O Carteado Científico e a Governança pela Norma:
Uma Análise Antropológica sobre os Procedimentos
de Avaliação da Produção Científica e da Ética em
Pesquisa no Brasil1
The Scientific Pack of Cards and Governing by Standards: An
Anthropological Analysis of the Procedures for Evaluation of
Scientific Production and Ethics on Research in Brazil
Hully Guedes Falcão
Programa de Pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde, Fundação Oswaldo
Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Fabio Reis Mota
Programa de Pós-graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio
de Janeiro, Brasil
Gabriela de Lima Cuervo
Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
O objetivo deste trabalho é trazer uma reflexão sobre as reconfigurações do modelo
de governança pela norma científica no Brasil e como elas repercutiram em novas
modalidades de controle engendradas nas últimas décadas. Nossas análises resultam de
pesquisa etnográfica realizada no âmbito de duas esferas avaliativas: na avaliação da
produção científica e na avaliação da ética em pesquisa, espaços que são produtos de
1 Este artigo é resultado de pesquisas provenientes de recursos do Projeto Capes PRINT International Research
Network on Conflict Management in Plural Public Spaces: Inequalities, Justice and Citizenship in a Comparative
Perspective e do Programme Directeurs d’Études Associés (DEA) de la Fondation Maison des sciences de l’homme, Paris-França coordenados por Fabio Reis Mota, Bolsa Faperj Nota 10 concedida à Hully Falcão, e da Capes
através de bolsa de doutorado destinada à Gabriela Cuervo.
Recebido em 03 de março de 2021.
Avaliador A: 04 de maio de 2021.
Avaliador B: 05 de maio de 2021.
Aceito em 19 de maio de 2021.
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regulações que seguem um movimento internacional de estandardização, cuja tônica é
a universalização de determinados protocolos e práticas. Desse modo, nossa intenção é
tornar evidente sob quais standards essas diferentes regulações se baseiam, quais críticas
e justificações são produzidas por seus integrantes, e como o controle, a partir do Estado,
reverbera na prática científica. A premissa destes modelos padronizadores é de tornar o
processo avaliativo objetivo, no entanto, à medida que os atores performam e acionam
competentemente esses dispositivos, constroem representações e estratégias assentadas,
muitas vezes, em suas trajetórias acadêmicas e científicas. Por fim, problematizamos
o modo como esses modelos de certificação, qualificação e classificação ganham
novos contornos em um mundo no qual as regras e normas são operacionalizadas de
forma particularizada e por meio de critérios regidos por uma racionalidade cismática.
Palavras-chave: Governança pela norma, Avaliação, Padronização, Prática científica.
ABSTRACT
The aim of this paper is to reflect on the reconfigurations of the governing by standards
in Brazil’s scientific field and how they have had repercussions in new modalities of
control engendered in recent decades. Our analyses result from ethnographic research
carried out in two evaluative spheres: scientific production evaluation and the evaluation
of ethics in research, spaces that are products of regulations that follow an international
movement of standardization, whose keynote is the universalization of certain protocols
and practices. Thus, our intention is to make evident under which standards these
different regulations are based, which criticisms and justifications are produced by
their members, and how the control, from the State, reverberates in scientific practice.
The premise of these standardizing models is to make the evaluative process objective,
however, as the actors perform and activate these devices competently, they build
representations and strategies based, many times, on their academic and scientific
trajectories. Finally, we problematize how these models of certification, qualification and
classification gain new contours in a world in which rules and norms are operationalized
in a particularized way and through criteria governed by a schismatic rationality.
Keywords: Governing by standards, Evaluation, Standardization, Scientific practice.
INTRODUÇÃO
Reluziu na contemporaneidade dos países “ocidentais” uma linguagem política e moral
fortemente associada às práticas de normalização e estandardização das coisas, pessoas e dos
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mundos nos quais esses diferentes agentes habitam. Foucault (1972, 1987) observou que os
mecanismos de controle das sociedades capitalistas modernas se delineavam pelas feições dos
regimes de normalização e internalização das condutas e docilização dos corpos. Essa “nova
alma do capitalismo” conferiu vida ao individualismo tal como o conhecemos e concedeu corpo
à conformação de um sentido de ética universal fundamentada em princípios e valores próprios
do liberalismo econômico e político proveniente dos países da Europa e do norte da América.
Em grande medida, os EUA figuraram como a fonte irradiadora dos modelos de gestão da pesquisa, da ética na pesquisa e dos modos de governar a produção e consagração do conhecimento
científico.
Uma das principais repercussões deste modelo liberal de matriz normalizadora no domínio da regulação da pesquisa – que seguia as formas do que Foucault descreveu sobre espaços
disciplinares e normalizadores (tais como a prisão, os manicômios, os hospitais etc.) – foi a
elaboração de critérios, princípios éticos e normativos assentados na conformação de mundos
pasteurizados e que se pretendem comuns e universais. Esse processo veio se somar ao advento,
nos dias atuais, do modelo de governança pela norma2 ou por standards (THÉVENOT, 1997;
2019), cujos alicerces são comuns ao da normalização ainda que mobilizado e efetuado sob
o escrutínio de novas gramáticas políticas. Por caminhos distintos ao de Foucault, Thévenot
(1997, p. 6) elabora algumas considerações sobre esse “liberalismo normalizador”, que
[...] para além dos limites da arena mercantil, instaura uma qualificação pelo
reconhecimento na opinião que não se encontra inscrita na ordem mercantil.
Elencada na sua lógica própria, esta qualificação não é verdadeiramente aberta
a uma prova de concorrência e tende verdadeiramente a uma uniformização
que de fato prejudica a variedade no mercado de produtos. É uma tal
uniformização que é procurada pelo processo de “massificação” e, atualmente,
da “macdonalização”. Nas tipologias das normas, esta estandardização de
fato se opõe às estandardizações de lei, apelando aos regulamentos [...]. Este
tipo de normalização contratual ocupa um lugar central na internacionalização
dos mercados e na construção europeia. A autoridade de Estado no policiamento
das mercadorias, em parte, se reporta a um dispositivo contratual governado
pelas normas de qualidade. Em resultado, um composto de liberalismo e de
normalização metrológica. A fórmula mesmo deste “liberalismo normalizador”
indica que ele contém fortes tensões internas. Opacado pela cobertura técnica,
este movimento tem grande abrangência. Ele modifica a maneira de conceber
os objetos técnicos na sua valoração econômica, recompõe as figuras clássicas
do produtor e do consumidor, alterando até mesmo as concepções políticas
de cidadania, os modos de intervenção e as formas adequadas de governança
(THÉVENOT, 1997, p. 6, tradução nossa).
2 No decorrer do texto, as categorias analíticas estarão em itálico e as categorias nativas entre aspas.
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A governança pela norma está fortemente associada aos mecanismos de certificação dos
recursos renováveis, das cidades, dos bens de consumo, da política ordinária e da vida científica, bem como outros domínios da vida social. Esses movimentos normalizadores podem,
por exemplo, ser observados nas plataformas digitais que submetem seus usuários a critérios
e regras comuns a todos, independentemente de sua origem nacional ou cultural. A utilização
de aplicativos como Uber ou iFood implica na padronização, previsibilidade e protocolos que
visam uniformizar o modo como usuários e prestadores utilizam desses serviços, que independe
das condições socioculturais, e transcendem as fronteirais administrativas e formais dos Estados nacionais. Fomenta-se, com isso, uma microfísica da norma, na qual as diversas dimensões
da vida social são invadidas por esses princípios normativos que tendem a padronizar, estabelecer garantias, universalizar as regras e práticas representadas como comuns a qualquer cidadão
do mundo. Padronizam-se as condutas e pasteuriza-se a ética.
