Anthology of the poetic memory of the Colonial War
Margarida Calafate Ribeiro; Roberto Vecchi (eds.)
Edições Afrontamento (2011)
“The A thology of the Poetic Me ory of the Colo ial War consists of
approximately 350 poems.
This collection considers the works of consecrated poets who
experienced or were inspired by the Colonial War. It displays a number
of poems originally distributed in regional newspapers, magazines,
military publications or in unheralded author editions. A significant
number of women writers also feature in the anthology.
The traditional western cartographies of macro-themes-images, normally
found embedded in war poems, are evident in this collection. The
notions of Departures and Returns, Quotidian, Death, Memory of War,
Thinking the War, Songbook are also visible. Two specific themes of the
Colo ial War are sket hed: Re o ili g with War a d The Duty of
War. We o lude with two poe s i the se tio
Ai da
“till whi h
underpin the permanence of the War in the Portuguese imaginary.
Dividing the sections of the anthology is another ´text´, demonstrating
the artistic works of Manuel Botelho from his main work on the Colonial
War `Co fide tial a d De lassified´, i the series ´Ratio of Co
at´.
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
51
52
53
54
55
56
57
58
59
60
61
62
63
64
BOOK REVIEWS
Anthology of the poetic memory of the Colonial War
Margarida Calafate Ribeiro; Roberto Vecchi (eds.)
Edições Afrontamento (2011)
2013 - Jaime Ginzburg, Aletria, 2(23), May/August, 199-202.
2013 – Sabrina Sedlmayer, Aletria, 2(23), May/August, 203-205.
2012 - Marinete L.F. de Sousa, Polifonia, 19(26), August/December, 253-262.
2012 - Vincenzo Russo, Colóquio/Letras, 181, September/December, 232-235.
2012 – Roberta Guimarães Franco, Revista de C. Humanas, 1(12), Jan/Jun, 255-259.
2011 - Manuel Simões, 22 September.
2011 - Beja Santos, 20 September.
RIBEIRO, MARGARIDA CALAFATE; VECCHI, ROBERTO
(ORG.). ANTOLOGIA DA MEMÓRIA POÉTICA DA GUERRA
COLONIAL. PORTO: EDIÇÕES AFRONTAMENTO, 2011. 646 P.
FANTASMAS E MEMÓRIAS DE GUERRA
Jaime Ginzburg*
Universidade de São Paulo (USP)
Publicada em 2011, com organização de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto
Vecchi, a Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial é uma contribuição inestimável
aos estudos literários e históricos. O volume resulta de um projeto de longa duração,
que integrou uma equipe de jovens pesquisadores e contou com a consultoria de
intelectuais como Vincenzo Russo e Helder Macedo.
O leitor encontra neste volume de 646 páginas, composto com ótima qualidade
gráfica, a reunião de materiais de variadas origens. A ampla extensão se associa a um
princípio de organização estrutural que, a cada página, conduz a sucessão de textos de
modo equilibrado e rigorosamente planejado. Divididos por critérios coerentes, os
conjuntos de poemas são incluídos em partes dedicadas a várias perspectivas de leitura
– Partidas e regressos, Quotidianos, Morte, Guerra à guerra, O dever da guerra, Pensar a
guerra, Memória da guerra, Cancioneiros, Cancioneiro popular e Ainda.
Embora, como reconhecem os organizadores, existam obras anteriores dedicadas
à apresentação da literatura associada à Guerra Colonial, este livro supera as
contribuições anteriores e constitui, de imediato, leitura obrigatória para os interessados
em literaturas de língua portuguesa.
No Posfácio redigido pelos organizadores, o trabalho é contextualizado e expõe
sua fundamentação. De acordo com o texto, existem textos conservadores “claramente
a favor do conflito bélico”; e outros, que constituem a maioria, configuram a Guerra
Colonial como um “fantasma”, associado ao luto, à perda, à saudade.
Entre os autores de textos incluídos no livro, estão António Lobo Antunes,
Fernando Grade, Fernando Pessoa, Gastão Cruz, Hélia Correia, João de Melo, Jorge de
Sena, José Rogério Mineiro Carrola, Liberto Cruz, Luís da Mota, Manuel Alegre, Natércia
Freire, Ruy Belo e Sophia de Mello Andersen.
Roberto Vecchi escreveu o excelente livro Excepção Atlântica. Esse trabalho permite
compreender com precisão a especificidade e o alcance da Antologia. O crítico articula,
entre outros autores, Agamben, Foucault, Benjamin, Simmel e Derrida. De acordo com
o autor, a escrita da Guerra Colonial é melancólica.
* ginzburg@usp.br e jginzb@gmail.com
2013
- maio - a go. - n . 2 - v .
23
- ALETRIA
199
Nesse livro, Vecchi rompe com expectativas de que uma memória de guerra deva
ser elaborada necessariamente como documental ou realista. Ao contrário, sua reflexão
se distancia de ilusões quanto à função referencial da linguagem, e se aproxima de
categorias estéticas marcadas por negatividade.
A retomada do conceito de paradigma indiciário, de Carlo Ginzburg, propõe a
necessidade de interpretação de sinais do passado, em busca da elaboração de uma
inteligibilidade. No entanto, o que prevalece na argumentação de Vecchi é a atenção
à presença do fantasma; vocábulos como resto, ruína, falta e aporia ajudam a examinar o
caráter dissociativo das imagens do passado. A matéria bruta e lancinante do real é
evocada pelo caráter fantasmático da própria guerra, cujo fundamento histórico e cuja
justificação política estão condicionados por aquilo que Eduardo Lourenço, como
explicou Vecchi, caracterizou como o irrealismo da imagem que os portugueses atribuem
a si mesmos. Sem horizontes de totalização ou síntese, a escrita da fantasmagoria está
ligada à melancolia e à tragicidade.
Em Excepção Atlântica, a reflexão sobre a estética do resíduo chama a atenção
para textos que falam a partir do ponto de vista da morte, da percepção de ausências, e
da impossibilidade de reparar as perdas. Álvares de Azevedo, no século XIX, escreveu
sobre imagens negativas de Portugal, construídas a partir do impacto da independência
do Brasil. Eduardo Lourenço contribuiu de modo decisivo para o estudo da situação
crítica de Portugal, resultante da dissolução de ideais do Império. Roberto Vecchi ganha
inserção nessa série, demonstrando com detalhamento que a especificidade da Guerra
Colonial se articula, na produção escrita, com uma sociedade impregnada pela
modernidade biopolítica. Mais do que isso, as relações de Portugal com as colônias
africanas se desenvolveram em um campo de tanatopolítica, em que a metrópole não
teria sido hábil para regular as colônias, nem para preparar processos de emancipação.
Essa nação, enquanto conduz o ataque às colônias, destrói os ideais de seus próprios
fundamentos, convertendo-se em uma espécie de nação-cadáver, na qual são as lacunas,
perdas e ausências que delimitam a temporalidade, entre um passado cifrado e um
horizonte incerto. Em “Um soldado”, de José Rogério Mineiro Carrola, a descrição de
Portugal sugere sua condição cadavérica (“Este frio (...) é o meu país”). A imagem
proposta por Manuel Alegre de uma “Lisboa viúva” condensa a importância do resíduo
e da ruína nesse horizonte, em que as perdas são irreparáveis.
A Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial traz a melhor expressão atualmente
existente desse universo fantasmagórico, em que os gestos patrióticos confrontam corpos
doloridos, mutilados e desumanizados. Em minha opinião, o melhor poema do volume é
L‘Été au Portugal, de Jorge de Sena. Uma pergunta prioritária é apresentada diretamente:
“Que Portugal se espera em Portugal?”. O impacto terrível da Guerra Colonial se associa
a uma indeterminação radical, entre “rapaz sem braço” e “cães sem faro”, em que a falta
de perspectiva para o país se constitui como confinamento – “Na tarde que anoitece o
entardecer nos prende”. O texto é implacável, configurando a negatividade constitutiva
de Portugal, como campo de cruzamento entre o horror do passado e a incerteza quanto
ao futuro.
O volume traz preciosos casos de escritas limiares, em que a linguagem se ocupa
menos de relatar um passado e mais de falar do que não foi feito, não foi conseguido, ou
200
A L E T R I A - v.
23
- n.
2
- maio - a go. -
2013
não se poderá fazer. Em um poema sem título de Luís da Mota, o cenário do campo de
batalha é aquele em que “não chega amor”. Nesse poema de 1968, o sujeito lírico afirma:
“A nossa verdadeira história / jamais será contada (,,,)”. Esse fragmento poderia ser
tomado como moto continuo da antologia. Ainda que a escrita da Guerra Colonial em
alguns casos se aproxime do testemunho, ela não pode ser classificada de modo definitivo
como tal, assim como não deve ser reduzida a uma função documental. É na negação de
um princípio absoluto de significação que pode surgir a força dessa escrita. Não se trata
de defender um critério de verdade ou de propor que se trata de uma realidade
diretamente percebida. Os textos mais impactantes da antologia levam a interrogar
quais as mediações legítimas entre violência e linguagem.
Em “A mina”, Manuel Alegre escreve “Não sei se alguma vez nós voltaremos / da
guerra onde deixámos partes d’alma”. Esse verso condensa um dos efeitos possíveis da
leitura do volume. Como um trauma coletivo não superado, o passado da guerra
permanece entre nós, constituindo um confinamento, como espaço do qual não se pode
sair. Com as perdas de “partes d’alma”, a voz metaforicamente constitui um vínculo com
os cadáveres, que não retornam da guerra. A imagem permite ainda pensar com incerteza
em um momento “antes” da guerra, para o qual se queira retornar. Cabe chamar a
atenção para a construção ambígua de um ponto de vista, que talvez possa ser atribuído
a um cadáver, em um poema sem título de Liberto Cruz, que se restringe a uma linha:
“Pertenço a uma geração que o País perdeu”.
