Coreografias de gênero em covers de K-pop
Coreografias de gênero em
covers de K-pop
Thiago Soares
Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Comunicação Social, Programa de Pós-Graduação
em Comunicação, Recife, PE, Brasil
ORCID https://orcid.org/0000-0002-1305-4273
Lúcio Souza Ferreira da Silva
Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Recife, PE, Brasil
ORCID https://orcid.org/0000-0001-9622-3214
Resumo
Grupos covers de K-pop (K-covers) corporificam seus ídolos sulcoreanos em práticas coreográficas online e offline ao mesmo
tempo que, a partir da especificidade de seus corpos,
coreografam o gênero em suas aparições performáticas. A
relevância desta investigação está em apresentar ferramentas
teórico-metodológicas para a análise de fenômenos da cultura
pop (os covers), a partir das intersecções das noções de
interculturalidade e dos estudos de gênero. Apresenta, como
metodologia, a análise de vídeos de grupos covers de K-pop em
que jovens LGBTQIA+ (negros, gordos e trans) reencenam
coreografias de girl groups (grupos de garotas) de K-pop
promovendo rasuras performáticas interculturais. Como
resultado, apresenta a ressignificação do aegyo (aqui pensado
como “fofura” dos grupos femininos de K-pop) que, coreografado
por jovens LGBTQIA+ em contextos fora da Coreia do Sul, operam
sob a lógica do close, da fechação e do lacre.
Palavras-chave
Cultura pop; K-pop; Interculturalidade; Gênero; Performance
1 Introdução
É através da presença de grupos de jovens dançando coreografias de música pop
coreana nas praças, ruas e locais públicos das cidades que se percebe a capilaridade do K-pop
no contexto global. A partir da tentativa de emular as coreografias, os gestos e o estilo de vida
dos ídolos de K-pop, as práticas de cover (ou seja, como dispõe no dicionário, “pessoa ou
grupo que imita um artista ou banda famosa”) são umas das principais dimensões
performáticas no K-pop na medida em que acionam a corporificação (embodiment) das
1
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
materialidades expressivas deste gênero musical. Chamamos de “K-covers” os grupos que
praticam, em seu cotidiano, ações que remetem performaticamente a ídolos de K-pop,
tentando construir através de pistas, resíduos e informações, uma vivência em rede que se
conecta àquela encenada midiaticamente pelos artistas de pop coreano. No Brasil, a prática
do K-cover se firma em meados dos anos 2010, com a emergência de um nicho de jovens
interessados na cultura pop sul-coreana, principalmente, no ambiente digital, tendo os vídeos
de dance practice1 como um dos possíveis impulsionadores do fenômeno (URBANO;
KAUTSCHER, 2018). São as convenções ligadas às culturas tradicionais e pop japonesas2 que
estabelecem a formação de uma cena K-cover, através da reiteração da importância de
concursos e de sociabilidade dentro desses espaços, numa relação que também é atravessada
pela presença do K-pop na trilha sonora dos animes japoneses, até então, elementos centrais
nesses eventos (URBANO; KAUTSCHER, 2018).
Para além da ocupação espacial urbana, grupos juvenis de K-cover se espraiam nas
redes sociais digitais, compartilhando vídeos com suas coreografias e disputando atenção,
curtidas e comentários em plataformas de compartilhamento de vídeos como o YouTube. A
criação de desafios (challenges) para que K-covers – com diferentes graus de formalização –
se engajem, mobilizando fãs e admiradores através da criação de vídeos coreográficos
compartilhados em diferentes redes sociais digitais, é uma prática na circulação de produtos,
valores e afetos. Este artigo é parte das reflexões de uma pesquisa em curso sobre K-covers
da Região Metropolitana do Recife (RMR), que abriga uma cena cultural em que covers de K-
pop participam desde pequenas competições dentro de shopping centers até eventos mais
complexos realizados em centros de convenções3.
Como fenômeno integrante das práticas de transculturação a partir da globalização, o
K-pop se particulariza quando em contato com diferentes contextos. Na Tailândia, como
atesta a análise de Käng (2014), os K-covers fazem emergir a figura do “sissy”, o jovem
afeminado e magro que, de “super fã” de K-pop passa a figurar como “proto-idol”4, evocando
o processo de celebrização de jovens gays afeminados no contexto do Sudeste Asiático. Laurie
1
2
3
4
Vídeos dos ídolos do K-pop praticando suas coreografias. Geralmente são utilizados pelos grupos K-cover para aprenderem a
coreografia e a distribuição dos artistas no palco.
Como o Sana Fest no Ceará, Anime Friends, em São Paulo e SuperCon, em Pernambuco, entre outros.
Até o ano de 2019, os locais preferidos para reunião e ensaio dos diversos grupos covers da Região Metropolitana do Recife
(RMR) eram os parques da Jaqueira e Dona Lindu, ambos localizados em áreas nobres da cidade, ou o Bairro do Recife, no
centro da capital. Fora da RMR, destaca-se a presença do K-cover em Caruaru, situada na região agreste do Estado e conhecida
como “Capital do Forró”.
O termo “idol” se refere a celebridade coreana que se configura por amplo treinamento e rígidas etapas de audição por
agências de talentos. Adota-se o termo “proto-idol” como um modelo de idol replicado em diversos contextos midiáticos
asiáticos.
2
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
(2016) reconhece que, no processo de globalização, o K-pop, ao se capilarizar por contextos
ocidentais, faz emergir novas arenas de disputa sobre o feminino, na medida em que
estabelece novos horizontes comparativos com feminilidades vividas nas Américas.
