram lotes financiados pelo governo através das companhias de imigração, e assim sucessivamente foram iniciando sua trajetória de luta pela melhoria das condições de vida. Os colonos que se designaram para o Sul, que foi o caso dos Alemães e italianos no século XIX, não foram designados para suprir o trabalho escravo e sim para fazer a povoação das áreas, habitadas pelos povos originários, havendo um deslocamento dos povos que ali abitavam, para as áreas de reduções assim. Para a história do planalto rio-grandense e e, especialmente, para a de seu noroeste-fronteiriço, o conceito de colonização deve ser imediatamente revisto. A sua adoção resultou no privilegiamento de um método de representação positivista e artificial, sob ótica da intrusão estatal-imigrante.(GOLIN, 2002, p. 38) Académica de Ciências Humanas – Licenciatura da Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA – Campus São Borja/RS bolsista Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul FAPERGS. Membro do grupo de pesquisa/ Relações de Fronteira: História, Política e cultura na tríplice aliança Brasil, Argentina e Uruguai. tiaracpds@gmail.com 2 Prof. Dr. Ronaldo Bernardino Colvero. Diretor do campus de São Borja – UNIPAMPA; Mestre em História Regional - UPF - Passo Fundo – RS; Doutor em História das Sociedades Ibéricas e Americanas - PUC - Porto Alegre – RS; Prof. Adjunto da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA - Campus de São Borja – RS; Professor do Mestrado em Políticas Públicas da UNIPAMPA campus São Borja e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural - UFPEL . rbcolvero@gmail.com 1 [ 450 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Desta maneira a propaganda de terras devolutas por várias empresas, de imigração, fazia a ponte para que as informações chegassem até os colonos. Conforme a lei n° 601, de 18 de setembro de 1850 sobre terras devolutas, os artigos abaixo especifica que; Art. 12. O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias: 1º, para a colonisação dos indigenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de estradas, e quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º, para a construção naval. Art. 14. Fica o Governo autorizado a vender as terras devolutas em hasta publica, ou fóra della, como e quando julgar mais conveniente, fazendo previamente medir, dividir, demarcar e descrever a porção das mesmas terras que houver de ser exposta á venda, guardadas as regras seguintes: § 1º A medição e divisão serão feitas, quando o permittirem as circumstancias locaes, por linhas que corram de norte ao sul, conforme o verdadeiro meridiano, e por outras que as cortem em angulos rectos, de maneira que formem lotes ou quadrados de 500 braças por lado demarcados convenientemente. § 2º Assim esses lotes, como as sobras de terras, em que se não puder verificar a divisão acima indicada, serão vendidos separadamente sobre o preço minimo, fixado antecipadamente e pago á vista, de meio real, um real, real e meio, e dous réis, por braça quadrada, segundo for a qualidade e situação dos mesmos lotes e sobras. § 3º A venda fóra da hasta publica será feita pelo preço que se ajustar, nunca abaixo do minimo fixado, segundo a qualidade e situação dos respectivos lotes e sobras, ante o Tribunal do Thesouro Publico, com assistencia do Chefe da Repartição Geral das Terras, na Provincia do Rio de Janeiro, e ante as Thesourarias, com assistencia de um delegado do dito Chefe, e com approvação do respectivo Presidente, nas outras Provincias do Imperio. Art. 17. Os estrangeiros que comprarem terras, e nellas se estabelecerem, ou vierem á sua custa exercer qualquer industria no paiz, serão naturalisados querendo, depois de dous annos de residencia pela fórma por que o foram os da colonia de S, Leopoldo, e ficarão isentos do serviço militar, menos do da Guarda Nacional dentro do municipio. Muitos imigrantes vieram com grande esperança de melhorias nas condições de vida, entre elas ter a sua própria propriedade. No final do século XIX, desenvolveu-se um novo fluxo migratório através dos projetos de colonização voltados para colonos de origem europeia (alemã, italiana, polonesa, russa entre os principais), que se instalaram como pequenos proprietários nas áreas florestais. Muitas “colônias” foram fundadas em terras concedidas pelo. Estado, e outras resultaram de projetos de colonização de companhias privadas, especializadas em comercialização de terras. (ZARTH, 1999, p 110) Mais espaços foram ocupados, e uma nova economia, veio a surgir com o minifúndio, contrariando a economia do Rio Grande do Sul que abrangia o latifúndio e as grandes propriedades de terras, assim a articulação de uma politica, de ocupação destas terras devolutas em regiões de fronteira, onde o governo do estado, preocupado com a ocupação dessa região, iniciou uma política da ocupação destas terras para os migrantes e seus descendentes. “Os investimentos realizados nos países atrasados conciliavam interesses [ 451 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS políticos (manutenção de um certo equilíbrio geopolítico entre as potencias imperialistas, ainda que temporariamente) com vantagens econômicas”. (ARRUDA, 2012, p. 101). As vantagens que o governo tirou diante de tal conjuntura se deu através da manutenção de suas fronteiras no sul do Brasil e da arrecadação da venda dos lotes, da ampliação da agricultura, do povoamento de áreas de mata chamadas de terras virgens, do aumento de arrecadações de impostos, da diversificação cultural, pois o nosso objeto de estudo é o noroeste do estado do Rio Grande do Sul, espaço este ocupado anteriormente por uma estância jesuítica e por outros povos originários. As florestas de pinheiros, os campos grossos, as terras quentes do Alto Uruguai, conferem feição econômica peculiar a essa, dir-se-ia, metade Norte do Rio Grande, que só veio a tomar real importância no conjunto após a Independência do Brasil, com a entrada dos imigrantes alemães e italianos. Construíram estes, na maior parte dessas regiões um arcabouço econômico de grande solidez. A pequena propriedade de exploração intensiva, aliada à indústria, estão transformando a floresta e os vales intratáveis em risonhos centros de fartura e de paz. Enquanto não se construiu a estrada de ferro, as regiões centrais do País. (GUILHERMINO, 2002 p.17) A transformação destes locais se deu pelo processo de certa ilusão por parte dos migrantes, a ideia de riqueza que os mesmos tinham, após a ocupação através dos investimentos feitos com a agricultura intensiva e o plantio de diversas culturas. Fez com que esses espaços de fronteira se consolidassem de forma diferente e o que era ilusão no início iria se tornar realidade mais tarde, principalmente com a abertura de estradas que ligariam as colônias a outras cidades. Colonos na região de Crissiumal O Noroeste do estado, principalmente a região onde está situada a cidade de Crissiumal no Rio Grande do Sul começou a ser ocupada pelos migrantes no século XIX, sendo o último município a começar a receber migrantes, justamente por ser um território, de relevo mais ondulado chegando mais perto do rio Uruguai se tornando acidentado, sendo de mata fechada de floresta subtropical, território de povos originários do Rio Grande do Sul, espaço onde foi a estância missioneira de San Francisco Javier. “Os indígenas que causavam problema para a ocupação do território eram os Kaigangs, que viviam nas florestas ao norte e, com frequência atacavam os viajantes e tropeiros que circulava pela região” (ZARTH, 2002, p 80) por ser uma região de difícil acesso geograficamente, e o governo estando com uma política de ocupação e fortificação de fronteira através das terras devolutas, fator que impulsionou a imigração e a migração, pois começou a surgir empresas privadas de compra e venda de terras que faziam a venda dos lotes das colônias, o preço da terra também havia dobrado pois as empresas colonizadoras privadas compravam as terras do governo e faziam a revenda para os colonos como explica ZART: Após esse impulso, dado pelo governo através da criação das colônias oficiais um grande comércio de terras instalou-se na região e, finalmente, a definição de Leo Waibel pode ser observada: matas derrubadas, povoados brotando da terra quase da noite para o dia, preços da terra se elevando. (ZARTH, 2002, p. 81). Antes do aumento do preço da terra nesta região que é denominada de região noroeste mais especificadamente Alto Uruguai, as terras eram de valor bem acessível, comparado com as terras ao norte perto das antigas colônias velhas, de onde a maioria dos migrantes estavam. Desta maneira começou a se consolidar o processo de migração e de formação de várias famílias na região noroeste do estado, onde muitos já eram descendentes de imigrantes das famílias de outras colônias onde não havia mais terras a serem distribuídas para os filhos dos imigrantes, com isto a região noroeste era considerada pelos governantes como de matas virgens, pois não haviam sido ocupadas para realização de plantações. Os filhos de imigrantes italianos e alemães das cidades já consolidadas, como município de Estrela, Estancia Velha, São Leopoldo, Vale do Taquari, “Em 1824, fundou-se a colônia de São Leopoldo, nas [ 452 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS proximidades de Porto Alegre, no sopé da serra gaúcha. Eram distribuídos 77 hectares de terra, ferramentas, sementes, subsídios, etc.” (MAESTRI, 1986, p. 139) Anos mais tarde o que eram chamadas de antigas colônias de imigração, os lotes de terra já estavam esgotados, não permitindo que os próprios descendentes dos imigrantes, pudessem permanecer nestas regiões, considerando estes fatores, a busca pela compra de novos lotes de terras produtivas ocorria cada vez mais longe das colônias, para iniciar uma nova vida, em outros lugares mais produtivos, passa a se falar então da fronteira agrícola que se caracteriza com os seguintes fatores. 1º - o estágio "não-capitalista", no qual as atividades estão ligadas ao extrativismo e as trocas são limitadas. O mercado é precário na região tanto para a terra como para a produção e o trabalho; 2º - o estágio "pré-capitalista", que é "caracterizado por um aumento da migração para a região e a intensificação da atividade extrativa. A terra começa a ser vendida e comprada; 3º - o estágio "capitalista" em que a migração é intensificada e a região integra-se efetivamente na economia nacional; a agricultura passa a predominar sobre o extrativismo e dá origem a um crescente mercado de terras e mercadoria. Ao lado da pequena produção agrícola surge o mercado de trabalho livre.(ZARTH, 1997, p. 34) A intensificação do capitalismo, juntamente com a fronteira agrícola, contribuiu com o comercio de compra e venda de terras, adentrando em novos territórios, no Noroeste comprando novos lotes na encosta do Rio Uruguai. “No noroeste do estado ocorreu o processo de expansão deslocando populações de colonos das antigas colônias, somados aos novos imigrantes europeus, para os territórios indígenas.” (GERHARD, 2011, p. 11) A ocupação pelos colonos que estavam tomando posse de seus lotes em um espaço ocupado por kaigangs, resultou em vários conflitos até o assentamento definitivo nestas áreas. “A ocupação das terras indígenas pela colonização italiana e alemã, no século XIX, retirou dos Kaigans suas áreas de caça, coleta e perambulação e os colocou em modo de agricultura familiar” (VEIGA, 2010, p. 19). Assim notamos que os conflitos no século XIX foram constantes com os colonos. Uma solução que o governo encontrou foi de restringir seu acesso ao território ocupado pelos lotes fazendo com que os Kaigangs fossem aldeados, vê esse fator se repetir mais uma vez, onde os povos originários são restringidos de suas próprias terras dando espaço para os migrantes e ao capitalismo, que supostamente desenvolveria a economia do estado. Além dos conflitos entre os grupos originários e os migrantes que estavam ocupando estas terras que de direito eram destes povos, resultaram em grandes dificuldades e desafios para o migrante, desde abrir “picadas” em meio as matas que futuramente dariam espaço as estradas que se tem hoje, achar lugar adequado para construção das casas na sua maioria das vezes de pau a pique, as casas eram construídas próximos a vertentes, ou dos rios, para ter facilmente acesso a irrigação das plantações e para o seu próprio consumo. No começo para fazer as lavouras os trabalhos também eram manuais, feito através de roçadas, que consistia na derrubada de mata e após a queimada deste local, só assim estariam prontas para ser arada e para fazer o plantio. As terras, na região noroeste eram muito férteis, mas não eram virgens como era denominada a terra onde não havia feito o cultivo de alguma cultura, pois este espaço já havia sido habitado. Estes espaços não haviam ainda sido cultivados, eram totalmente ocupados por matas, não interferido pelo homem, a fauna local era muito rica, de onde os colonos tiraram muito proveito tanto da carne como da pele dos animais que também eram comercializadas. Nos primeiros anos, em que os colonos, adquiriram os lotes de terras na região noroeste como foi mencionado a cima, foram anos muito difíceis para estas famílias, desde a compra das terras, quanto o processo de adequação para a morada e plantio da mesma, como o desmatamento, a decisão onde fazer a [ 453 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS construção da casa, terras que tinham vertentes ou rios próximos tinham preço mais elevado que as terras onde não se encontravam estes recursos. Após o preparo da terra, começava a preparação para o plantio, das sementes, onde eram plantados, milho, arroz, feijão, nestas terras por serem terras que nunca foram cultivadas, colhia tudo o que era plantado “plantava feijão, feijão dava, dava, milho aquilo que plantava dava. Arroz se colhia de tudo” ( Ignês Lucietto dos Santos) 3 O relato menciona o plantio de algumas culturas logo na chegada dos migrantes nestas regiões, onde as terras eram bastante férteis, o relato nos leva a pensar que a semente que era plantada, conseguia ter uma boa colheita. Mas isso não diminuiu o sofrimento no processo de escolha e fixação das famílias nas terras. O processo de instalação de cada família nos novos locais se davam por meios árduos, onde primeiro os homens se instalavam nos locais, para abrir as matas e fazer os caminhos que eram chamados de picadas, adentrando nas matas, após as mulheres vinham para os acampamentos, muitas vezes as casas eram apenas cabanas com as camas para o descanso noturno. Um ranchinho tudo de serrado, assim de plancha, nois morava, eu não! Eu fui junto com o pai e com a mãe e não sei quem mais. La na morada era puro mato, só derrubado um eitinho e os outros ficaram ali na ressaca, (...) fazia comida fora, só a cama era dentro, acho que colocaram um pano por cima, um plástico. Duas forquilhas e ali no meio fazia comida, a gente comia, tinha fome fome. (Ignes Lucietto dos Santos) O relato demostra como que era o início da vida dos migrantes no novo território, o sofrimento, a escassez, de certos alimentos, por muitas famílias dificultava este início da nova vida. Após as roças estarem prontas depois das matas estarem devastadas, começava-se o plantio e o cultivo das sementes, onde o principal cereal a ser plantado era o milho, embora se plantava também o feijão, mandioca, trigo, entre outros produtos, animais também eram criados para o consumo, o gado vacum, o porco, galinha para a própria subsistência familiar nestes primeiros anos. Além dos cereais que eram vendidos ou trocados, para a renda familiar, um produto em si se destaca mais entre outro, que é a criação de suínos para a venda, muitos agricultores se detinham na criação de porcos, para a venda da carne ou da banha. Mas a maioria do lucro provinha da venda do leitão para o abate, para empresas, assim muitos agricultores pagaram suas terras devolutas, através da comercialização destes animais. A maioria dos produtos produzidos pelos colonos era para o próprio consumo, o seu excedente, era comercializado na cidade, ou trocado entre os colonos ou até mesmo com pessoas de fora das colônias. Como muitos agricultores não tinham meios de ir a cidade, então os comerciantes da cidade, iam ate os colonos trocando os produtos, os colonos trocavam seu excedente por produtos que não tinham como produzir. O que era arrecado a partir das vendas era destinado para alguma emergência como saúde ou guardavam para pagar os lotes. O desenvolvimento da economia desta região se deu de forma mais intensa a partir da abertura das estradas e também pela chegada da estrada de ferro até Santa Rosa. Afirma Dahne, Conceição&Cia., em 14 de janeiro de 1933, assinou contrato com o governo do estado do Rio Grande do Sul para a construção de estradas de ferro e de rodagem. A ela cabia a colonização racional e planejada de terras devolutas pertencentes ao Estado, situadas entre os rios Santa Rosa e Turvo eté o rio Uruguai( PLETCH, 1995, p.17)Com as rodovias o acesso a outros locais e as capitais o acesso a recursos para as plantações como insumos e outros maquinários os lucros com a plantação de soja e trigo ficaram também mais visíveis com a industrialização. Após o início da política do governo referente ao fundo de credito rural, e o incentivo da igreja no fomento das associações dos moradores e mais tarde na criação dos sindicatos, incentivaram a agricultura 3 Entrevista concedida por moradora da Localidade de Boa Esperança- Crissiumal/RS em 11/10/2017 [ 454 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS familiar, baseada no minifúndio, assegurando os colonos seus direitos e de serem reconhecidos como pequenos produtores rurais. Esses sindicatos surgiram e contribuíram para o desenvolvimento econômico, social e cultural. Atuando neste sentido, a igreja ( tanto a católica quanto a evangélica – luterana, inclusive trabalhando juntas eventualmente ), dirigiu esforços na tentativa de organizar as comunidades coloniais de imigrantes, tanto do ponto de vista ético e religioso quanto do ponto de vista da melhoria das condições materiais de vida. (PEREIRA, p. 103) Na região noroeste o fundo de credito rural chegou com as cooperativas, incentivando os minifúndios, com as plantações de trigo, e soja, os seus créditos basicamente eram voltados para esses fins. Em Crissiumal a primeira cooperativa de credito foi Fundada em 05 de maio de 1946, na vila de crissiumal, Distrito do município de Três Passos, a “Caixa Rural” como era conhecida durante três décadas, participou, decisivamente, do desenvolvimento econômico da região, financiando aquisição de terras, maquinário e acolhendo as as economias (poupança de seus associados). (PLETCH, 1995, p. 49) De certa forma o fundo de crédito rural contribuiu para o desenvolvimento, de muitos dos agricultores já instalados na região, muitos adquiriram maquinas financiadas possibilitando o aumento na produção e o pagamento mais rápido dos lotes. Foto de agricultor quando adquiriu trator financiado Foto: acervo pessoal Ignes Lucietto dos Santos A fotografia acima é de um migrante que veio para esta região, adquiriu seu lote de terra, e com a possibilidade da compra de equipamentos como o trator, permitiu o plantio de áreas maiores [ 455 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS proporcionando assim uma maior produção agrícola, sabe-se que o trator também servia como meio de deslocamento de suas propriedades até as comunidades mais próximas. Crissiumal se desmembrou do município de Três Passos, este foi o último município da fronteira noroeste a ser ocupado por migrantes colonizadores de origem alemã, italiana e polonesa. Ainda no século atual, Criciumal integrado Palmeiras das missões, era área inexplorada.A partir de 1930, porém, o esgotamento das terras e a elevada densidade populacional das denominadas “colônias velhas” determinou um verdadeiro êxodo para as zonas de terras ainda virgens e inicia-se a ocupação de Criciumal.O nome adveria de “criciúma” tipo de jungo abundante no local. Povoado, principalmente por elementos de origem germânica, a agricultura, a suinocultura e outras atividades tomam tal impulso que já em 1954, desmembrando-se de Três passos, Criciumal se constitui em município. (FELIZARDO, p.69) Economia No século XIX esta região foi ocupada por uma colônia militar, que se instalou com o objetivo principal de guarnecer a região de possíveis invasões dos argentinos, esta colônia também teria a responsabilidade de ir povoando gradualmente e com o recebimento dos lotes que o governo tinha proposto poderiam contribuir para a economia da região, mas essas colônias não bastaram para a colonização, pois como já foi mencionado o difícil acesso a estes locais, não havendo estrada de rodagem, dificultava a sobrevivência dos que tentavam a sua colonização, e também os militares não tinham o costume do plantio e de gerar a sua própria economia. Os colonos migrantes mais tarde começaram a ocupar uma área, praticamente não habitada, e não influenciada pela mão do homem europeu, isso já no século XX, estas eram terras ocupadas pelos povos originários de guaranis e kaigangs, povos não aceitaram a ocupação dos migrantes. Encontramos elementos de várias culturas, dentro da formação cultural do município, algumas mais visíveis e outras mais intrínsecas dentro das comunidades, as mais visíveis são as de origem europeia principalmente Alemã e Italiana, encontrando fragmentos destas culturas em vários objetos e costumes, embora muitos foram readaptados a partir da convivência ou influência dos povos originários que já haviam influenciado ainda quando dos processos de imigração no norte do estado e trazidos mais tarde pelos migrantes para a região da atual cidade de crissiumal. É na alimentação que podemos encontrar elementos tanto da cultura europeia como da cultura dos povos originários. Um exemplo simples é a polenta, onde sempre existiu na culinária Italiana, mas a mesma era feita de outros cereais, como a aveia e o trigo. A polenta feita de milho é originaria da América sendo o milho um alimento original da América, e que os povos que viviam nessa região principalmente os que eram considerados agricultores já faziam o plantio do cereal muito antes dos colonizadores Italianos. A comunidade de Boa Esperança interior de Crissiumal cujo nome surgiu “com a vinda de novos moradores e gente “boa” nasceu uma “esperança” de terem dias melhores. Surgiu a denominação BOA ESPERANÇA” (PLETCH, 1995, p.95) a maioria destes moradores vindos de várias colônias sendo sua predominância alemã dentro da comunidade, mas havendo moradores de origem Italiana também. Muitas das pessoas que moravam a margem direita do rio cujo nome é Lajeado Grande, que dividia os municípios de Três passos agora denominado município de Tiradentes do sul, passaram a viver a margem esquerda, que é a comunidade de Boa esperança. Desta maneira começou a se consolidar a comunidade. A economia segundo (PLETCH, 1995, p.96) era na época baseada na cultura de milho, soja, tabaco e venda do leite. Mas muitas famílias quitaram suas terras com a venda de suínos. Assim conseguindo se manter estável, e conquistando seu espaço dentro do município, os primeiros anos dos colonos nestes espaços foram sofridos, um exemplo é das estradas onde os próprios moradores as fizeram, trabalhando nas mesmas em forma de mutirão, a energia elétrica foi chegar na comunidade por volta de 1968. [ 456 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A igreja católica e luterana sempre se fizera presente na comunidade sendo a religião católica a com maior numero de praticantes. Na comunidade podia perceber a presença de três Igrejas, isto denota de como a fé influenciava os moradores na esperança de dias melhores como cita PLETCH, 1995. O clube ou sociedade como era chamado “A sociedade D. Pedro II Foi Fundada em 1950. O primeiro presidente foi Oscar Bartz. Cinco anos depois foi criada a sociedade de damas “aurora” cuja primeira presidente foi Elvira Grasel Senh.” (PLETCH, 1995, p. 96) é outro fator importante o lazer, a cultura e a diversão isto fazia com diminuísse um pouco o sofrimento do povo e geralmente quem promovia as festas era a própria igreja. A importância do espaço católico para estes grupos é imensurável, as discussões sobre as terras ou o modo de plantio dentro da comunidade ainda eram feitas dentro do espaço católico, trabalhando de modo social. Onde membros da associação, se reuniam para o debate de certos assuntos envolvendo a economia que a comunidade ia gerar para o seu próprio sustento. Igreja Puríssimo coração de Maria localizada na comunidade de Boa Esperança/ Crissiumal Fotos: acervo pessoal Ignes Lucietto dos Santos Dentro da igreja e depois no salão paroquial discutiam todas as questões que se fazia pertinente que tratassem do coletivo da comunidade, como a compra de maquinário agrícola para o uso de todos, dentro desta discussão pode-se mencionar a compra de uma trilhadeira e uma colheitadeira, onde todos dentro da comunidade fizeram parte da discussão e da decisão da compra conforme documentos acessados durante a pesquisa. Algumas décadas depois da vinda dos primeiros migrantes, algumas culturas eram plantadas a largas escalas, onde já não era mais para o próprio consumo, mas sim visando a venda dos produtos, principalmente para a quitação das terras. Tabela 1: ANO DE 1964 PRODUÇÃO CULTIVADA EM UMA AREA DE 11Ha CULTURA HECTARES TONELADAS Milho 3 Há 30ton Mandioca 1 Há 0,2ton Soja 3 Há 2,4ton Cana de açúcar 0,1 Há 2,7ton [ 457 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Batata Inglesa 0,2 0,3ton Fonte : Os autores (2018). Pela tabela acima podemos notar os produtos que eram produzidos como o milho, mandioca, soja, cana de açúcar e a batata inglesa, alguns eram produzidos apenas com o fim de venda como é o caso da soja, já o milho aproveitam para fazerem a farinha de milho e o excedente era comercializado ou alimentavam os animais, outros produtos eram mais para o consumo interno. Podemos afirmar que em pequenos espaços de terra conseguiam sobreviver e ainda pagar a terra, mostra claramente que os migrantes trabalharam e construirão seus espaços individuais e coletivos, fazendo com que a região desenvolvesse economicamente. Conclusão O trabalho buscou desenvolver um pouco da história da migração da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul a partir de um recorte de uma pesquisa que vem sendo realizada, sobre como o município que foi a última fronteira a ser colonizada por descendentes de europeus, e que foi se consolidando como o município de Crissiumal, hoje com a aproximadamente 15 mil habitantes. A maioria destes habitantes foi migrante das colônias velhas que ficavam mais a o Norte do Estado, devido à falta de terras e outros descendentes de imigrantes vindo de países da Europa fugidos da II Guerra Mundial como Alemanha e Itália e filhos de colonos imigrantes. Isto impulsionou a procura de novas terras, desta maneira o governo aproveitando-se disto, incentivou a ocupação da região noroeste com o objetivo de fortificar a área de fronteira. Além das colônias militares que já existiam ali anos antes. Os primeiros anos nas novas terras foram bastante sofridos, pois dispunham de poucos recursos, para a sobrevivência, onde a mata era abundante, e não havendo estradas para chegar as residências que estavam sendo recém construídas em meio a mata. A atual cidade de Crissiumal por volta de 1915, pertencia a Três passos, nesta época havia poucos habitantes nestes lugares, as matas eram densas, sendo alguns lugares habitados por povos originários e também caboclos, que eram responsáveis pela criação de algumas cabeças de gado, ou que chefiavam a retirada dos povos destas matas levando-os para os espaços chamados pelo governo de reserva indígena Para o incentivo do plantio e o minifúndio para os novos habitantes “os migrantes” o governo cria o crédito rural, possibilitando assim o empréstimo para compra de ferramentas, máquinas e sementes, isto contribui para o desenvolvimento econômico da região. A comunidade de Boa Esperança situada no interior também teve sua contribuição histórica para o município, tendo na sua maioria migrantes descendentes de alemães e italianos. As religiões católicas e luterana serviram de inspiração para os migrantes diante de tantas adversidades que foi imposta a eles neste processo de colonização desta comunidade, e também estas foram fontes de inspiração para as associações que desenvolveram uma serie de atividades dentre elas a possibilidade de créditos aos pequenos agricultores da comunidade. Referencias ARRUDA Pedro Fassoni, Capitalismo dependente e relações de poder no Brasil/; 1889 – 1930/ Pedro Fassoni Arruda. 1. Ed –São Paulo: Expressão popular, 2012. COSTA, Rogerio haesbaert da Costa; RS latifúndio e identidade regional; mercado aberto. 1998. DEL RÉ, Matheus Cavalheiro. A região à parte. Semina: cadernos dos pós graduados do programa de pósgraduação em história/ universidade de Passo Fundo, instituto de Filosofia e ciências humanas – (vol. 1 n3) 2001. Passo Fundo UPF, 2003. [ 458 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS DIEHL, Astor Antônio. Do método Histórico / Astor Antônio Diehl – 2.ed. Passo Fundo: UPF, 2001. GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio, Alberto Passos Guimarães; FULGOR, São Paulo 1964. GERHARD, Charles Cassiano. Processo Migratório do Vale do taquari para o Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Decada de 1930 e 1940. Lageado/rs Julho 2011. GUILHERMINO Cesar .História do Rio Grande do Sul: Período colonial . 3ed. Martins Livreiro – EditorPorto Alegre – RS 2002 GOLIN, Tau. A Fronteira: Governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002. 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Não podia ser diferente com a galeria subterrânea encontrada em Xaxim. Um túnel inicialmente baixo, úmido e barrento, que se bifurca, onde dá para ficar em pé... quem poderia ser o autor? Qual seria a sua idade? Porque foi escavado? Subitamente surge um elemento desconhecido em pleno perímetro urbano, ao lado do acesso à cidade. Como sempre nestes casos, a descoberta do túnel faz surgir inicialmente uma curiosidade das pessoas, algumas das quais entram, mas, com o passar dos anos, a estrutura fica lá, escondida e esquecida. O resgate das informações sobre a galeria subterrânea de Xaxim é apresentado aqui pela historiadora Valdirene Chitolina, em um precioso compêndio que reúne em um texto de fácil leitura tanto os depoimentos de quem encontrou a galeria como daqueles que a adentraram. Tão importante quanto à descoberta da galeria é a sua interpretação. Nos dias atuais, graças a um trabalho de pesquisa de mais de 10 anos sobre estas galerias, podemos avançar um pouco mais no entendimento sobre “quem cavou?”, “quando cavou?”, “para que cavou?” e outros dados. Muitos detalhes continuam ignorados, muitos talvez nunca venhamos a descobrir. Valdirene aborda estes aspectos, ilustra quando possível e nos faz entender o contexto desta galeria. Livros como este fazem a “ponte” indispensável e essencial entre os artigos científicos de termos técnicos e em língua estrangeira e o grande público, que busca a informação em linguagem coloquial. A leitura do livro nos remete a algo improvável – subitamente estamos sendo confrontados com um sítio paleontológico. É como se um dinossauro subitamente entrasse no nosso quintal. A Paleontologia deixa de ser a imagem de um osso encontrado em terras distantes para se tornar algo muito palpável, bem ali na frente dos nossos olhos. E somos lembrados, com absoluta clareza, que em Xaxim havia, até bem pouco tempo atrás, animais enormes de várias espécies diferentes como nunca antes tínhamos imaginado. Valdirene tem o mérito de nos trazer esta imagem de forma muito concreta e nos instiga a descobrir mais sobre estes animais e a galeria subterrânea de Xaxim. Porto Alegre, 22 de outubro de 2014. Prof. Heinrich Frank. Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Apresentam-se, a seguir, recortes de uma pesquisa que em 2015 foi publicada em formato de livro. PREFÁCIO Galerias subterrâneas sempre estão envoltas em mistérios. O desconhecido, a escuridão, a insegurança ao adentrar aquele espaço, as perguntas sobre sua origem, os questionamentos sobre seus propósitos, as dúvidas sobre seus usos e sobre os personagens que ali estiveram – galerias subterrâneas fazem voar a imaginação e a curiosidade. Não podia ser diferente com a galeria subterrânea encontrada em Xaxim. Um túnel inicialmente baixo, úmido e barrento, que se bifurca, onde dá para ficar em pé... quem poderia ser o autor? Qual seria a sua idade? Porque foi escavado? Subitamente surge um elemento desconhecido em pleno perímetro urbano, ao lado do acesso à cidade. Como sempre nestes casos, a descoberta do túnel faz surgir inicialmente uma curiosidade das pessoas, algumas das quais entram, mas, com o passar dos anos, a estrutura fica lá, escondida e esquecida. O resgate das informações sobre a galeria subterrânea de Xaxim é apresentado aqui pela historiadora Valdirene Chitolina, em um precioso compêndio que reúne em um texto de fácil leitura tanto os depoimentos de quem encontrou a galeria como daqueles que a adentraram. Graduada em História pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas (1992), mestre em História Regional pela Universidade de Passo Fundo (2008), doutoranda do PPGH da UPF. Vínculo profissional: Prefeitura de Xaxim. E-mail: <valdirenechitolina@yahoo.com.br>. 1 [ 460 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Tão importante quanto à descoberta da galeria é a sua interpretação. Nos dias atuais, graças a um trabalho de pesquisa de mais de 10 anos sobre estas galerias, podemos avançar um pouco mais no entendimento sobre “quem cavou?”, “quando cavou?”, “para que cavou?” e outros dados. Muitos detalhes continuam ignorados, muitos talvez nunca venhamos a descobrir. Valdirene aborda estes aspectos, ilustra quando possível e nos faz entender o contexto desta galeria. Livros como este fazem a “ponte” indispensável e essencial entre os artigos científicos de termos técnicos e em língua estrangeira e o grande público, que busca a informação em linguagem coloquial. A leitura do livro nos remete a algo improvável – subitamente estamos sendo confrontados com um sítio paleontológico. É como se um dinossauro subitamente entrasse no nosso quintal. A Paleontologia deixa de ser a imagem de um osso encontrado em terras distantes para se tornar algo muito palpável, bem ali na frente dos nossos olhos. E somos lembrados, com absoluta clareza, que em Xaxim havia, até bem pouco tempo atrás, animais enormes de várias espécies diferentes como nunca antes tínhamos imaginado. Valdirene tem o mérito de nos trazer esta imagem de forma muito concreta e nos instiga a descobrir mais sobre estes animais e a galeria subterrânea de Xaxim. Porto Alegre, 22 de outubro de 2014. Prof. Heinrich Frank Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul INTRODUÇÃO A galeria subterrânea de Xaxim, na contemporaneidade denominada de paleotoca, ao que tudo indica foi abrigo de animais pré-históricos. Ela é herança de um passado distante, é um patrimônio que apela por um olhar mais astuto, em virtude de ser um lugar dotado de expressivo valor para a Paleontologia do sul do Brasil. Portanto, estudá-la significa adentrar em um universo ainda desconhecido pela população da região. Para tanto, adotar-se-ão como meios técnicos as pesquisas bibliográfica, documental, de campo e a história oral (que neste artigo será suprimida). O estudo também se justifica pelo benefício cultural ao possibilitar o registro de novos conhecimentos. Essa galeria consiste em um bem vinculado à identidade da comunidade xaxinense, que abriga em seu território esses “túneis do tempo”. Outra razão é o ganho social que ela representa, porque beneficiará especialmente estudantes, gestores, produtores culturais, professores, entre outros profissionais que serão os disseminadores dos conhecimentos relacionados a esse sítio paleontológico. Assim, serão promovidas ações de conscientização, de valorização e de preservação. A primeira parte do livro apresenta a transcrição e interpretação de uma correspondência emitida em 1987, por Rossano Lopes Bastos, arqueólogo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A carta informa o resultado da pesquisa sobre a galeria subterrânea de Xaxim. Nela há comparações com outras galerias, localizadas em Urubici, e que foram estudas pelo padre João Alfredo Rohr2, além de registros sobre o diâmetro dos túneis e desenhos que permitem vislumbrar o seu formato. Adiante, expõem-se características morfológicas da galeria subterrânea de Xaxim, com base na Ficha de Registro de Sítio Arqueológico do (IPHAN), conforme o Decreto n. 2.807, de 21 de outubro de 1998. Ao longo de muitos anos, deduziu-se que a galeria subterrânea de Xaxim fosse uma formação natural ou trabalho de engenharia indígena. Porém, há um novo olhar, lançado pelos professores Heinrich Frank, Francisco Buchmann e Felipe Caron, do “Projeto Paleotocas”, que defendem a ideia de que a galeria seja uma paleotoca. Dessa forma, com o apoio desses profissionais, apresenta-se nesta pesquisa um enfoque singular sobre esses testemunhos do tempo: as paleotocas. Padre jesuíta, professor e arqueólogo. Sua obra, constituída pelo levantamento sistemático de sítios arqueológicos em Santa Catarina, é o mais extenso ocorrido na arqueologia catarinense, totalizando cerca de 400 sítios registrados. (REIS, Maria José; FOSSARI, Tereza Domitila. Arqueologia epreservaçãodopatrimôniocultural:a contribuição do Pe. João Alfredo Rohr. Cadernos do CEOM, Políticas públicas: memórias e experiências, Chapecó: Argos, ano 22, n. 30, 2009. 2 [ 461 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Correspondência Há, no centro da cidade de Xaxim, uma galeria subterrânea, que foi estudada por Rossano Lopes Bastos, arqueólogo da 11ª Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Na correspondência remetida em 1º de julho de 1987 por Bastos ao diretor do SPHAN 3, Luiz Antônio V. Custódio4, com a finalidade de informar a diretoria sobre o andamento das ações referentes à Arqueologia em Santa Catarina, pode-se ler o seguinte registro: Nos dias 28 e 29 de maio do corrente, fizemos uma viagem técnica ao município de Xaxim. A viagem deveu-se a solicitação por parte daquela Prefeitura. Tal solicitação deu-se por ocasião da identificação de uma caverna existente na encosta do morro, onde estavam sendo feitas obras de terraplanagem, solicitou-nos visita técnica, a fim de identificar a possibilidade de ser ou não um sítio arqueológico. Na nossa avaliação a caverna já foi destruída em pelo menos 1/3, impossibilitando uma análise mais apurada da tal evidência. Por outro lado, na abertura da boca mais recente foram encontradas restos de fogueira que acreditamos tratar-se de queima recente. Não foi encontrado na superfície nenhum indício (cerâmico, lítico, sepultamento, etc.) que caracterizasse uma ocupação arqueológica. Entretanto, algumas considerações teremos que levar em conta para melhor definir se esta caverna trata-se ou não de um sítio arqueológico. Em 1971, Padberg Drenkpol, antropólogo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, recebeu planta topográfica de ‘misteriosas galerias subterrâneas’ existentes na localidade de Rio dos Bugres, município de Urubici, Santa Catarina. Padberg chegou à conclusão de que aquelas galerias não eram préhistóricas, mas obra dos construtores da primeira estrada Florianópolis – Lages, os quais, seduzidos por sonhos de minas de ouro e prata, escavassem aquelas galerias. Em 1970, Rohr, fazendo prospecções de sítios arqueológicos no planalto Catarinense, teve notícias da existência de galerias semelhantes na localidade de João Paulo, município de Bom Retiro. Haviam sido descobertas, há anos passados, por caçadores, quando a cachorrada, em perseguição a uma manada [o autor quis dizer vara] de porcos do mato, continuou latindo debaixo do solo. Depois de uma hora de buscas infrutíferas, o capataz da fazenda conseguiu localizar, novamente, a boca da galeria em meio à mata fechada por denso taquaral. Situa-se em uma lomba e foi cavada em forma cilíndrica, na argila arenosa. A boca pequena é estreita por presença de terra, humo e folhas. É preciso entrar rastejando. Por dentro, porém, possui metro e meio de diâmetro. Nas paredes existem sinais de picareta e de uma cavadeira pectiforme, que deixa marcas como que de garras de animais. O chão estava juncado de blocos de argila, caídos do teto. O corredor principal possui uns quarenta metros de comprimento e apresenta dois braços laterais de quatro e cinco metros de comprimento. Na “Serviço do Patrimônio Histórico e Arqueológico Nacional.” Diretor da Secretaria do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (SPHAN/FNPM), órgão do Ministério da Cultura (atualmente IPHAN). 3 4 [ 462 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS opinião do dono da fazenda, as galerias seriam obras dos jesuítas. São conhecidas pelo povo como ‘Toca dos Padres’. Rohr ao inspecionar aquelas galerias, completamente escuras, à luz precária de uma vela, teve a intuição nítida de estar em presença de um novo tipo, ainda inédito, de sítio arqueológico, construído por populações préhistóricas. Talvez abrigo e esconderijo contra ataques repentinos de inimigos, que, subtraindo-os à vista e ao alcance dos perseguidores, abrigaria centenas de indivíduos. O homem branco abriria poços; mas não extensas galerias, quase a flor da terra que importam em imenso trabalho de remoção de terra. Sua suspeita tornou-se certeza quando no município vizinho de Urubici teve o ensejo de visitar toda uma série de outras galerias, escavadas da mesma forma cilíndrica, em rocha mole de arenito, geralmente com braços laterais e possuindo bocas em extremidades opostas; algumas até com salas maiores e teto apoiado em colunas, deixadas em pé, para este fim. Todas apresentam os mesmos sinais de picareta e de cavadeira pectiforme, deixando marcas como que de garras de animais. Em alguma delas encontrou-se sinais de petróglifos5 e cacos de cerâmica indígena. Outras se acham em comunicação com casas subterrâneas, sugerindo-se a hipótese de serem da mesma cultura das casas subterrâneas. Entretanto, a presença das galerias subterrâneas também já foi assinalada nos planaltos rio-grandenses e paranaenses, confirmando dispersão geográfica idêntica às casas subterrâneas. (ANAIS M. A. – UFSC – 1994). Desta forma, a galeria do município de Xaxim possui características que estão sublinhadas na descrição acima. Por isso entendemos tratar-se de um sítio arqueológico e, como tal, protegido pela Lei 3. 924/61. 6 Por meio da correspondência transcrita, juntamente com as figuras apresentadas adiante, é possível interpretar que a galeria subterrânea, em 1987, à época da investigação, já estava destruída em pelo menos um terço. Nela não foram encontrados indícios cerâmicos, líticos ou de sepultamentos que caracterizassem ocupações arqueológicas. Bastos, baseado nas pesquisas realizadas pelo padre João Alfredo Rohr sobre outros sítios arqueológicos do planalto catarinense, especialmente aqueles localizados em João Paulo, município de Bom Retiro (SC), constatou que as características se assemelhavam às da galeria subterrânea existente nos altos da Avenida Plínio Arlindo de Nes, em Xaxim. De acordo com Rohr, nos resultados da pesquisa realizada na localidade de João Paulo, tais galerias se situam numa lomba7 e foram cavadas em forma cilíndrica na argila arenosa. Têm boca pequena e estreita por terra, é preciso entrar rastejando. Nas paredes existem sinais de picareta e de cavadeira pectiforme, 8 que deixam marcas como que de animais, com um corredor principal e dois braços laterais. Em 1970, quando Rohr investigou a primeira galeria subterrânea na localidade de João Paulo, as condições eram precárias, as investigações foram realizadas sob a luz de velas. Ou seja, o estudo não foi rigoroso. O pesquisador teve a intuição de estar num sítio arqueológico ainda inédito. 5 Petróglifos são representações gravadas pelo homem em pedra ou em rochas, existindo em todos os continentes, com exceção da Antártida. O termo deriva das palavras gregas petros, "pedra", e glyphein, "talhar". Os mais antigos petróglifos recuam ao Neolítico, há cerca de 12 a 10 000 anos atrás, sendo as representações gráficas que antecedem a "invenção" da escrita (PETRÓGLIFOS. In: Infopédia. [S.l.]: Porto, 2014. Disponível em: <http://www.infopedia.pt/$petroglifos>. Acesso em: 2 maio 2014.) 6 BASTOS, Rossano Lopes. [Carta] 1º jul. 1987, Florianópolis [para] CUSTÓDIO, Luiz Antônio, [...]. Para informar ao diretor do SPHAN das ações referentes à Arqueologia em Santa Catarina. 7 Crista arredondada de serra ou monte. 8 São traços mais ou menos verticais, como um pé-de-cabra com três patas. [ 463 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS As suspeitas de Rohr teriam sido confirmadas quando, em Urubici, a 190 km de Florianópolis, ele visitou uma série de outras cavernas com braços laterais que possuíam bocas em extremidades opostas, idênticas à galeria subterrânea de Xaxim, todas com os mesmos sinais de picareta e de cavadeira pectiforme, deixando marcas como que garras de animais. Em alguma delas – o que não é o caso da galeria xaxinense –, encontraram-se sinais de petróglifos9 e fragmentos de cerâmica indígena. Outras se achavam em comunicação com casas subterrâneas. A presença de tais galerias também foi assinalada nos planaltos riograndenses e paranaenses, confirmando dispersão geográfica idêntica à das casas subterrâneas. Sobre os dados apresentados, na correspondência, tem-se apenas uma suposição de que a galeria de Xaxim seja semelhante àquelas existentes em outras regiões de Santa Catarina e que foram descritas por Rohr. Além disso, como não foram encontrados vestígios arqueológicos de ocupação humana, há também a possibilidade de que ela seja somente uma formação natural. A galeria subterrânea localizada no centro da cidade de Xaxim também poderia identificar-se com os abrigos sob-rochas, ou então, conforme a opinião do arqueólogo Marco Aurélio Nadal De Masi, “deveria ser considerada a possibilidade de abrigos de defesa devido à caça aos índios (bugreiros)”. 10 Nadal de Masi, ao ser questionado, via e-mail, sobre a galeria localizada no centro de Xaxim, registra que “a forma de construção é claramente escavada, mas como ninguém menciona dados de cultura material em escavações que possam ser associados a culturas conhecidas arqueologicamente fica-se no terreno de hipóteses a serem confirmadas”.11 Além disso, “elas podem ter sido usadas como habitação, locais de cerimoniais, usadas como estocagem, como armadilhas [...]”.12 A seguir, a primeira figura contempla as descrições da galeria subterrânea estudada por Bastos; tal desenho foi enviado ao diretor Luiz Antônio Custódio, juntamente com a correspondência apresentada. A galeria se localiza no centro da cidade de Xaxim, à direita, entre o centro e o trevo que dá acesso à BR-282. Figura 1 – Reconstituição gráfica, planta da galeria subterrânea próxima à BR-282 em Xaxim Fonte: Escritório Técnico de Florianópolis SPHAN/FNPM, Of. n. 003/88 – 10ª DR. É uma representação grafada em pedra ou rocha, peculiar de povos pré-históricos. DE MASI, Marco Aurélio Nadal. (Org.). Xokleng 2008 a.C. as terras altas do Sul do Brasil: transcrições do Seminário de Arqueologia e etno-história. Tubarão: Unisul, 2006. p. 225. 11 DE MASI, Marco Aurélio Nadal. Re: Valdirene Chitolina [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <valdirenechitolina@yahoo.com.br>. Acesso em: 19 out. 2008. 12 DE MASI, Marco Aurélio Nadal (Org.). Xokleng 2008 a.C. as terras altas do Sul do Brasil... 2006. p. 225. 9 10 [ 464 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Medidas Comprimento Altura Largura Quadro 1 – Medidas da galeria subterrânea (Xaxim, 1987) Galeria D Galeria C Galeria E Distância da entrada aos pontos 10,15 m 09,90 m 11,00 m A ---------------------- 12,00 m 00,90 m 01,25 m 00,90 m B ---------------------- 19,50 m 01,10 m 01,60 m 01,15 m C ---------------------- 29,40 m D ---------------------- 29,65 m E ---------------------- 30,40 m ::::::: Elevações Na parte B, onde as galerias se encontram, o diâmetro é de 3m, e o perímetro é de 9,42m. Extensão total da galeria: 50,55m Fonte: elaboração da autora, com base na correspondência emitida pelo Escritório Técnico Florianópolis SPHAN/FNPM, Of. n. 003/88 – 10ª DR. Ficha de Registro de Sítio Arqueológico A galeria subterrânea de Xaxim está cadastrada na Ficha de Registro de Sítio Arqueológico do Instituto Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão vinculado ao Ministério da Cultura. A ficha indica as características morfológicas e culturais do sítio. A elaboração e o respectivo preenchimento da Ficha de Registro de Sítio Arqueológico foram realizados com base no Decreto nº 2.807, de 21 de outubro de 1998, o qual considera a necessidade de implantar padrões nacionais, no âmbito da identificação dos sítios arqueológicos visando à montagem do Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos, em conformidade com a Lei nº 3.924, de 26 de julho de 1961, conforme o quadro 2. 13 Quadro 2 – Ficha de Registro de Sítio Arqueológico, do IPHAN Detalhes do Sítio Arqueológico Município - UF Xaxim - SC Comprimento 0m Largura 0m Altura Máxima 0m Área 0 m2 Escala 1:50.000 Unidade Geomorfológica Planalto Compartimento Topográfico Topo Altitude 0 Distância 0 Rio Urussanga Bacia Uruguai Cf. IPHAN. Portaria IPHAN n. 241, de 19 de novembro <http://www.ipef.br/legislacao/bdlegislacao/arquivos/5057.rtf>. Acesso em: 13 abr. 2009. 13 [ 465 ] de 1998. Disponível em: Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Vegetação floresta ombrófila; Uso atual da terra plantio; Propriedade da terra Terra privada; Categoria Unicomponencial Pré-Colonial Tipo Galeria subterrânea Forma Não delimitada Contexto Deposição em profundidade Filiação Cultural Grau de integridade mais de 75% Relevância do sítio alta Atividades desenvolvidas no local Registro; Nome do Responsável Edna J. Morley Nome Instituição 11ª CR/ SPHAN/ SC Endereço Instituição Rua Conselheiro Mafra nº 141. Ed. da Antiga Alfândega, 2º andar - Centro. UF da Instituição SC CEP da Instituição 88010-100 Telefone/Fax da Instituição (048) 2230883 Responsável Preenchimento Rossano Lopes Bastos Data Preenchimento 29/09/1997 Localização Dados 11ª CR Fonte: IPHAN. Ficha de Registro de Sítio Arqueológico. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/montaDetalheSitioArqueologico.do?id=SC00980?>. Acesso em: 13 abr. 2009. Todos os campos apresentados na ficha estão em conformidade com a portaria do IPHAN nº 241, de 19 de novembro de 1998. Sobre a galeria subterrânea de Xaxim, considerada sítio arqueológico, nos campos comprimento, largura, altura máxima e área as medidas não foram indicadas, porém o quadro 1, apresentado anteriormente, demonstra alguns desses resultados. A galeria está localizada no topo de um monte. A altitude e a distância não foram delimitadas na ficha. No campo que indica o rio mais próximo, há um equívoco, porque ele se chama rio Xaxim e não Urussanga. A galeria xaxinense integra a bacia do Uruguai, e o tipo de vegetação peculiar é a ombrófila. Na ficha, não há registro sobre a filiação cultural do sítio. Não foi realizada escavação de superfície; nenhum artefato lítico, cerâmico ou de arte rupestre foi coletado. A galeria subterrânea de Xaxim não foi relacionada com nenhum outro sítio arqueológico. Porém, na área que compreende o atual município de Xaxim, existem diversos sítios arqueológicos que foram estudados, especialmente por Piazza (1987), e, num período mais tardio, por Maria Madalena Velho do Amaral (2001) – essa pesquisadora cita que eles [ 466 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS pertencem à tradição Taquara, especialmente à fase Xaxim. De acordo com o conhecimento atual, a área da galeria subterrânea de Xaxim ainda não foi reconhecida como patrimônio municipal, em virtude de não ter sido realizada nenhuma ação de defesa, de preservação ou de valorização do lugar. Porém, em âmbito federal, a galeria é considerada sítio arqueológico. A Ficha de Registro de Sítio Arqueológico não informa quais são as possibilidades de destruição, ou possíveis medidas de preservação da galeria. Todavia, de acordo com observações recentes, no local não há nenhuma indicação, por mais modesta que seja, de que a área no entorno da galeria subterrânea esteja sendo protegida. No campo “categoria”, o termo “Unicomponencial” indica que esse sítio não apresenta uma sequência de ocupações superpostas. Um sítio arqueológico pode ser classificado, quanto à sua ocupação, como précolonial, histórico ou de contato. Quanto ao contexto de deposição dos vestígios, a ficha indica que ocorre “em profundidade”. Ainda de acordo com a ficha, o tipo de exposição do sítio é uma galeria subterrânea, embora não tenha sido indicado o tipo de solo ou a espessura e a profundidade das camadas geológicas. Na ficha, a forma da galeria não é indicada. Há diversas nomenclaturas para a forma de um sítio arqueológico: anular, circular, elipsoidal, irregular, linear, não delimitada, retangular, triangular, entre outras. Porém, nas imagens fotográficas registradas adiante nota-se que o formato é cilíndrico. No campo que indica as atividades desenvolvidas no local do sítio, está marcado “Registro”, isso significa que foi realizada vistoria de campo. No item “Filiação Cultural”, no campo que se refere à relevância do sítio, foi registrada como “alta”, termo que indica a “[...] proporção do seu estado de conservação, ao seu potencial científico – presença de material orgânico, esqueletos, profundidade temporal grande, arte rupestre, etc. – e à importância que lhe é atribuída pela comunidade”.14 Porém, por meio de conversas informais, percebeu-se que a população ignora a existência da galeria subterrânea. Os campos finais da ficha se referem à Instituição, e seu respectivo endereço, onde está registrado o inventário da galeria subterrânea de Xaxim, além dos dados de Rossano Lopes Bastos, responsável pelo preenchimento da Ficha de Registro de Sítio Arqueológico. Encerra-se esta parte do texto, em que se registraram detalhes sobre a galeria subterrânea de Xaxim com base na Ficha de Registro de Sítio Arqueológico do Instituto Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Adiante, imagens antigas e recentes irão ampliar, através de diversos perfis, a observação dos túneis subterrâneos e da localização externa da paleotoca. Figura 2 – Levantamento topográfico, no interior da paleotoca, Eduardo Lunardi – Xaxim, 11 de junho de 198. 14 Figura 3 – Interior da galeria – Xaxim, abril de 2012. Nota-se o túnel cilíndrico, o teto côncavo, as aranhas no teto, o chão com sedimentos IPHAN. Portaria IPHAN n. 241, de 19 de novembro de 1998... Acesso em: 23 abr. 2009. [ 467 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Fonte: acervo de Álvaro Burtet. Fonte: acervo de Valdirene Chitolina. Figura 4 – Entrada da galeria. Vê-se a vegetação encobrindo o espaço – Xaxim, abril de 2012 Figura 5 – Entrada da galeria, vista do exterior – Xaxim, abril de 2012 Fonte: acervo de Valdirene Chitolina. Fonte: acervo de Valdirene Chitolina. Figura 6 – Entrada da galeria, vista do interior – Xaxim, setembro de 2014 Figura 7 – Vista do entorno da galeria – Xaxim, abril de 2012 Fonte: acervo de Valdirene Chitolina. Fonte: acervo de Valdirene Chitolina. As imagens evidenciaram o recorte espacial que abriga a galeria subterrânea de Xaxim. É um espaço urbano, com diferentes usos da terra. Nota-se a utilização de áreas residenciais, comerciais e a inexistência de mata nativa na superfície. De acordo com as imagens, citações e documentos exibidos ao longo do texto, listam-se as seguintes observações sobre a paleotoca xaxinense: [ 468 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • está localizada num topo, próxima da superfície; a entrada do túnel é bem visível; nota-se que o formato é cilíndrico; o teto é côncavo; há túneis que terminam abruptamente; a estrutura lembra uma cruz, de acordo com a figura 1. nos primeiros metros, é necessário andar agachado; adiante, em muitos trechos, é possível caminhar em pé; os primeiros metros da galeria se apresentam com pouquíssimas gotas d’água pingando do teto; entretanto, segundo as imagens apresentadas, há inundação; há uma delgada camada sedimentar cobrindo o piso original; não há feições de colapso de teto, pelo menos não nos primeiros metros; os túneis apresentam aclives e declives, subindo e descendo embaixo da terra, não são retos; os túneis se encontram e formam uma “sala”, que origina três caminhos diferentes; há marcas nas paredes, similares a “uma pazinha de jardim”; alguns túneis são becos sem saída; não foram encontrados fósseis no interior da galeria; a altura e a largura são, aparentemente, constantes; escavada em eluvião ou coluvião; a galeria se integra à bacia hidrográfica do Uruguai; na superfície da galeria, no passado, o tipo de vegetação peculiar era a ombrófila (sempre verde, vegetação arbusiva, típica da Mata Atlântica), porém atualmente há apenas capoeira; nessa região, o clima, no inverno, é gelado; ao que tudo indica foi escavada por animais já extintos, em terreno acidentado, com fonte d’água próxima (250m); é provável que a paleotoca da Avenida Plínio Arlindo de Nes tenha sido escavada por uma das espécies de preguiças gigantes que habitaram o continente sul-americano nos últimos milhões de anos; a paleotoca de Xaxim integra a área de dispersão geográfica por onde se espalham as paleotocas brasileiras, sul e sudeste do País – mais precisamente, nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; de acordo com os depoimentos apresentados, somente na década 1980 é que foram realizados estudos, orientados por Rossano Lopes Bastos – entretanto, as opiniões da população eram imprecisas por se tratar de um caso inédito. Sabe-se que o estudo das paleotocas faz parte de uma nova linha de pesquisa na Paleontologia brasileira; salvo engano, desencadeada nos últimos anos do segundo milênio. Esse novo olhar foi lançado por uma equipe de professores de São Paulo e do Rio Grande do Sul, inspirados por pesquisas realizadas na Argentina. Tais profissionais integram o Projeto Paleotocas. Um desses professores é Heinrich Frank que na próxima seção esclarecerá algumas dúvidas. Esclarecendo dúvidas [ 469 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Registra-se, na sequência, uma entrevista com o professor Heinrich Frank, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e membro do Projeto Paleotocas, com o objetivo de esclarecer dúvidas e analisar conteúdos relacionados às paleotocas, especialmente a de Xaxim. 15 Figura 8 – Professor Heinrich Frank Fonte: acervo de Heinrich Frank. Professor Frank, de acordo com as fotografias da galeria subterrânea de Xaxim, você acha que ela foi construída por um ou mais animais? Frank – Eu sou da opinião que uma paleotoca desse tamanho, ainda mais ramificada, foi escavada e habitada por uma manada de animais, não apenas por um animal. Mas é uma opinião, baseado em tocas de raposas e texugos no Hemisfério Norte, que também constroem abrigos subterrâneos complexos. Qual é a provável data de construção das paleotocas? Frank – Pois é, o limite inferior é a provável data de extinção da megafauna sul-americana – algo em torno de 10 mil anos atrás. Pode ser 8 mil, pode ser 15 mil, não se sabe. O limite superior é a alteração da rocha do local, que não ajuda muito, pois a rocha é muito mais antiga que a megafauna. Pessoalmente, acho que as tocas são bastante recentes, com menos de 500 mil anos de idade. Os tatus gigantes, prováveis construtores, ou as preguiças gigantes eram peculiares da região sul do Brasil? Ou melhor, do sul da América do Sul? Eu entendi que no Hemisfério Norte as tocas poderiam ter sido destruídas por antigas glaciações, porém já foram encontrados vestígios desses animais em outros continentes? Frank – Os tatus e as preguiças gigantes são exclusividade sul-americana até o estabelecimento do Istmo do Panamá16, 3 milhões de anos atrás. A partir daí, animais exclusivamente sul-americanos migraram para a América do Norte e animais exclusivamente norte-americanos migraram para a América do Sul. Chama-se isso de “Grande Intercâmbio Americano”. Procure na Wikipedia, em Biogeografia Evolutiva – ali tem uma seção muito boa sobre isso. Numa paleotoca havia entrada e saída, ou uma abertura prestava-se para a mesma função? Frank – Apesar de a gente encontrar abrigos subterrâneos complexos e grandes com apenas uma entrada, acredito que os abrigos tinham entradas, saídas, rotas de fuga, respiradouros e outras comunicações com a superfície. No planalto catarinense, mais especificamente em Xaxim, qual seria o provável escavador? Frank – Podem ser tatus e preguiças, depende do tamanho da paleotoca. Não há nenhuma preferência regional de tatus ou preguiças. As marcas que vemos nas fotografias não seriam de prováveis garras nas paredes? 