Diversos poemas apontam para um percurso sem redenção, em que o futuro não
traz nenhuma expectativa de superação. Um caso incisivo é “Guerra colonial I”, de
Hélia Correia, poema que propõe o cenário da Guerra Colonial como um mundo “sem
apocalipse”: “Agora não se nasce”. Outro é “Perguntando sempre”, de Fernando Grade,
que expõe o esquecimento dos crimes militares.
Os organizadores da antologia publicaram recentemente o ensaio “A memória
poética da Guerra Colonial de Portugal na África – os vestígios como material de uma
construção possível”. Elaborado no âmbito do mesmo projeto de pesquisa, o trabalho
consolida rumos importantes de interpretação da produção em torno da Guerra Colonial.
Os pesquisadores explicam que a memória poética ultrapassa a singularidade de um
sujeito enclausurado. Ela se situa no limite de uma memória de teor político. No contexto
de uma reflexão sobre o conceito de rastro no pensamento de Walter Benjamin, os
autores examinam a ambiguidade da ruína, que se caracteriza como uma forma de perda
e também como uma forma de presença do passado. Os textos propõem modos de
decifração de rastros do passado. Levando em conta contribuições da psicanálise, nesse
ensaio, os autores caracterizam a literatura da Guerra Colonial como um “potencial
cemitério”, em que a aparição de fantasmas indica a necessidade de lidar com os mortos.
Essa poética de restos atravessa a Antologia. Como chave interpretativa, a
consideração da ambiguidade da ruína permite relacionar de modo produtivo diferentes
textos uns com os outros. Referências a Hiroshima e ao Vietnã aparecem, criando
reverberações entre diferentes momentos históricos, e articulando o colonialismo
português com um amplo horizonte de barbárie e violência de Estado no ocidente. Alguns
poemas assumem perspectivas afetivas, mencionando a saudade de um amigo ou a
conduta de uma criança, evitando a redução da guerra a uma imagem estereotipada.
2013
- maio - a go. - n . 2 - v .
23
- ALETRIA
201
Não por acaso, a Antologia encerra de modo brilhante, com “Ainda” de Manuel
Alegre. Nesse poema, violência e linguagem se relacionam de modo decisivo. O texto
propõe uma estética do resíduo em um alto grau de consciência formal. São tempos em
que no “meio de uma vírgula morre alguém”. Roberto Vecchi e Margarida Calafate
Ribeiro construíram um trabalho exemplar em história da literatura, ultrapassando os
limites habituais referentes ao cânone e às classificações de formas poéticas. A seriedade
do trabalho confirma as trajetórias brilhantes de Ribeiro e Vecchi. O volume pode ajudar
a reescrever a história da literatura de língua portuguesa. Essa nova história poderia
encontrar, em sinais improváveis, a presença dos mortos.
AA
REFERÊNCIAS
VECCHI, Roberto; RIBEIRO, Margarida Calafete. A memória poética da Guerra
Colonial de Portugal na África – os vestígios como material de uma construção possível.
In: SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Org.). Walter Benjamin. Rastro, aura,
história. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012.
VECCHI, Roberto. Excepção Atlântica. Pensar a literatura da Guerra Colonial. Porto:
Edições Afrontamento, 2010.
202
A L E T R I A - v.
23
- n.
2
- maio - a go. -
2013
RIBEIRO, MARGARIDA CALAFATE; VECCHI, ROBERTO.
(ORG.). ANTOLOGIA DA MEMÓRIA POÉTICA DA GUERRA
COLONIAL. PORTO: EDIÇÕES AFRONTAMENTO, 2011. 646 P.
ANTOLOGIA
DA MEMÓRIA POÉTICA
DA GUERRA COLONIAL
Sabrina Sedlmayer*
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Em toda antologia mora uma tensão: a impossibilidade de uma escolha totalizadora e
objetiva da produção literária de um determinado recorte – seja ele um país, época, espaço,
assunto, geração, grupo ou estilo – junto à necessidade, mesmo que precária e contingente,
de se efetuar uma amostra representativa e exemplar, capaz de vencer distâncias culturais,
espaciais e temporais. Na tentativa de selecionar e julgar, ou de salvar o passado no presente,
algumas edições são mais bem-sucedidas que outras. Como paradigmas, podemos recuperar
os nomes de alguns antologistas como os de Cecília Meireles, Jorge de Sena, Francisco José
Tenreiro e Mário Pinto de Andrade, autores que marcaram a história dos livros com as
respectivas escolhas críticas no Brasil, Portugal e África.
Numa espécie de linhagem que eticamente toma a modalidade antológica como
“memorial de muitos nomes unidos em único nome”, a edição intitulada Antologia da
Memória Poética da Guerra Colonial, organizada por Margarida Calafate Ribeiro e Roberto
Vecchi, lançada no final de 2011, se insere. Todo o livro parece ter sido elaborado como
resistência diante do silêncio da guerra que envolveu, dolorosamente, Portugal e as
colônias Moçambique, Guiné-Bissau e Angola, entre os anos de 1961 a 1974. A
introdução, o posfácio, as notas biográficas, os índices, as imagens e as suas legendas,
todos esses elementos são imbuídos de pendor teórico e reflexivo de quem confia na
tarefa da transmissão, na partilha de uma memória. Trabalhar o luto e ontologizar os
restos. Pensar na guerra, lembrar da guerra, nos seus deveres, no cotidiano, para, então,
construir uma memória da guerra, como bem esclarecem os organizadores:
Nesta linha, tratamos o poema como “material” e “modo” de fundação de uma poética de
restos – de gente, de impérios – ou de perdas, cuja reconstrução se executa pelo texto
poético que exibe como a Guerra Colonial foi para todos um percurso de perdas: perda da
juventude, da família, da inocência, da vida, resumida na perda do mundo anterior à
guerra para aqueles que foram obrigatoriamente convocados não manifestando qualquer
apoio ideológico à guerra; perda do país, da vida, da família, da normalidade para aqueles
que politicamente optaram pela deserção ou pelo exílio; perda da nação para aqueles que
lutavam convictamente1
* sabrina.sedlmayer@gmail.com
1
RIBEIRO; VECCHI. Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial, p. 25.
2013
- maio - a go. - n . 2 - v .
23
- ALETRIA
203
Ambos autores possuem um percurso de pesquisa anterior a esta publicação na
qual a atenção aos problemas relativos ao esquecimento do passado e a necessidade de
instaurar um registro estético, de escrever uma história traumática da guerra, já estavam
presentes. Margarida Calafate Ribeiro, no consistente livro Uma história de regressos:
Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo (Edições Afrontamento, 2004), proporciona
uma cartografia a contrapelo fundamentada em sólida base historiográfica e literária
acerca da condição portuguesa que, como é sabido, deixou há tempos de ser
contemporânea do futuro que ajudara a tecer na Idade Moderna. Roberto Vecchi, em
uma produção mais recente, Excepção Atlântica. Pensar a Literatura da Guerra Colonial
(Edições Afrontamento, 2010) retoma a visão de Portugal como insólita exceção atlântica,
expressão cunhada por Eduardo Lourenço, para questionar, entre outras preocupações,
como a literatura da Guerra Colonial tornou-se um potente modo de refletir sobre as
muitas representações desse país que fora um dia cantado como o “rosto” da Europa. No
quadro teórico de referências, as figuras de Walter Benjamin e do compatriota Giorgio
Agamben são fundamentais. É do pensador de Homo sacer a definição de exceção e de
exemplo, chaves de leitura pelas quais Vecchi tentar apreender os movimentos que
Portugal realizou ao longo da história e ajudam-no a colocar sob suspeita o lusotropicalismo, dispositivo que facilita o deslize da norma à exceção.
Os livros aqui citados parecem, assim, ir muito além da conhecida rubrica
acadêmica intitulada Post Conflict Cultures. Em especial a antologia. Nela encontramos
a força melancólica da rememoração (Eingedenken), uma memória crítica, um coro de
lamentação que escapa dos discursos oficiais, conforme denomina Walter Benjamin.
Através de dezenas de vozes, de enunciações heterogêneas, percebemos o questionamento
da lusofonia, da multirracionalidade e pluricontinentalidade. Os poemas reunidos
interrogam, como pontualmente assinalam os organizadores, o ensaio clássico de Paul
Fussell de que a poesia de guerra está diretamente ligada à experiência bélica. Poetas
que olhavam para África a partir do cais de Lisboa convivem lado a lado com os poetas
das trincheiras, que escreviam em um papel qualquer em condições de limiar, entre a
vida e a morte. Integrantes da Poesia 61, que prenunciaram o fim da identidade nacional
ligada à noção de império, encontram-se também emparelhados a um surpreendente
Cancioneiro popular, totalmente apartado da dicção erudita.
Sabe-se que Portugal possui uma singular, longa e tortuosa tradição no gesto de
compilação, que antecede, e muito, a legitimação da literatura na Idade Moderna. Os
Cancioneiros de Alcobaça, da Biblioteca Nacional e de Ajuda não só nos remetem à
importância de determinantes históricos na ação de inserção e exclusão de vozes autorais,
como também suscitam agudas questões relativas à manutenção de textos em desacordo
com o poder vigente de determinado período. A equilibrada Antologia da Memória Poética
da Guerra Colonial avança nesses obstáculos ao recuperar, materialmente, poemas que
foram publicados em precárias edições de autor, que possivelmente não resistiriam à
passagem do tempo. Indistintamente seleciona outros, que foram sofisticamente
incorporados em edições já consagradas, como o caso de D’este viver aqui neste papel
descripto, de António Lobo Antunes.
