O desenfeitiçamento em Bocage sem distrações
conceituais
JEANNE FAVRET-SAADA
École Pratique des Hautes Études | Paris, França
favsa@clubinternet.fr
Tradução SUZANE DE ALENCAR VIEIRA
Universidade Federal de Goiás | Goiânia, GO, Brasil
suzanealencar@ufg.br
Revisor técnico MENSAN BENOIT LAWSON HELLU
Universidade Federal de Goiás | Goiânia, GO, Brasil
lawsonhellu123@gmail.com
DOI 10.11606/issn.2316-9133.v31i2pe204407
resumo O presente texto é a publicação integral de
uma conferência proferida por Jeanne Favret-Saada a
uma audiência de etnólogos e psicanalistas. A autora
revisita circunstâncias de sua pesquisa de campo sobre
feitiçaria no interior da França para problematizar
noções como "cultura" ou "tradição”, examinar se
existem "marcadores simbólicos" relacionados à
função de “desenfeitiçador" e refletir sobre as posições,
a partir das quais, os antropólogos falam de outros
povos. Por fim, a autora enuncia uma crítica à noção
de "crença", termo que ela elimina do seu vocabulário
por remeter unicamente à adesão dos outros a certas
ontologias, deixando na sombra aquilo a que os
próprios antropológicos aderem como, por exemplo,
uma concepção particular de ser humano.
palavras-chave Feitiçaria; desenfeitiçamento;
cultura; tradição; crença.
Desorceler in Bocage without conceptuals
distractions
abstract The present text is the complete
publication of a lecture given by Jeanne Favret-Saada
to an audience of ethnologists and psychoanalysts.
The author revisits circumstances of her field research
on witchcraft in the interior of France to problematize
notions such as "culture" or "tradition", to examine the
question of the "symbolic markers" of the role of "the
antiwitch" and to reflect on the positions from which
the anthropologists talk about other peoples. Finally,
the author criticizes the notion of "belief". She
eliminates that term from her vocabulary because it
only refers to the adhesion of others to certain
ontologies, leaving in the shade what anthropologists
themselves adhere to, for example, a conception
particular human.
keywords Sorcery; Desorceler; culture; tradition;
belief.
Introdução1
Publicado originalmente sob o título de. “Le désorcèlement bocain sans hochets conceptuels”, volume 20 da
revista. L’Autre.
1
e204407
https://doi.org/ 10.11606/issn.2316-9133.v31i2pe204407
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Há mais de um ano, quando Daniel Delanoë entrou em contato comigo, ele sugeriu
um título para a minha palestra, Les logiques de la sorcellerie du Bocage, que pelo menos tinha
a vantagem de não me comprometer com nada. Muito recentemente, Delanoë compartilhou
comigo seu artigo sobre Places et fonctions des étiologies traditionnelles en consultation familiale
transculturelle, bem como, pouco depois, várias publicações do seu grupo. Só então entendi
o tipo de trabalho a que se dedica e alguns de seus pressupostos que eu descobri. O título
proposto pretendia, sem dúvida, promover uma comparação entre a feitiçaria de Bocage e
aquelas que ele encontra nas suas consultas psicanalíticas, a feitiçaria importada da África ou
das Antilhas. Temo que tal exercício seja prematuro, pois postula a relevância universal de
certos conceitos antropológicos que, na realidade, foram usados até recentemente para
qualificar sociedades muito distantes da nossa.
Gostaria, portanto, de compartilhar com vocês minha experiência – uma etnografia
praticada em meu próprio país – para questionar noções que vocês comumente usam, como
"cultura" ou "tradição", ou para examinar a questão dos "marcadores simbólicos" da função
de desenfeitiçador2, que, segundo a teoria antropológica, seriam indispensáveis. Este
exercício nos levará a realizar o trabalho comparativo que vocês esperam de mim e a
questionar as posições a partir das quais falamos dos outros como antropólogos. Termino
com a noção de "crença", termo que, de minha parte, bani do meu vocabulário porque evoca
a adesão dos outros a certas ontologias, deixando na sombra aquilo a que nós mesmos
aderimos como, por exemplo, uma concepção particular de ser humano.
Daí o título que dei a esta palestra, “Desenfeitiçamento em Bocage sem distrações
conceituais". Examinarei a forma como são apresentados em minha etnografia em Bocage,
em primeiro lugar, o conceito de tradição em sua relação com o conceito de território; em
seguida, a suposta necessidade de "marcadores simbólicos" para a função do desenfeitiçador;
e, por fim, o conceito de cultura, que nos fará reconsiderar o uso da noção de crença na
antropologia e, talvez, na medicina.
A “tradição” e seu território
Os antropólogos do território francês, e em particular os da brilhante escola
estruturalista de Toulouse - Daniel Fabre, seus colegas e seus alunos - consideram que as
províncias do Antigo Regime3 são o suporte territorial do que eles chamam de “sociedade
consuetudinária” (os predecessores de Daniel Fabre falavam de “sociedade tradicional”).
Segundo esses autores, as disposições do “costume” definem as “culturas” locais. No entanto,
esta concepção é problemática no que diz respeito às práticas de feitiçaria.
2
NT.: O termo désorceleur e demais variações como magicien professionnel são traduzidas aqui como
“desenfeitiçador” de modo a conservar o sentido de um ofício comparável àquele do psicanalista.
3
NT.: Antes da Revolução de 1789, o território da França era dividido em províncias. Mesmo depois do
ordenamento em departamentos, os folcloristas e antropólogos tomavam as províncias como territórios
históricos ou tradicionais. Jeanne Favret-Saada questiona a validade dessa sobreposição território tradicional e
cultura para o caso da feitiçaria. A autora chama a atenção para a dispersão das práticas de feitiçaria a despeito
de domínios culturais específicos.
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De fato, trabalhei numa vasta região, que designei deliberadamente pela expressão
vaga de “Bocage do Oeste francês”, para proteger a população da curiosidade da imprensa.
Eu morava em um vilarejo localizado ao norte de Mayenne, na fronteira de Orne e Manche,
onde entrava em contato ao acaso com famílias da região que concordaram em falar comigo
sobre feitiçaria e desenfeitiçadores profissionais que pude encontrar por meio delas.
