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ARTIGOS
Cotas para o acesso de egressos de escolas públicas na Educação
Superior
Quotas for the access of public school graduates to higher education
Neusa Chaves Batista (i)
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil.
https://orcid.org/0000-0003-4322-2829, neuchaves@gmail.com
(i) Universidade
Resumo: Este artigo examina as condições de normatização da política de cotas na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), visando a identificar os seus
efeitos na ampliação do acesso para estudantes egressos de escolas públicas. No
âmbito teórico-conceitual propõe uma noção de justiça social cuja amplitude
incorpora a distribuição socioeconômica (classe) e o reconhecimento cultural
(status). Analisa a construção da juridicidade da política de cotas como ampliação do
direito à Educação Superior. Adota, como procedimento metodológico, a análise de
conteúdo de fontes documentais que normatizam as cotas na Universidade. Infere
que a institucionalização da política de ação afirmativa na UFRGS (cotas sociais)
tem ampliado o acesso para egressos de escolas públicas, inclusive, aos seus cursos
de graduação de perfil historicamente elitizado.
Palavras-chave: cotas para a Educação Superior, egressos de escolas públicas,
justiça social, política de cotas na UFRGS
Abstract: This study examines the conditions of regulation of the quota policy at the Federal
University of Rio Grande do Sul (UFRGS), aiming to identify its effects on expanding the access
to the university for public school graduates. In a theoretical and conceptual scope, the study proposes
a notion of social justice that embraces socioeconomic distribution (class) and cultural recognition
(status). The article also analyzes the construction of the legality of the quota policy as the expansion
of the right to higher education, and adopts, as its methodological procedure, the analysis of the
content of documentary sources that regulate quotas in the University. The study concludes that the
institutionalization of the affirmative action policy at UFRGS (social quotas) has expanded the
access to the university for public school graduates, including the access to undergraduate courses
with profiles that are, historically, elitist.
Keywords: higher education quotas, public school graduates, social justice, quota policy at
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1 Introdução
Desde o início do século XXI têm se multiplicado as ações públicas em prol do acesso
à Educação Superior para grupos sociais que, ao longo da história da educação brasileira, foram
alijados desse nível de ensino. Há o reconhecimento social de que existe um déficit educacional
na sociedade brasileira no que diz respeito ao cumprimento do direito à educação, a começar
pela educação básica pública. A Carta Magna brasileira de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases
para a Educação Nacional de 1996 (LDBEN) indicam para a educação básica, compreendida
pelos níveis da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, os princípios “de
igualdade de condições de acesso e permanência na escola” e a “garantia de padrão de
qualidade”.
Contudo, a materialidade desses princípios depende da implantação de políticas
públicas. As políticas educacionais voltadas para suprir o déficit educacional e cumprir com os
princípios citados, para a educação básica, mostram sinais de ineficácia, uma vez que se
implantam políticas de ação afirmativa para a Educação Superior a fim de dar acesso aos
estudantes egressos de escolas públicas. Com efeito, dado o descompasso entre o ordenamento
constitucional e legal e a sua efetividade como política pública para a educação básica, admitese a pertinência social para a implantação de ações afirmativas para a Educação Superior.
As políticas públicas de ação afirmativa têm beneficiado cidadãos de grupos
discriminados com explícita exclusão socioeconômica e cultural tanto no passado quanto no
presente. No caso das cotas para a Educação Superior – reserva de vagas étnico-racial,
socioeconômica e por origem escolar (escola pública) em Instituições de Ensino Superior (IES)
públicas – as controvérsias e as disputas são grandes, posto que interferem em um nível da
educação que tem garantido a mobilidade social para as camadas mais ricas da sociedade
brasileira. Sob esse aspecto, a Educação Superior pública, como bem coletivo escasso, tem sido
apropriada pelos filhos da elite brasileira que frequentam a educação básica do setor privado
(Neves, Raizer, & Fachinetto, 2007).
Nesse sentido, a intervenção do Estado e da sociedade visando ao ajuste dessa
desigualdade educacional tem se dado por meio da reserva de vagas para estudantes oriundos
de escolas públicas, de escolas públicas autodeclarados negros e ainda, para indígenas; grupos
sociais, historicamente, excluídos do acesso à Educação Superior.
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Este artigo analisa a construção da normatização institucional da política de ação
afirmativa, as cotas sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Intenta-se
verificar se as condições de implantação da política de cotas na UFRGS ampliou o acesso de
estudantes egressos de escolas públicas aos seus cursos de graduação, em especial àqueles de
maior status social. O estudo fundamenta-se na análise de conteúdo (Bardin, 1977; Franco,
2008), considerando fontes como: relatórios de avaliação institucional (quantitativos e
qualitativos); pareceres e resoluções de instâncias que normatizam as ações afirmativas/cotas
sociais na UFRGS e Programa de ações afirmativas da UFRGS. Com o citado método, buscase entender a partir do “núcleo de significados” dados pela normatização, o sentido de justiça
social incorporado às condições de acesso. Entende-se que os documentos selecionados são
representativos de decisões de atores que dão significado institucional à política de cotas na
Universidade.
A organização textual que segue apresenta, após esta primeira seção introdutória, na
segunda seção, uma discussão sobre as políticas públicas de ação afirmativa tendo como
elemento central a noção de justiça social inerente a tais políticas. Procura-se dar base teóricoconceitual às políticas públicas de ação afirmativa para a Educação Superior no Brasil.
Aprofundam-se questões relacionadas ao papel do Estado social na construção de políticas
públicas sociais norteadas por uma noção de justiça social que não se restringe à distribuição de
recursos materiais com a finalidade de corrigir desigualdades socioeconômicas, incluindo, ainda,
o combate e a correção das discriminações étnico-raciais. Na terceira seção, discorre-se sobre
argumentações com foco na juridicidade das políticas de ação afirmativa para a Educação
Superior no Brasil, relacionando o acesso a ela ao direito à educação, previsto no ordenamento
legal brasileiro. Destacam-se argumentações sobre a justiciabilidade inerente às políticas públicas
de ação afirmativa do ponto de vista do Estado democrático de direito, cuja base ideológica é
sustentada pelos princípios da democracia liberal.
Na quarta seção, destaca-se o estudo da normatização da política de cotas na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e salientam-se três ações centrais para a
implantação das ações afirmativas na Universidade: a criação do Programa por meio da Decisão
134 do Conselho Universitário (CONSUN) em 2007; a nomeação da Comissão de
Acompanhamento dos Alunos do Programa de Ações Afirmativas; as Ações para a promoção
da permanência dos estudantes de escolas públicas e de escolas públicas autodeclarados negros.