Tal como em outros campos da vida humana, a produção científica tem sido igualmente
atingida por esses processos, o da governança pela norma, pela estandardização (THÉVENOT,
1997 e 2019) e pela microfísica da norma. Nesse sentido, a Ciência hoje tem sido regida por critérios de avaliação, valoração e eticidade de natureza transnacional. A governança pela norma
científica, desse ponto de vista, supõe promover o “espírito das normas” através da propulsão de
princípios universalizantes. As boas práticas científicas, veiculadas pelos manuais das agências
internacionais de fomento à pesquisa, são bons exemplos da introdução às novas gramáticas políticas e morais. Esses processos repercutem de maneira variada no mundo científico e na prática científica: no controle da ética da prática da pesquisa, nos modelos de avaliação e impacto
do conhecimento científico, na emergência de plataformas digitais (como a Plataforma Lattes, a
Plataforma Sucupira etc.), nas métricas que definem os Qualis das revistas, dentre outros. Nesses termos, a governança da ciência passa pelos laboratórios, revistas científicas, congressos,
dentre outros espaços de produção e reprodução do conhecimento, mas igualmente é informada
por formas de controle das práticas científicas que as qualificam (ou as desqualificam) a partir
de critérios de julgamentos que não se desenvolvem num vazio de sentidos, significados, moralidades e da política. Pelo contrário, revela a complexa economia política desenvolvida nos
sistemas de prestação e contraprestação presentes nas dinâmicas de produção da Ciência.
Todavia, as particularidades de cada campo do conhecimento, e os modos como as Ciências se desenvolvem nos contextos nacionais e culturais, são apagadas diante dessa política de
universalização e pasteurização das normas científicas. As diferenças expressas no interior das
normas locais, ou das suas sensibilidades jurídicas (GEERTZ, 2013), assim como as existentes
nas práticas e epistemologias, são dirimidas face à primazia dos grandes esquemas normativos
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da governança científica.
Neste artigo, buscamos dar conta de uma rede heterogênea de elementos humanos e
não humanos conectados e agenciados (FREIRE, 2006; LATOUR, 2001), que regulam a arena
científica informados pelo regime de governança pelas normas, a partir de nossas etnografias
sobre os critérios de avaliação do conhecimento científico e dos princípios reguladores da ética
em pesquisa. Nosso material etnográfico apresenta uma gama de leituras e modos de operacionalização, convencionais ou criativos quanto ao uso das normas, associadas ao conjunto de
moralidades observáveis em diferentes práticas de pesquisa e em distintas maneiras de avaliá-la
no interior das agências de fomento e/ou das instituições devotadas à regulação da ética em
pesquisa. É a partir destes diferentes quadros morais (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1991) que
críticas e justificações são produzidas e mobilizadas por pessoas que integram estes espaços
avaliativos, sendo possível apreender criativamente os exercícios de classificação e (des)qualificação daquilo que seria percebido como justo e científico.
Compreendemos que a governança pela norma está intimamente relacionada às transformações do capitalismo e suas formas de gerenciamento do trabalho diante do novo espírito
do capitalismo que se anuncia (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Desse modo, este artigo
está organizado em duas seções. Na primeira, descrevemos o modelo brasileiro de avaliação
das pós-graduações no Brasil e o movimento unificador desse sistema através da reformulação
institucional da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para,
então, lançar luz sobre como os atores manejam bases de dados para produzir qualificações de
outros e de si mesmos. Na segunda, narramos e descrevemos os protocolos e normas que deram origem ao que hoje é chamado de sistema CEP/CONEP (Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa), principalmente a partir da análise das resoluções em uso, entrevistas e etnografia de
dois Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) da área de Ciências Humanas e Sociais. Após essa
contextualização, exploramos de que modo a Plataforma Brasil3 é compreendida e performada
por pesquisadores e membros desses comitês, com o objetivo de analisar as múltiplas gramáticas morais sobre as quais a governança da ética em pesquisa se baseia. Portanto, este trabalho
coloca em perspectiva as práticas e os movimentos de pesquisadores no contexto de avaliação
científica, visando lançar luz sobre esses processos de emergência da governança pela norma e
pela microfísica da norma.
3 A Plataforma Brasil é uma plataforma digital na qual os projetos de pesquisa que tem como objeto de estudo os
seres humanos são submetidos para serem avaliados pelo Sistema CEP/CONEP. O pressuposto dessa plataforma é
a transparência, a partir da inclusão de documentos em meio digital a sociedade teria o acesso aos dados públicos
das pesquisas aprovadas. A Plataforma Brasil é gerida pelo DataSUS – Departamento de informática e programação do Sistema Único de Saúde (SUS).
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A REFORMULAÇÃO DA AVALIAÇÃO DA PÓS-GRADUAÇÃO
NO BRASIL, A INTRODUÇÃO DE NOVOS INDICADORES DE
PRODUTIVIDADE E O MOVIMENTO PADRONIZADOR DA
CARREIRA CIENTÍFICA4
O estabelecimento de uma atividade de pesquisa permanente no Brasil e a conformação
de uma rede de cientistas são produtos do esforço de alguns agentes pela institucionalização da
atividade científica, que envolveu dois movimentos principais: 1) uma associação deliberada
e crescente do ensino universitário com a atividade científica; 2) a estruturação de um sistema
nacional de pós-graduações e, com ela, a formulação de mecanismos cada vez mais refinados
de qualificação e classificação da produção científica dos docentes e discentes desses cursos. O
esforço centralizador do Estado na conformação de uma atividade regular de pesquisa no país
passa, necessariamente, pela atuação de duas principais agências: a CAPES e o CNPq, ambas
criadas em 1951. A centralidade dessas instituições na consolidação de um sistema que estreitou
cada vez mais a relação entre avaliação e fomento torna-se, assim, um elemento normalizador
do trabalho e da carreira científica, legitimando determinadas moralidades, práticas e éticas
(ARRUDA, 1999).
Na segunda metade da década de 1990, diante da expressiva expansão dos programas
de pós-graduação, houve um movimento por parte do corpo técnico e de pesquisadores atuantes
na Capes para aumentar a exigência da avaliação das pós-graduações. A principal justificativa exposta em documentos da agência de fomento foi a de que a sistemática de avaliação até
então adotada apresentava “sinais de esgotamento” (MARTINS, 2003, p. 13), e isso se refletia
na incapacidade do modelo de discriminar a qualidade acadêmica entre os programas, a qual,
de acordo com o autor, podia ser exemplificada na avaliação de 1996, quando “[...] 79% dos
cursos de mestrado e 90% dos de doutorado obtiveram conceito ‘A’ ou ‘B’”. De 1976 a 1997, a
avaliação era expressa através de conceitos: A (muito bom), B (bom), C (regular), D (fraco) e E
4 Esta etnografia foi realizada entre 2016 e 2018, tendo como foco de análise um estrato específico de pesquisadores inseridos no circuito das bolsas premiadoras de produtividade, a saber, uma rede de pesquisadores fluminenses
atuantes em coordenações de área de agências de fomento como o FAPERJ, a CAPES e o CNPq. O material de
pesquisa é constituído pela articulação da análise de discursos proferidos em situação de entrevista, com um exame
cuidadoso de critérios e recomendações avaliativas documentadas e publicadas na internet pelas agências de fomento, como os critérios por área de avaliação da Bolsa Produtividade do CNPq, os documentos de área da Capes
e o edital Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ.
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(insuficiente). A partir de 1997, passou a vigorar a classificação numérica (1 a 7), determinando-se que fossem adotados pelos comitês “padrões internacionais” na avaliação dos programas
considerados “de excelência”. Sendo assim, os cursos classificados com as escalas 6 e 7 seriam
aqueles que demonstrassem “inserção internacional” (CUERVO, 2019).
Outro aspecto que caracterizou esse movimento de transformação no modelo de avaliação da Capes foi a parametrização ainda maior da mensuração da qualidade dos cursos de
pós-graduação, que se refletiu na padronização da ficha de avaliação. Todas as áreas deveriam
avaliar exatamente os mesmos quesitos, ainda que através de indicadores diferentes, adaptados a cada comitê de avaliação. Tal esforço de padronização foi ainda mais reforçado quando,
nesse mesmo período, os resultados da avaliação dos cursos pelos respectivos comitês de área5
passaram a ser coordenados, acompanhados e referendados pelo Conselho Técnico-Científico
de Educação Superior (CTC-ES)6 da Capes (até 1996, os conceitos finais eram de competência
exclusiva dos comitês), em um movimento de centralização burocrática cada vez maior das
decisões finais com relação ao credenciamento/descredenciamento de cursos, assim como das
notas atribuídas pelos comitês de área (ARRUDA, 1999).
