CADERNO DE DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS | JOURNAL OF LAW AND PUBLIC POLICIES
Editores-Chefes: Claudia Tannus Gurgel do Amaral e Emerson Affonso da Costa Moura
ECOLOGIA E PANDEMIA
Caderno de Direitos e Políticas Públicas, ISSN a obter, a. 2, v. 2, n. 2, jun./dez, 2020.2, p. 1.
CADERNO DE DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS | JOURNAL OF LAW AND PUBLIC POLICIES
Editores-Chefes: Claudia Tannus Gurgel do Amaral e Emerson Affonso da Costa Moura
ECOLOGIA E PANDEMIA
ECOLOGY AND PANDEMICS
Paulo de Bessa Antunes1
Resumo: O artigo trata, em linhas gerais, das relações entre ecologia e pandemia, procurando
demonstrar que a longa convivência dos Humanos com os animais é fonte de inúmeras
doenças e que, atualmente, a produção industrial de aves, agravou o quadro. É objetivo do
artigo, igualmente demonstrar que há um quadro legal vigente no Brasil que dota o Poder
Público de instrumentos para enfrentar a Pandemia do Covid 19.
Palavras – chave. COVID 19. Direito. Ecologia.
Abstract: The article deals, in general lines, with the relationship between ecology and
pandemic, trying to demonstrate that the long coexistence of Humans beings with animals is a
source of innumerable diseases and that, currently, the industrial production of birds, has
aggravated the situation. The objective of the article is also to demonstrate that there is a legal
framework in force in Brazil that equips the public authorities with instruments to face the
Covid 19 Pandemic.
Keywords; COVID 19. Law. Ecology
Introdução.
A pandemia do COVID 19 estabeleceu uma crise humanitária global 2, conforme
registrado pelo editorial do conceituado jornal médico The Lancet. Dadas as suas origens
naturais, a pandemia do COVID 19, igualmente reforça um dos aspectos mais salientes do
pensamento ecológico que é o medo que é considerado a “expressão mais manifesta da
ecologia”3. Com efeito, a partir da década de 60 do século XX, os “grandes medos” se
tornaram cada vez mais presentes na mídia internacional e no imaginário popular. Martine
Professor Associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO; Coordenador do
Programa de Pós Graduação; Doutor em Direito (UERJ). Elisabeth Haub 2019 Environmental Law Visiting
Professor (Pace University) Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIRIO, Mestre em
Direito (PUC-RJ), Doutor em Direito (UERJ). Vinculação: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro –
UNIRIO. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9423333355767152 ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0375-0213 Email: paulo.antunes@unirio.br
2
Disponível em: < https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2931749-9 > Acesso
em 15/08/2020
3
ALPHANDÉRY, Pierre; BITOUN, Pierre e DUPONT, Yves. O Equívoco ecológico (tradução de Fátima Leal
gaspar). Lisboa: Instituto Piaget, s/d, P. 15
1
Caderno de Direitos e Políticas Públicas, ISSN a obter, a. 2, v. 2, n. 2, jun./dez, 2020.2, p. 2.
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RÉMOND-GOUILLOUD4 aponta que os grandes medos (les grandes peurs)
são,
claramente, uma das origens do Direito Ambiental, tais como Minamata, Torey Canyon,
Seveso, Amoco-Cadiz, Three Mile Island, Agente laranja – Love canal, Bhopal, Tchernobil –
Sandoz, Exxon-Valdez. Os grandes medos geraram repercussões de monta na sociedade e na
mídia, chegando-se a afirmar que “as catástrofes ambientais são o “sal” da cobertura
noticiosa”5. A amplificação midiática de tragédias, de crimes e dificuldades sociais e
econômicas fazem com que o cidadão médio se imagine em um mundo pior do que o dos
“tempos dourados do passado”, um “mundo intolerável”6.
Esses eventos de grande monta passaram a dar o tom da discussão ambiental que se
seguiu. Também não se pode negar a disseminação de diversas distopias que,
invariavelmente, se parecem com ambientes futuros poluídos e politicamente autoritários.
Diante desse contexto, as pandemias ocupam um lugar de destaque no mundo ficcional.
No Brasil, não nos esqueçamos dos acidentes da (1) Refinaria Duque de Caxias em
19727, do caso de (2) Vila Socó (atual Vila São José), Cubatão8 e da contaminação da (3)
Cidade dos Meninos, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro9 e os mais recentes casos de
Mariana e Brumadinho que, seguramente, significaram uma nova dimensão de danos
ambientais no Brasil.
A pandemia da COVID 19 é, certamente, o maior grande medo do século XXI, até a
presente data. A pandemia causada pelo coronavírus, como será brevemente demonstrado,
tem suas origens em questões profundamente relacionadas com um padrão de
RÉMOND-GOUILLOUD, Martine. Du Droit de Détruire – Essai sur le droit de l´environnemnt. Paris: Presses
Universitaires de France. 1989. Pp. 75-82
5
HANNIGAN, John. Sociologia Ambiental – A Formação de uma Perspectiva Social (tradução de Clara
Fonseca). Lisboa: Instituto Piaget. s/d. pg. 88
6
DUMONT, René. Un monde intolérable: le libéralisme en question. Paris, Éditions du Seuil, Coll. « L’histoire
immédiate », 1988.
7
Na madrugada de 30 de março 1972, o que parecia “o fim do mundo” conforme manchete do Jornal A Notícia,
aconteceu na Refinaria Duque de Caxias. Três tanques de GLP devido a um vazamento de gás, explodiram e
deixaram 42 mortos e 40 feridos, segundo números divulgados pelos militares (o país vivia a Ditadura CivilMilitar), a época. Moradores e ex-funcionários, relatam manipulação e que passam de 70 mortes. Disponível em:
< https://diariodorio.com/o-dia-em-que-a-reduc-explodiu/ > Acesso em: 24/06/2020
8
“[U]m operador alinhou inadequadamente e iniciou a transferência de gasolina para uma tubulação (falha
operacional) que se encontrava fechada, gerando sobrepressão e ruptura da mesma, espalhando cerca de 700 mil
litros de gasolina pelo mangue. Muitos moradores visando conseguir algum dinheiro com a venda de
combustível, coletaram e armazenaram parte do produto vazado em suas residências. Com a movimentação das
marés o produto inflamável espalhou-se pela região alagada e cerca de 2 horas após o vazamento, aconteceu a
ignição seguida de incêndio. O fogo se alastrou por toda a área alagadiça superficialmente coberta pela gasolina,
incendiando as palafitas.