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Observam-se dados sobre o acesso de egressos de escolas públicas à Universidade com vistas a
identificar se houve ampliação, considerando as ações implementadas. Finalmente, na quinta
seção, procedem-se as considerações finais, procurando destacar as principais argumentações
do artigo de modo a dar-lhes tratamento reflexivo de cunho conclusivo.
2 A justiça social como base das políticas públicas de ação afirmativa
No campo de estudo das políticas públicas sociais, quando se trata de políticas públicas
de ação afirmativa, tem se dado centralidade ao enfoque sobre a polarização: políticas públicas
focalizadas e políticas públicas universais. Contudo, conforme argumenta Kerstenetzky (2006),
fazer uma associação automática com a universalização relacionada com a garantia de direitos
sociais e a focalização com noções residualistas de justiça social é insensato. Por esse motivo é
sempre importante estabelecer quais são os marcos de justiça social de que se está tratando: se
são de mercado ou de distribuição de bens públicos. Nesse sentido, focalização ou
universalização são, então, métodos alternativos, quando não complementares, de implantação
de uma noção de justiça social previamente definida (Kerstenetzky, 2006).
É importante referenciar que a discussão exposta neste artigo sobre as políticas públicas
de ação afirmativa para a Educação Superior alude articulações entre a ação do Estado com um
conceito de justiça social cuja imparcialidade contemple as injustiças socioeconômicas (classe) e
culturais (status) sofridas pelos grupos sociais excluídos do acesso à Educação Superior no Brasil.
Com essa perspectiva, defende-se que está na origem da instituição do Estado moderno
o seu papel de gerir o bem-estar social. Ocorre que esta contratualidade, à medida que a esfera
pública é apropriada pelos ideais do liberalismo econômico, acaba por ser subsumida por
atribuições mais relacionadas com a manutenção da economia capitalista. Com efeito, a
implantação de políticas de Estado de corte social passa a ser motivo de luta pela garantia de
direitos sociais, conquistados pela cidadania nacional. Assim, as injustiças sociais são corrigidas
à medida que a sociedade civil organizada participa ativamente na produção de políticas públicas
sociais, dando sentido à noção de justiça social que as permeia.
A assertiva se dá em função de estabelecer posicionamento contrário aos argumentos
liberais (e do neoliberalismo) de que os fundamentos da liberdade e do individualismo justificam
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o mercado como regulador e distribuidor da riqueza e da renda (Friedman & Friedman, 1980;
Smith, 2003). É dessa corrente político-econômica a ideia de que enquanto se potencializam as
habilidades e a competitividade individuais, possibilita-se a busca ilimitada de ganho, portanto,
destitui-se o Estado dessa atribuição, afirmando que o mercado seria produtor, por excelência,
de bem-estar social. Contudo, a função redistributiva do Estado social1 relaciona-se à definição
de justiça social que as sociedades detêm sobre si. Portanto, não se pode esquecer que
subjacentes à noção de justiça social há sempre disputas, uma vez que esta incorpora poder
social.
As políticas públicas de ação afirmativa para a Educação Superior no Brasil são ações
do Estado social com a função de distribuir um bem coletivo escasso. Com esta base elas seguem
a argumentação pública de redistribuição de um bem para compensar uma desigualdade social
empiricamente comprovada. Isto é, “qualquer desigualdade injustificada constitui de fato uma
injustiça que potencialmente deve ser de alguma maneira mitigada pela ação estatal” (Feres
Júnior & Campos, 2013, p. 86).
A sustentação retórica da ação pública do Estado social nos países capitalistas ocidentais
para implantar políticas compensatórias tem sido fundamentada pelo liberalismo igualitário,
mais especificamente, pela teoria da Justiça elaborada em 1971 por John Rawls, que propõe a
noção de “justiça como equidade”. Segundo o autor, a correção das injustiças sociais somente
pode advir da prática de uma política visando à equidade, claramente localizada e pontual.
Localiza-se o grupo social menos favorecido (em razão de origem socioeconômica, raça, sexo,
cultura ou religião), e os mecanismos legislativos compensatórios entram em ação para buscar
reparar, pela lei e com o consentimento geral, as injustiças cometidas. Porém, isso requer a
suspensão temporária dos direitos de todos os demais, especialmente dos bem-sucedidos, mas
a equidade deve ser, antes de tudo, “reivindicada no tribunal da consciência e não somente nos
tribunais comuns” (Rawls, 2008, p. 699).
Conforme indica Rawls (2008), com os mecanismos compensatórios da ação pública a
sociedade avança gradativamente não no sentido de uma igualdade absoluta, como é o desejo
1
O termo Estado social foi cunhado por Castel (2000) em contraponto ao Estado-providência, com conotação
mais assistencialista. O Estado social pode ser entendido como uma das instâncias capazes de intervir para procurar
resolver os riscos de ruptura do laço social, de exclusão ou de desintegração social que a falta de políticas de bemestar social provoca.
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dos radicais socialistas, mas na direção da mais justa possível a ser alcançada dentro das normas
do “contrato social” da modernidade2. Rawls admite, em sua concepção de justiça, certa
desigualdade social, reforçando a focalização de políticas sociais apenas para os grupos sociais
precarizados e pobres. Trata da distribuição “mais justa possível” dos recursos econômicos pelo
Estado social. O escopo da teoria rawlsiana não abarca as injustiças relativas a raça, cultura,
gênero e religião, relacionadas aos direitos universais de cidadania no campo das
responsabilidades dos Estados nacionais.
No contraponto, Axel Honneth (2009), autor da obra Luta por reconhecimento, a gramática
moral dos conflitos sociais3, afirma que a questão central da justiça social não é a econômica, mas
sim a do “reconhecimento”. Considera como sendo o centro da questão do reconhecimento, a
noção de identidade. Para esse autor, a identidade de cada um é construída pela aceitação e pelo
reconhecimento do outro, pois, se um grupo ou indivíduo não tem seu modo de ser respeitado
pelo grupo hegemônico, ele vivencia, automaticamente, uma situação de injustiça. Na
perspectiva do autor, é a orientação para a emancipação da dominação que permite que os
sujeitos compreendam a sociedade em seu conjunto (Honneth, 2009).
Honneth relativiza, demasiadamente, o peso das estruturas econômicas sobre a ação dos
sujeitos na luta social por reconhecimento, uma vez que o não reconhecimento do outro pode
significar a exclusão cultural, mas também, como efeito, a econômica. A sociedade moderna
capitalista é erigida pelo princípio do capital, logo, a emancipação da dominação cultural
significa, igualmente, emancipação das estruturas econômicas do capitalismo. Contudo, a
inserção da dimensão do reconhecimento na ação pública é essencial para a ruptura com a
desigualdade social.
Posicionando-se nesta discussão, Fraser (2001, 2006a) procura dialogar com os
conceitos de distribuição de John Rawls e de reconhecimento de Axel Honneth, situando-os
como elaborações conceituais filosóficas que têm sido consideradas antíteses umas das outras.
