DADOS DE ODINRIGHT
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Zygmunt Bauman
AMOR LÍQUIDO
Sobre a fragilidade dos laços humanos
Tradução:
Carlos Alberto Medeiros
Capa: Sérgio Campante, composição sobre foto
Informações:
B341a
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos
laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2004.
ISBN: 978-85-7110-795-3
Título original: Liquid love: on the frailty of human bonds
1. Isolamento social. 2. Distância social. 3. Relações
interpessoais. 4. Relações intergrupais.
Apresentação
A era da modernidade líquida em que vivemos — um mundo
repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e
de forma imprevisível — é fatal para nossa capacidade de
amar, seja esse amo direcionado ao próximo, nosso parceiro
ou a nós mesmos.
Zygmunt Bauman, um dos mais originais e perspicazes
sociólogos ainda em atividade, Investiga aqui de que forma
nossas relações tornam-se cada vez mais "flexíveis",
gerando níveis de insegurança sempre maiores. Uma vez
que damos prioridade a relacionamentos em "redes", as
quais podem ser tecidas ou desmanchadas com igual
facilidade — e freqüentemente sem que isso envolva
nenhum contato além do virtual —, não sabemos mais
manter laços a longo prazo.
E não apenas relações amorosas e vínculos familiares são
afetados: Bauman verifica ainda que nossa capacidade de
tratar um estranho com humanidade é prejudicada. Como
exemplo, ele examina a crise na atual política imigratória de
diversos países da União Européia e a forma como a
sociedade tende a creditar seus medos, sempre crescentes,
a estrangeiros e refugiados.
Sensível e brilhante como de hábito, Zygmunt Bauman faz
deste Amor líquido mais que uma mera e triste constatação,
um alerta revigorante.
Sobre o autor
ZYGMUNT BAUMAN é um dos sociólogos mais respeitados
da atualidade. Com extensa produção intelectual, tem se
destacado como um dos pensadores mais clarividentes do
nosso tempo. Professor emérito de sociologia da
universidade de Leeds e Varsóvia, Bauman tem outros 15
livros publicados por esta editora, dentre os quais
destacam-se: Comunidade; Identidade; O mal-estar da pósmodernidade; Modernidade liquida; Vida líquida, Tempos
líquidos; e Medo líquido.
Texto de quarta-capa
A modernidade líquida em que vivemos traz consigo uma
misteriosa fragilidade dos laços humanos — um amor
líquido. A insegurança inspirada por essa condição estimula
desejos conflitantes de estreitar esses laços e ao mesmo
tempo mantê-los frouxos.
Zygmunt Bauman radiografa esse amor, tanto nos
relacionamentos pessoais e familiares quanto no convívio
social com estranhos. Com a percepção fina e apurada de
sempre, busca esclarecer, registrar e apreender de que
forma o homem sem vínculos — figura central dos tempos
modernos — se conecta.
Sumário
Prefácio
1. Apaixonar-se e desapaixonar-se
2. Dentro e fora da caixa de ferramentas da
sociabilidade
3. Sobre a dificuldade de amar o próximo
4. Convívio destruído
Notas
Prefácio
Ulrich, o herói do grande romance de Robert Musil, era —
como anunciava o título da obra — Der Mann ohne
Eigenschaften: o homem sem qualidades. Não tendo
qualidades próprias, herdadas ou adquiridas e incorporadas,
Ulrich teve de produzir por conta própria quaisquer
qualidades que desejasse possuir, usando a perspicácia e a
sagacidade de que era dotado; mas nenhuma delas tinha a
garantia de perdurar indefinidamente num mundo repleto
de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de
forma imprevisível.
O herói de seu livro é Der Mann ohne Verwandtschaften — o
homem sem vínculos, e particularmente vínculos imutáveis
como os de parentesco no tempo de Ulrich. Não tendo
ligações indissolúveis e definitivas, o herói de seu livro — o
cidadão de nossa líquida sociedade moderna — e seus
atuais sucessores são obrigados a amarrar um ao outro, por
iniciativa, habilidades e dedicação próprias, os laços que
porventura pretendam usar com o restante da humanidade.
Desligados, precisam conectar-se... Nenhuma das conexões
que venham a preencher a lacuna deixada pelos vínculos
ausentes ou obsoletos tem, contudo, a garantia da
permanência. De qualquer modo, eles só precisam ser
frouxamente atados, para que possam ser outra vez
desfeitos, sem grandes delongas, quando os cenários
mudarem — o que, na modernidade liquida, decerto
ocorrerá repetidas vezes.
A misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o
sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos
conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os
laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos, é o que este
livro busca esclarecer, registrar e apreender.
Carecendo da visão aguda de Musil, tanto quanto da riqueza
de sua palheta e da sutileza de suas pinceladas — de fato,
de quaisquer dos requintados talentos que fizeram de Der
Mann ohne Eigenschaften um retrato definitivo do homem
moderno —, devo restringir-me a traçar um painel de
esboços imperfeitos e fragmentários, em lugar de tentar
produzir uma imagem completa. O máximo que posso
esperar obter é um kit identitário, um retraio compósito
capaz de conter tanto lacunas e espaços em branco quanto
seções completas. Mesmo essa composição final, contudo,
será um trabalho inacabado, a ser concluído pelos leitores.
O principal herói deste livro é o relacionamento humano.
Seus personagens centrais são homens e mulheres, nossos
contemporâneos,
desesperados
por
terem
sido
abandonados aos seus próprios sentidos e sentimentos
facilmente descartáveis, ansiando pela segurança do
convívio e pela mão amiga com que possam contar num
momento de aflição, desesperados por “relacionar-se” e, no
entanto desconfiados da condição de “estar ligado” em
particular de estar ligado “permanentemente” para não
dizer eternamente, pois temem que tal condição possa
trazer encargos e tensões que eles não se consideram aptos
nem dispostos a suportar, e que podem limitar severamente
a liberdade de que necessitam para — sim, seu palpite está
certo — relacionar-se...
Em nosso mundo de furiosa “individualização”, os
relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o
sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um
se transforma no outro. Na maior parte do tempo, esses
dois avatares coabitam embora em diferentes níveis de
consciência. No líquido cenário da vida moderna, os
relacionamentos talvez sejam os representantes mais
comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos
da ambivalência. É por isso, podemos garantir, que se
encontram tão firmemente no cerne das atenções dos
modernos e líquidos indivíduos-por-decreto, e no topo de
sua agenda existencial.
“Relacionamento” é o assunto mais quente do momento, e
aparentemente o único jogo que vale a pena, apesar de
seus óbvios riscos. Alguns sociólogos, acostumados a
compor teorias a partir de questionários, estatísticas e
crenças baseadas no senso comum, apressam-se em
concluir que seus contemporâneos estão totalmente abertos
a amizades, laços, convívio, comunidade. De fato, contudo
(como se seguíssemos a regra de Martin Heidegger de que
as coisas só se revelam à consciência por meio da
frustração que provocam — fracassando, desaparecendo,
comportando-se de forma inadequada ou negando sua
natureza de alguma outra forma), hoje em dia as atenções
humanas tendem a se concentrar nas satisfações que
esperamos obter das relações precisamente porque, de
alguma forma, estas não têm sido consideradas plena e
verdadeiramente satisfatórias. E, se satisfazem, o preço
disso tem sido com freqüência considerado excessivo e
inaceitável. Em seu famoso experimento, Miller e Dollard
viram seus ratos de laboratório atingirem o auge da
excitação e da agitação quando “a atração se igualou à
repulsão” ou seja, quando a ameaça do choque elétrico e a
promessa de comida saborosa finalmente atingiram o
equilíbrio...
Não admira que os “relacionamentos” estejam entre os
principais motores do atual “boom do aconselhamento”. A
complexidade é densa, persistente e difícil demais para ser
desfeita ou destrinchada sem auxílio. A agitação dos ratos
de Miller e Dollard resultava freqüentemente na paralisia da
ação. A incapacidade de escolher entre atração e repulsão,
entre esperanças e temores, redundava na incapacidade de
agir. De modo diferente dos ratos, os seres humanos que se
vêem em tais circunstâncias podem pedir ajuda a
especialistas que oferecem seus préstimos em troca de
honorários. O que esperam ouvir deles é algo como a
solução do problema da quadratura do círculo: comer o bolo
e ao mesmo tempo conservá-lo; desfrutar das doces delícias
de um relacionamento evitando, simultaneamente, seus
momentos mais amargos e penosos; forçar uma relação a
permitir sem desautorizar, possibilitar sem invalidar,
satisfazer sem oprimir...
Os especialistas estão prontos a condescender, confiantes
em que a procura por suas recomendações será infinita,
uma vez que nada que digam poderá tornar um círculo nãocircular, e portanto passível de ser transformado num
quadrado... Suas recomendações são copiosas, embora
geralmente se resumam a pouco mais do que elevar a
prática comum ao nível do conhecimento comum, e daí ao
status de teoria autorizada e erudita. Gratos beneficiários
dessas
recomendações
percorrem
as
colunas
de
“relacionamento” em publicações sofisticadas e nos
suplementos semanais de jornais sérios ou nem tanto, para
ouvir o que queriam de pessoas que “estão por dentro”
(uma vez que são tímidos ou envergonhados demais para
falarem por si mesmos), para espreitar os feitos e
procedimentos de “outros como eles” e conseguir o máximo
conforto possível por saberem que não estão sozinhos em
seus solitários esforços para enfrentar a incerteza.
E assim os leitores aprendem com a experiência de outros
leitores, reciclada pelos especialistas, que é possível buscar
“relacionamentos de bolso” do tipo de que se “pode dispor
quando necessário” e depois tornar a guardar. Ou que os
relacionamentos são como a vitamina C: em altas doses,
provocam náuseas e podem prejudicar a saúde. Tal como no
caso desse remédio, é preciso diluir as relações para que se
possa consumi-las. Ou que os CSSs — casais semiseparados merecem louvor como “revolucionários do
relacionamento que romperam a bolha sufocante dos
casais”. Ou ainda que as relações, da mesma forma que os
automóveis, devem passar por revisões regulares para
termos certeza de que continuarão funcionando bem. No
todo, o que aprendem é que o compromisso, e em particular
o compromisso a longo prazo, é a maior armadilha a ser
evitada no esforço por “relacionar-se”. Um especialista
informa aos leitores: “Ao se comprometerem, ainda que sem
entusiasmo, lembrem-se de que possivelmente estarão
fechando a porta a outras possibilidades românticas talvez
mais satisfatórias e completas”. Outro mostra-se ainda mais
insensível: “A longo prazo, as promessas de compromisso
são irrelevantes. Como outros investimentos, elas alternam
períodos de alta e baixa”. E assim, se você deseja
“relacionar-se”, mantenha distância; se quer usufruir do
convívio, não assuma nem exija compromissos. Deixe todas
as portas sempre abertas.
Se lhes perguntassem, os habitantes de Leônia, uma das
cidades invisíveis de Ítalo Calvino, diriam que sua paixão é
“desfrutar coisas novas e diferentes”: De fato. A cada
manhã eles “vestem roupas novas em folha, tiram latas
fechadas do mais recente modelo de geladeira, ouvindo
jingles recém-lançados na estação de rádio mais quente do
momento”. Mas a cada manhã “as sobras da Leônia de
ontem aguardam pelo caminhão de lixo” e cabe indagar se
a verdadeira paixão dos leonianos na verdade não seria “o
prazer de expelir, descartar, limpar-se de uma impureza
recorrente”. Caso contrário, por que os varredores de rua
seriam “recebidos como anjos” mesmo que sua missão
fosse “cercada de um silêncio respeitoso” (o que é
compreensível: “ninguém quer voltar a pensar em coisas
que já foram rejeitadas”)?
Pensemos...
Será que os habitantes de nosso líquido mundo moderno
não são exatamente como os de Leônia, preocupados com
uma coisa e falando de outra? Eles garantem que seu
desejo, paixão, objetivo ou sonho é “relacionar-se”, mas
será que na verdade não estão preocupados principalmente
em evitar que suas relações acabem congeladas e
coaguladas? Estão mesmo procurando relacionamentos
duradouros, como dizem, ou seu maior desejo é que eles
sejam leves e frouxos, de tal modo que, como as riquezas
de Richard Baxter, que “cairiam sobre os ombros como um
manto leve” possam “ser postos de lado a qualquer
momento”? Afinal, que tipo de conselho eles querem de
verdade: como estabelecer um relacionamento ou — só por
precaução — como rompê-lo sem dor e com a consciência
limpa? Não há uma resposta fácil a essa pergunta, embora
ela precise ser respondida e vá continuar sendo feita, à
medida que os habitantes do líquido mundo moderno
seguirem sofrendo sob o peso esmagador da mais
ambivalente entre as muitas tarefas com que se defrontam
no dia-a-dia.
Talvez a própria idéia de “relacionamento” contribua para
essa confusão. Apesar da firmeza que caracteriza as
tentativas dos infelizes caçadores de relacionamentos e
seus especialistas, essa noção resiste a ser plena e
verdadeiramente
purgada
de
suas
conotações
perturbadoras e preocupantes. Permanece cheia de
ameaças vagas e premonições sombrias; fala ao mesmo
tempo dos prazeres do convívio e dos horrores da clausura.
Talvez seja por isso que, em vez de relatar suas
experiências e expectativas utilizando termos como
“relacionar-se” e “relacionamentos” as pessoas falem cada
vez mais (auxiliadas e conduzidas pelos doutos
especialistas) em conexões, ou “conectar-se” e “ser
conectado”. Em vez de parceiros, preferem falar em
“redes”. Quais são os méritos da linguagem da
“conectividade” que estariam ausentes da linguagem dos
“relacionamentos”?
Diferentemente de “relações”, “parentescos”, “parcerias” e
noções similares — que ressaltam o engajamento mútuo ao
mesmo tempo em que silenciosamente excluem ou omitem
o seu oposto, a falta de compromisso —, uma “rede” serve
de matriz tanto para conectar quanto para desconectar; não
é possível imaginá-la sem as duas possibilidades. Na rede,
elas são escolhas igualmente legítimas, gozam do mesmo
status e têm importância idêntica. Não faz sentido
perguntar qual dessas atividades complementares constitui
“sua essência”! A palavra “rede” sugere momentos nos
quais “se está em contato” intercalados por períodos de
movimentação a esmo. Nela as conexões são estabelecidas
e cortadas por escolha. A hipótese de um relacionamento
“indesejável, mas impossível de romper” é o que torna
“relacionar-se” a coisa mais traiçoeira que se possa
imaginar. Mas uma “conexão indesejável” é um paradoxo.
As conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que
se comece a detestá-las.
Elas
são
“relações
virtuais”.
Ao
contrário
dos
relacionamentos antiquados (para não falar daqueles com
“compromisso” muito menos dos compromissos de longo
prazo), elas parecem feitas sob medida para o líquido
cenário da vida moderna, em que se espera e se deseja que
as “possibilidades românticas” (e não apenas românticas)
surjam e desapareçam numa velocidade crescente e em
volume cada vez maior, aniquilando-se mutuamente e
tentando impor aos gritos a promessa de “ser a mais
satisfatória e a mais completa”. Diferentemente dos
“relacionamentos reais” é fácil entrar e sair dos
“relacionamentos virtuais”. Em comparação com a “coisa
autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles parecem
inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e
manusear.
Entrevistado
a
respeito
da
crescente
popularidade do namoro pela Internet, em detrimento dos
bares para solteiros e das seções especializadas dos jornais
e revistas, um jovem de 28 anos da Universidade de Bath
apontou uma vantagem decisiva da relação eletrônica:
“Sempre se pode apertar a tecla de deletar”.
Como que obedecendo à lei de Gresham, as relações
virtuais (rebatizadas de “conexões”) estabelecem o padrão
que orienta todos os outros relacionamentos. Isso não traz
felicidade aos homens e mulheres que se rendem a essa
pressão; dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes
agora do que quando se envolviam nas relações prévirtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro.
Como apontou Ralph Waldo Emerson, quando se esquia
sobre gelo fino, a salvação está na velocidade. Quando se é
traído pela qualidade, tende-se a buscar a desforra na
quantidade. Se “os compromissos são irrelevantes” quando
as relações deixam de ser honestas e parece improvável
que se sustentem, as pessoas se inclinam a substituir as
parcerias pelas redes. Feito isso, porém, estabelecer-se fica
ainda mais difícil (e adiável) do que antes — pois agora não
se tem mais a habilidade que faz, ou poderia fazer, a coisa
funcionar. Estar em movimento, antes um privilégio e uma
conquista, torna-se uma necessidade. Manter-se em alta
velocidade, antes uma aventura estimulante, vira uma
tarefa cansativa. Mais importante, a desagradável incerteza
e a irritante confusão, supostamente escorraçadas pela
velocidade, recusam-se a sair de cena. A facilidade do
desengajamento e do rompimento (a qualquer hora) não
reduzem os riscos, apenas os distribuem de modo diferente,
junto com as ansiedades que provocam.
Este livro é dedicado aos riscos e ansiedades de se viver
junto, e separado, em nosso líquido mundo moderno.
1. Apaixonar-se e desapaixonar-se
“Meu caro amigo, estou lhe enviando um pequeno
trabalho do qual se poderia dizer, sem injustiça, que
não é cabeça nem rabo, já que tudo nele é, ao
contrário, uma cabeça e um rabo, alternada e
reciprocamente.
Suplico-lhe
que
leve
em
consideração a conveniência admirável que tal
combinação oferece a todos nós — a você, a mim e ao
leitor. Podemos abreviar — eu, meus devaneios; você,
o texto; o leitor, sua leitura. Pois eu não atrelo
interminavelmente a fatigada vontade de qualquer
um deles a uma trama supérflua. Retire um anel, e as
duas partes desta tortuosa fantasia voltarão a se
unir sem dificuldade. Corte em pedacinhos e vai
descobrir que cada um deles tem vida própria. Na
expectativa de que alguma dessas fatias possa
agradá-lo e diverti-lo, ouso dedicar-lhe a cobra
inteira.”
Foi assim que Charles Baudelaire apresentou Le spleen de
Paris a seus leitores. Que pena. Não fosse por isso, eu
gostaria de escrever esse mesmo preâmbulo, ou um
parecido, sobre o texto que segue. Mas ele o escreveu e só
me resta citá-lo. Evidentemente, Walter Benjamin
enfatizaria na última sentença a palavra “só”. E eu também,
pensando bem.
“Corte-a em pedacinhos e vai descobrir que cada um deles
tem vida própria.” Os fragmentos que fluíam da pena de
Baudelaire tinham. Se os dispersos retalhos de pensamento
reunidos a seguir também terão, não cabe a mim decidir,
mas ao leitor.
A família dos pensamentos está repleta de anões. É por isso
a lógica e o método foram inventados e, depois de
descobertos, adotados pelos pensadores de idéias. Pigmeus
podem esconder-se e acabar esquecendo sua insignificância
em meio ao esplendor de colunas em marcha e formações
de batalha. Cerradas as fileiras, quem vai notar o tamanho
diminuto dos soldados? E possível reunir um exército de
aparência extremamente poderosa alinhando-se para o
combate fileiras após fileiras de pigmeus...
Só para satisfazer os viciados em metodologia, talvez eu
devesse ter feito o mesmo com estes fragmentos. Mas
como não tenho tempo para levar a cabo essa tarefa, seria
tolice de minha parte pensar primeiro na ordem das fileiras
e deixar a convocação para o final...
Pensando bem: talvez o tempo de que disponho pareça
curto demais não por minha idade avançada, mas porque,
quanto mais velho você é, mais sabe que os pensamentos,
embora possam parecer grandiosos, jamais serão grandes o
suficiente para abarcar a generosa prodigalidade da
experiência humana, muito menos para explicá-la. O que
sabemos, o que desejamos saber, o que lutamos para
saber, o que devemos tentar saber sobre amor ou rejeição,
estar só ou acompanhado e morrer acompanhado ou só será que tudo isso poderia ser alinhado, ordenado,
adequado aos padrões de coerência, coesão e completude
estabelecidos para assuntos de menor grandeza? Talvez sim
- quer dizer, na infinitude do tempo.
Não é verdade que, quando se diz tudo sobre os principais
temas da vida humana, as coisas mais importantes
continuam por dizer?
O amor e a morte — os dois personagens principais
desta história sem trama nem desfecho, mas que
condensa a maior parte do som e da fúria da vida —
admitem, mais que quaisquer outros, esse tipo de
devaneio/escrita/leitura.
Para Ivan Klima, poucas coisas se parecem tanto com a
morte quanto o amor realizado. Cada chegada de um dos
dois é sempre única, mas também definitiva: não suporta
repetição, não permite recurso nem promete prorrogação.
Deve sustentar-se “por si mesmo” - e consegue. Cada um
deles nasce, ou renasce, no próprio momento em que surge,
sempre a partir do nada, da escuridão do não-ser sem
passado nem futuro; começa sempre do começo,
desnudando o caráter supérfluo das tramas passadas e a
utilidade dos enredos futuros.
Nem no amor nem na morte pode-se penetrar duas vezes menos ainda que no rio de Heráclito. Eles são, na verdade,
suas próprias cabeças e seus próprios rabos, dispensando e
descartando todos os outros.
Bronislaw Malinowski ironizava os difusionistas por
confundirem coleções de museu com genealogias. Tendo
visto toscos utensílios de pederneira expostos em estojos de
vidro diante de instrumentos mais refinados, eles falavam
de uma “história das ferramentas”. Era, zombava
Malinowski, corno se um machado de pedra gerasse um
outro, da mesma forma que, digamos, o hipparion deu
origem, na plenitude do tempo, ao equus caballus. Os
cavalos podem derivar de outros cavalos, mas as
ferramentas não têm ancestralidade nem descendência.
Diferentemente dos cavalos, não têm uma história própria.
Pode-se dizer que elas pontuam as biografias individuais e
as histórias coletivas dos seres humanos, das quais são
emanações ou sedimentos. na plenitude do tempo, ao
equus caballus. Os cavalos podem derivar de outros
cavalos, mas as ferramentas não têm ancestralidade nem
descendência. Diferentemente dos cavalos, não têm uma
história própria. Pode-se dizer que elas pontuam as
biografias individuais e as histórias coletivas dos seres
humanos, das quais são emanações ou sedimentos.
Quase o mesmo se pode dizer do amor e da morte.
Parentesco, afinidade, elos causais são traços da
individualidade e/ou do convívio humanos. O amor e a
morte não têm história própria. São eventos que ocorrem no
tempo humano - eventos distintos, não conectados (muito
menos de modo causal) com eventos “similares”, a não ser
na visão de instituições ávidas por identificar - (por
inventar)
-retrospectivamente
essas
conexões
e
compreender o incompreensível.
Assim, não se pode aprender a amar, tal como não se pode
aprender a morrer. E não se pode aprender a arte ilusória —
inexistente, embora ardentemente desejada — de evitar
suas garras e ficar fora de seu caminho. Chegado o
momento, o amor e a morte atacarão — mas não se tem a
mínima idéia de quando isso acontecerá. Quando acontecer,
vai pegar você desprevenido. Em nossas preocupações
diárias, o amor e a morte aparecerão ab nihilo — a partir do
nada. Evidentemente, todos nós tendemos a nos esforçar
muito para extrair alguma experiência desse fato; tentamos
estabelecer leis antecedentes, apresentar o princípio
infalível de um post hoc corno se fosse um propter hoc,
construir uma linhagem que “faça sentido” — e na maioria
das vezes obtemos sucesso. Precisamos desse sucesso pelo
conforto espiritual que ele nos traz: faz ressurgir, ainda que
de forma circular, a fé na regularidade do mundo e na
previsibilidade dos eventos, indispensável para a nossa
saúde mental. Também evoca uma ilusão de sabedoria
conquistada, de aprendizado, e sobretudo de uma sabedoria
que se pode aprender, tal como aprendemos a usar os
cânones da indução de J. S. Mill, a dirigir automóveis, a
comer com pauzinhos em vez de garfos ou a produzir uma
impressão favorável em nossos entrevistadores.
No caso da morte, o aprendizado se restringe de fato à
experiência de outras pessoas, e portanto constitui uma
ilusão in extremis. A experiência alheia não pode ser
verdadeiramente aprendida como tal; não é possível
distinguir, no produto final da descoberta do objeto, entre o
Erlebnis original e a contribuição criativa trazida pela
capacidade de imaginação do sujeito. A experiência dos
outros só pode ser conhecida como a história manipulada e
interpretada daquilo por que eles passaram. No mundo real,
tal como nos desenhos de Tom & Jerry, talvez alguns gatos
tenham sete vidas ou até mais, e talvez alguns convertidos
possam acreditar na ressurreição - mas permanece o fato
de que a morte, assim como o nascimento, só ocorre uma
vez. Não há como aprender a “fazer certo na próxima
oportunidade” com um evento que jamais voltaremos a
vivenciar.
O amor parece desfrutar de um status diferente do
de outros acontecimentos únicos.
De fato, é possível que alguém se apaixone mais de uma
vez, e algumas pessoas se gabam - ou se queixam - de que
apaixonar-se ou desapaixonar-se é algo que lhes acontece
(assim como a outras pessoas que vêm a conhecer nesse
processo) de modo muito fácil. Todos nós já ouvimos
histórias sobre essas pessoas particularmente “propensas”
ou “vulneráveis” ao amor.
Há bases bastante sólidas para se ver o amor, e em
particular a condição de “apaixonado” como — quase que
por sua própria natureza — uma condição recorrente,
passível de repetição, que inclusive nos convida a seguidas
tentativas. Pressionados, a maioria de nós poderia
enumerar momentos em que nos sentimos apaixonados e
de fato estávamos. Pode-se supor (mas será uma suposição
fundamentada) que em nossa época cresce rapidamente o
número de pessoas que tendem a chamar de amor mais de
uma de suas experiências de vida, que não garantiriam que
o amor que atualmente vivenciam é o último e que têm a
expectativa de viver outras experiências como essa no
futuro. Não devemos nos surpreender se essa suposição se
mostrar correta. Afinal, a definição romântica do amor como
“até que a morte nos separe” está decididamente fora de
moda, tendo deixado para trás seu tempo de vida útil em
função da radical alteração das estruturas de parentesco às
quais costumava servir e de onde extraia seu vigor e sua
valorização. Mas o desaparecimento dessa noção significa,
inevitavelmente, a facilitação dos testes pelos quais uma
experiência deve passar para ser chamada de “amor”: Em
vez de haver mais pessoas atingindo mais vezes os
elevados padrões do amor, esses padrões foram baixados.
Como resultado, o conjunto de experiências às quais nos
referimos com a palavra amor expandiu-se muito. Noites
avulsas de sexo são referidas pelo codinome de “fazer
amor”.
A súbita abundância e a evidente disponibilidade das
“experiências amorosas” podem alimentar (e de fato
alimentam) a convicção de que amar (apaixonar-se, instigar
o amor) é uma habilidade que se pode adquirir, e que o
domínio dessa habilidade aumenta com a prática e a
assiduidade do exercício. Pode-se até acreditar (e
freqüentemente se acredita) que as habilidades do fazer
amor tendem a crescer com o acúmulo de experiências que
o próximo amor será uma experiência ainda mais
estimulante do que a que estamos vivendo atualmente,
embora não tão emocionante ou excitante quanto a que virá
depois.
Essa é, contudo, outra ilusão... O conhecimento que se
amplia juntamente com a série de eventos amorosos é o
conhecimento do “amor” como episódios intensos, curtos e
impactantes, desencadeados pela consciência a priori de
sua própria fragilidade e curta duração. As habilidades
assim adquiridas são as de “terminar rapidamente e
começar do início” das quais, segundo Soren Kierkegaard, o
Don Giovanni de Mozart era o virtuoso arquetípico. Guiado
pela compulsão de tentar novamente, e obcecado em evitar
que cada sucessiva tentativa do presente pudesse
atrapalhar uma outra no futuro, Don Giovanni era também
um arquetípico “impotente amoroso”. Se o propósito dessa
busca e experimentação infatigáveis fosse o amor, a
compulsão a experimentar frustraria esse propósito. É
tentador afirmar que o efeito dessa aparente “aquisição de
habilidades” tende a ser, como no caso de Don Giovanni, o
desaprendizado do amor - uma “exercitada incapacidade”
para amar.
Um resultado como esse - a vingança do amor, por assim
dizer, sobre aqueles que ousam desafiar-lhe a natureza seria de se esperar. Pode-se aprender a desempenhar uma
atividade em que haja um conjunto de regras invariáveis
correspondendo a um cenário estável e monotonamente
repetitivo que favoreça o aprendizado, a memorização e a
manutenção dessa simulação. Num ambiente instável, fixar
e adquirir hábitos - marcas registradas do aprendizado
exitoso - não são apenas contraproducentes, mas podem
mostrar-se fatais em suas conseqüências. O que é mortal
para os ratos dos esgotos urbanos -aquelas criaturas
inteligentíssimas capazes de aprender rapidamente a
distinguir comidas de iscas venenosas - é o elemento de
instabilidade, de desafio às regras, inserido na rede de
calhas e dutos subterrâneos pela “alteridade” irregular,
inapreensível, imprevisível e verdadeiramente impenetrável
de outras criaturas inteligentes - os seres humanos, com
sua notória tendência a quebrar a rotina e derrubar a
distinção entre o regular e o contingente. Se essa distinção
não se sustenta, o aprendizado (entendido como a aquisição
de hábitos úteis) está fora de questão. Os que insistem em
orientar suas ações de acordo com precedentes, como
aqueles generais conhecidos por lutar novamente sua
última guerra vitoriosa, assumem riscos suicidas e não
favorecem a eliminação dos problemas.
É da natureza do amor — como Lucano observou há
dois milênios e Francis Bacon repetiu muitos séculos
depois — ser refém do destino.
No Banquete de Platão, a profetisa Diotima de Mantinéia
ressaltou para Sócrates, com a sincera aprovação deste,
que “o amor não se dirige ao belo, como você pensa; dirigese à geração e ao nascimento no belo”. Amar é querer
“gerar e procriar”, e assim o amante “busca e se ocupa em
encontrar a coisa bela na qual possa gerar”. Em outras
palavras, não é ansiando por coisas prontas, completas e
concluídas que o amor encontra o seu significado, mas no
estímulo a participar da gênese dessas coisas. O amor é
afim à transcendência; não é senão outro nome para o
impulso criativo e como tal carregado de riscos, pois o fim
de uma criação nunca é certo.
Em todo amor há pelo menos dois seres, cada qual a grande
incógnita na equação do outro. É isso que faz o amor
parecer um capricho do destino – aquele futuro estranho e
misterioso, impossível de ser descrito antecipadamente,
que deve ser realizado ou protelado, acelerado ou
interrompido. Amar significa abrir-se ao destino, a mais
sublime de todas as condições humanas, em que o medo se
funde ao regozijo num amálgama irreversível. Abrir-se ao
destino significa, em última instância, admitir a liberdade no
ser: aquela liberdade que se incorpora no Outro, o
companheiro no amor. “A satisfação no amor individual não
pode ser atingida sem a humildade, a coragem, a fé e a
disciplina verdadeiras”, afirma Erich Fromm – apenas para
acrescentar adiante, com tristeza, que em “uma cultura na
qual são raras essas qualidades, atingir a capacidade de
amar será sempre, necessariamente, uma rara conquista”
(Erich Fromm, The Art of Loving. Londres, Thorsons, (1957),
1995, p.VII.).
E assim é numa cultura consumista como a nossa, que
favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer
passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não
exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de
seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de
aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas
que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de
construir a “experiência amorosa” à semelhança de outras
mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas
características e prometem desejo sem ansiedade, esforço
sem suor e resultados sem esforço.
Sem humildade e coragem não há amor. Essas duas
qualidades são exigidas, em escalas enormes e contínuas,
quando se ingressa numa terra inexplorada e não-mapeada.
E é a esse território que o amor conduz ao se instalar entre
dois ou mais seres humanos.
Eros, como insiste Levinas (Emmanuel Levinas, Le
temps et i’autre. Paris, Presses Universitaires de
France, 1991, p 81, 78.), difere da posse e do poder;
não é nem uma batalha nem uma fusão — e nem
tampouco conhecimento.
Eros é “uma relação com a alteridade, com o mistério, ou
seja, com o futuro, com o que está ausente do mundo que
contém tudo o que é..”. “O pathos do amor consiste na
intransponível dualidade dos seres”. Tentativas de superar
essa dualidade, de abrandar o obstinado e domar o
turbulento, de tornar prognosticável o incognoscível e de
acorrentar o nômade tudo isso soa como um dobre de
finados para o amor. Eros não quer sobreviver à dualidade.
Quando se trata de amor, posse, poder, fusão e desencanto
são os Quatro Cavaleiros do Apocalipse.
Nisso reside a assombrosa fragilidade do amor, lado a lado
com sua maldita recusa em suportar com leveza a
vulnerabilidade. Todo amor empenha-se em subjugar, mas
quando triunfa encontra a derradeira derrota. Todo amor
luta para enterrar as fontes de sua precariedade e
incerteza, mas, se obtém êxito, logo começa a se
enfraquecer — e definhar. Eros é possuído pelo fantasma de
Tanatos, que nenhum encantamento mágico é capaz de
exorcizar. A questão não é a precocidade de Eros, e não há
instrução ou expedientes autodidáticos que possam libertálo de sua mórbida — suicida — inclinação.
O desafio, a atração e a sedução do Outro tornam toda
distância,
ainda
que
reduzida
e
minúscula,
insuportavelmente grande. A abertura tem a aparência de
um precipício. Fusão e subjugação parecem ser as únicas
curas para o tormento. E não há senão uma tênue fronteira,
à qual facilmente se fecham os olhos, entre a carícia suave
e gentil e a garra que aperta, implacável. Eros não pode ser
fiel a si mesmo sem praticar a primeira, mas não pode
praticá-la sem correr o risco da segunda. Eros move a mão
que se estende na direção do outro — mas mãos que
acariciam também podem prender e esmagar.
Não importa o que você aprendeu sobre amor e amar,
sua sabedoria só pode vir, tal como o Messias de
Kafka, um dia depois de sua chegada.
Enquanto vive, o amor paira à beira do malogro. Dissolve
seu passado à medida que prossegue. Não deixa trincheiras
onde possa buscar abrigo em caso de emergência. E não
sabe o que está pela frente e o que o futuro pode trazer.
Nunca terá confiança suficiente para dispersar as nuvens e
abafar a ansiedade. O amor é uma hipoteca baseada num
futuro incerto e inescrutável.
O amor pode ser, e freqüentemente é, tão atemorizante
quanto a morte. Só que ele encobre essa verdade com a
comoção do desejo e do excitamento. Faz sentido pensar na
diferença entre amor e morte como na que existe entre
atração e repulsa. Pensando bem, contudo, não se pode ter
tanta certeza disso. As promessas do amor são, via de
regra, menos ambíguas do que suas dádivas. Assim, a
tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas
também o é a atração de escapar. E o fascínio da procura de
uma rosa sem espinhos nunca está muito longe, e é sempre
difícil de resistir.
Desejo e amor. Irmãos. Por vezes gêmeos; nunca,
porém, gêmeos idênticos (univitelinos).
Desejo é vontade de consumir. Absorver, devorar, ingerir e
digerir — aniquilar. O desejo não precisa ser instigado por
nada mais do que a presença da alteridade. Essa presença é
desde sempre uma afronta e uma humilhação. O desejo é o
ímpeto de vingar a afronta e evitar a humilhação. É uma
compulsão a preencher a lacuna que separa da alteridade,
na medida em que esta acena e repele, em que seduz com
a promessa do inexplorado e irrita por sua obstinada e
evasiva diferença. O desejo é um impulso que incita a
despir a alteridade dessa diferença; portanto, a
desempoderá-la [disempower]. Provar, explorar, tornar
familiar e domesticar. Disso a alteridade emergiria com o
ferrão da tentação arrancado e partido — quer dizer, se
sobrevivesse ao tratamento. Mas são grandes as chances de
que, nesse processo, suas sobras indigestas caiam do reino
dos produtos de consumo para o dos refugos.
Os produtos de consumo atraem, os refugos repelem.
Depois do desejo vem a remoção dos refugos. É, ao que
parece, como forçar o que é estranho a abandonar a
alteridade e desfazer-se da carapaça dissecada que se
congela na alegria da satisfação, pronta a dissolver-se tão
logo se conclua a tarefa. Em sua essência, o desejo é um
impulso de destruição. E, embora de forma oblíqua, de
autodestruição: o desejo é contaminado, desde o seu
nascimento, pela vontade de morrer. Esse é, porém, seu
segredo mais bem guardado — sobretudo de si mesmo.
O amor, por outro lado, é a vontade de cuidar, e de
preservar o objeto cuidado. Um impulso centrífugo, ao
contrário do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se,
ir além, alcançar o que "está lá fora". Ingerir, absorver e
assimilar o sujeito no objeto, e não vice-versa, como no
caso do desejo. Amar é contribuir para o mundo, cada
contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. No amor, o
eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo. O eu
que ama se expande doando-se ao objeto amado. Amar diz
respeito a auto-sobrevivência através da alteridade. E assim
o amor significa um estímulo a proteger, alimentar, abrigar;
e também à carícia, ao afago e ao mimo, ou a —
ciumentamente — guardar, cercar, encarcerar. Amar
significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar a
ordem. Mas também pode significar expropriar e assumir a
responsabilidade. Domínio mediante renúncia, sacrifício
resultando em exaltação. O amor é irmão xifópago da sede
de poder —nenhum dos dois sobreviveria à separação.
Se o desejo quer consumir, o amor quer possuir. Enquanto a
realização do desejo coincide com a aniquilação de seu
objeto, o amor cresce com a aquisição deste e se realiza na
sua durabilidade. Se o desejo se autodestrói, o amor se
autoperpetua.
Tal como o desejo, o amor é uma ameaça ao seu objeto. O
desejo destrói seu objeto, destruindo a si mesmo nesse
processo; a rede protetora carinhosamente tecida pelo amor
em torno de seu objeto escraviza esse objeto. O amor
aprisiona e coloca o detido sob custódia. Ele prende para
proteger o prisioneiro.
Desejo e amor encontram-se em campos opostos. O amor é
uma rede lançada sobre a eternidade, o desejo é um
estratagema para livrar-se da faina de tecer redes. Fiéis a
sua natureza, o amor se empenharia em perpetuar o desejo,
enquanto este se esquivaria aos grilhões do amor.
"Seus olhos se cruzam na sala lotada; o brilho da
atração está lá. Você conversa, dança, ri, compartilha
um drinque ou uma piada, e quando se dá conta um
dos dois pergunta: 'Na sua casa ou na minha?'
Nenhum dos dois está a fim de nada sério, mas de
algum modo uma noite pode virar uma semana,
depois um mês, um ano ou mais" — observa
Catherine Jarvie (no Guardian Weekend). (Guardian
Weekend, 12 jan 2002).
Esse resultado inesperado do lampejo do desejo e da noite
de sexo destinada a aplacá-lo é, na expressão de Jarvie, "um
meio-termo emocional entre a liberdade do encontro e a
seriedade de um relacionamento significativo" (embora a
"seriedade" como lembra ela a seus leitores, não impeça
que um "relacionamento significativo" termine em
"dificuldades e amarguras" quando um dos parceiros
"mantém o compromisso de levar a relação adiante
enquanto o outro está ávido por caçar em outras
pastagens"). As soluções de meio-termo — como todos os
outros arranjos "até segunda ordem" num ambiente fluido
no qual amarrar o futuro é algo tão irrealizável quanto
apreciado — não são necessariamente ruins (na opinião
tanto de Jarvie quanto da dra. Valerie Lamont, psicóloga e
especialista por ela citada). Mas quando "você se
comprometer, mesmo que sem entusiasmo", "lembre-se de
que pode estar fechando as portas a outras possibilidades
românticas" (ou seja, renunciando ao direito de "caçar em
novas pastagens", ao menos até que o parceiro reivindique
esse direito antes de você).
Uma observação brilhante, uma avaliação sóbria: você está
numa situação de escolha obrigatória. Desejo e amor são
e/ou.
Mais observações brilhantes: seus olhos se cruzam na sala,
e quando você se dá conta... O desejo de brincar juntos na
cama se insinua do nada, e não precisa bater muito à porta
para que o deixem entrar. Talvez de modo inusual num
mundo obcecado pela segurança, esse tipo de porta tem
poucas fechaduras, se é que chega a tê-las. Nada de
circuito fechado de televisão para examinar detidamente os
intrusos e distinguir os gatunos dos visitantes de boa-fé.
Verificar a compatibilidade dos signos (como nos comerciais
televisivos de uma marca de telefones celulares) pode
resolver o problema.
Dizer "desejo" talvez seja demais. É como num shopping: os
consumidores hoje não compram para satisfazer um desejo,
como observou Harvie Ferguson — compram por impulso.
Semear, cultivar e alimentar o desejo leva tempo (um
tempo insuportavelmente prolongado para os padrões de
uma cultura que tem pavor em postergar, preferindo a
"satisfação instantânea"). O desejo precisa de tempo para
germinar, crescer e amadurecer. Numa época em que o
"longo prazo" é cada vez mais curto, ainda assim a
velocidade de maturação do desejo resiste de modo
obstinado à aceleração. O tempo necessário para o
investimento no cultivo do desejo dar lucros parece cada
vez mais longo — irritante e insustentavelmente longo.
Os administradores de shopping centers não têm sido
agraciados com esse tempo por seus acionistas, mas
tampouco desejam que as decisões de compra sejam
tomadas por motivos nascidos e amadurecidos ao acaso,
nem deixar seu cultivo nas mãos leigas dos consumidores.
Todos os motivos necessários para fazê-los comprar devem
nascer
instantaneamente,
enquanto
passeiam
pelo
shopping. Também podem ter morte instantânea (por
suicídio assistido, na maioria dos casos), uma vez concluída
a tarefa. Sua expectativa de vida não precisa ser maior do
que o tempo gasto pelos consumidores vagando entre a
entrada e a saída do shopping.
Nos dias de hoje, os shopping centers tendem a ser
planejados tendo-se em mente o súbito despertar e a rápida
extinção dos impulsos, e não a incômoda e prolongada
criação e maturação dos desejos. O único desejo que pode
(e deve) ser implantado por meio da visita a um shopping é
o de repetir, vezes e vezes seguidas, o momento
estimulante de "abandonar-se aos impulsos" e permitir que
estes comandem o espetáculo sem que haja um cenário
predefinido. A curta expectativa de vida é o trunfo dos
impulsos, dando-lhes uma vantagem sobre os desejos.
Render-se aos impulsos, ao contrário de seguir um desejo, é
algo que se sabe ser transitório, mantendo-se a esperança
de que não deixará conseqüências duradouras capazes de
impedir novos momentos de êxtase prazeroso. No caso das
parcerias, e particularmente das parcerias sexuais, seguir os
impulsos em vez dos desejos significa deixar as portas
escancaradas "a novas possibilidades românticas" que,
como sugere a ora. Lamont e pondera Catherine Jarvie,
podem ser "mais satisfatórias e completas".
Com a ação por impulso profundamente incutida na
conduta cotidiana pelos poderes supremos do
mercado de consumo, seguir um desejo é como
caminhar constrangido, de modo desastrado e
desconfortável, na direção do compromisso amoroso.
Em sua versão ortodoxa, o desejo precisa ser cultivado e
preparado, o que envolve cuidados demorados, a árdua
barganha com conseqüências inevitáveis, algumas escolhas
difíceis e concessões dolorosas. Mas, pior que tudo, impõe
que se retarde a satisfação, sem dúvida o sacrifício mais
detestado em nosso mundo de velocidade e aceleração. Em
sua reencarnação radical, aguçada e sobretudo compacta
como impulso, o desejo perdeu a maior parte de tais
atributos protelatórios, enquanto focalizava mais de perto o
seu alvo. Tal como nos comerciais que anunciavam o
surgimento dos cartões de crédito, agora não precisamos
esperar para satisfazer nossos desejos.
Guiada pelo impulso ("seus olhos se cruzam na sala
lotada"), a parceria segue o padrão do shopping e não exige
mais que as habilidades de um consumidor médio,
moderadamente experiente. Tal como outros bens de
consumo, ela deve ser consumida instantaneamente (não
requer maiores treinamentos nem uma preparação
prolongada) e usada uma só vez, "sem preconceito". É,
antes de mais nada, eminentemente descartável.
Consideradas
defeituosas
ou
não
"plenamente
satisfatórias", as mercadorias podem ser trocadas por
outras, as quais se espera que agradem mais, mesmo que
não haja um serviço de atendimento ao cliente e que a
transação não inclua a garantia de devolução do dinheiro.
Mas, ainda que cumpram o que delas se espera, não se
imagina que permaneçam em uso por muito tempo. Afinal,
automóveis,
computadores
ou
telefones
celulares
perfeitamente usáveis, em bom estado e em condições de
funcionamento satisfatórias são considerados, sem remorso,
como um monte de lixo no instante em que "novas e
aperfeiçoadas versões" aparecem nas lojas e se tornam o
assunto do momento. Alguma razão para que as parcerias
sejam consideradas uma exceção à regra?
As promessas de compromisso, escreve Adrienne
Burgess, "são irrelevantes a longo prazo". (Adrienne
Burgess, Will You StilI Love me Tomorrow (Londres,
Vermilion, 2001), citado no Guardian Weckend, 26 jan
2002);
E ela prossegue explicando: "O compromisso é uma
conseqüência aleatória de outras coisas: nosso grau de
satisfação com o relacionamento; se nós vemos uma
alternativa viável para ele; e se levá-lo adiante nos causaria
uma perda importante em matéria de investimentos
(tempo, dinheiro, propriedades em comum, filhos)." Mas,
segundo Caryl Rusbult, "especialista em relacionamentos"
da Universidade da Carolina do Norte, "esses fatores têm
altas e baixas, da mesma forma que os sentimentos de
compromisso'.
Um dilema, de fato: você reluta em cortar seus gastos, mas
abomina a perspectiva de perder ainda mais dinheiro na
tentativa de recuperá-los. Um relacionamento, como lhe
dirá o especialista, é um investimento como todos os
outros: você entrou com tempo, dinheiro, esforços que
poderia empregar para outros fins, mas não empregou,
esperando estar fazendo a coisa certa e esperando também
que aquilo que perdeu ou deixou de desfrutar acabaria, de
alguma forma, sendo-lhe devolvido — com lucro. Você
compra ações e as mantém enquanto seu valor promete
crescer, e as vende prontamente quando os lucros
começam a cair ou outras ações acenam com um
rendimento maior (o truque é não deixar passar o momento
em que isso ocorre). Se você investe numa relação, o lucro
esperado é, em primeiro lugar e acima de tudo, a segurança
— em muitos sentidos: a proximidade da mão amiga
quando você mais precisa dela, o socorro na aflição, a
companhia na solidão, o apoio para sair de uma dificuldade,
o consolo na derrota e o aplauso na vitória; e também a
gratificação que nos toma imediatamente quando nos
livramos de uma necessidade. Mas esteja alerta: quando se
entra num relacionamento, as promessas de compromisso
são "irrelevantes a longo prazo".
É claro. Relacionamentos são investimentos como quaisquer
outros, mas será que alguma vez lhe ocorreria fazer juras de
lealdade às ações que acabou de adquirir? Jurar ser fiel para
sempre, nos bons e maus momentos, na riqueza e na
pobreza, "até que a morte nos separe"? Nunca olhar para os
lados, onde (quem sabe?) prêmios maiores podem estar
acenando?
