Uma visita ao
catolicismo brasileiro
contemporâneo:
RENATA DE CASTRO MENEZES
RENATA DE CASTRO
MENEZES é antropóloga,
professora da PUC-Rio
e pesquisadora do Iser
Assessoria.
a bênção
de Santo
Antônio num
convento carioca
Este artigo é uma versão modificada
e ampliada de trechos de minha
tese de doutorado (Menezes,
2004), posteriormente publicada
(Menezes, 2004a). Agradeço ao
professor Moacir Palmeira a interlocução durante todo o processo
de pesquisa, e aos professores
Faustino Teixeira e Pierre Sanchis
o apoio recebido na elaboração
e publicação deste artigo, cujas
limitações, entretanto, são de minha
inteira responsabilidade.
A DINÂMICA DO CATOLICISMO NO BRASIL ATUAL
Os dados censitários das últimas décadas
explicitam no Brasil uma redução crescente do
percentual de católicos no conjunto da população.
Paralelamente a essa diminuição, nota-se um aumento significativo dos que se declaram evangélicos
(principalmente pentecostais e neopentecostais),
ou “sem religião”, grupos que tiveram os maiores
percentuais de crescimento no mesmo período
(Pierucci, 2004).
Longe de expressar apenas uma mudança quantitativa, esses dados apontam para um verdadeiro
processo de reconfiguração do campo religioso
nacional, cujos efeitos globais só poderão ser melhor avaliados a médio prazo. Mas, como assinala
Pierre Sanchis (2001), algo pelo menos ficou claro:
se há ainda uma maioria católica significativa no
país, o catolicismo perdeu sua hegemonia como
fundamento da identidade nacional. Durante
2 A distinção entre adorar e
venerar, presente em catecismos
e livros de doutrina católica,
apareceu assim nas palavras
de um dos entrevistados em
campo: “Eu não adoro imagem,
eu venero. Venerar é diferente
de adorar” (mulher, branca, 69
anos, aposentada, moradora
da Pavuna).
séculos houve um certo consenso de que,
para o bem ou para o mal, o catolicismo
era um dos elementos característicos da
sociedade brasileira, formulação que continha um forte caráter ideológico, mas que
se tornou “naturalizada”, fazendo com que
a diferença (religiosa) fosse lida como um
desvio. A idéia-força de que ser brasileiro
seria sinônimo de ser católico foi uma
representação social extremamente eficaz
em nossa história: ela esteve em vigor no
país certamente desde o período imperial
(Azevedo, 1969), e foi muitas vezes manipulada em favor dos interesses do Estado,
ou da própria Igreja Católica (Fernandes,
1988). Essa idéia, se ainda não está definitivamente sepultada, ao menos deixou de
ser considerada uma obviedade. Assim, o
momento atual se revela como uma ocasião oportuna para percebermos como se
(re)colocam as relações entre religião e
cultura em sociedades complexas, nas quais
o pertencimento religioso passa a ser visto
como uma escolha individual entre as várias
opções de um contexto plural.
Porém, uma observação importante precisa ser feita: a diminuição do percentual
de católicos, ou a perda de hegemonia do
catolicismo não corresponde automaticamente a uma falta de vigor. Ao contrário,
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1 Se a RCC é o tema que mais
tem atraído os pesquisadores
do catolicismo, o catolicismo
midiático, as aparições marianas e o culto aos santos também
têm sido estudados, ainda que
em menor escala. Ver o artigo de
Faustino Teixeira neste dossiê.
se desde os anos 1990 vimos um gradual
arrefecimento da presença do “catolicismo
social” na esfera pública, outras formas de
expressão católicas têm ganhado maior visibilidade nos últimos anos. Grosso modo,
poderíamos falar do crescimento de fenômenos tais como o Movimento de Renovação Carismática, as aparições marianas,
o catolicismo midiático (referido às TVs
católicas e aos padres cantores) e o culto
aos santos (1). E é em dados etnográficos
sobre um episódio de culto aos santos – a
bênção de Santo Antônio – que se baseia
este artigo.
O CULTO AOS SANTOS COMO UM
OBJETO DE ESTUDO
Antes, porém, de entrar na parte mais
descritiva do “caso” analisado, gostaria de
fazer algumas observações quanto à importância estratégica de uma análise dos cultos
aos santos no Brasil atual. Além de ser uma
das expressões da vitalidade do catolicismo,
o culto aos santos é interessante como um
objeto por sua ambivalência. Primeiro, ele
é um elemento significativo na demarcação
de fronteiras dentro do mundo cristão, pois
é capaz de operar uma clivagem: de um
lado, ficam os católicos, para os quais o
culto aos santos é considerado legítimo, uma
prática tradicional e constitutiva da própria
religião; do outro, as igrejas evangélicas,
que o condenam como idolatria, por mais
que os católicos insistam, reativamente,
que apenas “veneram os santos, mas não
os adoram” (2).
Porém, enquanto funciona como um
sinal distintivo da identidade católica, o
culto aos santos também é um fenômeno
que extrapola os limites do catolicismo, e
vai ao encontro de religiosidades menos institucionalizadas, ecoando em grupos “Nova
Era”, ou mesmo em uma espiritualidade
difusa, característica deste início de século.