2
Conforme Rawls (2008), a sociedade e a política modernas estão organizadas a partir de um pacto social, um
momento inicial hipotético, que visa garantir o bem-estar geral e a justiça social. Esse pacto encontra-se gerado por
“um contrato estabelecido entre cidadãos para garantir a existência democrática de uma sociedade civil pacífica,
em contraposição a uma sociedade natural” (p. 14).
3 Nessa obra, Axel Honneth afirma que existem três formas de reconhecimento, a saber: o amor, o direito e a
solidariedade. Na experiência do amor, vivenciada especialmente na infância, há a autorrealização do indivíduo por
meio da autoconfiança; na experiência do direito, a autorrealização se dá por meio do autorrespeito e por último,
na experiência da solidariedade, a autorrealização pela via da autoestima.
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Muitos teóricos liberais da justiça distributiva sustentam que a teoria do reconhecimento carrega
uma carga comunitária inaceitável. No contraponto, alguns filósofos do reconhecimento
consideram que a teoria distributiva é individualizadora e consumista4. Contudo, ambas as
conceituações de justiça provocam críticas de terceiros. Os pensadores que se identificam com
a tradição marxiana afirmam que a categoria distribuição não aprofunda a injustiça capitalista,
porque passa por cima das relações de produção e não problematiza a exploração, a dominação
e a mercantilização5. Do mesmo modo, aqueles que abraçam o pensamento pós-estruturalista
insistem em que a ideia de reconhecimento carrega consigo normalizações centradas na
subjetividade que impedem uma crítica mais radical (Fraser, 2006a).
A autora propõe discutir, num primeiro momento, a redistribuição e o reconhecimento,
a partir de sua referência política, isto é, como constelações ideais e típicas das reivindicações
discutidas na atualidade nas esferas públicas. Com este ponto de vista, os termos
“redistribuição” e “reconhecimento” não se referem aos paradigmas filosóficos, mas aos
paradigmas populares de justiça, que informam as lutas que têm lugar em nossos dias na
sociedade civil. Fruto dessa reflexão, a autora chega à construção de categorias “filosóficas
normativas” para as injustiças distributivas e de reconhecimento e, ainda, reconhece que, no
capitalismo, as categorias “classe” e “status” são ordens de subordinação socialmente arraigadas.
Assim, Fraser (2006a) admite que a sociedade capitalista possua uma estrutura de classe
que institucionaliza alguns mecanismos econômicos que negam de forma sistemática para alguns
de seus membros os meios e as oportunidades que necessitam para participar na vida social em
pé de igualdade com os demais. De modo semelhante, afirma que a sociedade tem uma
4
Este argumento está diretamente relacionado à teoria de justiça social como equidade, cunhada por John Rawls
(2008). O autor, ao propor que a ação do Estado na minimização da desigualdade social seja focalizada aos grupos
sociais precarizados e pobres (“incapazes”), deixa a critério de cada indivíduo (cidadão(ã)) a busca por bem-estar;
no limite, abre caminhos para a busca individual de bem-estar no mercado (capitalista), admitindo um Estado
mínimo para a garantia de direitos sociais (Fraser, 2006a; Honneth, 2009).
5 Na base da discussão que incorpora os preceitos marxianos, a relação entre justiça social e poder está estritamente
relacionada a questões de classe, isto é, a sociedade capitalista se traduz, em termos de relações de poder, em uma
classe dominante e outra dominada. A exploração exercida por uma classe social sobre outra gera a exclusão e o
desejo de mudança social, cujo resultado é a rejeição à injustiça e a indignação diante de estruturas sociais que
reproduzem a pobreza e a desigualdade social, mercantilizando as relações sociais (Batista, 2015). Conforme Fraser
(2001), às classes sociais o que interessa é a equalização do trabalho, oportunidades, condições sociais e de
participação na vida pública, isto é, a redistribuição universal dos bens públicos para todos(as) os(as)
trabalhadores(as).
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hierarquia de status que institucionaliza padrões de valor cultural que negam por completo a
alguns membros o reconhecimento necessário para participar plenamente da interação social.
Aprofundando a reflexão, de modo a romper com as injustiças de ordem de classe e de
status, a autora distingue injustiças materiais e injustiças simbólicas. Afirma que para corrigir as
injustiças materiais interessa às classes sociais a equalização do trabalho, oportunidades,
condições sociais e de participação na vida pública, isto é, a redistribuição é a solução para os
problemas sociais. Já para as injustiças simbólicas da ordem do status, que inclui uma pluralidade
de atores sociais como pessoas transgênero, mulheres, negros, minorias (e maiorias) étnicas, as
soluções para as demandas são de cunho afirmativo-valorativo, com a efetiva transformação de
práticas cotidianas que perpetuam o preconceito e a discriminação.
Fraser (2001, 2006b) argumenta sobre um conceito de justiça social que entrelaça
princípios igualitaristas e diferencialistas através de medidas afirmativas e transformativas. As
medidas afirmativas atuariam sobre os resultados indesejados das injustiças sociais; contudo,
não modificariam as estruturas que lhe deram origem; já as medidas transformativas visariam a
alterar os resultados indesejáveis pela via da reestruturação institucional política e econômica
em que se baseiam. Assim, a solução afirmativa à exploração por mecanismos de classe social
seria o Estado de bem-estar social, ao passo que a solução transformativa se assentaria numa
completa reestruturação das relações de produção6. Já no que se refere às injustiças simbólicovalorativas, o remédio afirmativo seria o multiculturalismo diferencialista, e a solução
transformadora consistiria na desconstrução de categorias como gênero e raça.
Assim, Fraser (2001, 2006b) elabora um conceito amplo de justiça que consegue
acomodar tanto as reivindicações defensáveis de igualdade social quanto às reivindicações,
igualmente defensáveis, de reconhecimento da diferença. Tal integração só se torna possível
porque a autora toma como marco normativo a noção de paridade de participação na esfera
pública, isto é, “a condição de ser igual, de estar numa relação horizontal com os demais, de
estar em situação de igualdade aos demais” (Fraser, 2007, p. 13) na demanda por um bem
público.
6
Fraser (2001) não defende um modelo distributivo liberal, mas uma via média entre as políticas socialistas
transformadoras e as políticas reformistas liberais. Esta via média é chamada pela autora de “reforma não
reformista”.
