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Uma visita ao catolicismo brasileiro contemporâneo: RENATA DE CASTRO MENEZES RENATA DE CASTRO MENEZES é antropóloga, professora da PUC-Rio e pesquisadora do Iser Assessoria. a bênção de Santo Antônio num convento carioca Este artigo é uma versão modificada e ampliada de trechos de minha tese de doutorado (Menezes, 2004), posteriormente publicada (Menezes, 2004a). Agradeço ao professor Moacir Palmeira a interlocução durante todo o processo de pesquisa, e aos professores Faustino Teixeira e Pierre Sanchis o apoio recebido na elaboração e publicação deste artigo, cujas limitações, entretanto, são de minha inteira responsabilidade. A DINÂMICA DO CATOLICISMO NO BRASIL ATUAL Os dados censitários das últimas décadas explicitam no Brasil uma redução crescente do percentual de católicos no conjunto da população. Paralelamente a essa diminuição, nota-se um aumento significativo dos que se declaram evangélicos (principalmente pentecostais e neopentecostais), ou “sem religião”, grupos que tiveram os maiores percentuais de crescimento no mesmo período (Pierucci, 2004). Longe de expressar apenas uma mudança quantitativa, esses dados apontam para um verdadeiro processo de reconfiguração do campo religioso nacional, cujos efeitos globais só poderão ser melhor avaliados a médio prazo. Mas, como assinala Pierre Sanchis (2001), algo pelo menos ficou claro: se há ainda uma maioria católica significativa no país, o catolicismo perdeu sua hegemonia como fundamento da identidade nacional. Durante 2 A distinção entre adorar e venerar, presente em catecismos e livros de doutrina católica, apareceu assim nas palavras de um dos entrevistados em campo: “Eu não adoro imagem, eu venero. Venerar é diferente de adorar” (mulher, branca, 69 anos, aposentada, moradora da Pavuna). séculos houve um certo consenso de que, para o bem ou para o mal, o catolicismo era um dos elementos característicos da sociedade brasileira, formulação que continha um forte caráter ideológico, mas que se tornou “naturalizada”, fazendo com que a diferença (religiosa) fosse lida como um desvio. A idéia-força de que ser brasileiro seria sinônimo de ser católico foi uma representação social extremamente eficaz em nossa história: ela esteve em vigor no país certamente desde o período imperial (Azevedo, 1969), e foi muitas vezes manipulada em favor dos interesses do Estado, ou da própria Igreja Católica (Fernandes, 1988). Essa idéia, se ainda não está definitivamente sepultada, ao menos deixou de ser considerada uma obviedade. Assim, o momento atual se revela como uma ocasião oportuna para percebermos como se (re)colocam as relações entre religião e cultura em sociedades complexas, nas quais o pertencimento religioso passa a ser visto como uma escolha individual entre as várias opções de um contexto plural. Porém, uma observação importante precisa ser feita: a diminuição do percentual de católicos, ou a perda de hegemonia do catolicismo não corresponde automaticamente a uma falta de vigor. Ao contrário, 26 REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 24-35, setembro/novembro 2005 1 Se a RCC é o tema que mais tem atraído os pesquisadores do catolicismo, o catolicismo midiático, as aparições marianas e o culto aos santos também têm sido estudados, ainda que em menor escala. Ver o artigo de Faustino Teixeira neste dossiê. se desde os anos 1990 vimos um gradual arrefecimento da presença do “catolicismo social” na esfera pública, outras formas de expressão católicas têm ganhado maior visibilidade nos últimos anos. Grosso modo, poderíamos falar do crescimento de fenômenos tais como o Movimento de Renovação Carismática, as aparições marianas, o catolicismo midiático (referido às TVs católicas e aos padres cantores) e o culto aos santos (1). E é em dados etnográficos sobre um episódio de culto aos santos – a bênção de Santo Antônio – que se baseia este artigo. O CULTO AOS SANTOS COMO UM OBJETO DE ESTUDO Antes, porém, de entrar na parte mais descritiva do “caso” analisado, gostaria de fazer algumas observações quanto à importância estratégica de uma análise dos cultos aos santos no Brasil atual. Além de ser uma das expressões da vitalidade do catolicismo, o culto aos santos é interessante como um objeto por sua ambivalência. Primeiro, ele é um elemento significativo na demarcação de fronteiras dentro do mundo cristão, pois é capaz de operar uma clivagem: de um lado, ficam os católicos, para os quais o culto aos santos é considerado legítimo, uma prática tradicional e constitutiva da própria religião; do outro, as igrejas evangélicas, que o condenam como idolatria, por mais que os católicos insistam, reativamente, que apenas “veneram os santos, mas não os adoram” (2). Porém, enquanto funciona como um sinal distintivo da identidade católica, o culto aos santos também é um fenômeno que extrapola os limites do catolicismo, e vai ao encontro de religiosidades menos institucionalizadas, ecoando em grupos “Nova Era”, ou mesmo em uma espiritualidade difusa, característica deste início de século. Os santos são, ou