O número oficial de mortos é de 93, porém algumas fontes citam um número extra oficial superior a 500 vítimas
fatais (baseado no número de alunos que deixou de comparecer à escola e a morte de famílias inteiras sem que
ninguém reclamasse os corpos), dezenas de feridos e a destruição parcial da vila. Disponível em: <
https://cetesb.sp.gov.br/analise-risco-tecnologico/grandes-acidentes/vila-soco-cubatao/ > Acesso em: 24/06/2020
9
Disponível em: < https://www.oeco.org.br/colunas/paulo-bessa/16856-oeco-11797/ > Acesso em: 24/06/2020
4
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desenvolvimento econômico e, igualmente, com um padrão de apropriação dos bens
ambientais. Por outro lado, a pandemia tem servido de motivação para atitudes retrógradas
que vem sendo tomadas worldwide e que se fundam em concepções equivocadas de liberdade
individual e de conhecimento científico, negando o valor das medidas de saúde pública
tomadas em benefício da coletividade.
1 - Urbanização e qualidade do ar
A vida dos seres humanos em cidades é bastante antiga, podendo se afirmar que as
primeiras cidades foram estabelecidas há aproximadamente 5.000 anos no Egito, na
Mesopotâmia e na Índia. Todavia, a maior parte da população mundial não habitava nas
cidades. Foi somente após a revolução industrial que a urbanização cresceu dramaticamente e,
com ela, toda uma sorte de moléstias associadas, em especial as respiratórias. O século XX foi
espetacular no crescimento da urbanização, pois em seu início a população urbana mundial
não ultrapassa os 13% da totalidade dos seres humanos, sendo que ao seu final, os habitantes
das cidades já representavam cerca de 47% de toda a população mundial 10. Em 1960 o mundo
alcançou o seu primeiro bilhão de habitantes, o segundo em 1985 e o terceiro em 2002. A
população mundial alcançará o seu pico em 2064 com cerca de 9,73 bilhões de pessoa e, a
partir daí, deverá declinar para um número em torno de 8,79 bilhões em 2100 11.
A
Organização das Nações Unidas [ONU] estima que até 2050, cerca de 70% da população
mundial viverá nas cidades.12 Como foi muito bem observado por Mike Davies13, a
urbanização foi mais rápida do que o previsto pelo Clube de Roma que, em seu relatório, os
limites do crescimento traçava um futuro sombrio para a questão demográfica.
Muito embora haja tendência à estabilização da população mundial, em números
muito elevados, as cidades atraem cada vez mais pessoas, pois apesar das dificuldades,
MIDDLETON, Nick. The Global Casino – An introduction to environmental issues. London and New York:
Routledge. Fifth Edition, 2013. Pg. 211
11
Stein Emil Vollset, Emily Goren, Chun-Wei Yuan, Jackie Cao, Amanda E Smith, Thomas Hsiao, Catherine
Bisignano, Gulrez S Azhar, Emma Castro, Julian Chalek, Andrew J Dolgert, Tahvi Frank, Kai Fukutaki, Simon I
Hay, Rafael Lozano, Ali H Mokdad, Vishnu Nandakumar, Maxwell Pierce, Martin Pletcher, Toshana Robalik,
Krista M Steuben, Han Yong Wunrow, Bianca S Zlavog, Christopher J L Murray. Fertility, mortality, migration,
and population scenarios for 195 countries and territories from 2017 to 2100: a forecasting analysis for the
Global Burden of Disease Study
Disponível em< https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S01406736%2820%2930677-2 > acesso em 14/08/2020
12
Disponível em< https://news.un.org/pt/story/2019/02/1660701 > Acesso em 14/08/2020
13
DAVIES, Mike – Planeta Favela (tradução de Beatriz Medina). São Paulo: Boitempo. 2006, pg. 13
10
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oferecem melhores condições do que as áreas rurais, na maioria dos países. As 10 maiores
cidades do mundo,14 na atualidade, são: (1) Tokyo – 37.435.191,00 habitantes; (2) Délhi –
29.399.141,00; (3) Xangai 26.317104,00; (4) São Paulo 21.846.507,00; (5) Cidade do
México 21.671.908,00; (6) Cairo 20.484.965,00; (7) Dacca 20.283.562,00; (8) Mumbai
20.185.064; (9) Pequim 20.035.455,00 ; (10) Osaka 19. 222.665,00. Tal ordem será alterada
em 2100, quando as 10 maiores cidades do mundo serão: (1) Lagos, Nigéria – 88.344.661,00;
(2) Kinshasa – República Democrática do Congo – 83.493.793,00; (3) Dar Es Salam –
Tanzânia 73.678.022, 00; (4) Mumbai – Índia 67.239.804,00; (5) Délhi – Índia
57.334.134,00; (6) Cartum Sudão – 56.594.472,00; (7) Niamey – Níger 56.149.120,00; (8)
Dacca – Bangla Desh 54.249.845,00; (9) Kolkata – Índia 52.395.315,00; (10) Cabul –
Afeganistão 50.269.659,0015. Como se pode ver, cada vez mais as cidades africanas e do sul
da Ásia ostentaram os primeiros postos entre as maiores cidades do mundo.
Sabemos que as cidades têm um potencial enorme de atração de novas populações,
pois a oferta de empregos é maior do que no campo. Entretanto, a velocidade do crescimento
das cidades faz com que seja muito difícil que a infraestrutura necessária acompanhe o ritmo
de expansão populacional. Assim, precárias condições de vida acabam prevalecendo diante da
falta de serviços básicos necessários para a população. Logicamente, o processo de
urbanização e crescimento populacional geram um custo ambiental muito elevado, pois
pressionam as florestas, os recursos hídricos e a fauna, sendo certo que o desequilíbrio
ambiental é um fator propagador de moléstias.