Por múltiplas razões, muitas das quais associadas com a repressão às práticas de
feitiçaria, e outras com o próprio pensamento da feitiçaria, as famílias escolhiam o seu
desenfeitiçador profissional em locais distantes de suas casas, sempre para além das
fronteiras judiciais, religiosas ou administrativas – entre uma família enfeitiçada e seu
desenfeitiçador, poderia haver uma distância 50 ou 80 km. A projeção em um mapa de todos
esses pares – uma família enfeitiçada e seu desenfeitiçador, a várias dezenas de quilômetros
de distância de sua fazenda – esboça um território extenso, mas não contínuo: na maioria
dos casos, eu pude identificar vilas vizinhas onde a feitiçaria não parecia ser praticada. Havia,
portanto, um espaço de práticas de feitiçaria, distinto de outro desprovido de feitiçaria.
No entanto, o mapa do território da feitiçaria não corresponde ao que poderia ser
extraído das obras dos folcloristas do século XIX. Essas obras tinham identificado feitiçaria,
por exemplo, na Normandia do Antigo Regime, mas não na Bretanha, onde eu, contudo, a
encontrei – e algumas delas propuseram, além disso, com um século à frente do seu tempo,
uma explicação quase estruturalista para esta diferença marcante.
Outra dificuldade dizia respeito à Mayenne. Os folcloristas do século XIX
praticamente ignoraram o território desse departamento, que se situa entre essas duas
províncias de forte identidade cultural que são a Bretanha e a Normandia. Eles tratavam
implicitamente esse departamento como se fosse uma região desprovida de “cultura
tradicional” ou “sociedade consuetudinária”, e não apenas em matéria de feitiçaria. Para
encontrar informações sobre Mayenne em revistas de tradição popular, tive que recorrer a
uma seção chamada “Fragmentos folclóricos”. Mesmo um estruturalista, tão inventivo como
meus colegas em Toulouse, não conseguiria imaginar um “sistema simbólico” de três
“fragmentos” – por exemplo, um padrão de bordado, um cardápio de casamento e, digamos,
um breve relato de bruxaria. Isso porque, no Antigo Regime, Mayenne era uma espécie de
propriedade desocupada, um presente que os reis da França ofereciam alternadamente aos
duques da Bretanha ou da Normandia, que, por sua vez, ofereciam glebas para um ou outro
de seus vassalos. Os folcloristas e depois os antropólogos da França focaram então em regiões
com uma identidade forte, a partir das quais foi possível construir oposições estruturais –
como a da Bretanha com a Normandia –, e negligenciaram as regiões de identidade fraca ou
flutuante como Mayenne ou, mais ao sul, Pays de la Loire. Devemos concluir que essas
regiões carecem de passado, tradições, cultura, sistema simbólico? E, ainda assim, elas não
são desprovidas de feitiçaria.
Entre as províncias dotadas de uma forte identidade cultural e que, por isso mesmo,
foram estudadas por folcloristas do século XIX, consideremos agora uma região onde eu
mesma trabalhei, Calvados, em plena Normandia. Revi as obras de folcloristas tendo em
mente a forma de feitiçaria que encontrei no campo, centrada no desenfeitiçamento:
apresentei isso no livro Désorceler como uma espécie de processo terapêutico destinado a
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reduzir os repetidos infortúnios que afetam a produção, reprodução e sobrevivência de
animais e pessoas em uma fazenda familiar.
Elaborei, portanto, um quadro comparativo sobre um século de técnicas destinadas
a conter as ameaças que pesam sobre uma fazenda: técnicas tanto materiais (por exemplo,
técnicas agrícolas, mecânicas, previsão do tempo, arte veterinária, medicina) quanto
simbólicas (feitiçaria, cura mágica, religião oficial ou “popular”, cuidado psíquico). E, de um
período a outro, observei os movimentos, aparições e desaparecimentos ligados à feitiçaria.
Vocês encontrarão essa análise no capítulo 3 do livro Désorceler, ao qual dei o título de “A
invenção da terapia” para sublinhar a inovação cultural constituída pelo desenfeitiçamento
tal como o encontrei no século XX.
Apenas um tipo de histórias de feitiçaria estava presente tanto entre os folcloristas
do século XIX quanto em minhas anotações de campo, aquelas que chamo de histórias
exemplares, que relatam um milagre realizado por meio da feitiçaria, uma série de eventos
extraordinários que são desvios às regras reconhecidas de causalidade física. Essas histórias
são mantidas por pessoas que aderem às ideias de feitiçaria e que as endereçam a um
interlocutor indulgente, ou cuja atitude não diz imediatamente que não adere a essas ideias.
No século XX, os enfeitiçados foram descritos como pessoas comuns, totalmente
desprovidas de força mágica, que sofrem o ataque de um fazendeiro de suas relações (um de
seus semelhantes, mas que seria dotado de força mágica), e que não possuem outra saída a
não ser confiar em um profissional de defesa mágica, o desenfeitiçador. Pelo contrário, no
século XIX, as pessoas comuns tinham muitos meios para combater a maioria dos ataques
de feitiçaria por conta própria. Homens fortes podiam espancar seu feiticeiro para se livrar
do gosto da agressão mágica. Os cristãos (portanto, todo o mundo, não importa quem fosse),
tinham orações específicas para pronunciar, gestos rituais para realizar, símbolos religiosos
e objetos abençoados para colocar em lugares vulneráveis. Por fim, os idosos, por um lado,
e os membros de determinadas profissões, por outro, tinham diligências específicas
Entre os profissionais, observamos os padres e os médicos (possuidores de um
conhecimento reputado como tão poderoso quanto a feitiçaria), e os carteiros, que em suas
incursões fora do espaço humanizado das aldeias se colocariam à mercê dos feiticeiros, mas
que tinham martelos mágicos com que batiam os ferros de seus cavalos. Além disso, nas
histórias do século XIX, médicos e padres também poderiam ocupar a função de
desenfeitiçador. Finalmente, os possíveis feiticeiros não eram simplesmente, na época, uma
família de agricultores que tinha relações com a família enfeitiçada: poderiam ser, além disso,
pedintes (incapazes de possuir uma casa e uma terra), pastores (meninos jovens demais para
serem responsáveis por uma fazenda) e, de modo geral, a faixa etária chamada “juventude”.