melhor, estão fashion: eles se fazem presentes no circuito da moda, em roupas, acessórios, objetos de decoração, ou em revistas e livros. Uma onda de oratórios, relicários, escapulários, terços, camisetas e até mesmo calcinhas decoradas com estampas de santos invadiu vitrines de grifes até então famosas mas “profanas”. As bancas de jornal estão cheias de magazines que contêm desde hagiografias a simpatias. Assim, ao servir simultaneamente para marcar um pertencimento intenso ao catolicismo, e o extravasar para o conjunto da sociedade de um imaginário “católico” ligado à “cultura brasileira”, o culto aos santos revela-se útil para pensar as relações entre religião, cultura e sociedade. Trata-se de indagar o sentido que determinadas práticas devocionais, geralmente classificadas de “tradicionais”, isto é, tidas como representativas de um catolicismo “popular tradicional”, podem estar assumindo nos dias de hoje (3). Foi com algumas dessas preocupações em mente que, no doutorado, realizei meu trabalho de campo no convento de Santo Antônio, localizado no Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro. Estimulada pelos trabalhos de Mariza Peirano (1995; 2002), procurei realizar uma análise do “cotidiano de um espaço ritual” a fim de compreender como um lugar socialmente destinado a práticas “sagradas” – e de um sagrado marcadamente “extraordinário”, visto tratar-se de um “santuário” (4), no qual a presença de um santo é capaz de ocasionar milagres – é capaz de engendrar uma certa sociabilidade. O instrumento privilegiado para isso foi a etnografia das celebrações do convento, que me permitiu depreender as relações sociais que se cruzam, se tecem e são articuladas nesse local: relações entre os diversos agentes, relações deles com os santos. Entretanto, no conjunto dessas celebrações, uma destacou-se, por sua singularidade e sua importância no local: a bênção de Santo Antônio, tema deste artigo. Tomo a bênção como um exemplo concreto do catolicismo brasileiro contemporâneo a fim de repensar as dimensões da vida social que práticas religiosas como essa são capazes de articular, bem como o sentido que os agentes atribuem à sua participação nesses eventos. ETNOGRAFIA DA BÊNÇÃO No centro do Rio de Janeiro, todas as terças-feiras (5), das seis da manhã às oito da noite, cerca de cinco mil pessoas vão ao convento franciscano do Largo da Carioca, em busca da bênção do padroeiro, Santo Antônio, e dos demais serviços oferecidos no local, como missas, homilias, aconselhamentos, confissões, etc. Trata-se de um público heterogêneo, composto por velhinhas com seus terços e medalhas, passando por famílias inteiras, casais de namorados, chegando até a gente que, saindo dos locais de trabalho, vem à igreja saudar o santo, muitas vezes aproveitando o horário de almoço, ou um curto intervalo na jornada de trabalho, para voltar em seguida ao escritório – homens de terno e gravata, mulheres em tailleurs. Isso porque o convento está localizado em um espaço – “a cidade”, como os cariocas nos referimos ao centro do Rio de Janeiro – onde se concentram escritórios, bancos, comércio em geral, o que torna o fenômeno ainda mais curioso. A bênção é conferida no convento apenas nesse dia da semana, dia associado ao culto de Santo Antônio, sendo ministrada REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 24-35, setembro/novembro 2005 3 Um bom exemplo desse modismo em torno dos santos encontra-se no número 358 da revista hebdomadária Época, cuja matéria de capa intitula-se “A Força dos Santos”. 4 Entende-se por santuário católico um lugar especial de devoção, considerado capaz de oferecer um acesso privilegiado ao sagrado, e que se torna foco de atração de “peregrinos”, que o visitam num movimento de alguma regularidade. Entra em jogo nessa definição um processo social de atribuição de sacralidade e excepcionalidade a determinados locais de culto, seja por sua relação com um episódio da história dessa religião, seja por sua localização geográfica, reinterpretada religiosamente, seja pela ação de um ou vários santos no local – por nele terem vivido, ou nele terem aparecido, ou por nele repousarem seus restos mortais, ou porque aí está sua imagem milagrosa. 5 O convento fecha apenas nos feriados e no dia seguinte à festa de Santo Antônio, celebrada em 13 de junho. Quando os feriados caem numa terça-feira, a bênção é dada no dia seguinte, com um número bastante menor de pessoas. Nos meses de janeiro e fevereiro, por causa das férias, a freqüência é baixa. Ao contrário, na primeira terça-feira de cada mês, ela é maior. 