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Coreografias de gênero em covers de K-pop Coreografias de gênero em covers de K-pop Thiago Soares Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Comunicação Social, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Recife, PE, Brasil ORCID https://orcid.org/0000-0002-1305-4273 Lúcio Souza Ferreira da Silva Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Recife, PE, Brasil ORCID https://orcid.org/0000-0001-9622-3214 Resumo Grupos covers de K-pop (K-covers) corporificam seus ídolos sulcoreanos em práticas coreográficas online e offline ao mesmo tempo que, a partir da especificidade de seus corpos, coreografam o gênero em suas aparições performáticas. A relevância desta investigação está em apresentar ferramentas teórico-metodológicas para a análise de fenômenos da cultura pop (os covers), a partir das intersecções das noções de interculturalidade e dos estudos de gênero. Apresenta, como metodologia, a análise de vídeos de grupos covers de K-pop em que jovens LGBTQIA+ (negros, gordos e trans) reencenam coreografias de girl groups (grupos de garotas) de K-pop promovendo rasuras performáticas interculturais. Como resultado, apresenta a ressignificação do aegyo (aqui pensado como “fofura” dos grupos femininos de K-pop) que, coreografado por jovens LGBTQIA+ em contextos fora da Coreia do Sul, operam sob a lógica do close, da fechação e do lacre. Palavras-chave Cultura pop; K-pop; Interculturalidade; Gênero; Performance 1 Introdução É através da presença de grupos de jovens dançando coreografias de música pop coreana nas praças, ruas e locais públicos das cidades que se percebe a capilaridade do K-pop no contexto global. A partir da tentativa de emular as coreografias, os gestos e o estilo de vida dos ídolos de K-pop, as práticas de cover (ou seja, como dispõe no dicionário, “pessoa ou grupo que imita um artista ou banda famosa”) são umas das principais dimensões performáticas no K-pop na medida em que acionam a corporificação (embodiment) das 1 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop materialidades expressivas deste gênero musical. Chamamos de “K-covers” os grupos que praticam, em seu cotidiano, ações que remetem performaticamente a ídolos de K-pop, tentando construir através de pistas, resíduos e informações, uma vivência em rede que se conecta àquela encenada midiaticamente pelos artistas de pop coreano. No Brasil, a prática do K-cover se firma em meados dos anos 2010, com a emergência de um nicho de jovens interessados na cultura pop sul-coreana, principalmente, no ambiente digital, tendo os vídeos de dance practice1 como um dos possíveis impulsionadores do fenômeno (URBANO; KAUTSCHER, 2018). São as convenções ligadas às culturas tradicionais e pop japonesas2 que estabelecem a formação de uma cena K-cover, através da reiteração da importância de concursos e de sociabilidade dentro desses espaços, numa relação que também é atravessada pela presença do K-pop na trilha sonora dos animes japoneses, até então, elementos centrais nesses eventos (URBANO; KAUTSCHER, 2018). Para além da ocupação espacial urbana, grupos juvenis de K-cover se espraiam nas redes sociais digitais, compartilhando vídeos com suas coreografias e disputando atenção, curtidas e comentários em plataformas de compartilhamento de vídeos como o YouTube. A criação de desafios (challenges) para que K-covers – com diferentes graus de formalização – se engajem, mobilizando fãs e admiradores através da criação de vídeos coreográficos compartilhados em diferentes redes sociais digitais, é uma prática na circulação de produtos, valores e afetos. Este artigo é parte das reflexões de uma pesquisa em curso sobre K-covers da Região Metropolitana do Recife (RMR), que abriga uma cena cultural em que covers de K- pop participam desde pequenas competições dentro de shopping centers até eventos mais complexos realizados em centros de convenções3. Como fenômeno integrante das práticas de transculturação a partir da globalização, o K-pop se particulariza quando em contato com diferentes contextos. Na Tailândia, como atesta a análise de Käng (2014), os K-covers fazem emergir a figura do “sissy”, o jovem afeminado e magro que, de “super fã” de K-pop passa a figurar como “proto-idol”4, evocando o processo de celebrização de jovens gays afeminados no contexto do Sudeste Asiático. Laurie 1 2 3 4 Vídeos dos ídolos do K-pop praticando suas coreografias. Geralmente são utilizados pelos grupos K-cover para aprenderem a coreografia e a distribuição dos artistas no palco. Como o Sana Fest no Ceará, Anime Friends, em São Paulo e SuperCon, em Pernambuco, entre outros. Até o ano de 2019, os locais preferidos para reunião e ensaio dos diversos grupos covers da Região Metropolitana do Recife (RMR) eram os parques da Jaqueira e Dona Lindu, ambos localizados em áreas nobres da cidade, ou o Bairro do Recife, no centro da capital. Fora da RMR, destaca-se a presença do K-cover em Caruaru, situada na região agreste do Estado e conhecida como “Capital do Forró”. O termo “idol” se refere a celebridade coreana que se configura por amplo treinamento e rígidas etapas de audição por agências de talentos. Adota-se o termo “proto-idol” como um modelo de idol replicado em diversos contextos midiáticos asiáticos. 