Os santos são, ou melhor, estão fashion: eles
se fazem presentes no circuito da moda, em
roupas, acessórios, objetos de decoração, ou
em revistas e livros. Uma onda de oratórios,
relicários, escapulários, terços, camisetas e
até mesmo calcinhas decoradas com estampas de santos invadiu vitrines de grifes até
então famosas mas “profanas”. As bancas de
jornal estão cheias de magazines que contêm
desde hagiografias a simpatias. Assim, ao
servir simultaneamente para marcar um
pertencimento intenso ao catolicismo, e o
extravasar para o conjunto da sociedade de
um imaginário “católico” ligado à “cultura
brasileira”, o culto aos santos revela-se útil
para pensar as relações entre religião, cultura
e sociedade. Trata-se de indagar o sentido
que determinadas práticas devocionais,
geralmente classificadas de “tradicionais”,
isto é, tidas como representativas de um
catolicismo “popular tradicional”, podem
estar assumindo nos dias de hoje (3).
Foi com algumas dessas preocupações
em mente que, no doutorado, realizei meu
trabalho de campo no convento de Santo
Antônio, localizado no Largo da Carioca,
na cidade do Rio de Janeiro. Estimulada
pelos trabalhos de Mariza Peirano (1995;
2002), procurei realizar uma análise do
“cotidiano de um espaço ritual” a fim de
compreender como um lugar socialmente
destinado a práticas “sagradas” – e de um
sagrado marcadamente “extraordinário”,
visto tratar-se de um “santuário” (4), no qual
a presença de um santo é capaz de ocasionar
milagres – é capaz de engendrar uma certa
sociabilidade. O instrumento privilegiado
para isso foi a etnografia das celebrações
do convento, que me permitiu depreender
as relações sociais que se cruzam, se tecem
e são articuladas nesse local: relações entre
os diversos agentes, relações deles com os
santos.
Entretanto, no conjunto dessas celebrações, uma destacou-se, por sua singularidade e sua importância no local: a bênção
de Santo Antônio, tema deste artigo. Tomo
a bênção como um exemplo concreto do
catolicismo brasileiro contemporâneo a
fim de repensar as dimensões da vida social que práticas religiosas como essa são
capazes de articular, bem como o sentido
que os agentes atribuem à sua participação
nesses eventos.
ETNOGRAFIA DA BÊNÇÃO
No centro do Rio de Janeiro, todas as
terças-feiras (5), das seis da manhã às oito
da noite, cerca de cinco mil pessoas vão ao
convento franciscano do Largo da Carioca,
em busca da bênção do padroeiro, Santo
Antônio, e dos demais serviços oferecidos
no local, como missas, homilias, aconselhamentos, confissões, etc.
Trata-se de um público heterogêneo,
composto por velhinhas com seus terços
e medalhas, passando por famílias inteiras, casais de namorados, chegando até a
gente que, saindo dos locais de trabalho,
vem à igreja saudar o santo, muitas vezes
aproveitando o horário de almoço, ou um
curto intervalo na jornada de trabalho, para
voltar em seguida ao escritório – homens
de terno e gravata, mulheres em tailleurs.
Isso porque o convento está localizado em
um espaço – “a cidade”, como os cariocas
nos referimos ao centro do Rio de Janeiro
– onde se concentram escritórios, bancos,
comércio em geral, o que torna o fenômeno
ainda mais curioso.
A bênção é conferida no convento apenas nesse dia da semana, dia associado ao
culto de Santo Antônio, sendo ministrada
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3 Um bom exemplo desse modismo em torno dos santos
encontra-se no número 358 da
revista hebdomadária Época,
cuja matéria de capa intitula-se
“A Força dos Santos”.
4 Entende-se por santuário católico
um lugar especial de devoção,
considerado capaz de oferecer
um acesso privilegiado ao sagrado, e que se torna foco de
atração de “peregrinos”, que
o visitam num movimento de
alguma regularidade. Entra
em jogo nessa definição um
processo social de atribuição
de sacralidade e excepcionalidade a determinados locais de
culto, seja por sua relação com
um episódio da história dessa
religião, seja por sua localização geográfica, reinterpretada
religiosamente, seja pela ação
de um ou vários santos no local
– por nele terem vivido, ou nele
terem aparecido, ou por nele
repousarem seus restos mortais,
ou porque aí está sua imagem
milagrosa.
5 O convento fecha apenas nos
feriados e no dia seguinte à festa
de Santo Antônio, celebrada em
13 de junho. Quando os feriados caem numa terça-feira, a
bênção é dada no dia seguinte,
com um número bastante menor
de pessoas. Nos meses de janeiro e fevereiro, por causa das
férias, a freqüência é baixa. Ao
contrário, na primeira terça-feira
de cada mês, ela é maior.
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cerca de 18 vezes, seja ao final das missas,
seja nos horários em que não há missas,
ao final de uma paraliturgia. Ela acontece
da seguinte maneira: o frade celebrante
lê ou fala do altar em voz alta o texto da
“Bênção de Santo Antônio” (6), de frente
para a audiência e fazendo o sinal-da-cruz
em sua direção:
“Celebrante: A nossa força está no nome
do Senhor
Audiência: Que fez o céu e a terra
Celebrante: Rogai por nós glorioso Santo
Antônio
Audiência: Para que sejamos dignos da
promessa de Cristo
Celebrante: Eis a cruz do Senhor. Afastemse de vós todos os inimigos da salvação.