É importante registrar que a urbanização
acima mencionada, desde longa data se faz à custa de problemas ambientais e de saúde que
são por todos conhecidos. A Londres de Charles Dickens é um bom exemplo do começo
acelerado de urbanização e dos problemas sociais e ambientais por ela causados 16. No século
XIX as condições de vida dos pobres na Inglaterra foram bem descrita por F. Engels:
Todas as grandes cidades, possuem um ou vários «bairros de má reputação»
—onde se concentra a classe operaria. E certo que é frequente a pobreza
morar em vielas escondidas, muito perto dos palácios dos ricos, mas, em
geral, designaram-lhe um lugar à parte, onde, ao abrigo dos olhares das
classes mais felizes, tem de se safar sozinha, melhor ou pior. Estes «bairros
de má reputação» são organizados em toda a Inglaterra mais ou menos da
mesma maneira, as piores casas na parte mais feia da cidade; a maior parte
das vezes são construções de dois andares ou de um só, de tijolos, alinhadas
14
Disponível em< https://worldpopulationreview.com/world-cities > Acesso em 15/08/2020
Disponível em< https://sites.ontariotechu.ca/sustainabilitytoday/urban-and-energy-systems/Worlds-largestcities/population-projections/city-population-2100.php > Acesso em 15/08/2020.
16
ANTUNES, Paulo de Bessa . Oliver Twist Disponível em< https://www.oeco.org.br/colunas/paulobessa/16895-oeco-15133/ > acesso em 15/08/2020
15
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em longas filas, se possível com caves habitadas e quase sempre
irregularmente construídas. Estas pequenas casas de três ou quatro divisões e
uma cozinha chamam-se cottages e constituem vulgarmente em toda a
Inglaterra, exceto nalguns bairros de Londres, as habitações da classe
operaria. Habitualmente, as próprias ruas não são planas nem pavimentadas;
são sujas, cheias de detritos vegetais e animais, sem esgotos nem canais de
escoamento, mas em contrapartida semeadas de charcos estagnados e mal
cheirosos. Para além disso, o arejamento torna-se difícil, pela má e confusa
construção de todo o bairro, e como aqui vivem muitas pessoas num
pequeno espago, e fácil imaginar o ar que se respira nestes bairros operários.
De resto, as ruas servem de secadouro, quando há, bom tempo; estenderemse cordas duma casa a casa fronteira, onde se pendura a roupa branca e
húmida.17
Atualmente, tais condições são internacionalmente conhecidas como slums (favelas),
ainda que não haja um consenso claro sobre o significado do termo e o que, de fato, se
constitui em favela. Há, entretanto, uma definição operacional que contempla os seguintes
parâmetros: (1) inadequado acesso à água potável, (2) acesso inadequado ao saneamento e a
outras infraestruturas, (3) baixa qualidade estrutural das habitações, (4) excesso de população
e (5) status residencial inseguro18. Nas condições específicas do Rio de Janeiro poderíamos
acrescentar o domínio territorial por parte de grupos de traficantes de drogas ou de milícias,
ou ainda uma combinação dos dois. 19
Não se desconhece que graves problemas respiratórios estão presentes nas grandes
aglomerações urbanas e nas áreas fortemente industrializadas ou que tenham
grande
circulação de veículos automotores, sendo que, no Brasil, as queimadas também ocupam
papel de destaque20. A primeira grande tomada de consciência para a questão relativa à
poluição atmosférica se deu em Londres, no ano de 1952, no episódio conhecido como
“grande smog”21, uma grande inversão térmica iniciada aos 3 de dezembro de 1952 e, eu qem
poucos dias, acarretou forte recrudescimento das taxas de internação e morte causadas por
17
ENGELS, Friederich. A situação da classe trabalhadora em Inglaterra (tradução de Anália C. Torres). Porto:
Afrontamento, 1975, p. 59
18
United Nations Human Settlements Programme,The Challenge of Slums Global Report on Human Settlements
2003. London: Earthscan. 2003. p.12
19
BARCELLOS, Christovam e ZALUAR, Alba. Homicídios e disputas territoriais nas favelas do Rio de Janeiro,
in, Rev Saúde Pública 2014;48(1):94-102. DOI:10.1590/S0034-8910.2014048004822
20
No Brasil, as mortes em decorrência da poluição atmosférica aumentaram 14% em dez anos. Nesse período, o
número de óbitos por Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNT) passou de 38.782 em 2006 para 44.228
mortes em 2016. A constatação é do estudo Saúde Brasil 2018, do Ministério da Saúde, que utilizou dados do
Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). O número de mortes evitáveis por essas doenças cresceu,
assim como a exposição ao O3 (poluição) em todo o país, com destaque para os grandes centros urbanos e
estados castigados pelas queimadas., Disponível em< https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45500mortes-devido-a-poluicao-aumentam-14-em-dez-anos-no-brasil > Acesso em 19/08/2020
21
ANTUNES, Paulo de Bessa, Algo além dos aviões de carreira. Disponível em
https://www.oeco.org.br/colunas/paulo-bessa/19798-algo-alem-dos-avioes-de-carreira/ > acesso em: 15/08/2020
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problemas respiratórios. “O cheiro do fumo penetrava nos edifícios pelas portas e janelas
abertas.” No Japão, no ano de 2007, as montadoras de automóveis fizeram acordo com
inúmeras pessoas que foram prejudicadas pela poluição atmosférica, pagando-lhes
indenizações por danos.
As pioneiras leis modernas de proteção ao meio ambiente foram essencialmente
voltadas para a proteção da saúde humana, causa inicial da preocupação ambiental.
A
primeira grande legislação voltada para a proteção da qualidade do ar foi o Clean Air Act (Lei
do Ar Limpo) do Reino Unido22, aprovada pelo parlamento em 1956, como resposta ao
grande smog de 1952; Os Estados Unidos estabeleceram a sua legislação federal de qualidade
do ar em 197023; a Alemanha em 197424.