2 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop (2016) reconhece que, no processo de globalização, o K-pop, ao se capilarizar por contextos ocidentais, faz emergir novas arenas de disputa sobre o feminino, na medida em que estabelece novos horizontes comparativos com feminilidades vividas nas Américas. Na América Latina, faz emergir as particularidades da história colonial, na medida em que, a partir do espaço especulativo em que os covers emulam seus ídolos coreanos, “faz aparecer” diferentes corpos, em sua grande maioria de pessoas mestiças, revelando o passado de mestiçagem e hibridismo já evocado por Taylor (2013) na história cultural das Américas. Há modulações específicas no contexto mexicano: ao evocar os K-covers no contexto da Cidade do México, Torres (2020) ressalta a existência de aspectos morais ligados a questões de gênero na identificação de diferentes padrões de beleza e sexualização de jovens. Para o autor, o “horizonte moral” da sociedade sul-coreana emerge como uma dimensão comparativa para o tratamento de aspectos ligados a vivências urbanas juvenis mexicanas. Grande parte dos estudos sobre K-pop desenvolvidos no contexto latino-americano apresentam como foco as problemáticas de gênero, seja a partir da corporificação de “asianidades” em corpos ocidentais; de dilemas morais sobre a sexualização, infantilização e erotização de corpos de jovens adolescentes; do diálogo com masculinidades asiáticas que, quando postas em perspectiva, ressaltam problemáticas queer ou desviantes, e sobretudo a partir do reconhecimento de um conjunto de mal-entendidos culturais (CANCLINI, 2009) que emergem nos processos de transculturalidade. Estes estudos encontram reverberação nos “problemas de gênero” dos K-covers da cidade de Recife: ao contrário dos corpos consagrados no centro da indústria musical sul-coreana, que prezam pela magreza e pele clara, o que se evidencia nos grupos recifenses é a larga presença de jovens mestiços, negros, gordos e LGBTQIA+5, apresentando rasuras raciais típicas também dos fenômenos transnacionais. Os problemas de gênero deslocados para a abordagem sobre corpos transculturais como o caso dos K-covers estão inscritos no que Butler (2009) chama de “sistemas regulatórios generificados”, ou seja, a partir de um conjunto de práticas, espelhamentos e gestos miméticos que traduzem um certo senso de adequação e “normalidade” para tais corpos. As regulações implicam no reconhecimento das normas, que podem ou não serem explícitas, operando como princípio normalizador da prática social e dos efeitos dramáticos no cotidiano. 5 Performance cover do grupo Glamour no Festival da Cultura Coreana em Pernambuco ilustra bem quais corpos habitam a cena K-pop local (RANIA, 2018). 3 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop Este artigo pretende debater questões de gênero em grupos covers de K-pop a partir do reconhecimento de que a dança é um lugar privilegiado para o debate sobre performatividade de gênero, na medida em que as marcações regulatórias dos gêneros são “colocadas em cena”, dançadas, generificando corpos a partir de movimentos, gestos e, portanto, coreografias. Utiliza-se o conceito de “coreografias de gênero” (FOSTER, 1998), para quem a performatividade seria tanto uma reiteração de normas quanto a dissimulação das convenções na repetição, para se debater a atuação de grupos covers de K-pop como um conjunto de movimentos deslizantes: (1) entre performances consagradas de grupos sulcoreanos e suas reencenações em diferentes contextos globais a partir de vídeos disponibilizados em redes sociais digitais; (2) de deslocamentos de marcações de orientalidades (URBANO, 2018) em esfera global e um conjunto de mal-entendidos culturais que reverberam em gestos regulatórios sobre formas “corretas” de traduzir corporalmente o K-pop e (3) sobre as disputas em torno do virtuosismo e diferentes formas de adesão e consagração de covers em redes sócio-técnicas digitais. A metodologia presente neste artigo conjuga o levantamento de ações em rede a partir da identificação de pontos de convergência sobre estas ações através das hashtags em plataformas audiovisuais. Designou-se a hashtag “KPOP IN PUBLIC” no YouTube como dispositivo agregador de vídeos de covers. O interesse específico da pesquisa é pela aparição de covers realizados por homens negros e mestiços que se encontrem desviantes no tocante aos padrões de corpos da indústria sul-coreana. A hipótese que se desenha é a de que o K-pop permite que grupos de jovens homens fabulem asianidades pop em suas coreografias ao mesmo tempo que problematizam matrizes culturais identitárias na medida em que