ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
Arte, Imagem, Guerra:
Picasso, Guernica, Brasil*
Francisco Alambert
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Titular da USP. É autor de,
entre outros livros, D. Pedro I: o imperador cordial. 1. ed. São Paulo: Imprensa Oficial/Secretaria de
Estado da Educação, 2006.
RESUMO
O painel Guernica de Picasso é uma das obras mais vistas e influentes do século XX. Mais do
que simplesmente uma obra de arte moderna decisiva, sua imagem marcou o imaginário do
século, tornando-se quase uma imagem-símbolo de problemas extra-artísticos como as
guerras, a injustiça social, etc. Ao mesmo tempo, sua vinda ao Brasil para a Bienal de 1953,
centraliza um debate que já havia se iniciado e que terá consequências fundamentais para a
história da arte brasileira: o debate entre figurativos e abstratos. Dos anos 50 até pelo menos
os anos 1980, o quadro será elemento de polêmicas e de recontextualizações expressivas no
debate artístico e político local, tanto quanto o foi no resto do mundo. Este artigo discute as
circunstâncias históricas e os usos que deram à imagem desta obra de Picasso sua força
permanente no imaginário social e na cultura artística e política contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE: Guernica; Picasso; imagem.
ABSTRACT
Picasso´s panel, Guernica, is one of the most seen and influential work of art of the twentieth
century. More than simply an important modern work of art, its image marked the imaginary of the
century, becoming almost an image-symbol of extra-artistic ´s problems as wars, social injustice,
etc. At the same time, its exhibitions in Brazil during the Biennial of art in 1953, centralized a
discussion that had already been started and that would have some fundamental consequences to
Brazil´s history of art: the debate between figurative and abstractive. From the fifties until at least
the 1980´s, Guernica would be an element of controversy and of expressive recontextualisetion in
the artistic debate and local politics, as it was all over the world. This article discusses the historical
circumstances and the uses that gave to the image of this Picasso´s work its permanent strength in
the social imaginary, in the artistic culture and in the contemporary politics.
KEY WORDS: Guernica; Picasso; image.
*
Esse ensaio é resultado de duas conferências que apresentei em 2007. A primeira em encontro promovido pela Universidade do
Texas, em Austin, sobre os 70 anos de Guernica, organizado por Andrea Giunta. A segunda, em Londrina, no primeiro encontro
promovido pelo Laboratório de Estudos da Imagem da UEL. Agradeço especialmente a R. Jackson Wilson pela leitura crítica afiada
e pela tradução para o inglês da conferência que deu origem a esse texto. Agradeço também aos meus colegas da UEL, aos alunos
e aos demais professores e pesquisadores presentes nos debates em torno do problema da imagem na História,
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FRANCISCO ALAMBERT
Arte, Imagem, Guerra: Picasso, Guernica, Brasil
O que o sociólogo cultural ou o historiador cultural estudam são as práticas sociais e as
relações culturais que produzem não só ‘uma cultura’ ou ‘uma ideologia’ mas, coisa
muito mais significativa, aqueles modos de ser e aquelas obras dinâmicas e concretas em
cujo interior não há apenas continuidades e determinações constantes, mas também
tensões, conflitos, resoluções e irresoluções, inovações e mudanças reais.
Raymond Williams1
I
Guernica é uma obra de arte que está em
nosso imaginário. Todo mundo conhece, ou
imagina, a obra e seu significado. Ela é uma
imagem da cultura, um fantasmagoria em
nossa memória – ou então parte ativa da
estrutura de sentimento do século XX. Por isso
já foi muito estudada. Quase todos os mais
importantes críticos e historiadores da arte, e
não só dela, do século XX tiveram algo a dizer
sobre a obra de Picasso 2 . Sua imagem
reproduzida corta a segunda metade do século
através de todos os meios de reprodução e
divulgação existentes. Ela não apenas está
em nosso imaginário, como ela é nosso
imaginário, em qualquer das definições que
possamos dar a esse termo.
Quando uma obra de arte se torna uma
“imagem” do imaginário? Como diferenciar
ou especificar tanto “imagem” quanto
“imaginário”? Ou ainda, perguntado de outra
forma: quando e porque uma obra de arte
“fica” em nosso imaginário, ou em nossa
cultura, se perpetuando como uma
“imagem”? Gosto de uma frase de Sérgio
Milliet sobre isso: “Uma obra não fica tão
1
2
3
somente porque reflete a sensibilidade de seu
momento histórico. Mas fica ainda menos se
não a reflete.” 3. No nosso caso, estamos
falando de uma obra que “refletiu” seu
momento histórico mas que também continua
a refletir outros momentos históricos – daí se
perpetuar em nossa estrutura de sentimento
e poder assim ser revista e readaptada.
“Estrutura de sentimento” é um termo
caro ao vocabulário de Raymond Williams,
que o usava no lugar de “mentalidade” ou
“espírito do tempo” ou mesmo “imaginário
coletivo ou histórico”. A arte, mesmo sendo
uma atividade restrita (“elitista”) e específica
(pois “fala”, se comunica por uma linguagem
própria sua), é parte ativa da experiência
comum de uma época, de sua “cultura”: é
parte da estrutura de sentimento dessa
época, que se transforma conforme é
tensionada por novas experiências ativas.
Williams provavelmente usou o conceito pela
primeira vez em seu livro Preface to Film, de
1954. Em obra decisiva posterior, Cultura e
Sociedade (1961), aplicou o conceito para
estudar em conjunto os “romances industriais”
da metade do século XIX na Inglaterra . No
livro, diz que tais romances “ilustram certas idéia
WILLIAMS, R. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 29.
Para ficar entre os mais conhecidos, ver: SCHAPIRO, Meyer. A unidade da arte de Picasso. São Paulo: Cosac Naify, 2002; CHIPP,
Herschel. B. Picassos’s Guernica. History, transformations, meanings. Londres: Thames and Hudson, 1988 e ARNHEIN, Rudolf. The
Genesis of a Painting: Picasso’s Guernica. Berkeley: University of California Press, 1973.