Porque venceu o Leão da tribo de Judá,
descendente de Davi, Jesus Cristo Nosso
Senhor”.
– mesmo em formas fragmentárias – e de
coisas que se quer realizar, e é isso que
acontece na bênção de Santo Antônio: há
nela uma afirmação de crenças combinadas
a pedidos. Ao analisarmos cada linha de
sua parte verbal, entretanto, podemos perceber as singularidades dessa combinação
específica.
A bênção compreende uma alternância
de falas entre o celebrante e a audiência, uma
espécie de jogral, no qual ambas as partes
assumem diferentes papéis. O celebrante,
que está no altar para dar a bênção (que é do
santo), é, primeiramente, um enunciador que
provoca as respostas da audiência, criando
uma espécie de unidade entre ela e o altar.
A sua primeira fala – “a nossa força está no
nome do Senhor” – é a afirmação de uma
crença. Mas num certo sentido, ao dizer
“nossa”, ele está convidando os presentes a
assumirem que partilham dessa crença. Ao
dar uma uma resposta que complementa a
fala anterior, “Que fez o Céu e a Terra”, a
audiência parece demonstrar ou concordar
que essa crença é compartilhada, que todos
estão falando do mesmo Senhor criador do
céu e da terra, em nome do qual força lhes
será conferida.
Já a segunda fala do celebrante – “Rogai por nós glorioso Santo Antônio”– é a
formulação de um pedido de intercessão
ao santo, ao qual a resposta da audiência
– “Para que sejamos dignos da promessa
de Cristo” – vem agregar-se, dando-lhe
uma finalidade. Tanto o sacerdote como a
audiência estão agora falando não mais entre
si, como na fala anterior, mas com o santo.
O celebrante introduz o pedido, o público
o complementa – e o santo é tomado como
um mediador ao qual se suplica.
Mas em sua terceira fala, que não
tem uma resposta verbal da audiência, o
celebrante repete as palavras que seriam
de Santo Antônio, “Eis a cruz do Senhor.
Afastem-se de vós todos os inimigos da
salvação. Porque venceu o Leão da tribo
de Judá, descendente de Davi, Jesus Cristo
Nosso Senhor”, enquanto faz o sinal-da-cruz
para abençoar os presentes. Nesse momento,
portanto, ele representa o próprio santo, e
através dessa representação se torna capaz
7 Um amigo, ex-padre do convento, relatou-me seu choque
ao chegar lá pela primeira
vez e descobrir que a bênção
era dada com brocha. O uso
de um instrumento inabitual
a uma liturgia não provoca,
entretanto, nenhuma comoção
nos freqüentadores. A bênção
não é menos bênção por não
ser dada com o asperges, a
brocha integrou-se ao ritual.
Depois disso, ele pega um balde de
metal cheio de água benta, e caminha pelo
meio da igreja, molhando os presentes. A
fim de que a água atinja a todos, o instrumento litúrgico tradicional para a aspersão,
o asperges, é substituído por uma brocha
de pintor (7). O celebrante desce do altar e
vai até a porta da igreja, por um dos lados
da passarela central, e retorna da porta ao
altar pelo outro lado, sempre aspergindo,
buscando molhar todos os presentes. Por
fim, retorna ao altar, pronuncia umas palavras de encerramento e sai.
Observando seguidas vezes a bênção
em seu contexto de enunciação (Peirano,
2002; Tambiah, 1985), pude perceber sua
complexidade. Ela tem uma dimensão
verbal, expressa através das palavras proferidas pelo celebrante e pela audiência,
ambas padronizadas (Tambiah, 1985). Esse
conjunto de palavras é enunciado no intuito
de obter algo do santo: “sua bênção”, sua
proteção. Disse um frade, ao benzer: “a
bênção dá proteção na vida, saúde, alegria”.
Nesse sentido, ela nos lembra muito a prece,
tal como tratada por Marcel Mauss. Para
Mauss (1968), a prece é uma combinação
de crença e rito, ou seja, é simultaneamente
a expressão de coisas em que se acredita
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6 A bênção pode ser encontrada
no livro Orações de Santo Antônio, da editora Vozes (2000),
com outros trechos que nem sempre eram ditos no convento.
de conferir a sua bênção. O celebrante
exerce assim uma dupla mediação: se na
segunda fala ele representa o público diante
do santo, na terceira ele representa o santo
diante do público.
Só que a bênção não é apenas um ato
verbal. Ela engloba uma dimensão física,
fundamental em seu desenrolar (como
também pode ocorrer na prece analisada
por Mauss), que se compõe de gestos
e movimentos executados pelo frade e
pelo público. Os gestos são mais formais
e padronizados durante a recitação das
palavras: nesse momento, o padre realiza
o sinal-da-cruz e a imposição de mãos
na direção da audiência, que responde se
benzendo também com o sinal-da-cruz.
Tornam-se, entretanto, mais informais na
hora da aspersão: o padre borrifa água benta,
as pessoas movimentam-se em direção ao
balde, estendem as mãos ou objetos para
serem molhados, espalham sobre estes ou
sobre si mesmas a água que recebem. E
como a bênção só se conclui com os atos de
“molhar” e “ser molhado”, o contato com
a água e o aproveitamento que dela é feito
são componentes essenciais da parte física
(Parrinder, 1987; Ries, 1987).
