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E duardo M EinbErg dE a lbuquErquE (Organização) M aranhão Fº CCJ/UFPB, 20 a 24 de maio de 2019 João Pessoa, Paraíba, Brasil Os capítulos que compõem os Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR foram revisados e em alguns casos adequados em relação às normas de formatação dos textos, exigidas pelo Simpósio. O conteúdo, incluindo opiniões e eventuais erros ortográficos, é de inteira responsabilidade dos/as/es autores/as. Foram acolhidos aqui textos completos de comunicações orais em Grupos de Trabalho (GTs). Como se referir a essa obra: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020. Projeto gráfico, diagramação e capa: Rita Motta e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº Arte do evento: Oxum, de Rodrigo Lemos Soares Comissão Editorial deste volume: Mirinalda Alves Rodrigues dos Santos e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº S612a Simpósio Nordeste da ABHR (3. : 2019 : João Pessoa, PB) Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR [recurso eletrônico on-line] : Religião, direitos humanos e laicidade : resistências, diversidades e sensibilidades / Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (organização). – João Pessoa : ABHR ; Fogo Editorial, 2020. 732 p. : il. , color. Formato: PDF Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: www.fogoeditorial.com.br Inclui referências ISBN: 978-85-89749-42-8 (e-book) 1. Religião – Congressos. 2. Direitos humanos. 3. Sensibilidades. 4. Laicidade. 5. Diversidades. 6. Resistências. I. Maranhão Filho, Eduardo Meinberg de Albuquerque. II. Associação Brasileira de História das Religiões. III. Título. CDU: 291 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. É proibida a reprodução parcial ou integral desta obra, por quaisquer meios de difusão, inclusive pela internet sem prévia autorização da Fogo Editorial. FOGO EDITORIAL fogoeditorial.com.br fogoeditorial@gmail.com Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) www.abhr.org.br D i r e t o r i a e x e c u t i va (G e s tã o 2 0 1 7 - i n í c i o D e 2 0 1 9 ) Presidência Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº, UFPB Secretaria Geral Leila Marrach Basto de Albuquerque, UNESP Secretaria de Divulgação Bruna Marques Cabral, UFRRJ Tesouraria Márcia Maria Enéas da Costa, UFPB C O O R D E N A ç ã O D O 3 º S I m P ó S I O DA A B H R N O R D E S T E Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº, UFPB APOIO DO EvENTO Fogo Editorial Grupo Raízes (UFPB) Grupo Videlicet (UFPB) Centro de Ciências Jurídicas (CCJ/UFPB) PLURA - Revista de Estudos de Religião da ABHR Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGDH/UFPB) Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões (PPGCR/UFPB) INSTITUIçãO SEDIADORA DO SImPóSIO Universidade Federal da Paraíba – UFPB Fogo Editorial www.fogoeditorial.com.br Coord En ação: Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº Co Missão C i En T í Fi C A i n T Ern AC i o n AL dA F o g o E d i To r i A L alejandra oberti – Universidad de Buenos Aires, Argentina Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), Argentina Cecilia delgado-Molina – Universidad nacional Autónoma de México, México Margarita Zires – Universidad nacional Autónoma de México, México Claudia Touris – Universidad de Buenos Aires, Argentina Marie Hélène / Sam Bourcier – École des Hautes Études en sciences sociales, França Cristina Pompa – Universidade Federal de são Paulo, Brasil / Universidade de Udine, itália Mari-Sol García Somoza – Universidad de Buenos Aires, Argentina; Canthel/Université Paris descartes, França dario Paulo Barrera rivera – Universidade Metodista de são Paulo, Brasil / Ecole d’Hautes Etudes en sciences sociales, França néstor da Costa – Universidad Católica del Uruguay, Uruguai david Thurfjell – södertörn University, suécia oscar Calávia Sáez – Universidade Federal de santa Catarina, Brasil / Universidad Complutense de Madrid, Espanha donizetti Tuga rodrigues – Universidade da Beira interior, Portugal Einar Thomassen – European Association for the study of religions (EAsr), University of Bergen, noruega Pablo Pozzi – Universidad de Buenos Aires, Argentina Pablo Semán – Universidad nacional de san Martin, Argentina Elias Bongmba – African Association for the study of religions (AAsr), rice University, EUA Paulo Mendes Pinto – Universidade Lusófona, Portugal Francisco díez de Velasco – Universidad de La Laguna, Espanha Patricia Fogelman – Universidad de Buenos Aires, Argentina Gabriela Scartascini – Universidad de guadalajara, México rita Laura Segato – Universidade de Brasília, Brasil / Universidad nacional de san Martin, Argentina Giuseppe Tosi – Universidade Federal da Paraíba, Brasil / Università degli studi di Firenze, itália Giovanni Casadio – European Association for the study of religions (EAsr), Università degli studi di salerno, itália João Eduardo Pinto Basto Lupi – Universidade Federal de santa Catarina, Brasil / Universidade Católica de Portugal / Boston College (EUA) Javier romero ocampo – Universidad de Chile, Brasil Juan Esquivel – Associación de Cientistas sociales del Mercosul (AC srM); Consejo nacional de Stefania Capone – Ecole d’Hautes Etudes en sciences sociales, França Steven Joseph Engler – Mount royal University, Canadá Stewart Hoover – University of Colorado, Estados Unidos Tim Jensen – international Association for the History of the religions (iAHr); University of southern denmark, dinamarca Veronique Claire Gauthier de Lecaros de Cossio – Pontificia Universidad Católica del Peru, Peru Fogo Editorial www.fogoeditorial.com.br Coord En ação: Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº Co Missão C i En T í Fi C A n AC i o n AL dA Fo g o E d i To r i A L alexandre Brasil Fonseca, UFrJ Marcelo Camurça, UFJF ari Pedro oro, UFrgs Melvina afra Mendes de araujo, UniFEsP artur Cesar Isaia, UniLasalle Mundicarmo Maria rocha Ferretti, UFMA Cecilia Loreto Mariz, UErJ Paula Montero, UsP Christina Vital da Cunha, UFF raymundo Heraldo Maués, UFPA durval Muniz de albuquerque Junior, UFrn regina novaes, UFrJ Eduardo Meinberg de albuquerque Maranhão Fº, UFPB ricardo Mariano, UsP Emerson Giumbelli, UFrgs Gizele Zanotto, UPF Joana Maria Pedro, UFsC ricardo Mário Gonçalves, UsP Sandra duarte de Souza, UMEsP Solange ramos de andrade, UEM Sônia Weidner Maluf, UFsC Joanildo albuquerque Burity, Fundação Joaquim nabuco Tânia Mara Campos de almeida, UnB Leila Marrach Basto de albuquerque, UnEsP Zwinglio Mota dias, UFJF Magali do nascimento Cunha, MirE/inTErCoM SUmáRIO Boas-vindas à ABHR Nordeste 2019 10 Carta da ABHR em repúdio à intolerância religiosa e demais intolerâncias 15 Carta da ABHR sobre o resultado do primeiro turno da eleição presidencial de 2018 e de estímulo à resistência política 18 Carta da ABHR pela Laicidade do Estado 19 Coordenação do Simpósio 21 A descolonização jurídica e a cosmovisão dos povos originários no ordenamento jurídico da Nova Zelândia 23 Amanda Yvnne Figueiredo da Cruz A diversidade religiosa dentro de um contexto grupal psicológico formado por pessoas de diversas religiões 35 Marineide Felix de Queiroz Brito A endemia iconoclasta na religião do Ocidente: um paradoxo do imaginário segundo Gilbert Durand 47 A influência da meditação na saúde 58 José Herculano Filho Carlos André Macêdo Cavalcanti Ana Márcia Pereira Lima Albernaz a literatura encantada dia de reis xukuru do ororubá 67 A memória simbólica e a mística do Toré dos povos indígenas tabajara da Paraíba 78 A Revista Trimensal e a construção da identidade adventista no Brasil 92 Natally Araújo da Silva Galindo Márcia Medeiros Figueiredo Lusival Antonio Barcellos Daniel da Silva Firino Carlos André Macedo Cavalcanti A tradição do Yoga na Nova Era do Brasil 108 Concília Cléria Ferreira Muniz A trajetória de dom José maria Pires na arquidiocese da Paraíba 123 Jaqueline Leandro Ferreira Comblin para tempos de resistência: o centro de Formação João Batista Barbosa da Silva 137 Da percepção extrassensorial ao tarô como recurso terapêutico: um olhar fenomenológico 149 Fernanda Pinheiro Cavalcanti Dançar com afeto: vivência de biodança com mulheres dependentes químicas – é possível afetar e deixar ser afetada? 166 Carmen Lúcia dos Santos Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão F° Diálogo inter-religioso e dignidade humana: contribuições do pontificado de Francisco – 2013 a 2017 182 Dinâmica das corporeidades masculinas em transe na Casa de Umbanda São Jorge Guerreiro em Baturité/CE 192 Maria Graciane Clemente de Melo Leonardo da Silva Leal Maria Jardele da Silva Queiroz Do Beltane pagão ao São João cristão: a festa do fogo e suas resignificações no Nordeste brasileiro 202 Thaís Chianca Bessa Ribeiro do Valle Do chicote aos terreiros: memórias de escravidão e liberdade das Pretas-velhas nos pontos cantados da umbanda 217 Do Samhain ao mabon: um estudo das celebrações sazonais da Wicca no espaço urbano 230 Beatriz Alves dos Santos Lourival Andrade Júnior Klaus Eduardo da Rocha Furtado Tomaz Kallyne Fabiane Pequeno de Araújo Dos vedas aos Upanishads 244 Rosivânia Rodrigues Jordão Educação intercultural como instrumento de combate à intolerância religiosa 256 Juscelio Mauro de Mendonça Pantoja Manoel Vitor Barbosa Neto Educação Popular e Interculturalidade: desafios e possibilidades nas intersecções da prática educativa 283 Adriel Rodrigues do Nascimento Elisangela Maria da Silva Ensaio sobre a prática docente em Ensino Religioso no Rio Grande do Norte: entre a teoria e a prática 299 Diego Fontes de Souza Tavares Erotismo e conversão religiosa no livro apócrifo José e Asenath 314 Kefren Kelsen Dantas Pereira Leyla Thays Brito da Silva Exorcização do mal: Ritual de cura e libertação no cenário neopentecostalda Igreja Internacional da Graça de Deus Antônio Santos 328 Feng Shui: uma visão holística para a cura de distúrbios psíquicos e promoção da paz interior 345 Maria Fernanda Morais Tavares Hungbê, educação e saberes no cotidiano do ilê axé omilodé 357 identidades ateístas no encontro da nova consciência 371 indicadores de saúde e espiritualidade em pessoas vivendo com Hiv 387 Laicidade parlamentar? Uma discussão sobre a atual política brasileira 401 Dulce Edite Soares Loss Genaro Camboim L. A. Lula Susana Silva Barros Rafaela Duarte Moreira Daniel Ferreira da Silva Jéssica Emanuelly Santos Barboza da Silva Lendas e superstições: contos de assombrações e catolicismo popular na obra de ademar vidal 407 maria de magdala, de prostituta a deusa: marcas ancestrais da mulher que sangram na contemporaneidade 421 Fabiano Cesar de Mendonça Vidal Maria Nilza Barbosa Rosa Izabel França de Lima Maria Aparecida Porte Ferreira messianismo nos sertões da província do Rio Grande do Norte (1898-1899) 434 Vikelane Maria de Oliveira Silva mito e rito: a espiritualidade indígena Potiguara da Paraíba 444 Carla Jaciara Jaruzo dos Santos O afro-indo-brasileiro e a esfera pública: velhas e novas formas de presença 455 Roberta Campos Raoni Silva O budismo em Siddhartha, de Hermann Hesse 473 O neopaganismo contemporâneo por meio da análise de eventos paralelos do encontro da Nova Consciência em Campina Grande – PB 503 João Florindo Batista Segundo Carlos André Macêdo Cavalcanti Silvia Letice Nascimento de Araújo Genaro Camboim Lula O papel da Igreja Católica na construção de um discurso patrimonialista no Brasil: a primeira década do SPHAN 524 Bruna Valença Mallorga O vaticano Alternativo: o espaço sagrado nos discursos da Igreja Católica Palmariana (1978-2005) 540 Pedro Luiz Câmara Dantas Para além dos processos: a imprensa portuguesa e os livros do episcopado como fontes para os estudos inquisitoriais (1543 – 1589) 555 Maria Eduarda de Medeiros Brandão Carlos André Macedo Cavalcanti Persistência da religiosidade popular através das cerimônias de coroação de Maria 573 Práticas, falas e experiências wiccanianas: a espiritualidade da Deusa frente aos desafios contemporâneos 582 Anamélia Soares Nóbrega Isabel Cristine Machado de Carvalho Ana Laudelina Ferreira Gomes Problematizando a utilização de drogas lícitas e ilícitas: práticas educativas e experiências vivenciadas numa organização da sociedade civil do agreste pernambucano 600 Elisângela Maria dos Santos Silva Adriel Rodrigues do Nascimento Raimundo Nonato de Queiroz: a Teologia da Enxada e seus desdobramentos na cidade de Tacaimbó-PE entre 1969 e 1984 618 Adauto Guedes Neto Reflexões sobre a indumentária no culto da Jurema na Paraíba 635 Larissa Lira Religiosidade popular e festa, do campo à cidade: contribuições antropológicas para a valorização de uma identidade cultural do município de Itatuba – Paraíba/Brasil 652 Givanilton de Araújo Barbosa Sexualidades não normativas em conflito com a fé adventista – disputas e permanências na identidade adventista LGBT: um estudo de caso 664 Rafael Rodrigues Leite Christina Gladys de Mingareli Nogueira Sob as bênçãos do rosário 681 Eliane Cruz de Lima Tabu numinoso: reflexões acerca do uso curativo da Cannabis Clordana H. Lima de Aquino Oliveira 700 Uma voz que ecoou profetismo em Limoeiro-PE: reflexões sobre o catoliscismo a partir de um recorte da história de vida de Padre Luis cecchin 709 tradições e lembranças da comunidade sefardita de João Pessoa – PB 727 Marcos Lucena da Fonseca Sergio Sezino Douets Vasconcelo Renata Baltar Barros Diógenes Faustino do Nascimento Boas-vindas à aBHR noRdeste 2019 A Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) acolhe você com suas melhores boas-vindas ao 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. A Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) foi criada em 25 de junho de 1999, na Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Assis, durante Assembleia Geral daquele que é considerado seu primeiro evento nacional, o 1º Simpósio sobre História das Religiões, organizado por professoras/es da linha de pesquisa “Religiões e Visões de Mundo”, do Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras desta universidade. A ABHR é filiada, desde 2000, à International Association for History of Religions (IAHR), e se coloca aberta à criação e manutenção de diálogos, vínculos e parcerias, em regime de colaboração mútua, com outras entidades, organizações, instituições e núcleos de estudos acadêmicos de religiões e religiosidades, em níveis regional, nacional e internacional. Trata-se de uma entidade sem fins lucrativos, não confessional/ devocional/religiosa e apartidária, completamente independente de grupos políticos ou religiosos, e que tem como objetivos: • estimular a pesquisa, o ensino e a extensão universitária no campo das religiões e religiosidades e em todos os níveis acadêmicos; • promover e democratizar o intercâmbio de conhecimentos acadêmicos sobre religiões e religiosidades através de encontros científicos em níveis regional, nacional e internacional; • incentivar publicações acadêmica e socialmente relevantes de suas/seus associadas/os, nas modalidades individual e coletiva; • contribuir para o alargamento e consolidação dos estudos que têm as religiosidades e religiões como mote nas diversas regiões do Brasil. A ABHR promove intercâmbios entre pesquisadoras/es de quaisquer áreas, e não somente entre historiadoras/es, e por esta razão é conhecida como uma associação de estudos de religiões e religiosidades: grande parte de nossas/os associadas/os são provenientes da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), Antropologia, Sociologia, Ciência Política, Direito, Teologia, Letras, Psicologia e outros campos, além da própria História. 11 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e É composta por uma Diretoria Geral, à qual pertencem a Diretoria Executiva e por Coordenações Regionais. Além da Diretoria Geral, a Associação é constituída por Conselho Fiscal, Conselho Científico, Comissão Editorial, Comissão de Redação da PLURA – Revista de Estudos de Religião, Pessoas Associadas, e a Assembleia Geral. É também uma entidade que repudia qualquer tipo de discriminação e intolerância, religiosas ou não, e se manifesta contrária a qualquer demonstração de violação dos direitos constitucionais brasileiros, se amparando no Artigo 5º do 1º Capítulo (Título 2 – Dos Direitos e Garantias Fundamentais) da Constituição da República Federativa do Brasil, que rege: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA BRASILEIRA, 1988. Artigo 5º.)”. A ABHR destaca seu posicionamento favorável não somente aos direitos constitucionais, mas aos Direitos Humanos em sua forma mais ampla. Aliás, a ABHR é uma associação dos Direitos Humanos e das Diversidades - de todas as diversidades: sexuais, de gênero, étnicoraciais, regionais, etc. Como entidade que busca promover, da maneira mais democrática possível, o alargamento e aprofundamento de intercâmbios entre pessoas que pesquisam as religiosidades e religiões, a ABHR tem investido em seu processo de midiatização via internet, em seu processo de regionalização através das Coordenações e Simpósios Regionais (realizados desde 2013) e em seu processo de internacionalização, especialmente desde seu primeiro Simpósio Internacional, ocorrido em 2013 na Universidade de São Paulo (USP), com o tema Diversidades e (In)Tolerâncias Religiosas. Nosso segundo Simpósio Internacional foi realizado em 2016 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o mote História, Gênero e Religião: violências e Direitos Humanos e o terceiro, na mesma Universidade e em 2018, Política, Religião e 12 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Diversidades: Educação e Espaço Público. Em termos numéricos estes foram provavelmente os maiores simpósios da área de estudos de religiões e religiosidades na América Latina (o segundo Internacional teve entre 1.500 e 1.700 pessoas presentes, por exemplo). A ABHR anseia, ardentemente, por um Simpósio Internacional que se realize no Nordeste ou no Norte brasileiros e conclama as pessoas associadas e interessadas a investir nessa ideia (para tal, conversar com quem assina essa nota). Como notado, desde 2013 o movimento de internacionalização da ABHR tem sido potente. Concomitantemente, nossa regionalização também tem avançado com consistência. A ABHR realizou na região Nordeste dois Simpósios Regionais, o primeiro na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), entre 28 a 31 de maio de 2013, sob a Organização Geral de João Marcos Leitão Santos (UFCG), e intitulado Religião, a Herança das Crenças e as Diversidades de Crer; e o segundo na Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), de 15 a 17 de setembro de 2015, coordenado por Karla Patriota Bronzstein (UFPE) e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho (UFSC), com o tema Gênero e Religião: Diversidades e (In)Tolerâncias nas mídias. O 3º Simpósio Nordeste da ABHR, acontecerá na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) entre 20 e 24 de maio de 2019 e manterá o mote da Associação: Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. Durante o evento realizaremos diversas atividades relacionadas ao estímulo a uma educação respeitosa às diversidades e aos Direitos Humanos, como o Fazendo Arte da ABHR Nordeste, conjunto de atividades artísticas que ocorre desde 2013 e que este ano novamente agregará o Cine ABHR (cuja primeira edição foi em 2016); o primeiro Prêmio ABHR Nordeste de Teses, Dissertações e TCCs (Prêmio Mundicarmo Ferretti); o Prêmio ABHR Nordeste de Fotos (Prêmio Mãe Stella de Oxóssi); o Prêmio ABHR Nordeste de Pôsteres (Prêmio Beliza Áurea); homenagens; o Fórum Social da ABHR Nordeste (realizado desde 2015); a Assembleia Geral Extraordinária da ABHR (que refletirá questões (inter)nacionais e regionais)1; a Feira ABHR Nordeste de Publicações; Feira de Troca e/ou 1 Maiores informações disponíveis em: http://www.abhr.org.br/abhr-nordeste-2019/assembleiageralextraordinariadaabhr. Para conhecer o atual Estatuto da ABHR (2011), que 13 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Doações de Livros e Roupas; varal de Ideias da ABHR; além de diversas outras atividades aprovadas após chamada pública, democrática e aberta: Mesas Redondas, Grupos de Trabalho (GTs), Minicursos e Oficinas. A ABHR Nordeste 2019 é um Simpósio gratuito a pessoas que a auxiliam como monitoras e a ouvintes. A ABHR Nordeste 2019 (apelido de nosso próximo regional) apresenta e aprofunda temas associados às (in)tolerâncias e violências a diversas pessoas, com distintas crenças e descrenças. As reflexões também incidem sobre preconceitos em razão de marcadores sociais como identidades de gênero e orientações sexuais, conexões da religião com a política, deslocamentos identitários e teorias e metodologias dos estudos de religiões e religiosidades. A Direção Nacional da ABHR e a Comissão Organizadora da ABHR Nordeste 2019 gostariam de reforçar suas melhores boas-vindas a vocês e desejar que o compartilhamento de experiências durante o evento vise, antes de tudo, um mundo mais acolhedor, democrático, humano e diverso a todas as pessoas. Vamos fazer um bom evento em conjunto. E fica o convite: organizemo-nos para o quarto Simpósio Nordeste da ABHR! Candidaturas são bemvindas durante nossa Assembleia Geral Extraordinária, a se realizar na noite do dia 23 de maio de 2019. Por fim, vale realçar que a ABHR lançou em 28 de outubro de 2018, dia em que foi divulgado o resultado do pleito presidencial que elegeu Jair Messsias Bolsonaro, a Campanha Nacional pela Laicidade do Estado e a Carta da ABHR pela Laicidade do Estado.2 É necessário que unamos esforços em prol de um Estado laico, democrático, plural e inclusivo. Eduardo meinberg de Albuquerque maranhão Fo, Presidência da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) Gestões 2015-2017 e 2017- início de 2019 [ Volta ao Sumário ] refere-se sobre Assembleia Geral Extraordinária e outros assuntos: http://www.abhr.org. br/wp-content/uploads/2012/02/estatuto-abhr.doc. 2 Disponível em: http://www.abhr.org.br/campanha-nacional-pela-laicidade-do-estado. 14 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e CARTA DA ABHR Em REPúDIO à INTOLERâNCIA RELIGIOSA E DEmAIS INTOLERâNCIAS 25 de julho de 2015 Neste 25 de junho de 2015, data em que a Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR), entidade acadêmica não-confessional e apartidária, completa 16 anos de atuação que deveriam ser festejados com alegria, nossos sentimentos se encontram na iminência do luto. Este intenso pesar se deve à crescente onda de intolerância, reacionarismo e fundamentalismo que vem assolando o Brasil e aviltando a concepção de sociedade plural, relacionada a múltiplos episódios de violência simbólica e física a pessoas de diferentes expressões religiosas, especialmente de religiões de matriz afro-brasileira e do espiritismo kardecista, e também a pessoas sem-religião, ateias e agnósticas. Devemos recordar que a liberdade de crença é um direito fundamental assegurado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e por nossa Constituição: “Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948). “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...] é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL,1988). 15 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Além de manifestações de intolerância religiosa, desdobram-se uma multiplicidade de violações igualmente execráveis aos Direitos Humanos e constitucionais, por conta de marcadores sociais distintos, como sexismo, misoginia, machismo, androcentrismo, capacitismo, racismo, colorismo, etnocentrismo, elitismo, lesbofobia, transfobia, homofobia, bifobia, etarismo, xenofobia, discriminação socioeconômica e de procedência regional, dentre uma miríade de outras, muitas vezes amalgamadas. A intolerância pode ser interseccional: o fundamentalismo religioso entrecruza com o de gênero, o étnico, o de orientação afetiva, dentre outras equações. Assim, nos solidarizamos com todas e todos que vêm sofrendo discriminações devido às suas escolhas religiosas ou a-religiosas, orientações afetivas e/ou sexuais, identidades de gênero, raças, cores, aparências, origens, limitações e necessidades especiais, ou por outros motivos. No mesmo contexto, preocupa-nos o fomento, no Congresso Nacional e em um contexto de laicidade, de pautas supostamente fundamentadas em pressupostos religiosos e que pretendem barrar avanços de minorias políticas, deslegitimando a diversidade do tecido social. O Brasil é um país caracterizado pela multiplicidade de formas de existir: todas/os cidadãs e cidadãos devem ter os mesmos direitos e deveres, independentemente de suas religiões e de outros marcadores identitários. A ABHR tem promovido discussões sobre política, religião e violações dos Direitos Humanos. Em 2013, na USP, realizamos um Simpósio Internacional / Regional que teve como tema as Diversidades e (In)Tolerâncias Religiosas. Neste ano, temos prevista a realização de 5 Simpósios Regionais que tem Gênero e Religião como tema gerador, relacionado às pluralidades e discriminações. O primeiro será realizado na UFPE em setembro. Simultaneamente, ofereceremos atividades direcionadas aos públicos infantil e adolescente. Sabemos que isto não é suficiente e que são necessárias atitudes mais propositivas. Convidamos todas e todos para que participem das discussões destes e de outros fóruns, e que pensemos juntas/os em formas proativas de atuação contra todas aformas de intolerâncias. Acreditemos na Educação: se uma pessoa aprende a odiar e ser intolerante, também pode aprender a respeitar. 16 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A ABHR demonstra seu apoio e solidariedade a quem sofre intolerância religiosa ou por conta de outros marcadores sociais, de modo interseccional ou não. A ABHR apresenta seu veemente repúdio em relação a qualquer forma de intolerância, fundamentalismo e discriminação. Entendemos que tais práticas violam direitos constitucionais e legítimos de cidadania e atentam contra os Direitos Humanos em sua forma mais ampla. Sentimo-nos próximos ao luto, mas, ainda não enlutados, lutemos – sempre pacificamente, através de ideias e atitudes proficientes. A ABHR assume aqui seu papel de colaboradora nas reflexões e na preservação da democracia, cidadania, sociedade plural e diversidade humana, que se encontram em risco de falência. Eduardo meinberg de Albuquerque maranhão Fo Presidência da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) [ Volta ao Sumário ] 17 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e CARTA DA ABHR SOBRE O RESULTADO DO PRImEIRO TURNO DA ELEIçãO PresiDenciaL De 2018 e De estíMuLo à resistência PoLítica 7 de outubro de 2018 Apesar de você, amanhã há de ser outro dia Respeitando o resultado do primeiro turno da eleição presidencial realizada neste domingo, 7 de outubro de 2018, a Associação Brasileira de História das Religiões(ABHR) expressa nesta carta seu posicionamento em relação ao mesmo, em que Jair Bolsonaro (PSL) aparece como uma das duas opções para o segundo turno. Como feito em ocasiões anteriores (Nota de repúdio da ABHR à apologia à tortura em declaração de Jair Bolsonaro, de 18 de abril de 2016; e A ABHR se posiciona: #elenão, de 24 de setembro de 2018), a ABHR expressa seu repúdio a Jair Bolsonaro por entender que as concepções ideológicas do mesmo representam um retrocesso nos caminhos democráticos do Brasil, especialmente por conta de sua comprovada falta de conhecimento acerca de como solucionar os problemas sócio-econômicos do país e de seus posicionamentos contrários aos direitos de mulheres, pessoas pobres, negras, indígenas, ribeirinhas, quilombolas, não-cisgêneras e não-heterossexuais, dentre outras. A ABHR estimula e conclama não somente a sociedade acadêmica como a sociedade em geral à resistência política, e que, em oposição ao modus operandi de propagação do ódio propagado por Jair Bolsonaro, que esta resistência se realize pacificamente no campo das ideias e argumentos, com respeito, sabedoria, alegria, arte e amor. Com a certeza de que as ideias reacionárias representadas por Jair Bolsonaro passarão e nós, passarinho, resistamos e re-existamos. Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) 18 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e CARTA DA ABHR PELA LAICIDADE DO ESTADO 28 de outubro de 2018 A Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) respeita o resultado das eleições presidenciais ocorridas em 28 de outubro de 2018 e que elegeram Jair Messias Bolsonaro (Partido Social Liberal – PSL) como o próximo Presidente da República, e deseja ao mesmo um governo verdadeiramente democrático, laico, plural e inclusivo. No entanto, externamos profunda preocupação com alguns dos primeiros pronunciamentos do Presidente eleito, que sinaliza o rompimento do princípio da laicidade do Estado. O Presidente eleito iniciou seu pronunciamento com a passagem bíblica de João 8:32 (“conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”) e apresenta-se como missionário de Deus. Minutos antes, em cerimônia pública, convidou o Senador evangélico Magno Malta (Partido da República – PR) a pronunciar-se. Além de ungir Bolsonaro, este fez notar que o mesmo foi posto no mando da nação por Deus. O slogan da campanha presidencial também causa preocupação: “Deus acima de todos”. Em uma sociedade verdadeiramente inclusiva, democrática, plural e laica, o respeito à diversidade de crenças (e também de descrenças, ao ateísmo e ao agnosticismo) deve ser devidamente assegurado. É urgente que a laicidade do Estado, prevista pela nossa Constituição Federal, seja devidamente assegurada. Por uma sociedade realmente livre, democrática, progressista e acolhedora a todas as diferenças e diversidades, reivindicamos o respeito à devida separação entre Igreja e Estado. Através desta carta informamos o lançamento da Campanha Nacional pela Laicidade do Estado, pedindo que as entidades interessadas em assinar a carta – que pede que a Laicidade do Estado seja devidamente 19 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e garantida – acessem nosso sítio www.abhr.org.br. Por fim, para além da aparente dissolução de um Estado laico que garanta o devido respeito à liberdade de crenças, ainda nos preocupa as declarações de Jair Bolsonaro antes de ser eleito acerca de temas como procedência regional, sexualidade, raça/etnia e gênero. Faz-se necessário observar que o Presidente eleito governe para todas as pessoas de forma totalmente justa, equânime e igualitária. Mantendo-se aberta aos diálogos necessários, cordialmente, Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) [ Volta ao Sumário ] 20 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e CooRdenação do simpósio Eduardo meinberg de Albuquerque maranhão Fo Presidência da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) - Gestões 2015-2017 e 2017início de 2019 Docente-visitante do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (PPGDH/UFPB) e do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (CCJ/UFPB); Pós-Doutorado em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Pós-Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Pós-Doutorado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) Mestrado em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Coordenação da Fogo Editorial Site: www.fogoeditorial.com.br Instagram: @amarfogo E-mail: edumeinberg@gmail.com Acesse o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7589132071776933 a desColonização juRídiCa e a Cosmovisão dos povos oRigináRios no oRdenamento juRídiCo da nova zelândia Amanda Yvnne Figueiredo da Cruz Como referenciar este capítulo: CRUZ, Amanda Yvnne Figueiredo da. A descolonização jurídica e a cosmovisão dos povos originários no ordenamento jurídico da Nova Zelândia. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020. p. 23-34. Amanda Yvnne Figueiredo da Cruz1 Introdução A crise ambiental que assola o nosso planeta vem gerando uma reflexão acerca dos valores difundidos nas sociedades ocidentais, valores notadamente eurocêntricos. Um desses valores diz respeito ao tratamento dado à natureza pelos ordenamentos jurídicos dos Estados. Nessa esteira, a natureza é tratada como propriedade privada, um objeto passível de exploração e transformação através do trabalho do homem. A crise deste paradigma vem ocasionando a emergência de epistemologias antes marginalizadas, como as dos povos originários, coletividades que reconhecidamente mantém um vínculo peculiar com a natureza, acarretando, na Nova Zelândia, na incorporação de valores do Povo Maori acerca da natureza no ordenamento jurídico desse país. Após uma disputa judicial iniciada em 1975, relativa a discrepâncias textuais em um tratado assinado em 1848 entre a Coroa Britânica e os Chefes Maoris sobre a posse e o uso do Rio Whanganui, foi considerado procedente o pedido de restituição deste rio ao Povo Maori, bem como a restituição de porções de seu território tradicional – que haviam sido suprimidos pela colonização britânica no país. Em decorrência dessa decisão foi promulgada a Lei Te Awa Tupua em 2017, que conferiu personalidade jurídica ao sistema fluvial do Rio Whanganui, reconhecendo a necessidade de sua proteção por seu valor intrínseco, concedendo proteção legal aos valores espirituais do Povo Maori, positivando, inclusive, aspectos metafísicos do seu relacionamento com a natureza. Para bem elucidar esse fenômeno denominado de descolonização jurídica e seu possível impacto no sistema de proteção ambiental e na emancipação dos povos originários, esse artigo será dividido em três partes, a primeira tratando sobre os efeitos da dominação político-ideológica nos ordenamentos jurídicos dos países colonizados, notadamente 1 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (2017). 24 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e acerca da natureza; a segunda tratando da incorporação dos valores do Povo Maori sobre a natureza no ordenamento jurídico da Nova Zelândia e a terceira, finalmente, analisando o impacto destes fatos no mundo jurídico do direito ambiental e nas lutas dos povos originários por sua emancipação. 