MILLIET, Sérgio. “Da pintura moderna”. Três conferências. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955, col. “Os Cadernos
de Cultura”, p. 39.
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ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
comuns, em que se fundava a resposta direta
de sentimento e pensamento à nova forma da
sociedade. São os fatos da sociedade nova e a
estrutura de sentimentos em elaboração que
buscarei esclarecer à luz dos romances”4.
Ao final do estudo, conclui: “esses
romances industriais, quando lidos em
conjunto, ilustram de modo suficientemente
claro não apenas o tipo de crítica habitual ao
industrialismo, que se vinha estabelecendo
como tradição, mas também a estrutura geral
de sentimentos que igualmente se formara e
iria ser força determinante. O reconhecimento
do mal equilibrava-se com o temor de se ver
envolvido pela luta. A simpatia não
redundava em ação, mas em retirada.
Podemos todos observar quanto essa
estrutura de sentimento persistiu e se
prolonga até hoje na literatura e no
pensamento social de nosso próprio tempo”5.
Estrutura de sentimento não é uma outra
forma da noção idealista de “espírito do
tempo”. Se para Goethe (ou Hegel), o
“Zeitgeist” definia-se por um conjunto de
opiniões que predominavam em um período
histórico, sobrederterminando o pensamento
geral, para Williams a “estrutura de
sentimento” nasce das inter-relações entre
práticas sociais e hábitos mentais herdados
que se relacionam, por sua vez, com as formas
de produção e de organização sócioeconômica, resultando no sentido que damos
à experiência do vivido. A análise da estrutura
de sentimento trata de “descrever a presença
de elementos comuns em várias obras de arte
do mesmo período histórico que não podem
ser descritos apenas formalmente, ou
parafraseados como afirmativas sobre o
mundo: a estrutura de sentimento é a
4
5
6
7
articulação de uma resposta a mudanças
determinadas na organização social. Por essa
via, dá conta do aspecto formante da obra de
arte. O artista pode até perceber como única
a experiência para a qual encontra uma
forma, mas a história da cultura demonstra
que se trata de uma resposta social a
mudanças objetivas”6. A arte condensa essa
experiência: “é na arte, principalmente, que
o efeito total da experiência vivida é
incorporado e expresso”7. E isso nos trás de
volta a Picasso e sua Guernica.
Guernica é uma obra de arte tão
importante como arte quanto como imagem
da cultura e na cultura. Aliás, mesmo não
sendo “realista”, ela é símbolo e alegoria
(imagem?) de um momento da arte
engajada, da história do cubismo. Isto é certo.
Porém é certo também que a obra ela mesma
nasceu de uma imagem imaginada (Picasso
não estava na cidade de Guernica quando
pintou seu painel, estava em Paris, e viu o
desastre da guerra através de fotos de jornais),
que é resultado de um acontecimento
histórico, de proporções trágicas: o
bombardeio de uma cidade indefesa, o início
da II Guerra, a ditadura de Franco, o nazifascismo, a barbárie. Creio que isso tudo é
parte daquilo que nos liga a Guernica, ou que
liga Guernica a Abu-Ghraib, à realidade do
mundo contemporâneo.
Mas para nós a imagem da obra de
Picasso (e não apenas a obra em si de Picasso)
é mais forte, poderosa e longeva que as
imagens reais da tragédia, que foi bastante
retratada, ou de suas representações
populares (como as imagens e os outdoors
que apareceram pela cidade de Guernica e
por toda a Espanha republicana durante a
WILLIAMS, R. Cultura e Sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1969, p. 105.
Idem, p. 125.
CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 153.
WILLIAMS, R. Drama from Ibsen to Brecht. Londres: The Hogarth Press, 1987, p. 18.
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Guernica destruída (1937)
Fronte de Aragon (1938)
Guerra Civil e mesmo depois dela). Esse é um
dos paradoxos de Guernica. Aliás, a imagem
da tragédia já é uma imagem – é uma foto.
O clichê diz que a imagem vale mais que mil
palavras e a obra de arte é um objeto de
reflexão culta e elitista. Mas de Guernica, a
cidade, o que nos resta como significante
contundente é mais uma obra de arte do que
mil fotos – ou mil palavras.
Guernica é um caso raro em que uma obra
é revolucionária no campo autônomo (e
outrora revolucionário) da arte moderna e
também do ponto de vista da memória
histórica. Nesse sentido, cabe perguntar: de
alegoria ela passaria a símbolo, ou sua força
deriva justamente da capacidade única de
aliar a alegoria da barbárie (a dor, a injustiça,
a guerra) e a efetivação de uma
transformação formal no campo da arte, ou
seja, de criar uma nova experiência, tensionar
a estrutura de sentimento de sua época e da
nossa? (criar uma nova experiência
desalienada e motivadora, aliás, era a utopia
da arte moderna em seu momento
revolucionário). Creio que essa seria e melhor
hipótese. Por isso a obra nos é mais presente
do que outras tantas que trataram do mesmo
tema, como a tela “Premonição da guerra
civil”, de Dali, ou os trabalhos pioneiros de
André Masson, que certamente influenciaram
Picasso (assim como pinturas mais antigas,
como Il Compianto, de Giotto, ou O triunfo
da morte, de Bruegel).
Grande parte da obra artística de Picasso
causou celeuma por toda a parte,
especialmente os momentos dessa obra que
desde Guernica colocava em xeque a política
da guerra e a segurança do capitalismo
triunfante. Na França e principalmente nos
Estados Unidos, onde o Realismo
Democrático rivalizava ainda com a arte
moderna, mesmo depois de Guernica, a
posição de Picasso podia ser terrivelmente
incômoda. Francis Frascina faz um bom
apanhado da celeuma político-ideológica
trazida por uma obra posterior, o Massacre na
Coréia, dentro da política cultural dos EUA
em plena Guerra Fria:
60
Quando Massacre na Coréia foi exposto no
Salão de maio de 1951 [...], as questões de
engajamento político, realismo social e
inteligibilidade foram mais uma vez
polemizadas na imprensa de esquerda. Os
Modernistas, na época e desde então,
atacaram a pintura, considerando-a ‘um
fracasso estético’. [...] A comunidade artística
de Nova York ficou desconcertada com o
‘novo Guernica’ de Picasso, no qual o
agressor contra mulheres e crianças indefesas
era a máquina de guerra americana, não a
alemã. No contexto dos primeiros temores
macarthistas, a visão estereotipada de
Picasso sofreu um bombardeio: ele foi
caracterizado como um gênio despolitizado
e extraterreno, cuja compreensível preocupação
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, V. I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008
ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
com a paz [...] havia sido explorada por
comunistas amorais e doutrinários. Depois que,
no dia 16 de agosto de 1949, o congressista
Dondero, de Michigan, fizera o seu discurso
sobre’A arte moderna acorrentada ao
comunismo’ na Câmara de Deputados
americana, os órgãos artísticos institucionais
passaram a se empenhar muito para
convencer os americanos de que [...] a arte
moderna não era um complô comunista para
solapar os valores e a democracia ocidentais.