27 cerca de 18 vezes, seja ao final das missas, seja nos horários em que não há missas, ao final de uma paraliturgia. Ela acontece da seguinte maneira: o frade celebrante lê ou fala do altar em voz alta o texto da “Bênção de Santo Antônio” (6), de frente para a audiência e fazendo o sinal-da-cruz em sua direção: “Celebrante: A nossa força está no nome do Senhor Audiência: Que fez o céu e a terra Celebrante: Rogai por nós glorioso Santo Antônio Audiência: Para que sejamos dignos da promessa de Cristo Celebrante: Eis a cruz do Senhor. Afastemse de vós todos os inimigos da salvação. Porque venceu o Leão da tribo de Judá, descendente de Davi, Jesus Cristo Nosso Senhor”. – mesmo em formas fragmentárias – e de coisas que se quer realizar, e é isso que acontece na bênção de Santo Antônio: há nela uma afirmação de crenças combinadas a pedidos. Ao analisarmos cada linha de sua parte verbal, entretanto, podemos perceber as singularidades dessa combinação específica. A bênção compreende uma alternância de falas entre o celebrante e a audiência, uma espécie de jogral, no qual ambas as partes assumem diferentes papéis. O celebrante, que está no altar para dar a bênção (que é do santo), é, primeiramente, um enunciador que provoca as respostas da audiência, criando uma espécie de unidade entre ela e o altar. A sua primeira fala – “a nossa força está no nome do Senhor” – é a afirmação de uma crença. Mas num certo sentido, ao dizer “nossa”, ele está convidando os presentes a assumirem que partilham dessa crença. Ao dar uma uma resposta que complementa a fala anterior, “Que fez o Céu e a Terra”, a audiência parece demonstrar ou concordar que essa crença é compartilhada, que todos estão falando do mesmo Senhor criador do céu e da terra, em nome do qual força lhes será conferida. Já a segunda fala do celebrante – “Rogai por nós glorioso Santo Antônio”– é a formulação de um pedido de intercessão ao santo, ao qual a resposta da audiência – “Para que sejamos dignos da promessa de Cristo” – vem agregar-se, dando-lhe uma finalidade. Tanto o sacerdote como a audiência estão agora falando não mais entre si, como na fala anterior, mas com o santo. O celebrante introduz o pedido, o público o complementa – e o santo é tomado como um mediador ao qual se suplica. Mas em sua terceira fala, que não tem uma resposta verbal da audiência, o celebrante repete as palavras que seriam de Santo Antônio, “Eis a cruz do Senhor. Afastem-se de vós todos os inimigos da salvação. Porque venceu o Leão da tribo de Judá, descendente de Davi, Jesus Cristo Nosso Senhor”, enquanto faz o sinal-da-cruz para abençoar os presentes. Nesse momento, portanto, ele representa o próprio santo, e através dessa representação se torna capaz 7 Um amigo, ex-padre do convento, relatou-me seu choque ao chegar lá pela primeira vez e descobrir que a bênção era dada com brocha. O uso de um instrumento inabitual a uma liturgia não provoca, entretanto, nenhuma comoção nos freqüentadores. A bênção não é menos bênção por não ser dada com o asperges, a brocha integrou-se ao ritual. Depois disso, ele pega um balde de metal cheio de água benta, e caminha pelo meio da igreja, molhando os presentes. A fim de que a água atinja a todos, o instrumento litúrgico tradicional para a aspersão, o asperges, é substituído por uma brocha de pintor (7). O celebrante desce do altar e vai até a porta da igreja, por um dos lados da passarela central, e retorna da porta ao altar pelo outro lado, sempre aspergindo, buscando molhar todos os presentes. Por fim, retorna ao altar, pronuncia umas palavras de encerramento e sai. Observando seguidas vezes a bênção em seu contexto de enunciação (Peirano, 2002; Tambiah, 1985), pude perceber sua complexidade. Ela tem uma dimensão verbal, expressa através das palavras proferidas pelo celebrante e pela audiência, ambas padronizadas (Tambiah, 1985). Esse conjunto de palavras é enunciado no intuito de obter algo do santo: “sua bênção”, sua proteção. Disse um frade, ao benzer: “a bênção dá proteção na vida, saúde, alegria”. Nesse sentido, ela nos lembra muito a prece, tal como tratada por Marcel Mauss. Para Mauss (1968), a prece é uma combinação de crença e rito, ou seja, é simultaneamente a expressão de coisas em que se acredita 28 REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 24-35, setembro/novembro 2005 6 A bênção pode ser encontrada no livro Orações de Santo Antônio, da editora Vozes (2000), com outros trechos que nem sempre eram ditos no convento. de conferir a sua bênção. O celebrante exerce assim uma dupla mediação: se na segunda fala ele representa o público diante do santo, na terceira ele representa o santo diante do público. Só que a bênção não é apenas um ato verbal. Ela engloba uma dimensão física, fundamental em seu desenrolar (como também pode ocorrer na prece analisada por Mauss), que se compõe de gestos e movimentos executados pelo frade e pelo público. Os gestos são mais formais e padronizados durante a recitação das palavras: nesse momento, o padre realiza o sinal-da-cruz e a imposição de mãos na direção da audiência, que responde se benzendo também com o sinal-da-cruz. Tornam-se, entretanto, mais informais na hora da aspersão: o padre borrifa água benta, as pessoas movimentam-se em direção ao balde, estendem as mãos ou objetos para serem molhados, espalham sobre estes ou sobre si mesmas a água que recebem. E como a bênção só se conclui com os atos de “molhar” e “ser molhado”, o contato com a água e o aproveitamento que dela é feito são componentes essenciais da parte física (Parrinder, 1987; Ries, 1987). Do ponto de vista dos