1. A colonização e o domínio político-ideológico Balandier (apud Moonen, 1983, p. 121), para introduzir o conceito de situação colonial, define três aspectos deste domínio. O primeiro refere-se ao domínio material, o segundo ao domínio político e administrativo e o terceiro ao domínio ideológico. Para fins deste artigo, trataremos apenas dos dois últimos. Temos assim, respectivamente, a substituição das autoridades locais por autoridades coloniais, dos sistemas de justiça comunitária e das regras que regem a vida em sociedade, e no plano ideológico a desvalorização das epistemologias tradicionais dos povos colonizados, a proibição do uso de línguas tradicionais e a introdução dos valores do colonizador como o único sistema de valores válidos, verdadeiros. Concordamos com Boaventura Souza Santos (2010) ao afirmar que séculos de conhecimentos tradicionais acumulados foram perdidos com a colonização europeia, fenômeno que o autor denomina de epistemicídio. Deste domínio político-ideológico resultou a imposição de normas elaboradas pelos colonizadores que não só desprezaram os valores já possuídos pelos povos originários como promoveram uma supressão da identidade étnica e o controle populacional destas coletividades, resultando, respectivamente, na impossibilidade de viver de acordo com sua cosmovisão e a obrigação de assumir a nacionalidade e a cultura do colonizador, e a estratificação social à qual muitos desses povos ainda hoje se encontram submetidos. Entretanto, não obstante a situação colonial, diversas culturas originárias conseguiram preservar suas tradições e suas epistemologias e as ideologias que uma vez justificaram a posição dominante do grupo colonizador (Balandier, 1991), tais como a superioridade do europeu em 25 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e face das sociedades pejorativamente chamadas de “selvagens, nativas”, vêm caindo por terra em virtude, entre outros fatores, da crise dos valores difundidos na modernidade, permitindo a emergência de novas concepções e novos sistemas de conhecimentos (Santos, 2010) que por séculos foram desprezados e marginalizados. Tendo-se em mente a dominação político-ideológica, levemo-la para o campo dos direitos da natureza. As ideologias eurocêntricas sobre a natureza a tratam como um objeto passível de domínio e exploração pelo homem, onde toda criação natural foi feita para a utilidade daquele (Las casas apud Souza Filho, 2018, p. 6). Filho (2018) aponta, inclusive, que os povos originários foram tratados como selvagens e primitivos por sua estreita aproximação com a natureza. As civilizações europeias modernas se relacionavam ainda com a natureza tão somente como propriedade privada e fornecedora de matérias-primas que proporcionam maiores riquezas ao homem, considerando-se, em virtude do seu suposto domínio sobre a natureza, em um estágio superior da evolução social em relação às sociedades originárias. Os povos originários, na contramão deste pensamento, convivem com a natureza em uma relação de simbiose e respeito, reconhecendo a dependência do homem frente a esse Ser superior que lhes fornece a vida. Por isso, diversas culturas tratam a natureza como uma Mãe que de tudo provém aos seus filhos. Vemos isso no tratamento da natureza como Mãe Terra, Gaia ou Pachamama. No entanto, o pensamento ocidental moderno sobre a natureza vem caindo por terra frente à crise ambiental global que enfrentamos. Secas, enchentes, a extinção em massa de espécies, entre outros sinais, nos demonstra que a natureza está rebelando-se contra a dominação do homem. A natureza, concebida como dócil e passível de dominação e sem valor enquanto não transformada pelo homem mostra agora toda a sua força indomável, furiosa (Souza Filho, 2018). Como pode o homem deter as forças da natureza? Esse desencanto com os valores difundidos na modernidade vem ocorrendo notadamente a partir das últimas décadas do século XX e tem possibilitado a emergência de outros sistemas de valores diversos do sistema ocidental. É o caso da Lei Te Awa Tupua que trataremos no tópico seguinte. 26 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 2. A Lei Te Awa Tupua na Nova Zelândia Na primeira metade do século XIX, o imperialismo britânico alcançou o atual território da Nova Zelândia, encontrando como povo originário daquele país os Maoris. Para garantir o domínio colonial, a Coroa Britânica assinou o Tratado de Waitangi em 1840 com chefes das tribos Maoris e de outros povos originários que estabelecia, entre outros pontos, a posse do Rio Whanganui. Deliberadamente ou não, o Tratado foi traduzido de forma diferente entre os britânicos e o Povo Maori, podendo-se falar, portanto, na existência de dois tratados (CHARPLEIX, 2017), que traziam abordagens diferentes sobre a posse e a governança do sistema fluvial do Rio Whanganui. Analisemos o artigo 2° do Tratado, que foi a principal fonte das reivindicações do Povo Maori. Vejamos a versão inglesa deste artigo: Her Majesty the Queen of England confirms and guarantees to the Chiefs and Tribes of New Zealand and to the respective families and individuals thereof the full exclusive and undisturbed possession of their Lands and Estates Forests Fisheries and other properties which they may collectively or individually possess so long as it is their wish and desire to retain the same in their possession; but the Chiefs of the United Tribes and the individual Chiefs yield to Her Majesty the exclusive right of Preemption over such lands as the proprietors there of may be disposed to alienate at such prices as may be agreed upon between the respective Proprietors and persons appointed by Her Majesty to treat with them in that behalf (NOVA ZELÂNDIA, 2017, grifo nosso). É possível perceber que nesta versão inglesa do tratado, os Chefes Maoris cedem ao Império Britânico o direito exclusivo de utilização das terras e propriedades do tratado, bem como sobre o direito de preferência de pessoas apontadas pela Coroa Britânica sobre a compra destas terras. Outro ponto que demonstra o ímpeto colonialista de dominação política sobre os colonizados diz respeito à soberania da Coroa Britânica, que além de estabelecer a cessão de soberania pelos chefes Maoris, indicava que as leis emanadas daquela fonte eram as únicas legítimas (CHARPLEIX, 2017). 27 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e As discrepâncias entre a versão britânica e a versão Maori do Tratado levaram o debate ao Poder Judiciário em 1975, que reconheceu a propriedade do Povo Maori sobre o Rio Whanganui em 1999. Os recursos naturais do rio vinham até então sendo utilizados de forma predatória pelos ingleses, em total desprezo aos valores culturais dos Maoris, que consideram o Rio como um complexo ser vivo. Negociações subsequentes levaram à promulgação da Lei Te Awa Tupua em 2017, que concedeu personalidade jurídica ao sistema fluvial do Rio Whanganui, reconhecendo-o como sujeito de direitos e, portanto, digno de ser protegido por seu valor intrínseco, independente de seu valor de troca, incorporando ainda epistemologias ancestrais e espirituais do Povo Maori sobre o rio.2 Segundo Rodgers (2017), a promulgação dessa lei evidencia a relevância de princípios culturais e consuetudinários dos Maoris em um aparato institucional moldado para a efetivação de uma proteção integral ao Rio Whaganui. Essa lei representou o surgimento de um novo paradigma jurídico na Nova Zelândia que, ao incorporar valores étnicos ao seu ordenamento jurídico, reconheceu a multiplicidade de visões de mundo sobre a natureza, que vai muito além do seu valor econômico e utilitário para o homem. A Lei Te Awa Tupua também instituiu um regime de governança compartilhada do rio entre o Povo Maori e o Governo neozelandês, um modelo mais inclusivo e participativo de gestão, “focalizando as interpretações subjetivas e culturais do Direito e, ao mesmo tempo, afastando-se de um paradigma centrado no Estado”, conforme analisa Charpleix (2017). Ademais, a Lei prevê ainda a proteção das comunidades que vivem ao longo da bacia do rio, enquanto elementos deste ambiente, evidenciando a perspectiva holítisca deste documento, que considera o meio ambiente como um todo integrado e interdepedente. Art. 12 (Te Awa Tupua Act): “Te Awa Tupua is an indivisible and living whole, comprising the Whanganui River from the mountains to the sea, incorporating all its physical and metaphysical elements.” (NOVA ZELÂNDIA, 2017). Disponível em: Acesso em: 13 de maio de 2019. 2 28 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 3. A proteção do meio ambiente e a emancipação dos povos originários Como visto anteriormente, os povos originários incorporam em suas cosmovisões sobre a natureza uma dimensão metafísica, tratando-a muitas vezes como sua Mãe, uma ancestral. Para eles, a natureza não vale por seu valor de troca no mercado, mas por seu valor em si mesmo. À Mãe Natureza rendem respeito e reverência, e seus territórios – ao menos aqueles de colonização mais recente – são barreiras de preservação da biodiversidade contra os avanços predatórios do sistema capitalista sobre a natureza e sua concepção individualista de sociedade. Por cultivarem um relacionamento tão próximo com a natureza, pode-se dizer que os princípios ambientais difundidos nestas sociedades são bem mais amplos que as epistemologias ocidentais de origem eurocêntrica que tratam a natureza como propriedade privada passível de exploração. A incorporação de valores do Povo Maori no ordenamento jurídico da Nova Zelândia, portanto, rompe com o modelo jurídico ocidental no tocante à proteção ambiental. Levi-Strauss (1989) aponta para a incompletude de todas as culturas humanas e, ainda, que as grandes civilizações se ergueram em constante troca cultural com outros povos. O autor relembra que a consolidação de uma suposta superioridade da civilização europeia sobre outras culturas se deu durante o período do Renascimento, “ponto de encontro e de fusão das mais diversas influências: as tradições grega, romana, germânica e anglo-saxônica; as influências árabe e chinesa” (LÉVI-STRAUSS, 1989). Com isso o autor construiu sua ideia de que não existem civilizações com sistemas de valores completos se estas vivem absolutamente isoladas de outras culturas, ou seja, “o progresso cultural é função de uma coligação entre as culturas”, sendo “esta coligação tanto mais fecunda quanto se estabelecia entre culturas mais diversificadas” (LEVI-STRAUSS, 1989). E conclui afirmando que são as colaborações interculturais que permitem o progresso da humanidade (LEVI-STRAUSS, 29 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 1989). Portanto, o diálogo intercultural do direito consuetudinário do Povo Maori com o ordenamento jurídico eurocêntrico da Nova Zelândia assinala um passo importante para suprir as incompletudes desta ordem, notadamente no tocante à proteção ambiental. Ao conferir personalidade jurídica ao sistema fluvial do Rio Whanganui, o direito ambiental deu um passo importante na maximização da efetividade dos instrumentos jurídicos de proteção ambiental. Segundo Chapleix (2017) Te Awa Tupua Act “marca um novo paradigma do pluralismo jurídico, apontando caminhos para a evolução de como as relações com os componentes não humanos da natureza podem ser entendidas no futuro”. Quanto ao impacto nas lutas por emancipação dos povos originários, achamos pertinente introduzir o conceito de colonização interna, cunhado por Casanova (apud Moonen, 1983, p. 121), para designar a dominação de nativos praticada pela sociedade resultante da colonização, ou seja, os descendentes dos colonizadores, nascidos nas antigas colônias que já alcançaram a Independência. A colonização interna ainda é um fenômeno contemporâneo que podemos observar nos massacres étnicos, nas supressões territoriais dos povos originários, na elaboração de legislações concernentes a estes povos sem sua participação, na estratificação e marginalização social, enfim, os exemplos são longos de como essas práticas sociais se perpetuam nos tempos presentes. No entanto, para fins deste artigo somente analisaremos o conceito de colonização interna sob duas perspectivas: as lutas territoriais e a atividade legislativa. Te Awa Tupua Act reconheceu o vínculo indissociável do Povo Maori com o Rio Whanganui, constituindo um passo em frente ao entendimento das complexas relações dos povos originários com seus territórios, a fim de promover uma proteção cada vez mais efetiva desses espaços. Além disso, a identidade étnica e as tradições culturais de um determinado povo são construídas em paralelo com a identificação coletiva a determinado território, local de reprodução – muitas vezes imemorial – de suas tradições e modos de viver. O território é, portanto, condição sine qua non de existência dos modos de vida dos povos originários, sendo possível constatar o desaparecimento de grupos étnicos 30 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que foram forçados a deixar seus territórios, como no caso de diversas etnias da região Nordeste do Brasil.3 No plano político e administrativo, tomemos o raciocínio de Kelsen (apud Ferrazzo, 2009, p. 36), para concluirmos o tópico sobre emancipação: “em nome da unidade política, a nação que se organiza em um mesmo Estado concorda, num processo democrático, em se submeter à força coativa estatal, pois é esta força que garante a segurança das relações sociais”. No entanto, conforme já exposto, podemos extrair que o processo de formação da Nova Zelândia enquanto Estado nacional prescindiu da concordata dos povos originários que habitavam aquele espaço territorial, antes mesmo da formação de um aparato administrativo estatal. Desse modo, a falta de representatividade dos povos originários no processo constituinte ou legislativo, por causa da colonização neste Estado, acarreta que estas coletividades sofrem com os efeitos de um consenso do qual não fazem parte (FERRAZZO, 2009). Os avanços nos direitos dos povos originários, a inclusão de valores de suas cosmovisões e o alargamento de suas participações nos processos políticos decisórios apontam, portanto, para uma “reestruturação da institucionalidade advinda do Estado nacional, reconhecendo a necessidade de um sistema de foros de deliberação intercultural autenticamente democrática” (GRIJALVA, 2009), além de demonstrarem uma “ruptura na lógica jurídica de mera importação de modelos institucionais” (ARAUJO JUNIOR, 2018) eurocêntricos e que não atentam para as particularidades das populações aos quais são dirigidos, representando um rompimento com o paradigma jurídico ocidental e a abertura para o diálogo intercultural do Direito. Considerações finais A situação colonial pressupõe o domínio político e ideológico dos povos colonizados, acarretando no desaparecimento de valores Ver: OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”?: Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A Viagem de volta: Etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2004. p. 13-42. 3 31 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e tradicionais destas populações, na imposição da nacionalidade e da cultura do colonizador e no monopólio da produção do conhecimento considerado válido, marginalizando corpos alternativos de saberes e taxando seus detentores de “selvagens e primitivos”. Um aspecto da imposição de valores estranhos a culturas colonizadas diz respeito ao caso dos povos originários e suas cosmovisões sobre a natureza, que a consideram como uma Mãe, e o tratamento dado a ela por ordenamentos jurídicos de tradição eurocêntrica que a consideram tão somente como propriedade privada, fornecedora de matérias-primas. O conflito entre essas duas visões de mundo resultou na promulgação do Te Awa Tupua Act, de 2017 que incorporou valores ancestrais da cultura Maori no ordenamento jurídico da Nova Zelândia, território colonizado pelo Império Britânico no século XIX. Esta lei conferiu personalidade jurídica ao sistema fluvial do Rio Whanganui, reconhecendo-o como sujeito de direitos, passível de proteção por seu valor em si mesmo, rompendo com a tradição jurídica europeia que considera o valor da natureza por seu valor de troca no mercado. O diálogo intercultural do Te Awa Tupua Act importa significativos avanços nos campos do direito ambiental e na luta por emancipação dos povos originários, notadamente em suas reivindicações territoriais, criando um sistema de proteção ambiental biocêntrico, ou seja, conferindo direitos a outros componentes não humanos da natureza, demonstrando também a importância do ativismo das comunidades tradicionais nas reivindicações pela efetivação dos seus direitos e pelo respeito às suas culturas e modos de viver, além da emergência desses novos sujeitos na esfera política do seu respectivo Estado. 32 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ARAUJO JUNIOR, Julio José. A Constituição de 1988 e os direitos indígenas: uma prática assimilacionista? In: CUNHA, Manuela Carneiro da; BARBOSA, Samuel (Orgs). Direitos dos Povos Indígenas em disputa. São Paulo: Unesp, 2018. p. 175-236. BALANDIER, Georges. Sociologie actuelle d l’Afrique Noire. 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[ Volta ao Sumário ] 34 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a diveRsidade Religiosa dentRo de um Contexto gRupal psiCológiCo foRmado poR pessoas de diveRsas Religiões marineide Felix de Queiroz Brito Como referenciar este capítulo: BRITO, Marineide Felix de Queiroz. A diversidade religiosa dentro de um contexto grupal psicológico formado por pessoas de diversas religiões. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 35-56. Marineide Felix de Queiroz Brito1 Introdução O presente trabalho se propõe a fazer uma análise do problema de preconceito religioso existente na diversidade religiosa dentro de um contexto grupal psicológico formado por pessoas de diversas religiões e as relações construídas no processo histórico, social, político, econômico e cultural. Pesquisar quais as religiões existentes na diversidade religiosa do grupo em evidência visando analisar as tradições religiosas no contexto curricular e legal do Ensino Religioso, e finalmente, explicitar os processos de constituição, identificação e interação das denominações religiosas em seus diferentes contextos. As ações educacionais visam à superação de desigualdades que atingem historicamente determinados grupos sociais discriminados pelo preconceito social e religioso. Nesse estudo tendo em vista a pluralidade cultural religiosa, ser fundamental para desmistificar preconceitos e a intolerância religiosa contida nos grupos terapêuticos de psicologia na policlínica Nossa Senhora da Vitória, no município de Goiana-PE. A diversidade cultural religiosa existente na educação escolar, nos currículos e práticas pedagógicas, ressaltando, os grupos terapêuticos, permite a ampliação da consciência dos educadores, na formação de professores e outros profissionais da área para ampliar o conhecimento das tradições religiosas. A espiritualidade é a dimensão peculiar que todo ser humano impulsiona na busca do sagrado, da experiência transcendente na tentativa de dar sentido e resposta aos aspectos fundamentais da vida. O Conhecimento básico do fenômeno religioso a partir da experiência pessoal de cada participante do grupo psicológico. A religião pode ter 1 Mestranda do Curso em Ciências das Religiões/Centro de Educação/UFPB-2018. Participante do grupo de pesquisa FIDELID (UFPB). Licenciatura e Formação em PsicologiaBacharel em Administração/UNIPÊ. Especialização em Programa Saúde da Família – FIP. E-mail: felixmarineide@gmail.com. 36 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e efeito tano benéfico quanto maléfico à saúde, considerando que as crenças ou práticas religiosas podem ser usadas como substitutos de medicamentos necessários à saúde. (Cf. DUARTE; WANDERLEY, 2011). Diversidade religiosa significação e as ações educacionais As religiões compõem uma pedra angular da coexistência social e de disposição política. Hoje com a globalização vêm causando a miscigenação das culturas, impondo uma pluralidade de formas de fé. Falar de religião significa enfrentar a pluralidade de diferenças crenças, e cada indivíduo carregador de suas próprias histórias, memórias e analogias. A natureza da fé individual e sobre a legalidade do anseio de verdade que cada religião avança em relação às outras. A liberdade de expressão religiosa, base da diversidade, não pode permitir as agressões entre as religiões ou destas a não religiosos ou ainda destes às próprias religiões, posto que exatamente estas agressões o objeto das militâncias e da cultura universal pela paz. Trigg alerta principalmente contra um erro: classificar o fenômeno da “diversidade” como um mero “pluralismo religioso” no qual todos os credos são iguais, afirmando uma visão e uma interpretação relativistas das realidades. O “relativismo religioso” impede de perceber as especificidades de cada fé e de estabelecer prioridades: aspectos cruciais quando chega o momento das escolhas concretas que afetam a convivência social e o espaço público. O relativismo ameaça banalizar as religiões e anular o uso correto do princípio da intolerância. Discorrer, conhecer, analisar ou pesquisar o universo religioso são atividades fascinantes, interessantes e servem, sobretudo, para abolir com os fundamentalismos. Os fundamentalismos são aqueles que cultivam a ideia de que sua religião é a única e de todas as demais formas têm de ser abolidas. O Brasil é um país que possui uma rica diversidade religiosa e, com um número de seguidores, tradições, crenças, com diversas religiões, devido a miscigenação cultural, fruto de vários processos imigratórios. A realidade brasileira é plurirreligiosa e traz como 37 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e característica a diversidade religiosa. O ensino religioso como disciplina funciona como uma ferramenta que possibilita a formação de análise do indivíduo, capaz de compreender a legalidade de outras tradições religiosas. O ensino religioso se propõe a sinalizar caminhos para a compreensão da existência humana, desenvolvendo o respeito pelas diferenças, desencadeando a tolerância, acordando o diálogo entre as diversas crenças e religiões. Cláusulas, contidas na legislação brasileira é o respeito à diversidade cultural ressaltado o pluralismo religioso. Comunicando um caráter científico ao ER (ensino religioso), A LDB (lei de diretrizes e bases da educação nacional) levantou debates sobre esse componente curricular, capacitando-o para a constituição plena do cidadão. Os estudos são necessários para alicerçar essa área disciplinar, ao qual ainda se encontra em constante crescimento no Brasil. Portanto podemos congregar alguns princípios básicos relacionados ao E.R: a) Contribuir para a formação plena do cidadão; b) Assegurar o respeito à diversidade cultural e religiosa; c) Proibir quaisquer formas de proselitismo O Ensino Religioso (ER) é regulamentado pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 210 § 1°, seguindo ainda os preceitos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB 9394/96, em seu art.33, alterado pela Lei 9475/97. LDB 9394/96, em seu art.33, alterado pela Lei 9475/97. Dispõe o art.33 da LDB: O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. § 1° Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2° Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. 38 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Consta em uma das cláusulas da legislação é o respeito à diversidade cultural observado o pluralismo religioso. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) comunicando em caráter científico ao Ensino Religioso (ER) levantou debates sobre esse componente curricular, capacitando-o para a formação plena do cidadão, o que explica a necessidade de estudos nessa área disciplinar. A tolerância religiosa afasta o proselitismo, suprime o preconceito reconhecendo as diferenças de crenças e considerando o direito do outro de não professar nenhuma crença. O Ensino religioso no Brasil, segue orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso (PCNER), elaborado em 1997 pelo FONAPER após a promulgação da Lei 9394/96. Profissionais especializados sem a devida formação específica na pode trazer danos a força necessária a todo contexto do ensino religioso em sua formação específica dificultando assim os conteúdos próprios aperfeiçoados, e importantes para a formação docente exclusiva seguida, pelos profissionais do ensino religioso. Sem formação adequada encontrará dificuldades em falar com excelência sobre questões polêmicas como intolerância, diversidade religiosa. O professor do ensino religioso será um intercessor ajudando na perspectiva pluralista, acerca dos fenômenos religiosos, contribuindo para o autoconhecimento e no desenvolvimento pleno do ser humano. O ensino religioso caminha em processo de construção, ponderando a importância da religião e cultura em constantes processos investigativos para o autoconhecimento das expressões de religiosidade acessível a todos, desenvolvendo o respeito pelas diferenças. Para o profissional em ensino religioso é de fundamental importância uma formação continuada para qualificar-se frente as exigências do perfil do ensino religioso recomendado para esse profissional possuir a compreensão do fenômeno religioso cultural. O professor não habilitado, com formação específica dificulta que os conteúdos próprios sejam aplicados, fazendo-se necessário a formação docente específica e continuada, pois um profissional sem formação adequada encontrará dificuldades em discorrer com excelência sobre questões como pluralidade, a alteridade, discursando de maneira científica sobre questões 39 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e polêmicas como intolerância, diversidade religiosa, subsidiando o educando para a vida. A Ciência da Religião subsidia a base epistemológica para o ensino Religioso sob o enfoque do fenômeno religioso sugerido pelo PCNER. Ela oferece aspectos teóricos metodológicos que atendem a demanda dessa disciplina, assegurando a ausência de proselitismo e a finalidade a que dedica: a formação crítica do cidadão, favorecendo a prática docente em consonância ao preceito legal. Encaminhado a partir da abordagem da Ciência da Religião, o profissional estará qualificado para atuar como professor do ensino religioso, intercedendo informações e conhecimentos, distinguindo no aluno suas capacidades amplas de saberes, e com isso despertando a sua autonomia, estimulando seu senso crítico, desenvolvendo a abertura ao diálogo e a tolerância religiosa em todo ambiente ao qual se encontra inserido. Por falta de políticas públicas de incentivo a cursos de graduação de licenciatura em Ciência da Religião, com o benefício de cada estado normatizar a habilitação de seus profissionais e admissão desses, faz com que o quadro de professores dessa disciplina seja preenchido por profissionais com licenciatura em outras áreas, o que aponta para a importância da formação continuada desses profissionais, através de cursos de capacitação para docentes do ensino religioso em períodos regulares. Justifica-se a formação continuada ainda para os egressos da Ciência da Religião tendo em vista a complexidade do campo religioso e do ensino religioso que é uma aprendizagem por etapas de processos panejados junto as ações educacionais, progressiva e permanente dentro de um contexto legalmente instituído. Acredita-se que o professor de Ensino Religioso congregue os requisitos necessários para estar apto a consolidar as finalidades do ensino religioso providos pelo FONAPER (FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO). O ensino religioso no Brasil segue direções do “PCNER” Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso, elaborado em 1997 pelo FONAPER após a promulgação da Lei 9394/96. O PCNER configurou-se como um referencial teórico-curricular, orientando diretrizes curriculares. O PCNER, embasado na pluralidade cultural e religiosa propõe como objetivos gerais do Ensino Religioso para o ensino fundamental: 40 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a) b) c) d) e) f) proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a partir das experiências religiosas percebidas no contexto do educando; subsidiar o educando na formulação do questionamento existencial, para desenvolver-se em profundidade, para dar sua resposta devidamente informado; analisar o papel das Tradições Religiosas na estruturação e manutenção das diferentes culturas e manifestações socioculturais e econômicas; facilitar a compreensão do significado das afirmações e das verdades de fé das Tradições Religiosas; refletir o sentido da atitude moral, como consequência da vivência no fenômeno religioso e expressão da consciência e da resposta pessoal e comunitária do ser humano; possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença na construção de estruturas religiosas. (PCNER, p. 47). Espiritualidade e religião numa visão conceitual De acordo com o pensamento de Otto (Cf. 2007), a busca em esclarecer a vivencia da espiritualidade do homem remete aos primórdios. Assemelham pelo reconhecimento da necessidade do homem em se relacionar-se com um Ser que o transcende, através da vivência de sua espiritualidade. Diversos outros movimentos favorecem uma melhor circunscrição e compreensão no desenvolvimento dos conceitos de religião e espiritualidade. A espiritualidade pode ou não estar ligada a uma vivência religiosa. A espiritualidade pode ser determinada como uma disposição humana a buscar acepção para a vida por meios de conceitos que transcendem o tangível, a procura de um sentido de atrelamento com algo maior em si mesmo. A espiritualidade envolve um conceito mais amplo e não tem ligação com nenhuma doutrina específica. Cada religião tem suas particularidades, exercendo a fé ou em conceitos defendidos sobre determinados assuntos e contextos culturais. A religião é uma 41 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e construção multidimensional ao qual inclui crenças, questões comportamentais, rituais e cerimônias que podem ser executadas em particular ou em público, mas que são derivadas de tradições que se desenvolveram ao longo do tempo em uma comunidade relata em um artigo de 2012, Harold Koenig, diretor do Centro para Teologia, Espiritualidade e Saúde, e professor na Universidade de Duke, nos Estados Unidos. A palavra religião vem da palavra em latim religare, que significa se religar ao divino. Com o tempo as religiões foram se tornando instituições com suas normas próprias. Estamos falando em religião hoje em dia como se referindo as instituições e não ato de se religar ao divino (como sugere a palavra de origem). Podemos dizer que religião é um conjunto de crenças e filosofias que são acompanhadas por uma grande massa de pessoas de acordo com seus ensinamentos, doutrinas e costumes. Além da religião, também existe a religiosidade, que para muitos nada mais é que ter a qualidade de ser religioso, ou seja, ter uma religião. A religião diz respeito a um conjunto de crenças ou dogmas relacionados com a divindade e da relação do homem com essa divindade e abrange também normas morais para o comportamento do sujeito de maneira individual e social no seu contexto de vida. Não existe certo ou errado e não devemos usar termos para recriminar, discriminar os indivíduos de uma ou outro segmento de escolha de pensamento religioso. Às vezes estar em conjunto com pessoas conhecidas ou não, gostando de frequentar alguma religião e isso te conecta ao divino. Percebida a religião, como riqueza da humanidade, revela-se como um patrimônio antropológico e cultural, da sociedade ao longo do processo histórico da Brasil e, portanto deve estar acessível a todos. Intolerância religiosa É um termo que descreve a atitude mental caracterizada pela fata de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar diferenças ou crenças religiosas de terceiros. Quanto mais conhecemos as religiosidades, maior entendimento e clareza terão sempre uma maior 42 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e visão esclarecedora. Quando nos permitimos conhecer as vivências e práticas religiosas das pessoas, não estamos abrindo mão de nossa própria convicção ou crença. Quanto mais conhecemos as religiosidades, maior discernimento e capacidade terão também sobre o nosso segmento. Em nome das religiões, cabem atitudes de respeito, diálogo e entendimentos em prol da cultura de paz e a grande consideração nas relações entre as pessoas. É sempre difícil respeitar o que não apreciamos. Tratando do complexo mundo de crenças, experimentamos dificuldades de compreensão, entendimento e respeito às religiosidades alheias. Dai a importância do diálogo, pois nele iremos permitir o entendimento de conhecer e reconhecer as realidades das diversas religiões. Conhecermos pessoas de diferentes segmentos religiosos com tradições e hábitos diversificados em nosso convívio ou não do nosso meio social. Respeitar as diferenças religiosas é fundamental, principalmente porque o objetivo principal das religiões é transmitir os aspectos positivos dos seres humanos, pautados à sua natureza, princípios e valores, tendo sempre em mente a compreensão do outro congregando pacificamente no respeito às escolhas pessoais de cada indivíduo. Reivindicar seus direitos e, ao mesmo tempo despertar de uma nova consciência tão necessária. Diante do preconceito religioso não podemos ficar como meros espectadores. Quando nos permitimos conhecer as vivências e práticas religiosas dos outros, não estamos abrindo mão de nossa própria convicção ou crença. Não se justificam guerras e conflitos em nome das religiões, porque todas elas derivam ensinar o amor como valor maior de toda convivência do ser humano. A intolerância é presente no Brasil com causas diversas, destacando-se o julgamento de superioridade de uma religião à outra e de má fé, apresentando como consequências o desrespeito dentro da sociedade e uma disputa acirrada pela maior obtenção de crentes em suas igrejas ou templos. Existem religiões que respeitam e outras que desrespeitam. Embora a intolerância religiosa seja bastante recorrente, até mesmo, comum hoje, existem medidas que podem vir a proporcionar melhorias na convivência social entre as pessoas. A tolerância religiosa afasta o proselitismo, bane o preconceito reconhecendo as diferenças 43 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e de crenças e considerando o direito do outro de não professar nenhuma crença. Psicoterapia de grupo um breve histórico do surgimento Segundo Stone, em seu estudo de terapias em grupo (2005) Terapia em grupo é um método de Psicoterapia. É historicamente, a psicoterapia grupal muito mais antiga do que pensamos. Suas raízes estão desde a antiguidade, das mais diversas formas culturais, por meio do curandeiro, danças xamanísticas, poções, Buda, etc. A psicoterapia de grupo surgiu intuitivamente e foi adotada empiricamente, por Joseph H. Pratt. Pratt era clínico geral. Sua origem remonta ao início do século passado – 1905. A psicoterapia de grupo passou pala fase de expansão teórica nos anos 50 e 60, seguida da fase de consolidação na década de 70, e de amadurecimento nos anos 80 e 90. Finalmente, examina-se sua evolução recente, dando ênfase especial à construção de novos modelos. De acordo com Zimermam (2004), no início de 1948, Bion organizou os seus grupos terapêuticos, a partir dos quais fez importantes avaliações e contribuições que permanecem vigentes e inspiradores na atualidade. Considerações finais As ações educacionais com orientações dos parâmetros curriculares nacionais do ensino religioso (PCNER), elaborado pelo fórum nacional permanente do ensino religioso (FONAPER), regulamentado pela constituição federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), são propostas de fundamental importância, na visão pluralista cultural religiosa, contida nos grupos terapêuticos de psicologia, na Policlínica Nossa Senhora da Vitória, visando a superação ao preconceito social religioso. Trabalhar com grupos é lidar com indeterminação, reconstrução e surpresas em todos os momentos. Cada membro do grupo psicológico pode ser agente de sua própria mudança na construção de um novo 44 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e olhar para a diversidade religiosa. É um grande desafio estudar a riqueza da diversidade cultural no contexto grupal psicológico formado por pessoas de diversas religiões e crenças. Analisar as tradições religiosas no contexto curricular do ensino religioso em seus diferentes contextos socioculturais são caminhos para reflexões acerca do fenômeno religioso visando o desenvolvimento pleno na formação do cidadão. Aqui se situam também as possibilidades para dialogar e aprofundar a pesquisa. Sendo assim, fica esclarecido que lidamos com o desafio de respeito à diversidade de crenças e de religiões presentes nos grupos terapêuticos. A pesquisa atinge a percepção de que é necessário e urgente o respeito mútuo nos desenvolvimentos das atividades educacionais para a tolerância da diversidade religiosa grupal. 45 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BRASIL, (1988). Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Serviço Gráfico. (1996). Brasil. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9394/96. Diário Oficial da União,Brasília,DF:1996.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l9394.hm>. Último acesso em: 14/06/2019. ______. Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997 – Da nova redação ao art. 33 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário OficialdaUnião, Brasília, DF: 1997. Disponívelem: <www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l9494.htm>. Último acesso em: 14/06/2019. DUARTE, F. M.; WANDERLEY, K. S. Religião e espiritualidade de idosos internados em uma enfermaria geriátrica. Psicologia, Teoria e Pequisa, 27 (1), 49-53, 2011. FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Religioso – São Paulo, Mundo Mirim, 2009. KOENING, Harold. medicina, religião e saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade. Tradutor: Abreu I. Porto Alegre: L&PM, 2012. OTTO, Rudolf. O Sagrado. Sinodal, EST; Petrópolis: Vozes, 2007. STONE, M. H. História da psicoterapia. In: Eizirik CL, Aguiar RW, Achestatsky SS. Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos e clínicos. 2 ed. Porto Alegre: Artmed; 2005. ZIMERMAM, David E. B. Teoria à prática – uma leitura didática 2. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2004. [ Volta ao Sumário ] 46 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a endemia iConoClasta na Religião do oCidente: um paradoxo do imaginário segundo gilbert durand José Herculano Filho Carlos André macêdo Cavalcanti Como referenciar este capítulo: FILHO, José Herculano; CAVALCANTI, Carlos André Macêdo. A endemia iconoclasta na religião do ocidente: um paradoxo do imaginário segundo Gilbert Durand. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 47-57. José Herculano Filho1 Carlos André Macêdo Cavalcanti2 Introdução No livro O Imaginário: Ensaios acerca das ciências e da filosofia da imagem, Gilbert Durand faz uma síntese da história da imagem no Ocidente, traça um cenário das diferentes posições e papéis ocupados pela imaginação na filosofia, na religião e na formação do imaginário coletivo, dialogando com pensadores clássicos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Weber, Hegel, entre outros. A problemática durandiana reside em um antigo paradoxo: a civilização ocidental, por um lado, proporcionou técnicas de expansão das imagens, mas por outro lado, criou uma crescente desconfiança iconoclasta. No primeiro momento o autor começa narrando sobre a nossa herança ancentral mais antiga e irrefutável que é o monoteísmo bíblico, originado no judaismo. A princípio a proibição de criar imagem (eidôlon) como um substituto para o divino encontra-se no mandamento de Moisés (Êxodo, 20: 4-5), deixando claro que não somente a imagem divina está proibida, como também qualquer outra imagem; o Cristianismo (I Coríntios, 8:1-13; Atos, 15: 29) e o Islamismo (Corão, III: 43; VII: 133134; XX: 96), também herdaram as mesmas proibições, visto que tiveram influências judaicas. “O judaísmo valoriza antes de tudo uma cultura da linguagem, que chega a condenar a imagem material por sua propensão a conduzir os homens à idolatria, à confusão entre a imagem e o ser divino” (WUNENBURGER, 2007, p. 29). Doutorando em Ciências das Religiões (PPG-CR/UFPB), Mestre em Ciências das Religiões (PPG-CR/UFPB), Professor de filosofia e Metodologia do Ensino Médio Integrado Técnico e Tecnológico do Instituto Federal da Paraíba – Campus Patos. E-mail: herculanofilho@yahoo.com.br 2 Orientador, Doutor em História pela UFPE, Mestre em História pela UFPE. Professor do curso de pós-graduação em Ciências das Religiões da UFPB e do curso de graduação em História da UFPB. Coordena o Grupo de Estudos Videlicet, sobre a Teoria do Imaginário de Durand. 1 48 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Na mitologia bíblica, Moisés quebra as tábuas da lei num acesso de raiva ao ver seu povo adorando a imagem de um bezerro no deserto do Sinai. A interdição das imagens é um dos dogmas fundamentais da tradição judaico-cristã, tal como registrado nos textos do Velho Testamento (MACHADO, 2001, p. 7). Na Grécia antiga, as imagens não foram proibidas, de acordo com Machado (2001, p. 9), mas o iconoclasmo tomou corpo no plano intelectual, sobretudo na filosofia. Platão certamente foi o pensador que deu à iconoclastia tal expressão e furor, e ainda hoje o peso de sua doutrina ecoa em nossos debates intelectuais. Para o autor de A República e de O Sofista, o artista plástico é uma espécie de impostor: ele imita a aparência das coisas, sem conhecer a verdade delas e sem ter a ciência que as explica (MACHADO, 2001, p. 9). De acordo com Durand (2014, p. 7) todas as civilizações não ocidentais, fundamentaram seus princípios de realidade, seu universo mental, individual e social, em elementos pluralistas, portanto, diferenciados, fora do contexto de uma verdade única, de um processo de dedução da verdade absoluta. Por sua vez, o Ocidente, univeso em que estamos inseridos, “[...] a civilização que nos sustenta a partir do raciocínio socrático e seu subseqüente batismo cristão, além de desejar ser considerado, e com muito orgulho, o único herdeiro de uma única Verdade, quase sempre desafiou as imagens” (DURAND, 2014, p. 7). Conforme Durand (2014, p. 9) esse processo dualista também ocorreu na filosofia ocidental, através do método da verdade, oriunda do socratismo, baseada numa lógica binária (com apenas dois valores: um falso e um verdadeiro), unindo-se desde a formação com o iconoclasmo religioso, tornando-se uma herança inicialmente de Sócrates, depois de Platão e em seguida de Aristóteles, como um único processo eficaz para a busca e validação da verdade. Portanto, para Durand (2014, p. 9-10), ao longo dos séculos o mundo ocidental, a partir do pensamento de Aristóteles (século 4 a.C), a dialética racional foi a via de acesso ao conhecimento, a experiência dos fatos, ou seja, o caminho da lógica para se chegar a verdade. Uma 49 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e dialética do pensamento filosófico que propunha apenas dois caminhos na construção do conhecimento racional: um absolutamente verdadeiro e outro absolutamente falso, excluindo a possibilidade de toda e qualquer outra via de conhecimento. O paradoxo da imagem O surgimento da fotografia, do cinema, dos vídeos e seus meios de transmissão no século XX, à televisão e por último a rede mundial de computadores, a internet, consolidaram a construção de uma “civilização da imagem”, conforme afirma Durand (2014, p. 5) no seu livro. A iconoclastia ocorre no Ocidente desde o período clássico grego, com a sacralização do mito, depois com o advento do cristianismo, que por fim estigmatizaram os símbolos e as imagens das inúmeras doutrinas filosóficas e religiosas que pairavam no universo grego/romano e que se contraponham muitas vezes ao dualismo da época. No curso dos séculos muitas tradições foram suprimidas, perseguidas e/ou reestruturadas, para se adaptarem as estruturas do pensamento dualista no ocidente. Para Durand (2014, p. 6) as civilizações não ocidentais nunca separaram as informações (digamos, “as verdades”) fornecidas pelas imagens daquelas fornecidas pelos sistemas da escrita. Cita por exemplo: Os ideogramas (o signo escrito copia algo num desenho quase estilizado sem limitar-se a reproduzir os signos convencionais, alfabéticos e os sons da língua falada) dos hieróglifos egpícios ou os caracteres chineses, por exemplo, misturam com eficácia os signos das imagens e as sintaxes abstratas. Em contrapartida, antigas e importantes civilizações como a América pré-colombiana, a África negra, a Polinésia etc, mesmo possuindo uma linguagem e um sistema rico em objetos simbólicos, jamais utilizaram uma escrita (DURAND, 2014, p. 6). O paradoxo do monoteismo se enraizou pelas entranhas da desconstrução do politeísmo ocidental e continuou ao longo da sua expansão 50 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e e dominação terretorial, violentando inúmeras iconófilos e suas deidades por onde se fixou, delimitando morada definitiva. Conforme Durand (2014, p. 9) a nossa herença ancestral mais antiga e incontestável é o monoteísmo bíblico, judaíco, que proibe qualquer imagem (eidôlon) como substituto para o divino. Daí, portanto: O método da verdade, oriundo do socratismo é baseado numa lógica binária, (com apenas dois valores: um falso e um verdadeiro), uniu-se desde o início a esse iconoclasmo religioso, tornando-se com a herença de Sócrates, primeiramente, e Platão e Aristóteles em seguida, o único processo eficaz para a busca da verdade (DURAND, 2014, p. 9). O autor destaca que a mensagem do Cristianismo foi difundida no Ocidente em grego, a língua de Aristóteles. “Para alguns foi a sintaxe grega que permitiu a lógica aristotélica! São Paulo, o “segundo fundador” do Cristianismo, era um judeu helenizado. O texto dos Evangelhos só nos foi transmitido na sua forma primitiva em grego” (DURAND, 2014, p. 10-11). E foram justamente as obras de Aristóteles, desaparecidas ao longo dos séculos e posto a luz por Averros de Córdoba (1126-1198), pensador mulçumano da Espanha, sobre o domínio dos mouros, que traduz para o árabe os escritos do filósofo grego, enquanto no Ocidente: Os filósofos e teólogos cristãos passaram a ler avidamente as trudações. O mais famoso e influente foi São Tomás de Aquino. Numa tentativa enorme para conciliar o racionalismo aristotélico e as verdades da fé numa “suma” teológica, seu sistema tornou-se a filosofia oficial da Igreja Romana e o eixo de reflexão de toda a escolástica (a doutrina da escocla, isto é, das universidades controladas pela Igreja) dos séculos 13 e 14 (DURAND, 2014, p. 12). Na tradição ocidental, segundo Machado (2001, p. 10-11) ocorreu quatro ciclos iconoclastas. O primeiro interdito aconteceu na Grécia antiga com a filosofia do simulacro de Platão e nas culturas judaico-cristã e islâmica, nas quais a mitologia bíblica e do Corão atacaram as imagens e quem as veneravam. O segundo ciclo iconoclasta ocorreu durante o Império Bizantino sob as ordens do imperador Leão III, e aplicado por 51 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e seus sucessores. “A doutrina dilacerou o lado oriental do antigo Império Romano durante mais de um século e provocou uma sagrenta guerra civil, que só terminaria em 843, com a restauração do culto aos ícones na catedral de Santa Sofia, em Constantinopla, atual Istambul” (MACHADO, 2001, p. 10). A Reforma Protestante marcou o terceiro ciclo de interdito às imagens no campo religioso, já na Idade Moderna, quando Calvino e Lutero preparam uma insurreição contra as imagens e um retorno às Sagradas Escrituras. Enquanto no viés das ciências “[...] Galileu e Descartes fundaram as bases da física moderna e o terceiro momento do iconoclasmo ocidental” (DURAND, 2014, p. 12). Para Durand (2014, p. 12) a partir do século 17, o imaginário passa a ser maginalizado, a ser exclcuído dos processos intelectuais. O exclusivismo de um único método, o método, “para descobrir a verdade nas ciências”. O legado grego de Socrátes, Platão e agora Aristóteles se firma no pensamento ocidental. O discurso do método, a mecânica de Galileu idealisou as bases da nova ciência, forjou o mundo da técnica e se distânciou do imaginário. Todos esses três ciclos iconoclastas se ancoram numa crença inabalável no poder, na superioridade e na transcendência da palavra, sobretudo da palavra escrita, e nesse sentido não é inteiramente descabido caracterizar o iconoclasmo como uma espécie de “literolatria”: o culto do livro e da letra. Para o iconoclasta, a verdade está nos Escritos; Deus só pode ser representado por meio da Sua Palavra; Deus é Verbo (MACHADO, 2001, p. 11). De acordo com Durand (2014, p. 13), os grandes nomes de David Hume e Isaac Newton impulsionaram o impirismo e com eles esboçou o inicio do quarto ciclo contra as imagens no Ocidente, no qual ainda estamos mergulhados. E que, “felizmente, ao menos por enquanto, ele se dá, tal como na sociedade grega antiga, apenas no plano do pensamento filosófico, ou seja, nesse terreno que poderíamos definir genericamente como sendo o do neoplatonismo” (MACHADO, 2001, p. 15). Hoje, a visão das massas populares reunidas ao redor dos aparelhos de televisão é considerada, por um número bastante expressivo de 52 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e nossos intelectuais, tal qual aquela atribuída por Moisés ao povo judeu reunido em torno do bezerro de ouro: uma insuportável manifestação da iconofilia e da idolatria, um culto ao demônio, que se deve a qualquer preço combater (MACHADO, 2001, p. 15). Conforme Durand (2014, p. 14) o positivismo e as filosofias das histórias foram frutos de um casamento entre o factual dos empiristas e o rigor iconoclasta do racionalismo clássico. “As duas filosofias que desvalorizarão por completo o imaginário, o pensamento simbólico e o raciocínio pela semelhança, isto é, a metáfora, são o cientificismo [...] e o historicismo [...]” (DURAND, 2014, p. 14). Para essas doutrinas, só se conhecem a verdade comprovadas através dos métodos científicos e pelas causas reais expressas nas formas concretas dos eventos históricos. A heurística do Imaginário ocidental Os acervos imaginários da cultura dos povos estão recheados de narrativas míticas, no mundo ocidental não é diferente, mesmo que tenha sofrido ao longo dos séculos as intervenções dualísticas do pensamento filosófico e do monoteismo religioso, que permeiaram um sistema binário de dialética, moldando a estrutura antropológica dos mitos. “O imaginário neste sentido é um tecido complexo de afetos e de representações que permite, por sua vez, exprimir significações e produção de sentido correndo mesmo o risco de ser objeto igualmente de erros e de ilusões à semelhança” (ARAÚJO, ALMEIDA, 2018, p. 19). A percepção da ação pelo homem ocorre quase que paralelamente à construção da memória, marcada indelevelmente pelo imaginário, que é estruturador, diga-se de passagem. É, porém, a memória profunda do passado em suas múltiplas ilações que permite perceber o tempo. Para haver memória é preciso haver imagem. Memória e imaginação residem lado a lado na alma humana. Os acontecimentos passados são evocados pela memória através de uma atitude deliberada que põe em ação ou movimento a própria mente humana (CAVALCANTI, 2017, p. 14). 53 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A partir da leitura de Gilbert Durand podemos destacar algumas questões importantes sobre a problemática do iconoclasma no Ocidente. Para o autor apesar da tão proveitosa concorrência do imaginário da Reforma e Contra Reforma que ajudou a ruptura definitiva com a cristandade medieval, as “Guerras das Religiões” e a Guerra dos 30 Anos arruinaram com o imaginário, “[...] que cobriu de sangue a Europa até o tratado de Wesfália (1648) – obrigou os valores visionários do imaginário a procurarem refúgio longe dos combates fratricidas das Igrejas” (DURAND, 2014, p. 26). Claro que este imaginário autônomo junto com a desvalorização dos seus suportes confessionais enfraqueceram os poderes da imagem, e o preço desta autonomia foi, com freqüencia, o neo-racionalismo dos filosófos que, no século 18, retomaram a estético de um ideal clássico. O neoclassicismo reintroduz o desequilíbrio inococlasta entre os poderes da Razão e a parte devida à imaginação no século das Luzes. Objetivando desde logo uma funcionalidade pura, o símbolo das arquiteturas austeras é substituído pela alegoria insípida (DURAND, 2014, p. 26-27). No período moderno o imaginário se caracterizava na racionalização do conhecimento e no progresso, baseado num imaginário profético, arquitetado na crença e na moral. Na pós-modernidade a imagem não é mais associada ao pensamento profético, à projeção assegurada do futuro já não mais funciona. Na pós-modernidade as imagens do presente são acentuadas, ocorre à abolição das distâncias objetivas e emerge uma nova relação com o tempo e o espaço, de simultaneidade, a partir desse momento explode a “civilização da imagem”. A partir daqui as relações humanas se transformam. No século XX, na civilização da imagem, com o fim da galáxia de Gutenberg, deu-se lugar ao reino da informação e da imagem visual, que Durand (2014, p. 31) chama de “a revolução do vídeo”. O que não deixa de ser extraodinário é que esta explosão da “civilização da imagem” tenha sido um efeito, e um “efeito perverso” (que contradiz ou desmente as conseqüências teóricas da causa), do iconoclasmo técnico-científico, e cujo resultado triunfante será a pedagogia positivista (DURAND, 2014, p. 31). 54 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A explosão da imagem na modernidade, a redifinição dos limites da razão e da crítica ao racionalismo, passa a ter um papel fundamental na iconoclastia atual. “Se antes as querelas em torno da imagem eram expressas sobretudo no domínio da teologia e da religião, a cultura midiática criou seus próprios ídolos bem como atualizou rituais de destruição de imagens” (KLEIN, 2009, p. 5). O impulso de levar para o plano da imagem todos os aspectos da vida humana tornou-se quase irresistível devido à disponibilidade dos meios e à virulência assumida pela reprodução de imagens midiáticas em nosso cotidiano. A vida social só se legitima pela visibilidade midiática, em um processo maníaco de devoração de imagens pelo homem, ou do homem pelas imagens (BAITELLO JR., 2005 apud KLEIN, 2009, p. 7). Portanto, a verdade é que a “civilização da imagem” permitiu a descoberta dos poderes da imagem há tanto tempo recalcados. De maneira que “[...] aprofundou as definições, os mecanismos de formação, as deformações e as elipses da imagem. Por sua vez, a “explosão vídeo”, fruto de um efeito perverso, está prenhe de outros “efeitos perversos” e perigosos que ameaçam a humanidade do Sapiens” (DURAND, 2014, p. 118). Considerações finais No curso da história as imagens sempre foram associadas às atividades marginais, esteve sempre no contexto underground, isto é, em um ambiente cultural que foge dos padrões. No âmbito institucional da religião as imagens foram toleradas com restrições pelas autoridades. Portanto, o problema central das imagens na tradição ocidental é epistemológico. A lógica, a razão e o raciocínio diminuíram o poder cognitivo da imagem, nem mesmo os avanços técnicos que permitiram a produção e reprodução das imagens foram suficientes para reverter à atuação da iconoclastia religiosa. 55 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Na atualidade a imagem ganha outro contorno, um dos responsáveis pela mudança de paradigma é Gilbert Durand, que considera o imaginário um conjunto de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens. O imaginário, para ele, é o grande denominador onde se encontra todas as criações do conhecimento. Tal entendimento abrange todo o universo que foi criado pelo pensamento humano, fundindo em imaginação e razão, pensamento e criação, ou seja, o “museu” – um acesso que guarda as memórias antropológicas, que denominamos o imaginário. 56 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ARAÚJO, Alberto Filipe. ALMEIDA, Rogério de. Fundamentos metodológicos do Imaginário: mitocrítica e mitanálise. In: Téssera, v. 1, n. 1, Uberlândia-MG, p. 18-42, 2018. CAVALCANTI, Carlos André. Prefácio. In: WUNENBURGER, Jean-Jacques. ARAÚJO, Alberto Filipe. ALMEIDA, Rogério de. Os Trabalhos da Imaginação: Abordagens teóricas e modelizações. João Pessoa: Editora UFPB, 2017. DURAND, Gilbert. Imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Tradução Renée Eve Levié, 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Difel, 2014. KLEIN, Alberto. Destruindo imagens: configurações midiáticas do iconoclasmo. In: E-compós, v. 12, n. 2, Brasília-DF, p. 1-12, 2009. MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. WUNENBURGER, Jean-Jacques. O imaginário. Tradução Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2007. [ Volta ao Sumário ] 57 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a influênCia da meditação na saúde Ana márcia Pereira Lima Albernaz Como referenciar este capítulo: ALBERNAZ, Ana Márcia Pereira Lima. A influência da meditação na saúde. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 58-66. Ana Márcia Pereira Lima Albernaz1 1. Introdução Na atualidade, a humanidade atravessa um momento crítico devido ao do consumo ao consumo promovido pelo sistema capitalista que traz consequências drásticas para a sociedade moderna. O resultado dessa mudança no estilo de vida da população brasileira é o surgimento de diversas enfermidades como: depressão, ansiedade, diabetes, hipertensão, entre outras. No seio deste mundo caótico vem emergindo, o crescente interesse em estudos científicos sobre meditação. Esta atenção por parte dos pesquisadores pela dimensão espiritual curativa, tem levado a investigações, que apontam constatações de que as práticas e crenças espirituais dos pacientes, influenciam o cuidado e a recuperação da saúde. Diante desse contexto relacionado às problemáticas de saúde do homem moderno, e a necessidade de religação com o sagrado, formulamos os seguintes questionamentos: Qual a influência de meditação na saúde das pessoas? Que tipos de meditação são utilizados pelos praticantes? Desse modo os objetivos do estudo são: compreender a influência da meditação na saúde dos indivíduos e descrever alguns os tipos de meditação que podem influenciar no bem estar das pessoas. 2. Breve histórico sobre meditação Neste breve histórico iremos apresentar que foram os primeiros xamãs, os antepassados da prática meditação e de outros mestres espirituais. Sendo assim, a história da pratica da meditação, advém deste a pré-história, na época de “domesticação” do fogo. Segundo Assis Universidade Federal da Paraíba. Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões. E-mail: anamarcia.professora@gmail.com 1 59 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e (1995), no momento da caça ocorre o surgimento da meditação, quando caçadores primitivos impossibilitados de arcos possantes para abater a presa, deveriam aproximar-se dessas o máximo possível. Assim, houve a necessidade de silenciar a mente de todos os pensamentos, mantendo a atenção e esperando o momento exato de confrontar a presa. No enfrentamento com o inimigo, continua a discorrer que os guerreiros primitivos também necessitavam destas habilidades. As artes marciais, advindas do extremo oriente, seriam os descendentes contemporâneos destas práticas ‘meditativas’, pois todas dependem de um êxtase meditativo, do esvaziamento da mente e das ansiedades autoconscientes e bloqueadoras de ações. Em busca de benefícios psicossomáticos, os nativos procuram desenvolver dois quesitos: o primeiro seria uma melhor estratégia no momento da caça e o segundo, responder de forma positiva aos desafios que afligiam seus antepassados, diante da luta pela sobrevivência em ambiente hostil. Assim, descreve os antropólogos que os primeiros xamãs são os antepassados de meditação e de outros mestres espirituais (ASSIS, 1995). Danucalov (2009), cita sobre a saga Muhammad ibn abdallah, hoje conhecido como Maomé, dito como pessoa extremamente religiosa, absorto por horas em intensas preces. No ano 610 Dc, Maomé foi arrancado do sono e sentiu-se tomado por uma força divina. Tendo que recitar algumas “verdades divinas”, (escritos que seria chamado Corão). As aparições do Anjo Gabriel perduraram por 23 anos, e a totalidade desses escritos e relata que Maomé mergulhava em intenso estados de transe, chegando a perder a consciência, apresentava suores profundos, mesmo em dias muito frios, e alegava um peso interior, unido a um estranho sofrimento, que o obrigava a adotar uma posição semelhante, á realizada por alguns místicos(baixando a cabeça entre os joelhos e entrando em estado alterado de consciência). Estudos sobre os efeitos da prática da prece e da meditação, elucida sobre a origem da prática da oração do Rosário, que foi introduzida na Europa e trazida pelos árabes, durante o período das cruzadas. O relevante é que esta prática da oração do Rosário em que os árabes trouxeram para a Europa, supostamente a conheceram através dos monges tibetanos e de professores de yoga da Índia. 60 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A história mais conhecida sobre a meditação é a de Sidarta Gautama, após muitos anos de peregrinação em busca da verdade, dirigiu-se para debaixo de uma árvore, (árvore de tradição bramânica a fícus religiosa). Sidarta decidiu; que sairia debaixo daquela árvore se fosse lhe revelada a Verdade do seu destino. Deu-se o começo de sua pratica meditativa, na tentativa de decifrar os mistérios da vida e da morte, e de compreender sobre as injustiças mundanas e a realidade do divino, compreender o passado e o presente, tentando ultrapassar a ordem temporal. Porém, o príncipe das trevas, Mara, na intenção de impedir que Sidarta alcançasse a transcendência, tentava o futuro Buda de todas as formas, por meio de estratagemas, produzir visões de sexo, poder, enfim todos os tipos de ilusões. O pretendente iluminado resistiu, manteve intacto e decidido a alcançar seu propósito. Após muita resistência, Sidarta Gaudama afungentou Mara e seus demônios e encontrou a Verdade suprema (DANUCALOV, 2009). 3. Conceituando meditação O Ministério da Saúde conceitua Meditação, como Prática mental da medicina tradicional chinesa, isto é, uma prática mental, que favorece ao desenvolvimento cognitivo, auxilia pessoas no equilíbrio do humor, possibilita maior conexão entre mente, corpo e mundo exterior, baseia-se em treinar e focalizar a atenção de modo não analítico ou discriminativo, a reduzir o pensamento repetitivo e efetivar uma reorientação cognitiva. Sendo assim, a Portaria Ministerial nº 849 (2018, p. 7) preconiza que: A meditação desenvolve habilidades para lidar com os pensamentos e observar conteúdos que emergem a consciência ensinando a não se deixar influenciar poe eles e compreendendo-os como fluxos mentais. Coloca o indivíduo num local de equilíbrio e leveza, no centro de si mesmo. Assim, a meditação integra o rol de novas práticas institucionalizadas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. 61 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A respeito da meditação, os pesquisadores Varela, Thompson e Rosch (2003), argumentam que o seu propósito é levar a pessoa a tornar-se atenta, experimentar o que a mente está fazendo, enquanto ela o faz estar junto com a própria mente. Em outras palavra: O ato de meditar como dimensão fisiológica, é caracterizada por um estado alterado de consciência, no qual o organismo encontra-se em estado holometabólico, dominado na grande maioria das vezes pelo sistema autônomo parassimpático, estando ainda o indivíduo em vigília (DANUCALOVE; SIMÕES, 2009, p. 223). Os supracitados autores, esclarecem que uma das escolas de mediação mais conhecidas é a Meditação Transcendental – MT, esta é uma das técnicas mais populares, foi criada por Maraishi Mach Logui; um mestre indiano que desembarcou no Ocidente e popularizou a meditação por meio de artistas e celebridades de cinema. Consiste principalmente em concentrar-se em um MT específico e repeti-lo inúmeras vezes. Outra escola que chegou ao Ocidente, também originária da índia é a Meditação do Yoga, que consiste na observação dos pensamentos, para que seu fluxo incessante seja reduzido no qual o yogue permanece como um observador, como que projetando em tela em branco os pensamentos, ideias, imagens e cores que não cessam em nossas mentes. Os autores supracitados referem à existência de seis formas diferentes de meditação: a) Concentração, que é a forma mais genérica de treinamento mental, e encerra muitas aplicações não necessariamente espirituais. Podemos meditar no momento em que se escolhe um único ponto escuro em uma parede, fixando-se a atenção de forma intensa nesse mesmo ponto; b) Estado aberto, que é a forma de meditação onde o meditador torna-se um mero expectador dos pensamentos intrusos que invadem seu ser, estando atento a todos, porém não se deixando levar por nenhum deles; c) Destemor, a partir da qual o praticante esforça-se por trazer à mente uma certeza destemida, assim como uma confiança profunda e inabalável de que nada poderá perturbá-lo. Sem 62 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e d) e) f) hesitação, o meditador afirma internamente não ter aversão a nada, reforçando de forma mental a ideia: ‘não tenho nada a ganhar, não tenho nada a perder; Compaixão, é a partir da qual alguns praticantes de meditação buscam a produção de um intenso sentimento de amor e compaixão por todos os seres vivos levando à mente de que todos os seres são bons e inspiram felicidade; Devoção, é a forma na qual o praticante medita, estabelecendo como foco principal a devoção incondicional ao seu mestre ou a um ícone religioso que represente a sua doutrina; Visualização é a uma forma de meditação na qual o praticante pode construir em sua tela mental, uma imagem detalhada ou especificada. Geralmente, a posição utilizada para meditar em qualquer uma das escolas é sentada com a coluna ereta, com os braçosnreoaadd0se as mãos sobre os joelhos ou pés. Porém o praticante pode adotar qualquer outra postura, sendo importante permanecer consciente durante toda a prática. 4. Benefícios da meditação Na década de 70, Dr. Herbert Benson, cardiologista e professor da (Faculdade de Medicina da universidade de Harvad, em sua obra que tornou Best; Seller: The Relaxation Response, abordou os benefícios da meditação em seus pacientes. A motivação para esta investigação foi após observar que pacientes hipertensos, queixavam se de fraqueza e vertigem, e que a pressão sanguínea quando aferida em seu consultório eram de valores mais altos. O referido médico percebeu que tais alterações ocorriam devido a ansiedade que os pacientes apresentavam diante do médico. Sendo assim, seu objetivo foi unir dois mecanismos: (1 ) a meditação e (2) crença filosófica e religiosa. O cardiologista buscou estabelecer uma ponte entre a fé tradicional, a prática da meditação e a observação cientifica. Os resultados encontrados foram: a influencia 63 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e do fator fé, podia reduzir as dores causadas por angina ou até elimina a necessidade de intervenção cirúrgica. E 80% dos casos reduzir a pressão arterial e controlar problemas causados por hipertensão. Assis (1995), nos momentos de meditação, os impulsos correlatos do meditador estimulam o hipocampo direito que em contrapartida estimula a amígdala direita. A sensação de leveza, e prazer é o resultado de uma estimulação das porções laterais do hipotálamo. Este processo, realimenta o córtex pré-frontal reforçando todo o sistema em uma concentração progressiva que vai se intensificando em relação ao objeto. Devido as interconexões que envolvem o sistema límbico, pode evitar alterações emocionais de grande intensidade podendo assim contribuir para a saúde física e mental. 5. metodologia Pelo caráter plural do objeto deste estudo, buscou-se à luz das Ciências das Religiões, na sua linha de pesquisa Religiosidade e Saúde, também no seu viés multidisciplinar, analisar a adoção da Metodologia VEL e a Meditação, como práticas da Educação Emocional. Partindo dessa abordagem foi feita a opção pela investigação de natureza qualitativa com partindo de uma abordagem bibliográfica. Acerca da investigação qualitativa, pode ser dito, segundo Yin (2010), que estuda significados, representa opiniões e perspectivas, consegue ser mais abrangente e contextualizada, vai revelar conceitos existentes ou emergentes e usa múltiplas fontes. Já Sampieri; Collado e Lucio (2013, p. 33), afirmam que a pesquisa qualitativa, em sua etimologia, por se basear em uma lógica e em um processo indutivo (explorar e descrever, e depois gerar perspectivas teóricas) é bastante diversa e por demais abrangente. Por assim pensar, no entendimento de Creswell (2014), a importância se dá verdadeiramente no processo de pesquisa, bem como os procedimentos que a envolvem, que por sua vez, vão delinear a Investigação qualitativa, bem como o trabalho do pesquisador e o seu resultado. Assim, o autor vai afirmar que: 64 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Sobre a sua abordagem bibliográfica, Vergara (2007), aponta para a concepção de que diz respeito ao conjunto de conhecimentos humanos reunidos nas obras literárias. Este tipo de pesquisa conduziu ao ato de ler e de selecionar trechos que sejam relevantes para ao desenvolvimento da pesquisa. Além de buscamos a realização da pesquisa ancorada nas literatura cientifica, a qual feitas a partir da leitura, fichamento dos e resumos de alguns autores renomados, dentre eles Possebon (2017); Gonsalves (2015) e Vergara (2007), por exemplo. Salomom (2004), refere que a pesquisa bibliográfica se fundamenta em conhecimentos de outras ciências e técnicas empregadas de forma metódica envolvendo a identificação, localização e obtenção da informação, e redação do trabalho estudado esse processo solicita uma busca planejada de informações bibliográficas para elaborar e documentar um trabalho de pesquisa cientifica, lembrando que os teóricos reforçam a importância da interdisciplinaridade 6. Conclusão Portanto, a prática da meditação tem sido utilizada para o controle do estresse e outras doenças crônicas, contribuindo na melhora da saúde, qualidade de vida e bem estar físico e mental e espiritual. Alguns tipos de meditação que são utilizados praticantes: concentração, estado aberto, destemor, compaixão, devoção e visualização. Sendo assim, ressaltamos que a meditação é uma prática milenar, de extrema relevância, tendo em vista que, estudos apontam que essa prática meditativa já era realizada por nossos ancestrais, em busca da conexão com o sagrado. Além disso, a meditação não se restringiu apenas a história do oriente com Sidarta Gautama( Buda) mas sim, desde os períodos da pré-história, nas culturas xamânicas, nas artes marciais e com os personagens do cristianismo. 65 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ASSIS,Denise de, Os benefícios da meditação: melhora na qualidade devida, no controle do stress e no alcance de metas. Lavras/ MG,1995. https://revistas.pucsp. br/index.php/interespe/article/ viewFile/17445/12968 Acesso em abril 2019 glossario-tematico.pdfhttp:// portalarquivos2.saude.gov.br/ images/pdf/2018/marco/12/ glossario-tematico.pdf CRESWELL, J. W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 3.ed. Porto Alegre: Artmed/ Bookman, 2010. SAMPIERI, R. H.; COLLADO, C. F.; LUCIO, M. P. B. metodologia de pesquisa. 5 ed. Porto Alegre: Penso, 2013. DANUCALOV, Marcelo Árias Dias; SIMÕES, Roberto Serafim. Neurofisiologia da meditação. São Paulo, Phorte, 2009. VARELA, F; THOMPSON E; ROSCH, E. A mente incorporada: Ciências cognitivas e experiência humana. Porto Alegre: Art. Med., 2003. Práticas Integrativas e Complementares em Saúde Glossário Temático ministério da saúde Secretaria-Executiva Secretaria de Atenção à Saúde Tradução dos Termos para Espanhol – Inglês Projeto de Terminologia da Saúde – B -rasília – DF 2018. http://portalarquivos2.saude.gov. br/images/pdf/2018/marco/12/ VERGARA, Silvia Constant. A pesquisa na metodologia e produção científica. São Paulo, Martins Fontes, 2007 SALOMON, D. V. Como Fazer uma monografia. 11 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. YIN, Robert K. Pesquisa qualitativa – do início ao fim. Porto Alegre: Penso, 2016. ALMEIDA Alexander MoreiraLucchetti Giancarlo; Panorama das pesquisas em ciência, [ Volta ao Sumário ] 66 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a liteRatuRa enCantada dia de Reis xukuRu do oRoRuBá Natally Araújo da Silva Galindo Como referenciar este capítulo: GALINDO, Natally Araújo da Silva. A literatura encantada dia de reis Xukuru do Ororubá. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 67-77. Natally Araújo da Silva Galindo1 Introdução Este artigo é proveniente de um recorte extraído de um estudo sobre pontos e performances de Toré realizado junto ao povo Xukuru. Trata-se da monografia intitulada por A literatura dos encantados: performance e etnografia do povo Xukuru do Ororubá, apresentada no ano de 2017, na UFRPE-UAG, para obtenção do grau de licenciada em Letras – Português, Inglês e suas respectivas Literaturas. Este trabalho versa sobre Pontos ou cantos e traços de performances de Toré, com o intuito de compreender como são reveladas características etnográficas dos Xukuru do Ororubá, povo indígena que habita no município de Pesqueira- PE. Isso a partir da celebração do Dia de Reis, ocorrida no ano de 2017. Através de pesquisa etnográfica foi possível conceber os Pontos de Toré como A Literatura Encantada, que permeia o universo religioso Xukuru. Para tanto, utilizou-se como aporte teórico Candido (1996; 2006), para embasar os estudos literários; Hall (2005), para tratar da dinamicidade identitária; Peirano (1995), no que tange os estudos etnográficos e Zumthor (2007; 2010), para análise das performances da voz e do corpo. O presente texto está disposto em duas seções, na primeira é analisada a dimensão religiosa do Toré Xukuru, sob um viés literário, e na segunda é feita uma descrição e análise teórica da celebração ritualística do Dia de Reis. Graduada em Letras – Português, Inglês e suas respectivas Literaturas, pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de Garanhuns (UAG); Pós-graduada em Metodologia do ensino de língua portuguesa e Literatura, pela Faculdade Educacional da Lapa (FAEL), polo- Arcoverde- PE; Mestranda em Educação Contemporânea, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Centro Acadêmico do Agreste (CAA); pesquisadora no grupo de pesquisa no Laboratório de Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: natallyaraujo_2010@hotmail.com. Orientadora: Profª. Drª. Marcia Felix da Silva Cortez. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4091073515532694. E-mail: marciafelixuag@yahoo.com 1 68 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Considerando-se essa celebração, buscou-se respostas para a seguinte problematização: Pontos e performances de Toré revelam traços etnográficos do povo Xukuru, contribuindo para o fortalecimento de sua identidade? É imprescindível que a memória do povo Xukuru seja preservada e reconhecida. Estudar os Pontos ou canções de Toré aponta ser uma possível maneira de contribuir para esse fim, uma vez que, grande parte deles é apenas resguardada pela oralidade. Nesses termos, objetivou-se incitar o reconhecimento e valorização dos Pontos de Toré, enquanto produção artística e literária, essencial para o fortalecimento identitário e cultural da etnia em pauta. Nesses parâmetros, espera-se ser plausível, contribuir para estudos sobre performance, etnografia e literatura. Principalmente, os voltados ao povo Xukuru, frisando que cultura é algo dinâmico, ou seja, está em constante transformação, embora, esse ideal seja negado por aqueles que tentam deslegitimar as culturas indígenas, porque elas não atendem ao imaginário do índio estereotipado, arraigado a uma condição de subalternidade, que vem sendo propagada desde o período colonial. 1. Literatura encantada: Toré Xukuru do Ororubá O Toré é dotado de plurissignificação para os membros do povo Xukuru do Ororubá, ele pode significar ritual, dança, religião e união. Para compreender a sua dimensão simbólica, é essencial pontuar que: O Toré é uma crença de origem muito especial, que faz o povo indígena acreditar que estamos mais próximos do nosso pai Tupã. Com o Toré podemos preservar nossos costumes e nossas tradições. Portanto, não podemos deixar o Toré sagrado desmoronar, cair no esquecimento, porque é através do Toré que o povo indígena adquire forças para viver e para lutar pelos seus direitos. Devemos procurar manter essas tradições. O Toré representa, para os índios, a vida, um ato de louvor a Tupã e Tamain, nossa padroeira e mãe. Enfim, o Toré representa uma purificação em tudo aquilo que nos cerca (ALMEIDA, 2000, p. 41). 69 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Diante disso, é possível perceber que Toré e religião são dimensões indissociáveis na cultura Xukuru. Os Pontos de Toré se referem às canções compartilhadas em rituais e danças, assim, é possível compreendê-los como cantos ou canções pertencentes à poesia oral. Assim, “O texto oral, devido a seu modo de conservação, é menos apropriável que o escrito; ele constitui um bem comum no grupo social em que é produzido. Nesse sentido, ele é mais concreto que o escrito” (ZUMTHOR, 2010, p. 258). É importante destacar que a dança e o ritual de Toré também são elementos correlacionados, assim, expressar os limites entre ambos é uma tarefa que requer bastante atenção. Contudo, algumas de suas particularidades é que durante o ritual há a realização da pajelança2, ingestão da jurema3 e, além disso, algumas situações ritualísticas são restritas, apenas, para indígenas, em determinados casos, por questões religiosas; já o momento de execução das danças revela-se mais aberto aos não-indígenas. Inclusive, os Xukuru se mostram felizes quando não-indígenas compõem a dança do Toré, porque eles compreendem que essa ação significa respeito e soma de forças. Diante disso, cabe ressaltar que os Pontos de Toré do povo Xukuru não apenas comunicam, mas também expressam seus traços etnográficos, através do canto e dança, do corpo e da voz. O próprio processo de criação literária de um Ponto de Toré é uma particularidade cultural, pois ele é estabelecido no plano religioso, uma vez que, são os encantados que revelam os cantos para aqueles que possuem o dom de ouvi-los e, posteriormente, os ensinarem para os demais indígenas. Portanto é através do compartilhamento que os Pontos de Toré configuram um dos seus maiores propósitos, o da união. Assim, cabe pontuar que Ritual realizado pelo pajé, liderança espiritual da etnia, para louvar Tupã, entre outras entidades espirituais, além disso, a pajelança é feita para possibilitar o encontro com os encantados, na busca de conselhos e forças para as lutas no Território Xukuru. 3 É uma planta sagrada com a qual se faz uma bebida de mesmo nome, através de sua ingestão os Xukuru acreditam ser possível entrar em contanto com os encantados, entidades religiosas, espíritos de guerreiros falecidos. “Portanto, a Jurema (Mimosa hostilis) e sua complexa forma religiosa, que é árvore sagrada e que é espaço mítico sagrado, nos mostrarão o quanto é possível revelar uma teologia nordestina brasileira indígena, tipicamente catimbozeira” (OLIVEIRA, 2011, p. 1083). 2 70 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas, agindo, permitem por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando repercussão no grupo. As relações entre o artista e o grupo se pautam por esta circunstância e podem ser esquematizadas do seguinte modo: em primeiro lugar, há necessidade de um agente individual que tome a si a tarefa de criar ou apresentar a obra; em segundo lugar, ele é ou não reconhecido como criador ou intérprete pela sociedade, e o destino da obra está ligado a esta circunstância; em terceiro lugar, ele utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veículo das suas aspirações individuais mais profundas (CANDIDO, 2006, p. 35). Diante disso, cabe destacar também que segundo Candido (1996, p. 11) “A literatura é o conjunto das produções feitas com base na criação de um estilo que é finalidade de si mesmo e não instrumento para demonstração ou exposição”. Nesses termos, a literatura Xukuru sobrepuja interesses artísticos ou financeiros porque está alçada nos liames da fé. 2. Dia de Reis Xukuru O dia 06 de janeiro é dedicado à comemoração do Dia de Reis, no calendário de festividades Xukuru, esse evento ocorre na aldeia Pedra D’Água. No ano de 2017, ele começou por volta de 9 horas da manhã, o cacique Marcos recebeu as bênçãos do pajé, bebeu jurema e, em seguida, deu-se início ao ritual de pajelança, no qual foram cantados vários Pontos de Toré, essencialmente, os da linha4 da Jurema e, também, de Oxóssi, o Rei das matas. Durante o ritual muitas pessoas, incluindo algumas lideranças Xukuru como o cacique, o pajé e o Bacurau receberam encantados. A expressão se refere a segmentos, subdivisões, conjuntos de pontos dedicados as entidades espirituais. Por exemplo a linha de Oxóssi, engloba os pontos de Toré destinados a sua louvação. 4 71 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A aldeia Pedra D´água é um espaço sagrado para etnia Xukuru, portanto a escolha desse ambiente é de fundamental importância para celebração do Dia de Reis, pois é o local no qual Chicão5 morou e foi plantado, além disso, é o lugar onde Marcos recebeu o cacicado. Primeiramente, foi realizado um ritual de pajelança no terreiro e outro na Pedra do Reino, como o próprio nome sugere ela é grande pedra considerada sagrada para o povo em pauta. Durante esse primeiro ritual, uma peculiaridade percebida quanto aos traços de performance durante as incorporações dos encantados foi que além dos braços esticados e postos um sobre os outros, dos rodopios, corpos trêmulos, pisadas mais fortes ao ritmo dos Pontos que se intensificavam, dos choros, gritos, corpos lançados bruscamente ao chão ou sobre quem estivesse próximo, características ocorridas em outros momentos, no Dia de Reis alguns índios estavam emitindo sons peculiares a de pássaros. Isso pode ter sido propício pelo contexto espacial, ou seja, na natureza: As sociedades humanas exploram, mais ou menos rigorosamente, essas virtualidades, privilegiando institucionalmente certos lugares. Quando intervém uma norma ritual, ela ata uma cadeia de identificação entre o espaço e o tempo sacralizados, mimetizando assim alguma eternidade utópica. [...] todas as culturas possuem ou possuíram seus lugares sagrados, umbilicais, enraizando o homem na terra e testemunhando que ele dali saiu; e penso que nunca li que algum desses lugares não tenha sido ligado a alguma prática encantatória ou poética. Subsiste, nas sociedades diferenciadas, mais que traços desse antigo estado. As práticas religiosas contribuem para mantê-lo. Mas, ao fim mesmo das laicizações de toda ordem, a sacralidade se interioriza, e se camufla em simples especialização: assim, por todo mundo, lugares preparados para dança e a execução vocal que geralmente a acompanha (ZUMTHOR, 2007, p. 162). O contexto espacial da celebração ritualística do Dia de Reis demostra se perfazer sob a égide citada acima. A aldeia Pedra D’Água e a Pedra do Reino são consideradas sagradas para os Xukuru, portanto, Nome pelo qual ficou conhecido o Cacique Francisco de Assis Araújo, uma das maiores lideranças indígenas do Brasil e do mundo. Ele foi assassinado em 1988, devido a conflitos no contexto da luta pela retomada de terras (NEVES, 2005). 5 72 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e em torno delas se engendram histórias que ligam os índios a esses espaços, principalmente, em momentos ritualísticos. Após a pajelança iniciou-se a dança do Toré, ao som do memby6, em seguida começou-se a cantar os Pontos, deles selecionou-se o qual nomeou-se de Ponto 1 para a análise seguinte. Ponto 1 Obrigado Orubá e obrigada Orubá, tava sentado na beira do mar Obrigado Orubá e obrigada Orubá, tava sentado na beira do mar Obrigado Orubá e a pisada do Orubá, tava sentado na beira do mar Obrigado Orubá responderam Orubá, tava sentado na beira do mar Obrigado Orubá e dando viva a Orubá, tava sentado na beira do mar Obrigado Orubá e obrigada Orubá, tava sentado na beira do mar Obrigado Orubá e obrigada Orubá, tava sentado na beira do mar Obrigado Orubá e a pisada do Orubá, tava sentado na beira do mar Obrigado Orubá responderam Orubá, tava sentado na beira do mar Obrigado Orubá e dando viva a Orubá, tava sentado na beira do mar Através do Ponto 1 os Xukuru objetivam dar vivas e agradecer ao seu Deus o Mestre do Ororubá as virtudes que lhes são concedidas, por tudo aquilo de bom que ocorre para todos os demais integrantes da etnia em foco e pelas forças fornecidas pelos encantados. Ao término de cada verso do Ponto repetem-se as seguintes palavras tava sentado na beira do mar. Presume-se que essa referência ao mar pode ser advinda do fato de que os Xukuru cantam linhas relacionadas ao mar, como a de Iemanjá (rainha do mar) na religião da umbanda. É cabível acrescentar a informação que o Ponto em questão é cantado, geralmente, no intervalo de tempo situado entre o início e o fim da dança do Toré. Dada a plasticidade dos textos orais é possível que em circunstâncias posteriores esse mesmo Ponto sofra alterações, rente, entre outras questões, à dinamicidade identitária que a cultura indígena, assim como qualquer outra está sujeita, uma vez que, A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia [...] é realmente algo formado, ao longo do tempo, 6 É um espaço considerado sagrado que se destina para a prática de rituais e danças do Toré. 73 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento [...] em vez de falar de identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento” (HALL, 2005, p. 38-39). Diante disso, presume-se que esse seja um dos fatores pelo qual, “diferente do que se constata em outras ciências sociais, dados etnográficos antropológicos frequentemente são alvo de reanálises” de acordo com Peirano (1995, p. 51). Feitas essas considerações, cabe observar que na Fotografia 01, adiante, é possível perceber a concentração de todos os que estavam participando dessa dança do Toré, observando na imagem a posição das bocas e dos corpos dos Xukuru é dedutível o quanto cada gesto é simbólico no contexto em evidência. Nesses termos, sobre a recepção do texto poético é cabível pontuar o que segue: O ouvido, com efeito, capta diretamente o espaço ao redor, o que vem de trás quanto o que está na frente. A visão também capta, certamente, um espaço; mas um espaço orientado e cuja orientação exige movimentos particulares do corpo. É por isso que o corpo, pela audição, está presente em si mesmo, uma presença não somente espacial, mas íntima. Ouvindo-me, eu me autocomunico. Minha voz ouvida revela-me a mim mesmo, não menos – embora de uma maneira diferente – que ao outro (ZUMTHOR, 2007, p. 87). Nesses termos, é possível presumir através da fotografia em destaque, assim como nas demais observações feitas, que os índios eram as pessoas que se mostravam mais concentradas em relação à voz que deles emanava, considerando-se a presença de não-indígenas na dança. Acredita-se que a recepção do público (que na maioria das vezes demonstrava admiração) presumivelmente, não se daria da mesma forma como para aqueles já inseridos dentro da cultura em pauta. 74 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Fotografia 1. Toré no Dia de Reis Fonte: GALINDO, 2017. Um detalhe importante a ser acrescentado sobre a Fotografia 01 é que muitos dos indígenas que dançavam estavam descalços, fato simbólico, pois se acredita que a poeira do Toré pode curar muitas doenças e renovar as energias, o ato de ficar descalço implica também em um maior contato com a natureza. Considerações finais Chegou-se ao entendimento de que os Pontos de Toré compõem a literatura Xukuru, que não nasce com fins literários ou lucrativos, e sim religiosos, por intermédio dos espíritos de luz ou encantados. É diante disso, que esses Pontos foram aqui denominados como A Literatura dos Encantados, uma vez que a sua autoria, provém de uma dimensão espiritual. A literatura Xukuru emerge para todos e tem sido perpassada para as novas gerações de maneira oral, condição favorável para as transformações dos Pontos de Toré, que podem acompanhar a dinamicidade 75 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que provém da oralidade e mesmo da flexibilização identitária da etnia Xukuru. Embora, ainda resista um imagético estereotipado de que os povos indígenas e, respectivamente, suas tradições devam manter-se inalteradas e aquém de qualquer privilégio da chamada modernidade. O próprio Ritual do Dia de Reis, em análise, revelou que está passível à atualizações, perante as novas conotações que passou a receber em torno do cacicado de Marcos. Para exemplificar essa questão é relevante postular que a escolha o dia 06 de janeiro como o primeiro dia do calendário Xukuru é em si uma reconfiguração ritualística extremamente simbólica, pois é o primeiro dia em que Marcos recebe dos encantos a missão de ser cacique. Momento propício para rememorar sua posição de liderança no seio da religião indígena, associada a tradições católicas, também seguidas pelo povo Xukuru. Por fim, anseia-se pelo o dia em que o povo Xukuru não tema em expor sua religião, podendo vivê-la em sua plenitude sem riscos de ser depreciado ou mesmo perseguido. Espera-se que os rituais indígenas não sejam mais sufocados pelas vozes do preconceito e da desinformação que as tentam dizimá-los desde a invasão ao Brasil, vulgo descobrimento. 76 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALMEIDA, Eliene Amorim de. Xukuru filhos da mãe natureza: uma história de resistência e luta. Olinda: Centro Luiz Freire, 1997. CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 5. ed. São Paulo: Humanitas Publicações, 1996. ______. Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. GALINDO, Natally Araújo da Silva. A Literatura dos Encantados: Performance e Etnografia do Povo Xukuru do Ororubá. Trabalho de conclusão de curso (Monografia em Literatura) – UFRPE, Garanhuns, 2017. Orientação de Marcia Felix da Silva Cortez. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de janeiro: dp&a, 2005. NEVES, Rita de Cássia Maria. Dramas e Performances: o processo de reelaboração étnica Xukuru nos rituais, festas e conflitos. Tese (Doutorado em Antropologia) – UFSC, Florianópolis, 2005. Orientação de Esther Jean Langdon. PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1995. SANTOS, Hosana. A religiosidade Xukuru: dialogando sobre símbolos e rituais. 2015. Disponível em: <https:// sites.google.com/site/samtappga/ ensaios/hosana>. Acesso em: 18 mar. 2017. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007. ______. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. [ Volta ao Sumário ] 77 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a memóRia simBóliCa e a místiCa do toRé dos povos indígenas taBajaRa da paRaíBa márcia medeiros Figueiredo Lusival Antonio Barcellos Como referenciar este capítulo: FIGUEIREDO, Márcia Medeiros; BARCELLOS, Lusival. A memória simbólica e a mística do Toré dos povos indígenas Tabajara da Paraíba. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 78-91. Márcia Medeiros Figueiredo1 Lusival Antonio Barcellos2 Introdução A proposta do artigo é ressaltar a memória simbólica indígena no ritual do Toré dos Tabajara. A memória evoca ações inconscientes, ressignificando a cultura, a religiosidade e a espiritualidade o que contribui para o reavivamente desses povos. Para Oliveira, Rosa e Mariano (2017, p. 06), “[...] a memória é indispensável à renovação permanente da própria cultura, pois faz parte do processo de produção da informação, sendo fundamentada na coletividade (pessoas e instituições)”. Este texto traz a memória dos Tabajara da Paraíba através dos símbolos encontrados na dança do ritual do Toré. No momento místico do Toré, os indígenas entram em contato com elementos simbólicos, cujos significados evocam sua ancestralidade e isto contribui para o ressurgimento e fortalecimento de suas tradições, assim como tantos outros espalhados pelo Brasil. Esse povo está em fase de etnogênese, isto é, o processo que busca a identidade étnica, a qual está arraigada e clarificada nos saberes culturais advindos dos anciãos também conhecidos como troncos velhos3. O estímulo em escrever sobre este assunto partiu de uma questão extremamente pessoal, depois de estudar no curso de graduação de Pedagogia em Educação do Campo sobre populações camponesas dentre elas os povos indígenas, os quais se encontram em uma batalha Mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bolsista CAPES. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/0864882710933683. E-mail: marcinhamedeiros2@gmail.com. 2 Professor Doutor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e do Programa de PósGraduação em Ciências das Religiões (PPGCR/UFPB). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/9836893918228181. E-mail: lusivalb@gmail.com. 3 Os troncos velhos servem como reserva de memória, de cultura e de religiosidade – trazendo em si um passado real ou imaginado, que passa a fazer parte do presente, informa, o justifica e o organiza, e não apenas como lembranças ou resgate (ARRUTI, 1995, p. 77). 1 79 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a fim de reaver seus territórios e seus direitos sociais e coletivos, pela valorização dos seus costumes, tradições, etnia, identidade, espiritualidade/religiosidade, além da busca por melhorias de vida. Segundo Lisboa (2017, p. 79-80), [...] os povos indígenas estão hoje vivendo um momento histórico importante de reelaboração da consciência étnica e da autoestima indígena, uma recuperação do orgulho nativo e da cidadania, acompanhada da retomada de tradições que estavam deixando de ser praticadas, devido ao preconceito e perseguições que sofriam. Os Povos Indígenas Tabajara da Paraíba, originários do litoral Sul da Paraíba, residem nas periferias das cidades de João Pessoa, Alhandra, Pitimbu, Conde e em duas aldeias: Vitória, na Mata da Chica; e Barra de Gramame, ambas também no município do Conde-PB. Desde o final do século XIX, não se falava em Tabajara na Paraíba. Esses indígenas foram invisibilizados e silenciados devido às perseguições que sofreram. Os troncos velhos tinham muito medo de revelar que eram indígenas e preferiam sabiamente “silenciar” e viver em paz por trás de costumes que não eram próprios da sua cultura. Nesse contexto: Podemos dizer que a história do povo Tabajara é similar à de tantas etnias indígenas do Brasil que buscam afirmação étnica, reconhecimento enquanto povo, direito, dignidade, respeito e, sobretudo, lutam pela conquista de um território. Esse povo está presente nos anais da história brasileira até o século XIX, quando cessaram os registros historiográficos sobre esses indígenas, levando muitos a acreditar na complexa extinção da etnia na Paraíba. Devido às perseguições, às opressões e aos preconceitos, os Tabajara ficaram silenciados no último século (BARCELLOS, et al. 2014, p. 28). Com base no estudo etnográfico, a pesquisa foi realizada com abordagem qualitativa, “porque lidamos com o sujeito histórico e suas subjetividades, valores, crenças, afinidades, gestos, partilhas, significados, motivos, aspirações, valores, atitudes etc.” (MINAYO, 2003, p. 22). Como instrumentos de pesquisa a observação participante foi utilizada no momento da dança do ritual, investigando os significados simbólicos dos elementos trazidos pelo grupo ou individualmente. 80 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O indígena / A memória / O símbolo Sabemos que, nos tempos hodiernos, os povos indígenas do Brasil em especial os indígenas do Nordeste estão passando por um processo de etnogênese4, devido ao fato de ter vivido um longo período de silenciamento, ou seja, não podiam dizer quem são de verdade e de lutar por seus direitos de ser indígena. Foram tempos de muito sofrimento em que os primitivos tinham que esconder suas tradições, mito, língua, cultura, etnia, costumes, espiritualidade / religiosidade e não podiam “gritar” pelas suas terras/territórios, enfim, não lhes era permitido assumir sua identidade para preservarem suas vidas e não serem dizimados. De acordo com Lisboa (2017, p. 71): Esses processos de etnogênese são ainda hoje responsáveis pelo crescimento contínuo, desde o início desse movimento histórico ainda nos anos 1970, dos assim autodeclarados índios, cada vez mais numerosos nos censos estatais. O agrupamento em torno de uma identidade étnica – ou seja, em torno de um vínculo novo e ancestral ao mesmo tempo – funciona agora como um instrumento político desses povos frente às ameaças e pressões crescentes (ou em ondas, oscilando conforme os interesses dos mercados e dos projetos governamentais) sobre seus territórios e modos de vida tradicionais. O processo de ressignificação desses povos primitivos se dá a partir de outros povos que conseguiram resistir em parte às opressões sofridas por muitos donos de grandes propriedades – alguns latifundiários, pois, ao estabelecer uma ligação interétnica conseguem fazer uma troca de saberes nas suas tradições e costumes, e, assim, interagem de forma espontânea coletando aquilo que considerar “relevante ou adequado” para levar as suas comunidades indígenas. Para Oliveira (1998, p. 60), Populações amazônicas submetidas ao longo de séculos a relações de dominação e subordinação, e que devido a esse sistema discriminatório já não se identificavam mais como indígenas–os “caboclos”, ribeirinhos e os chamados “índios civilizados” – passaram a se reagrupar em torno de identidades étnicas renascidas, reconhecendo em si mesmos e sobretudo nas relações que travam entre si e com o território um diferencial marcante perante às formas convencionais da “cultura nacional” (LISBOA, 2017, p. 71) 4 81 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O processo de territorialização não deve jamais ser entendido simplesmente como de mão única, dirigido externamente e homogeneizador, pois a sua atualização pelos indígenas conduz justamente ao contrário, isto é, à construção de uma identidade étnica individualizada daquela comunidade em face de todo o conjunto genérico de “índios do Nordeste”. Os pajés Pankararu podem ensinar a comunidades de parentes desgarrados como se faz um “praiá” (cerimonial em que as máscaras dançam representando os “encantados”), mas cada nova aldeia (assim como cada grupo étnico dali surgido – como os Pankararé, os Kantaruré e os Jeripancó) irá levantar sua própria “casa dos praiás”, instituindo a sua própria galeria de “encantados” e instaurando uma relação específica com os “encantados” mais antigos. Esse momento de ressurgimento provavelmente se concede através das memórias indígenas, as quais são trazidas pelos troncos velhos. “A memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais.” (CHAUÍ, 2005, p. 125). Existem vários tipos de memórias – biológica, individual, coletiva, o que contribui para um trabalho com maior agilidade quando é possível recordar tais lembranças e, por isso, podem-se construir e reconstruir histórias para que outras gerações possam se apropriar de conhecimentos que não ficarão perdidos e sim recuperados através da informação que alimenta a memória. A memória pode ser evocada através dos cinco sentidos: paladar, visão, audição, olfato e tato. Sentidos esses provocativos de processos comunicativos verbais e não-verbais na linguagem dos sujeitos. Nas palavras de Barcellos e Farias (2015, p. 56), “[...] a memória é uma categoria essencial para o meu objeto, pois o povo indígena se apropria da memória para repassar suas tradições às suas gerações. A memória é um dos elementos utilizado pelo povo Tabajara para construção de sua história.” No Brasil, a chegada da Família Real Portuguesa, por volta de 1808, trouxe em sua bagagem cultural a primeira biblioteca e a imprensa, as quais contribuíram de forma bastante positiva para a expansão de gráficas e editoras de livros o que tornou um negócio muito lucrativo 82 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e e também conservador de memórias. Apesar de os donos de empresas estarem voltados para o capital, essa fabricação de livros auxiliou numerosamente no desenvolvimento do lado intelectual e mnemônico. Sendo assim: A memória, como um fenômeno de ocorrências variadas, tem períodos de retração, enquanto outras formas ganham espaço. Nessa trajetória, Assmann problematiza esse fenômeno a partir das tradições (mnemotécnica, discurso de identidade), das perspectivas (memória cultural, coletiva, individual) e das mídias (textos, imagens, lugares). Ao longo do livro, analisando suas funções, meios e armazenadores, apresenta ao leitor os diferentes caminhos que levam à memória. A memória é, pois, o veículo transmissor da informação e do conhecimento produzido (OLIVEIRA; ROSA; MARIANO, 2017, p. 02). Falando sobre memória não se podem olvidar os símbolos, os quais são chamadores de lembranças passadas ou que estejam armazenadas no nosso inconsciente esperando o “gatilho” do despertar e possa vir à tona quando são “provocadas” ao entrar em contato direto com determinados objetos que tenham um valor significativo. Nas populações primitivas, acredita-se que possui uma infinidade de símbolos, os quais estão representados pelos seus maracás, cocares, indumentárias, artefatos, vestimentas, música, dança, dentre outros constituintes, cada qual com suas peculiaridades. Segundo Eliade (2002), “uma característica essencial do símbolo é a sua multivalência, ou seja, a capacidade que possui de expressar simultaneamente um número de significados cuja relação não é manifesta no plano da experiência imediata” (GOMES, 2013, p. 24). Lévi-Strauss (2008, p. 65) explica a natureza simbólica de sistemas de parentesco em 1945: Porque são sistemas de símbolos, os sistemas de parentesco fornecem ao antropólogo um campo privilegiado, no qual seus esforços quase (e insistimos no quase) atingem os da ciência social mais desenvolvida, isto é, a linguística. Mas a condição desse encontro, de que se pode esperar uma melhor compreensão do homem, é jamais perder de vista o fato de que, tanto no caso do estudo sociológico 83 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e como no do estudo linguístico, estamos em pleno simbolismo. E se é legítimo, até inevitável, em certo sentido, recorrer à interpretação naturalista para tentar compreender o surgimento do pensamento simbólico, uma vez dado este, a explicação deve mudar radicalmente de natureza, tanto quanto o fenômeno recém-surgido difere de todos os que o precederam e prepararam. Nesta passagem significativa, o próprio símbolo fala através de uma linguagem não-verbal que se tornará verbal (falada/escrita). O sentido simbólico é bem relativo, e, provavelmente, terá uma representatividade a partir da cultura que o indivíduo estar inserido. Alves (2010) afirma que, “[...] os símbolos se transfiguram, uma vez que saem do plano do imaginário para se tornarem aspectos do mundo real”. Segundo Pitta (2005, p. 18), [...] o símbolo é todo signo concreto evocando, por uma relação natural, algo ausente ou impossível de ser percebido. É uma representação que faz “aparecer” um sentido secreto. Os símbolos são visíveis nos rituais, nos mitos, na literatura, nas artes plásticas, etc. Na cultura dos povos indígenas, o ritual do Toré é um símbolo de indianidade de todas essas populações no Brasil; a dança tem um significado muito forte nas suas lutas e celebrações além de conter outros elementos bastante representativos como o cocar, maracá, vestimentas, instrumentos, adornos, toadas, o ritmo dos passos de dança através da música, tudo repleto de ancestralidade e de uma importância ímpar para tais povos que sentem no momento místico/sagrado da dança as energias da “mãe natureza e dos encantados”. O ritual místico da dança do Toré Tabajara A história da maioria dos povos indígenas, seja no Brasil ou em qualquer região no caso do Nordeste e até mesmo na Paraíba, é marcada por muitas lutas: de territorialidade, etnia, costumes, cultura, tradições; são inúmeros embates para permanecer vivo todo esse arcabouço histórico dessas populações, a fim de que possam ser repassados 84 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a cada geração seguinte e assim continue vivo todo esse aparato de tradições indígenas os quais se tornam patrimônios histórico-culturais. Baniwa (2006, p. 39 apud LISBOA 2017, p. 80) esclarece que: Os povos indígenas do Brasil vivem atualmente um momento especial de sua história no período pós – colonização. Após 500 anos de massacre, escravidão, dominação e repressão cultural, hoje respiram um ar menos repressivo, o suficiente para que, de norte a sul do país, eles possam reiniciar e retomar seus projetos sociais étnicos e identitários. Culturas e tradições estão sendo resgatadas, revalorizadas e revividas. Terras tradicionais estão sendo reivindicadas, reapropriadas ou reocupadas pelos verdadeiros donos originários. Línguas vêm sendo reaprendidas e praticadas na aldeia, nas escolas e nas cidades. Rituais e cerimônias tradicionais há muito tempo não praticados estão voltando a fazer parte da vida cotidiana dos povos indígenas nas aldeias ou nas grandes cidades brasileiras. Os indígenas Tabajara significa “Senhor da Aldeia” pela linguagem tupi (BARCELLOS; FARIAS; CÓZAR, 2015). Barcellos et al (2014, p. 30) relata a história indígena do povo Tabajara através do Cacique geral Ednaldo: [...] junho de 2006 tem início a luta com a reunião dos troncos velhos que viveram a história, levantamento da documentação histórica de etnia (mapa da sesmaria da Jacoca); 2007, Ano das Alianças, começamos a consolidar alianças com o movimento indígena e indigenista, como o Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA), Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste e Minas Gerais (APOINME), Conselho Nacional Indigenista (CIMI), Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e outros; em 2008, ano do Povo, tem início o reagrupamento, sensibilização, instigando-os a revitalizar suas raízes Tabajara na Paraíba; o quarto ano, 2009, Ano da cultura com a revitalização de sua tradições, dos rituais, do toré, da pintura, do artesanato, da oca, da cosmologia, do modo de viver; 2010, este ano e marcado pela entrega do Relatório de Fundamentação Antropológica a Funai, identificação do povo pela Funai e a promulgação dos Tabajara para o Brasil e mundo. Esse povo, desde 2006, está nesse processo de ressignificação das suas tradições, entre elas a dança do ritual do Toré, o que faz com que vários povos a transmita através de uma educação informal e 85 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e posteriormente formal quando repassados conhecimentos teóricos e, ao mesmo tempo, práticos sobre os costumes da etnia para o seus descendentes. Lisboa (2017, p. 79-80), traz na sua fala que: [...] os povos indígenas estão hoje vivendo um momento histórico importante de reelaboração da consciência étnica e da autoestima indígena, uma recuperação do orgulho nativo e da cidadania, acompanhada da retomada de tradições que estavam deixando de ser praticadas, devido ao preconceito e perseguições que sofriam. A dança do ritual do Toré é um símbolo de luta e celebração dos povos indígenas. A arte da dança, ao ser realizada, movimenta os corpos daqueles que participam e também dos que assistem o Toré. O ritual rememora mitos, ritos, símbolos, ancestralidade, ressignifica e reaviva a cultura, os costumes e tradições (VILHENA, 2005), de modo que os elementos utilizados no rito têm suas próprias representações para o povo Tabajara repassar para os sucessores e permanecer vivo tudo o que pertence a essa etnia indígena. Ressaltamos a importância de ressignificação a partir de outros povos indígenas para rememorar suas tradições dentre eles: [...] o Toré Potiguara é o principal rito da sua etnia, é realizado nas comemorações dentro e fora das aldeias. Segundo Nascimento et al (2012, p. 43) o ritual “[...] é praticado nas festas religiosas ou sociais, na alegria, na tristeza e na luta tendo todo um enfoque político-social-religioso”( PEREIRA; WANDERLEY, 2018, p. 05). No referido ritual sagrado, diversos elementos têm os seus significados peculiares na sua representatividade. São eles – cocar, maracá, saia, adereços (colares, pulseiras), cachimbo, defumador, bumbo, gaita, música, dança, etc. Tudo que está presente nesse rito desvela o imaginário, o qual tem a possibilidade de trazer do inconsciente individual ou coletivo memórias que estavam guardadas “esperando” o momento talvez oportuno para serem rememoradas. Sendo assim, [...] esta dança se configura em rotações com sentido horário, enquanto executam os movimentos cantam e tocam músicas autorais escritas por seus antepassados e também pelos componentes 86 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e indígenas que possuem a aptidão para compor novas letras. As canções entoadas durante o ritual, narram as histórias e lutas da etnia e enaltecem suas divindades, este é um momento sagrado que aproxima o índio das suas raízes culturais (PEREIRA; WANDERLEY, 2018, p. 05). Ao se considerar como sendo elementos simbólicos dentro de um contexto de religiosidade, sacralidade, espiritualidade, misticismo, concedem-se significados a objetos concretos que representam algo não concreto dentro de uma perspectiva mágica5, o que faz com que sejam caracterizados inconscientemente dando um valor extremamente subjetivo, o qual poderá talvez carregar a transcendência mística, por exemplo, e venha a tornar-se fenomenal6, elementar, essencial no imaginário de cada ser. Pereira e Wanderley (2018, p. 07) afirmam que: [...] o Toré simboliza representação do que é ser índio, este rito fortalece e uni o grupo. Segundo Barcellos (2012, p. 282) “o Toré é uma das principais práticas religiosas [...]”, este ato, diante de sua relevância perante a etnia estudada, expõe em sua mais nítida forma a essência Potiguara. Numa experiência mística, ao se relacionar intrinsicamente com o sagrado ocorrem vivências ímpares, indescritíveis, imensuráveis no sentido de somente inebriar conhecimento aquele que viver plenamente tal experiência e provavelmente ao ser relatados em gestos; palavras dificilmente terão o mesmo significado para aquele que vivenciou num rito carregado de sacralidade: Assim, para o homem religioso o tempo também se apresenta de forma heterogêneo, com intervalos (duração): o tempo sagrado e Segundo Mauss, do fato de que a religião tende à criação de imagens ideais, enquanto a magia olha para o concreto, para o plano imediatamente operacional. A magia é vista essencialmente como uma “arte do fazer”, que possui a capacidade de colocar “a serviço da imaginação individual forças e ideias coletivas” (MASSENZIO, 2005, p. 127). 