No vasto e heterogêneo “manancial poético”, como chamam os autores o corpus
dessa obra, o mar é cantado como “mar coveiro” e “mar de neblina”. Nessa guerra sem
204
A L E T R I A - v.
23
- n.
2
- maio - a go. -
2013
sentido, imagens de navios, barcos, partidas, adeus, sombras, lágrimas, cartas, comas,
natal, medo, estrela, sangue, saudade, avião, cais, fuzil, mãe, acácias, combate, presença,
crepúsculo, sonho, ausência pululam em poemas escritos em estado de urgência, de
risco e de trauma. O gesto contemporâneo de conservar essa poesia e transmitir a
experiência, reafirma não a tarefa de elaborar um livro onde a guerra é a musa, mas,
sim, a de abrir esteira para uma memória poética da guerra, capaz de fazer ecoar versos
esquecidos, como estes de Liberto Cruz em “Um sargento lateiro...”: “a gente nesta
guerra nem dá nem leva./ Só se enterra.”2
AA
REFERÊNCIAS
RIBEIRO, Margarida Calafate; VECCHI, Roberto. (Org.). Antologia da Memória Poética
da Guerra Colonial. Porto: Edições Afrontamento, 2011. 646 p.
2
RIBEIRO; VECCHI. Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial, p. 495.
2013
- maio - a go. - n . 2 - v .
23
- ALETRIA
205
Entrevista
Margarida Calafate Ribeiro/ Roberto Vecchi
Marinete Luzia Francisca de Souza
ENTREVIST
ENTREVISTA
A
MARG
ARID
AC
AL
AF
ATE RIBEIRO E ROBER
TO VECCHI,
MARGARID
ARIDA
CAL
ALAF
AFA
ROBERTO
AUTORES D
A
DA
A COLONIAL
A GUERR
A MEMÓRIA POÉTIC
ANTOLOGIA D
GUERRA
DA
POÉTICA
DA
AD
Por Marinete Luzia Francisca de Souza1
AS MÚL
TIPL
AS V
OZES POÉTIC
AS
MÚLTIPL
TIPLA
VOZES
POÉTICA
DA GUERR
A COLONIAL
GUERRA
Elaborada ao mesmo tempo que o projeto de investigação “Os Filhos da Guerra Colonial: pós-memória e representações”, desenvolvido
no Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado da Universidade
de Coimbra, a Antologia Poética da Guerra Colonial (2011)2 organizada
por Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi reflete o amplo alcance
da investigação realizada, seja em relação às questões pragmáticas (recolha de textos em arquivos vários, sobretudo os militares), seja no que
diz respeito ao exercício crítico. Uma rápida leitura da Antologia demonstra que a par dos autores canônicos (Manoel Alegre, Jorge de Sena,
Fiama Hasse Pais Brandrão, entre outros), havia ainda um amplo corpus
por revelar e, como demonstra a seleção de textos inseridos, pouco
inexplorados como é, aliás, o momento pós-colonial.
A organização do livro obedece a uma ordem temática, mas também imagética, ou melhor, os textos são inseridos a partir daquilo que os
organizadores consideraram “imagens fundadoras” (RIBEIRO e VECCHI,
2011,p.28) ou “imagem-tema” (entre as quais as partidas, os regressos e as
memórias) da Guerra Colonial. Estes textos são acompanhados de um
prefácio e de um posfácio (no qual se realiza um estudo a partir de quatro
tempos históricos em que se foram agrupando os autores que escreveram
sobre o tema e seus significados críticos) a partir dos quais vão sendo
discutidas as relações entre as memórias individuais e as coletivas, entre
“poesia”, “memória” e “memória poética”, ao mesmo tempo em que se
processa uma avaliação dos impactos públicos destes textos. Reflexões
que rementem para a colocação destes discursos em situações limítrofes,
entre a sua “condição política” e a “condição imemorial de um tempo”
(RIBEIRO e VECCHI, 2022, p.26), o que estaria, por ter deixado marcas
indeléveis na cultura portuguesa, para além do que o escrito tcheco Milán
Kundera denominou “memória poética” – um espaço na memória onde o
ser humano guarda aquilo que o comoveu (2005, p.95)3.
1
Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa (investigação e ensino) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
bolsista do Programa de Doutorado Pleno no Exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior.
Ribeiro, M.C. e Vecchi, R.(Orgs.). Antologia Poética da Guerra Colonial. Porto: Edições Afrontamentos, 2011.
3
Kundera, M. A Insustentável Leveza do Ser. Lisboa: Dom Quixote, 2005.
2
66
253
Polifonia, Cuiabá, MT, v.19, n.26, p.253-262, ago./dez., 2012
Considerando estes dados, os autores organizaram a Antologia nas
seguintes partes: “Partidas e Regressos”, “Quotidianos”, “Morte”, “Guerra à
guerra”, “O dever da guerra”, “Pensar a Guerra”, “Memória da Guerra”, “Cancioneiros”, “Cancioneiro Popular” finalizando-a com a seção “Ainda”, que
inclui os poemas de Fernando Assis Pacheco e de Manuel Alegre.
Estes títulos refletem também o significado deste fato histórico que
foi, em primeiro lugar, um dever, a defesa do estado imperial, conforme
difundido pelo regime salazarista, passando, mais tarde, a algo incômodo na cultura portuguesa. Assim, o projeto coordenado pelos dois investigadores referidos funcionou como uma espécie de catalisador para
pensar as “pós-memórias” de uma guerra que esteve na contramão dos
processos de libertação ocorridos em todo mundo durante os anos de
1960 (década considerada ícone da luta por liberdade individual e coletiva). Pensar a memória deste evento histórico exige, portanto, que se
parta da complexidade do testemunho conjugada ao que é o Portugal do
presente: um país marcado pela transmissão da vulnerabilidade social
pós-traumática compartilhada com suas ex-colônias.
É por este motivo que Boaventura de Sousa Santos (2003) afirma
que Portugal ocupa uma posição entre Próspero e Calibán4, ou melhor,
de (ex) semi-colônia, pois , na sua opinião, o país não teria desempenhado o papel de colonizador com a mesma eficácia de seus pares europeus, partilhando com suas ex-colônias dramas próprios de uma país
colonizado, o que não lhe tira as responsabilidades históricas face ao
processo colonial, mas favorece uma discussão mais situada da realidade. Quer isso dizer que, em Portugal, aceitava-se ir para guerra como se
aceitava a pobreza5 e um dos índices deste fato histórico é o termo “ir
para tropa”, usual na sociedade portuguesa, que indica que haviam duas
opções, ou aceitar o destino imposto pelo estado ou imigrar, geralmente,
para a França (fatos representados no poema “Partida”, de Rodrigo Emílio,
incluído na primeira parte da Antologia , mais especificamente nos versos “o dia de ir para a tropa” ou “o dia de ir para a França” (EMILÍO in
RIBEIRO e VECCHI 2011, p.47).
Os resultados do projeto apresentam-nos uma memória que é histórica, mas que ainda não é pública, pois encontra-se radicada no espaço familiar e é, geralmente, expressa pelo silêncio manifesto na metamorfose do pai, que foi para guerra, em um aerograma, uma carta ou
uma fotografia, mas que regressou transfigurado e substituiu o
emudecimento por uma presença masculina, por vezes, violenta. De
acordo com os resultados apresentados na 3ª sessão do ciclo “O segun4
SANTOS, B. S. “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade”. In: Ramalho, Maria Irene Ramalho
e Ribeiro, António Sousa Ribeiro (orgs.). Entre ser e estar. Raízes, percursos e discursos da identidade. Porto: Afrontamento, 2002,
p. 23-85.
5
Para saber mais sobre o tema, sugere-se ouvir a entrevista Europa Entrevista Os Filhos da Guerra Colonial, de Margarida
254
67
Entrevista
Margarida Calafate Ribeiro/ Roberto Vecchi
Marinete Luzia Francisca de Souza
do Século Vinte”6 (Coimbra, 28/06/2012) para divulgação do projeto, este
fato acorreu em noventa e cinco por centro das casas portuguesas, apontando os resultados do trabalho para a transformação histórica dessa
memória de um evento público em doméstica. Todavia, também se verificou que a recente divulgação da série televisiva Guerra do Ultramar
(exibida pela Rádio e Televisão Portuguesa – RTP “ há cerca de quatro
anos), de Joaquim Furtado, o projeto coordenado por Ribeiro e Vecchi
como outras iniciativas, incluindo a publicação de memórias individuais por ex-combatentes, vem transformando tais memórias em patrimônio
público a ser catalisado para uma análise mais profunda.
Concomitantemente, a recolha e o estudo dos textos poéticos apontam para a existência de uma subjetividade lírica que está para além da
representação do momento histórico: das formas simples e populares às
mais complexas, das cantigas à poesia musicada (caso de Zeca Afonso e
outros), das formas camonianas a alguma poesia experimental. Logo, a
leitura da Antologia indica que a recolha do material implicou, além do
trabalho pragmático, num intenso trabalho crítico no sentido de pensar
a poesia como portadora da memória pública contudo, como referem os
autores, “ameaçada” pelo esquecimento como, aliás, foi, por algumas
décadas, a própria “Guerra Colonial” (cf. RIBEIRO e VECCHI, 2011, p.23).