aparecem em cena. Ou seja, estamos diante de problemas de performance (TAYLOR, 2013) que narrativizam aparições em espaços públicos, promovendo simplificações e domesticações, mas também tensionamentos em torno do próprio ato de aparecer em público (BUTLER, 2018). Este artigo está dividido em três partes. Na primeira, levanta-se um conjunto de problemas de gênero que dizem respeito ao consumo de K-pop no contexto brasileiro. Aponta-se que a interculturalidade (CANCLINI, 2009) é uma importante rubrica teórica para complexificar diferenças, negociações, empréstimos e conflitos deste fenômeno em contextos distantes da sua origem, na Coreia do Sul. Em seguida, propõe-se pensar a dança como um lugar privilegiado para se debater estas questões de gênero, na medida em que a generificação dos corpos opera através daquilo que Susan Leigh Foster (1998) chama de 4 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop “gestos de gênero”, reconhecendo como a coreografia é uma importante metáfora para identificação de mudanças tanto nos âmbitos privados, mas sobretudo públicos. Por fim, propõe-se o mapeamento de gestos coreográficos de K-covers que ressaltam as tensões da interculturalidade, habitando um entre-lugar que, embora mimetize coreografias geradas por grupos de música pop coreana, também ressalta diferenças, desigualdades e assimetrias presentes no mundo global. 2 Interculturalidade e gênero Como fenômeno da cultura jovem, estudar o K-pop significa tatear por “dentros e foras” do fenômeno, em função de sua natureza cifrada, específica e repleta de códigos – acentuados a partir também do alto grau de imersão de fãs e admiradores e dinâmicas da cultura digital. Os “dentros e foras” do K-pop são lugares epistemológicos em que se formulam perguntas e problemas de investigação, variando a partir de diferentes lugares de fala (RIBEIRO, 2017) e pontos de vista (COLLINS, 2019) de onde se encenam as questões. Pensar diferentes lugares de observação de fenômenos que orbitam sobre o K-pop permite construir problemas a partir tanto de vivências específicas de fãs, suas disputas e jogos performáticos em rede, quanto diante de questões mais gerais e amplas – “de fora” – no que tange às semelhanças e diferenças deste gênero musical dentro de uma história da cultura pop. A música pop sul-coreana (K-pop) é a resposta do pequeno país peninsular no jogo de disputas da cultura pop. Num cenário de crise econômica a partir da recessão que atingiu os países que integravam os Tigres Asiáticos em 1997 (KIM, 2012) e sem dispor de grandes faixas de terra, a Coreia do Sul decide investir na cultura como uma de suas principais commodities e, assim, surge a complexa indústria do K-pop, que treina, gerencia e produz artistas pop em larga escala. A expansão do pop oriental está associada a “um projeto ativo de construção de identidades nacionais e regionais, com base em um projeto que alia métodos baseados na lógica de mercado a objetivos políticos” (ALBUQUERQUE; URBANO, 2015, p. 253). Isto é, a cultura pop conjuga a lógica econômica à política, ancorada nos conceitos de soft power (MARTEL, 2012) e nation branding (construção de marca de nações). A Coreia do Sul, especificamente, se utiliza de elementos genéricos e estratégias de hibridização a fim de propiciar um sentimento de proximidade cultural que converse tanto com os demais países do Extremo-Oriente quanto com os do Ocidente. 5 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop É neste “entre” as diferentes partes que constituem o globo que os problemas de interculturalidade emergem, na medida que a distância, as forças midiáticas e as resistências locais permitem “incomensurabilidades, incompatibilidades e intradutibilidades das culturas” (CANCLINI, 2009, p. 18). Ao abordar os problemas da interculturalidade a partir da emergência de pesquisas sociológicas que tratam sobre fenômenos oriundos da globalização, Canclini (2009) propõe pensar sobre negociações epistêmicas e morais que ocorrem entre culturas, dentro das culturas e também a partir de traços individuais dos sujeitos, fazendo com que discrepâncias, ambiguidades e conflitos emerjam. As questões morais, destacadas por Canclini (2009), são especialmente importantes para tratar dos novos problemas da interculturalidade, na medida em que um “mundo pós-ocidental” (STUENKEL, 2019) começa a se desenhar a partir da crise econômica nos Estados Unidos de 2008 e do amplo crescimento econômico da China, fazendo emergir forças tanto econômicas quanto políticas e culturais do Oriente. O embate de sociedades “tradicionais” do Oriente com as “cristãs” do Ocidente colocam em cena disputas que passam por modos de debater as diferenças, principalmente no terreno dos costumes e das lógicas morais. Neste sentido, é fundamental perceber movimentos internos sobre interculturalidade no K-pop tanto dentro da própria Ásia, quanto externos em relação ao Ocidente. Os produtos culturais pop sul-coreanos ganharam popularidade de