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resenhas e críticas . entrevista CORPO EM CENA O livro de Newton Murce abre um caminho para que nós, leitores-espectadores de suas produções, nos impliquemos e é por esse caminho que podemos prosseguir na inesgotável tarefa de tentar apreender e transmitir uma experiência estética. Não é por se tratar de uma experiência de um puro real inaudível, que desistimos de tocá-las. E esta resenha se presta a isto, tentar dizer o impossível. A palavra é o único meio de que dispomos. Por isso repetimos, dizemos de outra forma, metaforizamos. Em busca do que Didier-Weill chama de ‘significante siderante’, o passador possível desse real inacessível, que se abre sobre um para além do sensível, na direção de uma multidimensionalidade do sujeito. Finalizo citando Clarice Lispector, que soube muito bem manejar esse ‘significante siderante’, e que, não por acaso, está nas epígrafes dos capítulos de Corpoiesis: a criação do ator:“Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. E um silêncio se evola sutil do entrechoque das frases.” 160 Revista UFG / Dezembro 2009 / Ano XI nº 7 JUM NAKAO – DESIGN DE MODA ENTRE ENREDOS E DESENREDOS Rita Andrade1 “O papel é o primeiro material. Frágil, transitório, efêmero. Sensível à ação do tempo. Contém a escrita, a poesia, os sonhos. Leveza necessária para a obra fluir.” Foi com esta descrição que o estilista brasileiro Jum Nakao introduziu à plateia sua interpretação da seleção e uso de materiais na confecção das roupas de sua ontológica coleção A costura do invisível, apresentada durante o São Paulo Fashion Week no verão de 2004. Sua apresentação, no ciclo Moda & arquitetura – um plano de viagem ao processo criativo, realizada em maio passado em Goiânia, faz parte de um rol de serviços que o estilista divulga em sua página, www. jumnakao.com.br. Escrever a história do design de moda no Brasil, como toda pesquisa cujas fontes sejam em parte imateriais, é um desafio. As tentativas de datar e documentar os trabalhos de designers através da pesquisa e da publicação recaiu, sobretudo, na escrita biográfica ou em algumas raras, porém importantes, compilações de eventos, carreiras e das trajetórias de profissionais, marcas e indústrias ligadas à cadeia produtiva têxtil. Sabe-se mais sobre a história do design de moda no período posterior à década de 1950, que coincide com o governo de Juscelino Kubitschek, mas também com a criação da (talvez) primeira feira nacional do setor, a Feira Nacional da Indústria Têxtil (Fenit), do que sobre o período anterior.A história da industrialização têxtil, setor em que se insere o designer do mundo moderno e Revista UFG / Dezembro 2009 / Ano XI nº 7 1. Professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual e do Bacharelado em Design de Moda da Faculdade de Artes Visuais da UFG. 161 entrevista . JUM NAKAO JUM NAKAO capitalista, concentrou-se nas questões produtivas e trabalhistas e pouco revelou sobre seus processos de trabalho, de criação e dos materiais que o designer ou o costureiro seleciona para a confecção de suas coleções de roupas. Em outras palavras, no campo da investigação histórica há muito que pesquisar e publicar sobre roupa, tecido, materiais para confecção e processos criativos no design. O trabalho do designer de moda, antes chamado de estilista (CHRISTO, 2008), requer uma série de habilidades e competências que, desde o final da década de 1980 encontravam-se arrolados nas matrizes curriculares e acessíveis aos futuros designers por meio da formação nos, então, recém-lançados cursos superiores de Moda (MARINHO, 2002). As demandas das indústrias do setor têxtil e de confecção pautaram a conformação desses cursos que, além da obrigatoriedade em seguir orientações do Ministério da Educação via Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apoiaram-se no sistema produtivo para elaborar seus projetos políticos pedagógicos. Assim, as disciplinas de eixo específico da maioria dos programas foram e ainda são: história da moda, história da arte, modelagem, atelier de costura, administração, marketing e comunicação visual. É inegável a transformação que a construção de uma matriz curricular espelhada no sistema da cadeia produtiva têxtil operou na formação dos designers que hoje são empregados pelo setor. Da mesma forma, é visível a transformação advinda da normatização dos cursos de Design na Resolução CNE/CES nº 5, de 8 de março de 2004, o que intensificou a debandada dos vários cursos de Moda para esta seara. Em outras palavras, a exigência de transformar o processo de ensino-aprendizagem nos cursos de Moda em um simulacro artificial das atividades de desenvolvimento de produtos de moda, especialmente de roupas e acessórios, colaborou para que uma variedade de profissões tangenciais mas vinculadas à cadeia produtiva têxtil fosse açambarcada pelas novas Diretrizes Curriculares do Design. Cursos de Moda em todo o país, tanto aqueles de estilismo quanto os que tinham outras propostas de formação, como de Negócios da Moda, migraram para o Design sem que houvesse o tempo e espaço necessários para uma discussão institucional (nas e entre as escolas) e pública que