O ENSINO DE LITERATURA COMO FANTASMAGORIA
TEACHING OF LITERATURE AS PHANTASMAGORY
Jaime Ginzburg*
RESUMO: Este artigo elabora uma reflexão sobre o ensino de literatura na educação básica e em cursos de Letras. A hipótese consiste
em que problemas referentes às limitações da educação escolar estão
vinculados a dificuldades de estudantes de Letras no Brasil. O conceito de fantasmagoria articula as situações abordadas. O trabalho
integra uma atitude crítica e uma posição propositiva, examinando
caminhos de superação das dificuldades.
PALAVRAS-CHAVE: fantasmagoria, ensino de literatura, livros, leitura.
ABSTRACT: In this essay, we try to discuss the teaching of literature, both in schools and universities. We believe educational limits
in schools are connected to problems related to students dedicated to
Letters. “Phantasmagory” is a concept able to articulate these issues.
The article presents a critical approach, and also a propositional one,
considering ways to overcome problems.
KEYWORDS: phantasmagory, theaching of literature, books, reading.
* Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Estado de São Paulo, Brasil.
Professor Livre-Docente de Literatura Brasileira. E-mail: ginzburg@usp.br.
O ENSINO DE LITERATURA COMO FANTASMAGORIA
Um ensino de literatura de qualidade, no contexto brasileiro contemporâneo,
deveria ser caracterizado por alguns elementos fundamentais. Estudantes poderiam estar sendo preparados para a reflexão crítica, sendo capazes de ler livros
dos mais diversos gêneros e realizar atividades de paráfrase, análise e interpretação, incluindo examinar sua contextualização, e também indicar relações intertextuais com outros livros. Professores e estudantes poderiam, em escolas e universidades, estar ativamente envolvidos em um permanente debate sobre livros,
discutindo não apenas suas opiniões, mas os critérios que as fundamentam e
o impacto dos debates que realizam. Comunidades acadêmicas sustentariam
com motivação a constante possibilidade de pensar em problemas complexos,
e a discussão de perspectivas individuais e coletivas de entendimento desses
problemas, articulando relações entre o presente e o conhecimento histórico.
O conceito de ensino de qualidade não é consensual. Muita coisa se faz
em nome da educação. As mais variadas práticas são e foram realizadas supostamente em defesa do melhor interesse do ensino de Letras. É esperado
que o ambiente universitário seja caracterizado por contradições. Heterogêneo, diversificado, em transformações no tempo e em variações no espaço,
sofrendo impactos constantes, apesar da enorme presença de forças conservadoras. Não seria diferente no que se refere especificamente ao campo do
ensino de literatura.
Em uma universidade é comum estarem presentes dois ambientes com
distintas posições institucionais. O setor responsável pelos exames de in-
gresso, que prepara os vestibulares; e o espaço departamental voltado para
o curso de Letras, destinado ao ensino de literatura. Em diversas universidades do país, há bastante tempo, em razão da necessidade de prevalecerem critérios objetivos de avaliação, para a seleção em massa de candidatos,
provas de literatura são caracterizadas de modo pouco variável. Questões
objetivas, em que o número de alternativas é restrito, exigem uma limitação
de posições de conhecimento que torne presumida a qualidade da prova e
sua capacidade seletiva, sua competência na discriminação de candidatos.
Por essa razão, a imagem do conhecimento de literatura predominante
em muitas questões, em provas em diversas universidades brasileiras, ano
após ano, está associada a um campo limitado de exercício do conhecimento: nomes de autores associados a nomes de obras, períodos literários, gêneros literários, características consagradas, de modo geral em perspectiva
canônica e reproduzindo modelos de leitura estabelecidos há mais de três
décadas pela historiografia literária. Bem menos constantes são as ocasiões
em que os vestibulares podem se aproximar de pesquisa constituída pela
produção acadêmica atualizada.