Em âmbito nacional, uma das primeiras normas a definir o conceito de poluição foi o
Decreto-Lei nº 303, de 23 de fevereiro de 1967 que instituiu o Conselho Nacional de Controle
da Poluição Ambiental, editado com base no Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de
1966. De acordo com o artigo 1º da norma, a poluição foi definida como qualquer alteração
das propriedades físicas, químicas ou biológicas do meio ambiente (solo, água e ar), originada
por substância sólida, líquida, gasosa ou em qualquer estado da matéria que, direta ou
indiretamente fosse “nociva ou ofensiva à saúde à segurança e ao bem-estar das populações”,
ou ainda que criasse “condições inadequadas para fins domésticos, agropecuários, industriais
e outros”, ou mesmo que ocasionasse danos à flora e à fauna. O Decreto-Lei fixou uma
proibição geral de poluição ao determinar em seus artigos 2º e 3º que não se admitiria o
despejo de resíduos oriundos de atividades industriais, comerciais, agropecuárias ou
domiciliares que poluíssem as águas, o que seria confirmado pelo estabelecimento de
“padrões
para os despejos” ou por “padrões de qualidade para as águas receptoras.”
Disposições similares foram instituídas para as emissões atmosféricas.
Nesta altura, é
imperioso que se consigne que um dos mais relevantes e controversos princípios do direito
ambiental, o princípio da precaução tem a sua origem imediata nas preocupações relativas à
qualidade do ar e suas repercussões na saúde humana.25
2 - Integração Homem – natureza
22
Disponível em < https://www.legislation.gov.uk/ukpga/Eliz2/4-5/52/enacted > Acesso 17/08/2020
Disponível em< https://www.epa.gov/clean-air-act-overview/clean-air-act-requirements-and-history > Acesso
em 17/08/2020.
24
Disponível em < https://www.umweltbundesamt.de/en/immission-control-law#undefined > acesso em
17/08/2020
25
Disponível em < http://www.precautionaryprinciple.eu/ > Acesso em 17/08/2020
23
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A principal dificuldade para enfrentar às questões relativas à integração Homem –
Natureza deriva do fato de que não há uma definição consensual de natureza, sendo “evidente
que nem todos têm uma mesma ideia de natureza”26. Apesar de tais dificuldades, uma das
bases do pensamento ecológico contemporâneo é o resgate da integração entre o Homem e a
natureza, contestando as concepções alicerçadas sobre a dicotomia Homem X Natureza que
foram muito comuns no século XIX27. As “naturezas humanas”, conforme anotado por Paul
R. EHRLICH28, dependem das naturezas das outras espécies, pois nós coevoluímos com
muitas delas, influenciando-se mutuamente. Acrescenta o autor que, frequentemente,
esquecemos o papel que desempenhamos na evolução “natural”. E fato, o ambiente que nos
cerca, seja ele urbano ou rural é, em grande medida, obra humana. Como, novamente, nos
lembra REICHHOLF o “progresso é resultado de mudanças” 29. É relevante registrar que,
“hoje em dia muitas pessoas têm dificuldade de imaginar que todo o conjunto de raças
caninas, com sua variedade de aparências, tenha se originado de lobos”.
30
Assim, a
integração entre humanos e a natureza é dinâmica e não se pode ter uma concepção fixa e
rígida sobre ela.
A atividade humana sobre o planeta faz com que o mundo se modifique em função das
necessidades de sobrevivência da Humanidade. Neste sentido, podemos afirmar que a
natureza é uma construção humana. Não há, portanto, uma natureza intocada. Evidentemente
que a preocupação com a ecologia e com os recursos naturais é função da sobre-exploração de
tais recursos e, portanto, corresponde a um momento de sua escassez, ou pelo menos de uma
percepção de escassez. Não se pode deixar de consignar que, assim como há diversas
concepções de natureza, há, igualmente, diferentes ideias relativas às relações entre o Homem
e a Natureza. A domesticação das plantas e animais é, sem dúvida, uma forma assumida por
tal relacionamento vis à vis ao mundo natural. Da mesma forma, a produção industrial de
aves, a criação extensiva e intensiva de gado e pequenos animais e, também, a agricultura
industrial, são as novas formas de relação Humano – Natureza, o seu “estágio superior”. O
26
ALPHANDÉRY, Pierre; BITOUN, Pierre e DUPONT, Yves. O Equívoco ecológico (tradução de Fátima Leal
Gaspar). Lisboa: Instituto Piaget, s/d, p 7.
27
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco – rumo à uma outra modernidade (tradução de Sebastião Nascimento). São
Paulo: Editora 34. 2ª edição. 2011, p. 9
28
EHRLICH, Paul R. Human Natures – Genes, Cultures, and the Human Prospect. Washington: Island Press.
2000, p. 44
29
REICHHOLF, Josef H. Breve História da Natureza no último milênio (tradução de Ana Paula de Oliveira,
Luiz Arturo Obojes e M. Estela Heider Cavalheiro). São Paulo: Senac. 2008, p. 186
30
REICHHOLF, Josef H. Breve História da Natureza no último milênio (tradução de Ana Paula de Oliveira,
Luiz Arturo Obojes e M. Estela Heider Cavalheiro). São Paulo: Senac. 2008, p. 187
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que nos cabe indagar é se tal modelo de produção industrial de animais e produção agrícola
industrial é capaz de ser sustentável, social, econômica e sanitariamente?
Estudos científicos têm demonstrado que a produção em larga escala de aves, a maior
proximidade entre animais e seres humanos, as aglomerações urbanas e tantos outros
fenômenos modernos têm contribuído para a expansão de doenças contagiosas que, devido às
maiores facilidades de comunicação e ao fenômeno da “miopia econômica” têm propiciado
situações de elevado risco social.
Enquanto as possibilidades de aplicabilidade econômica são claramente
previstas, desenvolvidas, testadas e, de acordo om todas as regras da arte,
esclarecidas, no caso dos riscos é sempre necessário tatear no escuro e então
deixar-se surpreender e consternar profundamente com seu aparecimento
“imprevisto” ou mesmo “imprevisível”. 31
As pandemias modernas demonstram que a industrialização das relações HumanosNatureza tem sido um elemento importante para a expansão de vírus e outros elementos
patógenos. O novo estágio de tais relações entre o mundo natural e a cultura humana,
demanda uma reformulação ampla, sob pena de custos humanos e econômicos elevadíssimos.