A primeira coisa que os bons acionistas (prestem atenção:
os acionistas só detêm as ações, e é possível desfazer-se
daquilo que se detém) fazem de manhã é abrir os jornais
nas páginas sobre mercado de capitais para saber se é hora
de manter suas ações ou desfazer-se delas. É assim
também com outro tipo de ações, os relacionamentos. Só
que nesse caso não existe um mercado em operação e
ninguém fará por você o trabalho de ponderar as
probabilidades e avaliar as chances (a menos que você
contrate um especialista, da mesma forma que contrata um
consultor financeiro ou um contador habilitado, embora no
caso dos relacionamentos haja uma infinidade de
programas de entrevistas e "dramas da vida real" tentando
ocupar esse espaço). E assim você tem que seguir, dia após
dia, por conta própria. Se cometer um erro, não terá direito
ao conforto de pôr a culpa numa informação equivocada.
Precisa estar em alerta constante. Se cochilar ou reduzir a
vigilância, problema seu. "Estar num relacionamento"
significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza
permanente.
Você
nunca
poderá
estar
plena
e
verdadeiramente seguro daquilo que faz — ou de ter feito a
coisa certa ou no momento preciso.
Parece que esse dilema não tem uma boa solução. Pior
ainda, que ele está impregnado de um paradoxo do tipo
mais desagradável: não apenas a relação falha em termos
da necessidade que deveria (e esperávamos que pudesse)
cumprir, mas torna essa necessidade ainda mais afrontosa e
exasperante. Você busca o relacionamento na expectativa
de mitigar a insegurança que infestou sua solidão; mas o
tratamento só fez expandir os sintomas, e agora você talvez
se sinta mais inseguro do que antes, ainda que essa "nova e
agravada" insegurança provenha de outras paragens. Se
você pensava que os juros de seu investimento em
companhia seriam pagos na moeda forte da segurança,
parece que sua iniciativa se baseou em falsos pressupostos.
Isso significa problemas e nada mais que problemas — mas
não todo o problema. Comprometer-se com um
relacionamento, "irrelevante a longo prazo" (fato de que
ambos os lados estão cientes!) é uma faca de dois gumes.
Faz com que manter ou confiscar o investimento seja uma
questão de cálculo e decisão. Mas não há motivo para supor
que seu parceiro ou parceira não deseje, se for o caso,
exercitar uma escolha semelhante, e que não esteja livre
para fazê-lo se e quando desejar. Essa consciência aumenta
ainda mais sua incerteza — e a parte acrescentada é a mais
difícil de suportar. Ao contrário de uma escolha pessoal do
tipo "pegar ou largar", não está em seu poder evitar que o
parceiro ou parceira prefira sair do negócio. Há muito pouco
que você possa fazer para mudar essa decisão a seu favor.
Para o parceiro, você é a ação a ser vendida ou o prejuízo a
ser eliminado — e ninguém consulta as ações antes de
devolvê-las ao mercado, nem os prejuízos antes de cortálos.
Por todos os motivos, a visão do relacionamento como uma
transação comercial não é a cura para a insônia. Investir no
relacionamento é inseguro e tende a continuar sendo,
mesmo que você deseje o contrário: é uma dor de cabeça,
não um remédio. Na medida em que os relacionamentos
são vistos como investimentos, como garantias de
segurança e solução de seus problemas, eles parecem um
jogo de cara-ou-coroa. A solidão produz insegurança — mas
o relacionamento não parece fazer outra coisa. Numa
relação, você pode sentir-se tão inseguro quanto sem ela,
ou até pior. Só mudam os nomes que você dá à ansiedade.
Se não há uma boa solução para um dilema, se
nenhuma medida aparentemente sensata e efetiva
consegue fazer com que a saída pareça ao menos um
pouco mais próxima, as pessoas tendem a se
comportar de modo irracional, aumentando o
problema e tornando ainda menos plausível resolvêlo.
Christopher Clulow, do Instituto Tavistock de Estudos
Matrimoniais, outro especialista citado por Adrienne Burges,
conclui: "Quando se sentem inseguros, os amantes tendem
a se portar de modo não-construtivo, seja tentando agradar
ou controlar, talvez até agredindo fisicamente — o que
provavelmente afastará o outro ainda mais." Quando a
insegurança sobe a bordo, perde-se a confiança, a
ponderação e a estabilidade da navegação. À deriva, a frágil
balsa do relacionamento oscila entre as duas rochas nas
quais muitas parcerias esbarram: a submissão e o poder
absolutos, a aceitação humilde e a conquista arrogante,
destruindo a própria autonomia e sufocando a do parceiro.
Chocar-se contra uma dessas rochas afundaria até mesmo
uma boa embarcação com tripulação qualificada — o que
dizer de uma balsa com um marinheiro inexperiente que,
criado na era dos acessórios, nunca teve a oportunidade de
aprender a arte dos reparos? Nenhum marinheiro atualizado
perderia tempo consertando uma peça sem condições para
a navegação, preferindo trocá-la por outra sobressalente.
Mas na balsa do relacionamento não há peças
sobressalentes.
O
fracasso
no
relacionamento
é
freqüentemente um fracasso na comunicação.
muito
Como observou Knud Løgstrup — inicialmente o insinuante
evangelista da paróquia de Funen, mais tarde o estridente
filósofo da ética da Universidade de Aarhus —, há duas
"perversões divergentes" à espreita do comunicador
imprevidente ou descuidado (Knud Løngstrup, Den Etiske
Fordring. [Ed. ing.: The Ethical Demand. Notre Dame,
University of Notre Dame Press, 1997, p.24-5]). Uma delas é
"o tipo de associação que, devido à preguiça, ao medo ou a
uma propensão à acomodação no relacionamento, consiste
simplesmente em tentar agradar um ao outro enquanto se
continua fugindo do problema. Com a possível exceção de
uma causa comum contra uma terceira pessoa, não há nada
que promova mais uma relação confortável do que a
louvação mútua". Outra perversão consiste em "nosso
desejo de mudar os outros. Temos opiniões definidas sobre
como fazer as coisas e sobre como os outros deveriam ser.
Essas opiniões carecem de critério, pois, quanto mais
definitivas, mais necessário se torna que evitemos ser
confundidos por uma compreensão excessiva daqueles que
devem ser mudados".
O problema é que essas perversões são, muito
freqüentemente, filhas do amor. A primeira delas pode
resultar do desejo de paz e conforto, como está implícito na
afirmação de Løgstrup. Mas também pode ser, e com
freqüência é, o produto do respeito amoroso pelo outro: eu
amo você, e assim permito que você seja como é e insiste
em ser, apesar das dúvidas que eu possa ter quanto à
sensatez de sua escolha. Não importa o mal que sua
obstinação possa me causar: não ousarei contradizer você,
muito menos pressionar para que você escolha entre a sua
liberdade e o meu amor. Você pode contar com a minha
aprovação, aconteça o que acontecer... E já que o amor não
pode deixar de ser possessivo, minha generosidade
amorosa é baseada na esperança: aquele cheque em
branco é um presente do meu amor, um presente precioso
que não se encontra em outros lugares. Meu amor é o
refúgio tranqüilo que você procurava e de que precisava
mesmo que não procurasse. Agora você pode sossegar e
suspender a busca...
Eis aí a possessividade amorosa — mas uma possessividade
que procura realizar-se por meio do autocontrole.
A segunda perversão vem de se deixar a possessividade
amorosa correr livre e raivosa. O amor é uma das respostas
paliativas a essa bênção/maldição da individualidade
humana, que tem como um de seus muitos atributos a
solidão que tende a advir da (como insinua Erich Fromm
(Erich Fromm, The Art of Loving, op.cit.), seres humanos de
todas as idades e culturas são confrontados com a solução
de uma única e mesma questão: como superar a separação,
como alcançar a união, como transcender a vida individual
e encontrar a "harmonia com o todo"). Todo amor é
matizado pelo impulso antropofágico. Todos os amantes
desejam suavizar, extirpar e expurgar a exasperadora e
irritante alteridade que os separa daqueles a que amam.
Separar-se do ser amado é o maior medo do amante, e
muitos fariam qualquer coisa para se livrarem de uma vez
por todas do espectro da despedida. Que melhor maneira
de atingir esse objetivo do que transformar o amado numa
parte inseparável do amante? Aonde eu for você também
vai; o que eu faço você também faz; o que eu aceito você
também aceita; o que me ofende também ofende a você.
Se você não é nem pode ser meu gêmeo siamês, seja o
meu clone!
A segunda perversão tem também outra raiz, fincada na
adoração que o amante tem pelo ente amado. Em sua
introdução a uma coletânea de textos intitulada
Philosophies of love (David L. Norton e Mary E. KiIle (orgs.),
Philosophies of Love. Nova York, Helix Books, 1971), David
L. Norton e Mary E. Kille contam a história de um homem
que convidou alguns amigos para um jantar em que estes
conheceriam "a perfeita encarnação da Beleza, Virtude,
Sabedoria e Graça — em suma, a mais adorável mulher do
mundo": Mais tarde no mesmo dia, à mesa do restaurante,
os convidados "se esforçaram para esconder seu
assombro": seria aquela "a criatura que superava Vênus,
Helena e Lady Hamilton em beleza"? Por vezes é difícil
separar a adoração do ser amado da auto-adoração. Podese observar um traço de um ego expansivo e no entanto
inseguro, desesperado por confirmar seus méritos incertos
por meio de seu reflexo no espelho, ou, melhor ainda, num
retrato lisonjeiro, cuidadosamente retocado. Não é verdade
que uma parte de meu singular valor foi repassada para a
pessoa que eu (lembrem-se: eu, a minha pessoa, exercendo
a minha vontade e o meu arbítrio soberanos) escolhi — que
recolhi na multidão de anônimos e comuns para ser minha,
somente minha, companheira? No brilho ofuscante da
pessoa escolhida, minha própria incandescência encontra
seu reflexo resplandecente. Ele aumenta, confirma e
endossa a minha glória, levando consigo, aonde quer que
vá, notícias e provas dela.
Mas será que posso estar seguro? Eu estaria, caso não
houvesse dúvidas agitando-se naquela escura masmorra do
inesperado onde as tranquei na vã esperança de nunca
mais ouvir falar nelas. Aflições, apreensões, receios de que
a virtude possa ser imperfeita, a glória fantasiosa... de que
a distância entre eu tal como sou e o verdadeiro eu que
anseia por vir à tona, mas ainda não conseguiu, precisa ser
negociada — e isso é uma exigência exorbitante.
Meu ser amado poderia ser um quadro no qual minha
perfeição fosse retratada em toda a sua magnificência e
esplendor — mas será que as nódoas e manchas também
não apareceriam? Para limpá-las — ou escondê-las, caso
sejam pegajosas demais para serem apagadas —, é
necessário lavar e preparar a tela antes de se iniciar o
trabalho de pintura. E depois observar cuidadosamente para
garantir que traços das antigas imperfeições não venham a
surgir de seu esconderijo debaixo de sucessivas camadas de
tinta. Cada momento de sossego é prematuro — restaurar e
pintar de novo, sem folgas...
Esse esforço incessante é também um trabalho de amor. O
amor explode de energia criativa, que inúmeras vezes é
liberada numa explosão ou fluxo contínuo de destruição.
Nesse processo, o ser amado transformou-se numa tela —
em branco, de preferência. Suas cores naturais
empalideceram, de modo a não se chocar com a figura do
pintor, nem desfigurá-la. O pintor não precisa indagar da
tela como esta se sente, lá embaixo, sob toda aquela tinta.
As telas de lona ou de linho não apresentam relatórios
voluntariamente — embora as telas humanas por vezes o
façam.
Pode ser amor num lampejo, amor à primeira vista;
mas o tempo, longo ou curto, deve transcorrer entre
a pergunta e a resposta, a proposta e sua aceitação.
O tempo transcorrido nunca é tão curto a ponto de permitir
que aquele que perguntou e aquele que respondeu
permaneçam, no momento em que chega a resposta, os
mesmos seres que eram quando o relógio foi posto para
funcionar. Como diz Franz Rosenzweig, "a resposta é dada
por uma pessoa inevitavelmente diferente daquela a quem
foi feita a pergunta, e ela é dada a alguém que mudou
desde que perguntou. É impossível saber a profundidade
dessa mudança" (Franz Rosenzweig, Das Büchlein vom
gesunden und kranken Menschenverstand. {Ed. ing.:
Understanding the sick and the healthy. Org. N.N. Glatzer,
Harvard, Harvard University Press, 1999]). Fazer a pergunta,
esperar a resposta, ser indagado, esforçar-se para
responder — isso é que fez a diferença.
Ambos os parceiros sabiam que a mudança estava
ocorrendo e lhe deram boas-vindas. Mergulharam de cabeça
em águas inexploradas. A oportunidade de se abrirem à
aventura do desconhecido e do imprevisível era a maior das
seduções do amor. "O primeiro alívio da tensão no jogo
encantado do amor geralmente vem quando os amantes se
chamam um ao outro pelo primeiro nome. Esse ato se
coloca como a solitária garantia de que os passados dos
dois indivíduos serão incorporados aos seus presentes." E —
permitam-me acrescentar — a presteza em incorporar
futuros
compartilhados
aos
presentes
individuais
parcialmente compartilhados, parcialmente separados. O
futuro que se segue a essa incorporação diferirá,
forçosamente, do presente, tal como este difere do passado.
João será João e Maria, Maria será Maria e João.
Odo Marquard falou, não necessariamente com ironia, do
parentesco etimológico entre zwei e Zweifel ("dois" e
"dúvida") e insinuou que o elo entre essas palavras vai além
da simples aliteração. Onde há dois não há certeza. E
quando o outro é reconhecido como um "segundo"
plenamente independente, soberano — e não uma simples
extensão, eco, ferramenta ou empregado trabalhando para
mim, o primeiro — a incerteza é reconhecida e aceita. Ser
duplo significa consentir em indeterminar o futuro.
Franz Kafka observou que somos duplamente distintos de
Deus. Tendo comido da árvore do bem e do mal, nós nos
distinguimos Dele, enquanto o fato de não termos comido
da árvore da vida O distingue de nós. Ele (a eternidade, na
qual se abraçam todos os seres e seus feitos, em que tudo
que pode ser é, e tudo que pode acontecer acontece) está
próximo de nós. Fadado a permanecer secreto —
eternamente além de nossa compreensão. Mas sabemos
disso, o que não nos permite ter sossego. Desde a
fracassada tentativa de erigir a Torre de Babel, não
podemos deixar de tentar e errar e fracassar e tentar
novamente.
Tentar o quê? Rejeitar essa distinção, rejeitara negação do
direito aos frutos da árvore da vida. Prosseguir tentando e
fracassar nas tentativas é humano, demasiadamente
humano. Se a alteridade é, segundo Levinas, o derradeiro
mistério, o absolutamente desconhecido e o totalmente
impenetrável, isso não pode ser uma ofensa e um desafio —
precisamente por ser divino: barrando o acesso, negando o
ingresso, inatingível e eternamente além do nosso alcance.
Mas (como Rozenberg insiste em nos lembrar) "o ilimitado
não pode ser alcançado por meio da organização... As
coisas mais elevadas não podem ser planejadas. Imediatez
é tudo para elas".
Imediatez para quê? "O discurso é amarrado ao tempo e por
ele nutrido... Não sabe de antemão onde vai terminar.
Segue o exemplo de outros. De fato, vive em virtude da vida
de outro... Na conversa real, alguma coisa acontece."
Rosenzwelg explica quem é esse "outro", por cuja vida vive
o discurso de modo a que alguma coisa possa acontecer na
conversa: esse outro "é sempre um alguém bem definido"
que não tem "apenas ouvidos, como 'todo o mundo, mas
também uma boca".
É exatamente isso que faz o amor: destaca um outro de
"todo mundo" e por meio desse ato remodela "um" outro
transformando-o num "alguém bem definido, dotado de
uma boca que se pode ouvir e com quem é possível
conversar de modo a que alguma coisa seja capaz de
acontecer.
E o que seria essa "alguma coisa"? Amar significa manter a
resposta pendente ou evitar fazer a pergunta. Transformar
um outro num alguém definido significa tornar indefinido o
futuro. Significa concordar com a indefinibilidade do futuro.
Concordar com uma vida vivida, da concepção ao
desaparecimento, no único local reservado aos seres
humanos: aquela vaga extensão entre a finitude de seus
feitos e a infinidade de seus objetivos e conseqüências.
"As relações de bolso" explica Catherine Jarvie,
comentando as opiniões de Gillian Walton, do Guia
Matrimonial de Londres (Guardian Weekend, 9 mar
2002), são assim chamadas porque você as guarda no
bolso de modo a poder lançar mão delas quando for
preciso.
Uma relação de bolso bem sucedida, diz Jarvie, é doce e de
curta duração. Podemos supor que seja doce porque tem
curta duração, e que sua doçura se abrigue precisamente
naquela reconfortante consciência de que você não precisa
sair do seu caminho nem se desdobrar para mantê-la
intacta por um tempo maior. De fato, você não precisa fazer
nada para aproveitá-la. Uma "relação de bolso" é a
encarnação da instantaneidade e da disponibilidade.
Não que o seu relacionamento
assombrosas qualidades sem que
vá adquirir essas
algumas condições
tenham sido previamente atendidas. Observe que é você
quem deve atendê-las — outro ponto favorável a um
relacionamento "de bolso", sem dúvida, já que é você e só
você que está no controle, e nele permanece por toda a
curta vida dessa relação.
Primeira condição: deve-se entrar no relacionamento
plenamente consciente e totalmente sóbrio. Lembre-se:
nada de "amor à primeira vista" aqui. Nada de apaixonarse... Nada daquela súbita torrente de emoções que nos
deixa sem fôlego e com o coração aos pulos. Nem as
emoções que chamamos de "amor" nem aquelas que
sobriamente descrevemos como "desejo". Não se deixe
dominar nem arrebatar, e acima de tudo não deixe que lhe
arranquem das mãos a calculadora. E não se permita tomar
o motivo da relação em que você está para entrar por aquilo
que ele não é nem deve ser. A conveniência é a única coisa
que conta, e isso é algo para uma cabeça fria, não para um
coração quente (muito menos superaquecido). Quanto
menor a hipoteca, menos inseguro você vai se sentir
quando for exposto às flutuações do mercado imobiliário
futuro; quanto menos investir n o relacionamento, menos
inseguro vai se sentir quando for exposto às flutuações de
suas emoções futuras.
Segunda condição: mantenha-o do jeito que é. Lembre-se
de que não é preciso muito tempo para que a conveniência
se converta no seu oposto. Assim, não deixe o
relacionamento escapar à supervisão do chefe, não lhe
permita desenvolver sua lógica própria e, especialmente,
adquirir direitos de propriedade — não deixe que caia do
bolso, que é seu lugar. Fique alerta. Não durma no ponto.
Observe atentamente até mesmo as menores mudanças
naquilo que Jarvie chama de "subcorrentes emocionais"
(obviamente, as emoções tendem a se transformar em
"subcorrentes" quando deixadas livres das amarras do
cálculo). Se notar alguma coisa que você não negociou e
para a qual não liga, saiba que "é hora de seguir adiante". É
o tráfego que sustenta todo o prazer.
Mantenha o bolso livre e preparado. Logo vai precisar pôr
alguma coisa nele e — cruze os dedos — você vai
conseguir...
A seção "Espírito dos relacionamentos" do Guardian
Weekend vale ser lida toda semana, mas é melhor
ainda ler várias edições de uma vez.
A cada semana ela oferece conselhos sobre como proceder
diante de um "problema" que, cedo ou tarde, a maioria dos
homens e mulheres (principalmente leitores do Guardian)
deve —mais propriamente espera — enfrentar. A cada
semana um problema; mas depois de uma seqüência de
semanas o leitor dedicado e atento pode obter bem mais do
que algumas habilidades específicas em matéria de política
de vida, que podem ser úteis em situações específicas que
surgem quando se lida com problemas específicos;
habilidades que, uma vez adquiridas e combinadas, podem
ajudar a criar os tipos de situações para cujo manejo foram
concebidas, assim como a identificar e localizar os
problemas para cujo enfrentamento foram planejadas. Um
leitor regular e dedicado que seja abençoado com uma
capacidade de memorização por um tempo maior do que
uma semana pode desenhar e preencher um mapa de vida
completo no qual os "problemas" tendam a aflorar, registrar
um inventário total desses problemas e formar uma opinião
sobre sua relativa freqüência ou raridade. Num mundo em
que a seriedade de algo é representada apenas por
números, e portanto só pode ser apreendida dessa maneira
(a qualidade de um sucesso musical pelo número de discos
vendidos, de um evento ou performance públicos pelo
número de espectadores de televisão, de uma figura pública
pelo número de pessoas presentes ao seu enterro, de
intelectuais na opinião do público pelo número de citações e
referências), a elevada freqüência com que alguns
"problemas" retornam à coluna, semana após semana após
semana, é a prova de sua relevância para uma vida de
sucesso, e assim da importância das habilidades concebidas
para enfrentá-los.
Desse modo, vendo-se os relacionamentos pelo prisma da
coluna "Espírito dos relacionamentos", o que um leitor fiel
pode aprender sobre a importância relativa das coisas e das
técnicas para lidar com elas?
O leitor pode ter uma série de dicas úteis sobre os lugares
onde podem ser encontrados, em quantidades maiores que
o usual, parceiros para possíveis relacionamentos, assim
como sobre as situações em que é mais provável que estes
possam ser convencidos ou persuadidos a assumir esse
papel. E ele ou ela deve saber que iniciar um
relacionamento é um "problema" — ou seja, apresenta uma
dificuldade que produz confusão e ocasiona tensões
desagradáveis que, para serem enfrentadas e afastadas,
tornam necessária certa dose de conhecimento e know-how.
Isso pode ser aprendido —sem muito esforço, apenas
seguindo-se regularmente, semana após semana, a versão
de espírito do relacionamento do Guardian Weekend.
Essa não será, contudo, a principal versão passível de se
capilarizar e enraizar na visão de vida e de política de vida
do leitor regular. A arte de romper o relacionamento e dele
emergir incólume — com poucas (se é que alguma) feridas
infeccionadas que exijam muito tempo para cicatrizar e
muito cuidado para se evitar os "danos colaterais" (tais
como o afastamento de amigos, ou o surgimento de círculos
nos quais não se é bem-vindo ou em que se preferiria não
entrar) — bate de longe a arte de constituir
relacionamentos, pela pura freqüência com que se
expressa.
Se Richard Baxter, o inflamado profeta puritano, fosse em
vez disso o profeta da estratégia existencial adequada para
a líquida vida moderna, ele provavelmente diria de tais
relacionamentos o que disse sobre a aquisição de bens
externos e o cuidado com eles — que "devem apenas cair
sobre os ombros como um manto leve que pode ser posto
de lado a qualquer momento", e que se deve ter o maior
cuidado para que não se transformem, inadvertida e subrepticiamente, em "caixas de aço".. Não se levam riquezas
para o túmulo, advertia o santo-profeta Baxter seu rebanho,
reforçando o senso comum daqueles que viviam suas vidas
como servos do além-túmulo. Não se levam relações para o
próximo capítulo, advertiria o especialista seus clientes,
fazendo coro às premonições transformadas em certezas de
pessoas, ensinadas pela experiência, que tiveram as vidas
fatiadas em episódios e que vivem como servas dos
episódios futuros. É provável que seu relacionamento se
rompa bem antes do fim do capítulo. Mas se isso não
acontecer dificilmente haverá outro. Com certeza, não um
capítulo a ser saboreado e desfrutado.
O surpreendente sucesso de EastEnders (Seriado da
BBC exibido com enorme sucesso desde 1985. Ambientado
em Walford, região fictícia do "east end" de Londres, aborda
o cotidiano de famílias operárias, vizinhas e por vezes
aparentadas,
que
vivem
em
Albert
Square.
Os
relacionamentos familiares e amorosos ocupam papel
central em EastEnders; a personagem Little Mo,
mencionada mais adiante, caracteriza-se por colocar os
outros antes de si própria, e entre outros infortúnios
enfrentou anos de violência doméstica por parte do marido
e meses de prisão por supostamente ter tentado assassinálo. (N.T.)) transmite uma mensagem aparentemente
diferente...
O encantado/viciado público cresce, da mesma forma que a
autoconfiança dos roteiristas, produtores e atores. Essa
telenovela parece ter atingido um público-alvo que outras
desprezaram ou perderam, e continuam perdendo. Qual o
segredo?
A maioria dos relacionamentos em que os personagens de
EastEnders se envolvem parece tão frágil quanto qualquer
outro que os espectadores conhecem a partir de suas
próprias frustrações ou dos relatos de advertência de outras
pessoas
(incluindo
as
mensagens
que
aparecem
semanalmente na coluna "Espírito dos relacionamentos").
Dificilmente algum dos vínculos estabelecidos pelos
personagens de EastEnders consegue sobreviver ao fluxo
regular dos episódios por mais que alguns meses — por
vezes duram apenas umas poucas semanas — e, entre os
relacionamentos fracassados, são poucos e bem espaçados
os que terminam por "causas naturais" Para os
espectadores dotados de melhor memória, Albert Square,
ou simplesmente a Praça, deve ser vista como o túmulo dos
relacionamentos humanos...
Envolver-se em relacionamentos como os de EastEnders
não é absolutamente fácil. Exige esforço e habilidades
consideráveis, que muitos personagens infelizes não
possuem e que são características inatas de apenas uns
poucos (embora algumas vezes também se faça necessária
certa dose de sorte, distribuída esparsamente e ao acaso).
Os problemas não terminam quando os casais passam a
viver juntos. Os quartos compartilhados podem ser um local
de alegria e diversão, mas raramente de segurança e
sossego. Alguns deles são palcos de dramas cruéis, cheios
de escaramuças verbais que resultam em brigas aos socos
e (se o casal não se separa antes) amplas hostilidades com
desfecho semelhante ao de um Cães de aluguel. Belas
cerimônias de casamento não ajudam; festas só para
homens ou só para mulheres não põem fim ao
Desconhecido, repleto de riscos e propenso a acidentes, e
os aniversários de núpcias não são novos inícios que
estimulem os casais a fazer "algo totalmente diferente",
apenas pequenos intervalos num drama sem cenários nem
textos definidos.
A parceria é somente uma coalizão de "interesses
confluentes" e, no mundo fluido de EastEnders, as pessoas
vêm e vão, as oportunidades batem à porta e desaparecem
novamente logo após serem convidados a entrar, as
fortunas aumentam e diminuem, e as coligações tendem a
ser flutuantes, frágeis e flexíveis. As pessoas procuram
parceiros e buscam "envolver-se em relacionamentos" a fim
de escapar à aflição da fragilidade, só para descobrir que
ela se torna ainda mais aflitiva e dolorosa do que antes. O
que se propunha/ansiava/esperava ser um abrigo (talvez o
abrigo) contra a fragilidade revela-se sempre como a sua
estufa...
Milhões de fãs e espectadores habituais de EastEnders
assistem e balançam a cabeça em concordância. Sim,
sabemos disso tudo, já vimos isso tudo, já vivemos isso
tudo. O que aprendemos com a amarga experiência é que
essa situação de ter sido abandonado à própria sorte, sem
ter com quem contar quando necessário, quem nos console
e nos dê a mão, é terrível e assustadora, mas nunca se está
mais só e abandonado do que quando se luta para ter a
certeza de que agora existe de fato alguém com quem se
pode contar, amanhã e depois, para fazer tudo isso se —
quando — a roda da fortuna começar a girar em outra
direção. É impossível predizer os resultados de nossa luta —
e a luta em si cobra o seu preço. Diariamente se exigem
sacrifícios. É difícil que se passe um dia sem uma desavença
ou troca de sopapos. Esperar até que a deusa escondida
(como você deseja ardentemente acreditar e tão
apaixonadamente acredita) bem lá dentro do parceiro
consiga romper a couraça maligna e enfim se revele pode
levar mais tempo do que você é capaz de agüentar. E
enquanto você espera há muita dor para sentir, lágrimas
para verter e sangue para derramar...
Os episódios de EastEnders são repetições, três vezes por
semana, daquilo que é o nosso conhecimento do dia-a-dia.
Reafirmações regulares e confiáveis para a pessoa insegura:
sim, esta é sua vida, e a verdade sobre a vida de outros
como você. Não entre em pânico, vá levando, e não se
esqueça nem por um momento de que isso vai acontecer —
pode estar certo. Ninguém está dizendo que seja fácil
transformar as pessoas em parceiras do destino, mas não
existe alternativa senão tentar, repetidamente.
Essa não é, porém, a única mensagem que EastEnders leva
à sua casa três vezes por semana, e graças à qual o
programa se tornou e permanece tão obrigatório para
tantas pessoas. Há também uma outra. Caso você tenha
esquecido, existe uma segunda linha de trincheiras naquele
infinito campo de batalha existencial, um último fosso
defensivo pronto para ser usado contra os extravagantes
caprichos da sorte e as surpresas que aquele mundo de
rosto impenetrável mantém guardadas na manga da
camisa. As trincheiras já foram cavadas para você antes
que você mesmo começasse a cavar a sua; estão esperando
que você pule para dentro delas. Ninguém vai lhe fazer
perguntas, questionar o que você fez para obter o direito de
pedir socorro e ajuda. Não importa o que tenha feito,
ninguém lhe recusará a entrada.
Há os Butcher, os Mitchell, os Slater, os Clan, a cujo grupo
você pertence sem jamais ter se juntado a ele nem pedido
para entrar. Você não precisa fazer absolutamente nada
para se tornar "um deles" — embora não haja muito o que
possa fazer para deixar de ser. Eles estarão prontos a fazêlo lembrar, caso você esqueça essas simples verdades.
E assim você se encontra diante de um dilema. A menos
que seja um daqueles canalhas e párias "naturais",
excepcionalmente
inescrupulosos,
indisciplinados,
aventureiros ou psicóticos, fadado a ter de se esconder, ser
atropelado, expulso pelos vizinhos ou trancafiado na prisão
— ou a usar outras saídas já testadas para sumir de Albert
Square —, você vai preferir lançar mão das duas âncoras
que a vida lhe deu para se atracar à companhia de outras
pessoas. Vai querer juntar-se ao parceiro de sua escolha e
ao clã que o destino escolheu para você.
Isso, porém, pode não ser fácil — tal como aproveitar ao
mesmo tempo o calor da lareira e os prazeres de nadar no
mar. Os labirintos que os personagens de Albert Square são
obrigados a atravessar ampliam e retratam com nitidez os
obstáculos que se acumulam em nosso caminho, o que é
outra razão para observar suas proezas três vezes por
semana. Você vê aquilo que vinha sentindo o tempo todo:
que você é o único elo a unir o parceiro que você ama, e
pelo qual deseja ser amado, ao clã familiar a que você
pertence e deseja pertencer, o qual, por sua vez, deseja que
você pertença a ele e lhe obedeça. E então você é, afinal, "o
elo mais fraco" — onde a corda arrebenta no cabo-de-guerra
entre as duas causas.
A guerra de atrito, sempre quente e por vezes em ebulição,
cujas primeiras vítimas são os que sonham em reconciliarse, chegou ao seu clímax dramático — de fato, atingiu os
píncaros da tragédia de Antígona — no julgamento de Little
Mo, versão atualizada da imortal peça de Sófocles e da
história imortal por ela registrada...
Diz Antígona: "Oh, mas eu não teria feito a coisa proibida/
Por nenhum marido nem por nenhum filho/ Para quê? Eu
poderia ter tido outro marido/ e por meio dele outros filhos,
se perdesse algum;/ mas, perdidos o pai e a mãe, onde eu
conseguiria/ outro irmão?" Perder um marido não é o fim do
mundo. Maridos, mesmo na antiga Grécia (embora nem
tanto quanto para os contemporâneos de Little Mo), são
apenas temporários. Perdê-los é, sem dúvida, doloroso, mas
tem cura. A perda dos pais, ao contrário, é irrevogável. Será
essa deferência suficiente para que a família suprima o
débito para com o marido? Talvez esse cálculo ponderado
não bastasse, não fosse por uma outra razão: as exigências
de um parceiro escolhido, um companheiro temporário de
viagem pela vida e em princípio substituível, têm menos
peso que as exigências provenientes das profundezas do
passado insondável e inescrutável: "Aquela ordem não veio
de Deus. A justiça que reside com os deuses lá embaixo não
conhece tal lei./ Eu não pensei que seus mandados fossem
suficientemente poderosos/ para sobrepujar as inalteráveis
leis não-escritas/ de Deus e do céu, sendo você apenas um
homem. Elas não são de ontem nem de hoje, mas eternas,/
embora, de onde vieram, nenhum de nós possa dizer.”
Aqui, diria você, Little Mo e Antígona se separam. De fato, é
difícil ouvir um morador de Albert Square mencionar Deus
(os poucos que o fazem logo desaparecem da novela, como
que obviamente deslocados). Naquela área, tal como em
tantas outras praças e ruas de nossas cidades, Deus está há
muito tempo absconditus. Não usa celular, e assim ninguém
pode afirmar com segurança que sabe exatamente como
soariam as Suas instruções, caso se pudesse ouvi-las. Os
direitos da família podem ser mais duradouros que o dever
para com o parceiro escolhido, mas em Albert Square nem
este nem aqueles parecem portadores da sanção divina. A
triste situação de Little Mo não vem do temor a Deus. Assim
sendo, de que maneira, se é que há alguma, o drama de
Little Mo seria uma repetição da tragédia de Antígona?
Na versão de Sófocles, o Mensageiro entra no palco para
resumir o significado do relato, mas também para antever, e
responder, nossa pergunta. É uma questão que,
diferentemente das palavras usadas a fim de torná-la
compreensível para os espectadores, não envelheceu — e
não envelhece: "O que é a vida do homem? Algo que não e
orientado/ para o bem ou para o mal, nem moldado para
louvar ou censurar. A oportunidade leva o homem às
alturas, a oportunidade o arremessa para baixo/ e ninguém
pode prever o que será a partir daquilo que é."
Assim é o futuro, assustadoramente desconhecido e
impenetrável (ou seja, como insistia Levinas, o epítome, o
modelo, a mais completa encarnação da "alteridade
absoluta"), e não a dignidade de um passado que, embora
venerável, se oculta por trás do dilema com que se
confrontou Little Mo, assim como Antígona. "Ninguém pode
prever o que será a partir daquilo que é" — mas ninguém
pode suportar com leveza essa impossibilidade. No mar da
incerteza, procura-se a salvação nas ilhotas da segurança.
Será que, aquilo que ostenta um passado mais longo tem
maiores probabilidades de ingressar no futuro intacto e
incólume do que algo,admitidamente feito e desfeito pelo
homem, ostensivamente "de ontem ou de hoje"? Não se
sabe, mas é tentador pensar que sim. De qualquer modo,
há pouco a escolher nessa interminável, eternamente
infinda e frustrante busca pela certeza...
Tendo ouvido o veredicto adverso do júri, será que é ao Pai
que Little Mo dirige o seu arrependimento?
Na língua alemã, afinidade é o termo adjetivado, em
oposição a parentesco.
"Afinidade" é parentesco qualificado — parentesco, mas...
(Wahlverwandschaft, expressão que se costuma traduzir,
errada e enganosamente, por "afinidade eletiva", um
pleonasmo gritante, já que nenhuma afinidade pode ser
não-eletiva; somente o parentesco é, pura e simplesmente,
quer se queira ou não, uma coisa dada...) A escolha é o
fator qualificante: ela transforma o parentesco em
afinidade. Mas também trai a ambição desta última: sua
intenção é ser como o parentesco, tão incondicional,
irrevogável e indissolúvel quanto ele (no final, a afinidade
vai acabar se entretecendo com a linhagem e se tornar
indistinguível do restante da rede de parentesco; a
afinidade de uma geração se transforma no parentesco da
geração seguinte). Mas nem mesmo os casamentos, ao
contrário da insistência sacerdotal, são feitos no céu, e o
que foi unido por seres humanos estes podem — e têm
permissão para —desunir, e o farão se tiverem uma
oportunidade.
Seria altamente desejável que o parentesco fosse precedido
da escolha, mas que a conseqüência desta fosse
exatamente aquilo que o parentesco já é: indiscutivelmente
sólido, confiável, duradouro, indissolúvel. Essa é a
ambivalência endêmica a toda Wahlverwandschaft — sua
marca de nascença (praga e encantamento, bênção e
maldição) indelével. O ato fundador da escolha é ao mesmo
tempo o poder de sedução da afinidade e a sua perdição. A
memória da escolha, seu pecado original, tende a lançar
uma longa sombra e a obscurecer até mesmo o convívio
mais
glorioso,
chamado
"afinidade":
a
escolha,
diferentemente da sina do parentesco, é uma via de mão
dupla. Sempre se pode dar meia-volta, e a consciência de
tal possibilidade torna ainda mais desanimadora a tarefa de
manter a direção.
A afinidade nasce da escolha, e nunca se corta esse cordão
umbilical. A menos que a escolha seja reafirmada
diariamente e novas ações continuem a ser empreendidas
para confirmá-la, a afinidade vai definhando, murchando e
se deteriorando até se desintegrar. A intenção de manter a
afinidade viva e saudável prevê uma luta diária e não
promete sossego à vigilância. Para nós, os habitantes deste
líquido mundo moderno que detesta tudo o que é sólido e
durável, tudo que não se ajusta ao uso instantâneo nem
permite que se ponha fim ao esforço, tal perspectiva pode
ser mais do que aquilo que estamos dispostos a exigir numa
barganha. Estabelecer um vínculo de afinidade proclama a
intenção de tornar esse vínculo semelhante ao parentesco
— mas também a presteza em pagar o preço pelo avatar na
moeda corrente da labuta diária e enfadonha. Quando não
há disposição (ou, dado o treinamento oferecido e recebido,
solvência de ativos), fica-se inclinado a pensar duas vezes
antes de agir para concretizar a intenção.
Assim, viver juntos ("e vamos esperar para ver como isso
funciona e aonde vai nos levar") ganha o atrativo de que
carecem os laços de afinidade. Suas intenções são
modestas, não se prestam juramentos, e as declarações,
quando feitas, são destituídas de solenidade, sem fios que
prendam nem mãos atadas. Com muita freqüência, não há
congregação diante da qual se deva apresentar um
testemunho nem um todo-poderoso para, lá do alto,
consagrar a união. Você pede menos, aceita menos, e assim
a hipoteca a resgatar fica menor e o prazo de resgate,
menos desestimulante. O futuro parentesco, quer desejado
ou temido, não lança a sua longa sombra sobre o "viver
juntos". "Viver juntos" é por causa de, não a fim de. Todas
as opções mantêm-se abertas, não se permite que sejam
limitadas por atos passados.
As pontes são inúteis, a menos que cubram totalmente a
distância entre as margens — mas no "viver juntos" a outra
margem está envolta numa neblina que nunca se dissipa,
que ninguém deseja dissolver nem tenta afastar. Não há
como saber o que se vai ver quando (se) a névoa se
dispersar — nem se de fato existe alguma coisa encoberta.
A outra margem está mesmo lá, ou será ela apenas uma
fata morgana, uma ilusão criada pela neblina, uma fantasia
da imaginação que nos faz ver formas bizarras nas nuvens
que passam?
Viver juntos pode significar dividir o barco, a ração e o leito
da cabine. Pode significar navegar juntos e compartilhar as
alegrias e agruras da viagem. Mas nada tem a ver com a
passagem de uma margem à outra, e portanto seu
propósito não é fazer o papel das sólidas pontes (ausentes).
Pode-se manter um diário de aventuras passadas, mas nele
há apenas uma ligeira referência ao itinerário e ao porto de
destino. É possível que a neblina que cobre a outra margem
— desconhecida, inexplorada — se suavize e desapareça,
que venham a emergir os contornos de um porto, que se
tome a decisão de atracar, mas nada disso é, nem deve ser,
anotado nos registros de navegação.
A afinidade é uma ponte que conduz ao abrigo seguro do
parentesco. Viver juntos não representa essa ponte nem o
trabalho de construí-la. O convívio do "viver juntos" e a
proximidade consangüínea são dois universos diferentes,
com espaço-tempos distintos, cada qual um universo
completo, com suas leis e lógicas próprias. Nenhuma
passagem de um para outro foi previamente explorada —
embora se possa, fortuitamente, defrontar-se ou chocar-se
com um deles. Não há como saber, pelo menos com
antecedência, se viver juntos acabará se revelando uma via
de tráfego intenso ou um beco sem saída. A questão é
atravessar os dias como se essa diferença não contasse, e
portanto de uma forma que torne irrelevante o problema de
"colocar os pingos nos Is".
O fato de a afinidade ortodoxa estar fora de moda e fora de
forma não pode ser rebatido à custa do parentesco.
Carecendo de pontes estáveis para suportar o tráfego
crescente, as redes de parentesco se sentem frágeis e
ameaçadas. Suas fronteiras se tornam embaçadas e
contestadas, e as redes se dissolvem num terreno sem
títulos de posse nem propriedade hereditária — uma terra
de fronteira. Algumas vezes um campo de batalha, outras
vezes o objeto de pendengas judiciais não menos amargas.
As redes de parentesco não podem estar seguras de suas
chances de sobrevivência, muito menos calcular suas
expectativas de vida. Sua fragilidade as torna ainda mais
preciosas. Elas agora são tênues, sutis, delicadas; provocam
sentimentos de proteção; fazem com que se deseje abraçálas, acariciá-las e mimá-las; anseiam por serem tratadas
com um carinho amoroso. E não são mais arrogantes e
pretensiosas como costumavam ser quando nossos
ancestrais explodiram e se rebelaram contra a rigidez e a
viscosidade do anelo familiar. Não se sentem mais seguras
de si mesmas — ao contrário, estão dolorosamente
conscientes de como um simples passo em falso pode ser
fatal. Antolhos e protetores de ouvidos caíram em desuso:
— as famílias olham e ouvem atentamente, cheias de
disposição para corrigir suas rotas e prontas a pagar na
mesma moeda o carinho e o amor.
Paradoxalmente — ou no fim nem tanto —, os poderes de
atração e enlace da parentela ganham impulso à medida
que o magnetismo e o poder de controle da afinidade
diminuem...
De modo que aqui estamos, manobrando, vacilantes e
desconfortáveis, entre dois mundos notoriamente distantes
um do outro e com pendências entre si, mas ambos
desejáveis e desejados — sem passagens claramente
traçadas, para não falar de caminhos trilhados entre ambos.
Trinta anos atrás (em O declínio do homem público),
Richard Sennett observou o advento de uma
"ideologia da intimidade" que "transmuta categorias
políticas em psicológicas" (Richard Sennett, The Fall of
Public Man. Londres/Nova York, Random House, 1978,
p.259ss. [Ed. bras.: (O declínio do homem público, São
Paulo, Companhia das Letras, 1988])
Um resultado particularmente portentoso dessa nova
ideologia foi a substituição dos "interesses compartilhados"
pela "identidade compartilhada". A fraternidade de base
identitária estava para se tornar — prevenia Sennett — a
"empada por um grupo seleto de pessoas aliada à rejeição
das que não estiverem dentro do círculo local". "Forasteiros,
desconhecidos, diferentes tornam-se criaturas a serem
afastadas."
Alguns anos mais tarde, Benedict Anderson cunhou o termo
"comunidade imaginada" para dar conta do mistério da
auto-identificação
com
uma
ampla
categoria
de
desconhecidos com quem se acredita compartilhar alguma
coisa suficientemente importante para que se fale deles
como um "nós" do qual eu, que falo,sou parte. O fato de
Anderson ter percebido essa identificação com uma
população dispersa de pessoas desconhecidas como um
mistério a exigir explicação confirmava, ainda que de forma
oblíqua, os palpites de Sennett — era, na verdade, um
tributo a estes. À época em que Anderson desenvolveu seu
modelo de "comunidade imaginada", a desintegração dos
vínculos e liames impessoais (e com eles, como apontaria
Sennett, da arte da "civilidade" — de "usar a máscara" que
simultaneamente protege e permite que se aprecie a
companhia) havia atingido um estágio avançado, e assim a
fricção e os afagos de ombros, a contigüidade, a intimidade,
a "sinceridade", o "entrar dentro do outro", sem guardar
segredos, confessando de modo compulsivo e compulsório,
estavam se tornando rapidamente as únicas defesas
humanas contra a solidão e o único fio disponível para se
tecer o ansiado convívio. Só era possível conceber
totalidades mais amplas do que o círculo de confissões
mútuas como um "nós" intumescido e esticado; como a
mesmidade, mal referida como "identidade", em letras
grandes. A única forma de incluir os "desconhecidos" em
um "nós" era reuni-los como potenciais parceiros em rituais
confessionais, tendentes a revelar um "interior" semelhante
(e portanto familiar), quando pressionados a compartilhar
suas íntimas sinceridades.
A comunhão de eus secretos baseada em revelações
mutuamente estimuladas pode ser o núcleo do
relacionamento amoroso. Pode fincar raízes, germinar,
desenvolver-se dentro da ilha auto-sustentada, ou quase,
das biografias compartilhadas. Mas, exatamente como a
união moral de dois — que, quando ampliada para incluir
um Terceiro, e então colocada cara a cara com a "esfera
pública", descobre serem suas instituições e impulsos
morais insuficientes para confrontar e administrar as
questões da justiça impessoal geradas por essa esfera —,
assim também a comunhão do amor é apanhada pelo
mundo exterior despreparada para competir e ignorante das
habilidades que isso exige.
Dentro de uma comunhão amorosa, é apenas natural ver a
fricção e o desacordo como irritações temporárias que logo
irão embora; mas também como o apelo a uma ação
remediadora que estimulará sua partida. Uma perfeita
mistura de eus parece nesse caso uma perspectiva realista,
dada uma dose suficiente de paciência e dedicação —
qualidades que o amor acredita poder suprir em profusão.
Ainda que a mesmidade espiritual dos amantes continue um
pouco distante, certamente não é um sonho infundado nem
uma ilusão fantasiosa. Decerto pode ser alcançada — e com
recursos que já se encontram à disposição dos amantes, em
sua condição de amantes.
Mas tentar ampliar as legítimas expectativas amorosas de
forma a domar, domesticar e desenvenenar a atordoante
miscelânea de sons e visões que povoa o mundo além da
ilha do amor... Nesse caso, os testados e confiáveis
estratagemas do amor não serão de muita ajuda. Na ilha do
amor, a concordância, a compreensão e a ansiada unicidade
a dois jamais estarão além do alcance, mas isso não é
válido para o infinito mundo exterior (a menos que
transmutado, por um passe de mágica, no colóquio em
busca do consenso de Jürgen Habermas). As ferramentas do
convívio eu-Vós, ainda que perfeitamente dominadas e
impecavelmente manejadas, se mostrarão vulneráveis à
variação, à disparidade e à discórdia que separam e
mantêm em pé de guerra as multidões daqueles que
constituem um "Vós" potencial: dispostos a atirar em vez de
conversar. Exige-se o domínio de técnicas muito diferentes
quando a discordância é um desconforto transitório que
logo será dissipado e quando a discórdia (assinalando a
determinação de defender seus direitos) está aí para ficar
por tempo indeterminado. A esperança de consenso atrai as
pessoas e as estimula a se esforçarem mais. A descrença na
unidade, alimentando a gritante inadequação dos
instrumentos à mão e sendo por esta alimentada, impele as
pessoas a se afastarem umas das outras e estimula que
elas se esquivem.
A primeira conseqüência da crescente descrença na
possibilidade de unidade é a divisão do mapa do
Lebenswelt, o mundo da vida, em dois continentes
amplamente destituídos de comunicação. Um deles é onde
se busca a todo custo o consenso (embora na maioria das
vezes, talvez o tempo todo, com as habilidades adquiridas e
aprendidas no abrigo da intimidade) — mas onde sobretudo
se presume que ele já esteja "ali", predeterminado pela
identidade compartilhada, esperando para ser acordado e
reafirmar-se. E o outro é onde a esperança de unidade
espiritual, e assim também qualquer esforço para revelá-la
ou construí-la a partir do zero, foi abandonada a priori, de
modo que o único intercâmbio vislumbrado é o de mísseis,
não palavras.