Na esteira da introdução deste modelo de avaliação dos cursos de pós-graduação, no fim
da década de 1990, se discutia a necessidade de um mecanismo de qualificação da produção
bibliográfica dos docentes e discentes desses programas, que neste período já era expressiva e
numerosa. Até então, a avaliação do quesito produção bibliográfica era quantificadora e, diante do objetivo da agência em estimular a inserção internacional da pós-graduação brasileira e
reformular a sua avaliação tomando como parâmetro o padrão europeu e norte-americano de
produção científica (BARATA, 2016), a opção adotada foi criar um sistema de classificação dos
periódicos, tendo como um de seus principais critérios de qualificação a circulação internacional e o seu impacto entre os cientistas. Nascia, então, o Qualis Periódicos, criado para auxiliar
os comitês de área na qualificação da produção bibliográfica dos programas de pós-graduação.
Atualmente, a classificação dos periódicos é revista anualmente e, desde 2007, após
uma reformulação do sistema, é estratificada em sete níveis: A1, A2, B1, B2, B3, B4 e B5, ha-
5 A Capes dispõe de 49 comitês de área que são integrados por pesquisadores que cumprem mandatos periódicos,
sendo nomeados pela presidência da instituição a partir de indicações de cientistas com reconhecimento entre seus
pares. Esses integrantes são responsáveis pela avaliação e classificação dos cursos de pós-graduação, além de propor e deliberar políticas específicas para suas áreas de conhecimento.
6 O CTC-ES é um órgão colegiado da Capes que tem como atribuições propor, debater e deliberar acerca de políticas
e diretrizes avaliativas da agência, sendo sua responsabilidade a deliberação final acerca do credenciamento e
descredenciamento de cursos de pós-graduação e os conceitos atribuídos aos programas de pós-graduação pelos
comitês de área. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/conselho-tecnico-cientifico-da-educacao-superior-1/competencias. Acesso em: 14 jul. 2021.
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vendo ainda o nível C, destinado aos periódicos que não atendem aos “[...] critérios mínimos
estabelecidos em cada área para ser classificado” (BARATA, 2016, p. 4). Cada comitê de área
tem relativa autonomia para classificar os periódicos nos quais docentes e discentes dos programas avaliados publicam, sendo possível (e comum) que o mesmo periódico possa receber
diferentes avaliações por áreas distintas.
Ao entrevistar pesquisadores que atuam ou atuaram em comitês de área da Capes, foi
possível compreender algumas formas de como esses atores concebem e manejam criativamente a classificação do Qualis para fins diversos. É uma prática recorrente, por exemplo, algumas
áreas rebaixarem a classificação de um periódico de área diferente – por mais que ele cumpra
os critérios para uma boa classificação, de acordo com os parâmetros gerais da Capes e da própria área – para aumentar o destaque dos periódicos do próprio campo de conhecimento. Esse
processo pode ser observado na fala de uma pesquisadora da área da Física:
Na Física, a gente, pra considerar um professor pro programa de pós-graduação
pra ser avaliado como pesquisador, a gente tem que publicar de B1 pra cima.
Nossas revistas são rotuladas nos As, nos estratos da Capes, basicamente em
função do fator de impacto da revista. Então, é uma coisa assim, muito mais
fácil pra gente rotular isso. [...] A gente tem nossas revistas da Física. Aí tem
as revistas médicas. Aí tem um cara da Física que publicou nessa revista.
Como ela não é da nossa área, a gente nunca põe essa revista como A1 da
nossa área. Ela é rebaixada pra um A2. Se ela tem um impacto muito alto, mas
não é da Física, ela ganha um A2.
A maneira como você calcula esse parâmetro de impacto tem muito a ver com
a leitura da área, se é uma área pequena que lê aquela revista. O que a gente
faz? Pra incentivar as pessoas a fazer instrumentação, porque é importante
pra Física, a gente põe essas revistas um pouco pra cima. Um parâmetro de
impacto que seria um B5, a gente bota pra um B3. Então, a gente tem um jogo,
não é um trabalho tão mecânico assim não, a gente incentiva determinadas
áreas. Tem áreas que publicam menos do que outras. (Bárbara, 2017, grifo
nosso).
Em sua fala, a pesquisadora apresenta as estratégias do comitê da Física para “contornar” um parâmetro avaliativo considerado central para a Capes e, especialmente, para as ditas
“ciências duras”, que é o fator de impacto (FI). O fator de impacto é a principal métrica utilizada para avaliar as revistas científicas, cujo critério é a contabilização do número de citações
que essas publicações recebem. Dentro da lógica de avaliação adotada pela Capes desde 1998
– de adequar os cursos de pós-graduação a “modelos internacionais” através de um movimento
padronizador –, o fator de impacto seria representativo, dentre outros aspectos, da inserção e
prestígio internacional daquele periódico. Ao mesmo tempo que nossa interlocutora considera
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“simples” rotular as revistas de sua área, pois ela se adéqua, no geral, ao cálculo do fator de
impacto, ela apresenta outras práticas empregadas pelo comitê para atingir os objetivos considerados importantes para o campo de conhecimento e demonstra o aspecto flexível e complexo
que este trabalho de estratificação de periódicos pode tomar.
É importante destacar que a classificação do Qualis Periódicos é também largamente
utilizada pelos comitês assessores do CNPq e das fundações de amparo à pesquisa estaduais nas
avaliações individuais de pesquisadores para concessão de bolsas e auxílios à pesquisa. Um dos
critérios de julgamento centrais para quase todas as áreas na avaliação da Bolsa Produtividade
do CNPq, incluindo as Ciências Humanas e Sociais, é a quantidade de artigos dos candidatos combinada com a classificação do Qualis Capes dos periódicos em que foram publicados.
Essa “combinação” ou “empréstimo” de critérios avaliativos entre a Capes e o CNPq atesta
a centralidade dessas instituições na regulação e normalização de lógicas de carreira a serem
adotadas pelos pesquisadores, através de cobranças que moldam suas práticas científicas e seus
ethos profissionais. Enquanto a Capes se firmou enquanto agência reguladora da avaliação da
pós-graduação através da estruturação de um processo de avaliação centralizado na produção
coletiva desses programas, o CNPq se firmou como agência parametrizadora das competências
individuais dos pesquisadores, regulando através da distribuição de auxílios à pesquisa e bolsas
que premiam a produtividade suas práticas e suas projeções de si enquanto profissionais.
BASES DE DADOS E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO ENQUANTO
AGENTES PRESCRITIVOS: COMO “NAVEGAR” NO SISTEMA?
Um importante evento que também marca esta reconfiguração do modelo de regulação
estatal da ciência é a criação da Plataforma Lattes pelo CNPq, em 1999. “Batizada” com esse
nome em homenagem ao físico brasileiro César Lattes (1924-2005), a Plataforma Lattes é o
mais importante banco de currículos de pesquisadores do país e hoje conta com mais de seis
milhões de currículos cadastrados, reunindo informações de todos os núcleos e instituições de
pesquisa em atividade no país.7 O banco de dados é utilizado por agências de fomento, universidades e instituições de pesquisa nos seus processos avaliativos, já que representa uma importan-
7 Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/02/27/Quem-foi-C%C3%A9sar-Lattes.-E-a-plataforma-que-leva-seu-nome. Acesso em: 14 jul. 2021.
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te ferramenta de acesso rápido à produção científica dos candidatos a editais de financiamento.
A partir da criação da Plataforma Lattes, que sofreu algumas reformulações ao longo
dos últimos anos, a inserção na pesquisa científica através da concessão de bolsas e fomentos pelas agências financiadoras passou a ser condicionada ao registro periódico da formação
acadêmica e das atividades científicas desempenhadas pelos pesquisadores no banco de dados
acessado pelo site do CNPq através de login e senha. A nova ferramenta possibilitou, assim,
uma prescrição de modelo curricular acadêmico, tornando mais ágeis as avaliações das agências de fomento e funcionando como um aparato padronizador e classificador dos pesquisadores.