15 FRANK, Heinrich. Entrevista concedida a Valdirene Chitolina. Porto Alegre, [11 set. 2012.]. 16É uma estreita porção de terra que liga a América do Norte e a América do Sul. [ 470 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Frank – Não consegui ver com clareza as marcas de garra nas fotografias, porque as fotos precisam ser de detalhe das paredes, com iluminação oblíqua à parede para que as sombras ressaltem as marcas. Por que há diferença de datas sobre o período de construção das paleotocas, conforme os diferentes autores? Frank – Porque as paleotocas sempre são mais antigas que 10 mil anos. Então há autores que acreditam que elas são muito antigas (vários milhões de anos) e outros autores, entre os quais me incluo que acreditam que elas são relativamente recentes (menos de 100 mil anos). Provavelmente nunca vamos saber ao certo. O que significam depósitos pleistocênicos? Frank – São acumulações de materiais geológicos (areias, lamas, etc.) formadas durante o Pleistoceno. Na escala de tempo geológico, o Pleistoceno, ou Pleistocênico é a época que está compreendida entre 1 milhão e 806 mil e 11 mil e 500 anos atrás, aproximadamente. Já procurei os conceitos, porém você poderia explicar de forma simples os termos Terciário e Quaternário... diferenciá-los e correlacioná-los com o surgimento das paleotocas? Frank – O tempo geológico é dividido em eras, períodos e épocas. Terciário e Quaternário trata-se de uma divisão da era Cenozóica. O Terciário foi substituído pelos períodos Neógeno e Paleógeno. Então, os últimos 65 milhões de anos são chamados de era Cenozóica. Desta, os 42 milhões de anos iniciais (mais velhos) são um período chamado de Paleógeno. De 23 milhões de anos atrás até hoje é outro período, chamado de Neógeno. As últimas duas épocas do Neógeno são o Pleistoceno (de 2 milhões de anos atrás até 10 mil anos atrás) e o Holoceno (de 10 mil anos atrás até hoje). Com base na citação referenciada anteriormente, sobre o provável escavador da paleotoca de Xaxim, é possível supor que foi feita por tatus? Além disso, posso registrar que ela poderia ter sido construída há aproximadamente 3 milhões de anos, conforme Quintana (1992)? Frank – Acho que não. Sou da opinião que animais que cavam tocas não cavam tocas mais largas que a largura máxima de seu corpo. E o maior tatu gigante existente tinha apenas 80cm de largura, no máximo. Se a paleotoca tem mais de 1m de largura, em minha opinião foi cavada por preguiças gigantes. Quanto à data, não dá para afirmar nada. Pessoalmente, acho que 3 milhões de anos é demais, a toca é mais jovem. Se a toca de Xaxim tem 30m de comprimento e 1,5m de largura, possui um volume de aproximadamente 100m 3. O sedimento no local tem uma densidade um pouco acima de 2g/cm3 – significa que cada centímetro cúbico do material pesa duas gramas. Como cada metro cúbico corresponde a um milhão de centímetros cúbicos, cada metro cúbico pesará 2 milhões de gramas, o que corresponde a dois mil quilos. O que significa que a escavação da paleotoca demoveu quase uma tonelada de material. É muito material, não creio que um animal sozinho cavou tudo isso. É mais provável que a paleotoca foi sendo cavada aos poucos, por grupos familiares (manadas) de preguiças gigantes. O que significa data próxima a 10ka? Frank – Dez kilo-anos correspondem a 10 mil anos. Como a Geologia e o clima da região de Xaxim foram propícios à escavação de paleotocas? Frank – Paleotocas foram escavadas em qualquer material que não fosse rocha ígnea ou metamórfica inalterada, desde que o relevo não fosse plano (uma planície costeira, por exemplo) ou extremamente acentuado (canyons, por exemplo). Então podem ser encontradas em quase qualquer clima e geologia. De acordo com o material que você me enviou, verifiquei que o material no qual a toca foi escavada é um material de alteração de rocha – olhei na lupa binocular (que é o que dá para fazer) e não vi nada de especial – um material argiloso friável com hidróxidos de ferro vermelhos – esse tipo de material é muito comum e não permite identificar detalhes. Pela geologia de Xaxim, é alteração de rocha vulcânica, talvez com alguma movimentação como escorregamento. Então dá para classificar como eluvião ou coluvião. O que significa o termo Icnofósseis Domichnia? Frank – Traços fósseis têm uma classificação toda sua. Domichnia são estruturas cavadas pelos animais para morar dentro. Vem de domus, do grego, significando ‘casa”. Movichnia, por exemplo, são estruturas criadas pelos animais ao se mover. [ 471 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Notou-se, por meio da entrevista com o professor Frank, que ele defende a ideia de que a paleotoca xaxinense foi escavada e habitada por uma manada de preguiças gigantes. Ele ainda cita que as tocas têm menos de 500 mil anos e mais de 10 mil anos, ou seja, construídas no Período Pleistoceno. Além disso, que a paleotoca de Xaxim é um desses fragmentos que deixaram suas marcas na crosta terrestre, e que servem como fonte de pesquisa para desvendar enigmas sobre a evolução do Planeta e dos seres vivos – neste caso, em relação à megafauna pleistocênica sul-americana. CONCLUSÃO Em vista dos argumentos apresentados na pesquisa, conclui-se que a galeria subterrânea denominada de paleotoca, existente no centro da cidade de Xaxim, na Avenida Plínio Arlindo de Nes, é dotada de um expressivo valor nos campos da Paleontologia, Biologia, Turismo e Espeleologia da região oeste de Santa Catarina. Sobre a origem da galeria subterrânea de Xaxim, percebeu-se que ao longo do tempo constituíram-se três ideias diferentes. Uma dessas ideias sugere que “supostamente” teria sido um trabalho de engenharia indígena; a outra, uma formação natural; e, finalmente, a mais recente e apoiada em evidências científicas, de que se trata de uma paleotoca. Mediante os estudos realizados em 1987 por Rossano Lopes Bastos, do IPHAN, constatou-se que a galeria subterrânea de Xaxim, situada em uma lomba, estava destruída em um terço e que não havia fragmentos cerâmicos, líticos ou de sepultamentos. Nas paredes existiam sinais de picareta e de cavadeira pectiforme. Havia um corredor principal e dois braços laterais. Tal galeria se assemelhava às outras existentes na localidade de João Paulo, município de Bom Retiro, e em Urubici (SC) – mas também estavam dispersas nos planaltos rio-grandenses e paranaenses. Referindo-se à galeria subterrânea de Xaxim, conforme Rossano Lopes Bastos documentou, com base no “mapinha” de Eduardo Lunardi, a largura dos túneis fica em torno de 1,10m a 1,60m. A altura entre 90cm e 1,25m. E a distância da entrada aos pontos: “A”, 12m; “B”, 19,50m; “C”, 29,40m; “D”, 29,65; e o túnel “E”, 30,40m. Na parte em que os túneis se encontram, o perímetro é de 9,42m. Considerada patrimônio da União, a galeria subterrânea de Xaxim está protegida pela Lei nº 3.924, de 26 de julho de 1961. Ela foi cadastrada na Ficha de Registro de Sítio Arqueológico, do Instituto Histórico e Artístico Nacional, órgão vinculado ao Ministério da Cultura. Entretanto, pelo fato de não se tratar de um sítio arqueológico, há outra legislação que rege esses locais, conforme este endereço eletrônico: <www.sbpbrasil.org>. Por outro lado, o caso das paleotocas é pouco visado pela legislação brasileira. Portanto, a conscientização e sensibilização da população sobre o valor científico do lugar, a fiscalização do Poder Público e, especialmente, estrutura de proteção são importantes para a garantia de conservação da galeria subterrânea, que sofre naturalmente um processo de destruição. Observou-se, também, que, em várias cidades do sul do Brasil galerias subterrâneas, idênticas à de Xaxim, são consideradas paleotocas. Elas são estudadas por uma nova linha da Paleontologia, por meio de atividades de campo e de laboratório, pelo grupo de professores que integram o “Projeto Paleotocas. Dado o exposto pelo Projeto Paleotocas, galerias subterrâneas semelhantes à de Xaxim são encontradas no Brasil nos planaltos paulista, paranaense, catarinense e rio-grandense. No exterior, na Argentina e no Chile. Porém, não são encontradas na América do Norte, na Europa ou na África. Na atualidade, na fauna sul-americana, não existem animais que cavem túneis com as dimensões das paleotocas existentes. Concluiu-se, com base na entrevista com o professor Frank, que a galeria xaxinense é uma paleotoca. Ou seja, um abrigo subterrâneo escavado e habitado por animais pré-históricos. Essas galerias eram locais de moradia permanente de paleovertebrados da megafauna pleistocênica sul-americana, extintos há, aproximadamente, 10 mil anos. Esses abrigos tinham entradas, saídas, rotas de fuga, respiradouros e outras comunicações com a superfície. [ 472 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS No caso da galeria xaxinense, seria uma manada de preguiças gigantes que teria escavado e habitado o local. Para Frank, seria esse o animal escavador pelo fato de a galeria medir mais de um metro de largura, e na natureza os animais não cavam túneis maiores que seu próprio tamanho. Viu-se, que entre os pesquisadores do Projeto Paleotocas há divergências sobre a idade dessas galerias; o consenso é de que devem ser inferiores a 500 mil anos. Há autores que acreditam que elas datam de milhões de anos; e outros, em que Frank se inclui, que acreditam que elas são relativamente recentes (menos de 100 mil anos). Porém, sempre mais antigas que 10 mil anos. Com o auxílio do professor Frank, identificou-se que a paleotoca de Xaxim foi escavada num material argiloso friável com hidróxidos de ferro vermelhos – esse tipo de material é muito comum e não permite maiores detalhes. Pela geologia de Xaxim, é alteração de rocha vulcânica, talvez com alguma movimentação como escorregamento. Então, dá para classificar como eluvião ou coluvião. Observou-se que a paleotoca xaxinense está localizada num topo, próxima da superfície, com a entrada do túnel bem visível, porém, nos primeiros metros é necessário andar agachado e, adiante é possível caminhar em pé. Há sedimentos cobrindo o piso original. Não se apresentam colapsos no teto. O formato é cilíndrico e a estrutura lembra uma cruz. Os túneis, com seus aclives e declives, não são retos; eles se encontram e formam uma “sala”. No interior não foram encontrados fósseis, o que impede a identificação exata do escavador. Notou-se que a paleotoca de Xaxim está preservada, porém, de acordo com o que é indicado pelo Projeto Paleotocas, é importante se preocupar, ao entrar, para que o teto não rache e desabe. Além disso, há que se tomar cuidado pelos riscos de desmoronamento e nunca entrar sozinho, pois pode ser mortal, em curto ou médio prazo, em virtude da poeira de fezes secas de morcegos, ou polens de fungos tóxicos que infectam os pulmões. Ainda, os membros do Projeto Paleotocas alertam para outros cuidados necessários ao entrar numa paleotoca: contar com socorro imediato, utilizar máscaras cirúrgicas e estar sempre acompanhado. Esses “túneis do tempo”, que seguem seu curso ao longo de milhares de anos, preservam um legado que entrelaça o passado e o presente, o homem e a natureza. Os humanos constroem suas moradias, assim como os animais, em busca de segurança, de abrigo; animais extintos cavaram as paleotocas, seu habitat. Todavia, eles desapareceram. O que é possível compreender com isso? Qual é o “fosso” que separa a construção das paleotocas e a contemporaneidade? Na busca de algumas respostas, muitas informações foram negligenciadas nesta singela pesquisa. Porém, percebeu-se que as paleotocas têm um “horizonte de verdades” 17 para diversas áreas do conhecimento. Desbravar essa história, que começou muito antes de nossas vidas, representa, metaforicamente, uma entre tantas “chaves” para se entender e respeitar o processo de evolução da vida na Terra. FONTES DE PESQUISA Referências BASTOS, Rossano Lopes. [Carta] 1º jul. 1987, Florianópolis [para] CUSTÓDIO, Luiz Antônio, [...]. Para informar ao diretor do SPHAN das ações referentes à Arqueologia em Santa Catarina. LEINZ, Viktor; AMARAL, Sérgio Estanislau do. Geologia Geral. São Paulo: Nacional, 1995. BRUSCA, Gary J. Invertebrados. Tradução sob a coordenação de SILVEIRA, Fábio Lang da. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007. In: ESTEPHAN, Violeta Maria. Ensino Fundamental. Geografia 6 ano. 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Parte-se do princípio de que a coação física por meio da violência não pode explicar de maneira eficaz a permanência e mobilização dos rebeldes, sem simplificar as ligações entre os agentes envolvidos e de sua organização com o campo de experiência da sociedade campesina. Ademais a duração do conflito revela a complexa organização dos camponeses para deter as investidas do Exército brasileiro e dos seguranças particulares que os perseguiram. Nesse sentido, a análise dos redutos torna-se importante, pois eles podem ser considerados estruturas político-administrativas capazes de definir rotinas, ordenar os espaços, tempos e corpos de uma forma particular. Rompendo antigos laços de solidariedade, consolidaram outros, neste último caso, vinculados a própria organização hierárquica adotada nestes locais. O artigo está dividido em três partes. Em um primeiro momento, foram problematizados os mecanismos de coerção grupal abordados por Elias (2000). Posteriormente, foram analisadas as relações de poder e a constituição dos partidos vacilante e guerreiro dentro dos redutos, visto que as tensões existentes entre esses grupos determinaram as ofensivas e recuos dos insurretos ao longo do conflito. Na última sessão, relacionados os mecanismos de coerção empregados pelas lideranças, de modo a legitimar suas decisões e àqueles apresentados na obra Os Estabelecidos e os outsiders. Tendo em vista que, esses mecanismos transcendiam as disputas pelo poder entre partidos distintos, estando embasados nas relações dialógicas dos redutos com o habitus caboclo. Palavras-chave: Guerra do Contestado. Mecanismos de Coerção. Redutos. 1. INTRODUÇÃO Este artigo busca problematizar os sistemas de coerção grupal a partir do binômio permissões/ proibições aplicadas aos sertanejos insurgentes nos redutos-mor.1 Cabe destacar que os redutos se caracterizaram por sua organização político-administrativa durante o conflito com as forças armadas. O controle sobre a população concentrada neste espaço ocorria não apenas pela violência, mas também por um complexo código de conduta que relacionava-se a vida anterior à Guerra do Contestado. A vida nos redutos era regrada pelo discurso messiânico milenarista do retorno de José Maria e do Exército Encantado de São Sebastião. Destaca-se a presença de jovens considerados oráculos no movimento, por possuírem a capacidade mediúnica de conversar com o monge. Os primeiros jovens eram parentes de Eusébio Ferreira dos Santos, o qual mantinha influência sobre eles. 2 Conforme o conflito aprofundava-se surgiram outras lideranças, não vinculados a figura de Eusébio. Machado (2001) identificou dois partidos dentro do movimento: o religioso e o rebelde ou guerreiro. As disputas entre estes dois grupos, alteraram a forma como os caboclos comportavam-se durante a Guerra, ora apenas defendendo os redutos das investidas do exército brasileiro, ora atacando e saqueando as cidades próximas. * Atua como professor de História no Instituto Federal Catarinense – campus Fraiburgo. É mestre em História, área de concentração História Regional pela Universidade de Passo Fundo/ RS (2013) e doutorando em História, área de concentração História, Região e Fronteiras, pela mesma instituição. Endereço eletrônico: vanderlei.juraski@ifc.edu.br 1 Cita-se: “Taquaruçu, dez. 1913 a jan. 1914; Caraguatá, fev. a abr. de 1914; Bom Sossego, mai. a jul. de 1914; Caçador Grande, jul. a nov. 1914; Santa Maria, dez. de 1914 a abr. 1915; São Miguel, mai. a jul. de 1915; São Pedro, jul. a dez. de 1915” (MACHADO, 2001, p. 257). 2 Eusébio era líder comunitário em São Sebastião dos Perdizes e foi ele quem organizou a migração de várias pessoas (vizinhos e conhecidos) para o 2º Taquaruçu a espera do retorno de José Maria. [ 476 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Considerando a fluidez dos episódios relacionados à Guerra, a mudança de partidos no poder, e os múltiplos interesses envolvidos, pensa-se que a coerção grupal foi garantida por uma série de permissões e restrições aos redutários, em que a violência foi uma das manifestações do código de ética presente nos redutos. 3 Nesse sentido, optou-se por analisar os sistemas de coerção grupal à luz da obra de Elias (2000). O sociólogo, em Os estabelecidos e os outsiders, trabalhou com a distinção entre grupos que não apresentavam diferenças de classe, raça ou crença, tendo um padrão de vida semelhante entre si. A única justificativa para a distinção entre eles era a ancestralidade da ocupação. Contudo, foi por meio da análise desta distinção que percebeu-se os mecanismos de coerção social, como a estigmatização a partir da fofoca elogiosa e/ou depreciativa. O artigo foi dividido em três partes. Na primeira seção foram abordados os elementos constituintes da trama analisada por Elias (2000), de modo a observar como estes conceitos foram utilizados em seu contexto original. A segunda seção tratou das relações de poder dentro dos redutos-mor (objeto deste estudo). A terceira parte buscou estabelecer uma aproximação teórica entre a obra de Elias (2000) e Machado (2001). 2. BREVE REVISÃO SOBRE OS ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS Em seu livro Os estabelecidos e os outsiders, o autor tem como palco a cidade inglesa de Winston Parva (nome fictício), “localizada nos arredores de uma grande cidade industrial”, entre os anos de 1959 e 1960. “Uma ferrovia separava-a de outras partes desse conjunto que proliferava” (ELIAS, 2000, p. 51). A cidade tinha cerca de 5000 habitantes, quase a totalidade pertencente a classe trabalhadora. Os moradores dispunham de “fábricas, escolas, igrejas, lojas e clubes” (idem). Winston Parva dividia-se em três bairros. A zona 1 era uma “área residencial de classe média”, enquanto as zonas 2, ou “aldeia”, e 3, “loteamento” eram “áreas operárias”. Elias retratou a tensão entre os bairros, notadamente, das zonas 2 e 3 da seguinte forma: Não havia diferenças de nacionalidade, ascendência étnica, “cor” ou “raça” entre os residentes das duas áreas, e eles tampouco diferiam quanto a seu tipo de ocupação, sua renda e seu nível educacional – em suma, quanto a sua classe social. As duas eram áreas de trabalhadores. A única diferença entre elas era a que já foi mencionada: um grupo compunha-se de antigos residentes, instalados na região havia duas ou três gerações, e o outro era formado por recém-chegados (Ibid., p. 21). Na cidade a estigmatização social era direcionada de um grupo a outro. Portanto, não pode ser considerado como “preconceito social”, passando a ser “preconceito intergrupal”. “No caso de Winston Parva, de uma povoação da classe trabalhadora, estabelecida desde longa data, em relação aos membros de uma nova povoação de trabalhadores em sua vizinhança” (Ibid., p. 20). O maior tempo de convivência entre os moradores da aldeia garantiram certos privilégios em relação aos moradores do loteamento. Conhecer as famílias tradicionais da localidade, bem como desfrutar de um passado em comum concediam aos residentes o status de insiders, enquanto os moradores do loteamento eram vistos como forasteiros, ou seja, outsiders. Percebe-se uma distinção entre o carisma do grupo (estabelecidos) e a desonra grupal (dos outros). O grupo dos antigos residentes, famílias cujos membros se conheciam havia mais de uma geração, estabelecera para si um estilo de vida comum e um conjunto de Quando o cerco das forças oficiais passou a ser mais incisivo, a organização dos redutos foi mantida por meio da ameaça e do medo, representado pela historiografia, na figura de Adeodato. 3 [ 477 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS normas. Eles observavam certos padrões e se orgulhavam disso. Por conseguinte, o afluxo de recém-chegados a seu bairro era sentido como uma ameaça a seu estilo de vida. […] Os recém-chegados eram desconhecidos não apenas dos antigos residentes, mas também entre eles, não tinham coesão, e, por isso, não conseguiam cerrar fileiras e revidar (Ibid., p. 25). Segundo Elias (2000), as diferenças de coesão são equivalentes ao poder adquirido e compartilhado pela comunidade. Quanto mais coeso o grupo, maior sua influência na cidade e seu poder de estigmatização. “Afixar o rótulo de ‘valor humano inferior’ a outro grupo é uma das armas usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade social” (Ibid., p. 24). No caso de Winston Parva, os moradores do loteamento eram vistos como arruaceiros, desregrados e promíscuos. Este estigma grupal aplicado a todos os indivíduos, pode ser comparado aquele atribuído aos “burakumins” que desempenhavam funções consideradas impuras no Japão. Eles eram executores de criminosos, fabricantes de couro, açougueiros, limpadores de ruas ou coveiros. Segundo o preceito xintoísta4 da pureza, um ser humano pode tornar-se impuro ao realizar atividades consideradas sujas. Para Elias, a distinção física também era importante para a estigmatização. Encontrar traços, marcas, sinais de distinção entre os burakumins e o restante da população, “um sinal de nascença azulado, abaixo das axilas” (Ibid., p. 35), justificava o estigma grupal a partir das “forças que criaram o mundo”, naturalizando, por consequência, o preconceito intergrupal. A atribuição de falhas – e também de qualidades positivas – a indivíduos que pessoalmente nada fizeram para merecê-las, pelo simples fato de pertencerem a um grupo julgado digno delas, é um fenômeno universal. […] Em todos esses casos, aqueles que são objeto do ataque não conseguem revidar porque, apesar de pessoalmente inocentes das acusações ou censuras, não conseguem livrar-se, nem sequer em pensamento, da identificação com o grupo estigmatizado. Assim, as calúnias que acionam os sentimentos de vergonha ou culpa do próprio grupo socialmente inferior, diante de símbolos de inferioridade e sinais de caráter imprestável que lhes é atribuído, bem como a paralisia da capacidade de revide que costuma acompanhá-lo, fazem parte do aparato social com que os grupos socialmente dominantes e superiores mantêm sua dominação e superioridade em relação aos socialmente inferiores. Há sempre uma suposição de que cada membro do grupo inferior está marcado pela mesma mácula. Eles não conseguem escapar individualmente da estigmatização grupal, assim como não conseguem escapar individualmente do status inferior de seu grupo (Ibid., p. 132). Cabe salientar que a relação estabelecidos e outsiders, no caso de Winston Parva tem um vínculo duplo, pois resulta em estigmatização. Criticar a zona 3 servia para manter a coesão dos moradores da zona 2. Se, de outro modo, a dependência for unilateral, ocorre o extermínio dos outsiders. Elias citou como exemplo os ameríndios nos anos que seguiram-se a chegada dos europeus na América. “Um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído” (Ibid., p. 23) e sua exclusão ocorre para preservar o carisma grupal. “[...] sua maior coesão permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado e de outro tipo, o que vem reforçar sua coesão, e excluir dessas posições os membros dos outros grupos” (Ibid., p. 22). Permitindo a prioridade na “distribuição vigente de oportunidades de poder” (Ibid., p. 36). O xintoísmo é uma religião politeísta de origem japonesa que defende a harmonia entre o homem e a natureza, acreditando que o Universo é constituído por forças puras, impuras e a fusão de ambas. 4 [ 478 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Contudo, os privilégios desfrutados pelos estabelecidos têm como preço o autocontrole individual, o regramento e a censura da opinião grupal. Ela pode ser mantida através da participação gratificante no valor humano superior do grupo e da correspondente acentuação do amor-próprio e auto-respeito dos indivíduos, reforçadas pela aprovação contínua da opinião interna do grupo e, ao mesmo tempo, pelas restrições impostas por cada membro em si mesmo, de acordo com as normas e padrões grupais (Ibid., p. 41). A aceitação/ rejeição do indivíduo pelo grupo, ou, o carisma/ desonra grupal restringem ou expandem a autopercepção do sujeito como importante para a coletividade. De certo modo, as ações individuais refletiam um código de ética informal compartilhado com os demais membros, que estabeleciam os limites do poder do ser humano. A familiaridade das pessoas da aldeia com as regras previamente estabelecidas permitiram um direcionamento sobre o permitido/ recomendado e o indesejável/ proibido. A visão, hoje muito difundida, de que um indivíduo mentalmente sadio pode tornar-se totalmente independente da opinião do “nós” [we-group] e, nesse sentido, ser absolutamente autônomo, é tão enganosa quanto a visão inversa, que reza que sua autonomia pode desaparecer por completo numa coletividade de robôs. É isso que se pretende dizer quando se fala da elasticidade dos vínculos que unem a auto-regulamentação da pessoa às pressões reguladoras do “nós” (Ibid., p. 40). Como afirmado anteriormente, a submissão às regras do grupo trazem também benefícios aos indivíduos. “Isso oferece recompensas sob a forma de status e poder, para contrabalançar a frustração das limitações impostas e da relativa perda de espontaneidade” (Ibid., p. 171). A maior coesão dos aldeões permite a eles desfrutar de prestígio ao ocuparem cargos, remunerados ou não, que tenham visibilidade naquela sociedade. Em muitos casos, ninguém que não pertença ao círculo dos detentores do monopólio consegue penetrar nele sem o consentimento destes [...] só [famílias antigas] lhes é possível de continuar a existir como tal enquanto têm poder suficiente para preservar este monopólio [...] monopolização de posições-chaves em instituições locais, da maior coesão e solidariedade, da maior uniformidade e elaboração das normas e crenças, e da maior disciplina externa que lhes é concomitante (Ibid., p. 169-170). O carisma grupal reside na capacidade de resistência ao ingresso dos outsiders na comunidade. Então, a estigmatização serve como defesa para o carisma evitando, portanto, a profanação de elementos considerados agregadores pelos estabelecidos. O estigma grupal, por sua vez, é difundido através da fofoca – instrumento utilizado pelos aldeões para consolidar-se em posições de poder e afastar os recém-chegados. Segundo Elias (2000), a fofoca pode ser elogiosa, geralmente dirigida aos membros das famílias antigas, ou depreciativa, quando a ação dos moradores da zona 3 era analisada pelos estabelecidos. 3. EUSÉBIO FERREIRA DOS SANTOS E A RESSIGNIFICAÇÃO DO DISCURSO Quando José Maria foi morto na Batalha do Irani em 1912, seu discurso passou a ser ressignificado por algumas lideranças locais, notadamente por Eusébio Ferreira dos Santos. Este personagem teve um papel de destaque na Guerra do Contestado. Antes desse episódio, ele era o responsável por organizar as festas, desfrutando de prestígio na comunidade. [ 479 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Machado relatou que José Maria em certo dia de julho de 1912 recebeu a visita de uma comissão proveniente de Curitibanos composta por Praxedes Gomes Damasceno e Francisco Paes de Farias, de Taquaruçu, Manoel Alves de Assumpção Rocha e Eusébio Ferreira dos Santos, de São Sebastião das Perdizes (ou São Sebastião da Boa Vista). Estes homens eram líderes destas comunidades e vieram a Campos Novos para convidar José Maria a comparecer à Festa do Bom Jesus, que acontecia dia 6 de agosto em Taquaruçu (2001, p. 171). Depois de permanecer alguns meses na localidade, o monge desentendeu-se com o Coronel Albuquerque, sendo obrigado a migrar para os campos do Irani. Alguns sertanejos acompanham-no. Eusébio, por motivos de saúde, não estava entre eles. Independente do que tenha acontecido durante a batalha, ocorre, em outubro de 1912 e outubro de 1913, um peculiar processo de reelaboração mística. É o que Duglas Monteiro denomina de processo de “reencantamento do mundo”, como a complexa criação de instituições místicas e sociais novas, que darão um novo significado e uma nova coesão para os seguidores de José Maria (MACHADO, 2001, p. 185). Pouco tempo antes de completar um ano da morte do monge – na primeira batalha da “Guerra Santa” –, houve boatos de que a neta de Eusébio, Teodora, com 11 anos de idade, era orientada em sonhos por José Maria para ir até Taquaruçu 5, onde o profeta e o exército encantado de São Sebastião regressaria (Ibid., p. 195). Aproveitando-se de seu status social em São Sebastião das Perdizes, Eusébio convenceu os vizinhos e conhecidos a rumarem para Taquaruçu onde ficariam em vigília pelo retorno do monge. Eusébio Ferreira dos Santos chegou em Taquaruçu em 1º de dezembro de 1913, com sua família e um grupo de aproximadamente 20 pessoas de Perdizes. Chegando em Taquaruçu, foram repelidos por Praxedes Damasceno, que não queria mais envolver-se com problemas com o Cel. Albuquerque. Os sertanejos de Perdizes pousaram nas terras de Chico Ventura, onde deram início a formação do primeiro “Quadro Santo” (Ibid., p. 196). Neste primeiro momento, pode-se perceber a ascendência de Eusébio sobre as pessoas reunidas no reduto, especialmente, pela capacidade de sua neta em, supostamente, comunicar-se com José Maria. Conforme o tempo passava e a previsão não se confirmava, Teodora foi sendo questionada. Sua liderança durou poucos dias.6 Em seu lugar assumiu o menino-Deus Manoel, que, por sua vez, conversava com o monge na mata. A reelaboração religiosa se processa através da transformação da figura de José Maria, de um simples curandeiro, em um indivíduo santificado que possuía qualidades proféticas. Muitos sertanejos passaram a afirmar que José Maria havia profetizado sua própria morte. Os principais intelectuais produtores deste novo 5Atualmente pertencente ao município de Fraiburgo/SC. Em depoimento a Maurício Vinhas de Queiroz, Teodora reconheceu que suas visões não passavam de invenção de seu avô e dos mais velhos para dirigir o grupo (Ibid., p.197). 6 [ 480 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS quadro de referência social e religioso são Manoel Alves de Assumpção, Eusébio Ferreira dos Santos e sua esposa Querubina, de Perdizes, que contarão com o apoio de Chico Ventura (Ibid., p. 188). O reduto foi sendo estruturado pela ação de um núcleo inicial formado por Eusébio, Querubina e Chico Ventura. O discurso do monge passou, então, a ser ressignificado, justificando a permanência por tempo indeterminado no 2º Taquaruçu e a afronta a autoridade do Cel. Albuquerque que defendia a dispersão. Para garantir a coesão grupal alguns elementos foram importantes. Inicialmente, cabe salientar que, as pessoas envolvidas eram conhecidas e já desfrutavam de uma história em comum. De modo que uma referência qualquer, fazia sentido em si mesma, sem precisar de uma explicação mais minuciosa. Segundo Koselleck (2006), uma determinada sociedade, delineada espacial e temporalmente, compartilha um “campo de experiência” e um “horizonte de expectativa” específico. Para o autor, o campo de experiência é formado pelas vivências de um grupo, enquanto o horizonte de expectativa é composto por suas perspectivas de futuro. Durante muitos séculos, a expectativa dependeu das experiências, de modo que, um camponês, por exemplo, apenas poderia esperar por um número limitado de possibilidades, via de regra, ligadas às suas vivências. O 2º Taquaruçu, como ficou conhecido o ajuntamento liderado por Eusébio, reunia pessoas que compartilhavam um conjunto de experiências e expectativas similares, devido à convivência da maioria na cidade de São Sebastião dos Perdizes. Contudo, era necessário o desenvolvimento dos mecanismos de coerção que assegurassem a unidade do grupo e a repressão aos dissidentes. Nesta segunda Taquaruçu, que durou apenas de dezembro de 1913 a fevereiro de 1914, há uma rápida sucessão de lideranças, todas influenciadas ou colocadas pelo velho Eusébio. Teodora não chegou a completar duas semanas como vidente/comandante do reduto, houve uma crescente descrença em suas visões e ela mesma parecia ter se assutado com sua própria representação. Logo ela perdeu o “aço”. Teodora perde a importância mas continuará, como “virgem”, a coadjuvar o trabalho de outras lideranças religiosas e políticas dos diferentes redutos até o final da guerra. Em meados de dezembro de 1913, quem passa a dirigir Taquaruçu é Manoel [Menino-Deus, ou, Menino-de-Deus], filho de Eusébio e Querubina, rapaz com 18 anos que passou a declarar que conversava com José Maria na mata (Ibid., p. 198). Percebe-se que os mecanismos de coerção inerentes àquela sociedade limitavam a atuação do indivíduo a códigos estabelecidos pela coletividade. A ascensão de Manoel e, por consequência, de Eusébio sobre o grupo, deveria se restringir aos limites demarcados pelo próprio coletivo mesmo que de forma inconsciente. Entre as demandas repassadas por Manoel, sempre cumprindo a fórmula “da ordem do monge José Maria”, de modo a justificar o seu discurso, o menino-Deus pediu para dormir com duas virgens. Tal solicitação não estava circunscrita entre as permissões e/ou proibições daquela sociedade, logo Manoel foi retirado do cargo que ocupava […] pouco depois de 10 dias Manoel foi retirado do comando e surrado publicamente com vara de marmelo por seu sobrinho de 11 anos, Joaquim, o novo Menino-Deus. […] Os caboclos, que estavam mergulhados num regime de rigor moral, consideraram este ato [dormir com duas virgens] uma afronta que revelava a fraude de Manoel (Ibid., p. 203). [ 481 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Manoel não notou a tênue linha que separava a sua vontade e as necessidades coletivas, logo foi exposto publicamente, perdendo o cargo que ocupava e diminuindo seu status no reduto. Elias (2000) chamou de “descrédito coletivo”, a punição aplicada aos indivíduos que ousassem desrespeitar as regras estabelecidas pelo grupo. Apesar de o episódio ocorrido com Manoel, poder resultar em crítica a Eusébio, este como líder do movimento continuou indicando os videntes. 7 “As lideranças de Teodora, Manoel e Joaquim, não centravam-se apenas em suas anunciadas capacidades mediúnicas e sagradas. O poder destes jovens era respeitado, principalmente, porque sua autoridade era bancada” (Ibid., p. 220/221) pelo líder comunitário. O monopólio sobre a indicação de guias espirituais 8, desempenhado por Eusébio neste primeiro momento, revela o pertencimento deste, ao que Elias (2000) chamava de “minoria dos melhores”, convertida na “dominação dos melhores” sobre os alijados do “carisma grupal”. 9 Embora, sendo a margem de manobra limitada, como constatado no pedido de Manoel, ainda era permitido o surgimento de novas rotinas, diferentes daquelas percebidas no período anterior à Guerra. A ordem urbanística quadrangular, de uma praça demarcada por cruzeiros diante de uma Igreja; as práticas das formas, com o perfilamento de toda a população local duas vezes ao dia para rezas e organização dos serviços; a organização dos “Pares de França”, como guarda de elite sertaneja: são todas práticas sociais, culturais e religiosas criadas, pelo menos, a partir de novembro de 1913, no segundo Taquaruçu, quando as lideranças de Eusébio Ferreira dos Santos e Chico Ventura partem para a elaboração deste tipo de organização social na espera do retorno de José Maria (Ibid., p. 179). A população que outrora vivia às margens do latifúndio, tendo a disposição grandes extensões de terras, principalmente, na região da floresta ombrófila mista, agora deveria se habituar a concentrar-se em um espaço restrito devido aos esforços de guerra. Essa nova ordem espacial precisava ser seguida por uma disciplina, que permitisse aos dirigentes manter o controle sobre as atividades cotidianas dos caboclos. É provavelmente neste período [2º Taquaruçu] que se institucionalizaram as formas, um perfilamento geral da população do reduto na praça central, que se realizava duas vezes por dia, pelas manhãs e tardes, onde se entoavam cantos e preces, se dividiam as tarefas comuns de subsistência e de defesa, e se davam “Vivas” à Monarquia, a São João Maria e José Maria. Na praça central do “Quadro Santo” as pessoas eram separadas em formas paralelas de homens, mulheres e crianças. Neste momento havia uma dissolução das unidades familiares nos três grupos da forma, o que colocava os indivíduos diretamente ao alcance dos discursos dos chefes. Além de servir para fins práticos, como organização dos serviços e divisão das tarefas, as formas cumpriam um papel de renovação e reforço motivacional dos redutos (Ibid., p. 201-202). O esforço em constituir uma nova ordem baseada nos preceitos supostamente indicados por José Maria era evidente. Nos termos de Elias (2000), a “boa sociedade” iniciada por Eusébio, Querubina e Chico Ventura, deveria estar pautada no discurso messiânico milenarista de retorno do monge e na obediência aos oráculos indicados por Eusébio. A proeminência do patriarca sobre os caboclos em Taquaruçu foi abalada pelo início dos ataques ao reduto. O 2º Taquaruçu sofreu duas investidas do exército brasileiro. A primeira foi repelida pelos Logo depois da saída de Manoel assumiu Joaquim, neto de Eusébio. Entre os três primeiros oráculos estavam dois netos e um filho de Eusébio e Querubina. 9 Deste modo, aqueles que estavam mais próximos do núcleo fundador poderiam desfrutar de benesses negadas à maioria. Exemplo disso, era a alimentação, o controle sobre o estoque e a prerrogativa de tomar decisões em nome do coletivo. 7 8 [ 482 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS sertanejos, a segunda logrou sucesso, dizimando o reduto e matando inúmeras mulheres e crianças que estavam no local, haja vista que os homens haviam deslocado-se para Caraguatá, por ordem de Joaquim. Além do sério ferimento na perna [decorrente do primeiro ataque a comunidade de Taquaruçu no dia 29 de dezembro de 1913], a liderança de Eusébio vai aos poucos desgastando-se tanto pela inconstância das lideranças que o mesmo engendra, como pela crescente população que aflui ao reduto. Há claros sinais de desgaste da liderança de Eusébio devido a rápida perda de “aço” dos jovens que nomeara como comandantes (Ibid., p. 221). Em Caraguatá, Eusébio teve de partilhar sua liderança com Elias Antônio de Morais “Juiz de Paz [do Distrito de São Sebastião dos Perdizes] e Major da Guarda Nacional [...] e sua esposa Adúlcia” (Ibid., p. 221/222). Pela primeira vez, desde o 2º Taquaruçu, o guia espiritual não foi indicado por Eusébio. A virgem desse reduto era Maria Rosa, filha de Elisiasinho da Serra, morador da Serra da Esperança, sem parentesco com Eusébio. Elias de Moraes assumiu o comando das formas e, em pouco tempo, principalmente a partir de meados de 1914, era o principal comandante do movimento sertanejo. Elias e sua esposa Adúlcia assumirão uma posição semelhante a de Eusébio e Querubina. Serão os principais responsáveis pelas escolhas das futuras lideranças (Ibid., p. 228). Outro ponto a destacar era que “Maria Rosa, ao contrário de Teodora ou dos Menino-Deus Joaquim e Linhares, não submetia suas ordens a um conselho. Maria Rosa dirigia suas ordens diretamente nas formas” (MACHADO, 2001, p. 226), o que restringia ainda mais a ascendência de Eusébio sobre os caboclos.10 Conforme a Guerra do Contestado avançava, ganhava importância dentro dos redutos o que Machado chamou de partido rebelde ou guerreiro, formado por pessoas menos religiosas do que aquelas do núcleo originário. Nesse sentido, o ataque das forças oficiais ao 2º Taquaruçu em 8 de fevereiro de 1914 e as investidas contra Caraguatá contribuíram para a ascensão deste partido. “Caraguatá foi evacuado em final de março de 1914. O tifo estava dizimando a população do reduto e Maria Rosa comandou uma longa marcha, conduzido mais de 2 mil pessoas, 600 cabeças de gado, cargueiros de mantimentos, etc., para o novo reduto de Bom Sossego” (Ibid., p. 228). Segundo Machado (2001), “a liderança da virgem Maria Rosa declinou em Bom Sossego, logo após a evacuação de Caraguatá, em abril de 1914” (Ibid., p. 257). A partir desse momento, o partido rebelde passou a dirigir o movimento. Entre as principais lideranças caboclas neste período, cita-se Agustin Perez Saraiva, o Castelhano, em Lages, Chico Ventura e Paulino Pereira, em Curitibanos, Aleixo Gonçalves de Lima, Bonifácio Papudo e Antônio Tavares, em Canoinhas, Conrado Grobbe e Tomazinho Rocha, em Timbó e Timbozinho, respectivamente, Chiquinho Alonso e Elias de Moraes no reduto-mor. Os interesses que motivavam esses indivíduos eram os mais variados possíveis, desde o combate ao coronelismo até desavenças pessoais como no caso dos irmãos Sampaio com o Cel. Albuquerque, amante da esposa de João Sampaio. Destaca-se ainda, os problemas da gestão em Curitibanos, caso da cobrança de impostos considerados excessivos por Paulino Pereira. Os episódios políticos de 1913 tensionam de tal forma a política em Curitibanos, que o ressurgimento do movimento pela expectativa do retorno de José Maria, em novo ajuntamento em Taquaruçu, será imediatamente entendido como uma Após a substituição de Manoel por Joaquim foi instituído um conselho que tinham como função traduzir a mensagem do profeta. Na prática era como se a mensagem do oráculo devesse passar pelo filtro dos líderes políticos, evitando assim o descrédito do grupo. 10 [ 483 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS afronta à legitimidade do poder do Cel. Albuquerque. A oposição política do município, principalmente os irmãos Sampaio e Paulino Pereira [vendedor de gasosa], passa a ver na vida dos redutos um meio eficaz de unir forças no combate às autoridades. Os Sampaio e Paulino Pereira levaram consigo “sua gente”, centenas de sertanejos. Sua adesão ao movimento rebelde ocorre em meados de 1914 (Ibid., p. 195). Considerando os diversos interesses pessoais e a oposição política na região do Contestado, o movimento mítico/religioso parecia, apenas, um pretexto para a rebelião popular. Machado (2001) ao discorrer sobre a tentativa de invasão da cidade de Lages pelos rebeldes falou sobre a percepção do capitão Euclides de Castro acerca dos caboclos envolvidos no conflito. O capitão Euclides de Castro avaliou em 550 o número de rebeldes em armas dispostos a invadir a sede [Lages, outubro de 1917]. Porém, o oficial do Regimento de Segurança não via este agrupamento como um conjunto uniforme de indivíduos com os mesmos propósitos. Estes 550 seriam o somatório de 200 “fanáticos” (comandados por Chico Ventura), 100 “amedrontados” (um grupo de sertanejos que teriam sido intimidados a aderir ao movimento), 100 “comedores de carne” (a “ralé” do campo que se aproveitava do conflito para saquear fazendas e carnear rezes), 50 “criminosos” (chefiados pelo negro Olegário) e 100 “despeitados de Curitibanos” (comandados por Paulino Pereira e os irmãos Sampaio, opositores políticos do Coronel Albuquerque) (Ibid., p. 280/281). Muito embora, a pluralidade de sujeitos enredados na Guerra, ao observar as dimensões do território em litígio e a duração do conflito, nota-se que o discurso profético inaugurado por José Maria, manipulado por Eusébio e apropriado pelos sertanejos da região, serviu como fio condutor das reivindicações sociais. A existência de guias espirituais, como “virgens” e “menino-Deus” revela a necessidade de justificação do movimento a partir de elementos do universo sobrenatural aceito por aquela população. “Com o correr da luta com o governo, paulatinamente, vão se afirmando no comando as ‘lideranças de briga’. No entanto, mesmo as ‘lideranças de briga’, quando assumiam o comando-geral, precisavam legitimar-se religiosamente, sendo acompanhados por virgens e novos monges” (Ibid., p. 340). Nos redutos-mor as disputas entre o partido religioso e guerreiro se acentuavam na medida em que havia o aprofundamento dos conflitos entre caboclos e as forças oficiais. Chico Alonso, um dos líderes do partido guerreiro, foi trazido para Caraguatá por Venuto Baiano e substituiu Maria Rosa, após ela conversar com Matos Costa11, em busca de uma solução pacífica para o conflito. 12 Durante seu comando, a irmandade cabocla expandiu seu território. Em meio ao rápido avanço do movimento rebelde pela região, o governo de Chiquinho Alonso terminou no ataque frustrado à estação ferroviária de Rio das Antas, no início de novembro de 1914. 13 Com a morte de Chiquinho Alonso ressurgiu a disputa entre o Partido guerreiro e o Partido religioso “e estancou, definitivamente, a ofensiva ‘pelada’. O novo comandante-geral, Adeodato, ordenou o recolhimento de todos os piquetes ao reduto-mor (Ibid., p. 282). Matos Costa foi oficial do Exército Brasileiro, um dos encarregados pela Campanha militar no Contestado. Morto em uma emboscada planejada por Venuto Baiano. 12 A orientação para os caboclos era "manter reserva" em relação aos "peludos". Provavelmente, o contato entre Maria Rosa e Matos Costa foi entendido na época como "poluidor", na medida em que expunha o "carisma grupal" à pessoa não iniciada no movimento, percebido pelas lideranças do partido guerreiro como inimigo. 13 Se os rebeldes conseguissem tomar esta estação, haveria a possibilidade de expandir o movimento para o extremo oeste de Santa Catarina, pois esta era um importante interposto entre o centro-oeste do Estado e os campos de Irani e de Palmas. 11 [ 484 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Talvez a explicação mais razoável para entender a ascensão de Adeodato seja a apontada por Vinhas de Queiroz. Este autor explica que havia uma disputa velada entre dois “partidos” dentro dos redutos. O mais antigo é o “partido” vacilante ou moderado, representado pelas “virgens”, por Eusébio Ferreira dos Santos (avô da “virgem” Teodora, antigo seguidor de José Maria e formador do segundo reduto de Taquaruçu), que, a partir da morte de Chiquinho Alonso, passou a ser favorável a uma paz negociada com as forças do governo. O outro “partido”, menos religioso e mais “jagunço”, liderado Chiquinho Alonso e pelo velho Elias de Morais, confiava na expansão dos redutos e na derrota do governo (Ibid., p. 299/300). A ascensão de Adeodato ocorreu em meio a crise de lideranças, logo a manutenção do cargo e da supremacia do partido guerreiro, deveria ser garantida, mesmo que pelo uso da violência. A primeira demonstração de força de Adeodato foi o deslocamento dos sertanejos de Caçador para Santa Maria (Curitibanos). Em Santa Maria, Eusébio Ferreira foi reabilitado, Adeodato o nomeou almoxarife das armas. Mas esta recomposição com o “partido moderado” custou a vida de Antoninho, que já tinha desafiado publicamente Adeodato (Antoninho queria que o reduto-mor de Caçador se transferisse para S. Sebastião [Timbozinho], e não obteve apoio de ninguém). Segundo Vinhas de Queiroz, foi Aleixo Gonçalves, major da Guarda Nacional e antigo federalista que havia aderido ao movimento dos sertanejos, que matou Antoninho, a mando de Adeodato (Ibid., p. 306). Apesar de a violência empregada para garantir a preservação do movimento, cabe ressaltar que Adeodato também preocupava-se com a legitimação espiritual de seu comando. Segundo Machado (2001), Adeodato, inicialmente, declinou do convite, mas após ser convencido por Crespo para liderar o movimento, o novo líder relatou aos caboclos que José Maria apareceu em sonho convocando-o para esta missão. Neste sentido, a aparição do monge e a capacidade das lideranças em comunicar-se com este continuavam sendo utilizadas para justificar a indicação de pessoas alinhadas a determinado partido para assumir a direção do movimento. O discurso da Guerra Santa era aceito pela população, mesmo com o aprofundamento dos conflitos. Após o cerco do exército ao reduto de Santa Maria, ocorreu a rendição de grande parte dos redutários. Nos dias que se seguiram aos ataques, vários sertanejos se apresentavam as autoridades locais, alegando que estavam em Santa Maria mantidos a força por Adeodato, que passou a ser descrito como désposta pelos caboclos. Logo depois da destruição do reduto de Santa Maria – que chegou a ter, aproximadamente, 30 mil pessoas – e, sem o apoio do “partido moderado”, Adeodato e seus adeptos fundaram novos redutos “São Miguel, Pedras Brancas e São Pedro” até serem capturados e presos. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS À RELAÇÃO ESTABELECIDOS E OUTSIDERS E A FORMAÇÃO DOS REDUTOS Notadamente, Eusébio esforçou-se para criar uma “boa sociedade”, nos termos de Elias (2000). Ele propôs uma nova organização da vida dentro dos redutos, preservando e rompendo com antigas tradições. Os redutos estavam no limiar entre a velha e a nova ordem, de modo que foi necessário abandonar os vínculos com os coronéis da região, ao mesmo tempo que manter as relações de compadrio 14 e, por consequência, de submissão aos líderes do reduto. 14 A importância das relações de compadrio no sertão catarinense está relacionada à densidade demográfica, a organização social e a concentração de poderes presentes no interior do Brasil no início do século XX. Os caboclos, em sua maioria, trabalhavam para os [ 485 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Os redutários chamavam-se mutuamente de irmãos e, com frequência, rebatizavam os novos membros que aderiam ao grupo, numa cerimônia com características rituais, onde era escolhido um novo padrinho e, portanto, formavam-se novos vínculos de compadrio, em substituição às antigas relações. Era comum que os chefes fossem escolhidos como novos padrinhos, o que cimentava novos vínculos de fidelidade. A nova vida em comunidade necessitava de novas referências sociais, ao mesmo tempo que rompia com muitos antigos vínculos (Ibid., p. 210). O 2º Taquaruçu constituiu-se na tentativa de Eusébio em implementar a “boa sociedade”, por meio de novos laços de apadrinhamento e da prática do “comunismo caboclo” (MACHADO, 2001). 15 Este último relacionado aos “puxirões” e, logo, dialogando com a realidade anterior a Guerra. Outro elemento que demonstra o esforço do patriarca era a mistificação da realidade através do discurso messiânico milenarista e da presença de oráculos que comunicavam-se com o monge José Maria. No reduto de Taquaruçu, todos os guias espirituais estavam vinculados a Eusébio Ferreira dos Santos. A estigmatização, conceito elaborado por Elias (2000) e abordado anteriormente, pode ser entendido como uma ferramenta utilizada para distanciar a “boa sociedade” da má. Para tanto, foram empregados sinais físicos distintivos como, por exemplo, o corte de cabelo e o não uso da barba, a fim de caracterizar a diferença entre “peludos” e “pelados”. 16 Manoel introduziu, como característica física distintiva, o corte rente de cabelo aos devotos de José Maria, a partir deste momento os irmãos passam a chamar-se de “pelados”, denominando as forças do governo de “peludos”. Os “pelados” adquiriram distinção física também com o uso de chapéus com fitas brancas que desciam como barbicachos. Nas formas e nas expedições de incursão dos piquetes xucros, os devotos carregavam uma bandeira branca com cruz verde. […] As fitas deviam medir 1,7m, equivalente a estatura de João Maria. O discurso de “Guerra Santa”, associado a estas demonstrações físicas de adesão a vida rebelde, formou uma nova linguagem do movimento, adotada inclusive mais tarde por outras lideranças não tão religiosas (MACHADO, 2001, p. 202). Os redutários possuíam um “carisma grupal” que se revelava na capacidade mediúnica de alguns membros em comunicar-se com o monge morto José Maria. Contudo, apenas o grupo familiar de Eusébio possuía este dom e, por consequência, desfrutavam de privilégios naquela sociedade, como por exemplo, a “distribuição vigente de oportunidades de poder” (ELIAS, 2000, p. 36). De outro modo, pode-se analisar a “desonra grupal”, termo também abordado por Elias (2000), no contexto de formação dos redutos a partir dos acontecimentos envolvendo Manoel, Maria Rosa e Venuto Baiano. Inicialmente, observa-se o caso do menino-Deus Manoel que afirmou ter recebido ordens de José Maria para deitar-se com duas virgens. Tal pedido não foi aceito pela coletividade e Manoel apanhou com coronéis ou mantinham uma relação de respeito para com a autoridade local. Quando nascia um filho, por exemplo, era costume convidar o Coronel para ser o padrinho. Esta filiação representava proteção para o caboclo e fidelidade ao latifundiário. Com o início da Guerra do Contestado, os acordos (informais) previamente estabelecidos não garantiam que os caboclos pudessem manter-se em suas terras. Então, os sertanejos insurgentes ao ingressar nos redutos buscaram nova filiação, justamente, com os líderes do movimento. Percebe-se que esta mudança ocorreu em relação ao responsável pela proteção/fidelidade, mas não houve a preocupação dos caboclos em romper com as amarras sociais representadas pelas relações de compadrio. “O comunismo caboclo foi produto de elaboração do grupo dirigente inicial Eusébio-Querubina-Ventura, tomando como experiência a rápida passagem de José Maria por Taquaruçu e Irani, em 1912” (Ibid., p. 210). 16 Corroborou para isto a percepção de que os outsiders estavam sendo beneficiados pelo Governo Republicano, enquanto os "filhos da terra" eram expulsos de suas casas. 15 [ 486 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS vara de marmelo de Joaquim, neto de Eusébio. Maria Rosa, por sua vez, teve seu status rebaixado no reduto ao conversar com Matos Costa. E Venuto Baiano, por ter planejado uma emboscada a Matos Costa, também sofreu as sanções do grupo, sendo assassinado por alguns jagunços.17 Na organização dos redutos percebeu-se o desenvolvimento de mecanismos de coerção social que transcendiam o uso da violência física. Exemplo disso é o estabelecimento de novas relações de compadrio, a vida de abdicação à espera pelo retorno dos monges e do Exército Encantado de São Sebastião e a submissão aos comandantes a partir das formas. Apesar de terem por objeto de análise contextos históricos diferentes a aproximação teórica entre as obras de Elias (2000) e Machado (2001) é útil para compreender o funcionamento dos mecanismos de coerção nos redutos, evitando visões simplistas das experiências de vida. REFERÊNCIAS ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas. In: _______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006. MACHADO, Paulo Pinheiro. Um estudo sobre as origens sociais e a formação política das lideranças sertanejas do Contestado, 1912-1916. Tese (Doutorado em História) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Orientador: Profº. Drº. Cláudio Henrique de Moraes Batalha. Campinas, SP, 2001. Pode-se afirmar que, a fofoca elogiosa auxiliou na consolidação de Eusébio como patriarca do movimento no 2º Taquaruçu e respaldou suas indicações de virgens e meninos-Deus. De outro modo, a fofoca depreciativa também contribuiu para a destituição ou morte dos personagens abordados acima. 17 [ 487 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Na disputa das memórias: a caracterização dos objetivos da luta armada na memória de seus militantes (1968 – 1972) 1 Vinícius de Oliveira Masseroni2 Resumo: Esse trabalho busca compreender como os militantes, da autorreferida, esquerda revolucionária construíram, ao longo do tempo, suas memórias do tempo da luta aramada contra a ditadura civil-militar no Brasil (1968-1972). Elegendo como um dos marcos possíveis a Lei nº 6.683 de 1979 – doravante, Lei da Anistia –, a sociedade brasileira entrou em um processo de (re)construção da memória, com vistas a acomodação de seu passado recente e tentando, assim, desfazer-se de seu pregresso apoio ao regime instaurado em 1964, ficando apenas com as memórias da resistência democrática. Desta maneira, as esquerdas e seus projetos revolucionários – de combate ao capitalismo – perderam, nesse novo discurso onde emerge uma memória democrática, sua retórica mais acentuada e de enfrentamento ao regime. Isso se deu tanto na memória coletiva da sociedade, como nas memórias daqueles militantes. Dessa maneira, os combatentes da causa revolucionária foram integrados, de maneira difusa, numa grande e vitoriosa resistência democrática. Porém, devemos lembrar que a memória não é “eleita” na sociedade, ela é construída, e não sem disputas. Dessa forma, almejamos mostrar, também, como há uma disputa dessas memórias, onde dentro de um amálgama de indivíduos, algumas construções da memória se sobrepujaram a outras. Muitos desses militantes afirmam que faziam e lutaram na resistência democrática. Outros tantos afirmam que estavam em busca da revolução socialista, onde seria instaurada uma ditadura revolucionária (do proletariado). No entanto, na sociedade brasileira, durante muito tempo grassou apenas a ideia de jovens radicais – até errados em suas adesões armadas, talvez? – mas, democratas. É importante, em nosso ver, essa questão, já que, atualmente, há uma parte da sociedade que tende a, não só negar o autoritarismo do regime, como o glorificar, fazendo-o a partir das “evidências” do autoritarismo das esquerdas, esse revisionismo histórico é, também, uma construção da memória. Dessa forma, nosso principal objetivo é deslindar como se deu esse processo de (re)construção da memória nos militantes revolucionários. Nosso principal aporte teórico-metodológico provém dos estudos sobre a memória (Michael Pollak, Paul Ricouer, Jeanne Marie Gagnebin), e, também, da História Oral (Alessandro Portelli). As entrevistas aqui trabalhadas foram realizadas por outros pesquisadores – e encontram-se acessíveis ao público –, que se enquadram em nossas perspectivas para o desenvolvimento dessa pesquisa – a saber, o período imediatamente após a redemocratização, entrevistas sobre o exílio durante a ditadura e, também, demais entrevistas consideradas pertinentes à pesquisa. Desta forma buscarei compreender “como” e “por quê?” das mudanças da compreensão e avaliação da contribuição da luta armada na memória destes militantes. À GUISA DE INTRODUÇÃO “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de ‘tempoagora’ [Jetztzeit]” (Walter Benjamin)3 No texto que se segue buscaremos introduzir a problemática da disputa sobre as memórias relativas ao período da luta armada durante a ditadura civil-militar brasileira. Precisamos, para seguir esse objetivo, realizarmos algumas reflexões, mesmo que breves e introdutórias, sobre as questões relativas ao trato com a 1 Esse texto é a extensão da comunicação realizada no IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras. Agradeço a todos participantes do GT de História Política, nas pessoas dos coordenadores Alessandro Batistella (UPF) e Marluza Marques Harres (UNISINOS), pelos comentários e sugestões durante o evento. 2 Formado em história pela UNISINOS, atualmente é aluno de mestrado em história na mesma instituição com bolsa PROSUC/CAPES. E-mail: Vinícius.masseroni@gmail.com. 3 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e História da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 249. [ 488 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS memória dentro da pesquisa histórica. Isso se deve que trabalharemos com entrevistas dos militantes da autorreferida esquerda revolucionária.4 No trabalho com entrevistas, como em nosso caso, as fontes orais não são espontâneas, mas provocadas pelas questões postas aos entrevistados. Nesse momento o inquirido acessa suas memórias, no processo de formulação de uma resposta. Nesse sentido, a colocação de Beatriz Sarlo nos parece pertinente, segundo a autora a memória é “uma captura do passado pelo presente”. 