Atualmente, porém, essa dualidade de posturas (teorizada
para uso privado como a divisão da humanidade) parece
estar gradualmente recuando para o segundo plano da vida
cotidiana — juntamente com as dimensões espaciais da
proximidade e da distância humanas. Tal como nas vastas
extensões da terra de fronteira global, também no nível
popular, no domínio da política de vida, o palco para a ação
é um recipiente cheio de amigos e inimigos potenciais, no
qual se espera que coalizões flutuantes e inimizades à
deriva se aglutinem por algum tempo, apenas para se
dissolverem outra vez e abrirem espaço para outras e
diferentes condensações. As "comunidades da mesmidade",
predeterminadas, mas aguardando serem reveladas e
preenchidas com matéria sólida, estão cedendo vez a
"comunidades de ocasião", que se espera serem
autoconstruídas em torno de eventos, ídolos, pânicos ou
modas. Mais diversificadas como pontos focais, porém
compartilhando a característica de uma curta, e
decrescente, expectativa de vida. Elas não duram mais que
as emoções que as mantêm no foco das atenções e
estimulam a conjunção de interesses — fugaz, mas não por
isso menos intensa — a se coligar e aderir "à causa".
Todo esse aproximar-se e afastar-se para longe torna
possível seguir simultaneamente o impulso de
liberdade e a ânsia por pertencimento — e protegerse, se não recuperar-se totalmente, dos embustes de
ambos os anseios.
Os dois estímulos se fundem e se misturam no trabalho
extremamente absorvente e exaustivo de "tecer redes" e
"surfar nelas". O ideal de "conectividade" luta para
apreender a difícil e irritante dialética desses dois
elementos inconciliáveis. Ele promete uma navegação
segura (ou pelo menos não-fatal) por entre os recifes da
solidão e do compromisso, do flagelo da exclusão e dos
férreos grilhões dos vínculos demasiadamente estreitos, de
um desprendimento irreparável e de uma irrevogável
vinculação.
Nós entramos nos chats e temos "camaradas" que
conversam conosco. Os camaradas, como bem sabe todo
viciado em chat, vêm e vão, entram e saem do circuito —
mas sempre há na linha alguns deles se coçando para
inundar o silêncio com "mensagens" No relacionamento
"camarada/camarada", não são as mensagens em si, mas
seu ir e vir, sua circulação, que constitui a mensagem —
não importa o conteúdo. Nós pertencemos ao fluxo
constante de palavras e sentenças inconclusas (abreviadas,
truncadas para acelerar a circulação). Pertencemos à
conversa, não àquilo sobre o que se conversa.
Não confundam a atual obsessão por confissões
compulsivas com as confidências espalhafatosas sobre as
quais Sennett nos advertia 30 anos atrás. O propósito de
produzir sons e digitar mensagens não é mais submeter os
recônditos da alma à inspeção e aprovação do parceiro. As
palavras vocalizadas ou digitadas não mais se esforçam por
relatar a viagem de descoberta espiritual. Como Chris Moss
admiravelmente expôs (no Guardian Weekend)", por meio
de "nossas conversas em chats, telefones celulares,
serviços de textos 24 horas", "a introspecção é substituída
por uma interação frenética e frívola que revela nossos
segredos mais profundos juntamente com nossas listas de
compras". Permitam-me comentar, no entanto, que essa
"interação", embora frenética, pode não parecer tão frívola,
uma vez que você perceba e tenha em mente que a
questão — a única questão — é manter o chat funcionando.
Os provedores de acesso à internet não são sacerdotes
santificando a inviolabilidade das uniões. Estas não têm
nada em que se apoiar senão nossos papos e textos; a
união só se mantém na medida em que sintonizamos,
conversamos, enviamos mensagens. Se você interromper a
conversa, está fora. O silêncio equivale à exclusão. De fato,
11 n'y a pas dehors du texte — não há nada fora do texto
—, embora não apenas no sentido pretendido por Derrida...
OM, a sofisticada revista encartada em um dos mais
veneráveis, respeitados e amados jornais de
domingo, dirigida e avidamente lida e discutida pelo
jet-set, as elites de Bloomsbury ou Chelsea e todo o
resto, ou quase, das classes tagarelas...
Peguemos ao acaso a edição de 16 de junho de 2002 —
embora a data aqui não tenha muita importância, pois o
conteúdo, com pequenas variações, é imune às convulsões,
reviravoltas ou turbulências da grande história em
construção, assim como a toda espécie de política, exceto a
política de vida. As acelerações ou reduções de ritmo do
tempo das grandes políticas também passam ao largo...
Cerca de metade da revista OM, semana após semana, é
ocupada por uma seção intitulada "Vida". Explicam os
editores: "Vida" é "o manual da vida moderna". A seção tem
suas subseções: primeiro vem "Moda" que informa sobre os
problemas e tribulações da "aplicação de cosméticos", com
uma subseção, "Ela moda", que exorta as leitoras a "não
medir esforços para encontrar o par de sapatos certo". É
seguida pela subseção "Interiores", com um breve interlúdio
sobre "Casas de bonecas" Depois vem a parte de "Jardins",
que explica como "manter as aparências" e "impressionar
os hóspedes", apesar da aborrecida verdade de que "o
trabalho de um jardineiro nunca termina". A subseção
seguinte é "Comida" e depois "Restaurantes", que mostra
onde procurar comida gostosa quando se sai para jantar, e
então "Vinhos", indicando onde encontrar vinhos saborosos
para consumir em casa. Tendo chegado a esse ponto, o
leitor está bem preparado para examinar atentamente as
três páginas da subseção "Viver" — dividida em "amor,
sexo, família, amigos".
Na semana de 16 de junho de 2002, "Viver" é dedicada aos
CSSs — "casais semi-separados", "revolucionários do
relacionamento", que "romperam a sufocante bolha do
casal" e "seguem seus próprios caminhos" Sua dança a dois
é em tempo parcial. Odeiam a idéia de compartilhar o lar e
as atividades domésticas, preferindo manter domicílios,
contas bancárias e círculos de amizade separados, e
estarem juntos quando estão a fim. Tal como o trabalho ao
estilo antigo, hoje dividido numa sucessão de horários
flexíveis, tarefas únicas ou projetos de curto prazo, e da
mesma forma que a compra ou o aluguel de uma
propriedade, que agora tende a ser substituída pela
ocupação time-share e pelos pacotes de fim de semana, o
casamento ao estilo antigo, "até que a morte nos separe", já
desestabilizado pela coabitação "vamos ver como funciona",
reconhecidamente temporária, é substituído pelo "ficar
juntos", de horário parcial ou flexível.
Os especialistas, como os leitores poderiam esperar, se
dividem. Suas opiniões variam das boas-vindas ao modelo
CSS — visto como o tão almejado nirvana (tornar quadrado
o círculo da doação genuína sem ter de pagar com a perda
da independência) finalmente transformado em realidade —
à condenação dos praticantes por sua covardia: a
indisposição de enfrentar os testes e dificuldades
decorrentes
da
criação
e
perpetuação
de
um
relacionamento plenamente amadurecido. Prós e contras
são dolorosamente expostos, solenemente ponderados e
escrupulosamente avaliados, embora o efeito do estilo de
vida dos CSSs sobre o seu ambiente humano não apareça
em nenhuma dessas folhas de balanço (curiosamente, dada
a sensibilidade ecológica de nossa época).
Depois que "Viver" apresentou seu argumento, o que é
necessário para preencher as páginas de "Vida"? Há
subseções intituladas "Saúde", "Bem-estar", "Nutrição'
(atenção: separada de "Comida", "Restaurantes" e "Vinhos")
e "Estilo" (totalmente feita de anúncios de mobiliário). A
seção se completa com a parte do "Horóscopo" — na qual,
dependendo da data de seu nascimento, alguns leitores são
aconselhados a esquecer "o trabalho monótono — a
mobilidade é essencial neste momento. Você deve circular,
sacar o celular e fazer negócios", enquanto a outros se diz:
"Este é exatamente o seu momento — novos inícios o
tempo todo e nada de negócios muito antigos para oprimir
sua alma sempre otimista."
2. Dentro e fora da caixa de ferramentas da
sociabilidade
Homo sexualis: abandonado e destituído
Como afirmou Lévi-Strauss, o encontro dos sexos é o
terreno em que natureza e cultura se deparam um com o
outro pela primeira vez. É, além disso, o ponto de partida, a
origem de toda cultura. O sexo foi o primeiro ingrediente de
que o homo sapiens foi naturalmente dotado sobre o qual
foram talhadas distinções artificiais, convencionais e
arbitrárias — a atividade básica de toda cultura (em
particular, o ato fundador da cultura, a proibição do incesto:
a divisão das fêmeas em categorias disponíveis e
indisponíveis para a coabitação sexual).
É fácil perceber que esse papel do sexo não foi acidental.
Das muitas tendências, inclinações e propensões "naturais"
dos seres humanos, o desejo sexual foi e continua sendo a
mais óbvia, indubitável e incontestavelmente social. Ele se
estende na direção de outro ser humano, exige sua
presença e se esforça para transformá-la em união. Ele
anseia por convívio. Torna qualquer ser humano — ainda
que realizado e, sob todos os outros aspectos, autosuficiente — incompleto e insatisfeito, a menos que esteja
unido a um outro.
Do encontro dos sexos nasceu a cultura. Nesse encontro ela
praticou pela primeira vez sua arte criativa da
diferenciação. Desde então, nunca mais foi suspensa, muito
menos abandonada, a íntima cooperação da cultura e da
natureza em tudo que se refere ao sexo. A ars erotica,
criação eminentemente cultural, guiou a partir de então o
impulso sexual na direção de sua satisfação no convívio
humano.
Salvo raras exceções, nossa cultura "não produziu
uma ars erotica, mas sim uma scientia sexualis",
afirma o eminente sexólogo alemão Volkmar Sigusch.
(1)
É como se Antero, irmão de Eros e "gênio vingativo do amor
rejeitado", tivesse tomado de seu irmão o domínio sobre o
reino do sexo. "Hoje, a sexualidade não condensa mais o
potencial de prazer e felicidade. Ela não é mais mistificada
positivamente
como
êxtase
e
transgressão,
mas
negativamente, como fonte de opressão, desigualdade,
violência, abuso e infecção mortal."
Antero era conhecido por ser altamente passional, excitável,
lascivo e exaltado, mas, uma vez transformado em senhor
indiscutível do reino, teve de proibir a paixão entre seus
súditos e proclamar que o sexo devia ser um ato racional,
calculado com sobriedade, realizado considerando todos os
riscos e regras e, acima de tudo, totalmente desmistificado
e desprovido de ilusão. "O olhar do cientista", afirma
Sigusch, "sempre foi frio e distante: não devia haver
segredos." Resultado? "Hoje todo mundo está por dentro, e
ninguém tem a mínima a idéia."
Não que esse frustrante efeito da postura fria e da visão
distante tenha depreciado a autoridade de Antero e de sua
agência, a scientia sexualis, nem tampouco reduzido as
fileiras de seus devotados, agradecidos e esperançosos
seguidores. A demanda por seus serviços (por serviços
novos e aperfeiçoados, e no entanto apenas "mais do
mesmo") tende a crescer, não a diminuir, já que eles
sempre adiam o cumprimento de suas promessas. "A
ciência sexual, não obstante, continua a existir, porque a
miséria sexual se recusa a desaparecer."
A scientia sexualis prometia livrar os homini sexuali de sua
miséria; ela continua prometendo exatamente a mesma
coisa, e essa promessa continua motivando confiança e
crença pela simples razão de que, uma vez cortados de
todas as outras modalidades humanas e entregues a seus
próprios meios, os homini sexuali se tornaram "objetos
naturais" da investigação científica — sentem-se em casa
apenas no laboratório e no consultório terapêutico, e
visíveis para si mesmos e para os outros somente à luz dos
projetores dos cientistas. Além disso, o homo sexualis,
abandonado [orphaned] e destituído, não tem mais a quem
recorrer em busca de conselho, socorro e ajuda.
Orfão de Eros. Eros com certeza não está morto. Mas,
eLivros de seu domínio hereditário — tal como Ahaspher, o
Judeu Errante —, ele foi condenado a perambular pelas ruas
numa infindável e eternamente vã procura de abrigo. Eros
agora pode ser encontrado em toda parte, mas não
permanecerá por muito tempo em lugar nenhum. Ele não
tem endereço fixo: se você quiser encontrá-lo, escreva para
a posta-restante e mantenha a esperança.
Destituído pelo futuro. E portanto pela expectativa e pelo
compromisso que são as propriedades legítimas e
monopolizadoras do futuro. Abandonado pelos espectros da
paternidade e da maternidade, esses mensageiros da
eternidade e do Grande Além que costumavam pairar sobre
os encontros sexuais e incutir na união física algo daquela
mística surreal e da mistura sublime de fé e apreensão,
alegria e terror, que eram sua marca registrada.
Atualmente a medicina compete com o sexo pela
responsabilidade da "reprodução".
Os médicos competem com os homini sexuali pelo papel de
autores principais do drama. O resultado da disputa é uma
conclusão inevitável: agradece-se pelo que a medicina pode
fazer, mas também pelo que se espera que ela faça e pelo
que dela desejam os estudantes e ex-alunos da escola de
marketing da vida dos consumidores. A possibilidade
fascinante que se encontra bem ali na esquina é a
oportunidade (para citar Sigusch novamente) de "escolher
um filho num catálogo de doadores atraentes quase da
mesma
forma
como
eles
[os
consumidores
contemporâneos] estão acostumados a comprar pelo
correio ou por meio de revistas de moda" — e adquirir a
criança escolhida no momento preferido. Seria contrário à
natureza de um consumidor experiente não ter o desejo de
dobrar aquela esquina.
Houve uma época (de lares/oficinas, de agricultura
familiar) em que os filhos eram produtores.
Nessa época, a divisão do trabalho e a distribuição dos
papéis familiares se superpunham. O filho deveria juntar-se
ao oikos familiar, somar-se à força de trabalho da oficina ou
da fazenda — e assim, naquela época, quando a riqueza
derivava ou era extraída do trabalho, a chegada de um filho
trazia consigo a expectativa de melhoria do bem-estar da
família. Os filhos podiam ser tratados com dureza, mantidos
sob rédea curta, mas esse era um tratamento comum a
todos os outros trabalhadores. Não se esperava que o
trabalho trouxesse alegria ou causasse prazer ao
empregado — a idéia de "satisfação no trabalho' ainda
estava para ser inventada. Os filhos eram, na visão de
todos, bons investimentos, e como tal eram saudados.
Quanto mais, melhor. Além disso, dizia a voz da razão, era
uma aposta: a expectativa de vida era curta e todos se
perguntavam se o recém-nascido viveria o suficiente para
que suas contribuições à renda familiar pudessem se fazer
sentir. Para os autores da Bíblia, a promessa de Deus a
Abraão — "Vossa semente haverá de multiplicar-se como as
estrelas no céu e como a areia sobre as praias do oceano"
— era, inequivocamente, uma bênção, embora muitos de
nossos contemporâneos percebam nela antes uma ameaça,
uma maldição ou ambas.
Houve uma época (das fortunas de família passadas de
geração para geração, segundo a árvore genealógica, e da
posição social hereditária) em que os filhos eram pontes
entre a mortalidade e a imortalidade, entre uma vida
individual abominavelmente curta e a infinita (esperava-se)
duração da família. Morrer sem filhos significava nunca ter
construído uma ponte como essa. A morte de um homem
sem
filhos
(embora
o
mesmo
não
ocorresse,
necessariamente com a de uma mulher sem filhos, a menos
que se tratasse de uma rainha ou algo semelhante)
significava a morte da família — negligenciar o mais
importante dos deveres, descumprir a mais imperativa das
tarefas.
Com a nova fragilidade das estruturas familiares, com a
expectativa de vida de muitas famílias sendo mais curta do
que a de seus membros, com a participação em
determinada linhagem familiar tornando-se rapidamente um
dos elementos "indetermináveis" da líquida era moderna e
com a adesão a uma das diversas redes de parentesco
disponíveis transformando -se, para um crescente número
de indivíduos, numa questão de escolha — e uma escolha,
até segunda ordem, revogável —, um filho pode ser ainda
"uma ponte" para algo mais duradouro. Mas a margem a
que essa ponte conduz está coberta por uma neblina que
ninguém espera que venha a se dissipar, e portanto é
improvável que provoque muita emoção, menos ainda que
alimente o desejo inspirados da ação. Se uma súbita rajada
de vento viesse a afastar a neblina, ninguém sabe ao certo
que tipo de margem iria se revelar, nem se da névoa
emergeria uma terra suficientemente firme para sustentar
um lar permanente. Pontes que levam a lugar nenhum, ou a
nenhum lugar em particular: quem precisa delas? Para quê?
Quem perderia seu tempo e seu bom dinheiro para planejálas e construí-Ias?
Esta é uma época em que um filho é, acima de tudo,
um objeto de consumo emocional.
Objetos de consumo servem a necessidades, desejos ou
impulsos do consumidor. Assim também os filhos. Eles não
são desejados pelas alegrias do prazer paternal ou maternal
que se espera que proporcionem — alegrias de uma espécie
que nenhum objeto de consumo, por mais engenhoso e
sofisticado que seja, pode proporcionar. Para a tristeza dos
comerciantes, o mercado de bens de consumo não é capaz
de fornecer substitutos à altura, embora essa tristeza de
alguma forma seja compensada pelo espaço cada vez maior
que o mundo do comércio vem ganhando na produção e
manutenção desses bens.
Quando se trata de objetos de consumo, a satisfação
esperada tende a ser medida pelo custo — busca-se o
"valor em dinheiro".
Os filhos estão entre as aquisições mais caras que o
consumidor médio pode fazer ao longo de toda a sua vida.
Em termos puramente monetários, eles custam mais do que
um carro luxuoso do ano, uma volta ao mundo em um
cruzeiro ou até mesmo uma mansão. Pior ainda, o custo
total tende a crescer com o tempo, e seu volume não pode
ser fixado de antemão nem estimado com algum grau de
certeza. Num mundo que não oferece mais planos de
carreira e empregos estáveis, assinar um contrato de
hipoteca com prestações de valor desconhecido, a serem
pagas por um tempo indefinido, significa, para pessoas que
saem de um projeto para o outro e ganham a vida nessas
mudanças, expor-se a um nível de risco atipicamente
elevado e a uma fonte prolífica de ansiedade e medo. É
provável que se pense duas vezes antes de assinar, e que,
quanto mais se pense, mais se tornem óbvios os riscos
envolvidos. E nenhuma dose de determinação e ponderação
poderá remover a sombra de dúvida que tende a adulterar a
alegria. Além disso, ter filhos é, em nossa época, uma
questão de decisão, não um acidente — o que aumenta a
ansiedade. Tê-los ou não é comprovadamente a decisão
com maiores conseqüências e de maior alcance que existe,
e portanto também a mais angustiante e estressante.
Ademais, nem todos os custos são monetários, e os que não
o são jamais poderão ser medidos e calculados. Eles
desafiam as capacidades e as propensões dos agentes
racionais que somos preparados para ser, e que lutamos
para ser. "Formar uma família" é como pular de cabeça em
águas inexploradas e de profundidade insondável. Cancelar
ou adiar outras sedutoras alegrias consumistas de uma
atração ainda não experimentada, desconhecida e
imprevisível — em si mesmo um sacrifício assustador que se
choca fortemente com os hábitos do consumidor prudente
— não é a única conseqüência provável.
Ter filhos significa avaliar o bem-estar de outro ser, mais
fraco e dependente, em relação ao nosso próprio conforto. A
autonomia
de
nossas
preferências
tende
a
ser
comprometida, e continuamente: ano após ano, dia após
dia. A pessoa pode tornar-se — horror dos horrores —
"dependente" Ter filhos pode significar a necessidade de
diminuir
as
ambições
pessoais,
"sacrificar
uma
carreira",como pessoas submetidas à avaliação de seu
desempenho profissional olham de soslaio em busca de
algum sinal de lealdade dividida. Mais dolorosamente, ter
filhos significa aceitar essa dependência divisora da
lealdade por um tempo indefinido, aceitando o compromisso
amplo e irrevogável, sem uma cláusula adicional "até
segunda ordem" — o tipo de obrigação que se choca com a
essência da política de vida do líquido mundo moderno e
que a maioria das pessoas evita, quase sempre com fervor,
em outras manifestações de sua existência. Tomar
consciência de tal compromisso pode ser uma experiência
traumática. A depressão e as crises conjugais pós-parto
parecem enfermidades específicas de nossa "modernidade
líquida", da mesma forma que a anorexia, a bulimia e
incontáveis variedades de alergia.
As alegrias da paternidade e da maternidade vêm,
por assim dizer, num pacote que inclui as dores do
auto-sacrifício e os temores de perigos inexplorados.
Um cálculo sóbrio e fidedigno de perdas e ganhos está
obstinada e irritantemente além do alcance e da
compreensão dos pais em potencial.
Qualquer aquisição feita por um consumidor envolve riscos
— mas os vendedores de outros bens de consumo, em
particular daqueles inapropriadamente chamados de bens
"duráveis", fazem de tudo para assegurar aos possíveis
clientes que os riscos assumidos foram reduzidos ao
mínimo. Oferecem amplas garantias (ainda que só alguns
deles possam afirmar de boa-fé que a empresa sobreviverá
ao prazo de duração da garantia, e praticamente nenhum
possa assegurar que os atrativos da mercadoria adquirida,
capazes de mantê-la distante da lata de lixo, não se
desvanecerão bem antes disso), promessas de devolução
do dinheiro e de assistência longa ou perpétua. Dignas ou
não de crédito, nenhuma dessas garantias é oferecida no
caso do parto.
Não surpreende que os institutos de pesquisas médicas e as
clínicas de atendimento pré-natal estejam nadando em
dinheiro proveniente de empresas comerciais. Há uma
demanda potencialmente infinita pela redução dos riscos
endêmicos do parto, pelo menos ao nível declarado nos
rótulos das mercadorias à venda nas prateleiras das lojas.
Companhias que ofereçam a chance de "escolher um filho
num catálogo de doadores atraentes" e clínicas de boa
reputação que componham por encomenda o espectro
genético de uma criança em gestação não precisam se
preocupar com a falta de clientes ou a redução do volume
de negócios lucrativos.
Resumindo: a separação entre sexo e reprodução,
amplamente observada, tem a anuência do poder. É o
produto conjunto do líquido ambiente da vida moderna e do
consumismo como estratégia escolhida, e a única
disponível, de "procurar soluções biográficas para
problemas socialmente produzidos" (Ulrich Beck). É a
mistura de ambos os fatores que leva ao deslocamento das
questões da reprodução e do parto para longe do sexo e na
direção de uma esfera totalmente diferente, operada por
uma lógica e um conjunto de regras inteiramente diversos
dos que regem a atividade sexual. A destituição do homo
sexualis é sobredeterminada.
Como que antecipando o padrão que iria prevalecer
em nossa época, Erich Fromm tentou explicar a
atração do "sexo em si" (do sexo "pelo sexo",
praticado
separadamente
de
suas
funções
ortodoxas), referindo-se à sua qualidade como uma
(enganosa) resposta ao desejo, demasiadamente
humano, de "fusão total" por meio de uma "ilusão de
união" (2).
União — porque é exatamente o que homens e mulheres
procuram ardentemente em seu desespero para escapar da
solidão que já sofrem ou temem estar por vir. Ilusão —
porque a união alcançada no breve instante do clímax
orgástico "deixa os estranhos tão distantes um do outro
como estavam antes", de modo que "eles sentem seu
estranhamento de maneira ainda mais acentuada". Nesse
papel, o orgasmo sexual "assume uma função que o torna
não muito diferente do alcoolismo e do vício em drogas". Tal
como estes, ele é intenso — mas "transitório e periódico"
(3).
A união é ilusória e, no final, a experiência tende a ser
frustrante, diz Fromm, por ser separada do amor (ou seja,
permitam-me explicar, do tipo de relacionamento Fürsein;
de um compromisso intencionalmente duradouro e
indefinido com o bem-estar do parceiro). Na visão de
Fromm, o sexo só pode ser um instrumento de fusão
genuína — em vez de uma efêmera, dúbia e, em última
instância, autodestrutiva impressão de fusão — graças a
sua conjunção com o amor. Qualquer que seja a capacidade
geradora de fusão que o sexo possa ter, ela vem de sua
"camaradagem" com o amor.
Desde que Fromm escreveu sobre a questão, o
isolamento do sexo em relação a outros domínios da
vida tem avançado mais do que nunca.
Hoje o sexo é a própria síntese, talvez o silencioso/secreto
arquétipo, daquele "relacionamento puro" (um paradoxo,
com certeza: os relacionamentos humanos tendem a
preencher, infestar e modificar todos os recessos e frestas,
por mais remotos, do Lebenswelt, de modo que podem ser
tudo menos "puros") que, como indica Anthony Giddens, se
tornou o modelo alvo/ideal predominante da parceria
humana. Agora espera-se que o sexo seja auto-sustentável
e auto-suficiente, que "se mantenha sobre os próprios pés",
para ser julgado unicamente pela satisfação que possa
trazer por si mesmo (ainda que, em regra, ela seja
interrompida bem antes da expectativa gerada pela mídia).
Não admira que também tenha crescido enormemente sua
capacidade de gerar frustração e de exacerbar a própria
sensação de estrangulamento que se esperava que curasse.
A vitória do sexo na grande guerra de independência tem
sido, na melhor das circunstâncias, uma vitória de Pirro. Os
remédios maravilhosos parecem produzir moléstias e
sofrimentos não menos numerosos e comprovadamente
mais agudos do que aqueles que prometiam curar.
Abandonar e destituir foram celebrados, por um
breve período, como a derradeira libertação do sexo
da prisão em que era mantido por uma sociedade
patriarcal, puritana, desmancha-prazeres, hipócrita e
ainda por cima desafortunadamente vitoriana.
Aqui estava, afinal, um relacionamento mais puro que a
pureza, um encontro que não servia a outro propósito senão
o prazer e a alegria. Uma felicidade de sonho, sem
restrições, sem medo de efeitos colaterais e portanto
alegremente cega às suas conseqüências. Uma felicidade
do tipo "satisfação garantida ou seu dinheiro de volta" A
mais completa encarnação da liberdade, tal como definida
pela sabedoria e pela prática populares da sociedade de
consumo.
É correto, talvez até estimulante e ao mesmo tempo
maravilhoso, que o sexo seja assim liberado. O problema é
como mantê-lo no lugar quando o lastro foi lançado ao mar;
como mantê-lo na fôrma se não se dispõe mais das
estruturas. Voar suavemente traz contentamento, voar sem
direção provoca estresse. A mudança é jubilosa; a
volatilidade, incômoda. A insustentável leveza do sexo?
Volkmar
Sigusch
é
terapeuta.
Diariamente,
trava
conhecimento com vítimas do "sexo puro: registra as
queixas de seus pacientes — e a lista de lamúrias a exigir a
intervenção de um especialista cresce indefinidamente. O
sumário de suas descobertas é tão sombrio quanto
ponderado.
Todas as formas de relacionamento íntimo
atualmente em voga portam a mesma máscara de
falsa felicidade que foi usada pelo amor conjugal e
mais tarde pelo amor livre ... Ao olharmos mais de
perto e afastarmos a máscara, descobrimos anseios
não-realizados, nervos em frangalhos, amores
frustrados, sofrimentos, medos, solidão, hipocrisia,
egoísmo
e
compulsão
à
repetição...
As
performances substituíram o êxtase, o físico está
por dentro, a metafísica, por fora ... A abstinência, a
monogamia e a promiscuidade estão todas
igualmente distantes da livre vida da sensualidade
que nenhum de nós conhece. (4)
Considerações técnicas igualam infortúnio a emoções. A
concentração na performance não deixa tempo nem espaço
para o êxtase. O físico não é o caminho que leva à
metafísica. O poder de sedução do sexo costumava fluir da
emoção, do êxtase e da metafísica — como ocorreria agora,
mas o mistério se foi e desse modo os anseios não podem
continuar irrealizados...
Quando o sexo se apresenta como um evento fisiológico do
corpo e a palavra "sensualidade" pouco evoca senão uma
prazerosa sensação física, ele não está liberado de fardos
supérfluos, avulsos, inúteis, incômodos e restritivos. Está,
ao contrário, sobrecarregado, inundado de expectativas que
superam sua capacidade de realização.
As íntimas conexões do sexo com o amor, a segurança, a
permanência e a imortalidade via continuação da família
não eram, afinal de contas, tão inúteis e constrangedoras
como se imaginava, se sentia e se acusava que fossem. Os
antigos companheiros do sexo, supostamente antiquados,
talvez fossem seus sustentáculos necessários (não pela
perfeição técnica da performance, mas por sua recompensa
potencial). Talvez as contradições de que a sensualidade
está endemicamente tomada não tenham maiores
possibilidades de serem resolvidas (mitigadas, esvaziadas,
neutralizadas) na ausência de "restrições" do que na
presença destas. Talvez essas restrições sejam proezas da
engenhosidade cultural em vez de símbolos de equívocos
ou fracassos nesse terreno.
A líquida racionalidade moderna recomenda mantos
leves e condena as caixas de aço.
Nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna
enxerga a opressão; no engajamento permanente percebe a
dependência incapacitante. Essa razão nega direitos aos
vínculos e liames, espaciais ou temporais. Eles não têm
necessidade ou uso que possam ser justificados pela líquida
racionalidade moderna dos consumidores. Vínculos e liames
tornam "impuras" as relações humanas — como o fariam
com qualquer ato de consumo que presuma a satisfação
instantânea e, de modo semelhante, a instantânea
obsolescência do objeto consumido. Os advogados de
defesa das "relações impuras" teriam de se esforçar para
tentar convencer os jurados e obter sua aprovação.
Sigusch acredita que cedo ou tarde "os impulsos e desejos
que escapam aos grilhões da racionalidade" retornarão — e
trarão vingança. E quando o fizerem não seremos capazes
de responder "sem recorrer ao uso de conceitos sobre
instintos naturais e valores eternos corrompidos até a raiz,
histórica e politicamente".
Se isso vier a ocorrer, como Sigusch prenuncia ou prevê, vai
exigir mais do que apenas uma nova visão do sexo e das
expectativas que podem ser legitimamente investidas nos
atos sexuais. Exigirá nada menos que libertar o sexo da
soberania da racionalidade do consumidor. Talvez exija
ainda mais: que essa racionalidade seja destituída de sua
atual soberania sobre os motivos e estratégias da política
de vida humana — que essa soberania lhe seja cassada.
Isso significaria, contudo, exigir mais do que seria razoável
esperar num futuro previsível.
"Os impulsos e desejos que escapam aos grilhões da
racionalidade" (da líquida racionalidade moderna do
consumidor, para ser exato) eram ligados ao sexo de
modo inseparável e inextricável porque este, tal
como outras atividades humanas, estava entrelaçado
ao modelo de vida do produtor.
Dentro desse modelo, nem o amor "até que a morte nos
separe", nem construir pontes para a eternidade, nem
consentir em "entregar reféns ao destino" e em estabelecer
compromissos sem volta eram coisas redundantes — muito
menos percebidas como limitadoras ou opressivas. Pelo
contrário, costumavam ser os "instintos naturais" do homo
faber, tal como agora vão de encontro aos instintos
igualmente "naturais" do homo consumens. Tampouco
eram, de qualquer ponto de vista, "irracionais": eram os
equipamentos e manifestações necessários e obrigatórios
da racionalidade do homo faber. O amor e a disposição de
procriar eram companheiros indispensáveis do sexo do
homo faber, da mesma forma que as uniões duradouras que
ajudavam a criar eram "produtos principais" — não "efeitos
colaterais", muito menos rejeitos ou refugos, dos atos
sexuais.
Para cada ganho há uma perda. Para cada realização, um
preço.
Não importam o horror e a repulsa com que recordamos ou
evocamos os preços pagos e as perdas sofridas no passado
— as perdas suportadas hoje e os preços a serem pagos
amanhã são os que mais incomodam e magoam. Não há
sentido em comparar os sofrimentos do passado e do
presente, tentando descobrir qual deles é menos
suportável. Cada angústia fere e atormenta no seu próprio
tempo.
As agonias atuais do homo sexualis são as mesmas do
homo consumens. Elas nasceram juntas. Se um dia se
forem, marcharão ombro a ombro.
A capacidade sexual era a ferramenta usada pelo
homo faber para erigir e manter as relações
humanas.
Quando disposta no canteiro de obras dos laços humanos, a
necessidade/desejo sexual encorajava o homo sexualis a
permanecer no trabalho e a enxergar através dele, uma vez
iniciado. Os construtores desejavam que o resultado de seus
esforços, como se espera de todas as edificações, fossem
solidamente estruturados, duráveis e seguros (de
preferência para sempre).
Com demasiada freqüência os construtores tinham muita
confiança em seu poder de planejamento para se preocupar
com os sentimentos do(s) futuro(s) morador(es). O respeito
é, afinal, apenas um dos lados da faca de dois gumes da
atenção, cuja outra ponta é a opressão. A indiferença e o
desprezo são dois recifes com os quais muitas intenções
éticas honestas têm se chocado, e os eus morais precisam
de muita vigilância e habilidade de navegação para passar
incólumes por eles. Isso dito, parece, não obstante, que a
moral — aquele Fürsein ditado pela responsabilidade por um
Outro e posto em operação assim que assumido —, com
todas as suas paisagens deslumbrantes e seus desvios e
emboscadas traiçoeiros, foi feita sob medida para o homo
faber.
Libertado das tarefas de construção e ressentido dos
esforços exigidos por elas, o homo consumens pode
empregar seus poderes sexuais de formas novas e
imaginativas. O Fürsein, porém, não é uma delas.
O que caracteriza o consumismo não é acumular bens
(quem o faz deve também estar preparado para
suportar malas pesadas e casas atulhadas), mas usálos e descartá-los em seguida a fim de abrir espaço
para outros bens e usos.
A vida consumista favorece a leveza e a velocidade. E
também a novidade e a variedade que elas promovem e
facilitam. É a rotatividade, não o volume de compras, que
mede o sucesso na vida do homo consumens.
Em geral, a capacidade de utilização de um bem sobrevive
à sua utilidade para o consumidor. Mas, usada
repetidamente, a mercadoria adquirida impede a busca por
variedade, e a cada uso a aparência de novidade vai se
desvanecendo e se apagando. Pobres daqueles que, em
razão da escassez de recursos, são condenados a continuar
usando bens que não mais contêm a promessa de
sensações novas e inéditas. Pobres daqueles que, pela
mesma razão, permanecem presos a um único bem em vez
de flanar entre um sortimento amplo e aparentemente
inesgotável. Tais pessoas são os excluídos na sociedade de
consumo, os consumidores falhos, os inadequados e os
incompetentes, os fracassados — famintos definhando em
meio à opulência do banquete consumista.
Aqueles que não precisam se agarrar aos bens por muito
tempo, e decerto não por tempo suficiente para permitir
que o tédio se instale, são os bem-sucedidos. Na sociedade
dos consumidores, o prestidigitador é a figura de sucesso.
Não fosse isto um anátema para os fornecedores de bens de
consumo, os consumidores fiéis ao seu caráter e destino
desenvolveriam o hábito de alugar coisas em vez de
comprá-las.
Diferentemente
dos
vendedores
de
mercadorias, as empresas de locação prometem, de modo
tentador, substituir com regularidade os bens alugados por
modelos de último tipo. Os vendedores, para não ficarem
para trás, prometem devolver o dinheiro se o cliente não
estiver plenamente satisfeito e se (na esperança de que a
satisfação não se evapore tão rápido) os bens adquiridos
forem devolvidos dentro de, digamos, dez dias.
A "purificação" do sexo permite que a prática sexual seja
adaptada a esses avançados padrões de compra/locação. O
"sexo puro" é construído tendo-se em vista uma espécie de
garantia de reembolso — e os parceiros do "encontro
puramente sexual" podem se sentir seguros, conscientes de
que a inexistência de "restrições" compensa a perturbadora
fragilidade de seu engajamento.
Graças a um inteligente estratagema publicitário, o
significado vernáculo de "sexo seguro" foi recentemente
reduzido ao uso de preservativos. O slogan não seria o
sucesso comercial que é se não atingisse um ponto sensível
de milhões de pessoas que desejam que suas explorações
sexuais sejam garantidas contra conseqüências indesejáveis
(já que incontroláveis). Afinal, é estratégia geral nas
promoções apresentar o produto em oferta como a solução
procurada para problemas que ou já vinham assombrando
seus prováveis clientes ou acabaram de ser inventados para
se adequarem ao potencial do produto.
Com muita freqüência, a peça publicitária substitui o todo
pela parte. As vendas crescem graças a suprimentos de
angústia que excedem em muito a capacidade de cura do
produto. Com efeito, usar preservativo protege os parceiros
sexuais de serem infectados pelo HIV. Mas essa infecção
não é senão uma das muitas conseqüências imprevistas e
certamente não-negociadas dos encontros sexuais que
tornam o homo sexualis desejoso de que o sexo seja
"seguro”. Tendo escapado de um porto exíguo, embora
controlado para navegar por águas inexploradas, sem mapa
nem bússola, o sexo começou a ser visto como
decididamente "inseguro" bem antes que a descoberta da
aids fornecesse o rótulo e o ponto focal para temores
difusos e inominados.
O maior deles provinha da ambigüidade do encontro sexual:
seria esse o passo inicial na direção de um relacionamento
ou sua coroação e seu término? Um estágio numa
seqüência significativa ou um episódio singular, um meio
para um fim ou um ato independente? Nenhuma união de
corpos pode, por mais que se tente, escapar à moldura
social e cortar todas as conexões com outras facetas da
existência social. Privado de seu antigo prestígio social e de
significados que antes eram socialmente aprovados, o sexo
encapsulava a incerteza aflitiva e alarmante que se tornou a
principal ruína da líquida vida moderna.
Qualificar os parceiros sexuais tornou-se o primeiro foco de
ansiedade. Que tipo de compromissos, se é que algum, a
união de corpos impõe? De que forma eles afetam o futuro
dos parceiros, se é que afetam? O encontro sexual pode ser
isolado dos demais propósitos da vida, ou será que ele vai
(tender a, ganhar espaço para) esparramar-se pelo resto da
existência, saturando-a e transformando-a?
Em si mesma, a união sexual é de curta duração — na vida
dos parceiros, é um episódio. Como aponta Milan Kundera,
um episódio "não é a conseqüência inevitável de uma ação
precedente, nem a causa do que virá em seguida"'. A
imaculada conceição cum esterilidade, a ausência essencial
da possibilidade de contágio, é uma das belezas do episódio
— e assim, podemos dizer, também é a beleza de um
encontro sexual, contanto que este continue sendo um
episódio. O problema, porém, é que "ninguém pode garantir
que um evento totalmente episódico não contenha em si
uma
força
capaz
de
algum
dia
transformar-se,
inesperadamente, na causa de eventos futuros". Para
resumir uma longa história: "nenhum episódio está
condenado a priori a permanecer eternamente como um
episódio" Nenhum episódio está a salvo de suas
conseqüências. A insegurança decorrente é eterna. A
incerteza nunca se dissipará de modo total e irrevogável.
Pode apenas ser suspensa por um tempo indeterminado —
mas o próprio recipiente da suspensão é assaltado por
dúvidas e assim se torna outra fonte de cansativa
insegurança.
O casamento é, pode-se dizer, a aceitação da
causalidade que os encontros casuais se recusam a
aceitar (ou pelo menos uma declaração da intenção
de aceitá-la — enquanto a união durar).
Nesse caso, a ambigüidade se resolve e a incerteza é
substituída pela garantia de que os atos realmente têm uma
importância que ultrapassa o seu próprio espaço temporal e
acarretam conseqüências que podem durar mais do que as
suas causas. A incerteza é exilada da vida dos parceiros e
seu retorno é impedido enquanto o término do casamento
não esteja em vista.
Mas será possível banir a incerteza sem concordar com essa
condição — um preço que muitos parceiros considerariam
alto demais? Impossível, se nunca se pode estar certo de
que, como indica Kundera, o episódio não foi nada mais que
um episódio. Mas ainda se pode tentar, e de fato se tenta, e
por mais adversas que sejam as probabilidades dificilmente
desistimos de tentar mudá-las em nosso favor.
Reconhecidamente, os parisienses tentam mais que a
maioria, e de modo mais engenhoso. Em Paris, o
échangisme (um nome novo e, dada a recente igualdade
entre os sexos, mais politicamente correto para um conceito
um pouco mais antigo, recendendo a patriarcalismo, a troca
de esposas - No Brasil conhecido como suingue ou troca de
casais. (N.T.)) supostamente se tornou a moda, o jogo mais
popular e o principal assunto do momento.
Les échangistes estão matando dois coelhos com uma só
cajadada. Em primeiro lugar, eles afrouxam um pouco os
grilhões do compromisso matrimonial, concordando em
tornar menos obrigatórias as suas conseqüências e,
portanto, um pouco menos angustiante a incerteza gerada
pela obscuridade endêmica das expectativas. Em segundo
lugar, conseguem cúmplices leais em seu esforço para
rechaçar as conseqüências incertas, e portanto irritantes, do
encontro sexual — já que todas as partes interessadas,
tendo participado do evento e portanto desejosas de evitar
que escape à moldura do episódio, seguramente estarão
juntas nesse rechaço.
Como estratégia para enfrentar o espectro da incerteza, do
qual, como se sabe, os episódios sexuais estão repletos, o
échangisme tem uma vantagem sobre o sexo casual e
outros encontros igualmente arriscados e de curta duração.
A proteção contra conseqüências indesejáveis é, nesse
caso, dever e preocupação de outra pessoa e, na pior das
circunstâncias, não constitui um esforço solitário, mas uma
tarefa compartilhada com aliados poderosos e dedicados. A
vantagem do échangisme sobre o simples adultério é
particularmente gritante. Nenhum dos échangistes é traído,
nenhum deles tem os interesses ameaçados e, tal como no
modelo ideal de Habermas da "comunicação nãodistorcida", todos são participantes. O ménage à quatre (ou
six, huit... quanto mais melhor) está livre de todas as pragas
e deficiências que se sabe serem a maldição do ménage à
trois.
Como se poderia esperar quando o propósito e alvo da
iniciativa é afastar o fantasma da insegurança, o
échangisme procura entrincheirar-se em instituições
contratuais e obter o apoio da lei. A pessoa torna-se
échangiste ingressando num clube, assinando um
formulário, prometendo obediência às regras (e esperando
que todos os outros à sua volta tenham feito o mesmo) e
recebendo um cartão de sócio para garantir o ingresso e
assegurar que quem está lá dentro seja simultaneamente
um parceiro e um jogo. Já que todos os que lá se encontram
conhecem os objetivos e regras do clube e prometeram
observá-los, toda discussão ou uso da força, todos os
perigos da sedução e de outras preliminares incômodas e
precárias, infestadas de resultados incertos, se tornaram
redundantes.
Ou assim parece, por algum tempo. As convenções do
échangisme podem, como já prometeram os cartões de
crédito, evitar a espera para se satisfazer os desejos. Da
mesma forma que a maioria das inovações tecnológicas
recentes, elas encurtam a distância entre o impulso e sua
satisfação e fazem com que a passagem de um a outro seja
mais rápida e menos trabalhosa. E podem também evitar
que um parceiro exija mais benefícios do que o encontro
episódico permite.
Mas será que elas defendem o homo sexualis de si mesmo?
Será que os anseios irrealizados, as frustrações amorosas,
os temores de ficar só e de se ferir, a hipocrisia e a culpa
são deixados para trás depois de uma visita ao clube? Será
possível encontrar lá a intimidade, a alegria, a ternura, a
afeição e o amor? Bem, o visitante pode dizer de boa-fé:
isto é sexo, seu estúpido — não tem nada a ver com nada
disso. Mas se ele ou ela estiver certo(a), será que o sexo em
si é importante? Ou que, seguindo Sigusch, se a substância
da atividade sexual é a obtenção do prazer instantâneo,
"então o mais importante não é o que se faz, mas
simplesmente que aconteça".
Comentando Bodies that matter: On the discursive
limits of sex, obra altamente influente de Judith
Butler (6), Sigusch assinala que, "de acordo com as
teóricas que agora dão o tom no discurso de gênero,
tanto
sexo
quanto
gênero
são
inteiramente
determinados pela cultura, desprovidos de qualquer
caráter natural e, portanto, alteráveis, transitórios e
passíveis de subversão".
É como se a oposição natureza-cultura não fosse o melhor
arcabouço no qual se pudessem inscrever os dilemas do
atual embaraço a respeito de sexo/gênero. O que está em
disputa
é
o
grau
em
que
vários
tipos
de
inclinações/preferências/identidades são flexíveis, alteráveis
e dependentes da escolha do sujeito. Mas as oposições
entre cultura e natureza, e entre "é uma questão de
escolha" e "os seres humanos são incapazes de evitar e
nada podem fazer a respeito", mais se superpõem como
durante grande parte da história moderna e até
recentemente. No discurso popular, a cultura se apresenta
cada vez mais como a parte herdada da identidade que não
se pode nem deve remendar (senão por obra e risco de
quem remenda), enquanto os traços e atributos
tradicionalmente
classificados
como
"naturais"
(hereditários, geneticamente transmitidos) são cada vez
mais considerados sujeitos à manipulação humana e
portanto abertos à escolha — uma escolha em relação à
qual, como sempre, quem escolhe deve sentir-se
responsável e assim ser visto pelos outros.
Desse modo, não importa muito se as predileções sexuais
(articuladas como "identidade sexual") são "dons da
natureza" ou "construtos culturais". O que realmente
importa é se cabe ao homo sexualis determinar (descobrir
ou inventar) qual (ou quais) das múltiplas identidades
sexuais melhor se ajusta a ele ou ela, ou se, tal como o
homo sapiens no caso da "comunidade de nascimento", ele
ou ela está destinado(a) a abraçar esse destino e viver sua
vida de uma forma que transforme uma sina inalterável
numa vocação pessoal.
Qualquer que seja o vocabulário usado para articular a atual
situação do homo sexualis, e quer se vejam o
autotreinamento e a autodescoberta ou as intervenções
médicas e genéticas como o caminho certo para se atingir a
identidade sexual adequada/desejada, o essencial continua
sendo a "alterabilidade", a transitoriedade, a não-finalidade
das identidades sexuais assumidas, quaisquer que sejam. A
vida do homo sexualis é, por esse motivo, carregada de
ansiedade. Há sempre a suspeita — mesmo que apaziguada
e inativa por algum tempo — de que se esteja vivendo uma
mentira ou um equívoco; de que algo de importância crucial
foi esquecido, perdido, negligenciado, permanecendo nãoensaiado e inexplorado; de que não se cumpriu uma
obrigação vital para o eu autêntico da própria pessoa, ou de
que algumas oportunidades de felicidade de um tipo
desconhecido, completamente diferentes do que se
vivenciou antes, ainda não foram aproveitadas e tendem a
se perder para sempre se continuarem desconsideradas.
O homo sexualis está condenado a permanecer para
sempre incompleto e irrealizado — mesmo numa era em
que o fogo sexual, que no passado se teria arrefecido, agora
deve ser, espera-se, novamente insuflado pelos esforços
conjuntos de nossas ginásticas miraculosas e de nossos
remédios maravilhosos. A viagem nunca termina, o
itinerário é recomposto a cada estação e o destino final é
sempre desconhecido.
A subdefinição, a incompletude e a ausência de
finalidade da identidade sexual (tal como todas as
outras facetas da identidade nos líquidos ambientes
modernos) são um veneno e seu antídoto misturados
numa poderosa superdroga antitranqüilizante.
A consciência dessa ambivalência é desalentadora e não
produz o fim da ansiedade. Gera uma incerteza que só pode
ser temporariamente apaziguada, jamais totalmente
extinta. Contamina qualquer condição escolhida/atingida
com dúvidas persistentes a respeito de sua propriedade e
sabedoria. Mas também protege da humilhação que vem
com o fracasso parcial ou total. Há sempre a possibilidade
de pôr a culpa numa escolha, considerando-a equivocada, e
não na incapacidade de aproveitar as oportunidades por ela
oferecidas, pelo fato de a bem-aventurança prevista não ter
conseguido se materializar. Há sempre uma chance de
abandonar a estrada pela qual se chegaria à realização e
recomeçar — mesmo que a partir do zero, se as
perspectivas parecerem atraentes.