Em um círculo vicioso, escolas de ensino médio e cursinhos preparatórios se organizam em função de perfis de exames vestibulares. Acostumados às rotinas previsíveis e aos princípios de trabalho das aplicações dos
exames, muitas escolas condicionam os ambientes de ensino à preparação
para o alcance de vagas no ensino superior. O ensino de literatura se torna,
desse modo, alavanca para realização de provas. Essa função instrumental
caracteriza com exatidão, para a direção da escola, as famílias e os estudantes
a partir de um critério de qualidade do professor e de suas aulas – será um
bom professor aquele que se preparar bem para os exames.
O mercado editorial é parte interessada no círculo vicioso, ganhando
benefícios com manuais de ensino direcionados à situação e com a publicação de edições de obras indicadas para as provas. Como parte expressiva
das questões prescinde da leitura das obras para ser respondida, o mercado
também oferta aberrações. Aulas com resumos, publicações com resumos,
supostamente substituindo leituras de livros, apenas supostamente, e ainda
assim preenchendo a função instrumental de preparação do exame vestibular. O princípio do imediatismo governa as tomadas de decisões.
Uma contradição particularmente ostensiva é observada a partir do ponto em que, no ensino superior, logo no início das aulas de literatura, os estudantes de Letras tomam ou deveriam tomar contato com a noção de que
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textos literários são polissêmicos, e podem ser interpretados de vários modos. Cada autor que vão estudar em uma aula de literatura pode ter uma
fortuna crítica – isto é, diversos intérpretes, cada um com um enfoque, uma
ênfase, uma linha de pensamento.
Esse aspecto é minimizado nos manuais de ensino de literatura do ensino médio em alta circulação no país, que tendem a propor a imagem de que
para cada autor há uma única leitura válida, ou pelo menos uma preferencial
e consagrada. Manuais não ensinam debates críticos, nem a debater interpretações. Por sua exigência de totalização unificadora, tendem à homogeneização, priorizando classificações, descrições e simplificações.
Quando os exames vestibulares incluem questões de interpretação de
textos literários, e têm de se restringir a organizar seu trabalho no campo
das questões objetivas (em geral com cinco alternativas), não criam espaço
para debate interpretativo ou possibilidades de leituras polissêmicas, optando por amarrar o intérprete de texto a um caminho de leitura consagrado,
em geral canônico.
O vínculo entre a supressão da polissemia e o estabelecimento de um critério de verdade para determinar uma alternativa correta, em uma questão
de uma prova de vestibular, presume que os intérpretes anteriores da obra
chegaram às soluções de seus problemas de leitura. Existiriam “verdades incondicionadas” (NIETZSCHE, 1983: 117) sobre as quais o que o candidato
do exame deve fazer é apenas demonstrar familiaridade.
Evidentemente, essa presunção nada tem a ver com aprender a interpretar textos, e menos ainda com a capacidade de debatê-los. Se a universidade
propõe nos cursos de Letras essas habilidades, e espera formar professores
para o ensino médio e fundamental com concepções abertas de pensamento, parece paradoxal que permaneça, no âmbito do vestibular, defendendo
questões que pressupõem posturas incompatíveis com o que realiza em suas
atividades de graduação.
O paradoxo não surpreende, quando observamos de perto o que acontece, em muitas aulas de literatura, em cursos de Letras do país, há bastante
tempo. As relações entre professores e alunos estão desumanizadas em um
grau extremo, de tal modo que não se pode esperar de fato uma colaboração entre sujeitos humanos. “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”
(MARX, 1988: 160, 161). As situações qualificadas, prósperas e afirmativas de
ensino de literatura infelizmente talvez sejam poucas, talvez sejam exceções.
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Poderíamos supor uma descontinuidade radical entre o ensino médio e a
faculdade de Letras? Depois de contar com a aprovação no vestibular como
objetivo, a próxima meta pode ser também pautada pela inserção social –
pode ser o diploma de graduação. E se for isso, a prioridade de um estudante
em uma disciplina de literatura pode não ser necessariamente formativa, e,
sim, instrumental. O professor avalia o aluno, atribui nota, aprova ou reprova. O estudante avalia o professor – em muitos casos, de acordo com as
condições segundo as quais o professor o avalia. A escola do ensino médio,
a família, os cursinhos, as editoras se organizaram segundo a avaliação do
vestibular, portanto, é coerente que dentro da faculdade continue um comportamento centrado na expectativa de avaliação e de inserção social.