A artificialização do mundo natural, a industrialização da vida animal e as alterações radicais
dos ecossistemas, como regra, podem ter efeitos extremamente nocivas para os humanos.
Sabemos que as principais epidemias, pandemias e doenças infecciosas têm origem em
animais silvestres, doenças tais como: peste, varíola, raiva, ebola, tifo, febre amarela e AIDS,
tiveram origem em animais silvestres. “Em algumas situações, o vírus permanece
praticamente o mesmo que nas espécies hospedeiras evolutivas e com múltiplas oportunidades
para se espalhar de animais para seres humanos”.32 Não se culpe, contudo, os animais. A
questão está na forma como nós nos relacionamos com eles.
Esta transferência dos vírus de uma espécie para outra, claramente demonstra que não
podemos descurar de medidas de segurança e biossegurança necessárias para o atual estágio
civilizatório, no qual a mediação tecnológica e industrial entre o Homem e a Natureza é cada
vez mais presente. Assim, pesquisa científica, vacinas e medidas de controle sanitário serão,
cada vez mais, parte de uma realidade inafastável.
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco – rumo à uma outra modernidade (tradução de Sebastião Nascimento). São
Paulo: Editora 34. 2ª edição. 2011, p. 73
32
Disponível em< https://foodsafetybrazil.org/os-coronavirus-origens-ambiental-e-alimentar/> acesso
14/08/2020
31
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3 - Animais e pandemia
A domesticação dos animais e a agricultura foram decisivos para a evolução e
progresso da humanidade. Nas palavras de TOYNBEE33, “a agricultura e a criação de animais
foram, com certeza, as mais importantes de todas as invenções humanas até hoje.” A maior
proximidade com os animais, entretanto, gerou doenças ao longo da História.
Josef H
REICHHOLF34 nos lembra que os pássaros sempre foram objeto da admiração humana,
sendo que na Antiguidade, o augúrio e o auspício eram importantes, porque “se previa o
futuro a partir das asas e das vísceras das aves”. As aves, lamentavelmente, têm sido nos
últimos tempos, importantes vetores de transmissão de doenças contagiosas.
A humanidade já enfrentou diversas pragas ao longo de sua existência. A Bíblia, por
exemplo, fala das 10 pragas do Egito, sendo que das 10, a maioria dizia respeito a danos à
natureza, ou doenças causadas por animais. Entretanto, como se sabe, as relações com os
animais são ambíguas, pois embora eles sejam portadores e transmissores de muitas
moléstias, a vida humana não é viável sem o auxílio deles. A dependência recíproca é
inegável. Acredita-se que a primeira referência à peste bubônica esteja na Bíblia35:
Na Antiguidade, as maiores epidemias registradas foram a peste de Atenas, a peste de
Siracusa, a peste Antonina, a peste do século III, a peste de Justiniano e a Peste negra do
século XIV.36 Não há uma informação precisa sobre as pandemias da antiguidade, nem sobre
o número de vítimas fatais delas resultantes, embora se admita que a peste de Justiniano tenha
matado aproximadamente 25% da população mundial à época.
A Peste Negra
foi a maior, a mais trágica epidemia que a história registra, tendo produzido
um morticínio sem paralelo. Foi chamada Peste negra pelas manchas escuras
TOYNBEE, Arnold. A Humanidade e a Mãe-Terra – Uma história narrativa do mundo (tradução de Pereira e
Alzira Soares da Rocha) Rio de Janeiro: Editora Guanabara. 2ª edição, p. 65
34
REICHHOLF, Josef H. Breve História da Natureza no último milênio (tradução de Ana Paula de Oliveira,
Luiz Arturo Obojes e M. Estela Heider Cavalheiro). São Paulo: Senac. 2008, p. 105
35
1 Samuel 6 1 Quando já fazia sete meses que a arca do Senhor estava em território filisteu, 2 os filisteus
chamaram os sacerdotes e adivinhos e disseram: "O que faremos com a arca do Senhor? Digam-nos com o que
devemos mandá-la de volta a seu lugar". 3 Eles responderam: "Se vocês devolverem a arca do deus de Israel, não
mandem de volta só a arca, mas enviem também uma oferta pela culpa. Então vocês serão curados e saberão por
que a sua mão não tem se afastado de vocês". 4 Os filisteus perguntaram: "Que oferta pela culpa devemos lhe
enviar? " Eles responderam: "Cinco tumores de ouro e cinco ratos de ouro, de acordo com o número de
governantes filisteus, porquanto a mesma praga atingiu vocês e todos os seus governantes. 5 Façam imagens dos
tumores e dos ratos que estão assolando o país e dêem glória ao deus de Israel. Talvez ele alivie a sua mão de
sobre vocês, seus deuses e sua terra. Disponível em < https://www.bibliaonline.com.br/nvi/1sm/6 > acesso em
17/08/2020.
36
REZENDE, JM. À sombra do plátano: crônicas de história da medicina [online]. São Paulo: Editora Unifesp,
2009.
As
grandes
epidemias
da
história.
pp.
73-82.
Disponível
em
<
http://books.scielo.org/id/8kf92/pdf/rezende-9788561673635-08.pdf > Acesso em 17/08/2020
33
Caderno de Direitos e Políticas Públicas, ISSN a obter, a. 2, v. 2, n. 2, jun./dez, 2020.2, p. 10.
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que apareciam na pele dos enfermos. Como em outras epidemias, teve início
na Ásia Central, espalhando-se por via terrestre e marítima em todas as
direções. 37
Estima-se que a Peste Negra tenha levado a óbito entre 75 a 200 milhões de pessoas; a
sua transmissão, na forma bubônica, ocorre por meio da picada de pulgas infectadas. Já na
forma pneumônica, a transmissão se dá por gotículas aerógenas lançadas pela tosse no
ambiente.38 Ratos e moscas foram elementos importantes na disseminação da praga. Se
considerarmos que a população do mundo entre os anos de 1347 e 1351 era de
aproximadamente 400 milhões de habitantes, podemos ter a dimensão da moléstia e dos
estragos por ela causados.