Do ponto de vista dos participantes, a
bênção aparece como um momento importantíssimo de sua ida ao convento: a maior
parte deles, principalmente os que consegui
identificar como assíduos, esforça-se para
participar dela, e para ser atingida pela água
benta. Quando o padre começa a aspergir,
produz-se um deslocamento espacial para
o centro do templo, em torno dele e do
balde.
Quanto às gotas que os molham, é
comum que os freqüentadores as usem
para fazer o sinal-da-cruz sobre a fronte,
ou espalhá-las em torno da cabeça ou na
nuca. Os objetos molhados, isto é, bentos,
dentre os quais estão carteiras de dinheiro,
carteiras de trabalho, chaves, “santinhos”,
terços, radiografias e, mais freqüentemente,
fotos, são guardados cuidadosamente, como
relíquias preciosas, amuletos protetores,
ou são ainda ofertados a outrem. Alguns
deles são comprados na loja de artigos
religiosos do convento, outros são trazidos
de casa ou de outras lojas, e podem (mas
não precisam) estar ligados a atributos de
Santo Antônio.
Ser bem benzido envolve um saber-fazer
particular: é preciso conhecer a posição ideal
para ser atingido pela água benta sem ser
encharcado pela poderosa brocha brandida
pelo padre, mas também é preciso garantir
o mínimo de gotas consideradas suficientes
para uma bênção. Assim, deve-se evitar as
pontas internas dos bancos, que estão mais
perto da passarela central, pois aí se corre o
risco de molhar-se demais. Deve-se também
evitar as pontas externas dos bancos, muito
longe do centro emissor de bênçãos, que trazem o risco de não ser molhado em nada. A
lógica da bênção não é a de que quanto mais
água benta melhor: há um certo equilíbrio
entre molhar-se bem e molhar-se demais
que as pessoas buscam alcançar.
Portanto, a bênção é uma prática que
combina palavra, gesto, água, balde, brocha, movimentos de caminhada pela igreja,
sinais-da-cruz, imposição de mãos, tudo isso
na interação entre sacerdote e audiência.
Entretanto, há que se lembrar que, subjacente a essa combinação, está o santo, que
de alguma maneira se faz presente através
desse ritual de consagração e abençoa seres e coisas, estendendo-lhes sua proteção
(Brown, 1982).
A observação de várias bênçãos durante
o campo permitiu-me perceber que o modelo
básico que descrevi comporta uma série de
variações. Ao longo do ano, devido às marcas do calendário católico, a bênção pode
associar-se a referências a outros santos
e a outros eventos religiosos, sejam estes
datas significativas para o convento, sejam
de comemoração obrigatória para toda a
cristandade. Assim, às invocações a Santo
Antônio podem se agregar invocações a Maria, no mês de maio, a São Francisco, Santa
Clara ou aos Santos Franciscanos Mártires
do Japão, quando de alguma festa franciscana, etc. Em tempos fortes do calendário
litúrgico, como a Quaresma, por exemplo,
a bênção se encaixa numa liturgia especial,
embora nem aí cesse de ser oferecida.
Há ainda no calendário do convento
um momento em que a bênção atinge sua
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9 Diz um dia fr. Leandro: “Quem
tiver algo que queira benzer,
que levante bem alto, como
carteira, carteira de trabalho,
chave”.
plenitude, isto é, em que todos os serviços
do convento se subordinam a ela: no dia 13
de junho, o dia de Santo Antônio, quando a
presença de fiéis salta da cifra semanal de
cinco mil pessoas para uma cifra estimada
em 50 mil a 100 mil visitantes, as missas
vão para um salão lateral, e são oferecidas
apenas em parte do dia, enquanto a igreja
destina-se exclusivamente às bênçãos, das
cinco horas da manhã às dez da noite, a
cada vinte minutos (8).
Mas, além das variações ao longo do ano,
a bênção varia também sincronicamente, de
acordo com o estilo pessoal de cada padre,
o qual causa diferenças na entonação, no
grau de teatralidade, na duração, seja pelas
capacidades pessoais de cada frade (graças
a um certo physique du rôle, ao tempo de
sacerdócio, à capacidade de cantar ou de
proferir um sermão estimulante, etc.), seja
por suas concepções teológicas, que podem
atribuir determinadas ênfases e nuanças à
celebração. Assim, após observar as performances individuais de vários frades,
e considerar os comentários feitos pelos
freqüentadores, compus uma tipologia para
distingui-los. Há casos de frades “de santuário” (como fr. Marcílio e fr. Leandro), que
estimulam que os devotos se aproximem,
ou peguem objetos que queiram ver benzidos (9), ou, jocosamente, que pedem para
que os presentes não se preocupem, pois
haverá água benta para todos. Já um padre
de caráter mais “cético” e mais “crítico” a
esse tipo de práticas (como fr. Tobias), é
capaz de produzir um metadiscurso dentro
da bênção, ao fazer questão de anunciá-la
como “a bênção que provavelmente Santo
Antônio dizia” (grifo meu). Padres mais
cuidadosos em enfatizar o caráter mediador
do santo (como fr. Diogo) dizem que a bênção é “de Deus sob a intercessão de Santo
Antônio”. Ou um padre mais “carismático”
como fr. Adão, que, ao celebrar missas com
alto grau de movimentação, marcadas por
cantos, palmas e gritos de aleluia, torna
difícil identificar muito bem onde começa
e acaba a bênção.