forma expressiva dentro da Ásia na década de 1990, dando origem a Hallyu Wave, a Onda Coreana (URBANO; KAUTSCHER, 2018), expandindo-se, com uma série de tensões, para países como Japão, China, entre outros. Anos mais tarde, serão empreendidos esforços para atingir o mercado ocidental, a exemplo do álbum em inglês lançado pela solista BoA em 2009. O ponto que marca significativamente a entrada do K-pop nas paradas musicais ocidentais é o sucesso de “Gangnam Style” (2012), faixa composta e interpretada pelo rapper PSY, cujo videoclipe atinge a marca de ser o primeiro vídeo a conquistar um bilhão de visualizações na plataforma do YouTube (G1, 2012). A presença do K-pop no Ocidente e sua capilaridade na cultura pop podem ser vistas nas turnês realizadas pelos grupos BTS e BLACKPINK, que percorreram grandes cidades da América do Norte e Europa em 2019. Os dois grupos (o primeiro, uma boy band; o segundo, uma girl band) auxiliam a pensar a interculturalidade em termos de indústria da música, na medida em que consagram um formato largamente explorado na cultura pop ocidental: os grupos formados por meninos (boy bands) e meninas (girl bands). Uma história da música pop no Ocidente permite visualizar momentos em que boy bands e girl bands foram 6 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop importantes mediadores para “atravessamentos culturais” (MARTEL, 2012), na busca de novos mercados e também para a incorporação de diferenças no âmbito da indústria do entretenimento. Martel (2012) lembra que uma das estratégias da gravadora Motown para promover cruzamentos culturais para consumo da música negra por plateias brancas na década de 1960, num Estados Unidos racialmente segregado, foi o amplo uso deste formato de grupos de jovens negros separados por gênero. Jackson 5 e The Supremes, grupos musicais formados por jovens homens negros e mulheres negras, foram, nas palavras do sociólogo, formas de atenuar as diferenças dos corpos negros para seu amplo consumo no contexto de acirramento racial em âmbito midiático. Pensando a interculturalidade como a dimensão de interação e diálogo, mas também exclusão e domesticação entre culturas, propõe-se debater como o formato de boy bands e girl bands integra tanto uma história dentro da indústria musical e do entretenimento, quanto de uma série de negociações de cunho geopolítico. Ainda na década de 1990, grupos como New Kids on the Block, Five, Westlife e Spice Girls foram centrais na indústria musical da Inglaterra a partir da relação com o fenômeno chamado de Cool Brittania, de orgulho britânico a partir da ostentação de bandeiras e do nacionalismo. É dentro da indústria da música e do entretenimento que se propõe pensar os Kcovers como parte integrante do conjunto de práticas interculturais da territorialização do Kpop em diferentes contextos globais, na medida em que, como alerta Canclini (2009), deve-se prestar atenção às misturas, hibridizações, mas sobretudo “mal-entendidos” que vinculam grupos, ou seja, problematizar como se dão as apropriações materiais e simbólicas em suas reinterpretações. “Não só as misturas, mas também as barreiras que se entrincheiram [...]” (CANCLINI, 2009, p. 23). Observar as interculturalidades implica em problematizar também questões de gênero, uma vez que ele é atravessado por enquadramentos culturais. Generificar corpos, atribuir-lhes sentidos e sensibilidades, passa pelo reconhecimento de movimentos, dramaticidades e teatralidades que se dão nos campos de disputa das culturas. A questão não é apenas perceber como noções de masculino e feminino são engendradas por atores sociais em contextos interculturais, mas, sobretudo, pensar sobre os movimentos “coreográficos” que permitem que o gênero apareça e se estabilize – embora esteja sempre passível de novas instabilidades. É sobre este argumento “coreográfico” do gênero que Susan Foster (1998) apresenta críticas a Judith Butler (2009) pela filiação excessivamente linguística do conjunto de teorias 7 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop sobre performatividade formuladas pela filósofa. A “coreografia do gênero”, como defendida por Foster, evoca um corpo sempre situado e em situação, que recusaria a estabilidade e estaria apto e aberto a fenômenos externos (que chamamos de “culturais”) em seus deslizamentos gestuais. Neste sentido, as questões de gênero moventes nos processos de interculturalidades apontam para uma fenomenologia das corporalidades, em que se evidenciam menos na essência dos corpos e mais nas políticas das interpretações. As coreografias de gênero fazem perceber “movimentos de existência” entre culturas em que fazer, dramatizar e reproduzir gestos de outras culturas implicam sempre numa dupla perspectiva: o que permanece dos resíduos culturais mediados nos corpos, mas também o que se altera e se converte em outras matrizes expressivas generificadas. Observar os K-covers, portanto, permite reconhecer a existência de matrizes miméticas que fazem aparecer as asianidades desejadas, bem como as conversões, dissidências e contrastes típicos das interculturalidades. 