O efeito combinado do veneno e do antídoto é manter o
homo sexualis em perpétuo movimento, empurrado à frente
("esse tipo de sexualidade não conseguiu produzir a
experiência culminante que me disseram que traria") e
puxado para trás ("outros tipos que vi e ouvi estão ao meu
alcance — é apenas uma questão de decisão e esforço").
O homo sexualis não é uma condição, muito menos uma
condição permanente e imutável, mas um processo, cheio
de tentativas e erros, viagens exploratórias arriscadas e
descobertas ocasionais, intercaladas por numerosos
tropeços, arrependimentos por oportunidades perdidas e
alegrias por prazeres ilusórios.
Em seu ensaio sobre a moral sexual "civilizada" (7),
Sigmund Freud insinua que a civilização se baseia em
grande parte na exploração e mobilização da
capacidade natural humana de "sublimar" os
instintos sexuais: "trocar [o] propósito originalmente
sexual por algum outro" — particularmente por
causas socialmente úteis.
Para atingir esse efeito, os escoadouros "naturais" dos
instintos sexuais (tanto auto-eróticos quanto objetoeróticos) são represados — cortados de vez ou pelo menos
parcialmente bloqueados. Imprestável e em desuso, o
impulso sexual é então redirecionado por meio de dutos
socialmente construídos para alvos resultantes do mesmo
processo. "As forças que podem ser empregadas para
atividades culturais são, portanto, em grande medida,
obtidas por meio da supressão daquilo que se conhece
como elementos perversos da excitação sexual."
Segundo Derrida, é justificado suspeitarmos de uma
circularidade fatal nessa última proposição. Certos
"elementos de excitação sexual" são considerados
"perversos" porque resistem à supressão e, portanto, não
podem ser empregados para as atividades definidas como
culturais (isto é, meritórias). No entanto, para o homo
sexualis inserido no líquido ambiente moderno, as fronteiras
que separam as manifestações "saudáveis" e "perversas"
em matéria de instintos sexuais estão totalmente
embaçadas. Todas as formas de atividade sexual são não
apenas toleradas, mas freqüentemente indicadas como
terapias úteis para uma ou outra forma de enfermidade
psicológica, e cada vez mais aceitas como vias legítimas na
busca individual da felicidade, sendo estimulada a sua
exibição em público. (A pedofilia e a pornografia infantil
constituem possivelmente os únicos escoadouros do
impulso sexual que continuam sendo quase unanimemente
execrados como perversos. Sobre esse aspecto, porém,
Sigusch comenta, de modo cáustico embora correto, que o
segredo dessa unanimidade atípica pode estar no fato de
que a oposição à pornografia infantil "nada exige de nós
senão o óleo do humanismo que tão efetivamente
lubrificou, no passado, as rodas da violência. Só alguns,
contudo, se colocam seriamente a favor de programas
capazes de salvar vidas de crianças, já que custariam
dinheiro e conforto ao mesmo tempo em que exigiriam a
adoção de um modo de existência diferente".)
Em nossa líquida era moderna, os poderes constituídos não
mais parecem interessados em traçar a fronteira entre o
sexo correto" e o "perverso" A razão talvez seja a rápida
queda da demanda pelo emprego da energia sexual
economizada em favor de "causas civilizantes" (leia-se: a
produção de disciplina sobre os padrões de comportamento
rotineiro, funcionais numa sociedade de produtores) —
desvio que Freud, escrevendo no início do século XX,
dificilmente poderia ter adivinhado, para não dizer
visualizado.
Os objetos "socialmente úteis" oferecidos para descarga
sexual não precisam mais ser disfarçados como "causas
culturais". Eles desfilam, com orgulho e, sobretudo, grandes
benefícios, sua sexualidade endêmica ou inventada. Depois
da época em que a energia sexual tinha de ser sublimada
para que a linha de montagem de automóveis se
mantivesse em movimento, veio uma época em que a
energia sexual precisava ser ampliada e liberada para
selecionar qualquer canal que pudesse estar à mão e
estimulada a se expandir, de modo que os veículos que
saíam da linha de montagem pudessem ser ardentemente
desejados como objetos sexuais.
Parece que o elo entre a sublimação do instinto sexual e sua
repressão, que Freud considerava condição indispensável de
qualquer arranjo social disciplinado, foi rompido. A líquida
sociedade moderna descobriu uma forma de explorar a
propensão/receptividade humana a sublimar os instintos
sexuais sem recorrer à repressão, ou pelo menos limitandoa radicalmente. Isso aconteceu graças à progressiva
desregulação do processo sublimatório, agora difuso e
disperso, o tempo todo mudando de direção e guiado pela
sedução dos objetos de desejo sexual em oferta, e não por
quaisquer pressões coercitivas.
Communitas em oferta
Quando a qualidade o decepciona, você procura a
salvação na quantidade. Quando a duração não está
disponível, é a rapidez da mudança que pode redimilo.
Se você se sente pouco à vontade nesse mundo fluido,
perdido em meio à profusão de sinais de trânsito
contraditórios que parecem mover-se como uma estante
sobre rodinhas, visite um ou mais daqueles especialistas
para cujos serviços nunca houve demanda nem oferta
maiores.
Adivinhos e astrólogos de eras passadas costumavam dizer
a seus clientes como seria o seu futuro, pré-decidido,
imutável e implacável, independente do que fizessem ou
deixassem de fazer. Os especialistas de nossa fluida era
moderna,
mais
provavelmente,
repassariam
responsabilidade a seus confusos e perplexos clientes.
a
Estes descobririam que sua ansiedade pode ser atribuída a
seus feitos e desfeitos, e procurariam (e certamente
encontrariam os erros cometidos ao longo de suas vidas):
pouca autoconfiança, autoproteção ou auto-adestramento,
porém mais provavelmente, falta de flexibilidade, apego
demasiado a velhas rotinas, pessoas ou lugares, carência de
entusiasmo por mudanças e uma indisposição para mudar
uma segunda vez. Os especialistas podem recomendar mais
apreço, vigília e cuidado por si mesmo, maior atenção à
capacidade interior para o prazer e a satisfação — assim
como "depender" menos dos outros e dar menos
consideração às demandas destes por atenção e cuidado;
maior distanciamento e sobriedade ao fazer o balanço das
expectativas razoáveis de ganhos e das perspectivas
realistas de perdas. Os clientes que aprenderam
diligentemente as lições e seguiram fielmente os conselhos
de agora em diante devem se perguntar com maior
freqüência "o que eu ganho com isso?" e exigir mais
resolutamente dos parceiros, e de todos os demais, que lhes
dêem "mais espaço" — ou seja, manter-se distanciados e
não esperar, tolamente, que os compromissos assumidos
durem para sempre.
Não se deixe apanhar. Evite abraços muito apertados.
Lembre-se de que, quanto mais profundas e densas suas
ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus
riscos. Não confunda a rede — um turbilhão de caminhos
sobre os quais se pode deslizar — com uma malha, essa
coisa traiçoeira que, vista de dentro, parece uma gaiola.
E lembre-se, claro, de que apostar todas as suas fichas em
um só numero é a máxima insensatez!
Seu celular está sempre tocando (ou assim você
espera).
Uma mensagem brilha na tela em busca de outra. Seus
dedos estão sempre ocupados: você pressiona as teclas,
digitando novos números para responder às chamadas ou
compondo suas próprias mensagens. Você permanece
conectado — mesmo estando em constante movimento, e
ainda que os remetentes ou destinatários invisíveis das
mensagens recebidas e enviadas também estejam em
movimento, cada qual seguindo suas próprias trajetórias. Os
celulares são para pessoas em movimento.
Você nunca perde de vista o seu celular. Sua roupa de
jogging tem um bolso especial para ele, e você nunca sai
com aquele bolso vazio, da mesma forma que não vai correr
sem o seu tênis. Na verdade, você não iria a nenhum lugar
sem o celular ("nenhum lugar" é, afinal, o espaço sem um
celular, com um celular fora de área ou sem bateria).
Estando com o seu celular, você nunca está fora ou longe.
Encontra-se sempre dentro — mas jamais trancado em um
lugar. Encasulado numa teia de chamadas e mensagens,
você está invulnerável. As pessoas a seu redor não podem
rejeitá-lo e, mesmo que tentassem, nada do que realmente
importa iria mudar.
Não importa onde você está, quem são as pessoas à sua
volta e o que você está fazendo nesse lugar onde estão
essas pessoas. A diferença entre um lugar e outro, entre um
e outro grupo de pessoas ao alcance de sua visão e de seu
toque, foi suprimida, tornou-se nula e vazia. Você é o único
ponto estável num universo de objetos em movimento — e
assim o são igualmente (graças a você, graças a você!)
suas extensões: suas conexões. Estas permanecerão
incólumes apesar de os que estão conectados por elas se
moverem. Conexões são rochas em meio a areias
movediças. Com elas você pode contar — e, já que confia
na sua solidariedade, pode parar de se preocupar com o
aspecto lamacento e traiçoeiramente escorregadio do
terreno onde está pisando quando uma chamada ou
mensagem é enviada ou recebida.
Uma chamada não foi respondida? Uma mensagem não foi
retornada? Também não há motivo para preocupação.
Existem muitos outros números de telefones na lista, e
aparentemente não há limite para o volume de mensagens
que você pode, com a ajuda de algumas teclas diminutas,
comprimir naquele pequeno objeto que se encaixa tão bem
em sua mão. Pense nisto (quer dizer, se houver tempo para
pensar): é absolutamente improvável chegar ao fim de seu
catálogo portátil ou digitar todas as mensagens possíveis.
Há sempre mais conexões para serem usadas — e assim
não tem grande importância quantas delas se tenham
mostrado frágeis e passíveis de ruptura. O ritmo e a
velocidade do uso e do desgaste tampouco importam. Cada
conexão pode ter vida curta, mas seu excesso é
indestrutível. Em meio à eternidade dessa rede imperecível,
você pode se sentir seguro diante da fragilidade irreparável
de cada conexão singular e transitória.
Dentro da rede, você pode sempre correr em busca de
abrigo quando a multidão à sua volta ficar delirante demais
para o seu gosto. Graças ao que se torna possível desde
que seu celular esteja escondido com segurança no seu
bolso, você se destaca da multidão — e destacar-se é a
ficha de inscrição para sócio, o termo de admissão nessa
multidão.
Uma multidão de pessoas destacadas: um enxame, para ser
mais preciso. Um agregado de indivíduos autopropulsores
que não precisam de comandantes, testas-de-ferro, portavozes, agentes provocadores ou informantes para se
manterem juntos. Um agregado em movimento no qual
cada unidade móvel faz a mesma coisa, mas nada é feito
em conjunto. As unidades marcham no mesmo passo sem
sair do alinhamento. Coerente consigo mesma, a multidão
expulsa ou atropela as unidades que se destacam — mas
são apenas essas as unidades toleradas pelo enxame.
Os telefones celulares não criam o enxame, embora sem
dúvida ajudem a mantê-lo como é — um enxame. Este, por
sua vez, estava esperando por Nokias e Ericssons e
Motorolas ávidos por servi-lo. Se não houvesse enxame,
qual seria a utilidade dos celulares?
Aos que se mantêm à parte, os celulares permitem
permanecer em contato. Aos que permanecem em
contato, os celulares permitem manter-se à parte...
Jonathan Rowe nos lembra:
No final da década de 1990, em meio ao boom da
alta tecnologia, passei algumas horas num café na
área dos teatros de São Francisco... Observei uma
cena recorrente lá fora. A mãe está amamentando o
bebê. Os garotos estão beliscando seus bolinhos,
em suas cadeiras, com os pés balançando. E lá está
o pai, ligeiramente reclinado sobre a mesa, falando
ao celular ... Deveria ser uma "revolução nas
comunicações", e no entanto aqui, no epicentro
tecnológico, os membros dessa família estavam
evitando os olhares uns dos outros (8)
Dois anos depois, Rowe provavelmente veria quatro
celulares em operação em torno da mesa. Os aparelhos não
impediriam que a mãe amamentasse o bebê nem que os
garotos beliscassem seus bolinhos. Mas tornariam
desnecessário que eles evitassem olhar-se nos olhos: àquela
altura, de qualquer forma, os olhos já se teriam tornado
paredes em branco — e uma parede em branco não pode
sofrer danos por encarar uma outra. Com tempo suficiente,
os celulares treinariam os olhos a olhar sem ver.
Como aponta John Urry, "as relações de co-presença sempre
envolvem contigüidade e afastamento, proximidade e
distância, sensatez e imaginação" (9). É verdade; mas a
presença ubíqua e contínua da terceira — da "proximidade
virtual", universal e permanentemente disponível graças à
rede eletrônica — faz a balança pender decididamente em
favor do afastamento, da distância e da imaginação. Ela
anuncia (ou será que pressagia?) uma separação final entre
o "fisicamente distante" e o "espiritualmente remoto". O
primeiro não é mais condição para o segundo. Este agora
tem sua própria "base material" high-tech, infinitamente
mais ampla, flexível, variada, atraente e prenhe de aventura
do que qualquer rearranjo de corpos materiais. E a
proximidade física tem menos chance do que nunca de
interferir no afastamento espiritual...
Urry está correto ao descartar as profecias que falam de um
iminente
desaparecimento
das
viagens,
tornadas
redundantes pela facilidade de conexão eletrônica. Se não
por outro motivo, porque o advento do deslocamento
eletronicamente garantido faz com que viajar se torne mais
seguro, menos arriscado e excludente— e assim anula
muitos dos antigos limites ao poder magnético de "conhecer
lugares".
Os
celulares
assinalam,
material
e
simbolicamente, a derradeira libertação em relação ao
lugar. Estar perto de uma tomada não é mais a única
condição para "permanecer conectado". Os viajantes podem
eliminar de seus cálculos de perdas e ganhos as diferenças
entre partir e ficar, distância e proximidade, civilização e
isolamento.
Muito software e hardware foi enterrado no cemitério dos
computadores desde que o inesquecível Peter Sellers tentou
em vão no filme Muito além do jardim (1979), de Hal Ashby,
desligar um bando de freiras com a ajuda de um controle
remoto de televisão. Nos dias de hoje ele não teria
dificuldade em deletá-las do quadro — do quadro que ele
viu, do seu quadro, a soma de todas as relevâncias do
mundo ao seu alcance. O outro lado da moeda da
proximidade virtual é a distância virtual: a suspensão, talvez
até a anulação, de qualquer coisa que transforme a
contigüidade topográfica em proximidade. A proximidade
não exige mais a contigüidade física; e a contigüidade física
não determina mais a proximidade.
É uma questão em aberto saber qual lado da moeda mais
contribuiu para fazer da rede eletrônica e de seus
implementos de entrada e saída um meio de troca tão
popular e avidamente usado nas interações humanas. Será
a nova facilidade de conectar-se? Ou a de cortara conexão?
Não faltam ocasiões em que esta última parece mais
urgente e importante que a primeira.
O advento da proximidade virtual torna as conexões
humanas simultaneamente mais freqüentes e mais banais,
mais intensas e mais breves. As conexões tendem a ser
demasiadamente breves e banais para poderem condensarse em laços. Centradas no negócio à mão, estão protegidas
da possibilidade de extrapolar e engajar os parceiros além
do tempo e do tópico da mensagem digitada e lida — ao
contrário daquilo que os relacionamentos humanos,
notoriamente difusos e vorazes, são conhecidos por
perpetrar. Os contatos exigem menos tempo e esforço para
serem estabelecidos, e também para serem rompidos. A
distância não é obstáculo para se entrar em contato — mas
entrar em contato não é obstáculo para se permanecer à
parte. Os espasmos da proximidade virtual terminam,
idealmente, sem sobras nem sedimentos permanentes. Ela
pode ser encerrada, real e metaforicamente, sem nada mais
que o apertar de um botão.
A realização mais importante da proximidade virtual parece
ser a separação entre comunicação e relacionamento.
Diferentemente da antiquada proximidade topográfica, ela
não exige laços estabelecidos de antemão nem resulta
necessariamente
em
seu
estabelecimento.
"Estar
conectado" é menos custoso do que "estar engajado" —
mas também consideravelmente menos produtivo em
termos da construção e manutenção de vínculos.
A proximidade virtual reduz a pressão que a
contigüidade não-virtual tem por hábito exercer. Ela
também estabelece o padrão para todas as outras
proximidades. Toda proximidade está agora no limite
de medir seus méritos e falhas pelo modelo da
proximidade virtual.
A proximidade virtual e a não-virtual trocaram de lugar:
agora a variedade virtual é que se tornou a "realidade",
segundo a descrição clássica de Émile Durkheim: algo que
fixa, que "institui fora de nós certas formas de agir e certos
julgamentos que não dependem de cada vontade particular
tomada isoladamente"; algo que "deve ser reconhecido pelo
poder de coerção externa" e pela "resistência oferecida a
todo ato individual que tenda a transgredi-la" (10). A
proximidade não-virtual termina desprovida dos rígidos
padrões de comedimento e dos rigorosos paradigmas de
flexibilidade que a proximidade virtual estabeleceu. Se não
puder imitar aquilo que esta transformou em norma, a
proximidade topográfica vai se tornar um "ato de
transgressão" que certamente enfrentará resistência. E
assim se permite que a proximidade virtual desempenhe o
papel da genuína e inalterada realidade real pela qual todos
os outros pretendentes ao status de realidade devem se
avaliar e ser julgados.
Todo o mundo já viu, escutou e não conseguiu deixar de
entreouvir a conversa de outros passageiros no ônibus
falando sem parar em seus telefones. Há homens de
negócios ávidos por se manterem ocupados e parecerem
eficientes — ou seja, por se conectarem a tantos usuários
de celulares quanto possível e mostrarem que de fato
existem muitos deles prontos a receber sua chamada. Há
adolescentes e jovens de ambos os sexos dizendo a alguém,
em casa, por que estação haviam acabado de passar e qual
seria a próxima. Você pode ter tido a impressão de que eles
estavam contando os minutos que os separavam de seus
lares e mal podiam esperar para estar com seus
interlocutores em pessoa. Talvez não lhe tenha ocorrido que
muitas dessas conversas entreouvidas não eram ouvertures
de conversas mais longas e substantivas que prosseguiriam
em seu lugar de destino — mas seus substitutos. Que essas
conversas não estavam preparando o terreno para a coisa
real, mas eram, elas próprias, exatamente isso: a coisa
real... Que muitos desses jovens ávidos por dar seus
paradeiros a ouvintes invisíveis iriam dentro em breve, logo
que chegassem, correr para seus próprios quartos e trancar
as portas.
Quando estávamos a uns poucos anos do súbito
desenvolvimento da proximidade virtual eletronicamente
acionada, Michael Schluter e David Lee observaram que
"nós usamos a privacidade como um traje pressurizado ...
Tudo menos convidar ao encontro; tudo menos envolver-se".
Os lares não são mais ilhas de intimidade em meio aos
mares,
em
rápido
resfriamento,
da
privacidade.
Transformaram-se de compartilhados playgrounds do amor
e da amizade em locais de escaramuças territoriais, e de
canteiros de obras onde se constrói o convívio em conjuntos
de bunkers fortificados. "Nós entramos em nossas casas
separadas e fechamos a porta, e então entramos em nossos
quartos separados e fechamos a porta. A casa torna-se um
centro de lazer multiuso em que os membros da família
podem viver, por assim dizer, separadamente lado a lado."
(11)
Seria tolo e irresponsável culpar as engenhocas eletrônicas
pelo lento mas constante recuo da proximidade contínua,
pessoal, direta, face a face, multifacetada e multiuso. E no
entanto a proximidade virtual ostenta características que,
no líquido mundo moderno, podem ser vistas, com boa
razão, como vantajosas — mas que não podem ser
facilmente obtidas sob as condições daquele outro tête-àtête, não-virtual. Não admira que a proximidade virtual
tenha ganhado a preferência e seja praticada com maior
zelo e espontaneidade do que qualquer outra forma de
contigüidade. A solidão por trás da porta fechada de um
quarto com um telefone celular à mão pode parecer uma
condição menos arriscada e mais segura do que
compartilhar o terreno doméstico comum.
Quanto mais atenção humana e esforço de aprendizado
forem absorvidos pela variedade virtual de proximidade,
menos tempo se dedicará à aquisição e ao exercício das
habilidades que o outro tipo de proximidade, não-virtual,
exige. Essas habilidades caem em desuso — são
esquecidas, nem chegam a ser aprendidas, são evitadas ou
a elas se recorre, se isso chega a acontecer, com relutância.
Seu desenvolvimento, se requerido, pode apresentar um
desafio incômodo, talvez até insuperável. Isso aumenta os
encantos da proximidade virtual. Uma vez aberta, a
passagem da proximidade não-virtual para a virtual adquire
seu próprio ímpeto. Ela parece autoperpetuadora, e também
é capaz de se auto-acelerar.
"Na medida em que a geração amamentada pela rede
ingressa em seus primeiros anos de namoro, o
namoro pela internet está decolando. E não se trata
de um último recurso. É uma atividade recreativa. É
diversão."
Assim pensa Louise France (12). Para os atuais corações
solitários, as discotecas e bares para solteiros são uma
recordação distante, conclui ela. Eles não adquiriram (e não
temem não ter adquirido) o suficiente em termos de
ferramentas de sociabilidade que fazer amigos em tais
lugares exigiria. Além disso, o namoro pela internet tem
vantagens que os encontros pessoais não têm: nestes
últimos, o gelo, uma vez quebrado, pode permanecer
quebrado ou derreter-se de uma vez por todas, mas no
namoro pela internet é muito diferente. Como confidenciou
um entrevistado de 28 anos da Universidade de Bath: "Você
sempre pode apertar a tecla para deletar. Deixar de
responder um e-mail é a coisa mais fácil do mundo." France
comenta: os usuários dos recursos de namoro on-line
podem namorar com segurança, protegidos por saberem
que sempre podem retornar ao mercado para outra rodada
de compras. Ou, como o insinua o dr. Jeff Gavin, da
Universidade de Bath, citado por France: na internet podese namorar "sem medo de `repercussões' no mundo real".
Ou, de qualquer maneira, é assim que a pessoa se sente ao
conseguir parceiros na internet. É como folhear um catálogo
de reembolso postal que traz na primeira página o aviso
"compra não-obrigatória" e a garantia ao consumidor da
"devolução do produto caso não fique satisfeito".
Terminar quando se deseje — instantaneamente, sem
confusão, sem avaliação de perdas e sem remorsos — é a
principal vantagem do namoro pela internet. Reduzir riscos
e, simultaneamente, evitar a perda de opções é o que
restou de escolha racional num mundo de oportunidades
fluidas, valores cambiantes e regras instáveis. E o namoro
pela internet, ao contrário da incômoda negociação de
compromissos mútuos, se ajusta perfeitamente (ou quase)
aos novos padrões de escolha racional.
Os shopping centers muito têm feito para reclassificar o
labor da sobrevivência como diversão e recreação. O que
costumava ser sofrido e suportado com uma mistura de
ressentimento e repulsa, sob a pressão refratária da
necessidade, tem adquirido os poderes sedutores de uma
promessa de prazeres incalculáveis sem a adição de riscos
igualmente incalculáveis. O que os shopping centers fizeram
pelas tarefas da sobrevivência diária, o namoro pela
internet tem feito pela negociação de parceria. Mas, tal
como o alívio da necessidade e as pressões da "pura
sobrevivência" eram condições necessárias para o sucesso
dos shopping centers, assim também o namoro pela
internet dificilmente teria êxito se não tivesse sido ajudado
e favorecido por terem sido eliminados da lista de suas
condições necessárias o engajamento full-time, o
compromisso e a obrigação "de estar à disposição quando o
outro precisa".
A responsabilidade por eliminar essas condições não pode
ser atribuída à porta virtual do namoro eletrônico. Muito
mais tem acontecido no caminho em direção à líquida e
individualizada sociedade moderna para tornar os
compromissos de longo prazo pouco numerosos, o
engajamento a longo prazo uma rara expectativa e a
obrigação de assistência mútua incondicional uma
perspectiva que nem é realista nem percebida como digna
de grandes esforços.
A suposta chave para a felicidade de todos, e assim o
propósito declarado da política, é o crescimento do
produto nacional bruto (PNB). E o PNB é medido pela
quantidade de dinheiro gasta por todo mundo em
conjunto.
"Deixe de lado a exacerbação e a histeria", escrevem
Jonathan Rowe e Judith Silverstein, "e crescer significará
apenas 'gastar mais dinheiro'. Não faz diferença para onde o
dinheiro vai, nem por quê." (13)
Com efeito, a maior parte do dinheiro gasto, e mais ainda
do crescimento dos gastos, é usada para financiar a luta
contra o equivalente, para a sociedade de consumo, das
"moléstias iatrogênicas" — problemas causados pela
exacerbação e posterior apaziguamento dos impulsos e
novidades de ontem. A indústria norte-americana de
alimentos gasta por ano cerca de 21 bilhões de dólares
semeando e cultivando o desejo por comidas mais
sofisticadas, exóticas e supostamente mais saborosas e
excitantes, enquanto a indústria de produtos dietéticos e de
emagrecimento fatura 32 bilhões, e os dispêndios com
tratamento médico, em grande parte explicados pela
necessidade de enfrentar a maldição da obesidade, devem
dobrar no curso da próxima década. Os habitantes de Los
Angeles pagam uma média de 800 bilhões de dólares por
ano para queimar petróleo, enquanto os hospitais recebem
números recordes de pacientes sofrendo de asma, bronquite
e outros problemas respiratórios causados pela poluição
atmosférica, elevando suas contas já recordistas. À medida
que consumir (e gastar) mais do que ontem, porém (esperase) nem tanto quanto amanhã, se torna a estrada imperial
para a solução de todos os problemas sociais, e que o céu
se torna o limite para o poder de sedução das sucessivas
formas de atrair o consumidor, as empresas de cobrança de
débitos, as firmas de segurança e as unidades
penitenciárias tornam-se importantes contribuintes para o
crescimento do PNB. É impossível medir exatamente o
papel enorme e crescente que o estresse provocado pelas
preocupações desgastantes dos consumidores líquidomodernos desempenha no sentido de elevar as estatísticas
do PNB.
A maneira aceita de calcular o "produto nacional bruto" e
seu crescimento, e mais particularmente o fetiche
construído pela política atual em torno dos resultados desse
cálculo, baseia-se num pressuposto que não foi testado e
cuja exposição é coisa rara —embora seja amplamente
contestado quando quer que isso aconteça: que a soma
total da felicidade humana cresce conforme uma
quantidade maior de dinheiro troca de mãos. Numa
sociedade de mercado, o dinheiro troca de mãos em toda
sorte de ocasiões. Só para dar alguns dos exemplos
pungentes recolhidos por Jonathan Rowe", o dinheiro troca
de mãos quando alguém se torna inválido e o carro é
totalmente destruído em um acidente automobilístico;
quando advogados elevam seus honorários para cuidar de
uma ação de divórcio; ou quando pessoas instalam filtros ou
passam a beber água mineral porque a água potável não
pode mais ser consumida. E assim, em todos esses e em
casos similares, o "produto interno" cresce, para regozijo
dos políticos governantes e dos economistas que fazem
parte de suas equipes.
O modelo de PNB que domina (monopoliza) a maneira como
os habitantes da líquida, consumista e individualizada
sociedade moderna pensam sobre bem-estar ou sobre uma
"boa sociedade" (nas raras ocasiões em que admitem que
tais pensamentos penetrem em suas preocupações com
uma vida feliz e exitosa) é mais notável não pelo que ele
classifica, de modo equivocado ou claramente errôneo, mas
por aquilo que nem chega a classificar; por aquilo que ele
deixa totalmente fora do cálculo, negando assim, na prática,
qualquer relevância tópica à questão da saúde nacional e
do conforto individual e coletivo.
Tal como os Estados modernos, ocupados em ordenar
e classificar, não podiam suportar a existência de
"homens desgovernados", e como os modernos
impérios em expansão, ávidos por territórios, não
podiam suportar a existência de terras "de ninguém",
os mercados modernos não toleram bem a "economia
de não-mercado": o tipo de vida que reproduz a si
mesma sem que o dinheiro troque de mãos.
Para os teóricos da economia de mercado, essa vida não
conta — e portanto não existe. Para os praticantes da
economia de mercado, ela constitui uma ofensa e um
desafio — um espaço ainda não conquistado, um
permanente convite à conquista, uma tarefa ainda não
cumprida clamando por ação urgente.
Considerando a natureza temporária de todo e qualquer
modos coexistendi entre os mercados e uma economia nãomonetária, os teóricos atribuem à vida auto-reprodutiva ou
aos fragmentos de vida auto-reprodutivos nomes que
sugerem sua anormalidade e extinção iminente. As pessoas
que conseguem produzir os bens de que necessitam para
sustentar o seu modo de vida, e que portanto dispensam as
constantes visitas ao shopping, vivem "ao deus-dará";
levam um tipo de existência que extrai seu significado
unicamente daquilo que lhe faz falta ou que ela omite —
uma existência primitiva, miserável, que precede o "salto
econômico" com que tem início a vida normal, sem
adjetivos. Cada exemplo de um bem trocando de mãos sem
um fluxo de dinheiro na direção oposta é relegado ao
domínio obscuro da "economia informal" — novamente o
termo adjetivado da oposição cujo outro membro, normal
(ou seja, a troca mediada por dinheiro), não necessita de
especificação.
Os praticantes da economia de mercado fazem o possível
para alcançar os lugares que os especialistas em marketing
ainda não conseguiram atingir. A expansão é ao mesmo
tempo horizontal e vertical, extensiva e intensiva: o que
resta a ser conquistado são as terras ainda presas ao seu
meio de vida "ao deus-dará", mas também a parcela de
tempo dedicada à economia "informal" entre as populações
já
convertidas
ao
modo
de
existência
comprador/consumidor. Os meios de subsistência nãomonetários precisam ser destruídos de modo que aqueles
que deles vivem vejam-se diante da escolha entre comprar
e morrer de inanição (não que, uma vez convertidos à
compra, tenham a garantia de escapar da fome). É preciso
mostrar que as áreas da vida ainda não mercantilizadas
escondem perigos que não podem ser afastados sem a
ajuda de ferramentas e serviços comprados, ou que devem
ser depreciadas como inferiores, repulsivas e, em última
instância, degradantes. E realmente o são.
O que está mais visivelmente ausente no cálculo econômico
dos teóricos, e figura no topo da lista dos alvos da guerra
comercial segundo os praticantes do mercado, é a enorme
área do que A.H. Halsey denominou a "economia moral" — o
compartilhamento familiar de bens e serviços, a ajuda entre
vizinhos, a cooperação entre amigos: todos os motivos,
impulsos e atos com que se costuram os vínculos e
compromissos duradouros entre os seres humanos.
O único personagem que os teóricos consideram merecedor
de atenção, porque é a ele que se atribui o mérito de
"manter a economia em movimento" e de lubrificar as rodas
do crescimento econômico, é o homo oeconomicus — o ator
econômico solitário, auto-referente e autocentrado que
persegue o melhor ideal e se guia pela "escolha racional';
preocupado em não cair nas garras de quaisquer emoções
que resistam a ser traduzidas em ganhos monetários e
vivendo num mundo cheio de outros personagens que
compartilham todas essas virtudes, e nada além. O único
personagem que os praticantes do mercado podem e
querem reconhecer e acolher é o homo consumens o
solitário, auto-referente e autocentrado comprador que
adotou a busca pela melhor barganha como uma cura para
a solidão e não conhece outra terapia; um personagem para
quem o enxame de clientes do shopping center é a única
comunidade conhecida e necessária e que vive num mundo
povoado por outros personagens que compartilham todas
essas virtudes com ele, e nada além.
Der Mann ohne Eigenschaften, o homem sem qualidades, da
modernidade precoce amadureceu e se tornou (ou teria sido
obrigado a isso pela força numérica das massas?) der Mann
ohne Verwandtschaften, o homem sem vínculos.
O homo oeconomicus e o homo consumens são homens e
mulheres sem vínculos sociais. São os representantes ideais
da economia de mercado e os tipos que agradam aos
analistas do PNB.
Eles também são ficções.
À medida que as barreiras artificiais ao livre comércio
são quebradas, uma após a outra, e as naturais,
erradicadas
e
destruídas,
a
expansão
horizontal/extensiva da economia de mercado parece
caminhar
para
seu
fim.
Mas
a
expansão
vertical/intensiva está longe de terminar, e chega-se
a duvidar se esse fim é mesmo provável — ou se, de
fato, sequer é concebível.
É graças à válvula de segurança da "economia moral" que
as tensões geradas pela economia de mercado não chegam
a assumir proporções explosivas. É graças ao amortecedor
da "economia moral" que os dejetos humanos gerados pela
economia de mercado não chegam a se tornar
incontroláveis. Não fosse pela intervenção corretiva,
lenitiva, suavizante e compensadora da economia moral, a
economia de mercado exporia seu impulso autodestrutivo.
O milagre diário da salvação/ressurreição da economia de
mercado deriva de seu fracasso em seguir esse impulso até
o fim.
Admitir unicamente o homo oeconomicus e o homo
consumens no mundo governado pela economia de
mercado incapacita um número considerável de seres
humanos para a obtenção de permissões de residência,
enquanto consente a poucos deles — se é que chega a isso
— desfrutar legalmente esse direito em qualquer época e
ocasião. Poucos podem escapar da área cinzenta sem
utilidade para o mercado e que este ficaria feliz em eliminar
e banir de uma vez por todas do mundo que governa.
O que do ponto de vista da conquista de mercado — já
realizada ou ainda pretendida — é representado como uma
"área
cinzenta"
constitui,
para
seus
habitantes
conquistados, parcialmente conquistados ou destinados a
isso, uma comunidade, um bairro, um círculo de amigos,
parceiros na vida e para a vida. Um mundo em que a
solidariedade, a compaixão, a troca, a ajuda e a simpatia
mútuas (noções estranhas ao pensamento econômico e
abominadas pela prática econômica) suspendem ou
afastam a escolha racional e a busca do auto-interesse. Um
mundo cujos habitantes não são nem concorrentes nem
objetos de uso e de consumo, mas colegas (ajudantes e
ajudados) no esforço contínuo e interminável de construir
vidas compartilhadas e torná-las possíveis.
A necessidade de solidariedade parece suportar as
agressões do mercado e sobreviver a elas — mas não
porque o mercado deixe de tentar. Onde há necessidade há
chance de lucro — e os especialistas em marketing levam
sua engenhosidade ao limite para indicar maneiras de
adquirir em lojas a solidariedade, o sorriso amigo, o convívio
ou a ajuda no momento de necessidade. Constantemente
têm êxito — e constantemente fracassam. Sucedâneos
comercializados não podem substituir vínculos humanos.
Em sua versão à venda, os vínculos se transformam em
mercadorias, ou seja, são transportados para um outro
domínio, governado pelo mercado, e deixam de ser os tipos
de vínculo capazes de satisfazer a necessidade de convívio
e que só nesta podem ser concebidos e mantidos vivos. Não
pode ter êxito a caçada movida pelo mercado ao capital
descontrolado que se esconde na sociabilidade humana
(15).
Quando observada através das lentes de um mundo
ordenado, adequadamente construído e funcionando
em harmonia, a "área cinzenta" da solidariedade, da
amizade e das parcerias humanas é vista como o
reino da anarquia.
O conceito de "anarquia" carrega o peso de sua história
essencialmente antiestatal. De Godwin a Kropotkin,
passando por Proudhon e Bakunin, os teóricos e fundadores
dos movimentos anarquistas apresentaram esse termo
como a designação de uma sociedade alternativa, o avesso
de uma ordem coercitiva e imposta pelo poder. Essa
sociedade que postulavam diferiria da existente devido à
ausência do Estado — a síntese do poder desumano,
intrinsecamente corruptor. Uma vez desmantelado e
eliminado o poder do Estado, os seres humanos recorreriam
(retornariam?) aos valores da ajuda mútua, usando, como
Mikhail Bakunin vivia repetindo, sua capacidade natural de
pensar e de se rebelar (16).
A fúria dos anarquistas do século XIX concentrava-se no
Estado — no Estado moderno, para ser preciso, uma
novidade na época, que ainda não estava entrincheirado de
modo suficientemente sólido para reclamar legitimidade
tradicional ou basear-se na obediência rotinizada. O Estado
empenhava-se em obter um controle meticuloso e ubíquo
sobre todos os aspectos da vida humana que os antigos
poderes haviam deixado para os recursos coletivos locais.
Reclamava o direito e os meios legais para interferir em
áreas das quais os antigos poderes, embora opressivos e
exploradores,
mantinham
distância.
Em
particular,
incumbiu-se de desmantelar les pouvoirs intermédiaires, ou
seja, as formas de autonomia local, de auto-afirmação
comunal e de autogoverno. Sob ataque, as formas habituais
de solução dos conflitos e problemas gerados pela vida em
conjunto pareceram ser, para os pioneiros dos movimentos
anárquicos, dadas de forma não-problemática e, portanto,
"naturais" Também eram imaginadas como autosustentáveis e totalmente capazes de manter a ordem sob
todas as condições e circunstâncias, desde que protegidas
das imposições originárias do Estado. A anarquia, isto é,
uma sociedade sem o Estado e suas armas de coerção, era
visualizada como uma ordem não-coercitiva na qual a
necessidade não se chocaria com a liberdade nem esta se
colocaria no caminho dos pré-requisitos da vida em grupo.
O Weltanschauung do anarquismo inicial compartilhava com
o socialismo utópico da época um forte sabor nostálgico (os
ensinamentos de Proudhon e Weitling simbolizando sua
íntima afinidade); o sonho de sair da estrada em que se
havia entrado com o nascimento de uma nova e moderna
forma de poder social e de capitalismo (ou seja, a separação
entre o negócio e o lar) — de volta ao conforto, mais
romantizado do que genuinamente livre de conflito, da
unidade comunal de sentimentos e ações. Foi nessa forma
inicial, nostálgica e utópica, que a idéia de "anarquia" se
estabeleceu na aurora da sociedade moderna e na maioria
de suas interpretações político-científicas.
Mas havia no pensamento anarquista outro significado,
menos demarcado pelo tempo, oculto por trás de sua
ostensiva rebelião antiestatal e, por essa razão, facilmente
negligenciável. Esse outro significado é próximo daquele da
imagem da communitas de Victor Turner:
É como se houvesse aqui dois "modelos"
importantes, justapostos e alternados, para o interrelacionamento humano. O primeiro é o da
sociedade
como
um
sistema
estruturado,
diferenciado e freqüentemente hierárquico de
posições político-jurídico-econômicas ... O segundo
... é o da sociedade como uma communitas,
comunidade ou mesmo comunhão, desestruturada
ou estruturada de forma rudimentar, de indivíduos
iguais que se submetem em conjunto à autoridade
geral dos dignitários rituais (17).
Turner usava a linguagem da antropologia e localizou a
questão
da
communitas
dentro
da
problemática
antropológica costumeira, preocupada com as diferenças
entre as formas pelas quais os agregados humanos
("sociedades", "culturas") asseguravam sua durabilidade e
sua auto-reprodução contínua. Mas os dois modelos
descritos por ele também podem ser interpretados como
representações de modos complementares de coexistência
humana que se misturam em diversas proporções em todo
e qualquer grupo humano, e não como diferentes tipos de
sociedades.
Nenhuma variação do convívio humano é plenamente
estruturada, nenhuma diferenciação interna é totalmente
abrangente, inclusiva e livre de ambivalência, nenhuma
hierarquia é total e congelada. A lógica das categorias
imperfeitas preenche a diversificação endêmica e a
desordem das interações humanas. Cada tentativa de
completar a estruturação deixa grande número de "fios
soltos" e significados contenciosos. Cada uma delas produz
espaços em branco, áreas indefinidas, ambigüidades e
territórios "de ninguém" que carecem de levantamentos e
mapas oficiais. Todas essas sobras do esforço de trazer a
ordem constituem o domínio da espontaneidade, da
experimentação e da autoconstituição humanas. A
communitas é, para o bem ou para o mal, o revestimento de
todo conjunto de societas — e na sua ausência (se isso
fosse concebível) esse conjunto se dispersaria: as societas
se desintegrariam em suas suturas. São as societas com
sua rotina e a communitas tas com sua anarquia que, em
conjunto, numa cooperação relutante e dominada pelo
conflito, fazem a diferença entre a ordem e o caos.
A tarefa que a institucionalização, com seus braços
coercitivos, realizou de modo deficiente ou deixou de
cumprir ficou para ser consertada ou completada pela
inventividade espontânea dos seres humanos. Tendo-lhe
sido negado o conforto da rotina, a criatividade (como
apontou Bakunin) tem apenas duas faculdades humanas em
que se basear: a habilidade de pensar e a tendência (e
coragem) de se rebelar. O exercício de cada uma das duas é
repleto de riscos e, ao contrário da rotina arraigada e
protegida de modo institucional, não se pode fazer muito
para minimizar esses riscos, muito menos para eliminá-los.
A communitas (que não deve ser confundida com as contrasociedades que reclamam o nome de "comunidade", mas
que se ocupam em emular os meios e recursos da societas)
habita a terra da incerteza — e não sobreviveria em
nenhum outro país.
A sobrevivência e o bem-estar da communitas (e também,
indiretamente, da societas) dependem da imaginação,
inventividade e coragem humanas de quebrar a rotina e
tentar caminhos não-experimentados. Dependem, em
outras palavras, da capacidade humana de viver com riscos
e de aceitar a responsabilidade pelas conseqüências. São
essas capacidades que constituem os esteios da "economia
moral" — cuidado e auxílio mútuos, viver para os outros,
urdir o tecido dos compromissos humanos, estreitar e
manter os vínculos inter-humanos, traduzir direitos em
obrigações, compartir a responsabilidade pela sorte e o
bem-estar de todos — indispensável para tapar os buracos
escavados
e
conter
os
fluxos
liberados
pelo
empreendimento, eternamente inconcluso, da estruturação.
A invasão e a colonização da communitas, locus da
economia moral, pelas forças do mercado consumidor
constituem o mais aterrador dos perigos
ameaçam a forma atual de convívio humano.
que
Os principais alvos do ataque do mercado são os seres
humanos como produtores. Numa terra totalmente
conquistada e colonizada, somente consumidores humanos
poderiam obter permissão de residência. A difusa indústria
familiar das condições de vida compartilhadas seria posta
fora de operação e desmantelada. As formas de vida, e as
parcerias que as sustentam, só estariam disponíveis como
mercadorias. O Estado obcecado com a ordem combateu
(correndo riscos) a anarquia, aquela marca registrada da
communitas, em função da ameaça à rotina imposta pelo
poder. O mercado consumidor obcecado pelos lucros
combate essa anarquia devido à turbulenta capacidade
produtiva que ela apresenta, assim como ao potencial para
a auto-suficiência que, ao que se suspeita, crescerá a partir
dela. É porque a economia moral tem pouca necessidade do
mercado que as forças deste se levantam contra ela.
Nessa guerra apresenta-se uma estratégia de mão dupla.
Em primeiro lugar, o maior número possível de aspectos da
economia moral independente do mercado é mercantilizado
e remodelado sob a forma de aspectos do consumo.
Em segundo lugar, qualquer coisa na economia moral da
communitas que resista a essa mercantilização tem negada
a sua relevância para a prosperidade da sociedade de
consumidores. É despida de valor numa sociedade treinada
para medir os valores em dinheiro e para identificá-los com
as etiquetas de preço colocadas em objetos e serviços
vendáveis e compráveis. É empurrada para longe das
atenções do público (e, espera-se, dos indivíduos) ao ser
eliminada dos cômputos oficiais do bem-estar humano.
O resultado da presente guerra é tudo menos previsível,
embora até aqui pareça haver apenas um lado na ofensiva,
com o outro em retirada quase total. A communitas perdeu
muito terreno. Postos de troca ansiando por se
transformarem em shopping centers afloram nos campos
que ela um dia cultivou.
A perda territorial é um acontecimento sinistro e
potencialmente desastroso em qualquer guerra, mas o fator
que, em última instância, decide o resultado das
hostilidades é a capacidade de luta das tropas. Um território
perdido é mais fácil de se recuperar do que o espírito de
luta e a confiança no propósito e nas chances da
resistência. Mais que qualquer outra coisa, é esse segundo
acontecimento que causa malefícios ao destino da
economia moral.
O maior e provavelmente mais fundamental sucesso da
ofensiva do mercado até agora tem sido o gradual mas
persistente (embora de modo algum se possa considerá-lo
completo e irreparável) esfacelamento das habilidades de
sociabilidade. Em matéria de relações interpessoais, os
atores não-especializados encontram-se com freqüência
cada vez maior no "modo agêntico" — agindo de maneira
heterônima, sob instruções abertas ou subliminares, e
guiados basicamente pelo desejo de seguir as instruções ao
pé da letra e pelo medo de se afastar dos modelos
atualmente em voga. O fascínio sedutor da ação heterônima
consiste principalmente numa renúncia à responsabilidade
— compra-se uma receita autorizada num pacote que inclui
desobrigar-se da necessidade de responder pelos resultados
adversos de sua aplicação.
O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é
reforçado e acelerado pela tendência, inspirada no estilo de
vida consumista dominante, a tratar os outros seres
humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o
padrão desses objetos, pelo volume de prazer que
provavelmente oferecem e em termos de seu "valor
monetário". melhor das hipóteses, os outros são avalia- dos
como companheiros na atividade essencialmente solitária
do consumo, parceiros nas alegrias do consumo, cujas
presença e participação ativa podem intensificar esses
prazeres. Nesse processo, os valores intrínsecos dos outros
como seres humanos singulares (e assim também a
preocupação com eles por si mesmos, e por essa
singularidade) estão quase desaparecendo de vista. A
solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo
triunfo do mercado consumidor.
3. Sobre a dificuldade de amar o próximo
A invocação de "amar o próximo como a si mesmo", Freud
(em O mal-estar na civilização)', é um dos preceitos
fundamentais da vida civilizada. É também o que mais
contraria o tipo de razão que a civilização promove: a razão
do interesse próprio e da busca da felicidade. O preceito
fundador da civilização só pode ser aceito como algo que
"faz sentido" e adotado e praticado se nos rendermos à
exortação teológica credere quia absurdum — acredite
porque é absurdo.
Com efeito, é suficiente perguntar "por que devo fazer isso?
Que benefício me trará?" para sentir o absurdo da exigência
de amar o próximo — qualquer próximo — simplesmente
por ser um próximo. Se eu amo alguém, ela ou ele deve ter
merecido de alguma forma... "Eles o merecem se são tão
parecidos comigo de tantas maneiras importantes que neles
posso amar a mim mesmo; e se são tão mais perfeitos do
que eu que posso amar neles o ideal de mim mesmo... Mas,
se ele é um estranho para mim e se não pode me atrair por
qualquer valor próprio ou significação que possa ter
adquirido para a minha vida emocional, será difícil amá-lo."
Essa exigência parece ainda mais incômoda e vazia pelo
fato de que, com muita freqüência, não me é possível
encontrar evidências suficientes de que o estranho a quem
devo amar me ama ou demonstra por mim "a mínima
consideração. Se lhe convier, não hesitará em me injuriar,
zombar de mim, caluniar-me e demonstrar seu poder
superior..."
Assim, indaga Freud, "qual é o objetivo de um preceito
enunciado de modo tão solene se seu cumprimento não
pode ser recomendado como algo razoável?" Somos
tentados a concluir, contra o bom senso, que o "amor ao
próximo" é "um mandamento que na verdade se justifica
pelo fato de que nada mais contraria tão fortemente a
natureza
original
do
homem".