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Na perspectiva dada, a paridade participativa incorpora, como moralidade pública, a
condição objetiva e intersubjetiva. A primeira condição trata da distribuição de recursos
materiais que garantam a independência e a voz de todos os participantes, e a segunda condição
requer que os padrões institucionalizados de valor cultural expressem o mesmo respeito a todos
os participantes e garantam condições de igualdade de oportunidades para conquistar a estima
social. A paridade participativa se conforma, assim, em uma norma universalista, pressupondo
igual valor moral para todos os seres humanos. Deve ser tomada como critério para discernir as
reivindicações justificadas das não justificadas, tanto por reconhecimento quanto por
redistribuição. Na perspectiva democrática da deliberação pública participativa, a justiça não é
um requisito imposto de fora determinado por instâncias superiores às pessoas; pelo contrário,
ela só obriga na medida em que seus destinatários possam considerar-se seus protagonistas
(Fraser, 2006a).
Com efeito, a paridade de participação coloca-se como norma de avaliação da justiça
social. Essa norma, afirma Fraser (2006a), permeia ambas as concepções de justiça, portanto,
serve como critério geral para distinguir as reivindicações justificadas das não justificadas tanto
para as concepções de distribuição quanto para as concepções de reconhecimento.
Independentemente de a questão ser de distribuição ou de reconhecimento, os reclamantes por
justiça devem demonstrar que os acordos vigentes lhes impedem de participar na vida social em
pé de igualdade com os outros. Logo, os reclamantes da distribuição devem demonstrar que os
acordos econômicos lhes negam as condições objetivas necessárias para a paridade participativa.
Já os reclamantes do reconhecimento devem demonstrar que os padrões institucionalizados de
valor cultural lhes negam as necessárias condições intersubjetivas. Em ambos os casos, a norma
da paridade participativa é a referência das reivindicações justificadas.
3. As políticas de ação afirmativa para a Educação Superior no Brasil:
um debate sobre a juridicidade das cotas
Esta seção propõe refletir sobre o acesso à Educação Superior por meio de cotas na
perspectiva do direito à Educação Superior. A justiciabilidade dos direitos sociais e humanos
diz respeito à sua juridicidade, isto é, à existência de aparato jurídico que garanta o direito em
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caso de seu descumprimento por quem deveria assegurá-lo. Nesse processo os poderes
legislativo e executivo são esferas que atuam para colocar em prática os direitos sociais e
humanos no Estado nacional brasileiro: o legislativo produzindo as leis que dão o substrato legal
ao direito; e o executivo, respaldando o direito reconhecido pela via da elaboração de políticas
públicas; já o poder judiciário é a última instância para que tais direitos sejam garantidos
(Konzen, 2010).
Logo, os direitos sociais reconhecidos na Constituição de 1988 possuem eficácia
jurídica. A ordem constitucional de 1988 alarga as tarefas do Estado, incorporando fins
econômico-sociais positivamente vinculantes das instâncias de regulação jurídica. A política,
enfim, deixou de ser concebida como um domínio juridicamente livre e constitucionalmente
desvinculado, uma vez que seus domínios passaram a sofrer limites e imposições de ação, por
meio do projeto material constitucional vinculativo. Surgiu, daí, verdadeira configuração
normativa da atividade política (Konzen, 2010; Piovesan & Vieira, 2006).
Diante desse alargamento das funções sociais do Estado brasileiro, a grande questão que
se coloca é: em que medida os direitos sociais, previstos constitucionalmente, são garantidos
juridicamente? Conforme argumenta Santos (2011a), o sistema judicial entra em ação quando a
administração pública deixa de realizar, espontaneamente, a prestação de um serviço público. A
constitucionalização de direitos sem o respaldo de políticas públicas sociais torna difícil a
efetivação deles. No caso brasileiro, afirma o autor, o catálogo amplo de direitos abre espaço
para uma maior intervenção judicial a partir do controle da constitucionalidade do direito
ordinário. Muitas das decisões judiciais de destaque acabam por consagrar princípios e normas
constitucionais para além, ou ao contrário, do que está estabelecido na lei ordinária.
Desse modo, a Carta de 1988 introduz um avanço extraordinário na consolidação dos
direitos e das garantias fundamentais, situando-se como o documento mais avançado,
abrangente e pormenorizado sobre a matéria da história constitucional do País. É a primeira
Constituição brasileira a iniciar com capítulos dedicados aos direitos e às garantias, para, então,
tratar do Estado, de sua organização e do exercício dos poderes. Ineditamente, os direitos e as
garantias individuais são elevados a cláusulas pétreas, passando a compor o núcleo material
intangível da Constituição (art. 60, parágrafo §4.º, inciso IV). Com isso há a previsão de novos
direitos e garantias constitucionais, bem como o reconhecimento da titularidade coletiva de
direitos, com alusão à legitimidade de sindicatos, associações e entidades de classe para a defesa
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de direitos. A Carta explicita, ainda, a obrigação da oferta de educação básica de qualidade para
todos os estudantes das escolas públicas brasileiras e, inclui a educação, sem especificar qual
nível, no rol dos direitos humanos fundamentais, ao reconhecê-la como direito social no Art.
6.º (Piovesan & Vieira, 2006).
Na esteira dessas argumentações, Barrozo (2004) apresenta uma reflexão que vai além
dos rudimentos de uma teoria constitucional da igualdade formal. O autor discute a questão das
políticas de ação afirmativa, com foco no acesso dos negros à Educação Superior a partir de
dois ideais emancipatórios de forma de vida coletiva – o republicanismo e a democracia. Nos
ideais republicano e democrático (clássico ou puro), a igualdade, relativa por natureza, é
relevante como contrária da desigualdade. O que se quer, na verdade, é uma igualdade seletiva
cuja expressão mais acurada está na vedação de determinados tipos ou intensidade de
desigualdade. Uma estrita igualdade material jamais integrou o ideário republicano-democrático
como veio a integrar a agenda dos partidos socialistas e dos movimentos dos trabalhadores
industriais do século XIX. Na concepção do autor, submeter o sistema brasileiro de cotas para
acesso à Educação Superior a desimpedidos e profundos escrutínio moral, análise de estratégia
e eficiência e iniciativas reajustadoras, é tarefa central a um constitucionalismo republicano e
democrático.
Santana (2010) procura examinar o princípio de isonomia e sua evolução histórica na
legislação brasileira, bem como diferenciar prerrogativas de privilégios, recorrendo aos
antecedentes históricos da organização da sociedade brasileira. A autora utiliza-se da retórica
jurídica constitucional para defender que as políticas públicas de ação afirmativa na educação
são imprescindíveis na esfera social e atendem aos parâmetros estabelecidos na Constituição
Federal do Brasil. A finalidade do ordenamento pátrio não se limita à mera consecução de
interesse privado das partes que dele se utilizam, mas de interesse público de toda a sociedade.
Para tornar real tal ofício, o direito não tolera desigualdades entre sujeitos, que devem ter as
mesmas oportunidades.
