[go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
JACKSON, Robert. SORENSEN, Georg. Introdução às Relações Internacionais: teorias e abordagens. Trad. Bárbara Duarte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 2003. Aula 05: Capítulo 5 – Sociedade internacional Abordagem básica da sociedade internacional Segundo um importante defensor da abordagem, Martin Wight, ele define política internacional como um âmbito da experiência humana com suas características, problemas e linguagens distintas. Estudar RI significa “entrar nessa tradição”, “participar da conversa” e refletir sobre essa experiência no propósito de compreendê-la em termos acadêmicos adequados. O principal aspecto substantivo dessa abordagem é que as relações internacionais devem ser entendidas como uma “sociedade” de Estados que se reconhecem mutuamente e não apenas como um “sistema” de potências em competição e conflito. Distingue-se de outras sociedades por ter como membros principais, embora não exclusivos, Estados soberanos. Hedley Bull (1969, p. 20) resumiu essa abordagem “tradicional” da sociedade internacional da seguinte forma: se origina “da filosofia, da história e do direito” e “é caracterizada, acima de tudo, pela confiança explícita no exercício do julgamento”. Ao usar a expressão “exercício do julgamento”, Bull quis dizer que os acadêmicos de RI deveriam, de fato, entender que a política externa apresentava, em certos momentos, escolhas morais difíceis para os políticos: escolhas entre valores políticos conflitantes; escolhas que podem envolver o uso da força armada e, portanto, acarretar destruição física e sofrimento humano para as pessoas por elas envolvidas. Uma opção difícil de política externa, neste aspecto, seria a decisão entre a guerra ou a intervenção humanitária. A tradição da sociedade internacional é uma das abordagens de RI clássicas, mas busca evitar as escolhas entre 1) o egoísmo estatal e o conflito; 2) a benevolência humana e a cooperação, apresentadas no debate entre o realismo e o liberalismo. Por um lado, os acadêmicos recusam a visão singular e pessimista dos Estados como organizações políticas autossuficientes e orgulhosas que se relacionam e lidam uns com os outros somente por interesse próprio. Ou seja, com base em relações internacionais concebidas como um “sistema” estatal propenso à discórdia, ao conflito e – mais cedo ou mais tarde – à guerra. Por outro lado, rejeitam a abordagem otimista do liberalismo das relações internacionais como uma comunidade mundial em desenvolvimento movendo-se inevitavelmente na direção de um progresso humano sem paralelos e de uma paz perpétua, condição que seria cada vez mais indistinguível da paz e da prosperidade domésticas. A tradição da sociedade internacional é uma via intermediária no aprendizado clássico de RI; ela ocupa uma posição entre o realismo e o liberalismo clássicos e desenvolve uma leitura distinta e específica das relações internacionais. Considera as relações internacionais uma sociedade de Estados, na qual os principais atores são políticos especializados na prática do estadismo. Para essa tradição, a política é uma atividade humana muito importante que abrange a política externa, a política militar, a política comercial, a comunicação diplomática, a junção dos serviços secretos e a espionagem, a formação de alianças militares, a ameaça ou o uso da força armada, a negociação e a assinatura de tratados de paz, a participação em acordos comerciais e nas organizações internacionais, além do engajamento em inúmeros contatos, interações, transações e trocas. A discussão até aqui pode ser assim resumida: as relações internacionais consistem em políticas, decisões e atividades voltadas ao âmbito global e realizada por estadistas, que agem em nome de sistemas políticos independentes (sem a presença de nenhuma autoridade superior) de base territorial, considerados Estados soberanos. As “organizações internacionais”, “organizações não governamentais” e “corporações multinacionais”, por exemplo, são importantes instituições humanas também envolvidas nas relações internacionais, mas subordinadas aos Estados soberanos, isto é, não podem atuar de modo independente desses Estados, pois Estados soberanos controlam coletivamente todo o território do planeta. É por isso que os teóricos da sociedade internacional consideram os Estados soberanos a base da política mundial. Essa é a imagem básica da “sociedade de Estados”, com a qual os estudiosos da sociedade internacional operam. A política internacional é entendida como uma parte especial da política, em que