3 Performance e coreografia de gênero Tomando a interculturalidade como espaço de possíveis nas encenações dos covers de K-pop, precisamos pensar sobre a dimensão material destes acionamentos corporais. Cabe, portanto, trazer à tona o debate sobre performance a partir da ideia de que se trata de “atos de transferência vitais, transmitindo o conhecimento, a memória e um sentido de identidade social por meio do que Richard Schechner denomina comportamento reiterado” (TAYLOR, 2013, p. 27). Para Taylor (2013), performances desempenham papel importante na conservação da memória e consolidação de identidades em sociedades letradas, semiletradas e digitais, na medida em que funcionam como repertórios contidos nos corpos. Heranças eurocêntricas dos campos da antropologia e do teatro, e o logocentrismo ocidental que pairam sobre os estudos da performance são debatidos pela autora, que denuncia a legitimação da escrita em relação a outros sistemas epistêmicos, apontando para a predominância do arquivo (cartas, livros, registros materiais) supostamente duradouro nas epistemologias ocidentais, em relação ao repertório (gestos, dança, canto, entre outros atos) visto como conhecimento efêmero, não-reproduzível. As noções de performance suscitadas por Taylor (2013) nos permitem estabelecer a lente metodológica para análise de eventos que envolvem atos performáticos, a exemplo de um show de música no qual um artista se apresenta num espaço-tempo delimitado. “Tais Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 8 Coreografias de gênero em covers de K-pop artistas reúnem fãs, frequentadores, curiosos e apreciadores de música que, por sua vez, performatizam maneiras de estar, de fruir e de sentir a música, corporificando resistências, obediências, cidadanias, gêneros, etnicidades, entre taoutros aspectos.” (AMARAL; SOARES; POLIVANOV, 2018, p. 10). Pensar as performances cover de K-pop inclui debater, portanto, a formação de repertórios coletivos que têm como arquivos, em grande parte, videoclipes e apresentações ao vivo, realizadas por grupos de sul-coreanos e disponibilizados em plataformas de vídeo e em redes sociais digitais. As performances de K-covers são tentativas de corporificação de arquivos visuais de K-pop a partir das marcas territoriais, geográficas, políticas e estéticas disponíveis. Neste sentido, visualizar os espaços entre “arquivos” e “repertórios” no que tange os K-covers auxilia a reconhecer as diferenças, desigualdades, assimetrias e ambiguidades presentes em processos globais. A ideia de diferença aparece como um importante marcador das utopias possíveis nestes embates, diante das imagens e sons arquivados em audiovisual pela indústria do pop sul-coreano e a corporificação destes arquivos gerando um território afetivo e simbólico em que fãs e covers fabulam sobre seus ídolos orientais. Falar dos K-covers inclui, principalmente, visualizar corpos que estão a dançar. Por isso, ao debate sobre performance proposto por Taylor (2013) acrescentamos o de “coreografia de gênero” a partir de Foster (1998). A proposta da autora é debater gênero a partir da metáfora da dança, uma vez que corpos em movimento seriam mais propícios a apresentarem os “não-ditos” e os silêncios que não seriam enquadráveis no campo mais “sedimentado” do discurso. Foster (1998) debate as coreografias como enquadramentos, formas de ler e interpretar o social na medida em que corpos que dançam o “incorporam”, ou seja, as marcas das sociedades estariam atravessadas nas corporalidades a partir também do que André Lepecki (2011) chama de “política do chão” – que corpo emerge do chão que pisa, do território, do clima e da geografia implicada. Para Foster (1998), mudanças coreográficas ajudariam a compreender as mudanças sociais, suas reencenações e disposições. A autora chama atenção para como a dança presentifica momentos sociais (a criação das normas do balé clássico em consonância com uma série de racionalismos presentes no século XIX) em diferentes contextos (do conhecimento erudito de matriz europeia, para a relação entre dança e protesto no contexto de segregação racial nos Estados Unidos, passando pelas dinâmicas ritualísticas em sociedades africanas, entre outros). A metáfora da dança permite reconhecer que 9 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop coreografias são feitas com corpos em constante devir, realizando movimentos inacabados que podem ser reengendrados ou atualizados, mas nunca finalizados – assim como a dimensão da performatividade. É nesta articulação entre “coreografia” e “gênero” a partir da performatividade que Foster (1998) parece fazer a sua mais importante contribuição: a performatividade apresentaria as dimensões regulatórias dos gêneros, no entanto, estas regulações são convencionadas, não são “vistas”, antes são incorporadas e vividas no cotidiano. Para