Nessa mesma direção aponta Feres Junior (2004), ao explorar, nos fundamentos do
regime político-legal em vigor no Brasil – a democracia liberal moderna –, uma possível
justificativa para a aplicação de políticas de ação afirmativa para o ingresso na Educação
Superior. Afirma que, apesar de habitarmos uma sociedade com uma pluralidade de crenças,
valores e ideologias, a justificação de políticas públicas tem que se dar em relação aos parâmetros
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constitucionais da democracia liberal. Contudo, esse regime político não é moralmente7 neutro.
Ele é calcado em um substrato valorativo básico – a igualdade e o mérito8 – que está presente,
mesmo que às vezes de maneira não completamente transparente, em todas as sociedades que
o adotam, ou seja, praticamente em todo o Ocidente moderno e além. Porém, o autor argumenta
que existe uma hierarquia entre esses dois princípios, na qual deveria prevalecer o princípio da
igualdade; pelo menos é o que aponta a transformação histórica das instituições.
Historicamente, é a igualdade que atua como ideia reguladora do mérito e não vice-versa. Mesmo
quando se trata, por exemplo, da substituição de relações de clientelismo e parentesco pelo
critério de mérito, de fato, está se fazendo uma crítica da desigualdade inerente àquelas práticas,
exclusão de todos em prol de amigos e parentes, e se postulando uma maior igualdade de
oportunidades para todos, que aí sim poderão ser julgados pelo próprio mérito. (Ferez Júnior,
2004, p. 296)
Assim sendo, o autor infere que a igualdade como ideia reguladora do mérito é produto
de lutas históricas pelo Estado de bem-estar social9. No modelo de Estado do liberalismo
clássico (ou puro), o Estado garante igualdade na aplicação das leis; e o mercado, a premiação
do mérito. No Estado de bem-estar social reconhece-se que, sem um mínimo de garantias
materiais, parcelas da população ficariam incapacitadas de gozar, em pé de igualdade com os
demais, dos direitos formalmente estabelecidos em lei. Portanto, considera o autor, faz-se
necessário que o Estado subtraia parte da riqueza que circula no mercado, através de impostos
e taxas, e a distribua para essas parcelas. Logo, o princípio da igualdade, para melhor se realizar,
justifica uma redução da esfera de atuação do princípio do mérito. Para se produzir uma
igualdade de fato, ou uma maior igualdade, muitas vezes é necessário fazer-se uma
“discriminação positiva”.
Piovesan (2005) articula as políticas de ação afirmativa aos direitos humanos. Trata da
concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida pela Declaração Universal de 1948,
com ênfase na universalidade, na indivisibilidade e na interdependência dos direitos humanos
7 O autor se refere ao termo “moral”, deixando claro que o termo faz referência aos valores que baseiam as escolhas
que têm por objeto a vida em sociedade. As questões básicas que se colocam no plano moral dizem respeito à
determinação do justo, do correto na vida coletiva.
8 Segundo Feres Junior (2004), nas sociedades democráticas liberais a igualdade é um princípio do Estado e o
mérito é um princípio do Mercado.
9 Apesar da avalanche neoliberal que varreu o mundo nas últimas duas décadas, políticas próprias do Estado de
bem-estar social, tal qual são as políticas de ação afirmativa, ainda estão em funcionamento em todos os países
democráticos modernos, sem exceção (Feres Júnior, 2004).
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com destaque aos valores de igualdade e diversidade. A autora afirma que, a partir de 1948,
começa a desenvolver-se o Direito Internacional dos Direitos Humanos mediante a adoção de
inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais.
Com a internacionalização faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que
passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nessa ótica determinados sujeitos de
direito ou determinadas violações de direitos exigem uma resposta específica e diferenciada. A
adesão dos países aos tratados significa que a diferença não mais seria utilizada para aniquilação
dos direitos, mas, ao revés, para sua promoção.
Assim, ao lado do direito à igualdade, surge também, como direito fundamental, o
direito à diferença. O direito à diferença e à diversidade assegura um tratamento especial. Nesse
sentido, Moehlecke (2009) afirma que a diferença é uma construção social, por isso o seu exame
crítico necessita reconstruir o processo que lhe deu origem. Nessa reconstrução se podem
questionar as relações de poder que lhe são inerentes, com o intuito de elevar aquele designado
como “outro”, “diferente”, “inferior” à condição de sujeitos por meio da afirmação das
identidades específicas desses grupos, como instrumento de luta política.
Piovesan (2005), para caracterizar as políticas de ação afirmativa, destaca três vertentes
à concepção de igualdade: a) igualdade formal, reduzida a fórmula “todos são iguais perante a
lei” (que no seu tempo foi fundamental para a eliminação dos privilégios); b) igualdade material,
correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo critério
socioeconômico); c) igualdade material correspondente ao ideal de justiça como
reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual,
idade, raça, etnia e demais critérios). A autora ressalta, dessa forma, o caráter bidimensional da
justiça, conforme também propugnado por Fraser (2001), ou seja, destaca a redistribuição
articulada ao reconhecimento, cuja exigência “permite a realização da igualdade substantiva”
(Piovesan, 2005, p. 56). Assim, a justiça social como redistribuição e reconhecimento transita da
igualdade formal para a igualdade material e substantiva.
As políticas de ação afirmativa, especificamente a reserva de vagas por meio de cotas,
emergem com a finalidade de compensar desigualdades educacionais com estudantes
pertencentes a determinados grupos sociais cuja origem social e étnico-racial tem sido
determinante na sua exclusão da Educação Superior. Supostamente, a educação básica deveria
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garantir igualdade de condições de acesso à Educação Superior para todos os seus egressos.
Desse ponto de vista, o direito à educação não está sendo atendido em sua plenitude pela ação
pública. Com efeito, a própria implementação da política de cotas em IES públicas evidencia o
fato de que o conhecimento ofertado pela educação básica pública não está garantindo a
igualdade de condições de acesso à Educação Superior aos seus egressos, em especial, aos cursos
de graduação com maior status social.
4. A normatização da política de cotas na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul: acesso de egressos de escolas públicas
A construção da juridicidade dos direitos sociais e humanos está diretamente implicada
com a noção de justiça social que a sociedade brasileira reproduz no âmbito das relações sociais.
No limite, a noção de justiça social se expressa na institucionalidade legal e normativa que dá
corpo às políticas públicas com vistas a cumprir, no caso da argumentação deste trabalho, o
direito à Educação Superior. Ademais, tal conceito é sempre fruto das correlações de forças
sociais locais e globais.