Quanto
menor
a
probabilidade de uma norma ser obedecida, maior a
obstinação com que tenderá a ser reafirmada. E a obrigação
de amar o próximo talvez tenha menos probabilidade de ser
obedecida do que qualquer outra. Quando o filósofo
talmúdico Rabi Hillel foi desafiado por um possível
convertido a explicar o ensinamento de Deus enquanto
pudesse se sustentar numa perna só, ele ofereceu o "amar
o próximo como a si mesmo" como a única resposta,
embora completa, que encerra a totalidade dos
mandamentos divinos. Aceitar esse preceito é um ato de fé;
um ato decisivo, pelo qual o ser humano rompe a couraça
dos impulsos, ímpetos e predileções "naturais", assume
uma posição que se afasta da natureza, que é contrária a
esta, e se torna o ser "não-natural" que, diferentemente das
feras (e, na realidade, dos anjos, como apontou Aristóteles),
os seres humanos são.
Aceitar o preceito do amor ao próximo é o ato de origem da
humanidade. Todas as outras rotinas da coabitação humana,
assim
como
suas
ordens
pré-estabelecidas
ou
retrospectivamente descobertas, são apenas uma lista
(sempre incompleta) de notas de rodapé a esse preceito. Se
ele fosse ignorado ou abandonado, não haveria ninguém
para fazer essa lista ou refletir sobre sua incompletude.
Amar o próximo pode exigir um salto de fé. O
resultado, porém, é o ato fundador da humanidade.
Também é a passagem decisiva do instinto de
sobrevivência para a moralidade.
Essa passagem torna a moralidade uma parte, talvez
condição sine qua non, da sobrevivência. Com esse
ingrediente, a sobrevivência de um ser humano se torna a
sobrevivência da humanidade no humano.
" Amar o próximo como a si mesmo" coloca o amor-próprio
como um dado indiscutível, como algo que sempre esteve
ali. O amor-próprio é uma questão de sobrevivência, e a
sobrevivência não precisa de mandamentos, já que outras
criaturas (não-humanas) passam muito bem sem eles,
obrigado. Amar o próximo como se ama a si mesmo torna a
sobrevivência humana diferente daquela de qualquer outra
criatura viva. Sem a extensão/transcendência do amorpróprio, o prolongamento da vida física, corpórea, ainda não
é, por si mesmo, uma sobrevivência humana — não é o tipo
de sobrevivência que separa os seres humanos das feras (e,
não se esqueçam, dos anjos). O preceito do amor ao
próximo desafia e interpela os instintos estabelecidos pela
natureza, mas também o significado da sobrevivência por
ela instituído, assim como o do amor-próprio que o protege.
Amar o próximo pode não ser um produto básico do
instinto de sobrevivência — mas também não o é o
amor-próprio, tomado como modelo do amor ao
próximo.
Amor-próprio — o que significa isso? O que eu amo "em mim
mesmo"? O que eu amo quando amo a mim mesmo? Nós,
humanos, compartilhamos os instintos de sobrevivência
com nossos primos animais sejam os próximos, os nem tão
próximos ou os bem distantes — mas, quando se trata de
amor-próprio, nossos caminhos se separam e seguimos por
conta própria.
É verdade que o amor-próprio estimula a gente a se
"agarrar à vida", a tentar a todo custo permanecer vivo, a
resistir e enfrentar o que quer que ameace pôr fim à nossa
vida de modo prematuro ou abrupto, ou, melhor ainda, a
melhorar nosso vigor e aptidão física para tornar efetiva
essa resistência. Nisso, contudo, nossos primos animais são
mestres e experientes, não menos que os mais dedicados e
habilidosos viciados em ginástica e maníacos por saúde.
Nossos
primos
animais
(com
exceção
daqueles
"domesticados", que nós, seus donos humanos, despimos
de seus dons naturais para melhor servirem à nossa
sobrevivência, e não à deles) não precisam de especialistas
para lhes dizer como se manterem vivos e em forma.
Tampouco precisam do amor-próprio para lhes ensinar que
manter-se vivo e em forma é a coisa certa a fazer.
A sobrevivência (animal, física, corpórea) pode viver sem o
amor-próprio. Para dizer a verdade, poderia acontecer
melhor sem ele do que em sua companhia! Os caminhos
dos instintos de sobrevivência e do amor-próprio podem
correr paralelamente, mas também em direções opostas...
O amor-próprio pode rebelar-se contra a continuação da
vida. Ele nos estimula a convidar o perigo e dar boas-vindas
à ameaça. Pode nos levar a rejeitar uma vida que não se
ajusta a nossos padrões e que, portanto, não vale a pena
ser vivida.
Pois o que amamos em nosso amor-próprio são
apropriados para serem amados. O que amamos é o
ou a esperança, de sermos amados. De sermos
dignos do amor, sermos reconhecidos como
recebermos a prova desse reconhecimento.
os eus
estado,
objetos
tais e
Em suma: para termos amor-próprio, precisamos ser
amados. A recusa do amor — a negação do status de objeto
digno do amor — alimenta a auto-aversão. O amor-próprio é
construído a partir do amor que nos é oferecido por outros.
Se na sua construção forem usados substitutos, eles devem
parecer cópias, embora fraudulentas, desse amor. Outros
devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a
nós mesmos.
E como podemos saber que não fomos desconsiderados ou
descartados como um caso sem esperança, que o amor
está, pode estar, estará prestes a aparecer, que somos
dignos dele, e assim temos o direito de nos entregar ao
amour de soi e ter prazer com isso? Nós o sabemos,
acreditamos que sabemos e somos tranqüilizados de que
essa crença não é um equívoco quando falam conosco e
somos ouvidos, quando nos ouvem com atenção, com um
interesse que trai/sinaliza uma presteza em responder.
Então concluímos que somos respeitados. Ou seja, supomos
que aquilo que pensamos, fazemos ou pretendemos fazer é
levado em consideração.
Se os outros me respeitam, então obviamente deve haver
"em mim" — ou não deve? — algo que só eu lhes posso
oferecer. E obviamente existem esses outros — não
existem? — que ficariam satisfeitos e gratos por isso lhes
ser oferecido. Eu sou importante e o que penso e digo
também é. Não sou uma cifra, facilmente substituída e
descartada. Eu "faço diferença" para outros além de mim. O
que digo e sou e faço tem importância — e isso não é
apenas um vôo da minha fantasia. O mundo à minha volta
seria mais pobre, menos interessante e promissor se eu
subitamente deixasse de existir ou fosse para outro lugar.
Se é isso que nos torna objetos legítimos e adequados do
amor-próprio, então a exortação a "amar o próximo como a
si mesmo" (ou seja, ter a expectativa de que o próximo
desejará ser amado pelas mesmas razões que estimulam
nosso amor-próprio) evoca o desejo do próximo de ter
reconhecida, admitida e confirmada a sua dignidade de
portar um valor singular, insubstituível e não-descartável. A
exortação nos leva a pressupor que o próximo de fato
representa esses valores — ao menos até prova em
contrário. Amar o próximo como amamos a nós mesmos
significaria então respeitar a singularidade de cada um — o
valor de nossas diferenças, que enriquecem o mundo que
habitamos em conjunto e assim o tornam um lugar mais
fascinante e agradável, aumentando a cornucópia de suas
promessas.
Numa cena de Korczak, o filme mais humano de
Andrzej Wajda, Janus Korczak (pseudônimo do grande
pedagogo
Henryk
Goldszmit),
um
herói
cinematográfico muito humano, é relembrado dos
horrores das guerras travadas no curso da vida de
sua sofrida geração. Ele recorda essas atrocidades, é
claro, e elas o ofendem e repugnam. E de modo ainda
mais vívido, e com o maior dos horrores, ele se
lembra de um bêbado chutando uma criança.
Em nosso mundo obcecado por estatísticas, médias e
maiorias, tendemos a medir o grau de desumanidade das
guerras pelo número de baixas que elas causam. Tendemos
a medir o mal, a crueldade, a repugnância e a infâmia da
vitimização pelo número de vítimas. Mas, em 1944, em
meio à guerra mais mortífera já travada pelos seres
humanos, Ludwig Wittgenstein observou:
Nenhum clamor de tormento pode ser maior que o
clamor de um homem.
Ou, mais uma vez, nenhum tormento pode ser
maior do que aquilo que um único ser humano pode
sofrer.
O planeta inteiro não pode sofrer tormento maior do
que uma única alma.
Meio século depois, quando questionada por Leslie Stahl, da
rede de televisão CBS, sobre o cerca de meio milhão de
crianças mortas em função do continuado bloqueio militar
imposto pelos Estados Unidos ao Iraque, Madeleine Albright,
então embaixadora norte-americana na ONU, não negou a
acusação, admitindo ter sido "uma escolha difícil de fazer"
Mas justificou-a: "Achamos que era um preço que valia ser
pago."
Albright, sejamos justos, não estava nem está só ao seguir
esse tipo de raciocínio. "Não se pode fazer uma omelete
sem quebrar os ovos" é a desculpa favorita dos visionários,
dos porta-vozes das visões oficialmente endossadas e dos
generais que agem da mesma forma sob o comando dos
porta-vozes. Essa fórmula transformou-se, com o passar dos
anos, num verdadeiro slogan de nossos admiráveis tempos
modernos.
Quaisquer que sejam aqueles "nós" que "achamos" e em
cujo nome falava Albright, foi exatamente a fria crueldade
de seu tipo de avaliação que provocou a oposição de
Wittgenstein e deixou Korczak chocado, ultrajado e
revoltado, resolvido a dedicar toda uma vida a essa revolta.
A maioria de nós concordaria que esse sofrimento sem
sentido e essa dor insensivelmente infligida não podem ser
desculpados e não teriam defesa perante tribunal algum.
Mas menos estariam prontos a admitir que provocar a fome
ou causar a morte de uma única pessoa não é, não pode
ser, "um preço que vale ser pago", importa quão "sensata"
ou até nobre possa ser a causa pela qual se pague.
Tampouco a humilhação ou a negação da dignidade humana
pode ser esse preço. Não é apenas que a vida digna e o
respeito devido à humanidade de cada ser humano se
combinem num valor supremo que não pode ser superado
ou compensado por nenhum volume ou quantidade de
outros valores, mas que todos os outros valores só são
valores na medida em que sirvam à dignidade humana e
promovam a sua causa. Todas as coisas valorosas na vida
humana nada mais são que diferentes fichas para a
aquisição do único valor que torna a vida digna de ser
vivida. Aquele que busca a sobrevivência assassinando a
humanidade de outros seres humanos sobrevive à morte de
sua própria humanidade.
A negação da dignidade humana deprecia o valor de
qualquer causa que necessite dessa negação para afirmar a
si mesma. E o sofrimento de uma única criança deprecia
esse valor de forma tão radical e completa quanto o
sofrimento de milhões. O que pode ser válido para omeletes
torna-se uma mentira cruel quando aplicado à felicidade e
ao bem-estar humanos.
É comumente aceito pelos biógrafos e discípulos de Korczak
que a chave para seus pensamentos e atos era o amor que
tinha pelos filhos. Essa interpretação é bem fundamentada.
O amor de Korczak pelos filhos era apaixonado e
incondicional, total e abrangente — o bastante para
sustentar toda uma vida caracterizada por uma
sensibilidade e uma integridade singularmente coesas.
Ainda assim, como a maior parte das interpretações, essa
também não corresponde à totalidade de seu objeto.
Korczak amava os filhos como poucos de nós estão prontos
ou capacitados a amar, mas o que amava neles era sua
humanidade. A humanidade no que ela tem de melhor —
sem distorções, sem truncamentos, sem enfeites nem
mutilações, plena em sua insipiência e nascença, cheia de
promessas que ainda não foram traídas e de potenciais
ainda não comprometidos. O mundo em que os potenciais
portadores de humanidade nascem e crescem é, ao que se
sabe, mais propenso a prender as asas do que a estimular
os supostos voadores a abri-Ias, e assim, na opinião de
Korczak, era apenas nas crianças que essa humanidade
podia ser encontrada, capturada e preservada (por algum
tempo, só por algum tempo!) intacta e ilesa.
Talvez fosse melhor mudar os costumes do mundo e tornar
nosso hábitat mais hospitaleiro à dignidade humana, de
modo que amadurecer não exigisse o comprometimento da
humanidade de uma criança. O jovem Henryk Goldszmit
compartilhava as esperanças do século em que nasceu e
acreditava que mudar os abomináveis hábitos do mundo
estava ao alcance dos seres humanos, sendo uma tarefa
viável e que ao mesmo tempo tendia a ser realizada. Mas
com o passar do tempo, à medida que as pilhas de vítimas e
os "danos colaterais" provocados tanto pelas más quanto
pelas mais nobres intenções atingiam dimensões
estratosféricas, e em que a necrose e a putrificação da
carne em que os sonhos tendiam a se transformar deixava
cada vez menos espaço à imaginação, essas esperanças
exaltadas foram sendo despidas de sua credibilidade. Janus
Korczak conhecia muito bem a desconfortável mentira que
Henryk Goldszmit praticamente ignorava: não pode haver
atalhos que conduzam a um mundo feito sob medida para a
dignidade humana, e ao mesmo tempo é improvável que o
"mundo realmente existente" construído dia a dia por
pessoas já espoliadas de sua dignidade e desacostumadas a
respeitar a das outras, possa algum dia ser refeito segundo
essa medida.
A este nosso mundo não se pode impor legalmente a
perfeição. Não se pode forçá-lo a adotar a virtude, mas
tampouco persuadi-lo a se comportar de modo virtuoso. Não
se pode fazer com que seja terno e atencioso para com os
seres humanos que o habitam, e ao mesmo tempo tão
adaptado aos seus sonhos de dignidade quanto idealmente
se desejaria que fosse. Mas você deve tentar. Você vai
tentar. Você o faria, de qualquer maneira, se fosse aquele
Janus Korczak inspirado em Henryk Goldszmit.
Mas como você tentaria? Um pouco como os antiquados
visionários utópicos que, não tendo conseguido tornar
quadrado o círculo da segurança e da liberdade na Grande
Sociedade,
transformaram-se
em
projetistas
de
comunidades controladas, shopping centers e parques
temáticos... No seu caso, protegendo a dignidade com que
cada ser humano nasce dos gatunos e falsários que tramam
roubá-la ou desvirtuá-la e mutilá-la. E você começaria pelo
trabalho perpétuo de protegê-la enquanto é tempo, durante
a infância dessa dignidade. Tentaria trancar o estábulo
antes que o cavalo fugisse ou fosse roubado.
Uma das formas de fazê-lo, aparentemente a mais razoável,
é abrigar as crianças dos eflúvios venenosos de um mundo
infectado e corrompido pela humilhação e a indignidade
humanas, barrar o acesso à lei da selva que começa
justamente do outro lado da porta do abrigo. Quando seu
orfanato se mudou do endereço anterior à guerra, em
Krochmalma, para o Gueto de Varsóvia, Korczak ordenou
que a porta de entrada permanecesse trancada e as janelas
do andar térreo fossem tapadas. Quando as deportações
para as câmaras de gás estavam se tornando uma certeza,
Korczak supostamente se opôs à idéia de fechar o orfanato
e
despachar
as
crianças
para
que
buscassem
individualmente a chance de escapar que algumas
poderiam (apenas poderiam) ter . Ele pode ter concluído
que não valeria correr o risco: uma vez fora do abrigo, as
crianças aprenderiam a temer, a humilhar-se e a odiar. Elas
perderiam o mais precioso dos valores — sua dignidade.
Uma vez privadas desse valor, qual a vantagem de
permanecerem vivas? O valor, o mais precioso dos valores
humanos, o atributo sine qua non de humanidade, é uma
vida de dignidade, não a sobrevivência a qualquer custo.
Spielberg poderia aprender alguma
Korczak, o homem, e Korczak, o filme.
coisa
com
Uma coisa que ele não sabia, ou não queria saber, ou não
queria admitir que sabia; algo sobre a vida humana e os
valores que a tornam digna de ser vivida. Uma coisa sobre a
qual ele demonstrou ignorância ou descaso em sua própria
narrativa da desumanidade, no filme recordista de bilheteria
A lista de Schindler, para o aplauso de nosso mundo em que
a dignidade tem pouca utilidade e a humilhação, grande
demanda, e que chegou a ver o propósito da vida em
sobreviver aos outros.
Sobreviver aos outros é o tema de A lista de Schindler;
sobreviver a qualquer custo e em qualquer condição, venha
o que vier, fazendo o que for preciso fazer. A sala de cinema
lotada irrompe em aplausos quando Schindler consegue
tirar seu mestre-de-obras de um trem pronto a partir para
Treblinka. Não importa que o trem não tenha sido impedido
de seguir e o resto dos passageiros dos vagões de gado vá
terminar sua jornada nas câmaras de gás. E os aplausos
surgem novamente quando Schindler recusa a oferta de
"outra judia" para substituir a "dele", "erradamente"
destinada aos fornos crematórios, e consegue "corrigir" "o
erro".
O direito do mais forte, mais astuto, engenhoso ou
ardiloso de fazer o possível para sobreviver ao mais
fraco e desafortunado é uma das lições mais
horripilantes do Holocausto.
Uma lição terrível e atemorizante, mas nem por isso
aprendida, apropriada, memorizada e aplicada com menos
avidez. Para ser adequada à adoção, essa lição deve, em
primeiro lugar, ser rigorosamente despida de todas as
conotações éticas, até a mais crua essência do jogo de
soma zero da sobrevivência. Viver significa sobreviver. O
mais forte vive. Quem ataca primeiro sobrevive. Desde que
você seja o mais forte, pode escapar impune, não importa o
que tenha feito ao fraco. O fato de que a desumanização
das vítimas desumaniza — devasta moralmente — seus
vitimizadores é desconsiderado como um detalhe irritante.
Quer dizer, se não tiver sido silenciosamente omitido. O que
conta é chegar ao topo e lá permanecer. Sobreviver —
manter-se vivo — é um valor aparentemente não
prejudicado nem maculado pela desumanidade de uma vida
dedicada à sobrevivência. Vale a pena persegui-lo por si
mesmo, por mais caro que isso saia para os derrotados e
por mais profundas e incorrigíveis que sejam as formas
como isso pode depravar e degradar os vitoriosos.
Essa horripilante lição do Holocausto, a mais desumana,
completa-se com um inventário das dores que se pode
infligir aos fracos a fim de afirmar a própria força. Capturar,
deportar, trancafiar em campos de concentração, ou
aproximar a situação angustiosa de toda a população do
modelo do campo de concentração, demonstrar a futilidade
da lei pela execução sumária de suspeitos, aprisionar sem
julgamento nem prazo de soltura, espalhar o terror que
aleatória e casualmente infligia tormentos aos montes — foi
amplamente comprovado que tudo isso serve efetivamente
à causa da sobrevivência e é, portanto, "racional".
Essa lista pode ser, e é, ampliada com o passar do tempo.
"Novos e aperfeiçoados" expedientes são testados e, caso
funcionem, acrescentados ao repertório — como demolir
casas isoladas ou distritos residenciais inteiros, extirpar
pomares de oliveiras, queimar ou destruir lavouras,
incendiar locais de trabalho e destruir de outras formas os
já miseráveis recursos de subsistência. Todas essas medidas
mostram uma tendência a se propelirem e exacerbarem por
si mesmas. À medida que cresce a lista de atrocidades, o
mesmo ocorre com a necessidade de aplicá-las de modo
cada vez mais resoluto para evitar não apenas que as
vítimas se façam ouvir, mas que se dê atenção a elas. E
conforme os velhos estratagemas se tornam rotina e o
horror que semearam entre seus alvos se dissipa, novos,
mais dolorosos e terríveis artifícios precisam ser procurados
febrilmente.
A vitimização dificilmente humaniza suas vítimas. Ser
vítima não garante um lugar nos píncaros da moral.
Numa carta pessoal em que fazia objeções ao meu exame
da possibilidade de romper a "cadeia cismogenética" que
tende a transformar vítimas em vitimizadores, Antonina
Zhelazkova, a etnóloga intrépida e singularmente perspicaz,
dedicada exploradora do aparentemente impenetrável barril
de pólvora étnico e de outras animosidades que são os
Bálcãs, escreveu:
Eu não aceito que as pessoas estejam em posição
de combater o impulso de se tornarem assassinas
depois de terem sido vítimas. É exigir demais das
pessoas comuns. É freqüente que a vítima se
transforme em carniceiro. O pobre homem, assim
como os pobres de espírito a quem se ajudou, passa
a odiá-lo ... porque eles desejam esquecer o
passado, a humilhação, a dor e o fato de terem
conseguido algo com a ajuda de alguém, por causa
da piedade de alguém, e não por si mesmos ...
Como escapar à dor e à humilhação? A forma
natural é matar ou humilhar seu algoz ou benfeitor.
Ou encontrar outra pessoa, mais fraca, para triunfar
sobre ela.
Tenhamos o cuidado de rejeitar delicadamente a
advertência de Zhelazkova. As condições contrárias à
humanidade comum parecem realmente insuperáveis. As
armas não falam, embora os sons dos seres humanos
falando pareçam uma resposta abominavelmente débil ao
zunido dos mísseis e ao ruído ensurdecedor dos explosivos.
A memória é uma bênção ambígua. Mais precisamente, é ao
mesmo tempo uma bênção e uma maldição lançada sobre
alguém. Pode "manter vivas" muitas coisas de valor
profundamente desigual para o grupo e seus vizinhos. O
passado é uma grande quantidade de eventos, e a memória
nunca retém todos eles. E o que quer que ela retenha ou
recupere do esquecimento nunca é reproduzido em sua
forma "prístina" (o que quer que isso signifique). O "passado
como um todo" e o passado "wie es ist eigentlich gewesen"
(como Ranke insinuou que deveria ser retomado pelos
historiadores), nunca é recapturado pela memória. E se o
fosse, a memória seria francamente um risco e não uma
vantagem para os vivos. Ela seleciona e interpreta — e o
que deve ser selecionado e como precisa ser interpretado é
um tema discutível, objeto de contínua disputa. Fazer
ressurgir o passado, mantê-lo vivo, só pode ser alcançado
mediante o trabalho ativo — escolher, processar, reciclar —
da memória.
Em A exigência ética, Logstrup manifestou uma visão
mais otimista das inclinações naturais humanas.
"É uma característica da vida humana que normalmente
encaremos uns aos outros com natural confiança", escreveu
ele. "Só em função de alguma circunstância especial
desconfiamos antecipadamente de um estranho... Em
circunstâncias normais, contudo, nós aceitamos a palavra
do estranho e não duvidamos dele até que tenhamos uma
razão particular para isso. Nunca suspeitamos da falsidade
de uma pessoa até que a tenhamos apanhado numa
mentira." (2)
Logstrup elaborou A exigência ética durante os oito anos
subseqüentes ao seu casamento com Rosalie Maria Pauly,
passados numa pequena e tranqüila paróquia da Ilha de
Funen. Com o devido respeito aos amigáveis e sociáveis
moradores de Aarhus, onde Logstrup viveria o restante de
seus dias ensinando teologia na universidade local, duvido
que ele pudesse ter concebido tais idéias caso tivesse se
estabelecido naquela cidade e confrontado diretamente as
realidades do mundo em guerra e sob ocupação, como um
membro ativo da resistência dinamarquesa.
As pessoas tendem a tecer suas memórias do mundo
utilizando o fio de suas experiências. Os membros da atual
geração podem achar artificial a imagem luminosa e alegre
de um mundo confiante e fiel — em profundo desacordo
com o que eles próprios aprendem diariamente e com o que
é insinuado pelas narrativas comuns da experiência humana
e recomendado pelas estratégias de vida que lhes são
apresentadas no dia-a-dia. Prefeririam reconhecer-se nos
atos e confissões dos personagens que aparecem na onda
mais recente de programas televisivos, altamente populares
e avidamente assistidos, tipo Big Brother, Survivor e The
Weakest Link. Eles passam uma mensagem bem diferente:
um estranho não é alguém em quem se deva confiar. A
série Survivor tem um subtítulo que diz tudo: "Não confie
em ninguém." Os lãs e adeptos dos "reality shows"
televisivos poderiam inverter o veredicto de Logstrup: "É
uma característica da vida humana que normalmente
encaremos uns aos outros com natural suspeita."
Esses espetáculos televisivos que tomaram milhões de
espectadores de assalto e imediatamente capturaram sua
imaginação eram ensaios públicos sobre a descartabilidade
dos seres humanos. Traziam prazer e advertência juntos,
com a mensagem de que ninguém é indispensável,
ninguém tem o direito a sua parte dos frutos de um esforço
conjunto apenas por ter dado alguma contribuição ao seu
crescimento — muito menos por ser simplesmente um
membro da equipe. A vida é um jogo duro para pessoas
duras, dizia a mensagem. Cada jogo começa do zero,
méritos passados não contam, você tem tanto valor quanto
os resultados de seu último duelo. Cada jogador, a cada
momento, está por conta própria, e para progredir (sem
falar em chegar ao topo!) deve primeiro colaborar na
exclusão de muitas outras pessoas ávidas por sobrevivência
e sucesso que estão bloqueando o caminho — mas apenas
para superar, uma por uma, todas aquelas com quem
tivemos de cooperar, e abandoná-las, derrotadas e inúteis.
Os outros são, em primeiro lugar e acima de tudo,
competidores, tramando como qualquer competidor,
cavando buracos, preparando emboscadas, torcendo para
que venhamos a tropeçar e cair. Os trunfos que ajudam os
vencedores a superar a concorrência e emergir triunfantes
da batalha impiedosa são de muitos tipos, variando da
autoconfiança ruidosa à humilde auto-aniquilação. E no
entanto, independente do estratagema empregado, dos
trunfos dos sobreviventes e das deficiências dos
perdedores, a história da sobrevivência tende a se
desenvolver da mesma e monótona maneira: num jogo de
sobrevivência, confiança, compaixão e clemência (os
atributos supremos de Logstrup) são fatores suicidas. Se
você não for mais duro e menos escrupuloso do que todos
os outros, será liquidado por eles, com ou sem remorso.
Estamos de volta à triste verdade do mundo darwiniano: é o
mais apto que invariavelmente sobrevive. Ou melhor, a
sobrevivência é a derradeira prova de aptidão.
Se os jovens de nosso tempo fossem leitores de livros, e
particularmente de livros antigos que não se encontram nas
atuais listas de mais vendidos, tenderiam a concordar com a
amarga e sombria imagem do mundo pintada por Leon
Shestov, eLivros russo e filósofo da Sorbonne: "Homo
homini lupus é uma das máximas mais inabaláveis da moral
eterna. Em cada um de nossos vizinhos tememos um lobo...
Somos tão pobres, tão fracos, tão facilmente arruináveis e
destrutíveis! Como podemos deixar de ter medo? ...
Enxergamos o perigo, apenas o perigo..." (3) Eles insistiriam
— como o fez Shestov e como se tornou senso comum,
graças a programas do tipo Big Brother — em afirmar que
este é um mundo duro, feito para pessoas duras: um mundo
de indivíduos relegados a se basearem unicamente em seus
próprios ardis, tentando ultrapassar e superar uns aos
outros. Ao conhecer um estranho você precisa em primeiro
lugar de vigilância, e em segundo e terceiro lugares de
vigilância. Aproximar-se, colocar-se ombro a ombro e
trabalhar em equipe fazem muito sentido enquanto o
ajudam a avançar em seu próprio caminho. Mas perdem a
razão de ser quando não trazem mais benefícios, ou quando
estes — esperada ou apenas possivelmente — são menores
que os obtidos evitando-se compromissos e cancelando-se
obrigações.
Os jovens que estão nascendo, crescendo e
amadurecendo nesta virada do século XX para o XXI
também achariam familiar, talvez até auto-evidente,
a descrição de Anthony Giddens do "relacionamento
puro" (4).
O "relacionamento puro" tende a ser, nos dias de hoje, a
forma predominante de convívio humano, na qual se entra
"pelo que cada um pode ganhar" e se "continua apenas
enquanto ambas as partes imaginem que estão
proporcionando a cada uma satisfações suficientes para
permanecerem na relação".
O atual "relacionamento puro", na descrição de Giddens,
não
é, como o casamento um dia foi, uma "condição
natural" cuja durabilidade possa ser tomada como
algo garantido, a não ser em circunstâncias
extremas. É uma característica do relacionamento
puro que ele possa ser rompido, mais ou menos ao
bel-prazer, por qualquer um dos parceiros e a
qualquer momento. Para que uma relação seja
mantida,
é
necessária
a
possibilidade
de
compromisso duradouro. Mas qualquer um que se
comprometa sem reservas arrisca-se a um grande
sofrimento no futuro, caso ela venha a ser
dissolvida.
O compromisso com outra pessoa ou com outras pessoas,
em particular o compromisso incondicional e certamente
aquele do tipo "até que a morte nos separe", na alegria e na
tristeza, na riqueza ou na pobreza, parece cada vez mais
uma armadilha que se deve evitar a todo custo.
Sobre as coisas que aprovam, os jovens de língua inglesa
dizem "cool". Uma palavra adequada: independentemente
das outras características que os atos e interações humanos
possam ter, não se deve admitir que a interação esquente e
particularmente que permaneça quente: é boa enquanto
continua cool, e ser cool significa que é boa. Se você sabe
que seu parceiro pode preferir abandonar o barco a
qualquer momento, com ou sem a sua concordância (tão
logo ache que você perdeu seu potencial como fonte de
deleite, conservando poucas promessas de novas alegrias,
ou apenas porque a grama do vizinho parece mais verde),
investir seus sentimentos no relacionamento atual é sempre
um passo arriscado. Investir fortes sentimentos na parceria
e fazer um voto de fidelidade significa aceitar um risco
enorme: isso o torna dependente de seu parceiro (embora
devamos observar que essa dependência, que agora está se
tornando rapidamente um termo pejorativo, é aquilo em
que consiste a responsabilidade moral pelo Outro — tanto
para Logstrup quanto para Levinas).
Para esfregar sal na ferida, a dependência — devido à
"pureza" de seu relacionamento — não pode nem precisa
ser recíproca. Assim, você está amarrado, mas seu parceiro
continua livre para ir e vir, e nenhum tipo de vínculo que
possa manter você no lugar é suficiente para assegurar que
ele não o faça. O conhecimento amplamente compartilhado
— na verdade, um lugar-comum — de que todos os
relacionamentos são "puros" (ou seja, frágeis, fissíparos,
tendentes a não durar mais do que a conveniência que
trazem, e portanto sempre "até segunda ordem")
dificilmente seria um solo em que a confiança pudesse
fincar raízes e florescer.
Parcerias frouxas e eminentemente revogáveis substituíram
o modelo da união pessoal "até que a morte nos separe"
que ainda se mantinha (mesmo que mostrando um número
crescente de fissuras desconcertantes) na época em que
Logstrup registrou sua crença na "naturalidade" e
"normalidade" da confiança e anunciou seu veredicto de
que era a suspensão ou supressão da confiança, e não o seu
dom incondicional e espontâneo, que constituía uma
exceção causada por circunstâncias extraordinárias que,
portanto, exigiam uma explicação.
A fraqueza, a debilidade e a vulnerabilidade das parcerias
pessoais não são, contudo, as únicas características do
atual ambiente de vida a solaparem a credibilidade das
hipóteses de Logstrup. Uma inédita fluidez, fragilidade e
transitoriedade em construção (a famosa "flexibilidade")
marcam todas as espécies de vínculos sociais que, uma
década atrás, combinaram-se para constituir um arcabouço
duradouro e fidedigno dentro do qual se pôde tecer com
segurança uma rede de interações humanas. Elas afetam
particularmente, e talvez de modo mais seminal, o emprego
e as relações profissionais. Com o desaparecimento da
demanda por certas habilidades num tempo menor do que o
necessário para adquiri-las e dominá-las; com credenciais
educacionais perdendo valor em relação ao custo anual de
sua aquisição ou mesmo transformando-se em "eqüidade
negativa" muito antes de sua "data de vencimento"
supostamente vitalícia; com empregos desaparecendo sem
aviso, ou quase; e com o curso da existência fatiado numa
série de projetos singulares cada vez menores, as
perspectivas de vida crescentemente se parecem com as
convoluções aleatórias de projéteis inteligentes em busca
de alvos esquivos, efêmeros e móveis, e não com a
trajetória pré-planejada, predeterminada e previsível de um
míssil balístico.
O mundo de hoje parece estar conspirando contra a
confiança.
A confiança deve continuar sendo, como sugere Knud
Logstrup, um derramamento natural da "expressão
soberana da vida", mas, uma vez posta em curso, agora
procura em vão por um lugar para lançar âncora. A
confiança foi condenada a uma vida cheia de frustração.
Pessoas (sozinhas, individualmente ou em conjunto)
empresas, partidos, comunidades, grandes causas ou
padrões de vida investidos com a autoridade de guiar nossa
existência freqüentemente deixam de compensar a
devoção. De qualquer forma, é raro serem modelos de
coerência e continuidade a longo prazo. Dificilmente há um
único ponto de referência sobre o qual se possa concentrar
a atenção de modo fidedigno e seguro, para que os
desorientados possam ser eximidos do fatigante dever da
vigilância constante e das incessantes retrações de passos
dados ou pretendidos. Não se dispõe de pontos de
orientação que pareçam ter uma expectativa de vida mais
longa do que os próprios necessitados de orientação, por
mais curtas que possam ser suas existências físicas. A
experiência individual aponta obstinadamente para o eu
como o eixo mais provável da duração e da continuidade
procuradas com tanta avidez.
Em nossa sociedade supostamente adepta da reflexão, não
é provável que se reforce muito a confiança. Um exame
ponderado dos dados fornecidos pelas evidências da vida
aponta na direção aposta, revelando repetidamente a
perpétua inconstância das regras e a fragilidade dos laços.
Mas será que isso significa que a decisão de Logstrup de
investir as esperanças de moralidade na espontânea
tendência endêmica à confiança nos outros teria sido
invalidada pela incerteza endêmica que satura o mundo de
hoje?
Poderíamos dizer isso — não fosse pelo fato de que a visão
segundo a qual os impulsos morais nascem da reflexão
nunca foi a de Logstrup. Pelo contrário: de seu ponto de
vista, a esperança de moralidade caracterizava-se
precisamente por sua espontaneidade pré-reflexiva: "A
compaixão é espontânea porque a menor interrupção, a
menor maquinação, a menor diluição para que sirva a
algum outro propósito provocam sua destruição total — na
verdade, transformam-na em seu oposto, a desumanidade."
(5)
Emmanuel Levinas é conhecido por insistir em que a
pergunta "por que eu deveria ser ético" (ou seja, pedindo
argumentos do tipo "o que ganho com isso?", "o que essa
pessoa me fez para justificar minha atenção?" ou "será que
outra pessoa não poderia fazer isso em meu lugar?") não é
o ponto de partida da conduta moral, mas sim um sinal de
sua morte, da mesma forma que toda amoralidade começou
com a pergunta de Caim: "Serei eu o protetor de meu
irmão?" Logstrup parece concordar.
"A necessidade da moral' (essa expressão já é um paradoxo,
pois aquilo que responde a uma "necessidade", não importa
o que seja, é algo diferente da moral) ou simplesmente sua
"conveniência"
não
podem
ser
estabelecidas
discursivamente, muito menos provadas. A moral nada mais
é que uma manifestação de humanidade inatamente
estimulada — não "serve" a propósito algum e com toda
certeza não é guiada pela expectativa de lucro, conforto,
glória ou auto-engrandecimento. É verdade que ações
objetivamente boas — proveitosas e úteis — têm sido
muitas vezes realizadas em função do cálculo de lucro do
agente, seja obter a graça divina, ganhar o respeito público
ou livrar-se da crueldade demonstrada em outras ocasiões.
Esses atos, porém, não podem ser classificados como
genuinamente morais precisamente por terem sido assim
motivados.
Nos atos morais, insiste Logstrup, "exclui-se um motivo
ulterior". A expressão espontânea da vida é radical
precisamente graças à "ausência de motivos ulteriores" —
tanto amorais quanto morais. Essa é mais uma razão pela
qual a demanda ética, essa pressão "objetiva" para que
sejamos éticos, emanada do próprio fato de se estar vivo e
compartilhando o planeta com outros, é e deve ser
silenciosa. Já que a "obediência à demanda ética" pode
facilmente transformar-se (ser deformada e distorcida) num
motivo de conduta, essa demanda está em sua melhor
forma quando é esquecida e não se pensa nela: sua
radicalidade "consiste em exigir o que e supérfluo" (6). "A
imediação do contato humano é sustentada pelas
expressões imediatas da vida" (7) e não precisa de outros
apoios, nem de fato os tolera.
Em termos práticos, ela significa que, não importa o quanto
um ser humano possa ressentir-se por ter sido abandonado
(em última instância) à sua própria deliberação e
responsabilidade, é precisamente esse abandono que
contém a esperança de um convívio moralmente fecundo. A
esperança — não a certeza.
A espontaneidade e a soberania das expressões de vida não
respondem pela conduta resultante como sendo a escolha
eticamente adequada e louvável entre o bem e o mal. A
questão, porém, é que erros crassos e escolhas acertadas
surgem da mesma condição — assim como os covardes
impulsos de correr em busca de proteção que as ordens
peremptórias obrigatoriamente provêem e a coragem de
aceitar a responsabilidade. Sem se preparar para a
possibilidade de fazer escolhas erradas, é difícil haver uma
forma de perseverar na busca da escolha certa. Longe de
ser uma grande ameaça à moral (e logo abominável para os
filósofos éticos), a incerteza é a terra natal da pessoa ética
e o único solo em que a moral pode brotar e florescer.
Mas, como Logstrup prontamente nos assinala, é a
"imediação do contato humano" que é "sustentada pelas
expressões imediatas de vida". Presumo que a conexão e o
condicionamento mútuo ajam nos dois sentidos. A
"imediação" parece desempenhar no pensamento de
Logstrup um papel semelhante ao da "proximidade" nos
textos de Levinas. As "expressões imediatas da vida" são
disparadas pela proximidade, ou pela presença imediata de
outro ser humano — fraco e vulnerável, sofrendo e
precisando de auxílio. Somos desafiados pelo que vemos. E
desafiados a agir — a ajudar, defender, trazer alívio, curar
ou salvar.
"A expressão soberana da vida" é outro "fato cru" —
tal como a "responsabilidade" de Levinas ou mesmo a
"demanda ética" de Logstrup.
Ao contrário da demanda ética, eternamente à espera,
inaudível, inexaurida, irrealizada e talvez, a princípio,
irrealizável e inexaurível, a expressão soberana da vida
sempre se realiza e se conclui prontamente — embora não
por escolha, mas "de modo espontâneo, sem que se exija"
(8). É, podemos presumir, essa condição "sem escolha" das
expressões da vida que explica a imputação de "soberania".
"A expressão soberana da vida" pode ser vista como outro
nome para o Befindlichkeit ("estar situado", noção
essencialmente
ontológica)
de
Martin
Heidegger,
combinado com seu Stimmung ("estar sintonizado", reflexo
epistemológico do "estar situado"). (9) Como Heidegger
insinuou, antes que se possa iniciar qualquer escolha já
estamos imersos no mundo e sintonizados com essa
imersão — armados de Vorurteil, Vorhabe, Vorsicht, Vorgriff,
todas essas capacidades com o prefixo "vor" ("pré") que
antecedem todo o conhecimento e constituem a sua própria
possibilidade. Mas o Stimmung heideggeriano relaciona-se
intimamente com o das Man — o "ninguém, ao qual toda a
nossa existência ... já se rendeu". "No início, eu não sou 'eu'
no sentido do meu próprio eu. Para começo de conversa, ser
é Man e tende a permanecer assim." Esse estado de "Ser
como das Man" é, em sua essência, o estado da
conformidade an sich, inconsciente de si mesma como
conformidade (e que portanto não deve ser confundida com
a escolha soberana da solidariedade). Na medida em que
aparece sob o disfarce do das Man, o Mitsein ("Ser Com") é
uma fatalidade, não um destino nem uma vocação. E assim
é a conformidade com a rendição ao das Man: deve primeiro
ser desmascarada como conformidade antes de ser
rejeitada e combatida no ato crítico da auto-afirmação, ou
abraçada entusiasticamente como uma estratégia e um
propósito de vida.
Por outro lado, ao insistir em sua "espontaneidade",
Logstrup sugere essa condição de "an sich" para as
expressões de vida, reminiscente daquela do Befindlichkeit
e do Stimmung. Ao mesmo tempo, contudo, parece
identificar a expressão soberana da vida com a rejeição
daquela conformidade "primeva", "naturalmente dada" (ele
tem fortes objeções à "absorção" das expressões soberanas
pela conformidade, sua "submersão numa vida em que um
indivíduo imita outro"), embora não identificasse nenhuma
delas com o ato original da auto-emancipação, da ruptura
do escudo protetor da condição an sich. Logstrup insiste que
"não é precipitado concluir que a expressão soberana da
vida vai prevalecer" (10).
A expressão soberana tem um adversário poderoso — a
expressão "constrangida", induzida externamente e
portanto heterônoma em vez de autônoma, ou ainda (numa
interpretação provavelmente mais afinada com a intenção
de Logstrup) uma expressão cujos motivos (já representados, ou melhor, desvirtuados, como causas) se
projetam sobre os agentes externos.
Exemplos da expressão "constrangida" são designados
como ofensa, ciúme e inveja. Em cada caso, um traço
marcante da conduta é o auto-engano destinado a ocultar
as fontes genuínas da ação. Por exemplo, o indivíduo "tem
uma opinião muito elevada de si mesmo para tolerar a idéia
de ter agido erradamente, e assim apela à ofensa para
desviar a atenção de seu próprio deslize, o que consegue
identificando-se com a parte prejudicada ... Obtendo-se
satisfação em ser a parte prejudicada, deve-se inventar
erros para alimentar a autocondescendência." (10) A
natureza autônoma da ação é, portanto, suprimida — é a
outra parte, acusada da má conduta original, do delito que
deu origem a tudo, apresentada como o verdadeiro ator do
drama. O eu permanece, assim, totalmente do lado
receptor. Sofre as ações dos outros em vez de ser um ator
por direito próprio.
Uma vez abraçada, tal visão parece propelir-se e reforçar-se
por si mesma. Para manter a credibilidade, o ultraje
imputado à outra parte deve ser mais assustador e acima
de tudo menos curável ou redimível, e os conseqüentes
sofrimentos das vítimas devem ser declarados ainda mais
abomináveis e dolorosos, de modo que a vítima
autodeclarada possa prosseguir justificando medidas cada
vez mais duras "em justa resposta" à ofensa cometida ou
"em defesa" contra ofensas ainda por cometer. As ações
"constrangidas" precisam negar constantemente sua
autonomia. É por essa razão que elas constituem o
obstáculo mais radical à admissão da soberania do eu e a
que este atue de maneira consoante com tal admissão.
A superação das restrições auto-impostas mediante o
desmascaramento e a desvalidação do auto-engano sobre o
qual elas se baseiam emerge assim como condição
preliminar e indispensável para dar asas à expressão
soberana da vida — uma expressão que se manifesta, em
primeiro lugar e acima de tudo, na confiança, na
misericórdia e na compaixão.
Durante a maior parte da história humana, a
"imediação da presença" se superpôs à potencial e
viável "imediação da ação".
Nossos ancestrais dispunham de poucos instrumentos (se é
que chegavam a dispor de algum) que os capacitassem a
agir efetivamente a grande distância, — mas dificilmente se
expunham à visão de um sofrimento humano que fosse
distante demais para ser alcançado pelos instrumentos de
que dispunham. A totalidade das escolhas morais com que
nossos ancestrais se confrontavam poderia ser quase
totalmente encerrada dentro do espaço limitado da
imediação, dos encontros face a face e da interação. A
escolha entre o bem e o mal, quando enfrentada, podia
assim ser inspirada, influenciada e, em princípio, até mesmo
controlada pela "expressão soberana da vida".
Hoje em dia, porém, o silêncio do mandado ético é mais
ensurdecedor que nunca. Esse mandado instiga e dirige
secretamente as "expressões soberanas da vida". Mas ainda
que elas tenham mantido sua imediação, os objetos que as
desencadeiam e atraem navegaram para longe, muito além
do espaço da proximidade/ imediação. Somando-se ao que
podemos ver a olho nu (sem ajuda) em nossa vizinhança
imediata, agora estamos expostos diariamente ao
conhecimento "mediado" da miséria e da crueldade
distantes. Todos agora temos televisão; mas poucos de nós
têm acesso aos meios de teleação.
Se a miséria que podíamos não apenas ver, mas também
mitigar ou curar, nos lançasse numa situação de escolha
moral capaz de ser administrada pela "expressão soberana
da vida" (mesmo que isso fosse dolorosamente difícil), o
fosso crescente entre aquilo de que (indiretamente) nos
tornamos conscientes e aquilo que podemos (diretamente)
influenciar eleva a incerteza que acompanha todas as
escolhas morais a alturas sem precedentes, nas quais
nossos dotes éticos não estão acostumados e talvez nunca
sejam capazes de operar.
A partir dessa dolorosa percepção de impotência, talvez
insuportável, ficamos tentados a correr em busca de abrigo.
A tentação de converter em "inatingível" o que é "difícil de
administrar" é constante, e crescente...
"Quanto mais nos destacamos de nossas vizinhanças
imediatas, mais dependemos da vigilância desse
ambiente ... Os lares de muitas áreas urbanas do
mundo agora existem para proteger seus habitantes,
não para integrar as pessoas a suas comunidades",
observam Gumpert e Drucker. (12)
"À medida que os moradores ampliam seus espaços de
comunicação para a esfera internacional, simultaneamente
conduzem suas casas para longe da vida pública por meio
de infra-estruturas de segurança cada vez mais 'inteligentes
—, comentam Graham e Marvin. (13) "Virtualmente todas as
cidades do mundo começam a apresentar espaços e zonas
poderosamente conectadas a outros espaços 'valorizados',
cruzando a paisagem urbana e as distâncias nacionais,
internacionais e até mesmo globais. Ao mesmo tempo,
porém, muitas vezes há em tais lugares um palpável e
crescente senso de desconexão local em relação a áreas e
pessoas
fisicamente
próximas,
mas
social
e
economicamente distantes." (14)
O produto excedente da nova extraterritorialidademediante-a-conectividade
dos
espaços
urbanos
privilegiados, habitados e usados pela elite global são as
áreas desconectadas e abandonadas — as "alas fantasmas"
de Michael Schwarzer, onde "os sonhos foram substituídos
por pesadelos e o perigo e a violência são mais banais do
que em outros lugares" (15). Para manter as distâncias
intransponíveis e afastar os perigos de vazamento e
contaminação da pureza regional, os instrumentos
acessíveis são impor a tolerância zero e exilar os sem-teto
dos espaços em que podem ganhar a vida (mas nos quais
também se fazem atrevida e exasperantemente visíveis)
para outros, afastados, nos quais não podem fazer nem uma
coisa nem outra.
Tal como sugerido pela primeira vez por Manuel Castells, há
uma crescente polarização e uma ruptura de comunicação
ainda mais completa entre os mundos em que vivem as
duas categorias de residentes urbanos:
O espaço da camada superior é geralmente
conectado à comunicação global e a uma ampla
rede de intercâmbio, aberta a mensagens e
experiências que abrangem o mundo inteiro. Na
outra extremidade do espectro, redes locais
segmentadas, freqüentemente de base étnica,
apoiam-se em sua identidade como o mais valioso
recurso para defender seus interesses e, em última
instância, o seu ser. (16)
A imagem que emerge dessa descrição é de dois mundos
segregados e distintos. Só o segundo deles é
territorialmente circunscrito e pode ser capturado nas
malhas das noções geográficas ortodoxas, mundanas e
terra a terra. Os que vivem no primeiro desses dois mundos
podem estar, como os outros, "no lugar", mas não são "do
lugar" — decerto não espiritualmente, mas com muita
freqüência tampouco fisicamente, quando é seu desejo.