Na América Latina, faz emergir as particularidades da história colonial, na medida em
que, a partir do espaço especulativo em que os covers emulam seus ídolos coreanos, “faz
aparecer” diferentes corpos, em sua grande maioria de pessoas mestiças, revelando o
passado de mestiçagem e hibridismo já evocado por Taylor (2013) na história cultural das
Américas. Há modulações específicas no contexto mexicano: ao evocar os K-covers no
contexto da Cidade do México, Torres (2020) ressalta a existência de aspectos morais ligados
a questões de gênero na identificação de diferentes padrões de beleza e sexualização de
jovens. Para o autor, o “horizonte moral” da sociedade sul-coreana emerge como uma
dimensão comparativa para o tratamento de aspectos ligados a vivências urbanas juvenis
mexicanas.
Grande parte dos estudos sobre K-pop desenvolvidos no contexto latino-americano
apresentam como foco as problemáticas de gênero, seja a partir da corporificação de
“asianidades” em corpos ocidentais; de dilemas morais sobre a sexualização, infantilização e
erotização de corpos de jovens adolescentes; do diálogo com masculinidades asiáticas que,
quando postas em perspectiva, ressaltam problemáticas queer ou desviantes, e sobretudo a
partir do reconhecimento de um conjunto de mal-entendidos culturais (CANCLINI, 2009) que
emergem nos processos de transculturalidade. Estes estudos encontram reverberação nos
“problemas de gênero” dos K-covers da cidade de Recife: ao contrário dos corpos
consagrados no centro da indústria musical sul-coreana, que prezam pela magreza e pele
clara, o que se evidencia nos grupos recifenses é a larga presença de jovens mestiços, negros,
gordos e LGBTQIA+5, apresentando rasuras raciais típicas também dos fenômenos
transnacionais. Os problemas de gênero deslocados para a abordagem sobre corpos
transculturais como o caso dos K-covers estão inscritos no que Butler (2009) chama de
“sistemas regulatórios generificados”, ou seja, a partir de um conjunto de práticas,
espelhamentos e gestos miméticos que traduzem um certo senso de adequação e
“normalidade” para tais corpos. As regulações implicam no reconhecimento das normas, que
podem ou não serem explícitas, operando como princípio normalizador da prática social e
dos efeitos dramáticos no cotidiano.
5
Performance cover do grupo Glamour no Festival da Cultura Coreana em Pernambuco ilustra bem quais corpos habitam a
cena K-pop local (RANIA, 2018).
3
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
Este artigo pretende debater questões de gênero em grupos covers de K-pop a partir
do reconhecimento de que a dança é um lugar privilegiado para o debate sobre
performatividade de gênero, na medida em que as marcações regulatórias dos gêneros são
“colocadas em cena”, dançadas, generificando corpos a partir de movimentos, gestos e,
portanto, coreografias. Utiliza-se o conceito de “coreografias de gênero” (FOSTER, 1998),
para quem a performatividade seria tanto uma reiteração de normas quanto a dissimulação
das convenções na repetição, para se debater a atuação de grupos covers de K-pop como um
conjunto de movimentos deslizantes: (1) entre performances consagradas de grupos sulcoreanos e suas reencenações em diferentes contextos globais a partir de vídeos
disponibilizados em redes sociais digitais; (2) de deslocamentos de marcações de
orientalidades (URBANO, 2018) em esfera global e um conjunto de mal-entendidos culturais
que reverberam em gestos regulatórios sobre formas “corretas” de traduzir corporalmente o
K-pop e (3) sobre as disputas em torno do virtuosismo e diferentes formas de adesão e
consagração de covers em redes sócio-técnicas digitais.
A metodologia presente neste artigo conjuga o levantamento de ações em rede a
partir da identificação de pontos de convergência sobre estas ações através das hashtags em
plataformas audiovisuais. Designou-se a hashtag “KPOP IN PUBLIC” no YouTube como
dispositivo agregador de vídeos de covers. O interesse específico da pesquisa é pela aparição
de covers realizados por homens negros e mestiços que se encontrem desviantes no tocante
aos padrões de corpos da indústria sul-coreana. A hipótese que se desenha é a de que o K-pop
permite que grupos de jovens homens fabulem asianidades pop em suas coreografias ao
mesmo tempo que problematizam matrizes culturais identitárias na medida em que
aparecem em cena. Ou seja, estamos diante de problemas de performance (TAYLOR, 2013)
que
narrativizam
aparições
em
espaços
públicos,
promovendo
simplificações
e
domesticações, mas também tensionamentos em torno do próprio ato de aparecer em
público (BUTLER, 2018).
Este artigo está dividido em três partes. Na primeira, levanta-se um conjunto de
problemas de gênero que dizem respeito ao consumo de K-pop no contexto brasileiro.
Aponta-se que a interculturalidade (CANCLINI, 2009) é uma importante rubrica teórica para
complexificar diferenças, negociações, empréstimos e conflitos deste fenômeno em contextos
distantes da sua origem, na Coreia do Sul. Em seguida, propõe-se pensar a dança como um
lugar privilegiado para se debater estas questões de gênero, na medida em que a
generificação dos corpos opera através daquilo que Susan Leigh Foster (1998) chama de
4
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
“gestos de gênero”, reconhecendo como a coreografia é uma importante metáfora para
identificação de mudanças tanto nos âmbitos privados, mas sobretudo públicos. Por fim,
propõe-se o mapeamento de gestos coreográficos de K-covers que ressaltam as tensões da
interculturalidade, habitando um entre-lugar que, embora mimetize coreografias geradas por
grupos de música pop coreana, também ressalta diferenças, desigualdades e assimetrias
presentes no mundo global.