Sendo o Brasil uma federação, a legislação que se produz pode se dar em três instâncias
administrativas: da União, dos Estados e dos Municípios. A Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) localiza-se na região sul do País, no estado do Rio Grande do Sul. A
normatização da política de cotas na UFRGS é fruto de legislação oriunda da União, instância
administrativa que regulamenta as universidades federais. Contudo, na UFRGS a
implementação da política de cotas para egressos de escolas públicas, egressos de escolas
públicas autodeclarados negros e indígenas, antecede a Lei federal n.º 12.711, de 29 de agosto
de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de
ensino técnico de nível médio para estudantes egressos de escolas públicas (Lei BR, 2012).
Na trajetória de normatização desta Universidade, em junho de 2007 a proposta de
implantação da política de cotas na Universidade foi encaminhada ao CONSUN. A justificativa
da comunidade acadêmica, representada por membros do Conselho de Ensino e Pesquisa
(CEPE) e do Conselho Universitário (CONSUN) em uma Comissão Especial, para a
implementação da política de cotas na UFRGS foi a seguinte:
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As democracias contemporâneas, principalmente as de história mais recente em países com
grandes desigualdades sociais, têm falhado em assegurar um dos seus princípios básicos presente
em todas as constituições: a igualdade de direitos a todos os seus cidadãos. Em outras palavras,
têm falhado no seu dever de assegurar a própria cidadania.... As políticas compensatórias levadas
a efeito em países onde existem movimentos sociais organizados e regimes democráticos
estáveis visam compensar grupos, que, por condições históricas, se encontram em uma situação
de exclusão, em relação a possibilidade do exercício de direitos garantidos na Constituição. ... A
elevação da riqueza no país não está alterando o quadro da desigualdade, pois, permanece a
mesma distribuição de riqueza concentrada nos 1% mais ricos. Entretanto, poderá haver
distribuição de renda sem crescimento, através de políticas distributivas, como claramente são
as políticas de ações afirmativas. (UFRGS, CONSUN, 2007, p. 4)
A argumentação da Comissão Especial revela em seu conteúdo elementos relacionados
à sua juridicidade, isto é, as cotas para a Educação Superior são instrumentos legais que garantem
direitos sociais aos cidadãos. Por outro lado, reconhece o papel das políticas compensatórias
para a redução da desigualdade social em países que não logram êxito na garantia de direitos
iguais para a cidadania nacional. A Comissão Especial situa as ações afirmativas como
instrumentos legítimos e legais que possibilitam que a democracia se realize em “cenários de
grande desigualdade decorrente de questões econômicas, sociais, culturais que isolam grupos do
direito de exercerem seus direitos” (UFRGS, CONSUN, 2007, p.3).
Tal argumentação sugere que o “núcleo de significações” que começa a ser construído
institucionalmente na UFRGS está diretamente associado com os efeitos da pobreza sobre o
acesso à Educação Superior, remetendo a uma redistribuição afirmativa de conhecimento que
compensaria as injustiças socioeconômicas. Contudo, a argumentação revela não estar focada
na dimensão de uma redistribuição transformativa que poderia reparar as injustiças raciais em
instância maior como a economia capitalista. Não se observam no conteúdo do texto da política
sentidos que resultariam em políticas mais amplas de antirracismo (Fraser, 2001). Percebe-se
que o foco da argumentação da Comissão Especial que produziu significados para a formulação
da política de cotas na UFRGS está centrado na redistribuição socioeconômica.
A política de ação afirmativa da UFRGS, nesse sentido, será de cotas sociais,
demarcando um diferencial em relação às primeiras ações afirmativas implantadas em
universidades públicas brasileiras. Na UFRGS, o critério central para acesso de estudantes
cotistas é a origem escolar (escola pública); as cotas raciais ficaram/ficam submetidas a este
critério. Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a primeira universidade brasileira
a implantar uma política de ação afirmativa, em 2002, as cotas raciais desde sua criação são
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desvinculadas das cotas sociais: para ter acesso às cotas raciais basta o candidato autodeclararse negro. A Universidade Federal de Brasília (UnB), utilizando-se, em 2003, da sua autonomia
universitária, ao implantar a sua política de ação afirmativa, seguiria o mesmo caminho da UERJ.
Assim, em 2007, a resolução do Conselho Universitário (CONSUN) 134/2007 instituiu
o programa de Ações Afirmativas da UFRGS, estabelecendo o ingresso por reserva de vagas
em todos os cursos de graduação da Universidade para os 05 anos seguintes. O Programa
definiu que, a partir do ano de 2008, 30% das vagas em cada curso seriam reservadas para
candidatos egressos do sistema público de Ensino Fundamental e Médio. Do total de vagas
reservadas, no mínimo a metade (15%) seria garantida para estudantes de escolas públicas
autodeclarados negros. O Programa estabeleceu, ainda, a criação de 10 vagas anuais para o
ingresso de estudantes indígenas indicados pela sua comunidade, a qual também indicava/indica
o curso (UFRGS, 2012a).
O processo de implantação da política despertou grandes impasses e disputas na
comunidade acadêmica e local; basicamente, se colocava em xeque a constitucionalidade da
política de cotas na UFRGS; com efeito, disputava-se para dar sentido à noção de justiça social
para a política. Em 2012, o Programa passou por avaliação submetida ao CONSUN, tendo em
vista decidir sobre a necessidade ou não de continuidade da política de cotas. Após disputas e
confrontos no âmbito dos segmentos do Conselho, a continuidade da política foi aprovada por
unanimidade por mais dez anos, acrescentando-se ao critério ser egresso de escola pública
também o critério socioeconômico renda per capita.
No que diz respeito às condições de normatização da política de cotas na UFRGS, foram
encaminhadas as seguintes ações: 1) criação do programa de Ações Afirmativas; 2) nomeação
da Comissão de Acompanhamento dos Alunos do Programa de Ações Afirmativas; 3)
promoção da permanência dos estudantes de escolas públicas e de escolas públicas
autodeclarados negros. Na primeira ação, a Resolução 134/2007 do CONSUN instituiu o
Programa e estabeleceu os seus objetivos. Na segunda ação, a Portaria 4032 de dezembro de
2007 criou a Comissão (com representação da comunidade acadêmica) que teria o papel de
fortalecer a política adotada pela Universidade, aliada ao estabelecimento de ações de avaliação
que garantissem o apoio institucional aos estudantes. A terceira ação abarcou projetos que
objetivavam dar aos cotistas o apoio pedagógico em disciplinas do currículo regular até
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disciplinas extracurriculares. Nessa ação incluíam-se, ainda, a ampliação da assistência estudantil
e a incorporação de projetos de extensão relacionados às ações afirmativas.
Esse seria o núcleo central de ações que dariam sentido e organização à ação afirmativa
para estudantes egressos de escolas públicas no âmbito da UFRGS. A partir desse núcleo, a rede
de ações estendeu-se, à medida que foram sendo identificadas as demandas dos estudantes
cotistas pelas Comissões de avaliação e acompanhamento institucionais.
