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AUTONARRATIVAS COMO AUTOCONHECIMENTO: UMA
EXPERIÊNCIA DIDÁTICA NA PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE
Nize PELLANDAi
Fabiana PICCININii
RESUMO
Este artigo discute a narrativa como ação/configuração do pensar e do sentir e as potencialidades que
porta no sentido epistêmico e ontogênico. Com isso, pretende-se problematizar o conceito de cognição
como representação de uma realidade objetiva divorciada da experiência individual, nos moldes
propostos por Bateson (1990), Espinosa (1983) e Morin (2010). Na complexidade, considera-se o
processo de aprendizagem de forma indissociável da ontogênese de cada ser humano, entendendo o
aprender como subjetivação. Do ponto de vista metodológico, procedeu-se a investigação a partir da
experiência em sala de aula, com nove alunos da disciplina Epistemologia da Complexidade, de um
Programa de Pós-Graduação em Letras, cujas autonarrativas foram tratadas por meio do método
cartográfico, que proporcionou a evidência de que o falar, emocionar e conhecer são tecidos juntos.
Assim, a partir da meditação e do uso de koans, haicais e mandalas, as autonarrativas geradas
evidenciaram a indissociabilidade da ontogênese e da constituição de si, em um contraponto ao
paradigma linear e dicotômico da educação tradicional.
PALAVRAS-CHAVE: Autonarrativas; Cognição; Complexidade; Ontoepistemogênese.
SELF-NARRATIVES AS SELF-KNOWLEDGE: A DIDACTIC EXPERIENCE IN THE
PERSPECTIVE OF COMPLEXITY
ABSTRACT
This article discusses the narrative as action/configuration of thinking and feeling and the potentialities
that it carries in the epistemic and ontogenic sense. With this, we intend to problematize the concept of
cognition as a representation of an objective reality divorced from the individual experience, as
proposed by Bateson (1990), Espinosa (1983) and Morin (2010). In complexity, the learning process is
considered inseparably from the ontogenesis of each human being, understanding learning as
subjectivation. In complexity, the learning process is considered inseparable from the ontogenesis of
each human being, understanding learning as subjectification. From a methodological point of view,
the investigation proceeded from the experience in the classroom, with nine students of the discipline
Epistemology of Complexity, from a Graduate Program in Language and its Literature, whose selfnarratives were treated using the cartographic method, which provided the evidence that speaking, stir
emotions and knowing are woven together. Thus, from meditation and the use of koans, haiku and
i
Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992) e Doutorado sanduíche em
Educação - Miami University – Ohio - EUA (1992). Fez estágio de Pós-doutoramento na Universidade do
Minho. Professora adjunta da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). E-mail: nizepe@uol.com.br.
ii
Doutorado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora e
pesquisadora do Curso de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de
Santa Cruz do Sul (UNISC). E-mail: fabi@unisc.br.
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mandalas, the self-narratives generated showed the inseparability of ontogenesis and the constitution
of the self, in counterpoint to the linear and dichotomous paradigm of traditional education.
KEYWORDS: Self-narratives; Cognition; Complexity; Ontoepistemogenesis.
AUTONARRATIVAS COMO AUTOCONOCIMIENTO: UNA EXPERIENCIA DIDÁCTICA
EN LA PERSPECTIVA DE LA COMPLEJIDAD
RESUMEN
Este artículo discute la narrativa en cuanto a acción/configuración del pensar y del sentir y las
potencialidades que porta en el sentido epistémico y ontogénico. Con ello, se pretende problematizar el
concepto de cognición como representación de una realidad objetiva divorciada de la experiencia
individual, en los moldes propuestos por Bateson (1990), Espinosa (1983) e Morin (2010). En la
complejidad, se considera el proceso de aprendizaje de forma indisociable de la ontogénesis de la
ontogénesis de cada ser humano, entendiendo el aprendizaje como subjetivación. Del punto de vista
metodológico, se procedió a investigar a partir de la experiencia en el aula, con nueve alumnos da
disciplina Epistemología de la Complejidad, de un Programa de Post-Graduación en Letras, cuyas
autonarrativas fueron tratadas mediante el método cartográfico que proporcionó la evidencia de que
el hablar, emocionar y conocer son tejidos juntos. Así, a partir de la meditación y del uso de koans,
haicais y mandalas, las autonarrativas generadas evidenciaron la indisociabilidad de la ontogénesis y
de la constitución de sí, en un contrapunto al paradigma lineal y dicotômico de la educación tradicional.
PALABRAS CLAVE: Autonarrativas; Cognición; Complejidad; Ontoepistemogénesis.
1 UM OLHAR COMPLEXO SOBRE A DOCÊNCIA
A proposição acerca do sentido da docência pressupõe, por princípio, considerar um
certo lugar para quem apresenta esta reflexão que principia pelo meta-questionamento. O que,
afinal, a docência pode significar para este ator em seu fazer no processo ensino-aprendizagem?
Inicialmente, considera-se, portanto, este como um espaço de autoconstrução que, sob a
perspectiva da complexidade (MORIN, 2001), afeta, bem como produz afetamentos
(MATURANA, 2004), de forma intensa na medida em que a dinâmica estabelecida com os
alunos, mediada pelos conteúdos, resulta na sua reconfiguração contínua e na do próprio
docente.
Trata-se, assim, de uma sistemática de provocação/afetação/ressignificação/provocação
em efeito bumerangue. Em razão disso, forma-se, nesse circuito, um sistema em rede de
complexas afecções mútuas, no qual a afirmação da vida na docência e a alegria não são meras
estratégias (ESPINOSA, 1983), mas se constituem decisivamente na possibilidade da produção
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da diferença em Educação. Especialmente de um diferenciar que diz não à tristeza e à falta de
sentido que marcam um sistema educacional sufocado pelo peso dos formalismos e pela
dicotomia do viver/aprender.