6 Fenômeno religioso: reflexões que se caracterizam por uma abordagem sociológica à realidade cultural e que, justamente em virtude disso, enriquecem com possibilidades inovadoras o campo das ciências religiosas. Uma das melhores obras sobre religião de Durkheim é: Le formes élémentaires de la vie religieuse, (Paris, 1912) (MASSENZIO, 2005, p. 99). 5 87 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e o tempo profano. O tempo sagrado é o tempo reversível, um tempo mítico primordial (tempo original – fora a temporalidade) que está presente e está a todo momento representando a reatualização de um evento sagrado. Enquanto o tempo profano é a duração temporal do cotidiano, tem um começo e um fim. “Esse comportamento em relação ao Tempo basta para distinguir o homem religioso do homem não-religioso. O primeiro recusa-se a viver unicamente no que, em termos modernos, chamamos de ‘presente histórico’: esforça-se por voltar a unir-se a um Tempo sagrado que, de certo ponto de vista, pode ser equiparado à ‘Eternidade’” (ELIADE, 1999, p. 64). Desse modo, no ritual7 do toré é apresentada essa sacralidade para as populações indígenas. Geralmente a dança é iniciada com a realização de orações de modo que o cacique e os demais presentes balançam seus maracás invocando os encantados, ao Deus Tupã pedindo licença para suas ações, a fim de que tragam energias positivas para o seu povo e todos que se encontram no local sagrado. Posteriormente continuam o ritual com uma dança circular onde os indígenas participam e também os que estiverem no ambiente se sintam à vontade para praticar o rito. Considerações finais A dança do Toré está presente nos rituais dos povos indígenas do Nordeste (GRUNEWALD, 2005). É um símbolo sagrado repleto de inúmeros elementos com valores significativos dentro do rito. Através deles pretendemos evocar tais memórias, a fim de que essa investigação O seu primeiro efeito [do rito] é, pois, o de aproximar os indivíduos, de multiplicar os contatos entre eles e de torná-los mais íntimos. Já por isso mesmo o conteúdo das consciências muda. Durante os dias mais comuns, as preocupações utilitárias e individuais ocupam maior espaço nos espíritos. Cada um ocupa-se de sua tarefa pessoal; para a maior parte das pessoas, trata-se, antes de tudo, de satisfazer as exigências da vida material [...]. Certamente os sentidos sociais não poderiam estar totalmente ausentes dela. Permanecemos em relação com nossos semelhantes; os hábitos, as ideias, as tendências que a educação imprimiu em nós e que normalmente presidem nossas relações com os outros continuam a fazer sentir sua ação. [...] Só se reunindo é que a sociedade pode reavivar a percepção, o sentimento que tem de si mesma (DURKHEIM apud VILHENA 2005, p. 26-27). 7 88 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e resulte na produção de um conhecimento científico acerca dessa tradição cultural milenar. Isso possibilitará contribuir para a ampliação do conhecimento acumulado pelo pesquisador, bem como para a construção, reformulação e transformação das teorias científicas e a realização da função social em benefício dos costumes de um povo que luta para pemanecer viva sua etnia. Portanto, através dessa arte da dança, a pesquisa torna-se mais prazerosa, possibilitando ao pesquisador um conhecimento novo ou totalmente novo, isto é, o pesquisador pode aprender algo que ignorava anteriormente, porém já conhecido por outro ou então chegar a dados desconhecidos por todos. Pela pesquisa chega-se a uma maior precisão teórica sobre os fenômenos ou problemas concretos. Dessa forma, os aspectos culturais e referentes às memórias dessa etnia seja social / individual / coletivo são trazidos com os elementos simbólicos encontrados / percebidos na dança do Toré, o que certamente poderá ou não interferir na dinâmica interna da mística e da espiritualidade nesse rito sagrado e transcendental, seja mantendo, inibindo ou modificando aquilo que é praticado nessas sociedades primitivas. 89 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Edições Loyola, 2010. 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(Coleção Temas do Ensino Religioso). [ Volta ao Sumário ] 91 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a Revista tRimensal e a ConstRução da identidade adventista no BRasil Daniel da Silva Firino Carlos André macedo Cavalcanti Como referenciar este capítulo: FIRINO, Daniel da Silva; CAVALCANTI, Carlos André Macedo. A Revista Trimensal e a construção da identidade adventista no Brasil. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 92-107. Daniel da Silva Firino1 Carlos André Macedo Cavalcanti2 Introdução Este trabalho pretende analisar a importância da Revista Trimensal (atual Revista Adventista) na construção de uma identidade brasileira dos adventistas do sétimo dia no início do século XX. Foram utilizadas, como fontes primárias, oito edições publicadas entre 1906 e 1907. A partir de então, mudasse o nome para Revista Mensal e posteriormente para Revista Adventista em 1931. A temática possui relevância acadêmica diante da tímida produção existente sobre o protestantismo e o uso de impressos na formação de suas identidades. Ademais, é importante compreender o papel desempenhado pelas revistas e jornais protestantes no início do século XX. Têm-se como objetivos identificar e analisar as práticas, os ritos, os mitos, as representações e o conjunto simbólico que foram utilizados na revista Trimensal para construção de uma identidade cultural desenvolvida nesta afiliação religiosa. A inserção das ideias adventistas no Brasil deu-se no final do século XIX. Segundo Borges (2000), um jovem chamado Borchardt, pensou que tinha matado um homem durante uma briga e para evitar ser preso, fugiu do país em um navio europeu. Durante a viagem, ele se encontrou com missionários adventistas que pegaram o endereço do seu padrasto que se chamava Carlos Dreefke que morava na comunidade alemã de Bruske (SC). Pelo que se sabe, Dreefke começou a receber a revista Stimmeder Wahrheit (A Voz da Verdade) por volta de 1884. A partir de então, a mensagem adventista3 começou a se espalhar por todo solo brasileiro principalmente pelas comunidades alemãs. Mestrando em Historia (PPGH- UFPB). http://lattes.cnpq.br/2815789935227215. E-mail: danielfirino@hotmail.com 2 Doutor em Historia. Professor Associado da UFPB. http://lattes.cnpq.br/7764634 726743516. E-mail: carlosandrecavalcanti@gmail.com 3 Conjunto de crenças, símbolos e valores adventistas transmitidas pelos seus discursos. 1 93 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Azevedo, referindo-se as mudanças desse período no país, escreveu o seguinte: Em nenhuma outra época do século XIX, depois da Independência, se prepararam e se produziram acontecimentos tão importantes para a vida nacional como no último quartel desse século em que se verificou o primeiro surto industrial, se estabeleceu uma política imigratória, se aboliu o regime de escravidão, se iniciou a organização do trabalho livre e se inaugurou, com a queda do Império, a experiência de um novo regime político (1971, p. 615). Contudo, apenas em 1894 que a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) enviou Frank H. Westphal, o primeiro pastor adventista a pisar em solo Brasileiro. Porém, o primeiro batismo só aconteceu em 1995 no qual Guilherme Stein, que vivia em Rio Claro (SP), tornou-se o primeiro adventista batizado no Brasil. Após batizado, Stein exerceu forte liderança sobre o adventismo no Brasil, tornou-se diretor do colégio internacional em Curitiba e editor das publicações adventistas no Brasil. Tal função foi conquista devido a seus conhecimentos em inglês e sua fluência em alemão e português. Desta forma, tornou-se uma ponte entre o órgão central da instituição, que estava localizado nos estados unidos, e os adventistas de origem alemã e brasileira. Em 1900 é fundada a Sociedade Internacional de Tratados no Brasil que era responsável pelas publicações institucionais. A sua primeira publicação foi à revista O Arauto da Verdade (1900 – 1913) que possuía como editor Guilherme Stein e em 1906 a tipografia muda-se para uma chácara em Taquary (RS) que foi comprada pela Conferencia do Brazil4 onde já estava funcionando uma escola adventista e a clinica de A. L. Gregory. Segundo Gregory (1906), em janeiro de 1906, em Taquary, já estava sendo impresso O Arauto da Verdade e a revista na língua alemã Rundschau der Adventisten. A Revista Trimensal também seria impressa a partir do seu segundo numero (abril – junho). Porém, no final de 1907 Divisão administrativa que gerencia as igrejas e grupos da instituição no Brasil. Ela durou até 1906 quando foram criadas a União sul americana e as conferencias do Rio Grande do Sul e Santa Catarina 4 94 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e já se cogitava a mudança da tipografia para um lugar mais bem localizado para melhorar a distribuição das revistas. A revista Trimensal (RT) foi importante para a construção de uma identidade adventista brasileira. Suas páginas, das primeiras até as últimas, possuem símbolos, ritos, mitos e representações do que é ser um adventista. Portanto, para compreender melhor a sua função nessa construção, o trabalho será dividido em três partes. A primeira, o cabeçalho da primeira página das revistas, a segunda, seções e autores e a ultima, Considerações Finais. Cabeçalho da primeira página das revistas A RT não possuía capa e seu conteúdo já se iniciava na primeira página, entretanto, ela possuía um cabeçalho na primeira página de cada revista. Apesar de ser pequeno, ele é riquíssimo de significados. Ele era composto pelo título, o nome do órgão que a revista era filiada, a mensagem bíblica e o local e data da impressão. Começaremos pelo então nome. Inicialmente este periódico recebia seu nome de acordo com suas periodicidades. O primeiro nome foi Revista Trimensal que durou de 1906 a 1907. Em 1908, ela passa a se chamar Revista Mensal e em 1931 o nome atual, Revista Adventista. Este trabalho visa analisar o período inicial da revista, ou seja, enquanto ela ainda possuía o nome de Revista Trimensal. Como citado anteriormente, a RT possuía esse nome devido a sua periodicidade. Apesar de que atualmente, o termo trimensal possui o sentido de três vezes no mês, a revista era publicada trimestralmente. Ela deixa claro sua periodicidade ao se referir as lições da escola sabatina da seguinte forma: “É o desígnio usar as lições que se acham aqui na escola sabbatina, principiando com o primeiro sabbado de Janeiro de 1906. Temos aqui treze lições ou para trez mezes” (GREGORY, 1906, p. 1). Diante disso, Benedicto e Borges, ao se referir ao nome da revista, falam que “o periódico nasceu como Revista Trimensal. O nome estava errado, uma vez que deveria ser Revista Trimestral, por ser publicada de 95 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e três em três meses, não três vezes por mês, mas a ideia estava certa” (2006, p. 9). Após o nome do periódico, segue-se a frase Órgão da Igreja Brasileira dos Adventistas do Sétimo dia. Tal afirmação tem objetivo de informar a quem ele pertence, mas também fazer demarcações de fronteiras. Segundo Silva, A afirmação da identidade e a marcação da diferença implica, sempre, as operações de incluir e de excluir. [...] dizer “O que somos” significa também dizer “o que não somos”. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora.[...] essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo afirmam e reafirmam, relações de poder (2008, p. 82). O nome Igreja Adventista do Sétimo dia trás consigo um apelo identitário. O nome Adventista refere-se à pregação da segunda vinda de Jesus. Os adventistas pregam que Jesus voltará de forma literal e visível a toda humanidade para levar os salvos para o céu onde passarão mil anos. Após esse período, a cidade santa, a nova Jerusalém, descerá do céu para a terra onde permanecerá para sempre depois da restauração da terra5. Para compreender essa crença é necessário voltar às origens dessa instituição. A igreja adventista surgiu de um movimento chamado milerita que pregava a segunda vinda de Jesus para algo em torno de 1843 a 1844. Após nada acontecer na data marcada, muitos abandonaram o movimento e outros buscaram entender o que havia acontecido. Os pioneiros adventistas fizeram parte desse segundo grupo, para eles Jesus havia passado do lugar santo para o santíssimo no santuário celestial e poderia voltar a qualquer momento. Desta forma, a pregação do segundo advento tornou-se uma das características principais da identidade adventista. Há, portanto, um forte apelo escatológico do mito da era de ouro. Para Eliade (1963), este mito é comum a várias religiões, existe um desejo do retorno ao paraíso, para isso a terra terá que ser destruída e recriada. “O paraíso possui assim um caráter paradoxal: por um lado, corresponde ao contrário deste mundo – a pureza, liberdade, beatitude, imortalidade e tudo mais; por outro, é concreto, isto é “não “espiritual”, e encontra-se incluído neste mundo, visto por uma realidade e identidade geográfica (ELIADE, 1989, p. 131).” 5 96 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O termo do sétimo dia refere-se a guarda do sábado para fins missionários e filantrópicos6. A separação desse dia como dia santo remonta as origens do movimento adventista. Nem sempre os adventistas guardaram o sábado, contudo em 1844 um grupo de adventistas, por influência de Rachel Oakes7, passaram a exercer essa prática. Mais tarde, José Bates8, Thiago e Hellen White também aceitaram a guarda do sábado e ela passou a ser uma das principais crenças dos adventistas. Percebe-se que o nome dessa instituição trás consigo uma identidade que a difere das demais e tal identidade é reforçada na RT. Além disso, o nome igreja brazileira é uma forma de criar uma identidade própria desvinculada da norte-america, mas também tem objetivo de permanecer unida a ela por serem todos Adventistas do sétimo dia. Abaixo tem o texto bíblico santifica-os na tua verdade, a tua palavra é a verdade João 17:17. Os adventistas consideram-se como pregadores da verdade9 e enviados por Deus para levá-la a todo o mundo. Isso pode ser visto em vários relatos como o que Spies escreveu: “Damos graças ao nosso Pae celestial pelas ricas bênçãos a nós conferidas para a pregação da verdade e consagramo-nos novamente a Elie e a Sua obra” (1906, p. 2). Ademais, com esse texto bíblico, fica claro uma das principais crenças adventistas que é herança protestante, a Sola Scriptura. A bíblia é a regra de fé e a base das doutrinas adventistas. Desta forma, cria-se outra fronteira entre aqueles que seguem a sola scriptura e os que não seguem e estes últimos estão excluídos dessa identidade. Isso é importante tendo em vista que o Brasil sempre foi um país católico e tal Segundo Eliade, “Tal como o espaço, o tempo não é, para o homem religioso, nem homogêneo nem continuo. [...] por meio de ritos o homem religioso, pode ‘passar’, sem perigo, da duração de temporal ordinária para o tempo sagrado” (1992, p. 38). O sábado para os adventista é um dia sagrado que inicia-se no por do sol da sexta-feira e termina no por do sol do próprio sábado. Através do ritual do culto por do sol, é feita a passagem do tempo profano para o tempo sagrado e vise versa. 7 Ela era batista do sétimo dia que começara a frequentar uma igreja adventista. 8 Bates foi um dos pioneiros do adventismo junto com Thiago White e Hellen Harmond, que mais tarde se casaria com Thiago e adquiriria seu sobrenome. 9 Para Knight (2011), essa verdade é chamada de verdade presente e possui uma natureza dinâmica. Com o tempo essas crenças vão sendo reformuladas, reinterpretadas e até mesmo substituídas. 6 97 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e identidade religiosa não acredita na bíblia como única fonte de inspiração e utiliza-se para interpretação bíblica a tradição e no magistério. Por último, a cidade e a data de publicação: Rio de Janeiro10, Janeiro de 1906. Possivelmente a RT poderia ter seu primeiro numero impresso em Taquary, onde o restante foi impresso, mas os editores preferiram que a capital brasileira fosse à cidade do primeiro número da revista. Talvez, essa escolha tenha sido uma forma de legitimação de uma identidade adventista brasileira no qual possuía um periódico cujo primeiro número saiu da capital do país. As seções e os autores Com relação às seções, serão analisadas as suas funções e sua importância na formação de uma identidade adventista brasileira. Já com os autores, iremos identificar padrões que os ligam. Durante os dois anos de publicação da RT, ela teve 08 números publicados, um total de 104 páginas, 69 seções e 12 autores nominalmente identificados. Primeiro será trabalhada as seções e depois os autores. A revista trimensal não possuía uma estrutura fixa, portanto cada edição tinha uma divisão própria com títulos variados. Logo para analisar suas seções elas foram agrupas de acordo com o seu conteúdo e a natureza da informação. Sendo assim, as cinco seções que mais se repetiram foram: notícias dos campos, editorial, avisos à escola sabatina, lições da escola sabatina e conferências. Elas possuíam as quantidades de publicações nas respectivas ordens 20, 9, 8, 8 e 6. As noticias dos campos são as que mais aparecem. Elas traziam informações das viagens dos pastores para os mais diversos lugares do país. Os pastores informavam como estava o desenvolvimento da instituição, quantas pessoas eles batizaram, a fundação de uma igreja ou grupo, etc. é muito comum ser encontrado nos relatos um forte apelo 10 Era a capital do Brasil, apenas a primeira edição o restante foi em Taquary no Rio Grande do Sul. 98 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a “irmandade” ou a “fraternidade”, a alegria no batismo ou comumente chamado de “sepultamento no senhor11” como podemos ver a seguir: No dia 11 de Julho chegei à nossa irmandade em Sto.Antonio da Patrulha onde trabalhei sob a benção de Deus. Sabbado 29 de Julho tive o privilegio de sepultar 5 almas com o Senhor no baptismo; 53 irmãos tiveram reunido com outro tanto de fóra. Também os escarnecedores não faltaram (SCHWANTES, 1906, p. 3). Os membros da igreja são representados como irmãos que fazem parte de uma grande irmandade que cresce a cada dia com várias pessoas que aceitam a mensagem e aderem o seu estilo de vida como descreve Schwantes: “Também os irmãos ahi ja principiaram a pagar os dizimos, e se dispor a cozer com azeite, plantando amendoins a este fim para mandar soccar e tirar o azeite” (1906, p. 4). Convém falar agora sobre os editoriais. Estão classificados como editoriais todas as comunicações e avisos dos responsáveis da revista ao leitor, exceto da lição da escola sabatina, pois serão analisadas melhor separadamente. O primeiro editorial intitulado Saudações foi escrito por Gregory (1906) e traz as primeiras informações sobre o periódico como público alvo que eram os membros de língua portuguesa, sua periodicidade trimestral, etc. Também eram utilizadas para informar aos membros sobre seu dever de adventistas como, por exemplo, auxiliando o crescimento da instituição ofertando com dinheiro ou vendendo materiais da denominação como da seguinte forma: Quem reconhece o seu dever para com Deus, e não está no alcance de offertar a obra do Senhor com dinheiro, etc. poderá fazer bons serviços para o Senhor em vender os “Arautos” encadernados dos quaes temos 800 em deposito. Pois se espalhará muita verdade com a venda delles, podendo salvar-se muitas almas. [...] Esperamos que muitos irmãos aproveitam esta occasiào própria para 11 Para Eliade “a imersão na água como instrumento de purificação e de regeneração foi aceito pelo cristianismo e enriquecido por novos valores religiosos. [...] No cristianismo, o batismo tornou-se o principal instrumento de regeneração espiritual, pois que a imersão na água batismal equivale ao enterramento de cristo” (2008, p. 159-160). 99 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e introduzir estas verdades em muitos corações que andam pelas trevas deste mundo (PARTICIPAÇÃO, 1906, p. 3). As escolas sabatinas, que eram incentivadas pela Associação Internacional da Escola Sabatina12, são classes bíblicas realizadas todos os sábados antes do culto. Entre as suas funções está a de revisão das crenças adventistas através das lições. Os avisos voltados à Escola Sabatina tinham o objetivo de informar a quantidade de Escolas e de membros, afastamento de liderança, orientações para sua realização como, por exemplo: “Na abertura da escola sabbatina não deveria o superintendente usar de um longo prólogo, nem tão pouco ler todo hymno de abertura. Basta que um ou dous versos sejam lidos em quanto os congregados abrem os livros” (A DIREÇÃO, 1906, p. 4). As lições para Escola Sabatina ocupavam grande parte da RT. Das 104 páginas publicadas 75 eram desta secção, o que seria em torno de 72,11% do periódico. A grande quantidade de páginas indica a sua importância para os editores, pois nessas seções eram estudas as crenças que compunham a identidade adventista e desta forma estabeleciam uma fronteira que delimitava o que é ser um adventista. De acordo com Benedicto e Borges (2006), as lições nem sempre possuíam um temática bem definida. Contudo, houveram revistas em que todas as trezes lições abordavam o mesmo tema. No total foram 104 lições que abordavam vários temas, no entanto convém conhecermos os que mais se repetiram. Os três principais foram às relacionadas com profecias, o sábado e os dízimos e ofertas. 12 [Associação Internacional da Escola Sabatina] originou-se por iniciativa de James [Thiago] White, que anunciou pela Review a revista mensal Youth’s Instructor, editada a partir de 1952. Em Rochester e Bridge, Nova York, surgiram dois grupos de pessoas que se dispuseram a estudar as lições bíblicas da revista, as Escolas Sabatinas, mais tarde incorporadas ao ritual da igreja. Após a escola-modelo de Battle Creek ter surgido, um de seus dirigentes sugeriu a criação de uma associação que englobasse as Escolas Sabatinas em cada Estado, com objetivo de consultas mútuas; sugestão levada a efeito na Califórnia e em Michigan, após o que, o plano generalizou-se. Essas associações estaduais vieram a formar a Associação Internacional das Escolas Sabatinas, que chegaram a financiar, diretamente, o proselitismo no estrangeiro. A participação na Escola Sabatina não tem, como pré-requisito, o batismo na Igreja e a classificação de membro da Escola Sabatina indica esta característica.” (OLIVEIRA FILHO, 2004, p.165) 100 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referindo-se aos adventistas desse período George Knight escreveu: Os primeiros adventistas do sétimo dia prezavam sua identidade. Amavam suas grandes doutrinas básicas: o segundo advento, o sábado, o santuário celestial e o estado dos mortos. Entendiam que o foco integrativo de sua teologia era a cadeia profética que vai de Apocalipse 11:19 a 14:20 (2005, p. 91). A forte ligação dos adventistas com as profecias bíblicas remontam a sua origem. O movimento milerita era fortemente ligado ao estudo das profecias bíblicas que falavam da segunda vinda de Jesus. E após a fragmentação desse movimento, a busca por respostas fez com que os pioneiros adventistas aprofundassem seus estudos nas profecias. Desta forma, chegaram à conclusão que Jesus voltaria em breve e que eles teriam uma mensagem urgente a levar a todo mundo. Logo, os estudos sobre as profecias bíblicas estão na base da identidade adventista junto com a pregação do retorno de Jesus e a guarda do sábado13 que seria mais tarde adotada pela igreja. Os dízimos e as ofertas também são importantes para a identidade adventista, pois se há uma mensagem urgente para levar a todo mundo necessita-se de uma forma de sustentar as pessoas e os meios para se fazer isso. Desta forma, contribuir financeiramente não é apenas sustentar a instituição, mas é feita a representação de que contribuir financeiramente a obra é tomar posição ativa na evangelização para espalhar esta mensagem. E por isso Westphal escreveu que os Dízimos e offertas não devem ser retidos, pois só com a máxima fieldade pode progredir a obra. Todos sem excepção devem sentir uma responsabilidade pessoal e reconhecer que é o seu dever de alumiar Rio Grande do Sul com a terceira mensagem. O Senhor pôz esta responsabilidade sobre elles (1906, p. 3). A última seção que convém trabalhar é a que trata sobre as “Conferências”. As conferências eram uma divisão administrativa organizacional da IASD. Elas possuíam reuniões periódicas para mostrar o 13 Como a relação dos adventistas com a guarda do sábado já foi trabalhada acima, não convém trabalhá-la novamente neste momento. 101 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e crescimento e planejar os próximos passos da instituição. No Brasil, até 1906, existia a Conferencia do Brazil que foi dissolvida e foram criadas a União Sul-Americana e duas conferências, a do Rio Grande do Sul e outra em Santa Catarina. Além disso, foram criadas missões em todo o país. Desta forma, estas seções serviam para informar aos leitores sobre as reuniões e o que ficou decidido nelas. É importante salientar que até 1906 a igreja brasileira dependia muito da americana, mas a partir desta data, ela ficaria subordinada a União Sul-Americana. As conferências buscariam independência financeira enquanto as missões seriam mantidas pela União Sul-Americana. Esta divisão foi favorável à criação de uma identidade adventista sul-americana e consequentemente também contribuiu para uma identidade adventista brasileira. Spicer falando sobre as vantagens da nova divisão organizacional escreveu que Todos os irmãos reconheceram a vantagem, que offerece a divisão dos campos e a organisação da Conferencia União Sul Americana. Isto significa que maior obra e progresso mais rápido será feito. Deus vos convida com isto a ajudar com os vossos esforços, orações e meios. O território está pois repartido e entregue ás Conferencias e Missões, como Canaan foi repartido entre os tribus d’Israël no tempo de Josué. Eis pois chegado o tempo, para os crentes occuparem a terra em nome de Deus d’Israël e possuil-a. Jesus o commandante do exercito de Deus em cada paiz, guia nos á Victoria certa (1906, p. 4). Outro ponto muito importante são as pessoas que escreveram para esse periódico. A RT chegou a ter 12 autores nominalmente conhecidos, mas também houveram várias seções em que autores não puderam ser identificados. Os que mais escreveram para a revista foram Emilio Holzle, A. L. Gregory, F. W. Spies, H. F. Graf e A. Pages. Todos possuem sobrenomes estrangeiros. Isso se dá por dois motivos: falta de mão de obra missionária brasileira e o perfil dos primeiros conversos. A igreja brasileira estava ainda dando seus primeiros passos, ainda não existiam seminários para a formação de pastores e por causa disso todos os obreiros eram estrangeiros e normalmente vindos dos 102 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Estados Unidos ou Alemanha. Percebe-se isso nas palavras de Spies após a criação da União Sul-Americana, ele relatou o seguinte: Agradecemos aos nossos irmãos na America do Norte, dos quaes após o Senhor somos devedores, pelo amor a nós mostrado, mandando obreiros e meios, afim de que fosse também ouvida a mensagem aqui na America do Sul e organizando a Conferencia União S. A. promettemos de continuar a obra no mesmo espirito e para o mesmo fim (1906, p. 2). E quanto ao perfil dos primeiros conversos, Schunemann escreveu que O perfil destes primeiros conversos era formado por uma camada simples da sociedade rural. É interessante que as colônias alemãs no sul do país ou no Espírito Santo composta de protestantes e pequenos proprietários rurais eram semelhantes ao perfil do Adventismo do sétimo dia nos Estados Unidos, por ocasião de sua formação. Há uma cultura bíblica que mantém boa parte destas comunidades de imigrantes. Embora nem todos alemães fossem protestantes, é entre estes que o Adventismo faz sua inserção e expansão (2003, p.32). Com o objetivo de inverter essas duas situações, começaram a criar medidas com intuito de habilitar obreiros brasileiros para converter o seu próprio povo como descreve Westphal ao falar sobre as medidas a serem tomadas com a nova União: “Ainda mais resolveu-se que a instrucção na escola deve ser principalmente na língua portugueza, visto que devem ser formados obreiros para os campos brasileiros” (1906, p. 4). Tanto os obreiros quanto os primeiros membros possuíam identidades diferentes da maioria da população brasileira. Desta forma, para o desenvolvimento dessa instituição no país, era necessário romper com as barreiras identitárias construindo uma identidade adventista brasileira. E essa construção deu-se principalmente através dos periódicos incluindo a RT. Para isso, foi necessário um rompimento gradual com o estrangeirismo inicialmente predominante na igreja no país. 103 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Considerações finais Para a construção de uma identidade adventista brasileira, a principal ferramenta utilizada na RT foram às representações. Para Silva, “A identidade e a diferença estão extremamente associadas a sistemas de representação” (2008, p. 89). Ademais, “A representação atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no seu interior” (Woodward, 2008, p. 8). Através das representações foi construído um ideal do ser adventista. Esse ideal está repleto de símbolos, demarca fronteira, classifica o mundo, e normaliza a sociedade. Há, portanto, uma exclusão14 do outro e uma luta de representações15 no qual essa representação do ser adventista torna-se o padrão e possui as características positivas. Para silva, Normalizar significa eleger – arbitrariamente- uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa (SILVA, 2008, p. 83). Logo, diante de tudo que foi exposto nesse trabalho e das analises das fontes, conclui-se que os adventistas brasileiros eram aqueles que faziam parte de uma irmandade crescente, pregavam a verdade e a segunda vinda de Jesus, guardavam o sábado, possuíam uma forte ligação com as profecias bíblicas e alimentação saudável e auxiliavam o crescimento da obra com seus talentos e com seus bens através dos dízimos e das ofertas. 14 Para Woodward, “A diferença pode ser construída negativamente – por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que são definidas como “outros” ou “forasteiros” (2008, p. 50). 15 “[as lutas de representas de representações] dedica a atenção às estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um “ser percebido” constitutivo de sua identidade”. (CHARTIER, 2002b, p. 73), além disso, “[...] lutas de representação cujo desafio é a hierarquização da própria estrutura social”. (CHARTIER, 2002b, p. 76) 104 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Esses conjuntos de representações16 foram difundidos ao longo de toda a RT. Portanto, ela possuiu um papel importante na construção de uma identidade adventista no Brasil. Sem um periódico direcionado ao público adventista seria difícil estabelecer uma identidade que abarcasse o Ser Adventista em um país como o Brasil de tamanho continental, que passava por várias mudanças e com uma diversidade cultural gigantesca. As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnostico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as forjam. (CHARTIER, 2002a, p.17) 16 105 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências A DIREÇÃO da Escola Sabatina. In: Revista Trimensal, Taquary, v. 1, n. 2, p. 4-5, 1906. GREGORY, A. L. Saudações. In: Revista Trimensal. 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Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 108-122. Concília Cléria Ferreira Muniz1 1. Introdução Este estudo propõe investigar a expansão do Yoga no Brasil no Brasil da Nova Era, e tem significativa relevância, tendo em vista que um resgate histórico sobre o desenvolvimento desse sistema na Índia e posteriormente no Brasil constitui uma contribuição importante para a História e para o campo das Ciências das Religiões. A pesquisa sobre Yoga encontra-se inserida na linha de pesquisa sobre história, filosofia e fenomenologia das religiões. Assim abrange, estudos de antigas civilizações indianas, como também as transformações ocorridas a partir da incorporação de outras culturas, no caso em particular, a cultura brasileira. Além desses aspectos, verificamos que a história do Yoga no Brasil, contém uma lacuna no que diz respeito à pesquisa sobre Yoga. Assim, o trabalho desenvolvido, vêm ampliar a nossa visão acerca da tradição do Yoga praticada na Índia, trazida para o Brasil na década de 50 e divulgada no movimento da Nova Era nas décadas de 80 e 90. Tais colocações nos conduziram aos seguintes questionamentos: Como aconteceu a expansão do Yoga no Brasil da Nova Era? Quais os métodos e técnicas utilizadas pelos praticantes de Yoga no Brasil da Nova Era? Para realização desse trabalho, utilizou-se a revisão de algumas obras importantes da literatura de caráter acadêmico e cientifico da Tradição do Yoga, das Ciências das Religiões, da História das Religiões e do movimento da Nova Era no Brasil. Possui Graduação e Licenciatura em Enfermagem pela Universidade Federal da Paraíba(1991), Especialização em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Paraíba(2001) Mestrado em Enfermagem pela Universidade Federal da Paraíba (2005).Cumpriu estágio de Mestrado na área de Saúde Pública(UFPB,2004).Possui formação complementar na área de Yoga,massagem terapêutica e Reiki (método Mikao Usui). 