5 No mesmo sentido afirma Denise Rollemberg, “o movimento que elege a memória como objeto de historia deve pressupor a memória não como ‘verdade do passado’, como ‘presença do passado’, mas como ‘presente do passado’. Aí estão sua riqueza e sua relevância”.6 A questão memória é parte indissolúvel da questão da História Oral. Em nosso tema, em particular, ela se torna muito delicada. Os entrevistados, muitos deles passaram pelas maiores atrocidades propiciadas pela ditadura civil-militar, logo, essas memórias se tornam incomodas. Aqui achamos importante ressalvar a importância da função de coesão que a memória exerce no indivíduo não pela coerção, mas pela questão afetiva.7 Essas memórias – individuais, mas que dão coesão a um grupo – podem, não descartamos essa hipótese, conter equívocos, intencionais ou não. Por este motivo o trabalho da História Oral, ou da memória, muitas vezes, foram atacados por essa “fraqueza”. Não vamos lembrar que qualquer fonte é passível de estar errada, mesmo propositalmente. Essa seria uma resposta. Mas estaríamos atacando a História em geral, como disciplina. O cruzamento de dados e fontes é um procedimento básico do metiér historiográfico. Não raro os entrevistados pelos historiadores se mostram muito precisos nas informações fornecidas. Porém, ainda devemos uma resposta aos Rankeanos. Devemos lembrar que, muitos dos trabalhos com História Oral e Memória estão de fato preocupados com a memória em si, ou seja, com o processo pelos quais os sujeitos (re)constroem essas memórias, dessa maneira, o erro, ou mesmo a mentira são importantes objetos de análise. Alessandro Portelli lembra que “até mesmo o erro, a invenção e o mal-entendido – e mesmo as mentiras – especialmente quando são socialmente difundidos, tornam-se sintomas preciosos de processos históricos importantes como a memória e o desejo”. 8 Procuraremos aqui, então, evidenciar, por meio dos relatos de militantes – suas reconstruções da memória – que, apesar de durante muito tempo a esquerda revolucionária ter sido vista como a radicalização da luta pela democracia, isso não está “pacificado nas memórias” dos militantes. Muitos afirmam que lutavam pela democracia, outros tantos que lutavam pela ditadura revolucionária, ou ainda, do proletariado. Quem fala a verdade? Quem mente? Mas, talvez o mais importante seja saber o motivo da mudança de discurso. AS ESQUERDAS NO BRASIL DE 1960 A produção historiográfica sobre as esquerdas 9 no Brasil já é bastante desenvolvida, e ainda é alvo de interesse dos jovens pesquisadores. Desde o final da década de 1980 as esquerdas vêm sendo objeto de estudos de diversos historiadores, filósofos, sociólogos e demais pesquisadores das ciências humanas. Aqui uma nota se faz necessária. Em meu projeto de mestrado, intitulado “Democracia ou Revolução? Um estudo sobre a memória dos militantes da esquerda armada no Brasil (1968 - 1972)”, trabalho com as entrevistas realizadas pelo sociólogo Marcelo Ridenti, disponíveis no Arquivo Edgar Leuenroth, Universidade Estadual de Campinas (AEL/UNICAMP), Fundo: Militância política e Luta Armada no Brasil. Porém para este trabalho utilizei entrevistas disponíveis na internet de partidários da luta armada no Brasil. Aqui pretendo apenas evidenciar que essas memórias não são unas, mas polifônicas. 5 SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 9. 6ROLLEMBERG, Deníse. História, memória e verdade: em busca do universo dos homens. In: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (org). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil, vol. II. São Paulo: Editora Hucitec, 2009, p. 569 – 577, p. 575. 7 POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº 3, p. 3 – 15, 1989, p. 3. 8 PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016, p. 19. 9 Optou-se aqui usar o termo no plural, esquerdas, já consagrado na bibliografia sobre o tema, por entendermos que o campo progressista era e é múltiplo e informado por vários aportes teóricos. Cf.: AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. 4 [ 489 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Podemos começar pelos estudos já clássicos da historiografia Combate nas trevas, de Jacob Gorender,10 A Revolução faltou ao encontro, de Daniel Aarão Reis11 e O fantasma da Revolução brasileira, de Marcelo Ridenti.12 Esses estudos tem em comum abordarem as esquerdas dentro do período da ditadura civil-militar, no entanto, as esquerdas tem sido objeto de estudo nos mais diversos períodos da história e com a maior diversidade de ângulos de abordagem.13 Mesmo com relevante produção bibliográfica o tema das esquerdas tem sido, assim com o período da ditadura civil-militar como um todo, “vítimas” das memórias. Não é novidade para os historiados que as sociedades, após o termino de regimes autoritários e violentos, tendem a construir memórias (sempre em dialética com o esquecimento) harmoniosas, ou ao menos, autocomplacentes com vistas à auto-absolvição. Não se trata, obviamente, de ato pensado afim de “ludibriar” a História, é uma ação de preservação para que essa sociedade consiga “seguir em frente”, refazendo um passado o qual possa lembrar e lidar. Isso não foi exclusividade brasileira, os alemães pós-regime nazista, os italianos pós-regime fascista e os franceses após o término da ocupação nazista em seu território, parecem ter sofrido da mesma “amnésia pós-traumática” que a sociedade brasileira experimentou após a queda da ditadura em 1985. Dessa maneira cria-se o mito da sociedade como vítima.14 A sociedade, através da reconstrução da memória, esquece-se de sua parcela de participação e colaboração com os regimes autoritários, seja colaboração ativa ou simplesmente sujeitandose as condições impostas. No caso brasileiro, a partir de 1979, a sociedade começa um processo de avaliação – não necessariamente racionalizada – da memória dos anos de chumbo e mesmo do golpe de 1964. Passa a rechaçar a ditadura como se nunca houvesse tido nada com aquilo, e vendo-a – a ditadura – como “corpo estranho”, algo que sempre a sociedade se opôs.15 A historiografia, a revelia da memória cômoda da sociedade, já demonstrou com inegável quantidade de evidências que a sociedade não apenas assistiu o golpe de 1964 e suportou a ditadura, mas sim, tomou parte ativamente nos rumos do país sob o governo dos militares, basta lembrar que grande parte da imprensa saudou o Golpe, instituições como CNBB e OAB, líderes civis como Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek e que a família brasileira marchou pelo país nas famigeradas “Marchas da Família com Deus, pela Liberdade” e, também, que todos os vice-presidentes do país sob a ditadura foram civis. 16 GORENDER, Jacob [1987]. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2014. 11 O livro é originário da tese de doutoramento em história do professor Daniel Reis, defendida em 1987, transformada em livro em 1989, cf.: AARÃO REIS, Daniel. A Revolução Faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1989. 12 O livro é originário da tese de doutoramento em sociologia do professor Marcelo Ridenti, defendida em 1989, transformada em livro em 1993, cf.: RIDENTI, Marcelo [1993]. O fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2010. 13 Alguns estudos muito relevantes sobre as esquerdas são os seguintes: AARÃO REIS, Daniel; FERREIRA, Jorge (org). As esquerdas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007, 3 vol. Em três volumes que somam quase duas mil páginas os autores abordam as esquerdas nos seus mais diversos matizes (anarquistas, comunistas, socialistas, trotskistas, trabalhistas e etc.) e no período que abarca a proclamação da república até o século XXI. Outra coleção importante é a História do Marxismo no Brasil, publicada em seis volumes, com diversos organizadores e autores. Sobre as esquerdas na década de 1970 durante a ditadura brasileira ver: ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A Utopia Fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no Mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000. Sobre a produção cultural dos comunistas convém consultar: NAPOLITANO, Marcos; CZAJKA, Rodrigo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Comunistas brasileiros: Cultura Política e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. Sobre o exílio dos militantes revolucionários: ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. São Paulo: Record, 1999. O PCB tem sido objeto de estudo de vários pesquisadores: FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário dos comunistas do Brasil (1930 – 1956). Rio de Janeiro: Mauad, 2002. KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil, até o começo dos anos trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1998. SEGATTO, José Antonio. Reforma e Revolução: as vicissitudes políticas do PCB (1954 – 1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. SANTOS, Raimundo. A primeira renovação pecebista: reflexos do XX congresso do PCUS no PCB (1956 – 1957). Belo Horizonte: Oficina de livros, 1988. Sem contar as centenas de artigos e capítulos de livros. 14 Para melhor avaliação das sociedades pós-ditatoriais na Europa, especialmente o regime de Vichy na França, e do mito da sociedade como vítima consultar: GROPPO, Bruno. Mito da sociedade como vítima: as sociedades pós-ditatoriais em face de seu passado na Europa e na América Latina. In: QUADRAT, Samantha Viz; ROLLEMBERG, Denise. História e Memória das ditaduras do século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 39 -56. 15 AARÃO REIS, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 135. 16 Sobre a participação civil no golpe ver: ARRÃO REIS, 2014, p 48 - 49. DREIFUSS, René. 1964: a conquista do estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2014. PRESOT, Aline. Celebrando a “Revolução”: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe de 1964. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, 10 [ 490 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Subjacente ao mito da sociedade como vítima, surge, sub-repticiamente, o mito da sociedade resistente.17 Não basta não termos parte com a ditadura, também fomos resistentes a ela. É nesse momento que a memória da esquerda toma vulto, aquilo que Daniel Aarão Reis chamou, com sua perspicácia usual, de deslocamentos de sentido.18 Contudo, as esquerdas revolucionárias não são compreensíveis se não houver uma rápida introdução ao seu contexto de surgimento. 19 É sempre mister lembrar que durante a década de 1960 o mundo estava em plena Guerra Fria, logo as lutas entre direitas e esquerdas ganhavam relevo e interesse internacionais. Hoje já é sabido, graças à pesquisa historiográfica e abertura de novos arquivos, da participação dos Estados Unidos da América no golpe civil-militar no Brasil.20 Tendo isso em vista, é importe tentarmos trazer a tona o contexto do início da década de 1960, as revoluções vitoriosas que inspiraram grande parte da juventude daquela época, especialmente a Revolução Cubana de 1959 (inicialmente nacional democrática e, posteriormente, em 1962 assumindo caráter socialista) e a Revolução Argelina, de 1962, contra o colonialismo francês. Esse contexto internacional animava grande parte das esquerdas brasileiras ainda antes de 1964, são eles: Partido Comunista Brasileiro (PCB); Partido Comunista do Brasil (PC do B); Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-POLOP ou, simplesmente, POLOP); Partido Operário Revolucionário Trotskista (POR-T); a juventude católica aglutinada na Ação Popular (AP); os nacionalistas radicais do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) liderados por Leonel Brizola; também, o movimento capitaneado por Francisco Julião que reivindicava a Reforma Agrária, as Ligas Camponesas que, ainda em 1962, realizariam uma das primeiras tentativas de implantação de uma guerrilha rural. Esse movimento surgido dentro das Ligas Camponesas foi chamado de Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT).21 É necessário ressaltar a importância do PCB dentro do nosso estudo, já que só trabalharemos as organizações armadas. Apesar de sempre tecer críticas abertas à luta armada, no pós 1964 o PCB perderá grande número de militantes para as organizações revolucionárias, sendo ele o maior partido marxista até o golpe civil-militar, também foi o maior alvo de críticas dos militantes que surpreenderam-se com seu imobilismo e despreparo para o golpe. Dessa maneira, no pós-64 vários foram os “culpados” pelas esquerdas, Jango, o PCB de Luís Carlos Prestes, a retórica inflamada de Brizola e, também, organização menores de esquerda, tais como, PC do B, POLOP e AP. O PCB foi quem mais sofreu com rachas22, alguns deles são: Ação Libertadora Nacional (ALN), originária da ruptura de Carlos Marighella em 1967, quando esse velho militante participa de um evento em solidariedade a Cuba sem autorização partidária. Ao retornar de Cuba, Marighella já expulso do PCB, leva Samantha Viz (org.). A construção social dos regimes autoritários: Brasil e América Latina, vol. II. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2010, p. 71-96. 17 GROPPO, 2015, p. 42. 18 AARÃO REIS, 2014, p. 133; ARRÃO REIS, 2002, p. 70. 19 Os trabalhos mais aprofundados sobre o surgimento dessas esquerdas são os já citados: Aarão Reis (1989), Gorender (2014) e Ridenti (2010). Para um panorama mais sintético de contextualização do surgimento e fragmentação dessas organizações, ver: RIDENTI, Marcelo. Esquerdas armadas urbanas: 1964 – 1974. In: ______; AARÃO REIS, Daniel. História do Marxismo no Brasil, vol. VI. Campinas: Editora Unicamp, 2007a, p. 105 – 152; RIDENTI, Marcelo. Esquerdas Revolucionárias armadas nos anos 1960 – 1970. In: FERREIRA, Jorge; AARAÃO REIS, Daniel. Esquerdas no Brasil, vol. III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007b, p. 21 – 52; ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta armada. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida. O Brasil Republicano. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013, p. 43 – 92 20 Sobre a participação dos EUA no golpe e apoio à ditadura ver: FICO, Carlos. O grande Irmão: da operação brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a Ditadura Militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008. Convém sempre lembrar que não devemos exagerar a influência do apoio dos agentes externos no golpe brasileiro, sob o risco de vermos a história brasileira simplesmente como joguete internacional e, também, sob risco de “absolvermos” aqueles que perpetraram o golpe pois estavam apenas “a reboque” de Washington, cf.: AARÃO REIS, Daniel. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: AARÃO REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964 – 2004). Bauru: EDUSC, 2004, 29 – 52, p. 33. 21 Não confundir com agrupamento homônimo do final da década de 1960. A tentativa de implementação de uma guerrilha rural, ainda sob governo constitucional de João Goulart, foi desbaratada antes mesmo de Julião conseguir lançar a guerrilha, cf.: RIDENTI, 2017a, p. 133, nota 3. 22 Denominação dos militantes para quando um grupo saía de uma organização para fundar outra. [ 491 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS grande parte dos militantes de São Paulo – onde o mesmo residia na época – esses dissidentes ficaram conhecidos como “Ala Marighella”, posteriormente adotam o nome de “Agrupamento comunista de São Paulo” e, em 1968, adota o nome de Ação Libertadora Nacional. 23 Outro fruto de dissidência do PCB foi o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), cujos militantes seriam os derrotados do VI Congresso Nacional do PCB que discordavam da linha pacifista defendida por Prestes. Dessa organização que optará pelas ações armadas com vistas a desencadeamento da guerrilha rural fizeram parte conhecidos comunistas como Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho e Mário Alves. As organizações mais radicais ficaram conhecidas como Dissidências, de origem estudantil. As mais importantes foram: Dissidência de São Paulo (DISP), que posteriormente cederá seus militantes a várias organização, a principal foi a ALN; Dissidência do Rio de Janeiro (DI-RJ), futuro Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8); Dissidência da Guanabara (DI-GB), após o desbaratamento do MR-8 a DI-GB assumirá o nome da organização MR-8, o qual assina o manifesto de captura do embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, em 1969; outras dissidências importantes foram as dissidências do Rio Grande do Sul (DI-RG) e do Distrito Federal (DI-DF). A DI-RG posteriormente se fundiria com militantes dissidentes da POLOP e fundariam o Partido Operário Comunista (POC), em 1970.24 Mas não apenas o PCB sofreria com a perda de militantes. PC do B sofrerá com diversas dissidências.25 As mais importantes foram em 1966 o Partido Comunista Revolucionário (PCR), de Pernambuco e a Ala vermelha do PC do B (ALA). Esse último formado por militantes retornados da China e insatisfeitos com a demora do desencadeamento da Guerrilha rural por parte do PC do B – denominados por eles de “ala branca”. A ALA também sofreria com minúsculas cisões, num partido já minúsculo, como o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) 26 e o Movimento Revolucionário Marxista (MRM), de 1969 e 1970, respectivamente.27 A POLOP também sofreia com rachas. Os principais foram: a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR); os Comandos de Libertação Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada Popular – Palmares (VARPalmares). Cada qual também com suas respectivas dissidências. Como podemos ver, o golpe civil-militar serviu para que os militantes das organizações originárias – a saber PCB, POLOP, PC do B – questionassem os rumos e decisões tomadas por essas organizações. O interessante de notar nessa miríade de partidos e organizações clandestinas é que, em sua maioria, queriam a deflagração de uma guerrilha rural. As organizações originárias do PCB e ALN propunham uma guerra de guerrilhas nos moldes do foco guerrilheiro castro-guevarista. Já as organizações ligadas, originalmente, ao PC do B primavam pela influência maoísta e a guerra popular prolongada. Os descendentes da POLOP pendiam pela influência do mito da Revolução Cubana, assim como a ALN. 28 No entanto, o único partido que efetivamente conseguiu efetivar a guerrilha rural fora o PC do B, na região do Araguaia. Esses diversos rachas permitem que usemos a feliz expressão de Marcelo Ridenti que enxergou nas esquerdas brasileiras uma verdadeira constelação de organizações.29 Porém, ao analisarmos a documentação produzida por essas diversas organizações, fica evidente o caráter ofensivo daquela luta. Não era apenas a luta pela democracia30, esses militantes almejavam uma revolução social. Chegamos a tal conclusão na leitura da bibliografia do tema já bastante citada aqui, mas, também, pelo livro organizado por Daniel Aarão RIDENTI, 2007a, 110. Sobre as dissidências estudantis ver: RIDENTI, 2007a, 114 – 118. 25 Lembrando que o próprio PC do B é um dissidência do PCB, de 1962, reivindicando serem os continuadores do Partido fundado em 1922, cf.: AARÃO REIS, 1989, 34-39. 26 Não confundir essa dissidência da ALA, o MRT, com o MRT originário das Ligas Camponesas. 27 Para uma análise sintética da “família” originária das dissidências do PC do B, ver: RIDENTI, 2007a, p. 126 – 129. 28 O mito difundido da Revolução Cubana está ligado ao fato, difundido pelos próprios líderes daquela Revolução, que bastava um punhado de homens corajosos e se poderia deflagrar uma revolução, ver: ROLLEMBERG, 2013, p. 60. 29 RIDENTI, 2010,p.27. 30 É importante lembrar que o desejo de Revolução não exclui a possibilidade de ambição de um regime mais democrático. Porém, estou disposta a concordar que as organizações revolucionárias desprezavam a “democracia liberal burguesa”. No projeto de mestrado no qual trabalho atualmente essa definição do conceito de democracia é parte seminal da pesquisa. No entanto, para esse trabalho a definição e debate sobre o conceito não é fundamental, já que espero evidenciar que as memórias divergem sobre o objetivo da luta armada. 23 24 [ 492 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Reis e Jair Ferreira de Sá, Imagens da Revolução.31 Este trabalho reúne diversos documentos das organizações revolucionárias entre os anos 1961 e 1971. Os organizadores próprios foram militantes da esquerda revolucionária, Daniel Reis dirigente da DI-GB/MR-8 e Jair Ferreira de Sá militante da Ação Popular/Ação Popular Marxista-Leninista. Esse trabalho além de fonte de consulta nos serviu, também, como objeto de pesquisa. Essas organizações tinham visões de Brasil diferente. De modo geral, as que vinham como rachas do PCB, mantiveram a análise do Brasil com resquícios feudais no campo e que a Revolução deveria realizar-se em duas etapas, a primeira de libertação nacional (antiimperialista), com participação maior ou menor da burguesia brasileira e, posteriormente haveria uma revolução de caráter socialista. 32 Como dito, a maioria das organizações oriundas do PCB mantiveram a mesma análise, excetuando-se a DI-GB/MR-8, que definia que a burguesia nacional já estava integrada com o grande capital estrangeiro, sendo assim o caráter da Revolução Brasileira seria socialista. Outras eram as divergências, a forma de organização era um debate recorrente: ou na forma de partido leninista centralizado (PC do B, PCBR e ALA), ou comandos revolucionários descentralizados (ALN e COLINA). 33 Já na década de 1970, no exílio, muitos militantes vão realizar um balanço da luta armada. Já aparecem as primeiras críticas, constatação do isolamento político e social. Porém como definiu Daniel Aarão Reis, o ano de 1979 e a anistia foram essenciais nos deslocamentos de sentido na memória das esquerdas brasileiras. A sociedade passou a enxergar-se como vítima da ditadura e via nos jovens revolucionários sua mais radicalizada luta democrática. Uma construção da memória. Como salientou o historiador, as esquerdas que perderam a batalha na história, saíram vencedora nas batalhas da memória. 34 Segundo Daniel Arrão Reis, criaram-se assim as condições para que, no interior da luta pela anistia, se operasse uma notável reconstrução: a luta armada ofensiva contra a ditadura militar, com objetivo de destruir o capitalismo e instaurar uma ditadura revolucionária, ou seja, o projeto revolucionário transmutou-se em resistência democrática contra a ditadura. As organizações revolucionárias, malgré elles-memê, foram recriadas como alas extremadas da resistência democrática. Ora, e de acordo com as elaborações prevalecentes no apagar das luzes do regime ditatorial, como todos, ou quase todos, haviam resistido, aqueles bravos rapazes e moças de armas na mão ganhavam seu lugar, legítimo como os desesperados de uma nobre causa, os equivocados de uma luta justa, agora, afinal, triunfante, a redemocratização. (grifos no original)35 Podemos interpretar essa reconstrução como uma das formas da sociedade brasileira conseguir harmonizar seu passado para poder adentrar o período democrático, como lembra Bruno Groppo, “uma sociedade recém-saída de uma ditadura raramente está pronta a se questionar de maneira crítica sobre esse passado, porque a verdade frequentemente é desagradável, dolorosa e difícil de aceitar”. 36 Dessa maneira a sociedade brasileira construiu uma memória com a qual poderia lidar. AARÃO REIS, Daniel; SÁ, Jair Ferreira de (org). Imagens da Revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961 – 1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. 32 RIDENTI, 2010, p. 36. 33 Para não nos estendermos, havia ainda o debate entre a maior ou menor importância dos trabalhadores na revolução. A VPR, inspirada em Gunder Frank, sustentava que o lumpemproletariado era a nova força revolucionária. Se as operações deveriam se focar no campo ou na cidade (apesar da grande maioria nunca ter lançado a guerrilha rural, defendiam que essa era a prioridade da luta revolucionária). Para uma melhor compreensão do debate entre as esquerdas ver: RIDENTI, op. cit., p. 27 – 70. 34 AARÃO REIS, 2004, p. 30. 35 Ibidem, 48 – 49. 36 GROPPO, 2015, p. 41. 31 [ 493 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Porém essas memórias são construídas a posteriori, a partir de valores que foram adquiridos depois. As esquerdas brasileiras aprenderam e incorporaram valores democráticos nas duras penas do exílio. 37 A partir desses valores esse militantes revolucionários ressignificam seu passado, introduzindo os valores democráticos onde eles não estavam, ou onde não eram dominantes. O valor das esquerdas revolucionárias não era a “democracia”, mas a “revolução”. Dessa forma o mito da sociedade resistente serve a conciliação da sociedade, mas não à história. Segundo Pierre Laborie, “a apropriação da Resistência como bem comum serviria de cortina de fumaça. Ela favorecia a amnésia e evitava dolorosos exames de consciência”. 38 Denise Rollemberg sintetiza, com notória perspicácia, o problema. Segundo a historiadora, a eliminação da participação civil no golpe tem como desdobramento desta interpretação, a democracia estruturaria a cultura política brasileira. O ano de 1979 teria sido decisivo, nesta elaboração, momento de conciliação nacional, quando se construía a democracia sem resolver o passado, sem esclarecer como e por que os militares haviam sido vitoriosos em 1964 e permaneciam no poder desde então. (grifos no original)39 É conveniente salientar que se “as esquerdas”, ou parte delas, “não eram democráticas, tampouco o eram as direitas”.40 Nessa avaliação há de ser historicizado o conceito de democracia, que como lembra Denise Rollemberg, o valor da democracia não era estruturante da cultura política brasileira dos anos de 1960. Muitas vezes esses militantes das esquerdas revolucionárias buscaram legitimar ações e posturas no presente, por meio, de suas ações passadas. Inclusive valendo-se desse passado politicamente no presente, porém, reconstruído a partir da mistificação ou da ideologia da resistência.41 Entendemos que é de fundamental importância que o campo progressista compreenda seu passado a luz dos ideais que os formaram e, também, os motivos que os levaram a esquecer seus reais objetivos na luta revolucionária. Como bem lembrou Marcelo Ridenti, o pesquisador não tem controle do uso (devido ou não, honesto ou não) dos seus estudos e conclusões. Logo pensamos ser importante que nesse trabalho não está em questão o julgamento moral dos militantes ou pior, não acreditamos que eles mudaram seus discursos com a finalidade de enganar a sociedade, mas entendemos isso como um processo natural de construção da memória que toda sociedade que emerge de uma ditadura de mais de duas décadas está sujeita.42 NA DISPUTA DAS MEMÓRIAS Nesta sessão do trabalho selecionamos quatro falas de quatro militantes. Essas passagens selecionadas, cabe ressaltar, foram escolhidas pela sua diversidade, não obedecendo uma sistemática específica, meu principal objetivo é evidenciar que não há unicidade nas memórias desses militantes, apesar de somente uma ter ganhado destaque na “memória nacional” – a saber, a memória de uma resistência democrática. Também é importante ressalvar que os relatos que trouxemos para esse trabalho são de pessoas que ainda se definem como “pessoas de esquerda” – ainda que este também seja um termo polissêmico. Comecemos pela fala de Eduardo Jorge que militou pelo PCBR e foi fundador do Partido dos Trabalhadores (PT). Eduardo Jorge se define como “sendo um socialista, portanto de esquerda, não é? Mas sou uma pessoa AARÃO REIS, 2002, p. 72-73. LABORIE apud ROLEMBERG, 2009, p. 574. 39 ROLLEMBERG, 2009, p. 572 40 RIDENTI, Marcelo. Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura: armadilhas para os pesquisadores. In: AARÃO REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964 – 2004). Bauru: Edusc, 2004, p. 53 – 66, p. 63. 41 Ibidem, p. 58. 42 Não se trata, do que muitas vezes é considerado, que a sociedade brasileira estava entre duas forças, a ditadura dos militares, ou o avanço revolucionário. Equiparar militantes revolucionários que pegaram em armas, que mal chegavam a casa dos mil, com o exército nacional bem equipado, seria no mínimo, desmedido. Cf.: ARRÃO REIS, 2002, 70 – 71; RIDENTI, op. cit., 63 – 64. 37 38 [ 494 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS que acredita que a democracia é uma questão essencial”.43 Portanto, não se trata de alguém ressentido com determinada visão política, ainda que Eduardo Jorge manifeste apreciações muito críticas as ações e visões da esquerda armada, com a qual mantêm uma relação bastante ambígua durante a entrevista. Por exemplo, ao falar da direção do PCBR, Eduardo Jorge fala da excelência de seus antigos comandantes, cita Jacob Gorender, Mário Alves e Apolônio de Carvalho. A esse último rende um longo elogio que segue: Quem era que era a direção, só pra você ter uma noção na qualidade da direção do PCBR [...] Eu to falando de Mário Alves, eu to falando de Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho. Apolônio de Carvalho o mais gentil dos comunistas que eu já conheci na minha vida, né? Um homem... militar do exército. Resistiu à ditadura do Vargas. Fugiu pra Espanha, lutou na... Guerra Civil espanhola com os Republicanos. De lá, fugiu pra França, entrou na resistência francesa. Casou com uma francesa. Veio com a... Veio com todas as condecorações da resistência francesa, esse era o Apolônio [risos]. Esses eram meus líderes, Apolônio, Mário Álves, Jacob Gorender.44 Porém, ao falar do Partido, como instituição não personificada, Eduardo Jorge tece duras críticas Aos posicionamentos aos quais eram adeptos: Nós éramos pela ditadura do proletariado. Nós éramos contra a ditadura militar. Mas éramos a favor da ditadura do proletariado. Isso aí é preciso dizer a verdade toda, né?! Às vezes eu ouço meias verdades, né! Como a ditadura militar nos oprimiu barbaramente, né?! De forma violenta, muitas vezes as pessoas pensam que não existiam, no campo da esquerda, coisa igual e até pior, em vários aspectos, não é? O Stalin e o Hitler, eles disputam pau a pau a medalha de ouro de genocidas na história recente. E o Mao Tsé-Tung vinha ali na medalha de prata [...] Eu sou de esquerda, sim! Mas sou uma pessoa de esquerda, um socialista que acredita que a democracia é um regime que a gente tem que preservar, valorizar e cultivar.45 Dessa forma Eduardo Jorge busca manter uma visão positiva de seus comandantes, mas altamente crítica as suas ações. Essa entrevista foi concedida enquanto Eduardo Jorge era candidato a presidência da República em 2014. Podemos inferir que, ao mesmo tempo que fazia críticas a esquerda armada, buscando assim reconhecer aquilo que poderia se pensar como erros desses militantes, buscando acenar a eleitores de centro. Mas, também, sinalizava aos eleitores de centro-esquerda com a não negação de sua orientação “socialista”. Outra figura emblemática da luta armada, foi Vera Sílvia Magalhães, ficou famosa por ser a única mulher a participar do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. Vera foi militante da DI-GB/MR-8 presa, torturada e exilada. Foi símbolo da luta pelo fim da tortura nos quartéis do Brasil devido a sua foto no momento de sua libertação, Vera saiu tão vilipendiada que não podia caminhar, estava numa cadeira de rodas. A militante lembra com orgulho de seu tempo de combate a ditadura, segundo ela: Ah valeu! Só não valeu pra quem morreu. É contraditório o que eu to dizendo. Mas é... como eu te digo, eu adquiri... não tinha nada de melhor a ser feito [luta contra a ditadura] na minha geração. Eu acho que o que havia de melhor na minha geração, JORGE, Eduardo. FLUXO com Eduardo Jorge (parte 1). Entrevistador: Bruno Torturra. Mountain View: Google, 2014 (ca. 25 min 52 s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=M54n1x_7Da8> acesso em: 10 de setembro de 2018. 44 JORGE, 2014. 45 Idem. 43 [ 495 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS fez o que eu fiz, essa era a nata da geração. Fez errado? Não importa! As intenções e a experiência que acumulou tava nesse núcleo que resistiu a ditadura. 46 O mais interessante, contudo, é a avaliação que Vera faz da opção revolucionária. Mesmo afirmando que o melhor de sua geração fez aquilo que ela mesma fez, doravante, luta contra a Ditadura, ou melhor, luta armada contra a Ditadura, Vera condena essa mesma opção durante a mesma entrevista: Aí ficou [depois da queda do congresso de Ibiúna e da promulgação do AI-5] na vanguarda do movimento – aí já não mais o movimento estudantil –, o movimento social de tomada do poder. É isso que nós queríamos, e transformação daquilo em socialismo. E que nós não éramos contra a ditadura, nós éramos contra a ditadura militar-burguesa, mas nós éramos a favor da ditadura do proletariado, isso ninguém diz, mas tem que dizer, porque faz parte da nossa história. 47 E completa num momento posterior, A gente não é conservador, não adianta! Não é no amor, não é com homem, não é no trabalho. Eu sou sempre uma pessoa revolucionária [...] Sou contra a ditadura do proletariado sou contra qualquer tipo de ditadura [...] o que não quer dizer que eu não deixe de, nas minhas aulas, na minha micropolítica [de] transmitir uma ideia socialista, entendeu? Eu sou uma socialista. 48 As palavras de Vera Sílvia Magalhães, assim como as de Eduardo Jorge, são eivadas, num primeiro olhar, de contradições. Ou seja, considera que fez o certo, e defendia o errado? E por que essas memórias da luta pela ditadura do proletariado49 ficaram esquecidas, ou não ganharam o devido espaço na memória sobre o período? Já defendendo outra percepção da luta armada, como uma espécie de luta pela democracia, temos outra gama de militantes. Talvez um dos mais famosos seja o ex-líder estudantil, fundador do PT e exministro chefe da casa Civil, José Dirceu. Dirceu foi um importante líder estudantil, libertado pelo sequetro do embaixador americano em 1969. Fez treinamento guerrilheiro em Cuba, onde ingressou numa dissidência da ALN, o Movimento de Libertação Popular, sigla MOLIPO. Em recente entrevista, em razão do lançamento de seu livro de memórias, ao ser perguntado por Paulo Henrique Amorim quando ele – Dirceu – se deu conta que deveria lutar pela democracia – numa alusão, sub-reptícia, de que, anteriormente, ele não lutava – ele responde da seguinte maneira, Não! Sempre, nós nunca fomos contra... Nós queríamos “volta a democracia”, a ditadura que implantou no Brasil... Isso também é... às vez fala “eles eram totalitários, também. Que eles eram socialista”. Eu, por exemplo, quando invadiram a Checoslováquia, o pacto de Varsóvia, eu fui contra, ta na Folha de São Paulo. Vieram me entrevistar, eu falei: “Sou totalmente contra, eu luto aqui pela democracia, como é que eu posso ser contra as reformas que estão sendo feitas pelo [Alexander] Dubček na Checoslováquia” entendeu?! Nós lutávamos pela democracia, nós queríamos a volta da democracia, nós távamos lutando contra a ditadura. Os partidos e as organizações políticas, muitas delas, tinham programas MAGALHÃES, Vera Silvia. Memória Política – Vera Silvia Magalhães. TV Câmara. Mountain View: Google, 2011 (1h 00 min 57s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=q8fUe7vsj2s&t=2357s> acesso em: 10 de setembro de 2018. 47 MAGALHÃES, 2011. 48 Idem. 49 Aqui não vou me deter na definição teórica do que seria, dentro da teoria marxista, uma ditadura do proletariado, já que os entrevistados utilizam a ideia, ao que tudo indica, como uma simples oposição a ditadura militar de direita. 46 [ 496 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS democráticos nacionalista, ou de libertação popular como MOLIPO, é o movimento de libertação popular, né? Não tinha programas socialistas, entendeu? O caráter da Revolução brasileira é outra discussão[...] Agora, isso não tira a legitimidade de um imperativo moral de resistir a ditadura, e o direito natural que nós temos a rebelião quando se implanta um governo de opressão, e um governo... uma ditadura, inclusive a carta da ONU nos da esse direito.50 Dirceu faz uma importante ressalva, ao qual já nos referimos na sessão anterior. Realmente a discussão sobre o caráter da Revolução brasileira era uma questão em aberto. Mas, não é verídico que não existissem programas socialistas para o Brasil. Duas das mais importantes organizações da luta armada defendiam uma Revolução Socialista para o Brasil, são elas: A POLOP e seu Programa Socialista para o Brasil51; e o MR-8 em sua Linha Política e orientação para prática.52 Ambas organizações defendiam o caráter socialista da Revolução Brasileira. Mas a ressalva de Dirceu é importante. Não raramente os militantes da esquerda armada são acusados de defenderem, ou se inspirarem em regimes autoritários. Isso, em nosso entender, carrega uma boa dose de anacronismo. As organizações da esquerda revolucionária tinham, basicamente, três grandes inspirações, a Revolução Cubana, a Revolução Chinesa (principalmente a Revolução Cultural) e as revoluções do Terceiro Mundo, de caráter de libertação nacional. Em alguma medida, reivindicavam a Revolução Russa de 1917, mas negando o período stalinista posterior. Dessa maneira, esse militantes não estavam a par dos acontecimentos e de todos desdobramentos da Revolução Cultural chinesa, por exemplo. Hoje é público e notório as violações de direitos humanos em grande parte dessas revoluções, mas, na década de 1960 e início de 1970 esses militantes não tinham tais informações e ainda mantinham idealizações desses processos revolucionários. O último depoimento que trazemos é do militante Manoel Cyrillo. Integrando a ALN, Cyrillo também fez parte do grupo que sequestrou o embaixador Charles Burke Elbrick. Na passagem que trazemos, Cyrillo traz suas influências e como e porque passou a integrar uma das mais radicais organizações revolucionárias do Brasil. Em suas palavras: Aí entra a minha história. Eu vinha de uma turma de bairro, nas Perdizes, que se reunia na padaria. E dois ou três companheiros, amigos, começaram a trazer discussões da conjuntura da época, acompanhando leitura de jornal e discutindo coletivamente, e isso foi evoluindo, foi crescendo. Entrei na luta pela resistência democrática; minha revolta foi por aí. E daquela turminha da padaria, depois de lermos Por que resisti à prisão [livro de autoria de Carlos Marighela], eu e quatro companheiros entramos na ALN, no GTA [grupo tático armado] da ALN. 53 O relato é bastante interessante. Cyrillo faz questão de ressaltar que participou da luta armada pela “resistência democrática” e após a leitura do livro de Marighela. Sua entrada não foi num setor de “massas” – designação dada pelo militantes que integravam a seção das organizações responsáveis pela ação junto à população – mas diretamente no GTA, setor mais importante e ofensivo das esquerdas armadas. Nosso intento aqui não é comprovar que Cyrillo mentiu ou falou a verdade. A sua declaração pode ser muito bem aquilo que ele considera ter feito, ou, não nego essa possibilidade, que de fato esse tenha sido o motivo de entrar para a luta armada. No entanto, na documentação dessas organizações os objetivos eram sempre DIRCEU, José. Lula é o maior ídolo do Dirceu. Entrevistador: Paulo Henrique Amorim. Mountain View: Google, 2018. (1h 15 min 16 s) Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MxU_AJCqVWc&t=615s> acesso em: 10 de setembro de 2018. 51 O documento pode ser consultado em: ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA MARXISTA – POLÍTICA OPERÁRIA. Programa Socialista para o Brasil. In: AARÃO REIS, Daniel; SÁ, Jair Ferreira(org). Imagens da Revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961 – 1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985, 89 – 116. 52 Cf.: MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO 8 DE OUTUBRO. Linha política e orientação para prática. In: AARÃO REIS, Daniel; SÁ, Jair Ferreira (org). Imagens da Revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961 – 1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985, p. 340 – 356. 53 DA-RIN, Silvio. Hércules 56: o sequestro do embaixador norte-americano em 1969. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 294. 50 [ 497 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS ofensivos contra a ditadura, e não de restauração da democracia pré 1964. Os militantes poderiam ter opiniões diversas daquelas manifestadas pelas organizações? É possível, porém, cremos que as intenções das organizações se sobrepujavam a dos militantes isolados. CONSIDERAÇÕES FINAIS Antes da finalização desse texto, gostaríamos de realizar algumas considerações. Primeiramente, é totalmente fora de nosso propósito realizar qualquer tipo de “julgamento moral” das ações das esquerdas armadas das décadas de 1960-70. Essa ressalva é importante devido às operações historiográficas realizadas por um número ínfimo de historiadores e um número maior de jornalistas e políticos que tentam, por meio de um revisionismo imprudente, resguardar ou comemorar o golpe de 1964 e a ditadura subsequente. Em recente declaração infeliz, o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antônio Dias Toffoli, comparou o incomparável. Deu sobre vida a Teoria dos Dois Demônios.54 O eminente ministro alegou que não se deveria chamar o ocorrido em 31 de março de 1964 (ou primeiro de abril) nem de Golpe, nem de Revolução, mas sim de movimento de 64. O presidente do Supremo afirmou, Não foi um golpe nem uma revolução. Me refiro a movimento de 1964. Hoje, afirmo isso graças ao ensinamento do ministro da Justiça, Torquato Jardim [...] Foi apropriado tanto para a esquerda quanto para a direita criticar a ditadura. A crítica, especialmente da sociedade conservadora, gerou um desgaste da legitimidade do governo.55 Interpretações como essa tem tomado vulto mesmo com dezenas de argumentos, evidências e produção bibliográfica apontando o contrário. Tendo isso em mente, nosso trabalho não se insere nessa onda revisionista que tem assolado o Brasil. Mas não queremos, também, pecar pelo oposto e realizarmos um trabalho de “elogio” aos “heróis” nacionais. Como alertou Marcelo Ridenti, não devemos nos deixar persuadir pela ideologia da resistência democrática.56 Diversos autores têm discutido se o conceito de resistência seria apropriado para pensar as organizações de esquerda no Brasil. Daniel Aarão Reis nega que as esquerdas armadas tenham participado da resistência contra a ditadura e enfatiza seu caráter ofensivo e revolucionário. Aarão Reis destaca, Um primeiro deslocamento de sentido, promovido pelos partidários de uma ampla anistia, apresentou as esquerdas revolucionárias como parte integrante da resistência democrática, uma espécie de braço armado dessa resistência. Apagouse, assim, o caráter revolucionário da proposta que havia moldado aquelas esquerdas. Ou seja, apagou-se o fato de que eram partidárias de uma ditadura revolucionária para efetuar as transformações radicais, essenciais à construção de uma sociedade livre da exploração e da opressão. Do ponto de vista histórico, não havia aí nada de inusitado ou excepcional, pois os modelos revolucionários do século XX haviam desembocado, realmente, em experiências ditatoriais. (grifos no original)57 Criada na Argentina e depois “importada” para o Brasil, a dita teoria alegava que os golpes militares eram justificáveis, pois, se os militares não dessem o golpe, as esquerdas o dariam. 55 ROCHA, André Ítalo; BRIDI, Carla. Toffoli diz que prefere chamar ditadura militar de 'movimento de 1964'. O Estado de São Paulo. São Paulo, 1 Out. 2018. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,toffoli-nao-vi-projeto-nacional-mesmo-auma-semana-da-eleicao,70002527529> acessado em 29 de outubro de 2018. 56 RIDENTI, 2004, p. 57-58. 57 AARÃO REIS, 2014, p. 133-134 54 [ 498 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O professor Marcelo Ridenti, em contra partida, afirma que, por mais que houvesse um projeto ofensivo, o papel das esquerdas no Brasil teria sido de resistência, mas concorda que não se deve utilizá-lo acompanhado do adjetivo democrático, afim de evitar mal entendidos e aquilo que o mesmo qualificou como ideologia da resistência democrática. Há de se incluir nesse debate o recente trabalho da professora Denise Rollemberg onde faz um levantamento historiográfico e teórico dos usos do conceito de resistência, tendo em vista, principalmente a frança sob regime de Vichy. Segundo Denise Rollemberg, o conceito de resistência poderia ter tanto o sentido de lutar pela manutenção ou restabelecimento de uma ordem anterior, ou como um sentido ofensivo contra a ordem estabelecida. 58 Chegando ao fim deste breve texto, buscamos evidenciar o caráter múltiplo das memórias dos militantes da luta armada. Apesar de, durante um longo tempo, a memória que prevaleceu na sociedade foi a memória da resistência democrática, isso não está pacificado nem entre os próprios partícipes da luta revolucionária. Compreender melhor os objetivos das esquerdas revolucionárias também faz parte de um projeto político contemporâneo, que busca combater àqueles que querem atribuir a culpa às esquerdas pelo golpe civil-militar e a ditadura que se abateu sobre nosso país. REFERÊNCIAS AARÃO REIS, Daniel. A Revolução Faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1989. ______. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. 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A problemática de estudo é caracterizar, a nível discurso, as proposições sociais e político-econômicos ao mundo rural, através da metodologia da análise do discurso. Observamos, para a constituição da pesquisa, o contexto sócio histórico em que o sujeito dos discursos se encontrava. Dentro da nova proposta do governo varguista, que podemos observar nos discursos deste período, encontramos o anseio de mudança do modelo agrário exportador para um mundo rural voltado ao interesse nacional. O trabalhador rural, os projetos de auxílio a este, a preocupação com o seu método de produção e propriedade dão espaço a um interesse voltado inteiramente ao capital industrial. Por conseguinte, podemos perceber ao longo destes dezessete discursos como o olhar do governo Vargas para o mundo rural muda conforme as fases de seu governo que iniciam em 1930 e procedem até 1945. Introdução Este trabalho, vinculado ao projeto de pesquisa “Práticas político-jurídicas e econômicas no processo de ocupação do espaço e da constituição da sociedade sul brasileiro - 1930 a 1990” procura compreender os anseios e objetivos sociais e político-econômicos do governo de Getúlio Vargas que surgiu em 1930, compreendendo, assim, quais eram seus projetos desenvolvimentistas propostos ao mundo rural. Para o entendimento destes aspectos foram utilizados os discursos referentes ao mundo rural, pronunciados por Getúlio Vargas. Assim, como forma metodológica foi empregue a Análise de Discurso. Para a análise dos discursos foram utilizados como fonte dezessete discursos entre o período de 1930-1945 que pertencem a três temporalidades do governo varguista. Sete discursos pertencentes ao Governo Provisório (1930-1934), três discursos do Governo Constitucional (1934-1937) e sete discursos referentes ao Estado Novo (1937-1945). Para a realização desta pesquisa observamos o contexto sócio histórico de cada período do governo Vargas em que os discursos se encontram, dispondo, assim, analisá-los dentro de sua própria conjuntura. Através da compreensão de Mikhail Bakhtin entendemos que para analisar os discursos necessita-se compreender sua estrutura e também seu contexto sócio histórico. Deste modo é necessário que se realize através da Análise de Discurso o estudo do locutor e de sua mensagem através de quatro questões norteadoras propostas: reconhecer a quem o discurso se destinava, como o locutor se manifesta, de que forma evidencia sua mensagem e, por fim, como o contexto da mensagem exposta, comunica-se com o contexto sócio histórico do período analisado. Deste modo, este artigo procura abordar, através dos dezessete discursos de Getúlio Vargas, os objetivos e interesses do governo acerca do mundo rural, procurando compreender o projeto desenvolvimentista presente nos discursos entre o período de 1930-1945. O Governo Provisório e os primeiros discursos de Getúlio Vargas Durante o primeiro período da Era Vargas, o chamado Governo Provisório, Getúlio Vargas, na tentativa de firmar-se e autenticar-se no poder, realizou seus discursos em diferentes regiões do Brasil. Mesmo que ainda administrado pela Constituição de 1891 o governo de Vargas propõe em seus discursos, referentes ao mundo rural, algumas modificações em comparação com a Primeira República. Assim, estes Acadêmica do 8º nível do curso de História pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Realizou atividades como bolsista PIBIC-CNPq e atualmente desenvolve o trabalho de conclusão de curso através do estudo dos discursos de Getúlio Vargas sobre o mundo rural, da Constituição e Legislações Agrárias e de processos civis do norte do Rio Grande do Sul. E-mail: vicomiran@gmail.com 1 [ 501 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS primeiros sete discursos serviram como manifesto das transformações sociais e político-econômicas pretendidas pelo novo governo. Os discursos deste período foram pronunciados nos seguintes estados: Rio de Janeiro (1930), Minas Gerais (1931), Bahia (1933), Pernambuco (1933), Paraíba (1933), Ceará (1933) e Pará (1933). Como podemos perceber, os discursos foram pronunciados majoritariamente no nordeste do país durante o Governo Provisório e este fator nos evidencia como o Estado voltou-se a esta região para iniciar as manifestações de seus anseios e visões para o Brasil. Dentro da conjuntura temporal, estes sete discursos irão explorar o conteúdo referente ao mundo rural, demonstrando as influências frente ao contexto histórico. Deste modo, em relação ao contexto vivido durante a Primeira República em que a economia era principalmente voltada à produção agrárioexportadora observamos nos discursos do Governo Provisório as primeiras iniciativas de mudança deste modelo para o incentivo do capital industrial. Assim, estes discursos se encontram como sendo os primeiros em que se discute um projeto de desenvolvimento nacional. O primeiro discurso realizado no Rio de Janeiro em 1930 se destaca pelos ideários de construção de uma nova nação frente à Primeira República. O mundo rural, para isso, recebe diversas propostas e idealizações para uma modificação de suas bases. Anteriormente, as bases do mundo rural se concentravam, principalmente, nos grandes latifundiários da cafeicultura e a produção era destinada à exportação. Assim, podemos observar as novas intenções do governo, no que se refere ao mundo rural, no primeiro discurso de Vargas em que expõe seus ideais de transformação, em que diz: 2) saneamento moral e físico, extirpando ou inutilizando os agentes de corrupção, por todos os meios adequados a uma campanha sistemática de defesa social e educação sanitária; 12) reorganização do Ministério da Agricultura, aparelho atualmente rígido e inoperante, para adaptá-lo ás necessidades do problema agrícola brasileiro; 13) intensificar a produção pela policultura e adotar uma política internacional de aproximação econômica, facilitando o escoamento das nossas sobras exportáveis; 16) promover, sem violência, a extinção progressiva do latifúndio, protegendo a organização da pequena propriedade, mediante a transferencia direta de lotes de terra de cultura ao trabalhador agrícola, preferentemente ao nacional, estimulando-o a construir com as próprias mãos, em terra própria, o edifício de sua prosperidade (VARGAS, 1930, p. 18-19-20). Vargas utilizava em seus discursos palavras como terra, propriedade, agricultor e produção para as novas projeções do seu governo em relação ao mundo rural. Entre estas projeções podemos observar no que se refere à citação acima questões referentes à: uma campanha de defesa social e educação sanitária, extinguindo os agentes de corrupção, o que nos mostra que o período da Primeira República foi de descaso e principalmente, de desvirtuação, o que propõe Vargas, então, é um governo com novas ações frente ao que era mantido na Primeira República. A reorganização do Ministério da Agricultura, apresentando, então, a ideia de que este estava desarranjado ou que Vargas propunha uma nova composição deste Ministério frente ao seu governo. O incentivo à policultura, que nos monstra que a Primeira República não estimulava a policultura do modo como Vargas a pretende, aduzindo, assim, que os interesses do governo anterior se voltavam ao latifundiário e na exportação, principalmente, do café. A extinção progressiva do latifúndio, referindo-nos que a Primeira República foi um período, como dito anteriormente, comandado pelos grandes latifundiários que regiam o país a partir das oligarquias regionais. Vargas propõe assim, dissipar este modo pelo qual o país se estruturou e, por seguinte, ao discursar a favor de uma extinção do latifúndio, nos mostra que defendia o arranjo agrário a partir das pequenas propriedades. Neste sentido, os demais discursos referentes ao Governo Provisório seguirão este norte traçado no primeiro discurso de Vargas como chefe do governo. Os quatro discursos pronunciados no nordeste do país, Bahia, Ceará, Pernambuco e Paraíba possuíam como foco o trabalhador rural. O governo varguista voltou-se para o modo de produção destes [ 502 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS trabalhadores, suas condições de vida e, principalmente, o papel do tenentismo na região para evidenciar seus novos objetivos e intenções, como podemos observar: Por vezes, o seu aspecto é miserável, mas, no corpo combalido, aninha-se a alma forte que venceu a natureza amazônica e desbravou o Acre. Em algumas regiões, vemo-lo quebrantado pelas moléstias tropicais, enfraquecido pela miséria, mal alimentado, indolente e sem iniciativa, como se fosse um autômato. Dai a esse espectro farta alimentação e trabalho compensador; criailhe a capacidade de pensar, instruindo-o, educando-o, e rivalizará com os melhores homens do mundo (VARGAS, 1933, p. 325). Entre as grandes intenções manifestadas nos discursos de Vargas podemos observar, no nordeste do país, questões referentes a uma educação rural para os trabalhadores do campo, evidenciando alguns pontos de interesse do governo varguista ao mundo rural, como: o auxílio ao trabalhador do campo para um aperfeiçoamento do seu trabalho e, consequentemente, uma melhor produção propiciando um desenvolvimento da produção em escala nacional. Na citação acima podemos observar que Vargas se utiliza dos aspectos julgados como “miseráveis” do trabalhador rural para promover os objetivos do seu governo referentes a uma educação para as pessoas do campo. Se observarmos como Vargas se utiliza da característica para desfazer o aspecto deste trabalhador nos indica que na sua visão o governo anterior, comandado pelos grandes latifundiários, não realizou políticas que visassem um auxílio ou proteção deste trabalhador rural. Assim, o trabalhador rural se encontra, no momento do discurso, definido a partir destas características para invalidar o governo anterior e também para servir de base do novo trazido por Vargas a partir dos anseios manifestados no discurso. Entre outras questões presentes nos discursos destinados ao nordeste e ao norte do país podemos observar os objetivos de uma (re) territorialização do homem do campo, onde o governo procurava amparar o produtor rural fazendo-o ocupar novas áreas produtivas. Vargas se pronunciava também a respeito da criação do Crédito Agrícola para auxiliar os produtores quanto ao custeio da produção e de novos maquinários, demonstrando que o novo governo se interessava pela produção deste pequeno produtor criando novos mecanismos para auxiliá-lo. Além da preocupação demonstrada nos discursos com os produtores rurais, suas formas de trabalho e de produção, o discurso neste período, como é o caso do pronunciado em Minas Gerais evidencia as primeiras intenções do governo Vargas acerca do mundo rural voltando-o à industrialização, como poderemos perceber nos demais discursos pronunciados durante o período do Governo Constitucional. Neste discurso Vargas disserta sobre o aumento da produção de álcool e algodão para um fortalecimento da indústria nacional, como podemos ver: O nosso engrandecimento tem que provir da terra, pelo intenso desenvolvimento da agricultura. Mas, o esforço para esse fim se esteriliza e fraqueia, ao lembrarmonos que todo o maquinismo, desde o arado que sulca o seio da gleba até o veículo que transporta o produto das colheitas, deva vir do estrangeiro (VARGAS, 1931, p. 47). Nesta citação podemos analisar o discurso observando que Vargas defende o mundo rural como base para o futuro desenvolvimento nacional. No que se refere à palavra engrandecimento podemos interpretar a partir do ponto em que compreendemos que o país não é notável e para isso precisa se investir no mundo rural e na indústria que por ventura o sustenta, ou pelo viés em que o Brasil é um país grandioso, mas só poderia ascender para um desenvolvimento pleno quando se preocupasse em investir nas indústrias nacionais para se desvincular do estrangeiro. Apesar do considerável aumento de indústrias no período pré-1930, em que em 1920 havia 13.336 indústrias no país (CENSO, 1920), a população continuava a ser majoritariamente rural. Assim, percebemos [ 503 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS que é neste sentido que Vargas passa a discursar em detrimento de uma produção voltada para o interesse industrial ao logo do Governo Constitucional. O Governo Constitucional e os primeiros aspectos industriais do mundo rural Este novo período do governo de 1934-1937 em que houve a elaboração de uma Constituição nos mostra muito dos objetivos industriais planejados pelo governo varguista. Os discursos deste período foram pronunciados no Rio Grande do Sul (1934), Rio de Janeiro (1936) e Bahia (1936) e vão dissertar sobre o fomento da indústria nacional e o desenvolvimento econômico. Como observa Fonseca o governo que iniciou em 1930 demonstra um novo estilo econômico, referente à diminuição das importações e aumento da produção (FONSECA, 2014). Podemos observar esta questão nos discursos referentes à indústria pronunciados no Rio de Janeiro e na Bahia. Nestes Vargas discursa sobre a industrialização do açúcar e do cacau, respectivamente. Em referência ao açúcar Vargas disserta sobre a criação do Instituto do Açúcar e Álcool, em 1933. Neste sentido, podemos perceber como o governo de Vargas estabelece em seu discurso um viés industrial, agindo, ao incentivar a produção açucareira e a criação do Instituto, como regularizador da economia e da agroindústria do açúcar. Podemos observar na fala de Vargas a importância desta produção, “Sobre as vantagens da industrialização do álcool depõe significativamente o acentuado crescimento da produção, que passou de 33 milhões de litros, em 1930, a 47 milhões, em 1935.” (VARGAS, 1936, p. 163). A modernização da baixada fluminense se torna essencial, para Vargas, para um fortalecimento da economia, tendo como base o mundo rural que, por sua vez, leva ao desenvolvimento nacional, como podemos ver na citação que se refere às destilarias: Uma delas aí está em construção, com capacidade para produzir, diariamente, 60 mil litros e custo orçado em 20.000:000$. Campos recolherá diretamente os benefícios desse melhoramento, ficando aparelhado para desenvolver em condições excepcionais a sua indústria básica. Diante de perspectivas tão animadoras, a ação dos seus homens de trabalho não pode esmorecer. Vinculados ao progresso campista de aspectos tão intensos e multiformes, tudo os impele a prosseguir resolutamente nas fecundas iniciativas que vêm fazendo a prosperidade deste privilegiado recanto fluminense (VARGAS, 1936, p. 164). Podemos compreender nesta citação que Vargas alude a prosperidade fluminense como consequência das indústrias que se instalaram na região. Com isso, evidencia que, apesar do potencial de uma produção industrial, vindo da produção rural da cana, a região não sofria investimentos, no período anterior à Vargas e que seu governo foi o que iniciou este processo, trazendo um melhoramento na região que até então, não se observava, de acordo com o discurso. No discurso pronunciado na Bahia observamos a mesma questão industrial, no entanto voltada à produção do cacau. Vargas disserta sobre a criação do Instituto do Cacau através do melhoramento da produção do produto que, por sua vez, só pode ocorrer em decorrência do incentivo do governo em auxiliar o produtor durante o Governo Provisório. No contexto em que se inserem estes discursos podemos observar o interesse do governo em tornar sua economia independente das potências do período, como é o caso dos Estados Unidos e da Alemanha. Os dois países na década de 1930 eram os principais compradores e fornecedores de produtos para o Brasil. O Brasil, desta forma, caracterizava-se por uma política bilateral entre as duas potências e, assim, ansiava por uma independência econômica ao passo que fortificava sua economia, tendo como base o mundo rural. Dentro deste período o discurso pronunciado no Rio Grande do Sul, primeiro durante o Governo Constitucional, serve como legitimador dos objetivos do governo varguista acerca do mundo rural. Vargas disserta sobre as realizações do seu governo durante o período Provisório, como cita: “determinou-se um [ 504 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS plano sistemático de combate às secas do Nordeste, com resultados nunca atingidos em mais de um século [...]” (VARGAS, 1934, p. 26). Neste fragmento do discurso podemos entender que as secas na região no Nordeste do país não eram um fator que levasse preocupação aos governantes da Primeira República, pois, como cita Vargas, foi durante seu Governo Provisório que se estabeleceu um plano para combater esta situação. No entanto, se analisarmos com mais veemência a palavra sistemático, neste fragmento, podemos entendê-la como constante ou permanente, assim, por seguinte, compreendemos que, mesmo que os governantes da Primeira República tenham realizados projetos para combater as secas na região Nordeste, estes não foram orientados da maneira permanente e constante como foram os programas mantidos pelo governo varguista. Assim, percebemos que os discursos deste período compõem a nova organização político-econômica visada pelo governo varguista e que se mostra evidente nos discursos analisados anteriormente neste mesmo período, a difusão de um mundo rural baseado na industrialização. Estado Novo e a industrialização do mundo rural O Estado Novo inicia em 1937 com o golpe planejado em detrimento da chamada “ameaça comunista”. O novo governo de Vargas caracterizou-se pela repressão e, sobretudo, neste período podemos observar nos discursos, o grande incentivo de uma industrialização nacional. Se no período do Governo Constitucional, os anseios do governo se mostravam evidentes em um nascimento da indústria utilizando como base o mundo rural, durante o Estado Novo, os discursos de Vargas já estão inteiramente inseridos neste contexto de desenvolvimento nacional. Os sete discursos acerca do mundo rural pronunciados neste período foram realizados nos seguintes estados: Rio de Janeiro (1937, 1940, 1941, 1943), Minas Gerais (1939), São Paulo (1943) e Paraná (1944). Os discursos no Rio de Janeiro de 1940 e 1941 foram direcionados ao dia do trabalhador e focados, especialmente ao trabalhador urbano, o operariado. O trabalhador rural, antes muito saudado durante os discursos do Governo Provisório como sendo a base pela qual o Brasil se sustentava e também pela qual a indústria se sustentaria, não é mencionado. O discurso pronunciado por Vargas no Rio de Janeiro em 1937 sobre ocasião de posse do novo Estado, assim como na posse de 1934, desenvolve seu conteúdo através dos feitos realizados pelo governo durante o Governo Constitucional, principalmente os referentes à economia nacional. Em referência ao mundo rural, podemos observar este em segundo plano no fragmento abaixo: Precisamos equipar as vias férreas do país, de modo a oferecerem transporte econômico aos produtos das diversas regiões, bem como construir novos traçados e abrir rodovias, prosseguindo na execução do nosso plano de comunicações, particularmente no que se refere à penetração do hinterland e articulação dos centros de consumo interno com os escoadouros de exportação (VARGAS, 1937, p. 28). O mundo rural, no discurso acima, se encontra na ideia de modernização ligada à industrialização. Vargas menciona o aparelhamento da malha férrea e a criação de rodovias para o melhor escoamento da produção e para interligar os centros de consumo. Isto mostra que Vargas se baseia na ideia de um desenvolvimento nacional e assim tange novos objetivos ligados ao melhoramento dos meios pelos quais circulam os produtos. Vargas assume o papel de modernizador, esquecendo, por se dizer, do pequeno produtor para focarse no ideal de um desenvolvimento nacional que nasce com o seu governo, de acordo com o discurso, pois menciona como “nosso plano” a questão da modificação destas estruturas. Assim como no que se refere à palavra “articulação”, compreendemos, aqui, que os centros de consumo e os escoadouros de exportação já existiam, mas não se encontravam interligados, com isso, Vargas planeja sua articulação como sinal do seu plano de desenvolvimento. [ 505 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Os demais discursos do Estado Novo se correlacionam com a ideia do mundo rural voltado para a industrialização, como é o caso dos discursos pronunciados em Minas Gerais e São Paulo. O discurso pronunciado no Paraná, em 1944, por sua vez, o último desta análise, ocorre com a intenção de Vargas tentar manter-se no poder e é denominado “Brasil visto como um todo”, servindo como legitimador do que seu governo fez desde 1930. Podemos observar na citação abaixo esta constatação: A situação precária em que o movimento revolucionário de 30 encontrou as finanças públicas modificou-se completamente. Sucedeu-lhe uma fase próspera, de seguro equilíbrio, evidente na pontualidade dos pagamentos, liquidação a termo dos compromissos internos e na execução de vasto programa de obras públicas, tornado possível por uma receita superior a 100 milhões de cruzeiros, que permite atacar de frente os problemas de comunicação, educação, saúde e fomento da produção, sem descurar a assistência social (VARGAS, 1944, p. 255). Neste fragmento do discurso podemos observar que Vargas retrocede sua fala a partir da Revolução de 1930. Vargas menciona sobre a situação encontrada pelo novo governo ao assumir o poder. Ao analisarmos o que nos mostra a palavra “precária” observamos que o governo anterior possuía uma administração insatisfatória ou deficiente das finanças públicas, não sendo, assim, um governo sólido em relação ao controle financeiro. Podemos observar esta questão no que se refere ao café e ao Convênio de Taubaté (1906) que estabeleceu o Estado como comprador das sacas de café não exportadas, prejudicando, desta forma a economia nacional, mas beneficiando, assim, os latifundiários do produto. No discurso também analisamos como Getúlio Vargas coloca seu governo como aquele que trouxe a prosperidade nacional, ao investir nas obras públicas, solucionando alguns dos problemas que haviam persistido desde a Primeira República. Getúlio Vargas, assim sendo, durante este discurso pronunciava sobre as realizações trazidas pelo seu governo para legitimar o Estado e mostrar à população seus feitos, assim como mostrar que, frente ao que havia antes de 1930, seu governo trouxe grandes avanços. Considerações finais Este artigo, ao propor uma análise, mesmo que breve, dos discursos de Getúlio Vargas sobre o mundo rural durante o período de 1930-1945, nos mostra um pouco dos interesses varguistas no novo governo que surgiu em 1930. Observamos que os objetivos do governo Vargas foram sendo transformados com o passar do tempo e com a estruturação deste em cada período ao longo da Era Vargas. Assim, durante o Governo Provisório observamos um mundo rural voltado ao trabalhador rural, seu método produtivo e sua propriedade. Além disso, nos discursos deste período notamos que o mundo rural era visto como peça substancial para as propostas de desenvolvimento econômico pretendido por Getúlio Vargas. Para isso, em seus discursos ele cita a criação do Crédito Agrícola, para auxiliar o produtor, assim como uma (re) territorialização para incentivar a produção em novas áreas. Já durante o Governo Constitucional, Vargas passou a discursar em detrimento de um anseio de investimento na indústria nacional, usando, assim, o mundo rural como base para o fortalecimento da indústria e um eventual desenvolvimento econômico, como observamos no discurso que se refere à industrialização do álcool em uma região que já era conhecida pela crescente produção da cana de açúcar. Durante o Estado Novo os discursos estão inseridos neste novo ideal de industrialização, e, por consequência, o mundo rural também. Visto o contexto histórico que leva o Brasil a investir na indústria como forma de uma modernização e desenvolvimento econômico, o mundo rural também se encontra sobre este viés. Neste período os discursos de Vargas não se voltam ao produtor ou seu trabalho, mas sim em como a produção rural se torna importante para o avanço industrial. [ 506 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010. CENSOS demográficos. Disponível em: <https://memoria.ibge.gov.br/sinteseshistoricas/historicos-dos-censos/censosdemograficos.html>. Acesso em: 14 jul. 2018. D’ARAUJO, Maria Celina (Org.). Getúlio Vargas: 1883 - 1954. Brasília: Câmara dos Deputados, 2001. 