A ideia está em sintonia com a denúncia já feita por Bateson (1990), sobre a educação
e sua capacidade de expor a transitoriedade, exigindo a responsabilidade do docente de bem
compreender o que é importante, o que deve abandonar e o que deve permanecer. “A Educação
é como o beijo da morte: tudo o que toca transforma em pedra” (BATESON, 1990, p. 7). Por
conta disso, o professor, ao buscar a superação das finitudes, no mais puro estilo espinosiano,
trata de fazer da docência a afirmação da vida com alegria (ESPINOSA, 1983). O espaço, assim,
é criado para que fluam juntos, educador(a) e estudantes, acabando por transformar-se em um
espaço autopoiético de invenção de si e da realidade. A autopoieses é, portanto, a vivência da
estética do viver, em direção à compreensão da necessidade de autoria da própria vida como
uma condição biológica, como nos ensinam Maturana e Varela (1980).
Deleuze (2002) inspira a invenção e a diferença na docência, no sentido de que a vida,
tanto no sentido amplo da evolução quanto no individual, é sempre produção de diferença e
invenção por meio do princípio da auto-organização. Corazza (2018) faz ressoar o pensamento
deleuziano com as seguintes palavras:
Então, os pesquisadores-professores conseguem criar algo novo, ao
promoverem a irrupção de um devir em estado puro, que Nietzsche chamou
“Intempestivo” ou “Inatual”. Pesquisa-Intempestiva de uma EducaçãoInatual, que implica que os Pesquisadores sejam dignos do Acontecimento e
que os Professores artistas da Educação – tudo isso em devir-revolucionário.
Único devir que conjura o intolerável e nos faz voltar a acreditar no mundo
(CORAZZA, 2018, p. 73, grifos nossos).
Tendo em vista as concepções básicas sobre a realidade, ciência e sabedoria expostas
em termos de autoconstrução, de integração de diferentes níveis do real e do significado
ontológico do aprender, considera-se a prática didática e o devir de cada docente intimamente
relacionados, na medida em que dão o significado à práxis do professor. Decorre daí, dessa
forma, uma concepção de conhecimento que se baseia na autoexperiência que, por sua vez,
constitui em um devir de autoconstrução em processo. Neste artigo, a proposta é apresentar a
prática didática adotada no curso de Mestrado e Doutorado em Letras, na disciplina de
Epistemologia da Complexidade, da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), em que se
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procurou sempre criar um ambiente tal que oportunizasse aos mestrandos e doutorandos
realizarem sua própria construção cognitivo/ subjetiva.
Uma das estratégias mais efetivas que compõem esse ambiente é a prática de oficinas
temáticas de vivências dinâmicas de conceitos e da metodologia das autonarrativas1, orientadas
pelo objetivo precípuo de aplicar o conceito operador de Ontoepistemogênese, cunhado pelo
Grupo de Ações e Investigações Autopoiéticas (GAIA/CNPQ), ao qual pertencem as autoras.
Com isso, pretendemos mostrar que cognição e subjetivação emergem juntas no processo de
viver (PELLANDA et al., 2017), como referido ao longo desse texto.
Nesse ambiente, os alunos e alunas vão se apropriando de alguns conceitos básicos da
teoria da complexidade (MORIN, 2001), de maneira que as oficinas e as autonarrativas passam
a se apresentar como potentes instrumentos de autoconstituição e de cognição. Desse modo, a
força das vivências é instrumento autonarrativo, que proporciona a auto-afecção e a autoexperiência, nos moldes do que propõe Nietzsche (2001), quando traz a ideia da autoexperimentação, ao mesmo tempo que evidencia o esforço de desconstrução de um modelo
representacionista para a cognição.
No caso deste artigo, os elementos empíricos apresentados aqui são decorrentes do
trabalho recente com uma turma de alunos do Mestrado em Letras, na disciplina de
Epistemologia da Complexidade da UNISC, em que são destacados fragmentos trabalhados à
luz de alguns marcadores teóricos estratégicos da complexidade. Assume-se, portanto, esses
marcadores como um caminho metodológico construído no próprio processo de observação e
de reflexão trazido neste trabalho, decorrente da observação exploratória. Para fins de
operacionalização da pesquisa, os marcadores selecionados, portanto, foram: o processo
autopoiético, o pensamento abdutivo, a ontoepistemogênese, o acoplamento complexo, as
afecções e o devir.
Essa metodologia tem sido adotada ao longo dos anos em que a pesquisa ao redor deste
tema da complexidade vem sendo perseguida. Neste trabalho, o olhar está recortado
especialmente na perspectiva dos sujeitos, que se constituíram em critério de escolha por conta
do entusiasmo por eles apresentado, bem como representa um ponto mais complexo da própria
evolução do trabalho docente, em uma perspectiva complexificadora, inclusive pelo que enseja
em sua anatomia meta-experiencial e metacognitiva.
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2 CONHECER, APRENDER E SUBJETIVAR-SE
Se, para Espinosa (1983), conhecer é ser afectado, para Deleuze (2002), em termos
autopoiéticos - que é o eixo teórico aqui - nada do que vem de fora pode determinar o que
acontece com os seres vivos, nesse caso os humanos. Portanto, aquilo que aprendemos só é
efetivo quando estamos imersos nos objetos estudados, que passam a ser ressignificados por
nós em nossos próprios termos; assim, passam a fazer parte constituinte de nós. Em outras
palavras, aprender é um processo biológico, pleno de significado humano e não pode acontecer
de maneira formal, apenas pelo raciocínio lógico. O “sinto, logo existo” da complexidade
substitui o “Penso, logo existo” de Descartes.