2 Interculturalidade e gênero
Como fenômeno da cultura jovem, estudar o K-pop significa tatear por “dentros e
foras” do fenômeno, em função de sua natureza cifrada, específica e repleta de códigos –
acentuados a partir também do alto grau de imersão de fãs e admiradores e dinâmicas da
cultura digital. Os “dentros e foras” do K-pop são lugares epistemológicos em que se
formulam perguntas e problemas de investigação, variando a partir de diferentes lugares de
fala (RIBEIRO, 2017) e pontos de vista (COLLINS, 2019) de onde se encenam as questões.
Pensar diferentes lugares de observação de fenômenos que orbitam sobre o K-pop permite
construir problemas a partir tanto de vivências específicas de fãs, suas disputas e jogos
performáticos em rede, quanto diante de questões mais gerais e amplas – “de fora” – no que
tange às semelhanças e diferenças deste gênero musical dentro de uma história da cultura
pop.
A música pop sul-coreana (K-pop) é a resposta do pequeno país peninsular no jogo de
disputas da cultura pop. Num cenário de crise econômica a partir da recessão que atingiu os
países que integravam os Tigres Asiáticos em 1997 (KIM, 2012) e sem dispor de grandes
faixas de terra, a Coreia do Sul decide investir na cultura como uma de suas principais
commodities e, assim, surge a complexa indústria do K-pop, que treina, gerencia e produz
artistas pop em larga escala. A expansão do pop oriental está associada a “um projeto ativo de
construção de identidades nacionais e regionais, com base em um projeto que alia métodos
baseados na lógica de mercado a objetivos políticos” (ALBUQUERQUE; URBANO, 2015, p.
253). Isto é, a cultura pop conjuga a lógica econômica à política, ancorada nos conceitos de
soft power (MARTEL, 2012) e nation branding (construção de marca de nações). A Coreia do
Sul, especificamente, se utiliza de elementos genéricos e estratégias de hibridização a fim de
propiciar um sentimento de proximidade cultural que converse tanto com os demais países
do Extremo-Oriente quanto com os do Ocidente.
5
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
É neste “entre” as diferentes partes que constituem o globo que os problemas de
interculturalidade emergem, na medida que a distância, as forças midiáticas e as resistências
locais permitem “incomensurabilidades, incompatibilidades e intradutibilidades das
culturas” (CANCLINI, 2009, p. 18). Ao abordar os problemas da interculturalidade a partir da
emergência de pesquisas sociológicas que tratam sobre fenômenos oriundos da globalização,
Canclini (2009) propõe pensar sobre negociações epistêmicas e morais que ocorrem entre
culturas, dentro das culturas e também a partir de traços individuais dos sujeitos, fazendo
com que discrepâncias, ambiguidades e conflitos emerjam. As questões morais, destacadas
por Canclini (2009), são especialmente importantes para tratar dos novos problemas da
interculturalidade, na medida em que um “mundo pós-ocidental” (STUENKEL, 2019) começa
a se desenhar a partir da crise econômica nos Estados Unidos de 2008 e do amplo
crescimento econômico da China, fazendo emergir forças tanto econômicas quanto políticas e
culturais do Oriente. O embate de sociedades “tradicionais” do Oriente com as “cristãs” do
Ocidente colocam em cena disputas que passam por modos de debater as diferenças,
principalmente no terreno dos costumes e das lógicas morais.
Neste sentido, é fundamental perceber movimentos internos sobre interculturalidade
no K-pop tanto dentro da própria Ásia, quanto externos em relação ao Ocidente. Os produtos
culturais pop sul-coreanos ganharam popularidade de forma expressiva dentro da Ásia na
década de 1990, dando origem a Hallyu Wave, a Onda Coreana (URBANO; KAUTSCHER,
2018), expandindo-se, com uma série de tensões, para países como Japão, China, entre outros.
Anos mais tarde, serão empreendidos esforços para atingir o mercado ocidental, a exemplo
do álbum em inglês lançado pela solista BoA em 2009. O ponto que marca significativamente
a entrada do K-pop nas paradas musicais ocidentais é o sucesso de “Gangnam Style” (2012),
faixa composta e interpretada pelo rapper PSY, cujo videoclipe atinge a marca de ser o
primeiro vídeo a conquistar um bilhão de visualizações na plataforma do YouTube (G1,
2012).
A presença do K-pop no Ocidente e sua capilaridade na cultura pop podem ser vistas
nas turnês realizadas pelos grupos BTS e BLACKPINK, que percorreram grandes cidades da
América do Norte e Europa em 2019. Os dois grupos (o primeiro, uma boy band; o segundo,
uma girl band) auxiliam a pensar a interculturalidade em termos de indústria da música, na
medida em que consagram um formato largamente explorado na cultura pop ocidental: os
grupos formados por meninos (boy bands) e meninas (girl bands). Uma história da música
pop no Ocidente permite visualizar momentos em que boy bands e girl bands foram
6
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
importantes mediadores para “atravessamentos culturais” (MARTEL, 2012), na busca de
novos mercados e também para a incorporação de diferenças no âmbito da indústria do
entretenimento. Martel (2012) lembra que uma das estratégias da gravadora Motown para
promover cruzamentos culturais para consumo da música negra por plateias brancas na
década de 1960, num Estados Unidos racialmente segregado, foi o amplo uso deste formato
de grupos de jovens negros separados por gênero. Jackson 5 e The Supremes, grupos
musicais formados por jovens homens negros e mulheres negras, foram, nas palavras do
sociólogo, formas de atenuar as diferenças dos corpos negros para seu amplo consumo no
contexto de acirramento racial em âmbito midiático.