793 p. (Perfis Parlamentares). DEZEMONE, Marcus. A Era Vargas e o mundo rural brasileiro: memória, direitos e cultura política camponesa. In: MOTTA, Marcia; ZARTH, Paulo (Orgs.). História Social do Campesinato. São Paulo: Editora da UNESP, 2009, v. 2, p. 73-98. DEZEMONE, Marcus. Do Cativeiro à Reforma Agrária: colonato, direitos e conflitos (1872 – 1987). Tese de Doutorado. 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Quanto à quebra de horizonte de expectativa para a definição de um “eu” que se esboça sem referenciais, Fernando Pessoa é caracterizado pela despersonalização de si próprio. Assim, a análise reconhece a característica performativa da escrita e se utiliza dos conceitos propostos por Baumer: ansiedade, absurdo e alienação, no sentido de perceber como esse sujeito histórico os relaciona e significa e considerando também as respostas de outros autores do período. A base teórico-metodológica de interpretação da obra será fundamentada na ideia de contexto de Lacapra, especialmente a tensão entre intenção autoral e o contexto de linguagem usada pelo autor. E finalmente a demarcação cronológica, nesse sentido, se dá pensando o referencial temporal entre guerras, até a morte do autor (1914-1935). INTRODUÇÃO O século XX, sobretudo após 1914 e no contexto das guerras mundiais, é entendido nesse trabalho a partir da experiência da finitude da geração europeia. Baumer entende que “o homem torna-se problemático para si próprio” e, assim, demarca três características do período: o desespero epistemológico, o relativismo quanto à natureza humana e a desvalorização de si. Essas categorias tornam-se fundamentais para compreender o contexto histórico. Por tratamos de um contexto em que o sujeito é definido a partir de sua insegurança e de seu desamparo, a primeira é a que mais nos interessa aqui. Neste contexto histórico e intelectual, os problemas da consciência, a questão de unidade subjetiva, ou ainda a identidade, desembocam no que pretendemos compreender: o Eu. Em um universo de incertezas ou, pelo menos, de certezas mais fluídas e sem referências está o poeta português Fernando Pessoa. Com ele buscamos saber como se colocam e como se dão as possíveis respostas acerca de si. Sendo assim, o desespero epistemológico será compreendido a partir de alguns conceitos: a ansiedade, o absurdo e a alienação, subordinados ao conceito de finitude em um “mar de devir”. Esses conceitos são abordados metodologicamente a partir de algumas premissas que Koselleck sugere: os pares assimétricos e antitéticos. Do ponto de vista da análise contextual, utilizaremos alguns pressupostos de LaCapra (1983), especialmente sua ideia de colocar o próprio contexto como um problema a ser pensado e não como algo dado para a interpretação. Fernando Pessoa é compreendido como um testemunho de sua época. Não se trata de subsumir o real a uma totalidade fornecida pela razão ou a uma existência individual particular em busca da verdade, que é também alcançada através da racionalidade. O testemunho, aqui, segundo Armani (p.89) tem sentido se pensado em um contexto epistemológico em que o primado da substância – e da substância indivisível – é profundamente problematizado, o que implica o questionamento, entre outros, da metafísica da subjetividade através da ontologia hermenêutica heideggeriana. Por outro lado, o testemunho de uma época indica algo de um ser-no-mundo, de maneira que a posição de sujeito que Pessoa assume tem a ver com o mundo com o qual o autor se relaciona, de modo que Aluna da Graduação em História Licenciatura da Universidade Federal de Santa Maria, do 6° semestre. Participa do grupo de pesquisa História das Ideias e dos Conceitos nos Séculos 19 e 20: produção de presença e construção do sentido, da UFSM do Prof° Dr° Carlos Henrique Armani. 1 [ 508 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS aquilo que se apresenta no texto não se restringe somente ao texto, mas ao pertencimento a uma época. Nesse sentido, não se objetiva compreender o poeta e sua obra de uma forma homogênea, da mesma forma como não cabe nesse trabalho uma interpretação completa de seu pensamento, tarefa que seria praticamente impossível, se levarmos em consideração a relação entre interpretação e temporalidade. O texto será dividido em três partes. A primeira delas irá discutir os aspectos gerais, teóricos e contextuais para a interpretação; em um segundo momento, definiremos metodologicamente os conceitos, fazendo algumas ressalvas importantes a Koselleck; na terceira parte, discuto uma das possíveis respostas para o desespero epistemológico, sendo subsequente à análise de alguns poemas, principalmente do heterônimo Álvaro Campos. 1.2 - A era dos três A’s diante do espaço de experiência e do horizonte de expectativa Baumer se utiliza de questões perenes para compreender como os indivíduos de cada século interagiam com a realidade. Para o autor, todas as sociedades fizeram perguntas acerca do ser humano, da natureza, da sociedade, de Deus e da história (BAUMER, 1990). Sem entrar no mérito do alcance das questões perenes de Baumer, não há dúvida de que elas servem pra pensar o contexto europeu dos últimos 100 anos. Essas cinco questões são pensadas em termos temporais a partir dos pares ser e devir, que comportam a explicação de uma visão geral acerca de cada século. Para Baumer, o século XX teria inaugurado uma nova concepção de devir em que a própria pergunta pelo ser teria se tornado problemática. Nesse sentido, o intelectual português Fernando Pessoa está inserido em um contexto de crise de sentido. Sua maneira de perceber o mundo e o descrever por meio da literatura nos permitem reconstruir um passado da história intelectual europeia e, particularmente, um passado pensado em língua portuguesa. Sendo assim, os textos de Fernando Pessoa que interpretaremos têm uma constituição dupla: eles são obras e fontes ao mesmo tempo. Como demonstra LaCapra: tanto el “documento” como la “obra” son textos que implican una interracción entre los componentes documentários y de ser-obra que debería examinarse un una historiografía crítica. A menudo, las dimensiones del documento que hacen de él un texto de cierta clase, con su propia historicidad y relaciones com los procesos sociopolíticos (por ejemplo las relaciones de poder), se traslucen cuando se lo usa lisa y llanamente como una cacería de hechos en la reconstrucción del pasado. (El registro de uma investigación, por ejemplo, es em sí mismo una estrutura de poder textual que lo vincula com relaciones de poder em la sociedad em general. Su funcionamento em cuento texto está íntima y problemáticamente relacionado com su uso para la reconstrucción de la vida del pasado.) (LACAPRA, p.246) LaCapra traz ressalvas importantes acerca dos textos objetos da história intelectual, interessa-nos aqui, sobretudo, os literários, pois muitas vezes são excluídos do que os historiadores entendem como registro histórico. Dessa forma, compreendemos que se objetiva estudar “ideias o estructuras de la consciência o de la mente. [Pois,] Las ideas o estructuras de la consciência se abstraem de los textos y se relacionan com modos generales y formalizados de discurso o formas simbólicas” (LACAPRA, p.250). A interpretação acerca da realidade utilizada tem sua base na construção metodológica que Koselleck propõem: os pares assimétricos antitéticos. Isto é, “em um dos casos os modos de nomear usados pelas diferentes pessoas para si próprias e para os outros concordam entre si; no outro divergem. Em um dos casos as palavras implicam conhecimento mútuo; no outro introduz-se nas designações um significado depreciativo, de modo que o parceiro pode considerar-se mencionado ou chamado, mas não reconhecido” (KOSELLECK, p.191) Esses atributos são usados na mesma direção, pois quando a direção for contrária, serão assimétricos. São atribuições recíprocas, estabelecem inclusões e exclusões e, “nelas se expressam a identidade da pessoa e suas relações com os outros.” (KOSELLECK, p.191) [ 509 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Se compreendermos as delimitações de Baumer, no âmbito de uma experiência de finitude será consequência da alta desvalorização de si. O indivíduo não se encontra mais nos referentes de seu passado e os futuros que até então se explicavam a partir de filosofias da história, se esfacelam no contexto da Primeira Guerra Mundial. A realidade perceptível nesse campo de experiência corrói as mentalidades progressistas ou utópicas. Não à toa, é nesse momento que as maiores distopias serão escritas, como Admirável Mundo Novo escrito em 1931 por Aldous Huxley. Os sujeitos têm nova percepção a respeito do passado e também do horizonte de perspectiva dessa geração, acarretando em um abismo geracional. Como já pude esboçar, a relação indivíduo e presente, contexto vivido pelo autor é, necessariamente, compreendida a partir de uma quebra de referências com o passado. Há um d‘esfacelamento dos absolutos, o triunfo de devir como descreve Baumer. Finitude, por isso, é colocado enquanto conceito mestre, pois nos permite pensar o Eu, a civilização, a experiência da sociedade do contexto europeu, em meio a um caos. Os conceitos definidos por Baumer para compreender o início do século XX são necessários. O século, não à toa é definido como a Era dos 3 A’s: ansiedade, alienação e absurdo. Eles, e o par campo de experiência e horizonte de expectativa que irão direcionar o nosso olhar para a compreensão do período histórico no qual o poeta está inserido. Mas para isso, é necessário pensar os conceitos metodologicamente e fazer algumas pontuações e delimitações importantes sobre os pares assimétricos antitéticos. É importante perceber a necessidade de um alargamento e até generalização das ideias do autor, da mesma forma que Koselleck percebe a ampliação e abrangência, principalmente, no terceiro par: humanos e não-humanos. Dessa forma, a construção da metodologia se fixa em alguns eixos norteadores, para que a apreensão da realidade se dê da melhor forma possível. A primeira ressalva importante, é a não necessidade da formação de pares, pois trataremos de três conceitos, além de angústia. Essa tripartição será submetida e gerenciada pelo conceito de finitude, em um contexto de devir. Ao desenvolver sobre os pares antitéticos, Koselleck, expande que: com o passar do tempo, as estruturas de todos os conceitos antitéticos podem atuar simultaneamente (...) a coexistência das figuras antitéticas de linguagem (...) que pode estar contida em um único par de conceitos, porque nele ingressam diferentes zonas de experiência histórica. (KOSELLECK. p.196) A utilização dessa metodologia possibilita compreender o movimento histórico e o peso semântico das palavras para a apreensão da realidade. Se explica, principalmente, pela delimitação e pontuação sobre os pares na citação anterior. “Mas não podem estar ausentes os conceitos pelos quais o grupo possa se reconhecer e se autodeterminar, caso deseje apresentar-se como uma unidade de ação. No sentido empregado aqui, o conceito serve não apenas para indicar unidades de ação, mas também para caracterizá-las e criá-las [Não apenas indica, mas também constitui grupos políticos e sociais]. (KOSELLECK, p.192). As antíteses, no caso desse trabalho, se darão na relação eu-mundo gerada a partir de cada um dos conceitos. Sendo assim, as implicações evidenciam a relação contexto e indivíduo. Vale ressaltar a importância semântica para apreensão dessa realidade, sendo ela direcionada pelos conceitos angustia, alienação, ansiedade, angústia, devir e finitude. Acerca da escolha desses conceitos, faz-se importante evidenciar que também “trataremos daqueles pares de conceitos que se caracteriza, por pretender incluir a totalidade das pessoas. Trata-se, por conseguinte, de conceitos binários com pretensões universais” (KOSELLECK, p.193). Os conceitos escolhidos não se esgotam em aspectos binários, pois, percebe-se que se houvesse a restrição em eixos pares, [ 510 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS não estaríamos admitindo as características particulares do contexto, em especial, que os conceitos não se esgotam em antíteses e assimetrias. Feitas essas ressalvas, o alargamento de alguns conceitos, a não referência a outros, conseguimos pensar com a base metódica de pretensão universal a constituição, o vislumbre e a ação dos indivíduos em uma dada época. Pretendermos compreender o momento e o fluxo de ideias nos quais o poeta está inserido e é dessa forma que o autor aponta que: O estrutural aponta para o histórico, e vice-versa. Assim, as fontes podem ser lidas de duas maneiras diferentes: como auto-articulação-histórica dos que atuam conforme dizem as fontes e como articulação linguística de determinadas estruturas de significado. (KOSELLECK, p.195) Além disso, “a história nunca se identifica com seu registro linguístico nem com sua experiência formulada, condensada oralmente ou por escrito, mas também não é independente dessas articulações linguísticas. (KOSELLECK, p.196). Por isso, está no cerne da escolha dos conceitos a percepção de que eles “revelam determinadas formas de experiência e possibilidades de expectativas cujos atributos podem surgir com outras denominações em outras situações históricas.” (KOSELLECK, p.195) E é com essa premissa que nos utilizaremos do par espaço de experiência e horizonte de expectativa para compreender espaço-tempo. Pretende-se, então, pensar as antíteses e assimetrias geradas a partir desse eixo de possibilidades. Claro que levando em consideração quando e como se darão e se se darão. Considera-se sempre as possíveis respostas, não apenas naquilo que é mostrado ou procura ser percebido no autor, através das características do contexto. Mas também, as implicações e as novas referências que não “esperadas”, não reconhecer isso seria dogmático. Tendo em vista o desespero epistemológico, sabemos que os conceitos, individualmente, podem e devem gerar uma assimetria na relação eu - mundo, já que dependem do mundo vivido pelo autor. Eles são, então, três modos de se deparar com a realidade, tanto no sentido de interagir, de interferir e de ser afetado por. Não se trata, por isso, somente do caráter discursivo ou performativo de obra, mas da percepção que temos de estarmos estudando um indivíduo que se expressa de uma dada forma acerca da realidade e, assim, a descreve. Em suma, consideramos as estruturas de significado. A seguir apresentarei os conceitos que serão interpretados na obra de Fernando Pessoa: ansiedade, alienação e absurdo que estão subordinados ao devir e a experiência de finitude. E acerca da percepção do tempo, o par de conceitos criado por Koselleck, espaço de experiência e horizonte de expectativa. O primeiro deles é finitude, como espaço de experiência. O conceito está profundamente imbricado ao conceito de devir, no âmbito da percepção –individual- do tempo, do contexto, enfim, da realidade. “Viver no mundo tornou-se, nas palavras do filósofo espanhol Ortega y Gasset, <<escandalosamente temporário>> não só sujeito a mudança, mas também sem normas ou raízes. (BAUMER, p.168) Além disso, também para descrever e se utilizar de outros autores sobre o contexto, o autor descreve que: O espirito do tempo vê tudo sub specie temporis, perpetuamente agitado movendo-se e mudando. O espirito do espaço é o seu oposto, produz um mundo de objetos sólidos e de absolutos que existem eternamente. No entanto, o espírito do tempo foca o aspecto dinâmico da realidade, atirando as pessoas para um <<êxtase de acção>> (BAUMER, p.167-168) Isto é, filósofos como Heidegger, Sartre e Marcel descrevem sobre a perda do indivíduo, de um ser no sentido estático, reduzido as leis causais da natureza ou a partir de universalismos, como propunha o idealismo. O existencialismo apostava na liberdade para definir-se. “Assim, pensar no homem como ser, significava pensar nele como potência, ou devir.” (BAUMER, p.213) Baumer aponta, segundo Mollberg, que “O homem fundamental é um mito”. (BAUMER, p.188) [ 511 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Esses conceitos são pensados agindo mutuamente e considerando suas assimetrias e antíteses. Colocados nessa relação eu-mundo são, efetivamente, manifestações de uma dada realidade. Também é necessário pensá-los perante a supremacia do devir: “Não havia unidade estática chamada cultura, mas apenas um desenvolvimento perpétuo. Esse conceito de transformação, o conceito de devir.” (BAUMER, p.181 apoud Collengwood). Em Fernando Pessoa perceberemos que o entendimento e definições de si também não terão a pretensão de desenvolver uma unidade coerente. No âmbito intelectual o século XX, Muitos foram os autores que se depararam com a ansiedade existencial de um mundo cada vez mais destituído de fundamento e de ontologia. Sigmund Freud, Franz Kafka, Paul Tillich, Ernst Jünger, Karl Kraus, Franz Rosenzweig, Martin Heidegger, Franz Alexander, Henri Bergson, entre outros, direcionaram grande parte de suas energias intelectuais para colocar um dos problemas precípuos do homem: a finitude. Finitude que afastou definitivamente o ser, “deixando os homens sem pontos de referência e colocando-os à deriva num mar infinito de devir”. (Armani, p.) Ao definirmos ansiedade, a demarcação do conceito angustia se faz importante. Ao decorrer do estudo, pudemos perceber que ele aparece em muitos poemas de Fernando Pessoa e não está distante do eixo gerador que foi delimitado. Nesse sentido, a diferença entre ansiedade e angústia se dá na medida em que a última não tem um objeto determinado que irá gerá-la. Trata-se da consciência do possível não-ser. Enquanto a alienação pode ser entendida como o afastamento e o desamparo em um universo estranho. Para os novos hegelianos, o ser humano está condenado a viver como um estranho em um universo que é indiferente. Para o europeu moderno, já não existe nada de permanente na vida; os valores desapareceram; foi deixado frente a frente com o absurdo. A ansiedade e a alienação eram os sentimentos provocados pelo absurdo. (...) Ele atribuía o seu domínio ao sentido contemporâneo da falta de sentido da vida (o Absurdo) que, por sua vez, tinha origem na desintegração das estruturas normais de significado, do poder, e da fé (BAUMER, p.180) Já o conceito de absurdo, pois nesse mundo os valores desapareceram ou se d’esfacelaram. Não há mais um sentido para a vida, “daí o absurdo, por força de lógica, ser algo que envolve uma atitude sistemática. A poesia seria uma réplica do absurdo da vida, ponto por ponto apoiada sobre a repulsa de tal vida como os homens a vivem. (GONÇALVES, p.50). Com a famosa frase de Nietzsche “Deus está morto, e nós o matamos” podemos evidenciar a morte das crenças, pois nem a racionalidade conseguirá se manter como o eixo fundamental de sentido para o universo. 1.3. Fernando Pessoa como testemunho Como testemunho de uma época, Fernando Pessoa expressa uma reflexão densa sobre a ansiedade, a alienação e o absurdo. Conceitos que estão profundamente imbricados a concepção de ser e devir, são pensados principalmente e pelo par horizonte de expectativa e campo de experiência propostos por Koselleck. Segundo o autor (p.306) “todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das pessoas que atuam ou que sofrem”. Por isso utilizaremos essas categorias históricas, visto que elas “equivalem às de espaço e tempo”. (p.307) Os conceitos experiência e expectativa são equivalentes e, ainda, são constitutivos “da história e do conhecimento, e certamente o fazem mostrando e produzindo a relação interna entre passado e futuro, hoje e amanhã”. (p.308) Koselleck define experiência como “o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados” (p.309). Isto é, através da experiência de cada um, que é percebida e [ 512 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS reafirmada pela experiência alheia, notam-se formas perceptíveis de pensamento. Também ligada à pessoa e ao interpessoal, a expectativa é o “futuro presente”, é “o não experimentado, o que apenas pode ser previsto” (p.310). Já “horizonte quer dizer aquela linha por trás da qual se abre um futuro um novo espaço de experiência, mas um espaço que ainda não foi comtemplado”. (p.311) O desespero epistemológico pretende ser discutido e, “significa o desespero de descobrir alguma vez quem é o homem” (BAUMER, p.185). Consequência da crise de sentido, esse contexto é característico pelo fenômeno individual de: Ir para dentro – para encontrar – para encontrar o ego, ou a si próprio, ou o Eu, ou o maravilhoso; ou simplesmente expressar descontentamento com o mundo externo dominado pela ciência e pela razão – tornou-se um hábito para muita gente especialmente quando o movimento psicanalítico se tornou popular (BAUMER, p.176) Dessa forma, se mostra a relevância da escolha do autor estudado. Pois, O papel de Pessoa na história da poesia moderna é o exercício da extrema lucidez sobre as falácias do sujeito. A poesia de Pessoa exemplificaria o modo como o vácuo/vazia se compensa, não por preenchimento ilusório, mas pelo revezamento infinito de significantes que constituem a linguagem, plena de desejo que impulsiona o falante a ser. (GONÇALVES. p.63) Mesmo que essa descrição evidencie uma das formas de ler Pessoa, o trecho também exemplifica os processos nos quais o autor está imerso. Em outra leitura proposta por Gonçalves, é apresentada a significação da obra poética. No sentido de contestação da realidade e princípios que cercam o autor. Dessa forma, podemos destacar o movimento modernista e algumas de suas percepções da realidade. Já que implicam na visão de um mundo absurdo. As múltiplas facetas da realidade, são para eles consequência da irracionalidade ou da perda de parâmetros. Submerso ao contexto, a criação da heteronímia de Pessoa pode ser pensada como uma resposta sintomática desse processo. Pois, “a humanidade, longe de ser invariável, é feita, desfeita e refeita sem cessar; que, longe de ser uma, é infinitamente diversa, tanto no tempo quanto no espaço”. (BAUMER, p.188). Esse fenômeno modifica, consequentemente, a percepção que o poeta tem a respeito de si. Já que abarca diversas definições, não é, essencialmente. No tocante à conjunção poética em Pessoa, é possível sim fazer uma aproximação a Nietzsche: enquanto no filósofo alemão o eixo de conjunção é a profecia do super-humano (Zaratustra), em Fernando Pessoa é a nostalgia do infra-humano (principalmente em Caeiro). A obra de se Pessoa se move e afirma-se por ser “inteiramente irracional”. (GONÇALVES, p.49) O desespero epistemológico, então, se explica pela referência ao século do devir, e, principalmente, com a compreensão de ruptura em relação ao passado. “O relativismo não nega a existência do ego, nem perde a esperança de o encontrar e o definir. Por outro lado, o relativismo postula a plasticidade infinita do ego humano (...) O homem é o que fizeram dele” (Baumer. p. 187). O desdobramento dessa afirmação em Pessoa é o Eu em heterônimos. No surrealismo, podemos ver as descrições do autor acerca da corrente literária. Pessoa passa a ser considerado como pertencente a literatura negativista do século XX, como um autor que atenta para a anti-razão, numa forma de liberação do onírico e do inconsciente. Na apresentação da psicanálise o apoio para entender o sujeito artístico na Modernidade, que é múltiplo, despersonalizado, vazio, incerto. A atenção voltada para a [ 513 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS questão do Eu, na obra de Pessoa na eliminação do objeto, numa solidão metafísica, na intimidade com a loucura, na crença de um mestre desconhecido, na única certeza de que escrever é viver. (GONÇALVES. p.60) Para ele, a unidade da humanidade é compreendida a partir das multifaces, no sentido de todos serem a soma de um: Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, Quantas mais personalidades eu tiver, Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atento, Estiver, sentir, viver, for Mais possuirei a existência total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro fora (PESSOA, p.225) Acerca desse desespero epistemológico em Pessoa, percebe-se algo que Baumer define como a introspecção. Isto se dá no sentido de os indivíduos não entenderem nem a si próprios nem aos outros. Segundo Gonçalves (p.23) “a fragmentação do Eu em Pessoa é fruto de uma ‘ânsia primária’ de racionalizar sua identidade, bastante problemática. Por isso, o poeta torna-se uma espécie de porta voz impessoal de seus heterônimos na apreensão de uma multiformidade universal”. Se o autor, enquanto teórico literário, compreende o poema tabacaria como uma totalidade, pois na amostragem de um único poema, Pessoa demonstra a síntese do universo pessoano, num movimento circular da micro-estrutura para a macroestrutura. Sendo assim, as possibilidades de ler pessoa podem ser traçadas de diversas maneiras por teóricos da literatura e historiadores. No processo de compreensão e delimitação tanto da estética quanto das caraterísticas da obra. O diálogo com essas interpretações nos auxilia a compreender os elementos comuns, perceber a complexidade do poeta e as concepções de mundo, isto é, o mundo vivido. Pois delimita-se o enredo das diversas facetas do Eu, transposta em uma totalidade ontológica que está extremamente ligada as condições do devir, isto é, do contexto histórico. Poderíamos, aqui, discutir acerca da intencionalidade autoral, mas é evidente que não necessariamente as leituras que ele mesmo delimita, iria compor uma leitura melhor para o trabalho. “Se a linguagem poética de Pessoa é uma busca da essência do Ser, o desdobramento em personalidade/máscaras é considerado como possibilidade de conhecimento dessa Ser”, define a heterônima como um somatório de sistemas epistemológicos. (GONÇALVES, p.32) Essas leituras nos auxiliam a compreender o contexto que gera a perda da forma de Pessoa. Gonçalves propõe algumas analises acerca do poeta quanto a questão da heteronímia, referindo-se a Freud e a Lacan, as multiculturalistas e psicanalistas. Ao deter-se, ele, e críticos literários aos quais se refere, percebe essa analise como enfática ao texto poético, pois parte da “profundidade de Pessoa ipse e seus heterônimos”. (GONÇALVES, p.59) Dessa forma, situa o poeta e suas vozes pessoanas no contexto de crise que já comentara anteriormente. O desdobramento se dá na definição de alguns heterônimos: “O heterônimo Álvaro de Campos, a voz mais atuante em Pessoa, é um Eros liberto. A objetividade do mestre Caeiro é mostrada como um grau ômega da poética pessoana”, enquanto “Ricardo Reis é o pagão, racionalista, de inacessibilidade de um epicurismo e estoicismo que desvanecem por não representarem o verdadeiro paganismo que é antigo. Essa consciência que leva a infelicidade é a consciência como atividade ou como ato nadificante. (GONÇALVES. p.59) [ 514 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Além disso, dada a delimitação cronológica a análise se centra principalmente em Álvaro Campos. Quanto ao recorte temporal da poesia, centra-se em dois períodos denominados respectivamente como o Engenheiro Sensacionalista (1914-1922) e o Engenheiro Metafísico (1923-1930). Pois, percebe-se a impossibilidade de nesse artigo analisar um número maior de poemas. As escolhas, então, foram feitas partindo de uma percepção do que melhor se relacionaria com as perguntas que aqui se procurava responder e com o auxílio das leituras de teóricos literários para as delimitações. Nesse sentido, “Álvaro Campos se conformaria como o ego máximo das contradições, implodindo pelas pulsões e solto no delírio da multiplicação” (GONÇALVES, p.63) e além disso, Campos é visto num estádio de percepção fenomenológica do mundo, onde a sensação compõe uma realização de compensação oral, tão próxima das satisfações infantis. A angustia metafísica seria neutralizada pelo tabaco. (GONÇALVES, p.61) No poema Ode Mortal podemos vislumbrar o sentido de totalidade o qual o autor se referia sobre Caeiro.“Da tua alma universal localizada, / Do teu corpo divino intelectual...” Refere-se, em seguida, a maneira de ver o universo, Álvaro: “Viste com a tua cegueira perfeita, sabes o não ver. / Porque o que viste com os teus dedos materiais e admiráveis / Foi a face sensível e não a face fisiognómica das coisas / Foi a realidade e não o real. (...) / E a verdade que há em tudo é a verdade que o excede! / Ah, sem receio! / Ah, sem angustia!” (PESSOA, p. 280) Desencadeiam-se os exatos sentimentos que são gerados pelo universo absurdista, e que não são expressados por Caeiro. Aqui ele descreve a sintomática, a condenação, de estar alienado em relação ao universo, pois não vê realmente. O que é, a verdade, está para além do universo, absurdo, visível. Esse universo, gera “a alienação cósmica (...) [que] era um estado permanente que, embora desse ao homem a liberdade (liberdade de qualquer espécie de necessidade), o condenava a viver como um estranho num universo indiferente. ” (BAUMER, p.180) Em sequência, relata sobre a verdade que é dada naquilo que excede, da mesma forma que descreve em “Autopsicografia”. Para o poeta, só se chaga a uma verdade essencial através do poema. A descrição subsequente é sobre esse universo que o aliena e que não consegue compreender. Em outro poema (PESSOA, p.304): “ Mestre, meu mestre! / Na angustia sensacionista de todos os dias sentidos, / Na magoa quotidiana das matemáticas de ser, / Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos, (...) Meu mestre meu coração não aprendeu tua serenidade. / Meu coração não aprendeu nada. / Meu coração não é nada, / Meu coração está perdido. (...) Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas, / Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente”. Novamente, o mundo, aparentemente, não tem sentido algum para o poeta e, se antes o tinha era devido ao mestre. Isto se canalizará na definição de si: “E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro ninguém”. Nesses trechos encontramos a subordinação dos conceitos em causa e consequência, até esse desespero epistemológico. Após alguns versos pergunta a Caeiro: “Para que me tornaste eu? Deixasse-me ser humano!” / Feliz o homem marçano, / Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada.” Neste poema o poeta define-se novamente sentindo angustia, que se dá “pela indiferença de toda a vida” (PESSOA, p.304), determinando o objeto causador. Esse poema também revela um pouco do quotidiano de Pessoa e de sua dificuldade de socializar e interagir, na informidade de sua epistemologia. Ao descrever a consciência de seu possível não-ser, estabelece novamente uma relação eu-mundo. Mas agora a partir do conceito de ansiedade que está em assimetria com a alienação, antes descrita. No próximo poema percebemos que este estar-alienado é percebido na maneira de ver e no conceito que o gera, a angustia. “Ah, a angústia insuportável de [haver] gente! / O cansaço inconvertível de ver e ouvir! (...) / Queria vomitar o que vi, só na náusea de o ter visto, / Estomago da alma alvorotado de eu ser...” (PESSOA, p.252) O conceito de angústia aparece nesses poemas, demonstrando a necessidade de percebe-lo dentro do eixo de interpretação. Segundo Baumer (p.180), “Para uma das personagens de ficção de Jean-Paul Sartre o [ 515 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Absurdo era a chave de sua náusea, do sentimento de estar de trop no universo”, isto é, alienado. Esses conceitos também se colocarão assimetricamente na relação eu-mundo do poema a seguir: Ah, a angústia insuportável de [haver] gente! O cansaço inconvertível de ver e ouvir! (...) Queria vomitar o que vi, só na náusea de o ter visto, Estomago da alma alvorotado de eu ser... (PESSOA. p.252) As sensações e percepções de mundo prescritas no poema, através da falta de um sentido para a vida, descrevem o absurdo. Dessa forma, conseguimos vislumbrar a maneira como os conceitos, mesmo aqueles que são expostos como sintomáticos, desencadeiam-se interconectando-se no poema anterior. Na poesia “hoje estou como se esse tivesse sido outro. / Quem fui não me lembra senão como uma história apensa. / Quem serei não me interessa, como o fundo do mundo” (PESSOA, p.373). Novamente o poeta se coloca sem uma definição precisa ou, pelo menos, esboça-se sem referenciais. Podemos notar, além disso, que é apresentada uma relação de assimetria entre o eu-mundo, sob as categorias de tempo. “Hoje tenho uma alma parecida com a morte dos nervos - / Necrose da alma, / Apodrecimento dos sentidos. / Tudo que tenho feito, conheço-o claramente: é nada” (PESSOA, p. 355). Com esse trecho já conseguimos vislumbrar que ao definir o indivíduo enquanto problemático, não podemos resumi-lo através da dicotomia bom e mau, muito própria das teologias. Em necrose percebemos a morte da alma, sendo assim o sentir também se esfacela, resultando em uma insignificância, em um viver sem sentidos. Mais tarde no mesmo poema, o devir é apresentado como rompimento, isto é, há uma quebra de expectativa em relação ao futuro: “O Destino acabou-me como a um manuscrito interrompido. Nem altos nem baixos – consciência de nem sequer a ter... (...) Tenho uma náusea do estomago dos pulmões. / Custame a respirar para sustentar a alma”. (PESSOA, p. 355) Essa construção de uma problemática em relação a própria alma, pode ser compreendida também através da aceleração do tempo, do que consideramos moderno e é sintomático das definições as quais o poeta se utiliza para definir-se. No poema de Álvaro Campos: “Absurdamente surgindo, estática e constelada Do vácuo dinâmico do mundo. Que eu sou daquelas que sofrem sem sofrimento, Que têm realidade na alma, Que não são mitos, são a realidade Que não têm alegria do corpo ou da alma, daqueles Que vivem pedindo esmola com a vontade de perde-la... (PESSOA, p.59) Para explicar a manifestação do conceito central, o devir, o Eu se coloca em antítese com esse ser estar no mundo no poema a seguir. O poeta não é, mas está, e seu estado não é permanente e, consequentemente, seu Eu também não é. CUL DE LAMPE Pouco a pouco, Sem que qualquer coisa me falte, Sem que qualquer coisa me sobre, Sem que qualquer coisa esteja exactamente na mesma posição, Vou andando parado, Vou vivendo morrendo, Vou sendo eu através de uma quantidade de gente sem ser. Vou sendo tudo menos eu. [ 516 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Acabei. (PESSOA, p.370) No próximo poema, Fernando Pessoa ao se definir expõe algumas características do devir, dentro do que se configura a sua alienação em relação ao mundo. Essa alienação cósmica, se coloca na mesma medida em que há a descrição do universo, se manifestando também a ansiedade: Mas eu, em cuja alma se reflectem As forças todas do universo, Em cuja reflexão emotiva e sacutida Minuto a minuto, emoção a emoção, Coisas antagónicas e absurdas se sucedem – Eu o foco inútil das realidades, Eu o fantasma nascido de todas as sensações, Eu o abstracto, eu o projectado no écran Eu a mulher legítima e triste do Conjunto, Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem ser de água. (PESSOA. p.251) Enfim, ao explicarmos a heteronímia e a maneira como Àlvaro Campos responde a questão epistemológica com dos conceitos, conseguimos esboçar algumas manifestações sobre o período histórico europeu. Fernando Pessoa é um intelectual que nos deixou uma discussão densa acerca do desespero epistemológico. Nosso trabalho pode, após algumas ressalvas necessárias, evidenciar quais a possíveis respostas acerca das questões que envolviam o poeta. Para tal, se fez necessário relacionar a categoria eumundo com conceitos temporais e ansiedade, o absurdo, a alienação e angustia. REFERÊNCIAS ARMANI, Carlos Henrique. O front como experiência da temporalidade: crise da civilização, falência representacional e alteridade. Estudos Ibero-Americanos. Edição Especial. PUCRS, n. 2, 2006, p. 87-101. BAUMER, Franklin L. O triunfo do Devir. O pensamento europeu moderno. Tradução de Maria Manuela Alberty. 1° edição. Lisboa: Edições 70, Lda, 1977, p.167-182. BAUMER, Franklin L. O homem problemático. O pensamento europeu moderno. Tradução de Maria Manuela Alberty. 1° edição. Lisboa: Edições 70, Lda, 1977, p.183-205. GONÇALVES, Robson Pereira. O Sujeito Pessoa – Literatura e Psicanálise. 1° edição. Santa Maria: Ed. UFSM, 1995. KOSELLECK, Reinhart. A semântica histórico-política dos conceitos antitéticos assimétricos. In: Futuro Passado: contribuição a semântica dos tempos históricos. 1° edição. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014, p. 191-232. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa: duas categorias históricas. In: Futuro Passado: contribuição a semântica dos tempos históricos. 1° edição. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014, p. 305-328. LACAPRA. Dominick. Repensar la historia intelectual y ler textos. In: PALTI, Elías José. Giro linguístico e historia intelectual. 1° edição. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2012, p.237-293. PESSOA, Fernando. Poesia / Álvaro Campos. Edição Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CAMPOS, Álvaro de. Livro de Versos. Fernando Pessoa. Teresa Rita Lopes Edição crítica. Lisboa: Estampa, 1993. [ 517 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O Juizado de Paz e a sua atuação em Santa Maria (1830-1850) Viviane Siqueira Alves1 Resumo: Neste ensaio, abordamos sobre a instituição do Juizado de Paz no século XIX, onde busca-se entender a atuação dos Juízes de Paz em Santa Maria, Rio Grande do Sul entre os anos 1830 até 1850. Nesse sentido, para compreendermos a atuação dos Juízes de Paz em Santa Maria entre os anos 1830-1850 é necessário tipificar o cargo de Juiz de Paz à luz da legislação da época aqui estudada. Entende-se que a instituição do Juizado de Paz está entre as instituições mais antigas da história judiciária brasileira, pois tem suas raízes ainda no período que antecede a independência do Brasil e está inserido num contexto de transformações políticas e sociais. Sendo assim, precisamos também compreender os processos que levaram às transformações ocorridas ao longo do início do século XIX. Dessa forma, será apresentado as Reformas pelas quais a instituição do Juizado de Paz passou desde a sua oficialização em 1827 até a Reforma de 1841 que resultou na retirada de poderes desta instituição, bem como as diferentes formas de atuação deste Juizado em Santa Maria no recorte temporal informado. AS REFORMAS NA INSTITUIÇÃO DO JUIZADO DE PAZ A instituição do Juizado de Paz foi regulamentada através da lei de 15 de outubro de 1827, onde entende-se que esse fato causou uma grande mudança no sistema judicial que estava vigente até o momento. A partir desta lei ficou estabelecido que em cada uma das freguesias e das capelas filiais deveriam ter um Juiz de Paz e um suplente, os quais eram eleitos conforme as eleições para vereadores da Câmara Municipal. A lei estipulava algumas exigências para o exercício do cargo e também estabeleceu várias competências ao Juiz de Paz. De acordo com o Artigo 3º da lei 15 de outubro de 1827, aquele que fosse eleitor poderia ser Juiz de Paz, no entanto, o Artigo 94 da Constituição de 1824 específica quem poderia votar nas eleições para Deputados, Senadores e membros dos Conselhos de Província. Sendo assim: [...] eleitores eram aqueles que tivessem renda líquida anual não inferior a 200$000 (duzentos mil réis) por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego; idade de 21 anos, exceto se for bacharel formado ou clérigo de ordens sacras, e deveria saber ler e escrever. (NASCIMENTO, 2011, p. 4). A adequação da lei por parte das freguesias e vilas não ocorreram de imediato em todos os lugares, em alguns casos as eleições para o cargo de Juiz de Paz ocorreram logo após a publicação da lei, em outros o processo foi mais tardio. No caso de Porto Alegre, capital da Província do Rio Grande de São Pedro, a lei não demorou a chegar, pois documentos datados de 1828 revelam a existência de um Juizado de Paz nesse período2. Em Mariana, município de Minas Gerais, fontes revelam que as eleições para Juízes de Paz ocorreram em 1829, sendo que nesse período eram eleitos um Juiz de Paz e um suplente para cada distrito 3. Já em Santa Maria, que no recorte temporal aqui estudado estava na posição de quarto distrito de Cachoeira do Sul, o Juizado de Paz começou a atuar em 1829, chegou-se a essa conclusão a partir das informações encontradas nas atas da câmara municipal, onde foi encontrado um documentado no qual menciona um sujeito como Juiz de Paz. Graduanda no curso de História/Licenciatura na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: vivianealves094@gmail.com. CODA, Alexadra. O juiz de paz na esfera criminal - Porto Alegre (1832-1841). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História/Bacharel)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2012, p. 25. 3 NASCIMENTO, Joelma Aparecida do. Os “homens” da administração e da justiça no Império: eleição e perfil social dos juízes de paz em Mariana, 1827-1841. 2010. 194 p. Dissertação de Mestrado (Mestrado em História)–Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, p. 128, 2010. 1 2 [ 518 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Nesse sentido, a lei de 15 de outubro de 1827 estabelece algumas competências que ficavam a cargo do Juiz de Paz, entre elas: A atividade de restabelecer a paz e a concordância entre as partes era a principal função do juiz de paz, facilitando o entendimento entre as pessoas, longe das formalidades judiciárias. Mas para além dessa nobre obrigação, deveriam julgar pequenas demandas, reduzindo-as a termo; evitar ajuntamentos, rixas e quilombos; pôr bêbados em custódia; fazer corpo de delito, interrogar delinquentes e testemunhas antes de encaminhá-los ao juiz criminal; perseguir criminosos em seu distrito; informar o juiz de órfãos sobre menores abandonados; vigiar a conservação das matas e florestas; participar às autoridades provinciais da descoberta de bens preciosos em sua jurisdição; dividir o distrito em quarteirões, nomeando para cada um deles um inspetor que o mantenha informado dos acontecimentos e execute suas ordens. (CODA, 2012, p. 91). Já a lei de 1º de outubro de 1828, reformulou o funcionamento dos Conselhos Municipais. Essa lei deliberou novas responsabilidades que resultaram na ampliação do cargo, fazendo com que os Juízes de Paz se tornassem os responsáveis por questões que antes estavam a cargo da câmara municipal e de seus vereadores, entre as novas funções encontramos as seguintes: publicar nas portas das igrejas, vilas e cidades a relação de nomes autorizados a participarem das eleições4. Assim, “o esvaziamento de poder das Câmaras e a amplitude dos poderes da nova magistratura tornaram o juiz de paz o principal ator político municipal”. (MOTTA, 2013, p. 68). A partir de então as Reformas são recorrentes, o Código Criminal de 1830, assim como as leis de 1827 e 1828 estabeleceram medidas que transformaram o cargo de Juiz de Paz, passando a exercer funções de conciliador, pacificador e responsável pela ordem pública. Já o Código do Processo Criminal de 1832 revogou algumas medidas implementadas com a lei de 1827, ampliou as competências, lhe concedeu poderes policiais e judiciais, tornando esses magistrados mais poderosos numa perspectiva local 5. Enquanto a lei 15 de Outubro de 1827 estabeleceu que deveria ter um Juiz de Paz em cada freguesia ou vila, a lei de 29 de Novembro de 1832 determinou que deveriam ser eleitos quatro Juízes de Paz em cada distrito, sendo que cada um assumiria o cargo por um ano e quando um estivesse exercendo a função, os outros três ficariam como suplentes, mas as eleições continuariam ocorrendo no intervalo de quarto anos. Regulamentou-se que seriam eleitos quatro juízes de paz, cada um exercendo a titularidade por um ano, conforme número de votos recebidos. O mais votado seria o primeiro a exercer a jurisdição, seguido do segundo mais votado e assim sucessivamente. Quando o titular não pudesse exercer as funções, substituía-o o próximo da sequência. (CODA, 2012, p. 36). Contudo, com a lei 261 de 3 de Dezembro de 1841 fica decretado que deveria ter um chefe de polícia com os delegados e subdelegados no Município da Corte e em cada Província. As atribuições que haviam sido conferidas aos Juízes de Paz pelo art. 12 §§ 1º, 2º, 3º, 4º 5º e 7º do Código do Processo Criminal, passam a ser competências dos chefes de polícia e aos seus delegados nos seus respectivos distritos de atuação 6. Para Gabriel Souza Cerqueira (2014), as reformas no Código de Processo Criminal em 1841 promoveram a RODYCZ, Wilson. C. O juiz de paz imperial: uma experiência de magistratura leiga e eletiva no Brasil. Justiça e História. Porto Alegre. v. 3, n. 5, 2003. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justic a_e_historia/issn_1676-5834/v3n5/doc/02-Wilson_Rodycz.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2018. p. 7-9. 5 FARIA, Regina. Helena Martins de. Os Juízes de Paz: concepções e práticas. VI Jornada Internacional de Políticas Públicas. São Luis. Disponível em: <http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo3estadolutassociaisepoliticaspublicas/osjuizesdepaz-concepcaoepraticas.pdf>. Acesso em: 24 de Ago. 2018. p. 4. 6 RODYCZ, Wilson. C. Ibid. p. 26-27. 4 [ 519 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS centralização da política e nas atividades administrativas. Raymundo Faoro (1984), salienta que essa centralização de poder judiciário ao governo resultou na retirada de autonomia que as províncias estavam exercendo. Ao promover uma enorme centralização do poder de justiça ao governo, esta lei retirou as atribuições autonomistas das províncias, atrelando as influências locais, armadas com a polícia e a justiça, aos agentes do governo. A partir de 1841, em todas as províncias, os chefes de polícia bem como seus subordinados (delegados, subdelegados) passam a ser indicados diretamente pelo poder central ou indiretamente pelos presidentes de província (que por sua vez, eram indicados pelo governo imperial). O juiz de paz perde grande parte de suas atribuições, que passam para a autoridade policial, que além de suas funções de polícia, assume funções judiciárias. (FAORO 1984 apud CERQUEIRA 2014, p. 23). Nota-se uma grande mudança no que diz respeito ao cargo de Juiz de Paz a partir das reformas ocorridas em 1841. Se considerarmos as leis que haviam sido implementadas até então no País, verifica-se que a estrutura judiciária vinha sendo organizada e conquistando um espaço maior na sociedade, pois apesar do Juizado de Paz abranger um caráter local, exercia diversas funções importantes para manter uma administração nos distritos e fazer com que a justiça fosse mais acessível. As reformas de 1841 tinham objetivos, assim como as outras leis que a instituição já havia presenciado. Um dos objetivos evidentes, era a modernização e profissionalização dos poderes judiciários, além da retirada de poderes dos juízes leigos, incluindo os Juízes Municipais e Juízes de Órfãos, estes passariam a ser nomeados, mas com a condição de que fossem Bacharéis formados em Direito, além disso, deveriam ter pelo menos um ano de prática no foro. (CERQUEIRA, 2014, p. 26). Para Elaine Sodré (2013), além da Reforma de 1841 trazer reformas no Código do Processo Criminal de 1832, trazia consigo objetivos mais abrangentes. Nesse sentido, a autora analisa os relatórios do Ministério da Justiça entre os anos 1832 e 1836, onde destaca alguns tópicos da Reforma de 1841 com o objetivo de confirmar os pretextos dessa nova Reforma 7. Percebe-se que nesse momento a atuação dos Juízes de Paz já não era a mesma que em 1827, quando o cargo havia sido regulamentado, agora a instituição recebia críticas, muitas no sentido de serem incapazes de continuarem exercendo tais funções, principalmente pelo fato do cargo ser ocupado por homens leigos 8. O grande objetivo da Reforma de 1841 era esvaziar o poder dos juízes leigos. Nesse sentido, o foco central das mudanças foram as instâncias acima descritas: juiz de paz e Júri, inegavelmente enfraquecidos. Contudo, era necessário tomar cuidado para não deixar nenhum flanco descoberto, assim também foram “reformados” os outros cargos da magistratura leiga: promotores públicos, juízes municipais e de órfãos. Sobre esse grupo já se havia diagnosticado dois problemas: nomeação e inaptidão. Ambas as características eram descritas pelo ministro da justiça quando analisava a situação dos juízes municipais: “nem a maneira, porque são nomeados deixa ao Governo a necessária liberdade de escolher; nem a ausência de habilitações garante a suficiência dos Juízes” (Relatório do Ministério da Justiça, 1840, p. 15). Já sobre os promotores públicos dizia-se: “as atribuições deste Funcionário, essencial no novo sistema, são pesadíssimas, e assaz odiosas para poderem ser exercidas por um só indivíduo, e gratuitamente, nas grandes Povoações” (Relatório do Ministério da Justiça, 1834, p. 22). Assim, a sugestão era SODRÉ, Elaine. O duplo papel da reforma judiciária de 1841: uma lei para a justiça e um instrumento administrativo para o governo imperial. In: Anais do V Congresso brasileiro de história do direito. Curitiba: IBHD. 2013. Disponível em: < http://www.ibhd.org.br/arquivos/anexos/VCBHD.pdf>. Acesso em: 26 set. 2018. p. 412. 8 Ibid, p. 415. 7 [ 520 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS aumentar o número daqueles magistrados, bem como conferir a eles um ordenado. (SODRÉ, 2013, p. 421) Novamente fica evidente que a Reforma de 1841 resultou na retirada de poderes dos Juízes de Paz e assim a instituição começou a perder sua legitimidade inicial. O JUIZADO DE PAZ EM SANTA MARIA Através de uma análise documental buscou-se identificar os indivíduos que atuaram como Juízes de Paz em Santa Maria entre os anos 1830 a 1850. As atas da câmara municipal e termos de posse e juramentos revelaram a existência de quinze Juízes de Paz atuantes, incluindo os suplentes. Contudo, existe uma lacuna documental entre os anos 1835 e 1850, onde verifica-se duas hipóteses, a primeira seria que muitas informações se perderam ou não foram registradas devido à sobreposição de soberania que acontece nos anos que se sucedeu a Guerra dos Farrapos (1835-1845), a segunda hipótese refere-se ao fato dos Juízes de Paz resolverem algumas questões no privado fazendo com que não se tenha um registro, Alexandra Coda (2012), salienta esta questão dizendo que nem todos os casos eram documentados pelos Juízes de Paz, principalmente quando julgados como irrelevantes: A lei afirmava que todas as conciliações realizadas tivessem o resultado lavrado em termo, porém, uma das hipóteses sobre a pouca existência desse tipo de atividade é o fato de que tais reconciliações, talvez, não o fossem. Tratando-se de uma tentativa de resolver a questão antes que ela se tornasse um caso jurídico, e encaminhada para outras jurisdições, pode se questionar se tal dispositivo da lei era efetivamente cumprido. O próprio juiz de paz poderia considerar alguns casos como irrelevantes, resolvendo-os sem documentá-los. (CODA, 2012, p. 26) No caso de Santa Maria a documentação ainda não revelou casos referentes a conciliações entre indivíduos, mas não exclui a possibilidade de que tenha sido uma prática comum entre os diferentes Juízes de Paz, visto que era comum alguns casos não passarem por registro oficial. Fato recorrente era a forma de comunicação com outras autoridades, em especial o Presidente da Província. Em 10 de junho de 1835, o Juiz de Paz Constantino José de Oliveira escreve ao Presidente da Província Antônio Rodrigues Fernandes Braga, na correspondência o Juiz solicita uma casa de cadeia para o povoamento de Santa Maria, enquanto faz a solicitação descreve situações que vem passando na posição de Juiz de Paz do distrito e também a importância do seu pedido ser levado em consideração 9. Analisando as palavras usadas por Constantino José de Oliveira, percebe-se que não era a primeira vez que escrevia solicitando providencias ao Presidente da Província. O Juiz de Paz relata que Santa Maria não tinha um lugar adequado para resguardo dos presos e da Guarda Municipal, salienta que o lugar que antes estava sendo usado era mantido pelos seus antecessores desde 1833 e que ele não poderia continuar arcando com tal despesa. Constantino, também revela alguns detalhes sobre o lugar que estava sendo utilizado, na descrição usa das palavras: cubículo e espelunca. O juiz de Paz relata também que o dono do estabelecimento lhe fez uma proposta, onde ele e seus companheiros poderiam continuar usando o local, mas na condição de que o serviço policial aplicado aos demais moradores não se aplicasse à ele. Como forma de explicação, Constantino alega que se sentiu na obrigação de aceitar tal proposta, pois caso contrário, não teria outro lugar para que pudesse ser usado como casa de cadeia. O Juiz de Paz era um cargo central e de extrema importância para o funcionamento da Vila, até a implementação da Reforma de 1841 eram os Juízes de Paz os responsáveis pela ordem e organização de sua Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Juízo de Paz Santa Maria da Boca do Monte (1831-1837). Maço 38. Correspondência enviada ao Presidente da Província por Constantino José de Oliveira em 10 de junho de 1835. 