Na escola, nos cursinhos, e em seus recursos didáticos, não há a valorização de habilidades intelectuais voltadas para a atribuição de relevância para
a leitura. O processo é organizado pela temporalidade do sucesso competitivo, da pontuação agressiva. Fazer mais em menos tempo. Ler livros quando
se pode obter o mesmo resultado final com esquemas, fórmulas e resumos?
Muitos estudantes aprenderam de seus professores que isso é desnecessário.
Em cursos de Letras, professores de literatura chegam diante de seus alunos com a proposição da leitura de livros. A inércia vai estabelecer um princípio mínimo. Para a aprovação nas disciplinas, e a obtenção do diploma, o
que é necessário, o que é imprescindível? Muitos alunos podem considerar
essa inércia suficiente.
E se ficar caracterizado que a leitura de um livro não é imprescindível
para a aprovação, ela pode ser deixada de lado de imediato. Nessa situação,
leitura se reduz a um papel instrumental. Aqui também o princípio do imediatismo é prioritário para a tomada de decisões.
Uma evidência concreta do problema, encontrada em muitas faculdades,
é a presença das assim chamadas pastas de xerox. Os motivos alegados para
sua existência são vários. O preço supostamente caro dos livros; o acervo
supostamente insuficiente das bibliotecas; o tempo supostamente curto dos
estudantes para construir seu material de estudo. Há uma óbvia situação de
conflito entre a legislação de direito autoral e a existência das pastas de xerox. Isso não impede que professores se vejam motivados, a cada início de
curso, a selecionar textos – em geral capítulos, fragmentos, textos curtos – e
liberar acesso por esse meio, em uma empresa de fotocópias na proximidade
da sala de aula. O fenômeno é espantoso por congregar ostensiva ilegalidade
e disseminação excessivamente visível. Não me surpreenderia que este tex-
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to que escrevo, em algum momento, acabe em uma pasta de xerox de uma
faculdade, separado do volume que motivou sua escrita.
Não é verdade que pastas de xerox substituam bibliotecas. Capítulos xerocados não atuam como partes de livros. Atuam como textos soltos, porque
as outras partes dos livros não estão ali para serem observadas ou consultadas. Pastas de xerox não são metonímias de bibliotecas, são suas antíteses.
Elas incentivam estudantes a não comprar livros e mesmo a não frequentar
as bibliotecas universitárias.
Existe a proliferação de sites da internet que contrariam as mais variadas modalidades de legislação referentes ao livro, à leitura e ao ensino de
literatura. Websites que permitem fazer downloads de livros inteiros, sem se
levar em consideração sua disponibilidade ou não no mercado para compra. Páginas de internet dedicadas à facilitação de acesso a partes de livros,
reproduzindo o sistema de pastas do xerox pelo modo on line. Websites que
apresentam resumos prontos de livros, para poupar o trabalho de leitura de
estudantes apressados. E prestadores de serviços, vendedores de elaboração
de trabalhos, de monografias de disciplina a dissertações de mestrado e teses
de doutorado em literatura, em que ghost writers recebem para desenvolver
no lugar do estudante suas funções. E ainda websites com numerosos trabalhos prontos para cópias, para alunos que não hesitam em apresentá-los
a seus professores com suas assinaturas. Trabalhos comprados e copiados
são fraudes com consequências para todos os envolvidos. Sua circulação
indica uma imagem do trabalho intelectual como mercadoria, reduzido à
mais evidente ausência de entusiasmo e de iniciativa, não apenas de quem
os entrega, mas de todo o meio que sustenta a sua rede complexa de produção e circulação. A cada vez que um estudante de literatura acredita que
pode ser aprovado com um trabalho comprado ou copiado, e mesmo assim
obter uma nota, e depois um diploma em Letras, e posteriormente dar aulas, ele supõe que poderá ser capaz de conduzir sua profissão com uma base
vazia. Possivelmente, ele julga que não será o primeiro nem o último a articular educação e mentira com sucesso. Os ghost writers não têm nenhum
compromisso com o que os estudantes pensam. Trabalhos comprados e copiados dizem muito sobre as limitações dos sistemas de avaliação em vigor
e as consequências dessas limitações para o grau de confiança entre alunos
e professores. Trabalhos comprados e copiados não deveriam em nenhuma
circunstância ser chamados de trabalhos, pela desconsideração injusta com
relação aos estudantes que se dedicam de fato a estudar.