Em razão disso, para Espinosa (1983), a intuição é o gênero mais perfeito de
conhecimento e as emoções ocupam papel fundamental em sua Epistemologia (1983). Pela
mesma razão, o conceito de conhecimento complexo é compreendido no sentido de que
conhecer é se conectar, é aprender a viver, é se afectar. O que implica sempre a ideia de juntar,
unir, tecer, que demanda o rompimento com o conceito herdado da epistemologia clássica, que
entende o conhecimento como representação de algo externo, já dado e, portanto, separando
conhecedor e objeto. Com isso, nega-se a autoria e abre-se mão de sermos agentes de nossa
própria vida, o que traz muito sofrimento e nos desarma diante da vida.
Devido a esse fato, não adotamos aqui a postura de ensinante, neste complexo processo
de ensino-aprendizagem-afetação-experiência, posto que compreendemos esta como uma
ilusão e, até mesmo, um desrespeito ao aluno, na medida em que lhe nega também a condição
de autor de sua própria vida e de sua cognição. Assim, para fins de instrumentalização didática,
construímos a epistemologia que funda a reflexão deste trabalho, a partir de três
fontes/referências: a) do sistema filosófico de Espinosa no século XVII; b) da epistemologia do
sagrado, de Bateson; e c) da teoria da Autopoiesis, de Humberto Maturana e Francisco Varela
no século XX. Esse conjunto de ideias está inserido em um contexto de complexidade e, no
caso das duas últimas, o ponto de partida se dá especialmente, no movimento cibernético, nos
anos de 1940/1950 (BATESON; BATESON, 2000).
Esses autores acham-se articulados a partir da ideia de que existe um ponto dinâmico de
potência infinita para o qual tudo converge e tudo faz sentido quando afinado com ele. Pode ser
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a Realidade divina, ou Deus das religiões holísticas, ou a Substância Única de Espinosa
(ESPINOSA, 1983), ou ainda o ponto ômega do Teilhard de Chardin (1970). Nessa perspectiva
de integração radical, não há separação entre as diferentes dimensões da realidade, o que parece
ter fundado a grande tragédia do homem contemporâneo ao perder a integridade a partir da
modernidade. Como sugere Espinosa, em consonância epistêmica com esta questão ontogênica,
conhecer é se conhecer em relação ao todo, o que embasa nossa compreensão de que “sou este
todo” e “conhecer” significa entrar em contato com essa potência, de modo que essa concepção
permeia todo o trabalho em sala de aula.
Cientistas e filósofos que trabalharam com os conceitos e pressupostos complexos
intuindo a ideia de unidade de tudo no cosmos, ou que perceberam, cada qual à sua maneira, os
princípios de auto-organização, autoria humana da criação e de uma gênese constante para o
cosmos, compõem o quadro teórico deste processo epistêmico-ontológico que aqui propomos.
São eles, entre outros: Bento Espinosa, Heinz von Foerster, Humberto Maturana, Francisco
Varela, Henri Atlan, Ilya Prigogine, Henri Bergson, Pierre Teilhard de Chardin e Friedrich
Nietzsche. Com eles, vamos inventando, junto com os alunos e as alunas, o nosso caminho de
autoconhecimento/transformação em uma dinâmica topológica, posto que não pré-existem ao
caminhar.
Partimos, dessa forma, de uma ideia seminal holística, em outras palavras, de juntar
diferentes dimensões da realidade com o pressuposto de que somos um com este todo, e que
tudo consiste, então, em conhecer esta condição do Todo, que nos traria beatitude, liberação e
potência. O Si-Mesmo seria o todo e, a um só tempo, cada um de nós, de forma autoral, porque
nos encontramos na condição de seres criadores (Autopoiesis). Seguimos com o conceito de
Substância Única de Espinosa (1983) para conceber um conceito de cognição que seja
complexo, isto é, integrador, operacionalizável e, principalmente, inseparável do viver.
Portanto, aqui nossa epistemologia já é também uma ontologia.
Se considerarmos que só existe uma substância principiadora do todo, não há nenhum
sentido em dizermos que existe um sujeito que conhece e que há algo a ser conhecido, lá fora,
uma vez que entendemos que conhecer é tornar-se o próprio objeto, por partirmos da condição
básica da consciência do eu com o todo. Assim, começamos sempre uma disciplina com uma
pequena sessão de meditação para desencadear o processo de autoconstrução, propiciado ao
focarmos a atenção na própria respiração. Nessa dinâmica, os alunos(as) vão se dando conta da
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unidade mente-corpo que os prepara para entender que complexo significa sempre juntar e, ao
mesmo tempo, encontrar-se nessa unidade.
O sujeito que foi banido na modernidade retorna, assim, na complexidade para assumir
o seu papel de parceiro na construção de si e da realidade. Esse fato aparece claramente nas
pesquisas que se colocam no coração do novo paradigma. É o caso da Biologia da Cognição de
Maturana e Varela que não separam o conhecer do viver, colocando o ser humano no papel
ativo de inventor e de autoprodutor de realidades. Diz Maturana: “Não pergunto mais: o que é
isso? Mas pergunto como faço para conhecer isso” (MATURANA, 2004, p. 71-72). O que
corresponde, em termos cibernéticos às palavras de Von Foerster: “A tarefa que nos ocupa pede
uma epistemologia do ‘como conhecemos?’ em vez de ‘o que conhecemos?’” (VON
FOERSTER, 1996, p. 64).