1 109 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 2. Breve história do Yoga De acordo com Feuerstein (2005), no sentido mais amplo a palavra sânscrita Yoga significa “disciplina espiritual” no hinduísmo, no janaísmo e em certas escolas de budismo. E sob um ponto de vista mais estreito, o Yoga é um ramo particular da gigantesca árvore da espiritualidade hindu, sendo o Vedanta e o Samkhya os dois outros grandes ramos. A palavra Yoga é derivada da raiz verbal yuj (“jungir” ou “cangar” ou “arrear”). O que deve ser jungido é a atenção que de ordinário desloca-se incessantemente de objeto em objeto. Desse modo, os métodos e técnicas aplicadas nas aulas de Yoga, prepara o aluno para entrar em estado de meditação. A atenção voltada ora para o corpo, ora para a respiração, ora para observação dos pensamentos ou para o momento presente, cessa ou diminui os turbilhões da mente. Yoga é a cessação das flutuações da mente. Para Micea Eliade (2004) o Yoga pode ser definido como: Um conjunto de técnicas que permitem ao homem realizar a si mesmo, fundir a sua consciência egóica, individual com a mente universal. Desde sua origem, o problema central da filosofia é a busca da verdade, mas não a verdade para enaltecer o ego do filósofo, mas sim a verdade como meio para atingir a libertação da ilusão. O fim supremo do sábio na Índia é a conquista liberdade: “libertar-se equivale a impor-se outro plano de existência, apropriar-se de outro modo de ser, transcendendo a condição humana”. (ELIADE,2004, p. 20). Assim, por meio da união ou fusão da consciência individual com a consciência universal, o praticante de Yoga alcança a transcendência, vive a experiência divina e atinge a libertação do ego. Nessa linha de raciocínio, o mestre de Yoga indiano BKS Yengar (2010), enfatiza que, Yoga significa elevar a inteligência do corpo ao nível da mente e então atar as duas para uni-las a alma. A alma e o espírito, o céu acima de nós. O Yoga é o instrumento que liga os dois, à multiplicidade à unidade. A representação metafórica da ligação entre o céu e a terra corresponde a união do corpo e da mente – e destes com alma universal – é o 110 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e elemento central das grandes definições de Yoga. Por isso, mesmo não tendo um sistema teológico próprio, o Yoga seria uma forma de religião. Pois seu objetivo supremo seria a própria fusão – ou união – com o espírito divino do qual se acredita que tudo deriva, e do qual tudo faz parte GNERRE, 2010). Na concepção de Hérmógenes, (2004) Yoga é uma filosofia, uma ciência, uma técnica de vida que há milhares de anos vem servindo de caminho de volta aqueles que buscam por novamente, fundirem-se na plenitude. Yoga também quer dizer unificação de si mesmo. O propósito original do Yoga sempre esteve conectado ao aspecto espiritual da existência humana, ao que chamamos religare- processo de religar o homem ao ser divino. Isto constitui o objetivo supremo do yoga, assim podemos traduzir como um processo de busca do praticante pelas próprias transcendências do ego, que segundo um dos princípios filosóficos do Yoga é um dos aspectos da consciência que nos torna sempre sujeitos individuais separados do mundo no qual estamos imersos. Apesar da tradição do Yoga não obedecer a períodos lineares, o entendimento ocidental, dividiu esse sistema filosófico indiano em três períodos: pré-clássico, clássico e pós-clássico. O período pré-clássico antecede a formação do Yoga como disciplina filosófica e espiritual, dissociada de outras disciplinas ou sistemas de pensamento da Índia. Nesse mesmo período ocorre a produção dos textos Upanisads, textos escritos no final e no período posterior aos Veda, às escrituras sobre as quais se fundamenta a tradição Hindu. Os Upanishads são escritos posteriores aos Vedas. Trata-se de um gênero da literatura hindu. Segundo Feuerstein (2005) a palavra Upanishad, significa “sentar-se perto do próprio mestre”, e seria uma referência à transmissão oral do conhecimento esotérico de mestre para discípulo. Os mais antigos foram compostos antes do Budismo, datando talvez do segundo milênio antes de Cristo, e os mais recentes datam do século XX. Todos os Upanishads são considerados revelações sagradas, pertencendo à parte da sabedoria, em oposição à parte ritual da tradição védica. As técnicas de Transcendência do Yoga surgem neste contexto como ferramentas para canalizar a energia para o universo interior dos homens. As referidas técnicas que se encontram descritas em diversas 111 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e passagens dos textos Upanisads, incluem, já neste período, a postura correta, o controle da respiração, a entoação de mantras e, sobretudo a concentração e a meditação (GNERRE, 2010). No período clássico o sábio Patânjali produz uma compilação das técnicas de Yoga já existentes. O Yoga Sutra foi o texto produzido por esse sábio no sec. II a.C. depois desse período, o Yoga passa a ser reconhecido como sistema filosófico e constitui-se como um dos seis sistemas ortodoxos. Segundo Gnerre (2010), a filosofia de Patânjali, concebe o mundo através de um dualismo essencial entre o Si Mesmo transcendente (Purusha) e a natureza manifestada das coisas (prakriti). Para Patânjali, a nossa identificação com o corpo e a mente egóica, e não com o Si Mesmo transcendente, é a causa do sofrimento humano. A distinção desta filosofia para o sistema Védico é que Patânjali não aceitava a identificação proposta pelo sistema anterior entre o Si Mesmo Transcendente (Atman) e o fundamento transcendente do mundo objetivo – Brahman. Assim, a religião hindu pode ser considerada ao mesmo tempo poli e monoteísta. Por isso temos, entre as práticas do Yoga, ao mesmo tempo concepções personalistas de uma Pessoa Suprema (Deus ou Deusa) e a noção impessoal de um ser absoluto. Deste aspecto do hinduísmo decorrem diferenças entre os ramos da prática do Yoga. Algumas seguem uma tendência mais religiosa (de adoração das divindades hindus através de mantras, como no Bhakti Yoga), ao passo que outras tendem a ser mais filosóficas e mais ligadas a um conceito de absoluto sem forma (como o Jnana Yoga, ou caminho da sabedoria auto-transcendente). ou Yoga do corpo – constitui-se como um destes ramos. A raiz histórica do HathaYoga remete ao século XI d. C., e por isso é considerada uma forma de Yoga pós-clássica – pois sua origem está temporalmente situada no período posterior ao clássico, no qual prevaleceram as concepções do sábio Patânjali. No século II d.C., Patânjali teria se tornado o grande compilador dos conhecimentos sobre Yoga em seu texto Yoga Sutras, considerado o marco do Yoga Clássico. A concepção de Patânjali era essencialmente dualista, e pensava na separação entre morte e vida, corpo e espírito, como elemento central na experiência do êxtase transcendental. Já na HathaYoga este dualismo se dissolve, e o próprio corpo passa a ser 112 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e valorizado enquanto instrumento de iluminação. O surgimento desta forma de Yoga relaciona-se ao advento do Tantrismo, ramo filosófico que deixa de perceber o corpo como impuro, e passa a conceber o corpo como instância que também pode ser iluminada. Assim, a concepção central do HathaYoga é justamente a realização do Si Mesmo por meio do aperfeiçoamento do corpo. Afinal, um corpo vigoroso seria um pré-requisito para suportar a força da própria experiência transcendental. Desse modo, o Yoga em sua origem é uma prática essencialmente voltada para este aspecto espiritual e religioso do ser humano. Mas, trata-se também uma prática variada, que ao longo de sua história milenar desenvolveu diversas técnicas de transcendência. Algumas destas técnicas estão diretamente relacionadas a práticas físicas, como a famosa Hatha Yoga, ou Yoga do corpo. No período pós-clássico ocorre à produção do texto Gheranda Samhita, onde ecoa voz das tradições tântricas. Embora seja uma matriz ritualística muito antiga da tradição indiana, é na Índia medieval que o tantrismo acaba se desenvolvendo na forma de várias escolas e tratados. E justamente por ganhar força neste período já avançado da história da Índia, acaba dialogando com as matrizes que o antecedem. Neste sentido, o tantra pode ser considerado uma chave para compreendermos o próprio contexto histórico, filosófico e social, na qual a tradição do Hatha Yoga se desenvolve. Os mestres tântricos aspiravam à criação de um corpo divino, a morada de Deus, feito de substância imortal – o corpo de diamante. E este conceito de corpo de diamante è que dá origem às posturas do Yoga e as diferentes práticas de purificação que fazem parte desta técnica (GNERRE, 2011). 3. Hatha Yoga, o Yoga do corpo O texto o Goracsa Sataka explica a palavra Hatha; Ha significa sol e tha lua. Hatha, a união do sol com a lua. O termo também é utilizado para designar o conjunto de regras e métodos tradicionais por meio das quais se chega a dominar o corpo (ELIADE, 2004). O Hatha yoga é considerado a mais importante das escolas do Yoga pós-clássico que abarca um período compreendido entre os 113 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e séculos XII e XVII d.C. Trata-se de uma linha que representa as escolas ligadas à tradição do tantrismo que criam o “cultivo do corpo adamantino” e desenvolve as posturas que tanto atraem os praticantes atuais. Algumas das mais influentes linhas do Hatha Yoga são: Yengar Yoga, Ashtanga-vinyasa yoga, Power yoga, Yoga integral, Kundalini yoga e yogaterapia integrativa. O Yoga tem como objetivo principal o desenvolvimento espiritual do ser, visando a autorealização, a descoberta da verdadeira natureza, além do tempo e do espaço. Esse processo é facilitado pelos corpos livres da doença. A ideia do corpo livre de doenças fundamenta toda tradição do Hatha Yoga, que tem suas origens no movimento tântrico da Índia medieval. Segundo Gnerre (2011) os mestres tântricos aspiravam à criação de um corpo divino, a morada de Deus, feito de substância imortal – o corpo de diamante. E este conceito de corpo de diamante è que dá origem às posturas do Yoga e as diferentes práticas de purificação que fazem parte desta técnica. 4. Yoga, religião e espiritualidade A palavra religião é definida por Geetz (2012) como sendo: Um sistema de símbolos, que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo estas concepções com tal aura de factualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas. (GEETZ, 2012, p. 67) O autor defende um conceito universal de religião, o que se torna inviável, tendo em vista as características peculiares de cada cultura. Nesse sentido, Assad (1993) argumenta que, não pode existir uma definição universal de religião não apenas porque seus elementos constituintes são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela mesma, o produto histórico de processos discursivos. 114 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Prandi (1999, p. 267), apresenta o conceito de Yinger sobre religião: A religião [...] pode ser pensada como um modo último de resposta e de adaptação; é uma tentativa de explicar, o que de outra maneira não seria explicável; de recu.perar o vigor quando outras forças terminam; e instaurar o equilíbrio e a serenidade diante do mal e do sofrimento, que outros esforços não foram capazes de eliminar. Desse modo, a civilização indiana, busca através da prática do Yoga, com os diverso métodos e técnicas para alcançar a transcendência- a união da consciência individual com a consciência universal-, libertar-se das amarras do ego, que produzem sofrimento. O objetivo último do praticante de Yoga na índia é atingir o samadhi (iluminação). No Brasil da Nova Era, poucos conseguem percorrer o caminho espiritual do Yoga. Os adeptos direcionam as práticas com o objetivo de exibir um corpo perfeito, ou para a cura de doenças. Quanto à espiritualidade Grof (2010), apresenta a seguinte definição: A espiritualidade tem base em experiências direta de dimensões numinosas normalmente invisíveis da realidade.[...]. Não é necessário um local especial ou pessoas especialmente indicadas para mediar o contato com o divino. O contexto no qual experienciam as dimensões sagradas da realidade, incluindo a própria divindade, é oferecida por seus corpos e pela própria natureza. (GROF, 2010, p. 26) Dessa forma, este estudo sobre Yoga, encontra-se contemplado nesta definição, uma vez que, o yoga é uma filosofia indiana que nasceu no período védico, onde havia o culto e experiências com divindades por meio de métodos e técnicas que facilitavam o processo de transcendência da realidade. De acordo com Hanegraff (1999), a religião pode se manifestar como “uma espiritualidade”: “Uma espiritualidade = qualquer prática humana que mantém contato entre o mundo cotidiano e um quadro metaempírico mais geral de significado por meio da manipulação individual de sistemas simbólicos.” O autor enfatiza que esse conceito de uma espiritualidade (plural: espiritualidades) é fundamental para interpretação 115 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e da Nova Era. Dentro de qualquer sistema simbólico – religioso ou não religioso – “espiritualidades” podem surgir e, de fato, inevitavelmente surgem. Isso porque as pessoas podem interpretar o simbolismo coletivo da religião em modos individuais, mas podem fazer o mesmo com sistemas simbólicos não religiosos. Assim, contextualizando o Yoga como uma espiritualidade, entendemos que os adeptos dessa prática, podem realiza-la interpretando o simbolismo coletivo da religião Hindu. A princípio estamos lidando com o fenômeno cotidiano: toda pessoa que dá um toque individual a símbolos religiosos existentes (mesmo que seja apenas em um sentido mínimo) já está inserida na prática de criar a sua própria espiritualidade. Nesse sentido, cada religião existente gera várias espiritualidades como algo natural, e são apenas os casos mais espetaculares que às vezes se tornam a base para uma nova tradição espiritual. “Espiritualidades” e “religiões” podem ser basicamente caracterizadas como os polos individuais e institucionais dentro do domínio geral da “religião”. Uma religião sem espiritualidades é impossível de imaginar. Mas, conforme será visto, o inverso – uma espiritualidade sem uma religião – é perfeitamente possível, em princípio. Espiritualidades podem emergir a partir de uma religião existente, mas podem muito bem emergir sem. A Nova Era é o exemplo dessa última possibilidade: um complexo de espiritualidades que emerge sobre o fundamento de uma sociedade secular pluralista. (HANEGRAFF, 1999). 5. Yoga no Brasil O sistema Hatha yoga, tem sido a porta de entrada do Yoga no ocidente, num processo que tem início Brasil na primeira metade do século XX. Mas, tanto aqui, quanto em outras sociedades ocidentais, podemos dizer que, na maioria dos casos, a prática passa a ser incorporada à sua cultura como uma espécie de ginástica ou um tipo de contorcionismo que nos remete a uma tradição circense. Assim, temos esta dicotomia básica entre corpo e espírito como um elemento marcante nas culturas ocidentais. Dessa forma, esta divisão torna difícil a compreensão do 116 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e yoga como prática espiritual já que ela vem sendo apresentada, sobretudo, como uma prática física aos nossos olhos (GNERRE, 2010). O desenvolvimento do Yoga como forma de espiritualidade no Brasil não alcança seu objetivo esperado. Cada vez mais a ditadura da beleza reforça a busca pela silhueta delineada, curvas perfeitas e a atenção geralmente voltada para o mundo externo. O yoga é difundido no Brasil, durante o fenômeno da Nova Era, no regime militar e ganha adeptos da contra cultura e entre os militares o professor Hermógenes é o mestre militar mais conhecido, inclusive escreveu vários livros sobre a prática do Yoga. De acordo com Lima (2010), no Brasil, a primeira notícia sobre Yoga data dos anos 50 do sec. XX. A academia Hermógenes é fundada em 1962 no Rio de Janeiro. Em 1964, De Rose funda o Instituto Brasileiro de Yoga. Assim nas décadas de 50 e 60, deu o surgimento das academias e o aparecimento dos pioneiros na instrução de Yoga no Brasil. Eles foram autodidatas e se formaram através de viagens à Índia e muita leitura. Nas décadas de 70 e 80, a história do Yoga no Brasil é caracterizada pela sua popularidade e fundação das Associações de Yoga. Hoje há diversos cursos de formação e mais de trinta linhas diferentes. Estima-se mais de cinco milhões de praticantes entre as diversas linhas de modalidades. 6. Yoga no Brasil da Nova Era A terminologia “era”, está ligada aos aspectos astrológicos. Antes era denominada a era de aquário, ou seja apontava para o fato do planeta terra estar entrando em uma nova era, saindo da de peixes e entrando na de aquário. Cada era astrológica dura em torno de 2.100 anos. A era de peixes representou o domínio do cristianismo e da civilização ocidental. A nova era de aquários provocaria profundas alterações no ser humano, no modo de pensar, no agir, na maneira de se relacionar com a natureza e com o sobrenatural (GUERRIERO, 2006). Segundo Hanegraff (1999) o movimento da Nova Era representa o fenômeno historicamente inovador de um tipo secular de religião ancorado em um simbolismo radicalmente privado. Essa tese é 117 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e desenvolvida no contexto de uma definição tríplice de religião, segundo a qual a “religião” em geral pode se manifestar tanto na forma de “religiões” quanto de “espiritualidades”. A secularização, nesse contexto, não diz respeito a um declínio ou desaparecimento, mas a uma mudança profunda da religião sob o impacto de novos desenvolvimentos. A essência desse processo reside na autonomização das “espiritualidades” em relação às “religiões”: enquanto as espiritualidades tradicionalmente estiveram incorporadas ao simbolismo coletivo de uma religião existente, as espiritualidades da Nova Era são manifestações de um simbolismo radicalmente privado, incorporado na cultura secular. Do ponto de vista histórico, esse fenômeno é novo e sem precedentes. Especial atenção é dada à forma como e porque o simbolismo particular no contexto da Nova Era tende a concentrar-se no “Self” e sua evolução espiritual. O autor enfatiza que, a Nova Era exemplifica um novo fenômeno que pode ser definido como uma “religião secular” baseada em “simbolismo privado”. Como tal, representa um desafio para os sociólogos, bem como para os historiadores da religião. O desafio consiste em tentar entender que o fenômeno da Nova Era pode nos ensinar sobre os processos de modernização e secularização, e sua importância no que diz respeito ao estudo sistemático das religiões. Com relação ao movimento da Nova Era nos dias atuais, Sampaio (2017, p. 83), realizou uma pesquisa etnográfica na cidade de Campina Grande e relatou que: Com o advento da (pós) modernidade , com a tão debatida, resumida secularização; com o inexorável pluralismo religioso em oposição ao histórico monopólio de uma única religião no Ocidente e ainda com o boom da Nova Era a partir dos anos 80, 90, muita tinta se gastou na literatura especializada para mostrar a “desregulação do religioso”, as “fronteiras borradas” do campo religioso, as movências, os sincretismos, os hibridismos e a pluralidade de um campo religioso cada vez mais multifacetado. Talvez se pudesse acreditar numa certa facilidade em ser “plural” num mundo (pós) moderno, embora os fundamentalismos e as ortodoxias não tenham evidentemente saído de cena. Sempre estiveram ali, como a outra face da (pós) modernidade, ou como o resquício de um mundo velho que não se deseja mais. O que estamos querendo indicar é que houve 118 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e um conjunto de fatores [...] que, de certa forma, nos conduziram a pensar numa certa “facilidade da pluralidade”, mas as experiências vividas nos últimos Encontros da Nova Consciência têm revelado justamente a dificuldade em ser plural, mesmo no século XXI. Desse modo, verificamos os entraves existentes na cultura brasileira, no tocante a pluralidade religiosa. A Nova Era mostra como é difícil, no mundo (pós) moderno, expressar as mais diversas formas de vivenciar a religiosidade e espiritualidade. Um estudo realizado por Guerreiro (2016) que o movimento da Nova Era sofreu mudanças ao longo da história. No início, na década de 1960, apresentava características mais milenaristas e ficava restrito a círculos específicos. Após alguns anos, seus componentes constitutivos passaram a ser difundidos na sociedade e incorporados na cultura mais ampla, formando um ethos nova era. A história do Yoga no Brasil se constitui em três fases: uma fase inicial com a chegada da prática, que antecede a emergência da chamada nova era, uma segunda fase de difusão pelos professores Hermógenes e DeRose e a terceira fase, de novos discursos que emergem à partir de revistas especializadas, grupos de estudos nas academias, entre outros. 7. a divulgação do Yoga por meio dos militares Vale destacar que, Uma informação histórica importante é que na cidade de Resende, no Rio de Janeiro, onde Sevananda funda seu mosteiro, estava instalada também a sede da Academia Militar das Agulhas Negras, uma das mais importantes escolas militares do Brasil. Provavelmente esta coincidência geográfica permite que o Yoga passe a ser disseminado na sociedade brasileira também entre os militares, justamente nos primeiros anos da ditadura. Assim, o Yoga não entra em nossa cultura apenas pelo viés do Movimento da Nova Era (ligado a Hippies ou esotéricos), mas também com o conhecimento dos próprios militares (GNERRE, 2010). 119 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A religião Nova Era pode ser definida como uma forma de “esoterismo secularizado”: está enraizada nas chamadas tradições esotéricas ocidentais que podem ser rastreadas até o início do Renascimento, masque passaram por um profundo processo de secularização no século XIX. O novo fenômeno de um esoterismo secularizado é mais conhecido como “ocultismo”, atingindo o desenvolvimento completo no início do século XX e foi eventualmente adotado pelo movimento da Nova Era esoterismo secularizado de um lado (um fenômeno que pertence primariamente à história das ideias, e que surgiu durante o século XIX), e o movimento da Nova Era de outro (um fenômeno social que emergiu durante a década de 1970 e que adotou e desenvolveu um sistema de crenças de esoterismo secularizado) (HANEGRAFF, 1999). Segundo Magnólia Gibson Cabral da Silva (docente da UFCG – PB) define da seguinte maneira, em artigo recente, os conceitos de Nova Era e Esoterismo: “O Movimento Nova Era, responsável pela difusão destas tradições no Ocidente contemporâneo, é considerado pelos estudiosos como o ‘acabamento’ das idéias que surgiram nos séculos XVI, XIX e XX na Europa com os Movimentos Esotéricos, que estabelecem pontos de convergência entre ciência e religião, Oriente e Ocidente. (GNERRE, 2010). 9. Considerações finais O sistema hatha yoga, oferecem possibilidades de alcançar o samadi(iluminação) pelo praticante de Yoga. Os métodos utilizados nas práticas do Yoga possibilitam a percepção do corpo sutil, por meio da visualização, execução de posturas, exercícios respiratórios e entoação de mantras viabilizam o processo. De uma forma pedagógica o praticante de Yoga aprende gradativamente a substituir velhos por novas formas de viver. Levar o autoconhecimento para pessoas que buscam a mudança de atitudes em benefício de bem estar e saúde, deve ser o objetivo daqueles que buscam conhecer melhor o sistema Yoga e aplicar os ensinamentos nas suas vidas, como forma de construir a paz em si mesmo, na relação com o outro e no universo cósmico. 120 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O aprendizado do Yoga é contínuo e requer muita disciplina, esforço e dedicação. Entretanto, todo empenho é recompensado pelos resultados produzidos do decorrer do processo. A atenção no aqui e agora, a paz espiritual, a plenitude do ser, a conexão com o divino fazem parte da tradição do Yoga e podem ser experimentados por todos que buscam a prática de qualquer uma das modalidades descritas nesse trabalho. Além da incorporação sincrética por parte daqueles que já se identificam com uma religião tradicional, o Yoga tem se tornado uma forma de prática espiritual para muitos adeptos que se encontram destituídos de uma religiosidade em sua vida cotidiana – fenômeno tão característico da sociedade materialista contemporânea. Desse modo, embora existam muitos discursos centrados no físico, pode-se é possível perceber que na sociedade brasileira também há também espaço para as características espirituais da prática de Hatha Yoga. Segundo Zica e Gnerre (2016) o Yoga indiano seria um pressuposto de harmonia entre os movimentos da natureza e a própria movimentação humana, guiada na maior parte das vezes pela respiração. Por meio dessa sinfonia fina entre o praticante e o fluir da natureza, que representa a própria ordem do universo, é possível sintonizar o ser individual a todas as coisas que existem. A unidade e a multiplicidade. Assim, pode-se dizer em tal tradição, é possível estabelecer a unidade plena através do movimento. A Nova Era, foi um movimento de grande importância para a divulgação das práticas de Yoga no Brasil. Outros trabalhos podem ser realizados para o fortalecimento da cultura indiana no território brasileiro. 121 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ASAD, Talal. The construction of religion as na Antroplogical category. In Asad Talal, Genealogies of religion: discipline and reasons of Power in crisanity and Islã. Baltimori and London: Teh Jonhns HopkinsUniversity Press, 1993, p. 27-54. Tradução: REINHARDT, , Bruno; Dullo,Eduardo. A construção da Religião como uma categoria Antropológica. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 19, p. 263-284, 2010. Disponível em: http://www. sumários.org/sities/default/files/ pdfs/cadernos_campo_19_p263284_2010.pdf. Acesso em 18 de set.2012. FEURSTEIN, Georg. A Tradição do Yoga. São Paulo, Pensamento, 2005. ELIADE,Mircea. Yoga: imortalidade e liberdade. São Paulo: Palas Athena, 1996. GEETZ, Cliford. A religião como sistema cultural. In: Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012, p. 65-91. GNERRE, Maria Lúcia Abaurre. Religiões Orientais: uma introdução. João Pessoa. Ed. Universitária, 2011. GUERRIERO, Silas. Novos movimentos religiosos: o quadro brasileiro. São Paulo: Paulinas, 2006. ______. Identidades e paradoxos do Yoga no Fronteiras: Revista de História. Universidade Federal da Grande Dourados- V. 12, n. 21, Jan/ Jun., 2010. 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Jaqueline Leandro Ferreira1 Introdução Pretendemos, neste texto, discorrer sobre a trajetória do arcebispo Dom José Maria Pires na Arquidiocese da Paraíba, atentando, especialmente, para os contornos que a presença do arcebispo implementou após a sua chegada na referida diocese após 1966. A escolha por percorrer esta narrativa se deu, notadamente, pela necessidade de entender como a atuação de Dom José Maria Pires esteve vinculada à Teologia da Libertação. Para tanto, nos propomos a analisar, a seguir, o início da trajetória de Dom José Maria Pires como arcebispo da Paraíba, percebendo como o nosso personagem se insere nesse contexto, através da análise de alguns documentos, tais como pronunciamentos e textos do arcebispo quando da sua chegada na Paraíba e nos anos iniciais seguintes de sua atuação. Formação clerical Dom José Maria Pires foi seminarista na cidade de Diamantina, tornou-se Pároco de Curvelo e, posteriormente, foi nomeado bispo de Araçuaí-MG (o primeiro bispo negro do Brasil), em 1957. Dom José Maria Pires foi bispo conciliar do Concílio Vaticano II (1962-1965) participando das suas quatro sessões: a primeira entre outubro e dezembro de 1962; a segunda entre setembro e dezembro de 1963; a terceira entre setembro e novembro de 1964 e a quarta e última, que ocorreu entre setembro Mestre em História pelo PPGH/UFCG. Doutoranda em História pelo PPGH da UFPE. Trabalho vinculado a pesquisa de doutoramento, orientada pelo professor Doutor Antonio Torres Montenegro (http://lattes.cnpq.br/2193041856804070). Link para o Lattes da autora (http://lattes.cnpq.br/7843268722654727). 1 124 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e e dezembro do ano de 1965. Signatário do Pacto das Catacumbas2, a participação de Dom José em todas as sessões do Concílio Vaticano II teve ressonância nos seus discursos e práticas, como veremos adiante. O Concílio vaticano II A convocação do Concílio Vaticano II3 foi feita pelo então papa João XXIII e foi realizada entre os anos de 1962 e 19654. O Vaticano II assentou um importante debate sobre a abertura da Igreja ao mundo secular. O pacto aconteceu um pouco antes da clausura do Concilio Vaticano II e evidenciava a necessidade de uma posição que corroborasse com uma vida de pobreza segundo o Evangelho. O resultado desse pacto foi um documento composto por 13 pontos que ressaltavam o compromisso dos integrantes para uma vivência mais humilde e no compromisso pela luta dos mais pobres. No dia 16 de novembro de 1965, nas catacumbas romanas de Domitila, 40 padres Conciliares celebraram uma Eucaristia para pedir fidelidade ao Espírito de Jesus. Nessa celebração, firmaram o que ficou conhecido como o “Pacto das Catacumbas”. Um dos principais animadores do grupo era Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife e que foi um dos principais praticantes da Teologia da Libertação no Nordeste, e por isso também, um dos mais perseguidos e vigiados pela Ditadura Militar brasileira. Dentre os que assinaram o pacto no dia da sua proposta e aqueles que o fizeram depois, vale destacar a forte expressividade dos bispos do Nordeste, dentre eles Dom João Batista da Mota e Albuquerque, arcebispo de Vitória, ES; o Pe. Luiz Gonzaga Fernandes, que estava para ser sagrado bispo auxiliar de Vitória dias depois, lá mesmo em Roma; Dom Jorge Marcos de Oliveira de Santo André, SP; Dom Henrique Golland Trindade, OFM, arcebispo de Botucatu, SP. Desses, metade, ou seja, quatro, eram representantes do Nordeste. Eram eles: Dom Antônio Fragoso, de Crateús-CE; Dom Francisco Austregésilo Mesquita Filho, de Afogados da Ingazeira, PE; Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife; Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba, PB. (PACTO DAS CATACUMBAS DA IGREJA SERVA E POBRE, 1965). 3 Quando da anunciação da convocação do Concílio Vaticano II, se pensou que este seria uma continuidade do Concílio do Vaticano I (1870), convocado pelo papa Pio IX. Segundo Silva (2008), o Vaticano I, caracterizou-se pela reafirmação da unidade da Igreja católica frente ao mundo moderno. Foi nesse momento que fora definida a infalibilidade papal – o papa tornara-se infalível quando tomou decisões dogmáticas, inquestionável – a força da Igreja católica seria, então, reafirmada, especialmente contra a ciência e sua postura crítica em relação ao pensamento religioso. Neste sentido, o Vaticano I se fecha ao mundo moderno, diferentemente da tentativa feita pelo Concílio do Vaticano II. 4 Os documentos decorrentes do Concílio Vaticano II podem ser acessados na página do Vaticano através do link <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm> 2 125 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Alguns autores denominaram o período pós-conciliar de “Primavera da Igreja, momento em que emergiram movimentos tão díspares quanto a Revolução Carismática Católica, nos Estados Unidos, e a Teologia da Libertação – TL, na América Latina”5. A reunião de bispos e teólogos do Vaticano II era realizada em sessões que duravam cerca de três meses. Algumas constituições, declarações e decretos6, surgidos durante esses anos, ponderaram sobre os mais diversos assuntos, como, por exemplo, tratando da relação da igreja com os pobres, ressaltando: “como Cristo realizou a obra da redenção na pobreza e na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir pelo mesmo caminho para comunicar aos homens os frutos da salvação”7. A Lumen Gentium (Sobre a Igreja) é uma constituição dogmática – assim como a Dei Verbum – por isso, de fundamental importância para refletir sobre os dogmas, que são base para a fé católica. Os documentos lançados durante o Vaticano II refletiam sobre essas problemáticas, enfatizando a necessidade de a Igreja estar atenta aos problemas reais dos cristãos na terra, assim expressa: “[...] a Igreja terrestre e a Igreja ornada com os dons celestes não se devem considerar como duas entidades, mas como uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino”8. Nomeação e posse como arcebispo da Paraíba Em 1965, Dom José Maria Pires foi ordenado arcebispo da Paraíba, o quarto a assumir o cargo. Ao tomar posse, no dia 26 de março de BRITO, Lucelmo Lacerda. medellín e Puebla: epicentros do confronto entre progressistas e conservadores na América Latina. Revista Espaço Acadêmico – n° 111 – Agosto de 2010. p. 20. 6 Constituições: Dei Verbum, Lumen Gentium (Constituições Dogmáticas), Sacrosanctum Concilium, Gaudium et Spes (constituições Disciplinares); Declarações: Gravissimum Educationis, Nostra Aetate, Dignitatis Humanae; Decretos: Ad Gentes, Presbyterorum Ordinis, Apostolicam Actuositatem, Optatam Totius, Perfectae Caritatis, Christus Dominus, Unitatis Redintegratio, Orientalium Ecclesiarum, InterMirifica. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm> Acesso: 15/04/2019. 7 CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM, 1964. 8 CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM, 1964. 5 126 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 1966, Dom José fez um pronunciamento em frente ao Palácio do Carmo, na praça Dom Adauto, na cidade de João Pessoa. Em seu primeiro pronunciamento, falou sobre sua trajetória eclesiástica e saudou a Nossa Senhora das Neves, padroeira da cidade de João Pessoa. Com a presença das autoridades locais, como o então Governador do Estado da Paraíba, João Agripino (1966-1971), Dom José Maria destacou um suposto posicionamento popular do governador, ressaltando o seu compromisso com as necessidades do povo. Dom José ressaltou a necessidade da união de forças da Igreja e do Estado para o desenvolvimento material do homem, destacando que não haveria condições para o desenvolvimento da missão sobrenatural da Igreja, em relação aos homens, se não houvesse, também, o desenvolvimento material destes, uma vez que, para o arcebispo, seria impossível dissecar o homem, dividindo-o entre corpo e alma. O desenvolvimento espiritual e material, portanto, deveriam caminhar juntos9. Ainda durante o pronunciamento em frente ao Palácio do Carmo, Dom José saúda o Monsenhor Pedro Anísio. Segundo as palavras do primeiro, o monsenhor era a representação do clero ligado às tradições da Igreja. De acordo com Dom José, esse clero, no entanto, deveria entender a importância de abrir-se para novos desafios, estimulando “os seus filhos, sacerdotes, a acompanhá-la nessa verdadeira jornada pelo desenvolvimento integral do homem”10. Dom José encaminha seu pronunciamento dedicando, segundo suas palavras, com maior afeto, saudações àqueles que mais sofrem, como os “pobres, doentes e encarcerados”11. Dom José Maria Pires fez, ainda, mais três pronunciamentos de posse, um na Igreja do Rosário, outro quando da primeira visita ao poder legislativo e, por fim, quando da sua visita ao Tribunal de Justiça do Estado. Tomada de Posse – Primeiro Pronunciamento ao chegar em João Pessoa, em frente ao Palácio do Carmo, na Praça em 26 de março de 1966. In: Dom José maria Pires: uma voz fiel à mudança social /[organização e notas Sampaio Geraldo Lopres Ribeiro]. São Paulo: Paulus, 2005. 