Pensando a interculturalidade como a dimensão de interação e diálogo, mas também
exclusão e domesticação entre culturas, propõe-se debater como o formato de boy bands e
girl bands integra tanto uma história dentro da indústria musical e do entretenimento, quanto
de uma série de negociações de cunho geopolítico. Ainda na década de 1990, grupos como
New Kids on the Block, Five, Westlife e Spice Girls foram centrais na indústria musical da
Inglaterra a partir da relação com o fenômeno chamado de Cool Brittania, de orgulho
britânico a partir da ostentação de bandeiras e do nacionalismo.
É dentro da indústria da música e do entretenimento que se propõe pensar os Kcovers como parte integrante do conjunto de práticas interculturais da territorialização do Kpop em diferentes contextos globais, na medida em que, como alerta Canclini (2009), deve-se
prestar atenção às misturas, hibridizações, mas sobretudo “mal-entendidos” que vinculam
grupos, ou seja, problematizar como se dão as apropriações materiais e simbólicas em suas
reinterpretações. “Não só as misturas, mas também as barreiras que se entrincheiram [...]”
(CANCLINI, 2009, p. 23).
Observar as interculturalidades implica em problematizar também questões de
gênero, uma vez que ele é atravessado por enquadramentos culturais. Generificar corpos,
atribuir-lhes sentidos e sensibilidades, passa pelo reconhecimento de movimentos,
dramaticidades e teatralidades que se dão nos campos de disputa das culturas. A questão não
é apenas perceber como noções de masculino e feminino são engendradas por atores sociais
em contextos interculturais, mas, sobretudo, pensar sobre os movimentos “coreográficos”
que permitem que o gênero apareça e se estabilize – embora esteja sempre passível de novas
instabilidades.
É sobre este argumento “coreográfico” do gênero que Susan Foster (1998) apresenta
críticas a Judith Butler (2009) pela filiação excessivamente linguística do conjunto de teorias
7
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
sobre performatividade formuladas pela filósofa. A “coreografia do gênero”, como defendida
por Foster, evoca um corpo sempre situado e em situação, que recusaria a estabilidade e
estaria apto e aberto a fenômenos externos (que chamamos de “culturais”) em seus
deslizamentos gestuais. Neste sentido, as questões de gênero moventes nos processos de
interculturalidades apontam para uma fenomenologia das corporalidades, em que se
evidenciam menos na essência dos corpos e mais nas políticas das interpretações.
As coreografias de gênero fazem perceber “movimentos de existência” entre culturas
em que fazer, dramatizar e reproduzir gestos de outras culturas implicam sempre numa
dupla perspectiva: o que permanece dos resíduos culturais mediados nos corpos, mas
também o que se altera e se converte em outras matrizes expressivas generificadas. Observar
os K-covers, portanto, permite reconhecer a existência de matrizes miméticas que fazem
aparecer as asianidades desejadas, bem como as conversões, dissidências e contrastes típicos
das interculturalidades.
3 Performance e coreografia de gênero
Tomando a interculturalidade como espaço de possíveis nas encenações dos covers
de K-pop, precisamos pensar sobre a dimensão material destes acionamentos corporais.
Cabe, portanto, trazer à tona o debate sobre performance a partir da ideia de que se trata de
“atos de transferência vitais, transmitindo o conhecimento, a memória e um sentido de
identidade social por meio do que Richard Schechner denomina comportamento reiterado”
(TAYLOR, 2013, p. 27). Para Taylor (2013), performances desempenham papel importante na
conservação da memória e consolidação de identidades em sociedades letradas, semiletradas
e digitais, na medida em que funcionam como repertórios contidos nos corpos. Heranças
eurocêntricas dos campos da antropologia e do teatro, e o logocentrismo ocidental que
pairam sobre os estudos da performance são debatidos pela autora, que denuncia a
legitimação da escrita em relação a outros sistemas epistêmicos, apontando para a
predominância do arquivo (cartas, livros, registros materiais) supostamente duradouro nas
epistemologias ocidentais, em relação ao repertório (gestos, dança, canto, entre outros atos)
visto como conhecimento efêmero, não-reproduzível.
As noções de performance suscitadas por Taylor (2013) nos permitem estabelecer a
lente metodológica para análise de eventos que envolvem atos performáticos, a exemplo de
um show de música no qual um artista se apresenta num espaço-tempo delimitado. “Tais
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
8
Coreografias de gênero em covers de K-pop
artistas reúnem fãs, frequentadores, curiosos e apreciadores de música que, por sua vez,
performatizam maneiras de estar, de fruir e de sentir a música, corporificando resistências,
obediências, cidadanias, gêneros, etnicidades, entre taoutros aspectos.” (AMARAL; SOARES;
POLIVANOV, 2018, p. 10).