Porque os jovens lançam feitiços para fazer suas vítimas rirem, em conformidade com sua
função de guardiões da moralidade pública.
O que concluir desses dados sobre a tradição da feitiçaria? Eu encontrei em Bocage,
durante a década de 1970, muitos desenfeitiçadores e famílias enfeitiçadas tomadas por
gravíssimos infortúnios repetidos e incompreensíveis. Estas díades enfeitiçadosdesenfeitiçadores foram distribuídas por um vasto território que não correspondia nem a
“culturas” específicas tradicionais nem mesmo a antigos territórios de feitiçaria. Além disso,
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ideias e práticas de feitiçaria tornaram-se profundamente modificadas em um século. No
entanto, os desenfeitiçadores e seus clientes, bem como a opinião comum das vilas,
asseguravam que era uma tradição imemorial. Eles atribuíram-na às práticas de seus
antecessores das quais as formas atuais de feitiçaria seriam herdeiras diretas. Eu me encontrei
diante de uma declaração tradicionalista, mas não tradicional. Uma declaração de tradição,
ou uma proclamação da transmissão cultural, mas certamente não era uma tradição, uma vez
que os dados históricos não atestavam aquilo que era reivindicado.
Os "marcadores simbólicos" da função de desenfeitiçador
Residi no campo um tempo extraordinariamente longo, e continuei a morar na
região por vários anos, metade da semana em tempo comum e tempo integral durante as
férias. No entanto, apesar dos meus esforços, sempre falhei em identificar os “marcadores
simbólicos” da função de desenfeitiçador. Eu teria sido contemplada na concepção que eu
tinha de antropologia e em minhas convicções do libertário 68, se eu pudesse identificar algo
como uma contra-sociedade clandestina, uma feitiçaria das catacumbas. Infelizmente, eu
nunca encontrei nada parecido mesmo depois de ter sido considerada tomada por feitiços e
depois que eu me tornei uma espécie de assistente da minha desenfeitiçadora, e eu conhecia
várias das famílias clientes, depois de ter encontrado outros desenfeitiçadores, etc.
Acabei explicando essa falta de marcadores simbólicos recorrendo ao fato de o Estado
francês ter feito, por séculos, uma caçada impiedosa às diferenças culturais de todos os tipos.
Durante a década de 1970, a feitiçaria de Bocage foi constantemente evocada na mídia
nacional como a persistência insuportável, a 300 km de Paris, de alguns cantões de barbárie
e credulidade. No entanto, ao menor sinal de eclosão de um escândalo de feitiçaria relatado
pela imprensa nacional, a chancelaria ordenava que as autoridades locais abrissem um
processo de uma das duas acusações presentes na legislação: “Exercício ilegal da medicina”
(mas era necessário provar que um remédio havia sido prescrito), ou “fraude” (mas era
necessário provar que havia recebimento de dinheiro no pagamento de palavras ou gestos,
isto é, de acordo com os magistrados, em troca de nada, enganação/mentira ou calúnia). Na
maioria das vezes, os desenfeitiçadores foram libertados por falta de evidências, mas viviam
sob a ameaça permanente de ver chegar as guardas e ter que se defender no tribunal. Na
minha opinião, isso é suficiente para explicar porque os desenfeitiçadores não podem
constituir uma corporação ou uma profissão oficial. A maioria deles manteve um trabalho
de fachada na agricultura ou no artesanato, e eles trabalhavam frequentemente à noite, em
segredo, sozinhos ou com um assistente, e sem nunca cooperar com os colegas, dos quais
eles obviamente suspeitariam.
Essa impossibilidade de se organizarem em grupos profissionais de desenfeitiçadores
e de manter um estabelecimento tinha uma consequência: apesar dos meus esforços, nunca
fui capaz de encontrar nenhum desenfeitiçador, entre aqueles que eu conheci, que tenha
concluído uma iniciação ou mesmo aprendido com um desenfeitiçador mais velho.
Geralmente, um desenfeitiçador explicava a sua entrada na profissão pelo fato de ter sido,
uma vez, vítima de infortúnios repetidos e de uma gravidade incomum, dos quais ele teria
saído sozinho, muito embora, às vezes, ele diga, em determinadas ocasiões, ter encontrado
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um desenfeitiçador. Contudo, esse desenfeitiçador não parecia ter transmitido a ele qualquer
coisa, a não ser, às vezes, um livro. No entanto, por ter reunido eu mesma uma coleção, eu
sabia que um livro de magia sozinho não habilitaria ninguém a trabalhar. Na maioria das
vezes, o acesso a esses livros era ainda mais improvável: o pai Gripppon, por exemplo,
gabava-se por ter tirado suas técnicas de desenfeitiçamento de um livro em Guayaki recebido
de um ex-missionário na América do Sul. Outros conheceram um padre alemão, durante a
guerra, etc. Os livros de magia sempre vieram do exterior e em um tempo imemorial, mas
ninguém poderia me dizer como teria aprendido a praticar.
De acordo com meus interlocutores, sua entrada no ofício de desenfeitiçamento teria
sido fruto dessa autocura espetacular e dos comentários que ela teria provocado em seu meio
social: de fato, ele tem uma força anormal. Ele teria começado a trabalhar – mas o “como”
nunca foi dito – e sua eficácia lhe teria permitido ganhar sua clientela. Seu slogan favorito,
que eles não deixaram de atribuir aos médicos quando eles estavam em questão, expressava
essa ideia: o diploma volta àquele que cura. Aparentemente, isso serviria como “garantia
simbólica”, e era possível que até mesmo o cenário de uma autocura estivesse ausente. A
desenfeitiçadora que eu frequentei por mais tempo nunca concordou em revelar qualquer
coisa sobre sua entrada no ofício, exceto que ela teria previsto com êxito vários retornos de
prisioneiros de guerra em 1945.