Conforme se pode perceber, a UFRGS instituiu a política de cotas de modo a garantir
não somente o acesso dos estudantes cotistas como também a permanência deles. Todavia, a
construção das condições de normatização foi/é fruto do processo de implantação da política,
sua formulação e implementação, da qual participaram/participam atores da comunidade
acadêmica e local que disputavam o sentido que seria dado à ação afirmativa no âmbito desta
instituição de Educação Superior. Além disso, a institucionalização da ação afirmativa na
Universidade não elimina o fim dos confrontos entre atores com diferentes percepções de
justiça social. Afinal, a Educação Superior pública segue o percurso de um bem coletivo escasso,
portanto, alvo permanente de disputas sociais.
Sobre o impacto das cotas no acesso a cursos de graduação da UFRGS, considerando o
perfil dos estudantes – egressos de escolas públicas e egressos de escolas públicas autodeclarados
negros –, a avaliação quantitativa da Comissão de Acompanhamento dos Alunos do Programa
de Ações Afirmativas, de 2008 até 2012, indica que houve ampliação relevante. No relatório de
avaliação há significativo aumento do número de egressos de escolas públicas entre os
classificados em todos os cursos de graduação da UFRGS, passando de 31,53% do total em
2007 (último ano de ingresso sem cotas) para 49,87% já em 2008. Em relação aos estudantes
autodeclarados negros egressos de escolas públicas, o percentual foi proporcionalmente mais
expressivo, passando de 3,27% em 2007 para 11,03% em 2008 (UFRGS, 2012b).
A avaliação institucional evidencia que, no geral, houve uma tendência de aumento na
proporção de inscritos egressos de escolas públicas, que passou a ser considerável a partir de
2010. A proporção de inscritos autodeclarados negros aumentou em relação aos candidatos não
autodeclarados negros egressos de escolas públicas. É importante ressaltar que as vagas não
ocupadas pelos egressos de escolas públicas autodeclarados negros vão para os egressos de
escolas públicas não autodeclarados negros. A avaliação aponta que, até 2012, os autodeclarados
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negros não estavam preenchendo a totalidade de vagas a eles destinadas, 15% do total de 30%
reservadas para egressos de escolas públicas. Nesse sentido, percebe-se que a reserva de vagas
para egressos de escolas públicas favorece percentualmente os estudantes não autodeclarados
negros, nesse caso, prevalecendo uma “injustiça interna”, entre os cotistas (UFRGS, 2012b).
Observa-se, ainda, na avaliação da Comissão de Acompanhamento, o aumento
estatisticamente significativo dos inscritos vindos de escolas públicas em cursos de alta demanda
e a diminuição gradual no número de inscritos egressos de escola pública e autodeclarados
negros egressos de escolas públicas nos cursos de baixa densidade (UFRGS, 2012b). Essa
avaliação sinaliza para o fato de que, com a ampliação do acesso por meio das cotas, os
estudantes egressos de escolas públicas passam, paulatinamente, a empreitar a escolha de cursos
de graduação cuja ocupação em outros tempos era elitizada, isto é, historicamente eram os filhos
das elites que frequentavam/frequentam, em sua grande maioria, a educação básica em escolas
privadas, conforme apontam pesquisas (Neves et al., 2007).
Em 2014, outra avaliação institucional foi realizada pela Coordenadoria de
Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas (CAF) tomando por base o período
2013-2014. O surgimento dessa instância específica, para propor ações de acesso e permanência,
bem como avaliar o conjunto dos objetivos do Programa, pode ser considerado um avanço na
construção da institucionalidade das ações afirmativas na UFRGS. O seu surgimento, em 2012,
se deu não apenas em função da constatação dos limites revelados pela atuação das Comissões
de Acompanhamento, com dificuldades de manutenção de um grupo permanente de avaliação
e acompanhamento no primeiro ciclo da política de cotas (2008-2012)10, mas, principalmente,
pela necessidade de dar identidade própria para uma política que pretende ter impacto estrutural
no perfil estudantil da Universidade, com todas as implicações que isso traz/trará no contexto
das políticas acadêmicas e assistenciais.
Com a vinculação da CAF à Pró-Reitoria de Coordenação Acadêmica, a execução e o
acompanhamento das ações afirmativas inserem-se institucionalmente na política de inclusão
da UFRGS em todos os âmbitos da vida acadêmica – ensino, pesquisa, extensão (UFRGS,
2014). Cabe ressaltar, no entanto, que essa ação ainda não pode ser percebida como uma
mudança estrutural da Universidade com vistas a receber a diversidade acadêmica que hoje exige
10
O segundo é de 2012-2022.
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das universidades federais uma reforma democrática emancipatória (Santos, 2011b); nesse
sentido, a UFRGS ainda tem longo caminho a percorrer.
Nas primeiras avaliações da CAF, observam-se as mudanças ocorridas para o acesso à
Educação Superior nas IES públicas federais por meio de cotas na Lei Federal n.º 12.711 de
2012 (Lei de Cotas) (Lei BR, 2012), que padroniza a reserva de vagas para estudantes oriundos
de escolas públicas. Na UFRGS, até 2012, para participar do processo seletivo era necessário
ter frequentado a metade do Ensino Fundamental e o Ensino Médio completo em escola
pública; com a nova institucionalização, para acessar a Educação Superior por cotas passa a ser
necessário somente o estudante ter cursado o Ensino Médio público completo. A Lei de Cotas
institui, ainda, que até 2016 todas as IES públicas federais tenham implementado os 50% de
reserva de vagas para estudantes oriundos de escolas públicas.
Com isso há um impacto explícito na ampliação do acesso de estudantes oriundos de
escolas públicas na UFRGS. A reserva de vagas que fora estipulada em 30% em 2007 e reeditada
em 2012, quando ocorreu a avaliação do Programa pelo CONSUN, teria que ser ampliada até
garantir a totalidade determinada pela lei federal. A avaliação da CAF revela que houve aumento
visível de inscritos oriundos de escolas públicas no primeiro vestibular realizado após a Lei de
Cotas (de um total de 40.978 inscritos 2012 para 46.244 em 2013). Além disso, a Lei de Cotas
acrescentou ao critério socioeconômico novas modalidades de ingresso em cada uma das faixas
de renda definidas pela UFRGS, por meio da introdução de faixas reservadas a estudantes cuja
renda familiar não ultrapassasse 1,5 salário mínimo per capita (Lei BR, 2012), reforçando o seu
caráter de justiça distributiva de cunho socioeconômico. A avaliação da CAF observa, no
entanto, uma distorção na distribuição das vagas para egressos de escolas públicas; as inscrições
nos concursos confirmam que “houve um predomínio acentuado dos egressos de escolas
públicas de renda superior na comparação com os de renda inferior” (UFRGS, 2014, p. 9),
revelando que a renda ainda é um fator relevante de desigualdade educacional, mesmo entre os
cotistas.