No sistema espinosiano, essas ideias alinham-se às seguintes palavras de Lívio Teixeira:
Para saber se a ideia de círculo é verdadeira, não cabe verificar se a definição
do círculo como uma figura gerada por segmento de reta que gira em torno de
uma das extremidades tem ou não as marcas da verdade; o que importa é o ato
de nossa inteligência pelo qual construímos essa definição de círculo [...]
(TEIXEIRA, 2004, p. XXV).
Então, se somos criadores do universo, não tem sentido perguntar o que é isso, mas
perguntar como damos conta dessa tarefa. Conhecer é produzir, é inventarmos a nós mesmos,
é aprender a viver. Toda epistemologia/ontologia espinosiana tem este caráter de aprendizagem
e este aprender a viver é a vida em ato. A epistemologia que buscamos não persegue, portanto,
simplesmente o ser ou o conhecer, mas o viver de modo que, no bojo desse processo, encontrase a liberdade e a alegria de poder escolher um modo de existir. Ao conhecer a nossa força
como parte do todo, encontramos a beatitude que emerge do conhecimento da nossa potência
ao agir. Nós só podemos conhecer isso vivendo em ato, posto que a potência está sempre no
ato; desse modo: “Conhecer é sempre atuar”, diz Campomanes sobre Espinosa
(CAMPOMANES, 1981, p. 2).
E a coragem de viver em ato é um pressuposto espinosiano, que nos traz toda uma
ontologia da coragem. Uma lição que aprendemos da cibernética é que, o que importa é o
efetivo desempenho. Eu quero! Eu faço! Eu posso! Uma coisa depende da outra, em um
encadeamento perfeito e circular que potencializa o sistema. Eu quero - vontade de potência virtualização, alegria e beatitude de me sentir podendo. Eu faço - viver em ato - atualização.
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Eu posso - potencialização para novas virtualizações. Aqui, é bom lembrar que, diferentemente
de Aristóteles, para quem o ser humano é um ser racional, para Espinosa (1983), o ser humano
é, antes de tudo, um ser de potência, cujos graus dependem dos bons ou maus encontros, ou
seja, da qualidade das afecções. Por isso, conhecer para o autor, é a capacidade de ser afectado
(DELEUZE, 2002).
Tudo isso implica a ideia de cognição como percepção de si e capacidade de
agir/aprender, de habitar meu espaço sagrado. Significa agir autopoieticamente e, no momento
presente, ao criar a realidade e a nós mesmos atualizando a própria potência. É um ato
autopoiético na medida em que conhecer é o trabalho sobre nós mesmos. Assim, a esta altura,
caberia perguntar “Como?” ou “Onde está o objeto a ser conhecido?”. No entanto, “Eu não
pergunto mais ‘O que é isso [...], mas pergunto como faço [...]?’” (MATURANA, 2004, p. 67),
já que o objeto não tem sentido objetivo, mas tem sentido para a ação e para a constituição do
sujeito.
Conhecer, portanto, não é representar, ainda que a epistemologia clássica sempre tenha
defendido a ideia de que o conhecimento perfeito seria aquele capaz de reproduzir com
perfeição um mundo já dado. Essa ideia implicaria adotar métodos que captassem dados do
exterior e que não passassem, assim, pelo sujeito observador. No entanto, na perspectiva de
inseparabilidades e de autonomia criadora com a qual estamos trabalhando, a realidade só pode
ser conhecida no ato de sua gênese, processo no qual sujeito e objeto se constituem.
Decorre daí que nunca falamos, dessa forma, em “conteúdos”, em razão de que não
existem na concepção de realidade e de conhecimento que adotamos. Tudo é processo para
seres de devir que somos. O que fazemos é fluir na “disciplina” (outra palavra limitadora e
própria da perspectiva cartesiana da modernidade) com nossos(as) alunos(as), de maneira tal
que, todos nós nos transformamos a partir das afecções mútuas que causamos uns(as) nos
outros(as). Por tudo isso, nossa atitude didática é de não-ensinantes porque, como vimos, isso
é impossível biologicamente. Todavia, colocamo-nos em uma posição de perturbadores,
continuamente nos propondo a “puxar o tapete”, a fim de produzir as salutares desacomodações.
Nesse sentido, começamos cada disciplina problematizando a seguinte questão que nos
posiciona didaticamente: Vocês sabem qual o meu ofício? E cada um de nós, a partir da
pergunta, vai respondendo: Meu ofício é perturbar, vim para puxar o tapete, não vim para
ensinar. Há um susto inicial, e isso aparece sempre nas autonarrativas, na medida em que vamos
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introduzindo, aos poucos, os vetores do paradigma da complexidade, chamando atenção para a
ideia de que os alunos são os autores do seu conhecimento, como também de suas vidas.
3 PRATICANDO O PENSAR COMPLEXO
É uma ilusão, entre tantas outras da ciência moderna, pensarmos que alguém ensina algo
a alguém. Se considerarmos a teoria da Biologia da Cognição, o cérebro é uma caixa fechada
que não se comunica com o exterior e, portanto, nada que proceda do exterior pode determinar
o que acontece com os seres vivos (MATURANA; VARELA, 1980). O que ocorre é um
disparo/perturbação a partir do exterior, que leva a uma mobilização neurofisiológica e, por
fim, todo o organismo se reconfigura nesse processo. Mente, corpo e emoções agem conjunta
e integradamente.