Alfred H. Barr Jr., Nelson Rockfeller e Thomas
Hess (diretor da Art News) vinham se
esforçando muito para identificar a arte
moderna com a liberdade. De repente, lá
estava Picasso, com inúmeras obras no
MOMA, atrapalhando sua causa8.
superar e a que a sociedade do espetáculo
reativou através de suas imagens de beleza,
força, heroísmo, fama, etc. Guernica, hoje,
existe dentro desse universo contraditório.
Mas, se vivemos na Sociedade do
Espetáculo, se a maquinação do capitalismo
não pode viver sem criar, comunicar e
absorver imagens, o que resta de
revolucionário em Guernica, em sua imagem,
em Picasso, etc?
Guernica e Picasso são um pouco como a
famosa foto de Che Guevara: elementos de
uma cultura pop que esvazia as imagens de
seu conteúdo justamente por cultuá-las como
símbolos não do que elas dizem, mas da
própria sociedade que as consome como
mercadorias. Quanto maior seu valor de
exposição, maior seu valor de culto, como
mostrou Walter Benjamin, atualizando a
noção de valor de Marx para o mundo da
cultura (de massas, mas não apenas):
outdoors com a reprodução de Guernica
podem significar, ou vender, qualquer coisa9.
Picasso - O Massacre na Coréia (1951)
Como se vê, não é apenas a obra que toma
esse sentido difuso, mas também seu autor.
Picasso é ele próprio a encarnação de todas
as celeumas. E por isso é ele também
convertido em clichê da modernidade: o
“artista incorformista”, “radical”, “sensível”
– pra não dizer “amante da vida”,
“mulherengo”, etc. Enfim, o “gênio”, essa
categoria romântica que a arte moderna quis
8
9
Guernica outdoor - EUA
FRASCINA, F. “A política da representação” In WOOD, P. et alii. Modernismo em disputa – a arte desde os anos quarenta. São Paulo:
Cosac & Naify Edições, 1998, p. 141.
A arte como mercadoria e produto da Indústria Cultural seria o último estágio do domínio da forma-mercadoria. O pensador e
ativista francês Guy Debord denominou esse novo momento de Sociedade do Espetáculo, um novo complexo social em que se
“domina os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente. Ele nada mais é do que a economia desenvolvendo-se
por si mesma”. Nesse sentido concordando com Benjamin e Adorno, Debord nota que a forma-mercadoria se sobrepõe à idéia
da arte como um valor em si, transformando integralmente a cultura em mercadoria – na verdade, a “mercadoria vedete da
sociedade espetacular” -–, o que fará com que, no mundo contemporâneo, ela assuma “o papel motor do desenvolvimento da
economia, equivalente ao do automóvel na primeira metade e ao das ferrovias na segunda metade do século XIX”. Sobre o
assunto, ver DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. Desenvolvi o tema da relação entre arte
e mercadoria em outro ensaio: ALAMBERT, F. “Arte e mercadoria”. In WILLIAMS, R. Palavras-chave. São Paulo: Boitempo, 2007.
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Isso também é verdade. Mas não só.
Mesmo a imagem superexposta pode ter um
caráter negativo em determinados contextos.
Um acontecimento recente ajudar a
entender, e a embaralhar ainda mais, essa
rede tensa de significações e re-signicações.
Em 05 de fevereiro de 2003 a tapeçaria que
reproduz o painel de Picasso, que está na sala
de segurança da ONU em Nova York (ou seja,
Entretanto, diplomatas disseram a jornais
norte-americanos que a ordem partiu do
governo Bush. O fato é que controlar a imagem
da obra era e é fundamental para formatar a
ideologia da guerra contemporânea.
Mostrar tudo, esconder tudo, ao mesmo
tempo e sempre que possível: essa parece
ser a divisa da política da imagem na
sociedade pós-moderna. Hoje, Guernica está
exposta no Museu Reina Sofia, na Espanha,
de onde não pode sair, por ordem de Picasso,
e para onde voltou apenas depois da morte
de Franco, também por desejo do artista. Está
lá depositada como um objeto sagrado. Mas
ela ressurge nas ruas, em diferentes
manifestações por todo o mundo contra as
Guerras contemporâneas (e, em casos raros,
Guernica ONU
como símbolo tanto da dor da guerra quando
do desejo da paz perpétua que essa entidade
afirma ter como missão), foi coberta por uma
cortina azul. A ordem para a censura teria
vindo das próprias redes de televisão que iriam
transmitir os discursos pró-invasão do Iraque
feitos por Colin Powell e John Negroponte.
Guernica manifestação contra guerra
também naquelas que são a favor dos
conflitos). A reprodução do quadro é
readaptada para funcionar como denúncia e
sátira política, ou como uma releitura realista
do horror (remetendo à carnificina de Falluja
de maneira proposital), ou ainda ser colocada
como uma instalação na própria cidade de
Guernica de hoje, dentro de uma Espanha que
se tornou parte da “coalisão”norte-americana
em sua mais recente ação bélica.
Colin Powell e Guernica
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DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, V. I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008
ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
Guernica colagem (2003)
E para o Brasil, o que é Guernica?