Assim, no Bocage da década de 1970, não se dizia nada sobre qualquer processo de
iniciação que atestasse publicamente que uma transmissão de saberes e poderes simbólicos
havia de fato ocorrido: é isso que constitui uma diferença fundamental em relação à feitiçaria
africana, por exemplo, para quem a iniciação ocorre em uma casa construída para este fim,
onde é realizada por todo um grupo de iniciados, e sob o olhar de todos os iniciados da aldeia.
No Bocage, essa história de autocura é aparentemente suficiente para qualificar a maioria
dos profissionais em desenfeitiçamento, e alguns deles até a dispensam. O fato de um
desenfeitiçador usar qualquer artifício simbólico para proceder a um ritual, por exemplo,
não muda a questão: pois é o desenfeitiçador, e somente ele, quem declara esse ato como um
ritual. Minha desenfeitiçadora, por exemplo, nos prescrevia muitas orações agressivas contra
nossos feiticeiros e medidas mágicas de proteção, mas ela não fez absolutamente nada na
nossa frente e apenas se limitou a dizer, em cada sessão, que quando ela estivesse sozinha
faria o que deveria fazer. Mas o desenfeitiçamento – seus rituais e o processo que os envolve
– constitui o coração da “feitiçaria” da Bocage, sua razão de ser. Posso dizer isso por ter
assistido a aproximadamente duzentas sessões.
Minha impressão – e eu desenvolvo um exemplo no livro Désorceler – é que alguém
se torna um desenfeitiçador ao final de um processo de autorrevelação de sua própria força
(seja ou não por ocasião de uma autocura milagrosa), e também ao verificar sua eficácia com
algumas famílias afetadas. Assim, ao longo dos anos, fabrica-se um pequeno arsenal
terapêutico, possivelmente muito sofisticado, como eu mostrei no caso da Madame Flora,
que joga com as ideias de feitiçaria de maneira a produzir o efeito terapêutico desejado.
O que a feitiçaria de Bocage tem como cultura particular?
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Gostaria agora de questionar o conceito de cultura sobre como ele poderia ser usado
a respeito da feitiçaria de Bocage: seria, em suma, um pequeno conjunto de enunciados e
práticas que professam uma ontologia animista e circulam em determinado momento em
determinado território, onde convivem com outros enunciados que lhes são incompatíveis.
Os enunciados e práticas que são incompatíveis com a feitiçaria estão, muitas vezes,
fundamentados em uma ontologia naturalista, por exemplo aquela promovida pelo Estado,
pela escola, pela medicina, pela ciência, etc., mas nem sempre é o caso, porque os
responsáveis pela religião católica se aliam às instituições estatais para condenar a feitiçaria.
Eles fazem isso com a justificativa de que Deus sozinho teria o monopólio da força nãonatural: Deus teria intervindo de uma vez por todas na história da humanidade através da
encarnação de seu filho, que ele teria perpetuado através da Igreja. É por isso que, hoje,
padres consagrados dispensam os sacramentos que mudam o vinho e o pão no sangue e na
carne, que redimem os pecados, que ligam casais para sempre, etc. Para todo o resto, as leis
da natureza seriam suficientes.
(Eu lembro a vocês desse detalhe: Chegando ao campo, comecei por questionar os
sacerdotes e os exorcistas diocesanos, que me disseram enviar seus enfeitiçados para o
hospital psiquiátrico. Lá, os médicos que concordavam ainda com a existência de delírios de
feitiçaria, ou sopros delirantes sobre o tema da feitiçaria. Os padres e os exorcistas
aprovavam plenamente os diagnósticos médicos: os feitiços, me disse um exorcista local que
não entendia por que eu o estava interrogando, não é religião, é delírio.)
Então, encontrei, em um certo território da feitiçaria, famílias camponesas que foram
enfeitiçadas, assim como seus desenfeitiçadores. Todos compartilhavam a seguinte
concepção:
Existe entre nós, pessoas comuns, virtuosas e civilizadas, humanos
comuns na aparência, mas ontologicamente diferentes.
Esses são camponeses simples como nós, eles vivem sempre em nossa
vizinhança, mas são secretamente obcecados pelo desejo devorador de se
apropriar de nossas forças, nossas riquezas e nossas vidas. Eles
encontraram uma maneira de obter uma força anormal e sobrenatural,
que lhes permite lançar feitiços nos animais de criação, pessoas e todos os
bens da nossa fazenda.
Dessa força, não sabemos muito, apenas que ela não tem origem ou fim,
que aqueles que a possuem não são seus donos, mas sabemos que essa força
dos feiticeiros nos lança em uma série de infortúnios, cada vez mais
dramáticos, cujo fim pode ser a ruína ou a morte.
Nós não podemos nos defender por meio de uma força comum que todos
nós temos para que nossa família viva em boa saúde e possa reproduzir e
explorar seu território. Essa força comum é limitada e, infelizmente,
insuficiente, quando confrontada à força ilimitada dos feiticeiros.
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Mas essa concepção, as práticas associadas a ela, e a ontologia animista em que se
baseia, foi expressa por camponeses que encontrei e conheci todos os dias, e, como era fácil
de notar, eles eram tão “modernos” quanto os outros habitantes do Bocage que alegavam não
acreditar em feitiços. Eu também notei que eles eram tão “modernos” quanto nós, os outros
franceses, porque, de uma maneira geral eram muito semelhantes a nós: eles foram para a
escola pública, fizeram o ensino médio, eles sabiam como lidar com as relações de
causalidade, eles assistiam televisão todas as noites e riam da exibição da série Minha amada
bruxa4. Em suma, eram franceses comuns que participavam sem saber – como cada um de
nós – da cultura nacional.
Simplesmente, quando eles eram pegos em uma sequência de infortúnios
incompreensíveis, eles poderiam ir a um desefeitiçador para se livrar daquela situação. É este
dispositivo particular para sair de infortúnios repetidos e incompreensíveis que eu fui
descobrindo aos poucos. À medida que meus interlocutores percebiam que eu levava suas
queixas a sério, em vez de condenar suas convicções considerando-as idiotas e perigosas, eles
me revelaram seu dispositivo para sair dos infortúnios, o desenfeitiçamento. Eu não esperava
muito porque a literatura etnológica calava-se em relação a esse aspecto central da feitiçaria.