Assim, dado o fato de que o paradigma/plataforma de onde falamos é a complexidade,
as temáticas das disciplinas que trabalhamos giram, basicamente, em torno dos vetores
educação e complexidade, gêneses do paradigma e epistemologia da complexidade. Operamos,
portanto, com conceitos básicos da complexidade como emergência, devir, a vida em ato,
atratores estranhos, universo termodinâmico, topologia, imanência e outros. Essa opção pelo
complexo leva-nos a mudar a nossa linguagem para nos adequarmos a uma outra forma de
abordar a realidade. Passamos, portanto, de estabilidade para o movimento de devir, da
substância para o processo, da topografia para a topologia, das partes para o todo, e assim por
diante, o que nos obriga a pensar de forma complexa, levando-nos a, imperativamente, praticar
no processo docente-discente. Em decorrência disso, não podemos praticá-lo sem romper com
a lógica do terceiro excluído, do princípio da identidade ou do “isso-aquilo” que a tudo reduz e
simplifica.
Na lógica do terceiro incluído, é preciso adotar a complementariedade e o indeterminado
para ampliar nosso olhar sobre a realidade e, assim, não ficarmos mais reduzidos a um caminho
metodológico linear e mecanicista de uma via de mão única. Da lógica linear de indução ou
dedução, chegamos à proposta do pensamento abdutivo, que vai além desses caminhos, ao
juntar partes muito distantes de uma mesma realidade. É o pensamento do poeta, do místico e
do cientista que trabalha, justamente, nas fronteiras da ciência, articulando um tipo de raciocínio
que implica usos da metáfora, importantíssima para uma lógica não-linear, porque lida com
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analogias e relações. Mary Catherine Bateson, filha e sistematizadora da obra de Bateson, assim
se refere à questão do pensamento abdutivo: “O uso dos silogismos de metáfora (que Gregory
chamava de abdução) era para ele uma estratégia intelectual básica, era a busca da compreensão
através da analogia, como quando analisava o processo de evolução considerando-o análogo ao
processo de pensamento” (BATESON; BATESON, 2000, p. 190).
Como a metáfora é uma estratégia didática que usamos para experimentação de um
pensar complexo, adotamos como técnicas provocadoras, para imergir nesse modo de pensar,
a partir da perspectiva da complexidade: 1) a leitura de textos associados a esses conceitos; 2)
meditação como prática de investigação de si e de autoconhecimento; 3) a pintura de mandalas
como exercício para a ressignificação do princípio da linearidade; 4) oficinas de koans e de
haikais que, da mesma forma, são ensinamentos desafiadores adotados pelos mestres zen com
seus discípulos, para levá-los a pensar de uma forma não-linear e complexa. São narrativas para
muito além daquilo que, nós ocidentais, consideramos racional, o que para o pensar de um
ocidental é extremamente difícil compreender.
Por exemplo, em um koan, temos a seguinte ideia:
“Batendo duas mãos uma na outra temos um som.
Qual é o som de uma única mão?” (OLHAR BUDISTA, 2017, n.p.).
Essas palavras parecem-nos paradoxais e, por aí, ficamos atônitos sem conseguir
avançar. É a primeira experiência de não-linearidade e de vivência de caos. Seguimos, então,
de caos em caos para experimentar a passagem ao cosmos em um processo de reconfiguração.
É a aprendizagem do desaprender, como sugeria Pessoa (2006):
O essencial é saber ver.
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!)
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender (PESSOA, 2006, p. 63).
Vemos que o poeta é o pensador complexo, por excelência, porque trabalha com
metáforas que são plenas de isomorfismos e analogias inesperadas. Outro exemplo de koan nos
reafirma o sentido do uso das metáforas e da associação ao pensamento complexo:
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Num dia chuvoso, quando estava sentado com um discípulo no salão do
templo e ouvindo as gotas d’água batendo suavemente no telhado e no pátio,
o mestre Jing-Qing perguntou ao outro monge:
“Que som é aquele lá fora?”
“É a chuva,” respondeu o monge. O mestre disse:
“Ao buscar fora de si mesmos alguma coisa, todos os seres se confundem com
os significados.”
“Então,” replicou o discípulo, “como deveria eu me sentir em relação ao que
percebo, Mestre?”
O sábio apenas disse:
“Eu sou o barulho da chuva” (OLHAR BUDISTA, 2017, n.p.).
Dessa forma, percebemos que, para entendermos minimamente um Koan, é preciso,
necessariamente, abrir mão de nossos hábitos racionais, das categorizações fixas disciplinares,
de nossa postura formal, linear e determinista diante da realidade. Precisamos abandonar as
atitudes herdadas da modernidade de separações dos níveis da realidade. Nós mesmos do todo,
eu e natureza, eu e o poema de outrem, sujeito e objeto, o dentro e o fora, o corpo e a mente, eu
e o divino e, assim, indefinidamente.
Dos koans, chegamos aos haicais. São poemas de origem japonesa, surgidos no século
XVII, que envolvem minimalismo, sensibilidade e complexidade e que apresenta, em si, uma
lógica paradoxal. O haicai é um poema com apenas três linhas, nas quais o poeta se expressa,
em uma linguagem sensorial, intensa vivência da natureza ou de si próprio. Nesse mínimo de
palavras, o poeta procura dizer com o máximo de intensidade, sua percepção da realidade,
usando, para isso, recursos metafóricos que estão muito além da lógica formal. Como nos
exemplos de Basho - o pioneiro e, portanto, a referência básica:
“Quantas memórias
me trazem à mente
Cerejeiras em flor” (BASHO apud POSSELT, 2018, n.p.).
Alguns exemplos de haicais no Brasil, como o de Millôr Fernandes e Mario Quintana,
também contribuem para a perspectiva do pensamento complexo e da metáfora:
“Eu sofro de mimfobia
tenho medo de mim mesmo
mas me enfrento todo dia” (FERNANDES apud BECKER, 2019, n.p.).