Em 2014, a Capes passou a dispor de uma base de dados para coletar, armazenar e publicar informações dos programas de pós-graduação, a Plataforma Sucupira8, cujo preenchimento
dos dados é realizado pelos coordenadores desses programas. Com essa nova ferramenta, é
possível acessar as páginas de cada área do conhecimento, que contém os documentos de área
– nos quais estão descritos o estado atual e as características da área, assim como os critérios
considerados prioritários para a classificação do Qualis e para a avaliação dos programas – e os
relatórios das avaliações periódicas.9
Com base na análise de alguns documentos de área da Capes, traçamos um pequeno
esboço das semelhanças e diferenças entre os parâmetros avaliativos de algumas áreas para
refletir sobre o modo como pesquisadores que atuam ou atuaram nestes comitês de avaliação
foram se conformando e se adaptando a critérios considerados centrais pela agência, como a
inserção internacional e a produção intelectual. Um dos parâmetros cobrados pela agência para
todas as áreas é que os programas elegíveis aos níveis 6 e 7 desenvolvam produção científica
com inserção internacional através de convênios e intercâmbios, colaborações, promoção de
eventos científicos internacionais, além da participação docente em comitês editoriais ou como
pareceristas em periódicos internacionais.
O aspecto geral que marca a avaliação das áreas de Ciências da Vida e de Ciências
Exatas é a centralidade da publicação sob forma de artigo científico e o cálculo de seu fator de
impacto, apenas considerando como qualificados nos estratos do Qualis Periódicos as revistas
indexadas nas plataformas Web of Science e Scopus, além das disponíveis na base Scielo. Segundo o relatório da avaliação quadrienal de 2017 da área de Física e Astronomia cerca de 20%
dos periódicos estão classificados nos estratos mais altos do Qualis (A1 e A2), sendo que essa
8 A escolha do nome da Plataforma é uma homenagem ao professor Newton Sucupira, autor do Parecer nº 977, de
1965. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/35995. Acesso em: 14 jul. 2021.
9 Desde 2013, a avaliação deixou de ser trienal e passou a ser realizada por quadriênio.
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minoria concentra mais de 50% das publicações dos docentes dos programas10, confirmando a
cobrança por publicações com altos fatores de impacto como condição para o credenciamento
e permanência em programas de pós-graduação. O relatório classifica a área de Física e Astronomia como “altamente internacional” desde “sua origem”, destacando o fato de seus primeiros
doutores terem sido formados no exterior e os veículos de publicação da área serem quase todos
internacionais e escritos em língua inglesa.
Em contrapartida, a produção em livro e sua avaliação qualitativa são consideradas de
absoluta relevância para as áreas de Humanidades, havendo esforço no refinamento dos critérios de avaliação e classificação das obras através do Qualis Livros11. Também é importante
destacar que há uma grande quantidade de periódicos considerados importantes no domínio das
Ciências Humanas e Sociais que não contam com indicadores de impacto, sendo necessárias
formas alternativas de classificá-los e avaliar a produção bibliográfica dos programas. Na área
de Sociologia, por exemplo, a estratificação dos periódicos tem como critérios a proporção de
autores externos à instituição responsável pela edição (de modo a evitar o que alguns interlocutores classificam pejorativamente como “endogenia acadêmica”) e a inserção em mais de
um indexador bibliográfico que afira sua qualidade, para além das bases indexadoras que são
referência nas áreas de Ciências da Vida e de Ciências Exatas, como Web of Science e Scopus.
A cobrança da Capes por inserção internacional sob forma de produção bibliográfica é
vista como problemática por quase todos os interlocutores entrevistados das áreas de Ciências
Sociais e Humanidades. Um dos problemas apontados para essa “adequação” da área às exigências da Capes por “internacionalização” é a dificuldade de tradução para a língua inglesa
das teorias, conceitos e abordagens trabalhadas nos textos em língua portuguesa da área. Associado a isso, haveria “desinteresse” das revistas internacionais com altos fatores de impacto,
escritas em língua inglesa, pelos problemas e linhas abordadas pelos pesquisadores brasileiros,
que estariam em grande parte concentradas em temáticas nacionais ou “locais”. Tais questões
explicariam o baixo número de publicações nacionais indexadas das áreas de Humanidades,
se comparado à quantidade de títulos existentes no país – sendo boa parte deles oriundos dos
próprios programas de pós-graduação. Sendo justamente nesses títulos nacionais que está concentrada a maior parte dos artigos de pesquisadores brasileiros, os comitês destas áreas baseiam
10 Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/avaliacao/sobre-a-avaliacao/areas-avaliacao/sobre-as-areas-de-avaliacao/colegio-de-ciencias-exatas-tecnologicas-e-multidisciplinar/
ciencias-exatas-e-da-terra/astronomia-fisica. Acesso em: 14 jul. 2021.
11 A inclusão de uma avaliação mais sistemática de livros e da produção artística dos programas ocorreu na avaliação trienal de 2010.
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suas avaliações em parâmetros alternativos aos indicadores de produtividade das bases de dados internacionais.
Um aspecto que aqui nos interessa é entender como os pesquisadores, especialmente os
que atuam ou atuaram nos comitês de área da Capes, enxergam essas mudanças nos processos
avaliativos dos programas de pós-graduação e de que modo eles conformaram, adaptaram e
se apropriaram criativamente desses espaços decisórios. O material de pesquisa aponta para
um maior desconforto a este modelo de avaliação da agência por parte dos pesquisadores das
Ciências Humanas e Sociais, que afirmam serem induzidos a produzir e avaliar de acordo com
parâmetros “estranhos” às suas áreas. Neste sentido, uma estratégia de “fortalecimento” dessas
áreas na Capes para enfrentar a “hegemonia avaliativa” das Ciências Biológicas e Exatas, é a
mobilização e organização desses pesquisadores através de fóruns de coordenadores de programas de pós-graduação para a realização de consultas entre os pares e a deliberação acerca da
representação dessas áreas na Capes. Sobre isso, é representativa a fala de uma pesquisadora da
área de Educação que compôs o comitê de área da Capes por alguns anos:
Essa coisa dos fóruns é comum na área de Humanas ou que tenha menos
representatividade pra definir critérios que sejam específicos da área. O que se
objetiva fazer não é aprovar o que é ruim, mas manter uma especificidade da
área. [...] Porque a hegemonia é das áreas médicas, biomédicas. Criou-se uma
hegemonização da ideia de que você tem que ter uma medida razoavelmente
comum. Foi importado o Qualis, indexador que está agindo na vida de todo
mundo, pra mim um absurdo absolutamente completo. O que fazem as
áreas de Exatas? Eles têm fatores de impacto calculados por indexadores
internacionais. Eles pegam os fatores de impacto e avaliam pelos fatores de
impacto. Pega um ponto de corte... “daqui pra cima é A1, daqui pra cima é A2,
daqui pra cima é B1” e está resolvido. Nas áreas Humanas, se a gente fizer
isso, a gente morre, porque não tem índice de impacto. (Fátima, 2017).
Outra questão digna de nota abordada na fala da pesquisadora são as disputas político-epistemológicas (BOURDIEU, 1976) ocorridas no âmbito dos comitês de área das agências de
fomento, que tem como ponto central os critérios considerados adequados de avaliação de determinadas áreas e, sobretudo, o que pode ser definido como uma “área” ou campo de pesquisa
com legitimidade entre os pares e o corpo técnico da agência para dispor de um comitê próprio,
com uma avaliação independente.
Assim como Fátima, outros pesquisadores questionam a autonomia dos comitês de área
por considerarem assimétrico o diálogo entre o órgão colegiado e o corpo técnico-burocrático
da agência. Essa assimetria, segundo esses atores, é ampliada pela “imposição” de outra lógica
de avaliação que “constrange” o trabalho de seus pares nesses comitês, por não corresponder,
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conforme mencionado, às especificidades de pesquisa de suas áreas. No depoimento abaixo, Cícero, pesquisador que atuou no comitê de área de Antropologia/Arqueologia na primeira década
de 2000, relativiza criticamente a autonomia do comitê, apontando que o poder decisório dos
pares foi diminuindo à medida que foram sendo introduzidos e consolidados os novos parâmetros avaliativos da Capes no fim da década de 1990:
A Capes não tinha o poder que tem hoje sobre a coordenação de área naquele
momento. A ideia de representação de área era, de fato, esse mantra ‘a Capes
somos nós’, e era muito mais presente. Nós fazíamos uma leitura qualitativa,
né? Porque naquele período, para a nossa área, era possível fazer uma leitura
qualitativa. O documento de área supostamente expressa os valores da área.