9 [ 521 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS localidade de atuação. Através desta correspondência, percebe-se a preocupação e indignação de Constantino José de Oliveira, comunicando ao Presidente Provincial sobre a atual situação carcerária. Apesar do cargo ser ocupado por homens leigos e Santa Maria estar na condição de quarto distrito de Cachoeira do Sul, percebese que a comunicação com o governo era direta. Para Michele de Oliveira Casali (2018), até mesmo as vilas mais distantes deveriam eleger seus magistrados, levando em consideração as atribuições da lei de 15 de outubro de 1827. Para que a jurisdição ocorresse nesses locais, era necessário cargos que estabelecessem a ordem e regulamentação das localidades, é nesse sentido que a autora considera o cargo de Juiz de Paz como um cargo central nas vilas, pois suas atribuições giravam em torno do cuidado com as demandas locais 10. Os argumentos usados por Constantino José de Oliveira, pode ser entendido como uma preocupação em exercer suas funções na Capela de Santa Maria, mas que a falta de apoio de seus superiores, de certa forma era um empecilho para dar continuidade às suas atribuições como Juiz de Paz. A substituição dos Juízes de Paz era algo corriqueiro e poderia acontecer quando o indivíduo se ausentasse da sua localidade de atuação, ou seja, quando este mudava-se do distrito no qual foi eleito para exercer suas funções. Este caso foi identificado em Santa Maria, quando em 1835 um Juiz de Paz foi substituído por seu suplente, a ação foi justificada pelo fato do Juiz mudar-se de distrito e também por ser administrador de um comércio11. Outro motivo de substituição, se dava no caso do Juiz de Paz não cumprir com as suas obrigações, esses relatos são encontrados com frequência em correspondências ou ofícios enviados para a Câmara Municipal ou até mesmo para o presidente da Província, estas correspondências eram escritas por Juízes de Paz ou Vereadores da vila. A circulação por outros cargos era outra prática comum entre alguns indivíduos que em algum momento ocuparam o cargo de Juiz de Paz, em Santa Maria as fontes revelaram que dos quinze Juízes de Paz, pelo menos seis indivíduos circularam por outros cargos antes ou depois de serem Juízes. Entre os diferentes cargos podemos encontrar fiscais de capela, fiscais municipais, alferes, capitão e vereador. No Rio de Janeiro, os papéis políticos dos juízes de paz eram mais visíveis, especialmente os seus deveres eleitorais. Isso explica a existência de juízes semiprofissionais, que por anos seguidos ocuparam o posto, tornando-se uma espécie de “chefes de bairro”. Na região cafeicultora, as famílias dos fazendeiros geralmente ocupavam o posto. (RODYCZ, 2003, p. 13). Outra situação recorrente em Santa Maria que deve ser destaca, está no número de vezes que um sujeito foi Juiz de Paz, pois através da documentação percebe-se que Constantino José de Oliveira prestou juramento e tomou posse como Juiz de Paz por pelo menos quatro vez, em diferentes anos. Aconteceu o mesmo com Baltazar Pinto de Aguiar, Francisco Ribeiro Pinto, ambos foram Juízes de Paz em dois momentos. Situação também identificada nas eleições de Mariana: Nas eleições municipais de Mariana notamos que até 1832 ocorreu, como previsto pela Lei de 1827, a eleição de um juiz de paz e um suplente apenas. A partir de 1832, porém, com a promulgação do Código do Processo Criminal, que alterou o número de eleitos para 4 juízes, verificou-se quase sempre serem eleitos os quatro juízes de paz, um para cada ano do quatriênio, apesar ainda de em algumas localidades seguirem elegendo um juiz e um suplente apenas. Foi constante, além disso, um mesmo indivíduo permanecer no poder, sendo eleito por várias vezes. (NASCIMENTO, 2010, p. 164). CASALI, Michele de Oliveira. A Magistratura leiga e eletiva: os Juízes de Paz em Rio Pardo (1828-1850). 2018. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal do rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2018. p. 107. 11 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Câmara Municipal de Cachoeira do Sul. Documento 443, maço 38. 10 [ 522 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Outro documento revela a autonomia e a forma como o Juiz de Paz Constantino exercia seu papel de autoridade local. Pois, em 24 de fevereiro de 1835, Constantino José de Oliveira já havia entrado em contato com o mesmo Presidente Provincial, onde comunica que havia nomeado um morador local para ocupar o cargo de Juiz de Paz, suas justificativas são de que ele precisava se ausentar de Santa Maia por alguns dias e os outros Juízes não poderiam assumir por diferentes motivos, sendo que o 2ª Juiz estava enfermo, o 3ª ausente e o 4ª ainda não sido juramentado: Sendo eu um dos quatro Juizes de paz que deve ter nesse distrito, muito na prezente legislatura, como mais votado servi no primeiro ano, e por enfermidade do 2º Juiz, ausência do 3º, e falta do 4º, que ainda não há ate hoje juramentado, exercia eu há mezes a jurisdição na qualidade de suplente, como se reconhesse a sua Casa nesta Povoação o Juiz 3º, e proprietário deste presente ano, Manoel Batista de Maceno lhe officiei no dia 23 de janeiro pp, fazendo lhe entrega da jurisdição, tanto que legitimame lhe pertencia, como para que eu tinha motivo de impedimento, qual a urgente necessidade de uma viagem que na manhã do dia 24 effectuei, retornando-me bem persuadido de que aquele Juiz proprietário ficava impossado e tanto mais acreditava eu nisto, que ele me não tinha respondido; por eu regressando so depois de quatro dias de ausência já não encontrei no Distrito aquele Juiz, que fui informado, tinha recuzado investir-se da autoridade e administrar justiça, retirando-se sem providenciar sua substituição[...] 12 Observando as palavras de Constantino, fica explicito o poder local deste Juiz de Paz, pois não havendo outro Juiz de Paz juramentado pela Câmara, rapidamente Constantino nomeia Manoel Batista Maceno para substitui-lo, usando justificativas para tal atitude. Após explicar os acontecimentos, Constantino solicita com urgência a tomada de providencia com relação a esta situação, relatando que a população de Santa Maria encontrava-se sem a autoridade de Juiz de Paz. Nesse sentido, essa correspondência reforça a ideia de que os Juízes de Paz tinham grande autonomia local. Tendo em vista que a principal função dos Juízes de Paz era a conciliação, mas não existem muitos registros oficiais referentes a estas questões, outros estudos apontam os Juízes de Paz como figuras atuantes em assuntos vinculados à esfera criminal, como é o caso dos Juízes de Paz de Porto Alegre: Por mais de uma década, os juízes de paz porto-alegrenses, em suas atividades diárias, buscaram cumprir o disposto na lei. Tanto aqueles dispositivos presentes na lei que constituiu a função, como os que ampliaram seu poderio, constantes nos Códigos Criminais. Desde a função mais nobre, que, teoricamente, justificava a necessidade de sua instituição nos quadros da administração judicial imperial, a conciliação, até as agruras de não poder cumprir suas atribuições devido à guerra, esses homens eleitos tentaram administrar uma porção da Justiça no sul do Brasil. (CODA, 2012, p. 29). Em Santa Maria, foram encontrados dois processos13 que ainda estão sendo analisados, são processos de auto de devassa datados em 1832 e de autoria do Juiz de Paz André Ribeiro de Cordova, sendo que o primeiro processo contém quarenta páginas, onde foi possível identificar o réu, denunciante, vítima, Juízes de Paz e Juiz Ordinário. O segundo processo contém trinta e três páginas, onde costa os nomes dos envolvidos, estão identificados da seguinte maneira: autor, morto, acusado, Juízes de Paz e Juiz Ordinário. Uma vez que a Reforma do Código criminal de 1832 atribuiu poderes policiais e judiciais aos Juízes de Paz, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Juízo de Paz Santa Maria da Boca do Monte (1831-1837). Maço 38. Correspondência enviada ao Presidente da Província por Constantino José de Oliveira em 24 de fevereiro de 1835. [Texto original]. 13 Ibid. PROC 0863 e PROC 0864. 12 [ 523 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS esses documentos afirmam que os Juízes de Santa Maria também atuavam nessas questões, recolhendo provas e testemunhos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A instituição do Juizado de Paz inseriu-se dentro de um contexto de mudanças e o período inicial aqui analisado pode ser considerado o auge de sua atuação, sendo que a partir de 1841 tem-se um declínio e esvaziamento de poderes. A documentação referente ao Juizado de Paz nos possibilita entender os processos de mudança pelos quais o sistema judiciário passou e como essas questões foram recebidas pela população. No caso de Santa Maria, que no período analisado ainda ocupava a posição de distrito de Cachoeira do Sul, podemos perceber que os Juízes de Paz foram figuras importantes para o desenvolver da sua história, atuando como autoridades locais, autores de processos criminas e também identificados como atores políticos devido ao seu contato com outras autoridades municipais na tentativa de conseguir demandas para a população. FONTES E REFERÊNCIAS FONTES ARQUIVO HISTÓRICO DE CACHOEIRA DO SUL. Fundo A – Câmara Municipal. Série B - CM/CP. Subsérie 3: CM/CP/TPJ 001. __________. Fundo A – Câmara Municipal. Série D – CM/OF. Subsérie 1: CM/OF/A 001. ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Fundo Justiça. Juízo de paz Santa Maria da Boca do Monte (1831-1837). Correspondência. Maço 38. REFERÊNCIAS CASALI, Michele de Oliveira. A Magistratura leiga e eletiva: os Juízes de Paz em Rio Pardo (1828-1850). 2018. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal do rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2018. CERQUEIRA, Gabriel Souza. Reforma Judiciária e Administração da Justiça no Segundo Reinado (18411871). 2014, 104 p. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2014. p. 19-62. CODA, Alexandra. O juiz de paz na esfera criminal - Porto Alegre (1832-1841). 2012. 51 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História/Bacharel)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2012. __________. Os eleitos da Justiça: a atuação dos juízes de paz em Porto Alegre (1827-1841). 2012. 171 p. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2012 FARIA, Regina Helena Martins de. Os Juízes de Paz: concepções e práticas. VI Jornada Internacional de Políticas Públicas. São Luis. Disponível em: <http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2013/JornadaEixo2013/anais-eixo3estadolutassociaisepoliticaspublicas/osjuizesdepaz-concepcaoepraticas.pdf>. Acesso em: 24 de Ago. 2018. MOTTA, Kátia Sausen da. O juiz de paz e a cultura política no início dos oitocentos (Província do Espírito Santo, 1827-1842). 2013. 211 p. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, ES, 2013. p. 104-133. RODYCZ, Wilson Carlos. O juiz de paz imperial: uma experiência de magistratura leiga e eletiva no Brasil. Justiça e História. Porto Alegre. v. 3, n. 5, p. 35-72, 2003. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judici ario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v3n5/doc/02-Wilson_Rodycz.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2018. [ 524 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS NASCIMENTO. Joelma Aparecida do. Os “homens” da administração e da justiça no Império: eleição e perfil social dos juízes de paz em Mariana, 1827-1841. 2010. 194 p. Dissertação de Mestrado (Mestrado em História)–Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, p. 128, 2010. __________. Herança e adaptação em uma vila do Império: Juízes de Paz, diversidade econômica e hierarquias sociais. Mariana, Brasil (1827-1841). In: XXXI Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social – Coimbra. Anais do XXXI Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social, 2011. Disponível em: <http://www4.fe.uc.pt/aphes31/programa_full.html> Acesso em: 24 ago. 2018. SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. O duplo papel da reforma judiciária de 1841: uma lei para a justiça e um instrumento administrativo para o governo imperial. In: Anais do V Congresso brasileiro de história do direito. Curitiba: IBHD. p. 412-424. 2013. Disponível em: < http://www.ibhd.org.br/arquivos/anexos/VCBHD.pdf>. Acesso em: 26 set. 2018. [ 525 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Cartas e diários no teatro de operações: o cotidiano da guerra contra o Paraguai no Rio Grande do Sul Wagner Cardoso Jardim1 Universidade de Passo Fundo Resumo: Entre 1864 e 1870 a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai foi o evento político, econômico e militar mais importante em que aqueles países se envolveram. A historiografia, seja de viés militar ou não, tem avançado muito nas interpretações sobre aquele conflito. Nos últimos anos, muitos bons trabalhos tem surgido, contribuindo com novos olhares para esse tão importante evento. O corpo documental de que dispõe os pesquisadores é enorme e vasto, vão desde documentos do Exército, como listas de recrutas, ordens do dia, ofícios, etc, como da Guarda Nacional de todas as províncias. Também são fartos os documentos dos diversos ministérios imperiais, como correspondências aos comandos do Exército e Marinha, bem como desses com outros órgãos do Estado. Apesar dessa imensidão documental, são raros os documentos não oficiais, como cartas e diários, produzidos por militares, sejam oficiais ou praças. Nesse trabalho, apresentamos uma tentativa de sistematizar os poucos registros nesse sentido, que se referem ao período da Guerra no Rio Grande do Sul. Apresentamos as formas como aqueles homens viam e viviam suas angustiantes experiências no conflito. Documentações pessoais, como cartas e diários, são belas fontes de pesquisa que ajudam a complementar uma visão geral sobre determinado período ou acontecimento. Entendemos, porém, que essas fontes, por si só, não são suficientes para uma abordagem mais global dos acontecimentos, que levem em conta a totalidade como pressuposto teórico-metodológico. Isso, no entanto, não subtrai a importância desses corpus documentais. Acreditamos que uma sincronização de diferentes fontes, como documentos oficiais, fontes jornalísticas, documentos pessoais, entre outros, ajudam o melhor entendimento de um objeto de pesquisa, sobretudo, se o pesquisador não eleger apenas uma tipologia de fontes para trabalhar. No caso de diários e correspondências, acreditamos que a fonte, por seu caráter inicialmente privado, traz elementos que outras documentações não trariam. Durante o conflito contra o Paraguai – 1863-1870 – milhares de homens de todo o Império foram mobilizado para a região belicosa e ali permaneceram por longo período, muitos tendo cumprido todo o período do conflito enfileirado. Nesses anos, muita documentação foi produzida, sejam elas do exército, dos governos provinciais, das representações diplomáticas, de jornais, do governo imperial ou, em menor número, de particulares, que elaboravam seus diários e escreviam cartas para suas famílias. O conflito contra o Paraguai produziu infinitamente menos correspondências do tipo pessoal do que a Guerra da Secessão, nos Estados Unidos, que ocorria no mesmo período.2 Correspondências pessoais, eivadas de posicionamentos individuais e visões de mundo, devem ser relativizadas em seu processo de análise. Ao mesmo tempo, esse tipo de documento nos permite um olhar diferenciado do contexto em que foi produzida, impossível de se apreender por meio de outra documentação – a oficial, por exemplo. Infelizmente para a historiografia da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, são raras as correspondências escritas por combatentes aliancistas, pelo menos que temos noticias ou que tenham sobrevivido ao tempo. Isso muito se deve ao grande número de analfabetos nas fileiras imperiais, dentre os quais, muitos escravizados e libertos. Professor da rede pública estadual, Rio Grande do Sul. Formado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em História pelo PPGH da Universidade de Passo Fundo e doutorando na mesma instituição. Tem pesquisado sobre o Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai e mais especificamente o envolvimento do Rio Grande do Sul naquele conflito. wcjardim@hotmail.com 2 MAESTRI. Mário. Cartas desde o front da Guerra do Paraguai. Territórios e Fronteiras, nº1, jan/jun. 2009. pp.118-127. disponível em: http://www.ppghis.com/territorios&fronteiras/index.php/v03n02/article/view/34/33. acesso em 6 nov.2018. 1 [ 526 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O Rio Grande do Sul e a Guerra contra o Paraguai Entre 10 de junho e 18 de setembro de 1865, as tropas paraguaias comandadas pelo tenente coronel Antônio de La Cruz Estigarribia invadiram, dominaram e saquearam as vilas de São Borja, Itaqui e Uruguaiana, na fronteira oeste da província do Rio Grande do Sul. Em 18 de setembro de 1865, o território invadido foi retomado depois de prolongado sítio da vila de Uruguaiana – invadida a 5 de agosto. Encerradas no povoado, as tropas invasoras, sem ter como guerrear, capitularam, entregando a aglomeração e rendendose como prisioneiros de guerra. O efetivo dos exércitos aliancistas, diante de Uruguaiana chegaria a 30 mil homens de todas as armas, já relativamente bem apetrechados. Enquanto no interior da vila penavam cerca de 5.500 paraguaios, cansados, famintos, mal armados e sem disposição para guerrear. As negociações para a entrega da praça não demoraram muito. Após a batalha de Jataí, arroio tributário do rio Uruguai, em 17 de agosto de 1865, na vila argentina de Restauración (Paso de Los Libres), diante de Uruguaiana, do outro lado do rio, que resultou na aniquilação de uma coluna do exército paraguaio, minguaria o ânimo dos já debilitados soldados. 3 A fronteira oeste da província, sob a responsabilidade do general David Canabarro, estava em completo abandono.4 João Marcellino de Souza, presidente da província, determinou, genericamente, ao brigadeiro David Canabarro e ao coronel Francisco Pedro de Abreu, comandantes da 1ª e da 2ª divisões do Exército imperial, respectivamente, que escolhessem os melhores lugares para se fixarem com as tropas. Ambos deviam defender grandes extensões de território. David Canabarro recebera carta branca do presidente da província para agir conforme julgasse melhor; porém, Francisco de Abreu, a pedido de moradores - seguramente de famílias abastadas - da fronteira Sul, foi fixado, com sua tropa, nas imediações de Bagé. Região “mais rica e populosa do Rio Grande do Sul de então, coração da produção pastoril e charqueadora”, o que explicaria a preferência na sua proteção.5 A situação das forças de defesa da fronteira era preocupante. Os corpos da Guarda Nacional, quando não destacados, ou seja, à serviço do Exército, não eram remunerados pelo Estado. Não raro, tinham que prover suas armas, cavalaria e fardamentos. Com os preparativos para guerra, houve necessidade de recrutamento maciço. Nos corpos da Guarda Nacional, foram incorporados homens simples, sem condições de comprar o material básico, exigindo do governo ou dos comandantes do corpo. Problema esse que perdurou durante toda a campanha. Em 2 de maio de 1865, após espalhar-se a notícia do rompimento das relações entre a República do Paraguai e a Argentina liberal mitrista, o Ministro da Guerra do Império ordenou que todos os corpos do exército marchassem sem demora para Uruguaiana, o que não aconteceu de imediato. 6 As autoridades esperavam a invasão por aquele ponto. A fronteira era terra de ninguém. Nominalmente contava com forças de defesa numerosas e organizadas - a realidade, porém, era outra. Os reforços demoravam e a defesa era insuficiente. Nos dias da invasão, 10, 11 e 12 de junho, uma pequena força de não mais que quatrocentos homens da Guarda nacional, apoiada a seguir pelo 1º Batalhão de Voluntários da Pátria da Corte, praticamente sem treinamento, tentava impedir, sem sucesso e sem muito esforço, a passagem do rio Uruguai pelos paraguaios. Não é certo se devido a essa pequena resistência, os paraguaios esperavam que toda tropa transpusesse o rio, para invadir São Borja. 7 3 MAESTRI, Mario. De Yatay a Cerro-Corá: Consenso e dissenso na resistência militar paraguaia. Estudios Historicos – CDHRPyB, Nº 11, Uruguai, Dez. 2013.p.8-9. Disponível em <http://www.estudioshistoricos.org/11/art.1%20de%20yatay%20a%20cerro%20cora%20%20maestri.pdf > Acesso em 13 nov.2015. 4JARDIM, Wagner Cardoso. David Canabarro, o antiherói imperial na guerra contra Paraguai. Estudios Historicos - CDHRPyB, nº19, Uruguai, Jul. 2018.p.12. disponível em: http://www.estudioshistoricos.org/19/eh1907.pdf acesso em 06 nov.2018. 5 GAY, Cônego João Pedro. A invasão paraguaia [...].Ob.cit.p.164. 6 FRAGOSO, Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. Ob.cit.p.105. 7 FREITAS, Osório Tuyuty de Oliveira. A invasão de São Borja. Porto Alegre: A Nação, s/d.p.90 [ 527 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Cartas e diários: raridades nas fileiras aliancistas Nesse texto, elegemos a documentação produzida em meio ao conflito, no Rio Grande do Sul ou que estivessem ligadas à essa província. Nesse momento, apenas vamos nos ater ao conteúdo do que ali foi expresso. Essa documentação se refere a cartas e diários escritos por três militares distintos e quase na mesma época. São eles: as cartas escritas por Carlos Jacob Schnell, militar de origem alemã, morador do Rio Grande do Sul, adido ao 12º batalhão da Guarda Nacional de São Leopoldo; o diário de Francisco Pereira da Silva Barbosa, que veio do Rio de Janeiro com o 1º Corpo de Voluntários da Pátria e o diário do coronel Manuel Lucas de Oliveira, líder político rio-grandense que recebeu permissão do governo imperial para criar dois corpos de Voluntários da Pátria no Rio Grande. Carlos Jacob Schnell, jovem colono de origem alemã, participaria da guerra contra o Paraguai. Engajado na 5ª companhia do 12º batalhão da Guarda Nacional de São Leopoldo, como furriel. Em sua correspondência pessoal, destinada à família, deixou-nos preciosos relatos da vida no acampamento, registrando a visão de mundo de um soldado, vivendo situações atípicas junto a seus companheiros alemães. Ferido na batalha de Curupaity, em 22 de setembro de 1866, morreria em 17 do mês seguinte no hospital em Corrientes. Oriundos de Stralsund, na Pomerânia, os Schnell se estabeleceram em São Leopoldo desenvolvendo a atividade oleira e agricultura de subsistência. À época em que ocorreu o conflito com o Paraguai seriam colonos de remediada posição, tendo, provavelmente, no futuro lançado mão da acumulação de capital pela atividade na olaria e investido em lotes fundiários, como de costume entre os colonos enriquecidos. A boa condição da família Schnell chamaria a atenção de familiares empobrecidos que viviam na Europa. Lá, a dura condição de vida aos trabalhadores, com altos preços das mercadorias, o desemprego e a fome, no imediato pós-guerra austro-prussiana, estimulava o desejo de melhorar de vida nessa parte do mundo, como ficaria registrado naquelas correspondências. Entre 16 de outubro de 1864, ainda em Porto Alegre e 26 de julho de 1866, Carlos Schnnel escreveu, salvo engano, 26 cartas à família, a maior parte ainda em território rio-grandense, onde sequer participaram de combate e passaram meses estacionados, em completa imobilidade. Nessa condição, acompanharam a invasão da fronteira de São Borja e a rendição paraguaia em Uruguaiana. Já no Paraguai, o combatente teuto-brasileiro, receberia uma das poucas cartas da família, assinada pelo pai, com notícias da colônia. E, finalmente encerrando as correspondências da família Schnell, em 12 de março de 1867, Manuel Barth, em resposta aos aflitos pedidos de informações daquela família, informava que o jovem Carlos Jacob Schnell estava morto devido a ferimentos em uma das pernas. Francisco Pereira da Silva Barbosa nasceu em 2 de abril de 1843, no Rio de Janeiro. Filho de Zeferino Pereira da Silva, alferes da Guarda de Honra de Pedro 1º, e de Rosa Soares da Silva. 8 Francisco trabalhou em casa comercial no Rio de Janeiro até fins de 1864. Quando da publicação do decreto que criava os corpos de Voluntários da Pátria – decreto 3371, de janeiro de 1865 – Francisco Pereira ainda se encontrava naquela cidade. Ali incorporou-se às fileiras do 1º Corpo de Voluntários da Pátria. Ficou aquartelado no “Quartel de Sant’Anna”.9 Aquele corpo de voluntários era composto, na sua grande maioria, por pessoas totalmente alheias aos serviços militares e comandado pelo experimentado coronel João Manoel Mena Barreto. Tendo assentado praça apenas em 17 de fevereiro de 1865, dias depois foi autorizado a usar distintivo de “soldado particular”. A falta de militares experientes para ocupar postos minimamente elevados fez com que Francisco Barbosa, talvez por ser um dos poucos letrados, logo fosse elevado a sargento de sua companhia. Em 9 de março chegavam à Rio Grande, onde sem nunca ter atirado com uma arma, foi elevado a sargento. Em 24 de março, já 2º sargento, embarcou para Porto Alegre. Marcharam para a fronteira de São Borja, provavelmente após serem conduzidos em embarcações até Rio Pardo, limite da navegabilidade DIÁRIO DA CAMPANHA DO PARAGUAI de Francisco Pereira da Silva Barbosa. http://www.forumnow.com.br/vip/mensagens.asp?forum=125774&topico=2964054. Acesso em 17 de out.2018. 9 DIÁRIO DA CAMPANHA DO PARAGUAI de Francisco Pereira da Silva Barbosa.Ob.cit. 8 [ 528 ] Disponível em: Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS naquela época. Em 10 de junho chegaram às imediações de São Borja, onde depois de avisados, correram para tentar impedir, sem muito sucesso, a invasão paraguaia. Francisco Pereira da Silva Barbosa iria até o fim do conflito, galgando postos não superiores a de oficial de segunda classe. 10 O que era comum a quem não possuía riquezas e títulos nobiliárquicos. Manuel Lucas de Oliveira nasceu no Povo Novo, 1797 e morreu em Rio Grande, em 1874. Um dos líderes da Farroupilha, 1835-45, estancieiro na região sul da província onde era capitão da Guarda Nacional ao estourar a revolta.11 Encerrada a guerra coma assinatura, apenas pelos rebeldes, do tratado de paz, Lucas de Oliveira não galgou tanto prestígio como seus companheiros de revolta, entre eles David Canabarro e Antônio de Sousa Neto. Isso se materializou em sua inexpressiva ascensão nos cargos do Exército, como pretendia. Quando do início do conflito contra as Repúblicas do Uruguai e Paraguai, sendo convidado por companheiros de armas a se juntar ao exército, manifestava que só o faria mediante reconhecimento de seu valor pelo governo imperial.12 Em suas atividades econômicas, além da criação de animais e agricultura, de feijão, milho, pêssegos, iniciava atividade de produção de cal para construção. Em janeiro de 1865, após ser publicado na província, por meio dos jornais, o decreto que instituiu os Corpos de Voluntários da Pátria, Lucas de Oliveira viu ali uma possibilidade de obter prestígio e muito provavelmente aumentar suas riquezas. Ofereceu ao governo seus serviços para a criação de dois corpos desses voluntários no Rio Grande do Sul. Em 30 de janeiro de 1865, já tendo enviado solicitação para recrutar Voluntários da Pátria, Lucas de Oliveira anotou encontro com o presidente da província. O governante pedia-lhe auxílio para reunião de gente “aos comandantes de Canguçu e Piratini”. Sem meias palavras teria respondido que “não estava disposto a trabalhar sem vantagens.” 13 Estava claro que suas intenções eram de cunho pessoal e não por qualquer espécie de patriotismo. Lucas de Oliveira não media suas palavras, pelo menos no diário. Em 18 de abril, ao referir-se aos que dirigiam a guerra anotou: “nenhum deles presta para nada, e por isso me não subordino a ser comandado por esses imbecis”.14 Não poupava seus inimigos políticos a quem considerava “inábeis”. Certamente sentia-se injustiçado por não ter adquirido lugar no exército, assim como seus amigos e seus contrários. Após longa espera – na qual já escrevia e visitava incansavelmente parentes e amigos em busca de Voluntários - teve a solicitação aceita em julho de 1865. Aparentemente, por motivos não conhecidos, Manuel Lucas de Oliveira não marchou para o Paraguai com os homens que ajudou a recrutar. Em 11 de junho de 1866 foi dispensado do serviço de campanha pelo general chefe do 2º Corpo do Exército, barão de Porto Alegre.15 No que diz respeito ao cotidiano do recrutamento e da vida em ambiente militar, o diário de Lucas de Oliveira é pouco generoso. A vida no acampamento As condições de vida nos acampamentos eram bastante dificultosas, seja pela angustiante demora, pela fatigante marcha, pelo excesso de chuvas ou calor, pela fome, pela falta de dinheiro do soldo, pelas constantes doenças que acometiam os corpos, pela saudade de casa, da família, enfim, uma infinidade de motivos poderia transformar a vida dos militares acampados, em especial, os com menos recursos, num tormento. Em meados de outubro de 1863, o 12º Corpo de Cavalaria da Guarda Nacional, de São Leopoldo, da qual Carlos Schnell fazia parte iniciou sua preparação em Porto Alegre e logo marchou em direção ao teatro MAESTRI, Mario. Silva Barbosa Diário de um Voluntário na Guerra contra o Paraguai Da defesa de São Borja à Morte de Francisco Solano López. Disponível em: https://www.academia.edu/26758649/Silva_Barbosa_Di%C3%A1rio_de_um_Volunt%C3%A1rio_na_Guerra_contra_o_Paraguai._Da _defesa_de_S%C3%A3o_Borja_%C3%A0_Morte_de_Francisco_Solano_L%C3%B3pez. Acesso em 17 de out.2018. 11 BIOGRAFIA de MANUEL LUCAS DE OLIVEIRA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Lucas_de_Oliveira. Acesso em 17 de out.2018. 12 DIÁRIO do coronel MANUEL LUCAS DE OLIVEIRA. 1864-1865. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Est, 1997. 13 DIÁRIO do coronel MANUEL LUCAS DE OLIVEIRA.Ob.cit.p.34. 14 Id.ib.,p.50 15 Id.ib.,p.23. 10 [ 529 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS de operações. Desde Porto Alegre, o batalhão acampou em Rio Pardo, Passo da Areia, Sete Almas, Restinga Seca, Paim, Arroio do Sol, entrada de Santa Maria e Várzea de Santa Maria. Em princípios de dezembro de 1864, chegaram à Santa Maria da Boca do Monte, após mais de um ano da organização e início da marcha. Ao que tudo parece a grande dificuldade da marcha era a falta de cavalhada, problema que atingiria outros corpos ao longo daquela campanha. Já em uma de suas primeiras cartas, Carlos Schnell reclamava de saber quando marchariam. Dizia: “Estamos a pé”.16 O estado de desorganização que grassava sobre o Império em épocas de paz, tornou-se tragédia durante o conflito. Em meio a acusações de corrupção e superfaturamento no fornecimento de cavalos para o exército, vários corpos ficaram desabastecidos. A falta de cavalhada foi um grande problema naquele conflito, no entanto, a grande demora daquele batalhão parecia estar ligada a outras questões. Posteriormente, seu comandante seria levado a conselho de investigação. A situação da falta de cavalhada no exército chegou ao ponto de, em alguns casos, os próprios recrutas, com condições, comprarem seus cavalos. Carlos Schnell reclamava que em meio a falta de montaria “cada um [tinha] que se virar por si”. 17 Em correspondência de 7 de dezembro de 1865, o jovem pedia à família, informações sobre o preço dos cavalos ,pois pretendia “voltar até fevereiro” caso “os preços” estivessem bons.18 Não é possível, porém, tomar como parâmetro o dito batalhão nº 12 de São Leopoldo, sobretudo, em relação a seus componentes teuto-brasileiros de boas famílias. Se para alguns, como o jovem Carlos Schnell, era possível, em meio a evolução do seu batalhão, cogitar comprar seus próprios cavalos, para outros, oriundos de famílias empobrecidas, em geral, dependentes do soldo para alimentar a família, comprar cavalo era impensado. O Rio grande do Sul tinha como principal arma de guerra a cavalaria. Importante força lutou praticamente todas as guerras da região platina. Era temida, mas a poderosa cavalaria rio-grandense, ao que parece, estava restrita ao meridião da província. Lá onde os grandes estancieiros mobilizavam e tinham sob seu comando milhares de homens à cavalo. Naquele momento, a demanda por cavalhada crescia em toda a província, com isso, os preços também tendiam a aumentar significativamente. Junto a isso veios sobre a região um terrível e chuvoso inverno, debilitando ou matando muitos animais, contribuindo para o aumento dos preços. O cansaço e a parca alimentação também podem ter contribuído para as mortes dos cavalos. Em 27 de dezembro, recém chegado à Santa Maria, após 7 dias de marcha, Carlos Schnell, informava à família que “os cavalos morreram quase todos”. Avaliava que se o comandante não conseguisse “dinheiro nem cavalos”, a “perspectiva de seguir marchando” não era boa. 19 Sua análise não era incorreta, pois permaneceram em Santa Maria até 6 de fevereiro de 1866, ou seja, estiveram em completa inatividade por dois meses. Desinformados Em muitas situações, a informação é poderosa arma, assim suprimi-la pode ser recurso para manter ou evitar consenso sobre determinado assunto. É comum que os soldados, sejam sempre os últimos informados dos acontecimentos e decisões - quando não são totalmente tolhidas - mesmo as de seu particular interesse. Durante o recrutamento, muitos ilícitos foram cometidos, alistamento de menores, de casados, de único arrimo de família, etc., o que era proibido por lei. Era consenso entre os participantes daquele conflito a brevidade do mesmo. Isso percorria o imaginário dos comandantes e dos soldados, pois, não havia qualquer motivo para se acreditar em uma guerra prolongada devido às características dos conflitos da região, resolvidas, em geral com uma grande batalha. Não é impossível que devido a essa abstração de conflito muitos se tenha deixado recrutar, mesmo irregularmente, para garantir um ganho financeiro, vantagens oferecidas pelo governo ou mesmo status. Em registro positivo do imaginário que permeava os acampamentos, Carlos Schnell, em 22 de dezembro de 1864, em carta à família, acreditava que o fim estava próximo. Dizia que esperavam “poder retornar para casa até o Id.ib.,p.141. Loc.cit. 18 SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.158. 19 Id.ib.,p.166. 16 17 [ 530 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS inverno, pois os comandantes casados já [estavam] autorizados a deixar suas guarnições”. 20 Era legítimo que a essa altura dos acontecimentos, com a questão no Uruguai praticamente liquidada e sem ameaças detectadas às fronteiras da província se alimentasse a esperança de retorno ás suas casas. A dispensa dos casados, motivo da euforia do jovem alemão, era um engodo. Naturalmente, no contexto em que estavam, a chegada de notícias daquela dispensa era interpretada como a proximidade do final da guerra. Porém, o que não era divulgado, era que provavelmente, os comandantes pressionados política e militarmente e confiantes no fim do conflito, cederam e liberaram os recrutamentos ilegais, detectados desde o início da organização daquele corpo. Parece razoável que, no acampamento, ou em marcha, os soldados não possuíssem muitas informações sobre os acontecimentos da guerra. Não há registros, nem mesmo nas cartas ora analisadas, da presença de comerciantes acompanhando a tropa. A presença destes, em geral, é sinônimo de informação, pois, mantêm contato comerciais com outros pontos do Império. Jornais poderiam circular pelo acampamento, porém não é certo que soubessem ler em português. Esperavam que as notícias viessem de suas casas, possivelmente melhor informados. Em 27 de dezembro de 1865, Carlos Schnell, dizia à família: “Notícias da guerra eu não tenho, acredito que vocês ouvem mais a respeito do que eu”. 21 Materializando o quão alijados de informações estavam, concluía dizendo que não acreditava que chegariam no Paraguai e esperava voltar para casa “antes do inverno”.22 Durante todo o período que estiveram em marcha e estacionados em diversos lugares da província, ocorreram importantes acontecimentos da guerra. Em 10-12 de junho os paraguaios invadiram São Borja e marcharam sobre Uruguaiana, rendendo-se nessa em 18 de setembro. Não há, nas cartas publicadas, nenhuma referência a qualquer evento desse período. Há um lapso temporal entre as correspondências, no período entre 15 de janeiro e 18 de outubro. Verificando-se a assiduidade com que o jovem Carlos Schnell escrevia é provável que tenha havido extravio de correspondência. É bastante provável que algumas cartas tenham se perdido ao longo dos anos e mesmo no trajeto entre acampamento e a casa da família, o que não deveria ser incomum no precário sistema de postagens existente na época. Não raras vezes, as cartas remetidas nem sequer saíam do acampamento, perdidas em meio à desorganização. Outras vezes, as cartas chegavam ao destino em péssimas condições, molhadas, sujas ou rasgadas, como atesta o jovem alemão. Em seu diário, o coronel Manuel Lucas de Oliveira também deixou anotar acontecimentos importantes que ocorriam na província na época em que ele organizava seus voluntários. Nenhuma linha foi escrita sobre a invasão e avanço paraguaio sobre o Rio Grande do Sul e as inoperâncias da defesa. Apenas em 23 de setembro, anotou o recebimento de notícias sobrea “vitória” aliancista em Uruguaiana, da qual não sabia “se houve fogo”.23 Na mesma época em que o 12º Batalhão da Guarda Nacional, de São Leopoldo, estacionava por longo período em Santa Maria, o 1º de Voluntários da Pátria, chegava na província e marchava em direção à São Borja. Essas duas forças encontravam-se em condições bastante distintas. Os voluntários do 1º corpo estavam em marcha há vários dias, e ao chegar nas proximidades de São Borja, souberam que os paraguaios invadiam naquele momento a província e foram levados ao batismo de fogo. Após tentativa frustrada de impedir a entrada dos invasores, com tão pouca gente, a saída foi bater em retirada escoltando as famílias que também fugiam às pressas em direção à Alegrete. Francisco Pereira da Silva Barbosa, pertencente àquele corpo, descreveu aquela situação. Dizia: “Sofremos muito de S. Borja até a barranca do [rio] Itú. Muitas vezes mal arriávamos as mochilas, tornávamos a levantá-las e a marcha sem carnear. Outras vezes depois de mortas as rezes, éramos avisados que o inimigo estava próximo. Mal tínhamos tempo de dividir a carne e carregávamos crua, até ao novo acampamento, em que na maior parte, faltava a lenha, aproveitando nós os estrumes secos das animais para assar a carne ou fazer o cozido ficando com um cheiro e sabor desagradável”. 24 Id.ib.,p.141. Id.ib.,p.166. 22 Loc.cit. 23 DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira 1864-1865. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Est, 1997. 24 DIÁRIO DA CAMPANHA DO PARAGUAI de Francisco Pereira da Silva Barbosa.Ob.cit. 20 21 [ 531 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Situação que não era regra, por nem sempre andarem aos apuros correndo dos invasores, mas que deve ter assustado muitos daqueles homens que sequer tinham aprendido a atirar. Quanto às péssimas condições do alimento, isso sim, era uma constante. Pouca e nada diversa, a comida era uma das principais reclamações dos soldados. As vezes o número de reses carneadas não eram suficientes para alimentar a tropa. Carlos Schnell viveu em condições muito diferentes disso. Exceto nas primeiras correspondências, onde reclamava bastante da comida fornecida, Carlos Schnell, viveria, segundo ele próprio, muito bem no acampamento. No conjunto de suas cartas são raras as informações negativas, privilegiando sempre assegurar aos familiares, sua boa condição. Registrava, sempre que podia, o desejo de retornar para casa e, sobretudo, nas primeiras cartas, mostrava-se sobremaneira saudoso. No geral, o redator afirmava que o que mais o entristecia era o ambiente “um tanto enfadonho”. 25 As cartas representavam, para quem soubesse ler e escrever – realidade dada à poucos – uma maneira de estarem próximos de casa, de enviarem e receberem notícias. Em 15 de janeiro de 1865, em carta mal endereçada de Santa Maria, o jovem Carlos pedia à família que ao escreverem se alongassem, pois, segundo ele, as “cartas” eram a sua “diversão”. 26 Essa carta foi escrita, provavelmente, em Rio Pardo ou a caminho. Em melhores condições O ambiente de guerra por si só é terrível, saber que enfrentará outro exército e que o risco de morte é grande torna o cenário ainda mais tenso. A guerra contra o Paraguai inaugurou um conceito de guerra total, de longa duração. Até então, não comum, na região platina, as tropas ficarem inativas por muito tempo. A carência de efetivos era grande e a marcha demasiadamente demorada. O 12º Corpo de Cavalaria esteve exatamente 1 ano e 5 meses em marcha desde Porto Alegre até atravessarem o rio Uruguai, em São Borja, em 8 de março de 1866. Tal inatividade, além de retirar força ativa do exército aliancista, em momento de grande necessidade, inutilizava material e animais. Realidade semelhante ocorrida com os corpos de voluntários recrutados por Manuel Lucas de Oliveira. Em janeiro de 1866, meses após a organização oficial dos corpos, já há muito mobilizados extraoficialmente, as forças de Manuel Lucas ainda não tinham incorporado ao Segundo Corpo do Exército, sob comando do general barão de Porto Alegre, então em São Borja. Aquela demora motivou ordem de inspeção, do governo provincial, que determinou marcha imediata. 27 Nesse lapso, os soldados viviam as angústias e as incertezas inerentes ao confinamento. Essas, infelizmente não registradas por Lucas de Oliveira e por Francisco Pereira, mas abundantes no relato do jovem leopoldense. As experiências do jovem Carlos Schnell, no entanto, não servem de parâmetro, para analisar como viviam os Guardas Nacionais engajados. O jovem furriel teuto-brasileiro, que em carta de 10 de janeiro de 1866 afirmava ter “firmemente tomado” a “decisão de lutar pela pátria e pela honra”, certamente estava ali por motivos diversos de muitos de seus companheiros. 28 Os motivos que levaram milhares de homens àquela cruenta guerra são os mais diversos possíveis. Desde o recrutamento forçado, legal ou ilegal, privando as famílias de seus entes, muitas vezes únicos provedores, até alistamentos voluntários de quem enxergava na vida militar uma solução para prover alimentos para si e sua família.29 No 1º Corpo de Voluntários, as condições eram precárias. Ao chegarem em Alegrete, cansados e famintos, estavam extremamente debilitados. Registrou em seu diário que: “O Batalhão chegou à Vila de Alegrete todo roto e esfarrapado, foi preciso passar uma revista e o soldado que estava com a blusa e a calça em melhor estado, cedeu o capote ao que estava quase nu, entraram muitos com roupa à paisana e capote por 25 SANT’ANA, ELMA. Minha amada.Ob.cit.p.143. 26 Id.ib.,p.142. 27 DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira[...]Ob.cit.p.22. 28 SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.p.169. 29 AHRS. Correspondência de João José Pereira, 1865. Assuntos militares, maço 187; BECKER, Klaus. Alemães e descendentes do Rio Grande do Sul [...]Ob.cit.p.157. [ 532 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS cima, por ter de emprestar a sua farda ao companheiro, muitos descalços e outros de alpercata de coro cru, amarradas com correias também cruas”.30 É possível que, no caso do jovem Carlos Schnell, sua escrita revele o desejo de construir uma carreira militar de sucesso e deixar de depender da labuta na olaria ou na produção agrícola da colônia. Ao que parece, Carlos era o filho primogênito de uma família de colonos remediados de São Leopoldo. A possibilidade de alcançar elevado grau militar na Guarda Nacional não seria fantasiosa, pois, nas regiões de colonização alemã, ao contrário do restante da província e do Império, os altos cargos de comandância não acompanhavam a hierarquia socioeconômica dos colonos.31 A história da participação de alemães e descendentes nas guerras do Império era longa e repleta de acusações e reclamações de parte à parte. Os chamados Brummers, que lutaram na guerra contra o ditador Juan Manoel de Rosas, eram conhecidos por sua insubordinação e reclamações, sobretudo quando do atraso no pagamento dos soldos, cruel tradição no exército imperial. A partir dali a participação teuta nas guerras imperiais seria sempre controversa e recheada de contradições. Segundo o jovem Carlos Schnell, em 18 de outubro de 1865, no acampamento em marcha, na direção de Rio Pardo, a comida que até então era de boa qualidade ficou ruim e por isso reclamaram. Diz: “Nós não ficamos conformados com isso e não aceitamos a carne ruim”.32 Segundo o colono nos próximos dias a comida melhorou e não houve registro de novas reclamações. Naquele corpo de cavalaria, composto em sua maioria de alemães e descendentes verificou-se que o tratamento dispensado aos soldados era diferenciado. Apesar da paradoxal visão romantizada do jovem Carlos Schnell, não nega-se que o ambiente ali vivenciado era, ao mesmo tempo tenso pela proximidade da guerra e leve com toque de descontração pela presença de amigos e conterrâneos. Referindo-se ao comandante do corpo dizia: “Ele nem pode nos tratar melhor, nos considera filhos e não soldados” e arrematava dizendo que não lhes faltava nada.33 Em flagrante sinal de que eram dispensados tratamentos diferentes para os não alemães, o jovem revelava que eles, os teutos, respeitavam muito seu comandante, mas que entre os “soldados de cor ele não [era] mais tão bem quisto.34 Há grande possibilidade de que a visão do jovem Carlos Schnell sobre esses acontecimentos fosse prejudicada por fatores emocionais e sentimentos amistosos para com o comandante. Paradoxalmente ao que antes expunha, o jovem alemão revelou em diversas cartas as constantes deserções, tanto de brasileiros quanto de alemães. Deduz-se que nem todos pensavam e/ou recebiam o mesmo tratamento. Vivendo realidade diversa de muitos de seus patrícios, Carlos assegurava que não desertaria “sem uma justificativa maior”.35 Manuel Lucas de Oliveira, como dito, pouco escreveu sobre a tropa a que, com tamanha dificuldade, arregimentava. Em uma dessas poucas vezes, registrou que o voluntário “José pompeu” foi preso “por ter feito turbulência e puxado faca” e que seria “expulso dos Voluntários da Pátria, por indigno de pertencer a essa classe”.36 Não maiores informações de quem seria aquele voluntário, nem do motivo de sua “turbulência”. Situação Singular Aos poucos, as cartas revelavam que a vida do furriel Carlos Schnell vivia situação singular naquela corporação. Em 6 de dezembro de 1865, após demorada marcha de mais de um ano, o corpo nº 12 da Guarda Nacional chegava a Santa Maria. Nesta localidade residiam muitos alemães e descendentes, já em dispersão pela província. Aquele corpo teria sido recepcionado com flores e banda de música. Muitos moradores de DIÁRIO DA CAMPANHA DO PARAGUAI de Francisco Pereira da Silva Barbosa.Ob.cit. MUGGE, Miqueias Henrique. “Gostaria de se tornar tenente”, oficiais da Guarda Nacional um perfil socioeconômico do Brasil Meridional (1850-1870). História Unissinos. Vol.16, nº3, setembro/dezembro de 2012.p.316. 32 SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.146. 33 Id.ib.,p.146. 34 Id.ib.,p.154. 35 Id.ib.,p.160. 36 DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira[...]Ob.cit.p.90. 30 31 [ 533 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Santa Maria eram oriundos dos primeiros núcleos de colonização alemã, por isso, não seria difícil que ali encontrassem parentes, como de fato ocorreu. Em Santa Maria vivia um primo de Carlos, Bernardo, mais um motivo para que o jovem se sentisse praticamente em casa. Ao contrário da maioria de seus companheiros de armas, o jovem Carlos passou dois meses agradáveis na presença de familiares. O estado de ânimo do jovem alemão era tal que em carta de 3 de fevereiro de 1866, revelava à família o seguinte: “Já estamos há dois meses ‘jogados’ aqui e mesmo assim ainda não estou aborrecido”. É relativamente fácil compreender o conformismo do jovem Carlos Schnell, pois apesar de frequentemente registrar a saudade da mãe, pai, irmãos, sobrinhos e primos, não deixou na colônia mulher e filhos, como tantos outros. Para ele, a aventura de participar do conflito, sobretudo, quando se pensava em rápido retorno, na companhia de outros jovens, parente e amigos, compartilhando mesma língua e costumes, poderia representar acumulo de experiência e maturidade. Como prova de crescimento, de responsabilidade por afazeres cotidianos, o jovem escreveu em 13 de janeiro de 1866, desejando que seus familiares soubessem como ele e seus camaradas se viravam nos “afazeres domésticos, como cozinhar, lavar e preparar panquecas”.37 Uma vez em Santa Maria, o primo Bernard teria o acolhido e proporcionado momentos agradáveis. Demonstrando que tinha facilidade em licenciar-se do corpo para visitar o primo, Carlos registrou que desde que chegaram a Santa Maria “não se passou nenhum domingo ou dia livre” que não o visitasse. 38 Sua realidade e, possivelmente, de muitos de seus camaradas de origem alemã, era diversa da maioria da tropa, sobretudo os brasileiros, negros escravizados ou livres, mas também alemães empobrecidos. Esses, devido às constantes deserções eram, seguramente, vigiados e tinham liberdade restrita. Guardadas as devidas proporções das descrições feitas por Carlos Schnell, pode-se concluir que a 5ª companhia do 12º corpo onde servia o furriel, não conheceu, até o cruzamento da fronteira, situação de privação, típica de acampamentos militares. O ambiente em sua companhia lhe era agradável de tal forma que Carlos desejava não ser promovido a 2º sargento, conforme estava habilitado, “por causa de [seus] camaradas”. 39 Francisco Pereira de Abreu fez importante registro sobre as dificuldades da marcha e das fugas precipitadas, carregando pesadas mochilas e atravessando rios em meio ao inverno. O jovem Schnell estava em outra condição, como já referimos, muito em função da falta de mobilidade do corpo em que estava. Situação semelhante, de imobilidade, em boa medida pelas dificuldades de organizar os corpos a que se dispôs, vivia o coronel Manuel Lucas de Oliveira. Esse, talvez esperasse imóvel o desenrolar da guerra, que se pensava acabar ou pelo menos desmobilizar muita gente após a rendição em Uruguaiana. Mesmo sem muitas informações sobre o cotidiano da tropa, em alguns momentos ficou explícito as diferenças entre oficial e tropa. Enquanto, provavelmente parte dos recrutados, vivia dias de tensão e dificuldades nos acampamentos, na proximidade de Pelotas, o coronel Lucas de Oliveira com frequência ia para sua estância ou para propriedades próximas, para passar a noite e “escrever”.40 Deserções Como proposto, a situação vivida por Carlos Schnell e seus camaradas, era singular, não correspondia ao grosso daquelas forças. O próprio furriel alemão registrou em suas cartas constantes deserções, não só de luso-brasileiros, chamados por ele de “azuis”, como de alemães. Salvo engano e extravio de documentação, até novembro de 1865, o jovem não registrou deserções no corpo ao qual pertencia. Porém dali em diante os registros foram frequentes. Os motivos que levavam à deserção são muitos e variavam conforme os interesses e necessidades dos combatentes. Apesar de não conhecer na prática os problemas, Carlos Schnell registrou diversas situações que poderiam estimular o desejo de desertar. Como ficou registrado, o 12º Corpo de cavalaria esteve inoperante, fazendo pequenas marchas e longas paradas por falta de cavalhada. Esse efetivo deveria marchar especialmente montado, no entanto nada impedia que, na falta de SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.172. Id.ib.,p.181. 39 Id.ib.,p.169. 40 DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira[...]Ob.cit.p.94. 37 38 [ 534 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS animais, fossem obrigados a ir de marche marche, por lugares íngremes e carregando mochila e o pesado fuzil de quinze quilos. Além disso, como visto o sistema de recrutamento, em geral, desrespeitava a legislação e arrolava homens isentos. Nesse caso, estavam homens casados, arrimos de família, filhos de viúvas e únicos sustentos da casa e aqueles que tivessem cumprido o período obrigatório no exército de 1ª linha. Existem dois grandes grupos de homens recrutados para o exército, os por consenso e os forçados. Cada um desses grupos podem se subdividir em outras subcategorias. É provável, no entanto, que a grande motivação da fuga entre os engajados com o mínimo de consenso, de forma legal, fosse o reiterado e prolongado atraso no pagamento do soldo. Como apenas proposto, muitos recrutas tinham compromissos com suas famílias e dependiam do seu ordenado. As cartas do jovem furriel leopoldense estão repletas de casos de deserções. Em 6 de novembro de 1865, registrou que de uma só vez “desertaram 22 homens de ‘nossos’ irmãos alemães”. 41 Na ocasião, os fugitivos teriam escrito uma carta e deixado na barraca do capitão. O texto, segundo Carlos, dizia: “Preado capitão não podemos mais empunhar armas sem receber soldo, pois estamos sem dinheiro, e se aqui já não recebemos mais o soldo a situação ficará [grave]” 42 Emitindo juízo de valor sobre o que os diferenciava dos brasileiros, Carlos Schnell afirmava que os alemães eram “mais atrevidos que os azuis”. 43 Talvez a diferença estivesse no fato de que a falta do soldo fosse a única coisa que impedia os alemães de ficarem, enquanto aos demais, inclusive possíveis negros livres ou libertos, certamente teriam motivações diversas. Além disso, e do compromisso moral que os alemães poderiam ter com os compatriotas, era quase impossível que os soldados não alemães soubessem escrever. Ainda sobre a carta seguida de deserção, é preciso apreciar esse fato com bastante cautela para não incorrer em erros de interpretação devido a aparência do fato. É preciso pensar sobre os objetivos dos alemães ao fugirem em grande grupo e deixarem correspondência explicita de que o faziam por causa da falta de pagamento. Essa pode ter sido uma das formas encontradas pelos soldados de chamar a atenção para o fato e não o desejo profundo de fugirem. Isso é corroborado pela informação do próprio Carlos de que no dia seguinte à deserção, iriam receber o soldo. Tal hipótese é fortalecida pela informação de que no dia 18 de novembro, doze dias após a fuga, foram capturados 19 desertores e que “não receberam castigos” 44 O documento não deixa claro se fugiram à cavalo ou não, mas a julgar pela rápida recaptura e ausência de punição é possível que fugissem sem os cavalos, como de costume, e também que tivessem se deixado capturar. A fuga em cavalos, sobretudo se com destino conhecido e seguro era quase impossível de ser alcançada quando tardiamente detectada. Na mesma correspondência, o jovem reatava a fuga de “3 azuis” “que não foram mais localizados por que estavam com boas montarias”. 45 As liberações dos casados e as deserções que com o passar dos dias se intensificavam fez reduzir drasticamente a 5ª companhia do 12º Corpo de Cavalaria da Guarda Nacional de São Leopoldo. Em 13 de dezembro de 1865, teriam apenas 29 homens e segundo o furriel Carlos Schnell: “Se ficássemos acampados por mais 14 dias, então teríamos apenas 4 homens”.46 Manuel Lucas de Oliveira, que em dezembro de 1865, após quase um mês da ordem de marchar para a fronteira de São Borja, ainda encontrava-se imóvel nas proximidades de Pelotas registrou poucas deserções em seu diário. Em 23 de dezembro escreveu brevemente que três alemães desertaram.47 Na região de Pelotas havia muitos descendentes de alemães que foram incorporados aos voluntários, as vezes de forma nada voluntária. Isso ficou registrado em reprimenda do governo provincial ao próprio Manuel Lucas de Oliveira e seus oficiais subordinados, com autorização de recrutamento. Eles foram acusados de recrutar como voluntário mesmo quem não desejasse ser. Isso, também pode ter levado ao caso de algumas deserções. SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.151. Id.ib.,p.151. 43 Loc.cit. 44 Id.ib.,p.154. 45 Loc.cit. 46 Id.ib.,p.163. 47 DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira[...]Ob.cit.p.103. 41 42 [ 535 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O historiador Klaus Becker, em livro sobre a participação de alemães e descendentes na guerra contra o Paraguai observou que entre os teuto-brasileiros também houve a utilização de substitutos, que podiam ser escravos libertos com o propósito de ir à guerra no lugar de outrem ou alguém que por contrato firmado se comprometia a engajar-se como substituto em troca de uma quantia em dinheiro. Em 10 de janeiro de 1866, do acampamento em Santa Maria, Carlos Schnell informava a família a fuga de “5 soldados substitutos”.48 Via de regra, os corpos da Guarda Nacional eram compostos de 400 homens. Segundo tabela dos corpos permanentes chamados a destacamento pelo governo da província em 1865. 49 O corpo nº 12 figurava com essa formação. Se ao deixar Porto Alegre esse corpo estivesse completo, as liberações e, sobretudo as deserções o diminuíram muito. Em 26 de janeiro de 1866, desde Santa Maria da Boca do Monte, o jovem Carlos Schnell escrevia perplexo que aquela corporação contava, no momento, com apenas “278 homens”. E, refletindo sobre as baixas acreditava que chegariam em São Borja “com 100 homens ou menos”.50 Existem registros de soldados desertores que arrependidos voltavam a unidade que pertenciam. Em 3 de novembro Carlos Schnell registrou em carta o retorno do patrício Jacob Holfmeister, cinco dias após desertar.51 Muitas vezes, ao planejarem fuga ou mesmo aproveitarem momento ideal, os soldados não avaliavam como poderiam sobreviver por algum tempo sem serem descobertos. Quando o lugar da fuga era distante do de origem, era improvável que ao desertar o soldado voltasse para casa. Com o aprofundamento da guerra o governo autorizou a criação de patrulhas volantes que percorriam campos e povos atrás de desertores, sendo assim, a exposição de voltar ao município de origem era grande. Havia grande temor entre os soldados, seja do exército de 1ª linha, seja da Guarda Nacional, de serem enviados como castigo para a armada. 