“O verso é um doido cantando sozinho,
Seu assunto é o caminho. E nada mais!
O caminho que ele próprio inventa…” (QUINTANA, 1987, p. 131).
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Dada essa sistemática que funda o pensamento complexo e que pauta nosso processo de
ensino-aprendizagem, solicitamos, então, aos alunos e às alunas a vivenciarem os haicais por
meio de sua própria autoria, escrevendo os seus próprios poemas. Nessa dinâmica,
autonarrativas apresentam-se como próprias das afetações da fruição poética em expressões
subjetivas primorosas:
Aluno 1
Toda viagem
a paisagem faz silêncio
para não me acordar
Aluno 2
A criança cresce
No instante que se foi,
A vida acontece
Aluno 3
No silêncio me
identifico, ressignifico
minha solidão
Aluno 4
Cor, textura
vejo e sinto
a tessitura
Aluno 5
Um haikai nunca escrevi
Talvez possa me inspirar
No canto de um bem-te-vi.
Seguimos dessa socialização, a uma discussão densa sobre a lógica subjacente aos koans
e haicais que chamam atenção pela marca de um pensamento abdutivo, presente nas
conversações. Essas ideias vão estar presentes também nas autonarrativas, expressando tanto a
transformação de si, como também a apropriação de conceitos complexos do Paradigma da
complexidade, tais como autopoiesis, atratores, estranhos, entropia, topologia, etc. Os excertos
desses relatos estarão na sessão seguinte sobre autonarrativas.
Entretanto, que lógica subjaz ao pensamento metafórico ao qual estamos nos referindo?
Foi em Bateson e Bateson (2000) que fomos buscar sustentação para o trabalho. Dizem eles:
Está claro que a metáfora não é somente bonita poesia; não é boa nem má
lógica, mas é na realidade a lógica sobre a qual se construiu o mundo
biológico, a característica principal e a liga organizadora deste mundo do
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processo mental que procurei esboçar ao leitor (BATESON; BATESON,
2000, p. 42).
Ou seja, a lógica da metáfora está muito distante da lógica tradicional. Para os autores,
essa última se deve “[...] aos ardis bastante violentos e inadequados” (BATESON; BATESON,
2000, p. 38). Eles propõem, então, que coloquemos uma metáfora à maneira de silogismo,
considerando suas várias classes, das quais, a mais conhecida é o “silogismo categórico”, que
se desenvolve assim:
“Todos os homens são mortais
Sócrates é um homem
Logo, Sócrates é mortal” (BATESON, BATESON, 2000, p. 38).
A estrutura básica desse pequeno monstro - seu esqueleto - está baseado na classificação
citada anteriormente. Os silogismos das metáforas, percebemos, são completamente diferentes
e se desenvolvem, por exemplo, assim:
“A erva perece
Os homens perecem;
Os homens são ervas” (BATESON, BATESON, 2000, p. 38).
Para falar sobre esse tipo de silogismo e compará-lo ao silogismo categórico,
poderíamos chamá-lo de “silogismo da erva” (BATESON; BATESON, 2000, p. 38-39). Na
lógica da natureza, da vida cotidiana e da poesia, o silogismo da erva parece fazer todo o
sentido. Além disso, podemos supor que, em uma lógica do determinado e classificável,
perdemos toda a autonomia e a arte de viver, assim como o poeta, o artista e o escritor perderiam
suas ferramentas de criação. Todavia, também perderia o cientista da complexidade, que
trabalha na fronteira das ciências, como é o caso, por exemplo, de Miguel Nicolelis, que
investiga aquele ponto da realidade, onde se cruzam a antiga sabedoria perene com a metatécnica e os pressupostos complexos.
Em uma lógica estritamente formal, esse cientista não poderia mostrar, por exemplo, a
macaca Aurora e um robô comunicando-se um com o outro pelo pensamento, em um
acoplamento ser vivo-objeto técnico tal, a ponto de não haver separação mente-corpo. E de
maneira que o braço robótico passaria a ser vivido como próprio, em um efetivo novo
acoplamento estrutural, que poderia soar como ingenuidade do senso comum para os
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formalistas, enquanto para a ciência mais sofisticada, resgata a sabedoria, e indo muito além
dos possíveis (NICOLELIS, 2011)2.
4 O PAPEL DAS AUTONARRATIVAS NO PROCESSO DIDÁTICO
Investiguei a mim mesmo.
Heráclito (SOUZA, 1996, p. 107).
Posto que conhecer não é um processo formal, mas se refere à autoconstituição do
sujeito cognitivo, e que todo conhecer remete ao autoconhecimento e à autoexperimentação,
como isso se concretiza ao vivo em sala de aula? Nessa prática, os alunos(as) são solicitados(as),
como parte do processo didático, a escrever, após cada turno de aula, as suas autonarrativas a
partir das emoções que os(as) afectaram com as atividades desenvolvidas naquele dia. Ao final,
são dez partes de uma narrativa em uma disciplina de 12 encontros. Eles(as) entregam as
narrativas no 11º encontro, para que tenhamos uma semana para ler os textos, sistematizá-los a
partir de alguns marcadores teóricos, e devolver, em um PowerPoint, para uma discussão no
grupo, propiciando uma dinâmica baseada na metacognição; em outras palavras, por meio de
um olhar sobre o caminho percorrido, de modo a potencializar o processo cognitivo/subjetivo.