não há uma autoridade hierárquica – não há um “governo” mundial acima dos Estados soberanos. Nesse ponto, acadêmicos da sociedade internacional concordam com os realistas clássicos. No entanto, ainda há interesses, regras, instituições e organizações comuns criados pelos Estados para ajudar a constituir a interação entre eles. A condição social internacional é resumida por Hedley Bull (1995) na expressão “sociedade anárquica”: há uma ordem social mundial composta por Estados independentes. Com isso, Bull distinguiu o sistema internacional de uma sociedade internacional. O avanço das relações internacionais em direção à constituição de uma sociedade, deixando de compor simplesmente um sistema, é uma indicação de que a política mundial caminha para a formação de uma civilização humana distinta com suas próprias normas e valores. Por exemplo, durante a Guerra Fria, a sociedade internacional entre os Estados Unidos e a União Soviética estava limitada a ser um sistema no qual a política externa de ambos se baseava nos próprios cálculos sobre as intenções e capacidades do rival, especificamente no que diz respeito a armas nucleares. Com o fim da Guerra Fria, contundo, a Rússia se aproximou do mundo centrado no Ocidente, com organizações internacionais como o G-8 (Grupo dos Oito – Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Rússia e Japão), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Berd), a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). No entanto, para isso, foi obrigada a aceitar os interesses mútuos e cumprir obrigações e valores comuns impostos por tais instituições, ou seja, precisou se tornar uma cidadã confiável da sociedade internacional ocidental. Mais recentemente, contudo, a Rússia tem prejudicado seu envolvimento com essas organizações internacionais ao interferir na soberania territorial da Ucrânia, por exemplo, anexando a Crimeia e fornecendo apoio militar aos separatistas da região leste daquele país. Outro importante conjunto de distinções diz respeito aos conceitos de realismo, racionalismo e revolucionismo (WIGHT, 1991). Pela sociedade internacional, essas são consideradas três formas diferentes de se analisarem as relações entre os Estados. O primeiro conceito considera os Estados agências de poder em busca de seus interesses, concebendo, dessa forma, as relações internacionais somente como instrumentais, este é o ponto de vista realista de Maquiavel. O segundo conceito entende os Estados como organizações legais, que operam de acordo com o direito internacional e com a prática diplomática. Compreende, portanto, as relações internacionais como atividades controladas pelo governo com base na autoridade dos Estados soberanos reconhecida mutuamente. Essa é a percepção racionalista de Grotius. O terceiro conceito subestima a importância dos Estados e destaca os seres humanos, que formam uma “comunidade mundial” ou uma comunidade de seres humanos” primordial e mais fundamental do que a sociedade de Estados. Essa é a visão revolucionista de Kant. Segundo Martin Wight (1991), as RI não podem ser avaliadas adequadamente por meio de um dos conceitos apresentados anteriormente, mas da união de todos eles. Se aplicada de maneira correta, a abordagem da sociedade internacional deveria explorar o diálogo entre essas três perspectivas teóricas diferentes. Realistas, racionalistas e revolucionistas representam posições normativas distintas, ou “vozes”, em um debate contínuo sobre a conduta da política externa e de outras atividades humanas no plano internacional. De acordo com as três vozes, as relações internacionais são basicamente uma atividade humana preocupada com valores fundamentais, sendo que dois deles recebem atenção especial de Hedley Bull (1995): a ordem internacional e a justiça internacional. Por “ordem internacional”, Bull se refere “ao padrão ou à disposição da atividade internacional que sustenta os objetivos básicos da sociedade de Estados”. Já por “justiça internacional’’, o autor se refere às regras morais que “conferem direitos e obrigações aos Estados e às nações”, como os direitos de autodeterminação, de não intervenção e da igualdade de tratamento de todos os países soberanos. Esses são dois valores básicos da tradição da sociedade internacional. John Vicent (1986) ressalta dois valores internacionais bastante associados à ordem e à justiça: a soberania estatal e os direitos humanos. Por um lado, espera-se que os Estados respeitem a independência uns dos outros; este é o valor da soberania estatal e da não intervenção. Por outro lado, as relações internacionais