levasse ao esgotamento de outras possibilidades. Este processo, ainda recente, gerou uma crise identitária dos cursos, cujas consequências sobre a formação e a atuação profissional dos egressos ainda não se conhecem. Sabe-se apenas 162 Revista UFG / Dezembro 2009 / Ano XI nº 7 . entrevista que desde 2000 cresce a geração de designers-administradores, designers-jornalistas, designers-professores e alguns designers-estilistas. O conhecimento técnico (modelagem, costura, tecnologia têxtil, etc.) é cada vez menos privilegiado na maioria desses cursos, com poucas exceções. Este estado de coisas reverbera na indústria, que, dependente do conhecimento técnico para avançar, percebe o designer com desconfiança. Há muito ainda que discutir sobre esta questão. O panorama da moda brasileira atual apresenta pelo menos uma incongruência bastante interessante do ponto de vista do trabalho do designer de moda e também de toda a cadeia produtiva têxtil. Enquanto se potencializa o processo de profissionalização do setor, com resultados mensuráveis desde a década de 1990 (com o surgimento dos cursos superiores de Moda e com o início dos calendários de lançamentos de coleções de roupas, as conhecidas fashion weeks do Brasil), vimos a partir de 2000 um desarranjo das formas mais convencionais de operacionalização do projeto e do processo de desenvolvimento de produto. No caso da potencialização, a formação especializada teve influência significativa no processo, à medida que egressos dos cursos de Moda iam gradativamente inserindo na indústria e comércio os frutos da aprendizagem formal naquela engrenagem. Já no caso da mudança dos padrões previstos pelas matrizes curriculares dos cursos, reforçados pelo sistema produtivo atual – que, no caso brasileiro sofreu uma significativa intervenção de eventos como o São Paulo Fashion Week (SPFW) –, os resultados apenas começam a ser percebidos. Estilistas/designers de uma nova geração (alguns com formação especializada, outros não) descolaram-se do modelo ready-made dos fashion weeks e puderam nos apresentar formas inusitadas de compreender e vivenciar a moda, caso de Karlla Girotto, Adriana Barra, Mareu Nitschke, e muitos outros designers autônomos. Jum Nakao – talvez por ser de uma geração anterior ao surgimento dos cursos de Moda, talvez por ter percebido ao longo de sua carreira que seu talento poderia se desdobrar para as artes visuais e não se restringir à confecção de roupas – é responsável por um dos mais bem sucedidos trabalhos de design de moda realizados na última década. Sua coleção A costura do invisível apresentada durante o SPFW é um de seus trabalhos de maior repercussão. A partir da apresentação em Goiânia, o estilista recebeu a REVISTA UFG para esta entrevista comentada, quase um ensaio. Jum Nakao fala de sua formação e de seu trabalho, além de contextualizar o design de moda no Brasil. Participou da entrevista ainda a professora Maristela Novaes. Revista UFG / Dezembro 2009 / Ano XI nº 7 163 entrevista . JUM NAKAO JUM NAKAO Como você percebe seu trabalho no contexto do design de moda atual? Percebo meu trabalho como um projeto que se desdobra à medida que vai tomando corpo. Para isto, é preciso que eu compartilhe o processo e confie na autonomia da equipe que vai realizar fragmentos do trabalho para que a ideia antes mental resulte na coleção que vai para a passarela, ou no trabalho que será exposto numa galeria de arte. Há algum tempo, especialmente depois da apresentação da coleção Costura do Invisível (SPFW 2004), meu trabalho não é mais o de estilista, ou não é apenas este. Ele foi ampliado para outras ações como oferecer palestras corporativas sobre o processo criativo, a exemplo desta em Goiânia. Participo também de cursos sobre desenvolvimento de produto nas escolas de moda no Brasil, realizo performances e exponho trabalhos em galerias e espaços públicos. Acredito que exista uma forte ligação entre moda, ambiente (interiores) e artes, porque a moda é a relação da pessoa com o seu entorno e para mim, o trabalho criativo está em formar e transformar pessoas. A costura do invisível é um marco na sua carreira e também na história do design de moda no Brasil. Ao transformar o processo de produção da coleção em um rol de produtos – o livro homônimo (Senac, 2005) e a palestra que circula pelo Brasil desde 2004 –, você transpôs o sistema produtivo de moda que chega ao varejo e estendeu este projeto específico para alcançar outros públicos além da plateia do desfile e dos jornalistas que escreveram sobre ele. Como foi este processo, esta coleção de papel? Esta coleção foi a última que apresentei no São Paulo Fashion Week. Na apresentação que uso em palestras, começo a contar essa história a partir de 182 dias antes do desfile. O processo, transformado em uma animação que acompanha a minha fala, apresenta a importância da colaboração das pessoas que participaram das muitas etapas de execução das roupas de papel. Criei uma narrativa que demonstra a intenção, a motivação para a realização deste trabalho, que era a busca por novos ares, a vontade de sair do lugar conhecido, do hermético. Visitar novos lugares, estar sensível e atento aprendendo a se perder pelo mundo e a buscar sentido no banal, na vida cotidiana, criando uma nova conexão com a realidade. Para isto foi preciso formular as perguntas certas para a inquietude. O que importa neste e em qualquer trabalho de arte, de criação, é a sua capacidade transformadora. Toda inovação tende a ser reprimida num primeiro momento, mas não há ação revitalizadora sem que se desconstrua para construir. Este trabalho, A costura do invisível, foi considerado o desfile da década na França e desde 2004 o desfile se desdobrou e transformou-se em referência para as palestras. 