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Em seu conto “Teoria do medalhão”, Machado de Assis apresenta um pai
explicando a seu filho como deveria se comportar: “o método de interrogar
os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular ideias novas, e é
radicalmente falso” (ASSIS, 1994: 292). O pai orienta o filho a adotar procedimentos retóricos para bem impressionar com quem interagir.
Há na proposição desse nefasto pai uma espécie de indicador de um traço continuado da cultura brasileira, no modo de pensar as relações entre
professores e estudantes, em perspectiva conservadora. Fazer perguntas a
professores, questionar, debater, “traz o perigo de inocular ideias novas”. No
caso do ensino de literatura, esse perigo, particularmente, merece atenção.
Quando a área de Letras foi criada no país, no interior da política do
Estado Novo, sua configuração institucional era: uma “atividade para
a pesquisa desinteressada ou para o magistério secundário ou superior”
(SCHWARTZMAN, 1983: 370). A palavra “desinteressada” se refere ao
contraste com a Medicina, a Odontologia, o Direito e a Engenharia, áreas
que o governo observa como dotadas de clara função prática.
Alfredo Bosi, em seu estudo sobre a situação da área, em Dialética da
colonização, fala em uma perspectiva de declínio com relação a um estado
de qualidade universitário no país:
[...] o desaparecimento de um certo tipo de formação letrada clássica, que tinha, uns quarenta anos atrás, prestigiosa presença no ensino médio além de
constituir o fundo comum do clero e da magistratura. A relação íntima entre
cultura clássica e status social desapareceu na sociedade contemporânea. [...]
Na década de 70, a evidência da aliança entre técnica neutra e opressão ideológica despertou nos pesquisadores uma profunda desconfiança em relação
às receitas positivistas e funcionalistas que vinham sendo aplicadas metodicamente desde a fundação dos cursos de ciências sociais em todo o Brasil,
a partir de 30. [...] O mundo do receituário é a forma formada da cultura
dominante e vigora em todas as carreiras a que a universidade dá acesso. É
particularmente deprimente quando se pensa na passagem, em geral entrópica, da cultura universitária para o meio secundário. O que se transmite aos
alunos do ginásio (e aqui atingimos o cerne da dinâmica educacional), o que
se estratifica em termos de instrução fundamental, é, quase sempre, a fórmula final, reduzida, reificada, da antepenúltima tendência da cultura superior.
Com o agravante de que a rotina do curso secundário inclui uma dose de
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inércia das estruturas muito mais duradoura que a do ensino universitário
(BOSI, 1992: 310-317).
A crítica de Alfredo Bosi se volta contra os anos 1970, em que a repressão
política da ditadura militar esteve associada a uma tendência a propiciar, no
meio universitário, leituras de textos apolíticas, descontextualizadas, incapazes de considerar as relações entre a sala de aula e o que ocorria em torno
dela. Volta-se, também, contra os anos 1990, momento de publicação do livro
Dialética da colonização, que opina sobre o predomínio na universidade de
um mundo do receituário, de simplificação de conhecimentos por esquemas e
fórmulas. Este, por sua vez, impregnaria as atividades do ensino médio e fundamental. A argumentação de Bosi indica uma articulação desses problemas
com a ideologia positivista, fortemente presente na modernização brasileira,
e em alta difusão, como ele mostra, na década de 1930 – período em que se
fundamenta a ideia da “pesquisa desinteressada”, que institucionaliza uma
imagem inconsistente e prejudicial para o ensino de Letras.