Hoje isso é muito pouco verdade. A margem que a gente pode ter de leitura do
material está balizada por alguma coisa que é estabelecida e chancelada, não é
apenas estabelecida pela área hoje em dia. Nossa autonomia é uma autonomia
relativa, e muito relativa. Acho que tem uma mudança ao longo do tempo e
você tem uma tendência à cristalização. Às vezes as pessoas acreditam demais
naquele negócio ali, e levam tempo pra ter senso crítico. Vou lhe contar uma
história também, eu acho que os caras das “hard” e biomédicas estão mais
confortáveis porque o mar está para eles. A coisa foi formatada de modo
propício a eles, esse que é o lance. É por isso que eles se sentem dentro de
casa, porque a casa é deles, não é nossa. (Cícero, 2018).
Depois de nos debruçarmos sobre os critérios de avaliação, classificação e qualificação
do conhecimento científico, tomando de empréstimo os dispositivos presentes no interior das
agências de fomento e como são operados pelos cientistas, avançaremos em outras direções
para problematizarmos esses processos de difusão da governança pela norma científica e da
microfísica da norma. Nesse sentido, um outro universo empírico nos parece pertinente de ser
analisado, pois ele amplia nossas lentes de alcance sobre tais fenômenos e suas repercussões
sobre o fazer científico. Para tanto, abordaremos o mundo da ética em pesquisa.
A CONFORMAÇÃO DA REGULAÇÃO DA ÉTICA EM PESQUISA:
PARA UMA COMPREENSÃO DA PLATAFORMA BRASIL12
12 A etnografia apresentada é fruto de pesquisa realizada entre 2016 e 2018 por meio da participação de reuniões
mensais realizadas em um Comitê de Ética em Pesquisa na área de Ciências Humanas e Sociais de uma universidade do Rio de Janeiro e do processo de abertura de um CEP da mesma área em outra universidade fluminense. Nela
também analisamos documentos confeccionados pelo Fórum de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas
(FCHSSA), Grupo de Trabalho – CHS – responsável pela elaboração da Resolução CNS nº 510/2016 – e CONEP.
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Para esclarecermos como ocorreu o processo de padronização do controle ético das pesquisas científicas por meio do uso da Plataforma Brasil, antes, é preciso descrever como ele se
constitui e quais gramáticas morais estão presentes no sistema de regulação brasileiro da ética
em pesquisa, denominado de Sistema CEP/CONEP. Ao explicitarmos esse processo, lançaremos luz sobre como se configura localmente essa governança pelas normas, aliando-se, dessa
maneira, às características locais segundo as moralidades presentes em dada instituição.
A regulação da ética em pesquisa no Brasil é realizada pela CONEP no âmbito do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que integra o Ministério da Saúde como um conselho de
“controle social” 13. O CNS é composto por 18 comissões, entre elas, a CONEP, e elas visam
a “formulação de estratégia e controle da execução de políticas públicas de saúde”14. A CONEP é composta por médicos, bioeticistas, especialistas em saúde coletiva, “representantes de
usuários”15 e das Ciências Humanas e Sociais. Seu colegiado conta com, além de 22 membros
titulares e cinco suplentes eleitos dentre os candidatos indicados pelos comitês, oito membros
do CNS/Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE).
A institucionalização de órgãos e regras da prática da pesquisa que envolvem seres
humanos no Brasil e em outros países esteve, em primeiro lugar, ligada à área da biomedicina
(FASSIN, 2006; FONSECA, 2010; JACOB; RILES, 2006). Preocupações decorrentes das experiências médicas realizadas pelos alemães nazistas e japoneses na Segunda Guerra Mundial
motivaram a criação do Código de Nuremberg em 1947 e a declaração dos Direitos dos Homens em 1948, que tinham como intuito regular e normatizar a prática científica, e com isso,
definir os princípios éticos da pesquisa médica. Essas ações constituem as primeiras tentativas
de regulamentação realizadas pela comunidade científica no que tange à pesquisa em seres humanos, e é daí que advém a locução “ética em pesquisa”.
Também foram realizadas entrevistas com membros do CEP e pesquisadores da área de Medicina, e, do mesmo
modo, participamos de eventos promovidos pela Academia Nacional de Medicina e pela CONEP.
13 Um dos objetivos do CNS é “fiscalizar, acompanhar e monitorar as políticas públicas de saúde nas suas mais
diferentes áreas, levando as demandas da população ao poder público, por isso é chamado de controle social na
saúde” (CNS, S/A). O “controle social”, nos termos do CNS, diz respeito ao controle do Estado pela sociedade, e
não o contrário, como geralmente é utilizado. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/apresentacao/estrutura_organizacional.htm. Acesso em: 02 maio 2021.
14 Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/apresentacao/apresentacao.htm. Acesso em: 02 maio 2021.
15 O “representante de usuário” integra o colegiado da CONEP e dos Comitês de Ética em Pesquisa, pode ser
participante de sociedades e associações de usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), devendo ser capaz de “[...]
expressar pontos de vista e interesses de indivíduos e/ou grupos sujeitos de pesquisas de determinada instituição
e que sejam representativos de interesses coletivos e públicos diversos” (RESOLUÇÃO CNS nº 240/1997). Ele
materializa o controle social, pois é através dele que a sociedade não científica, chamada de “leiga”, observa os
cuidados éticos nos processos avaliativos dessas entidades.
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A primeira versão da Declaração de Helsinque (1964) também constitui um evento importante no processo desse tipo de regulação, influenciando diretamente a criação dos comitês,
uma vez que preconizava comissões especiais para o debate da ética em pesquisa. Essa declaração teve um reconhecimento mais amplo que o Código de Nuremberg, pois aparentemente foi
formulado para julgar os crimes médicos nazistas, ao passo que a Declaração de Helsinque “[...]
projetou-se para o futuro como um guia ético obrigatório para todos os pesquisadores” (DINIZ;
CORRÊA, 2001, p. 681), estabelecendo, assim, uma perspectiva universal e universalizante.
Desse modo, baseando-se no Código de Nuremberg, na Declaração dos Direitos do Homem, na Declaração de Helsinque e em diversos outros tratados internacionais, e mobilizações
de movimentos organizados da sociedade civil, o CNS, vinculado ao Ministério da Saúde, cria
em 1996 a primeira resolução formal que regulamenta as pesquisas em seres humanos no Brasil
para controlar danos e riscos individuais causados pela prática da pesquisa médica. A Resolução CNS nº196/1996 dá origem ao sistema CEP/CONEP, caracterizada entre membros de CEP,
principalmente na área da saúde, como um marco histórico no tocante a esse tipo regulação
envolvendo seres humanos no Brasil16.
Os valores presentes nos tratados acima referidos que serviram como base para o debate
sobre ética no Brasil são fortemente marcados pela bioética principialista (DUARTE, 2015;
RIBEIRO, 2004). Esta pode ser definida como um campo de saber de informação e controle
destinado à discussão das consequências éticas da pesquisa biomédica e se localiza na fronteira da filosofia e da biomedicina e se institucionalizou com a Declaração de Helsinque. As
experiências médicas ocorridas em outros países e, notadamente nos Estados Unidos, também
foram fundamentais para a consolidação da bioética principialista e desse tipo regulação, especialmente com a publicização do caso de Tuskegee17.
A bioética principialista tem seu surgimento referenciado à publicação de Princípios
de Ética Biomédica de Beauchamp e Childress, de fins da década de 70, que incorporou os
valores presentes no Relatório Belmont18– autonomia, não maleficência, beneficência, justiça
16 Antes deste documento, houve ainda a Resolução CNS nº 01/88, que teve como um dos objetivos criar o grupo
de trabalho responsável pela formulação do sistema CEP/CONEP.
17 Entre os anos de 1932 e 1970 foi conduzido um estudo médico sobre o desenvolvimento da sífilis. As pessoas
que participaram não foram informadas sobre o objetivo ou o andamento da experiência e eram, em sua grande maioria, constituídas por negros. Eventos que participamos sobre esse tema, quando palestrantes narravam o
nascimento dessa ética, mencionavam pesquisas de má conduta científica de repercussão, tais como esse caso de
Tuskegee, Willowbrook, células HeLa e entre outros.