Imaginem uma fazenda dedicada principalmente ao gado. Nem rica, nem pobre.
Explorada por um agricultor que conhece seu trabalho tanto quanto qualquer outro. A
fazenda foi tomada, durante vários meses, por infortúnios imprevisíveis e que são repetidos
sem motivo: os animais e as pessoas se tornam estéreis, ficam doentes ou morrem, as vacas
abortam ou secam, as plantas apodrecem ou secam, as casas queimam ou desmoronam, as
máquinas estragam, as vendas vão mal. Os agricultores recorrem aos especialistas
reconhecidos – médico, veterinário, mecânico... –, eles afirmam não entender nada do que
está acontecendo.
Todos esses infortúnios são pensados como uma perda de força para chefe da fazenda
e da família. É somente a ele que se dirige o anúncio ritual do estado de enfeitiçamento –
“Não haveria, por acaso, quem desejaria mal a você?” – é apenas ele que se diz estar
enfeitiçado, mesmo que ele pessoalmente não sofra de nada. Vacas, beterrabas, tratores,
crianças, chiqueiro, esposas e roças nunca são afetadas por si mesmas, mas por sua relação
com o chefe da fazenda e da família, pois são suas lavouras, seus animais, suas máquinas, sua
família. Em suma, suas posses.
Aquele que coloca a questão crucial é, muitas vezes, um amigo, e sempre alguém que
passou pela mesma crise e que escapou pela intervenção de um desenfeitiçador. Em nome de
sua experiência, ele faz o anúncio de um possível enfeitiçamento: não resta dúvida de que
“um feiticeiro subtraiu sua força”. O feiticeiro seria também um chefe da produção/ chefe da
família: próximo, mas não parente do enfeitiçado, ele é provido de uma força anormal,
sempre maléfica, que se presume ser exercida pela prática de rituais específicos, ou então
usando os canais comuns de comunicação: olhar, fala e toque. A força anormal do feiticeiro,
drenando a força normal de sua vítima, constitui as duas operações de vasos comunicantes:
4
NT.: Uma série televisiva estadunidense originalmente intitulada Bewitched, que foi exibida entre 1964 e 1972.
No Brasil, a série foi exibida e divulgada com o título A feiticeira.
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a medida em que um deles é preenchido por riquezas, saúde e vida, o outro se esvazia até a
ruína ou a morte.
É por isso que se acaba consultando um desenfeitiçador profissional, que também é
provido de uma força anormal, benéfica para seu cliente e maléfica para seus agressores. Uma
vez feito o diagnóstico, o desenfeitiçador mobiliza sua força por meio de um ritual que visa
anular aquele do feiticeiro, permitindo que o enfeitiçado recupere seu potencial
bioeconômico: saúde, fertilidade dos animais de criação, fertilidade da terra... Pelo menos é
isso o que está acontecendo em princípio: de acordo com o enfeitiçado, “aquilo que se faz” é
o ritual.
No entanto, quando se assiste às sessões desenfeitiçamento, como fiz por um longo
tempo, percebe-se que a saída da série de infortúnios é um processo complexo que se estende
por vários meses, um pouco como uma psicoterapia. Com a diferença de que, no caso do
desenfeitiçamento, o psíquico e o corporal, o verbal e o não verbal, pessoas, animais e
propriedades... tudo isso é tomado no mesmo movimento. Pode-se dizer que é uma
psicoterapia familiar, mas duas características de fatos que encontrei se opõem. Por um lado,
o psíquico nunca é tratado como tal durante as sessões, fala-se mais de porcos, beterrabas e
tratores do que dos membros da família. Por outro lado, os desenfeitiçadores têm o cuidado
de evitar que os membros da família sejam incriminados (tanto os membros da família
nuclear quanto da família de origem dos quais são herdeiros). Por razões que não caberia
evocar aqui, na verdade, a manutenção ou a restauração do campo familiar do casal
enfeitiçado requer uma total solidariedade da família, e esconde sob um manto de silêncio
muitos conflitos ao cabo dos quais a fazenda foi formada em detrimento dos pais e dos irmãos
de um fazendeiro. O capítulo 5 do livro Désorceler, Les ratés de l'ordre symbolique, mostra as
condições nas quais um jovem fazendeiro veio a assumir em seu nome a fazenda da família,
situação à qual todos os enfeitiçados atribuem os primórdios de seus repetidos infortúnios.
Assim, os enfeitiçados de Bocage e seus desenfeitiçadores, na década de 1970,
aderiram a uma ontologia animista, por uma suspensão das leis naturais que regem as
ocorrências da vida ordinária: eles o fizeram exclusivamente quando foram apanhados em
uma situação culturalmente codificada – infortúnios repetidos e incompreensíveis em uma
produção familiar – porque havia um dispositivo que os permitiam sair [da série de
infortúnios], o desenfeitiçamento.
Neste ponto, é necessária uma precisão que nos obriga a modular o caráter local dessa
feitiçaria. De fato, a feitiçaria bocageana pressupõe dois princípios que não vêm do Bocage,
mas sim do que poderia ser chamado, se quisermos, de cultura nacional francesa. Por um
lado, a concepção da produção agrícola familiar, promovida pelo Estado e regida pelo direito
rural, estabelece que apenas o chefe da família pode ser o chefe de produção. Por outro lado,
uma concepção comum a todo campesinato francês, segundo a qual pessoas, animais,
máquinas, plantas e edifícios são considerados como formando um único corpo, o do chefe
da família e da produção. Assim, o registro daquilo que nomeamos psíquico, na cultura
acadêmica, não é formalmente distinto dos registros corporal e material. Muitos leitores do
meu trabalho, de regiões tão diferentes quanto Alsácia, Ariège ou Savoie, confirmaram o
caráter geral dessa concepção.
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É, portanto, neste quadro não-local, nacional, que podemos atribuir a feitiçaria de
Bocage a uma determinada cultura. Por feitiçaria, atento-me a duas concepções
complementares de enfeitiçamento (um conflito potencialmente mortal entre os seres
humanos dotados desigualmente de força), e o desenfeitiçamento (um modo de escapar
dessas crises de vida ou morte pela intervenção de um terceiro também dotado de força
anormal).