52 O serviço na marinha era penoso, o confinamento entediante e as chances de desertar remotas. Assim, como castigo a desertores das forças terrestres, os comandantes poderiam pedir ao governo o envio para a armada. Nesse sentido, é crível que os desertores que não conseguissem sucesso na fuga ou que dela se arrependessem voltassem ao corpo de origem e tentassem escapar da punição. A guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai foi, sem dúvida, uma dolorosa experiência, não raro forçosa, para milhares de pessoas. Seus cotidianos, suas amarguras, suas alegrias, enfim suas vidas naquele espaço de tempo, não são objeto preferível em pesquisas históricas, mesmo em função das fontes escassas. Os registros deixados por Francisco Pereira da Silva, Manuel Lucas de Oliveira e, sobretudo por Carlos Schnell nos permitiram ter um outro olhar sobre daquele conflito. Referências Bibliográficas: AHRS. Correspondência de João José Pereira, 1865. Assuntos militares, maço 187. AHRS. Correspondência do Barão de Jacuí, 1865. Autoridades Militares, maço 183. BIOGRAFIA de MANUEL LUCAS DE OLIVEIRA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Lucas_de_Oliveira. Acesso em 17 de out.2018. DIÁRIO DA CAMPANHA DO PARAGUAI de Francisco Pereira da Silva Barbosa. Disponível em: http://www.forumnow.com.br/vip/mensagens.asp?forum=125774&topico=2964054. Acesso em 17 de out.2018. DIÁRIO do coronel Manuel Lucas de Oliveira 1864-1865. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Est, 1997. FRAGOSO, Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. Vol. 2, 2010. SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.168. 49 RELATÓRIO apresentado ao Exmo vice-presidente da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul dr. Antônio Augusto Pereira da Cunha pelo Visconde da Boa Vista. Rio de Janeiro: Typografia do Jornall do comércio, 1866. 50 SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.p.177. 51 SANT’ANA, ELMA. Minha amada Maria.Ob.cit.148. 52 AHRS. Correspondência do Barão de Jacuí, 1865. Autoridades Militares, maço 183. 48 [ 536 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS FREITAS, Osório Tuyuty de Oliveira. A invasão de São Borja. Porto Alegre: A Nação, s/d. GAY, Cônego João Pedro. A invasão paraguaia na fronteira brasileira do Uruguai. Comentada e anotada pelo major Souza Docca. Caxias do Sul: EdUCS, 1980. 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Assim, a pesquisa tem como objetivo compreender, através do exame das fontes, a repercussão internacional das revoltas que ocorriam no país, bem como as interpretações e estratégias utilizadas pelo remetente na defesa da política empregada por Floriano Peixoto frente à imprensa europeia. Palavras-Chave: Escrita epistolar, Frederico Santa-Anna Nery, história política. Introdução Os primeiros anos da República no Brasil foram marcados por grande agitação política e militar. A abolição da escravidão em 1888, a transição do Império para a República através do golpe de 1889, a Constituição de 1891, a renúncia de Deodoro da Fonseca e as revoltas que eclodiram nesse período, são alguns dos aspectos que contribuíram para o agravamento do cenário político do país. Ascendendo à chefia do governo federal após a renúncia de Deodoro em 1891, o vice-presidente Marechal Floriano Peixoto enfrentou duas revoltas graves, as quais revelam o clima de tensão dos problemas políticos brasileiros da época e a crise de legitimidade do governo instituído. As lutas que eclodiram nesse contexto foram a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul (1893-1895), e a Revolta da Armada no Rio de Janeiro (1893-1894). A disputa pelo poder entre os diversos ramos civis e militares incentivaram o uso da força como meio de impor as diretrizes políticas que estavam em jogo. Até certo ponto conectados, tais conflitos abalaram a ordem dos poderes instituídos, sendo combatido de forma impetuosa por Floriano Peixoto, o qual acabou por ser reconhecido como “marechal de ferro” e “consolidador da República” após por fim às revoltas. É neste contexto que dedico as análises deste trabalho, as quais partem da leitura de cartas endereçadas ao vice-presidente Floriano Peixoto tendo como autoria o escritor e jornalista Frederico Santa-Anna Nery, enquanto este residia em Paris. Em suma, o conteúdo presente no corpus documental corresponde a cartas comentando notícias veiculadas em jornais franceses, americanos e ingleses sobre as revoltas que estavam ocorrendo no Brasil. Além disso, as informações são acrescidas de traduções e recortes de tais notícias e artigos publicados nos jornais a mando do autor, em defesa do governo legal. O uso de cartas na historiografia abre um grande campo de possibilidades para o historiador. A renovação no campo da história política também contribuiu neste sentido ao retomar o documento escrito através de novas perspectivas, permitindo a adoção de diferentes aportes analíticos para sua interpretação. Nesse sentido, como salienta Teresa Malatian, ao tomar este tipo de documento como fonte, o historiador entra em contado com conversas fragmentadas a serem decodificadas em sua dimensão histórica ao mesmo tempo em que reconhece o contexto de uma época, entrelaçando a singularidade do indivíduo que escreve a uma dimensão coletiva (2013, p. 200). Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo - UPF. Bolsista CAPES/Prosuc. Licenciada em História pela mesma universidade. E-mail: gaspar.waleska@gmail.com 1 [ 538 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Sendo assim, esta proposta de análise tem como objetivo compreender, através da correspondência examinada, a repercussão internacional das revoltas que ocorriam no país, bem como a dinâmica das relações estabelecidas entre o remetente e o governo instituído. Também, buscar-se-á elucidar as interpretações e estratégias utilizadas pelo jornalista na defesa da política empregada por Floriano Peixoto frente à imprensa internacional, pretendendo perceber ao mesmo tempo, o engajamento na vida política dos atores históricos envolvidos. Em síntese, a proposta desta pesquisa visa contribuir com novas perspectivas sobre a dimensão que as revoltas em estudo alcançaram internacionalmente frente às discussões levantadas pelo remetente sobre a imprensa da época. Além disso, como ressalta Malatian, a análise de correspondências possibilita esclarecer a difusão das ideias entre determinado grupo, a fixação de certas visões como dominantes numa dada época e seu poder de influir nos acontecimentos (2013, p. 209). A história política renovada e o uso de cartas como fonte de pesquisa A história política vem sendo rediscutida nas últimas décadas, levantando debates que envolvem seus paradigmas, conceitos e procedimentos metodológicos. Como salienta o autor José D’Assunção Barros (2009), enquanto a história política do século XIX mostrava uma preocupação praticamente exclusiva com a política dos grandes Estados - a chamada história política tradicional -, a nova história política, principalmente após a década 1980, passa a se interessar também pelo “poder” em outras modalidades. Conforme o autor, Entre outros aspectos a serem oportunamente considerados, o que esteve em jogo na passagem de uma tradicional História Política, tal como ela era elaborada no século XIX, a uma Nova História política que terá o seu momento de especial intensidade a partir das últimas décadas do século XX, foi de fato um conjunto profundas mutações e disputas que se deram no interior da palavra "poder" ou através dos complexos desenvolvimentos históricos de sua compreensão pela comunidade científica. (...) "Poder" - de acordo com a nova ótica que foi se impondo gradualmente - é aquilo que exercemos através das palavras ou das imagens, através dos modos de comportamento, dos preconceitos (BARROS, 2009, p. 149). Sendo assim, os novos debates envolvendo a história política buscou romper com ideia de uma historiografia considerada tradicional, a qual sofreu pesadas críticas a partir da década de 1920, com o advento da Escola dos Annales. Como elucida Francisco Falcon, prisioneira da visão centralizada e institucionalizada do poder, a história política tradicional pretendeu ser também memória, “coube-lhe então, durante séculos, lembrar e ensinar pelos exemplos reais e ilustres de que era a única depositária” (1997, p. 54). A crítica endereçada à história política tradicional recaia, sobretudo, sobre a história positivista institucionalizada no século XIX. Conforme salienta Falcon (1997), o positivismo tinha como princípio a objetividade e neutralidade por parte dos historiadores ao “reviver” a História, baseando suas análises em perspectivas deterministas utilizando-se de uma variedade de documentos oficiais ou escritos, ordenando os fatos mais importantes, geralmente ligados à política e aos grandes líderes, em uma ordem cronológica e linear de apreensão do tempo, descrevendo-os como um passado real da humanidade. A preocupação dos Annales com a construção de uma história-problema contrastava-se com a narrativa descritiva da velha história política - a ênfase nas séries, na conjuntura e na estrutura tornava o fato desprezível, a longa duração tornava o tempo do episódio insignificante, conforme Fernand Braudel (1982, p. 11) uma duração “caprichosa” e “enganadora”. Porém, como salienta Cassio Albernaz, o “combate”, no sentido annaliste à história política, parece confundir o político enquanto objeto de estudo que possibilita a compreensão de alguns fenômenos sociais, com as noções de acontecimento e de contingência (2011, p. 13). [ 539 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Ao encontro disso, Jacques Julliard (1988), ao discutir o papel da história política na historiografia, defende que o problema não estava no objeto do político, mas sim nos métodos empregados pelos historiadores. Longe de pretender interceder a favor da tradicional história condenada pelos annales, o autor considera que por muito tempo a história política deixou de produzir uma problemática, o que justificaria a perda do seu prestígio frente à historiografia francesa. Sendo assim, Julliard ressalta que os limites impostos à história política estariam relacionados a questões metodológicas bitoladas e a simples narração dos fatos, configurando a ausência de problematizações mais profundas. O ensaio crítico proposto por Julliard faz parte de um conjunto de trabalhos que vinham sendo produzidos na Europa nas décadas 70 e 80 do século XX, os quais se propuseram a debater a política do ponto de vista da historiografia rediscutindo possibilidades e perspectivas para sua renovação. Para Jacques Le Goff (1983), as novas discussões que emergiam, tinham como enfoque o político no sentido de cultura e de poder em oposição a tradicional história política, visto que os fatos já não ocupavam lugar de destaque, mas sim, as mentalidades, os signos e os símbolos políticos de poder. Na órbita das discussões, o historiador René Rémond defende que o retorno de um interesse pela temática seria o signo de uma nova etapa no desenvolvimento da reflexão que a História faz sobre si mesma, e também, o resultado de uma nova configuração, marcada tanto pelas mudanças, que neste novo contexto passaram a afetar o político, como pelas que dizem respeito ao olhar que o novo historiador dirige a este político. Para o autor, o político não pode ser delineado por uma coleção de objetos ou de um espaço, o político não tem fronteiras naturais, e por isso, somos levados a definições mais abstratas, onde a mais constante é pela referência ao poder. (2003, p. 444). Assim, ao incorporar novos objetos e novas abordagens, visando compreender o universo do político de forma mais ampliada, a história política renovada aproximou-se de outras questões as quais perpassam os fenômenos econômicos, culturais e sociais. De acordo com esta nova ótica, o poder se estende a outras coletividades, setores das atividades humanas, é expresso nas palavras e nos modos de comportamento. Conforme Julliard (1988), o poder neste contexto, adquire uma noção muito mais ampla que o Estado. Portanto, há a preocupação de fazer aparecer as relações entre as instituições políticas e as formações sociais subjacentes. A compreensão do político transcorre neste sentido, no reconhecimento dos jogos de interesses, nas relações de poder estabelecidas e na multiplicidade de fatores que influenciam as decisões em diferentes esferas. Frente a isso, percebemos que, em parte, a recuperação do prestígio do estudo do político na historiografia recente tem sido possível devido à renovação das suas abordagens e métodos, bem como o contato estabelecido com novas fronteiras teóricas. Este contexto permitiu ao historiador levantar novas problemáticas e interpretações. Ë possível observar desta forma, que diferentes perspectivas de análises podem servir ao estudo de fontes muitas vezes tidas como convencionais, como os documentos escritos e/ou oficiais. Um exemplo disso é o uso das cartas na pesquisa histórica. Há muito tempo utilizadas pelos historiadores em seus exames, as cartas são retomadas como o próprio objeto de investigação frente aos novos enfoques explorados pela historiografia. A autora Angela de Castro Gomes destaca que tal posicionamento requer mais investimentos na utilização e na análise das cartas, resultando em uma maior atenção às questões teóricas metodológicas que envolvem esse tipo de fonte (2004, p. 10). Sendo assim, o uso de correspondências na pesquisa abre um grande campo de possibilidades para o historiador, constituindo um meio privilegiado de acesso a informações visto o papel cada vez mais relevante que as cartas assumiram nas sociedades ao longo dos séculos. O hábito da correspondência aumentou significativamente a partir do século XVIII com o crescimento da alfabetização. Neste contexto, verificou-se a ampliação das práticas de escrita e de leitura alcançando assim, diversas camadas sociais. As cartas eram utilizadas para expressar sentimentos, emoções, experiências, pedidos, recomendações, conselhos, entre muitas outras modalidades, chegando ao século XIX como o gênero mais difundido de escrita, tornando-se até mesmo uma moda (MALATIAN, 2013, p. 196). Conforme Malatian, o uso de cartas, inevitavelmente encontrarão no caminho as especificidades do gênero epistolar, ou seja, [ 540 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS [...] trata-se de documentos escritos com a preocupação de alcançar um destinatário. Tal preocupação os torna testemunhos de redes de comunicações entre indivíduos e grupos. É o receptor quem irá provavelmente controlar sua preservação ou destruição, numa prática de memória implícita ou explícita no pacto epistolar e seus desdobramentos, os atos de escrever, enviar, receber, ler, responder e guardar cartas (2013, p. 203). Ainda, o historiador deve considerar que as cartas são fragmentos de uma história, pois nada impede que parte das correspondências sejam destruídas se assim for a vontade do titular, ou que as condições de conservação e escrita tornem sua leitura um desafio. No caso de cartas produzidas ou endereçadas a pessoas com inserção pública e destacada, como é o caso das fontes utilizadas nesta pesquisa, estes aspectos devem ser levados em conta. Como salienta Malatian, correspondências de figuras públicas são conservadas com o conhecimento de sua importância enquanto fontes biográficas, sofrendo nesse sentido, a seleção daquilo que deve ser preservado e divulgado para olhares futuros (2013, p. 202). Sobretudo, as novas propostas de análise das cartas deve considerar a subjetividade do documento. Sendo assim, Gomes ressalta que, o que passa a importar para o historiador é exatamente a ótica assumida pelo registro e como seu autor a expressa. Isto é, o documento não trata de ‘dizer o que houve’, mas de dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação a um acontecimento (2004, p. 15). Por esse motivo, cabe ao pesquisador decidir o que irá buscar nesses documentos, levantando problemáticas que correspondam aos objetivos propostos do trabalho, buscando não a veracidade dos fatos, mas sim, compreender os aspectos relacionados ao contexto no qual as correspondências foram produzidas, bem como os diversos papéis sociais, culturais e políticos dos atores históricos envolvidos. Malatian assinala que as considerações feitas sobre esse tipo de escrita remete à constatação que as informações nelas contidas serão sempre versões individuais ou coletivamente construídas sobre determinados acontecimentos vividos pelo narrador ou dos quais se inteirou de diversas formas como conversas, leituras, relatos (2013, p. 204). Frente ao exposto, a proposta desta pesquisa pretende compreender a correspondência destina ao vice-presidente Floriano Peixoto dentro dos aspectos anteriormente mencionados, os quais dão um novo lugar para a análise de cartas dentro da pesquisa histórica. Deste modo, as missivas utilizadas como fonte neste trabalho contribuem significativamente com novas percepções de um contexto específico, marcado pelas revoltas e pelo clima político de intensa agitação. As revoltas na correspondência de Santa-Anna Nery A Revolução Federalista que eclodiu em 1893, é resultado de um quadro de instabilidades que remontam a antigas rivalidades entre os partidos que disputavam o poder do estado rio-grandense. Com o advento da República, o Partido Republicano Rio-grandense (PRR) ascende ao governo sob o comando de Júlio de Castilhos, o qual empreende implacável perseguição e derrubada de seus opositores dos cargos públicos e posições de liderança e prestígio eleitoral nos municípios. Afastados do poder, chefes liberais e dissidentes republicanos fundam o Partido Federalista no início de 1892, tendo como lideranças João Nunes da Silva Tavares e Gaspar Silveira Martins. [ 541 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Organizados em território uruguaio2, os federalistas arquitetaram a invasão do estado, a qual ocorreu em fevereiro de 1893. O Exército participou ativamente do conflito, oficiais tidos como fiéis a causa republicana foram cedidos ao governo do estado rio-grandense, postos como comandantes de brigadas e batalhões. A guerra civil se estenderia até 1895, ultrapassando os limites do estado, chegando a Santa Catarina e ao Paraná, e deixaria a marca da extrema violência cometida nos campos de batalha, como a execução de prisioneiros através da degola (FLORES, 1996, p. 168). No mesmo ano, no Rio de Janeiro em setembro de 1893, deflagrava-se a segunda Revolta da Armada, quando oficiais da marinha insurgiram contra o governo de Floriano Peixoto. À frente da rebelião estava o ex-ministro da Marinha Custódio de Mello que esperava, assim como ocorrera na primeira Revolta da Armada comandada por ele em 1891, a renúncia do vice-presidente Floriano Peixoto como foi a de Deodoro da Fonseca. Contudo, o Marechal manifestou sua intenção de resistir até as últimas consequências, resultando na retirada, após vários ataques frustrados, da esquadra dos revoltosos que ameaçava bombardear a cidade do Rio para a Ilha de Desterro, atual Florianópolis, estabelecendo aí um governo provisório. Aderindo à revolta em dezembro, o almirante Saldanha da Gama deu conhecimento às autoridades que o comando das tropas revolucionárias passaria a ser exercido por ele. Nesse ínterim, as tropas federalistas do Sul, tomaram sentido leste para estabelecer contatos com os revoltosos da Armada que se encontravam em Desterro.3 Em março de 1894, Floriano Peixoto, amparado pelas forças do Exército e com uma nova frota de navios adquirida no exterior, pôs fim ao movimento revoltoso da Marinha. O conjunto documental utilizado neste trabalho refere-se a cartas endereçadas ao vice-presidente da República durante os primeiros meses de 1894, escritas pelo intelectual e jornalista Frederico Santa-Anna Nery (1848-1901), enquanto este residia em Paris. Tais correspondências encontram-se para consulta no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, fazendo parte do Fundo Floriano Peixoto, o qual é constituído de documentos produzidos e acumulados pelo titular no período em que exerceu a presidência da República (1891-1894). Cabe aqui fazer uma breve explanação sobre a vida de Santa-Anna Nery para a melhor compreensão de seu papel no contexto em análise. Intelectual amazônico, Santa-Anna Nery se destacou como um dos principais divulgadores da região no exterior, tornando-se figura ativa nas relações internacionais brasileiras durante o Império e início da República. Além de escritor, Santa-Anna Nery era jornalista escrevendo em diversos jornais no exterior. Sobre a atuação do autor neste período, Ana Carolina de Abreu Coelho destaca: Em 1874 mudava-se para Paris, local em que conquistou um círculo de amizades com gente ilustre como Vitor Hugo, Franz Liszt e o príncipe Roland Bonaparte; fora isso, vários intelectuais e pessoas da alta sociedade eram assíduos no salão de sua residência em Paris. Colaborou com os jornais franceses L’Événement, Écho de Paris, L’opinion e Le fígaro, produzindo artigos sobre o Brasil. Foi diretor do periódico L’América e o primeiro correspondente brasileiro do jornal Republique Française instituído por Leon Gambito um dos chefes prestigiados do partido republicano francês. Escreveu também para os jornais italianos La Tribuna, Libertá , Journal de Rome e Il Século e para o jornal londrino Society de 1874 a De acordo com Ana Luiza Setti Recziegel (2015), as vinculações estabelecidas na fronteira entre os territórios do Uruguai e Rio Grande do Sul podem ser interpretadas pelos elementos regionais, que além das condições geográficas e as movimentações demográficas, estão ligadas às características étnicas e culturais, bem como aos padrões econômicos comerciais e às alianças sociais e políticas, derivativos de uma história que se fez comum desde início da ocupação lusitano-espanhola, determinando o caráter de uma mentalidade coletiva que, na prática, ignorou as marcas dos limites nacionais muitas vezes. Muitos dos estancieiros que investiam seu capital em terras uruguaias eram simpatizantes ou membros do Partido Federalista, sendo assim, o exílio no país vizinho permitiu aos federalistas traçarem suas estratégias de ação revolucionária e firmar alianças. 3 Cabe ressaltar nesse contexto que não havia total coesão entre os dois grupos rebeldes. A aproximação entre eles se deu pelo desejo de se estabelecer um governo provisório, tendo como um dos objetivos principais conseguir atrelar relações com países do Prata, para que estes declarassem beligerância com o Brasil, o que impediria a venda de armamento ao governo federal, porém, o propósito de fortalecimento dos movimentos revolucionários não foi alcançado (RECKZIEGEL, 2015, p. 141). Somado a isto, os líderes federalistas temiam a associação da revolução com o movimento monarquista, uma vez que as declarações do almirante Saldanha da Gama demostravam suas inclinações monárquicas. 2 [ 542 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 1882 escreveu para o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, assinando a coluna Ver, ouvir e contar. Era um dos proprietários e diretores da Revue du monde Latin e diretor da redação do periódico Le Brésil, revistas que procuravam expor uma imagem positiva do Brasil e dos países latino-americanos (2007, p. 15). Um fator interessante em ser destacado sobre a vida de Santa-Anna Nery é sua postura política ambígua. Como ressalta Coelho, o jornalista tinha estreita ligação com a monarquia durante o Império no Brasil, sendo sócio do IHGB e recebedor de diversas homenagens pelo Imperador, contudo, podia se “ambientar” muito bem com políticos ligados à república (2007, p. 19). Tais aspectos podem ser observados nas leituras das cartas endereçadas a Floriano Peixoto, as quais tratam com muito prestígio a figura e a política adotada pelo vice-presidente enquanto este ocupava o cargo de chefe de Estado. Neste contexto, é perceptível como Santa-Anna Nery buscava ser o elo entre a Europa e o Brasil. Nas revistas e jornais os quais atuava no exterior, o autor procurava expor o desenvolvimento do Brasil e também da Amazônia, através de um discurso que propagava um país aparentemente europeu em prosperidade, comunicação, com o diferencial de possuir uma excelente produtividade natural e um território bastante superior (COELHO, 2007, p. 30). Em suma, Nery fazia parte de um círculo de intelectuais nacionalistas que, mesmo com a transição do regime monárquico para o republicano, não deixou de lado seu engajamento na vida política enquanto propagandista do Brasil no exterior. As correspondências analisadas permitem reconhecer tais aspectos. As cartas buscavam informar e, ao mesmo tempo, alertar Floriano Peixoto sobre as notícias que estavam circulando nos jornais da Europa acerca das revoltas que aconteciam no Brasil, bem como salientavam as atitudes tomadas pelo jornalista em resposta e defesa do governo legal quando este era alvo de críticas. Em carta datada de 19 de fevereiro de 1894, Santa-Anna Nery informa Floriano sobre nota que redigiu em resposta ao Journal des Débats, o qual, segundo o autor, não escondia suas simpatias aos revoltosos, mas que mesmo assim havia publicado a retificação, contudo, acompanhada de comentários recheados de inexatidões. Felizmente, continuava Nery, outros “grandes órgãos da imprensa diária” haviam publicado sua nota como New York Herald e outras folhas inglesas. Na mesma correspondência, o jornalista informava sobre algumas linhas presentes no jornal Times, de Nova York, as quais se referiam a um telegrama expedido por Ruy Barbosa enaltecendo a necessidade de serem os revoltosos reconhecidos como beligerantes, ao passo que a folha respondia ser "Ruy Barbosa um mentiroso, que os insurgentes não tinham direito algum, e que logo estariam desbaratados".4 Em outra correspondência Nery escreve ter a honra de remeter a Floriano artigos que redigiu e mandou publicar em defesa do governo legal. Entre os assuntos, destaca o autor que no periódico Le Journal escreveu tendo por finalidade mostrar que, [...] não resta mais aos sediciosos sombra de pretexto para continuarem as suas piratarias, havendo V. Ex.ª demostrado com factos que respeita á risca a Constituição de 24 de fevereiro de 1891.5 Ainda, afirma ter respondido a boatos publicados nos jornais franceses L'epoque e Le Nouveau Monde, os quais versavam que a Revolta da Armada estava por alcançar a vitória, visto que o governo não tinha elementos suficientes para resistir. Por fim, diz ter refutado em termos enérgicos as insolências do Journal des Débats, “que não trepidou em aconselhar aos insurgentes que prosseguissem na lucta”. 6 Visto dessa forma, é percebível a atuação enérgica de Nery enquanto jornalista que buscava contestar qualquer manifestação contrária endereçada ao governo brasileiro. As cartas evidenciam o papel desempenhado pelo intelectual como a reverberação das diretrizes políticas tomadas por Floriano Peixoto, bem como comprovam as tentativas de mobilizar a imprensa em seu favor. Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 19/02/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 05/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. 6 Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 05/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. 4 5 [ 543 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Ao mesmo tempo, devemos levar em consideração que o próprio poder instituído mantinha a preocupação de defender-se aos olhos estrangeiros. Em alguns casos, a atuação dos jornalistas estava ligada a superintendências administrativas no exterior que financiavam seus trabalhos para atuarem na imprensa fora do país. Isto fica claro em umas das cartas de Nery quando o autor faz um apelo ao descrever a situação em que se encontravam os funcionários da superintendência em Paris: Julgo haver assim cumprido meu dever, embora a superintendência se ache literalmente sem um real, não tendo podido nem mesmo pagar os ordenados de fevereiro dos seus empregados, todos pais de família e sem outros recursos em terras extranhas.7 Além de sua atuação na imprensa, Nery mostrava-se inteirado sobre outros assuntos relacionados ao conflito, notificando medidas adotadas para evitar a compra de material bélico na Europa pelos revoltosos. Sua influência nas relações internacionais permitia que tomasse conhecimento de alguns fatos intervindo diretamente em tais questões, as quais reportava de imediato ao vice-presidente: Tendo recebido informações, que me pareciam fidedignas, de que em Hamburgo se tinhão affectuado embarques de chumbo, pólvora e até dynamite com destino a portos do Sul da República, diregime, confidencialmente ao nosso ministro em Berlim, Barão de Itajubá, para que se dignasse providencias a tal respeito. Deu-me segurança de que tal não se dará, suspeitando, porém, que embarques se tinha effectuado em Antuérpia, e acrescentando que já havia telegraphado ao Governo a tal respeito. O Sr. Consul em Londres compartilhou-me em reserva que tinha sido procurado pelos negociantes Samuel and Brothers, que desejavam expedir material de guerra para Santos. Escrevi-lhe logo que não deixasse partir material bellico algum sem que os encarregados da expedição comprovassem com documentos authenticos a remessa destinada exclusivamente ao Governo Legal. Ao levar essas ocorrências ao conhecimento de V. Ex.ª, tenho a honra de assignar-me com a mais sabida consideração e perfeita lealdade. 8 Diante do exposto, percebemos como Nery mantinha-se atento as informações que circulavam no interior dos assuntos envolvendo os conflitos que ocorriam no país e capacidade que o mesmo tinha em intervir em tais questões. Também, as entrelinhas revelam que o autor buscava mostrar-se eficiente perante Floriano, uma forma de dizer “estou aqui” e “minhas atitudes são significativas”, aumentando assim, sua credibilidade. Ao mesmo tempo, o trecho revela a existência de toda uma rede de informações articuladas, demostrando a abrangência alcançada pelas revoltas no exterior. Com a derrota da Revolta da Armada em março de 1894, Santa-Anna Nery passa a remeter ao vicepresidente as notícias sobre a vitória, nas palavras do jornalista: A notícia da vitória do governo foi aqui conhecida com tanta rapidez que a minha intervenção na imprensa tornou-se quasi desnecessária. Os mesmos jornaes que, dias antes, cobriam-nos de contrariedades, forão os primeiros a se indignarem contra os seus amigos da revolta.9 Descrevia ainda, que havia mandado divulgar nota sobre a vitória do governo legal a qual foi publicada em jornais como L’Eclair, Le Journal, e Temps. Também, anexava junto à carta, artigo escrito por ele, o qual foi publicado no jornal republicado L’Événement, em resposta ao periódico Journal des Débats Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 05/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 05/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. 9 Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 20/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. 7 8 [ 544 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS que, “persistindo em sustentar a causa dos sediciosos, disse que Saldanha da Gama não se tinha rendido, mas que se tinha retirado simplesmente”.10 O conteúdo escrito por Nery em seu artigo de resposta atacava de forma enérgica a pessoa de Saldanha da Gama, afirmando de forma irônica que o “valente marinheiro” não havia a quem recorrer após a derrota da revolta, pois nem seus patrícios queriam tomar aquele incômodo. Seguia seu texto escrevendo que, com effeito, não nos esquecemos de que os homens que assim jogaram tão levianamente a paz do próprio paiz e a própria honra pessoal não hesitaram em semear a morte nos bairros mais populosos de uma cidade aberta. O bombardeamento do Rio de Janeiro fica sendo um facto sem desculpa possível desde que não se tratava, para os chefes que o affetuaram, de uma lucta na qual deveriam arriscar a vida. Com que direito o almirante Gama apontou os canhões contra a capital do seu paiz infeliz, se a causa pela qual lutava tinha tão pouca importância que nem mesmo merecia um esforço pessoal da sua luta?11 Frente a isso, ressaltava que a opinião pública não poderia estar com os “sediciosos”, pois não existia causa alguma nas reivindicações dos revoltosos, além de pretextos pessoais para empunharem armas, referindo-se ao conflito como uma “mesquinha insurreição”. Tomamos, neste sentido, conhecimento de como a revolta estava sendo repercutida nos jornais europeus. O papel assumido por Santa-Anna Nery é representativo no sentido que demonstra que, para além da imprensa nacional, o assunto tomou lugar nas páginas periódicas no exterior, contando com a atuação de jornalistas que mantinham ligações estreitas com o governo instituído. Ao mesmo tempo, as cartas evidenciam a existência de jornais que apoiavam a causa revoltosa ou criticavam as ações do governo brasileiro, como é o caso do Journal des Débats, diversas vezes citado pelo autor. Tais aspectos podem ser observados ainda, em outra missiva, na qual Nery reporta a Floriano que na data de 23 de março, os jornais haviam reproduzido um telegrama expedido pelo correspondente do New York Herald, o qual referia-se a notícia de que o vice-presidente do Brasil colocava em vigor os Decretos de 1838 e 1851, autorizando a execução sem processo de todas as pessoas, nacionais ou estrangeiras que auxiliaram as revoltas direta ou indiretamente. 12 Ressalta o autor que imediatamente, encaminhou telegrama a Floriano tratando sobre tal questão, com o intuito de “ficar habilitado para responder a qualquer ataque que, por acaso, aparecesse nos jornaes sympathicos á causa dos revoltosos”. O jornalista continua relatando que como já previa, no dia seguinte, 24 de março, o jornal Times de Londres, havia publicado tal notícia em termos “assaz violentos” e não tendo recebido resposta do telegrama enviado ao vice-presidente, julgou ser urgente não demorar em responder tais investidas do jornal britânico: “mandei um artigo ao Times e dirigi cópia desse artigo ao New York Herald afim de demonstrar que, a verdadeira notícia, tinha ella plena justificação”.13 O artigo escrito aos editores do Times foi mandado como anexo para o conhecimento de Floriano, destacando que outra resposta estava sendo elaborada pelo autor, a partir da qual buscava ele fazer um resumo de toda legislação francesa com o intuito de provar que a atitude tomada pelo governo legal brasileiro não era mais draconiana do que a dos “diversos povos civilisados da Europa”. Para mais, os argumentos utilizados no artigo de resposta buscavam justificar a atitude do governo frente à situação que se encontrava o país. Assim defendia Nery: Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 20/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. Anexo da carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 20/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. 12 O Decreto o qual refere-se Santa-Anna Nery é o de n. 1681 de 28 de fevereiro de 1894, que declarava os crimes cometidos por civis ou militares, estariam sujeitos a foro militar. Destaca Silva (2013) que tal decreto considerava “que o crime de rebelião deveria ser assimilado ao de guerra externa, invocando o decreto nº 61, de 24 de outubro de 1838, para justificar tal medida”, e “definia que os crimes a serem julgados em foro militar, cometidos por civis ou militares, seriam os mesmos arrolados no decreto nº 631, de 18 de setembro de 1851”. Para mais detalhes ver decreto nº 1.681, de 28 de fevereiro de 1894, disponível em: <http://legis.senado.leg.br/legislacao/PublicacaoSigen.action?id=393726&tipoDocumento=DEC-n&tipoTexto=PUB>. 13 Carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 28/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. 10 11 [ 545 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Primeiro que tanto, não é possível que se queira que os sediciosos sejão condennados sem julgamento, mas sim que sejão processados summariamente, o que é muito differente, se assim proceder, o marechal Peixoto não pratica nenhum acto arbitrário ou ditatorial; não fará mais do que proceder de conformidade com leis que datão do tempo do Império de Dom Pedro II, o qual por mais que essa circunstancia já ande muito esquecida, também teve que reprimir, durante o seu longo reinado, uma série de sublevações armadas ou verdadeiras revoluções.14 O jornalista aproveitava para contrapor as afirmações publicadas pelo jornal Times as quais diziam que o governo brasileiro sofria de um vício orgânico: a fraqueza e a covardia. Nas palavras do autor, diferentemente de Dom Pedro II que tomou o caminho do exílio sem nenhum protesto, e Deodoro da Fonseca que renunciou seu cargo de presidente perante as ameaças da primeira Revolta da Armada, Floriano Peixoto soube resistir defendendo a legalidade e sendo assim, “ensinou ao povo brasileiro que é necessário luctar em prol da Constituição”. Por tal posicionamento assumido pelo Marechal, não deveria este deixar impune quem perturbava a paz e a ordem no país. Neste contexto, continuava o autor, o respeito à autoridade constituída era basilar e o perdão imediato dos revoltosos apenas levaria o Brasil ao abismo e por tais motivos, a repressão aos insurgentes era algo louvável, não o contrário disso. Novamente percebemos como Nery buscava através da imprensa defender as atitudes de Floriano Peixoto, descrevendo a figura do chefe de Estado com muita credibilidade frente às críticas externas. As considerações feitas pelo jornalista levam a constatação de que as informações escritas por ele tratavam de construções feitas pelo próprio autor, as quais pretendiam, através de exemplos, legitimar a repressão desencadeada naquele contexto. Isso pode ser observado na continuação do artigo, quando Nery salienta que [...] aqueles que manifestam tanta ternura pelos chefes da insurreição no Brasil, deveriam ter ostentado os mesmos sentimentos quando, por exemplo, o presidente da França, Adolphe Thiers, castigou os autores da Comuna de Paris. 15 O jornalista finaliza sua resposta aos editores do jornal britânico ressaltando que o Brasil, mesmo na condição de estar vivenciando uma guerra-civil, vinha cumprido com seus compromissos financeiros, comparando-o a Portugal, que nas palavras do autor, havia suspendido em plena paz, o pagamento dos juros de suas dívidas. Completava a resposta em tom provocativo: Se quizeres que o Brazil desça ao nivel desse Estado, podeis aconselhar-lhe que deixe de applicar as leis que punem a sedição. Mas, nesse caso, que será feito dos interesses que os inglezes têem naquelle paiz que deve boa parte dos seus progressos aos capitaes inglezes?16 Todos os argumentos utilizados por Nery pretendiam descontruir aquilo que o jornal britânico havia publicado dias antes, tocando inclusive, na questão financeira do país, algo que influenciava diretamente os interesses dos ingleses. Tais aspectos demostram mais uma vez, sua habilidade em intervir em assuntos que poderiam tanto corresponder a questões políticas como econômicas ou diplomáticas. É perceptível a partir das leituras das cartas e dos artigos anexados a elas, a missão a qual SantaAnna Nery tomou para si, sendo um “porta-voz” no exterior dos interesses daqueles que governavam o Brasil Anexo da carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 28/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. 15 Anexo da carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 28/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. 16 Anexo da carta de Frederico Santa-Anna Nery a Floriano Peixoto, Paris, 28/03/1894. Arquivo Nacional: BR AN,RIO Q6.LEG.COR,CAR.662. 14 [ 546 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS no período. Seu papel não se diferenciava muito da atuação de outros sujeitos que, através da imprensa, das obras e das letras, caracterizavam as intricadas relações de poder e a vida intelectual daquela época, tão próxima dos debates políticos e seus desdobramentos. Considerações finais O uso de cartas como fonte na pesquisa histórica vem sendo cada vez mais reconhecido pelos pesquisadores. A importância desse tipo de documento revela muito mais do que a comunicação do remetente ao destinatário, desvendando na escrita o desejo de que as ideias incorporem os acontecimentos. Através das correspondências o historiador tem a oportunidade de penetrar nos jogos de interações sociais de determinada época, pois tal forma de escrita carrega consigo lugares, momentos particulares e sujeitos que fazem parte da história. A renovação na história política permitiu que novos olhares e problemáticas fossem levantadas sobre o documento histórico. Tais aspectos também podem ser percebidos quando utilizamos as correspondências enquanto fonte para pesquisa através de novas perspectivas historiográficas. Sendo assim, mais do que a descrição ou a busca pela veracidade dos fatos, as cartas tornam-se um meio privilegiado de acesso a atitudes e representações, cabendo ao historiador decidir o que irá buscar naqueles documentos, buscando decifrar a subjetividade entre as linhas daquele que escreve. A correspondência analisada neste trabalho, a título de exemplo, constitui uma forma de compreendermos a arena política do contexto estudado através da abertura analítica proposta pela renovação historiográfica. Neste sentido, as cartas endereçadas a Floriano Peixoto por Santa-Anna Nery colaboram com a compreensão sobre as intricadas redes de relações existentes em um contexto particular marcado pelas revoltas as quais passava o país. Através da leitura é possível verificar a existência de um arranjo internacional que contava com a participação de intelectuais, como no caso de Nery, os quais desempenhavam, dentre outras coisas, papel fundamental na imprensa, tendo como objetivo proteger os interesses e a imagem do governo brasileiro no exterior. Destaca-se assim, o valor da fonte estudada, pois através dela é possível entrarmos em contato com o que estava sendo publicado e debatido em alguns periódicos internacionais sendo possível evidenciar ainda, como as críticas levantadas eram contestadas. Tais indícios vêm reafirmar o relevante papel que a imprensa ocupava na época, principalmente enquanto meio de influir ideologias e concepções. Nesta perspectiva, a presente análise possibilitou, mesmo que de maneira sucinta, alargar algumas questões envolvendo os conflitos em estudo e os embates de opinião daquele momento histórico. Sendo assim, o estudo permitiu evidenciar que as revoltas não ficaram restritas ao território nacional. Muito mais do que um problema interno, sua repercussão sugere que, internacionalmente, as mesmas foram pautas de diferentes discussões acabando por dividir opiniões. Neste cenário, é possível considerar que o poder instituído agia através de toda uma rede de comunicações entre indivíduos que compartilhavam, através das correspondências, suas experiências, preocupações e modos de agir frente a um contexto marcado pelos conflitos que convulsionaram os primeiros anos da República brasileira. Referências bibliográficas ALBERNAZ, Cássio A.A. Prolegômeno historiográfico ao objeto político. História. Rio Grande: v. 2, p. 9-24, 2011. BARROS, José D’Assunção. História Política: o estudo historiográfico do poder, dos micropoderes, do discurso e do imaginário político. Educere et Educare. Revista de Educação, Cascavel, n. 7, v. 4, p. 147162, jan./jun. 2009. BRAUDEL, Fernand. 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[ 548 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS A Bacia Platina nas primeiras quatro décadas do século xvi: descoberta e representação europeia1 Yúri Batista da Silva2 Resumo: O trabalho refere-se ao projeto de iniciação científica que vem sendo desenvolvido, com bolsa do programa FIPE da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), desde abril de 2018, que tem por tema “A construção da representação do espaço platino no contexto histórico-político e social do período colonial e das independências - um levantamento da representação cartográfica e de “imagens”. Questão que deveria ser facilmente respondida e que habitualmente é atribuída a Juan Díaz de Sólis, a descoberta do Rio da Prata no século XVI pelos europeus gerou debates entre historiadores do século XX. Dentre eles, o argentino Roberto Levillier e o português Luis Ferrand de Almeida protagonizarão uma discussão, a partir de mapas e documentos manuscritos da época, sobre a expedição que teria chegado primeiro ao estuário platino. Independente do melhor argumento, as pesquisas demonstraram haver uma grande variação de mapa para mapa referente a localização em graus de certas regiões e a confusão existente em relação ao topônimo presente em diversos mapas das primeiras décadas do século XVI. Com isso, o objetivo deste trabalho é buscar melhor compreender os primeiros anos da ocupação europeia na região platina, bem como as representações contidas nos mapas europeus e a compreensão da área espacial de abrangência. Para tanto, apresentaremos os primeiros resultados levantados. Registramos ainda, que este projeto integra as ações dentro do Grupo de Pesquisa do CNPq/UFSM “História Platina: sociedade, poder e instituições”. INTRODUÇÃO O presente artigo, com um caráter de ensaio, busca demonstrar a diversidade presente nos mapas cartográficos no que tange a representação dos confins meridionais do Novo Mundo contidas nos mapas entre o período de 1500 até 1540 através de um debate historiográfico entre dois autores: o argentino Roberto Levillier (1886-1969) e o português Luis Ferrand de Almeida (1922-2006). Além disso, busca-se entender como o imaginário construído na década de 1520 acerca das infindáveis riquezas que a Região Platina poderia proporcionar repercutiu na península Ibérica e na cartografia das coroas portuguesa e espanhola dos anos de 1520 e 1530. EXPLORANDO AS NOVAS TERRAS Mesmo com a assinatura do Tratado de Tordesilhas em 1494 que garantia a posse para a coroa portuguesa de todas as terras localizadas a 370 léguas, no sentido oeste, a partir do arquipélago de Cabo Verde, de acordo com Anselmo Neetzow (2014, p. 3), Descobrir implicava as seguintes ações: Em primeiro lugar, chegar a um local, saber retornar ao ponto de origem e ir ao local novamente. Como conseqüência direta, este novo local não deveria fazer parte do conhecimento mundial, pois ao passo que a divulgação legitimava a descoberta. Nisto, em algumas fontes da época vemos primeiramente a palavra “achar” sobre um determinado local, uma vez que, Trabalho vinculado ao Projeto de Pesquisa “A construção da representação do espaço platino no contexto histórico-político e social do período colonial e das independências - um levantamento da representação cartográfica e de “imagens”” coordenado pela Profª Drª Maria Medianeira Padoin que possui financiamento com Bolsa de Iniciação Científica –FIPE da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em 2018. 2 Graduando de História Licenciatura na Universidade Federal de Santa Maria/UFSM, Bolsista FIPE/2018. E-mail: yurisilva67@gmail.com. 1 [ 549 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS achar uma terra não significava, de imediato, a sua descoberta. (NEETZONW, 2014, p. 03). A posse era então legitimada conforme o território inédito ao conhecimento mundial fosse divulgado. Nesse sentido, a partir da descoberta europeia feita por Pedro Álvares Cabral em 1500, quando este chegou às terras brasileiras, então denominada Santa Cruz, o próximo passo da coroa portuguesa foi montar expedições que explorassem o restante da costa, buscando conhecer as novas terras. Assim, em 1501 foi enviada à costa brasileira uma nova expedição capitaneada pelo florentino Américo Vespúcio (1454-1512) com o objetivo de tomar conhecimento do que continha nas terras recém descobertas, enfocando nas riquezas que estas poderiam oferecer. Ao retornar no ano seguinte, Vespúcio relata que nada, a não ser madeira de pau-brasil, fora encontrado. Com esse conhecimento sobre as terras brasileiras, em 1503 a coroa portuguesa vai então firmar um contrato de arrendamento com o cristão novo Fernando de Noronha. Em troca do direito de extração da cobiçada madeira nas terras do rei, o arrendatário, além de destinar uma certa quantia do produto extraído à coroa, deveria construir e guarnecer fortalezas na região e explorar a cada ano uma extensão de 300 léguas ao longo da costa. Para exploração da costa brasileira então organizada por Fernando de Noronha, Américo Vespúcio foi novamente destinado, e este retorna ao Brasil em 1503. A extensão explorada pela frota organizada por Fernando de Noronha é ainda hoje incerta, havendo quem defenda que os navios deste chegaram até o atual Rio da Prata e Patagônia, como é o caso do historiador e diplomata argentino Roberto Levillier. Analisando fragmentos de cartas e a cartografia dos primeiros anos do século XVI, Levillier defenderá que a primeira expedição de Vespúcio teria chegado até o estuário platino e que este na cartografia posterior a expedição teria então passado a se chamar de Rio Jordan. Já demonstramos em América La bien llamada e em El Nuevo Mundo com uma vasta cartografia, que essa enseada representa o sítio e o primeiro nome cristão do Rio da Prata, chamado até então Paranaguazú ou Huruay pelos índios. (LEVILLIER, 1956, p. 434). Em contrapartida, outros historiadores contestarão as conclusões de Levillier, como é o caso do português Luis Ferrand de Almeida que, com a mesma documentação cartográfica de que utiliza o historiador argentino, chegará a conclusões diferentes. Para ele, a associação entre o Rio Jordan e o Rio da Prata é fruto de um erro cartográfico presente em muitos mapas de 1523, a partir do Mapa de Turim 3, até 15364, onde o verdadeiro Rio da Prata é então denominado Rio Jordan. Anterior ao ano de 1523, Almeida defende que a comum diferenciação de latitude com que aparece o Rio Jordan nos diversos mapas da época não permite que este seja associado ao estuário platino, onde mesmo que o Rio Jordão aparecesse sempre, na cartografia primitiva, em 35º, isso não significa necessariamente que ele se identificava com o Prata. Acontece, porém, que o Jordão não está sempre à mesma latitude, o que enfraquece ainda mais o argumento de Levillier. Assim, em King-Hamy (1502), vemos um golfo sem nome em 25-27º, prolongando-se a costa até 33º. No mapa de Pesaro, o mesmo golfo inominado está em 35-37º, aparecendo também em Silvano e Lenox na latitude de 35º e no Waldseemüller de 1505 em 33º. Quanto ao rio com a designação de Jordão, ora nos surge em 35º (?) (Kunstmann II), ora em 33-34º (Canerio), ora em A autoria do Mapa de Turim é desconhecida, ficando seu nome atribuído ao local onde se encontra, a Biblioteca Real de Turim. Equivoca-se o autor ao definir esta data, uma vez que os mapas do Italiano Battista Agnese de 1541 e 1544 aparecem com o nome Rio Jordan no primeiro e com os nomes Rio da Prata e Rio Jordan no segundo. Os originais dos referidos mapas encontram-se na Biblioteca Estatal da Baviera e na Biblioteca Nacional da Espanha, respectivamente. 3 4 [ 550 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 40º (Waldseemüller, 1507), ora em 27º (Ruysch), ora em 32º (Waldssemüller, 1516). (ALMEIDA, 1955, p. 26 apud NEETZONW, 2014, p. 5). A confusão referente ao topônimo que atribui o nome Rio Jordan nas representações do estuário platino, bem como a grande diferenciação em graus com que o golfo chamado Jordan aparece em diversos mapas, demonstra as dificuldades existentes na época, onde a ciência cartográfica ainda buscava, com dificuldades, projetar-se o mais objetiva possível. Ainda, fato que contraria a hipótese da descoberta do Rio da Prata pela expedição de 1501-1502 é o de que a nomeação do estuário platino como Rio Jordan jamais aparece fora da cartografia, onde “os membros das cortes, os altos funcionários, os navegadores e os cronistas do tempo nunca usam nos seus escritos o nome Jordão para designar o estuário platino, mas sim, rio de Solis, Santa Maria, S. Cristóvão ou até mesmo Rio da Prata”. (NEETZONW 2014, p. 5). Assim, a atribuição da descoberta do Rio da Prata ao florentino Américo Vespúcio - ou a Gonçalo Coelho, como defendem alguns5 - possui pouca adesão na historiografia, sendo então a descoberta atribuída à armada portuguesa sob o comando de João de Lisboa que supostamente em 1511-1512 teria navegado pela região ou então pela expedição espanhola de Juan Díaz de Sólis, então piloto mor da Casa de Contratacion de Sevilla que chegou ao estuário platino no ano de 1516. Da expedição de João de Lisboa pouco se sabe e há dificuldade em precisar a cronologia. Em seu Livro de Marinharia, que contém um atlas e o Tratado da Agulha de Marear e que é datado do ano de 1514, há várias imprecisões, como por exemplo, o registro do Estreito de Magalhães descoberto apenas em 1520 por Fernão de Magalhães, o registro do Japão, atingido pelos portugueses somente em 1543, e curiosos castelos portugueses desenhados na região do Império Inca, fato que não possui amparo de outros registros. Além disso, e fato que pode explicar tamanha imprecisão cronológica da data assinada com o conteúdo registrado, é como explica Luis de Albuquerque em um estudo sobre o Tratado da Agulha de Marear Mas nem aqui [uma cópia do Livro de Marinharia de João de Lisboa] são de surpreender as deficiências da transcrição, visto a compilação em que ela se encontra datar de meados de Quinhentos e o tratado ser de 1514, como no seu título está declarado; o que quer dizer que certamente existiram várias cópias intermediárias entre o original e essa aparentemente mais antiga versão de que dispomos. (ALBUQUERQUE, 1981, p. 130). Ainda que não comprove a veracidade da viagem de Lisboa até o estuário platino, a mesma é utilizada por Dom João III, rei de Portugal e Algarves desde 1521 até 1557, a fim de justificar a posse e a presença lusitana na região platina. Este é, inclusive, o último argumento do historiador português Luis Ferrand de Almeida contra as ideias de Roberto Levillier, onde para ele deixa-se de lado o “descobrimento do Prata em 1502 pela simples razão de que ele não existiu”. (ALMEIDA, 1955, p. 46 apud NEETZONW, 2014, p. 7). A tentativa de Dom João III de argumentar a favor da presença lusa na região anterior aos espanhóis indica o forte impacto que as expedições principalmente na década de 1520 terão no imaginário europeu posterior. Enquanto a expedição de João de Lisboa, se é que podemos considera-la como verídica, parece ter tido não muita relevância na sua contemporaneidade, sendo invocada apenas posteriormente como argumento para presença lusitana, a expedição de Juan Díaz de Sólis (1470-1516) composta por três navios que atingem o estuário platino em 1516 teve muitas consequências diretas e é invocada pela historiografia 5 Na segunda metade do século XX, historiadores como Alexandre Gaspar da Naia defenderão que as expedições de 1501-1502 e 1503, organizadas pela coroa portuguesa e por Fernando de Noronha respectivamente, teriam tido como capitão mor o português Gonçalo Coelho e não Américo Vespúcio, tendo como principais argumentos o mapa de Maiollo de 1504 que contém a inscrição “Tera de Gonsalvo Coigo, vocatur Santa Croxe”, alegando que a atribuição daquelas terras só poderia ser dada ao capitão que as costeou e não a outro tripulante e também que, partindo da ideia de que essas expedições realmente tomaram conhecimento do estuário platino, essa informação não havia chegado até a Casa de Contratacion de Sevilla até a expedição de Sólis, mesmo que Américo Vespúcio tivesse sido capitão mor da referida da casa desde 1508 até 1512, ano de sua morte. (NAIA, 1960). [ 551 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS como a expedição descobridora do Rio da Prata. Dela, primeiro “sel piloto [o próprio Sólis] había sido muerto y canibalizado por sus nativos a la vista de los barcos cuando se acercó a la costa con quince hombres”(GANDINI, 2016, p. 2). Segundo que, ao assumir o comando da expedição com a morte de Sólis, seu cunhando Francisco de Torres decide voltar para Espanha, retorno que acabou com o naufrágio de um dos navios próximo a ilha de Santa Catarina. Os náufragos sobreviventes permaneceram no novo continente, sendo um deles Aleixo Garcia que, oito anos depois, comandaria uma incursão frustrada junto a indígenas em direção ao interior do continente, mais precisamente até o Alto Peru, em busca das riquezas incas. E terceiro é que, apesar de ter chamado o estuário de Mar Dulce, o nome de Sólis acabou nos anos seguintes a sua morte sendo atribuído ao rio, ficando o atual Rio da Prata conhecido como Rio Sólis ou Rio de Sólis pelos espanhóis. Consequência direta também foi a expedição do veneziano Sebastião Caboto (1474-1557) a serviço da coroa espanhola em 1526. A expedição que inicialmente deveria atravessar o Estreito de Magalhães e chegar até as Ilhas Molucas foi desviada por Caboto quando este teve conhecimento, a partir, tanto de portugueses no Novo Mundo, quanto de indígenas e especialmente sobreviventes da expedição de Sólis, das expedições anteriores a ele e da possibilidade de conquista de infindáveis riquezas, passando então a navegar pelo Rio Sólis e depois pelo Rio Paraná, fundando o forte Sancti Spíritus que serviu de base para navegações futuras na região. Além de Caboto e na mesma época que ele, outro navegador circulará, contrariando sua missão original, pelo Rio da Prata e seus afluentes. Seu nome é Diego García de Moguer, espanhol a serviço da Casa de Contratacion de La Coruña6, e que a partir de 1528 passa a navegar pelo Rio da Prata, chegando até o forte Sancti Spiritu e depois ao encontro de Caboto, reivindicando ser ele o detentor do direito de explorar e conquistar aquelas regiões. O RIO QUE LEVA ATÉ A PRATA: MUDANÇA DA PERSPECTIVA EUROPÉIA SOBRE A REGIÃO Segundo Maria Juliana Gandini (2016), as expedições de Sebastian Caboto e Diego Garcia de Moguer foram responsáveis por uma mudança na perspectiva europeia sobre a região: La circulación de un inmenso cúmulo de nueva información sobre la región, recogida y validada por el aparato judicial español, logró transformar drásticamente la representación inicial establecida del río descubierto por Solís. Así, pasó de ser el sombrío paraje de la muerte y la canibalización de su primer descubridor a una atractiva conquista. Esta transformación se hizo evidente con el surgimiento y consolidación de un nuevo nombre para la masa de agua, que denotaba mejor las renovadas y auspiciosas esperanza que sobre él se desarrollaron: de allí en más sería llamado Río de la Plata, en referencia a los inmensos tesoros en metales preciosos que permitiría alcanzar. (GANDINI, 2016, p. 5). Contudo, apesar de toda a mística que repercutiu na Europa em torno da região platina e das possibilidades que ela oferecia – chegar a imensas riquezas a partir dos rios – ter surgido aparentemente sob viajantes e exploradores diretamente associados a Espanha, ainda que estes tivessem tido contato com diversos indivíduos residentes do Novo Mundo, o nome de “Rio da Prata” parece notabilizar-se entre os portugueses primeiramente. Isso fica claro em um despacho de 17 de fevereiro de 1531 da então Rainha da Espanha Dona Isabel ao seu embaixador em Portugal Lope Hurtado de Mendonza: “Después que en veinte y cinco del pasado os escribi con Antônio de Montoya lo que habreis visto, he seído informada que puede beber dos meses, poco más o Casa financiada por comerciantes, uma vez que “los costes de los preparativos eram muy altos y la situación financiera del Emperador no permitia dispendios”. (DOMINGO, 2004, p. 60). 