Pensar as performances cover de K-pop inclui debater, portanto, a formação de
repertórios coletivos que têm como arquivos, em grande parte, videoclipes e apresentações
ao vivo, realizadas por grupos de sul-coreanos e disponibilizados em plataformas de vídeo e
em redes sociais digitais. As performances de K-covers são tentativas de corporificação de
arquivos visuais de K-pop a partir das marcas territoriais, geográficas, políticas e estéticas
disponíveis. Neste sentido, visualizar os espaços entre “arquivos” e “repertórios” no que
tange os K-covers auxilia a reconhecer as diferenças, desigualdades, assimetrias e
ambiguidades presentes em processos globais. A ideia de diferença aparece como um
importante marcador das utopias possíveis nestes embates, diante das imagens e sons
arquivados em audiovisual pela indústria do pop sul-coreano e a corporificação destes
arquivos gerando um território afetivo e simbólico em que fãs e covers fabulam sobre seus
ídolos orientais.
Falar dos K-covers inclui, principalmente, visualizar corpos que estão a dançar. Por
isso, ao debate sobre performance proposto por Taylor (2013) acrescentamos o de
“coreografia de gênero” a partir de Foster (1998). A proposta da autora é debater gênero a
partir da metáfora da dança, uma vez que corpos em movimento seriam mais propícios a
apresentarem os “não-ditos” e os silêncios que não seriam enquadráveis no campo mais
“sedimentado” do discurso. Foster (1998) debate as coreografias como enquadramentos,
formas de ler e interpretar o social na medida em que corpos que dançam o “incorporam”, ou
seja, as marcas das sociedades estariam atravessadas nas corporalidades a partir também do
que André Lepecki (2011) chama de “política do chão” – que corpo emerge do chão que pisa,
do território, do clima e da geografia implicada.
Para Foster (1998), mudanças coreográficas ajudariam a compreender as mudanças
sociais, suas reencenações e disposições. A autora chama atenção para como a dança
presentifica momentos sociais (a criação das normas do balé clássico em consonância com
uma série de racionalismos presentes no século XIX) em diferentes contextos (do
conhecimento erudito de matriz europeia, para a relação entre dança e protesto no contexto
de segregação racial nos Estados Unidos, passando pelas dinâmicas ritualísticas em
sociedades africanas, entre outros). A metáfora da dança permite reconhecer que
9
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
coreografias são feitas com corpos em constante devir, realizando movimentos inacabados
que podem ser reengendrados ou atualizados, mas nunca finalizados – assim como a
dimensão da performatividade.
É nesta articulação entre “coreografia” e “gênero” a partir da performatividade que
Foster (1998) parece fazer a sua mais importante contribuição: a performatividade
apresentaria as dimensões regulatórias dos gêneros, no entanto, estas regulações são
convencionadas, não são “vistas”, antes são incorporadas e vividas no cotidiano. Para a
autora, pensar a coreografia de gênero seria da ordem de reconhecer movimentos constantes
que nem sempre são apreendidos como coreográficos (um caminhar pode ser de uma ordem
coreográfica ou não). No entanto, é no deslocamento e no enquadramento como performance
que tais gestos aparecem como “coreografia de gênero”, deixam marcações, rastros, e são
tomados como ancoragens compreensíveis sobre a estabilidade da performance de gênero.
Este debate interessa ao estudo sobre K-covers na medida em que pensar
coreografias de gênero significa debater tanto as questões de ordens interculturais quanto de
gênero, permitindo que os corpos dançados situem entre-lugares no tecido social entre
diferentes atores e admiradores do K-pop. Embora as “coreografias de gênero” pareçam dar
conta de intangibilidades e movimentos constantes que parecem fazer aparecer e
desaparecer as marcações, em fenômenos como o K-pop estas marcações precisam ser
pensadas de forma mais estável. A fim de entender a consagração dos corpos padrões na
indústria do K-pop, Kim (2012) sugere visualizar os videoclipes comerciais da Lotte
Department Store e Dutty Free Korea, que trazem elencos compostos por artistas de grande
sucesso e rentabilidade em suas respectivas áreas da indústria musical sul-coreana.
Eles todos são belos, sem falhas e detém os padrões estéticos da Hallyu
coreana. As mulheres têm pele de porcelana, figuras esbeltas, cabelos
macios e brilhantes, olhos grandes, narizes perfeitamente retos com altas
pontes parecendo caucasianas, lábios carnudos e faces do tamanho de um
punho que são impossíveis de envelhecer. Os homens compartilham
características similares com rostos sem pelos e ausência de marcas, corpos
longos e magros com abdomens perfeitamente tonificados, com
personalidades e sorrisos que transpiram calor e romance do Dia dos
Namorados. (KIM, 2012, p. 11, tradução nossa).
Por meio de suas performances e aparência “impecáveis”, as estrelas do K-pop se
tornam aparato do Estado e passam a fazer parte do projeto de modernidade sul-coreano
(KIM, 2012), agindo como embaixadores dos valores da Coreia do Sul no globo. O rigor deste
10
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
padrão corporal, que consagra o corpo asiático, é problematizado em outros contextos
racialmente diversos das matrizes asiáticas. Portanto, as “coreografias de gênero” dos Kcovers apontam para pensar quais corporalidades, gestos e ações são consagradas por grupos
sul-coreanos; como estas coreografias são reencenadas em diferentes contextos globais, que
marcações (gênero, classe social, raça) aparecem a partir das regulações sobre formas
corretas de traduzir o K-pop, e em que medida as disputas em torno do virtuosismo dos
gestos coreográficos revelam disputas simbólicas entre diferentes atores no contexto das
redes sociais digitais.