Nesse sentido, acompanhar a bênção de
Santo Antônio foi a oportunidade de ver em
prática um caso concreto em que a repetição
30
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8 Diz um frade na missa, avisando
sobre a festa: “Nesse dia,
faremos o mínimo possível de
missas, porque o que as pessoas
querem é a bênção de Santo
Antônio. Não se pode fazer
missa de uma hora de duração
com tanta gente esperando!”.
e a originalidade em práticas rituais entram
em jogo. Tratou-se de observar as variações
que são possíveis em torno de uma estrutura
litúrgica comum: tanto as diacrônicas, como
as performances individuais de cada celebrante (Schechner, 1995), e as avaliações
que o público faz dessas performances.
Há uma série de procedimentos que são
regulados pela liturgia e pelo calendário
católicos – mas a cada performance, a regra
se atualiza, se concretiza, se singulariza.
Essas variações, entretanto, são limitadas
pelo horário a ser cumprido (a seqüência de
atividades previstas para o dia, cuja ordem
deve ser mantida) e a estrutura prevista para
a celebração (a liturgia apropriada para o
calendário religioso), sobre a qual a Igreja
Católica legisla. Mas mesmo assim permanece um espaço de autonomia, de impressão
de características pessoais a cada bênção, o
que envolve também o grau maior ou menor
de simpatia que cada sacerdote confere a
uma prática como a da bênção.
Por outro lado, as pessoas presentes não
estão apenas recebendo passivamente a
bênção. Elas se deslocam em busca da água
benta, molham a si e a seus objetos com a
água obtida, demandam muitas vezes uma
bênção individual após o “banho” coletivo.
E fazem uma ponte entre a sacralidade que
emana do convento e sua vida cotidiana:
os objetos benzidos são levados para suas
casas, para seus amigos, para suas vidas. Ou
trazem fotos e pedidos de parentes e amigos
para serem bentos, numa prática corrente
de “pedir por” aqueles que precisam. Formam-se e azeitam-se assim, na interação
entre os diferentes agentes que participam
da bênção, laços entre o santo, os frades,
os freqüentadores e suas vidas.
QUANDO A BÊNÇÃO TERMINA…
Mas para o público do convento, além
de participar da celebração e ser benzido, é
possível utilizar o espaço para a produção de
seus próprios rituais com os santos. Várias
ações são desenvolvidas pelos freqüentadores por conta própria, e muitas delas
têm um caráter marcadamente religioso
(10). Entre o que é oferecido ao público e
o que é realmente feito por ele, existe uma
margem de manobra que cada visitante
pode utilizar para tentar conformar a ida
ao “Santo Antônio” aos seus desejos (e a
sua disponibilidade de tempo e dinheiro),
estabelecendo um jogo entre o que se quer
e o que se pode fazer.
As primeiras vezes que fui ao convento,
apesar de advertida sobre essas questões
pela literatura e por meu trabalho anterior
com o catolicismo (Menezes, 1996), tive
algumas surpresas. Sentada um dia na
igreja, esperando a missa começar, recebo
um oferecimento sussurrado por minha
vizinha de banco: uma novena para Santo
Antônio. Aceito e em seguida ela me passa
sutilmente um papel dobrado, dizendo que
eu cumprisse cuidadosamente o que estava
escrito e esperasse os resultados, porque
“Santo Antônio faz coisas ma-ra-vi-lhosas” (ênfases dela). Chama-me a atenção
que, apesar de ocorrer nos bancos frontais
da igreja, esse processo se dê num tom de
clandestinidade, a meia voz e semi-oculto.
Acho graça que, entre tantos tráficos que
assolam o Rio de Janeiro contemporâneo,
eu acabe enredada em um de novenas. Outro
dia, diante da imagem de Jesus flagelado,
Ecce Homo, em uma das capelas, vejo uma
mulher jogar papéis microscopicamente
dobrados nos braços cruzados e amarrados
da imagem. Forma curiosa de aumentar as
dificuldades de entregar seu pedido ao santo:
não basta deixar a seus pés, é preciso que
fique em suas mãos. A tentativa se repete
inúmeras vezes, até que ela consiga.
Assim, aos poucos fui registrando uma
série de práticas, tais como rezar nos nichos
dos santos, seja em pé ou ajoelhado diante
das imagens, ou tocá-los (nos pés, nas mãos,
depois tocar em si mesmo), deixar-lhes
flores ou esfregar-lhes fotos, ou mesmo
beijá-los. Muitas pessoas “cumprimentam” os santos ao final da missa como se
estivessem se despedindo deles, ou ficam
falando baixinho com as imagens. Deixam
a seus pés “santinhos”, fitas, papeizinhos
com pedidos, novenas, agradecimentos. No
espaço destinado a queimar velas, outros objetos também são deixados: pipocas, potes
de café, buquê de noivas, etc. Na maioria
das vezes, trata-se de práticas discretas e
individuais, “pequenas práticas” diante de
uma manifestação coletiva, pública e sincronizada como a bênção aqui descrita. Atos
como tocar, beijar, esfregar, cumprimentar
parecem se construir nos interstícios das
celebrações. Mas eles também são formas
de devoção significativas, constitutivas das
“visitas” que os devotos realizam ao local,
e fazem parte do culto ao santo. São importantes também porque nelas se expressa
certa autonomia e criatividade dos devotos,
formas de individualizar a sua relação com
os santos. Há que se perceber, entretanto,
que a criatividade vai até um certo ponto,
pois mesmo nas ações mais individuais encontram-se padrões gestuais e de linguagem
que tendem a se reproduzir.