O elemento nostálgico de Bosi aponta para um momento anterior ao “desaparecimento” descrito. Se de fato existiu uma educação brasileira dedicada
fortemente às humanidades, o que é incerto, o argumento de Bosi a situa
bem antes da configuração do aumento de vagas do ensino fundamental,
médio e superior dos anos 1970.
Seguindo esse argumento, cabe a pergunta se teria havido, ou se existe no
presente, no Brasil, uma situação geral, em âmbito que envolvesse a população (de um modo que não fosse elitista), de ensino de literatura, no nível
fundamental, médio, e em faculdades de letras, voltado para a capacidade
de reflexão, interpretação de textos e leitura continuada de livros. Portanto,
um modelo pedagógico que excluísse:
- a compreensão redutora de que o ensino de literatura se restringe a uma
função instrumental, como a aprovação em um exame, como o vestibular,
ou a obtenção de uma nota que permitirá chegar a um diploma;
- a valorização por professores da interpretação de textos supostamente
neutra, apontada por Bosi, que não suscita debate algum, conveniente para
regimes autoritários;
- a atitude de os alunos não fazerem perguntas para professores, incentivada pelo pai ao filho no conto de Machado de Assis, atitude que não suscita debate algum;
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- a simplificação apressada de trabalho configurada pelas pastas de xerox,
que desmotiva o contato com livros inteiros, descontextualizando temas e
questões;
- a admissão acrítica de que o modelo atual de questões aplicadas no
vestibular – que frequentemente não valoriza a polissemia de textos literários, e não tem como avaliar a habilidade de interpretação – é um modelo
competente ou ideal de avaliação de leitura;
- as atitudes de estudantes que copiam trabalhos da internet;
- as atitudes de estudantes que pagam para outros fazerem trabalhos em
seu lugar;
- a lógica do receituário descrita por Bosi, que é reprodutora, redutora e
voltada para estereótipos, e, portanto, não motiva nenhum debate.
Se uma situação de ensino de literatura existiu assim no país, não creio
que tenha sido de longa duração, nem hegemônica; se existe, não creio que
seja sistemática ou suficientemente visível.
Theodor Adorno escreveu sobre o contexto do ensino universitário de
filosofia na Alemanha, observando que os trabalhos acadêmicos careciam
da qualidade esperada. A forte presença de inconsistências gramaticais e de
clichês, com meras reproduções de padrões retóricos acadêmicos, era notada pelo filósofo (ADORNO, 2005: 29). Os trabalhos em questão não eram
constituídos de modo a produzirem ideias, mas a alcançarem o propósito
da obtenção do diploma.
A análise do ensino feita por Adorno propõe que a reificação do processo
educacional é decisiva: para ele, as preocupações das pessoas com as pressões econômicas são tão incontornáveis que o impacto dessas pressões é destrutivo com relação à autoconsciência e à reflexão crítica (2005: 34). Nesse
contexto, para ele, faltava entusiasmo acadêmico, prevalecia a impressão de
que estudantes escreviam sobre assuntos sem compreendê-los, e a situação
de avaliação se tornava constrangedora.
O Brasil não é igual à Alemanha, e o ensino de literatura não é idêntico
ao de filosofia. O momento em que Adorno escreveu o texto já é um pouco distante do presente. Porém, as observações do pensador são oportunas
para dar visibilidade aos problemas próximos. Também em nosso processo
histórico as pressões econômicas têm um enorme impacto nas condições de
ensino e aprendizagem, levando à falta de clareza, por parte de estudantes e
professores, sobre o alcance potencial da sala de aula, e à constante redução
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desse alcance, em perspectiva instrumental e imediatista. Também é comum
na universidade brasileira a falta de entusiasmo acadêmico, entendendo-se
falta de entusiasmo acadêmico do seguinte modo: a carência de debate honesto e respeitoso de ideias novas, a motivação para a convivência com a
diferença, a crítica aos clichês e à reprodução de padrões retóricos propostos
para não dizer nada e agradar sem incomodar.