4 Generificando aegyo
Empregando a hashtag “KPOP IN PUBLIC” na ferramenta de buscas do YouTube –
rede social digital destinada ao compartilhamento de vídeos – foram selecionados vinte e
cinco vídeos para análise inicial. Com o andamento da pesquisa, foi possível destacar três
grupos cover que materializam, através de seus corpos, as questões problematizadas por este
artigo: (1) The Hive Dance Crew, grupo baseado em Paris, França, formado majoritariamente
por homens negros, com destaque para seus integrantes gordos - dentre eles, Yocaste, que
costuma assumir as posições de centro nas coreografias; (2) B2, grupo sediado na cidade de
São Paulo, formado por homens negros e mestiços, além de um integrante com traços
asiáticos; e (3) Heirs, grupo também formado por homens negros e mestiços, sediado na
cidade do Recife.
Para o debate analítico, é preciso estabelecer um entendimento sobre aegyo, termo
usado para englobar timbres e tons de vozes “doces”, expressões faciais suaves e gestos
delicados comumente executados pelos ídolos do K-pop numa performance de fofura que,
embora seja comum aos ídolos, denota diferenças nos atravessamentos do aegyo em grupos
masculinos e femininos. A fofura aparece com frequência nas performances femininas,
“assombrando” suas coreografias com uma partitura corporal delicada, contida, de
movimentos sutis e, muitas vezes, próximos ao rosto, que constroem um olhar de inocência,
fragilidade e jovialidade/infantilidade.
Por outro lado, grupos masculinos também são atravessados pelo aegyo, mas
costumam fazê-lo em terrenos fora do reino da dança, em entrevistas e outras aparições
públicas, gesticulando de forma fofa, a exemplo do “finger heart”, o ato de fazer um coração
cruzando os dedos indicador e polegar que se tornou popular entre os ídolos. No palco, é
11
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
comum que os artistas masculinos do K-pop distanciem-se da estética da fofura, performando
uma atitude mais agressiva: abdomens definidos são expostos com frequência, enquanto a
dança é composta por movimentos mais marcados, que aparentam exigir força, acionando
heranças da cultura hip-hop que é parte fundante do K-pop. Há grupos femininos, como
BLACKPINK, que são classificados como “girl crush”, evocam uma ideia de “girl power” e de
atitude feminina, atrevimento, mas ainda são atravessados pela estética da fofura; parece
haver um limite para sua agressividade em cena.
Segundo Foster (1998), o processo de criação da coreografia mobiliza o campo
semiótico do corpo - as conotações de membros como cabeça, mãos e pélvis - e o situa dentro
dos recursos simbólicos do espaço da performance. Fazendo-o, desenha-se um repertório de
ações corporais que confirmam ou transgridem um horizonte de expectativas de
comportamento generificado. Portanto, é possível pensar no aegyo como uma coreografia da
fofura que desenha um horizonte de expectativas e atravessa as performances dos idols sulcoreanos, em especial as coreografias dançadas pelos grupos femininos. A autora aponta que
esses dançarinos cultivam seus corpos através do treino e do exercício, podendo, até mesmo,
desenvolver uma musculatura pouco característica de corpos femininos ou uma flexibilidade
dificilmente associada ao corpo masculino, afinal, o corpo é codificado em termos do sexo, e
seus movimentos serão vistos como generificados, acionando códigos comportamentais
socialmente inscritos. Diante desta problemática, a questão é reconhecer como o ato de
dançar dramatiza e generifica as maneiras de se mover.
Se a coreografia está associada a uma noção de roteiro da dança, uma espécie de
referencial coletivo, então, quando o dançarino apreende uma coreografia prévia, adequa
para suas capacidades corporais – tornando-a “sua”. O deslocamento da coreografia para a
corporificação abre espaço para o desvio, fazendo com que os gestos se territorializem nos
corpos dançados, fazendo “aparecer” aquilo que era previsto, porém repleto de
improbabilidades. Embora a dança dramatize as dissidências entre o corpo e um horizonte de
expectativas de comportamento generificado, e faça parte da esfera do não-dito, as suas
provocações atingem o campo discursivo da fala. Nesse sentido, os comentários nas
publicações de vídeos cover no YouTube se tornam uma fonte interessante para observar os
efeitos da performance e a materialização dos desvios nos K-covers.
12
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
5 Da “fofura” à fechação
Observando os comentários numa das publicações de maior visibilidade do grupo B2,
a performance cover de Feel Special (KPOP, 2020a), do girl group Twice, destacam-se os
comentários valorando o quanto esse grupo de homens não tem vergonha de vestir rosa e
nem medo de agir de forma afeminada e serem vistos como gays. Os comentários, muitos
deles em língua inglesa apesar de se tratar de um grupo brasileiro, seguem apontando como
“diferente dos outros meninos”, o B2 seria, nas palavras dos comentadores do Youtube, “mais
femininos que muitas garotas”.
A valorização dessa feminilidade performada pelo grupo cover, incomum até para os
padrões do corpo feminino, torna possível a aparição do queer, ou o desvio da norma a partir
da reconfiguração de convenções genéricas. Aquilo que era o aegyo, ou seja, a “fofura” dos
corpos que emergem na indústria sul-coreana, quando coreografado nas diferenças
interculturais, se torna “fechação”. A dinâmica da “fechação”, como já apontou Lopes (2002),
é um dos traços de grupos gays ou de comunidades trans como recurso a uma existência
“escandalosa” ou “fechativa”, parte da recusa à invisibilidade histórica destes grupos.