Todas essas questões até aqui referidas,
creio eu, são fundamentais para entender a
história contemporânea. E o historiador, da
arte ou não, tem obrigação de lidar com elas,
a não ser que queira se alienar ou participar
desse mesmo mundo do espetáculo como
mero espectador (ou como “agente secreto”).
Creio que uma análise histórica, tanto artística
quanto social, tanto formal (imanente) quando
“conteudística”, dialética enfim, pode nos
ajudar a pensar concretamente essas questões.
Quero aqui ensaiar esse tipo de ação,
propondo uma interpretação histórica de
Guernica no Brasil do século XX. Mas não
veremos uma análise imanente da obra,
veremos sim uma análise de sua
representação, do significado de sua imagem
adaptada e readaptada. Porque nós temos
uma história, particular, com essa obra, da
mesma maneira que temos uma história
particular com o século XX, do qual somos parte
ativa e mediatamente dependente, para usar
uma fórmula de Adorno criada justamente para
entender a relação entre arte e sociedade.
II
Em 1972, Mário Pedrosa (o mais importante
crítico de arte brasileiro do século XX) usou a
recente morte de Picasso como símbolo da
“crise” e da própria morte da Arte Moderna. A
10
idéia podia não ser original, mas vindo de quem
vinha (talvez o primeiro crítico a cunhar a
expressão “pós-moderno”), revestia-se de
significado. Picasso foi, no Brasil como em outras
partes, o símbolo da arte moderna. E Guernica,
para muitos sua obra maior, foi também um
marco para polêmicas e complexas
interpretações. A presença destacada da obra
na II Bienal de São Paulo (1953) serviu para
materializar esta que é desde então a mais
importante mostra de arte feita na América
Latina e cuja existência contribuiu para
consolidar determinadas tendências na arte
latino-americana. Logo em seguida, porém, a
estupenda influência de Guernica e da obra de
Picasso decaiu diante do desejo de autonomia
e de criação de uma vanguarda artística,
brasileira e internacional ao mesmo tempo,
partindo das vertentes abstrato-construtivas.
Apenas depois do fim da ditadura militar
instaurada em 1964, que acabou com esse
projeto de criação de uma vanguarda local, é
que os jovens artistas da “Nova Figuração”
redescobriram Picasso como ícone de sua
revolta. É essa história que pretendo contar.
A história da vinda de Guernica ao Brasil
começa antes mesmo da obra existir. Entre
1926 e 1928, auge do primeiro modernismo
no Brasil, o pintor Cícero Dias realizou uma de
suas obras mais importantes, o painel Eu vi o
mundo..., ele começava no Recife. Já tomado
pelo primitivismo modernista e pelo desejo de
desenvolver grandes painéis, Dias se mudou
para Paris, em 1937. Ao ver Guernica, recémfinalizada, pressentiu novas possibilidades
estéticas, tanto políticas quanto expressivas,
para o tipo de pintura em painel que cultivava
desde os anos 20. Ao mesmo tempo, Dias e
Picasso tornaram-se amigos íntimos10.
Cf. Cícero Dias – Uma vida pela pintura. São Paulo: Simões de Assis Galeria de Arte, 2001; BENTO, Antonio & CARELLI, Mário. Cícero
Dias. Banco Icatu S.A., 1997; CAMPOS, Eduardo; ESCHER, Chico. Cícero Dias – décadas de 20 e 30. São Paulo: Fundação Armando
Alvares Penteado, 1994; ANJOS Jr., Moacir & MORAIS, Jorge Ventura. Picasso ‘visita’ o Recife: a exposição da Escola de Paris em
março de 1930. Estud.av (online). 1998, v.12, n° 34. http://www.scielo.br/scielo.php?. Sobre Dias e o abstracionismo ver PEDROSA,
Mário. “Entre Pernambuco e Paris” e “Cícero Dias ou a Transição Abstracionista”. In Dimensões da arte. Rio de Janeiro: Ministério
da Educação e Cultura/Departamento de Imprensa Nacional, 1964.
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FRANCISCO ALAMBERT
Dias e Picasso em Paris (1950)
Será através dessas relações pessoais que
Dias conseguirá a autorização de Picasso para
que Guernica e outras obras sejam enviadas
para a II Bienal de São Paulo, em 1953. O
anedotário costuma dizer que o
“supersticioso” Picasso não queria que sua
obra saísse dos Estados Unidos enquanto
durasse a ditadura de Franco. Cícero Dias
argumentou que o Brasil era um país pobre,
porém em processo de desenvolvimento,
tanto econômico quanto cultural, e por isso
seria importante a arte moderna participasse
dessas transformações.
Assim, Guernica chegaria a um país que a
esperava ansiosamente11. Para a maioria dos
principais artistas e intelectuais modernistas
brasileiros, Picasso era, como definiu Brassaï,
o “símbolo da liberdade reencontrada”. Por
ser esse “símbolo” é que Picasso e Guernica
foram o centro da II Bienal de São Paulo,
justamente aquela que foi vista como a
celebração tanto da arte moderna quanto da
democracia (símbolos da liberdade
reencontrada) e do futuro do Brasil.
Se oficialmente a II Bienal celebrava os
400 anos da cidade de São Paulo, o mais
vigoroso pólo de desenvolvimento brasileiro,
a cidade “moderna” por excelência,
igualmente ela deveria celebrar outros
desejos que então se mostravam como
possibilidades tangíveis: a recente
consolidação
da
democracia,
o
desenvolvimentismo econômico (naqueles
anos o Brasil estava próximo de se tornar o
país de maior crescimento econômico no
mundo), o estabelecimento da arte moderna
como parceira dessa abertura ao futuro. Além
do mais, ainda que as transações para a
criação da Bienal (e, antes dela, do Museu de
Arte Moderna de São Paulo) tivessem sido
feitas à sombra da paranóia anticomunista e
dos
interesses
norte-americanos
personalizados pelo MoMa e por Nelson
Rockfeller (que veio ao Brasil diversas vezes
para negociar a formação tanto do Museu
quando das Bienais), ela vinha a consolidar
uma hegemonia dos intelectuais e artistas de
esquerda que se propuseram a criar uma nova
pedagogia da modernidade a partir da arte12.