participantes, a bênção aparece como um momento importantíssimo de sua ida ao convento: a maior parte deles, principalmente os que consegui identificar como assíduos, esforça-se para participar dela, e para ser atingida pela água benta. Quando o padre começa a aspergir, produz-se um deslocamento espacial para o centro do templo, em torno dele e do balde. Quanto às gotas que os molham, é comum que os freqüentadores as usem para fazer o sinal-da-cruz sobre a fronte, ou espalhá-las em torno da cabeça ou na nuca. Os objetos molhados, isto é, bentos, dentre os quais estão carteiras de dinheiro, carteiras de trabalho, chaves, “santinhos”, terços, radiografias e, mais freqüentemente, fotos, são guardados cuidadosamente, como relíquias preciosas, amuletos protetores, ou são ainda ofertados a outrem. Alguns deles são comprados na loja de artigos religiosos do convento, outros são trazidos de casa ou de outras lojas, e podem (mas não precisam) estar ligados a atributos de Santo Antônio. Ser bem benzido envolve um saber-fazer particular: é preciso conhecer a posição ideal para ser atingido pela água benta sem ser encharcado pela poderosa brocha brandida pelo padre, mas também é preciso garantir o mínimo de gotas consideradas suficientes para uma bênção. Assim, deve-se evitar as pontas internas dos bancos, que estão mais perto da passarela central, pois aí se corre o risco de molhar-se demais. Deve-se também evitar as pontas externas dos bancos, muito longe do centro emissor de bênçãos, que trazem o risco de não ser molhado em nada. A lógica da bênção não é a de que quanto mais água benta melhor: há um certo equilíbrio entre molhar-se bem e molhar-se demais que as pessoas buscam alcançar. Portanto, a bênção é uma prática que combina palavra, gesto, água, balde, brocha, movimentos de caminhada pela igreja, sinais-da-cruz, imposição de mãos, tudo isso na interação entre sacerdote e audiência. Entretanto, há que se lembrar que, subjacente a essa combinação, está o santo, que de alguma maneira se faz presente através desse ritual de consagração e abençoa seres e coisas, estendendo-lhes sua proteção (Brown, 1982). A observação de várias bênçãos durante o campo permitiu-me perceber que o modelo básico que descrevi comporta uma série de variações. Ao longo do ano, devido às marcas do calendário católico, a bênção pode associar-se a referências a outros santos e a outros eventos religiosos, sejam estes datas significativas para o convento, sejam de comemoração obrigatória para toda a cristandade. Assim, às invocações a Santo Antônio podem se agregar invocações a Maria, no mês de maio, a São Francisco, Santa Clara ou aos Santos Franciscanos Mártires do Japão, quando de alguma festa franciscana, etc. Em tempos fortes do calendário litúrgico, como a Quaresma, por exemplo, a bênção se encaixa numa liturgia especial, embora nem aí cesse de ser oferecida. Há ainda no calendário do convento um momento em que a bênção atinge sua REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 24-35, setembro/novembro 2005 29 9 Diz um dia fr. Leandro: “Quem tiver algo que queira benzer, que levante bem alto, como carteira, carteira de trabalho, chave”. plenitude, isto é, em que todos os serviços do convento se subordinam a ela: no dia 13 de junho, o dia de Santo Antônio, quando a presença de fiéis salta da cifra semanal de cinco mil pessoas para uma cifra estimada em 50 mil a 100 mil visitantes, as missas vão para um salão lateral, e são oferecidas apenas em parte do dia, enquanto a igreja destina-se exclusivamente às bênçãos, das cinco horas da manhã às dez da noite, a cada vinte minutos (8). Mas, além das variações ao longo do ano, a bênção varia também sincronicamente, de acordo com o estilo pessoal de cada padre, o qual causa diferenças na entonação, no grau de teatralidade, na duração, seja pelas capacidades pessoais de cada frade (graças a um certo physique du rôle, ao tempo de sacerdócio, à capacidade de cantar ou de proferir um sermão estimulante, etc.), seja por suas concepções teológicas, que podem atribuir determinadas ênfases e nuanças à celebração. Assim, após observar as performances individuais de vários frades, e considerar os comentários feitos pelos freqüentadores, compus uma tipologia para distingui-los. Há casos de frades “de santuário” (como fr. Marcílio e fr. Leandro), que estimulam que os devotos se aproximem, ou peguem objetos que queiram ver benzidos (9), ou, jocosamente, que pedem para que os presentes não se preocupem, pois haverá água benta para todos. Já um padre de caráter mais “cético” e mais “crítico” a esse tipo de práticas (como fr. Tobias), é capaz de produzir um metadiscurso dentro da bênção, ao fazer questão de anunciá-la como “a bênção que provavelmente Santo Antônio dizia” (grifo meu). Padres mais cuidadosos em enfatizar o caráter mediador do santo (como fr. Diogo) dizem que a bênção é “de Deus sob a intercessão de Santo Antônio”. Ou um padre mais “carismático” como fr. Adão, que, ao celebrar missas com alto grau de movimentação, marcadas por cantos, palmas e gritos de aleluia, torna difícil identificar muito bem onde começa e acaba a bênção. Nesse sentido, acompanhar a bênção de Santo Antônio foi a oportunidade de ver em prática um caso concreto em que a repetição 30 REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 24-35, setembro/novembro 2005 8 Diz um frade na missa, avisando sobre a festa: “Nesse dia, faremos o mínimo possível de missas, porque o que as pessoas querem é a bênção de Santo Antônio. Não se pode fazer missa de uma hora de duração com tanta gente esperando!”