Os roteiros das coreografias de K-pop são atualizados na situação da performance,
isto é, ao trazer a coreografia para a corporificação cover, grupos de K-covers “queerizam” os
gestos do K-pop, territorializando-os e compondo um quadro de diferenças raciais, sociais e
epistêmicas. O grupo Heirs situa-se num lugar similar ao B2. Os comentários sobre sua
performance cover de Hi High, do girl group LOONA (2019), destacam a delicadeza dos gestos
e a fofura dos integrantes. Contudo, a noção de uma marcação desviante se materializa de
forma explícita em comentários como “a gays only event”, “SLAY MY BOYS! The L in LOONA
stands for LGBTQ+” e “WIG: SNATCHED”.6 Isto é, para além dos corpos deslizando num
horizonte de expectativas de gênero, o uso dessas gírias ligadas à cultura drag e à
comunidade LGBTQIA+, reivindica a performance em questão para a esfera queer.
O grupo The Hive Dance Crew ao performar um cover de Icy (KPOP, 2020b), do girl
group ITZY, faz aparecer outras noções de desvio em cena. Primeiro, observam-se as mesmas
questões levantadas nos exemplos anteriores: esses corpos masculinos se apropriando de
uma coreografia de gênero categorizada como feminina. Jogadas de cabelo, sorrisos cênicos
para a câmera e a energia dos movimentos são ressaltados pelos comentários. O grupo cover
é parabenizado pela execução da dança, ou seja, percebe-se, pelos comentários, que há o
6
Traduções: “Um evento das gays”, “ARRASEM MEUS MENINOS! O L de Loona é para as LGBTQ+”, “PERUCA ARREBATADA”
(esta, gíria usada pela comunidade LGBTQIA+ para expressar surpresa e admiração).
13
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
reconhecimento de que eles são “fiéis” aos gestos coreográficos “originais”. Por outro lado,
essa performance cover também promove um deslizamento das expectativas em relação ao
corpo que pode dançar e ao próprio chão em que se dança – a ideia de “política do chão”
(LEPECKI, 2011). Este grupo é de origem francesa e executa a coreografia diante de espaços
públicos da capital da França, Paris. Esta dimensão territorial, sobretudo em função de sua
carga clichê, torna-se um operador analítico importante, sobretudo quando “dançada” por
homens negros, mestiços e gordos.
Uau! Devo desde já parabenizar sua coragem. Nunca é fácil de se produzir
em público, de assumir gostar do kpop e ainda menos de dançar uma música
de girl group sendo um rapaz. Quando vejo a mentalidade francesa de hoje,
acho isso hiper corajoso da sua parte e é realmente prazeroso de ver e
assistir. Parabéns! Você realmente prova que a música e a dança não têm
sexo, idade, cor nem língua. Eu vejo com frequência seus covers de dança e
admito que invejo um pouco como você mostra às pessoas que não, o kpop
não é apenas para adolescentes de 12 anos. Continue assim :D (KPOP,
2020b, tradução nossa).
O corpo negro e gordo de um dos integrantes, dançando no meio de Paris, desliza
sobre o chão dessa cidade símbolo do bon vivant europeu, não somente ressignificando os
movimentos coreográficos do K-pop, mas também reivindicando uma outra forma de ocupar
os clichês e ideais de modernidade. Traços de orientalidade e negritude são dançados num
cenário ocidental, marcado pelo eurocentrismo e pela branquitude. Através de comentários,
percebe-se que o K-pop já é reconhecido como espaço de tensionamento de normas
generificadas para além de uma comparação com as regras da sociedade sul-coreana –
embora as marcações de sua origem sejam constantemente acionadas.
6 Considerações finais
Os grupos de K-covers que contam com homens negros, mestiços, gordos e, portanto,
dissidentes dos padrões de corporalidades ideiais da indústria sul-coreana são julgados nos
ambientes de compartilhamentos de vídeos, tanto por uma fidelidade às coreografias quanto
pela capacidade de reencenação e territorialização dos gestos dos artistas de K-pop em
contextos distintos. Sustenta-se, então, a ideia de que, apesar de cumprirem os movimentos
desenhados pelas coreografias do K-pop, estes K-covers apresentam uma outra ideia de
atitude que circunda o imaginário sobre as comunidades LGBTQIA+: a da bicha, da lacração,
14
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
close e da afetação - conjunto de acionamentos performáticos que se materializam na
interculturalidade, ou seja, na zona de contato dos materiais simbólicos do K-pop com
contextos culturais diversos.
A proposta deste artigo é reconhecer as marcas, traços e materialidades estéticas e
culturais de fenômenos da cultura pop como dotados de um duplo movimento especulativo:
ao mesmo tempo que são parte integrante de indústrias do entretenimento que se inserem
numa lógica global, há “coreografias” e movências que promovem o aparecimento de roteiros
performáticos (TAYLOR, 2013) improváveis nas zonas de interculturalidades. O K-pop, ao se
deslocar mundo afora, promove o aparecimento de traços performáticos, de sujeitos,
marcações de classe, raça e gênero, imprevistos, deslocando para o campo das culturas os
embates de ordens macro e também micropolíticas. É a partir das rasuras coreográficas
evidenciadas em K-covers no Youtube que se debatem as dimensões estéticas e políticas dos
corpos na comunicação e cultura contemporâneas.