6 [ 552 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS menos, que el Rey de Portugal escribió á Sevilla á un português que se liame Gonzalo de Costa, que ha muchos anos que vivia en un puerto de la tierra dei Brasil del dicho Sereníssimo Rey para que fuese allá, é que, legado, su Alteza le preguntó particularmente por las cosas dal Rio de Soli que los portugueses llaman el de la Plata”. (SILVA, 1946, p. 297 apud NAIA, 1969, p. 69). A carta da rainha a seu embaixador evidencia, além da utilização do nome Rio da Prata pelos portugueses7, a própria diferenciação entre as duas coroas, deixando claro que na Espanha ainda se chama o rio descoberto por Sólis em 1516 de Rio de Sólis. Outra fonte da época que registra essa dualidade referente ao estuário platino é o mapa do piemontês Giacomo Gastaldi de 1556 (com reedições em 1565 e 1606), presente no terceiro volume da obra Delle navigationi et Viaggi do trevisano Giovan Battista Ramusio. A obra de Ramusio, por sua vez, trata-se de um compilado de textos descritivos sobre diversas partes do mundo reunidos pelo autor. O autor do texto original que deu origem ao mapa de Gastaldi, segundo Olga Okuneva (2013), seria Pierre Crignon, tripulante de uma expedição francesa de 1529 rumo ao Sumatra que teria em seu trajeto paradas ao longo da costa brasileira, ainda que a descrição pelo autor tenha sido feita apenas alguns anos mais tarde, próximo ao ano de 1535. A partir dela, Gastaldi, que cria um mapa rico em detalhes, porém pobre em topônimos, ao desenhar o estuário platino, lhe atribui dois nomes ou então um único nome composto a partir dos nomes que já foram citados no despacho da rainha Isabel. Assim, ao nomear a região, o autor utiliza a inscrição “Solis. f. Rio dela Plata” (figura 1). Contudo, é importante destacar a presença apenas do nome “R. dela plata” na exata posição onde se localiza o estuário, talvez indicando que para o autor houvesse uma preferência pelo nome Rio da Prata ou então que este nome fosse predominante na região, ainda que o nome utilizado pelos espanhóis fazendo alusão a Juan Diaz Sólis permanecesse coexistindo. No entanto, outra ocorrência do período que merece ser destacada é que o nome Rio da Prata, embora utilizado nas fontes supracitadas, ainda não era utilizado nem mesmo pela totalidade dos portugueses, demonstrando não haver nenhuma espécie de batismo formal da região reconhecida pela totalidade dos viajantes e exploradores que cruzavam por ali. Isso evidencia-se no roteiro de viagem de Pero Lopes de Sousa, irmão de Martin Afonso de Sousa, que navegou pelo Rio da Prata já no ano de 1531 e que mais de uma vez o citou com o nome de “Rio Santa Maria”. (RIHGB, 1861, p.44). Figura 7 - Detalhe do mapa de Giacomo Gastaldi de 1556. Biblioteca Nacional. No ano seguinte, em 1532, em sua famosa carta a Martin Afonso de Sousa datada de 28 de setembro, o próprio Rei de Portugal, D. João III, ao definir a extensão de cada capitania, chama o estuário platino já pelo nome de Rio da Prata: “[...]determinei de mandar demarcar de Pernambuco até o Rio da Prata cinquenta léguas de costa a cada capitania[...]”. (LUIS, 2004, p. 65). 7 Fonte: Exemplar colorido da Biblioteca Digital de Cartografia Histórica — Universidade de São Paulo. [http:// [ 553 ] www.cartografiahistorica.usp.br/index.php?option=com_jumi&fileid=14&Itemid=99&idMapa=579]. Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Na cartografia espanhola e portuguesa do final da década de 1520 e década de 1530, posterior a repercussão das viagens de Moguer e especialmente a de Caboto, tornar-se-á claro a relevância que estas tiveram para modificação da perspectiva sobre o estuário platino. Analisando a construção e o conhecimento geográfico da bacia platina no século XVI e início do XVII, Tiago Bonato (2018) demonstrará a transformação ocorrida na representação cartográfica do Rio da Prata e seus principais afluentes a partir dos mapas de Diogo Ribeiro do ano de 1525, 1527 e dois do ano de 1529 e de Alonso de Chaves de 1535 (figura 2), ambos cartógrafos da Casa de Contratacion de Sevilla, bem como em Portugal com o mapa de Gaspar Viegas em 1534 (figura 3). [ 554 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 2 - Traço da bacia platina presente nos mapas de Diogo Ribeiro de (a) 1525, (b) 1527, (c) 1529 e (d) 1529, bem como o mapa de Alonso de Chaves (e) 1535 Fonte: Adaptação da utilização feita por Tiago Bonato, 2018, p. 141. [ 555 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Comparando os cinco mapas da Casa de Contratacion de Sevilla supracitados é possível perceber a imediata repercussão que as viagens tiveram. Nos dois primeiros de 1525 e 1527, anteriores a Caboto, mantém-se um tamanho aproximado àquele presente em diversos outros mapas da década de 1520, enquanto que os dois mapas de 1529, criados enquanto Caboto ainda estava na América, mas que cartas dali já haviam chegado à Europa, já mostram o rio Paraná extremamente ampliado além de outros afluentes considerados importantes. (BONATO, 2018, p. 140). Uma dessas cartas é a de Luis de Ramirez que em 10 de julho de 1528, pouco antes de morrer no forte Sanct Spíritus escreve com destino a Espanha. Em uma parte, ele descreve o que Caboto e sua tripulação ouviram de Enrique Montes, um dos sobreviventes da expedição de Juan Diaz Sólis e da aventura de Aleixo Garcia que vivia na região próxima à ilha de Santa Catarina desde então: “dijo [Enrique Montes]8 que si le queríamos seguir, que nos cargaría las naos de oro y plata porque él estaba cierto que entrando por Rio de Solís iríamos a dar en un río que se llama Paraná, el cual es muy caudalosísimo, y entra dentro en este de Solís con veinte y dos bocas. Entrando por este dicho río arriba no tenía en mucho cargar las naos de oro y plata aunque fuesen mayores, porque el dicho río de Paraná y otros que a él vienen a dar, van a confinar con una sierra a donde muchos indios acostumbran ir y venir y que en esta sierra había mucha manera de metal y que en ella había mucho oro y plata y otro género de metal que aquello no alcanzaba qué metal era, más de cuanto ello no era cobre e que todos estos géneros de metal había mucha cantidad”. (GANDINI, 2016, p. 15). Na carta, Ramirez, além de utilizar-se do nome Rio de Sólis ao referir-se ao estuário platino, já deixa explicito toda a motivação que levou Caboto e seus homens a entrarem no Rio de Sólis e em seguida ao rio Paraná e demais afluentes, todos representados nos mapas de Diogo Ribeiro de 1529. Motivação está que pode ser considerada como aceita pelo imaginário europeu. Nesses mapas, bem como no mapa de Alonso de Chaves de 1535 nenhuma alusão é feita ao estuário platino enquanto Rio da Prata. Nos dois mapas de 1529, Diego Ribeiro atribui toda região com o nome “Tierra de Sólis”, enquanto que no mapa de 1535, o nome Sólis aparece apenas na legenda como primeiro explorador da região, logo abaixo do grande nome “El Gram Rio De Paraná” destacando ainda mais a importância que o rio Paraná teve nesse período. Contudo, o mapa Português de 1534 do cartografo Gaspar Viegas não atribui nenhum nome ao estuário platino, seja com o nome Rio de Sólis entendido como nome espanhol, seja com o nome Rio da Prata, português. Ao passo que é conhecido que havia a intensão de proteger certos lugares considerados importantes no Novo Mundo impedindo que outras coroas adquirissem o conhecimento destes, conforme aponta Maria Portuondo em um estudo sobre monarquia espanhola Se documentos que revelassem as coordenadas geodésicas, as características, as costas e os recursos hidrográficos e naturais do Novo Mundo fossem produzidos e circulassem publicamente, poderiam, nas mãos dos inimigos ser utilizados para atingir o Novo Mundo e causar danos ao patrimônio da Coroa e às pessoas cuja proteção era obrigação do estado. (PORTUONDO, 2009, p. 7 apud BONATO, 2018, p. 100). 8 Adição feita por Gandini (2016). [ 556 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Figura 3 – Detalhe do mapa de Gaspar Viegas de 1534. Biblioteca Nacional da França. Fonte: Exemplar colorido da Gallica – Biblioteca Nacional da França. [http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b52503224r]. E, aceitando que o estuário platino era entendido como o meio pelo qual se poderia obter infindáveis quantidades de metais preciosos como ouro e prata, além de outros, é possível considera-lo como uma dessas localidades que, conforme aponta Portuondo, seria melhor que suas características e utilidades fosse mantidas sob sigilo. Muito embora, ao passo que se conhece a intencionalidade das coroas ibéricas, incluindo Portugal que “a proibição da disseminação de cartas náuticas e descrições históricas sobre as recentes descobertas portuguesas datam de ainda mais cedo, 1481” (BONATO, 2018, p. 101), a dificuldade de realmente mantê-las em segredo eram imensas. Entre essas dificuldades, destacam-se os viajantes e cartógrafos que ao longo dos anos poderiam, ora prestar serviços para uma coroa, ora para outra. Apenas para elucidar, o próprio Américo Vespúcio, já mencionado neste artigo prestando serviços a coroa portuguesa, a partir de 1508 torna-se capitão-mor da Casa de Contratacion de Sevilla; importantes cartógrafos portugueses como Lopo Homem e Jorge Reinel possuem diversas acusações de prestação de serviços clandestinos para coroa espanhola; além disso, o sobrevivente Enrique Montes que auxiliou na expedição de Caboto com informações e Gonçalo de Acosta, conhecido como Bacharel e que viajou pela região platina com Moguer, irão prestar serviços a Martin Afonso [ 557 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS de Sousa e seu irmão Pero Lopes de Sousa que navega o rio por ele chamado de “Santa Maria” até o boca do rio Paraná no ano de 1531, ou seja, pouquíssimo tempo depois do retorno de Moguer a Espanha. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da década de 1520, mais precisamente em 1523 com o Mapa de Turim, o Rio da Prata descoberto pelos europeus em 1516 com Juan Diaz Sólis passa a ser nomeado em diversos mapas pelo nome Rio Jordan, nome presente em diversos outros mapas anteriores ao ano de 1516. Isso fez com Roberto Levillier chegasse a conclusão de que o rio da Prata só poderia ter sido descoberto pelos europeus muitos anos antes em uma das expedições de Vespúcio pela costa brasileira, o que por sua vez não encontra amparo em outras fontes. A importância do rio da Prata para os europeus na primeira década após sua descoberta mostra-se pouco relevante, sendo mais associado a morte de Sólis. Contudo, a partir das expedições de Moguer e principalmente Caboto, esta percepção mudará no próprio continente europeu. Não se sabe exatamente se houve uma tentativa direta de barrar que informações sobre as possibilidades da região fossem adquiridas por outras Coroas para além da espanhola. Contudo, o que Caboto e sua tripulação acreditavam ser possível alcançar, e que foi imediatamente transposto para os mapas de Diogo Ribeiro de 1529, configura como um dos casos em que Maria Portuondo defende que a coroa espanhola tinha intenção de proteger. No entanto, caso tenha sido esse o caso, é evidente que tal objetivo falhou. Em Portugal, já em 1531, é possível notar, conforme apontou a Rainha Izabel, a utilização do nome “Rio da Prata” para referir-se ao rio descoberto por Sólis, enquanto na própria Coroa espanhola utiliza-se o nome Rio de Sólis. O imaginário, ainda que construído majoritariamente por agentes e ex-agentes da Coroa espanhola foi rapidamente incorporado pelo governo português que anos mais tarde tentará argumentar a partir da suposta viagem de João de Lisboa a anterioridade lusa na região. O nome Rio da Prata creditado pela historiografia como descendente da expedição de Caboto se mostra de certa forma verídico, ainda que este não seja um nome espanhol para o rio, mas sim português, no mínimo em termos oficiais, o que não anula a possibilidade de que ele tenha sido gerado no próprio continente americano e talvez até anterior a expedição de Caboto. REFERÊNCIAS BONATO, Tiago. Articulando escalas: cartografia e conhecimento geográfico da Bacia Platina (1515-1628). Tese (Doutorado em História) – Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná. Paraná, 2018. Disponível em: < https://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/56414/R%20-%20T%20%20TIAGO%20BONATO.pdf?sequence=1> Acesso em: 26 out. 2018. ALBUQUERQUE, Luís de. O Tratado da Agulha de Marear de João de Lisboa – Reconstituição do seu texto seguido de uma versão francesa com anotações. Separata de: Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, vol. 29, p. 129-162, 1981. Acesso em: 30 jul. 2018. 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[ 559 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS “Aqui jaz”: Cemitério Vera Cruz e a devoção a Maria Elizabeth Francielle Moreira Cassol1 Resumo: O presente trabalho objetiva demostrar a importância do Cemitério Municipal Vera Cruz enquanto espaço de memória, de sociabilidades, de rituais de passagem, de práticas de devoção, ou seja, de um patrimônio material e imaterial da comunidade Passo-fundense, enquanto local de veneração a “santa popular” Maria Elizabeth de Oliveira. O cemitério foi inaugurado em primeiro de janeiro de 1902 e foi o primeiro cemitério municipal da cidade, o mesmo se desenvolveu acompanhando o crescimento urbano e afastando os mortos do centro da cidade. Muitas vezes a “última morada” demonstra em sua arquitetura os interesses e preferências do finado enquanto vivo, bem como, os de sua própria família, deixando assim registrado seu nível socioeconômico ou mesmo sua posição social. Nesse contexto, possuir uma sepultura rica em ornamentos, de grande porte, repleta de esculturas e símbolos sacros pode significar proteção divina, um descanso eterno, em paz e mesmo sua distinção social, visto que, este cemitério mesmo sendo um campo santo é também um espaço privado e que despende certo investimento econômico. Nesse espaço cemiterial conseguir um bom lugar para ser enterrado ou mesmo adquirir um terreno é uma forma de garantir um patrimônio material, mas também de construir um lugar de lembranças e de práticas de socializações como nos enterros, velórios, um local a ser visitado e cultuado pelos familiares. O Cemitério, a devoção a Maria Elizabeth, assim como diversas sepulturas do cemitério Vera Cruz destacam-se enquanto patrimônios locais, lugar histórico, um local repleto de lembranças, memórias, valor arquitetônico, artístico, devoção e beleza. Palavras-chave: cemitério; local de memória; devoção INTRODUÇÃO A devoção aos santos de cemitério, assim como o temor da morte e do morrer são práticas que continuam existindo na contemporaneidade refletindo assim o contexto e a crise social vivida neste. Além disso, deve-se pensar, o que refletem manifestações como esta? um desabafo da população? o cansaço de tanta exploração ? o medo do desconhecido? ... todas essas problematizações nos fazem refletir: no porque ainda recorremos a esse tipo de explicação ou solução ? E nesse contexto torna-se necessário entender o processo de formação de uma santa, como se configura como santa e porque a cidade lhes escolheu para ser um ícone de devoção e assim também o cemitério Vera Cruz, como polo de atração. Para isso, utiliza-se de uma corrente historiográfica que se inicia no Brasil a partir da década de 1980, a saber, a Nova História, pois esta dispõe de novos temas, problemas, objetos e fontes. Nesse contexto, tornou possível dar voz aos dominados (não vê-los só como dominados), aos que não eram contabilizados ou enfatizados na escrita da História, a partir do estudo de seus comportamentos e de suas atitudes diante da sua realidade ou sobre ela. Philippe Ariés preconizava que desde o século XIX já era perceptível à mudança de atitude e da mentalidade perante a morte, essa se consolidaria no transcorrer século XX, denominada por ele de a “morte invertida”. Assim, durante o transcorrer do século XX pode-se presenciar, de certa forma, uma espécie de afastamento do homem da morte e dos ritos que envolvem o morrer. Norbert Elias, afirma que os rituais fúnebres da atualidade atestam que estes “foram esvaziados de sentimento e significado”. Na ótica do mesmo autor, isso deve-se principalmente ao medo da morte, especialmente a morte solitária de uma velhice abandonada, sem parentes, ou mesmo de alguém que lhes ofereça uma lágrima, uma prece, uma dor. Para minimizar o temor do desconhecido que é suscitado com o contato ou a proximidade da morte, o homem tende a se afastar, a evitar e a reprimir os pensamentos que recordam a morte, ou mesmo incorporem a fé na imortalidade (ELIAS, 2001, p.36). Para Ariés (2003), isso seria um retrato da prevalência do silêncio e da proibição das questões da morte, onde as manifestações aparentes de dor, pesar e luto estavam fadados à 1 Doutoranda em História na UPF. [ 560 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS extinção. Por outro lado, o que se pode levantar até o momento é que mesmo com todo o empenho em se afastar, diminuir ou mesmo acabar com o morrer, a dor, a saudade e o crer em algo além da morte, não se extinguiram. Para a presente investigação, e para pensarmos os patrimônios cemiteriais contidos do Cemitério Municipal Vera Cruz, em Passo Fundo, far-se-á o recorte a partir de três lápides, a saber, jazigo de Maria Elizabeth de Oliveira, Mausoléu dos Expedicionários e Urna 78 (localizada em frente ao túmulo de Maria Elizabeth). 1. Cemitério Vera Cruz: uma visita ao passado Por volta de 1835, Cabo Neves (figura “ilustre” da História Passo-fundense) cedeu às terras que seriam o berço de Passo Fundo, construindo a partir daí o primeiro cemitério da cidade que se tem notícia. Esse primeiro cemitério localizava-se no cruzamento das atuais ruas Independência e General Netto, ao lado da primeira Igreja que o município acolheu e local em que foram enterrados os primeiros responsáveis pelo nascimento e desenvolvimento da cidade. A criação deste cemitério, em acordo com os preceitos vigentes foi destinada somente aos moradores católicos, mas, por outro lado, motivou a construção de um outro local onde pudessem ser enterradas pessoas não católicas, localizado em frente ao atual Quartel. Anos depois, com a Proclamação da República (15/11/1889), o catolicismo como religião obrigatória foi cancelado no Brasil. Com isso, a necessidade da existência de dois cemitérios consequentemente se extinguiu. Ao mesmo tempo e, nesse contexto surgiu em Passo Fundo a construção da Gare com a chegada do trem, em 1898, tornando impossível que o centro da cidade continuasse a manter o cemitério católico. Nesse contexto, o Coronel Gervásio Annes (PRR), ordenou a desapropriação de parte das terras determinando que os dois cemitérios fossem transferidos para um único lugar que seria o primeiro cemitério considerado laico. Mesmo o primeiro cemitério local sendo considerado público (do latim –publicus – relativo ou pertencente ao povo, à população; diferente do privado; que serve para o uso de todos 2), os enterros de algumas pessoas não eram permitidos de acordo com a cultura de boa parcela da sociedade. Todos os moradores passo-fundenses não católicos falecidos não eram bem vistos no “campo santo” do primeiro cemitério. Dado esse déficit houve a necessidade de um novo local para os sepultamentos e a criação do segundo cemitério, ao qual atendesse a outras culturas religiosas a partir do ano de 1840. “O espaço de enterro – também chamado cemitério luterano – foi organizado por Johann Adam Schell 3, imigrante germânico, e se localizava na área da atual Praça Fredolino Chimango, em frente ao quartel (ZANOTTO, 2015, p.35)”. Entretanto, na virada do século XIX para o século XX, as novas constituições e traçados urbanos, bem como, as exigências sanitárias para as cidades levou Passo Fundo a criação de seu primeiro cemitério verdadeiramente público 4. O Cemitério Municipal Vera Cruz de Passo Fundo/RS foi inaugurado em primeiro de janeiro de 1902 e foi o primeiro cemitério municipal da cidade, o mesmo se desenvolveu acompanhando o crescimento urbano e afastando os mortos do centro da cidade. Muitas vezes a “última morada” demonstra em sua arquitetura os interesses e preferências do finado enquanto vivo, bem como, os de sua própria família, deixando assim registrado seu nível socioeconômico ou mesmo sua posição social. Nesse contexto, possuir uma sepultura rica em ornamentos, de grande porte, repleta de esculturas e símbolos sacros pode significar proteção divina, um descanso eterno, em paz e mesmo sua distinção social, visto que, este cemitério mesmo sendo um campo santo é também um espaço privado e que despende certo investimento econômico. Nesse espaço cemiterial conseguir um bom lugar para ser enterrado ou mesmo adquirir um terreno é uma forma de Conforme dicionário Pibreram. https://www.priberam.pt/dlpo/p%C3%BAblico Considerado como o primeiro comerciante do município, Johann Adam Schell – mais conhecido como Adão Schell – veio da Alemanha para o Estado e, em 1836, passou a morar em Passo Fundo. A residência onde morava e mantinha seu comércio está situada na Av. Brasil, esquina com Teixeira Soares. O prédio já reformado ainda carrega a história do comerciante através de uma placa, que homenageia e agradece Schell e sua esposa, considerados os primeiros imigrantes alemães da cidade. O estabelecimento construído e gerenciado por Schell durante muitos anos se chamava Casa para Todos e vendia principalmente artigos de cama, mesa e banho. http://www.diariodamanha.com/noticias/ver/11430/Do+primeiro+comerciante+%C3%A0s+grandes+redes+de+varejo 4 Segundo Monteiro (2007); Zanotto (2015), muitas das ossadas do primeiro e do segundo cemitério de Passo Fundo foram transferidas para o Cemitério Municipal Vera Cruz. 2 3 [ 561 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS garantir um patrimônio material, mas também de construir um lugar de lembranças e de práticas de socializações como nos enterros, velórios, um local a ser visitado e cultuado pelos familiares. Mais de um século se passaram desde a inauguração do Cemitério Vera Cruz e, as práticas fúnebres, assim como, as relações com a morte em muito se alteraram. Personagens da história de Passo Fundo, como Adão e Ana Schel, Coronel Chicuta, Coronel Lolico, Lalau Miranda e Wolmar Salton, encontram-se representados no Cemitério Vera Cruz por meio de suas sepulturas. O presidente do Instituto Histórico de Passo Fundo - Fernando Miranda, afirma ser o local um museu a céu aberto. “Por meio das construções e obras de arte, é possível saber como os passo-fundenses lidavam com a morte, sua situação econômica e política, religiosidade e etnias, entre outros aspectos” 5, explica. Miranda destaca a riqueza das obras de arte encontradas no Cemitério, principalmente as estátuas de mármore, granito e bronze. Atualmente um guia tem sido distribuído gratuitamente, promovendo um novo olhar para a história local, bem como, para a última morada, uma vez que o Cemitério Vera Cruz concentra amplo patrimônio artístico e histórico. A proposta do Instituto Histórico de Passo Fundo, em parceria com o Arquivo Histórico Regional, é propor um novo olhar para o Cemitério Vera Cruz a partir da criação do Guia de Visitação que apresenta um mapa de um percurso a ser seguido. “A ideia é que o Cemitério seja visto não com aquele olhar tradicional, de quem vai no cemitério para fazer uma visita a alguém que faleceu, mas com um olhar cultural e um olhar voltado para história”. Carregado de simbologia, mensagens e estátuas, o Cemitério Vera Cruz carrega, também, a história da cidade. O cemitério é uma fonte histórica: os personagens que participaram da história da cidade e do estado estão enterrados ali e a própria arquitetura apresenta parte de épocas vivenciadas aqui. Os traçados e as organizações sócio hierárquicas contidas nas cidades foram transferidas para o desenho/organização dos cemitérios contemporâneos. Se nos centros urbanos determinadas personalidades com determinados poderes aquisitivos possuem condições para morar no centro e erguer nestes locais seus bustos e monumentos, (ou seja, cristalizar suas histórias e memórias), também assim ocorre com determinadas parcelas da população que acabam tendo de ocupar locais mais distantes ou menos glamorosos, como os bairros, loteamentos, vilas e favelas. Para Bellomo apud Zanotto (2015, p.40). Os cemitérios reproduzem a geografia social das comunidades e definem as classes sociais. Existe a área dos ricos, onde estão os grandes mausoléus; a área da classe média, em geral com catacumbas na parede, e a parte dos pobres e marginais. A morte igualitária só existe no discurso, pois na realidade, a morte acentua as diferenças sociais. As sociedades projetam nos cemitérios seus valores, crenças, estruturas socioeconômicas e ideológicas. Essa geografia societária, estas subdivisões econômicas, mas também ou principalmente sociais (pobres, classe média e ricos), podem ser transpostas nos cemitérios também para os que são: “sempre lembrados”, os “lembrados uma ou duas vezes ao ano” e os “esquecidos”6. Pois, aqui nos interessam para além dos suntuosos túmulos – suas arquiteturas e estéticas - as histórias, as memórias, as identidades dos viventes, ou melhor, dos morrentes. E assim, a história da cidade, de seus habitantes e daqueles que por aqui passaram. Vemos desse modo, os cemitérios como locais de memória e esquecimento, mas mais ainda, de conhecimento. 5 6 Disponível em: http://historiaupf.blogspot.com.br/2014_10_01_archive.html Neste estudo “os esquecidos” serão representados pelos mortos da Urna 78. [ 562 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Urna 78 Ainda segundo Chartier (2002), deve-se pensar nas lutas de classe por representação e nos mecanismos utilizados pelos grupos sociais para se imporem uns sobre os outros. Assim, túmulos, jazigos, objetos, estatuária, imagens, catacumbas, criptas, oferendas, sepulturas e às vezes cemitérios inteiros refletem quem o morto foi em vida, o que se pensa sobre o além-vida, ou o que se quer que se lembre deste; com suas consequentes diferenciações sociais. Nesse contexto, a história é a ciência que pretende dar conta das transformações da sociedade, já a memória coletiva, esta insiste em assegurar a permanência do tempo e da homogeneidade da vida, como um intento de mostrar que o passado permanece. Enquanto a história é informativa, a memória é comunicativa. Os cemitérios e túmulos enquanto lugares de memória (ou seja, um espaço físico que é suporte de um espaço imaterial e imaginário) corroboram com a possibilidade de preservação e valorização de memórias individuais e coletivas e que nos viabilizam o estudo e a compreensão do humano, de manifestações e crenças produzidas em um espaço, além de suas ideias, preferencias e identidades. Isso, pois os lugares de memória são espaços que sempre evocam o passado, mas que também, muitas vezes, projetam o futuro. Para Nora (1993) "Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres”. 2. Quem lembramos e quem esquecemos: memórias eleitas e deslembrança Na doutrina católica existe uma área chamada de escatologia. A escatologia, também chamada de novíssimos7, nos auxilia pensar a morte e o morrer, pois esta fala do destino final de todos os homens. No Compêndio de catecismo da Igreja Católica encontramos os quatro novíssimos que nos interessam, a saber, Morte, Juízo, Inferno e Paraíso. No Brasil, desde a chegada de Portugal e consequentemente da colonização, a doutrina católica guiou e influenciou no tratamento dos mortos, seus funerais, orações, missas e enterros, assim como, no imaginário humano sobre os mortos e o além-vida e o temor a estes. Segundo Schmitt (1999), (...) se o corpo de um afogado desapareceu e não pode ser sepultado segundo o costume, ou ainda se um assassinato, um suicídio, a morte de uma mulher no parto, o nascimento de uma criança natimorta apresentam para a comunidade dos vivos o perigo de uma mácula. Esses mortos são geralmente considerados maléficos. Essa dimensão antropológica e universal do retorno Mistura a filosofia e a teologia que fala sobre o destino do homem e do mundo, é estudo das profecias concernentes ao fim desta era e a volta de Cristo. 7 [ 563 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS dos mortos está presente, entre outras na tradição ocidental, desde a Antiguidade, na Idade Média e até no folclore contemporâneo “. Nesse contexto, o medo da morte e dos mortos pode ser superado por meio do intermédio de pessoas com dons extraordinários, assim como em Maria Elizabeth de Oliveira – A santinha de Passo Fundo. Para além da discussão patrimonial e de direito a preservação de uma memória em especial, pensar no que é preservado dentro do espaço cemiterial, muito tem haver com como lidamos com a morte, o morrer e os nossos mortos. Maria Elizabeth de Oliveira nasceu na cidade de Passo Fundo, no dia 6 de fevereiro de 1951. Entretanto, seus pais, Leda de Oliveira e Alcides de Oliveira eram naturais do município de Lagoa Vermelha. Em função dos estudos Maria Elizabeth veio morar em Passo Fundo com seus avós, tendo estudado no Ginásio Menino Jesus e mais tarde no Grupo Escolar Protásio Alves. A breve vida de Maria Elizabeth segundo registros destacou-se, entre outros, por participar de modo intenso da vida religiosa citadina e da moral pregada pelo catolicismo, visto que, além de participar de coral religioso, também auxiliava os padres, na Igreja Matriz Santa Terezinha (FABIANI, 2009). Em 1965 ano de seu falecimento, também os pais de Maria Elizabeth mudaram para a cidade, vindo a residir na Avenida Presidente Vargas, avenida esta que viria a ser o lugar onde a menina sofreria um acidente em 28 de novembro daquele ano. No dia de sua morte, Maria Elizabeth encontrava-se com um grupo de amigas, na esquina das ruas Padre Valentin com a Avenida Presidente Vargas, quando em torno das 15hs de um domingo, uma Kombi (MORENNO, 1994) dirigida por Gentil Lima subiu a calçada desgovernadamente, atropelando o grupo de jovens que ali se encontravam. Maria Elizabeth chegou a ser levada ao hospital local São Vicente de Paulo demonstrado em seu corpo externamente apenas um ferimento no pé, todavia, internamente a mesma encontrava-se com uma séria hemorragia, que a levou a morte. A morte brusca de uma jovem passofundense, com menos de quinze anos, segundo os jornais e pessoas contemporâneas ao fato, relatam que este acidente chocou a cidade inteira. Logo após o ocorrido, a história de que Maria Elizabeth de Oliveira havia previsto sua própria morte, escolhido seu caixão e a roupa que “usaria por toda a eternidade” e a aceitado abnegadamente espalhou-se rapidamente. Entre as características destacadas por Barbosa na biografia de Maria Elizabeth há “a singularidade da menina” enquanto modelo de conduta moral, não só para as moças da época, mas para todas as futuras gerações de mulheres. Além disso, a primeira edição do livro traz várias imagens da menina, o relato do momento em que a mesma previu sua própria morte, a narrativa do dia em que ela escolheu seu caixão e o vestido em que seria enterrada, bem como, a exposição de alguns dos “milagres” ligados a Maria Elizabeth e que auxiliaram a compor o quadro de sua suposta santidade (FABIANI, 2014). Não obstante, o próprio Barbosa (padre e biógrafo de Maria Elizabeth) relata em seu livro ter já em 1966, ou seja, um ano após a morte da “Santinha”, ter recorrido à intersecção da mesma, inúmeras vezes e, assim recebido graças. Também, destacamos estar presente, tanto na biografia quanto nos relatos dos jornais locais, o fato de que, quem recorre a Maria Elizabeth: ganha ou sente o cheiro de rosas, estes é que serão atendidos. Essa presença das rosas é bem recorrente nos relatos dos fieis, ora diz-se que a menina, quando viva, era apaixonada por rosas vermelhas. No contexto das devoções em cemitérios, “os mortos se tornam os intermediários mais próximos para os quais apelar em caso de perigo, para levar orações e pedidos, pelo caminho hierárquico, até os grandes santos e a Madona, de onde virá a intervenção milagrosa” (VOVELLE, 2010, p.35). No cemitério Vera Cruz, da cidade de Passo Fundo, a devoção a Maria Elizabeth de Oliveira realizada diariamente junto a seu túmulo pode-se encontrar a pagação de promessas por meio da distribuição de preces através de “santinhos”. A promessa estabelece a relação entre o santo e o devoto. Nesse contexto, a função do milagre é mudar a realidade em um curto espaço de tempo. Essa relação pressupõe que o devoto deve oferecer algo em troca para receber o que precisa. A Igreja reconhece o ato de distribuição de milheiros de “santinhos” como meio de promover e propagar as devoções. Nesse contexto, se deve atentar para o fato de que o limite entre o que é devocional institucionalmente e o que não o é, é bastante tênue. No que se referem ao uso das imagens, estas são consideradas extremamente importantes e estratégicas no convencimento do santo e na propagação da fé. As imagens da “santa” auxiliam o devoto a [ 564 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS materializar a crença e focar seus esforços no crer sobre o extranatural. Essas imagens estratégicas não se restringem somente ao santo ou santa, mas também na arquitetura do próprio cemitério, nos jazigos e nas esculturas presentes nos mesmos, que são carregados de efígies do Romantismo repletos de emoção e expressividade. A maior forma de expressão, convencimento e estratégia católica encontra-se no culto as santas. Esse culto serve a instituição como forma de fixar valores por intermédio de modelos a serem seguidos pelos fieis. Durante boa parte da história do catolicismo o santo mártir é o principal modelo de santidade, geralmente relacionados a casos de morte bruta, acidentes e casos de superação. No caso de Maria Elizabeth de Oliveira a sua santidade gira entorno de sua morte prematura (aos 14 anos), bem como por possuir o dom da previsão. A partir de Chartier (2002), pode-se compreender como o devoto em boa parte dos cultos a figura do mártir esta pautada em sua morte e em seu sofrimento demasiado. A morte nesse contexto, algo que é temido pelo humano, por seu desconhecimento, é ressignificada quando tratamos de casos excepcionais como o de Maria Elizabeth. Em muitas municipalidades é comum a visita, particular ou em grupo, aos cemitérios e túmulos, principalmente no dia de finados, a saber, dois de novembro de cada ano. No que se refere às visitas aos jazigos, “se acercan a la tumba de sus seres queridos para mantenerla limpia y adornada com luces y flores, esta visita debe ser una muestra de la relación que existe entre el difunto y sus allegados, no expresión de una obligación, que se teme descuidar por una especie de temor supersticioso”. 8 Como este estudo também é voltado para a temática da morte, faz-se necessário pensar, em o que a Igreja diz sobre este e o purgatório, pois segundo a mesma, parte do imaginário e do medo da morte encontra-se no que se pensa sobre estes. Isso, porque segundo a Igreja Católica, o purgatório é o lugar que a maioria das pessoas temem e dispensam suas preces. Por outro lado, quando se trata das devoções às almas de santos e santas de cemitério, o que é o caso do presente estudo, o que se percebe é que estas preces destinam-se muitas vezes a elevar a alma da “santa” ao reino do céus junto a Deus e a todo o seu panteão; o que pode ser comprovado através dos textos contidos nos “santinhos” encontrados no Cemitério Vera Cruz. Segundo Bettencourt (p.136-137), “os cristãos deram continuidade ao que havia preconizado Judas Macabeu (+ 160 a. C.), que julgava ser útil o sufrágio dos vivos para a purificação dos mortos antes de chegar ao paraíso”. A partir do que preconizou Macabeu pode-se pensar nos meios do sufrágio do fiel em relação a seus santos, assim como, a Maria Elizabeth; talvez um dos mais fáceis seja a distribuição dos “santinhos” já mencionada anteriormente, o que, entretanto é dispendioso para quem encontrasse em certa classe socioeconômica. Além dos ditos santinhos, os fieis de cemitério, além do local de culto, não se distinguem dos devotos de igrejas ou de outras religiões. Na pagação de promessas, ou seja, no selar o pacto com a “santa” estes utilizam-se da distribuição e entrega de velas, flores, placas, fotografias, bilhetes e mesmo cópias de orações escritas a mão, estes chamam-se ex-votos. Assim o ex-voto, “é um objeto oferecido ao santo como resultado de uma promessa e de um favor recebido cuja doação havia sido prometida anteriormente. Uma das funções do ex-voto é dar a conhecer o favor recebido, realizado a divulgação dos poderes do santo” (2015, p. 84). No contexto local, no Mapeamento do Patrimônio Imaterial de Passo Fundo 9, entre os patrimônios de cunho religioso podemos destaca: crenças afro-brasileiras, Benzedeiras/Curandeiras/Rezadeiras, a Marcha para Jesus, Procissão de São Cristóvão, a Romaria Arquidiocesana de Nossa Senhora Aparecida e a Romaria e Festa em Honra a São Miguel Arcanjo. No que se refere ao patrimônio 10 material municipal de Directorie Sobre la Pledad Popular y Liturgia: Principlos y Orientaciones. http://www.buenaprensa.com/Content/Images/uploaded/Pdfs/Directorio%20de%20Liturgia.pdf 9https://www.academia.edu/24251378/Mapeamento_do_Patrim%C3%B4nio_Imaterial_de_Passo_Fundo_RS 10 Segundo informações repassadas em 2015 pela Arquiteta Marielen Colpani, Coordenadora do Núcleo de Patrimônio Histórico da Secretaria de Planejamento da Prefeitura os tombamentos já realizados – em caráter temporário ou permanente - são: Pórtico Nossa 8 [ 565 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Passo Fundo, o Jazigo de Maria Elizabeth de Oliveira é tombado desde o ano de 2007 através do – Decreto n° 183. Segundo esse decreto, Art 1º Declara bem integrante do patrimônio histórico-cultural do Município de Passo Fundo, para fins de tombamento provisório, nos termos da Lei nº 2.997/95, a edificação em alvenaria, com área de 19,55m², conhecida como o jazigo de Maria Elizabeth Oliveira, localizada na Quadra 1a-20, junto ao Cemitério Municipal da Vera Cruz. Parágrafo único. As características do jazigo, incluso a volumetria e fachada principal, devem ser preservados, observando o seu aspecto original e a Lei nº 2.997/95 11. No caso de Maria Elizabeth, em que a devoção, a expressa do patrimônio (material e imaterial) e o local de memória é o seu jazigo e o Cemitério Vera Cruz, estes ganham novos usos e se tornam uma espécie de santuário. Para Fabiani (2007, p.330), o Cemitério Municipal da Vila Vera Cruz, em Passo Fundo, pode ser considerado um local privilegiado, pois guarda uma qualidade excepcional, única. O Cemitério, nesse caso, representa um dos lugares sagrados que envolvem o fenômeno; têm a intenção de ser como um veículo de passagem e de contato entre os devotos e sua santa. Esse espaço sagrado representa o recinto no qual se pode tornar possível atingir o nível da transcendência. Túmulo de Maria Elizabeth de Oliveira “santinho” de Maria Elizabeth Outro jazigo tombado como patrimônio cemiterial pelo município desde o ano de 2012 é o Mausoléu dos expedicionários (ex combatentes da Revolução de 1932), que neste mesmo ano obteve seu restauro completo, por uma junta do exército. Construído originalmente para ser o “descanso final” do Capitão Jovino da Silva Freitas (que faleceu na epidemia de grupe espanhola de 1918), o mausoléu foi doado anos mais tarde Senhora Aparecida – Decreto n° 47/2008; Jazigo de Maria Elizabeth de Oliveira – Decreto n° 183/2007; Estádio Wolmar Saltom – Decreto n° 108/2007 (não existe mais); Casa Dipp – Decreto n° 89/2007; Silo – Decreto 236/2006; Casa João Café – Decreto n° 235/2006; Ruína – Decreto n° 234/2006; Moinho – Decreto n° 233/2006; Edifício n° 378 Av. General Neto – Decreto n° 232/2006; Igreja Matriz “Nossa Senhora da Conceição” - Decreto n° 231/2006; Casa Morch – Decreto n° 230/2006; Quartel do Exército – Decreto n° 229/2006; Escola Protásio Alves – Decreto n° 229/2006; Caixa D'água – Decreto n° 227/2006; Casa Della Méa – Decreto n° 226/2006; Hotel Glória– Decreto n° 122/2014; Clube Caixeral– Decreto n° 123/2014; Banco Popular – Decreto n° 3911/2002 ( não existe mais); Companhia Cervejaria Brahma – Lei n° 3275/1997; Bebedouro – Lei n° 3043/1995; Banco Itaú – Lei n° 2955/1994; Prédio do Texas, do Instituto Educacional – Lei n° 2937/1994; Igreja Metodista – Lei n° 2906/1993; Capela São Miguel – Lei n° 2696/1991; Prédio da Antiga Gare – Lei n°2671/1991; Escola Municipal Padre Vieira – Lei n° 2535/1989; Cemitério do Capitão Fagundes dos Reis – Lei n° 7481/1957; Conjunto Arquitetônico ( Academia Passofundense de Letras, Museu, Teatro) – Lei n° 2608/1990. 11 file:///D:/USERS/Desktop/santinhas/dec_183_07.pdf [ 566 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS pela própria esposa ao III/8º Regimento de Infantaria do Exército a fim de guardar as ossadas de pracinhas de guerra. Em entrevista da época da entrega da reforma, o ex prefeito Airton Dipp salientou que: Foram combatentes e pracinhas da revolução de 1932 que orgulham Passo Fundo. Este Mausoléu foi doado ao Exército nacional e isso é uma homenagem aos que fizeram parte da História de Passo Fundo. Fica o registro e os nossos parabéns ao Exército e à família 12. Para Tedesco (2011, p.49), “se refletirmos sobre o que se convencionou chamar “memória patrimonial”, veremos que essa é uma memória social, quando não coletiva, de um grupo bem identificado e expresso pelos símbolos cristalizados e referidos”, a exemplo do Mausoléu (abaixo). Mausoléu dos Expedicionários Nesse contexto segundo Tedesco (2011, p. 52), “há um culto aos templos, aos obeliscos, a torres funerárias, como se estivessem confrontando a aceleração dos tempos, a transitoriedade da vida moderna”. Desse modo, alguns monumentos são facilmente deslembrados ou derrubados, enquanto permanecem “figuras do esquecimento”, pois seu significado esvaiu-se no transcorrer no tempo ou na memória social. Nessa conjuntura, torna-se fundamental para a permanência de um bem, de um patrimônio, de uma memória a constante repetição e a reatualização da lembrança através de seus rituais de comemoração. No caso do Cemitério Vera Cruz, em Passo Fundo, esta rememoração e comemoração acontece principalmente a cada dia dois de novembro, pois, se os rituais de lembrança se mantiverem, a memória dos tempos pode ser relegada ao esquecimento (HALBAWACHS, 1990). Esta memória patrimonial reflete as representações que os grupos sociais fazem de si mesmos, que na verdade são reflexos dos seus modos de ser, de seus objetos, de seus valores, enfim, de sua identidade. Nesse contexto, toda a cultura humana, todo o fazer humano pode tornar-se digno de ser eleito patrimônio e 12 http://www.pmpf.rs.gov.br/interna.php?t=19&c=11&i=5642 [ 567 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS assim, digno de preservação e propagação às gerações posteriores. Assim, quando um fazer, uma estátua, um jazigo, um monumento tornar-se patrimônio de um grupo, é ele que fará a ligação entre os partícipes deste grupo, desta coletividade, bem como, dará a noção de continuidade entre as sociedades pretéritas, presentes e futuras (quem sabe). Tudo isso, porque, o patrimônio nada mais é, do que uma herança do passado para o presente e que almejamos legar as próximas gerações, pois, trata-se do um conjunto de bens, sejam estes matéricos ou imatéricos que identificam uma comunidade frente aos demais e que expressam a sua identidade. O patrimônio cemiterial, nesse contexto, é um bem precioso e silencioso, é uma expressão de um tempo, uma memória, um viver. A ideia central que perpassa todo este estudo constitui-se da reflexão de que a partir dos três objetos de estudo, a saber, Jazigo (devoção) de Maria Elizabeth de Oliveira, Mausoléu dos Expedicionários e Túmulo/Urna “78”; o que é eleito e consequentemente preservado e valorizado enquanto patrimônio está, na verdade, completamente relacionados com o que selecionamos devido à atribuição de determinados valores, sejam estes estáticos, arquitetônicos, históricos, etc. Um bem, um objeto, um jazigo, um monumento, uma memória, uma crença só é verdadeiramente rejeitada e posteriormente esquecida quando não mais reflete os valores, desejos, anseios e projeções da comunidade que o elegeu enquanto patrimônio. Para Abreu e Chagas (2003), “as memórias que envolvem patrimônio coletivo, podem construir mitos entorno de figuras que encarnam grupos, coletividades, heróis sacralizados”. Nos dois primeiros casos, o patrimônio cemiterial tende a ser legado as próximas gerações, mas no caso da memória dos ocupantes da Urna 78, só o tempo dirá. Nesse contexto, devemos lembrar do/dos imaginário/os em torno da morte, da crença e da guerra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACOSTA, Alexandre Chies. Minha experiência de Deus e os sinais de Maria Elizabeth de Oliveira. Bento Gonçalves, 2009. www.mariaelizabeth.net/livros/livro_1.pdf ANDRADE, Solange Ramos de. Religiosidade católica e a santidade do mártir. Projeto História, SP, n.37, p.237-260, dez., 2008. ______, O menino da tábua. (Dissertação de mestrado). ARIÉS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. BACCIN, Diego José; BATISTELLA, Alessandro. História, Memória e Representações-uma análise dos monumentos em Passo Fundo. 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Teremos como recorte temporal a fase final das famosas "carreiras das Índias", período entre o século XVIII e XIX, e como objeto de estudo as características "chinesices" tão caras à corte e à burguesia da época, presentes no barroco mineiro. Assim, tais ligações terão como base bens de consumo, notavelmente escultóricos e decorativos, considerados como kitsch ou de “mau gosto”. Nossa hipótese de trabalho é que, no momento da chegada do Kasato Maru (1908) os imigrantes defrontam-se com uma cultura imaginária pré-existente sobre o mundo que deixaram e que vai permear o desenvolvimento do Budismo no país. Esta abordagem tem como objetivo desenvolver uma narrativa marginal de aproximação através da antiarte (representada pelo kitsch), do sentimentalismo, do consumo barato, da devoção religiosa piegas e das suas respectivas trocas internacionais. Para além de determinar a importância do kitsch na construção do imaginário religioso oriental no Brasil, buscaremos também estabelecer os sentidos do kitsch religioso nas sociedades asiáticas e a possível influência do orientalismo reverso. 1 Introdução Em 1998, ao estudar o estilo de desenvolvimento de software proposto por Linus Torvalds, seu colaborador Eric Raymond sistematizou no ensaio “A Catedral e o Bazar” os princípios básicos que levaram um sistema operacional livre, feito de maneira colaborativa, ao sucesso mundial em apenas cinco anos. O título é uma metáfora ao modelo de gerenciamento proposto, respectivamente, pelas grandes companhias comerciais e pelas comunidades livres unidas pelos laços tênues da internet. Como o próprio Raymond confessa, até o final dos anos 1990 os softwares mais importantes “[…] necessitavam ser construídos como as catedrais, habilmente criados com cuidado por mágicos ou pequenos grupos de magos trabalhando em esplêndido isolamento” (RAYMONDS, 1998, p. 5). Mas o Linux subverteu essa lógica ao decentralizar funções, liberar atualizações constantes e promover uma inédita promiscuidade criativa, ou seja, "[…] nenhuma catedral calma e respeitosa aqui - ao invés, a comunidade Linux pareceu assemelhar-se a um grande e barulhento bazar de diferentes agendas e aproximações" (RAYMONDS, 1998, p. 5). A lógica participativa proposta por Torvalds tinha como base a participação dos usuários como codesenvolvedores, estes eram incentivados a participar do processo e dar feedbacks quanto a satisfação das próprias necessidades. Com o tempo, por meio de uma metodologia livre e participativa, usuários tornavamse hackers e passavam à então seleta casta dos escritores de código. O título desta pesquisa faz referência a este modelo, posto em prática por Torvalds, e a metáfora que o explica, proposta por Raymonds, transportados para o campo da estética religiosa e da cultura material. Nossa hipótese é de que existe uma dinâmica criativa na oposição destes modelos que extrapola a esfera da cultura regional, operando como facilitadora na assimilação de conceitos complexos da cultura oriental. A questão da influência do kitsch (conceito que trataremos melhor a seguir) como vetor nessa transposição de fronteiras culturais surge já em solo brasileiro em um terreiro de Umbanda. A formação deste imaginário religioso com elementos orientais na cultura brasileira através de objetos cotidianos é o 1 Bacharel em Design (ULBRA, 2006) e Filosofia (UPF, 2016), Mestre em Educação (UPF, 2016) e Doutorando em História. [ 570 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS escopo desta pesquisa pois consideramos que é através da “lógica de camelódromo”, democrática e promíscua, do kitsch que elementos da iconografia indiana, chinesa e japonesa conseguiram permear a religiosidade regional. 2 O lado de dentro e o lado de fora Já em minha pesquisa anterior2 busquei, nas fronteiras com as “Índias Orientais”, comparar o uso das imagens na educação dentro do contexto monástico budista com as preconcepções estabelecidas no ocidente. Ao adentrar no imaginário indiano e tibetano foi possível, ao mesmo tempo, efetuar um diálogo construtivo acerca de temas tangenciais que definiam os contornos do uso prático da iconografia. Entre eles estavam, por exemplo, a relação entre professor e aluno no período védico do subcontinente, o uso tardio da oralidade e a importância da linguagem gestual que levavam para um uso especial das imagens como encapsuladores de significados complexos. Além disso havia na raiz da identidade iconográfica budista, resquícios de uma herança das conquistas alexandrinas que floresceu entre as fronteiras do mundo grego (em Gandhara, no atual Afeganistão) e indiano (Magadha, região que reúne os estados do centro-norte do subcontinente). Buscaremos aqui tratar desta permeabilidade de limites territoriais (e imaginários) e da fertilidade de suas respectivas fronteiras. Para isso é necessário definir os conceitos de limite e fronteira. De acordo com Golin (2004) toda a fronteira é um processo de construção histórica que tem como centro um limite estabelecido. O limite é orientado para dentro, a fronteira para fora (como já diz o nome). O limite sinaliza a separação, corta o espaço, a imaginação, a identidade e o tempo. Já a fronteira é a zona molhada de contaminação, um espaço de complexidade, mistura e miscigenação. Como afirma o autor: “O caráter aberto e desafiador da fronteira contrasta com a necessidade de precisão do limite, que precisa estar objetivamente demarcado na topografia como artificialidade inserida pelo Estado político” (GOLIN, 2004, p. 14). Com isso, a singularidade das fronteiras é impossível de ser enquadrada em um único esquema teórico. Ou seja, não existem regras claras para os conceitos de limite e fronteira, ora estes acentuam aspectos geopolíticos e econômicos de soberania nacional ou segurança, ora se transformam em espaço de interação entre identidades e culturas. No caso da pesquisa proposta buscaremos tratar da controversa característica nômade das imagens como peões da armada cultural. O filósofo francês Michel Onfray (2009) em sua teoria sobre a viagem vincula o nomadismo ao processo de formação identitária das fronteiras estabelecendo, através do mito judaico-cristão de Caim e Abel, nos arquétipos do nômade e do pastor, as duas forças opostas que estabelecem os contornos regionais. Este embate entre o nacionalismo do camponês e o cosmopolitismo do nômade, ou ainda, de acordo com as profissões dos irmãos bíblicos “[…] o pastor de rebanhos e o camponês lavrador, o homem dos animais em movimento contra o do campo que permanece” (ONFRAY, 2009, p. 11). Onde a errância tem sua origem em uma maldição divina que assola até hoje aqueles homens, mulheres, imagens e ideias que vivem em trânsito para além de seu local de origem. Assim as fronteiras históricas e imaginárias são determinadas por um processo, ao mesmo tempo, de diálogo e exclusão, onde coexistem a necessidade da criação de identidade e uma ânsia por “contaminação”. Em resumo “por mais que ganhem espaço os conceitos de compartilhamento, involucramento, interface, a fronteira histórica dimensiona-se pela tensão e pela ambiguidade.” (GOLIN, 2004, p. 24). Outro conceito importante que deve ser esclarecido é o de “região”. Trata-se de um conceito relativo, ou seja, a região é um espaço social construído historicamente e só tem sentido em relação ao todo. Além disso a própria fronteira “[…] tomada como epicentro geopolítico somente pode ser dimensionada na sua relação com região e o Estado” (GOLIN, 2004, p. 59). Na visão do historiador Patrick Geary (2005) a ideia de nações surge justamente no século XIII a partir do regionalismo de uma Europa em constante 2 Pesquisa de Mestrado em Educação no PPGEdu – UPF finalizada no ano de 2016: CONFORTIN, Daniel. A imagem na educação budista indo-tibetana. 230 f. : il. ; 30 cm. Orientação: Profª. Drª. Graciela René Ormezzano. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de Passo Fundo, 2016. [ 571 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS reestruturação, por conta de guerras, migrações e conquistas que resulta na solidificação de uma identidade telúrica coletiva. A nação, em seu ideário do senso comum, é portanto um conceito muito recente, um ser andrógino (“mãe-pátria”) imaginário oriundo daquilo que Lévi-Strauss (1908-2009) convencionou chamar de “ilusão totêmica” que visa distinguir homens e povos por meio de diversos recursos simbólicos. O viajante desagrada o Deus dos cristãos, assim como indispõe príncipes, reis, homens do poder desejosos de realizar a comunidade da qual sempre escapam os errantes impenitentes, associais e inacessíveis aos grupos enraizados. Todas as ideologias dominantes exercem seu controle, sua dominação ou mesmo sua violência sobre o nômade. Os impérios se constituem sempre sobre a redução a nada das figuras errantes ou dos povos móveis. (ONFRAY, 2009, p.12) O conceito de nação assume assim uma dimensão sagrada que acaba por se transformar no anseio pela imortalidade, ou ainda, na vontade de pertencer a uma coletividade imperecível. Este sagrado secular substitui formas mais primitivas de culto e forma uma história muitas vezes distorcida que prima pela unidade e pelo domínio. Sendo assim nação e a tradição unem-se na classificação de pessoas e no estabelecimento dos limites. Do nacionalismo surge o anseio imperial e, posteriormente, a ampla dominação colonial europeia que define os destinos do mundo até hoje, criando o “outro” no oriente através da ideologia do orientalismo, como veremos a seguir. 3 Orientalismo e filosofia A era do colonialismo europeu teve inúmeras consequências materiais e sociais para os demais povos do mundo. Mas além destas questões, transformou a maneira com que vemos os povos para além do Bósforo (sem falar dos povos africanos) legando para estes uma alteridade sem rosto. Para tal colonização do espírito o intelectual palestino Edward W. Said cunhou, ainda na década de 1970, o termo “Orientalismo”. O conceito serve para designar um grupo de saberes científicos, artísticos, literários e imaginativos. Não apenas sobre o espaço geográfico mas também sobre o imaginário, construído pelo ocidente (em especial ingleses, franceses e estadunidenses). Ele se caracteriza por uma visão exótica, inferior e misteriosa do oriental, insinuando a necessidade de sua dominação. Podemos listar três situações onde o conceito é usado: nas pesquisas e escritos sobre o oriente, no estilo de pensamento baseado em distinção maniqueísta entre oriente e ocidente, e na autorização institucionalizada para assuntos Orientais. Não se deve supor que a estrutura do Orientalismo não passa de uma estrutura de mentiras ou de mitos que simplesmente se dissipariam ao vento se a verdade a seu respeito fosse contada. Eu mesmo acredito que o Orientalismo é mais particularmente valioso como um sinal do poder europeu-atlântico sobre o Oriente do que como um discurso verídico sobre o Oriente (o que, na sua forma acadêmica ou erudita, é o que ele afirma se). [...] O Orientalismo, portanto, não é uma visionária fantasia europeia sobre o oriente, mas um corpo elaborado de teoria e prática em que, por muitas gerações, tem-se feito um considerável investimento material. O investimento continuado criou o Orientalismo como sistema de conhecimento sobre o Oriente, uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciência ocidental, assim como o mesmo investimento multiplicou - na verdade, tornou verdadeiramente produtivas - as afirmações que transitam no Orientalismo para a cultura geral. (SAID, 2007, p. 33) [ 572 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Para Said estas representações do Oriente não são somente ilusórias (aliás, este sequer é o ponto do discurso) mas que operam com um sentido determinado, dentro de um cenário histórico, intelectual e econômico. Este labirinto começa ser desvendado atualmente, com passos muito lentos, através da interconexão informática propiciada pelas comunicações e, principalmente, pela emergência das nações asiáticas como potências mundiais. Apesar disso os fantasmas do fanatismo religioso e dos diversos false flags aos quais somos expostos seguidamente desde 2001, teimam em perpetuar o espírito orientalista. Nas ciências humanas, especialmente nos ramos da filosofia e da história, segue um ranço romântico que dificulta qualquer estudo sério (especialmente no Brasil) sobre a cultura oriental. Para o fortalecimento do campo se fez necessária muita paciência e cuidado para não cair nas mesmas armadilhas de décadas passadas. Em sua introdução ao pensamento de Nagarjuna, Ferraro e Vieira (2016) consideram haver dois extremos que devem ser evitados ao abordar qualquer aspecto da cultura oriental. O primeiro consiste em considerar o pensamento eurocêntrico como de alguma forma superior e o colocar como intérprete por direito de uma cultura que não é sua. Um exemplo citado pelos autores é “[…] a interpretação de textos budistas fortemente marcada por um viés kantiano” (FERRARO; VIEIRA, 2016, p.13). Um segundo erro seria, ao contrário, tentar menosprezar a tradição ocidental como um mero desdobramento da sabedoria oriental “[…] de tal forma que a primeira não passaria de uma espécie de espelhamento, no âmbito da cultura ocidental, da verdade já obtida pelo Oriente” (FERRARO; VIEIRA, 2016, p. 14). Nunca é demais lembrar que toda a filosofia se encontra em um determinado contexto cultural e este é determinante para sua história. Sendo assim, em um contexto globalizado se faz necessária a descentralização cultural (de maneira direta, terminar com seu caráter meramente eurocêntrico) e abolir os padrões culturais previamente impostos para sua validação. Somente assim, por meio da igualdade de condições, pode se instaurar um verdadeiro diálogo e não mais uma relação de escravidão intelectual. Os diversos discursos filosóficos apresentam zonas de convergência, sem que eles tenham um recobrimento integral e sem que suas diferenças sejam também eliminadas. Essas imbricações convidam, antes, ao diálogo e à comunicação entre elementos irremediavalmente diferentes, em vez de mutismo entre as partes e as negligências recíprocas. As imbricações nos oferecem a oportunidade de identificar aqueles pontos para os quais há convergências de posição, sem que isso implique a eliminação de pontos conflitantes. […] Afinal, se as teses filosóficas são passíveis de crítica, isso obviamente vale tanto para os topos filosófico ocidental quanto para o oriental. (FERRARO; VIEIRA, 2016, p. 16) A cultura asiática é responsável por metade de toda a história humana (em questão populacional, talvez bem mais que isso) e ainda assim é desconsiderada desde a educação básica até o conhecimento erudito. A gestão de sua diversidade é um laboratório, um campo fértil para pesquisas, nas diversas áreas do conhecimento acadêmico. Mesmo existindo uma hierarquia epistemológica clara onde a razão europeia é soberana inquestionável, como já mencionamos, o fechamento apresenta corrosão desde o início do século passado com a migração japonesa para o continente americano, o sincretismo e a música africana, seguido do questionamento do paradigma moderno e, posteriormente, através dos diversos movimentos contraculturais. O caminho que escolhi em pesquisas anteriores para ajudar na desconstrução destas barreiras foi o estudo da cultura material. Por exemplo, para compreender a profusão de imagens surgidas no seio do Budismo (uma religião que, em teoria, prega o ateísmo e o autoaperfeiçoamento) recorremos às origens das primeiras imagens como ferramentas para representar a ausência de Buda enquanto professor máximo. Estas imagens surgem, em realidade, do culto as relíquias do próprio Buda e de outros praticantes ilustres. O Budismo adere então ao movimento bhakti3, oferecendo ao leigo o caminho da devoção, mesmo assim “[…] 3 Movimento que enfatizava a relação pessoal com a divindade. Localiza-se nas raízes dos movimentos renunciantes e na composição da literatura Upanixade. [ 573 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS as representações antropomórficas não significaram o fim do culto às relíquias, objetos ou locais sagrados, elas coexistem desde a época do próprio Buda, indicando o aspecto material e humano de um fenômeno transcendente” (CONFORTIN, 2016, p. 107). A observação nos leva até uma dinâmica que evidencia um paralelismo entre a prática erudita e leiga, onde a segunda transforma materialmente a primeira e acrescenta elementos afetivos e emocionais na esfera religiosa. Para a atual pesquisa nossa hipótese leva em conta esse diálogo buscando apontar objetos de uso cotidiano (especialmente caraterizados como kitsch) como a porta de entrada da cultura asiática, em seu aspecto popular, na Europa e nas Américas. Aliás, um feito português. Ao analisarmos o já clássico trabalho do Prof. José Roberto Teixeira Leite sobre as chinoiseries podemos constatar o mérito de Portugal na promoção do imaginário indiano e chinês, com importantes repercussões em território brasileiro. 