As pessoas da "camada superior" não pertencem ao lugar
que habitam, pois suas preocupações se situam (ou melhor,
flutuam) alhures. Pode-se imaginar que, além de serem
deixadas sós e portanto livres para se dedicarem totalmente
a seus passatempos, e tendo assegurados os serviços
necessários para suas necessidades e confortos do dia-a-dia
(como quer que os definam), elas não têm outros interesses
na cidade em que se localizam as suas residências. A
população urbana não é — como costumava ser para os
proprietários de fábricas e os comerciantes de artigos de
consumo e de idéias de outrora — seu campo de pastagem,
a fonte de sua riqueza ou um bem sob sua custódia,
cuidado e responsabilidade. Portanto eles estão, em
conjunto, despreocupados em relação aos assuntos da "sua"
cidade, apenas uma localidade entre muitas, todas elas
pequenas e insignificantes do ponto de vista do ciberespaço
— seu lar genuíno, ainda que virtual.
O mundo em que vive a outra camada de moradores da
cidade, "inferior", é o exato oposto do primeiro. Define-se
sobretudo por ser isolado daquela rede mundial de
comunicação pela qual as pessoas da "camada superior" se
conectam e com a qual suas vidas se sintonizam. Os
habitantes urbanos da camada inferior estão "condenados a
permanecerem locais" — e portanto se espera, e deve-se
esperar, que sua atenção, repleta de descontentamentos,
sonhos e esperanças, se concentre nos "assuntos locais".
Para eles, é dentro da cidade que habitam que a batalha
pela sobrevivência e por um lugar decente no mundo é
desencadeada, travada, por vezes ganha, mas geralmente
pedida.
O desligamento da nova elite global em relação a seus
antigos engajamentos com o populus local e o crescente
hiato entre os espaços vivos/vividos dos que se separaram e
dos que foram deixados para trás é comprovadamente o
mais seminal de todos os afastamentos sociais, culturais e
políticos associados à passagem do estado "sólido" para o
estado "líquido” da modernidade.
Há muita verdade, e nada além da verdade, no
quadro acima esboçado. Mas não toda a verdade.
Das partes da verdade que estão faltando ou foram
subestimadas, a principal é aquela que, mais que qualquer
outra, responde pela característica mais vital (e
provavelmente mais influente a longo prazo) da vida urbana
contemporânea: a íntima interação entre as pressões
globalizantes e o modo como as identidades locais são
negociadas, construídas e reconstruídas.
É um erro grave localizar os aspectos "globais" e "locais"
das condições de existência e da política de vida
contemporâneas em duas esferas distintas que só se
comunicam marginal e ocasionalmente, como a opção por
sair, feita pela "camada superior", em última análise
indicaria. Em estudo recentemente publicado, Michael Peter
Smith desaprova a visão (sugerida, em sua opinião, por
David Harvey ou John Friedman, entre outros) que opõe
"uma lógica dinâmica, mas desenraizada, dos fluxos
econômicos globais [a] uma imagem estática do lugar e da
cultura local'; agora "valorizados" como o "locus da
existência" do "estar no mundo"" Na opinião do próprio
Smith, "longe de refletir uma estática ontologia do 'ser' ou
da 'comunidade' as localidades são construções dinâmicas
'em formação’”.
Com efeito, a linha que estabelece a separação entre o
espaço abstrato ("algum lugar em lugar nenhum") dos
operadores globais e o espaço a nosso alcance, polpudo,
tangível, sumamente "aqui e agora" dos habitantes "locais",
só pode ser traçada com facilidade no mundo etéreo da
teoria. Nele, os conteúdos emaranhados e entrelaçados dos
mundos humanos são, primeiramente "esticados" e, em
seguida, organizados e armazenados, cada qual no seu
próprio compartimento, em beneficio da inteligibilidade. As
realidades da vida urbana, porém, destroem essas divisões
nítidas. Os elegantes modelos de vida na cidade e as
oposições agudas exibidas na sua construção podem
proporcionar grande satisfação intelectual aos formuladores
de teorias, mas pouca orientação prática aos planejadores
urbanos, e ainda menos apoio aos habitantes das cidades
em sua luta contra os desafios de viver nelas.
Os verdadeiros poderes que moldam as condições
sob as quais todos nós agimos hoje em dia fluem num
espaço global, enquanto nossas instituições de ação
política permanecem, em seu conjunto, presas ao
chão; elas são, tal como antes, locais.
Por continuarem principalmente locais, as agências políticas
que operam no espaço urbano tendem, fatalmente, a ser
atormentadas por uma insuficiência de poder de ação, e
particularmente de ação efetiva e soberana, no palco em
que se desenrola o drama da política. Outro resultado,
porém, é a escassez de política no ciberespaço
extraterritorial, o playground dos poderes.
Em nosso mundo globalizante, a política tende a ser
crescente, apaixonada e conscientemente local. Despejada
do ciberespaço, ou tendo o acesso a ele negado, a política
recua e repercute sobre os assuntos que estão "ao alcance",
sobre questões locais e relações de vizinhança. Para a
maioria de nós, durante a maior parte do tempo, esses
parecem ser os únicos temas em relação aos quais
podemos "fazer alguma coisa" influenciar, corrigir,
aperfeiçoar, redirecionar. É somente nas questões locais que
nossa ação ou inação "faz diferença", enquanto para as
outras, reconhecidamente supra-locais, "não há alternativa"
(ou pelo menos é o que repetem nossos líderes políticos e
todas as "pessoas que estão por dentro"). Chegamos a
suspeitar que, dados os meios e recursos miseravelmente
inadequados de que dispomos, as coisas assumirão seu
próprio curso independente daquilo que fazemos ou
poderíamos, com sensatez, imaginar fazer.
Mesmo assuntos com fontes e causas indubitavelmente
globais, remotas e recônditas só ingressam no domínio das
preocupações políticas por meio de suas ramificações e
repercussões locais. A poluição do ar ou dos suprimentos de
água transforma-se em assunto político quando um aterro
de lixo tóxico é instalado na porta ao lado, no "nosso
jardim", numa proximidade de nossa casa que é, ao mesmo
tempo, de uma intimidade assustadora e estimulantemente
"a nosso alcance" A comercialização progressiva dos temas
de saúde, obviamente um efeito da desabrida caça aos
lucros
empreendida
pelos
gigantes
farmacêuticos
supranacionais, entra no panorama político quando se
derruba um posto de saúde ou quando os asilos param e
sanatórios locais são desativados. Quem teve de lidar com
os danos causados pelo terrorismo global foram os
moradores de uma cidade, Nova Iorque, assim como foram
as câmaras e prefeitos de outras cidades que tiveram de
assumir a responsabilidade pela proteção da segurança
individual de seus habitantes, vista agora como vulnerável
diante de forças entrincheiradas muito além do alcance de
qualquer municipalidade. A devastação global dos modos de
subsistência e o desarraigamento de populações há muito
estabelecidas entram no horizonte da ação política por meio
de pitorescos "migrantes econômicos" entupindo ruas que
antes pareciam tão uniformes...
Para resumir uma longa história: as cidades se tornaram
depósitos de lixo para problemas gerados globalmente. Os
moradores das cidades e seus representantes eleitos
tendem a ser confrontados com uma tarefa que nem por
exagero de imaginação seriam capazes de cumprir: a de
encontrar soluções locais para contradições globais.
Daí o paradoxo, observado por Castells, de "políticas cada
vez mais locais num mundo estruturado por processos cada
vez mais globais"* "Houve uma produção de significado e
de identidade: meu bairro, minha comunidade, minha
cidade, minha escola, minha árvore, meu rio, minha praia,
minha capela, minha paz, meu meio ambiente." "Indefesas
diante do furacão global, as pessoas se agarraram a si
mesmas."" Observe-se que, quanto mais estiverem
"agarradas a si mesmas", mais indefesas tenderão a ficar
"diante do furacão global", assim como mais desamparadas
ao determinarem os significados e identidades locais, e
portanto ostensivamente seus — para grande alegria dos
operadores globais, que não têm motivos para temer os
indefesos.
Como Castells insinua em outro texto, a criação do "espaço
dos fluxos" estabelece uma nova hierarquia (global) de
dominação mediante a ameaça de desengajamento. O
"espaço dos fluxos" pode "escapar ao controle de qualquer
localidade", enquanto (e porque!) "o espaço dos lugares é
fragmentado, localizado, e portanto crescentemente
destituído de poder diante da versatilidade do espaço dos
fluxos. A única chance de resistência das localidades
consiste em recusar direitos de propriedade a esses fluxos
esmagadores — apenas para vê-los atracar na localidade
vizinha, provocando o desvio e a marginalização de
comunidades rebeldes" (19).
A política local — e em particular a política urbana —
tornou-se desesperadamente sobrecarregada, muito além
de sua capacidade de carga/desempenho. Agora espera-se
que alivie as conseqüências da globalização descontrolada
usando meios e recursos que essa mesmíssima globalização
tornou lamentavelmente inadequados.
Em nosso mundo em rápido processo de globalização,
ninguém é um "operador global" puro e simples. O
máximo que os membros da elite internacional
globalmente influente podem conseguir é ampliar sua
esfera de mobilidade.
Se as coisas se tornam desconfortavelmente quentes e o
espaço em torno de suas residências urbanas se mostra
muito perigoso e difícil de administrar, eles podem se
mudar para outro lugar — opção de que não dispõem seus
vizinhos (fisicamente) próximos. Essa opção de escapar aos
desconfortos locais lhes dá uma independência com que os
outros podem apenas sonhar, assim como o luxo de uma
indiferença arrogante que estes não se podem permitir. Seu
compromisso de "colocar em ordem os assuntos da cidade"
tende a ser consideravelmente menos integral e
incondicional que o compromisso daqueles que têm menos
liberdade para romper os vínculos locais de modo unilateral.
Mas isso não significa que, na busca pelo "sentido e
identidade" de que eles necessitam e anseiam de modo não
menos intenso do que as outras pessoas, os membros da
elite globalmente conectada possam desconsiderar o lugar
em que vivem e trabalham. Como todos os outros homens e
mulheres, eles são parte da paisagem humana, e nela estão
registradas as suas vacilantes aspirações existenciais. Como
operadores globais, podem perambular pelo ciberespaço.
Mas como agentes humanos estão, dia após dia, confinados
ao espaço físico em que operam, ao ambiente
preestabelecido e continuamente reprocessado no curso de
suas lutas por sentido e identidade. A experiência humana é
formada e compilada, a partilha da vida é administrada, seu
significado é concebido, absorvido e negociado em torno de
lugares. E é nos lugares e a partir deles que os impulsos e
desejos humanos são gerados e incubados, que vivem na
esperança de se realizarem, que se arriscam a se frustrar e,
na verdade, com muita freqüência, se frustram.
As cidades contemporâneas são campos de batalha em que
os poderes globais e os significados e identidades
obstinadamente locais se encontram, se chocam, lutam e
buscam um acordo que se mostre satisfatório ou pelo
menos tolerável — um modo de coabitação que encerre a
esperança de uma paz duradoura, mas que, em geral, se
revela um simples armistício, um intervalo para reparar as
defesas avariadas e redistribuir as unidades de combate. É
esse confronto, e não algum fator singular, que coloca em
movimento e orienta a dinâmica da cidade "líquidomoderna".
E que não haja equívocos: qualquer cidade, ainda que nem
todas no mesmo grau. Em recente viagem a Copenhague,
Michael Peter Smith registrou que, em apenas uma hora de
caminhada, passou "por pequenos grupos de imigrantes
turcos, africanos e do Oriente Médio", observou "diversas
mulheres árabes com e sem véu" leu "anúncios em várias
línguas não-européias" e teve "uma conversa interessante
com um barman irlandês, num pub inglês, em frente ao
jardim Tivoli." (20) Essas experiências de campo se
mostraram valiosas, diz Smith, na palestra sobre conexões
transnacionais que ele apresentou naquela cidade na
mesma semana, "quando um debatedor insistiu em afirmar
que o transnacionalismo era um fenômeno que podia ser
aplicado a 'cidades globais, como Nova Iorque ou Londres,
mas tinha pouca importância em lugares mais isolados
como Copenhague".
A história recente das cidades norte-americanas está
cheia de viradas de 180 graus — mas ela é
plenamente caracterizada pelas preocupações com
proteção e segurança.
O que aprendemos, por exemplo, com o estudo de John
Hannigan (21) é que na segunda metade do século xx um
súbito horror ao crime oculto nas esquinas sombrias das
áreas centrais tomou de assalto os habitantes das regiões
metropolitanas dos Estados Unidos, provocando uma "fuga
branca" dos centros das cidades — embora poucos anos
antes essas mesmas áreas tivessem se tornado ímãs
poderosos para multidões ávidas por divertimento de
massa, que só essas zonas, e não outras menos
densamente povoadas, podiam oferecer.
Não importa se o medo do crime tinha bases sólidas ou se o
súbito crescimento da criminalidade foi um produto de
imaginações febris — o resultado foram áreas centrais
desertas e abandonadas, "um número decrescente de
pessoas em busca de prazeres e uma percepção cada vez
maior das cidades como locais perigosos". Sobre uma
dessas cidades, Detroit, outro autor observou, em 1989, que
"as ruas ficam tão desertas depois de escurecer que parece
uma cidade fantasma — tal como Washington, a capital
federal" (22).
Hannigan descobriu que uma tendência oposta teve início
perto do final do século. Depois dos muitos anos de vacas
magras, marcados pelo medo de sair à noite e pela
"desertificação" que isso provocou, as autoridades urbanas
dos Estados Unidos uniram-se a patrocinadores no esforço
de tornar o centro das cidades novamente alegres, uma
atração irresistível para farristas em potencial, com "a
diversão retornando às áreas centrais" e "visitantes diurnos"
["day-trippers"] sendo novamente arrastados para elas, na
esperança de encontrar alguma coisa "excitante, segura e
inexistente nos subúrbios" (23).
Reconhecidamente, essas mudanças drásticas e neuróticas
podem ser mais evidentes e abruptas nas cidades norteamericanas, com seus antigos antagonismos e inimizades
raciais — geralmente encobertos, mas capazes de explodir
ocasionalmente — do que em outros lugares, onde esses
conflitos e preconceitos acrescentam pouco ou nenhum
combustível à incerteza e à confusão latentes. De forma um
pouco mais suave e atenuada, porém, a ambivalência da
atração e repulsa e a oscilação entre paixão e aversão à
vida nos grandes centros urbanos também assinalam a
história recente de muitas cidades européias, talvez da
maioria delas.
Cidade e mudança social são quase sinônimos. A
mudança é a condição de vida e o modo de existência
urbanos. Mudança e cidade podem, e com certeza
devem, ser definidas por referência mútua. Mas por
que é assim? Por que tem de ser assim?
É comum definir as cidades como lugares onde estranhos se
encontram, permanecem próximos uns dos outros e
interagem por longo tempo sem deixarem de ser estranhos.
Examinando o papel das cidades no desenvolvimento
econômico, Jane Jacobs aponta a mera densidade da
comunicação humana como a causa principal dessa
inquietação própria do meio urbano. (24) Os habitantes das
cidades não são necessariamente mais inteligentes que
outros seres humanos, mas a densidade da ocupação
espacial resulta na concentração de necessidades. Assim,
nas cidades se fazem perguntas que nunca foram feitas,
surgem problemas que em outras condições as pessoas
nunca tiveram oportunidade de resolver. Encarar problemas
e questionar trazem um desafio e ampliam a inventividade
humana a um nível sem precedentes. Isso, por sua vez,
oferece uma oportunidade tentadora para quem vive em
lugares mais tranqüilos, porém menos promissores. A vida
urbana exerce uma atração constante sobre as pessoas de
fora, e estas têm como marca registrada o fato de trazerem
"novas maneiras de ver as coisas e talvez de resolver
antigos problemas" As pessoas de fora são estranhas à
cidade, e coisas familiares aos moradores antigos e já
estabelecidos, coisas que eles sequer notam, parecem
bizarras e exigem explicação quando vistas pelos olhos de
um estranho. Para este, particularmente quando recémchegado, nada na cidade é "natural nada pode ser
pressuposto. Os recém-chegados são inimigos da
tranqüilidade e da autocondescendência.
Essa talvez não seja uma situação agradável para os nativos
da cidade, mas é também sua grande vantagem. A cidade
está em sua melhor forma, mais exuberante e generosa em
termos das oportunidades que oferece quando seus
recursos são desafiados, questionados e postos contra a
parede. Michael Storper, economista, geógrafo e projetista,
(25) atribui a vivacidade intrínseca e a criatividade típica da
densa vida urbana à incerteza que advém dos
relacionamentos pouco coordenados e eternamente
mutáveis "entre as peças das organizações complexas,
entre os indivíduos e entre estes e as organizações" —
inevitáveis sob as condições urbanas de alta densidade e
estreita proximidade.
Os estranhos não são uma invenção moderna, mas aqueles
que permanecem estranhos por um longo período, ou
mesmo perpetuamente, são. Numa típica cidade ou aldeia
pré-moderna, não era permitido permanecer estranho por
muito tempo. Alguns eram expulsos, ou nem chegavam a
obter permissão para entrar. Os que desejavam e
conseguiam entrar e permanecer por mais tempo tendiam a
ser "familiarizados" — submetidos a interrogatórios
minuciosos e rapidamente "domesticados" — de modo que
pudessem integrar a rede de relacionamentos como se
fossem moradores estabelecidos: no esquema pessoal. Isso
tinha conseqüências — marcadamente diferentes do
processo que nos é familiar a partir da experiência das
cidades contemporâneas, modernas, congestionadas e
densamente povoadas.
Qualquer que seja a história das cidades, e
independentemente das drásticas mudanças que
possam ter afetado sua estrutura espacial, aparência
e estilo ao longo dos anos e dos séculos, uma
característica se mantém constante: são espaços em
que estranhos permanecem e se movimentam em
íntima e recíproca proximidade.
Sendo um componente permanente da vida urbana, a
presença perpétua e ubíqua de estranhos visíveis e
próximos aumenta em grande medida a eterna incerteza
das buscas existenciais de todos os habitantes. Essa
presença, impossível de se evitar senão por breves
momentos, é uma fonte de ansiedade inesgotável, assim
como de uma agressividade geralmente adormecida, mas
que volta e meia pode emergir.
O medo do desconhecido, mesmo se subliminar, busca
desesperadamente escoadouros confiáveis. As ansiedades
acumuladas tendem a ser descarregadas sobre os
"forasteiros", eleitos para exemplificar a "estranheza", a
falta de familiaridade, a opacidade do ambiente de vida, a
imprecisão do risco e da ameaça em si. Quando se expulsa
das casas e das lojas uma categoria selecionada de
"forasteiros", o fantasma atemorizante da incerteza é
exorcizado por algum tempo — queima-se simbolicamente o
monstro
assustador
da
insegurança.
Cercas
cuidadosamente erguidas contra aqueles que se fazem
passar por pessoas "em busca de asilo" e migrantes
"meramente econômicos" trazem a esperança de fortalecer
uma existência incerta, errática e imprevisível. Mas a líquida
vida moderna tende a permanecer inconsistente e
caprichosa, sejam quais forem os apuros infligidos aos
"forasteiros indesejáveis", e portanto o alívio é
momentâneo, e as esperanças investidas nas "medidas
duras e decisivas" se desvanecem tão logo se apresentam.
O estranho é, por definição, um agente movido por
intenções que na melhor das hipóteses se poderia
adivinhar, mas nunca saber com certeza. O estranho é a
variável desconhecida em todas as equações calculadas
quando se tomam decisões sobre o que fazer e como se
comportar. E assim, mesmo que não se tornem objetos de
agressão ostensiva nem sejam aberta e ativamente
ofendidos, a presença de estranhos dentro do campo de
ação permanece desconfortável, na medida em que dificulta
a tarefa de predizer os efeitos do procedimento e suas
chances de sucesso ou fracasso.
Compartilhar o espaço com estranhos, viver na sua
proximidade repugnante e impertinente, é uma condição da
qual os habitantes das cidades consideram difícil, talvez
impossível escapar. A proximidade de estranhos é sua sina,
e faz-se necessário experimentar, tentar, testar e (esperase) encontrar um modus vivendi que torne a coabitação
palatável e a vida suportável. Essa necessidade é "dada",
não-negociável. Mas o modo como os habitantes de cada
cidade se conduzem para satisfazê-la é questão de escolha.
E esta é feita diariamente — por ação ou omissão, desígnio
ou descuido.
Sobre São Paulo, a maior cidade do Brasil, caótica e
em rápida expansão, escreve Teresa Caldeira: "São
Paulo é hoje uma cidade de muros. Barreiras físicas
foram construídas em toda parte — em torno de
casas, prédios, parques, praças, escolas e complexos
empresariais... Uma nova estética da segurança
modela todos os tipos de construções e impõe uma
nova lógica de vigilância e distância..." (26)
Os que podem, vivem em "condomínios", planejados como
se fosse uma ermida: fisicamente dentro, mas social e
espiritualmente fora da cidade. "Supõe-se que as
comunidades fechadas sejam mundos distintos. Nas
propagandas que os anunciam propõe-se um 'modo de vida
completo' que representaria uma alternativa à qualidade de
vida oferecida pela cidade e seu espaço público
deteriorado." Um traço muito importante do condomínio é
seu “isolamento e distância da cidade... Isolamento significa
separação daqueles considerados socialmente inferiores" e,
como insistem os construtores e seus agentes imobiliários,
"o fator-chave para garanti-lo é a segurança. Isso significa
cercas e muros rodeando o condomínio, guardas
trabalhando 24 horas por dia no controle das entradas e um
conjunto de instalações e serviços" "destinados a manter os
outros do lado de fora".
Como todos sabemos, as cercas têm necessariamente dois
lados. Dividem espaços, que sob outros aspectos seriam
uniformes, em "dentro" e "fora"; mas o que é "dentro" para
os que estão de um lado é "fora" para os que estão do
outro. Os moradores dos condomínios cercam-se para ficar
"fora"
da
excludente,
desconfortável,
vagamente
ameaçadora e dura vida da cidade — e "dentro" do oásis de
calma e segurança. Pelo mesmo viés, contudo, eles cercam
todos os outros fora dos lugares decentes e seguros cujos
padrões estão preparados e determinados a manter e
defender com unhas e dentes, e dentro das mesmíssimas
ruas sujas e esquálidas das quais tentam, a todo custo,
cercar-se. A cerca separa o "gueto voluntário" dos ricos e
poderosos dos muitos guetos forçados que os despossuídos
habitam. Para estes, a área a que estão confinados (por
serem excluídos de todas as outras) é o espaço do qual "não
têm permissão de sair".
Em São Paulo, a tendência segregacionista e
exclusivista se apresenta da forma mais brutal,
inescrupulosa e desavergonhada. Mas pode-se sentir
seu impacto, embora de maneira um tanto atenuada,
na maioria das metrópoles.
Paradoxalmente, cidades construídas originalmente para
oferecer segurança a seus habitantes são hoje associadas
com maior freqüência ao perigo. Como diz Nan Elin, "o fator
medo [na construção e reconstrução das cidades]
certamente aumentou, como se pode depreender da
proliferação dos sistemas de segurança e das trancas para
carros e residências, da popularidade de comunidades
‘fechadas’ e ‘seguras’ para grupos de todas as faixas etárias
e de renda, e da crescente vigilância dos espaços públicos,
sem falar nos infindáveis relatos de perigo transmitidos
pelos meios de comunicação” (27).
Ameaças ao corpo e à propriedade do indivíduo, reais ou
supostas, estão se transformando rapidamente em
considerações importantes quando se avaliam os méritos ou
desvantagens de um lugar para se viver. Também se
tornaram prioridade na política de marketing das
imobiliárias. A incerteza em relação ao futuro, a fragilidade
da posição social e a insegurança existencial — ubíquos
acessórios da vida na "líquida modernidade" de um mundo
notoriamente enraizado em lugares remotos e retirados do
controle individual — tendem a se concentrar nos alvos
mais próximos e a serem canalizadas para as preocupações
com a segurança individual. Os tipos de preocupação que se
condensam em impulsos segregacionistas/exclusivistas
levam inexoravelmente a guerras pelo espaço urbano.
Como se pode aprender com o estudo perspicaz de Steven
Flusty
(28),
jovem
crítico
norte-americano
de
arquitetura/urbanismo,
servir
nessa
guerra,
e
particularmente
planejar
maneiras
de
impedir
os
adversários — atuais, potenciais e supostos — de terem
acesso ao espaço reclamado, mantendo-os a uma distância
segura, constitui a preocupação que se expande com maior
amplitude e rapidez na área da inovação arquitetônica e do
desenvolvimento urbano nas cidades norte-americanas. As
novas construções, anunciadas com maior orgulho e as
mais imitadas, são "espaços interditados" — "planejados
para interceptar, repelir ou filtrar os usuários potenciais"
Explicitamente, o propósito dos "espaços interditados" é
dividir, segregar e excluir — e não construir pontes,
passagens acessíveis e locais de encontro, facilitar a
comunicação ou, de alguma outra forma, aproximar os
habitantes da cidade.
As invenções arquitetônicas/urbanísticas reconhecidas,
enumeradas e especificadas por Flusty são os equivalentes
tecnicamente
atualizados
dos
fossos,
torreões
e
canhoneiras das muralhas que cercavam as cidadelas prémodernas. Mas, em vez de defender a cidade e todos os
seus habitantes do inimigo externo, foram erigidas para
separá-los e defendê-los uns dos outros, agora na condição
de adversários. Entre as invenções relacionadas por Flusty
estão o "espaço resvaladiço", "que não pode ser alcançado
graças a formas de acesso retorcidas, retrácteis ou
inexistentes"; o "espaço espinhoso", "que não pode ser
ocupado confortavelmente, já que é defendido por detalhes
como aspersores embutidos nas paredes, destinados a
afastar ociosos, ou saliências espalhadas para evitar que as
pessoas possam sentar-se"; e o "espaço nervoso", "que não
pode ser utilizado sem o monitoramento ativo de patrulhas
móveis e/ou dispositivos de controle remoto conectados a
centrais de segurança". Esses e outros tipos de "espaços
interditados" têm apenas um, embora múltiplo, propósito:
separar os enclaves extraterritoriais da área urbana
contígua, erigir pequenas fortalezas dentro das quais os
membros da elite supraterritorial global possam tratar,
cultivar e apreciar sua independência física e seu
isolamento espiritual em relação à localidade. Na paisagem
urbana, os "espaços interditados" se tornam marcos de
desintegração da vida comunal compartilhada e localmente
ancorada.
Os desenvolvimentos descritos por Steven Flusty são
manifestações high-tech de uma visível mixofobia.
A mixofobia é uma reação altamente previsível e difundida
entre os diversos tipos humanos e estilos de vida capazes
de confundir a mente, provocar calafrios e colapsos
nervosos, de que estão repletas as ruas das cidades
contemporâneas, assim como seus distritos residenciais
mais "comuns" (leia-se: não protegidos por "espaços
interditados"). Conforme a polifonia e a diversificação
cultural do ambiente urbano na era da globalização entram
em cena — com a probabilidade de se intensificarem no
curso
do
tempo
—,
as
tensões
oriundas
da
exasperante/confusa/irritante estranheza desse cenário
provavelmente
continuarão
a
estimular
impulsos
segregacionistas.
Expressar tais impulsos pode (de modo temporário, mas
repetido) aliviar tensões crescentes. Isso oferece uma
esperança: diferenças excludentes e desconcertantes
podem ser incontestáveis e refratárias, mas talvez seja
possível extrair o veneno do ferrão atribuindo a cada forma
de vida um espaço físico distinto, ao mesmo tempo
inclusivo e excludente, bem demarcado e protegido.
Evitando-se essa solução radical, talvez se possa pelo
menos assegurar para si mesmo, para os amigos, parentes
e outras "pessoas como nós", um território livre daquela
miscelânea que irremediavelmente aflige outras áreas
urbanas. A mixofobia se manifesta no impulso que conduz a
ilhas de semelhança e mesmidade em meio a um oceano de
variedade e diferença.
As raízes da mixofobia são banais — nem um pouco difíceis
de localizar, fáceis de compreender, embora não
necessariamente de perdoar. Como indica Richard Sennett,
"o sentimento 'nós, que expressa um desejo de ser
semelhante, é uma forma de os homens evitarem a
necessidade de examinarem uns aos outros com maior
profundidade". Ele promete, pode-se dizer, algum conforto
espiritual: a perspectiva de tornar o convívio algo mais fácil
de suportar, cortando-se o esforço de compreender,
negociar, comprometer-se, exigido quando se vive com a
diferença e em meio a ela. "O desejo de evitar a
participação real é inato ao processo de formar uma
imagem coerente da comunidade. Sentir que existem
vínculos comuns sem uma experiência comum ocorre, em
primeiro lugar, porque os homens têm medo da
participação, dos perigos e desafios que ela traz, de sua
dor." (29)
O impulso na direção de uma "comunidade de semelhança"
é um signo de recuo não apenas em relação à alteridade
externa, mas também ao compromisso com a interação
interna, ao mesmo tempo intensa e turbulenta, revigorante
e embaraçosa. A atração de uma "comunidade da
mesmidade" é a de segurança contra os riscos de que está
repleta a vida cotidiana num mundo polifônico. Ela não
reduz os riscos, muito menos os afasta. Como qualquer
paliativo, promete apenas um abrigo em relação a alguns
dos efeitos mais imediatos e temidos desses riscos.
Escolher escapar à opção apresentada pela mixofobia tem
uma conseqüência insidiosa e deletéria: quanto mais
ineficaz se mostra essa estratégia, mais ela se torna capaz
de se perpetuar e se consolidar por si mesma. Sennett
explica por que isso é — de fato, deve ser — assim:
"Durante as duas últimas décadas, algumas cidades norteamericanas cresceram de tal maneira que as áreas étnicas
se tornaram relativamente homogêneas. Não parece
acidental que o medo do outsider tenha aumentado na
mesma medida em que essas comunidades foram isoladas."
(30) Quanto mais as pessoas permanecem num ambiente
uniforme — na companhia de outras "como elas", com as
quais podem "socializar-se" de modo superficial e prosaico
sem o risco de serem mal compreendidas nem a irritante
necessidade de tradução entre diferentes universos de
significações —, mais tornam-se propensas a "desaprender"
a arte de negociar um modus covivendi e significados
compartilhados.
Já que esqueceram ou não se preocuparam em adquirir as
habilidades necessárias para viver com a diferença, não
surpreende muito que essas pessoas vejam com um horror
crescente a possibilidade de se confrontarem face a face
com estranhos. Estes tendem a parecer ainda mais
assustadores na medida em que se tornam cada vez mais
diferentes, exóticos e incompreensíveis, e em que o diálogo
e a interação que poderiam acabar assimilando sua
"alteridade" se diluem ou nem chegam a ter lugar. O
impulso que conduz a um ambiente homogêneo e
territorialmente isolado pode ser disparado pela mixofobia,
mas praticar a separação territorial significa preservá-la e
alimentá-la.
Mas a mixofobia não é o único combatente no campo
de batalha urbano.
Viver na cidade é sabidamente uma experiência ambígua. A
cidade atrai e repele, mas, para tornar a situação de seus
habitantes ainda mais complexa, são os mesmos aspectos
da vida urbana que, de modo intermitente ou simultâneo,
atraem e repelem... A desordenada variedade do ambiente
urbano é uma fonte de medo (particularmente para aqueles
de nós que já "perderam os modos familiares", tendo sido
atirados a um estado de incerteza aguda pelos processos
desestabilizadores da globalização). Os mesmos bruxuleios
e vislumbres caleidoscópios do cenário urbano, a que nunca
faltam novidades e surpresas, constituem, no entanto, seu
charme quase irresistível e seu poder de sedução.
Confrontar o espetáculo incessante da cidade, com
freqüência deslumbrante, não é, portanto, vivenciado
apenas como praga ou maldição — assim como abrigar-se
dele não parece uma bênção inequívoca. A cidade favorece
a mixofobia do mesmo modo e ao mesmo tempo que a
mixofilia. A vida urbana é intrínseca e irreparavelmente
ambivalente.
Quanto maior e mais heterogênea é a cidade, mais atrações
ela pode promover e oferecer. A condensação maciça de
estranhos é simultaneamente um repelente e um ímã
poderoso, atraindo sempre novas coortes de homens e
mulheres cansados da monotonia da vida no campo ou na
cidade pequena, fartos de sua rotina repetitiva — e
desencantados diante de sua desesperadora escassez de
oportunidades. A variedade promete muitas e diversas
oportunidades, que se ajustam a todas as habilidades e a
todos os gostos. E assim, quanto maior a cidade, mais
provável é que ela atraia um número crescente de pessoas
que rejeitam — ou a quem foram recusadas — acomodação
e oportunidades de vida em lugares menores e por isso
menos tolerantes em relação a idiossincrasias e mais
avarentos quanto às chances que oferecem. Parece que a
mixofilia, tal como a mixofobia, é uma tendência capaz de
impulsionar-se, difundir-se e fortalecer-se. Nenhuma das
duas tem propensão a se exaurir ou a perder seu vigor no
curso da renovação e reforma do espaço urbano.
Mixofobia e mixofilia coexistem em toda cidade, mas
também dentro de cada um de seus habitantes. Trata-se
reconhecidamente de uma coexistência problemática, cheia
de som e fúria, embora signifique muito para as pessoas
que se encontram na ponta receptiva da ambivalência
líquido-moderna.
Como os estranhos são obrigados a levar suas vidas
na companhia uns dos outros, independentemente
das futuras guinadas da história urbana, a arte de
viver em paz e feliz com a diferença, assim como de
se beneficiar, serenamente, da variedade de
estímulos
e
oportunidades,
adquire
enorme
importância entre as habilidades que o morador da
cidade deve adquirir e utilizar.
Mesmo que a erradicação total da mixofobia seja algo
improvável, dada a crescente mobilidade humana na líquida
era moderna, assim como a acelerada mudança de papéis,
tramas e ambientes do cenário urbano, talvez se possa
fazer alguma coisa para influenciar as proporções em que
mixofobia e mixofilia se combinam, e assim reduzir o
impacto da primeira, que confunde e tende a gerar
ansiedade e angústia. Com efeito, parece que arquitetos e
urbanistas poderiam ajudar muito no crescimento da
mixofilia e minimizar as oportunidades de respostas
mixofóbicas aos desafios da vida urbana. E parece haver
muita coisa que eles podem fazer, e de fato estão fazendo,
para facilitar os efeitos opostos.
Como vimos anteriormente, a segregação de áreas
residenciais e de espaços freqüentados pelo público,
comercialmente atraente para os construtores e seus
clientes como um remédio rápido para as ansiedades
geradas pela mixofobia, é na verdade a sua principal causa.
As soluções disponíveis geram, por assim dizer, os
problemas que pretendem resolver: os construtores de
comunidades fechadas e condomínios estritamente
protegidos, assim como os arquitetos responsáveis pelos
"espaços interditados", criam, reproduzem e intensificam a
necessidade e a demanda que supostamente satisfariam.
A paranóia mixofóbica alimenta-se e atua como uma
profecia auto-realizadora. Se a segregação é oferecida e
assumida como a cura radical para o perigo representado
pelos estranhos, a coabitação com estes torna-se mais difícil
a cada dia. Homogeneizar os bairros residenciais e depois
reduzir a um mínimo inevitável todo o comércio e a
comunicação entre eles é uma receita certa para tornar
mais intenso e profundo o estímulo a destruir e segregar.
Essa medida pode ajudar a diminuir as dores que sofrem as
pessoas afligidas pela mixofobia, mas a cura é ela própria
patogênica e aprofunda a aflição, de modo que novas e
maiores doses do remédio tornam-se necessárias para
manter a dor num nível toleravelmente baixo. A
homogeneidade social do espaço, enfatizada e fortalecida
pela segregação espacial, reduz a tolerância de seus
moradores à diferença e assim multiplica as possibilidades
de reações mixofóbicas, fazendo a vida urbana parecer mais
"propensa ao risco" e portanto mais angustiante, em lugar
de mais segura, agradável e fácil de levar.
Mais favorável à fixação e ao cultivo de sentimentos
mixófilos seria a estratégia oposta por parte de arquitetos e
urbanistas: a propagação de espaços públicos abertos,
convidativos e hospitaleiros que todas as categorias de
moradores seriam tentadas a freqüentar e estariam prontas
a compartilhar, de modo regular e consciente.
Conforme a famosa observação de Hans Gadamer em seu
livro Verdade e método, a compreensão mútua é instigada
pela "fusão de horizontes" — quer dizer, horizontes
cognitivos, induzidos e ampliados no curso da acumulação
da experiência de vida. A "fusão" exigida pela compreensão
mútua só pode ser o resultado da experiência
compartilhada, e esta é inconcebível sem que haja um
espaço compartilhado.
Como que fornecendo uma poderosa prova empírica da
hipótese de Gadamer, descobriu-se que os espaços
reservados para encontros face a face — ou apenas para
compartilhar o espaço, "misturar-se com" curtir juntos,
jantar nos mesmos restaurantes ou beber nos mesmos
bares — dos homens de negócios e outros membros da elite
internacional ou Ma classe dominante global" emergente
quando estão viajando (lugares como as redes mundiais de
hotéis e os centros de conferência supranacionais),
desempenham um papel crucial na integração dessa elite, a
despeito de diferenças culturais, lingüísticas, religiosas,
ideológicas e outras que, em situações diversas, separamna e evitam que se desenvolva o sentimento de
"pertencimento compartilhado” (31).
Com efeito, o desenvolvimento da compreensão mútua e a
troca de experiências de vida de que essa compreensão
necessita é a única razão pela qual — apesar da facilidade
de se comunicar eletronicamente com maior rapidez e
muito menos trabalho e problemas — empresários e
acadêmicos continuam viajando, visitando-se e se
encontrando em conferências. Se a comunicação pudesse
ser reduzida à transferência de informação, sem
necessidade da "fusão de horizontes", então, em nossa era
da internet e da rede mundial, o contato físico e o
compartilhamento (mesmo que temporário e intermitente)
de espaço e experiências teriam se tornado redundantes.
Mas não se tornaram, e até agora nada indica que isso
ocorrerá.
Há coisas que os arquitetos e urbanistas podem fazer
para que a balança entre mixofobia e mixofilia possa
vir a pender em favor desta última (tal como, por
ação ou omissão, eles contribuem no sentido oposto).
Mas há limites ao que podem conseguir agindo
sozinhos e baseando-se unicamente nos efeitos de
suas próprias ações.
As raízes da mixofobia — aquela sensibilidade alérgica e
febril aos estranhos e ao desconhecido — jazem além do
alcance da competência arquitetônica ou urbanística. Estão
profundamente fincadas na condição existencial dos
homens e mulheres contemporâneos, nascidos e criados no
mundo fluido, desregulamentado e individualizado da
mudança acelerada e difusa. Não importa que significação
possam ter, para a qualidade da vida diária, a forma, a
aparência e a atmosfera das ruas das cidades, assim como
o uso que se faz dos espaços urbanos — esses são apenas
alguns dos fatores (e não necessariamente os principais)
que contribuem para aquela condição desestabilizadora que
gera incerteza e ansiedade.
Mais que qualquer outra coisa, os sentimentos mixofóbicos
são estimulados e alimentados por uma sensação de
insegurança esmagadora. Homens e mulheres inseguros,
incertos de seu lugar no mundo, de suas perspectivas de
vida e dos efeitos de suas próprias ações, são mais
vulneráveis à tentação mixofóbica e mais propensos a
caírem em sua armadilha. Esta consiste em canalizar a
ansiedade para longe de suas verdadeiras raízes e
descarregá-la sobre alvos que não se relacionam às suas
fontes. Como resultado, muitos seres humanos são
vitimizados (e no longo prazo os vitimizadores atraem, por
sua vez, a vitimização), enquanto as fontes da angústia
permanecem protegidas da interferência, emergindo sãs e
salvas dessa operação.
A conseqüência é que os problemas que afligem as cidades
contemporâneas não podem ser resolvidos reformando-se
os próprios centros urbanos, por mais radical que seja a
reforma. Não há, permitam-me repetir, soluções locais para
problemas gerados globalmente. O tipo de "segurança"
oferecido pelos urbanistas não pode aliviar, muito menos
erradicar,
a
insegurança
existencial
reabastecida
diariamente pela fluidez dos mercados de trabalho, pela
fragilidade do valor atribuído a habilidades e competências
do passado ou que se busca adquirir no presente, pela
reconhecida vulnerabilidade dos vínculos humanos e pela
suposta precariedade e revogabilidade dos compromissos e
parcerias. As reformas urbanas devem ser precedidas de
uma reforma das condições de existência, já que estas
determinam o sucesso daquelas. Sem essa reforma,
confinados à cidade, os esforços para sobrepujar ou
desintoxicar as pressões mixofóbicas tendem a continuar
sendo apenas paliativos — com muita freqüência, tãosomente placebos.
Isso deve ser lembrado não para desvalorizar ou reduzir a
diferença entre a boa e a má arquitetura, ou entre
planejamento urbano adequado e inadequado (ambos
podem ser, e freqüentemente são, de enorme importância
para a qualidade de vida dos habitantes das cidades), mas
para colocar a tarefa numa perspectiva que inclua todos os
fatores decisivos a fim de se fazer e sustentar a escolha
certa.
As cidades contemporâneas são áreas de descarga
para os produtos malfeitos e deformados da fluida
sociedade
moderna
(embora
elas
próprias
certamente não deixem de contribuir para a
acumulação de dejetos).
Não há soluções centradas na cidade, muito menos a esta
confinadas, para enfrentar contradições e disfunções
sistêmicas. Por maiores e mais louváveis que sejam a
imaginação de arquitetos, prefeitos e vereadores, elas não
serão encontradas. Os problemas devem ser enfrentados
onde surjam: as dificuldades confrontadas e sofridas dentro
da cidade germinaram em outros lugares, e seus espaços
de incubação e gestação são amplos demais para que se
possa combatê-las com ferramentas concebidas até mesmo
para as maiores áreas metropolitanas. Esses espaços se
estendem além do alcance da ação soberana do Estadonação, o maior, mais adequado, espaçoso e inclusivo
ambiente para os procedimentos democráticos inventados e
postos em funcionamento nos tempos modernos. Esses
espaços são cada vez mais globais, e até agora não
chegamos nem perto de inventar, muito menos colocar em
prática, meios de controle democráticos à altura do
tamanho e da potência das forças a serem controladas.
Essa é, sem dúvida, uma tarefa de longo prazo e que vai
exigir muito mais pensamento, ação e persistência do que
qualquer reforma de planejamento urbano e estética
arquitetônica. Isso não significa, contudo, que se devam
suspender os esforços nessa direção até que se chegue à
raiz do problema e se coloquem sob controle aquelas
tendências globalizantes perigosamente indefinidas. Se
podemos dizer assim, o oposto é verdadeiro, já que, embora
a cidade seja o aterro sanitário das ansiedades e
apreensões geradas pela incerteza e a insegurança
globalmente induzidas, é também um importante campo de
treinamento em que se pode experimentar, provar e acabar
aprendendo e adotando os meios de aplacar e dispersar
esses sentimentos.
É na cidade que os estranhos que se confrontam no espaço
global como Estados hostis, civilizações rivais ou
adversários militares se encontram como seres humanos
individuais, se vêem de perto, conversam, aprendem os
costumes uns dos outros, negociam as regras da vida em
comum, cooperam e, cedo ou tarde, se acostumam com a
presença dos outros e, cada vez mais, encontram prazer em
sua
companhia.
Depois
de
tal
treinamento
reconhecidamente local, esses estranhos podem ficar muito
menos tensos e apreensivos ao lidarem com assuntos
globais. A incompatibilidade de civilizações, tal como a
hostilidade mútua, pode mostrar-se, afinal, não tão
intratável quanto parecia, e o estrépito dos sabres pode não
ser a única forma de resolver conflitos. A "fusão de
horizontes" de Gadamer pode se transformar num projeto
um pouco mais realista se buscarmos concretizá-la (mesmo
que por tentativa e erro, e com êxito apenas relativo) nas
ruas das cidades.
Vai levar tempo para que se assimile a nova situação
global, e particularmente para que se possa
confrontá-la de maneira efetiva — o que sempre
ocorreu com todas as transformações realmente
profundas da condição humana.
Tal como no caso de todas essas transformações, é
impossível (e altamente desaconselhável tentar) apropriarse antecipadamente da história e prever, para não dizer
preestabelecer, a forma que ela vai assumir e o arranjo a
que acabará conduzindo. Mas esse confronto terá de
acontecer. Ele provavelmente constituirá a principal
preocupação e preencherá a maior parte da história do
século que está apenas começando.
O drama será encenado e tramado nos dois espaços, o
global e o local. Os desenlaces dessas produções em dois
palcos estão intimamente combinados e dependem muito
do nível de consciência dos roteiristas e atores de cada uma
delas em relação a esse vínculo, assim como do grau de
habilidade e determinação com que contribuam para o
sucesso mútuo.
4. Convívio destruído
Um espectro paira sobre o planeta: o espectro da
xenofobia. Suspeitas e animosidades tribais, antigas
e
novas,
jamais
extintas
e
recentemente
descongeladas, misturaram-se e fundiram-se a uma
nova preocupação, a da segurança, destilada das
incertezas e intranqüilidades da existência líquidomoderna.
Pessoas desgastadas e mortalmente fatigadas em
conseqüência de testes de adequação eternamente
inconclusos, assustadas até a alma pela misteriosa e
inexplicável precariedade de seus destinos e pelas névoas
globais
que
ocultam
suas
esperanças,
buscam
desesperadamente os culpados por seus problemas e
tribulações. Encontram-nos, sem surpresa, sob o poste de
luz mais próximo — o único ponto obrigatoriamente
iluminado pelas forças da lei e da ordem: "São os criminosos
que nos deixam inseguros, são os forasteiros que trazem o
crime." E assim "é reunindo, encarcerando e deportando os
forasteiros que vamos restaurar a segurança perdida ou
roubada".
Donald G. McNeil Jr. deu a seu resumo das mudanças mais
recentes no espectro político europeu o título de "Politicians
pander to fear of crime” (1). Com efeito, em todo o mundo
submetido a governos democraticamente eleitos a frase
"serei duro com o crime" transformou-se num trunfo, mas a
mão vencedora é quase invariavelmente uma combinação
da promessa de "mais prisões, mais policiais, sentenças
maiores" com o juramento de "não à imigração, aos direitos
de asilo e à naturalização". Como diz McNeil, "políticos de
toda a Europa usam o estereótipo de que 'o crime é
causado por forasteiros' para ligar o antiquado ódio étnico à
preocupação com a segurança pessoal, mais palatável".
O duelo Chirac versus Jospin pela presidência da França, em
2002, estava apenas nos estágios preliminares quando
degenerou num leilão público em que os dois competidores
buscavam apoio eleitoral oferecendo medidas cada vez
mais duras contra criminosos e imigrantes, mas sobretudo
contra os imigrantes que praticam crimes e contra a
criminalidade praticada por imigrantes. (2) Antes de mais
nada, porém, eles deram o melhor de si tentando mudar o
foco da ansiedade dos eleitores, derivada da envolvente
sensação de precarité (uma insegurança exasperante em
relação à posição social, entrelaçada com uma incerteza
aguda quanto ao futuro dos meios de subsistência), para a
preocupação com a segurança individual (a integridade do
corpo, das propriedades pessoais, do lar e da vizinhança). A
14 de julho de 2001, Chirac colocou em movimento essa
máquina infernal, anunciando a necessidade de combater
"essa crescente ameaça à segurança, essa maré montante",
em vista do aumento (também anunciado na ocasião) de
quase 10% da delinqüência no primeiro semestre daquele
ano, e declarando a disposição de transformar em lei, uma
vez reeleito, a política de "tolerância zero". O tom da
campanha presidencial fora estabeleci- do, e Jospin não
demorou a aderir, elaborando suas próprias variações sobre
o tema comum (embora — inesperadamente para os
solistas principais, mas decerto não para os observadores
sociologicamente informados — a voz mais destacada tenha
sido a de Le Pen, na qualidade de mais pura e, portanto,
mais audível).