Essa produção literária dá conta de diferentes temas e “só marginalmente comunica os padrões estéticos”, mas constitui como que “uma cartografia de rastros de eus estilhaçados por uma guerra” que reúne, em
concordância com Paul Fussel (1975)7 traços da representação moderna
da guerra: “experiência, modernidade e representação” (cf. RIBEIRO e
VECCHI 2011, p.22). Por outras palavras, a reflexão crítica funda-se na
relação entre arte e poética e na capacidade que tem a poesia de fixar a
experiência.
6
Evento organizado pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra e dedicada à Guerra Colonial
portuguesa 1961-1974.
7
Fussel, P. The Great War and Modern Memory. London: Oxford University Press, 1975.
68
255
Polifonia, Cuiabá, MT, v.19, n.26, p.253-262, ago./dez., 2012
ENTREVIST
ENTREVISTA
A
Margarida Calafate Ribeiro
Roberto Vecchi
Mar
garida Calafate Ribeiro
Margarida
Investigadora e coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde integra o Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP), Margarida Calafate Ribeiro é responsável, junto
com Roberto Vecchi, pela Cátedra Eduardo Lourenço, da Universidade de
Bolonha. Doutora em Estudos Portugueses pelo King’s College, Universidade
de Londres, a investigadora é especializada no pensamento de Eduardo
Lourenço.Atualmente, interessa-se pelos estudos pós-coloniais, história do
império português, literatura portuguesa e de língua portuguesa, Guerras
Coloniais e mulheres na guerra. É autora/organizadora, entre outras obras, de
“África no Feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial”
(2007);”Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e PósColonialismo” (2003) e Atlantico Periferico - Il Postcolonialismo Portoghese e
Il Sistema Mondiale (org. com Roberto Vecchi, Vincenzo Russo) (2008).) e
“Poesia da Guerra Colonial: ontologia do ‘eu’ estilhaçado” (2009).
Roberto V
ecchi
Vecchi
Doutor em Literatura Brasileira e Portuguesa pela Universidade de
Bolonha, Roberto Vecchi é Professor Associado de Literatura Brasileira
e responsável pela Cátedra Eduardo Lourenço da Facoltà di Lingue and
Letterature Straniere, Università degli Studi di Bologna onde também
coordena o Centro de Estudos Pós- Coloniais (CLOPEE). Em Portugal, é
membro do Centro de Estudos Sociais participando de projetos sobre as
representações da “Guerra Colonial”. No Brasil, é pesquisador do CNPq
integrando o projeto “Violência e escrita literária”, coordenado por Márcio
256
69
Entrevista
Margarida Calafate Ribeiro/ Roberto Vecchi
Marinete Luzia Francisca de Souza
Seligmann-Silva, Francisco Foot Hardman e Jaime Ginzburg. Entre as
suas principais publicações estão “Excepção Atlântica. Pensar a Literatura da Guerra Colonial” (2010) e a organização, com Margarida Calafate
Ribeiro, do livro Helder Macedo, Da qualche parte in Africa (2010). Os
seus interesses de investigação estão relacionados com as áreas da
historiografia e da teoria cultural. Dedica-se, no caso brasileiro, à época
“pré-modernista”, com trabalhos sobre autores (Lima Barreto), gêneros
(a poesia pré-modernista, a narrativa antes da Semana), temas (a cidade,
a emigração italiana, a ideia de moderno) e a literatura contemporânea
(narrativa, o autobiografismo e memórias). Na vertente portuguesa, interessa-se por literatura de viagem e sobre a colonização do Brasil, cultura portuguesa contemporânea e representações e teoria das culturas
pós-coloniais nos países lusófonos.
Marinete Souza – O projeto “Os Filhos da Guerra Colonial: pósmemória e representações” (2011) foi antecedido pelo projeto “Poesia
da Guerra Colonial: uma ontologia do ‘eu’ estilhaçado” (2009), passando-se das memórias da “Guerra Colonial” propriamente ditas às pósmemórias da guerra (memórias dos filhos). Como decidiram dar continuidade ao primeiro projeto e o que os levou a optar por este trabalho
com as memórias da “Guerra”?
Ribeiro/Vecchi – Na verdade não foi uma questão de continuidade
cronológica de estudo de memórias, como agora, à posteriori pode ser
lido. Foi esse sentido que aproveitámos ao lançar a Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial no final do colóquio final de projeto “Os
Filhos da Guerra”. Criou um ambiente de grande compreensão e cumplicidade intergeracional, para a qual, de certa forma, os resultados do
projeto “Filhos da Guerra” apontavam. Mas o élan inicial que está na
origem da Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial liga-se a
vários factores e circunstâncias: a falta de atenção crítica que até então
tinha sido dada à poesia da Guerra Colonial, quando por exemplo comparamos com outros tipos literários como o romance, a novela ou o testemunho; do diálogo crítico privilegiado dos dois investigadores do projeto, Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi; do estímulo crítico de
António Sousa Ribeiro em relação ao paradigma europeu de poesia de
guerra; da conversa e do trabalho inicial realizado pelo escritor João de
Melo que, em Os Anos da Guerra, inicia uma primeira recolha e nos
estimulou para este trabalho. Numa primeira análise o paradigma poético lançado na Europa pós Primeira Guerra Mundial cumpria-se nesta
poesia e o temário também coincidia, apesar de haver uma série temática
específica desta guerra, como pronunciadamente se nota na Antologia.
De certa forma esta coincidência/descoincidência leva-nos à divisão
70
257
Polifonia, Cuiabá, MT, v.19, n.26, p.253-262, ago./dez., 2012
temática magnificamente pautada pelas fotografias de Manuel Botelho
da série confidencial/ desclassificado: marcha lenta (2011).
Marinete Souza – O trabalho parece ser realizado em um espaço e
com um grupo de pessoas bastante amplo (entre portugueses,
moçambicanos, angolanos, guineenses etc) e envolvendo distintas gerações e formas de registros (poesias, depoimentos etc).Que métodos foram empregados para trabalhar com estas diferentes subjetividades?
Ribeiro/Vecchi – Este projeto é sobre a Guerra Colonial e portanto
nesta designação contemplamos o lado português. Se contemplássemos o
lado africano teríamos de falar de Guerra de Libertação. Ai encontraríamos
uma poesia de luta, de empenhamento e de euforia e celebração da vitória.
Pelo contrário do lado português encontramos uma poesia disfórica e de
múltiplas perdas. Trata-se de uma poesia produzida por autores direta ou
indiretamente envolvidos na guerra, e elaborada quer no momento da experiência direta, quer mais tarde, enquanto espaço de memória e de elaboração pós-traumática. O arco temporal da nossa recolha cobre 50 anos (19612011) e ao lado de nomes consagrados no universo poético encontramos
muitos outros nomes. A poesia da Guerra Colonial, na sua maioria tem
muitos autores que não faziam parte do universo literário, publicados em
edições de autor, revistas de circulação restrita, como por exemplo revistas
militares ou de associações, de estudantes, jornais, etc. A nossa recolha foi
o mais possível exaustiva e de facto encontramos milhares de poemas, tendo sempre em mente o princípio de “material publicado”. Na Antologia
procuramos mostrar toda esta diversidade e democratizar o universo poético português trazendo para a cena do texto autores que entregaram à formulação poética a sua experiência, as suas angústias, os seus sentimentos.
Um outro espaço que abrimos foi o dos Cancioneiros, pois uma boa parte
desta poesia foi cantada ou elaborada de forma próxima da poesia popular
e essas foram duas formas de passar a mensagem contra a guerra. E é neste
aspeto que esta poesia da Guerra Colonial se liga à poesia dos países em
luta pela libertação, na expressão que encerram de estar do lado errado da
história, de também estar em luta pela liberdade, pela paz. As secções em
que dividimos a Antologia mostram bem a mistura de tema, género, ideologia para que de facto se pudesse construir um amplo retrato da memória
poética da guerra: “Partidas e Regressos”, “Quotidianos”, “Morte”, “Guerra
à Guerra”; “O Dever da Guerra”; “Pensar a Guerra”; “Memória da Guerra”;
“Cancioneiros”, “Cancioneiro Popular”; “Ainda”.
Marinete Souza – Percebe-se, pelos resultados divulgados, que há
uma abordagem multidisciplinar inscrita na forma como o projeto foi
pensado e na constituição da equipe com que trabalham e mesmo no
conjunto das vossas publicações. Esse direcionamento aponta para um
258
71
Entrevista
Margarida Calafate Ribeiro/ Roberto Vecchi
Marinete Luzia Francisca de Souza
desejo de estabelecer uma relação entre a “Guerra Colonial” e outra guerras do mesmo período e teor, como a Guerra da Argélia, por exemplo?
Ribeiro/Vecchi – Sim, esse foi um processo mais presente no projeto “Filhos da Guerra Colonial: pós-memória e representações”, cuja equipa
tinha especialistas em literatura, teoria, psicólogos , psiquiatras, historiadores. O projeto da poesia da guerra era mais disciplinar, mas claro que
disciplinar na lógica da interdisciplinaridade na disciplina. De outro
modo o conhecimento fica muito pobre, da mesma forma que se apenas
estudássemos o caso português. A comparação é um método analítico
essencial para identificar o objeto de estudo. Como já dissemos, teoricamente falando, orientamo-nos pelo paradigma europeu lançado pela
poesia da Primeira Guerra Mundial, onde por exemplo os poetas ingleses são essenciais. Toda a nova abertura do cânone poético que a Segunda Guerra Mundial traz, com novas formas de fazer antologias de poesia
de guerra e depois as guerras já da pós-modernidade, mas ainda ligadas
ao paradigma colonial, como a Guerra da Argélia ou da Indochina, mas
também aquelas que foram já protagonizadas por outros atores, de que o
exemplo máximo, em termos de imaginário ocidental e de imaginário
literário, fotográfico e cinematográfico é a Guerra do Vietname, foram
essenciais para pensar a Guerra Colonial e as suas expressões poéticas.