a autora, pensar a coreografia de gênero seria da ordem de reconhecer movimentos constantes que nem sempre são apreendidos como coreográficos (um caminhar pode ser de uma ordem coreográfica ou não). No entanto, é no deslocamento e no enquadramento como performance que tais gestos aparecem como “coreografia de gênero”, deixam marcações, rastros, e são tomados como ancoragens compreensíveis sobre a estabilidade da performance de gênero. Este debate interessa ao estudo sobre K-covers na medida em que pensar coreografias de gênero significa debater tanto as questões de ordens interculturais quanto de gênero, permitindo que os corpos dançados situem entre-lugares no tecido social entre diferentes atores e admiradores do K-pop. Embora as “coreografias de gênero” pareçam dar conta de intangibilidades e movimentos constantes que parecem fazer aparecer e desaparecer as marcações, em fenômenos como o K-pop estas marcações precisam ser pensadas de forma mais estável. A fim de entender a consagração dos corpos padrões na indústria do K-pop, Kim (2012) sugere visualizar os videoclipes comerciais da Lotte Department Store e Dutty Free Korea, que trazem elencos compostos por artistas de grande sucesso e rentabilidade em suas respectivas áreas da indústria musical sul-coreana. Eles todos são belos, sem falhas e detém os padrões estéticos da Hallyu coreana. As mulheres têm pele de porcelana, figuras esbeltas, cabelos macios e brilhantes, olhos grandes, narizes perfeitamente retos com altas pontes parecendo caucasianas, lábios carnudos e faces do tamanho de um punho que são impossíveis de envelhecer. Os homens compartilham características similares com rostos sem pelos e ausência de marcas, corpos longos e magros com abdomens perfeitamente tonificados, com personalidades e sorrisos que transpiram calor e romance do Dia dos Namorados. (KIM, 2012, p. 11, tradução nossa). Por meio de suas performances e aparência “impecáveis”, as estrelas do K-pop se tornam aparato do Estado e passam a fazer parte do projeto de modernidade sul-coreano (KIM, 2012), agindo como embaixadores dos valores da Coreia do Sul no globo. O rigor deste 10 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop padrão corporal, que consagra o corpo asiático, é problematizado em outros contextos racialmente diversos das matrizes asiáticas. Portanto, as “coreografias de gênero” dos Kcovers apontam para pensar quais corporalidades, gestos e ações são consagradas por grupos sul-coreanos; como estas coreografias são reencenadas em diferentes contextos globais, que marcações (gênero, classe social, raça) aparecem a partir das regulações sobre formas corretas de traduzir o K-pop, e em que medida as disputas em torno do virtuosismo dos gestos coreográficos revelam disputas simbólicas entre diferentes atores no contexto das redes sociais digitais. 4 Generificando aegyo Empregando a hashtag “KPOP IN PUBLIC” na ferramenta de buscas do YouTube – rede social digital destinada ao compartilhamento de vídeos – foram selecionados vinte e cinco vídeos para análise inicial. Com o andamento da pesquisa, foi possível destacar três grupos cover que materializam, através de seus corpos, as questões problematizadas por este artigo: (1) The Hive Dance Crew, grupo baseado em Paris, França, formado majoritariamente por homens negros, com destaque para seus integrantes gordos - dentre eles, Yocaste, que costuma assumir as posições de centro nas coreografias; (2) B2, grupo sediado na cidade de São Paulo, formado por homens negros e mestiços, além de um integrante com traços asiáticos; e (3) Heirs, grupo também formado por homens negros e mestiços, sediado na cidade do Recife. Para o debate analítico, é preciso estabelecer um entendimento sobre aegyo, termo usado para englobar timbres e tons de vozes “doces”, expressões faciais suaves e gestos delicados comumente executados pelos ídolos do K-pop numa performance de fofura que, embora seja comum aos ídolos, denota diferenças nos atravessamentos do aegyo em grupos masculinos e femininos. A fofura aparece com frequência nas performances femininas, “assombrando” suas coreografias com uma partitura corporal delicada, contida, de movimentos sutis e, muitas vezes, próximos ao rosto, que constroem um olhar de inocência, fragilidade e jovialidade/infantilidade. Por outro lado, grupos masculinos também são atravessados pelo aegyo, mas costumam fazê-lo em terrenos fora do reino da dança, em entrevistas e outras aparições públicas, gesticulando de forma fofa, a exemplo do “finger heart”, o ato de fazer um coração cruzando os dedos indicador e polegar que se tornou popular entre os ídolos. No palco, é 11 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop comum que os artistas masculinos do K-pop distanciem-se da estética da fofura, performando uma atitude mais agressiva: abdomens definidos são expostos com frequência, enquanto a dança é composta por movimentos mais marcados, que aparentam exigir força, acionando heranças da