Referências
ALBUQUERQUE, Afonso; URBANO, Krystal. Cultura pop e política na nova ordem global:
lições do Extremo-Oriente. In: SÁ, Simone Pereira; CARREIRO, Rodrigo; FERRARAZ, Rogério
(org.) Cultura Pop. Salvador: Edufba, 2015, p. 247-268.
AMARAL, Adriana; SOARES, Thiago; POLIVANOV, Beatriz. Disputas sobre performance nos
estudos de Comunicação: desafios teóricos, derivas metodológicas. Revista Intercom:
Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v. 41, n. 1, p. 63-79, 2018.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria
performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
CANCLINI, Nestor García. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da
interculturalidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009.
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política
do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.
FOSTER, Susan Leigh. Choreographies of gender. Signs, Chicago, v. 24, n. 1, p. 1-33, 1998.
G1. Gangnam style é primeiro vídeo a ter 1 bilhão de acessos no YouTube. G1, São Paulo, 21
dez. 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/12/gangnam-stylechega-1-bilhao-de-acessos-no-youtube.html. Acesso em: 30 ago. 2019.
15
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
KÄNG, Dredge Byung'chu. Idols of development: transnational transgender performance in
Thai K-Pop cover dance. TSQ-Transgender Studies Quarterly, Durham, USA, v. 1, n. 4, p.
559–571, 2014.
KIM, Daisy. Reappropriating desires in neoliberal societies through KPop. 2012.
Dissertação (Mestrado em Artes) - Asian American Studies, University Of California, Los
Angeles, 2012.
[KPOP IN PUBLIC CHALLENGE] Twice [OT9] - Feel Special - dance cover by B2 Dance Group.
[S. l.: s. n.], 2020a. 1 vídeo (3 min). Publicado no canal B2 Dance Group. Disponível em:
https://youtu.be/EBfYhP4LRjA. Acesso em: 26 set. 2020.
[KPOP IN PUBLIC PARIS] [...] Dance cover by The Hive Dance Crew. [S. l.: s. n.], 2020b. 1 vídeo
(3 min). Publicado no canal The Hive Dance Crew. Disponível em: https://youtu.be/I0fqmOd6rk. Acesso em: 26 set. 2020.
LAURIE, Timothy. Toward a gendered aesthetics of K-pop. In: CHAPMAN, Ian; JOHNSON,
Henry. Global glam and popular music – style and spectacle from the 1970’s to the
2000’s. New York: Routledge, 2016. p. 214-231.
LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha – Revista de Antropologia, Florianópolis,
v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. 2011.
LOONA/ LOOΠΔ [...] 'Hi High' dance cover by Heirs. [S. l.: s. n.], 2019. 1 vídeo (3 min).
Publicado no canal Heirs Dance. Disponível em: https://youtu.be/duPl39USpRA. Acesso em:
26 set. 2020.
LOPES, Denilson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2002.
MARTEL, Frédéric. Mainstream: a guerra global das mídias e das culturas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012.
RANIA [...] DR Feel Good dance cover by Glamour. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (4 min). Publicado
pelo canal Glamour. Disponível em: https://youtu.be/xmm3Fh5Jtm4. Acesso em: 27 maio
2021.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
STUENKEL, Oliver. O mundo pós-ocidental: potências emergentes e a nova ordem global.
São Paulo: Zahar, 2019.
TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas.
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013.
TORRES, David Quezada. K-pop y J-pop cover dance em la Ciudad de México: Globalización e
Identidad. In: AGUILERA, Miguel Olmos. Etnomusicología y globalización: dinámicas
cosmopolitas de la música popular. Tijuana, México: El Colegio de la Frontera Norte, 2020.
16
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Coreografias de gênero em covers de K-pop
URBANO, Krystal. Beyond Western Pop Lenses: o circuito das japonesidades e coreanidades
pop e seus eventos culturais e musicais no Brasil. 2018. Tese (Doutorado em Comunicação) Universidade Federal Fluminese, Niterói, 2018.
URBANO, Krystal; KAUTSCHER, Gabriela. A emergência da cena k-cover no Brasil. In: I
COLÓQUIO MÍDIA, COTIDIANO E PRÁTICAS LÚDICAS, 1., 2018, Niterói. Anais [...]. Rio de
Janeiro: UFF, 2018, p. 99-122.
Gender choreographies in K-pop covers
Abstract
K-pop cover groups (K-covers) embody their South Korean idols in
online and offline choreographic practices while, from the
specificity of their bodies, “choreograph gender” in their
performance appearances. The relevance of this investigation is
to present theoretical and methodological tools for the analysis of
pop culture phenomena (covers), from the intersections of the
notions of interculturality and gender studies. It presents, as
methodology, the analysis of videos of K-pop cover groups in
which LGBTQIA + young people (black, fat and trans) re-enact
choreography of K-pop girl groups promoting intercultural
erasures. As a result, it presents the resignification of aegyo (here
thought of as “cuteness” by female K-pop groups) that,
choreographed by LGBTQIA + young people in contexts outside
South Korea, operate under the logic of fierceness and “slayness”.
Keywords
Pop culture; K-pop; Interculturality; Gender; Performance
Autoria para correspondência
Thiago Soares
thiago.soares@ufpe.br
Como citar
SOARES, Thiago; SILVA, Lúcio Souza Ferreira da. Coreografias de gênero em covers de K-Pop. Intexto, Porto
Alegre, n. 53, e-110437, 2022. DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437
Recebido em 04/01/2021
Aceito em 03/03/2022
17
Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 53, e-110437, 2022.
DOI: http://doi.org/10.19132/1807-8583202253.110437