Vocês já devem ter percebido que não se deve considerar como atrasados os locutores
de Bocage que se dizem enfeitiçados ou desenfeitiçadores. Ainda que eles reutilizem certas
ideias às quais eles são ligados pela tradição. Também não podem ser considerados como
idiotas, já que são, ao contrário, os atletas de tradução, que constantemente passam de uma
ontologia à sua antagonista, de acordo com as circunstâncias e com os interlocutores. A
questão principal que postula sua existência é esta: como enfeitiçados e desenfeitiçadores
lidam, de um ponto de vista cognitivo, com o fato de viverem alternadamente de acordo com
duas ontologias incompatíveis?
Aderir a ontologias incompatíveis
Vejam como aqueles bocageanos que praticam duas ontologias evocam a questão.
Eles fazem isso, como se pode esperar, usando duas categorias de declarações mal articuladas
entre si: por um lado, “É preciso ser pego [por infortúnios repetidos] para se acreditar na
feitiçaria”, ou “aquele que não pode ser pego, não pode acreditar nisso”. Mas, por outro lado,
“sempre se acredita naquilo em que não se acredita”.
De acordo com o primeiro tipo de enunciados “É preciso ser pego para se acreditar”,
o fato de confiar nas ideias sobre feitiçaria é a consequência de uma situação particular, qual
seja, ser tomado por infortúnios repetidos. Essa é a consequência e não a causa ou o prérequisito. De acordo com o segundo tipo “sempre se acredita naquilo em que não se acredita”,
as coisas não são tão simples assim: esta situação particular, ser tomado por infortúnios
repetidos, e sua consequência, acreditar nas ideias da feitiçaria, já estão inscritas em cada um
desde sempre como uma possibilidade. Entre esses dois tipos de enunciados há um jogo, no
sentido como se diz em mecânica que um espaço é deixado livre para um objeto correr.
Assim quando se “dá jogo” há uma folga numa janela ou numa gaveta.
Infelizmente, as ciências sociais não têm direito a essa possibilidade de jogo entre
duas concepções de crença, porque o ideal científico recomenda usar os termos desprovidos
de ambiguidade. Lembro, no entanto, que “acreditar” é um verbo de atitude, que pode
expressar certeza, bem como suposição com seus infinitos graus, desde quase certeza até
quase ceticismo. Dizer que Fulano “acredita” na maldade dos feiticeiros, na virgindade de
Maria ou na autorregulação do mercado, é ter em mente apenas uma das muitas atitudes
possíveis para esses objetos permitidas pela semântica do “acreditar”. Ávidos por eliminar a
ambiguidade, os etnólogos, portanto, atribuem a seus entrevistados uma única atitude:
aquela de plena convicção. Mas, ao fazê-lo, eles mutilam a realidade que deveriam descrever:
nos fatos, há um jogo entre as mil flutuações de atitudes nativas no campo da feitiçaria, e é
esse espaço de oscilação que deveria constituir o objeto de uma etnografia da “crença”, um
termo que seria melhor eliminar do vocabulário das ciências sociais.
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Conforme minha experiência, atribuir um estado de convicção estável aos
enfeitiçados de Bocage é um erro empírico grosseiro. Exceto em momentos raros, ninguém
acredita totalmente em feitiços. O acesso a uma cura de desenfeitiçamento requer apenas aos
demandantes que estejam tomados em uma espiral de infortúnios incompreensíveis e que
eles não possuam feitiços para uma hipótese insondável. Em seguida, todo o trabalho do
desenfeitiçador se desenrola sob o signo da suposição, excluindo as exceções dos quais acabei
de mencionar. Quando eu reconduzia os enfeitiçados às suas casas, depois de uma sessão
durante a qual eles tinham vivido dois ou três momentos de certeza, eu ficava estupefata com
a velocidade com que eles reestabeleciam uma atitude de suposição com suas oscilações.
Essas experiências me levaram à seguinte afirmação: o trabalho do desenfeitiçador
consiste em fazer os consulentes passarem de vários graus de suposição para um minuto ou
dois de certeza, sem exigir sua conversão a um estado estável. Essa pequena certeza, tão
laboriosamente obtida e que é preciso reconquistar a cada sessão, é absolutamente necessária
para que os consulentes façam a mutação em seu modo de ser que lhes fará sair da repetição.
Nós citadinos, modernos, antropólogos, clínicos, profissionais da cultura acadêmica,
nós asseguramos que os camponeses bocageanos aderem 100% à feitiçaria em sua forma mais
dogmática. E que apenas eles são induzidos por essa maneira de pensar as crises de vida ou
morte da existência. Mas acontece que somos regularmente fascinados por ficções ou por
histórias de feitiçaria, como tem mostrado o sucesso deste tema em livros, filmes ou
televisão. Por que seríamos seduzidos, já que não temos feitiçaria em nossa tradição cultural?
Poderíamos dizer que nós também acreditamos? Certamente não, não da maneira como os
camponeses são tomados por uma crise de feitiçaria. Então, como?
Como ouvintes ou leitores de histórias ou relatos de caso de feitiçaria somos
envolvidos no contexto de um pacto de leitura que o autor ou narrador propõe. O que é
chamado na teoria literária de pacto ficcional (“isso é apenas uma história”) ou em
antropologia, o pacto da escrita etnográfica (“eles são apenas camponeses”) dispensa o leitor
urbano de toda responsabilidade intelectual. É por isso que ele pode se permitir se identificar
com os heróis infelizes que lutam em um ciclo infernal de infortúnios. O leitor não precisa
se opor à ideia de que os feiticeiros invejosos usariam seus poderes supranormais para drenar
as forças, as riquezas e a vida dos enfeitiçados e pode desfrutar de tal situação sem o embaraço
do tremendo impacto emocional. Ser fascinado por uma evocação de feitiçaria não é o
mesmo que acreditar na feitiçaria no sentido de ter a certeza de que a narrativa descreve um
estado real do mundo. Ser fascinado pelo relato de feitiçaria é dar um pouco de peso à
suposição de que ela poderia existir – “E se ...?” – Acredita-se, em suma, mesmo sem saber.