cultura hip-hop que é parte fundante do K-pop. Há grupos femininos, como BLACKPINK, que são classificados como “girl crush”, evocam uma ideia de “girl power” e de atitude feminina, atrevimento, mas ainda são atravessados pela estética da fofura; parece haver um limite para sua agressividade em cena. Segundo Foster (1998), o processo de criação da coreografia mobiliza o campo semiótico do corpo - as conotações de membros como cabeça, mãos e pélvis - e o situa dentro dos recursos simbólicos do espaço da performance. Fazendo-o, desenha-se um repertório de ações corporais que confirmam ou transgridem um horizonte de expectativas de comportamento generificado. Portanto, é possível pensar no aegyo como uma coreografia da fofura que desenha um horizonte de expectativas e atravessa as performances dos idols sulcoreanos, em especial as coreografias dançadas pelos grupos femininos. A autora aponta que esses dançarinos cultivam seus corpos através do treino e do exercício, podendo, até mesmo, desenvolver uma musculatura pouco característica de corpos femininos ou uma flexibilidade dificilmente associada ao corpo masculino, afinal, o corpo é codificado em termos do sexo, e seus movimentos serão vistos como generificados, acionando códigos comportamentais socialmente inscritos. Diante desta problemática, a questão é reconhecer como o ato de dançar dramatiza e generifica as maneiras de se mover. Se a coreografia está associada a uma noção de roteiro da dança, uma espécie de referencial coletivo, então, quando o dançarino apreende uma coreografia prévia, adequa para suas capacidades corporais – tornando-a “sua”. O deslocamento da coreografia para a corporificação abre espaço para o desvio, fazendo com que os gestos se territorializem nos corpos dançados, fazendo “aparecer” aquilo que era previsto, porém repleto de improbabilidades. Embora a dança dramatize as dissidências entre o corpo e um horizonte de expectativas de comportamento generificado, e faça parte da esfera do não-dito, as suas provocações atingem o campo discursivo da fala. Nesse sentido, os comentários nas publicações de vídeos cover no YouTube se tornam uma fonte interessante para observar os efeitos da performance e a materialização dos desvios nos K-covers. 12 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop 5 Da “fofura” à fechação Observando os comentários numa das publicações de maior visibilidade do grupo B2, a performance cover de Feel Special (KPOP, 2020a), do girl group Twice, destacam-se os comentários valorando o quanto esse grupo de homens não tem vergonha de vestir rosa e nem medo de agir de forma afeminada e serem vistos como gays. Os comentários, muitos deles em língua inglesa apesar de se tratar de um grupo brasileiro, seguem apontando como “diferente dos outros meninos”, o B2 seria, nas palavras dos comentadores do Youtube, “mais femininos que muitas garotas”. A valorização dessa feminilidade performada pelo grupo cover, incomum até para os padrões do corpo feminino, torna possível a aparição do queer, ou o desvio da norma a partir da reconfiguração de convenções genéricas. Aquilo que era o aegyo, ou seja, a “fofura” dos corpos que emergem na indústria sul-coreana, quando coreografado nas diferenças interculturais, se torna “fechação”. A dinâmica da “fechação”, como já apontou Lopes (2002), é um dos traços de grupos gays ou de comunidades trans como recurso a uma existência “escandalosa” ou “fechativa”, parte da recusa à invisibilidade histórica destes grupos. Os roteiros das coreografias de K-pop são atualizados na situação da performance, isto é, ao trazer a coreografia para a corporificação cover, grupos de K-covers “queerizam” os gestos do K-pop, territorializando-os e compondo um quadro de diferenças raciais, sociais e epistêmicas. O grupo Heirs situa-se num lugar similar ao B2. Os comentários sobre sua performance cover de Hi High, do girl group LOONA (2019), destacam a delicadeza dos gestos e a fofura dos integrantes. Contudo, a noção de uma marcação desviante se materializa de forma explícita em comentários como “a gays only event”, “SLAY MY BOYS! The L in LOONA stands for LGBTQ+” e “WIG: SNATCHED”.6 Isto é, para além dos corpos deslizando num horizonte de expectativas de gênero, o uso dessas gírias ligadas à cultura drag e à comunidade LGBTQIA+, reivindica a performance em questão para a esfera queer. O grupo The Hive Dance Crew ao performar um cover de Icy (KPOP, 2020b), do girl group ITZY, faz aparecer outras noções de desvio em cena. Primeiro, observam-se as mesmas questões levantadas nos exemplos anteriores: esses corpos masculinos se apropriando de uma coreografia de gênero categorizada como feminina. Jogadas de cabelo, sorrisos cênicos para a câmera e a energia dos movimentos são ressaltados pelos comentários. O grupo cover é parabenizado pela execução da dança, ou seja, percebe-se, pelos comentários, que há o 6 Traduções: “Um evento das gays”, “ARRASEM MEUS MENINOS! O L de Loona é para as LGBTQ+”, “PERUCA ARREBATADA” (esta, gíria usada pela comunidade LGBTQIA+ para expressar surpresa e admiração). 