É aí que entra em cena uma idéia que
julgo bastante útil para dar conta das formas individuais de lidar com os serviços e
com o espaço do convento, que seria a de
10 Há várias situações de campo
que atestam certa “autonomia”
dos freqüentadores, como por
exemplo: as pessoas podem
entrar e sair da celebração
no momento que quiserem,
tomando só a bênção ou
assistindo só a parte da missa
ou da paraliturgia. Podem comungar sem confessar (mesmo
que não seja liturgicamente
recomendado), podem ir embora antes da bênção (embora
isso não seja comum). Após
a bênção, podem cercar o
padre e, não satisfeitos com
a aspersão coletiva, solicitar
outra bênção: água benta
jogada exclusivamente sobre si, ou uma imposição de
mãos. Podem assistir a mais
de uma missa, ir no horário
que lhes for mais conveniente.
Podem ir à missa no horário
de determinado padre, mas
aconselhar-se ou confessar-se
com outro. Podem permanecer
no convento antes ou após a
bênção, sentar no pátio e ficar
conversando, ou rezando,
ou admirando a paisagem;
podem almoçar, lanchar, tomar
café, ir ao banheiro; podem
acender vela nos queimadores.
Podem estabelecer vínculos
de amizades, desempenhar
determinadas funções no culto
ao santo, etc.
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31
11 Um exemplo de controle e
conflito interleigos: em uma
conversa ouvida na loja de artigos religiosos do convento, uma
jovem que queria comprar um
escapulário de Santo Antônio
foi imediatamente corrigida
pela voluntária que a atendeu:
“Santo Antônio não tem escapulário. Não sei quais são os
escapulários que se inventam
por aí, mas os verdadeiros
são apenas os de N. S. das
Mercês”.
apropriação. Utilizo este termo para me
referir às atitudes minúsculas e cotidianas
nas quais as pessoas exercem sua autonomia,
e manifestam suas concepções de mundo
e sistema de valores (Certeau, 1990). No
convento, as maneiras concretas pelas quais
as pessoas se servem ou não dos serviços aí
existentes seriam formas de apropriação em
que se expressaria sua relativa autonomia,
o que muitas vezes lhes permite compor
uma “visita” singular diante de um leque a
princípio determinado de opções.
Creio que diante da apropriação do convento por seus freqüentadores, um acordo
tácito se estabelece entre o clero e os devotos no culto aos santos, o qual garante a
tolerância de certas práticas. Todas as ações
mencionadas, que se desenvolvem diante
das imagens, são do conhecimento dos
padres, e há uma concessão do espaço do
templo para que elas aconteçam. Durante a
bênção, a sacristã fecha a grade de acesso
ao altar. Mas quando o padre sai da igreja,
a grade é aberta e os devotos podem subir
junto ao santo para rezar suas próprias orações, tocar o sacrário e visitar as capelas.
Assim, o templo e as imagens permanecem
acessíveis todos os dias, durante largos períodos de tempo, para que os devotos realizem
suas próprias práticas devocionais.
A tolerância, entretanto, é relativa. Há
limites estabelecidos, em formas mais ou
menos sutis, como, por exemplo, no dia em
que fr. Tobias fez uma crítica ao comportamento dos devotos que vinham à missa, mas
se mantinham ajoelhados rezando a trezena
de Santo Antônio em seu curso: “As pessoas
que vêm à Igreja para ficar conversando
durante toda a missa, ou rezando suas próprias orações, sem participar, e depois vão
para a fila da comunhão estão enganadas.
Se não prestaram atenção na missa, como
podem comungar?”.
Os limites à apropriação não se estabelecem apenas entre padres e leigos, mas
também entre os próprios leigos. Estes
têm graus bastante diferenciados de participação na vida do convento, de adesão
e conhecimento da doutrina e das regras
de comportamento do catolicismo. Assim,
alguns leigos dedicam-se a “ensinar”,
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“fiscalizar”, “corrigir” os demais. Esse processo de controle, de imposição de limites,
pode se dar através de leigos que estão no
convento a trabalho, como funcionários
destinados a receber o público. Mas pode
se dar a partir dos voluntários que atuam no
convento, que, por sua “fé” no santo e/ou
por seu conhecimento religioso, ou por uma
grande proximidade do convento e/ou de
seus frades, ensinam aos outros (11). Isso
nos remete à percepção dos leigos como
constituindo um bloco hierarquizado, e
bastante diferenciado.