A pandemia que, na época contemporânea, deixou a marca mais forte foi a chamada
gripe espanhola. A “espanhola” foi um fenômeno impressionante que, nas palavras de John
M. BARRY39 matou “mais pessoas em um ano do que a peste bubônica da Idade Média em
um século; matou mais pessoas em 24 semanas do que a AIDS em 24 anos”. Ainda segundo
BARRY, a pandemia de gripe que eclodiu em 1918 foi “o primeiro grande choque entre a
natureza e a ciência moderna”. Apesar do enorme sofrimento e custo humano causado pela
gripe espanhola, a pandemia foi também,
uma história de ciência, de descoberta, de como se pensa e de que modo
mudar a maneira como se pensa, de como, em meio ao caos absoluto, alguns
homens buscaram a frieza da contemplação, a calma absoluta que precede
não a filosofia, e, sim, a ação severa e determinada. 40
É admitido, com elevado grau de consenso, que a gripe espanhola tenha suas origens
nos Estados Unidos, Haskel, Kansas41, expandindo-se daí para o mundo inteiro. Na cidade,
“os agricultores viviam em grande proximidade com os porcos e as aves, e havia bois, leitões
37
REZENDE, JM. À sombra do plátano: crônicas de história da medicina [online]. São Paulo: Editora Unifesp,
2009.
As
grandes
epidemias
da
história.
pp.
73-82.
Disponível
em
<
http://books.scielo.org/id/8kf92/pdf/rezende-9788561673635-08.pdf > Acesso em 17/08/2020
38
Disponível em < https://saude.gov.br/saude-de-a-z/peste > acesso em 17/08/2020
39
BARRY, John M. A Grande Gripe: A história de gripe espanhola, a pandemia mais mortal de todos os tempos
(tradução de Alexandre Raposo, Carmelita Dias, Cássia Zanon, Lívia Almeida, Maria de Fátima Oliva do Coutto
e Paula Diniz). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 13
40
BARRY, John M. A Grande Gripe: A história de gripe espanhola, a pandemia mais mortal de todos os tempos
(tradução de Alexandre Raposo, Carmelita Dias, Cássia Zanon, Lívia Almeida, Maria de Fátima Oliva do Coutto
e Paula Diniz). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 13
41
BARRY, John M. A Grande Gripe: A história de gripe espanhola, a pandemia mais mortal de todos os tempos
(tradução de Alexandre Raposo, Carmelita Dias, Cássia Zanon, Lívia Almeida, Maria de Fátima Oliva do Coutto
e Paula Diniz). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 104
Caderno de Direitos e Políticas Públicas, ISSN a obter, a. 2, v. 2, n. 2, jun./dez, 2020.2, p. 11.
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e galinhas por todo lado”42. Esta proximidade teria favorecido a transferência dos vírus das
aves para os humanos.
Não é objetivo deste artigo produzir uma resenha de todas as pandemias, mas apenas
indicar, em alguns casos, a importância da transmissão animal, como forma de realçar as
correlações entre ecologia e pandemia. É importante relembrar que a gripe provocada pelo
vírus H2N2 (1889-1890) levou 1,2 milhões de pessoas a óbito. A pandemia do vírus da gripe
asiática H2N2 (1957-1958) matou dois milhões de pessoas e a gripe de Hong Kong – vírus
H3N2 (1968-1969) – matou um milhão de doentes. Mais recentes e menos letais, a pandemia
da “gripe aviária” H5N1 (1997-2004) causou cerca de 400 óbitos e a pandemia da “gripe
suína” H1N1 (2009-2010) levou a morte 17 mil pessoas.43
Assim sendo, parece ser seguro que as origens das modernas pandemias podem ser
identificadas na radical transformação da atividade de criação de animais para consumo
humano, em função da produção de gelo artificial.
44
Com efeito, na década de 70 do século
XIX, a tecnologia permitiu a criação de refrigeradores em vagões e porões de embarcações,
facilitando o comércio de longo curso de produtos como frutas e carnes e peixes. Isto fez com
que as “portas para as grandes criações de animais” fossem abertas. Pesquisas sugerem,
inclusive, que o tráfico ilegal de animais possui uma intima relação 45 com o crescimento de
doenças com origens virais. Com efeito, há um importante tráfico ilegal de animais dos
países fronteiriços com a China para este último país, sendo que o Vietnã desempenha um
importante papel neste comércio ilegal que terminará sendo vendido nos mercados e
restaurantes, bem como para a utilização como matéria prima para a medicina tradicional
chinesa de Guangdong, cidade que dista cerca de 500 quilômetros do Vietnã.
A pandemia da COVID 19 tem a mesma origem das pandemias acima citadas: sul da
China e, de lá, espalhou-se para o mundo, inclusive o Brasil.
3.1 - Os efeitos da pandemia
42
BARRY, John M. A Grande Gripe: A história de gripe espanhola, a pandemia mais mortal de todos os tempos
(tradução de Alexandre Raposo, Carmelita Dias, Cássia Zanon, Lívia Almeida, Maria de Fátima Oliva do Coutto
e Paula Diniz). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 103
43
Disponível em < https://foodsafetybrazil.org/os-coronavirus-origens-ambiental-e-alimentar/ > acesso em
17/08/2020
44
UJAVARI, Stefan Cunha. Pandemias – A humanidade em risco. São Paulo: Editora Contexto. 2011, p. 18 e
seguintes.
45
BELL, Diana; ROBERTON, Scott e HUNTER Paul R. Animal origins of SARS coronavirus: possible links
with the international trade in small carnivores, in, Phil. Trans. R. Soc. Lond. DOI 10.1098/rstb.2004.1492
Caderno de Direitos e Políticas Públicas, ISSN a obter, a. 2, v. 2, n. 2, jun./dez, 2020.2, p. 12.