. e a originalidade em práticas rituais entram em jogo. Tratou-se de observar as variações que são possíveis em torno de uma estrutura litúrgica comum: tanto as diacrônicas, como as performances individuais de cada celebrante (Schechner, 1995), e as avaliações que o público faz dessas performances. Há uma série de procedimentos que são regulados pela liturgia e pelo calendário católicos – mas a cada performance, a regra se atualiza, se concretiza, se singulariza. Essas variações, entretanto, são limitadas pelo horário a ser cumprido (a seqüência de atividades previstas para o dia, cuja ordem deve ser mantida) e a estrutura prevista para a celebração (a liturgia apropriada para o calendário religioso), sobre a qual a Igreja Católica legisla. Mas mesmo assim permanece um espaço de autonomia, de impressão de características pessoais a cada bênção, o que envolve também o grau maior ou menor de simpatia que cada sacerdote confere a uma prática como a da bênção. Por outro lado, as pessoas presentes não estão apenas recebendo passivamente a bênção. Elas se deslocam em busca da água benta, molham a si e a seus objetos com a água obtida, demandam muitas vezes uma bênção individual após o “banho” coletivo. E fazem uma ponte entre a sacralidade que emana do convento e sua vida cotidiana: os objetos benzidos são levados para suas casas, para seus amigos, para suas vidas. Ou trazem fotos e pedidos de parentes e amigos para serem bentos, numa prática corrente de “pedir por” aqueles que precisam. Formam-se e azeitam-se assim, na interação entre os diferentes agentes que participam da bênção, laços entre o santo, os frades, os freqüentadores e suas vidas. QUANDO A BÊNÇÃO TERMINA… Mas para o público do convento, além de participar da celebração e ser benzido, é possível utilizar o espaço para a produção de seus próprios rituais com os santos. Várias ações são desenvolvidas pelos freqüentadores por conta própria, e muitas delas têm um caráter marcadamente religioso (10). Entre o que é oferecido ao público e o que é realmente feito por ele, existe uma margem de manobra que cada visitante pode utilizar para tentar conformar a ida ao “Santo Antônio” aos seus desejos (e a sua disponibilidade de tempo e dinheiro), estabelecendo um jogo entre o que se quer e o que se pode fazer. As primeiras vezes que fui ao convento, apesar de advertida sobre essas questões pela literatura e por meu trabalho anterior com o catolicismo (Menezes, 1996), tive algumas surpresas. Sentada um dia na igreja, esperando a missa começar, recebo um oferecimento sussurrado por minha vizinha de banco: uma novena para Santo Antônio. Aceito e em seguida ela me passa sutilmente um papel dobrado, dizendo que eu cumprisse cuidadosamente o que estava escrito e esperasse os resultados, porque “Santo Antônio faz coisas ma-ra-vi-lhosas” (ênfases dela). Chama-me a atenção que, apesar de ocorrer nos bancos frontais da igreja, esse processo se dê num tom de clandestinidade, a meia voz e semi-oculto. Acho graça que, entre tantos tráficos que assolam o Rio de Janeiro contemporâneo, eu acabe enredada em um de novenas. Outro dia, diante da imagem de Jesus flagelado, Ecce Homo, em uma das capelas, vejo uma mulher jogar papéis microscopicamente dobrados nos braços cruzados e amarrados da imagem. Forma curiosa de aumentar as dificuldades de entregar seu pedido ao santo: não basta deixar a seus pés, é preciso que fique em suas mãos. A tentativa se repete inúmeras vezes, até que ela consiga. Assim, aos poucos fui registrando uma série de práticas, tais como rezar nos nichos dos santos, seja em pé ou ajoelhado diante das imagens, ou tocá-los (nos pés, nas mãos, depois tocar em si mesmo), deixar-lhes flores ou esfregar-lhes fotos, ou mesmo beijá-los. Muitas pessoas “cumprimentam” os santos ao final da missa como se estivessem se despedindo deles, ou ficam falando baixinho com as imagens. Deixam a seus pés “santinhos”, fitas, papeizinhos com pedidos, novenas, agradecimentos. No espaço destinado a queimar velas, outros objetos também são deixados: pipocas, potes de café, buquê de noivas, etc. Na maioria das vezes, trata-se de práticas discretas e individuais, “pequenas práticas” diante de uma manifestação coletiva, pública e sincronizada como a bênção aqui descrita. Atos como tocar, beijar, esfregar, cumprimentar parecem se construir nos interstícios das celebrações. Mas eles também são formas de devoção significativas, constitutivas das “visitas” que os devotos realizam ao local, e fazem parte do culto ao santo. São importantes também porque nelas se expressa certa autonomia e criatividade