Foi neste contexto que Guernica chegou
ao Parque do Ibirapuera, junto com Marcel
Duchamp, George Braque e Paul Klee. Ao
lado deles, obras de artistas vindos do
Paraguai a Cuba, da Indonésia a Iugoslávia,
11
Em 1947, o sociólogo francês Roger Bastide, então professor da USP, polemizou, em artigo publicado no jornal O Estado de São
Paulo, com o crítico Luís Martins a respeito do caráter social da arte em confronto com seu caráter “apolíneo” ou “dionisíaco”. Em
seu artigo, Bastide busca enraizar seus argumentos através da influência da guerra e dos eventos sociais mais catastróficos nas
mudanças mais significativas trazidas pela arte moderna. Dá como exemplos a influência da guerra no expressionismo de Lasar
Segall, da rudeza do sertão na obra de Tarsila do Amaral e da tragédia de Guernica “nos monstros” de Picasso. Para ele, tanto o
“inconsciente freudiano” quanto a dinâmica da arte moderna estavam intimamente determinados pela catástrofe e decomposição
da vida social. Ver BASTIDE, R. “A pintura e a vida”. O Estado de São Paulo, 16/10/1947, p. 6.
12
Sobre o assunto ver o livro que escrevi em parceria com Polyana Canhête: Bienais de São Paulo: da era do Museu à era dos curadores.
São Paulo: Boitempo, 2004. Ver também AMARANTE, Leonor. As Bienais de São Paulo – 1951 a 1987. São Paulo: Projeto, 1989.
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ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
do Egito a Noruega. Como disse o crítico inglês
Guy Brett, “foi uma das mais completas
exposições de arte moderna ocidental já
montada até aquela ocasião”, onde
praticamente toda a complexidade da
cultura contemporânea na forma da arte
podia ser vista13. O Estado brasileiro já havia
então incorporado a arte moderna de tal
forma que o mitológico arquiteto Walter
Gropius, que também teve uma sala
especial na II Bienal, disse: “Como no Brasil,
em nenhum lugar do mundo existem tantos
edifícios públicos de construção
moderna” 14 . De fato, as coisas haviam
mudado e pretendiam mudar ainda mais.
Pouco antes da II Bienal, um dos mais
violentos e apaixonados debates da história
da arte tomava força: a querela entre os
artistas (e críticos) que defendiam a figuração
(a maioria comunistas) e os abstracionistas
(também comunistas, trotskistas ou
socialistas). Mário Pedrosa, o maior porta-voz
dos abstratos, defendia que estes seriam os
responsáveis por “libertar o homem, erguê-lo
acima do cotidiano”, enquanto que os
defensores da representação figurativa
apenas concebiam a arte como “um nobre
instrumento de educação, mas despido de
autonomia”15. Este debate explode dentro da
Bienal de 1953. Como entender Guernica e
o resto da obra de Picasso dentro desse debate
sectário e engajado passou a ser uma das
grandes questões da arte moderna brasileira.
O debate abstração/figuração era o
fundo, mas Guernica era o centro. De tal
modo que os jornais já chamavam aquela
exposição de a “Bienal de Guernica”. Um
artigo convidava a ver Picasso no Ibirapuera
pagando a quantia de “apenas quinze
cruzeiros” – o preço do ingresso para a
exposição “que não tinha preço” –, para em
seguida calcular (em “duzentos milhões de
cruzeiros!”) os valores do seguro das obras no
Ibirapuera. Guernica e Picasso eram as
atrações dos jornais, os preferidos do público
e também de boa parte dos novos artistas
(figurativos ou não). Os depoimentos sobre
isso são abundantes. Recentemente, o
importante fotógrafo brasileiro Thomaz
Farkas, relembrando sua vida e sua
participação na II Bienal, disse que “Guernica
apareceu aqui como um milagre”.
Mas os defensores do abstracionismo,
como Mário Pedrosa, descobriam outros
“milagres” nesta Bienal. O crítico elogiou as
salas especiais, destacando o caráter
“histórico pedagógico” que proporcionavam.
Porém, para ele os marcos maiores da II
Bienal foram as salas do Cubismo, do
Futurismo e do Neoplasticismo, além de
alguns artistas “protagonistas” da arte
moderna, como Munch,
Klee, os
abstracionistas Kandinski e Mondrian, e a sala
de Alexander Calder (cuja participação
também foi negociada por Cícero Dias em
Paris).
Irônico, Pedrosa notou que Guernica
trouxe definitivamente a febre muralista para
a arte brasileira16. Isto é verdade, mas é
verdade também que a influência de Guernica
no Brasil já existia mesmo antes da obra vir
para o país. Por exemplo, o pintor Clóvis
Graciano sofreu a influência do Cubismo
picassiano de tal maneira que podemos ver
13
BRETT, G. “Um salto radical”. In ADES, Dawn. Arte na América Latina: a era moderna ,1820-1980. São Paulo: Cosac&Naify, 1997,
p. 254. Tradução brasileira de Art in Latina América: The Modern Era, 1829-1980. Yale University Press, 1989.
14
“Gropius para o repórter: ‘Como no Brasil em nenhum lugar do mundo existem tantos edifícios públicos de construção moderna”,
Saldanha Coelho, Diário de Notícias, 01/1954.
15
PEDROSA, M. “O momento artístico”. In ARANTES, O. (org.). Acadêmicos e modernos. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 243.
16
PEDROSA, Mário. “Dentro e fora da Bienal”. In Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 53.
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, V. I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008
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FRANCISCO ALAMBERT
em sua série Bombardeio, um eco de
Guernica, que a antecedeu somente em
alguns anos17.
Portinari viu Guernica pela primeira vez
em 1942, em Nova York, na mesma época
em que realizou quatro grandes murais para
a Fundação Hispânica da Biblioteca do
Congresso, em Washington, com temas
referentes à história latino-americana. Em
1943, de volta ao Brasil, e sob o impacto tanto
da Segunda Guerra Mundial quando da ditadura
Vargas, realizou oito painéis conhecidos como
Série Bíblica, claramente “decorrência do
desenho e do conteúdo de Guernica”19.