Como a primeira aula da disciplina começa com uma breve sessão de meditação, que é
solicitada de forma direta, sem grandes explicações nem a apresentação da professora, essa
primeira atividade é expressa nas autonarrativas de diferentes formas:
[...] vivenciamos um momento de autoconhecimento, de meditação. Eu,
particularmente, gosto de participar de dinâmicas assim, porque é um
momento de desaceleração, tanto do pensamento, como do próprio corpo e da
mente e de sentir a nossa respiração (Aluno 2).
Observamos que a meditação opera inicialmente, oportunizando o reconhecimento do
próprio corpo, que, na educação tradicional, fica de fora do processo ensino-aprendizagem. E
seguimos com a percepção de que a unidade mente-corpo é fundante em termos de
autoconstrução, por propiciar o desenvolvimento do processo que é registrado pelas
autonarrativas, em termos vivos e autoconstituintes, pois escrever não é um ato neutro na
medida em que nos constitui nas subjetividades de autoria. Nesse sentido, Nietzsche, dito por
Monica Cragnolini, é nosso mestre:
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Não será, então, que , mais do que relatar “uma experiência de vida vivida”, a
escrita é uma possibilidade de viver- e constituir-se- como experiência? não
será que, em vez de sermos sujeitos que “nos expressamos” na escrita, é a
experiência mesma da escrita que nos constitui? não estaremos nos tornando
o que somos, ao escrever, mas do que escrevendo o que nos tornamos?
(CRAGNOLINI, 2001, p. 132).
A escrita, que vai nos constituindo e constituindo nosso conhecer, faz remissão dessa
maneira, ao conceito de Ontoepistemogênese, ao demonstrar que conhecer é transformar-se,
conforme o que aponta a autonarrativa da aluna:
Tudo isso me remete à noção de intuição como uma forma de conhecimento
inteiro, sem representação, sem fragmentação, ausente de intervenções.
Reflito sobre isso e imediatamente lembro da poesia, para mim a melhor
representação da intuição, do pensar complexo. Ligado às emoções e às
incertezas, o fazer poético é a pura energia da matéria. Já que conhecer é viver,
posso afirmar que vivi muito todos os encontros da disciplina: na meditação,
no ato de colorir a mandala ou de produzir o haicai, na reflexão do filme Quem
somos nós ou do documentário O que é a Teoria da Complexidade e em todos
os lindos momentos vividos ao longo desses quase três meses. Sinto que tenho
em mim um mundo de possibilidades! (Aluna 3).
A aluna expressa, com muita densidade, seu processo cognitivo-afetivo e, ao mesmo
tempo, um processo de complexificação dos sentidos, na medida em que vai mostrando uma
capacidade crescente de fazer isomorfismos. O insight sobre intuição é a elaboração do que
significa conhecer sem representação, rompendo com uma epistemologia tradicional e adotando
uma postura complexa de devir, de imanência. E ainda, seria muito significativo destacar a
capacidade de ser afectada da aluna, quando se mobiliza internamente para um mundo de
possibilidades.
O fragmento seguinte vai também no sentido da metacognição; dito de outra forma,
percepção de que narrar-se tem esse sentido topológico de desenhar a própria vida:
A complexidade da vida representada por nossas histórias. Afinal, nós somos
o relato de nós mesmos. Relatar nossas vidas é exercício de dar sentido às
mesmas e relatar nossa experiência será sempre ligado às nossas emoções
(Aluno 1).
Um excerto de uma narrativa em grupo mostra o processo de Ontoepistemogênese ao
vivo que o falar, emocionar e conhecer se tecem junto, reconfigurando o sujeito em ação no
devir:
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A próxima dinâmica foi a teia de narrativas, na qual todos estiveram em
círculo e, à medida que iam contando sobre si aos colegas, jogavam um fio ao
outro, fio este que nos uniu ao final de todos os discursos, formando uma teia
que nos interligava. Quando chegou a minha vez de falar, senti que não
conseguiria fazê-lo sem emoção, porque, para mim, retornar em pensamento
e falar tudo o que já vivi, me toca de uma maneira inigualável (Aluno 2).
A próxima fala também trata do processo autopoiético em ação desencadeado a partir
das provocações da disciplina:
Acontece, minha gente, que eu quero ser eu, mas um outro eu. A questão do
eu e do outro me inseriu numa cilada semântica. Se eu desejo ser outro, isso
pressupõe um não-eu? Procuro as palavras mais apropriadas para reverter a
situação, mas todas parecem conspirar meu primo. Assumo o nocaute já no
primeiro round do embate retórico (Aluno 2).
E, em um processo de complexificação crescente, esse aluno chega a um pensamento
abdutivo complexo, usando metáforas, dando-se conta da simplificação e dos limites do
pensamento linear, chegando mesmo a relacionar com a sua própria vida. Esses escritos nos
tocaram muito pela densidade, profundidade e complexidade e pela percepção de autopoiesis e
da vida em devir:
A convicção está baseada em dois principais princípios: primeiro – ser a autora
da minha própria história (isso significa que, com cautela, busco dosar a
aceitação/reflexão/recusa dos “conselhos” que recebo sem deixar que os
outros decidam por mim) e, segundo – “Não nos banhamos jamais duas vezes
no mesmo rio”, a famosa frase é quase um mantra para mim: isto é, as aulas,
a disciplina, o filme ou o livro podem até ter o mesmo nome, mas a experiência
que vivo com ela(e) é sempre diferente, é sempre nova, em alguma medida –
isto porque sou diferente a cada instante, estou em constante transformação
(Aluno 7).