A 28 de agosto Jospin proclamava "a batalha contra a
insegurança", prometendo que não teria "nenhuma
complacência", enquanto a 6 de setembro Daniel Vaillant e
Marylise Lebranchu, seus ministros, respectivamente, do
Interior e da Justiça, juravam que não tolerariam de forma
alguma a delinqüência. A reação imediata de Vaillant aos
eventos de 11 de setembro nos Estados Unidos foi
aumentar os poderes da polícia, principalmente no que se
refere ao enfrentamento dos jovens "etnicamente
estranhos" habitantes dos banlieux, as amplas áreas
residenciais situadas nas periferias urbanas, onde, segundo
a (conveniente) versão oficial, era gerada a demoníaca
mistura de incerteza e insegurança que envenenava a vida
dos franceses. O próprio Jospin continuou atacando e
vilipendiando, em termos cada vez mais mordazes, a
"escola angelical" da abordagem ultra-suave, jurando que
jamais pertencera a ela no passado e jamais o faria no
futuro. O leilão prosseguia, e os lances se tornavam
estratosféricos. Chirac prometeu criar um ministério da
segurança interna, ao que Jospin reagiu com o compromisso
de um ministério "encarregado da segurança pública" e da
"coordenação das operações policiais" Quando Chirac
brandiu a idéia de instituir centros destinados a trancafiar
delinqüentes juvenis, Jospin fez eco a essa promessa com a
visão de "estruturas gradeadas" com a mesma finalidade,
superando o lance do oponente com a perspectiva de
"condenações sumárias".
Apenas três décadas atrás Portugal era (juntamente com a
Turquia) o principal fornecedor de "trabalhadores
convidados" [os Gastarbeiter], que os Bürger alemães
temiam saquear suas cidades e destruirem o pacto social,
pilar de sua segurança e conforto. Hoje, graças ao aumento
significativo de sua riqueza, Portugal passou de exportador
a importador de mão-de-obra. As dificuldades e
humilhações sofridas quando era preciso ganhar a vida no
exterior foram rapidamente esquecidas: 27% dos
portugueses declararam que os bairros infestados do crime
e de estrangeiros constituíam sua principal preocupação, e
Paulo Portas, um recém-chegado à arena política, jogando
uma carta única, violentamente contrária à imigração,
ajudou a conduzir ao poder uma coalizão neodireitista (da
mesma forma que ocorreu com o Partido do Povo
Dinamarquês de Pia Kiersgaard, com a Liga Norte de
Umberto Bossi na Itália e com o Partido do Progresso na
Noruega, radicalmente antiimigrantes — todos em países
que não muito tempo antes enviavam seus filhos a terras
distantes para ganhar o pão que eles próprios eram muito
pobres para oferecer).
Notícias como essa freqüentemente ganham as manchetes
dos jornais (como "Reino Unido planeja cancelar asilo", The
Guardian, 13 de junho de 2002 — considero desnecessário
mencionar as manchetes dos tablóides...). Mas o núcleo
principal da fobia de imigrantes permanece oculto das
atenções (de fato, do conhecimento) da Europa Ocidental e
nunca vem à superfície. "Culpar os imigrantes" —
estrangeiros
e
recém-chegados,
e
particularmente
estrangeiros recém-chegados — por todos os aspectos da
doença social (e acima de tudo pelo nauseante e
desabilitante sentimento de Unsicherheit, incertezza,
precarité, insegurança) está se tornando rapidamente um
hábito global. Nas palavras de Heather Grabbe, diretora de
pesquisa do Centro para a Reforma Européia, "os alemães
culpam os poloneses, os poloneses culpam os ucranianos,
os ucranianos culpam os quirguizes, que por sua vez culpam
os usbeques" (3), enquanto países pobres demais para
atrair vizinhos em busca desesperada por meios de
sobrevivência, tais como Romênia, Bulgária, Hungria ou
Eslováquia, direcionam seu ódio aos habituais suspeitos e
culpados de plantão: aquelas pessoas do lugar mas em
constante mudança, sem endereço fixo, e assim — sempre
e onde quer que estejam — "recém-chegadas" e forasteiras:
os ciganos.
Quando se trata de estabelecer tendências globais, os
Estados Unidos têm prioridade indiscutível e geralmente
assumem a iniciativa. Mas juntar-se à onda global de ataque
aos imigrantes representa um problema muito difícil para
aquele país, reconhecidamente formado por imigrantes. A
imigração atravessou a história norte-americana como um
passado de nobreza, uma missão, um empreendimento
heróico levado a cabo pelos audazes, os valentes e os
bravos. Assim, desprezar os imigrantes e lançar suspeitas
sobre sua nobre vocação significaria atacar o próprio cerne
da identidade norte-americana, e talvez fosse um golpe
mortal no Sonho Americano, seu indiscutível pilar e cimento.
Mas esforços têm sido feitos, por tentativa e erro, para
tornar o círculo quadrado...
A 10 de junho de 2002, funcionários de alto escalão do
governo norte-americano (o diretor do FBI Robert Mueller, o
subprocurador geral Larry Thompson, o subsecretário de
Defesa Paul Wolfowitz, entre outros) anunciaram a prisão de
um suposto terrorista da Al-Qaeda que retornava a Chicago
de uma viagem de treinamento no Paquistão (4). Segundo a
versão oficial do caso, um cidadão norte-americano, nascido
e criado nos Estados Unidos, Jose Padilla (nome que aponta
raízes hispânicas, ligado às últimas levas de imigrantes,
pobremente assentadas, da longa lista de filiações étnicas),
converteu-se ao islamismo, assumiu o nome de Abdullah
alMujahir e prontamente procurou seus irmãos muçulmanos
em busca de instruções sobre como prejudicar sua terra
natal. Foi instruído na arte tosca de fabricar "bombas sujas"
— "assustadoramente fáceis de montar" a partir de alguns
gramas
de
explosivos
convencionais
amplamente
disponíveis e de "praticamente qualquer tipo de material
radioativo" em que potenciais terroristas "possam pôr as
mãos" (não ficou clara por que era necessário treinamento
sofisticado para produzir armas "assustadoramente fáceis
de montar", mas, quando se trata de lançar as sementes do
ódio, a lógica é irrelevante). "Uma nova expressão entrou no
vocabulário de muitos norte-americanos médios depois do
11 de setembro: bomba suja", anunciaram os repórteres
Nichols, Hall e Eisler, do USA Today.
O caso foi um golpe de mestre: a armadilha ao Sonho
Americano foi habilmente contornada pelo fato de Jose
Padilla ser um estrangeiro e um estranho por sua própria e
livre escolha como norte-americano. E o terrorismo foi
vividamente retratado como algo ao mesmo tempo de
origem estrangeira e ubiquamente doméstico, oculto atrás
de cada esquina e se espalhando por todos os bairros — tal
como os antigos "comunistas debaixo da cama". E foi assim
uma metáfora impecável e um escoadouro totalmente
confiável para os medos e apreensões, igualmente ubíquos,
da vida precária.
No entanto esse expediente revelou-se equivocado. Quando
vistos de outras agências da administração federal, os
ativos do caso ficavam parecendo passivos. A "bomba suja",
"assustadoramente fácil de montar" exporia a loucura de
um "escudo antimísseis" multibilionário. As credenciais
nativas de al-Mujahir poderiam acrescentar um grande
ponto de interrogação à planejada cruzada contra o Iraque e
a todas as suas seqüelas ainda inominadas. O que era
alimento para alguns departamentos federais tinha o gosto
de veneno para outros. Estes últimos parecem estar em
vantagem no momento, já que o pescoço desse caso
promissor foi pronta, rápida e diligentemente torcido. Mas
não porque seus responsáveis tenham deixado de tentar...
A modernidade produziu desde o início, e continua a
produzir, enormes quantidades de lixo humano.
A produção de lixo humano era particularmente ampla em
dois ramos da indústria moderna (ainda totalmente
produtivos e operando a todo vapor).
A função manifesta do primeiro deles era a produção e
reprodução da ordem social. Todo modelo de ordem é
seletivo e exige que se cortem, aparem, segreguem,
separem ou extirpem as partes da matéria-prima humana
que sejam inadequadas para a nova ordem, incapazes ou
desprezadas para o preenchimento de qualquer de seus
nichos. Na outra ponta do processo de construção da
ordem, essas partes emergem como "lixo", distintas do
produto pretendido, considerado "útil".
O segundo ramo da indústria moderna conhecido pela
produção contínua de grandes quantidades de lixo humano
era o progresso econômico, o qual, por sua vez, exige a
incapacitação, o desmantelamento e a aniquilação final de
certo número de formas e meios de os seres humanos
ganharem a vida — modos de subsistência que não podiam
nem iriam ajustar-se a padrões de produtividade e
rentabilidade em constante elevação. Via de regra, os
praticantes dessas formas de vida desvalorizadas não
podem ser acomodados en masse nos novos arranjos da
atividade econômica, mais esguios e inteligentes. Eles
tiveram negado o acesso a esses modos de subsistência na
medida em que os novos arranjos se tornaram
legítimos/obrigatórios, enquanto os modos ortodoxos, agora
desvalorizados, não mais permitem que se sobreviva. Eles
são, por esse motivo, o lixo do progresso econômico.
Mas as conseqüências potencialmente desastrosas da
acumulação de lixo humano foram, por boa parte da história
humana, evitadas, neutralizadas ou ao menos mitigadas
graças a outra inovação moderna: a indústria de manejo do
lixo. Ela cresceu porque amplas partes do globo se
transformaram em aterros sanitários para onde os
"excedentes da humanidade" o lixo humano produzido nos
setores do planeta em processo de modernização, podiam
ser transportados para serem tratados e descontaminados,
afastando assim o perigo de autocombustão e explosão.
O planeta está se tornando carente desses aterros, em
grande parte por causa do sucesso espetacular — a difusão
planetária —do modo de vida moderno (pelo menos desde a
época de Rosa Luxemburgo, a modernidade tem sido
suspeita de uma tendência essencialmente suicida, "cobra
mordendo o próprio rabo"). A oferta de aterros sanitários é
cada vez menor. Enquanto a produção de lixo humano
prossegue inabalável (se é que não está aumentando em
função dos processos de globalização), a indústria de
tratamento do lixo passa por duras dificuldades. As formas
de lidar com o lixo humano que se transformaram na
tradição moderna não são mais viáveis, e novas maneiras
não foram inventadas, muito menos postas em operação.
Pilhas de lixo humano crescem ao longo das linhas
defeituosas da desordem mundial, e se multiplicam os
primeiros sinais de uma tendência à autocombustão, assim
como os sintomas de uma explosão iminente.
A crise da indústria de tratamento do lixo humano
está por trás da atual confusão, revelada pelo
alvoroço
desesperado
—
embora
amplamente
irracional e desmedido — em torno da administração
da grave conjuntura desencadeada pelo 11 de
setembro.
Mais de dois séculos atrás, em 1784, Kant observou que
nosso planeta é uma esfera, e extraiu conseqüências desse
fato reconhecidamente banal: como permanecemos na
superfície dessa esfera e nela nos movemos, não temos
outro lugar para ir e portanto estamos destinados a viver
para sempre na vizinhança e companhia de outros. A longo
prazo, manter a distância, que dirá ampliá-la, está fora de
questão: nosso movimento em torno da superfície esférica
acabará reduzindo a distância que pretendíamos alargar. E
assim die volkommende bürgeliche Vereinigung in der
Menschengattung (a perfeita unificação da espécie humana
por meio de uma cidadania comum) é o destino que a
Natureza nos reservou ao nos colocar na superfície de um
planeta esférico. A unidade da humanidade é o derradeiro
horizonte de nossa história universal. Um horizonte que nós,
seres humanos, estimulados e guiados pela razão e pelo
instinto de autopreservação, estamos destinados a
perseguir e, na plenitude do tempo, alcançar. Mais cedo ou
mais tarde, advertiu Kant, não haverá uma única nesga de
espaço vazio onde possam procurar abrigo ou resgate os
que considerem os espaços já ocupados muito apinhados,
inóspitos, inconvenientes ou inadequados. E assim a
Natureza nos obriga à visão da hospitalidade (recíproca)
como o preceito supremo que precisamos — e acabaremos
sendo forçados a — abraçar e obedecer para pôr fim à longa
cadeia de tentativas e erros, às catástrofes causadas por
esses erros e às devastações que elas deixam em sua
esteira.
Os leitores de Kant puderam aprender tudo isso em seu livro
dois séculos atrás. O mundo, contudo, mal prestou atenção.
Parece que, em vez de escutar atentamente seus filósofos,
sem falar em seguir suas advertências, prefere homenageálos com placas. Os filósofos podem ter sido os principais
heróis do drama lírico do Iluminismo, mas a tragédia épica
pós-iluminista quase apagou suas falas.
Preocupado em arranjar o casamento das nações com os
Estados, dos Estados com a soberania e desta com
territórios cercados por fronteiras estritamente fechadas e
diligentemente controladas, o mundo parecia perseguir um
horizonte bem diferente daquele traçado por Kant. Durante
200 anos, o mundo se ocupou em fazer do controle dos
movimentos dos seres humanos uma prerrogativa exclusiva
dos poderes estatais, em erigir barreiras àqueles que não
era possível controlar e em lotá-las de guardas atentos e
fortemente armados. Passaportes, vistos de entrada e saída,
alfândegas e controles de imigração foram invenções
originais da moderna arte de governar.
O advento do Estado moderno coincidiu com a emergência
das "pessoas sem Estado", os sans papiers, e da idéia de
unwertes Leben, a reencarnação mais recente (5) da antiga
instituição do homo sacer, derradeira personificação do
direito soberano de descartar e excluir qualquer ser humano
que tenha sido lançado além dos limites das leis humanas e
divinas, e de transformá-lo num ser a que as leis não se
aplicam e cuja destruição não acarreta punições, despida
que é de qualquer significado ético ou religioso.
A derradeira sanção do poder soberano moderno
resultou no direito de exclusão da humanidade.
Poucos anos depois de Kant ter publicado suas conclusões,
surgiu outro documento, mais curto, que teria, nos dois
séculos de história seguintes, bem como nas mentes de
seus principais atores, um peso muito maior que o livrinho
do filósofo. Era a Déclaration des Droits de L'Homme e du
Citoyen, em relação à qual Giorgio Agamben observaria,
com o benefício de uma perspectiva de 200 anos, não estar
claro se "os dois termos [homem e cidadão] deveriam
identificar duas realidades distintas" ou se, em vez disso, o
primeiro deles sempre quis dizer "já contido no segundo" (6)
- ou seja, o portador dos direitos era o homem que também
fosse (ou na medida em que fosse) um cidadão.
Essa falta de clareza, com todas as suas conseqüências
repulsivas, fora observada antes por Hannah Arendt num
mundo que rapidamente se enchia de "pessoas
deslocadas". Ela relembrou a antiga premonição de Edmund
Burke, genuinamente profética, de que o maior perigo para
a humanidade era a abstrata nudez de "não ser nada além
de humana" (7). "Os direitos humanos", como Burke
observou, eram uma abstração, e os seres humanos não
poderiam esperar que eles garantissem muita proteção, a
menos que essa abstração fosse preenchida com a
substância em que consistiam os direitos dos ingleses ou
franceses. "O mundo nada descobriu de sagrado na
abstrata nudez do ser humano", como Arendt resumiu a
experiência dos anos que se seguiram às observações de
Burke. "Os direitos do homem, supostamente inalienáveis,
mostraram-se inaplicáveis ... onde quer que tenham
aparecido pessoas que não eram mais cidadãs de algum
Estado soberano." (8)
Com efeito, pessoas dotadas de "direitos humanos", mas
nada além disso — sem outros direitos, mais defensáveis
porque institucionalmente enraizados, para conter e manter
no lugar os direitos "humanos" —, não podiam ser
encontradas em lugar algum e eram, para todos os fins
práticos, inimagináveis. Obviamente, era necessária uma
puissance, potenza, might ou Macht (9) essencialmente
social para endossar a humanidade dos seres humanos. E
por toda a era moderna essa "potência" veio a ser,
invariavelmente, aquela que traçou a fronteira entre
humano e inumano, disfarçada, nos tempos modernos, na
que divide cidadãos e estrangeiros. Nesta terra fatiada em
Estados soberanos, os sem-teto são também sem-direitos, e
sofrem, não por não serem iguais perante a lei, mas porque
não existe lei que se aplique a eles e nas quais possam se
pautar, ou a cuja proteção possam recorrer, em seus
protestos contra a rigorosa condição a que foram
submetidos.
Em seu ensaio sobre Karl Jaspers, escrito alguns anos depois
de As origens do totalitarismo, Hannah Arendt observava
que, embora para todas as gerações precedentes a
"humanidade" tivesse sido apenas um conceito ou ideal
(podemos acrescentar: um postulado filosófico, um sonho
de humanistas, por vezes um grito de guerra, mas
dificilmente um princípio organizador da ação política), ela
havia "se tornado algo dotado de uma realidade urgente"
(10). Transformara-se em um assunto de extrema urgência
porque o impacto do Ocidente tinha não apenas saturado o
restante
do
mundo
com
os
produtos
de
seu
desenvolvimento tecnológico, mas também exportado "seus
processos de desintegração" — entre eles a ruptura das
crenças religiosas e metafísicas, os avanços espantosos das
ciências naturais e a ascensão do Estado-nação como
praticamente a única forma de governo apresentada de
modo mais proeminente. Forças que tinham precisado de
séculos para "minar as antigas crenças e formas de vida
política" no Ocidente "levaram apenas algumas décadas
para derrubá-las ... em todas as outras partes do mundo".
Esse tipo de unificação, assinala Arendt, não poderia senão
produzir um tipo "inteiramente negativo" de "solidariedade
do gênero humano". Cada parte da população humana
sobre a terra é tornada vulnerável por todas as outras e
cada uma delas. Trata-se, podemos dizer, de uma
"solidariedade" de perigos, riscos e temores. Na maior parte
do tempo e para a maioria das pessoas, a "unidade do
planeta" se resume ao horror diante de ameaças geradas ou
incubadas em lugares distantes num mundo "em ampliação,
mas fora do alcance".
Juntamente com o produto pretendido, toda fábrica
gera lixo. A fábrica da moderna soberania de base
territorial não foi exceção.
Por cerca de 200 anos após a publicação das advertências
de Kant, o progressivo "preenchimento do mundo" — e
assim, conseqüentemente, o impulso a admitir que a
totalidade do planeta (por ele considerada um veredicto
inevitável da Razão e da Natureza combinadas numa só,
sem apelo permitido) era de fato iminente — sofreu
retaliação com a ajuda da [anti] santíssima trindade
formada por território, nação e Estado.
O Estado-nação, como observa Giorgio Agamben, é um
Estado que faz da "natividade ou nascimento" o "pilar de
sua própria soberania" "A ficção aqui implícita", assinala
Agamben, "é que o nascimento [nascita] imediatamente
ganha existência como nação, de modo que não pode haver
diferença alguma entre os dois momentos." (11) A pessoa
nasce, por assim dizer, na "cidadania do Estado".
A nudez da criança recém-nascida, mas ainda não envolta
nos ornamentos jurídico-legais, fornece o locus em que a
soberania do poder de Estado é perpetuamente construída,
reconstruída e assistida com o auxílio das práticas de
inclusão/exclusão
destinadas
a
todos
os
outros
demandantes da cidadania que caem sob o alcance dessa
soberania. Podemos propor a hipótese de que a redução de
bios para zoë, que Agamben considera a essência da
soberania moderna (ou, poderíamos também dizer, a
redução do Leib, o corpo vivo em ação, ao Körper, um corpo
sobre o qual se pode agir, mas destituído de ação), é uma
conclusão precipitada, já que o nascimento é eleito a única
forma de ingresso "natural" nessa nação, sem exigência de
testes nem questionários.
Todos os outros demandantes que podem bater à porta do
Estado soberano pedindo admissão tendem, em primeiro
lugar, a ser submetidos ao ritual de desnudamento. Como
indicou Victor Turner, seguindo o esquema em três estágios
do rite de passage elaborado por Van Genep, antes que os
recém-chegados em busca de admissão a um locus social
ganhem acesso (se isso ocorrer) àquele novo guarda-roupa
onde são guardadas as vestimentas adequadas e
reservadas para isso, eles precisam despir-se (tanto
metafórica quanto literalmente) de todos os adornos de seu
encargo anterior. Devem permanecer por algum tempo em
estado de "nudez social". Passam a quarentena num nãoespaço "nem um nem outro" onde trajes de importância
socialmente definida e aprovada não são oferecidos nem
permitidos. São isolados de seus pertences pelo purgatório
do "espaço de nenhures" intermediário que separa entre si
as tramas constituintes de um mundo nelas dividido,
concebido como uma agregação de tramas afastadas
espacialmente. A inclusão, se for oferecida, deve ser
precedida de uma exclusão radical.
Segundo Turner, a mensagem transmitida pela parada
obrigatória num acampamento cuidadosamente limpo de
quaisquer implementos capazes de elevar os acampados do
nível zoë ou Körper ao bios ou Leib ("a importância social de
reduzi-los a algum tipo de primo materia humana, destituída
de uma forma específica e restrita, a uma condição que,
embora ainda social, está fora ou além de todas as formas
aceitas de status"), essa mensagem é de que não há um
caminho direto que conduza de um status socialmente
aprovado para outro. Antes que se possa fazer isso, é
preciso imergir e dissolver-se numa "communitas
desestruturada,
ou
estruturada
apenas
de
rudimentar, e relativamente indiferenciada..." (12).
modo
Hannah Arendt situou o fenômeno posteriormente estudado
por Turner no domínio, operado pelo poder, da expulsão, do
exílio, da exclusão e da dispensa. A humanidade que
assume "a forma de fraternidade" inferiu ela, "é o grande
privilégio dos povos párias", referidos nos debates públicos
do século XVIII sob o nome genérico de les malheureux,
substituído no século seguinte por les misérables e, desde
meados do século XX, pelo saco de gatos da noção de
"refugiados" — mas que sempre foram privados de um lugar
próprio no mapa-múndi mental desenhado pelos povos que
cunhavam e empregavam esses nomes. Comprimidos,
confinados e esmagados por múltiplas rejeições, "os
perseguidos têm se movido a uma tal proximidade que o
espaço intermediário que chamamos de mundo (e que
evidentemente havia entre eles antes da perseguição,
mantendo-os a uma distância uns dos outros) simplesmente
desapareceu" (13).
Para todos os fins e propósitos práticos, as categorias
párias/proscritas estavam fora do mundo — do mundo de
categorias e finas distinções que os poderes constituídos
haviam gerado e dado a conhecer sob o nome de
"sociedade". O único mundo a ser habitado pelos seres
humanos e capaz de transformá-los em cidadãos,
portadores e praticantes de direitos. Eles eram uniformes,
compartilhando um tipo de falta de atributos que os falantes
do vernáculo seriam capazes de notar, apreender, nomear e
compreender. Ou pelo menos era isso que pareciam ser,
devido à aliança entre a pobreza do vernáculo e a
homogeneização obtida com a anuência do poder e
concretizada mediante a expropriação de direitos.
Se nascimento e nação constituem uma só coisa,
então todos os outros que ingressam ou desejam
ingressar na família nacional devem imitar a nudez
do recém-nascido — ou serão compelidos a isso.
O Estado — guardião e agente penitenciário, porta-voz e
censor-chefe da nação — garantiria que essa condição fosse
alcançada.
Como adverte Carl Schmitt, reconhecidamente um dos
intelectuais mais lúcidos e realistas que se dedicam a traçar
a anatomia do Estado moderno: "Quem determina um valor
sempre fixa, eo ipso, um não-valor. O sentido dessa
determinação é que este último seja aniquilado." (14)
Determinar o valor estabelece os limites do normal, do
comum, do regular. O não-valor é uma exceção que assinala
essa fronteira.
A exceção é aquilo que não pode ser subsumido. Ela
desafia a codificação geral, mas ao mesmo tempo
revela um elemento formal especificamente jurídico:
a decisão em absoluta pureza ... Não há regra
aplicável ao caos. É preciso estabelecer a ordem
para que a ordem jurídica faça sentido. Deve-se
criar uma situação regular, e é soberano quem
decide definitivamente se essa situação é de fato
efetiva ... A exceção não apenas confirma a regra —
esta, como tal, vive apenas da exceção. (15)
Giorgio Agamben comenta: "A regra se aplica à exceção ao
não mais se aplicar, ao se retrair em relação a ela. Assim, o
estado de exceção não é o caos que precedeu a ordem, mas
a situação resultante de sua suspensão. Nesse sentido, a
exceção é verdadeiramente, segundo sua raiz etimológica,
removida (excapere), e não simplesmente excluída." (16)
Permitam-me observar que é precisamente essa a
circunstância que os soberanos construtores de regras
precisam ocultar a fim de legitimar suas ações e torná-las
compreensíveis. A construção da ordem tende a ser, como
regra, empreendida em nome do combate ao caos. Mas não
haveria caos se já não houvesse a intenção de ordenar e se
a "situação regular" já não estivesse antecipadamente
concebida para que sua promoção pudesse ser iniciada com
seriedade. O caos nasce como não-valor, como exceção. A
pressa em ordenar é seu lugar de nascença, e ele não tem
outros pais nem outro lar que sejam legítimos.
O poder de excluir não seria um marco da soberania
se o poder soberano não tivesse primeiro se unido ao
território.
Penetrante e perspicaz como costuma ser ao esquadrinhar a
lógica bizarra e paradoxal da Ordnung, Carl Schmitt
endossa, nesse ponto crucial, a ficção cultivada pelos
guardiães/promotores da ordem, os detentores do poder
soberano da exceção. Tal como no conjunto da prática dos
soberanos, também no modelo teórico de Schmitt se
presume que as fronteiras do território no qual se conduz o
trabalho da Ordnung constituam os limites externos do
mundo dotado de relevância tópica para os esforços e
intenções de ordenar.
Na visão de Schmitt, tal como na dos legisladores, a soma
total dos recursos exigidos para que se realize o trabalho de
ordenar, assim como a totalidade dos fatores necessários
para justificar essa operação e seus efeitos, está contida no
interior desse mundo. A soberania produz a distinção entre
um valor e um não-valor, uma regra e uma exceção. Mas
essa operação é precedida da distinção entre o lado de
dentro e o de fora do reino soberano, sem o que suas
prerrogativas não poderiam ser reclamadas nem obtidas. A
soberania, tal como praticada pelos modernos Estadosnação e teorizada por Schmitt, está inextricavelmente
limitada a um território. É impensável sem um "lado de
fora", inconcebível de qualquer outra forma que não a de
uma entidade localizada. A visão de Schmitt é tão
"localizada" quanto a soberania cujo mistério ele pretende
desenredar. Ela não avança além da prática e do horizonte
cognitivo do celestial casamento do território com o poder.
Na medida em que o "Estado de direito" foi se
transformando, de modo gradual mas irresistível (já que sob
as constantes pressões da construção de legitimidade e da
mobilização ideológica), no "Estado-nação, esse casamento
se transformou num ménage à trois: uma trindade
constituída de território, Estado e nação. Pode-se supor que
o advento dessa trindade tenha sido um acidente histórico,
ocorrido numa única e relativamente diminuta parte do
globo; mas uma vez que essa parte, embora pequena, veio
a reclamar a posição de metrópole dotada de recursos
suficientes para transformar o resto do planeta em periferia,
e arrogante o bastante para esquecer ou desacreditar suas
próprias peculiaridades, e como é prerrogativa da metrópole
estabelecer e impor as regras pelas quais a periferia é
obrigada a viver, a superposição/mistura de nação, Estado e
território se tornou uma norma de vinculação global.
Qualquer um dos membros dessa trindade, se não estivesse
associado aos outros dois nem fosse apoiado por eles, se
transformaria numa anomalia, numa monstruosidade
candidata a uma drástica cirurgia ou a receber um coup de
grâce caso fosse considerado irredimível. Um território sem
Estado-nação se tornava uma terra de ninguém. Uma nação
sem Estado virava um aleijão com a opção de desaparecer
voluntariamente ou ser executado. Um Estado sem nação,
ou com mais de uma nação, transformava-se num resíduo
do passado ou num mutante confrontado pela opção de
modernizar-se ou perecer. Por trás da nova normalidade
avultava o princípio da territorialidade dando sentido a
qualquer poder que apostasse na soberania e tivesse uma
chance de ganhar a aposta.
Toda aposta na pureza produz sujeira, toda aposta na ordem
cria monstros. Os monstros sujos da era de promoção da
trindade território/nação/Estado foram nações sem Estados,
Estados com mais de uma nação e territórios sem Estadonação. Foi graças à ameaça e ao medo desses monstros que
o poder soberano pôde exigir e adquirir o direito de negar
direitos e estabelecer condições de humanidade que grande
parte desta não poderia satisfazer — como de fato ocorreu.
Sendo a soberania o poder de definir os limites da
humanidade, as vidas dos seres humanos que caíram
ou foram jogados para fora desses limites não valem
a pena.
Em 1920 foi publicado um livreto sob o título Die Freigabe
der Vernichtung lebensunwerten Leben (Permitindo a
destruição da vida que não vale a pena ser vivida), de
autoria de um especialista em direito penal, Karl Binding, e
de um professor de medicina, Alfred Hoche, que comumente
recebe o crédito por ter introduzido o conceito de unwertes
Leben ("vida que não vale a pena ser vivida"), acrescido da
indicação de que, nas sociedades humanas conhecidas,
esse tipo de vida tem sido até agora indevida e
injustamente protegido à custa de tipos de existência
plenamente amadurecidos que deveriam receber toda a
atenção e o cuidado que a humanidade merece. Os sábios
autores não viam razão (fosse jurídica, social ou religiosa)
pela qual o extermínio da unwertes Leben devesse ser visto
como um crime passível de punição.
Na concepção de Binding/Hoche, Giorgio Agamben enxerga
a ressurreição e uma articulação moderna e atualizada da
antiga categoria do homo sacer: um ser humano que se
pode matar sem medo de punição, mas não pode ser usado
no sacrifício religioso — que, em outras palavras, é
totalmente excluído, situando-se além dos limites da lei,
seja ela humana ou divina. Agamben também observa que
o conceito de "vida que não vale a pena ser vivida" é, tal
como sempre foi o de homo sacer, não-ético, mas que em
sua versão moderna adquire profunda significação política
como uma categoria "sobre a qual se funda a soberania".
Na moderna biopolítica, o soberano é aquele que
decide sobre o valor ou não-valor da vida como tal.
Esta — que com a declaração de direitos foi
investida do princípio da soberania — torna-se
agora o local da decisão soberana. (17)
Com efeito, parece ser esse o caso. Observemos, contudo,
que só o pode ser na medida em que a trindade
território/Estado/nação tenha sido elevada à condição de
princípio universal da coabitação humana, imposto e
obrigado a sujeitar todos os recessos e frestas do planeta,
incluindo áreas que por séculos não conseguiram atingir as
condições necessárias para essa trindade (ou seja,
homogeneidade
populacional
e/ou
estabelecimento
permanente resultando num "arraigamento ao solo"). É por
causa dessa universalidade do princípio trinitário, tramada,
arbitrária e imposta, que, como assinala Hannah Arendt,
"quem é rejeitado por uma dessas comunidades
rigorosamente organizadas se vê rejeitado por toda a
família das nações" (18) (e assim, na medida em que a
espécie humana se torna idêntica à "família das nações",
pela esfera da humanidade), lançado à terra de ninguém
dos homini sacri.
A intensa produção de lixo exige uma indústria de
tratamento eficiente. Isso produziu uma das mais
impressionantes histórias de sucesso dos tempos
modernos
—
o
que
explica
por
que
a
advertência/premonição ficou na gaveta por dois
séculos.
Apesar das quantidades crescentes e das dores cada vez
mais profundas, os detritos humanos acumulados pelo
fervor e dedicação de incluir/excluir, desencadeados e
consistentemente reforçados pelo princípio e pela prática da
trindade
território/Estado/nação,
puderam
ser
legitimamente desprezados como uma irritação transitória e
essencialmente curável, em vez de serem vistos e tratados
como presságios de uma catástrofe iminente. As nuvens
escuras pareciam mais claras e as premonições sombrias
podiam ser afogadas em riso como "profecias do juízo final",
graças principalmente ao moderno empreendimento que
entrou para a história sob os rótulos de "imperialismo" e
"colonização" Juntamente com outras funções, esse
empreendimento serviu de unidade de depósito e
reciclagem para os crescentes suprimentos de lixo humano.
As atordoantes vastidões de "terras virgens" abertas à
colonização pelo impulso imperialista de invadir, conquistar
e anexar podiam ser usadas como depósitos de lixo para os
indesejados e funcionar como terra prometida para os que
subissem ou fossem atirados a bordo enquanto a nau do
progresso ganhava velocidade e prosseguia.
Assim, o mundo parecia tudo menos cheio. "Cheio" é
outra expressão — "objetivada" — para o sentimento
de estar lotado. Superlotado, para ser preciso.
Nada de Estátuas da Liberdade prometendo congregar as
massas oprimidas e abandonadas. Nada de rotas de fuga
nem esconderijos, a não ser para uns poucos malfeitores e
criminosos. Mas também (o que é, reconhecidamente, o
efeito mais surpreendente da plenitude do mundo há pouco
revelada) nada daquele chez soi seguro e aconchegante,
como os eventos do 11 de setembro provaram de modo
dramático e acima de qualquer dúvida razoável.
A colonização permitiu que as premonições de Kant
ficassem engavetadas. Mas também fizeram com que
parecessem, quando finalmente se abriu a gaveta, uma
profecia do apocalipse em lugar da alegre utopia pretendida
pelo filósofo. A visão de Kant agora parece assim porque,
devido à enganadora abundância de "terras de ninguém",
no curso desses dois séculos nada tinha de ser feito, e
portanto não o foi, para preparar a humanidade para a
revelação da definitiva plenitude do mundo.
Quando os últimos locais portando o rótulo de ubi leones
desaparecem rapidamente do mapa-múndi e as últimas das
muitas terras de fronteira distantes são reclamadas por
forças suficientemente poderosas para fechar divisas e
negar vistos de entrada, o mundo como um todo está se
transformado numa terra de fronteira planetária...
Em qualquer época as terras de fronteira foram
conhecidas ao mesmo tempo como fatores de
deslocamento e unidades de reciclagem dos
deslocados. Nada mais se pode esperar de sua nova
variedade global — exceto, é claro, a nova escala
planetária de produção e reciclagem dos problemas.
Permitam-me repetir: não há soluções locais para problemas
globais, embora sejam locais as soluções procuradas com
avidez, ainda que em vão, pelas instituições políticas
existentes, as únicas que até agora inventamos e de que
dispomos coletivamente.
Enredadas como essas instituições têm sido, desde o início
e ao longo de sua história, em esforços apaixonados
(hercúleos na intenção, sisíficos na prática) para selar a
união do Estado e da nação com o território, não surpreende
que todas elas tenham se tornado e permanecido locais, e
que seu poder soberano de empreender ações viáveis (ou,
mesmo, legítimas) seja localmente circunscrito.
Há, salpicadas em toda parte do mundo, "guarnições
de extraterritorialidade", aterros sanitários para o
lixo não-despejado e ainda não-reciclado da terra de
fronteira global.
Durante os dois séculos da história moderna, as pessoas
que não conseguiam transformar-se em cidadãos — os
refugiados, os migrantes voluntários e involuntários, os
"deslocados" tout court — foram naturalmente assumidas
como um problema do país hospedeiro e tratadas como tal.
Poucos, se é que algum, dos Estados-nação que
preencheram o mapa-múndi moderno estavam fixados tão
localmente quanto suas prerrogativas soberanas. Algumas
vezes de boa vontade, outras com relutância, praticamente
todos tiveram de aceitar a presença de estrangeiros no
território apoderado e admitir sucessivas levas de
imigrantes fugindo ou expulsos dos domínios de outros
Estados-nação soberanos. Uma vez lá dentro, porém, tanto
os estrangeiros estabelecidos quanto os recém-chegados
caíam sob a jurisdição exclusiva e indivisa do país
hospedeiro. Este último estava livre para apresentar versões
atualizadas e modernizadas das duas estratégias descritas
por Lévi-Strauss em Tristes trópicos como formas
alternativas de lidar com a presença de estrangeiros.
Recorrendo a essas estratégias, o país poderia contar com o
apoio entusiástico de todas as outras potências soberanas
do planeta, preocupadas em preservar o caráter inviolável
da trindade território/Estado/nação.
A opção disponível para o problema do estrangeiro oscilava
entre as soluções antropofágica e antropoêmica. A primeira
delas resumia-se em "comer os estrangeiros até o fim".
Fosse literalmente, pela carne (como no canibalismo
supostamente praticado por certas tribos antigas), ou em
sua versão sublimada, espiritual —como na assimilação
cultural praticada quase universalmente, com a anuência do
poder, pelos Estados-nação na intenção de ingerir no corpo
nacional os portadores de culturas estranhas, expelindo ao
mesmo tempo as partes indigestas de seus dotes culturais.
A segunda solução significava "vomitar os estrangeiros" em
vez de devorá-los: recolhê-los e expeli-los (exatamente o
que Oriana Fallaci, a formidável jornalista e formadora de
opinião italiana, sugeriu que nós, europeus, deveríamos
fazer com pessoas que adoram outros deuses e adotam
estranhos hábitos de higiene), fosse do domínio do poder de
Estado ou do próprio mundo dos vivos.
Observemos, contudo, que perseguir uma dessas duas
soluções só fazia sentido com base em pressupostos
gêmeos: o da clara divisão territorial entre o "dentro" e o
"fora" e o da inteireza e indivisibilidade da soberania do
poder de escolha estratégica no interior de seu domínio.
Nenhum dos dois goza de muita credibilidade nos dias de
hoje, em nosso líquido mundo moderno. E assim as chances
de empregar uma das duas estratégias ortodoxas são no
mínimo reduzidas.
Com as formas de ação testadas não estando mais
disponíveis, parece que ficamos sem uma boa estratégia
para lidar com recém-chegados. Numa época em que
nenhum modelo cultural pode afirmar, de modo
peremptório e efetivo, sua superioridade sobre os
concorrentes, e quando a mobilização patriótica voltada à
construção nacional deixou de ser o principal instrumento
de integração social e de auto-afirmação do Estado, a
assimilação cultural não figura mais no programa. Já que
deportações e expulsões criam imagens de televisão
dramáticas e perturbadoras, e podem desencadear os
clamores
do
público,
maculando
as
credenciais
internacionais dos responsáveis, a maioria dos governos
prefere, se possível, passar ao largo do problema fechando
as portas àqueles que batem em busca de abrigo.
A atual tendência a reduzir drasticamente o direito de asilo
político, acompanhada pela firme recusa ao ingresso de
"migrantes econômicos" (exceto nos momentos, poucos e
transitórios, em que as empresas ameaçam mudar-se para
onde a mão-de-obra está se esta não for trazida para onde
elas estão), essa tendência assinala não uma nova
estratégia com relação ao fenômeno dos refugiados, mas
uma ausência de estratégia, assim como o desejo de evitar
uma situação em que essa ausência acarrete embaraços
políticos. Nessas circunstâncias, o ataque terrorista de 11 de
setembro ajudou enormemente os políticos. Além das
acusações comuns de viverem à custa da previdência social
e de roubarem empregos, (19) ou de trazerem para o país
doenças há muito esquecidas, como a tuberculose, ou
recentemente surgidas, como a aids, (20) os refugiados
podem agora ser acusados de fazer o papel de "quinta
coluna" em favor da rede terrorista global. Há finalmente
um motivo "racional" inatacável para recolher, encarcerar e
deportar pessoas com as quais não se sabe mais lidar nem
se deseja ter o trabalho de descobrir. Nos Estados Unidos, e
logo depois na Inglaterra, sob a bandeira da "campanha
contra o terrorismo", estrangeiros foram prontamente
privados de direitos humanos essenciais que até então
haviam resistido a todas as vicissitudes da história desde a
Magna Carta e do habeas corpus. Estrangeiros podem agora
ser detidos indefinidamente sob acusações das quais não
podem se defender porque não lhes dizem quais são elas.
Na observação ácida de Martin Thomas, (21) de agora em
diante, numa dramática reversão do princípio básico do
direito civilizado, a "prova de uma acusação criminal é um
complicados redundante" — ao menos no que se refere aos
refugiados estrangeiros.
As portas podem estar fechadas, mas o problema não irá
embora, por mais bem resistentes que sejam as trancas.
Elas nada podem fazer para suavizar ou debilitar as forças
que causam o deslocamento e transformam seres humanos
em refugiados. As trancas podem ajudar a manter o
problema fora da vista e da mente, mas não podem forçá-lo
a se afastar de nossa vida.
E assim, cada vez mais, os refugiados se vêem sob
fogo cruzado —mais exatamente, numa encruzilhada.
Eles são expulsos à força ou afugentados de seus países
nativos, mas sua entrada é recusada em todos os outros.
Não mudam de lugar — perdem seu lugar na terra,
catapultados para lugar algum, para os "non-lieux" de Augé,
as "nowherevilles" de Garreau ou as "Narrenschiffen" de
Michel Foucault. Para um flutuante "lugar sem lugar,
existente por si mesmo, fechado em si mesmo e ao mesmo
tempo abandonado na infinidade do mar” (22). OU (como
sugere Michel Algier num artigo a ser publicado na revista
Ethnography) para um deserto, por definição uma terra
desabitada, avessa aos seres humanos e raramente
visitada.
Os refugiados se tornaram, à imagem caricatural da nova
elite do poder no mundo globalizado, a epítome daquela
extraterritorialidade em que se fincam as raízes da atual
precarité da condição humana, que tem lugar de destaque
entre os temores e ansiedades de nossos dias. Esses
temores e ansiedades, procurando em vão por outros
escoadouros, despejaram-se sobre o ressentimento e o
medo que os refugiados provocam. Não podem ser
desativados nem dispersos num confronto direto com a
outra encarnação da extraterritorialidade, a elite global
flutuando além do alcance do controle humano, poderosa
demais para que se possa enfrentá-la. Os refugiados, ao
contrário, são um alvo fixo em que se descarregar o excesso
de angústia...
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR), há entre 13 e 18 milhões de "vítimas
de deslocamento forçado" lutando para sobreviver além das
fronteiras dos seus países de origem (sem contar os milhões
de refugiados "internos" no Burundi e em Sri Lanka, na
Colômbia e em Angola, no Sudão e no Afeganistão,
condenados ao nomadismo por força de intermináveis
guerras tribais). Destes, mais de seis milhões estão na Ásia,
e de sete a oito milhões na África. Há três milhões de
refugiados palestinos no Oriente Médio. Essa estimativa é,
com certeza, conservadora. Nem todos os refugiados são
(ou desejam ser) reconhecidos como tais — só algumas das
pessoas deslocadas tiveram a sorte de serem registradas
pelo ACNUR e ficarem sob seus cuidados.
Aonde quer que vão, os refugiados são indesejados, e não
deixam dúvidas sobre isso. Os identificados como
"migrantes econômicos" (ou seja, pessoas que seguem os
preceitos da "escolha racional" e assim tentam encontrar
formas de subsistência onde elas podem ser encontradas,
em vez de ficarem onde elas não existem) são abertamente
condenados pelos mesmos governos que fazem de tudo
para que a "flexibilidade da força de trabalho" se transforme
na principal virtude de seu eleitorado, e que exortam os
desempregados de seus próprios países a "correrem atrás"
dos compradores de mão-de-obra. Mas a suspeita de
motivação econômica também respinga sobre aqueles
recém-chegados que, não muito tempo atrás, eram vistos
como pessoas no exercício de seus direitos humanos
procurando abrigar-se da discriminação e da perseguição.
Por associação repetida, a expressão "em busca de asilo"
adquiriu um sabor pejorativo. Grande parte do tempo e da
capacidade cerebral dos estadistas da "União Européia" é
empregada no planejamento de formas cada vez mais
sofisticadas de fechar e fortificar fronteiras, bem como dos
processos mais eficazes para se livrarem de pessoas em
busca de pão e abrigo que, apesar de tudo, tenham
conseguido cruzá-las.
Para não ficar atrás, David Blunkett, ministro do Interior
britânico, ameaçou cortar a ajuda dos países de origem dos
refugiados caso eles não levassem de volta os
"desqualificados em busca de asilo" (23). Essa não foi a
única idéia nova. Blunkett pretende "forçar o ritmo da
mudança", queixando-se de que, devido à falta de energia
de outras lideranças européias, "o progresso tem sido muito
lento" Ele deseja a criação de uma "força de operações
conjuntas", com a participação de todos os países europeus,
e de "uma força-tarefa de especialistas nacionais" para
"elaborar avaliações de riscos comuns, identificar os pontos
fracos nas ... fronteiras externas da União Européia, abordar
a questão da migração ilegal por via marítima e pôr fim ao
tráfico [novo termo destinado a substituir o conceito de
'trânsito, anteriormente nobre] de seres humanos".
Com a cooperação ativa de governos e pessoas influentes
que encontram no favorecimento e na instigação de
preconceitos populares o único substituto disponível para o
confronto das fontes genuínas da incerteza existencial que
assalta seus eleitores, as "pessoas em busca de asilo"
(como aquelas que reúnem suas forças nos inúmeros
Sangattes da Europa, preparando-se para a invasão das
ilhas britânicas, ou as que estão para se estabelecer, a
menos que as impeçam, em acampamentos estratégicos a
poucos quilômetros das residências dos eleitores), essas
pessoas estão tomando o lugar das bruxas, dos fantasmas
de malfeitores impenitentes e de outros espectros e
demônios das lendas urbanas. O novo folclore urbano, em
rápida expansão, com as vítimas dessa expulsão planetária
no papel de protagonistas mal-intencionados, assimila e
recicla a tradição oral das arrepiantes histórias de terror que
no passado encontravam uma ávida demanda, gerada, tal
como agora, pelas inseguranças da vida na cidade.
Aqueles migrantes que, apesar dos estratagemas mais
engenhosos, não podem ser rapidamente deportados, o
governo propõe confinar em campos construídos em lugares
possivelmente remotos e isolados — medida que transforma
em profecia auto-cumprida a crença de que eles não
desejam ou não podem ser assimilados à vida econômica do
país. Assim, como observa Gary Young, "efetivamente
erigem bantustões em torno da zona rural da Inglaterra,
encurralam os refugiados de formas que os deixam isolados
e vulneráveis" (24). (Pessoas em busca de asilo, assinala
Young, "são mais propensas a serem vítimas de crimes do
que a cometê-los")
Segundo os registros do ACNUR, estão confinados nesses
campos 83,2% dos refugiados na África e 95,9% na Ásia. Na
Europa, até agora são apenas 14,3%. Mas, até o momento,
há poucos sinais de que essa diferença em favor da Europa
se sustentará por muito tempo.
Os campos de refugiados ou as pessoas em busca de
asilo são artífices de uma instalação temporária que
o bloqueio das saídas torna permanente.
Os internos dos campos de refugiados ou as pessoas em
busca de asilo não podem voltar "ao lugar de onde vieram",
já que os países de origem não os querem de volta, suas
formas de subsistência foram destruídas e seus lares,
pilhados, demolidos ou roubados. Mas também não existe
um caminho à frente — nenhum governo teria satisfação
em ver o influxo de milhões de sem-teto, e qualquer um
faria o possível para evitar que os recém-chegados se
estabelecessem.
Quanto à sua nova localização "permanentemente
temporária, os refugiados "estão nela, mas não são dela".
Não pertencem verdadeiramente ao país em cujo território
foram montadas suas cabanas ou tendas portáteis. São
separados do restante dele por uma cortina de suspeitas e
ressentimentos que é invisível, mas ao mesmo tempo
espessa e impenetrável. Estão suspensos num vácuo
espacial em que o tempo foi interrompido. Não se
estabeleceram nem estão em movimento. Não são
sedentários nem nômades.