Clovis Graciano - Bombardeio
Jacqueline Barnitz notou que as pinturas
de Portinari nos anos 1940, assim como vários
outros artistas, foram mais influenciadas por
Guernica do que pelo modelos vindos do
muralismo mexicano (então o principal
modelo da arte engajada) por conta de sua
“força expressiva e pela ausência de
narrativa”. O “impacto de Guernica”, é ainda
a historiadora norte-americana quem diz, “é
especialmente visível na série Retirantes de
1944”18. De fato, tanto nas lágrimas de pedra
do quadro Jeremias, quanto em uma obra
como Mulher chorando (1937), é visível a
influência de Picasso.
Portinari - Retirantes (1944)
Esta “angústia da influência” de Guernica
para a arte mural de Portinari e seu duplo
sentido – funcionar como referência ao
mesmo tempo em que essa referência
deveria ser superada – foi também notada,
na época, por Mário Pedrosa. Mas sua leitura
encaminha outra conclusão. Segundo ele,
dessa vez analisando o mural A missa,
17
BARATA, Mário. “Guernica e a influência de Picasso no Brasil”. In Pablo! Pablo! Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1981,
pp. 5-6
Segundo a leitura de Barnitz, “Portinari’s refugees emboided the universal condition of human misery rather than racial problems,
yet at the same time, they were victims of a specifically Brazilian phenomenon – drought in the sertão”. BARNITZ, Jacqueline.
Twentieth-century art of Latin America. Austin, Texas: University of Texas Press, 2001, p. 87.
19
BARATA, Mário. “Guernica e a influência de Picasso no Brasil”. In Pablo! Pablo! Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1981,
pp. 5-6.
18
66
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, V. I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008
ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
Portinari “abandonou as tonalidades cinzas
de sua fase precedente”. Esse abandono
marcaria uma diferença para com a influência
picassiana: “Picasso em Guernica limitou-se
ao preto e branco. O mestre brasileiro não
teve medo das tremendas dificuldades de
uma composição tão vasta em têmpera [...]
A composição resistiu ao clareamento natural
da têmpera, depois de seca, mantendo-se
dentro da escala tonal escolhida pelo artista.
Foi uma prova de mestre”20. Está claro que
Pedrosa “lia” a “superação” de Picasso por
Portinari como um exemplo do trabalho do
artista em seu caminho da figuração para a
abstração. A influência de Guernica deveria
ser superada.
Mas nem todos pensavam assim. No
mesmo ano em que Picasso terminava
Guernica, o crítico Sérgio Milliet (o
organizador da II Bienal) escrevia em um
ensaio de juventude: “É preciso retornar a
uma concepção menos esotérica da arte.
Impõe-se a pesquisa de humanidade como
um treino imprescindível à volta do artista,
esse filho pródigo, à arte honesta, sincera, feita
de sangue e carne, que foi a de seus
antepassados maiores”21. Essa posição típica
do “retorno à ordem”, mas com um certo
apelo ao engajamento, se justificava no
momento histórico do Brasil. Em meio a uma
ditadura (o Estado Novo varguista) e às portas
da II Guerra Mundial, o artista era chamado
a interferir, a dialogar com o público. A
inovação plástica ficava em segundo plano,
ou melhor, ficava subordinada à capacidade
do artista em criar uma problematização de
sua época em contato com o público. E
Picasso é citado como o grande exemplo. Em
um ensaio escrito poucos anos depois, o crítico
brasileiro abandona a pregação pela inovação
do “assunto” e pela “comunicabilidade”,
militando agora a favor de uma “qualidade
plástica” que seria a referência para o
entendimento, e o julgamento, mesmo de
obras que tratassem de temas tão urgentes e
violentos quanto a guerra. Novamente a arte
de Picasso é citada como exemplo22.
Em 1951, ano em que se inaugurou a
primeira Bienal de São Paulo, Milliet já não
pensava nem segundo os termos do “retorno
à ordem”, nem da “qualidade plástica” e nem
mesmo das querelas em torno da oposição
figurativismo versus abstracionismo. Apenas
uma questão permanecia: a “comunicação
com o público”. Se o abstracionismo tinha
um ponto fraco a ser superado seria
justamente a “supressão do auditório”, sua
recusa em comunicar, em dar ao leigo acesso
a seu discurso.
Essa questão do público tinha, no Brasil
daqueles anos, um sentido particular. Afinal,
tratava-se de um país “jovem”, que saltava
rapidamente na direção do desenvolvimento
capitalista avançado e que sonhou incorporar
criativamente a vanguarda cultural
modernista, re-adaptada e remodelada
diante das peculiaridades nacionais. A arte
moderna devia educar o público para o novo
país, o novo mundo, e o “futuro” (de
preferência socialista) que nos era reservado.
Por isso, aqui, mais que em qualquer outra
parte, ela devia “comunicar”.
A questão era: de que forma a arte
moderna poderia comunicar a liberdade
conquistada em suas formas? Essa era a
questão de fundo que permeava o confronto
violento entre defensores do neofigurativismo, de fundo cubista, e os
abstracionistas. Ainda em 1951, o arquiteto
Lucio Costa (o planejador de Brasília) escreveu
20
PEDROSA, Mário. “A missa de Portinari”. In Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 32.
MILLIET, Sérgio. “Posição do pintor”. Ensaios. São Paulo: Brusco & Cia, 1938, p. 142.
22
MILLIET, Sérgio. “A pintura e a guerra”. Pintura quase sempre. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1944, p. 162.
21
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, V. I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008
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FRANCISCO ALAMBERT
um artigo em que defendia que tanto a
figuração quanto a abstração eram válidas
na medida em que representavam uma
liberdade criativa sem domínios rígidos e sem
regras impostas de fora do campo artístico.
Haveria muitas maneiras de ser
“contemporâneo”. Milliet empolgou-se com
a idéia.