18 Em resposta a pesquisas clínicas realizadas nos Estados Unidos, tal como o caso de Tuskegee, o governo e o
congresso norte-americano constituíram, em 1974, a National Commission for the Protection of Human Subjects
of Biomedical and Behavioral Research, que teve como objetivo principal identificar os princípios éticos que
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e equidade –, aprofundando-os e aplicando-os à pesquisa clínica e assistencial. Nesse sentido,
esses princípios são baseados em valores morais de referência estadunidense, marcados por
um individualismo liberal anglo-saxão (DINIZ; GUILHEM, 2005)19, o que possibilitou sua
universalização. O indivíduo representado nessa perspectiva não se encontra no mundo real,
pois “[...] é um sujeito livre das hierarquias e de todas as formas de opressão social” (p. 52). A
bioética principialista também forneceu um sistema classificatório comum para reflexões mais
abrangentes, um modelo para o exercício de uma ética.
A Resolução CNS nº 196/1996 começou a delinear prescrições quanto à obrigatoriedade
da avaliação de projetos de pesquisa da área de Ciências Humanas e Sociais pelo Sistema CEP/
CONEP, devido à formulação que inicia o documento, que inclui todas as áreas científicas.
O enunciado afirma que a resolução tem a finalidade de “[...] aprovar as seguintes diretrizes
e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos” (BRASIL, 1996, online, grifo nosso), e um pouco mais abaixo, define o que podem ser os tipos de pesquisa, “[...]
pesquisa envolvendo seres humanos – pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o
ser humano, de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo
de informações ou materiais” (on-line). Já no item II.2, está escrito: “todo procedimento de
qualquer natureza envolvendo o ser humano [...] será considerado como pesquisa e, portanto,
deverá obedecer às diretrizes da presente Resolução (on-line)20.
Órgãos de fomento, instituições que serviriam como lócus para o trabalho de campo
e algumas revistas científicas passaram a exigir21 a avaliação das pesquisas pelos CEP,
principalmente para as áreas de educação, psicologia e serviço social22. Nesse primeiro momento,
na antropologia, a resolução teve repercussão nas pesquisas direcionadas às instituições de
saúde e às sociedades indígenas.
deveriam conduzir a experimentação em seres humanos, ainda hoje considerado um marco histórico e normativo
para a bioética principialista.
19 Esta bioética tem recebido diversas críticas, principalmente da chamada bioética latino-americana, formulada
de acordo com os contextos locais.
20 Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1996/res0196_10_10_1996.html. Acesso em:
19 jan. 2021.
21 O item XII.2 prescreve que “as agências de fomento à pesquisa e o corpo editorial das revistas científicas deverão exigir documentação comprobatória de aprovação do projeto pelo Sistema CEP/CONEP”, esse foi um dos
principais problemas percebidos pelos pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais. Disponível em: https://
bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1996/res0196_10_10_1996.html. Acesso em: 19 jan. 2021
22 Estas são as áreas das chamadas Ciências Humanas e Sociais que mais submetem projetos à Plataforma Brasil,
observado no relatório do CEP-CFCH e em minha participação no CEP-Humanas, bem como em entrevistas com
membros de diferentes comitês.
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Diante disso, em resposta a essa normatização, pesquisadores e associações dessa área
começaram a se mobilizar e, entre 2004 e 2015, acionaram diferentes meios na comunidade
acadêmica para se manifestar a favor de uma avaliação tida como “justa”, confeccionando
abaixo-assinados, moções, cartas repúdio, dossiês científicos, livros e entre outros. Destacamos
que os argumentos utilizados para elaborar a crítica ao sistema de avaliação da ética em pesquisa
e denunciá-lo como “injusto” precisam adquirir legitimidade perante o público envolvido na
situação de disputa. Nesse caso, essa legitimidade é construída quando o argumento se baseia
numa gramática aceitável e generalizável, tal qual a cívica (BOLTANSKI; THÈVENOT, 1991).
Produto dessas ações e de um amplo debate, a Resolução CNS nº 510/2016 é aprovada, cuja
criação havia sido prevista na Resolução CNS n° 466/2012 – que substitui a Res. nº 196/1996
com poucas alterações e mantém em seu escopo a denominação genérica de pesquisa- e o
Grupo de Trabalho responsável para sua construção é instituído em 2013. A “510”, como assim
é chamada, é específica para pesquisas na área de Ciências Humanas e Sociais23.
A PLATAFORMA BRASIL: OS INSCRITORES DA ÉTICA EM
PESQUISA E O SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO
Junto à criação do Sistema CEP/CONEP em 1996, também foi implementado o Sistema Nacional de Informação sobre Ética em Pesquisa (SISNEP), cuja função era registrar os
projetos de pesquisa envolvendo seres humanos submetidos para avaliação. Outro objetivo era
integrar os comitês e a CONEP, atribuindo sentido ao que é chamado de sistema. Em 2012, devido às diferentes críticas levadas ao III Encontro Nacional dos Comitês de Ética em Pesquisa
(ENCEP) e à reformulação da Resolução CNS nº 196/1996, é construída a Plataforma Brasil
em uma base diferente do SISNEP, que passa a realizar todo o processo apenas virtualmente
e dando maior atenção ao cuidado com os “representantes de usuários”, já que antes, mesmo
depois do projeto ser submetido, ainda era preciso levar os documentos produzidos ao CEP para
avaliação. As críticas ao SISNEP estavam relacionadas à lentidão de todo processo e à falta de
clareza nas informações demandadas. Contudo, é reconhecido como um dos primeiros sistemas que conseguiu concretizar as prerrogativas éticas dos códigos internacionais, gerenciando
23 Para melhor compreensão sobre as controvérsias em torno do processo de construção da Resolução CNS
n°510/2016, ver Falcão (2020).
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e padronizando as informações concedidas. O SISNEP fortaleceu esse controle da produção
científica e entre pares, e a Plataforma Brasil continua dando vida a esse sistema, desse modo,
é ela que vincula pesquisadores, membros, comitês e CONEP. Hoje, o Sistema CEP/CONEP
conta com mais de 850 CEP, majoritariamente vinculados às instituições da saúde, como hospitais universitários e secretarias da saúde. Nesse conjunto, há quatro CEP vinculados à área de
Ciências Humanas e Sociais, na Universidade de Brasília (UnB), na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp).
Como salientado por alguns autores (LAMONT, 2012; LATOUR; WOOLGAR, 1997),
é de suma importância para a análise de uma instituição ater-nos aos rituais que a conformam
e das performances empreendidas pelos atores. Dessa forma, observaremos como os padrões
e normas são acionados in situ. Nesse jogo, eles performam a ética, a ciência e a burocracia. A
partir de uma situação de campo em um CEP, descrevemos como ocorre a avaliação: quais os
critérios utilizados, os acordos e desacordos, as críticas, o papel dos não humanos e os instrumentos de avaliação.
O “protocolo de pesquisa” é formado por diferentes documentos submetidos à avaliação, sendo assim chamado quando todos os arquivos adentram à Plataforma Brasil, que são: a
carta de anuência; o projeto do pesquisador, que pode assumir outra formatação que não a da
Plataforma; o cronograma; o orçamento; e a folha de rosto, composta pelos dados do pesquisador, sua universidade de origem e a assinatura do responsável da sua unidade de atuação. Outro
documento gerado pela submissão ao preencher os campos da Plataforma é o de “informações
básicas”, que consiste na tradução do projeto submetido para o vocabulário do Sistema24. Há
também o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, o TALE, para “participantes de pesquisa” menores de idade ou em situação de vulnerabilidade; e o Registro de Consentimento
Livre e Esclarecido, o RCLE, antes chamado de Termo pela Resolução CNS nº466/2012. Com
a promulgação e aprovação da Resolução CNS Nº510/2016, foi modificada a concepção do
acordo entre o pesquisador e o “participante de pesquisa”, aceitando outras formas de registros
de consentimento. Para consolidar uma identidade em consonância com a chamada “510” e
contrastivamente com comitês que têm como referência a “466” em sua cultura avaliativa, os
membros desse CEP demarcavam a diferença com os outros comitês pela adoção verbal desse
novo vocabulário construído com a “510”, fato sempre evidenciado por parte dos membros.