10 Tomada de Posse – Primeiro Pronunciamento ao chegar em João Pessoa, em frente ao Palácio do Carmo, na Praça em 26 de março de 1966. Dom José maria Pires: uma voz fiel à mudança social /[organização e notas Sampaio Geraldo Lopres Ribeiro]. São Paulo: Paulus, 2005, p. 16. 11 Tomada de Posse – Primeiro Pronunciamento ao chegar em João Pessoa, em frente ao Palácio do Carmo, na Praça em 26 de março de 1966. 9 127 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e No dia 27 de março de 1966, na Igreja do Rosário, Dom José Maria Pires destaca um compromisso de encaminhar a Igreja da Paraíba em ressonância com o Vaticano II. Para tanto, destaca o papel de uma Igreja que se insere no mundo como “fermento em sua construção”, de acordo com Dom José Maria Pires: Enquanto imperar a fome, a miséria, o analfabetismo, enquanto não se respeitar no operário ou no camponês a dignidade da pessoa humana, os cristãos não estarão sendo cristãos, a Igreja não estará sendo uma comunhão sem circulação de bens, de todos os bens, seja os do espírito, seja os do corpo ou do exterior.12 Alguns elementos nos chamam atenção na fala de Dom José Maria Pires. Primeiro destacamos a fala do arcebispo ressaltando a necessidade de que a Igreja possa se inserir no mundo, isto é, se envolver nos problemas sociais que permeiam as realidades históricas dos sujeitos em determinados espaços, como no Nordeste, por exemplo. Ao longo da sua fala, Dom José destaca a necessidade de agir para diminuir o analfabetismo e a fome. O arcebispo destaca, ainda, a tarefa da Igreja para além do espiritual, ou seja, uma tarefa também material que ajude na promoção da circulação de bens, promovendo, assim, uma plena comunhão entre os homens. A discussão em torno de uma Igreja “encarnada”, isto é, que tome os problemas cotidianos dos sujeitos na sua dimensão histórica e material como parte de sua missão, foi tratado por inúmeros teólogos e clérigos ao longo das décadas de 1970 e 1980. Dentre esses, destacamos, por exemplo, as obras do frei Leonardo Boff (1982) que chegou, inclusive, a ser condenado pelo Vaticano ao silêncio obsequioso pela sua obra Igreja: carisma e poder13. Para tratar do papel da Igreja para além do espiritual, Boff propõe uma concepção de antecipação escatológica. Para Boff, a Igreja não pode ser entendida de forma isolada, mas a partir de realidades que a transcendem. Ela não pode ser entendida dentro de Sermão de Dom José Maria Pires na Igreja do Rosário em 27 de março de 1966, Dom José maria Pires: uma voz fiel à mudança social /[organização e notas Sampaio Geraldo Lopres Ribeiro]. São Paulo: Paulus, 2005. p. 12. 13 BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. Ensaios de Eclesiologia militante. 3ª edição. Editora Vozes: Petrópolis, 1982. 12 128 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e uma gama de dogmas que visam apenas a manutenção de uma tradição, mas deve levar em conta as realidades do mundo em seus diferentes contextos. Segundo o referido teólogo, é no mundo que se deve pensar a realização histórica do Reino. A Igreja seria, portanto, o sinal do Reino, sua concretude explícita e o instrumento capaz de mediar essa prática no mundo. Vejamos como Boff entende essa relação: Cumpre articular numa ordem correta estes três termos. Primeiro vem o Reino como a primeira e última realidade englobando todas as demais. Depois vem o mundo como o espaço da historificação do Reino e de realização da própria Igreja. Por fim vem a Igreja como a realização antecipatória e sacramental do Reino dentro do mundo e mediação para que o Reino se antecipe mais densamente no mundo.14 Ainda, segundo o referido autor (1982), a práxis é um elemento fundamental para a tarefa mediadora que a Igreja tem no mundo, não apenas em seu aspecto sacramental, mas como instrumento que busque a antecipação desse Reino, isto é, na luta contra as injustiças e na busca de uma sociedade fraterna e de igualdade na realidade concreta, no mundo. Os discursos proferidos pelo arcebispo paraibano Dom José Maria Pires estão carregados desses elementos que, acreditamos, estarem em ressonância com sua atuação no Concílio Vaticano II. A participação de clérigos e teólogos nessa reunião conciliar não determinaram, contudo, que esses sujeitos repercutissem em suas dioceses e práticas religiosas as conclusões e orientação do documento final do Vaticano II. Dom José Maria Pires, contudo, parece ter ecoado em seus discursos e práticas uma orientação próxima às conclusões do Concílio e da Teologia da Libertação. Ao tomar as questões locais e contextuais como parte da atuação clerical, o arcebispo paraibano Dom José Maria Pires se coloca, por exemplo, diante de questões políticas que faziam parte do cenário em que estava inserido. O lugar de poder em que se encontrava fazia com que ocupasse determinados espaços que o possibilitavam emitir 14 BOFF, Leonardo. 1982, p. 16. 129 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e posicionamentos contrários, por exemplo, a forma como o regime militar conduzia sua prática governamental instituindo limitações às liberdades individuais. Assim, quando de sua primeira visita ao Poder Legislativo da Paraíba, no dia 29 de março de 1966, Dom José Maria Pires emitiu um discurso condenando o cerceamento do direito ao voto implementado pelo governo militar desde 1964. Dom José Maria faz referência ao voto, como expressão da manifestação popular e da vontade de Deus. Assim destaca: Faço profissão de fé na democracia. Não aceito, sem mais nem menos, a afirmação de que o poder vem do povo, a não ser que se considere aqui o povo como causa instrumental e não como causa original ou eficiente ao poder. O poder vem de Deus. Mas Deus o comunica através da manifestação popular que ordinariamente é o voto. O legitimamente eleito adquire direito de ser acatado, porque é revestido de uma autoridade divina em sua origem. Dessa autoridade, porém, ele só pode servir-se em benefício comum e não em proveito próprio de uma facção política ou de um credo religioso. (...) E, se o poder vem de Deus através do voto popular, não há justificativas para as ditaduras. Não somos pela anarquia nem pela deliberação da autoridade. Não aplaudimos aqueles que, sob pretexto, recusam a submissão devida ao poder constituído. (...) Mas autoridade e cerceamento da liberdade, além do estritamente necessário para garantir o bem comum, não são sinônimos. Falo como simples homem do povo. E o homem do povo ainda não entende por que lhe negaram, por que não é mais permitido aos cidadãos se agruparem em pequenos partidos políticos. (...) Permitir a existência, apenas a existência dos grandes partidos, não seria sufocar a liberdade política, desde que os pequenos partidos não constituem uma ameaça à segurança nacional ou ao bem da sociedade? Faço minha profissão de fé na oposição. Ao meu ver, ela não é um mal necessário, mas um bem necessário. (...) Creio na oposição como poder moderador, como força complementar diversa mas não necessariamente adversa.15 Discurso na primeira visita de Dom José Maria Pires ao poder Legislativo do Estado da Paraíba, 29 de março de 1966. Dom José maria Pires: uma voz fiel à mudança social / [organização e notas Sampaio Geraldo Lopres Ribeiro]. –São Paulo: Paulus, 2005, p. 28. 15 130 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e É interessante notarmos que, ao ressaltar o direito ao voto enquanto representação do poder de Deus, Dom José, também, condena o que ele intitula de anarquia ou recusa à submissão ao poder constituído. Parece-nos que, apesar de se colocar contra as práticas adotadas pela ditadura militar de não permitir, por exemplo, a escolha direta dos representantes políticos por meio de eleição, Dom José Maria Pires recusa, porém, deslegitimar o lugar de poder e de hierarquia da qual a própria Igreja Católica se utiliza através de uma organização estruturada com base nesses dois elementos.16 O lugar ocupado pelo próprio arcebispo era também um lugar de poder. Para o arcebispo, o poder constituído deveria ser respeitado no caso em questão, desde que a dinâmica democrática e a escolha de representantes políticos, através do voto direto, fossem respeitadas. Em outros momentos, em discursos, Dom José Maria Pires retomou o tema do respeito as liberdades individuais. Em texto intitulado O homem livre, imagem de Deus, o arcebispo direcionou sua leitura para uma turma de formandos da UFPB, no ano de 1966, refletiu sobre a liberdade a partir da ótica da criação divina. Dom José destacou em seu discurso que a liberdade fazia parte, essencialmente, do homem enquanto criação divina, “preferiu Deus os riscos da liberdade às seguranças da escravatura”. A fala de Dom José ressalta, ainda: Sendo os homens livres e iguais, são os homens sociais também. E a liberdade exigida para o indivíduo, a Igreja a deseja para os grupos sociais – Liberdade “de se reunirem, de se associarem, de exprimirem as próprias opiniões” (442), liberdade que não se 16 O Teólogo brasileiro Leonardo Boff, adepto da Teologia da Libertação, em sua obra Igreja: carisma e poder (1982), trouxe importantes reflexões quanto ao lugar que o poder e a hierarquia ocuparam na constituição da Instituição Católica ao longo da história. O referido autor realizou uma leitura crítica de como, historicamente, a Igreja Católica se apropriou do poder através de pactos estabelecidos com o Estado, estabelecendo, por exemplo, uma instituição hierárquica com poucas possibilidades de participação popular. Para superar esse modelo historicamente amparado no poder e numa hierarquia fechada e centralizadora, Boff (1982) propõe um novo modelo de Igreja baseado nos carismas, que seriam as potencialidades individuais dos sujeitos. Apesar de elaborar duras críticas ao modelo hierárquico, Boff (1982) entende que a hierarquia também faria parte dos carismas como um dom individual. Para o autor, contudo, esse não poderia ser confundido com um lugar de poder rígido e centralizador. 131 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e funda em algarismo nem depende de quantos constituem um grupo humano, por isso a Igreja firmemente reivindica “que se respeitem os direitos das minorias no interior de uma nação” (443).17 Dom José Maria Pires retoma alguns trechos dos documentos do Concílio Vaticano II, especificamente a Constituição Gaudium et Spesn, para tratar sobre o cerceamento da liberdade por parte do poder político. É interessante destacarmos que o discurso do arcebispo foi direcionado a estudantes universitários da UFPB. Nessa instituição, as práticas de vigilância, controle e punição a alunos que participavam de qualquer movimento contrário a ditadura militar iam desde suspensão temporária até o desligamento definitivo da instituição. Em consulta aos documentos do DOPS-PB, identificamos listas de nomes de alunos suspensos e desligados da referida universidade acusados, segundo a Ideologia de Segurança Nacional, de “envolvimento em atividades subversivas”.18 A UFPB possuía um aparato de vigilância e repressão das atividades estudantis que serviram de modelo, inclusive, para a ampliação desses dispositivos em outras Instituições. De acordo com Rodrigo Patto Mota, em texto intitulado Os espiões do Campi (2014), a repressão se instalou na UFPB através da atuação do reitor Guilardo Martins Alves, capitão-médico do Exército, nomeado interventor na instituição, logo após o golpe de 1964 quando foi destituído o então reitor Mário Moacyr Porto. Segundo Patto Mota (2014): Na UFPB, cujo reitor “anfíbio” (o militar e professor Guilardo Martins Alves) também já demonstrara seu empenho “purificador”, no início de 1969 já estava em funcionamento um Serviço de Segurança de Informação. Essas experiências precursoras podem ter estimulado e inspirado a criação de agências de informação em todo o sistema universitário, o que só aconteceu oficialmente em 1971. Graças a seu pioneirismo, a Aesi/UFPB foi das mais bem-organizadas e atuantes na primeira PIRES, Dom José Maria. O homem livre, imagem de Deus – in: Dom José maria Pires: uma voz fiel à mudança social /[organização e notas Sampaio Geraldo Lopres Ribeiro]. –São Paulo: Paulus. 2005, p. 42. 18 ARQUIVO DO DOPS, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, UFPB. 17 132 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e metade dos anos 1970, quando seu regimento interno servia de modelo para agências congêneres.19 A fala de Dom José Maria Pires assumiu, assim, um tom de denúncia das restrições das liberdades e da perseguição que ocorria no campus da UFPB desde o momento imediato pós-golpe, quando da atuação do interventor Guilardo Martins. O discurso do arcebispo foi realizado no ano de 1966, ainda durante o seu primeiro ano na Arquidiocese da Paraíba. No dia 6 de maio de 1973, os bispos e superiores do Nordeste publicaram o documento Eu ouvi os clamores do meu povo20. De acordo com Löwy (2000): “Esses documentos foram, na verdade, as declarações mais radicais jamais publicadas por um grupo de bispos em qualquer parte do mundo”21. Seu conteúdo subdivide-se em apontamentos, tais como: a realidade do homem nordestino; alguns elementos sobre as raízes desta situação; A caminho do desenvolvimento?; Subdesenvolvimento como fatalidade?; Subdesenvolvimento como opressão; Milagre brasileiro?; Marginalização crescente; O problema agrário. Dos dezessete clérigos que assinaram o documento, sete pertenciam ao clero secular ou regular do Estado de Pernambuco, os demais eram de outros estados da região. Da Paraíba, apenas o arcebispo Dom José Maria Pires assinou, inicialmente, o manifesto. O discurso de salvação numa dimensão transcendental, no reino de Deus, passa a ser entendido enquanto uma antecipação, ou seja, o reino de justiça e liberdade sendo buscado em um plano terreno. Esta é uma problemática, a nosso ver, referencial para a Teologia da Libertação e que esteve presente em vários discursos do arcebispo Dom José Maria Pires. Essa realidade histórica não constitui apenas um produto de um processo social simétrico, mas, teologicamente, significa a antecipação e preparação do Reino de Deus e do Povo de Deus escatológico22. É essa concepção que permeia o documento Eu ouvi os clamores do meu povo 19 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os espiões dos Campi. in: As Universidades e o Regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, págs: 193/241, p. 196. 20 Idem. Ibidem. 21 LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina. Tradução: Vera Lúcia Melo Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 145. 22 BOFF, Leonardo. Op. Cit p. 185. 133 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e publicado pelos bispos e superiores religiosos do Nordeste, a “responsabilidade de pastores nos coloca, mais uma vez, diante de um desafio: a fidelidade contínua a este homem, dentro do seu contexto histórico”23. O documento aponta a situação dos altos índices de desemprego e do subemprego, a subnutrição, falta de habitação e o número alarmante de analfabetos. “Das pessoas com 5 anos e mais de idade, isto é, das que deviam estar nas escolas ou já ter passado por ela, cerca de 60% são analfabetos, segundo o senso de 1970”24. Esses números eram referentes ao ensino primário, refletindo-se, ainda, no ensino secundário e superior. Para estes sacerdotes, a realidade nordestina foi produzida através de certas condições históricas com a manutenção do monopólio da terra, sendo o latifúndio o grande explorador da força de trabalho e que permanecia sendo a base do poder econômico e político na região produtor de condições sociais degradante para os mais pobres. O trabalho pastoral de Dom José Maria Pires na Arquidiocese da Paraíba, buscou denunciar a situação de exploração à qual estavam submetidos trabalhadores do campo e da cidade. Particularmente no campo, Dom José Maria Pires desenvolveu um importante trabalho de atuação em favor dos trabalhadores com a formação do Centro de Promoção Humana (1970) e posterior Centro de Defesa dos Direitos Humanos (1976), instituição que prestou auxilio jurídico aos trabalhadores e que atuou como espaço de resistência para os mais pobres. A trajetória e a presença de Dom José Maria Pires na Paraíba foram destacadas pela sua forte atuação social através de denúncias e práticas sociais significativas em meio a um contexto marcado por um regime ditatorial. Considerações finais A trajetória de Dom José Maria Pires evidencia um posicionamento vinculado aos direcionamentos do Concílio Vaticano II e, mais particularmente, da Teologia da Libertação. Seus discursos, ao chegar na 23 24 SEDOC, 1973, p. 608. SEDOC, 1973, p. 611. 134 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Arquidiocese da Paraíba, parecem evidenciar um trabalho direcionado para a defesa dos Direitos Humanos e de denúncia da repressão e violação de Direitos Humanos cometidos pela ditadura militar. Ainda na década de 1970, a criação do Centro de Promoção Humana, posteriormente transformado em Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) desenvolveu um importante trabalho social que exerceu, na prática, as orientações de uma Igreja voltada para os problemas sociais dos mais pobres. 135 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ARQUIvO DO DOPS, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, UFPB. ARQUIvO ECLESIáSTICO Centro Cultural São Francisco. BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. Ensaios de Eclesiologia militante. 3ª edição. Editora Vozes: Petrópolis, 1982. BRITO, Lucelmo Lacerda. medellín e Puebla: epicentros do confronto entre progressistas e conservadores na América Latina. Revista Espaço Acadêmico – n° 111 – Agosto de 2010. DocuMentos Do concíLio vATICANO II. Constituições: Dei verbum, Lumen Gentium (Constituições Dogmáticas), Sacrosanctum Concilium, Gaudium et Spes (constituições Disciplinares); Declarações: Gravissimum Educationis, Nostra Aetate, Dignitatis Humanae; Decretos: Ad Gentes, Presbyterorum Ordinis, Apostolicam Actuositatem, Optatam Totius, Perfectae Caritatis, Christus Dominus, Unitatis Redintegratio, Orientalium Ecclesiarum, Intermirifica. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/ hist_councils/ii_vatican_council/ index_po.htm> Acesso: 15/04/2019. JORNAL DIáRIO DA BORBOREmA, 1950-1980. Arquivo pessoal. LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina tradução: Vera Lúcia Melo Joscelyne. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os espiões dos Campi. in: As Universidades e o Regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, págs: 193/241. PIRES, Dom José Maria. Dom José maria Pires: uma voz fiel à mudança social /[organização e notas Sampaio Geraldo Lopres Ribeiro]. –São Paulo: Paulus, 2005 Revista SEDOC (Serviço de Documentação), 1973. Arquivo pessoal. SILVA, Janaína da. NUNES, Paulo Giovani Antonino. “Os anos de chumbo” da ditadura militar na Paraíba (1969-1974) Encontro Nacional da Anpuh, Ceará, 2017. [ Volta ao Sumário ] 136 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e ComBlin paRa tempos de ResistênCia: o Centro de formação João Batista Barbosa da Silva Como referenciar este capítulo: SILVA, João Batista Barbosa da. Comblin para tempos de resistência: o Centro de Formação. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 137-148. João Batista Barbosa da Silva1 Introdução O presente trabalho é fruto de experiências vivenciadas a partir de 2016, quando a convite do padre italiano, radicado no Brasil, Hermínio Canova, comecei a frequentar o Centro de Formação Padre José Comblin, localizado no Sítio Café do Vento, as margens da Rodovia BR 230, no município de Sobrado, onde fui acolhido e experimentado nas práticas educativas e sociais que Comblin desenvolveu ao longo de sua vida na América Latina. Os momentos de vivências fomentaram o desejo de melhor conhecer esse sacerdote e as ações que ele desenvolveu desde sua chegada ao Brasil, em 1958, até o momento de sua partida, em 27 de março de 2011. Nestas pesquisas constatei uma dinâmica metodológica utilizada pelo padre e um desejo por mudança social, partindo de um trabalho de conscientização/formação permanente, caracterizado pela resistência mobilizadora/conscientizadora contra qualquer tipo de opressão, tendo a libertação como objetivo a ser alcançado. Tal processo de formação permanente foi crucial para a criação do Grupo de Fé e Política que se reúne periodicamente, a cada bimestre, para discutir o papel da Igreja Católica e das Religiões, na transformação da sociedade, formado basicamente por Jovens, estudantes de nível médio e graduação, agricultores, funcionários públicos, professores, atendendo a moradores dos municípios de Sobrado, de Pilar, de São Miguel de Taipu, de Riachão do Poço e, eventualmente, de outros lugares. A frente do Grupo, se encontra Padre Hermínio Canova, vigário paroquial da Paróquia Nossa Senhora Rainha dos Anjos, do município de São Miguel de Taipu, mas com atuação nos municípios citados Professor Mestre em Educação (PPGE/UFPB), estatutário da Rede Estadual de Educação da Paraíba (SEECT/PB). Membro Fundador do Centro de Formação Fé e Política Padre José Comblin, no Sítio Café do Vento, em Sobrado/PB. http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4892207D6. 1 138 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e anteriormente. O mesmo padre também é professor da UNICAP e por muitos anos, membro da Coordenação Nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra), tendo por isso, no seu histórico uma série de perseguições políticas e religiosas. Há, além do padre Hermínio, uma série de assessores que contribuem para um melhor desempenho do grupo, como o professor aposentado Júlio Alder Calado, da Universidade Federal da Paraíba, que indicam a temática e as metodologias a serem utilizados, além de outros seguidores das ideias e práticas desenvolvidas pelo Padre José Comblin. São esses últimos que se encarregam de organizar a Semana Teológica Padre José Comblin, que acontece anualmente. Nesta, são organizadas e apresentadas experiências exitosas e mobilizadoras acontecidas em comunidades rurais ou periféricas, auxiliadas pelas metodologias ensinas e replicadas por Comblin e seus discípulos. Embasamento teórico e justificativa Este trabalho apresenta a noção da História do Tempo Presente e sua relação com a memória, residida na contemporaneidade das experiências e ancorado nos estudos de Nora (1998), de Pollak (1989;1992), Motta (1998), Barros (2004) e Dosse (2012). Para embasar as experiências vivenciadas com os diversos sujeitos envolvidos dentro da narrativa, fizemos uso de autores que fazem uso da História Oral como metodologia utilizada em pesquisas relacionadas com a memória e sua coleta, tais como Alberti (1990), Ferreira (2000; 2002), Delgado (2003) e Ferreira e Amado (1998). A importância de se dedicar à análise do passado recente está ancorado no encontro de um outro tempo diferente daquele no qual está integrado, mas que mantém grande contato emocional com o presente. Nesse processo realiza-se uma mistura peculiar caracterizado pelo reencontro de singularidades temporais. Nas palavras de Delagado (2003, p. 11) “Trata-se do encontro da História já vivida com a história pesquisada, estudada, analisada, enfim, narrada”. O Centro de Formação Padre José Comblin é um espaço de memória e de construção social, atuando desde os anos 1990, muitas vezes, 139 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e fazendo uso de pseudônimos, para evitar chamar a atenção de outros setores da sociedade da região da Várzea Paraibana2. Este espaço foi criado pelo Padre José Comblin, como uma experiência com o objetivo de criar um “curso básico para animadores de comunidades de base” (COMBLIN, 1997). Desta forma, se faz jus não deixar cair no esquecimento ações que contribuíram para a formação de dezenas de líderes comunitários, pastorais e até mesmo, membros de sindicatos e líderes de associações. Além do mais, sua atuação está em pleno desenvolvimento, com a organização de diversos programas de formação, como o CDL (Curso de Dinâmica de Líderes Jovens) e o Grupo de Fé e Política, já citado anteriormente. Estes grupos são responsáveis por promover eventos de massa, como a Páscoa Jovem das Comunidades, que está na sua nona edição e a Festa da Colheita das Comunidades Agrícolas, que está na sua sétima. Com esta movimentação, o Centro de Formação, assim como os demais espaços criados, organizados e dirigidos pelo Padre José Comblin, se caracteriza como espaços de resistência, por meio de formação politizadora, com estudos de obras do padre citado anteriormente e de conjuntura atual do Brasil. A análise da problemática do presente, por meio da História Oral, contribui para entender a possiblidade de desenvolvimento por meio da formação de indivíduos para o futuro, como também auxilia no entendimento de atitudes e situações do passado recente. Objetivos Ao fazer uso da História do Tempo Presente e das metodologias utilizadas na História Oral, buscamos demonstrar as experiências formativas organizadas metodológica e pedagogicamente por Comblin que contribuíram para uma reafirmação do sujeito como agente social transformador, ofertando uma educação amplamente de caráter cidadã 2 Região localizada no Estado da Paraíba, banhada pelo Rio Paraíba e seus afluentes. 140 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e e de resistência à Ditadura Militar Brasileira (1964-1985) e a quaisquer formas de autoritarismo, como também, com a formação social de indivíduos que habitam pequenas cidades do interior do estado da Paraíba, onde se apresenta pouca participação política e social. Dentro do aspecto de resistência, propomos analisar as práticas educativas/formativas desenvolvidas no Centro de Formação Padre José Comblin, a partir de um olhar historiográfico e social. Está análise também se relaciona com os últimos acontecimentos na História do Brasil que levaram à presidência Jair Bolsonaro e a extrema direita, onde se faz uso de forte diálogo com a obra Ideologia da Segurança Nacional: O poder militar na América Latina (1977), onde o autor dialoga com a origem das ditaduras que surgem na américa latina no período da Guerra Fria e de Nação e Nacionalismo: Doutrinas e Problemas (1965). Por fim, descrevemos e comparamos as práticas utilizadas no Centro de Formação com as utilizadas pela Educação Popular, protagonizadas pelas experiências de Paulo Freire, com a concepção de adotar e reconhecer a existência desse vínculo essencial entre a vida do sujeito e a coletividade. As práticas metodológicas para o pensamento e à resistência Um dos principais livros de Comblim é a Teologia da Enxada de 1977, onde relata uma experiência de vida de membros da Igreja Católica no Nordeste. Esta experiência se inicia no Seminário Regional do Nordeste, em 1969, já no período da História do Brasil, conhecido como “Anos de Chumbo”, quando resolveu correr o risco de dar cobertura e orientação a seminaristas de diversas dioceses nordestinas para viverem alguns anos nas regiões rurais desenvolvendo trabalhos na agricultura, estudos e trabalhos apostólicos. Essa experiência é apresentada a partir de explicações sobre o novo programa e da metodologia adotada, rompendo com as práticas tradicionais utilizadas na formação daqueles que deveriam acompanhar o povo e sua trajetória. 141 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Em primeiro lugar, resolveu-se prescindir da distribuição tradicional da matéria. Estávamos conscientes de que o próprio plano das matérias e a divisão dos assuntos já constituem a adesão a todo sistema que se procurava superar. Colocando no primeiro plano e adotando como critério decisivo a finalidade pastoral dos estudos, resolvemos tomar como material específica de consideração os diversos objetos que o povo encontra na vida. Em lugar dos assuntos dos tratados tradicionais, preferimos adotar os objetos da vida quotidiana do povo rural. Afinal de contas, os tratados de teologia resultam das controvérsias do passado. Ora, antes de tomar conhecimento das grandes controvérsias do passado, o apóstolo precisa saber anunciar e explicar aos cristãos e aos homens em geral o que é a própria mensagem cristã. Por princípio, deixamos de lado todos os desenvolvimentos teológicos que se referem a uma situação histórica sem relacionamento com a vida dos camponeses do Agreste nordestino, controvérsias sobre a graça, a justificação, os fins da encarnação e assim por diante (COMBLIN, 1977, p. 10-11). Para Comblin, oferecer uma formação integral deveria romper com as experiências do passado e criar novas, que resultantes de uma prática vivenciada, sentida, ultrapassando os muros dos seminários e chegando ao povo. A proposta era de chegar aos homens e mulheres do campo Uma vez definida a divisão da matéria, urgia criar um método. O método já estava definido pela própria escolha dos assuntos. Em lugar de fazer como na formação tradicional, isto é, examinar os dogmas numa certa lógica tomada a um sistema teológico, para deixar aos próprios sacerdotes a tarefa – praticamente impossível – de traduzir esses dogmas numa linguagem popular e descobrir as aplicações que podiam ter na vida rural, achamos melhor projetar sobre um assunto da vida humana à luz da revelação (COMBLIN, 1977, p. 11). O assunto que Comblin escolheu para aplicar com a nova metodologia estava atrelado a palavras do cotidiano do camponês, como “a casa, a terra, o trabalho, a paternidade, etc” e que objetivava “descobrir a palavra de Deus que se refere a esse assunto” (COMBLIN, 1977, p. 11) contribuindo para aproximar os futuros sacerdotes do povo de Deus e 142 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e de sua fé. Todavia, essa aproximação demonstrou um novo problema, que foi as contradições entre a fé popular e a fé bíblica, contornado a partir da necessidade de aprender a reconhecer a mesma fé em dois sistemas de expressão diferentes (COMBLIN, 1977). O método e os assuntos saiam do meio do povo e se direcionavam para o povo. Essa é a grande diferença da Teologia proposta por Comblin que contribuiria para criar uma nova prática pedagógica utilizada até hoje no Centro de Formação Padre José Comblin, no Sitio Café do Vento. Esse anseio de ir até o povo, de encontro com seus males, suas dores e sofrimento, como também de suas alegrias, suas conquistas e sua fé contribuiu para um novo modelo de Igreja, que faz pensar, que faz resistir, que se faz libertadora. A reflexão é a prática mais constante em Comblin (1977), onde se busca entender todo a conjuntura ao seu redor, desde a simples política coronelista do interior do Brasil até mesmo as dinâmicas do Neoliberalismo e as consequências da Guerra Fria (COMBLIN, 1965; 1980). Dessa forma, a pedagogia combliniana, assim dita, contribui para compreender o mundo a sua volta, a partir da reflexão e do entendimento que que a conjuntura possibilita. Compreendendo o mundo a sua volta, os alunos dos cursos promovidos/realizados por Comblin se colocam numa posição de crítica social, não aceitando os ditames de políticos autoritários e assistencialistas, da economia e do mercado capitalista manipulador, que muitas vezes, ferem a dignidade humana. Assim, essas práticas de pensar e de agir, organizadas pelo Centro de Formação oferece um espaço de resistência e de compromisso para mudar a realidade ao seu redor. Há vários exemplos de práticas de resistência e de comprometimento organizado pelo Centro de Formação Padre José Comblin. Citamos por exemplo, uma análise de conjuntura realizado no dia 24 de fevereiro de 2019, pelo grupo de Fé e Política. Neste estudo, participavam aproximadamente 15 pessoas, entre agricultores e agricultoras, universitários, professores, estudantes de Ensino Médio e três professores mestres, sendo um em História da Educação, outro em Políticas Públicas Educacionais e outro em História das Religiões. Naquele momento, todas as discussões políticas estavam direcionadas para a eleição e o governo do recém empossado Jair Bolsonaro 143 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e como presidente da república. E no momento em que se estavam escolhendo os temas que fariam parte da análise conjuntural, um agricultor, semianalfabeto, como o próprio se colocou, pediu para fazer uma discussão sobre o feninicídio, justificando que tinha duas filhas e que, precisava entender melhor os motivos da crescente onda de assassinados de mulheres. Outro tema, que no mesmo encontro chamou muito a atenção, foi a questão da migração e a crise na Venezuela, levantada por uma agricultora, que atualmente, trabalha no comércio informal, que se disse perplexa com a situação desse país vizinho e que aparentemente ninguém faz nada para auxiliar, enquanto o povo, tentando fugir da fome, se refugia no Brasil, criando sérios problemas para as populações dos estados brasileiros que fazem fronteira. Dentro do processo de análise de conjuntura, baseado no texto de Herbert de Souza (2014), os estudantes devem apresentar a problemática, entender sua origem e apontar as possíveis soluções. Este processo possibilita que os frequentadores do Centro se percebam muito mais que sujeitos católicos, mas sujeitos cidadãos, com obrigações éticas de construir um mundo melhor. É importante destacar que já em 1969, Comblin deixava muito claro que suas formações não poderiam ser direcionada apenas para os cristãos, ou seja, sua prática e metodologia deveria alcançar todas as pessoas e não somente a cristandade católica, o que contribuiu para o ecumenismo. Não por isso, que muitos não católicos comungam de suas ideias. Experiências ainda mais exitosas são os eventos de massa, quando o Centro realiza eventos com a finalidade de reunir o máximo de pessoas possíveis, evangelizando a partir dos ensinamentos de Jesus de Nazaré, que uniu as pessoas de classe diferentes, acolheu a todos, pregando a paz e a justiça. Essas propostas são transformadas em temas, que são trabalhados nesses momentos. É importante destacar que esses eventos tem dois públicos alvos distintos. São a juventude e os camponeses. Os primeiros por serem considerados o futuro, aqueles que serão nossos profissionais e precisam ter uma atenção especial, considerando que a educação escolar é insuficiente para criar nas atitudes cotidianas práticas de pensamento libertador. 