Mas, de acordo com a minha experiência, nada é mais frágil do que essas garantias
constituídas pelos contratos de leitura entre autor e leitor, destinados a manter a adesão à
feitiçaria no menor grau de suposição. Isso por dois motivos. Por um lado, as ideias da
feitiçaria não estão acima de todas as afirmações sobre o estado do mundo ou a natureza das
pessoas que o povoam. Sua razão de ser consiste em uma estratégia para sair do infortúnio
repetido e incompreensível (É por isso que eu pude falar no livro Désorceler de “terapia da
feitiçaria”). É essa razão de ser que permite a alguns ouvintes ou leitores de histórias de
feitiçaria, desde que a necessidade seja sentida em suas vidas, reivindicar para eles mesmos o
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benefício dessa terapia. Alguns escrevem para mim para pedir o endereço de minha
desenfeitiçadora ou qualquer outro especialista em desenfeitiçamento que eu possa garantir
que seja sério. Os outros (incluindo médicos, intelectuais e, até mesmo, alguns diretores de
laboratórios de pesquisa) simplesmente me imploram para desenfeitiça-los. Conclusão:
Qualquer infeliz confrontado com uma repetição incompreensível de infortúnios – seja qual
for sua cultura – pode aderir aos enredos da feitiçaria de Bocage.
Por outro lado, as ideias de feitiçaria em Bocage tratam à sua maneira de requisitos
universais da vida em sociedade. As obras de François Flahault sobre os contos5 mostraram
que esses universais estão presentes em todas as sociedades humanas, e que já existiam antes
da introdução da escrita. Eles são incorporados a histórias cuja trama, cujos personagens e
temas são surpreendentemente estáveis, embora, obviamente, o modo de expressá-los varie
de uma região para outra. Considerados em sua totalidade, os contos testemunham o
trabalho necessário para que as cláusulas do contrato social sejam lembradas por todos, tanto
adultos como crianças, uma geração após a outra. Eles expressam a ideia de que a
reciprocidade (“a troca” de acordo com Lévi-Strauss) é o fundamento da vida social –
afirmação que também está no coração da feitiçaria. Tal como Flahault pratica, a análise
estrutural de contos fantásticos abre-se para a afirmação de constantes universais da mente
humana. Sem esses aspectos, a compreensão intercultural seria inimaginável. Igual
aconteceria com a compreensão da feitiçaria de Bocage por qualquer um que não tenha sido
alimentado antes de seu acesso à linguagem.
Reduzido ao seu núcleo – o pequeno número de ideias indispensáveis para se poder
falar de feitiçaria de Bocage e nada mais – esse pensamento opõe alguns fundamentos da
interação social à sua possível transgressão pelo feiticeiro. Ele expõe o ponto de vista
exclusivo das vítimas (os enfeitiçados) e de seus vencedores (os desenfeitiçadores). Mesmo
nas histórias da tradição, eles são os únicos enunciadores possíveis de palavras sobre a
feitiçaria – os supostos feiticeiros fecham-se em um silêncio irredutível, às vezes, quebrado
por zombarias. Em geral, o enfeitiçado se apresenta como alguém respeitoso com as regras
de reciprocidade, enquanto seu adversário seria um transgressor sistemático.
1
Enfeitiçado
força normal
Feiticeiro
força anormal
2
Bem
mal
3
4
Limitado
Visível
ilimitado
invisível
5
Sofre
age
Morrer
Quadro 1. Núcleo de ideias da feitiçaria
Matar
Uma leitura horizontal desta tabela mostra que os enfeitiçados são definidos por
características antagônicas em relação àquelas atribuídas aos feiticeiros: entre as duas lacunas
da mesma linha, há uma disjunção radical: ou seu ocupante encarna totalmente uma
5
Especificamente, La Pensée des contes, Anthropos-Economica, 2001.
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característica, ou ele encarna totalmente seu contrário. Por outro lado, uma leitura vertical
da tabela adiciona características da mesma coluna e define o destino final de cada uma das
partes, morrer ou matar. As linhas enumeram as cinco características antagônicas e inversas
que definem as duas partes de uma feitiçaria em relação entre si.
Linha 1. O enfeitiçado só dispõe de uma força humana normal, que ele investe em
sua terra, sua família e sua fazenda: por causa do ataque de feitiçaria, ele diz que “não tem
mais força para nada”. Enquanto que o feiticeiro teria acesso a uma força anormal que é
exercida sem mediação e sem tempo determinado, que se conectará ao campo do enfeitiçado
para sugar sua força normal como um sifão. O enfeitiçamento é, portanto, uma relação
desigual e dinâmica entre uma força “não suficiente” e uma força “excessiva”.
Linha 2. O enfeitiçado alega se conformar às exigências do bem, ao ponto de se deixar
levar por seus adversários. Enquanto o feiticeiro só gosta do mal e raciocina cinicamente:
por que atuaria no teatro do bem, se sua força anormal permite que ele obtenha a
recompensa destinada a pessoas virtuosas?
Linha 3. O enfeitiçado está satisfeito com o que possui, inscreve seus desejos nos
limites do mundo comum onde estão coexistindo seres ontologicamente semelhantes e cada
um com uma força limitada cuja origem é identificável. Ao contrário, o feiticeiro nunca se
satisfaz, ele teria uma ganância ilimitada pelos bens dos outros, mesmo que ele não necessite
deles: ele supõe viver em um mundo onde não há lugar para dois.
Linha 4. Os bens, a força e a atividade do enfeitiçado são visíveis, expostas à luz do
dia porque ele não tem nada a esconder. Enquanto as ações maléficas do feiticeiro seriam
invisíveis assim como o seria sua força anormal: nunca o vemos lançar feitiços.
Linha 5. O enfeitiçado só sabe sofrer: ele se comporta como uma presa, limitando-se
a lamentar os danos produzidos em seu campo pela força anormal do feiticeiro. Enquanto o
feiticeiro se comportaria como um predador ativo, sempre em busca de bens, da saúde, da
vida dos outros.