Estabelecendo como horizonte afirmativo do ensino de literatura elementos como a reflexão crítica, o debate sobre livros, a constante possibilidade de
pensar em problemas complexos, e a discussão de perspectivas individuais
e coletivas de entendimento desses problemas, é difícil imaginar as etapas
necessárias para ultrapassar as limitações e as dificuldades atuais e chegar,
tanto em escolas quanto em universidades, a um ensino qualificado, voltado
para a transformação intelectual e as mudanças sociais.
A estrutura em vigor hoje, pautada pela leitura instrumental, pelas pastas
de xerox, pelo conhecimento reprodutivo, por clichês, falta de entusiasmo,
trabalhos acadêmicos comprados e copiados, é uma constituição fantasmagórica. Ensino de literatura é, ou deveria ser, um espaço de debate vivo de
ideias. Se o aluno não está ali para debater, quem está ali é um personagem
fantasmático. Se o professor não está ali para debater, também é um personagem fantasmático na cena. Se o livro não está, não foi lido, não está inteiro,
nem chegou perto, a cena da sala de aula é o seu funeral.
Grande parte do problema se deve a pressões econômicas, à necessidade
de inserção social. A área de Letras já nasceu condenada pelo Estado como
menos relevante do que Medicina e Engenharia, no Estado Novo. Não surpreende que, historicamente, tenha de ser colocada o tempo todo à prova, e
que em seu interior o debate sobre o sentido de sua própria existência seja
parte de sua dinâmica. O salário do professor de literatura, em municípios,
estados e com raras exceções no ensino superior, contribui para a consolidação da baixa auto-estima dos estudos literários.
O problema é mais grave. O ensino de Letras poderia ser, potencialmente,
um campo de discussão aberta de muitos problemas históricos, sociais, culturais, políticos, econômicos do país. As aulas de literatura têm uma capacidade
de absorção de complexidade e de fomento do discernimento de perspectivas – pelas especificidades de seu próprio objeto – que poderia torná-las, nas
instituições de ensino, imprescindíveis como campos de formação intelectual.
Em vez disso, as aulas de literatura têm-se tornado no país um exemplo
nítido do mal-estar da cultura. Contextos em que a promessa de felicidade
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desaparece e surge a expectativa do horror, em que Eros tem de ceder diante
do princípio de destruição. As aulas de literatura, com sua evocação de listas e
listas de autores e obras que não levam a nada, exceto a passar em provas, são
mostras de uma imagem de civilização que não constrói nada a não ser sofrimento para si mesma. Professores angustiados, estudantes irritados, inícios
de curso atormentados, finais aliviados. “No caso de possibilidades extremas
de sofrimento, também entram em atividade certos dispositivos psíquicos de
proteção” (FREUD, 2010: 86). O mecanismo de proteção é a apatia: aulas de literatura em que ninguém, nem professor, nem estudantes, está interessado por
elas. Todos estão sedados por seu próprio tédio, esperando, com a ansiedade,
o relógio, o celular, pequenos riscos e desenhos no caderno, a inconformidade
secreta com todos à volta, que aquilo acabe com o mínimo de tensão possível.
Uma evidência concreta do mal-estar que atinge o ensino de literatura,
resultado de séculos de ampla dedicação do país a construir uma sociedade
sem consciência de si mesma, é o problema do livro inteiro.
As pastas de xerox não são um problema apenas porque elas desestimulam a formação de bibliotecas. Elas criam confusões quando o professor
escolhe trabalhar com livros inteiros. Não capítulos ou fragmentos. Alguns
estudantes pedem para que sejam definidos os fragmentos que serão objeto
de avaliação.