Essas relações, portanto, não se dão
numa harmonia total. Escapando de um
viés durkheimiano que tende a ver nas
práticas de culto aos santos momentos de
construção de um consenso social, muitas
vezes é através do conflito que os limites
se tornam evidentes, e as pessoas passam
a perceber a distinção entre os comportamentos adequados e inadequados ao local
(mesmo que executando um ou outro, de
acordo com suas vontades e possibilidades).
Mas é interessante observar que, apesar
de inúmeras situações de tensão e conflito
mais ou menos evidentes, poucas foram as
conflagrações ostensivas. Mais do que uma
dicotomia radical entre sim e não, as tensões
parecem ser administradas no convento
através de uma prática de “correções de
rumo”, de reorientações constantes.
Uma última observação quanto aos
limites à apropriação do convento e de
seus serviços. Na verdade, eles surgem não
apenas do controle estabelecido pelo clero
e seus auxiliares. Há uma série de obrigações, seja para com o santo, seja para com
os outros domínios da “vida em geral”, que
constrangem a liberdade de ação de um freqüentador. Quanto às obrigações para com
o santo, as promessas e os compromissos
têm que ser cumpridos, sob pena de ofensa
grave e castigo. Assim, o compromisso com
o santo faz com que o culto dos devotos assuma formas específicas, ou seja, executado
de uma certa maneira, ou em determinada
época, conforme o combinado.
Por outro lado, quanto às obrigações
para com “o trabalho” e “a família” – elementos destacados pelos devotos –, o comparecimento ao convento conjuga-se a uma
série de compromissos que restringem a
duração, o horário e o número de vezes
que uma pessoa consegue ir ao convento.
Isso implica arranjos e negociações, cujos
exemplos multiplicam-se nos depoimentos: senhoras que deixaram de vir porque
tiveram que passar a se ocupar dos netos,
pessoas que freqüentam a missa de meiodia por ser seu horário de almoço, outros
que aproveitam a visita ao convento para
resolver problemas no centro da cidade,
etc. Há diversas estratégias de arranjo do
tempo, ou melhor, da vida cotidiana, para
garantir a ida ao convento. Dentre os diversos arranjos possíveis (12), destaca-se um
que garante a manutenção de devoção das
pessoas que não podem vir ao convento às
terças-feiras: ir a qualquer outra igreja onde
haja a imagem de Santo Antônio, e fazer
sua oração ou dar sua oferenda.
“Quando eu não consigo vir aqui, eu vou
na Igreja da Glória que é perto da minha
casa, vou na imagem de Santo Antônio e
faço as minhas orações” (senhora que me
deu a novena).
“Eu viajo muito, já fui em igrejas de Santo
Antônio do mundo inteiro. E quando eu não
posso vir aqui, faço assim: vou logo procurando uma igreja que tenha a imagem do santo
lá no local onde estou, e toda terça-feira boto
lá como esmola o equivalente a um quilo de
pão em moeda local” (Fabíola).
A negociação com outros domínios da
vida pessoal é facilitada pelo fato de que
o devoto freqüentador assíduo torna-se
um mediador por excelência de pedidos
de familiares, amigos e vizinhos, um “especialista no sagrado”, que para isso deve
ser liberado de algumas de suas funções.
As boas relações que tem com o santo, se
são “individualizadas”, como a literatura
dos cultos aos santos ressalta, podem, entretanto, ser canalizadas em prol de outrem,
justificando assim a prática corrente de “pedir
por” alguém que não esteja lá. As mesmas
senhoras que falaram dos arranjos e negociações feitos com a família para garantir o
comparecimento à igreja contam que netos
e netas, ou filhos e filhas, e mesmo amigos
costumam “pedir que elas peçam por eles” em
suas idas ao convento, por provas, namoros,
empregos. Essa prática de “pedir por” alguém
aparece materializada nas bênçãos, quando
as pessoas trazem fotos de outros para serem
abençoadas, ou santinhos e medalhas para
serem benzidos e doados.
Temos assim que no convento de Santo Antônio estabelecem-se circuitos de
mediação, numa cadeia que se multiplica,
descendo do céu à terra, de Deus aos homens e mulheres, passando pelo santo e
(em alguns casos) pelos sacerdotes. Mas
ela não se restringe apenas a esses agentes:
por meio de um doador pode-se conseguir
roupas e remédios; de um amigo feito durante a missa pode se conseguir um emprego
para um filho; pela indicação de um padre,
uma vaga para a filha em um curso. E todas
essas graças e benesses, por mais materiais
que pareçam ser, podem ser lidas como
provenientes do santo, ainda que estabelecidas através de inúmeras mediações, de
maneira indireta, numa manifestação sutil
que só o olhar muito acurado de um devoto
conseguirá perceber (13).
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12 Ísis, por exemplo, tem que
acordar às cinco da manhã
para deixar o marido doente
de banho tomado e com o
almoço pronto para chegar
ao convento às sete horas. O
arranjo do tempo pode adquirir
um caráter lúdico: Thereza, professora aposentada, costuma ir
à missa das 12 horas e almoça
no convento para não cozinhar
naquele dia e para ajudar as
obras assistenciais do convento.
Depois, moradora da Zona
Norte da cidade, aproveita que
está no centro e vai até a Zona
Sul para “pegar um cineminha”.