envolvem não só Estados, mas também seres humanos, com direitos, independentemente de suas nacionalidades. Em certos momentos, é possível haver um conflito entre o direito da não intervenção e os direitos humanos – nesta situação, quais desses valores devem ter prioridades? Se os direitos humanos são violados amplamente dentro de um Estado, o governo mantém seu direito de não intervenção? Em tais circunstâncias, há um direito de intervenção humanitária para garantir segurança às pessoas e proteger seus direitos humanos? Como os dois direitos devem ser equilibrados? Esse é um dos conflitos entre os valores básicos das relações internacionais, que se tornou proeminente após a Guerra Fria. A abordagem da sociedade internacional apresenta duas respostas principais a essas questões. A primeira resposta é a pluralista e acentua a importância da soberania estatal. Segundo essa visão, direitos e obrigações na sociedade internacional são conferidos aos Estados soberanos; os indivíduos só têm os direitos que recebem de seus próprios governos ou que são reconhecidos pela sociedade de Estados. Portanto, os princípios de respeito pela soberania e de não intervenção sempre são prioritários. A segunda resposta é solidarista e ressalta a importância dos indivíduos como membros definitivos da sociedade internacional. Os direitos humanos têm precedência sobre os direitos de Estados soberanos, pois os seres humanos já existiam muito antes da ideia de soberania dos Estados. Nesse aspecto, existe pelo menos um direito e, provavelmente, também um dever dos Estados de intervir para amenizar casos extremos de sofrimento humano dentro de um país. A análise da sociedade internacional encara a política mundial como um mundo totalmente humano, ou seja, está em sintonia com os aspectos normativos e com os dilemas de valores das relações internacionais, além de ser uma abordagem, principalmente, circunstancial ou histórica. Na política global, os seres humanos podem usufruir todo o potencial para melhorar suas vidas, incluindo o progresso e a paz enfatizados pelos liberais clássicos. A política mundial, no entanto, está exposta também a todas as desvantagens e limitações dos homens, consequentemente, a todas as possibilidades de risco, incerteza, perigo, conflito, etc. que isso acarreta, como a insegurança e a desordem apontadas pelos realistas clássicos. A abordagem da sociedade internacional se recusa a escolher entre o otimismo liberal e o pessimismo realista, e esta pode ser a sua principal força. Alguns teóricos contemporâneos da “escola inglesa” têm se afastado da abordagem tradicional de Martin Wight e Hedley Bull que enfatizavam o papel das ideias, normas e valores nas RI, e se aproximando da abordagem de ciências sociais exemplificada pela obra de Kenneth Waltz que enfatiza a estrutura internacional. Barry Buzan (2004) tenta desenvolver uma análise mais sofisticada da estrutura da sociedade internacional. “Estrutura” significa o arcabouço abrangente e os alicerces subjacentes das relações internacionais, a própria base da existência tanto de um sistema quanto de uma ordem internacional. Para Waltz, estrutura internacional era a base das relações de poder entre Estados soberanos. Para Buzan, a estrutura internacional é sustentada por uma série de “instituições básicas” da sociedade internacional. As principais são: soberania, territorialidade, diplomacia, grande poder de gerenciamento, igualdade entre pessoas, mercado, nacionalismo e conservação ambiental (BUZAN, 2004, p. 187). Está claro que uma análise completa dessas instituições e sua interação é uma tarefa desafiadora. A abordagem da sociedade internacional recusa-se a colocar toda a ênfase num único ângulo conceitual ou linha de argumento, como a escolha entre otimismo e progressismo liberais e pessimismo e conservadorismo realistas. A principal força da abordagem da sociedade internacional no estudo de RI é sua abrangência e indiscutivelmente sua sutileza, que resulta do fato de estar aberta e ser receptiva aos pontos fortes de outras abordagens, particularmente do realismo e do liberalismo. É ainda receptiva aos elementos básicos do direito internacional e aos grandes episódios e eventos da história mundial. Essa abertura a habilita a se aproximar das complexidades empíricas das relações internacionais e conseguir uma avaliação mais profunda das dificuldades e dilemas normativos dos assuntos de Estado, da política externa e das relações diplomáticas – mas também expõe os perigos da complexidade excessiva e talvez até o risco da incoerência em seus argumentos e análises. 6