Marinete Souza – De que modo se articulam as memórias públicas,
privadas e subjetivas deste momento histórico no âmbito da análise crítica dos resultados da investigação?
Ribeiro/Vecchi – Todas estas memórias se conjugam no momento poético e dialogam entre si no texto. A capacidade do texto poético é exatamente
essa: captar a subjetividade máxima de um sujeito no momento de interação
com o mundo e do mundo consigo. Há obviamente um sentimento genérico
de perda muito pessoal nesta poesia – perda de juventude, perda de um país,
perda de uma ilusão, perda da vida – em conflito com a memória pública.
Como em muita da literatura da Guerra Colonial há um excesso de memória
individual contra a falha da memória coletiva, que tende ao esquecimento, ao
recalcamento, ao silenciamento. Muitos dos versos desta poesia são “ampolas vivas”, para usar um bonito verso de Assis Pacheco, que “Ainda” (para
usar o poema de Manuel Alegre e a secção que encerra a nossa Antologia)
explodem quoti diamente em cada casa portuguesa.
Marinete Souza – Um dos resultados do Projeto “Os Filhos da Guerra
Colonial: pós-memória e representações” é a Antologia da Memória poética da Guerra Colonial publicada em 2011. A decisão de reunir textos
de autores pouco conhecidos parte da identificação da ausência de uma
representação ampla e pública deste momento traumático nos países de
Língua Portuguesa?
72
259
Polifonia, Cuiabá, MT, v.19, n.26, p.253-262, ago./dez., 2012
Ribeiro/Vecchi – De certo modo, ainda com uma discreta autonomia, os dois projetos se intersetaram criando um diálogo bastante proveitoso e rico. A ideia de construir uma antologia da “memória poética” (não
só da poesia baseada num critério de valor exclusivamente estético) decorreu de uma ampla sondagem sobre o “património de sofrimento” (o
termo é de Abi Warburg) que a guerra produziu e que é geracional, mas
também intergeracional. O que o projeto dos “Filhos da Guerra” nos mostrou foi isso, e foi também, a possibilidade de elaboração de uma outra
narrativa de reconhecimento e de partilha sobre a Guerra Colonial pela
segunda geração. Uma reflexão que integra a geração dos pais e do momento histórico trágico que eles protagonizaram, mas também capaz de
reflectir mais objetivamente sobre o que de facto foi a Guerra Colonial
portuguesa. É a reflexão sobre todo esse “património de sofrimento” elaborado e reealaborado que nos permitiu repensar a poesia da guerra. No
fundo, esta memória funda-se sobre um paradoxo: uma forma tão subjetiva e privada como o ato literário acaba por constituir-se numa memória
aberta e ampla de uma experiência marcada por extremos (o vigor e as
cores da juventude, o indizível da experiência traumática). A partir desta
tensão, surge a Antologia que pretende promover uma partilha das singularidades que a poesia, como procura de comunicação não só literária,
voluntária ou involuntariamente incorpora.
Marinete Souza – Que critérios determinaram a seleção dos textos
inseridos e de que modo a leitura deste conjunto textual determinou a
organização e ordenação dos poemas na Antologia?
Ribeiro/Vecchi – Perante um arquivo tão amplo (a Antologia é só
uma parte de um todo bastante maior) organizámos a seleção a partir de
alguns critérios temáticos (como acima foi exposto) que permitissem
dar à experiência pessoal uma potencialidade de ressonância mais vasta
e permeável, tendo em vista o objetivo (inteiramente político) de favorecer um debate e contribuisse para a definição de uma memória pública
partilhável da Guerra Colonial. A obra de Fernando Assis Pacheco,
Catalabanza Quilolo e voltai (1976) – uma reescrita sem da primeira
edição que utilizava o disfarce vietnamita para falar de Angola (Cau Kiên:
um resumo, (1972) ) forneceu-nos o palimpsesto que articula o projeto e
a própria Antologia.
Marinete Souza – Parece haver poemas escritos no calor da “Guerra” e poemas escritos com um certo distanciamento deste momento histórico. Que diferenças foram percebidas entres essas distintas vozes
poéticas e de que modo estas memórias contribuem para uma reflexão
crítica sobre a forma como os países que fizeram parte do que era nomeado “o império português” posicionam-se no momento pós-colonial?
260
73
Entrevista
Margarida Calafate Ribeiro/ Roberto Vecchi
Marinete Luzia Francisca de Souza
Ribeiro/Vecchi – Há inúmeros distanciamentos em relação à cena
traumática da guerra que vão do imediatismo do desabafo pessoal ou
íntimo até à não participação da guerra, ao lado feminino da observação
e da partilha ou ainda à contemplação da própria guerra de longe. Estas
diferenças ao mesmo tempo não prejudicam uma visão de conjunto que
não é só mimética (se não só os poetas armados poderiam intervir) mas
sobretudo reflexiva. Por isso, os poemas funcionam como partes de uma
narração coletiva, mostrando o perfil de construção da memória que é
não coincide com a experiência. Todavia, e ao mesmo tempo, sem esta
não-identidade plena das recordações individuais não se poderia obter
uma representação da experiência mais ampla e compartilhada. Um
patrimônio, justamente, em que a imagem de estilhaço, que faz parte do
título do projeto, ganha todo o sentido. Um património estilhaçado.
Marinete Souza – Como se conjugou, ao longo da organização da
Antologia e mesmo da execução do projeto, elementos mais pragmáticos como o valor documental dos textos recolhidos e elementos do campo da subjetividade como a sua complexidade testemunhal e memorial?
Ribeiro/Vecchi – Talvez seja este o ponto de contato mais evidente entre
o projeto dos “Filhos da Guerra” e o projeto da Poesia. Um forneceu ao outro
uma tecnologia interpretativa que permitiu pensar algo que resistia a uma
racionalização completa e se concentrava em cicatrizes que em si não falavam. Poder inscrever e combinar peças tão diferentes, pelo grau de objetividade ou de subjetividade que carregavam, enriqueceu o projeto de configuração de uma memória poética. No fundo, como ensina a tradição dos estudos
subalternos, o problema não é tanto a indizibilidade de certas experiências,
mas sobretudo os limites da escuta do intérprete. É por isso que perante um
arquivo tão amplo, o problema era essencialmente definir uma moldura adequada da acumulação de memória que não se deixava apreender. A arquitetura da antologia responde a esta exigência.
Marinete Souza – Considerando que o trauma da “Guerra Colonial”
provoca uma vulnerabilidade social e cultural, como vocês mesmos têm afirmado em entrevistas e conferências, como foram pensadas as fronteiras entre
as componentes estéticas e sociais destes textos? •
Ribeiro/Vecchi – Foi necessária uma ampla análise e discussão entre a
dimensão privada e o espaço público, entre esfera subjetiva e objetiva, entre
casa e pólis. Deste ponto de vista, o esforço crítico foi considerável, mas
felizmente os instrumentos críticos são amplos. Atuamos a partir da consciência que dos pontos de contato e proximidade entre privado e público, como
observa Hannah Arendt, surge o que se pode chamar de política. Quando
ficou clara a política da memória (poética) que surgia da acumulação caótica
dos poemas de centenas de autores foi fácil enxergar as fronteiras, determinar o contato entre a dimensão ética e aquela estética do projeto.
74
261
Polifonia, Cuiabá, MT, v.19, n.26, p.253-262, ago./dez., 2012
Marinete Souza – Gostariam de acrescentar algum ponto que não
tenha sido referido ao logo da entrevista?
Ribeiro/Vecchi – Agradecemos as perguntas e queremos ressaltar mais
uma vez o valor político, além de científico, da Antologia da Memória
Poética da Guerra Colonial. Metodologicamente suporta-nos a lição de
Eduardo Lourenço que, antes de muitos outros intérpretes, percebeu a
importância da literatura como arquivo para discutir a ontologia contorcida
de um país, antigo mas marcado de uma história largamente traumática
como Portugal. Por último, uma palavra de agradecimento ao nosso editor, José Sousa Ribeiro, diretor da nossa editora, Afrontamento, que sempre se pautou pelo valor político do livro, desde os tempos da ditadura
salazarista-marcelista, e que desde o primeiro momento acarinhou o nosso projeto e tornou possível que ele chegasse ao público.
Entrevista concedida em outubro de 2012.
Aceita para publicação em novembro de 2012.
262
75
2012, Setembro/Dezembro, Vincenzo Russo,
Revista Colóquio/Letras, n.º 181, 232-235.
76
77
Imagens polifônicas
de uma memória em
risco
Antologia da memória poética
da Guerra Colonial
Margarida Calafate RIBEIRO
Roberto VECCHI
Portugal, Porto: Edições Afrontamento, 2011, 646p.
No ano de 2011 completaram-se
cinquenta anos do início da guerra
colonial, nome dado ao conflito entre
Portugal e suas colônias africanas. Em
quatro de fevereiro de 1961, começaram os conflitos em Angola, conflitos
que, posteriormente, se estenderam
a Moçambique e a Guiné Bissau. A
durabilidade da guerra, que só termina em 1974 com a Revolução dos
Cravos, pode ser associada à teimosia
de um regime autoritário, conhecido
como Estado Novo, que pretende a
qualquer custo manter o “Portugal
imperial” e defender a sua história
de ‘cinco séculos de colonização’ em
África.