dos devotos, formas de individualizar a sua relação com os santos. Há que se perceber, entretanto, que a criatividade vai até um certo ponto, pois mesmo nas ações mais individuais encontram-se padrões gestuais e de linguagem que tendem a se reproduzir. É aí que entra em cena uma idéia que julgo bastante útil para dar conta das formas individuais de lidar com os serviços e com o espaço do convento, que seria a de 10 Há várias situações de campo que atestam certa “autonomia” dos freqüentadores, como por exemplo: as pessoas podem entrar e sair da celebração no momento que quiserem, tomando só a bênção ou assistindo só a parte da missa ou da paraliturgia. Podem comungar sem confessar (mesmo que não seja liturgicamente recomendado), podem ir embora antes da bênção (embora isso não seja comum). Após a bênção, podem cercar o padre e, não satisfeitos com a aspersão coletiva, solicitar outra bênção: água benta jogada exclusivamente sobre si, ou uma imposição de mãos. Podem assistir a mais de uma missa, ir no horário que lhes for mais conveniente. Podem ir à missa no horário de determinado padre, mas aconselhar-se ou confessar-se com outro. Podem permanecer no convento antes ou após a bênção, sentar no pátio e ficar conversando, ou rezando, ou admirando a paisagem; podem almoçar, lanchar, tomar café, ir ao banheiro; podem acender vela nos queimadores. Podem estabelecer vínculos de amizades, desempenhar determinadas funções no culto ao santo, etc. REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 24-35, setembro/novembro 2005 31 11 Um exemplo de controle e conflito interleigos: em uma conversa ouvida na loja de artigos religiosos do convento, uma jovem que queria comprar um escapulário de Santo Antônio foi imediatamente corrigida pela voluntária que a atendeu: “Santo Antônio não tem escapulário. Não sei quais são os escapulários que se inventam por aí, mas os verdadeiros são apenas os de N. S. das Mercês”. apropriação. Utilizo este termo para me referir às atitudes minúsculas e cotidianas nas quais as pessoas exercem sua autonomia, e manifestam suas concepções de mundo e sistema de valores (Certeau, 1990). No convento, as maneiras concretas pelas quais as pessoas se servem ou não dos serviços aí existentes seriam formas de apropriação em que se expressaria sua relativa autonomia, o que muitas vezes lhes permite compor uma “visita” singular diante de um leque a princípio determinado de opções. Creio que diante da apropriação do convento por seus freqüentadores, um acordo tácito se estabelece entre o clero e os devotos no culto aos santos, o qual garante a tolerância de certas práticas. Todas as ações mencionadas, que se desenvolvem diante das imagens, são do conhecimento dos padres, e há uma concessão do espaço do templo para que elas aconteçam. Durante a bênção, a sacristã fecha a grade de acesso ao altar. Mas quando o padre sai da igreja, a grade é aberta e os devotos podem subir junto ao santo para rezar suas próprias orações, tocar o sacrário e visitar as capelas. Assim, o templo e as imagens permanecem acessíveis todos os dias, durante largos períodos de tempo, para que os devotos realizem suas próprias práticas devocionais. A tolerância, entretanto, é relativa. Há limites estabelecidos, em formas mais ou menos sutis, como, por exemplo, no dia em que fr. Tobias fez uma crítica ao comportamento dos devotos que vinham à missa, mas se mantinham ajoelhados rezando a trezena de Santo Antônio em seu curso: “As pessoas que vêm à Igreja para ficar conversando durante toda a missa, ou rezando suas próprias orações, sem participar, e depois vão para a fila da comunhão estão enganadas. Se não prestaram atenção na missa, como podem comungar?”. Os limites à apropriação não se estabelecem apenas entre padres e leigos, mas também entre os próprios leigos. Estes têm graus bastante diferenciados de participação na vida do convento, de adesão e conhecimento da doutrina e das regras de comportamento do catolicismo. Assim, alguns leigos dedicam-se a “ensinar”, 32 REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 24-35, setembro/novembro 2005 “fiscalizar”, “corrigir” os demais. Esse processo de controle, de imposição de limites, pode se dar através de leigos que estão no convento a trabalho, como funcionários destinados a receber o público. Mas pode se dar a partir dos voluntários que atuam no convento, que, por sua “fé” no santo e/ou por seu conhecimento religioso, ou por uma grande proximidade do convento e/ou de seus frades, ensinam aos outros (11). Isso nos remete à percepção dos leigos como constituindo um bloco hierarquizado, e bastante diferenciado. Essas relações, portanto, não se dão numa harmonia total. Escapando de um viés durkheimiano que tende a ver nas práticas de culto aos santos momentos de construção de um consenso social, muitas vezes é através do conflito que os limites se tornam evidentes, e as pessoas passam a perceber a distinção entre os comportamentos adequados e inadequados ao local (mesmo que executando um ou outro, de acordo com suas vontades e possibilidades). Mas é interessante