164 Revista UFG / Dezembro 2009 / Ano XI nº 7 . entrevista O trabalho em equipe parece ter sido fundamental para o sucesso deste projeto. Uma das primeiras ações foi conversar com a Luminosidade, responsável pelo SPFW, e pedir autorização para a realização do desfile. Muita gente em empresas diferentes e de diversos lugares do Brasil e de outros países participaram de todo o processo. Os papéis foram importados da Inglaterra e levados ao Sul do Brasil e depois para São Paulo para serem rendados a laser. Finalmente, tinha o projeto desenhado. Chegou o momento, então, de coordenar tudo para que o projeto ficasse de pé. A ordem era “transpirar”, dar forma, e para isto era preciso do esforço conjunto da equipe. Aos poucos, as roupas começavam a tomar seu voo. Ficaram suspensas no atelier. A trilha sonora do projeto é do mesmo cara que fez a trilha da apresentação. O conjunto deveria lapidar a percepção do espectador. A imprensa era uma preocupação, porque o projeto não podia ser divulgado à mídia antes da apresentação, já que a performance só seria bem sucedida se fosse preservada até o momento final. No backstage documentamos em filme toda a movimentação antes da entrada das modelos vestidas na passarela. Sete dias antes disto, fizemos a prova dos vestidos. A equipe se dedicava de forma incrivelmente intensa apesar de creditarem o trabalho criativo a Jum Nakao. A roupa sob medida, trabalhada sobre o corpo de cada modelo, ajudou a criar um elo afetivo forte entre modelo e roupa. E como o processo se desenrolou até o final do desfile? Depois dos corpos vestidos já não havia mais as partes cortadas dos papéis. Mais que peças, havia agora um projeto maior. Apenas no último minuto antes da entrada na passarela é que as modelos foram informadas que deveriam rasgar suas roupas na última entrada, na frente da plateia. Esta foi uma estratégia para impactar de forma profunda a plateia, de não banalizar a dor e promover alguma transformação na moda, de perceber a moda. Já pensava no registro desse processo todo. Fotografamos os vestidos nas modelos e eu acompanhava para ver como ficaria a memória do trabalho, e isto envolveu o trabalho de uma equipe técnica que fez o ajuste da luz, a fotometragem da sala. Os 55 minutos daquele dia vão durar para sempre. É assim que o trabalho funciona. É emocionante porque nos desfazemos Revista UFG / Dezembro 2009 / Ano XI nº 7 165 entrevista . JUM NAKAO JUM NAKAO de nós mesmos, é muito dolorido, é um desconcerto. Já sabia que seria meu último desfile. A sensação de saber que está pronto, saber que não dá mais tempo de recuar. Não era a forma final, havia ainda o espectador e, por isso, o rasgo não era o fim e sim o começo. A escolha do papel como material para a confecção das roupas foi importante porque o tecido não nos permite nos desfazermos de nós mesmos, porque os traços, as marcas, o material ainda estão lá. Com os papéis, despi as ideias e elas ficaram expostas, flutuando. Durante sua apresentação você mencionou alguns autores cujo trabalho você aprecia, como Gilles Deleuze e Edgar Morin. De que forma se dá a inserção da pesquisa que antecede a confecção das roupas e da leitura que transforma as concepções do designer de moda? Criatividade é um processo que perpassa muitas ações e que segue se desdobrando. Por isso, a educação é muito importante. Encontrar respostas para suas dúvidas é uma ação contínua do designer e normalmente as respostas chegam quando se está mais sensível ao entorno e a si próprio. Essa criatura sensível precisa, por outro lado, sobreviver nesse mundo capitalista e, então, coloca-se a capacidade produtiva, a realidade, sempre em questão. O impasse se coloca desta forma: continuo? paro? continuo a produzir, mas de que forma? A formulação das soluções resulta das leituras, da pesquisa e de minhas questões com o mundo. 166 Revista UFG / Dezembro 2009 / Ano XI nº 7 . entrevista Referências CHRISTO, Déborah Chagas. Designer de moda ou estilista? Pequena reflexão sobre a relação entre noções e valores do campo da arte, do design e da moda. In: BADUY, Dorotéia. Design de Moda: olhares diversos. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2008. MARINHO, Maria Gabriela S.M.C. Moda: condicionantes sociais de sua institucionalização acadêmica em São Paulo. In: WAJMAN, Solange e ALMEIDA, Adilson José de. Moda, comunicação e cultura: um olhar acadêmico. São Paulo: Arte & Ciência; Nidem – Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Moda/Unip; Fapesp, 2002, p.13-26. Para informação sobre os cursos de Moda no país ver www.inep.gov.br Revista UFG / Dezembro 2009 / Ano XI nº 7 167