O interesse atual pelas temáticas
que rondam o contexto do Estado
Novo português e da guerra colonial
pode facilmente ser identificado pela
quantidade de produção bibliográfica sobre o tema encontrada nas
livrarias de Portugal. No entanto,
este despertar também evidencia
aproximadamente quarenta anos de
esquecimento sobre o assunto, e muitos dos trabalhos desenvolvidos hoje
destacam esse silêncio que se seguiu
após o 25 de abril de 1974.
O regime que construiu suas bases
através da exaltação da história imperial conseguiu manter suas rédeas
utilizando a omissão dos dados reais
como forma de controle. A censura,
elemento essencial em qualquer regime totalitário, atuou fortemente na
política do medo, eliminando do espaço da metrópole suas reais condições,
concentrando nas mãos do governo
os destinos do povo, manipulando as
consciências. Com o início da guerra
em Angola, a necessidade de silenciamento era cada vez maior, afinal,
o governo defendia veementemente
a manutenção dos seus territórios
ultramarinos e considerava os conflitos como uma questão de rotina
administrativa.
No entanto, apesar da repressão
e da censura, é possível reconhecer
o trabalho de jovens que, através da
arte, fizeram valer as vozes contra o
regime. São essas vozes dissonantes
que Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi reuniram na Antologia da
memória poética da Guerra Colonial. A
memória poética dessa guerra não
está somente naqueles que, durante
o período do conflito, produziram
poemas sobre a situação vivenciada
entre Portugal e África. A recolha da
Antologia se propôs a um trabalho
bastante amplo, ao selecionar produções que contemplam os últimos
cinquenta anos. Assim, a memória
poética conta com poemas produzidos durante os anos de guerra, bem
como os que povoaram os anos seguintes, até o momento presente, ou
seja, “poesia, de autores directa ou
indirectamente envolvidos na guerra
e elaborados quer no momento da
experiência directa, quer mais tarde,
Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 1, p. 253-255, jan./jun. 2012
253
na condição de espaço da memória
e de elaboração pós-traumática” (p.
21).
Diante do desafio de escolher o
corpus da Antologia, seus organizadores seguiram critérios minuciosos
para selecionar poemas que, segundo
seus padrões estéticos, formavam
uma “cartografia de rastos dos eus
estilhaçados por uma guerra” (p.
22). Suas escolhas se basearam em
três eixos teóricos: “(1) perceber a
intersecção poética entre o individual
e o colectivo nos aspectos vivenciais
e traumáticos da Guerra Colonial;
(2) reflectir sobre as relações entre
poesia, memória e memória poética;
(3) avaliar o impacto da poesia nas
memórias públicas da Guerra Colonial
e do fenômeno da memória da guerra
na sociedade portuguesa e nas suas
representações” (p. 23).
Ao entrelaçar memórias individuais e coletivas sobre um período
bastante controverso da história de
Portugal contemporâneo, os organizadores da Antologia permitiram
que as representações sobre um
momento importante da história de
Portugal chegassem, de forma extremamente organizada, a um público
maior, principalmente se comparado
ao espaço público português durante
a Guerra Colonial, quando o assunto
se mantinha encoberto. Assim, a
Antologia vem contribuir para uma
série de publicações que agora podem
tratar com liberdade desse período.
Seus organizadores já possuem vasta
pesquisa nesta área temática, tendo
Margarida Calafate Ribeiro publicado,
entre outras obras, Fantasias Imperiais
no Imaginário Português Contempo254
râneo (2003, organizado com Ana
Paula Ferreira) e Uma História de
Regressos: Império, Guerra Colonial e
Pós-Colonialismo, Fantasmas (2004),
e Roberto Vecchi, Excepção Atlântica.
Pensar a Literatura da Guerra Colonial
(2010), entre outras obras organizadas em italiano.
A Antologia trata de um projeto grandioso. São 646 páginas, 178
poetas e 10 fotografias de Manuel
Botelho. Entre os poetas escolhidos,
encontram-se figuras conhecidas
como Fernando Assis Pacheco, Manuel Alegre, José Bação Leal, Jorge de
Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, António Lobo Antunes, João de
Melo, Luíza Neto Jorge, entre outros
que chegaram à atividade poética
através da guerra, que escolheram a
poesia como forma de expressar algo
de incomunicável que os conflitos
deixaram como memória.
Os poemas que compõem a Antologia da memória poética da guerra colonial estão organizados em dez seções:
“Partidas e regressos”, “Quotidianos”,
“Morte”, “Guerra à guerra”, “O dever
da guerra”, “Pensar a guerra”, “Memória da guerra”, “Cancioneiros”,
“Cancioneiro popular” e “Ainda”. O
corpus foi selecionado não apenas
pelas questões temáticas, mas respeitaram uma “discussão ampla sobre a
poética, a memória, o esquecimento,
as suas relações com a poesia e, em
particular, a poética em tempo de
guerra” (p. 23).
Para seus organizadores, a polifonia que compõe a Antologia é formada
por poemas “de sobrevivências, de
diminutas luzes que iluminam trevas,
Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 1, p. 253-255, jan./jun. 2012
sobrevivência dos autores, ou das
suas vozes, mas também de uma
experiência destruída que procura
os seus traços na perda inexorável,
no silêncio absoluto.” (p. 28). A
obra que chega a público também se
mostra um feixe de luz para aqueles
que trabalham com as temáticas do
Estado Novo português, da Guerra
Colonial, das independências africanas, da produção literária portuguesa
contemporânea, das relações entre
literatura e história, entre outros
temas relacionados também às ciências sociais.
Ao recuperar e reunir cinquenta
anos de produção poética portuguesa
sobre a Guerra Colonial, Margarida
Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi permitem que seus leitores preencham as
lacunas deixadas pela história oficial
do Portugal contemporâneo. Mesmo
ao afirmar que “pela poesia não se
faz a história, mas pela poesia pode
construir-se uma memória poética
de um facto histórico” (p. 25), os organizadores da Antologia da memória
poética da Guerra Colonial deixam para
o futuro do país um rico material sobre fatos históricos que não devem se
repetir. As vozes contrárias ao poder
do Estado Novo português e os seus
herdeiros ficarão assim perpetuados
no tempo através de uma “poética
de perdas”, e, através da Antologia,
esse “arquivo de vozes” cumprirá o
seu papel de não nos deixar esquecer,
nos permitindo uma leitura crítica dos
anos de Guerra Colonial.
Roberta Guimarães Franco
Doutoranda em Literatura Comparada
Universidade Federal Fluminense
Meteorologia,
climatologia
geográfica e
sociedade
Meteorologia Prática
Artur Gonçalves FERREIRA
São Paulo: Oficina dos Textos,
2006, 188p.
No livro Meteorologia Prática, Arthur Gonçalves Ferreira busca ampliar
e disseminar o conhecimento e melhorar a compreensão acerca dos fenômenos atmosféricos. O autor, formado
em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1993), especialista em Gestão Ambiental (2001)
e Meteorologia Aeronáutica (1997),
atualmente trabalha no Departamento
de Controle do Espaço Aéreo (Decea).
Gonçalves Ferreira optou por
abordar a dinâmica climática a partir
das imagens de satélite artificiais obtidas pelo sensoriamento remoto. Nesse processo, as imagens são produzidas
por meio de sensores que absorvem a
energia emitida pelos corpos.
As imagens podem ser mapeadas,
e as diferentes frequências captadas e
retransmitidas pelo satélite são visualizadas com cores diferenciadas, que,
por sua vez, são correlacionadas com
diversos tipos de situação: chuvas,
nevoeiros e concentração de umidade.
Entre os satélites utilizados para o
acompanhamento do tempo, existem
dois tipos: os geoestacionários e os de
órbita polar. Os geoestacionários estão
a mais de 30 mil quilômetros de altura e
orbitam na mesma velocidade da Terra.
Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 1, p. 255-259, jan./jun. 2012
255
Os de órbita polar estão posicionados
mais próximos da Terra, portanto, obtêm imagens mais aproximadas.
Esses tipos de órbitas são apropriados, pois permitem manter sua
antena apontada sempre para uma
mesma região da Terra e assim captar
dados de extensas áreas e transmiti-los
com grande frequência. Dos satélites
meteorológicos, é possível obter imagens da cobertura de nuvens sobre a
Terra, por meio das quais observamos
fenômenos meteorológicos, como, por
exemplo, frentes frias, geadas, furacões
e ciclones.
Segundo Teresa Gallotti Florenzano, em “Os Satélites e suas aplicações”, disponível em: http://www.
sindct.org.br/files/livro.pdf, a previsão
desses fenômenos pode salvar milhares
de vidas. Dados de satélites meteorológicos também permitem a quantificação dos fenômenos associados às
mudanças climáticas. No Brasil são utilizados, principalmente, os dados obtidos do satélite meteorológico europeu
METEOSAT e do norte-americano
GOES, muitas vezes mostrados a nós
diariamente em programas de previsão
de tempo pela televisão.
Partindo da elucidação da importância das imagens de satélite meteorológico à sociedade, o autor procurou
em sua obra apresentar a temática com
uma linguagem simples e objetiva, dividindo o livro em dez capítulos.
No primeiro capítulo, Fundamentos de Sensoriamento Remoto, Arthur
Gonçalves Ferreira apresenta as ideias
iniciais de sensoriamento remoto, que
parte do princípio da identificação a
distância dos objetos, utilizando a radiação eletromagnética. Essa energia
256
emitida é denominada albedo e cada
superfície da terra e cada nuvem o possui em diferentes intensidades. Dessa
forma, os sensores dos satélites podem
detectar diferentes características da
superfície terrestre, bem como distinguir vários tipos de nuvens formadas
na atmosfera.