4 A Carreira da Índia e as chinoiseries4 É estranho perceber o quanto, ainda hoje, as identidades nacionais seguem se recrudescendo. Sabemos, já mencionamos isso anteriormente, que a concepção do ideário nacional é relativamente recente e tem como base uma memória (na maioria das vezes) distorcida e um senso artificial de identidade. Seu passado é incerto e não temos como prever seu futuro. Para Golin “a gênese praticamente insolúvel da representação da nação como unidade é que ela se constituiu, coincidentemente, no mesmo processo de formação do capitalismo moderno e que ambos são inapartáveis.” (2004, p. 75). As tendências, no entanto, é de que as fronteiras continuem a existir, muito longe da utopia humana dos românticos. Desta maneira os territórios e as culturas devem ser estudadas dentro dos jogos de poder e saber planetários, ainda assim, nos lembra o autor, na maior parte do tempo, a experiência de pertencer a uma nação é tênue e superficial. Portugal foi o primeiro Estado-Nação europeu e inaugurou a globalização por meio de suas navegações. O chamado Extremo Oriente foi alcançado comercialmente primeiro pela Carreira das Índias portuguesa, seguida das Companhia das Índias inglesa (1600), holandesa (1602) e francesa (1664). Segundo a diretora do Museu Nacional do Azulejo de Lisboa, Maria António Pinto de Matos, já em 1502 o planisfério de Cantino “[…] de origem portuguesa, apresentava pela primeira vez uma imagem minimamente realista de muitas regiões asiáticas, onde figurava a terra dos chins, de onde vinham pérolas e almizquer e porçolanas finas e outras muitas mercadorias. (MATOS, 2014, p.48). O Rei D. Manuel I solicita em 1507 que o Vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida, enviasse porcelanas chinesas em cada carga destinada a terras portuguesas. Seis anos depois é enviada a primeira expedição à China, sendo o capitão Jorge Álvares o primeiro português a ali chegar. De acordo com Matos “a viagem da China revelou-se tão rentável como a Carreira da Índia, que ligava Cochim a Lisboa, que além de morosa exigia vultuosos investimentos” (MATOS, 2014, p.49). As expedições portuguesas entre 1515 e 1518 são um grande sucesso comercial mas um igualmente grande fracasso diplomático. Devido a vários fatores políticos e sociais, ao final a imagem do período o que os portugueses conseguiram foi a criação de uma imagem de "[...] comerciantes gananciosos e guerreiros sanguinários[...] eram também acusados de raptores de mulheres e canibais" (MATOS, 2014, p.51). Em meados do século XVI os portugueses atingem o Japão pela primeira vez, o que traria consequências tanto para as relações luso-chinesas quanto para o comércio europeu em geral. O estabelecimento português em Macau e seu desenvolvimento resultou na proliferação de diversos relatos sobre a China e o Japão. De acordo com a autora, inicialmente estes relatos mencionavam questões comerciais, políticas e de defesa. Em seguida outras questões como roupas, crenças, práticas religiosas, organização social e política, administração e urbanismo começaram a ganhar importância. Mesmo reconhecendo que a porcelana chega no velho continente via rota da seda antes do século XIV destas sobram poucos exemplares. De maneira mais tardia, Matos refere-se à 1500 peças arqueológicas recuperadas próximas ao Forte de São Sebastião, na Ilha de Moçambique, considerada a maior e mais antiga carga de porcelanas que se tem notícias em um navio europeu, afirma: 4 Chinesices, ou seja, objetos fabricados fora da China que tinham como objetivo imitar a estética asiática. [ 574 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Este conjunto, hoje parcialmente exposto no Museu de Marinha, na Ilha de Moçambique, é majoritariamente de porcelana branca decorada a azulcobalto vivo sobre vidrado com figuras humanos e motivos inspirados na natureza, no bestiário mágico e na mitologia, muitos deles com desenhos taoistas que reflectem os interesses do imperador Jiajing. (MATOS, 2014, p. 61) Porém os portugueses não se contentaram em adquirir apenas as peças disponíveis no mecado local. A história nos legou diversos exemplares encomendados pela coroa portuguesa e pelos jesuítas, as mais antigas “[...] juntam à decoração tipicamente chinesa - animais mitológicos mais comuns, emblemática budista e taoista, cenas quotidianas - as armas reais portuguesas, sempre em posição invertida e, por vezes, muito deturpadas” (MATOS, 2014, p. 64) nesta fusão atrapalhada de dois mundos, os símbolos portugueses dividiam espaço com outros elementos como "[...] o dragão entre nuvens e vagas, duas fênix a voar sobre enrolamento de lótus e medalhões com paisagens naif com porco ou ave e outros motivos de acompanhamento." (MATOS, 2014, p. 66) Entre os séculos XVI e XVII estas mercadorias trazidas para a Europa eram de propriedade exclusiva dos nobres e famílias burguesas abastadas. Nessa época o Ocidente se curva à moda das chinoiseries, as cortes do continente travestiam-se de chineses em seus bailes e deleitavam-se com as histórias da Índia. Além dos itens de vestuário e das tapeçarias eram as porcelanas as que mais atraiam atenção. O desejo de consumo destes itens de luxo "[...] acabou por despertar nos artífices e artistas europeus o desejo de lhes copiar ou reproduzir as técnicas, formas e decoração. Assim, imitações em faiança de porcelana chinesa começaram a ser manufaturadas em Delft, Dresden, Nevers, Rouen, Bristol, Faenza e em dezenas de outras cidades, antes de que por volta de 1709, em Meissen, Augusto o Forte lograsse com que Böttger, seu alquimista transformado à força em oleiro, é verdade que se beneficiando das pesquisas pioneiras do esquecido Tschirnhaus, finalmente identificasse a matéria prima que faltava para a obtenção da verdadeira porcelana, ao que se diz após observar como sua peruca enrijecera, depois de polvilhada com uma argila abundante na Saxônia, e que outra coisa não era senão caulim.” (LEITE, 2014, p. 121) A produção de porcelana no estilo chinês se espalhou para por cidades como Viena, Ansbach, Nymphemburg, Frankenthal, St. Cloud, Chantilly, Sevres, Chelsea, Bow, Derby, Worcester e outras "[...] muitas exibindo na decoração padrões chineses de nuvens e montanhas, bambus, peônias, lótus, pássaros, peixes, borboletas, morcegos, insetos, cenas mandarinescas e mesmo uns poucos motivos originais" (LEITE, 2014, p. 121). Mas não foi apenas através da porcelana que a cultura chinesa conseguiu permear as barreiras da identidade europeia, no paisagismo as 36 estampas dos jardins imperiais do Padre Matteo Ripa que circulavam em 1724, a descrição dos jardins pelo padre-pintor Jean-Denis Attiret por volta de 1743 e os louvores aos jardins chineses de William Chambers, contribuíram para o abandono do modelo matemático e racional francês. Também na música, no teatro e nas letras a influência oriental foi secular, algo que apenas seria esquecido no reavivamento clássico da segunda metade do século XVIII. O Brasil recebe tardiamente essa influência. De acordo o Prof. José Roberto Teixeira Leite não houve nenhuma outra região brasileira mais influenciada pelo oriente que Minas Gerais. O autor relata que “[…] são tão numerosos os exemplos de pintura decorativa de temática ou em imitação chinesas, o que levou a originar a versão fantasiosa, até hoje arraigada no povo, segundo a qual artistas chineses teriam ali trabalhado” (LEITE, 2014, p. 124). Com a ressalva que é um fato surpreendente a presença de escravos chineses em Minas, nos começos do século XVIII, mas não consta que, entre eles, houvesse algum artista. [ 575 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Consta o nome de um único artista oriundo das colônias asiáticas portuguesas. Chamado Jacinto Ribeiro, que executou pinturas na Vila do Carmo em 1711 e em Itabira do Campo em 1744. Ao que consta em um termo de admoestação datado de 1721 era solteiro, pintor de ofício e natural da Índia. Nos lembra o autor que o conceito de chinoiserie está ligado diretamente à cópia, não se tratando, portanto, de arte chinesa em si "[...] mas de arte achinesada, epidérmica interpretação ocidental da complexa estética extremo-oriental: arte de aparência, mas não de essência chinesa, chinesice em suma” (LEITE, 2014, p. 124). As chinoiseries são a representação popular do orientalismo. Uma invenção europeia que registra claramente o imaginário europeu. Contemporâneo ao surgimento do capitalismo e predecessor do kitsch industrializado que dominaria o mundo logo em seguida. Foi a primeira intervenção oriental em mais de um milênio na Europa cujos caminhos da rota da seda foram fechados com o advento do Islã. Também econtramos esse tipo de obra nas pinturas da "capelinha chinesa" de Sabará, apesar de bem mais tardias. É no arco-cruzeiro de Nossa Senhora do Ó as mais conhecidas chinesices do Brasil. Na Matriz de Nossa Senhora da Conceição também podemos ver duas portas com chinesices em imitação de laca. Já em Mariana, na capela-mor da Matriz da Conceição encontramos representações de "[...] letrados e mandarins, e mesmo alguns europeus, em variadas poses e atitudes, ao ar livre ou sob pavilhões, caçando, perambulando por jardins ou entre flores e pássaros, sob guarda-sóis ou a cavalo" (LEITE, 2014, p.126). No âmbito das residências particulares cabe ressaltar a Praça Dom Joaquim (onde hoje funciona uma escola) podemos ver figuras que se equilibram sobre nuvens em uma atmosfera chinesa e "[...] representações dos oito importais taoistas" (LEITE, 2014, p. 127) pinturas que são atribuidas a Silvestre de Almeida Lopes e datadas do começo do século XIX. O Brasil certamente fazia parte das Carreira das Índias como indica a pesquisa de José Roberto do Amaral Lapa (1969) intitulada “A Bahia e a Carreira da Índia”. Porém, especialmente a partir do século XVII, os espanhóis passaram a usar o México como ponte entre China e Europa, mudando as rotas de comércio e tirando a exclusividade portuguesa. A revolução industrial que se espalhou pelo norte da Europa trouxe outro fator de democratização material, fenômeno que não foi, de maneira alguma, uniforme. Cabe agora esclarecer melhor as características democráticas, emocionais do kitsch e como este pode ter sido, por sua aparente insignificância de objetos de consumo fácil, a primeira brecha que a cultura asiática encontra no ocidente. Ao fim, o kitsch acaba na louça da vovó, nas tapeçarias com motivos chineses e no “Buda” gordo 5 sob o qual ela deposita votos de prosperidade. 5 Viver o kitsch Estava em Mumbai, a capital de Bollywood, no ano de 2010. Foi uma das minhas primeiras experiências indianas, o início de uma caminhada de vários anos. Em um tuc-tuc vi uma cena que me chamou atenção, eram várias pessoas reunidas em torno de um cartaz impresso em off-set de um dos filmes do superastro Amitabh Bachchan 6 surrado pelo tempo. Em torno do cartaz foram dispostos adereços como flores de plástico, guirlandas, côcos quebrados, estatuetas de plástico de vários deuses incluindo Lakshmi, Ganesha e Hanuman, velas de diversas cores e comida, muita comida. Um dos homens que ali estavam se moveu em direção ao cartaz com um incenso na mão esquerda e comida na direita, enquanto os demais mantinham as mãos postas em oração. Quanta surpresa eu tive, naquele templo ao ar livre para uma celebridade, quando o homem ofereceu comida na boca impressa no cartaz. Perguntei ao motorista do tuctuc em pleno engarrafamento de fim de tarde o motivo do gesto. Ele simplesmente me disse que Bachchan estava doente e os fiéis queriam que ele se recuperasse logo. Não era um ídolo de bronze como nos templos do sul, não era algo sublime como as esculturas budistas no estilo Gupta, era um ator de cinema, em um templo de construção espontânea bem ao estilo bazar. 5 Na realidade a representação de Budai, um monge chinês que ecoa a figura dos antigos sábios taoistas. Temática que será aprofundada no decorrer da pesquisa. 6 Um dos atores mais conhecidos de Bollywood. Teve seu auge nos anos 1970 e já participou de cerca de 200 filmes locais. [ 576 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Em minha pesquisa anterior explorei a relação da cultura indiana com a imagem através do conceito de darshana7 que “[…] não é apenas ver, darshana é uma prática de visão na qual aquele que contempla é transformado pelo objeto contemplado, ou onde o participante participa da sacralidade da imagem ou relíquia” (CONFORTIN, 2016, p. 105). Mas aqui temos outros elementos que servem de base para aprofundarmos o estrangeirismo kitsch. O que é esse mau gosto tão familiar, esse estilo sem estilo com um sabor universal? Para Abraham Moles o kitsch está nas entranhas da própria arte, é uma etapa prévia do desenvolvimento do gosto estético apurado, quase uma pedagogia por tentativa e erro. Mas, acima de tudo, o kitsch é um modo de estar no mundo e determinar relações que vai além do objeto em si, ele “[…] precede e ultrapassa estes suportes, ele constitui um estado de espírito que, eventualmente, se cristaliza em objetos”. (MOLES, 1994, p. 11). Esta atitude kitsch nasce no início do século XIX com a ascensão da burguesia europeia apoiada pela sociedade de massa e “[…] baseia-se em uma civilização consumidora que produz para consumir e cria para produzir, em um ciclo cultural onde a noção fundamental é a de aceleração” (MOLES, 1994, p. 20). Podemos elencar duas grandes etapas do kitsch. A já citada ascensão da sociedade burguesa e seu estilo de vida, que coincide com os primeiros passos da globalização e da revolução industrial. E o atual neokitsch que parte do consumismo das grandes lojas, feiras, camelódromos e shopping centers, e mais recentemente do hiperconsumismo digital. A facilidade de acesso e o apelo emocional proporcionado pelo kitsch por mais de dois séculos resulta em um povoamento do imaginário ao qual já estamos acostumados. As louças verdes comuns em toda a casa brasileira, a jarra de plástico em forma de abacaxi, o escapulário da romaria, as fotomontagens da infância e a escultura de gesso pintado de Nossa Senhora Aparecida são apenas alguns exemplos deste fenômeno. Existe uma ligação direta com o fator emotivo que estabelece a tônica das relações do homem na sociedade de consumo. Trata-se de uma estética dinâmica diferente da filosófica onde conceitos como “belo” ou “feio”, “útil” e “inútil” não se aplicam. Isso cria uma estética de acúmulo e complexidade que determinam o seu reconhecimento intuitivo. O kitsch opõe-se à simplicidade: toda a arte participa da inutilidade e vive do consumo do tempo; neste sentido, o kitsch é uma arte pois adorna a vida cotidiana com uma série de ritos ornamentais que lhe servem de decoração, dando-lhe o ar de uma complicação estranha, de um jogo elaborado, prova das civilizações avançadas. O kitsch é, portanto, uma função social acrescida à função significativa de uso que não serve mais de suporte mas de pretexto. (MOLES, 1994, p. 26) Em parte podemos atribuir essa estética carnavalesca ao processo de alienação oriundo da fabricação em larga escala (ao menos este é o argumento clássico de seus críticos). Sendo assim, a tradição artesanal raras vezes é kitsch, o atelier de um oleiro ou de um marceneiro são seus opostos. O produtor e o consumidor kitsch não tem consciência do todo produtivo e age no mundo de maneira parcelada e, algumas vezes, desprovida de significado “[…] O processo alienante do kitsch emerge desta relação, semelhante ao desvio do artesanato em um bricolage (do it yourself) desprovido de significação econômica e cultural.” (MOLES, 1994, p. 40). Talvez por conta disso a arte de viver do kitsch está alinhada com o homem comum. O artista curva-se perante o consumidor como rei pois é praticamente impossível viver próximo ao sublime das grandes obras de arte e objetos religiosos portadores de uma aura sagrada. Desta relação surge, por exemplo, a figura do designer em suas diversas formas. A mãe de santo não precisa de uma estátua de bronze chola indiana, assim como os fiéis fãs de Amitabh Bachchan nunca sequer pensariam em erigir um altar feito de mármore branco. Isso seria demasiado distante, demasiado “fora do lugar” ou pouco adaptado à vida comum. Mas ai repousa uma de suas características básicas, o kitsch é um estilo de vida, uma maneira de se relacionar com o mundo, é algo que está ao nosso alcance sensível e intelectual. 7 Para mais informações sugiro consultar: ECK, Diana L. Darsan: Seeing the divine in India. Delhi: Motilal Banarsidass, 2007. [ 577 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS 6 Os Maha Rajas do Ocidente O kitsch surge dessa oscilação de expectativas nunca plenamente satisfeitas e facilidade de consumo. E, se por um lado, as porcelanas provenientes da Carreira das Índias no século XVI, ou as esculturas belíssimas trazidas pelos franceses do Oriente durante a era napoleônica, eram exclusividades da nobreza e da burguesia europeia, por outro a era da reprodutividade técnica trouxe para a casa do trabalhador comum imagens extremamente competentes dessas riquezas com um preço acessível. Ao unirmos estes fatores com uma suposta falta de educação estética temos as propriedades clássicas do fenômeno: curvas “macarrônicas” ao estilo art nouveau altamente complexas, profusão de elementos, enriquecimento inconsequente de superfícies com representações, símbolos e adornos; contraste de cores puras complementares, tonalidades de branco, vermelho, violeta, lilás e a combinação de todas as cores do arco-íris; materiais “desonestos” que raramente se apresentam como realmente são. No Brasil o carnaval é uma representação do kitsch apoteótico, uma realidade adornada pela famosa entrevista do carnavalesco Joãozinho Trinta em 1980 quando sentencia que “o povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”8. A grande festa popular brasileira serve de exemplo para a tipologia dos grupos do kitsch que conta com quatro elementos. O primeiro é o empilhamento, um conjunto kitsch é constituído por objetos diversificados empilhados em um volume de espaço com superfície restrita até, praticamente, tornarem-se um só. Em seguida temos o caráter heterogênico dos objetos que não tem relação direta uns com os outros em uma espécie de surrealismo combinatório inconsciente. Podemos citar também o aspecto antifuncional já que não existem funções definidas nem regras utilitárias de empilhamento. Por fim o kitsch é sempre autêntico, resultando em […] um lento desenvolvimento, uma acumulação triunfante, troféus de viagens e testemunhos de exotismo, troféus de ascensão social ou socioeconômica, penhores de uma sedução pelo mercado e de um pensamento artístico atomizado que percebe claramente o objeto, e mal o conjunto, e que só conhece a coerência do sedimento ou da pilha, da sequência de tentações, e que não consegue captar a sequência do projeto global. (MOLES, 1994, p. 61) O lixo e o luxo do carnavalesco fazem parte de uma oposição dialética do kitsch que tem como papel estimular a emotividade onde o “[…] mau gosto do bom gosto, mistura das categorias, alegria de viver e ausência de esforço, tudo misturado na marmita da anti-arte.” (MOLES, 1994, p. 67). Existe aqui uma mistura típica das fronteiras, pois o kitsch não é inovador mas também não faz parte da tradição. O objeto está, ao mesmo tempo, bem e mal situado misturando diversas influências culturais mas não pertencendo a nenhuma cultura em especial. Ainda, como em um bazar marroquino, ele busca tomar de assalto todos os sentidos sem nenhum pudor e trazendo a tona os mais diversos tipos de sentimentos execrados pelos estetas. O shopping center é certamente um bom exemplo, assim como são os complexos turísticos asiáticos, os caminhões indianos e a sala de ioga da madame rica da Redenção. Mas ainda melhor é a grande feira de produtos baratos (até hoje chamados de “1,99” a despeito de seu teto de preços haver mudado há décadas) e o clássico camelódromo. Com relação à estética e religião tradicionais, Moles ressalta o valor pedagógico do kitsch que passa “[…] por um processo de depuração constante, constrói-se o bom gosto através de uma ascensão por filtragem e em função de diversos critérios, a educação, o dinheiro etc.” (MOLES, 1994, p. 82). Especificamente para o devoto o kitsch religioso assume duas direções: 1) Souvenir, futilidade intencional 8 Trata-se de uma referência indireta à uma reportagem televisiva, para mais informações acesse https://extra.globo.com/noticias/rio/joaosinho-trinta-povo-gosta-de-luxo-quem-gosta-de-miseria-intelecual-leia-outras-frases3470006.html [ 578 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS opõe-se à ideia tradicional de artesanato; 2) Distorção de função e seu deslize para a decoração. Para o autor a religião secular do consumo faz uso do apelo a maioria, adaptando “[…] as normas da arte aos desejos latentes da maioria na medida em que a religião é capaz de captar essa emoção” (MOLES, 1994, p. 48). Mas estes sentimentos religiosos “superficiais” do qual o mercado faz uso são intrinsecamente condenáveis? Será possível chegar a experiência do sublime a partir do kitsch? E, finalmente, como estes valores impactam no imaginário da prática religiosa? 7 Um culto envergonhado O filósofo americano Robert C. Solomon traz contribuições importantes acerca destas questões. Para ele, nos setores estéticos e religiosos atuais é melhor ofender ou chocar do que dar espaço para os tipos de sentimentos proporcionados pelo kitsch. O sentimentalismo aqui não é acusado apenas de mau gosto mas também, em um nível ético, representar falhas graves de caráter. A questão não é se o kitsch é uma arte ruim ou boa (ou se é arte) mas se os sentimentos por ele provocados são benéficos ou, por outro lado, considerados imorais ou perigosos. O autor argumenta que o kitsch parece ser traído por sua própria perfeição pois estimula as melhores emoções como compaixão, simpatia e deileite, porém sem a “profundidade” que requerem seus críticos. por que os sentimentos por ele provocados são considerados imorais e perigosos. Por conta disso lista várias alegações quer recaem, a seu ver indevidamente, sobre o kitsch. As principais delas dão conta de que o kitsch provoca emoções excessivas, que estas são manipuladas e falseadas. Aqui cabe perguntar que é uma emoção real? Para alguns autores, como Kundera citado por Solomon, o kitsch fornece uma emoção de “segunda mão”, ele evoca emoções através de objetos inapropriados. Para o autor, no entanto, se trata de um processo de lembrança, ou seja, aqueles atraídos pelo kitsch religioso não buscam o divino na estátua de veludo do Cristo Redentor. Eles já possuem devoção própria e usam a estátua como lembrança de sua devoção. Trata-se de uma questão de poder. "[...] the 'high' class of many societies associate themselves with emotional control and reject sentimentality as an expression of inferior, ill-bred beings, and male society has long used such a view to demean the 'emotionality' of women, I am tempted to suggest that the attack on sentimentality also has an ethnic bias, Northern against Southern Europe and West against East." (SOLOMON, 1991, p. 9) O mesmo poder exercido ao desfigurar, homogeneizar culturas diversas e milenares sob o rótulo simplificado de “orientais”, como algo raro e exótico que deve ser estudado sem lambuzar as mãos. Como propõe o economista indiano Amartya Sen, esta é a tônica das três abordagens orientalistas clássicas: exotismo, maestria e curadoria. Os dois primeiros fortemente relacionados com o poder explícito do colonialismo e o terceiro marcado por certa dissimulação e curiosidade sistematizada sobre coisas pouco familiares (SEN, 2005, p. 141). Um oriente irracional e inferior, rótulos também aplicados ao feminino. Primiano (2015) cita passagens do Concílio Vaticano II onde diversos movimentos defendiam a simplificação da arquitetura e do ritual dando ênfase à celebração eucarística e colocando a devoção pessoal em segundo plano, depois do concílio "[...] a plain aesthetic became even more common in Catholic churches as altar rails, votive candles and statues of saints were removed" (PRIMIANO, 2015, p. 293). McDannell (1995) cita conversas registradas durante o período que associam o kitsch das imagens produzidas em massa na frança à excessiva prática devocional das mulheres católicas "[...] what was at stake was not merely art or kitsch, the mas or devotions to the saints, but whether the church was to be masculine or feminine, a place for men or for women." (MCDANNELL, 1995, p. 174). A religiosidade kitsch é colaborativa, open source, livre e feminina, em plena oposição ao templo patriarcal. Talvez essa seja sua grande vantagem que possibilite o trânsito de ideias nômades entre culturas. É, ao mesmo tempo, um mate entre devotas e uma possessão, enquanto o sublime fica por conta da homilia patrística. [ 579 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS O moralismo ortodoxo considera que o kitsch dá vergonha, é irracional e fonte de falsas emoções. Mas para Solomon, ao contrário, ele é apenas um meio para atingir emoções religiosas genuínas tornando próximo por meio da familiaridade aquilo que é distante, o sentimento do sublime, a experiência mística. O autor defende que a objeção real ao kitsch tem a ver com uma aversão às emoções em si, ao sentimentalismo feminino e, principalmente, com determinados sentimentos considerados piegas, doces e nostálgicos. Mas o que é o tão falado “sublime” que críticos, filósofos e historiadores tanto procuram (e negam sua presença no kitsch)? Será que é realmente possível avivar sua presença em objetos julgados de mau gosto? Se sim, como isso ocorre? Para refletir acerca destas perguntas regressamos brevemente ao início do século XX e suas vanguardas, resgatando a ideia de “aura”. 8 Considerações finais Esta é uma pesquisa em andamento, não temos conclusões para apresentar (quando isso é possível?). O que buscamos é uma compreensão mais aproximada de um fenômeno estético que marca a religiosidade popular brasileira. Segundo Herwitz (2010) o kitsch foi, no início do século XX, o grande inimigo das vanguardas que buscavam um caminho para fugir da perda da aura proposta por Walter Benjamin ( ). Tratava-se de uma política artística revolucionária e higienista onde buscava-se abrir o caminho para o novo, “[…] apagar o passado, limpar a mesa para a nova arquitetura e para novas pessoas, imagens de construção e constituição histórica, que vieram a dominar” (HERWITZ, 2010, p. 126). Ironicamente o sublime e a ideologia das vanguardas também foram elementos empregados em regimes totalitários. Walter Benjamin alertou sobre estes perigos afirmando que estas artimanhas usam o sublime como forma de deificação do líder, atraindo a emoção da massa em direção de um ídolo. A verdadeira aura evoca uma noção de distância intransponível. O kitsch é o oposto, encurta distâncias e torna o objeto familiar. Chegamos assim aos questionamentos finais da proposta de pesquisa. Estes veículos de poder, de acordo com nossa hipótese, parecem ser mais efetivos na medida em que seus meios carecem de uma aura reconhecida publicamente. As chinoiseries não teriam se tornado moda na França do século XVII se elas representassem a alta cultura chinesa ou indiana. Elas foram assimiladas pela sua familiaridade, simplicidade de interpretação e ausência de estilo definido (ou estilo falseado). O mesmo se pode dizer das porcelanas encomendadas por portugueses, espanhóis e outros países europeus. Eles sequer sonhavam o poder do imaginário que estas peças continham, talvez por isso sua assimilação foi fácil e transbordou para os séculos seguintes como peças tradicionais de decoração inclusive no Brasil. O que buscaremos determinar a partir desta pesquisa é como se dá, de maneira mais precisa, esse movimento em um mundo globalizado inundado pela cultura pop. Especificamente como os valores culturais das religiões asiáticas desprovidos de aura viajam pelo kitsch e, em outro contexto (como em uma templo budista, uma sala de ioga ou um altar de umbanda), estes são ressignificados ou “ressublimados”. Outra preocupação é a consistência desta ressignificação em contraste com aquela presente em seu país de origem: Há, dessa forma, um deslocamento geográfico e cultural próprio da globalização. Ocorre a presença do kitsch porque, para atender ao mercado consumidor, o produto exportado precisa se adequar à cultura local [...] perdendo assim, na maioria das vezes, suas características originais, quer na aparência, quer na maneira de utilização. (SÊGA, 2010, p. 65) Uma nova questão que deve se colocar é se estes elementos culturais uma vez transplantados permanecem superficiais ou são passíveis de aprofundamento. Por exemplo, um menino que tem contato com um filme de Bruce Lee ou com a estátua de cerâmica verde de Buda na sala de sua tia tende a reforçar o orientalismo ou aprofundar-se no conhecimento da cultura do asiática? Por fim analisar o impacto deste tipo de apropriação na cultura original é também um fator importante para a pesquisa. Os cenários possíveis desta análise são as antigas colônias portuguesas na Ásia sob a [ 580 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS influência da esfera cultural indiana e chinesa, assim como o Japão por seu longo histórico de interações com Portugal e Brasil. Para isso serão necessários períodos de imersão etnográfica, pesquisa documental e arqueológica (quando disponíveis), elementos que serão descritos com mais detalhes no item seguinte. [ 581 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS REFERÊNCIAS BARROS, José A. O Projeto de Pesquisa em História: Da escolha do tema ao quadro teórico. Petrópolis: Vozes, 2015. BARROS, José D. O Campo da História: Especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2013. BOTTON, Alain de. 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Tendo em vista os aspectos observados, o direito e a economia se interligam, pois as consequências econômicas do trabalho escravo são perceptíveis em toda a sociedade e não apenas para os envolvidos na prática ilícita, ou seja, empregado e empregador. Palavras-chave: The interdisciplinary analysis between law and economics: A slave labor perspective in Brazil and its economic consequences Abstract: The interdisciplinary study method between Economics and Law presents some challenges that must be overcome between both subjects, as the methodological and communication issues. In addition, it aims the legislative evolution of employment relations, bringing in the slave labor nowadays. The economic impact that slavery relations bring to society is extremely important, considering the use of cheap labor and that no rights are secured to the employees. Having in mind the aspects observed, law and economy are interconnected, since the economic consequences of slavery are perceptible all over the society and not only for those involved in the illicit practice, that is, employer and employee. Keywords: Law And Economics. Economic Consequences. Interdisciplinarity. Slave Labor. Introdução Existe uma grande dificuldade no estudo interdisciplinar entre a economia e o direito. Decorre-se do fato de sobrevoar inúmeros fatores, quase que impeditivos, de uma correta análise ser realizada entre as matérias elencadas. O objetivo do estudo interdisciplinar é analisar a ordem jurídica e sua influência na ordem econômica, porém, tal análise traz fatores que dificultam a relação entre Economia e Direito, tais quais a correta comunicação, a organização do estudo e questões metodológicas. A evolução legislativa do Direito do Trabalho ensejou em um forte combate ao trabalho escravo no Brasil, sendo este país modelo de políticas públicas implementadas para a erradicação de tal prática. Contudo, ainda existem inúmeros trabalhadores que exercem suas atividades profissionais em condições desumanas, degradantes, configurando trabalho análogo ao de escravo. Em razão disso, os empregadores lucram com a mão de obra escrava barata, porém acarreta prejuízos para toda a sociedade. Assim, no último tópico tratar-se-á dos prejuízos econômicos que decorrem do uso de mão de obra escravagista no país. Inúmeras empresas, dos mais variados setores de produção, aliciam trabalhadores e os subordinam a jornadas exaustivas, baixa remuneração e precárias condições de trabalho. Consequentemente, ao burlar o sistema, visam altos lucros, objetivando o interesse próprio e não o bem comum. Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo – UPF. Linha de pesquisa Jurisdição Constitucional e Democracia. Bolsista parcial UPF. Integrante do Grupo de Pesquisa Jurisdição Constitucional e democracia. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais ela Universidade de Passo Fundo – UPF. Advogada inscrita na OAB/RS 107.695. E-mail: augustafeldmann@hotmail.com. 2 Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo – UPF. Linha de pesquisa Jurisdição Constitucional e Democracia. Bolsista Capes. Assistente editorial da Revista Justiça do Direito. Advogada inscrita na OAB/RS 100.143. E-mail: lisizuchetto@hotmail.com. 1 [ 584 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Isto posta busca-se demonstrar a ligação entre o trabalho escravo e suas consequências econômicas para o país, fazendo uso da análise interdisciplinar entre Economia e Direito. 1. Direto e Economia: uma análise interdisciplinar A análise interdisciplinar entre Direito e Economia é um estudo que possui grande valia para a sociedade. Heloisa Borges Esteves, em sua tese de doutorado, discorre que a Teoria Pura do Direito de Kelsen analisa as perspectivas idealmente válidas sob a análise jurídica, enquanto a economia investiga “o que ocorre sob a hipótese de indivíduos racionais agindo em prol da maximização de seus objetivos” (ESTEVES, 2010, p. 31-32). Assim, é possível afirmar que o conceito que melhor define a Análise Econômica do Direito é aquele “conjunto de escolas de pensamento econômico que estudam, de alguma forma, o papel das normas e sistemas jurídicos na vida econômica das sociedades”. Contudo, tal dualidade traz uma dificuldade aos trabalhos apresentados sobre o assunto, qual seja que as obras acadêmicas que discorrem sobre a análise interdisciplinar geram uma “confusão terminológica que pode levar a um erro fundamental na análise das distintas disciplinas” (ESTEVES, 2010, p. 35). Esteves reflete que há uma diferença de planos de análise entre Direito e Economia. Porém, deve-se buscar compreender corretamente os efeitos concretos das normas: [...] investigando não apenas em que medida as ações do mundo real se devem à existência de normas jurídicas que as orientam e em que medida a existência de certas normas jurídicas é condição necessária (e/ou suficiente) para as ações reais, mas também se essas normas criam condutas regulares desejadas pelos tomadores da decisão normativa (ESTEVES, 2010, p 36). Nesse sentido, não se exige que a análise interdisciplinar obtenha as mesmas respostas, mas que suas correntes de pensamento tornem-se coerentes e compatíveis entre si, sem que haja uma sobreposição de uma disciplina em face da outra. Portanto, deve haver uma análise conjunta de forma interdisciplinar diante de um caso concreto, para que, somente assim, possa existir uma eficaz contribuição do Direito na Economia e vice-versa (ESTEVES, 2010, p. 36). Everton das Neves Gonçalves e Marcia Luisa da Silva discorrem que a Análise Econômica do Direito surge dentre os mecanismos de interpretação da lei, ou seja, “como aquele responsável por adotar critério de justiça específico; a eficiência alocativa de recursos e a maximização de resultados, com o objetivo de alcançar um bem maior, qual seja, a justiça econômica” (GONÇALVES, 2016, p. 122). Por tanto, é possível afirmar que a interdisciplinaridade entre Direito e Economia traz benefícios para ambos os lados, desde que analisada sob a mesma perspectiva. Ademais, os critérios adotados sob a ótica jurídica, bem como a ótica econômica, são utilizados a fim de trazer à luz melhores soluções em face de casos concretos. Porém, para que o sucesso da análise interdisciplinar seja obtido, alguns desafios devem ser superados. Inicialmente, cumpre ressaltar que muitos economistas tratam a disciplina de Economia com superioridade em razão das demais, ignorando o fato de poder haver um benefício recíproco em caso de um estudo interdisciplinar. Para tanto, é feito um isolamento da matéria econômica, sendo trazida à baila como uma “hard science” (ESTEVES, 2010, p. 39). Além disso: Tão importante quanto à busca pela integração das disciplinas econômica e jurídica, então, passa a ser a identificação de objetos de pesquisa que poderiam beneficiar-se da integração das disciplinas, bem como o exame dos aportes possíveis de cada uma para os problemas propostos. É necessário, assim, que seja feito um exame de ambas as disciplinas antes de ser proposta qualquer solução que busque maior interação entre elas (ESTEVES, 2010, p. 41). [ 585 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Portanto, além de por fim à ideia de matéria superior, deve a Economia, em conjunto com o Direito buscar os problemas adequados à análise interdisciplinar. Isso porque, nem todo o problema que busca uma solução pode ser submetido aos enfoques de áreas distintas, haja vista que caso assim fosse poderia trazer, ao invés de benefícios, malefícios a ambos os lados (ESTEVES, 2010, p. 41). Esteves discorre em sua tese alguns problemas enfrentados pela análise interdisciplinar entre Direito e Economia. Assim, tais problemas devem ser “superados para que a pesquisa interdisciplinar seja capaz de contribuir para a solução de problemas de pesquisa” (ESTEVES, 2010, p. 42). Ao sanar os problemas apresentados, os resultados tornar-se-ão enriquecedores para ambas as disciplinas. É cabível trazer a baila apenas alguns problemas que foram enaltecidos por Esteves. Destaca-se, em um primeiro momento, é a organização e coordenação da pesquisa interdisciplinar, eis que os pesquisadores acabam por criar “equipes ou estruturas institucionais diferentes” (ESTEVES, 2010, p. 43). Já a questão da comunicação, a autora afirma que “a correta compreensão e utilização de conceitos científicos podem ser consideradas centrais em qualquer metodologia de pesquisa científica”. Por isso, há um buraco negro na comunicação entre os pesquisadores, principalmente no que tange as definições técnicas utilizadas (ESTEVES, 2010, p. 43). Outra classe de desafio a ser superado é o da natureza científica e epistemológica. E assim conclui: A abordagem interdisciplinar deve resolver o problema de construir objetos científicos interdisciplinares a partir de visões particulares sobre as questões levantadas, os conceitos utilizados, os métodos e instrumentos definidos, etc. A superação deste desafio exige a identificação de uma problemática comum, ou seja, um conjunto articulado de questões formuladas pelas diferentes disciplinas envolvendo um tema e um objeto comum. Nesse sentido, a interdisciplinaridade é muito mais um ponto de partida que de chegada (ESTEVES, 2010, p. 43). Por fim, problemas são encontrados no que tange a avaliação dos resultados da pesquisa interdisciplinar. Tal questão acaba por dificultar a pesquisa interdisciplinar justamente pelo fato de estar intimamente interligada a outro problema, qual seja o da suposta superioridade da economia em face de outras disciplinas (ESTEVES, 2010, p. 48). Assim, a pesquisa interdisciplinar entre Economia e Direito acaba por enfrentar, além dos problemas acima destacados, questões metodológicas “relacionados à integração das disciplinas jurídica e econômica”. Logo, Direito e Economia ainda possuem uma linguagem distinta, o que indica uma metodologia própria de cada área (ESTEVES, 2010, p. 49). Por conta das razões acima apresentadas, o próximo tópico abordará as questões que envolvem o trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil para que, posteriormente, os impactos econômicos de tal atividade sejam trazidos à baila. 2. O trabalho escravo no Brasil Segundo Hebe Maria Mattos, em meados do final do período colonial, o Brasil possuía cerca de 3.500.000 habitantes. De toda a população, 40% eram mantidos sob o regime da escravidão. Por tal razão, é de fácil conclusão que, quase a maioria dos cidadãos que aqui residiam, exerciam suas atividades de forma escravagista (MATTOS, 2004, p. 16). Em face de tal situação, o Império brasileiro não poderia manter-se inerte. Após diversos movimentos abolicionistas, a Princesa Imperial Regente, sendo representada pelo Imperador D. Pedro II, sanciona a Lei de nº 3.353, datada em 13 de Maio de 1888, também chamada de Lei Áurea. Supracitada lei discorre, em seu artigo 1º, sobre a extinção da escravidão no Brasil (BRASIL, 1888). [ 586 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS Assim, referida Lei Áurea possui papel de grande relevância, haja vista que até o momento de sua promulgação, não havia no Brasil nenhuma regulamentação sobre o trabalho escravo. É possível, desta forma, afirmar que fora a primeira lei que regulamentou as relações de trabalho. Foi somente em 1891 que a Constituição Federal do Brasil reconheceu a liberdade de associação, pois conforme dito, nada antes era regulado. Com as constantes modificações ocorridas na França após a Primeira Guerra Mundial e a consequente criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) houve grande fomento à produção de leis trabalhistas no país. Movimento contínuo, os inúmeros imigrantes que aqui residiam, originaram movimentos operários, reivindicando melhores condições de trabalho e salários (FERNANDES, 2013, p. 13). Contudo, foi somente com a Constituição Federal de 1934 que o Direito do Trabalho fora tratado de forma específica. Questões como a jornada de trabalho, férias anuais remuneradas e o descanso semanal remunerado foram abordadas (FERNANDES, 2013, p. 13). Logo, é possível afirmar que pela primeira vez de forma oficial, as relações entre empregado e empregador eram tratadas. O Código Penal, em seu artigo 149, trata do crime de submeter alguém a condições análogas à de escravo: Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual. Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa; § 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las; II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional. § 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa (BRASIL, 1940) Com o referido dispositivo legal, não somente o empregador é tipificado no crime de trabalho escravo, mas também o indivíduo que alicia o laboreiro, retirando-o do convívio familiar e de sua residência com falsas promessas, e o coloca em condições de trabalho desumanas. Além disso, em 25 de abril de 1957, o Brasil ratificou a Convenção nº 29 da Organização Internacional do trabalho. Tal Convenção é conhecida como Convenção sobre o Trabalho Forçado e discorre, em seu artigo 2º, que é considerado como trabalho forçado ou obrigatório como sendo aquele “serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade” (BRASIL, 1957). Assim, todo indivíduo que estiver sendo submetido à trabalho forçado, ou seja, aquele alheio a sua vontade, lhe privando, principalmente a liberdade, está exercendo trabalho escravo. Somente no governo de Fernando Henrique Cardoso que o Brasil impulsionou os movimentos de erradicação do trabalho escravo. Fora criado o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, bem como o Grupo Móvel de Fiscalização, em 1995. Tais programas continuaram sendo desenvolvidos no governo [ 587 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, momento em que fora lançado o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (SCHWARZ, 2008, p. 81). A chamada “lista suja” trata-se de um cadastro de empregadores que são flagrados utilizando mão de obra análoga à de escravo. Tal cadastro é mantido pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A lista, que foi criada em 2004, tem o estado do Pará na liderança do país com o maior número de empregadores na lista suja nos últimos anos (EM DISCUSSÃO, 2011, p. 8). Porém, o atual governo liderado por Michel Temer alterou alguns pontos do programa “Lista Suja”. Em resposta, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirmou que a iniciativa federal de alterar as regras de fiscalização e divulgação da referida lista ameaça “interromper uma trajetória de sucesso que tornou o Brasil uma referência e um modelo de liderança mundial no combate ao trabalho escravo” (RODRIGUES, 2017). No dia 27 de Outubro de 2017, o Ministério Público do Trabalho publicou a nova versão da lista suja. Contudo, não fora por livre e espontânea vontade: a publicação somente ocorreu por conta da uma decisão judicial, que obrigava a divulgação do referido documento. O estado com maior número de empregados trabalhando em condições análogas à de escravo é Minas Gerais, seguido do Pará e Mato Grosso e Santa Catarina (FONSECA, 2017). Segundo a ONG Repórter Brasil, na última lista suja divulgada, duas grandes empresas brasileiras foram flagradas, quais sejam a JBS Aves e a Sucocítrico Cutrale. Dentre as violações cometidas pelas empresas, destacam-se as jornadas exaustivas, a vedação do descanso semanal remunerado e péssimas condições de higiene (MAGALHÃES, 2017). Contudo, não é somente na agroindústria a incidência de trabalho escravo. Nas lojas de grife Animale e A. Brand foi constatada a presença de migrantes bolivianos que tinham jornadas superiores a 12 horas por dia, exercendo suas atividades em locais precários, percebendo um salário de R$ 5,00, em média, para costurar peças que acabavam sendo vendidas por valores até 120 vezes superiores (REPÓRTER BRASIL, 2017). Além destas, a loja de roupas Zara também teve constatação de trabalho escravo por três vezes. Os empregados eram trabalhadores estrangeiros que vieram ao Brasil na busca por melhores condições de vida e acabaram sendo submetidos a condições análogas à de escravo. O quadro encontrado pelos fiscais era de contratações ilegais, trabalho infantil, condições degradantes, jornadas de até 16 horas diárias e o cerceamento de liberdade (PYL, HASHIZME, 2011). Segundo o Jornal Agência Brasil, no ano de 2016, estima-se que a escravidão moderna atingiu 45,8 milhões de pessoas no mundo todo. Já em 2015, constatou-se cerca de 35,8 milhões de pessoas vivendo em tal situação (VERDÉLIO, 2016). Percebe-se, então, que apesar das atividades estatais na esfera global, o número de pessoas exercendo atividades de forma escrava aumentou, ao invés de diminuir de um ano para outro. Enquanto isso, no Brasil, em 2014, constatou-se que 155,3 mil pessoas estavam sendo submetidas ao trabalho em condições análogas à de escravo. Naquele ano, houve mais resgates na área de construção civil do que no setor rural. Tal fato ocorreu em razão das construções para a Copa do Mundo, propiciando um maior aliciamento de trabalhadores escravos (CAMPOS, 2014). Ainda, a ONG Repórter Brasil afirmou que entre os anos de 1995 a 2015, uma média de 50 mil pessoas foram resgatadas e libertadas do trabalho escravo no Brasil. Em sua maioria, os trabalhadores são migrantes internos ou externos, os quais deixaram suas residências para exercer suas atividades em regiões com crescente expansão agropecuária ou grandes centros urbanos, sendo atraídos por falsas promessas (REPÓRTER BRSIL, s/d). O trabalho escravo inicia quando indivíduos, que são chamados de “gatos”, recrutam pessoas de regiões distantes da qual irá ser realizado o exercício das atividades, oferecendo boas oportunidades de trabalho em fazendas, assegurando salário, alojamento e comida. Oferecem, ainda, “adiantamentos” para que o empregado mantenha sua família por um tempo. Contudo, ao chegar ao local de trabalho, são surpreendidos com uma situação oposta a aquela oferecida. Desde os custos com a passagem, até os instrumentos de trabalho – como botas, luvas, facões, motosserras – assim como as despesas com [ 588 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS alojamento e alimentação, são anotados em um caderno, aumentando a cada dia a dívida do trabalhador (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2007, p. 22). Os maus tratos e a violência são situações rotineiras no cotidiano daqueles trabalhadores que vivem em condições análogas à de escravo. Há uma presença constante de humilhação pública e ameaças, o que leva o trabalhador a um estado de constante medo. Em caso de reclamação por parte do laboreiro, este é vítima de agressões físicas e psicológicas e, em caso de mutilações, são pagos valores irrisórios ao trabalhador, como forma de recompensa pela parte do corpo perdida ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2007, p. 31-32). Por tais razões, é de suma importância à abordagem do trabalho escravo, haja vista ser um fato muito presente no cotidiano de diversos indivíduos. Porém, deve ser ressaltado que não são somente as condições físicas e psíquicas dos trabalhadores que são afetados. A economia, como um todo, também acaba sendo prejudicada, em razão de inúmeros fatores, como a ilegalidade dos contratos de trabalho, sonegação de imposto, etc. Portanto, no próximo e último tópico, tratar-se-á sobre o impacto econômico que o trabalho escravo traz para o país. 3. Os impactos econômicos do trabalho escravo Conforme demonstrado fora, o trabalho escravo é uma realidade que é vivida por inúmeras pessoas, em que pese já ter sido “abolido”. O Governo Federal busca adotar medidas que erradiquem tal prática, apesar do atual presidente, Michel Temer, trazer à baila a discussão questões que acreditávamos estar sedimentadas. Contudo, faz-se necessário analisar ainda os impactos econômicos que a prática ilegal da escravidão traz para a economia, realizando uma análise interdisciplinar entre Direito e Economia. Em recente entrevista dada à Jovem Pan, o coordenador do programa de combate ao trabalho forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Antônio Carlos Mello, afirmou que a portaria do presidente Michel Temer é retrógrada e causará impactos negativos aos olhos do mundo. Ressaltou, ainda, que a decisão pode trazer inúmeros impactos econômicos ERCOLIN, 2017). Ainda, segundo a ONG Repórter Brasil, um estudo publicado na Inglaterra afirmou que a “carne brasileira exportada para a Europa é produzida por trabalhadores escravizados”. O objeto de estudo discorreu que o baixo preço do produto decorre do fato da mão de obra escrava, que não gera pagamento de salários dignos (SAKAMOTO, 2006). O trabalho escravo é uma das formas mais odiosas de exploração humana, repudiado por dezenas de signatários nas convenções da Organização Internacional do Trabalho e pelo artigo IV da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hoje não há no planeta um único país em que a escravidão seja defendida pelo Estado. Não há, mesmo no receituário da mais liberal das doutrinas econômicas, uma cláusula que garanta que lucros possam ser obtidos através do assassinato e do aprisionamento de seres humanos. Os cidadãos europeus, mais que qualquer sociedade no mundo, têm consciência disso. Cobram ações de seus governos e adotam um comportamento responsável, repudiando mercadorias produzidas com o sofrimento alheio (SAKAMOTO, 2006) (grifo nosso). Logo, o trabalho escravo, mesmo sendo repudiado por todos os países em esfera global, aceita os lucros obtidos por meio de mão de obra escrava. Para isso, medidas protetivas são elaboradas via legislação, visando o combate e a erradicação do trabalho em condições análogas à de escravo. É cediço que as normas jurídicas precisam ser elaboradas visando os impactos econômicos de suas consequências. Assim, ao obedecer todas as normas vigentes, o empresariado eleva o preço do produto a fim [ 589 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS de suprir todos os custos previdenciários, trabalhistas e ambientais, trazendo ao mercado um produto que respeite as garantias do cidadão. Porém, causa uma discrepância no valor final do produto, haja vista que aquele obtido por meio ilícito, ou seja, escravagista, acabará sendo mais barato do que aquele que cumpriu com seu papel social, obedecendo às normas legais vigentes estabelecidas no país. No Brasil, não há “qualquer condição de competitividade com o mercado estrangeiro, principalmente dos produtos provindos do sudeste asiático, já que naqueles países, a exploração de mão de obra se dá de inúmeras formas” (RAKAUSKAS, 2014, p. 7). Logo, por ausência de fiscalização e controle, a mão de obra acaba sendo relativizada no Brasil, em razão do baixo custo de produção dos produtos da Ásia. Assim, para que haja uma real concorrência entre tais produtos, os empregadores brasileiros acabam por adotar medidas drásticas, acarretando em trabalhos degradantes, configurados como análogos à escravidão. Deve, então, a atividade estatal, fiscalizar fortemente a entrada de produtos estrangeiros no Brasil, a fim de erradicar o trabalho escravo no país, bem como vedar a compra de produtos advindos de tal prática ilícita. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) atua para que o trabalho escravo permaneça apenas como uma má recordação na sociedade. Estudos já identificaram 122 produtos vindos de mão de obra escrava em cerca de 60 países distintos, causando um lucro aos empregadores de trabalho escravo de aproximadamente US$31,7 bilhões anualmente (EM DISCUSSÃO, 2011, p. 7). Assim, além de prejudicar o trabalhador, o trabalho em condições análogas à de escravo também traz prejuízos à ordem econômica e financeira do país. Isso porque, quando a mão de obra utilizada é a escrava, os direitos trabalhistas, previdenciários e sociais são fortemente violados, acarretando lucro aos empregadores e prejuízo aos empregados e, indiretamente, a toda a sociedade. Deve ser mencionado ainda que, ao contrário da antiga escravidão, o modelo escravagista atual é detentor de altos lucros. Isso porque, além dos motivos já acima mencionados, caso uma doença acame um empregado ou, até mesmo, a idade avançada chegue, o laboreiro é dispensado sem ter direito algum assegurado, deixando seu labor sem perspectiva alguma (EM DISCUSSÃO, 2011, p. 7). Já mencionado acima, a loja de grife “Animale” teve trabalho escravo detectado. A mesma peça que era produzida por R$ 5,00, era vendida na loja por até R$ 698,00. Ora, uma única peça era supervalorizada, sendo vendida por um preço exorbitante, diferente daquele preço de produção. Assim, é de fácil percepção analisar o alto lucro que a empresa tinha e, em contrapartida, o baixo custo de produção. A loja M. Officer, em São Paulo, foi condenada a pagar o valor de R$ 4 milhões por estar submetendo empregados a condições análogas a de escravo, acrescido de R$ 2 milhões em razão do dumping social, por conta da subtração de direitos trabalhistas para reduzir custos e obter vantagens sobre os concorrentes (SAKAMOTO, 2017). No caso da loja supracitada, o Ministério Público do Trabalho pediu a aplicação da lei 14.946/2013, a qual prevê que as empresas condenadas por trabalho escravo em segunda instância, nas esferas trabalhista ou criminal, tenham o registro do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) suspenso por dez anos. Assim, no estado de São Paulo, o recado é claro: não serão admitidas empresas que visam obter lucros a qualquer custo com mão de obra escrava (SÃO PAULO, 2013). Uma evolução ocorreu em São Paulo com a aplicação da Lei 14.946/2013. Ambos os poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, trabalharam juntos, buscando uma melhor qualidade de vida aos empregados, propiciando condições dignas de trabalho. Um exemplo a ser seguido pelos demais estados da federação. Nesse sentido, deve ser feita uma análise sobre o Direito e a Economia, pois conforme visto ambas as disciplinas, em que pese serem distintas, dialogam – e muito – entre si. No que tange as relações de emprego, não pairam dúvidas sobre o seu objetivo principal, qual seja o bem comum e, como consequência, o incentivo ao consumo. Porém, as situações de trabalho análogo ao de escravo não permitem a felicidade dos trabalhadores, tão menos visam o bem comum. O objetivo dos empregadores é apenas econômico, ou seja, lucrar com a fácil [ 590 ] Anais do IV Congresso Internacional História, Regiões e Fronteiras (CIHRF) Gizele Zanotto (Org.) - ISSN 2318-6208 Universidade de Passo Fundo (UPF) – 2018 – Passo Fundo/RS e barata mão de obra escravagista. Assim, quando detectado trabalho escravo, toda a sociedade acaba por sofrer as consequências e prejuízos de tal prática ilícita. “O trabalho escravo está inserido em parte do latifúndio brasileiro e, portanto, no agronegócio internacional. Por isso, ações de combate devem ser adotadas não só pelo Brasil, mas por países que podem lucrar com isso (SAKAMOTO, 2017)”. Apesar de inúmeras, as iniciativas estatais ainda não são suficientes para erradicar o trabalho escravo e, com isso, não somente na esfera nacional, mas também internacional acaba por beneficiar-se do labor escravagista. Considerações finais Direito e Economia, apesar dos obstáculos que serão apresentados, se complementam. Uma disciplina auxilia a outra quando há lacunas para preencher, ou seja, no momento em que uma matéria, de forma isolada, não possui aptidão para responder adequadamente a um caso concreto, une-se à outra para que a melhor resposta possível seja oferecida. Porém, diversos obstáculos devem ser superados para que haja a correta e adequada interdisciplinaridade esperada entre Direito e Economia. As principais dificuldades da pesquisa interdisciplinar, quais sejam a falta de comunicação e interpretação das normas, são mínimas ante as eminentes e grandiosas conclusões que se pode obter com o referida estudo. Quando oportunamente aludido, o trabalho escravo mostrou-se impiedoso para a sociedade como um todo. Tal afirmação é advinda do fato de que a escravidão está presente na coletividade desde os tempos mais antigos e que, não obstante a forte atuação legislativa, ainda existe incontáveis trabalhadores que exercem suas atividades profissionais de maneira degradante. O Brasil ainda é visto como exemplo para os demais países no que tange o combate ao trabalho escravo. Sem dúvida, o forte aparato global, e nacional, vem empenhando-se para vedar o uso de mão de obra escrava, haja vista as consequências quase que irreversíveis para os trabalhadores, em razão do abalo psicológico e físico causado nas vítimas. Porém, a sociedade também acaba por ser prejudicada com tal prática. Quando trabalhadores são submetidos a labor degradante, sem respeito às leis trabalhistas e em desconformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana, o preço do produto produzido acaba por ser inferior ao daquele que respeitou todos os preceitos legais. Há, ainda, o caso de grandes marcas dos setores de produção. Conforme visto, empregadores submetem seus empregados a jornadas exaustivas, sem o mínimo de segurança, pagando salários irrisórios para, depois de pronto, o produto ser vendido de forma supervalorizada. Assim, objetiva-se apenas o lucro do empregador, renunciando os direitos dos trabalhadores. As leis são produzidas de forma a projetar o impacto econômico que possa vir causar suas consequências. Portanto, deve o Poder Legislativo, em conjunto com o Poder Judiciário e Poder Executivo, trazer a baila respostas estatais satisfatórias, com sanções mais severas para os praticantes de trabalho escravo. Somente com a forte atuação estatal o trabalho escravo pode ser combatido com eficiência, projetando lucros para todos: empregador, empregado e Estado. Vivemos em um círculo vicioso, ou seja, somente com a digna competitividade entre os produtos, os consumidores serão beneficiados e, em contrapartida, a sociedade, como um todo, também lucra. Portanto, ao aplicar corretamente a legislação trabalhista, assegurando aos trabalhadores todos os direitos previstos em Lei, a sociedade, como um todo, é beneficiada. Além disso, ao vedar a prática de trabalho escravo, a economia terá benefícios, oportunizando a concorrência adequada entre os produtores, lucros condizentes com a qualidade de produção e trabalhadores satisfeitos ao exercer suas atividades, possibilitando condições de labor e salários dignos, mantendo uma qualidade de vida decente a todos os envolvidos. 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