24 Os campos preenchidos são os seguintes: introdução, resumo, hipótese, objetivo primário ou principal, objetivo
secundário, metodologia proposta, critério de exclusão, critério de inclusão, riscos, benefícios, metodologia da
análise de dados, desfecho primário, desfecho secundário, tamanho da amostra e a data de recrutamento.
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Como a controvérsia em torno da Resolução CNS nº 510/2016 e a resolução de tipificação da
pesquisa e acreditação de risco ainda estava em aberto, e continua, devido à não participação
do Grupo de Trabalho original que atuou na construção da 510, um interlocutor enfatizou a necessidade do uso de “registro” e não de “termo” para a obtenção de consentimento informado,
já que isso foi uma das “difíceis lutas das CHS25 junto à CONEP”. Para ele, então, essa adoção
seria uma forma de reconhecer esse processo e demarcar uma identidade diferenciando-os dos
comitês da área da saúde.
A Plataforma Brasil é vista pelos pesquisadores de Ciências Humanas e Sociais como
um ambiente estranho em que é utilizado um sistema classificatório pouco conhecido, assim
como discutimos anteriormente em relação ao caso dos sistemas de avaliação dos pesquisadores. Essa linguagem proveniente da pesquisa clínica faz com que cientistas das Ciências
Humanas não encontrem uma forma adequada ao vocabulário de seu campo de conhecimento.
Numa entrevista com uma socióloga que trabalha com metodologia quantitativa, ela salientou
a desconexão da exigência de preenchimento de campos para um pesquisador das Ciências Humanas e Sociais que realiza pesquisa qualitativa, como o “desfecho”. Perguntou-nos se saberíamos elaborar algo que coubesse nesse espaço, afirmamos que não fazíamos ideia inicialmente.
Como professora de métodos, tentou elaborar uma explicação e chegou à conclusão que seria
impossível preenchê-lo a partir de um projeto de antropologia.
Ainda sobre o vocabulário utilizado é interessante descrever um caso da “área temática
especial”. Uma pesquisadora preencheu erroneamente um campo na plataforma destinado às
“áreas temáticas especiais” da CONEP, que regula projetos cujos temas versam sobre genética
e reprodução humana e entre outros26. Nesses casos, a avaliação é realizada pelo CEP e pela
CONEP. Como o projeto tinha o objetivo de entender o impacto da reprodução assistida no laço
familiar, a pesquisadora da área de psicologia preencheu o campo de “genética e reprodução humana”, classificando-o sob a nomenclatura de área temática especial, devido a esse equívoco, o
projeto permaneceu tramitando por mais de cinco meses. Constituindo um equívoco recorrente,
a CONEP, em Carta Circular nº 172/2017/CONEP/CNS/MS publicada em 20 de abril de 2017,
o reconhece e elabora esclarecimentos referentes ao preenchimento da área temática. A CONEP
atribui a solução do problema à demora de atualização da Plataforma, que está tentando junto
ao DataSUS – entidade que a gere – modificá-la e torná-la mais ágil.
25 Como são chamadas as Ciências Humanas e Sociais pelos interlocutores da pesquisa, em que se pronuncia
apenas as iniciais.
26 Entram também nessa classificação pesquisas com novos fármacos, medicamentos e vacinas; novos equipamentos, insumos e dispositivos para a saúde; população indígena, e projetos que envolvam aspectos de biossegurança.
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Manipular a Plataforma Brasil demanda esforço e tempo para aprender, tanto pela necessidade de apropriação da linguagem específica da “ética em pesquisa” e “bioética principalista”, como pela organização virtual e visual dela, que dificulta seus usuários a encontrar as informações e os documentos necessários. Sendo a Plataforma Brasil uma inscritora, ela pode ser
tomada como um actante (LATOUR, 2001). Muitas vezes, os membros do comitê e o secretário
falavam dela como se estivessem falando de uma pessoa, atribuindo-lhe ação, transformando-a
em um sujeito: “a plataforma hoje está querendo atrasar a reunião”, “a plataforma não coopera”.
Certa vez, um membro perguntou ao secretário o que significava alguns “protocolos” estarem
em vermelho, o que ele respondeu: “os projetos em vermelho são os que estão sem movimentação há mais tempo, na prática não faz diferença nenhuma, na prática é um jeito da plataforma
falar: ‘oh, vamos movimentar esse projeto’”. A movimentação à qual ele se refere é tanto do
pesquisador quanto do Comitê, muitas vezes os pesquisadores demoram para responder às pendências. Esse secretário conhece tão bem o seu instrumento de trabalho, que, em uma reunião
quando a plataforma estava inconstante, ele falou brincando que “sente” quando a plataforma
vai cair ou travar.
Em um dia de instabilidade da plataforma, uma integrante do comitê perguntou qual o
grau de ingerência, de influência política do CEP para propor alteração, torná-la mais “acessível
e menos burra”. O secretário então responde que “a plataforma é padrão, que é mais voltada
para a área de saúde”. Falamos que isso fazia parte da demanda em adequá-la às pesquisas em
Ciências Humanas e Sociais feita pelo GT de criação da “510” e do Fórum Ciências Humanas,
Sociais e Sociais Aplicadas (FCHSSA)27. Nessa conversa, outro membro pergunta por que ela
acha que o sistema é burro, e em sua resposta, elucida a instabilidade, o tempo de duração da
permanência no sistema, que é curto e, se ultrapassado, retorna ao login, e emenda: “mas pior
que a burrice é a falta de adequação mesmo”.
A partir dessa percepção de que a plataforma “fala outra língua”, existe uma preocupação de que o comitê fique apenas exercendo o seu papel burocrático. Essa integrante, que atua
na área da educação, menciona a vontade de se mobilizar para “encampar essa luta”, e o outro
membro afirma que eles são os “operadores do sistema” e que por isso devem estar presentes
27 O FCHSSA foi criado com a finalidade de demandar reconhecimento das áreas envolvidas em relação a diferentes políticas científicas e acadêmicas. O que motivou a sua criação foi a “luta” por um sistema de avaliação da
ética em pesquisa adequado às especificidades epistemológicas das áreas que dele participam, nascendo junto ao
GT de construção da Resolução CNS nº 510/2016. Essa associação recebeu uma nova nomenclatura, as recentes
notícias adicionaram às siglas Línguas, Letras e Arte, ficando, então, Fórum de Ciências Humanas, Sociais, Sociais
Aplicadas, Línguas, Letras e Artes (FCHSSALLA). Disponível em: https://blogfchssa.wordpress.com/ Acesso em:
05 mar. 2021.
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nessa “luta”, pois senão “a gente só fica ‘burrocrático’, próximo, próximo” “e discutir ética
que é bom...”. Enfatiza o neologismo “burrocrático”, ressaltando que ao exercerem apenas esse
papel, a discussão da ética não acontece, crítica elaborada também por outros membros. Essa
mesma integrante resumiu sua crítica e não reconhecimento em relação à plataforma, caracterizando-a como uma “uma realidade paralela”.
Nesse sentido, membros, secretários de CEP e pesquisador precisam dominar esse sistema de classificação (DURKHEIM; MAUSS, 1999 KANT DE LIMA, 1995). O pesquisador, ao
submeter o “protocolo de pesquisa”, precisa dominar o vocabulário da Plataforma, que, apesar
de estar presente nas resoluções, muitas vezes é desconhecido. Alguns membros afirmam que
esse dispositivo serve para ensinar os pesquisadores a submeter projetos, mas não a serem éticos. As resoluções são publicizadas, mas não compreensíveis, constituindo um conhecimento
particularizado na prática, pois os membros, o pesquisador e o secretário “aprendem fazendo”,
constituindo-se um conhecimento prático.
Além da importância do entendimento desse sistema de classificação, compreendendo
“a lógica da plataforma”, é preciso criar estratégias para utilizá-la. Em uma entrevista, uma
professora narrou uma apresentação que assistiu quando fazia parte de um comitê: “[...] um dos
conselhos que ela [a palestrante] dava, era que: ‘primeiro faça tudo no Word, para depois você
copiar e colar, porque a plataforma cai no meio e você perde tudo [...]’”. E continua,
Compreender a lógica da plataforma e depois distribuir os temas. Sendo que
você pode fazer um texto que não cabe naquele campo. Ou o contrário, ela
tem, por exemplo, desfecho primário e secundário. Isso é linguagem da epidemiologia. Em uma pesquisa qualitativa, como é a minha, eu sei traduzir isso
para fazer o desfecho primário e secundário, porque a minha pesquisa é na
área da saúde. (Letícia, 2018, grifo nosso).