Essa idéia de um caminho ainda moderno,
porém efetivamente plural e múltiplo, foi a
idéia que rondou o início do projeto das
bienais de São Paulo. Para os pensadores
imbuídos desse projeto, que cabia
especialmente ao Brasil, uma nação “virgem”,
em pleno processo de modernização e já
devidamente “acostumada” às misturas e as
pluralidades da formação cultural, a arte de
Picasso seria o melhor exemplo, e Guernica
sua grande realização, pois combinava
“emoção e inteligência” de tal forma que
seria a negação das oposições simplistas. A
questão, dizia Milliet, não era uma “volta ao
expressionismo” ou ao figurativismo: tratavase da comprovação da necessidade vital da
expressão comunicativa, da arte
“apaixonada”, cujo exemplo maior seria
Guernica.
A prova disso é que, em fins dos anos 50,
depois da retrospectiva da II Bienal e da
exibição de Guernica, a fama de Picasso no
Brasil atingia o seu máximo culto. A tal ponto
que o crítico Luís Martins identificava o artista
não apenas com a pintura moderna: Picasso
era a própria cultura moderna, o “homem
símbolo do nosso tempo, como Charlie
Chaplin, como Freud, como Einstein”23.
Mas se Picasso era essa encarnação
mitológica da modernidade, Guernica
representava um momento de mudança, de
quase revolução na arte de Picasso e,
23
24
portanto, na própria modernidade. Segundo
Martins, com essa obra nascia não apenas
um novo caminho estético, mas um novo
compromisso do artista24. Desde então, a
busca por uma estética “neo-expressionista”,
expressão da gravidade e da imediaticidade
de uma revolta política efetiva (portanto, de
uma revolução) seria (o crítico escreve em
1960) a tarefa do artista moderno, como era
a tarefa que Picasso se impôs. A urgência da
vida moderna pedia uma expressão cujo
segredo Guernica guardava.
E esse segredo se mostrava iminente. No
início dos anos 60, além das crises que
prenunciavam a chegada da ditadura militar,
o mundo em plena Guerra Fria, portanto em
plena ameaça da volta da “guerra total”,
agora talvez definitiva, e diante da tragédia
da sobrevida do stalinismo soviético, Guernica
podia ser convocada a se reapresentar. Creio
que por isso, em 1962, o jornalista, crítico de
arte e militante socialista Geraldo Ferraz
resolveu reacender Guernica em versos e em
forma de protesto. Em seu livro Guernica:
poema vozes do quadro de Picasso, feito para
ser distribuído e que trazia em sua contra-capa
o aviso ‘é livre a publicação, tradução,
representação sem qualquer direito autoral,
em qualquer parte do mundo”, justificou assim
seu esforço:
Há vinte e cinco anos, que tantos já se
passaram, acompanhamos, ‘vendo’ e
‘ouvindo’, a imortal acusação de Guernica, a
obra de arte emergente do bombardeio de
26 de abril de 1937. Picasso fez de seu
quadro a encarnação ativa do protesto que
subscrevemos, naqueles dias de derrota. Na
verdade, derrotados continuamos até hoje,
diante de uma ditadura implantada em
conseqüência direta do período subversivo,
representado pelos extremismos totalitários.
MARTINS, Luís. Os pintores. São Paulo: Cultrix, 1960, p. 257.
Idem, p. 256.
68
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, V. I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008
ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
Ao rever o noticiário, deparamos a
justificativa para a ação da Divisão Condor,
que atuou na Espanha, e possivelmente
contra Guernica, quando uma publicação
militar alemã inseria o bombardeio das
‘cidades abertas’ no contexto da ‘guerra
total’, exprimindo tudo isso com uma frase
conclusiva: ‘o fundamento desse tipo de
guerra está de acordo com o nível elevado
de nossa civilização’. É a subversão
totalitária, que compreendemos como
ensandecida raiz de um crime, mas que não
admitimos, que rejeitamos e contra a qual
lançamos nosso libelo25.
Mas havia outro caminho em elaboração,
um caminho que guardava também uma ação
utópica, que ainda não se via plenamente
derrotada, como no libelo de Gerald Ferraz.
Mário Pedrosa, como vimos, questionava esse
novo “expressionismo” inspirado na ação
picassiana de Guernica. Em 1951, mesmo ano
da I Bienal e de uma marcante exposição do
escultor suíço Max Bill no Brasil, ele escreveu
um de seus principais textos, “Panorama da
Pintura Moderna”. Neste longo estudo,
avaliou Picasso sob o ângulo de uma nova
concepção do espaço artístico, de uma
“ordem arquitetônica mais vital” que
resultará no cubismo e, em seguida, após o
contato com o surrealismo, no neoexpressionismo. Agora, também tomado
pelos acontecimentos políticos, passa “a usar
do pincel como um Goya vingador”,
culminando no expressionismo peculiar de
Guernica.
Porém, para Pedrosa o futuro da arte
moderna passaria por outras referências.
Uma delas era Mondrian, “o jacobino da
revolução modernista”. Outra, e mais
importante, era Max Bill, que trouxe à I Bienal
uma escultura que causou entre os defensores
do abstracionismo no Brasil o mesmo furor
que Guernica causou aos demais artistas, a
Unidade tripartida. Nesta obra, o artista
mostrava uma nova dimensão da abstração
capaz de conciliar “a dinâmica e a estática,
numa noção de espaço já inseparável do
tempo” 26 . Uma dimensão que Picasso
desconhecia, pois, é ainda o crítico que diz,
apesar de suas fulgurações, “sua arte recaiu
na etapa já ultrapassada de uma expressão
de catársis”27.
Assim, do ponto de vista dos defensores
do caminho abstracionista, o repentino
terremoto causado por Guernica perdia seu
espaço para as novas vertentes da vanguarda
abstrato-concreta, que em seguida seria
substituída
por
uma
vanguarda
genuinamente brasileira, o neoconcretismo
– para o qual as ações, o uso do corpo e a
resignificação dos objetos seria o centro. Para
a geração de Hélio Oiticica e Lygia Clark,
orientados pelas idéias de Pedrosa e de
Ferreira Gullar, Picasso e sua Guernica não
tinham mais o que dizer.
