Rev. Cent. Estud. Port., Belo Horizonte, v. 41, n. 65, p. 329-332, 2021
ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. As telefones. Lisboa:
Relógio d’água, 2020.
Roberta Guimarães Franco
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais /
Brasil
robertagfranco14@gmail.com
http://orcid.org/0000-0003-0098-2481
“Se fosse uma peça de teatro, haveria um telefone no palco e
elas em cena, faladoras, mas surdas. Falariam uma com a outra, sem
se ouvirem nem se responderem. Duas tagarelas surdas” (ALMEIDA,
2020, p. 27). A passagem citada resume, em muitos sentidos, a estrutura
do último livro de Djaimilia Pereira de Almeida, jovem escritora, mas
já consolidada pela crítica e pelas pesquisas acadêmicas. As telefones,
publicado em maio de 2020, é o sexto livro da escritora que estreou em
2015 com a obra Esse cabelo.
Dando continuidade ao tema do trânsito entre Angola e Portugal,
iniciado em 2015 com Esse cabelo e reiterado em 2017 com o romance
Luanda, Lisboa, Paraíso, As telefones concentra-se agora em um universo
familiar bastante restrito – a relação entre mãe e filha – mas igualmente
fragmentado, como aqueles que compõem os livros anteriores: famílias
divididas entre os dois países, por razões várias que desenham o cenário
das migrações posteriores ao processo de descolonização angolana. O
artigo no plural e no feminino “as”, aplicado ao objeto substantivo
masculino “telefone”, delimita as protagonistas dessa história, mediada
quase unicamente pelo contato telefônico, com raríssimos encontros
presenciais, em Luanda ou em Lisboa.
Formado por pequenos capítulos, o livro de aproximadamente
noventa páginas, apresenta os “diálogos” entre mãe e filha – Filomena
e Solange – separadas já na primeira infância da menina, quando
eISSN: 2358-9787
DOI: 10.17851/2358-9787.38.59.329-332
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Filomena decide mandar a filha para Portugal, para ser criada por sua
irmã, já que a fome e o desemprego, para além do cenário de guerra civil
em Angola, a impediam de cuidar de si mesma e de Solange: “Depois
veio fome, eh fome mesmo de verdade, tive de te mandar para a casa
da tua tia Benedita, a minha irmã tinha casa bem posta, comida na
mesa” (ALMEIDA, 2020, p. 29). Retomando a passagem citada como
abertura desta resenha, e justificando o uso anteriormente de aspas
na palavra “diálogos”, a relação entre mãe e filha confere à narrativa
inúmeros momentos de silêncio, afinal estamos diante de “faladoras /
tagarelas surdas”.
O silêncio também está presente na constante metáfora
do desconhecimento do corpo alheio, que se desdobra no auto-desconhecimento. A filha Solange, uma das vozes narradoras de As
telefones, anuncia, já na abertura do livro, a impossibilidade: “Não
conheço o teu corpo, Filomena. Não conheço o meu corpo. De olhos
fechados, não me lembro da tua cara. De olhos fechados, não sei como
é a minha cara. Conhecemo-nos por telefone” (ALMEIDA, 2020, p. 9).
A afirmação do desconhecimento, de um tipo de presença-ausente, será
reiterada por Solange ao longo da narrativa, não conhecer a imagem da
sua origem significa uma barreira intransponível para a construção do
seu próprio caminho: “Não conheço o meu corpo porque não conheço
o teu. [...] A cada instante, és para mim um vazio. Não sei com quem
me pareço, como se a verdade fosse uma história sem princípio. Se não
conheces o meu corpo, também não o conheço” (ALMEIDA, 2020, p. 19).
Embora o livro aborde a relação por meio da multiplicidade
de vozes narrativas – ora a mãe, ora a filha e ainda há a presença de
um narrador onisciente – é majoritariamente pela perspectiva de
Solange que conhecemos a história de distância, de fragilidade, de
raros encontros, mas sobretudo de persistência. A manutenção do elo
entre mãe e filha só é possível pela fala que emprenha os ouvidos: “A
distância entre nós, a morte. Para sobrevivermos, quando não estamos
em linha, não existimos. O telefonema: uma ressureição semanal,
seguida de nova escuridão. Habituámo-nos ao que as chamadas fizeram
de nós. Emprenhámos pelos ouvidos” (ALMEIDA, 2020, p. 11); mas
que como já vimos é também surda. Nesse sentido, a sobrevivência é
sempre dúbia, não significa morrer, já que os batimentos, a respiração,
estão lá, mesmo que ao longe por telefone, mas tampouco significa vida
em seu sentido pleno, pois a falta de uma imagem que corporifique
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aquela mãe leva a uma inexistência: “Não existes a sério, nem quando
estamos juntas. És a telefonista do abismo” (ALMEIDA, 2020, p. 49).
Diante desse jogo de sobrevivência, entre vida e morte,
presença e ausência, existência e inexistência, cabe ao leitor igualmente
o lugar de escuta, que justifica mais uma vez o título no feminino dado
à obra. Complementando as brechas que a estrutura narrativa gera ao
simular, em vários momentos, a conversa telefônica, ouvida apenas
de um lado da linha, o leitor atravessa os pequenos capítulos dessa
história de distância. Formado por pouquíssimos diálogos em discurso
direto, Djaimilia utiliza a grafia em itálico para marcar os capítulos
que correspondem à presença da mãe ao telefone, capítulos inteiros
de uma conversa-monólogo, já que o leitor está diante apenas da fala
de Filomena. Em fonte regular encontramos a narração de Solange,
entrecortada em raros momentos pelo itálico da voz materna. Pertence
ao narrador onisciente os incomuns momentos de encontro, observando
mãe e filha nos passeios em Lisboa ou na vida doméstica em Luanda,
como também em um dos momentos mais marcantes do livro, quando
Filomena entrega à Solange os seus dentes de leite, guardados durante
quase quarenta anos, como se guardasse o corpo da própria filha, ainda
criança.
As telefones configura-se assim como uma narrativa que se
insere em um projeto literário maior na produção de Djaimilia Pereira de
Almeida, projeto voltado para essas vivências familiares, para o âmbito
privado, entrecortado por uma história recente de migrações de um
antigo império colonial. Vale lembrar, por exemplo, que a estrutura de
capítulo-telefone, bem como a de capítulo-carta, também foi utilizada
pela autora em Luanda, Lisboa, Paraíso, para assinalar aquela voz
distante, da mãe e da esposa que ficou em Luanda enquanto marido e
filho, Cartola e Aquiles rumaram para a antiga capital do Império. Para
o leitor, mais uma peça desse complexo quebra-cabeças que é a história
diaspórica e atlântica, no caso português e angolano extremamente
recente, costurada aqui pelas distâncias que se aproximam por uma
chamada telefônica.
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Referência
ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. As telefones. Lisboa: Relógio d’água,
2020.
Data de recebimento: 30/03/2021
Data de aprovação: 28/04/2021