O capítulo seguinte, Satélites Meteorológicos, aborda principalmente os
geoestacionários, descrevendo suas
principais características, destacando
os da série GOES e METEOSAT, que
produzem as melhores imagens para
a visualização dos fenômenos meteorológicos na América do Sul. Um dos
principais objetivos das missões GOES
e METEOSAT é obter informações
repetidas, necessárias para detectar a
trajetória e prever os sistemas meteorológicos severos.
O capítulo 3, Interpretação de
Imagens de Satélites Meteorológicos,
introduz os fundamentos básicos
de interpretação das imagens sem,
porém, se esquecer de abordar as
características atmosféricas. Todos os
satélites meteorológicos produzem
imagens da Terra em pelo menos duas
bandas do espectro eletromagnético:
visível (VIS) e infravermelho (IR).
Além disso, muitos satélites fornecem também imagens em uma banda
específica, denominada vapor d’água
(WV). A imagem visível identifica a
quantidade de radiação solar refletida
pela superfície terrestre. Já os sensores
infravermelhos medem a quantidade
de energia infravermelha emitida pela
superfície terrestre e pela atmosfera,
sendo essas informações importantes
para observar as propriedades térmicas do planeta Terra como um todo. As
Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 1, p. 255-259, jan./jun. 2012
imagens que identificam o vapor d’água
são geradas pela emissão de energia
emitida pela Terra e pela atmosfera,
absorvida em comprimentos específicos pelas nuvens e pelo vapor d’água
suspensos.
Em seguida, os capítulos A Atmosfera e Identificação das Nuvens nas
Imagens de Satélites Meteorológicos
mostram como identificar os tipos de
nuvens nas imagens, além de relacioná-las com o tipo de tempo que caracterizam. O autor destaca a importância
de se estudar a atmosfera pelos efeitos
que ela causa em nossas vidas, sejam
esses efeitos naturais ou influenciados
pela atividade humana. São mostrados
elementos de grande importância
no estudo da meteorologia como o
vapor d’água, a radiação e a pressão
atmosférica. Descreve também a importância da identificação de nuvens
pelas imagens, pois suas formações
são um relato fiel da estabilidade ou
instabilidade atmosférica.
O capítulo 6, Direção e Velocidade
do Vento nas Imagens de Satélite Meteorológico, procura definir as características que indicam a direção do vento nos
baixos níveis, além de mostrar como
é a circulação global, explicando por
que os ventos sopram, qual é a sua
importância para o equilíbrio térmico
e pluviométrico do Planeta, além de
explicar como é o seu comportamento
em cada hemisfério.
Os capítulos 7 a 9, Tempestades Severas, Sistemas Frontais e Ciclones Tropicais, enfatizam as condições adversas
de tempo, significativas para a aviação e
para a sociedade de modo geral. Dessa
forma, eles explicam como achar a localização de trovoadas em fenômenos
de escala sinótica e mesoescala, além
de mostrar um estudo de caso sobre
o fenômeno. Depois explicam o que
são massas de ar e sistemas frontais e
os que mais influenciam o tempo em
nosso continente. Já o nono capítulo
descreve o que são os ciclones tropicais e como se originam.
E o último, Imagens Ambientais,
mostra a importância do monitoramento do meio ambiente por meio de
imagens dos satélites geoestacionários,
identificando, por exemplo, fumaça,
que é um indício de incêndio em alguma localidade.
No decorrer da obra, Arthur
Gonçalves Ferreria procura mostrar as
principais características das imagens
dos satélites meteorológicos, ensinando-nos a interpretá-las e relacioná-las
com os tipos de tempo atuantes na
atmosfera, alertando-nos sobre como
o conhecimento meteorológico pode
contribuir com a sociedade, principalmente, no sentido de evitar desastres
causados por fenômenos atmosféricos
extremos, que podem ser identificados
com antecedência graças à tecnologia
que foi desenvolvida e é utilizada em
poucas cidades do mundo. No Brasil,
os sistemas de alerta, interligados às
defesas civis, pouco trabalham com a
previsão do tempo ou não conseguem
fazer a informação chegar com precisão aos locais que serão atingidos.
Hoje é difícil imaginar o estudo da
atmosfera terrestre sem os satélites
meteorológicos, até porque, anteriormente, deles quase nada se sabia,
sem mencionar as previsões, agora
possíveis com bastante antecedência.
Isso se deve ao desenvolvimento do
sensoriamento remoto, que consiste
Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 1, p. 255-259, jan./jun. 2012
257
no estudo de algumas características
de um objeto sem, necessariamente,
estabelecer contato com ele. Dessa
forma, os sensores e as plataformas
dos satélites enviam os dados obtidos
através do sensoriamento remoto para
as estações terrenas, que são responsáveis por processar os dados, para
enviá-los de volta ao satélite, quando
ocorre a retransmissão para outros
usuários. A obtenção de imagens torna-se muito mais fácil, principalmente
através da internet.
Portanto, atualmente, com a facilidade e a velocidade com que as
informações são transmitidas, inclusive
na obtenção das imagens de satélites
meteorológicos, o método desenvolvido pelo geógrafo brasileiro Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro (1971),
a análise rítmica, que consiste em um
método de análise diária dos elementos
do clima de um determinado local, é
munido de uma ferramenta extremamente poderosa, que permite analisar
as condições atmosféricas em um intervalo de tempo curto, relacionando-as com os montantes de precipitação,
umidade relativa do ar, temperaturas
máxima, média e mínima.
Cada vez mais a resolução das imagens dos satélites meteorológicos vem
melhorando com o desenvolvimento
de novas tecnologias, porém a melhor
resolução e a facilidade de transmissão dessas imagens pelo mundo não
são garantias de que o homem irá
compreender a dinâmica atmosférica
no todo e, portanto, estamos ainda
sujeitos a intempéries do clima. Dessa
forma, a sociedade deve se conscientizar de que os fenômenos climáticos
fazem parte constante de nossa vida e
258
que devemos nos adaptar a eles, caso
contrário, veremos mais e mais vezes
cenas comuns do nosso cotidiano, que
nos são apresentadas pela mídia, quando aproveitam dos eventos climáticos
extremos, que causam grandes perdas
materiais e de vidas, para conseguir
chamar atenção do público. Para que
isso não continue acontecendo, pelo
menos não com tanta frequência, é
necessário e urgente que os estudos
sobre o clima e os seus impactos sobre
a sociedade sejam mais frequentes e
que os setores públicos da união, estados e municípios, juntamente com a
iniciativa privada, somem esforços para
que haja melhorias nos procedimentos
de planejamento das cidades frente às
intempéries da natureza.
As imagens de satélites têm muito
a colaborar, no entanto, não é isso
que vem ocorrendo, pelo menos não
nos estudos da Climatologia Geográfica dentro das análises da dinâmica
atmosférica, alguns autores afirmando
que tais estudos nunca tiveram grande
visibilidade. Isso talvez em razão da dificuldade em relação ao entendimento
dos sistemas atmosféricos e à interpretação das cartas sinóticas e imagens de
satélites, muito trabalhados pelos meteorologistas. Isto não pode ocorrer,
visto que as imagens de satélite são de
suma importância para compreender a
dinâmica climática do planeta.
Como vemos, esta obra é de
fundamental importância para o melhor entendimento das imagens dos
satélites meteorológicos e sua relação
com a dinâmica atmosférica terrestre.
A destacar que é uma publicação em
língua portuguesa, o que não é fácil de
ser encontrado em se tratando da me-
Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 1, p. 255-259, jan./jun. 2012
teorologia operativa, ainda mais para o
Hemisfério Sul, mais especificamente
para o Brasil.
Meteorologia prática é de grande
valor, pois ainda são parcos os títulos
dessa temática, com pouca exploração
das questões específicas da dinâmica
atmosférica. É obra de interesse para
profissionais e discentes das áreas de
meteorologia, geografia, agronomia e
todos aqueles que se utilizam ou desejam interpretar imagens de satélite.
Vitor Juste dos Santos
Graduando de Geografia da Universidade
Federal de Viçosa
Edson Soares Fialho
Professor do Departamento de Geografia
da Universidade Federal de Viçosa
Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 1, p. 255-259, jan./jun. 2012
259
ANTOLOGIA DA MEMÓRIA POÉTICA DA GUERRA COLONIAL (Afrontamento, 2011)
Por Manuel Simões
22 de Setembro de 2011
In: http://aviagemdosargonautas.blogs.sapo.pt/235726.html
Um projecto com as dimensões desta Antologia (178 poetas, sem
contar com o conhecido “Cancioneiro do Niassa”, 646 pp.) e que
nasceu no âmbito das realizações do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, onde foi objecto de estudo nos últimos
anos, teria que envolver uma ampla equipa com a supervisão de dois
organizadores, Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi. Tal
projecto desenvolveu-se tendo em consideração quatro objectivos
essenciais: recolha e análise crítica da poesia da guerra colonial;
avaliação do impacto da guerra na poesia portuguesa
contemporânea; organização de uma antologia da poesia sobre a
guerra colonial; e contribuição para o debate e a memória pública da
guerra, através de diversos colóquios, de que o último teve como tema “Os filhos da Guerra
Colonial: pós-memória e representações” (14 e 15 de Junho de 2011).
E, como afirmam os organizadores, a partir de três eixos: «(1) perceber a intersecção poética
entre o individual e o colectivo nos aspectos vivenciais e traumáticos da Guerra Colonial; (2)
reflectir sobre as relações entre poesia, memória e memória poética; (3) avaliar o impacto da
poesia nas memórias públicas da Guerra Colonial e do fenómeno da memória da guerra na
sociedade portuguesa e nas suas representações» (p.23).