Já Rita dá a seu arranjo um cunho
mais religioso: moradora da
Baixada Fluminense, solteira
e com a mãe já falecida,
ela aproveita as terças-feiras
para um circuito pelas igrejas
do centro da cidade: vai à
Catedral, às 11 horas, depois à
missa das 12 no Santo Antônio,
onde almoça e fica rezando
“para fazer hora” até às 15
horas e ir à igreja de N. S. do
Bom Parto “rezar um terço”, o
que às terças-feiras no convento,
por conta das bênçãos, é impossível. Da Igreja do Bom Parto,
vai para o Mosteiro de São
Bento, onde assiste à missa
mais curta das 17 horas e à
missa completa com todos os
monges às 18 horas.
13 Na pesquisa, embora muitas
vezes o início de uma devoção
justifique-se por um evento
espetacular, as graças de um
santo para com seu devoto
manifestam-se não apenas em
feitos monumentais, ou em
momentos solenes, mas no
cotidiano, nas “pequenas coisas”. Ele ajuda a achar coisas
perdidas, a atravessar a rua com
segurança, a não ficar doente,
a criar bem os filhos, a tirar nota
boa na prova. Portanto, a graça
aparece como uma espécie
de categoria classificatória
que os devotos utilizam para
explicar determinados eventos
de uma vida que, aos olhos
de um não-devoto, poderiam
parecer corriqueiros. Essas
graças são lidas pelos devotos
como sinais da presença do
santo em todos os momentos
de sua vida. Trata-se de um
processo classificatório que
só adquire sentido no contexto
da devoção aos santos, e que,
portanto, apenas devotos são
capazes de estabelecer.
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CONCLUSÃO: A BÊNÇÃO E O
CATOLICISMO POPULAR
As interações que se dão em torno da bênção provocam no convento uma circulação de
idéias, valores e de um “saber-fazer religioso”, transmitidos através de gestos e palavras.
Esse processo de circulação envolve fluxos
entre o clero e os leigos que freqüentam o
local, tanto – pensando em termos de hierarquia católica – no sentido “de cima para
baixo”, isto é, dos sacerdotes para os leigos,
como de “baixo para cima”, dos leigos para
os sacerdotes, o que nos leva a pensar em
um movimento de “circularidade cultural”
(Redfield, Bakhtin e Ginzburg). Mas, além
de movimentos verticais, os fluxos ainda se
dão ‘horizontalmente”, interleigos, através
do intercâmbio de informações sobre rezas,
santos poderosos, “boas” igrejas e celebrações para se comparecer, e de avaliações dos
padres melhores ou piores.
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A análise etnográfica desses movimentos de circulação serve tanto para mapear
os circuitos menos formalizados de transmissão do saber religioso (Hervieu-Léger,
1997), como para compreender algumas
das formas pelas quais uma instituição
milenar como a Igreja Católica consegue
permanecer, atualizar-se e tornar-se significativa em outros contextos. Há um universo
de transformações minúsculas, cotidianas
(Certeau, 1990), que vai sendo incorporado, muitas vezes via ritual, nos interstícios
de regulamentos litúrgicos, que permite
atualizações de estruturas, e que pode virtualmente chegar a alterar as formulações
doutrinárias dessa religião.
Por outro lado, o que discutimos até
agora permite-nos relativizar a definição
do culto aos santos como manifestação de
um “catolicismo popular”. Desde o final
dos anos 1970 o conceito de catolicismo
popular tem sido problematizado, tanto
quanto a seu alcance, como quanto a sua
ambigüidade, mas ainda não foi definitivamente descartado. Fernandes (1984), por
exemplo, demonstrou que na literatura dos
anos 1980 “popular” tinha ao menos três
sentidos diferentes. O termo significava
“a maioria da população”, por oposição
a minoria; algo “pertencente a extratos
inferiores da população”, por oposição a
práticas da elite; ou ainda “extra-oficial”,
no sentido de estar fora do controle ou da
regulamentação da autoridade instituída,
por oposição a uma religião “oficial”. E,
a meu ver, nenhum desses significados se
aplica à bênção de Santo Antônio. Apesar
de maciça, ela não é uma prática da maioria da população, nem algo extra-oficial,
nem ligada apenas a extratos inferiores da
população. Por isso, proponho que seja
deixada de lado a idéia de qualificá-la como
“catolicismo popular”.
Porém, mais importante que descartar
um conceito, é perceber que o fato de ele
ter se tornado inoperante nos permite identificar um reordenamento das margens do
catolicismo, no qual determinadas práticas
consideradas periféricas (“populares”) até
o início dos anos 1990 voltaram a ocupar
uma posição central nessa religião. Como
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explicar esse fenômeno? Algumas hipóteses
me ocorrem: primeiro, trata-se de mudanças
estimuladas pela ação papal, pois o papado
de João Paulo II deu imenso destaque à
questão da santidade. Por outro lado, poderia haver uma relação entre o aumento (ou
maior visibilidade) do culto aos santos e uma
espiritualidade difusa presente na sociedade
contemporânea, como já mencionado no
início deste artigo. No caso do Brasil, uma
reação ao crescimento evangélico pode estar
provocando a intensificação do culto aos
santos como forma de reforço da identidade
católica. Entretanto, para que essas hipóteses adquiram maior consistência, é preciso
retomá-las em futuros estudos de caso.
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