Essa fala revela elementos para a compreensão da lógica própria da prática das Ciências da Saúde. Nesse sentido, os pesquisadores de Ciências Humanas e Sociais, além de não se
reconhecerem na Plataforma, também fazem parte de uma comunidade de comunicação (OLIVEIRA, 1996) diferente das Ciências da Saúde, por isso não conhecem a linguagem utilizada
por ela. Quando já possuem uma experiência anterior, conseguem adquirir competência para
“traduzir” seus projetos de acordo com os termos utilizados nela. Nesse sentido, de acordo com
Geertz (2013), no interior de uma comunidade de comunicação e entendimento se constrói um
saber comum. O senso comum, para o autor, é “um sistema cultural; um corpo de crenças e
juízos, com conexões vagas, porém mais fortes que uma simples relação de pensamento inevitavelmente iguais para todos os membros de um grupo que vive em comunidade” (GEERTZ,
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2013, p.16). Os pesquisadores que compartilham o mesmo senso comum calcado na construção
de uma pesquisa a partir da metodologia qualitativa partilham também um vocabulário, uma
linguagem similar, mesmo que seguindo tradições epistêmicas distintas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse processo de modelização de dispositivos de avaliação científica tem o objetivo de
ensejar condutas e torná-las menos particulares, além de lançar mão de critérios mais isonômicos,
que sejam possíveis de analisar as práticas empreendidas por atores e instâncias diversas.
Assim, tenta-se estabelecer standards e normas que sejam validadas em diferentes mundos
científicos e em distintas condições de sua realização que transbordam as fronteiras nacionais
e disciplinares. Esse processo de padronização, por outro lado, cria caminhos estratégicos
conduzidos pela atividade crítica e criativa dos atores implicados na política científica. Neste
sentido, há uma demanda por reconhecimento por parte dos interlocutores, principalmente
aqueles vinculados às Ciências Humanas e Sociais, pois a transposição de modelos de uma área
a outra gera um sentimento de desconsideração (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2011; FALCÃO,
2020) e uma enorme dissonância entre os critérios estabelecidos pelas agências de controle da
ciência e as práticas heterogêneas empreendidas pelos cientistas em seus respectivos campos
do conhecimento.
As situações descritas, seja no que se refere à Plataforma Brasil ou aos critérios de
validação do trabalho científico, evidenciam o modo como a governança pela norma científica a
la brasileira seguem os princípios de julgamento baseados em um entendimento particularizado
sobre as regras (KANT DE LIMA, 1995) e os sentidos de justeza em jogo no processo avaliativo.
Desse modo, a particularização das regras e a desconsideração das diferenças epistêmicas
caminham juntas nessa política do desconhecimento e da desconsideração.
A tentativa de uniformizar os dispositivos de governança científica culmina, nesse
contexto, na deformação dos referenciais que guiam as éticas e as epistemologias científicas
essencialmente plurais e heterogêneas. A gramática cívica (BOLTANSKI; THÉVENOT,
1991) mobilizada pelos nossos interlocutores, que tem como referência um modelo ocidental
de democracia, dá lugar a outras gramáticas: o da numerologia desenfreada que resulta na
elaboração de índices, tabelas, impactos etc. que em muitas circunstâncias empobrecem
o exercício científico com a introdução de um regime industrial no mundo da inspiração
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(BOLTANSKI; THÉVENOT, 1991); e, igualmente, o imperialismo bioético (DUARTE, 2015)
e epistêmico presente na regulação da ética dissemina uma única e restrita via da eticidade,
desconsiderando outras formas presentes no fazer científico.
As Plataformas Lattes e Brasil, bem como as normatizações evidenciam a padronização
da atividade científica e da avaliação da ética, dando vida a uma “ética burocrática e um espírito
do cartorialismo”. A rápida proliferação de agentes ou actantes (LATOUR, 2001; 2012) se configura numa rede múltipla e produz efeitos mútuos: criam normas, estimulam comportamentos,
engendram moralidades e produzem subjetividades. No lugar de redes, nesse contexto por nós
analisado, conformam-se malhas (EILBAUM, 2006; KANT DE LIMA, 1995) que dão vida às
dinâmicas de particularização e interpretação própria sobre a norma e o justo. As malhas são
tecidas pelos laços de proximidade, pelas alianças, pela personalização e por critérios que enrijecem e encapsulam o julgamento sobre a prática científica.
As plataformas colocam em ação todo esse sistema avaliativo, tal como o fato científico
(LATOUR; WOOLGAR, 1997), o qual, para ser construído, precisa de diversas técnicas e instrumentos. Esse processo é chamado de fenômeno-técnica, pois concede ao fato científico uma
aparência de ter sido produzido através de uma técnica pura: sem os inscritores, o fato científico, produto da avaliação, não existiria. Para essa produção são necessários diferentes inscritores, entre não humanos e humanos, deixando seus rastros e causando seus efeitos que, através
do agir competente e crítico, criam culturas avaliativas pautadas em fazeres científicos diversos.
A passagem por esses diferentes inscritores e sistemas classificatórios produz um sentimento que realça a crença na norma e nesses critérios universalizantes, padronizadores e
uniformizantes. No mundo da “ética burocrática e do espírito do cartorialismo”, as avaliações,
diante de um universo de malhas normativas, incidem sob o ato de consagração que, segundo
Bourdieu (2011, p.113), é “[...] um ato misterioso, que obedece a uma lógica semelhante à da
magia, tal como descreve Marcel Mauss”. No caso da avaliação da ética, bem como da avaliação da produção científica, por meio de seus rankings classificatórios como o Qualis e Bolsa de
Produtividade, esses “atos de consagração” realizados pelo Estado possibilitam o sentimento de
inscrição às “boas práticas científicas” e de excelência.
Na contemporaneidade, o desenvolvimento científico pressupõe o exercício da coexistência e da simetria entre os campos científicos, bem como do pluralismo epistemológico que
tanto enriquece o conhecimento reflexivo e crítico cada vez mais posto em xeque diante das
forças conservadoras e reacionárias que emergem em diferentes cantos do planeta. A construção
de dispositivos de controle da produção científica fundamentado nas concepções hierarquizantes e homogeneizantes sobre o fazer científico, como problematizamos, somente reforçam a
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lógica do colonialismo epistemológico (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2004) e da cisma, cuja
base central é o exercício arbitrário utilizado pelos agentes responsáveis de definir o científico e
ético através de recursos próprios de uma racionalidade cismática (MOTA, 2018; 2021). Diferentemente da desconfiança, fundada sob critérios mutáveis e passíveis de serem validados pela
empiria e fatos, a cisma pressupõe o trabalho de julgamento que segue as orientações próprias
e particulares ao julgador. É este que detém, neste jogo de carteado avaliativo, os recursos simbólicos e materiais para fundar seus julgamentos e estabelecer os parâmetros válidos na mesa
de avaliação. Sendo assim, no percurso do jogo, as cartas podem ser mobilizadas, de forma
circunstancial, de acordo com a pessoa que figura como participante da jogada.
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Hully Guedes Falcão
Pós-doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde
da Fundação Oswaldo Cruz. Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense. ID ORCID: https://orcid.org/0000-00021932-3104. E-mail: hullyfalcao@gmail.com. Colaboração: Pesquisa bibliográfica, pesquisa
empírica, análise de dados, redação e revisão.
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Fabio Reis Mota
Professor Adjunto do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal
Fluminense. Coordenador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa, pesquisador do
Instituto Nacional de Administração de Conflitos. Doutor em Antropologia pelo Programa de
Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. ID ORCID: https://orcid.
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Gabriela de Lima Cuervo
Professora I de Sociologia da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro. Doutora em Antropologia
pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. ID
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0766-0805. E-mail: bicuervo@gmail.com. Colaboração:
Pesquisa bibliográfica, pesquisa empírica, análise de dados, redação e revisão.
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