O pensamento abdutivo, que fez da teoria algo vivo, aparece nas autonarrativas,
relacionado com nossas necessidades elementares:
Durante essa aula discutimos a complexidade e pensei sobre como essa teoria
vai ao encontro de muitas crenças que possuo – o que muito me fascina – pois
vejo a interferirem não apenas no que acontece comigo, mas com o todo,
possibilidade de aplicar na minha vida o que estudo em sala de aula. Acredito
que essa teoria é uma resposta ao que o universo precisa neste momento:
complexidade no sentido de conexão, rede, não-linearidade, união,
circularidade, compreensão da proximidade entre sujeito e objeto, etc. A
analogia do efeito borboleta, por exemplo, fez-me pensar na responsabilidade
que possuo com cada pensamento meu – uma vez que a potência dos meus
pensamentos e da minha fala interferem não apenas no que acontece comigo,
mas com o todo (Aluno 7)
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Também a ideia de interconexão emerge nas narrativas de si e nos significados
construídos a respeito dos próprios alunos:
Dentre todos os elencados pela professora, destaco uma das frases que mais
me chamou a atenção durante a disciplina, de autoria de Paramahansa
Yogananda que mostra a conectividade radical do oriente, em que, ao fim do
seu pensamento diz: “... evitar que por falta de um alfinete o cosmos
desmorone”. Essa passagem me faz refletir sobre quantos alfinetes já tive que
procurar na minha vida para que meu próprio cosmos não desmoronasse em
uma depressão profunda (Aluno 5).
Os “eus” manifestados em recorrência, associados às autonarrativas que tratam das
experiências transformadoras, vivenciadas no decorrer dos encontros, vão, portanto,
configurando novos modos de apreender/viver.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final das atividades das disciplinas, percebemos que as dinâmicas propiciadoras das
autonarrativas vão se constituindo ao longo do semestre em manifestações próprias, relativas
aos processos de conhecer/viver. Na medida em que narrar vai permitindo reconhecer as
emergências de sentido, resultantes das dinâmicas reflexivas, os alunos ressignificam em ato e
potência seus saberes, tomando os conceitos e autores como caminhos provocativos de suas
(auto) narrativas, mobilizando suas conexões intuitivas e metafóricas, permitidas pelas técnicas
adotadas. Aí está o indissociável de ser e conhecer, especialmente porque os alunos percebem,
como trazem seus textos, que nos relatos de si mesmos, dão sentido à própria vida, constituindose cognitiva e emocionalmente. Assim, aprendem, porque vivem as experiências que permitem,
inclusive que possam cogitar e interpretar o lugar ocupado na relação da parte com todo.
Na perspectiva da complexidade, o processo de aprendizagem é, portanto, indissociável
da ontogênese de cada ser humano e das próprias epistemes trazidas a verbo por ocasião das
autonarrativas, em uma condição só oportunizada para além da superação do paradigma linear
e dicotômico de educação. E onde se permitem questionar quem são, permitindo a investigação
de si e, por extensão, do próprio mundo, em práticas capazes de nomear suas potências
criadoras. Os alunos acolhem, portanto, as afectações geradas pelas teorizações propostas,
levando-as
para
um
outro
lugar
e
formando
uma
dinâmica
de
provocação/afetação/ressignificação/provocação salutarmente sem fim. O que dá, por sua vez,
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a esta aula - experiência docente/discente - um novo e contínuo ressignificar, erodindo campos
clássicos e até então cristalizados de quem ensina, o que ensina a quem aprende.
A partir do autoconhecimento, autopoeticamente, os indivíduos implicados nesta
experiência conquistam autonomia e protagonismo, fazendo da sala de aula um lugar mais
largo, amplo e transformador que aquele que, por princípio, acomodaria uma disciplina,
conteúdos, professor e alunos.
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NOTAS
A autonarrativa é entendida, neste artigo, a partir do conceito de Gonçalves (2002) que a percebe como: “Uma
existência narrativa, [...] ilustrada pela multiplicidade discursiva, por sua diversidade temática e pela flexibilidade
de seus conteúdos. Somente uma atitude criativa deste gênero permite uma adaptação produtiva a um mundo
caracterizado, também ele mesmo, pela multiplicidade. Uma existência narrativa rica em multiplicidade é uma
narrativa onde os indivíduos encontram uma diversidade de possibilidades para si mesmos, protagonizando assim
vários temas. É precisamente esta multiplicidade narrativa o que caracteriza os elevados níveis de
autocomplexidade” (GONÇALVES, 2002, p. 35).
2
Um outro tipo de oficina para vivência dos princípios que configuram o paradigma da complexidade, acionando
também a dinâmica da metáfora, é o trabalho com mandalas. Os(as) alunos(as) criam suas mandalas com auxílio
digital, ou não, ou simplesmente colorem desenhos prontos. O objetivo dessa atividade, que pode parecer estranha
para os educadores acostumados a formalismos, é a vivência da estética do viver, em direção à compreensão da
necessidade de autoria da própria vida, como uma condição biológica como nos ensinam Maturana e Varela por
meio do conceito de Autopoiesis (MATURANA; VARELA, 1980). Além desse objetivo, nessa atividade,
1
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trabalhamos também a questão do indeterminado, dado na passagem do caos à ordem, do pensamento não-linear
e padrões que conectam, etc. Enfim, todo um sistema complexo é aí vivenciado com a consequente elaboração de
conceitos-chave desse paradigma. Desse modo, percebemos que o texto rompe com a linearidade de começo,
meio e fim e os desenhos podem ser vistos de diferentes ângulos e perspectivas. A mandala vai se apresentando
como um exemplo do Sistema Adaptativo Complexo (SAC), em oposição à lógica cartesiana e ordenada.
Enviado em: 19/07/2019
Aprovado em: 02/01/2020
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