observar que, apesar de inúmeras situações de tensão e conflito mais ou menos evidentes, poucas foram as conflagrações ostensivas. Mais do que uma dicotomia radical entre sim e não, as tensões parecem ser administradas no convento através de uma prática de “correções de rumo”, de reorientações constantes. Uma última observação quanto aos limites à apropriação do convento e de seus serviços. Na verdade, eles surgem não apenas do controle estabelecido pelo clero e seus auxiliares. Há uma série de obrigações, seja para com o santo, seja para com os outros domínios da “vida em geral”, que constrangem a liberdade de ação de um freqüentador. Quanto às obrigações para com o santo, as promessas e os compromissos têm que ser cumpridos, sob pena de ofensa grave e castigo. Assim, o compromisso com o santo faz com que o culto dos devotos assuma formas específicas, ou seja, executado de uma certa maneira, ou em determinada época, conforme o combinado. Por outro lado, quanto às obrigações para com “o trabalho” e “a família” – elementos destacados pelos devotos –, o comparecimento ao convento conjuga-se a uma série de compromissos que restringem a duração, o horário e o número de vezes que uma pessoa consegue ir ao convento. Isso implica arranjos e negociações, cujos exemplos multiplicam-se nos depoimentos: senhoras que deixaram de vir porque tiveram que passar a se ocupar dos netos, pessoas que freqüentam a missa de meiodia por ser seu horário de almoço, outros que aproveitam a visita ao convento para resolver problemas no centro da cidade, etc. Há diversas estratégias de arranjo do tempo, ou melhor, da vida cotidiana, para garantir a ida ao convento. Dentre os diversos arranjos possíveis (12), destaca-se um que garante a manutenção de devoção das pessoas que não podem vir ao convento às terças-feiras: ir a qualquer outra igreja onde haja a imagem de Santo Antônio, e fazer sua oração ou dar sua oferenda. “Quando eu não consigo vir aqui, eu vou na Igreja da Glória que é perto da minha casa, vou na imagem de Santo Antônio e faço as minhas orações” (senhora que me deu a novena). “Eu viajo muito, já fui em igrejas de Santo Antônio do mundo inteiro. E quando eu não posso vir aqui, faço assim: vou logo procurando uma igreja que tenha a imagem do santo lá no local onde estou, e toda terça-feira boto lá como esmola o equivalente a um quilo de pão em moeda local” (Fabíola). A negociação com outros domínios da vida pessoal é facilitada pelo fato de que o devoto freqüentador assíduo torna-se um mediador por excelência de pedidos de familiares, amigos e vizinhos, um “especialista no sagrado”, que para isso deve ser liberado de algumas de suas funções. As boas relações que tem com o santo, se são “individualizadas”, como a literatura dos cultos aos santos ressalta, podem, entretanto, ser canalizadas em prol de outrem, justificando assim a prática corrente de “pedir por” alguém que não esteja lá. As mesmas senhoras que falaram dos arranjos e negociações feitos com a família para garantir o comparecimento à igreja contam que netos e netas, ou filhos e filhas, e mesmo amigos costumam “pedir que elas peçam por eles” em suas idas ao convento, por provas, namoros, empregos. Essa prática de “pedir por” alguém aparece materializada nas bênçãos, quando as pessoas trazem fotos de outros para serem abençoadas, ou santinhos e medalhas para serem benzidos e doados. Temos assim que no convento de Santo Antônio estabelecem-se circuitos de mediação, numa cadeia que se multiplica, descendo do céu à terra, de Deus aos homens e mulheres, passando pelo santo e (em alguns casos) pelos sacerdotes. Mas ela não se restringe apenas a esses agentes: por meio de um doador pode-se conseguir roupas e remédios; de um amigo feito durante a missa pode se conseguir um emprego para um filho; pela indicação de um padre, uma vaga para a filha em um curso. E todas essas graças e benesses, por mais materiais que pareçam ser, podem ser lidas como provenientes do santo, ainda que estabelecidas através de inúmeras mediações, de maneira indireta, numa manifestação sutil que só o olhar muito acurado de um devoto conseguirá perceber (13). REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 24-35, setembro/novembro 2005 12 Ísis, por exemplo, tem que acordar às cinco da manhã para deixar o marido doente de banho tomado e com o almoço pronto para chegar ao convento às sete horas. O arranjo do tempo pode adquirir um caráter lúdico: Thereza, professora aposentada, costuma ir à missa das 12 horas e almoça no convento para não cozinhar naquele dia e para ajudar as obras assistenciais do convento. Depois, moradora da Zona Norte da cidade, aproveita que está no centro e vai até a Zona Sul para “pegar um cineminha”. Já Rita dá a seu arranjo um cunho mais religioso: moradora da Baixada Fluminense, solteira e com a mãe já falecida, ela aproveita as terças-feiras para um circuito pelas igrejas do centro da cidade: vai à Catedral, às 11 horas, depois à missa das 12 no Santo Antônio, onde almoça e fica rezando “para fazer hora” até às 15 horas e ir à igreja de N. S. do Bom Parto “rezar um terço”, o que às terças-feiras no convento, por conta das bênçãos, é impossível. Da Igreja do Bom Parto, vai para o Mosteiro de São Bento, onde assiste à missa mais curta das 17 horas e à missa completa com todos os monges às 18 horas. 