Não é possível partir do princípio, ao ler as referências bibliográficas de
um trabalho de graduação, ou uma dissertação ou tese de pós-graduação
em literatura, que a presença de um título signifique que o livro foi lido. A
primeira hipótese pode ser a de uma pasta de xerox. Pode ter sido lido um
capítulo, e o livro é referido inteiro. Como se não houvesse diferença. Mais
ainda, o título pode aparecer como resposta a uma necessidade acadêmica,
como expectativa de cobrança, sem nenhum comprometimento com a leitura do livro propriamente dito.
A tensão existente hoje em torno do livro inteiro é tal que causa medo.
Ela pode destruir a relação amena entre um professor e seus estudantes. Há
diferentes graus de aceitabilidade. Vidas secas inteiro, em um curso de Letras,
ainda parece tranquilo hoje. Grande sertão: veredas pode causar polêmica.
Em 1987, quando estava em meu curso de graduação em Letras, minha
professora de Literatura Brasileira III disse que não proporia esse livro pois
era complexo demais para que nós, estudantes, entendêssemos. E quanto a
propor a leitura de livros de ensaio inteiros, não de capítulos? Livros de teoria da literatura? De filosofia, de ciências humanas?
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Existem argumentos práticos, como o custo do livro, o tempo para ler,
o número de matérias. Esses podem ser problemas verdadeiros. Não creio
que nenhum desses argumentos seja decisivo. O problema central é o valor
atribuído ao livro, o significado atribuído à leitura. Se o ensino de literatura é irrelevante ou quase irrelevante para o estudante, se o professor não
convence como defensor da importância do debate do que se apresenta no
livro, de fato vai prevalecer o princípio da destruição: o mínimo esforço, o
gozo sádico de obter aprovação lendo pouco ou nada, a competição ansiosa
com a realidade reificada.
E então a tentativa de trabalhar com um livro inteiro pode se tornar uma
espécie de momento abjeto, em que o professor apresenta seu gesto de tentativa em aula sem saber o que esperar como reação. Em alguns casos, saturado e cínico, sem esperar nada dos alunos, o docente não apenas propõe
livros inteiros, mas também assume que o resultado disso é nulo, por isso,
não distingue no corpo discente nenhum sinal de vida. Não é o meu caso,
se eu entrar com esse cinismo em sala de aula, vou passar mal e vomitar.
Muitos, ou todos, parecem estar com pressa. Livros pedem tempo. O
ensino de literatura está integrado às dinâmicas das agendas contraditórias
das universidades. As leituras padecem com isso. Proposições: temos que
lutar contra os interesses dos círculos viciosos dos vestibulares, dos manuais didáticos conservadores, dos esquemas perniciosos das pastas de xerox,
das fórmulas redutoras para o ensino superficial, e contra os clichês e ornamentos retóricos que agradam sem dizer nada, os trabalhos acadêmicos
comprados e copiados, a falta de entusiasmo acadêmico, a carência de debates sérios, a valorização de modelos apolíticos de leitura, a reificação do
sistema educacional, os hábitos vis associados às pastas do xerox. É preciso
defender um ensino de literatura em que a interpretação e o debate sejam
prioridades, e em que um professor em sala de aula apresentando um livro
inteiro para leitura corresponda às expectativas gerais. A realização dessas
mudanças depende de políticas em níveis diversos, mudanças de atitudes,
elaboração de materiais didáticos, debates amplos e continuados e, antes de
mais nada, uma reavaliação do próprio papel da universidade, consideradas
as suas contradições.
Sem essas mudanças, o que está acontecendo hoje, e em crescimento,
constitui de fato uma manifestação de “impulso de destruição ou de morte”,
em escalas “dificilmente suportáveis” (FREUD, 2010: 161). Isto é, um ensino
de literatura que tende a caracterizar as cobranças do professor com relação
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ao aluno como agressões e a constituição da sala de aula como ambiente
hostil. Em vez de um debate de ideias, a projeção do ensino instrumental
voltado para um telos (o vestibular, o mercado de trabalho) acentua a competitividade entre estudantes, motivando chances de frieza, de distanciamento
e mesmo de intolerância entre eles.
Referências Bibliográficas
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Recebido em fevereiro 2012
Aceito em maio 2012
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