A leitura das duas colunas, uma a uma, indica a sequência dessas cinco características,
o efeito de seu acúmulo para cada um dos dois parceiros de uma crise de feitiçaria.
Na coluna esquerda, aquela do enfeitiçado: qualquer ser humano dotado de uma força
simplesmente ordinária, que quer e faz o bem, cujos desejos se inscrevem no limite de um
mundo compartilhado com os outros, cujas ações são visíveis, correm o risco de ser reduzido
à passividade e à fraqueza, porque, em sua vizinhança, há humanos aparentemente
semelhante a ele, mas dotados de infinita ganância e poderes incomparavelmente superiores,
os feiticeiros.
Em termos mais gerais, esta ontologia estabelece impossibilidades: não se pode ser
bom e forte o suficiente; bom e ativo; bom e próspero; estar bem e, em última caso, vivos
quando há uma força anormal à qual apenas algumas pessoas têm acesso. A ação humana é
então reduzida à alternativa “morrer ou matar”.
Basta ter em mente essa tabela para entender a mudança de situação provocada pela
consulta de um desenfeitiçador. Pois essa articulação da força normal e da força anormal,
operando uma cruz entre as lacunas de um (a ausência de força anormal para enfeitiçado) e
as lacunas do outro (a ausência do bem para o feiticeiro). Por consequência, ao contrário do
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enfeitiçamento: o desenfeitiçador é bom, mas não demais. Ele não é reduzido a uma postura
passiva. As outras habilidades que ele possui (força ilimitada e invisível) permitem a ele
combater o feiticeiro em seu próprio território. Finalmente, o desenfeitiçador, não mais do
que o feiticeiro, é o mestre da força anormal. Ambos dispõem de uma certa quantidade dessa
força, e é isso que lhes permitirá rivalizar de modo que não se pode prever quem será o
vencedor.
É justamente se amparando sobre sua hibridez que o desenfeitiçador vai trabalhar
para estabelecer um quiasma entre o bem e a força anormal no enfeitiçado, para
comprometê-lo com um pouco de mal para ligar-se à força, para tirá-lo da passividade e
reconecta-lo com vitalidade. Eu digo isso a vocês em termos muito abstratos por falta de
tempo, mas examino em interromper o trabalho de Madame Flora que explora com mil
relações de poder com as quais seu cliente enfrenta durante os poucos meses de desordem.
Porque o psicológico, biológico, social, etc. não são pensados como registros
ontologicamente separados, o desenfeitiçamento, quando consegue colocar em movimento
um deles, envolve os outros: para ter sucesso a venda de um animal implica uma propensão
a sair da passividade.
Uma "cultura" feita de corda de quatro pontas
É claro que essas ideias sobre o infortúnio e o desenfeitiçamento são exclusivas de
um território – que chamei de Bocage Ocidental – e uma situação – uma atividade
profissional familiar centrada em tudo o que é vivo.
Mas muitos daqueles que me escreveram depois do lançamento dos meus livros
reconheceram sua própria situação naquela das vítimas de infortúnios repetidos e
incompreensíveis. Eles entenderam que, apesar das peculiaridades locais, o pensamento da
feitiçaria de Bocage formula alguns universais da vida em sociedade, e eles me pediam para
deduzir de minha experiência o programa de ação de que precisam para se recuperar.
Seja qual for sua tradição cultural, as vítimas de infortúnios repetidos e
incompreensíveis podem, portanto, aderir a certos elementos da feitiçaria de Bocage: pessoas
que têm a morte nos seus calcanhares não têm os meios para se distrair com diferenças
culturais. Essas pessoas deixam de considerar camponeses como selvagens, e elas não têm
qualquer problema em reconhecerem a si mesmas em representações de feitiçaria. O fato de
o núcleo desse pensamento não separar a ontologia e a moral da psicologia desperta nelas a
louca esperança de uma reconstrução de si e do mundo que interrompa as repetições de
infortúnios. Então, elas saltam sem transição para o que mais importa: o efeito do
desenfeitiçamento, o fim dos infortúnios. Para sair disso, para estabelecer uma conjunção
entre si e a força anormal, é preciso extrair fontes de força de um fundo ilimitado – isto é,
também um fundo de ódio e agressão que cada um tem dentro de si. Isso é aquilo que elas
não querem saber (porque pretendem preservar os benefícios da moralidade e da civilidade),
e aquilo que o desenfeitiçamento de Bocage os dispensa de saber.
De uma forma mais geral, a feitiçaria de Bocage parece estabelecer, em um mesmo
lance, uma suspeita fundamental sobre a fragilidade do contrato social e um método para
ratificá-lo por meio de uma atividade perpétua de reconstrução do eu e do grupo –
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realidades, aliás, igualmente precárias. Bocage gerou uma cultura que nutre uma modesta
esperança da solidez do social, e que o sustenta em uma ontologia mínima. Em vez de um
desses mundos nativos encantados que antropólogos exaltam com seus pensamentos
ultrassofisticados e suas exuberantes “florestas de símbolos”, a feitiçaria de Bocage produz
com uma corda de quatro pontas, uma reflexão fundamental sobre a disjunção entre a força
e a vida – problema que não diz respeito unicamente aos grupos de Bocage.
sobre a autora
Jeanne Favret-Saada
Etnóloga francesa nascida na Tunísia. Ocupou a cadeira
de etnologia religiosa europeia na École Pratique des
Hautes Études. Hoje interrompeu suas atividades
profissionais, mas continua publicando sobre feitiçaria,
acusações de blasfêmia e relação entre cristianismo e
antissemitismo.
sobre a tradutora
Suzane de Alencar Vieira
Professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da UFG. Coordenadora do núcleo
de pesquisa Caroá.
Autoria: Jeanne Favret-Saada foi responsável pela
coleta de dados, sistematização e síntese dos argumentos
apresentados ao longo do texto, bem como por sua
escrita. Suzane Alencar Vieira foi responsável pela
tradução do ensaio para a língua portuguesa,
comunicação com a autora e coleta de permissões para
publicação do texto.
Financiamento: Não houve financiamento.
Recebido em 12/11/2022.
Aprovado para publicação em 23/11/2022.
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