13 Na pesquisa, embora muitas vezes o início de uma devoção justifique-se por um evento espetacular, as graças de um santo para com seu devoto manifestam-se não apenas em feitos monumentais, ou em momentos solenes, mas no cotidiano, nas “pequenas coisas”. Ele ajuda a achar coisas perdidas, a atravessar a rua com segurança, a não ficar doente, a criar bem os filhos, a tirar nota boa na prova. Portanto, a graça aparece como uma espécie de categoria classificatória que os devotos utilizam para explicar determinados eventos de uma vida que, aos olhos de um não-devoto, poderiam parecer corriqueiros. Essas graças são lidas pelos devotos como sinais da presença do santo em todos os momentos de sua vida. Trata-se de um processo classificatório que só adquire sentido no contexto da devoção aos santos, e que, portanto, apenas devotos são capazes de estabelecer. 33 CONCLUSÃO: A BÊNÇÃO E O CATOLICISMO POPULAR As interações que se dão em torno da bênção provocam no convento uma circulação de idéias, valores e de um “saber-fazer religioso”, transmitidos através de gestos e palavras. Esse processo de circulação envolve fluxos entre o clero e os leigos que freqüentam o local, tanto – pensando em termos de hierarquia católica – no sentido “de cima para baixo”, isto é, dos sacerdotes para os leigos, como de “baixo para cima”, dos leigos para os sacerdotes, o que nos leva a pensar em um movimento de “circularidade cultural” (Redfield, Bakhtin e Ginzburg). Mas, além de movimentos verticais, os fluxos ainda se dão ‘horizontalmente”, interleigos, através do intercâmbio de informações sobre rezas, santos poderosos, “boas” igrejas e celebrações para se comparecer, e de avaliações dos padres melhores ou piores. 34 A análise etnográfica desses movimentos de circulação serve tanto para mapear os circuitos menos formalizados de transmissão do saber religioso (Hervieu-Léger, 1997), como para compreender algumas das formas pelas quais uma instituição milenar como a Igreja Católica consegue permanecer, atualizar-se e tornar-se significativa em outros contextos. Há um universo de transformações minúsculas, cotidianas (Certeau, 1990), que vai sendo incorporado, muitas vezes via ritual, nos interstícios de regulamentos litúrgicos, que permite atualizações de estruturas, e que pode virtualmente chegar a alterar as formulações doutrinárias dessa religião. Por outro lado, o que discutimos até agora permite-nos relativizar a definição do culto aos santos como manifestação de um “catolicismo popular”. Desde o final dos anos 1970 o conceito de catolicismo popular tem sido problematizado, tanto quanto a seu alcance, como quanto a sua ambigüidade, mas ainda não foi definitivamente descartado. Fernandes (1984), por exemplo, demonstrou que na literatura dos anos 1980 “popular” tinha ao menos três sentidos diferentes. O termo significava “a maioria da população”, por oposição a minoria; algo “pertencente a extratos inferiores da população”, por oposição a práticas da elite; ou ainda “extra-oficial”, no sentido de estar fora do controle ou da regulamentação da autoridade instituída, por oposição a uma religião “oficial”. E, a meu ver, nenhum desses significados se aplica à bênção de Santo Antônio. Apesar de maciça, ela não é uma prática da maioria da população, nem algo extra-oficial, nem ligada apenas a extratos inferiores da população. Por isso, proponho que seja deixada de lado a idéia de qualificá-la como “catolicismo popular”. Porém, mais importante que descartar um conceito, é perceber que o fato de ele ter se tornado inoperante nos permite identificar um reordenamento das margens do catolicismo, no qual determinadas práticas consideradas periféricas (“populares”) até o início dos anos 1990 voltaram a ocupar uma posição central nessa religião. Como REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 24-35, setembro/novembro 2005 explicar esse fenômeno? Algumas hipóteses me ocorrem: primeiro, trata-se de mudanças estimuladas pela ação papal, pois o papado de João Paulo II deu imenso destaque à questão da santidade. Por outro lado, poderia haver uma relação entre o aumento (ou maior visibilidade) do culto aos santos e uma espiritualidade difusa presente na sociedade contemporânea, como já mencionado no início deste artigo. No caso do Brasil, uma reação ao crescimento evangélico pode estar provocando a intensificação do culto aos santos como forma de reforço da identidade católica. Entretanto, para que essas hipóteses adquiram maior consistência, é preciso retomá-las em futuros estudos de caso. BIBLIOGRAFIA AZEVEDO, T. de. “Catolicismo no Brasil?”, in Revista de Cultura Vozes, 63(2), 1969, pp. 117-24. BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento – o Contexto de François Rabelais. 4a ed. São Paulo/Brasília, UnB/Hucitec, 1999. 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