Na transparente e documentada introdução à Antologia, os organizadores assumem por inteiro o
“desafio científico” de seleccionar, a partir de uma floresta de textos poéticos, heterogéneos e
que muitas vezes cumpriam uma função documental e pragmática, um corpus que obedecesse a
um critério exigente saído de um debate crítico «sobre a poética, a memória, o esquecimento, as
suas relações com a poesia e, em particular, a poética em tempo de guerra» (p.23). A memória,
como se vê, constitui o núcleo dos critérios metodológicos, com a consciência de que, através
da poesia, se pode construir uma memória poética de um facto histórico, o que pressupõe a
hermenêutica da memória.
Tendo que seguir um critério de arrumação dos materiais, os organizadores conceberam uma
divisão temática, distribuindo os poemas por blocos que obedecem aos temas “Partidas e
Regressos”, “Quotidianos”, “Morte”, “Guerra à guerra”, “O dever da guerra”, “Pensar a guerra”,
“Memória da guerra”, “Cancioneiros”, “Cancioneiro Popular” e “Ainda”, secção esta que inclui
dois belíssimos poemas, o primeiro de Fernando Assis Pacheco e o segundo de Manuel Alegre,
extraído de “Nambuangongo, Meu Amor: Os Poemas da Guerra” (2008):
As nossas frases estão cheias de picadas
de minas a explodir nos substantivos
por dentro do silêncio há emboscadas
não sabemos sequer se estamos vivos.
Os helicópteros passam nas imagens
a meio de uma vírgula morre alguém
e os jipes destruídos estão nas margens
do papel onde talvez para ninguém
78
1/2
se vão escrevendo estas mensagens. (p.550)
Não é difícil, portanto, perceber a importância e o alcance desta Antologia, que constitui um
marco fundamental para se poder “ler” criticamente a guerra colonial a partir de textos poéticos
provenientes de vários quadrantes e de acordo com a visão dos autores referenciados, o que
mostra como aquele evento controverso e desamado tocou profundamente a poesia portuguesa
contemporânea. No seu não menos importante “posfácio”, os dois organizadores proporcionam
ao leitor uma moldura crítica que só pode enriquecer a apreensão do texto na sua globalidade. E
assim referem os momentos fundamentais: «Tempo um: Requiem por um império ou sombras
da guerra entre nós – Poesia 61»; «Tempo dois: Requiem por um império ou a reinvenção
retórica do império»; «Tempo três: Requiem pela guerra – Três vozes da Guerra Colonial»;
«Tempo quatro: A dimensão performativa do canto na poesia da Guerra Colonial» (Adriano
Correia de Oliveira, José Afonso, José Mário Branco, Luís Cília e outros).
Esta monumental Antologia, limiar de um corpo de dimensões mais vastas a confluir num
arquivo digital aberto (Arquivo Electrónico da Memória Poética da Guerra Colonial), encontrou
nos dois organizadores os interlocutores qualificados, considerando os estudos anteriores sobre
o tema, objecto de várias publicações de âmbito internacional: “Uma História de Regressos:
Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo” (Afrontamento, 2004) de Margarida Calafate
Ribeiro; e “Excepção Atlântica. Pensar a Literatura da Guerra Colonial” (Afrontamento, 2010)
de Roberto Vecchi, entre outras.
79
2/2
ANTOLOGIA DA MEMÓRIA POÉTICA DA GUERRA COLONIAL
Por Beja Santos
20 Setembro 2011
In:
http://movimento.vidasalternativas.eu/index.php/temas-beja-santos/3600-antologia-damemoria-poetica-da-guerra-colonial.html
“Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial”, organizada por Margarida Calafate
Ribeiro e Roberto Vecchi (Edições Afrontamento, 2011) é sem dúvida alguma uma iniciativa
para saudar, pela compilação de centenas de documentos, porventura a maior comunidade de
memória poética da guerra colonial até hoje elaborada. É uma recolha de valiosos testemunhos
subjectivos de, como escrevem os responsáveis pela antologia, de “eus estilhaçados por uma
guerra”.
Como se justificam: “A feitura desta antologia não pressupôs apenas um exigente trabalho de
investigação, recolha, leitura e selecção. Implicou também um relevante esforço crítico para
recolocar a questão do que é a poesia, sobretudo quando ela é portadora de uma memória
subjectiva – memória poética – e, de qualquer modo, de uma memória ameaçada”. Os autores
preferem falar mais da memória poética da guerra colonial, abandonando discretamente o
tratamento da poesia da guerra colonial.
Esta memória é heterogénea, é o património de uma geração, há o material poético e a
comunicação que dela emana: perdas e ganhos; exaltação e exultação; saudade e quebranto,
ruptura com a solidão, ultrapassagem do precário ou do contingente. Uma antologia onde toda
uma geração se pode rever, para lá das suas posturas ideológicas, porque essa memória poética é
polifónica, é irmanada pela dor, fala do país, do inimigo, da paz, do apelo à vida.
Os organizadores entenderam pôr esta memória poética em diálogo com as fotografias de
Manuel Botelho. O produto final é manifestamente ousado, o precário da escrita olha-se ao
espelho de um contraponto montado que fala da guerra com os olhos de hoje. Uma ousadia
estética que torna a edição da antologia mais ambiciosa e intemporal.
A obra estrutura-se em “partidas e regressos”, “quotidianos”, a linguagem da morte, o dar
guerra à guerra, o cumprir o dever da guerra, o pensar a guerra e a sua memória, os seus
diferentes cancioneiros, elaborados ou populares.
Como expressam os autores, uma antologia é sempre um olhar, entre a cumplicidade e a
preocupação em acolher o maior denominador comum. Estão lá poetas dos três teatros de
operações, estão lá poetas que contestaram na retaguarda ou que deram, nessa mesma
retaguarda, ânimo ao sonho do Império.
E mais esclarecem os autores: “Esta antologia é uma proposta, entre outras possíveis, de recorte
do imenso manancial poético que surgiu e surge ainda copiosamente da experiência que uma
parte significativa da população portuguesa viveu entre 1961 e 1974. O limiar não poderia
parecer mais precário, uma escrita, poética, infinita – mas que enquanto escrita expõe a sua
finitude -, sobre uma experiência que também ultrapassa os limites do mensurável, às vezes do
visível. Foi este limiar o objecto de estudo deste imenso património cultural.
Em “partidas e regressos”, aparecem sensibilidades tão díspares como Fernando Assis Pacheco,
Fiama Pais Brandão, Rodrigo Emílio, Maria Teresa Horta ou José Niza. Oiçamos o que nos diz
José Niza: “12 de Julho de 1969. Seis horas da manhã./ Vesti a farda e calcei as botas. Olhei-me
no/ espelho e vi uma pessoa que não era eu. Ia/ para a guerra. Ela tinha pouco mais de um/ ano.
Dormia tranquila no mesmo berço onde/ eu dormira. Um pezinho saía-lhe para fora/ do lençol.
Inclinei-me para lhe dar um beijo./ Duas ou três lágrimas caíram-lhe no rosto,/ mas não acordou.
80
1/2
Depois, vi-a crescer em/ fotografias. Ao longo de dois longos anos, nas/ mesmas cassetes em
que lhe cantava canções/ e lhe contava história, ouvia a sua voz e até/ conseguia vê-la”.
“Quotidianos” é o amplo espaço em que o poema até rescreve a escrita, transforma-se
aerograma, brado, queixume, um olhar sobre a realidade. Assim começa um poema de Jorge de
Sena intitulado “Café cheio de militares em Luana”: “O jovem Don Juan de braço ao peito/ (por
um dedo entrapado)/ debruça as barbas para a mesa ao lado/ numa insistência pública de macho/
que teima em conversar a rapariga/ (no dedo aliança, azul em torno aos olhos)/ a escrever cartas
e a enxotá-lo em fúria”.
A “Morte” é um tema recorrente, a morte dos outros, a nossa morte previsível, o vermos a morte
ao nosso lado, o querermos ultrapassar a morte esquecendo-a. Como poeta Liberto Cruz: “Uma
coisa é fazer a guerra como quem vive/ e outra é fazer a guerra como quem morre”.
A antologia cobre pois diferentes dimensões, há o dever da guerra, há o pensar a guerra, há
sobretudo o dar guerra a guerra, o dever de memória da guerra e cancioneiros de índole erudita
ou popular. Dar guerra à guerra pode expressar-se como panfleto, como incitamento pacifista,
como voz de resistência ou de pura denúncia. Como escreveu Manuel Beça Múrias: “Senhor
alferes,/ p’ra que serve/ esta espingarda?/ Eu não tenho ódio/ não me obriguem/ a matar./
Senhor alferes/ mas que mata/ tão cerrada!/ É ainda bem de dia/ e não consigo/ enxergar./
Senhor alferes/ p’ra que serve/ esta granada?/ O meu braço é forte/ mas não a quero/ lançar.
No posfácio, os organizadores, a propósito do registo estético, subjectivo e imediato, ou da
produção pós-traumática da guerra, analisam a Poesia 61, com os seus poéticos críticos da
retaguarda (caso de Gastão Cruz ou Luiza Neto Jorge), as diferentes incursões de poetas
nacionalistas, antes e depois do 25 de Abril, detêm-se na poesia de José Bação Leal, Manuel
Alegre, Fernando Assis Pacheco, os três unidos por aquilo que se poderá chamar a geração
“habitada pela mesma ferida” e finalmente tecem considerações sobre a produção cultural desta
poética, entrosando-a com a própria canção de protesto.
É uma longa viagem ao património de sofrimento que esta poesia expõe e possibilita a
construção de futuras memórias.
81
2/2