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O Programa as Nações Unidas para o Desenvolvimento fizeram levantamento dos
impactos econômicos da COVID 1946, indicando que
A pandemia COVID-19 é muito mais do que uma crise de saúde: Ela está
afetando sociedades e economias em seu âmago. Embora o impacto da
pandemia varie de país para país, ele provavelmente aumentará a pobreza e
as desigualdades em escala global, tornando o cumprimento dos ODS
[Objetivos do Desenvolvimento Sustentável] ainda mais urgente. Sem
respostas socioeconômicas rápidas, o sofrimento global aumentará,
colocando vidas e meios de subsistência em risco por muitos anos. Respostas
de desenvolvimento imediato nesta crise devem ser empreendidas com um
olhar para o futuro. As trajetórias de desenvolvimento no longo prazo serão
afetadas pelas escolhas que os países fizerem agora e pelo apoio que
receberem.47
Por sua vez, o Fundo Monetário Internacional admite que a economia global sofrerá,
em 2020, uma queda de 4,9%. Para o Brasil, a previsão é de um tombo de 9,1%. 48 Em termos
de custos humanos, a COVID 19 já causou 124.651 óbitos no Brasil (04/09/2020), havendo
infectado cerca de 4.040.163 pessoas49. Globalmente, foram confirmados no mundo
25.884.895 casos de COVID-19 (279.338 novos em relação ao dia anterior) e 859.130 mortes
(6.318 novas em relação ao dia anterior) até 3 de setembro de 202050.
Na América Latina a estimativa da Comissão Econômica para a América Latina –
CEPAL para o desempenho da economia regional em 2020 já era pessimista antes da
expansão do Corona vírus. Em dezembro, a comissão previu crescimento de 1,3% para este
ano. De acordo com as projeções da Cepal para 2020, se houver uma redução de 1,8% do
produto interno bruto em toda a América Latina e Caribe por causa da doença, a taxa de
desemprego na região poderá aumentar em dez pontos percentuais. Se o cenário for
confirmado, o número de pessoas pobres da região vai subir dos atuais 185 milhões para 220
milhões – contingente maior que a população brasileira (211,2 milhões, nos cálculos do
IBGE). O número de pessoas em extrema pobreza (sem recursos para a manutenção da
capacidade de trabalho) subirá dos atuais 67,4 milhões para 90 milhões (quase o dobro da
população do Estado de São Paulo, 46,1 milhões). Em termos percentuais, o total de pobres
46
Disponível em < https://www.undp.org/content/undp/en/home/coronavirus/socio-economic-impact-of-covid19.html > acesso em 04/09/2020
47
A UN framework for the immediate socio-economic response to COVID-19, pg. 3, Disponível em <
https://unsdg.un.org/sites/default/files/2020-04/UN-framework-for-the-immediate-socio-economic-response-toCOVID-19.pdf, Acesso em 04/09/2020
48
Disponível em< https://nacoesunidas.org/covid-19-recuperacao-sera-mais-lenta-apos-crise-como-nenhumaoutra-preve-fmi/ > acesso em 04/09/2020
49
Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51713943 > acesso em 04/09/2020
50
Disponível em < https://www.paho.org/pt/covid19 > acesso em 04/09/2020
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pode a chegar a 35% da população latino-americana e o total de extremamente pobres, a
14,5%. Segundo a Cepal, os países latino-americanos totalizam 620 milhões de pessoas, mais
de um terço dessas são nascidas no Brasil.51
A expansão da pandemia gerou enormes discussões, em todo o mundo, assim como no
Brasil. Não se trata, porém, de uma novidade. Com efeito, a chamada “Revolta a Vacina”, nos
albores do século XX, suscitou discussões políticas bastante parecidas com o negacionismo
originado pela COVID 19 .
A proteção da saúde humana pelo Direito, tem sido vista como intervenção do Estado
na vida privada das pessoas e, em seus primórdios encontrou muita resistência, como é o caso
da chamada “Revolta da Vacina”, conjunto de acontecimentos político-sociais ocorrido no
Rio de Janeiro no início do século XX, em reação à vacinação obrigatória contra a varíola 52. É
interessante observar que a reação foi contra a efetiva aplicação de norma já existente no
Direito brasileiro, pois a vacinação contra a varíola era obrigatória para crianças desde 1837 e
para os adultos, a partir de 1846. Curiosamente, apesar da obrigatoriedade, a produção da
vacina em escala industrial “só começou em 1884.” Por iniciativa de Oswaldo Cruz, em 1904
foi aprovada a Lei nº 1.261, de 31 de outubro que reintroduzia a vacinação obrigatória contra
a varíola. A lei serviu de pretexto político para aqueles que estavam em desfavor do governo
Rodrigues Alves, como resultado da Revolta da Vacina houve 945 prisões, 461 deportações,
110 feridos e 30 mortos em menos de duas semanas de conflitos, colimando com a revogação
da obrigatoriedade da vacinação obrigatória. Entretanto, “[m]ais tarde, em 1908, quando o
Rio foi atingido pela mais violenta epidemia de varíola de sua história, o povo correu para ser
vacinado, em um episódio avesso à Revolta da Vacina.”
No Brasil independente, a Lei de 1º de outubro de 1828 que dispunha sobre a
competência das Câmaras Municipais, estabelecia em seu artigo 66 e parágrafos combinado
com o artigo 71, a competência em matéria de saúde para os legislativos municipais. A
Constitucionalização da matéria, entretanto, só ocorreu em 1934 e, desde então tem sido uma
constante em todas as Constituições federais que se seguiram. Assim, não há dúvida que a
vacinação compulsória em matéria de proteção da saúde pública é medida já incorporada ao
patrimônio jurídico nacional.
A Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975 que dispõe sobre as ações de Vigilância
Epidemiológica e sobre o Programa Nacional de Imunizações, também estabelece as normas
51
ANTUNES, Paulo de Bessa. Para não dizer que não falei da COVID-19, Disponível em <
http://genjuridico.com.br/2020/04/08/covid-19-calamidade-publica/ > Acesso em 04/09/2020
52
Disponível em < https://portal.fiocruz.br/noticia/revolta-da-vacina-2 > acesso em 03/09/2020
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para a notificação compulsória de doenças. De acordo com o diploma legal cabe ao Ministério
da Saúde [MS] coordenar as ações relacionadas com o controle das doenças transmissíveis,
orientando sua execução inclusive quanto à vigilância epidemiológica, à aplicação da
notificação compulsória, ao programa de imunizações e ao atendimento de agravos coletivos à
saúde, bem como os decorrentes de calamidade pública. A lei estabelece a possibilidade de
vacinação compulsória.