Nos termos em que habitualmente se descrevem as
identidades humanas, eles são inefáveis. São, em carne e
osso, os "indecidíveis" de Jacques Derrida. Entre pessoas
como nós, que outras valorizam e que se vangloriam das
artes da reflexão e auto-reflexão, eles não são apenas
intocáveis, mas também impensáveis. Num mundo
transbordando
de
comunidades
imaginadas,
são
inimagináveis. E é recusando-lhes o direito de serem
imaginados que os outros, agregados em comunidades
genuínas ou aspirantes a isso, buscam credibilidade para os
seus próprios esforços de imaginação.
A proliferação de campos de refugiados é um
produto/manifestação tão integral da globalização
quanto o denso arquipélago de nowherevilles através
do qual se movem os membros da nova elite em suas
viagens ao redor do mundo.
O atributo compartilhado por globetrotters e refugiados é
sua extraterritorialidade: não pertencerem ao lugar,
estarem "no" mas não serem "do" espaço que fisicamente
ocupam (os globetrotters numa sucessão de momentos
reconhecidamente fugazes, os refugiados numa série de
momentos infinitamente ampliada).
Pelo que sabemos, as nowherevilles dos campos de
refugiados — tal como as pousadas eqüidistantes em que se
hospedam os comerciantes supranacionais capazes de
viajar livremente — podem ser as cabeças-de-ponte de uma
extraterritorialidade que avança, ou (numa perspectiva mais
longa) laboratórios em que a dessemantização do lugar, a
fragilidade e descartabilidade dos meios, a indeterminação
e a plasticidade das identidades, e acima de tudo a nova
permanência da transitoriedade (todas elas tendências
constitutivas da fase "líquida" da modernidade) são
vivenciadas sob condições extremas: testadas como os
limites da elasticidade e da submissão humanas, assim
como as formas de atingi-los, foram testados nos campos
de concentração no estágio "sólido" da história moderna.
Como todas as outras nowherevilles, os campos de
refugiados são marcados por uma transitoriedade
intencional, pré-programada e embutida. Todas essas
instalações são concebidas e planejadas como um buraco
tanto no tempo como no espaço, uma suspensão transitória
na seqüência temporal da construção de identidades e da
atribuição territorial. Mas as faces que as duas variedades
de
nowherevilles
apresentam
a
seus
respectivos
usuários/internos diferem agudamente. Os dois tipos de
extraterritorialidade sedimentam-se, por assim dizer, em
lados opostos do processo de globalização.
O primeiro oferece a transitoriedade como uma instalação
livremente escolhida; o segundo a torna permanente — um
destino irrevogável e inelutável. Essa é uma diferença
parecida com a que separa os dois equipamentos da
permanência segura: as comunidades fechadas dos ricos
discriminadores e os guetos dos pobres discriminados. E as
causas dessa diferença também são semelhantes: de um
lado, entradas estritamente guardadas e vigiadas, mas
saídas escancaradas; de outro, uma entrada amplamente
indiscriminada, mas saídas cuidadosamente fechadas. É o
fechamento das saídas, em particular, que perpetua o
estado
de
transitoriedade
sem
substituí-lo
pela
permanência. Nos campos de refugiados, o tempo está
excluído da mudança qualitativa. Continua sendo tempo,
mas não é mais história.
Os campos de refugiados apresentam uma nova qualidade:
uma "transitoriedade congelada", um estado contínuo,
permanente, de temporalidade, uma duração de momentos
remendados, nenhum dos quais vivido como um elemento
da perpetuidade, muito menos como contribuição a ela.
Para os internos dos campos de refugiados, a perspectiva de
seqüelas a longo prazo e de suas conseqüências não faz
parte da experiência. Eles vivem, literalmente, um dia após
o outro, e os conteúdos da vida cotidiana não são afetados
pelo conhecimento de que os dias se combinam para
formarem meses e anos. Tal como nas prisões e
"hiperguetos" esmiuçados e vivamente descritos por Loïc
Wacquant, esses refugiados "aprendem a viver, ou melhor,
sobreviver [(sur)vivre] dia a dia na imediação do momento,
banhando-se no ... desespero que cresce dentro dos muros".
(25)
A corda que prende os refugiados aos campos é
trançada por forças de atração e repulsão.
Os poderes que governam o local onde as tendas ou
barracas foram armadas, e também as terras em torno do
campo, fazem o possível para evitar que os internos
escapem e se espalhem sobre o território adjacente. Mesmo
na ausência de guardas armados nas saídas, o lado de fora
do campo está, essencialmente, fora dos limites
estabelecidos para os internos. É, na melhor das hipóteses,
inóspito, cheio de pessoas circunspectas, insensíveis e
desconfiadas, ávidas por observar, registrar e sustentar
contra eles qualquer erro, real ou suposto, assim como
qualquer passo em falso que possam dar — coisa que os
refugiados, afastados de seu elemento e desconfortáveis
num ambiente estranho, estão propensos a fazer.
Na terra em que suas tendas temporárias/permanentes
foram armadas, os refugiados continuam sendo evidentes
"outsiders",
uma
ameaça
à
segurança
que
os
"estabelecidos" extraem de sua rotina diária até então
inconteste. São um desafio à visão de mundo que vinha
sendo universalmente compartilhada e uma fonte de
perigos ainda não confrontados, ajustando-se com
dificuldade às brechas familiares e evitando as formas
habituais de resolver problemas. (26)
O encontro de nacionais e refugiados é, com certeza, a
espécie mais espetacular de "dialética dos estabelecidos e
outsiders" (que parece ocupar em nossos dias o papel de
fixador de padrões que já pertenceu à dialética senhorescravo), descrita pela primeira vez por Elias e Scotson. (27)
Os "estabelecidos" usando seu poder de definir a situação e
impor essa definição a todos os envolvidos, tendem a
trancar os recém-chegados numa gaiola de estereótipos,
"uma representação altamente simplificada das realidades
sociais"* Estereotipar cria "um modelo em preto e branco"
que não deixa "espaço para as diversidades". Os outsiders
são culpados até prova em contrário, mas como são os
estabelecidos que combinam os papéis de promotores,
juízes de instrução e magistrados, de modo que
simultaneamente apresentam as acusações, julgam e
proferem a sentença, as chances de absolvição dos
outsiders são reduzidas, para não dizer nulas. Como Elias e
Scotson descobriram, quanto mais ameaçada a população
estabelecida se sente, mais tende a levar suas crenças "aos
extremos da ilusão e da rigidez doutrinária". Confrontada
com um influxo de refugiados, essa população tem todas as
razões para se sentir ameaçada. Além de representarem o
"grande desconhecido" que todos os estrangeiros
encarnam, os refugiados trazem consigo os ruídos de uma
guerra distante e o fedor de lares pilhados e aldeias
incendiadas que só podem lembrar aos estabelecidos a
facilidade com que o casulo de sua rotina segura e familiar
(segura porque familiar) pode ser rompido ou esmagado. Os
refugiados, como assinalou Bertold Brecht em Die
Landschaft des Exils [A paisagem do exílio], são "ein Bote
des Unglücks" ("um arauto das más notícias").
Aventurando-se do campo para um distrito vizinho, os
refugiados se expõem a um tipo de incerteza que
descobrem ser difícil de suportar depois da rotina diária do
campo, estagnante e congelada mas confortavelmente
previsível. A poucos passos do perímetro do campo, eles se
encontram num ambiente hostil. Seu direito de ingresso no
"lado de fora" é, na melhor das hipóteses, um assunto em
debate, podendo ser contestado por qualquer transeunte.
Em comparação com essa solidão externa, o interior do
campo pode muito bem passar por um refúgio seguro. Só o
imprudente e o aventureiro desejariam deixá-lo por um
tempo considerável, e bem poucos ousariam concretizar
esse desejo.
Usando termos tirados das análises de Loïc Wacquant, (28)
podemos dizer que os campos de refugiados misturam,
combinam e consolidam os traços distintivos da
"comunidade- gueto" da era Ford-Keynes com os do
"hipergueto" de nossos tempos pós-fordistas e póskeynesianos.
Se
as
"comunidades-guetos"
eram
semelhantes a totalidades sociais auto-sustentáveis e autoreprodutoras, com réplicas em miniatura da estratificação,
das divisões funcionais e das instituições características da
sociedade mais ampla, destinadas a atender à totalidade de
necessidades da vida comunal, os "hiperguetos" são tudo,
menos comunidades auto-sustentáveis. São grupamentos
populacionais truncados, artificiais e evidentemente
incompletos;
agregados,
mas
não
comunidades;
condensações topográficas incapazes de viver por si
mesmas. Já que as elites conseguiram sair do gueto e
deixaram de alimentar a rede de empreendimentos
econômicos que sustentava (ainda que precariamente) a
subsistência de sua população, as agências estatais de
proteção e controle (duas funções, via de regra,
intimamente interligadas) ocuparam seu lugar. O
"hipergueto" está preso por cordas que se originam além de
suas fronteiras e que certamente estão fora do seu controle.
Michel Agier enxergou nos campos de refugiados traços de
"comunidades-guetos" interligados, numa estreita rede de
dependência mútua, com os atributos do "hipergueto (29)
Podemos supor que essa combinação aperte com ainda
mais força os laços que prendem os internos do campo. A
força de atração que mantém juntos os moradores da
"comunidade-gueto" e a de repulsão que condensa os
proscritos no "hipergueto", ambas poderosas, se superpõem
e se reforçam mutuamente. Combinadas com a
efervescente e inflamante hostilidade do ambiente externo,
elas produzem uma força centrípeta esmagadora, difícil de
resistir, tornando totalmente redundantes as técnicas de
contenção
e
isolamento
desenvolvidas
pelos
administradores e supervisores dos Auschwitzes ou Gulags.
Mais
que
quaisquer
outros
micromundos
sociais
arquitetados, os campos de refugiados se aproximam do
tipo ideal de "instituição total" de Erving Goffman:
oferecem, por ação ou omissão, uma "vida total" de que não
se pode escapar, com o acesso a qualquer outra forma de
vida efetivamente barrado.
Tendo abandonado, voluntariamente ou à força, seu
ambiente antigo e familiar, os refugiados tendem a
ser despidos das identidades definidas, sustentadas
e reproduzidas por aquele meio.
Socialmente, são como "zumbis": suas antigas identidades
sobrevivem principalmente como fantasmas, assombrando
as noites dos campos de modo ainda mais doloroso por
serem totalmente invisíveis à luz do dia. Mesmo as mais
confortáveis, prestigiosas e invejáveis dentre as velhas
identidades tornam-se desvantajosas —dificultam a busca
por novas identidades mais adequadas ao novo meio,
impedem que se seja obrigado a enfrentar as novas
realidades e retardam o reconhecimento da permanência
dessa nova condição.
Para todos os fins práticos, os refugiados foram consignados
àquele estágio intermediário, "nem um nem outro", da
passagem em três etapas de Van Gennep e Victor Turner
(30) — mas sem que essa consignação tenha sido
reconhecida pelo que é, sem um tempo de duração
determinado, sobretudo sem a consciência de que a opção
de retorno à condição anterior não existe mais, e sem uma
indicação da natureza dos ambientes que podem aparecer
pela frente. Relembremos que, no esquema de "passagem"
tripartido, o desnudamento que privou os portadores dos
antigos papéis dos atributos sociais e símbolos culturais do
status que um dia tiveram (a produção social, com a
anuência do poder, do "corpo nu", como diria Giorgio
Agamben (31)) não era senão um estágio preliminar
necessário para recobrir os "socialmente nus" com a
parafernália de seu novo papel social. A nudez social
(freqüentemente também corpórea) era apenas um breve
intermezzo a separar os dois movimentos, dramaticamente
distintos, da ópera da vida — assinalando a separação entre
os dois meios, sucessivamente assumidos, de direitos e
obrigações sociais. É diferente, contudo, no caso dos
refugiados. Embora sua condição comporte todos os traços
(e conseqüências) da nudez social característica do estágio
de passagem intermediário, transitório (falta de definição
social e de direitos e deveres codificados), ela não é um
"estágio" intermediário ou transitório que leve a algum
"estado estacionário" específico e socialmente definido. Na
difícil situação dos refugiados, a condição designada como
"intermediação personificada" se estende indefinidamente
(uma verdade que o destino dramático dos campos de
refugiados palestinos trouxe recentemente, de modo
violento, à atenção do público). O "estado estacionário"
passível de emergir só pode ser um efeito colateral nãoplanejado e indesejado do desenvolvimento suspenso ou
interrompido — de tentativas fluidas, reconhecidamente
temporárias e experimentais, de sociação [sociation]
congelando-se imperceptivelmente em estruturas rígidas,
não mais negociáveis, que prendem os internos com mais
firmeza do que guardas armados e arame farpado.
A permanência da transitoriedade, a durabilidade do
transitório, a determinação objetiva não refletida na
seqüencialidade subjetiva das ações, o papel social
perpetuamente subdefinido, ou mais corretamente uma
inserção no fluxo da existência sem a âncora de um papel
social — todos esses traços da líquida vida moderna, assim
como outros correlates, foram expostos e documentados
nos
achados
de
Agier.
Na
extraterritorialidade
territorialmente fixada do campo de refugiados, eles
aparecem numa forma muito mais extrema, não-diluída e
assim mais claramente visível do que em qualquer outro
segmento da sociedade contemporânea.
Pode-se imaginar em que medida os campos de refugiados
seriam laboratórios onde (talvez de forma inadvertida, mas
nem por isso menos poderosa) o novo padrão de vida
líquido-moderno, "permanentemente transitório", está
sendo testado e ensaiado.
Em que medida as nowherevilles dos refugiados seriam
exemplos antecipados do mundo que está por vir, e seus
internos lançados/empurrados/forçados a assumir o papel
de exploradores pioneiros? Questões desse tipo só podem
ser respondidas em retrospecto — se é que podem.
Por exemplo, podemos ver agora — com o benefício do
retrospecto — que os judeus que deixaram os guetos no
século XIX foram os primeiros a experimentar e
compreender em sua totalidade a incongruência do projeto
de assimilação, assim como as contradições internas do
preceito corrente de auto-afirmação, vivenciadas mais tarde
por todos os habitantes da modernidade emergente. E
agora começamos a ver, novamente com o beneficio do
retrospecto, que os membros da intelligentsia multiétnica
pós-colonial (como Ralph Singh, nos Mímicos de Naipaul,
que não conseguia se esquecer de ter oferecido uma maçã
a sua professora favorita, como se supõe que faça toda
criança inglesa bem-educada, embora soubesse muito bem
que não há maçãs na ilha caribenha em que ficava a escola)
foram os primeiros a experimentar e compreender as falhas,
a incoerência e a falta de coesão fatais do preceito da
construção de identidade que seriam vivenciadas pouco
depois pelos demais habitantes do líquido mundo moderno.
Talvez chegue o momento de se descobrir o papel de
vanguarda desempenhado pelos atuais refugiados — de
explorar o sabor da vida na nowhereville e a obstinada
permanência da transitoriedade que pode se tornar o
hábitat comum dos moradores de nosso planeta total e
globalizado.
Só o tipo de comunidade que ocupa a maior parte do
discurso político de hoje, mas não pode ser
encontrada em nenhum outro lugar — a comunidade
global,
uma
comunidade
inclusiva,
mas
não
exclusiva, que se ajusta à visão de Kant da
allgemeine Vereinigung in der Menschengattung —,
poderia tirar os atuais refugiados do vácuo
sociopolítico ao qual foram relegados.
Todas as comunidades são imaginadas. A "comunidade
global" não é exceção. Mas a imaginação tende a se
transformar numa força integradora tangível, potente e
efetiva quando auxiliada pelas instituições socialmente
produzidas
e
politicamente
sustentadas
da
autoidentificação e do autogoverno coletivos. Isso já aconteceu
antes — no caso das nações modernas, casadas, na alegria
e na tristeza, até que a morte os separe, com os modernos
Estados soberanos.
No que se refere à comunidade global imaginada, uma rede
institucional similar (que agora só pode ser constituída por
agencias globais de controle democrático, por um sistema
jurídico globalmente sustentado e por princípios éticos
globalmente defendidos) é totalmente inexistente. E isso,
sugiro eu, é uma causa importante, talvez a principal,
daquela maciça produção de desumanidade a que,
eufemisticamente, se deu o nome de "problema dos
refugiados”.
À época em que Kant anotou seus pensamentos sobre a
comunidade humana, totalmente humana, que a Natureza
decretou ser o destino de nossa espécie, a universalidade
da liberdade individual foi declarada o propósito e a visão
orientadora cujo advento os homens da prática, inspirados e
observados de perto pelos homens do pensamento,
deveriam e seriam instados a perseguir e acelerar. A
comunidade humana e a liberdade individual eram vistas
como duas faces da mesma tarefa (ou, com mais precisão,
como irmãs siamesas), já que a liberdade (para citar o
estudo de Alain Finkielkraut sobre a herança do século XX
publicado sob o adequado título de "A perda da
humanidade" (32)) era concebida como equivalente à
"irredutibilidade do indivíduo à sua posição, status,
comunidade, nação, origens e linhagem". Os destinos da
comunidade planetária e da liberdade individual eram
considerados, com boa razão, inseparáveis. Presumia-se,
quando se pensava sobre o tema, que a Vereinigung in der
Menschengattung e a liberdade de todos os seus membros
só poderiam prosperar juntas, ou juntas fenecer e morrer,
mas nunca nascer sozinhas ou viver separadas. Ou a
participação na espécie humana supera todas as outras
atribuições e alianças, mais particulares, quando se trata da
formulação e alocação de leis e direitos produzidos pelo
homem, ou a causa da liberdade como direito humano
inalienável está comprometida ou mesmo totalmente
perdida. Tertium non datur.
Esse axioma logo perdeu sua incipiente auto-evidência e
veio a ser quase esquecido conforme os seres humanos,
libertos do confinamento em propriedades e linhagens
hereditárias, eram prontamente encarcerados na nova
prisão trina da aliança território/nação/Estado, enquanto os
"direitos humanos"— na prática política, se não na teoria
filosófica — eram redefinidos como produto da união
pessoal entre o súdito de um Estado, o membro de uma
nação e o residente legítimo de um território. A
"comunidade humana" parece tão distante da atual
realidade planetária quanto no início da aventura moderna.
Nas presentes visões do futuro, o lugar que se tende a
atribuir-lhe — se é que de fato se contempla tal atribuição
— está ainda mais distante do que há dois séculos. Ela não
parece mais iminente nem inescapável.
Até aqui, as perspectivas são sombrias.
Em sua recente e sóbria avaliação da atual tendência, David
Held considera que a afirmação do "status moral irredutível
de todas as pessoas e de cada uma delas" e a rejeição da
"visão dos particularistas morais de que pertencer a
determinada comunidade limita e determina o valor moral
dos indivíduos e a natureza de sua liberdade" ainda são
tarefas
importantes
e
amplamente
vistas
como
"desconfortáveis". (33)
Held observa uns poucos acontecimentos que trazem
esperança — em especial a Declaração dos Direitos
Humanos, das Nações Unidas, de 1948 e o Estatuto do
Tribunal de Crimes Internacionais de 1998, embora este
último ainda esteja esperando em vão pela ratificação e
seja sabotado de modo ativo por alguns dos principais
atores globais —, mas assinala ao mesmo tempo "fortes
tentações no sentido de simplesmente fechar as portas e
defender apenas a posição de alguns países e nações", As
perspectivas pós-11 de setembro também não são
particularmente animadoras. Elas contêm uma chance de
"reforçar as instituições multilaterais e os acordos jurídicos
internacionais", mas ainda há a possibilidade de reações
que "poderiam afastar-nos dessas frágeis conquistas, na
direção de um mundo com maiores antagonismos e divisões
—uma sociedade nitidamente incivil" Mas nosso consolo (o
único disponível, mas também — permitam-me acrescentar
— o único de que a humanidade necessita quando cai numa
era sombria) é o fato de que "a história ainda está conosco
e pode ser construída".
De fato. A história não terminou, de modo que escolhas
ainda podem ser feitas — e inevitavelmente serão. Cabe
indagar, porém, se as escolhas feitas nos últimos dois
séculos nos colocaram mais perto do alvo visado por Kant,
ou se, ao contrário, após 200 anos de ininterrupta
promoção, consolidação e predomínio do Princípio Trinitário,
nos encontramos mais longe desse alvo do que no início da
aventura moderna.
O mundo não é humano só por ser feito de seres
humanos, nem se torna assim somente porque a
voz humana nele ressoa, mas apenas quando se
transforma em objeto do discurso ... Nós
humanizamos o que se passa no mundo e em nós
mesmos apenas falando sobre isso, e no curso
desse ato aprendemos a ser humanos.
Esse humanitarismo a que se chega no discurso da
amizade era chamado pelos gregos de filantropia, o
"amor do homem", já que se manifesta na presteza
em compartilhar o mundo com outros homens.
Essas palavras de Hannah Arendt poderiam — deveriam —
ser lidas como prolegômenos a quaisquer esforços futuros
com o objetivo de reverter a tendência e aproximar a
história do ideal de "comunidade humana". Seguindo
Lessing, seu herói intelectual, Arendt adverte que a
"abertura aos outros" é "a precondição da 'humanidade' em
qualquer
sentido
dessa
palavra
...
O
diálogo
verdadeiramente humano difere da mera conversa ou até
da discussão por ser totalmente permeado pelo prazer com
a outra pessoa e com o que ela diz". (34) O grande mérito
de Lessing, na visão de Arendt, foi ficar "satisfeito com o
número infinito de opiniões que aparecem quando os
homens discutem os assuntos deste mundo" Lessing
alegrava-se com aquilo que sempre — ou pelo
menos desde Parmênides e Platão — perturbou os
filósofos: que a verdade, tão logo proferida, é
imediatamente transformada numa opinião entre
muitas, contestada, reformulada, reduzida a um
tema de discurso entre tantos outros. A grandeza de
Lessing não consiste meramente no insight teórico
de que não pode haver uma única verdade no
mundo humano, mas em sua alegria pelo fato de
que ela não existe e que, portanto, o infindável
discurso entre os homens jamais terminará
enquanto estes existirem. Uma única verdade
absoluta ... teria sido a morte de todas essas
disputas ... e isto poderia ter significado o fim da
humanidade. (35)
O fato de outros discordarem de nós (não prezarem o que
prezamos, e prezarem justamente o contrário; acreditarem
que o convívio humano possa beneficiar-se de regras
diferentes daquelas que consideramos superiores; acima de
tudo, duvidarem de que temos acesso a uma linha direta
com a verdade absoluta, e também de que sabemos com
certeza onde uma discussão deve terminar antes mesmo de
ter começado), isso não é um obstáculo no caminho que
conduz à comunidade humana. Mas a convicção de que
nossas opiniões são toda a verdade, nada além da verdade
e sobretudo a única verdade existente, assim como nossa
crença de que as verdades dos outros, se diferentes da
nossa, são "meras opiniões", esse sim é um obstáculo. Ao
logo da história, tais convicções e crenças extraem sua
credibilidade da superioridade material e/ou do poder de
resistência de seus portadores — e estes baseiam sua força
na firmeza da Regra Trinitária. Com efeito, o "complexo de
soberania" entrincheirado na [anti]santíssima união de
território, nação e Estado exclui efetivamente o discurso
que Lessing e Arendt consideravam a "precondição da
humanidade"* Permite que os parceiros/adversários
adulterem os dados e embaralhem maliciosamente as
cartas antes de começarem o jogo da comunicação mútua,
e que interrompam o debate antes que se esteja
perigosamente perto de descobrir a trapaça.
A Regra Trinitária tem um impulso autoperpetuador. Ele
confirma sua própria verdade à medida que ganha
ascendência sobre as vidas e mentes humanas. Um mundo
dominado por essa regra é um mundo de "populações
nacionalmente frustradas" que, estimuladas por sua
frustração, acabam convencidas de que "a verdadeira
liberdade, a verdadeira emancipação" só podem ser obtidas
"com a plena emancipação nacional" (36) — ou seja,
mediante a mágica mistura da nação com um território e
um Estado soberano. Foi a Regra Trinitária que causou a
frustração, e é ela mesma que se oferece como remédio. A
dor
sofrida
pelos
excluídos
da
aliança
territorial/nacional/estatal alcança suas vítimas depois de
previamente reprocessada na aparelhagem trinitária, e é
fornecida juntamente com um folheto explicativo e com sua
receita
certa
de
cura,
travestida
de
sabedoria
empiricamente validada. Durante o reprocessamento, a
aliança é transmutada, como num milagre, de maldição em
bênção, de causa da dor em anestésico.
Arendt conclui seu ensaio "Sobre a humanidade em
tempos sombrios" com uma citação de Lessing:
"Jeder sage, was ihm Wahrheit dünkt,/ und die
Wahrheit selbst sei Gott empfohlen" ("Que cada
homem diga o que considera a verdade,/ e que a
própria verdade seja confiada a Deus"). (37)
A mensagem de Lessing/Arendt é muito direta. Confiar a
verdade a Deus significa deixar em aberto a questão da
verdade (de "quem está certo"). A verdade só pode emergir
bem no final da conversa — e numa conversa genuína (quer
dizer, que não seja um solilóquio disfarçado). Nenhum
parceiro tem certeza, ou capacidade, de saber qual pode ser
esse final (se é que ele existe). Um orador, e também um
pensador que pensa do "modo orador", não pode, como
assinala Franz Rosenzweig, "prever coisa alguma; deve ser
capaz de esperar porque depende da palavra do outro —
precisa de tempo". (38) E como aponta Nathan Glazer, o
mais perspicaz dos discípulos de Rosenzweig, há "um
curioso paralelo" entre esse modelo de pensador no "modo
orador" e o conceito processual/dialético de verdade
proposto por William James: "A verdade acontece a uma
idéia. Ela se torna verdade, é transformada em verdade
pelos eventos. Sua veracidade é de fato um evento, um
processo: o de verificar-se, sua verificação. Sua validade é o
processo de sua validação." (39) A afinidade, com efeito, é
impressionante — embora, para Rosenzweig, a fala que se
engaja honesta e esperançosamente num diálogo, uma fala
incerta do resultado deste e portanto de sua própria
verdade, seja a principal substância do "evento" em que se
"faz" a verdade, e o principal instrumento desse "fazer"
A verdade é um conceito eminentemente agonístico. Nasce
do confronto entre crenças que resistem à conciliação e
entre seus portadores relutantes em chegar a um acordo.
Sem esse confronto, a idéia de "verdade" dificilmente teria
ocorrido, para começo de conversa. "Saber como ir em
frente" seria tudo de que se precisaria — e o ambiente em
que se faz necessário "ir em frente", a menos que desafiado
e assim tornado "estranho" e esvaziado de sua "autoevidência", tende a se completar com a inequívoca
prescrição de "ir em frente". Debater a verdade é uma
resposta à "dissonância cognitiva" Ela é instigada pelo
impulso a desvalorizar e desempoderar (despotencializar)
outra leitura do ambiente e/ou outra prescrição de ação que
lance dúvida sobre a leitura e a rotina de ação de alguém.
Esse impulso crescerá de intensidade quanto mais as
objeções/obstáculos se tornarem vociferantes e difíceis de
abafar. O interesse em debater a verdade, e o principal
propósito de sua auto-afirmação, é prova de que o
parceiro/adversário está errado e de que, portanto, as
objeções são inválidas e podem ser desprezadas.
Quando se trata de discutir a verdade, as chances de uma
"comunicação não-distorcida", tal como foi postulado por
Jürgen Habermas, se tornam diminutas. (40) Os
protagonistas dificilmente resistirão à tentação de recorrer a
outros meios, mais efetivos, que não a elegância lógica e o
poder persuasivo de seus argumentos. Em vez disso, farão o
possível para tornar os argumentos do adversário
inconseqüentes, de preferência inaudíveis ou, melhor ainda,
jamais vocalizados, pela desqualificação daqueles que, se
pudessem, os vocalizariam. Um argumento que tem grande
chance de ser apresentado é o da inelegibilidade do
adversário como interlocutor pelo fato de ele ser inepto,
mentiroso ou inconfiável, mal-intencionado ou claramente
inferior.
Se isso fosse possível, em vez de argumentar seria
preferível recusar a conversa ou abandonar o debate. Entrar
na discussão é, afinal, uma confirmação oblíqua das
credenciais do parceiro e uma promessa de seguir as regras
e padrões do discurso (contrafactualmente) lege artis e
bona fide. Acima de tudo, entrar na discussão significa,
como apontou Lessing, confiar a verdade a Deus. Em
termos mais objetivos, significa fazer do resultado do
debate um refém do destino. É mais seguro, se possível,
declarar os adversários errados a priori e privá-los da
capacidade de apelar do veredicto do que tentar enredá-los
num litígio judicial e expor o próprio argumento a um
interrogatório rigoroso, arriscando que seja rejeitado ou
derrotado.
O expediente de desqualificar o adversário num debate
sobre a verdade é usado com maior freqüência pelo lado
mais forte — nem tanto por sua maior iniqüidade, mas por
sua maior engenhosidade. Podemos dizer que a capacidade
de ignorar os adversários e fechar os ouvidos às causas que
eles promovem é o índice pelo qual se pode medir o volume
e o poder relativos dos recursos. Inversamente, voltar atrás
na recusa para debater e concordar em negociar a verdade
é com muita freqüência um sinal de fraqueza —
circunstância que torna o lado mais forte (ou alguém que
deseje demonstrar sua força superior) ainda mais relutante
em abandonar sua posição de rejeição.
A rejeição do estilo de Rosenzweig de "pensamento orador"
é capaz de se perpetuar e fortalecer. Do lado do mais forte,
a recusa em conversar pode passar por um sinal de que se
"tem razão", mas para o lado oposto a negação do direito
de defender sua causa que essa recusa acarreta, e
conseqüentemente a recusa em reconhecer seu direito de
ser ouvido e levado a sério como um portador de direitos
humanos, constituem as maiores afrontas e humilhações —
ofensas que não podem ser aceitas placidamente sem que
se perca a dignidade...
A humilhação é uma arma poderosa — mas do tipo
bumerangue. Pode ser usada para demonstrar ou provar a
desigualdade fundamental e irreconciliável entre quem
humilha e quem é humilhado. Mas, contrariando essa
intenção, ela de fato autentica, verifica a simetria, a
semelhança, a paridade de ambos.
Porém o grau da humilhação invariavelmente provocada por
todo ato de recusa em conversar não é a única razão para
que esta se autoperpetue. Na terra de fronteira em que
nosso planeta está rapidamente se transformando, em
conseqüência da globalização unilateral, (41) as repetidas
tentativas de superar, despotencializar e desqualificar o
adversário freqüentemente atingem os efeitos pretendidos,
embora com resultados que vão muito além daquilo que
seus perpetradores previam ou gostariam. Grandes partes
da África, Ásia e América Latina estão cobertas de traços
duradouros
deixados
por
antigas
campanhas
de
despotencialização: as numerosas terras de fronteira locais,
efeitos colaterais, ou dejetos, de que padecem as forças
beneficiárias das condições da terra de fronteira global, as
quais elas não podem deixar de disseminar e propagar.
Os exercícios de despotencialização são considerados "bemsucedidos" se o desarmamento do adversário for feito de tal
forma que elimine a esperança de recuperação. As
estruturas de autoridade são desmanteladas, os laços
sociais, cortados, as fontes costumeiras de subsistência,
devastadas e postas fora de operação (na terminologia
política da moda, os territórios assim afligidos são ditos
"Estados fracos" embora o termo "Estado", apesar da
restrição, só possa se justificar nesse caso por ser
empregado sons rature, como diria Derrida). Quando
sustentadas por um arsenal hightech, as palavras tendem a
se transformar em carne, obliterando assim sua própria
necessidade e propósito. Nas terras de fronteira locais, não
ficou nenhuma para contar a história — CQD.
Numa piada irlandesa, quando um motorista
pergunta ao transeunte "como se vai daqui para
Dublin", este lhe responde: "Se eu quisesse ir para
Dublin, não partiria daqui.”
Com efeito, pode-se facilmente imaginar um mundo mais
adequado para a jornada rumo à "unidade universal da
humanidade" kantiana do que aquele que por acaso
habitamos
hoje,
ao
fim
da
era
da
trindade
território/nação/Estado. Mas não existe outro mundo, e
assim não há outro lugar de onde se partir. No entanto não
iniciar a jornada, ou não iniciá-la logo, não é — neste caso,
sem dúvida — uma opção.
A unidade da espécie humana postulada por Kant pode ser,
como ele sugeria, compatível com a intenção da Natureza,
mas certamente não parece algo "historicamente
determinado" O continuado descontrole da rede já global de
dependência mútua e de "vulnerabilidade reciprocamente
assegurada" decerto não aumenta a chance de se alcançar
tal unidade. Isso só significa, contudo, que em nenhuma
outra época a intensa busca por uma humanidade comum,
assim como a prática que segue tal pressuposto, foi tão
urgente e imperativa como agora.
Na era da globalização, a causa e a política da humanidade
compartilhada enfrentam a mais decisiva de todas as fases
que já atravessaram em sua longa história.
Notas
1. Apaixonar-se e desapaixonar-se
1. Erich Fromm, The Art of Loving. Londres, Thorsons,
(1957), 1995, p.vii.
2. Emmanuel Levinas, Le temps et i’autre. Paris, Presses
Universitaires de France, 1991, p 81, 78.
3. Guardian Weekend, 12 jan 2002.
4. Adrienne Burgess, Will You StilI Love me
Tomorrow(Londres, Vermilion, 2001), citado no Guardian
Weckend, 26 jan 2002.
5. Knud Løngstrup, Den Etiske Fordring. [Ed. ing.: The
Ethical Demand. Notre Dame, University of Notre Dame
Press, 1997, p.24-5.]
6. Erich Fromm, The Art of Loving, op.cit.
7. David L. Norton e Mary E KiIle (orgs.), Philosophies of
Love. Nova York, Helix Books, 1971.
8. Franz Rosenzweig, Das Büchlein vom gesunden und
kranken Menschenverstand. {Ed. ing.: Understanding
the sick and the healthy. Org. N.N. Glatzer, Harvard,
Harvard University Press, 1999.]
9. Guardian Weekend, 9 mar 2002.
10. Richard Sennett, The Fall of Public Man. Londres/Nova
York, Random House, 1978, p.259ss. [Ed. bras.: (O
declínio do homem público, São Paulo, Companhia das
Letras, 1988.]
11. Guardian Weekend, 6 abr 2002.
2. Dentro e fora da caixa de ferramentas da
sociabilidade
1. Volkmar Sigusch, "The neosexual revolution", Archives
of Sexual Behavior 4, 1989, p.332-59.
2. Erich Fromm, The Art of Loving. Londres, Thorsons,
(1957), 1995.
3. Ibid., p.41-3, 9-11.
4. Volkmar Sigusch, "The neosexual revolution", op.cit.
5. Milan Kundera, L'Immortalité. [Ed. ing.: Immortality.
Londres, Faber, 1991, p.338-9.1
6. Judith Butler, Bodies that Matter: On the Discursiva
Limits of Sex. Londres, Routledge, 1993.
7. Sigmund Freud, "Dia kulturelle Sexualmoral und dia
moderna Nervosität". [Ed. bras.: "A moral sexual
'civilizada' e a doença nervosa moderna", in ESB, vol. IX,
Rio de Janeiro, Imago, 1976.]
8. Jonathan Rowe, "Reach out and annoy someone",
Washington Monthly, nov 2002.
9. John Urry, "Mobility and proximity", Sociology, mai 2002,
p.255-74.
10. Ver As regras do método sociológico, de Émile
Durkheim. [Ed. ing. in Anthony Giddens, Émile
Durkheim: Selected Writings. Cambridge, Cambridge
University Press, 1972, p.71, 64.1
11. Michael Schluter e David Lee, The R Factor. Londres,
Hodder and Stoughton, 1993, p.15, 37.
12. Louise Franca, "Love at first site", Observer Magazine,
30 jun 2002.
13. Jonathan Rowe e Judith Silverstein, "The GDP myth: Why
'growth' isn't always a good thing", Washington Monthly
mar 1999.
14. Aqui citado de acordo com Jonathan Rowe, "Z zycia
ekonomistow , Obyawatel 2 (2002); originalmente
publicado em julho de 1999.
15. Para o conceito de "sociabilidade", ver, de minha
autoria, Postmodern ethics. Oxford, Polity, 1993, p.119.
A justaposição de "sociabilidade" e "socialização" é
paralela à de "espontaneidade" e "administração". "A
sociabilidade coloca a singularidade acima da
regularidade e o sublime acima do racional, sendo
portanto geralmente inóspita às regras, tornando
problemática a redenção discursiva destas últimas e
cancelando o significado instrumental da ação."
16. Ver o profundo estudo de Valentina Fedotova, "Anarkhia
i poriadok" (Anarquia e ordem). Voprosy Filosofii 5
(1997), recentemente reimpresso numa coletânea de
estudos da autora sob o mesmo título (Moscou, Editorial
URSS, 2000, p.27-50).
17. Victor Turner, The Ritual Process: Structure and Antistructure. Londres, Routledge, 1969, p.96.
3. Sobre a dificuldade de amar o próximo
1. Sigmund Freud, "Das Unbehagen in der Kultur". [Ed.
bras.: "O mal-estar na civilização", in ESB, vol.XXI, Rio
de Janeiro, Imago, 1976.]
2. Knud Logstrup, Etiske fordring. [Ed. ing.: The Ethical
Demand. Notre Dame, University of Notre Dame Press,
1997, p.8.]
3. Leon Shestov, "All things are perishble", in Bernard
Martin (org.), A Shestov Anthology. Columbus, Ohio
State University Press, 1970, p.70.
4. Anthony Giddens, The Transformation of Intimacy:
Sexuality, Love and Eroticism in Modern Societies.
Oxford, Polity, 1992, p.58, 137.
5. Knud Logstrup, After the Ethical Demand. Aarhus,
Dinamarca, Universidade Aarhus, 2002, p.26.
6. Ibid., p.28.
7. Ibid., p.25.
8. Ibid., p.14.
9. Martin Heidegger, Sein und Zeit, publicado pela primeira
vez no Jahrbuch für Philosophie und Phãnomenologische
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
Forschung (1926).
Knud Logstrup, After the ethical demand, op.cit., p.4, 3.
Ibid., p.1-2.
G. Gumpert e S. Drucker, "The mediated honre in a
global village", Communication Research 4, 1996,
p.422-38.
Stephen Graham e Simon Marvin, Splintering Urbanism.
Londres, Routledge, 2001, p.285.
Ibid., p.15.
M. Schwarzer, "The ghost wards; the flight of capital
from history", Thresholds 16, 1998, p.10-9.
M. Castells, The Informational City. Oxford, Blackwell,
1989, p.228.
Michael Peter Smith, Transnational Urbanism: Locating
Globalization. Oxford, Blackwell, 2001, p.54-5; e ver
John Friedman "Where we stand: A datada of world city
research", in P.L. Knox e P.J. Taylor (orgs.), World Cities in
a World System. Cambridge, Cambridge University
Press, 1995; David Harvey, "Froco space to placa and
back again: Reflections on the condition of
postmodernity", in J. Bird et al. (orgs.), Mapping the
Futures. Londres, Routledge, 1993.
Manuel Castells, The Power of Identity. Oxford,
Blackwell, 1997, p.61, 25.
Manuel Castells, "Grassrooting the space of flows", in
J.O. Wheeler, Y. Aoyama e B. Warf (orgs.), Cities in the
Telecommunications Age: The Fracturing of
Geographies. Londres, Routledge, 2000, p.20-1.
Michael Peter Smith, Transnational Urbanism, op.cit.,
p.108.
John Hannigan, Fantasy City. Londres, Routledge, 1998.
B.J. Widick, Detroit: City of Race and Class Violence,
Detroit, Wayne State University Press, 1989, p.210.
John Hannigan, Fantasy City, op.cit., p.43, 51.
Ver a entrevista de Steve Profitt ao Los Angeles Times,
12 out 1997.
25. Michael Storper, The Regional World: Territorial
Development in a Global Economy. Hove, UK, Guilford
Press, 1997, p.235.
26. Teresa Caldeira, "Fortified andavas: The new urban
segregation", Public Culture, 1996, p.303-28.
27. Nan Elin, "Shelter from the storm, or Forco follows fear
and vice versa", in Nan Elin (org.), Architecture of Fear.
Princeton, Princeton Architectural Press, 1997, p.13, 26.
28. Steven Flutsy, “Bulding paranoia”, in Nan Elin,
Architecture of Fear, op. cit., p.48-52.
29. Richard Sennett, The Uses of Disorder: Personal Identity
and City Life. Londres, Faber, 1996, p.39,42
30. Ibid, p.194.
31. Ver, por exemplo, William B. Beyer, “Cyberspace or
human space: Whiter cities in the age of
telecommunications?”, in J.O. Wheeler, Y. Aoyama e B.
Warf (orgs.), Cities in the Telecommunications Age,
op.cit., p.176-8.
4. Convívio destruído
Outra versão desse capítulo foi publicada, sob o título "The
fate of humanity in the post-Trinitarian world" [O destino da
humanidade no mundo pós-trinitário], no Journal of Human
Rights no 3 (2002).
1. D.G. Mc Neil Jr., "Politicians pander to fear of crime",
New York Times, 5-6 mai 2002.
2. Ver Nathaniel Herzberg e Cécile Prieur, "Lionel Jospin et
le 'piège' sécuritaire", Le Monde, 5-6 mai 2002.
3. Citado por D.G. Mc Neil Jr., "Politicians pander to fear of
crime".
4. Ver USA Today, 11 jun 2002, especialmente "Al-Qaeda
operativa tipped off plot", "US: Dirty bomb plot foiled" e
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
"Dirty bomb plot: 'The future is here, I'm afraid'".
Como Giorgio Agamben descobriu. Ver seu Homo sacer.
Il podere sovrano e la nuda vida. Torino, Einaudi, 1995.
Giorgio Agamben, Mezzi senza fini (1996). [Ed. ing.:
Means without Ends: Notes on Politics. Minneapolis,
University of Minnesota Press, 2000, p.20.]
Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France
(1790), citado por Hannah Arendt a partir da edição
organizada por E.J. Oayne (Everyman's Library).
Hannah Arendt, The origins of totalitarianism. Londres,
Andre Deutsch, 1986, p.300, 293. [Ed. bras.: As origens
do totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras,
1989.]
Ver a nota dos tradutores in Agamben, Means Without
Ends, op.cit., p.143.
"Karl Jaspers: Citizen of the world?", in Hannah Arendt,
Men in Dark Times. Nova York, Harcourt Brace, 1993,
p.81-94. [Ed. bras.: Homens em tempos sombrios. São
Paulo, Companhia das Letras, 1987.]
Giorgio Agamben, Means without Ends, op.cit., p.21.
Victor Turner, The Ritual Process: Structure and Antistructure. Londres, Routledge, 1969, p.170, 96.
Hannah Arendt, "On humanity in dark times: Thoughts
about Lessing", in Men in Dark Times, op.cit., p.15.
Carl Schmitt, Theorie des Partisanen.
Zwischenbemerkungzum Begriff des Politischen. Berlim,
Duncker and Humboldt, 1963, p.80. Ver a discussão em
Giorgio Agamben, Homo sacer, op.cit. [Ed. ing.: Homo
sacer: Sovereign Power and Bare Life. Stanford, Stanford
University Press, 1998, p.137.]
Carl Schmitt, Politische Theologie. Vier Kapitel sur Lebre
von der Souveränität. Berlim, Duncker and Humboldt,
1922, p.19-21. Ver a discussão em Giorgio Agamben,
Homo sacer, op.cit. [Ed. ing.: Homo sacer, op.cit.,
p.15ss.]
16. Giorgio Agamben, Homo sacer, op.cit. [Ed. ing.: Homo
sacer, op.cit., p.18.]
17. Ibid., p.142.
18. Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, op.cit.,
p.204.
19. Acusação avidamente empregada, com grande proveito,
por um número crescente de políticos contemporâneos
de todos os setores do espectro, de Le Pen, Pia
Kjersgaard ou Vlaam Bloc, na extrema direita, a um
número cada vez maior daqueles que se definem como
de "centro-esquerda".
20. Ver, por exemplo, o editorial do Daily Mail de 5 de
agosto de 2002 sobre a "chegada de levas de
trabalhadores que já sofrem do vírus da Aids".
21. Guardian, 26 nov 2001.
22. Ver Michel Foucault, "Of other spaces", Diacritics 1,
1986, p.26.
23. Ver Alan Travis, "UK plan for asylum crackdown",
Guardian, 13 jun 2002.
24. Gary Younge, "Villagers and the damned", Guardian, 24
jun 2002.
25. Ver Loïc Wacquant, "Symbole fatale. Quand ghetto et
prison se ressemblent et s'assemblent", Actas de la
Recherche en Sciences Sociales, set 2001, p.43.
26. Ver Norbert Elias e John L. Scotson, The Established and
the Outsiders: A Sociological Inquiry into Community
Problems. Londres, Frank Cass, 1965, especialmente
p.81 e 95. [Ed. bras.: Os estabelecidos e os outsiders.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.]
27. Idem.
28. Ver Loïc Wacquant, "The new urban color line: the state
and fate of the ghetto in postfordist America", in Craig J.
Calhoun (org.), Social Theory and the Politics of Identity.
Oxford, Blackwell, 1994; também "Elias in the dark
ghetto", Amsterdams Sociologisch Tidjschrift, dez 1997.
29. Ver Michel Agier, "Entreguerre et ville", Ethnography 3,
2002, p.317-42.
30. O primeiro estágio consiste no desmantelamento da
antiga identidade, o terceiro e último na montagem de
uma nova. Ver Arnold van Gennep, The Right of
Passage. Londres, Routledge and Kegan Paul, 1960;
Victor Turner, The Ritual Process, op.cit.
31. Giorgio Agamben, Homo sacer, op.cit.
32. Alain Finkielkraut, L'Humanité perdu. Paris, Seuil, 1996,
p.43.
33. David Held, "Violence, law and justice in a global age",
Constellations, mar 2002, p.74-88.
34. Hannah Arendt, "On humanity in dark times", in Men in
Dark Times, op.cit., p.24-5, 15.
35. Ibid., p.26-7.
36. Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, op.cit.,
p.272.
37. Hannah Arendt, "On humanity in dark times", in Men in
Dark Times, op.cit., p.31.
38. Franz Rosenzweig, Das Büchlein vom gesunden und
kranken Menschenverstand. [Ed. ing.: Understanding
the Sick and the Healthy. Org. N.N. Glatzer, Harvard,
Harvard University Press, 1999, p.14. ]
39. Citado por Glatzer in ibid., p.33, seguindo William James,
Pragmatism, Londres, 1907, p.201. A ligação íntima
entre as idéias de Rosenzweig e de James foi sugerida
pela primeira vez por Ernst Simon em 1953.
40. Jürgen Habermas observa corretamente que a
expectativa de consenso universal é construída em
qualquer conversa e que sem ela a expectativa de
comunicação seria totalmente inconcebível. O que ele
não diz, porém, é que, se existe a crença de que o
consenso será atingido em circunstâncias ideais em
função de "uma única verdade" à espera de ser
descoberta e aceita como tal, então algo mais se
"embute" em qualquer ato de comunicação: a tendência
a tornar redundantes todos os participantes da
conversa, exceto um, juntamente com a variedade de
visões que eles sustentam e defendem. Odo Marquard,
em Abschied vom Prinzipiellen (Leipzig, Philipp Reclam,
1991), sugere que por essa interpretação o ideal de
"comunicação não-distorcida" parece uma vingança
póstuma do solipsismo...
41. Ver o capítulo "Living and dying in the planetary frontierland", em meu Society under Siege. Oxford, Polity,
2002.