13 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop reconhecimento de que eles são “fiéis” aos gestos coreográficos “originais”. Por outro lado, essa performance cover também promove um deslizamento das expectativas em relação ao corpo que pode dançar e ao próprio chão em que se dança – a ideia de “política do chão” (LEPECKI, 2011). Este grupo é de origem francesa e executa a coreografia diante de espaços públicos da capital da França, Paris. Esta dimensão territorial, sobretudo em função de sua carga clichê, torna-se um operador analítico importante, sobretudo quando “dançada” por homens negros, mestiços e gordos. Uau! Devo desde já parabenizar sua coragem. Nunca é fácil de se produzir em público, de assumir gostar do kpop e ainda menos de dançar uma música de girl group sendo um rapaz. Quando vejo a mentalidade francesa de hoje, acho isso hiper corajoso da sua parte e é realmente prazeroso de ver e assistir. Parabéns! Você realmente prova que a música e a dança não têm sexo, idade, cor nem língua. Eu vejo com frequência seus covers de dança e admito que invejo um pouco como você mostra às pessoas que não, o kpop não é apenas para adolescentes de 12 anos. Continue assim :D (KPOP, 2020b, tradução nossa). O corpo negro e gordo de um dos integrantes, dançando no meio de Paris, desliza sobre o chão dessa cidade símbolo do bon vivant europeu, não somente ressignificando os movimentos coreográficos do K-pop, mas também reivindicando uma outra forma de ocupar os clichês e ideais de modernidade. Traços de orientalidade e negritude são dançados num cenário ocidental, marcado pelo eurocentrismo e pela branquitude. Através de comentários, percebe-se que o K-pop já é reconhecido como espaço de tensionamento de normas generificadas para além de uma comparação com as regras da sociedade sul-coreana – embora as marcações de sua origem sejam constantemente acionadas. 6 Considerações finais Os grupos de K-covers que contam com homens negros, mestiços, gordos e, portanto, dissidentes dos padrões de corporalidades ideiais da indústria sul-coreana são julgados nos ambientes de compartilhamentos de vídeos, tanto por uma fidelidade às coreografias quanto pela capacidade de reencenação e territorialização dos gestos dos artistas de K-pop em contextos distintos. Sustenta-se, então, a ideia de que, apesar de cumprirem os movimentos desenhados pelas coreografias do K-pop, estes K-covers apresentam uma outra ideia de atitude que circunda o imaginário sobre as comunidades LGBTQIA+: a da bicha, da lacração, 14 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Coreografias de gênero em covers de K-pop close e da afetação - conjunto de acionamentos performáticos que se materializam na interculturalidade, ou seja, na zona de contato dos materiais simbólicos do K-pop com contextos culturais diversos. A proposta deste artigo é reconhecer as marcas, traços e materialidades estéticas e culturais de fenômenos da cultura pop como dotados de um duplo movimento especulativo: ao mesmo tempo que são parte integrante de indústrias do entretenimento que se inserem numa lógica global, há “coreografias” e movências que promovem o aparecimento de roteiros performáticos (TAYLOR, 2013) improváveis nas zonas de interculturalidades. O K-pop, ao se deslocar mundo afora, promove o aparecimento de traços performáticos, de sujeitos, marcações de classe, raça e gênero, imprevistos, deslocando para o campo das culturas os embates de ordens macro e também micropolíticas. 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Gender choreographies in K-pop covers Abstract K-pop cover groups (K-covers) embody their South Korean idols in online and offline choreographic practices while, from the specificity of their bodies, “choreograph gender” in their performance appearances. The relevance of this investigation is to present theoretical and methodological tools for the analysis of pop culture phenomena (covers), from the intersections of the notions of interculturality and gender studies. It presents, as methodology, the analysis of videos of K-pop cover groups in which LGBTQIA + young people (black, fat and trans) re-enact choreography of K-pop girl groups promoting intercultural erasures. As a result, it presents the resignification of aegyo (here thought of as “cuteness” by female K-pop groups) that, choreographed by LGBTQIA + young people in contexts outside South Korea, operate under the logic of fierceness and “slayness”. Keywords Pop culture; K-pop; Interculturality; Gender; Performance Autoria para correspondência Thiago Soares thiago.soares@ufpe.br Como citar SOARES, Thiago; SILVA, Lúcio Souza Ferreira da. Coreografias de gênero em covers de K-Pop. Intexto, Porto Alegre, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437 Recebido em 04/01/2021 Aceito em 03/03/2022 17 Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437