Por outro lado, destaca-se no programa de Ações Afirmativas da UFRGS a manutenção
da metade das vagas (agora dos 50%) para os estudantes autodeclarados negros oriundos de
escolas públicas, independente do percentual exigido por Lei relativo à participação demográfica
– conforme o número de pretos, pardos e brancos existentes em estados da federação (Lei BR,
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2012) – que no RS não alcançaria a metade da reserva de vagas para estudantes autodeclarados
negros oriundos de escolas públicas.
Outra ação institucional da UFRGS teria efeito direto na ampliação do acesso à
Educação Superior, em especial aos cursos de maior status social pelos candidatos
autodeclarados negros. Trata-se da Decisão n.º 22 de 2011 do Conselho de Ensino e Pesquisa
(CEPE), que alterou os critérios de pré-classificação dos candidatos para a avaliação da redação,
passando a determinar que a reserva de vagas fosse observada para fins dessa pré-classificação.
Após essa Decisão, as vagas disponíveis aos candidatos autodeclarados negros, que no período
2008-2012 ocuparam menos de 50%, foram sendo preenchidas. No curso de Medicina, que teve
até 2011 apenas 3 das 84 vagas disponíveis ocupadas pelos estudantes autodeclarados negros,
nos vestibulares de 2012, 2013 e 2014 houve classificados para todas as 21 vagas anuais, o
mesmo ocorrendo no curso de Direito que passou a ter todas as vagas disponibilizadas ocupadas
(UFRGS, 2014).
As avaliações da CAF demonstram que, mesmo existindo necessidade de
aprimoramento da política de cotas na UFRGS, em especial em relação ao acesso de estudantes
de escolas públicas com maior renda resultando em uma disputa (injusta, por ser de origem
econômica) interna entre os cotistas, ocorreram avanços que indicam para uma normatização
cujo núcleo de significados de suas principais ações tende para uma noção de justiça afirmativa
com ações de cunho transformativa. A avaliação institucional da CAF funciona, nesse sentido,
como um instrumento que resulta em ações constantes de “ajuste” de efeitos de injustiças sobre
os processos de institucionalização da política de cotas sociais. Um ajuste que se faz necessário
em relação às cotas raciais é o de não vinculá-las à renda, já que esta está submetida ao critério
origem escolar (escola pública).
Logo, por um lado, a política de cotas da UFRGS parece encaminhar-se para a ruptura
com o status subordinado do negro e do índio, mantido por padrões institucionalizados de valor
cultural cujo maior efeito pode ser visto pela exclusão desses grupos sociais da Universidade,
como espaço de interação social. Por outro lado, ao propor a renda também como critério de
acesso, procura-se romper com uma ordem de subordinação objetiva dada pela classe social
derivada de ordenamentos econômicos, cujo maior efeito pode ser percebido pela exclusão dos
estudantes pobres da Universidade, como espaço privilegiado que oferece aos grupos sociais os
meios e os recursos para a paridade participativa na sociedade (Fraser, 2001, 2006a).
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O impacto do acesso à Educação Superior por meio das políticas de cotas nas
instituições de Ensino Superior público em termos objetivos de redistribuição de renda e
reconhecimento cultural pode não ser significativo conjunturalmente, já que a maior parte da
demanda (em torno de 80%) por esse nível educacional é atendida, no Brasil, pelo setor privado
(MEC, 2013). Com efeito, em longo prazo esse impacto pode se fazer sentir à medida que
grupos sociais que até o século XXI estavam praticamente ausentes dos cursos superiores,
especialmente os mais seletivos em termos de status social, se beneficiem da Universidade como
espaço de construção de conhecimento humano, de mobilidade e interação social.
5. Considerações finais
O artigo se propôs a analisar a construção da normatização institucional da política de
cotas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tendo em vista identificar se as
condições de implantação do programa de Ações Afirmativas desta Universidade ampliou o
acesso de estudantes egressos de escolas públicas aos seus cursos de graduação, em especial
àqueles considerados de maior status social. De modo geral, os resultados da avaliação
institucional apontam que houve significativa ampliação, considerando o período de 2008 a
2014. Contudo, percebe-se que a complexidade da construção das ações institucionais, tendo
em vista um constante “ajuste” de justiça social demandado pelos sujeitos cotistas na sua relação
com a Universidade, necessita esforço contínuo dos diversos sujeitos-atores na constante
disputa pela paridade participativa na produção de significados para a política de cotas sociais.
Afinal, independentemente de a questão do ajuste ser de redistribuição ou de reconhecimento,
as ações institucionais da UFRGS são representativas dos resultados da luta dos reclamantes
(egressos de escolas públicas, egressos de escolas públicas autodeclarados negros) por justiça,
que demonstram que os acordos vigentes os impedem de participar da vida social em pé de
igualdade com os demais.
Resta, nesta análise, considerar que as políticas públicas de ação afirmativa para a
Educação Superior na modalidade de cotas para grupos sociais excluídos, no atual contexto da
sociedade brasileira, são bem-vindas e necessárias. A desigualdade social é, certamente, fruto de
um modelo de sociedade que traz na sua gênese a concentração de renda e o acúmulo de capital
como aspiração máxima. Contudo, as sociedades em suas especificidades incorporam elementos
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culturais ao modelo hegemônico que, no caso brasileiro, reforça os pilares da desigualdade social
– vide a reprodução da exclusão dos negros, dos indígenas e dos brancos pobres do acesso aos
bens sociais, econômicos e culturais, oriunda de relações sociais cunhadas ainda sob o regime
colonial.
Para finalizar, postula-se que, no Brasil, em um período de dez anos, a quantidade de
estudantes matriculados na Educação Superior dobrou de 3,5 milhões em 2002, para mais de 7
milhões em 2012 (MEC, 2013). Dado o período citado, que condiz com a implantação de ações
afirmativas para a Educação Superior, pode-se inferir que tais políticas foram/são uma variável
interveniente na ampliação do acesso, em especial para estudantes egressos de escolas públicas,
conforme se apontou no caso da UFRGS. É preciso, no entanto, reconhecer que as políticas de
cunho afirmativo para a Educação Superior, nomeadamente a reserva de vagas por meio de
cotas, são ações que pretendem compensar os déficits da educação básica pública, garantindo o
acesso à Educação Superior a grupos sociais historicamente excluídos deste nível de ensino;
com efeito tais ações, sem o investimento em políticas educacionais estruturais para a educação
básica pública garantindo maior equidade no acesso à Educação Superior, não asseguram a
efetividade do cumprimento do direito à educação.
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Submetido à avaliação em 22 de novembro de 2015; revisado em 04 de maio de 2016; aceito para publicação
em 16 de maio de 2017.
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