Nos anos 60, explicando sua transição da
tela para o corpo e deste para a vida da rua,
Oiticica ecoava as idéias de Pedrosa,
pensando um conceito de “espaço como
elemento totalmente ativo”, anunciando
também um tempo de transformações firmes,
pensadas por um artista que se via como
sujeito histórico da transformação28. Mas essa
transformação não veio. Ou melhor, teve vida
curta. Em 1964, o golpe militar iria começar
a desmantelar essa tentativa de criação de
25
FERRAZ, Geraldo. Guernica: poema vozes do quadro de Picasso. São Paulo: Massao Ohno/Edição do autor, 1962, p. 04.
PEDROSA, Mário. “Panorama da pintura moderna”. in ARANTES, Otilia (org.). Modernidade cá e lá. São Paulo: EDUSP, 2000. Textos
Escolhidos de Mário Pedrosa, v. IV, p. 173.
27
PEDROSA, Mário. “Fundamentos da arte abstrata”. In Dimensões da arte. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/
Departamento de Imprensa Nacional, 1964, p. 212.
28
OITICICA, Hélio. “A transição da cor do quadro para o espaço e o sentido de construtividade”. In Aspiro ao grande labirinto. Rio
de Janeiro: Rocco, 1986, p. 50.
26
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, V. I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008
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FRANCISCO ALAMBERT
uma vertente brasileira para a vanguarda
mundial (vertente esta que só agora, 40 anos
depois, volta a ser pensada como precursora
da arte contemporânea, como as constantes
celebrações da obra de Oiticica, de Londres
ao Texas, demonstram). O processo de
construção da autonomia artística, elaborado
pela esquerda modernista, bem como de
qualquer forma de autonomia na vida cultural,
social, política e, sobretudo, econômica, foi
interrompido quando a ditadura de direita
estabeleceu-se no poder.
III
Uma porta se fechava, mas outra se abria.
Durante a ditadura, acompanhando a
explosão da pop art no mundo, diante do
adverso contexto brasileiro, marcado pelo
autoritarismo e pelo fortalecimento da
sociedade de massa e do espetáculo, irrompe
no Brasil um retorno peculiar ao figurativo.
Uma espécie de pop art politizada surge com
os novos artistas, cujo dedo estava apontado
tanto para a massificação social, quanto para
o autoritarismo político local. No fim dos anos
70 e início dos 80, quando a ditadura militar
ia terminando, Guernica renascia (ou era
recordada) como inspiração para esses novos
artistas.
Em 1973, em plena ditadura, a XII Bienal
fracassou em tentar trazer uma homenagem
a Picasso. Na época, os organizadores
alegaram falta de dinheiro, mas também era
fato que a fama de Picasso não se enquadrava
em um evento vigiado pela ditadura militar.
No mesmo ano, Alfredo Buzaid, o Ministro da
Justiça convertido também em déspota das
artes e do imaginário (e não existe uma coisa
sem outra) proibiu a venda no Brasil das
gravuras eróticas de Picasso. Naqueles anos
obscuros, a ausência pode ter se convertido
70
em presença, em lembrança. A falta de
Picasso fazia lembrar não apenas o arbítrio
ditatorial, mas talvez também fizesse retomar
a memória de uma obra que marcou as
décadas anteriores e quis ser símbolo do
período democrático.
Por isso, quando já haviam ficado para
trás tanto o otimismo desenvolvimentista
quanto a defesa apaixonada do
abstracionismo, Picasso e Guernica
retornavam à iconografia cultural de
resistência brasileira. Foi neste contexto que
os críticos Mário Barata e Frederico Morais
pensaram uma exposição chamada Pablo!
Pablo! Uma interpretação brasileira de
Guernica. Artistas importantes foram
chamados a rever a obra de Picasso (dentre
eles Antonio Henrique do Amaral, Carlos
Scliar, Ivald Granato, José Roberto Aguilar,
Rubens Gerchman e Siron Franco). Mas
Guernica estava de tal forma introjetado na
vida cultural brasileira que não eram apenas
os artistas que o utilizavam, mas também os
chargistas e jornalistas (como Henfil, Millor
Fernandes e Jaguar). Agora Guernica era, a
um só tempo, um ícone do desejo de
reencontrar a liberdade (uma vez mais), e um
signo da comunicação de massa (nesse caso
voltada à crítica do autoritarismo). A imagem
da revolta ainda era uma força crítica, mas
ao mesmo tempo passava a habitar o mundo
da “imagem” a se consumir entre outras.
Henfil (sem título), nanquim sobre papel, 0,44 x 0,32m
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, V. I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008
ARTE, IMAGEM, GUERRA: PICASSO, GUERNICA, BRASIL
Jaguar, “Os incomodados que se mudem”,
nanquim sobre papel, 0,35 x 0,30m
Mario Barata, o antigo defensor do
figurativismo, agora convertido em entusiasta
da nova figuração pautada na pop art,
escreveu que Guernica era a “obra-chave em
um mundo de guerras e massacres”, mas que
sua doação “ao povo espanhol conclui
simbolicamente a guerra civil local”. A
esperança era que agora Guernica nos
ajudasse a concluir a ditadura militar e a
retomar nossos sonhos de progresso e, para
alguns, de revolução.
Assim, no país em que o sonho do
Millôr, “Guernica um minuto antes. Guernica um minuto depois”, guache sobre papel, 1,00 x 0,70m
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, V. I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008
71
FRANCISCO ALAMBERT
desenvolvimentismo fracassou, que esteve
sempre marcado pela fragilidade
democrática, pela dependência econômica,
mas ao mesmo tempo por uma efervescência
cultural quase ininterrupta, Picasso e sua
Guernica se tornaram símbolos fixados em
uma espécie de estrutura de sentimento, no
sentido de Raymond Williams. Em 1996 a
72
XXIII Bienal encomendou uma pesquisa que
revelou que Picasso era o preferido do público.
E, em 2004, uma grande retrospectiva de sua
obra levou mais de 900 mil pessoas,
novamente, ao Parque do Ibirapuera. Através
de Picasso o Brasil ainda sonha em entender
e negar a sua Guernica particular.
DOMÍNIOS DA IMAGEM, LONDRINA, V. I, N. 2, P. 57-72, MAIO 2008