O regulamento da Lei nº 6.259/1975 (Decreto nº 78.231, de 12 de agosto de 1976)
estabelece, em seu artigo 27, que serão obrigatórias em todo o território nacional as vacinas
definidas pelo MS, contra as doenças controláveis por essa técnica de prevenção,
consideradas relevantes no quadro nosológico nacional. Cabe ao MS elaborar as relações dos
tipos de vacina cuja aplicação será obrigatória em todo o território nacional e em
determinadas regiões do País, de acordo com comportamento epidemiológico das doenças.
Em função da pandeia do COVID 19 foi editada a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020
que, dentre outras medidas, para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente
do corona vírus, poderão ser adotadas, entre outras, medidas: determinação de realização
compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d)
vacinação e outras medidas profiláticas, por exemplo (artigo 3º). As medidas compulsórias,
evidentemente, não são discricionárias, mas estão vinculadas às evidências científicas e
análises sobre as informações estratégicas em saúde, devendo ser limitadas no tempo e no
espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública. Além da
norma recém mencionada, o Brasil, tem uma vasta produção legislativa para enfrentar a
pandemia53, com medidas de natureza econômica, social e sanitária.
Inobstante o fato de que a vacinação obrigatória no Brasil é mais do que centenária,
ainda existem movimentos, com as mais diferentes motivações que buscam se abster da
compulsoriedade da vacinação. Felizmente, as Cortes de justiça têm, sistematicamente,
reafirmado o princípio da vacinação obrigatória quando se tratar de saúde pública. O Tribunal
de Justiça de Minas Gerais, ao decidir questão relativa às relações entre vacinação e liberdade
religiosa, entendeu que
A vacinação consiste não apenas em direito individual, mas em direito
coletivo, uma vez que tem por objeto a diminuição, ou até mesmo a
erradicação de doenças. A interpretação que se faz é que as normas de
regência buscam garantir a saúde do indivíduo e, por consequência, de toda a
população, sendo, portanto, algo acima da escolha pessoal, vez que envolve
53
Disponível em < http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-covid-19 > acesso em
04/09/2020
Caderno de Direitos e Políticas Públicas, ISSN a obter, a. 2, v. 2, n. 2, jun./dez, 2020.2, p. 15.
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a diminuição da exposição ao risco e ao contágio de determinadas doenças e
ainda evita o reaparecimento de doenças consideradas erradicas. Em
consideração Ao Princípio Constitucional do Melhor Interesse, não podem
os genitores se recursarem a vacinar os filhos quando se busca alcançar o
pleno desenvolvimento daqueles, o que, por certo, envolve o direito à saúde
em todas as suas formas, incluídas as de prevenção por meio da vacinação. O
interesse do menor se sobrepõe a qualquer interesse particular dos genitores.
A imposição da imunização não fere o direito à liberdade religiosa, uma vez
que não sendo esse absoluto, é passível de ponderação e, assim, não há se
falar no direito de escolha dos pais, mas no direito da criança à saúde. (TJMG - AC: 10518180076920001 MG, Relator: Dárcio Lopardi Mendes, Data
de Julgamento: 12/12/2019, Data de Publicação: 17/12/2019)
No mesmo sentido foi a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
1) De acordo com o art. 14, parágrafo único, do ECA, é obrigatória a
vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.
Incidência da Portaria nº 3.318/2010, do Ministério da Saúde, que elenca as
vacinas obrigatórias para crianças, adolescentes, adultos e idosos. 2)
Irretocável a aplicação de medida protetiva para, após avaliação por médico
pediatra, submeter o menor às vacinas obrigatórias, observada sua idade.
APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70053524765, Oitava
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins
Pastl, Julgado em 18/04/2013) (TJ-RS - AC: 70053524765 RS, Relator:
Ricardo Moreira Lins Pastl, Data de Julgamento: 18/04/2013, Oitava Câmara
Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 23/04/2013)
Assim, não há dúvida que, do ponto de vista sanitário e legal, a vacinação obrigatória e
medida adequada e conforme ao ordenamento jurídico. Por tudo que foi demonstrado acima,
caso sejam descobertas vacinas contra a pandemia do COVID 19, não há dúvida de que tal
vacinação será compulsória, conforme previsto na legislação vigente no País.
Conclusões
A pandemia da COVID 19, assim como muitas doenças contagiosas, tem sua origem
na transferência interespécies de vírus. Tais transferências são amplamente facilitadas pelo
crescimento das populações urbanas, produção industrial de animais, más condições sanitárias
urbanas e mazelas desenvolvidas no artigo. Do ponto de vista jurídico, o enfrentamento de
doenças infecciosas é antigo, sendo certo que o Direito brasileiro, desde o século XIX, possui
mecanismos aptos a reduzir os danos sociais de tais moléstias. Entretanto, as doenças
infecciosas e epidemias têm sido utilizadas politicamente, como foi o caso da “Revolta da
Vacina”, com prejuízos para a sociedade.
As pandemias e epidemias são fenômenos sanitários que acompanham a Humanidade
em sua longa convivência com os animais. Entretanto, a transformação das relações Homem –
Caderno de Direitos e Políticas Públicas, ISSN a obter, a. 2, v. 2, n. 2, jun./dez, 2020.2, p. 16.
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Natureza e, em especial, a produção industrial de animais têm servido de base para o aumento
do fenômeno com graves consequências econômicas, sociais e de saúde pública. Logo, uma
vez produzidas vacinas eficazes e seguras, a sua utilização compulsória é medida que se faz
urgente e, perfeitamente legal, como demonstrado no artigo.
O controle da pandemia, inclusive por meio da vacinação compulsória – caso haja uma
vacina eficaz -, é medida juridicamente viável e recomendável do ponto de vista da saúde
pública. Economicamente, a pandemia está causando danos que levarão muito tempo para
serem recuperados e que, sem um enfrentamento que possa dar segurança sanitária às
populações, dificilmente será superado, pois a circulação do coronavirus tem custos sociais e
humanos elevadíssimos. O negacionismo é, na prática, a construção de um universo paralelo
que somente prejudica a sociedade, a economia e, sobretudo, a saúde das pessoas.
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