144 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O segundo grupo foi escolhido por ser a grande maioria da população dos pequenos municípios da região Nordeste e em especial, os vizinhos circovizinhos ao Centro de Formação Padre José Comblin. Esses agricultores, muitas vezes, não possuem formação escolar e não conhecem seus direitos, ficando reféns de práticas assistencialistas e corruptíveis. A Páscoa Jovem e a Festa da Colheita das Comunidades representam a vontade de Comblin em construir práticas realmente libertadoras de seu povo, quando reunimos os pobres, elaborando estratégias adequadas a cada momento político, economico e social, a partir de um processo de conscientização e de ação de uma forma articulada. Considerações finais A atuação realizada pelo Centro de Formação Padre José Comblin, em Café do Vento, apresenta uma reflexão de fé que se aproxima do que poderíamos chamar, de forma generalizada, de Teologia da Libertação. Caracterizamos assim, visto o confronto apresentado entre a fé católica e as diversas situações de opressão vivenciada pelas comunidades que cercam o citado centro. A articulação promovida pelo Padre Hermínio Canova demonstra a necessidade de continuar contribuindo para um pensamento que vá de acordo com os ideias de Padre José Comblin, utilizando uma linguagem popular, acolhedora e desmistificadora. Podemos afirmar que há um compromisso oculto entre esses dois padre e o desejo de libertação de todos os oprimidos, envolvendo um evangelho de credibilidade que teve seus primórdios junto com o Concílio Vaticano II (1962-1965) e com o CELAN de Medéllin (1969). O compromisso em auxiliar os oprimidos ao redor do Centro, inclusive em parcerias com outros instrumentos mais organizados como a Associação Comunitária Rural de Café do Vento ou ainda ainda, com o órgãos de formação profissional como o SENAI, estabelecem certa credibilidade a coordenação, uma vez que efetiva uma parte na luta pela libertação daqueles que vivem oprimidos, seja lá qual for a forma de opressão. 145 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Assim, o papel relevante desempenhado pelo Centro, ao oferecer certo respeito e credibilidade social, cria oposição por parte de uma parcela considerável do clero, que não consegue enxergar a natureza fidelissima aos ensinamentos de Nazareno. Soma ao desagrado, a relação com os setores e pastorais sociais da Arquidiocese da Paraíba. Todavia, mesmo com todas as situações vivenciadas, os conflitos gerados, o Centro de Formação Padre José Comblin continua desempenhando suas funções de educar para a vida, para a cidadania e para a Libertação, atuando discretamente nas Comunidades rurais, realizando trabalhos com a juventude e com os agricultores, a ampliando e contribuindo com as experiências do Padre José Comblin, Palavras-chave: Resistência. Centro de Formação. José Comblin. 146 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990. na América Latina, 3ª edição, Rio de Janeiro: Ed Civilização Brasileira, 1980. BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especificidades e abordagens. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. COMBLIN, Jose. Nação e Nacionalismo. Doutrinas e Problemas. São Paulo: Duas Cidades, 1965. BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. 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Através de um estudo bibliográfico ousaremos a princípio analisar através de um olhar fenomenológico, já a partir do primeiro tópico destes escritos, a percepção extrassensorial presente no jogo de Cartas do Tarô. Fazendo relação aos experimentos parapsicológicos de Joseph Banks Rhine (1920) e seus seguidores. Ao perceberem que por meio da telepatia, diante de uma perspectiva parapsicológica, com vistas àquele fim, obtêm respostas aos fenômenos ali apresentados. Em estudo realizado no contexto do início do século XX, onde havia a predominância do pensamento racionalista, o qual é “[...] parte do sistema econômico da sociedade capitalista, que se alimenta dessa dinâmica frenética de vida do homem do século XX, onde o imprescindível é o lucro e a geração de riquezas. [...]”2. Além do que neste período, a parapsicologia é ciência relegada aos assuntos ligados ao ocultismo. Diante do que, tal aspecto parapsicológico se desmembra ante o cartear de tarólogos, na busca seja de cunho divinatório, oracular, ou simplesmente, como ferramenta de autoconhecimento, buscadas por consulentes das mais diversas culturas. Embora, “[...] a missão das artes divinatórias não é manter a pessoa na submissão, na incompreensão e na ignorância, mas fazer com que ela chegue ao domínio e ao conhecimento. [...]”3. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões. Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Linha de Pesquisa: Espiritualidade e Saúde. Campus I. João Pessoa/PB. Membro da Equipe Editorial – Revista Religare (Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB). Pedagoga em Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP). Tutora EAD Virtual (UAB). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/5639489493325257. E-mail: fernandapcavalcanti@hotmail.com. 2 CAVALCANTI, 2018, p. 71. 3 MOREL, 2018, p. 12. 1 150 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Assim, voltando-nos especificamente, às 22 cartas que representam os Arcanos Maiores do jogo, e sua relação com os Arquétipos de Carl Gustav Jung4, que as utilizou como recurso terapêutico no tratamento de seus pacientes, e sua relação simbólica, causal e sincrônica com a Fenomenologia. Onde ensaiaremos a uma pesquisa posterior, mais aprofundada acerca do método utilizado por Jung com seus pacientes. Outrossim, uma vez que as Ciências das Religiões é nosso campo de estudo. Ainda nesta pesquisa, apresentaremos alguns conceitos que, estão sobremaneira ligados à Fenomenologia das Religiões, uma vez que, “[...] a Fenomenologia não estuda os fatos religiosos em si mesmos (o que é tarefa da história das religiões), mas sua intencionalidade (seus eidos) ou essência. [...]”5. Como veremos notoriamente, neste estudo em questão. Logo quando além do que, a Fenomenologia é ainda utilizada como método científico, em meio a diversas outras abordagens principalmente advindas das diversas áreas das ciências humanas. Enriquecendo então, pela diversidade plurimetodológica, o campo de pesquisa em Ciências das Religiões. Onde o pesquisador tem a possibilidade de ampliação metodológica à pesquisa, uma vez que tais ciências se completam, sobretudo ante ao fato religioso que, [...] pode ser abordado por todas as ciências humanas ou ciências sociais, cada uma a partir do que lhe é próprio. A aproximação fenomenológica é particular, mas necessária para enriquecer os outros acessos, pois evita os desvios causados por uma compreensão insuficiente da experiência religiosa e de suas manifestações ou linguagens.6 De tal maneira, que possamos prosseguir a essa discussão trazendo logo a seguir, o aspecto fenomenológico nas Cartas do Tarô, que Carl Jung (1875 a 1961), psiquiatra e psicólogo suíço fundador da psicologia analítica, foi o “primeiro sucessor de Freud a fazer aproximações entre as tradições do oriente e do ocidente, criando pontes espaciais e temporais, contribuindo para um melhor conhecimento do ser humano”. (FIALHO, 2014, Apud FIGUEIRA et al, 2016, p.143). 5 CROATTO, 2010, p. 25. 6 IBIDEM, p. 17. 4 151 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e é nosso objeto investigativo, fazendo relação, a partir da percepção extrassensorial, que é parte do campo de estudo da parapsicologia. Bem como, sua utilização na área terapêutica, sobretudo, ao que concerne à perspectiva jungiana, por meio das representações simbólicas arquetípicas, expressas pelos Arcanos Maiores do Tarô. Logo, ligadas aos aspectos das dimensões mais sutis que constituem o Ser. Sendo estas evidentemente, as dimensões: espiritual e mental. Arcabouço da intuição, que será aqui fator de expressão da natureza extrassensória. Trazendo assim, através da simbologia, importantes aspectos presentes sobremaneira no campo ligado intrinsecamente às Ciências das Religiões. A qual pode chamar de simbologia mística sagrada fortemente presente neste estudo, de como o Tarô pode ser usado como recurso terapêutico. Para tanto, Eliade (1992), nos traz a presença do sagrado mostrando a manifestação da presença religiosa, através do forte simbolismo presente nas cartas. Retirado da vida religiosa propriamente dita, o sagrado celeste permanece ativo por meio do simbolismo. Um símbolo religioso transmite sua mensagem mesmo quando deixa de ser compreendido, conscientemente, em sua totalidade, pois um símbolo dirige se ao ser humano integral, e não apenas à sua inteligência.7 No que concerne ao “símbolo”, na perspectiva jungiana: [...] Só através do símbolo o inconsciente pode ser atingido e expresso; este é o motivo pelo qual a individuação não pode, de forma alguma, prescindir o símbolo. Este, por um lado, representa uma expressão primitiva do inconsciente e, por outro, é uma ideia que corresponde ao mais alto pressentimento da consciência.8 Para tanto, dentro de uma abordagem amplificada, [...] Em sentido amplo, no entanto, tudo pode ser um símbolo ou desempenhar o papel de um símbolo, desde a cratofania mais 7 8 ELIADE, 1992, p. 64. JUNG, 2011, p. 35. 152 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e rudimentar (que “simboliza”, de uma maneira ou de outra, o poder mágico-religioso incorporado num objeto qualquer) até Jesus Cristo, que, de certo ponto de vista, pode ser considerado um “símbolo” do milagre da encarnação da divindade no homem.9 Além do que, perspectivas estas, que serão aqui neste artigo abordadas de forma introdutória, voltadas, a abrir caminho aos estudos posteriores a esta temática, dentro de uma proposta de metodologia voltada à Fenomenologia da Religião, como campo de estudo promissor, que vem a contribuir às várias áreas humanas. Todavia, especialmente às Ciências das Religiões. Sendo este trabalho aqui apresentado, um estudo que busca responder por ora, a basilares pressupostos voltados à fenomenologia presente na percepção sensorial nas Cartas do Tarô. Onde sem sombra de dúvidas, ao longo da pesquisa que está sendo desenvolvida, encontraremos respostas mais aprofundadas às questões pertinentes a este assunto. A seguir iniciaremos falando acerca da percepção extrassensorial, a partir da Parapsicologia, até chegarmos a um contemplar fenomenológico dentro do jogo de Cartas do Tarô. Dentro de toda a sua simbologia de arquétipos, expressas pelos 22 Arcanos Maiores deste histórico, magnífico e intrigante baralho de cartas. A percepção extrassensorial: da parapsicologia ao olhar fenomenológico nas cartas do tarô A extrassensorialidade como objeto de investigação da parapsicologia, abrange as diversas faculdades da mente. Além do que, é campo de investigação, sobretudo, para alguns estudiosos, como Joseph Banks Rhine, que em sua obra, Novas Fronteiras da Mente (1973), relata alguns experimentos de pesquisas ligadas à percepção extrassensorial, como a telepatia, por exemplo. Chave ao nosso estudo em questão. Onde atribuímos a Fenomenologia, o papel de captar a intencionalidade, a 9 ELIADE, 2010, p. 365. 153 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e essência do que está por traz, nas entrelinhas às experiências e aos discursos dos sujeitos que vivenciam ou vivenciaram determinado(s) fenômeno(s), sendo estes de caráter religiosos ou não. O ensaio de Rhine de maior destaque foi com os Cartões Zener (1920). Nome em homenagem ao seu amigo, o psicólogo Karl Zener. [...] Comecei a chamá-los no início de nosso trabalho, “cartões Zener”; mais tarde ao modificarmos dois dos desenhos, batizamo-los com o nome de “cartões ESP” (Extra-sensory perception). Nessa ocasião estávamos empregando o termo “percepção extra-sensória.” (ou ESP, para abreviar) à descrição da clarividência e da telepatia, para as quais são hoje conhecidos; os cartões de vários tipos – postos à disposição do público – que agora estamos usando foram modificados; aperfeiçoaram-se os desenhos primitivos elaborados pelo dr. Zener e por mim.10 O ensaio “telepático” de Rhine foi também demonstrado por Jung, ao falar a respeito de causalidade e sincronicidade em seus trabalhos. [...] a experimentação consistia em um experimentador retirar sucessivamente uma serie de cartas de baralho, numeradas e contendo motivos geométricos, enquanto o sujeito de experimentação (SE), separado espacialmente do experimentador, tinha como tarefa identificar os respectivos desenhos. Foi usado um baralho de 25 cartas divididos em cinco grupos de cinco, cada um dos quais com um desenho especial. Cinco dessas cartas continham um estrela, um retângulo, cinco um círculo, cinco duas linhas onduladas e cinco uma cruz. As cartas eram retiradas sucessivamente do maço pelo experimentador, que desconhecia a disposição em que elas se achavam dentro do baralho. [...].11 Logo, podemos perceber o Tarô, como objeto de estudo dentro da parapsicologia. Uma vez que, o Tarô apresenta em seu desmembrar de cartas dispostas durante o jogo, seu caráter genuíno, sutil, que corresponde ao “intuitivo”, a dimensão transcendente12 deste jogo de cartas. 10 11 12 RHINE, 1973, p. 33. JUNG, 2012, p. 24 e 25. Tavares (1999). 154 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Onde é perceptível que tal aspecto (intuição), está ligada, sobremaneira, as dimensões mental e espiritual, que são partes integrantes, junto as outras dimensões (ditas mais imanentes) que constituem o ser humano. Em conjunto, sendo todas estas assim definidas: “dimensão física, dimensão sensorial, dimensão emocional, dimensão mental e dimensão espiritual”13. Constituindo, portanto, tais dimensões, especialmente a espiritualidade, objeto de estudo em determinadas áreas científicas, como na saúde e nas Ciências das Religiões, por exemplo, que abre espaço a linhas de pesquisa, como por exemplo, Espiritualidade e Saúde14, onde diversos autores veem desenvolvendo pesquisas, acerca do fator espiritual, como componente intrínseco ao Ser. Vários pesquisadores das ciências médicas e humanas, especialmente das Ciências das Religiões, vêem se debruçando em estudos que dizem respeito à incidência relevante do componente espiritualidade na constituição do ser humano, unida as outras dimensões numa total sincronia perpassando ao envoltório material denominado de corpo físico.15 Como mencionamos na introdução, há alguns parágrafos anteriores, tais dimensões, espiritual e mental são arcabouços à intuição, que é um aspecto expressivo à extrassensorialidade presente no jogo de Tarô, o qual é nosso foco nesse trabalho. Onde a leitura aliada às técnicas desenvolvidas pelos tarólogos, cartomantes, juntamente com a percepção dispostas na simbologia trazida pelos arcanos, expressa nas falas, tanto de quem as interpreta, como ainda de quem as busca, no caso os consulentes. Ou se tratando de terapia, os pacientes. Seja na curiosidade em estar em contato com um objeto, no caso as cartas de Tarô, de denominação histórica oracular, de origem um tanto controversa. Ou quem sabe talvez em um ato de fé. Ou ainda simplesmente, na busca de respostas a perguntas relacionadas a caminhos ROHR, 2011. Linha de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). 15 CAVALCANTI, 2018, p. 26. 13 14 155 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que levem ao autoconhecimento. Apresentando assim, a sutileza da fenomenologia, neste jogo embaralhado de cartas, símbolos e arquétipos. Porém repleto de significados aos sujeitos que ali estão envolvidos. A relação dos 22 arcanos maiores do tarô com os arquétipos de jung como recurso terapêutico Falaremos aqui dentro de uma perspectiva, a qual seguirá um estudo adiante dessa relação dos Arcanos Maiores do Tarô com os Arquétipos de Jung. A partir do pressuposto da relação da percepção extrassensorial com o aspecto fenomenológico presente nas Cartas do Tarô, revelada na fala dos indivíduos envolvidos: tarólogo/terapeuta e consulente. Logo, o que aqui apresentamos são conceitos os quais estão paulatinamente sendo estruturados. Diante disso, é relevante o estudo da percepção extrassensorial no jogo de Tarô que é usado como recurso terapêutico, uma vez que, Jung apresentou provas extraídas do seu trabalho entre os chamados “loucos” e as centenas de pessoas “neuróticas” que lhes pediam uma resposta para os seus problemas, de que a maior parte das formas de insanidade e desorientação mental eram causadas por um estreitamento da consciência e de que, quanto mais estreita e mais racionalmente focalizada fosse a consciência do homem, tanto maior seria o perigo de hostilização das forças universais do inconsciente coletivo, a tal ponto que elas se levantariam, por assim dizer, em rebelião e esmagariam os últimos vestígios de uma consciência penosamente adquirida pelo homem. [...]16 Com isso podemos perceber que pelas cartas, Jung traz aspectos do inconsciente que podem ser trabalhados a partir das representatividades simbólicas arquetípicas apresentadas. Onde questões submersas, e por vezes escondidas, esquecidas pelo tempo, e pelos traumas sofridos, são trazidas a luz para serem cogitadas, dentro da formatação 16 NICHOLS, 2007, p. 15 e 16. 156 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e terapêutica proposta pelo método através da simbologia trazida pelos arquétipos representados nas cartas. Ainda segundo, o psiquiatra Jung, “arquétipos” são determinados a partir do “inconsciente coletivo”: O inconsciente coletivo é uma figuração do mundo, representando a um só tempo a sedimentação multimilenar da experiência. Com ocorrer do tempo, foram-se definindo certos traços nessa figuração. São os denominados arquétipos ou dominantes – os dominadores, os deuses, isto é, configurações das leis dominantes e dos princípios que se repetem com regularidade à medida que se sucedem as figurações, as quais são continuamente revividas pela alma. Na medida em que essas figurações são retratos relativamente fiéis dos acontecimentos psíquicos, os seus arquétipos, ou melhor, as características gerais que se destacam no conjunto das repetições de experiências semelhantes, também correspondem a certas características gerais de ordem física. Este é o motivo pelo qual é possível transferir figurações arquetípicas, como conceitos ilustrativos da experiência diretamente ao fenômeno físico – ao éter, o elemento arcaico do sopro ou da alma, representado na imaginação geral, ou à energia, a força mágica – outra idéia universalmente difundida.17 Sendo estes os conceitos fundamentais de “inconsciente coletivo” e “arquétipos” dentro da concepção jungiana, pertinentes a este estudo. O Tarô, nosso objeto de estudo, é composto por 78 cartas. Contudo, nesta pesquisa, trataremos das 22 cartas que correspondem aos Arcanos Maiores do Tarô. Todavia, com a perspectiva de focarmos na relação direta dos 22 Arcanos, com os arquétipos jungianos, o Tarô pode ser usado como recurso terapêutico, o qual já mencionamos anteriormente, através de imagens, símbolos e numerações. Sendo, portanto, uma verdadeira Jornada Arquetípica18: As 22 cartas dos Arcanos Maiores do Tarô consistem em uma série de imagens retratando os diferentes estágios de uma jornada. Essa 17 18 JUNG, 1987, p. 86. NICHOLS (2007). 157 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e jornada é a do Louco, a primeira das 22 figuras. Seguido pelo Mago, A Sacerdotisa ou Papisa, A Imperatriz, O Imperador, O Papa ou Hierofante, Os Enamorados, O Carro, A Justiça, O Eremita, A Roda da Fortuna, A Força, O Enforcado, A Morte, A Temperança, O Diabo, A Torre, A Estrela, A Lua, O Sol, O Julgamento e O Mundo.19 As quais correspondem a fases da vida de um indivíduo, ao focarmos nas 22 lâminas20 do baralho. Seguindo a ordem disposta acima citada, na ordem das numerações: do número 1 até o número 22. Correspondendo assim, o ciclo da vida. Trazendo por meio de cada arcano, o seu significado arquetípico, de acordo com a disposição apresentada pelo contexto do jogo. Logo, o trabalho terapêutico na perspectiva trazida por Jung, acontece através da abertura de consciência, na qual o consulente, paciente, terá a possibilidade de observar através das representações simbólicas dos arcanos à sua “vida”, os entrelaces do inconsciente. Já que, “[...] Um símbolo revela sempre, qualquer que seja o seu contexto, a unidade fundamental de várias zonas do real. [...]”21. Diante disso, fazer e reformular perguntas. Encontrando respostas, caminhos. Ressignificando ao vivenciar, expressar assim então, o sentido fenomenológico trazido pela ação terapêutica do jogo. Dentro da proposta jungiana de utilização dos símbolos arquetípicos, apresentados pelos Arcanos Maiores (foco deste estudo) do baralho de cartas do Tarô, que aqui nesta pesquisa nos lançamos. A fenomenologia: conceito e método científico em ciências das religiões A fenomenologia quanto método científico em Ciências das Religiões, perpassa diversos espaços, fazendo uso de fundamentações de diversas outras áreas científicas. Desde a História, Artes, Filosofia, 19 20 21 FERREIRA NETTO, 2016, p. 19. Cartas. Cartas.ELIADE, 2010, p. 368. 158 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Antropologia, Sociologia, Psicologia, Parapsicologia, a própria Ciências das Religiões, dentre outras. Neste cenário plurimetodológico, sobre as quais toma emprestado, e cria suas próprias definições teóricas e métodos de pesquisa. Entretanto, de tal maneira, no nosso estudo que seguirá em andamento, faremos uso da fenomenologia, tanto como arcabouço de embasamento teórico, como ainda método investigativo. Uma vez que buscaremos na fala dos sujeitos envolvidos, o teor, a essência da experiência fenomenológica, vivenciada através do jogo de Cartas do Tarô. Diante do que, seguimos, tornam-se relevantes algumas definições: A Fenomenologia procura o fenômeno; o que é fenômeno? É aquilo que se mostra. Isso comporta uma tríplice afirmação: (1) há alguma coisa; (2) esta se mostra; (3) é um fenômeno pelo fato mesmo de se mostrar. Ora, o próprio fato de se mostrar afeta seja aquilo que se mostra, seja aquele a quem é mostrado; por conseguinte, o fenômeno não é um simples objeto; e não é tampouco o objeto, a verdadeira realidade, cuja essência seria somente recoberta pela aparência das coisas vistas. [...] Consequentemente, o fenômeno, com relação a quem quer que ele se mostre, comporta três características fenomenais superpostas: (1) é – relativamente – escondido; (2) revela-se progressivamente; (3) é – relativamente – transparente. Essas etapas sobrepostas não são iguais, mas correlativas àquelas da vida: (1) experiência vivida; (2) compreensão; (3) testemunho. As duas últimas relações, cientificamente tratadas, constituem a tarefa da Fenomenologia22. Entretanto, seguindo tais colocações acerca do embasamento fenomenológico, para que compreendamos o que de fato almejamos, ao nos debruçarmos nos estudos da fenomenologia ligada ainda à religião. Sobremaneira, neste estudo aqui do jogo de Tarô, especificamente pela riqueza mística e simbólica trazida pelos arcanos representados. Sob as asas da crença, seja religiosa, ou puramente terapêutica de seus consulentes. Sabendo-se ainda, que a “Fenomenologia”, aqui essencialmente da “Religião”, se refestela de importantes primícias: 22 LEEWM (1975), Apud GASBARRO, 2013, p. 85. 159 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e [...] La fenomenologia de la religión ha encontrado una atención cada vez mayor em los últimos años. La fenomenologia de La religión, es decir, pretende describir la religión tal como aparece em sus cambiantes expresiones vitales. La fenomenologia de la religión es, por tanto, la ciencia de lãs diversas formas de aparición de la religión. [...].23 De tal modo, que a fenomenologia traz à religião, como ciência, essencialmente como método, o olhar sobre o qual, vislumbra o que há por traz das experiências ditas religiosas. Na sutileza dos atos de atribuição fenomenológica. Tanto no que é dito, como no que está nas entrelinhas dos acontecimentos. Ora explicando, ora simplesmente observando. Tomando por vezes emprestado aspectos de algumas outras ciências que lhes assemelha ao que tange, dentro da religião, as experiências religiosas vividas por seus adeptos. Além do que, trabalhar com a fenomenologia como método de pesquisa, especialmente em Ciências das Religiões, exigirá do pesquisador então, algumas posturas que levam a considerar que, - A abordagem fenomenológica não trabalha com hipóteses: ela suspende o juízo, colocando-o entre parênteses, negando qualquer julgamento ou pré-conceito a respeito de um determinado fenômeno. Ela se ocupa das “coisas mesmas”, tal como se manifestam e as descreve. [...].24 Logo compreendemos, que de tal maneira a Fenomenologia da Religião, é ciência arraigada por fundamento e método. Onde, seu objeto o “fenômeno” é visto tal como acontece. Sendo descrito ao deixar de lado, todo e qualquer juízo valorativo, ou hipótese. Essencialmente, advindo de quem o observa. No caso da pesquisa, o pesquisador. [...] Em síntese, a fenomenologia da religião estuda: 1) o sentido das expressões religiosas no seu contexto específico; 23 24 WIDENGREN, 1976, p.1. FERREIRA, 2018, p. 39. 160 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 2) sua estrutura e coerência (sua morfologia); 3) sua dinâmica (desenvolvimento, afirmação, divisões etc.).25 Além disso, tratar acerca da Fenomenologia das Religiões, como conceito e método científico, exigem de quem se propõe a adentrar em seu campo, uma disposição a deixar de lado, possíveis questões e embates, especialmente pré-concebidas. Já que o fenômeno, essencialmente religioso, o qual nos colocamos, a debater neste artigo, exige do pesquisador uma postura de neutralidade. Deixa caminho aberto a uma pesquisa que busca, sobretudo, o significado no caso aqui específico da religião, em suas formas de expressão, dentro de um cenário específico, o qual se coloca em análise. Através de um sentido quanto o que estruturou, e levou a uma lógica o “fenômeno” pesquisado. Até adentrar no seu modo de desenvolver-se dentro da estrutura, o qual é parte. Ou seja, da religião, ou maneiras de religiosidade de onde se origina. A inserção do fenômeno na nossa própria vida não é um ato arbitrário; não podemos abrir mão dele. A realidade é sempre a realidade minha, a história é a história minha, “a projeção, o prolongamento que acompanha o homem que vive agora” (Spranger). Mas devemos saber o que fazer quando nos colocamos a falar daquilo que se manifestou a nós e ao qual damos um nome. Para tal fim devemos mentalizar que tudo o que se mostra a nós não ocorre de modo imediato, mas somente como signo de um sentido a interpretar, como algo que quer ser interpretado por nós. Ora, a interpretação é impossível se não tivermos vivenciado aquilo que se mostra, e vivenciado não involuntariamente e com meia consciência, mas experimentado, vivido com assiduidade e método.26 Para responder acerca do fenômeno na nossa própria vida, como citado acima. É preciso ainda, talvez não seguir respondendo a posturas prontas e fixas, caracterizadas por uma estrutura social arraigada de preconceitos. E sim, abrir-se, ao fenômeno, despido de qualquer amarra, e dispor-se ao mergulho em campos nunca antes vistos. Logo, viver sumariamente, experiências, talvez nunca antes imaginadas. 25 26 CROATTO, 2010, p. 27. LEEWM (1975), Apud GASBARRO, 2013, p. 85. 161 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Considerações finais O artigo aqui apresentado teve como pressuposto, introduzir um estudo que se dispõe, a analisar fenomenologicamente, a percepção extrassensorial presente no jogo de Cartas do Tarô, relacionando-os aos experimentos parapsicológicos dos “Cartões Zener” (1920) de Joseph Banks Rhine, e seus coparticipantes. Onde voltamo-nos, às 22 cartas que representam os Arcanos Maiores do jogo, e sua relação com os Arquétipos de Carl Gustav Jung, usados como recurso terapêutico. Dentro de uma perspectiva terapêutica, onde questões do inconsciente são trazidas à tona, a consciência por meio das figuras, dos símbolos, representados, através dos Arcanos do Tarô. Para serem trabalhadas com o intuito de ajudar o consulente (paciente), a compreender o que lhe aflige, e assim criar caminhos que o permita ter melhor qualidade de vida. Voltadas a uma integração das dimensões, que compõem o indivíduo. Diante do que, significativos estudos estão sendo desenvolvidos acerca dessa perspectiva, do olhar integrativo do Ser. Especialmente na linha de pesquisa Espiritualidade e Saúde, que é parte do curso de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Além do que, nesta pesquisa realizamos um levantamento bibliográfico, onde apresentamos alguns conceitos que, sobretudo estão presentes nos estudos voltados à Fenomenologia das Religiões, de maneira especial como método científico. Falar acerca da percepção extrassensorial no Tarô, como recurso terapêutico, sobretudo, com um olhar fenomenológico, não é tarefa fácil. Porém, extremamente prazerosa. Uma vez que, trazer tal temática ao debate acadêmico, especialmente no campo das Ciências das Religiões. Abrimos então, um leque de possibilidades. Já que se faz necessário comungar com as mais diversas áreas das ciências humanas: História, Antropologia, Psicologia, Parapsicologia, Sociologia, Filosofia, Artes, Geografia e dentre tantas outras que convidaremos a esse “jogo de cartas”, ao longo dessa trajetória que está só começando. Entretanto levar o estudo do Tarô primeiramente para dentro do campo da parapsicologia, fazendo relação com o aspecto fenomenológico, sobremaneira, por meio da fala dos sujeitos envolvidos, desprenderá 162 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e grande demanda de estudos que tangem mais profundamente estas áreas: Parapsicologia, Fenomenologia e Ciências das Religiões. Precisaremos ampliar para bem mais além aos estudos de Rhine. Além do que, trabalhar com os Arcanos Maiores do Tarô, relacionando aos arquétipos de Jung, dentro de uma perspectiva terapêutica, exige uma bibliografia que não se detenha só ao famoso psiquiatra, seguidor de Freud. Mas é preciso que se estenda a outros autores e trabalhos dentro desta temática, a compreensão da simbologia que está por trás do que se vê, e ainda não se vê nas cartas. Que são utilizadas como instrumento terapêutico de autoconhecimento. Já discorrer da Fenomenologia como ciência que fundamenta, e ainda é método, requer da ajuda e integração de inúmeros autores, além dos já citados neste ensaio. Onde será preciso um olhar aberto ao que dizem campos, que tomam emprestados, e se misturam aos conceitos da fenomenologia. Que são algumas das ciências humanas, que mencionamos logo acima. Consideramos de total pertinência adentrar abertamente a essa “aventura”, da relação da percepção extrassensorial do Tarô como recurso terapêutico, sob um olhar estritamente fenomenológico. Mantendo-nos sempre abertos a novos e ousados caminhos que esta pesquisa sinaliza que provavelmente irá nos trazer. Para que ainda, os aspectos relacionados à simbologia arquetípica dos Arcanos das Cartas do Tarô. Traga possíveis respostas, por meio de uma abordagem fenomenológica, ao nosso campo de estudo, que são as Ciências das Religiões. Além do que, contemplem as mais diversas áreas das ciências humanas, as quais auxiliam a integração tanto como teoria, como ainda método científico a Fenomenologia das Religiões. 163 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências CAVALCANTI, Fernanda Pinheiro. A Espiritualidade nas Práticas Integrativas e Complementares: Analisando discursos de participantes. João Pessoa: Libellus Editorial, 2018. CROATTO, José Severino. As Linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. 3. ed. Tradução de Carlos Maria Vásquez Gutiérrez. São Paulo:Paulinas, 2010. 521p. (Coleção Religião e Cultura). ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. 1 ed. São Paulo, Martins Fontes Editora, 1992. ______. Tratado de História das Religiões. 4. ed. 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Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 166-181. Carmen Lúcia dos Santos1 Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão F°2 Introdução O presente trabalho visa tratar a vivência de biodança, fundamentada no seu modelo teórico e nas linhas de vivências, como elemento importante capaz de propiciar experiências integradoras que visam aumentar o potencial afetivo por meio da música, da dança e do movimento corporal , permitindo ao individuo conectar-se consigo mesmo e com os outros e com o cosmo. Tendo como base metodológica os conceitos de biodança, de afeto e de dependência química, que se articulam entre si, como suportes fundamentais que possibilita o indivíduo a ser afetado por suas experiências e assim, poder afetar outros por meio dos vínculos afetivos que permitem o aumento do seu potencial energético, a expressão da alegria, do bem-estar físico, psíquico, emocional, e espiritual, intensificando o ímpeto do afeto no aqui e agora. Utilizamos uma abordagem metodológica qualitativa, descritiva, pois o objeto da pesquisa determina o método a ser adotado para compreender a realidade. Como afirma Flick (2004, p.17) “Cada método baseia-se em uma compreensão especifica do seu objeto”. Busca-se compreender o ser humano em processo de superação de dependência química e como a Mestranda em Ciências das Religiões pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões (PPGCR) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Campus I, João Pessoa, Paraíba. Endereço eletrônico: carmensasv@gmail.com. Sob a orientação do Professor Doutor Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão. Endereço eletrônico: edumeinberg@gmail.com. 2 Docente-visitante do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (PPGDH/UFPB) e do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (CCJ/UFPB). Pós-Doutorado em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Doutorado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas pela UFSC. Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Coordenação da Fogo Editorial. E-mail: edumeinberg@gmail.com. 1 167 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e biodança contribui para encontrar sentido para vida. Dançar com afeto conecta-se com a linha da afetividade e da vitalidade, força vital da biodança, que possibilita a ativação de potenciais genéticos, por meio da música e do movimento corporal contribuindo para a elevação da auto-estima afetando a elevação do humor e de um estilo de vida saudável. Sendo assim, esses elementos ativam potenciais genéticos, ativando o “inconsciente vital”. Esses componentes celulares são acionados por meio da vivência, da música, elevando o estado de humor e expressão vital da alegria e do bem estar – físico, mental, emocional e espiritual. 1. Conceito de afeto Por afeto, compreende as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções (ESPINOZA, 2009, p. 44). Segundo Marques (2012, p.), o termo afeto (affectus) exprime a transição (transitio) de um estado a outro, tanto no corpo afetado, como no corpo afetante. Os afetos são, portanto, potência em processo de variação; ser afetado é passar a uma perfeição maior (alegria) ou menor (tristeza) do que a do estado anterior. Essa transição, além de não envolver necessariamente a consciência da mesma, exprime a variação da potência de agir do corpo... Os afetos podem ser ativos,quando exprimem a passagem a uma perfeição maior (alegria), ou passivos, guando exprimem o movimento oposto (tristeza). (MARQUES, 2012, p.) O sentido do afeto passa pela força de existir e da potencialidade de poder ser afetado, por meio do conjunto de afetos que circulam, movimentam e preenchem um corpo composto pelos indivíduos e pela coletividade. Assim, acontece no movimento da biodança, quando as linhas de vivência da biodança proporcionam experiências que leva o individuo a conectar-se com suas forças vitais e seu potencial afetivo numa conexão e expansão de afetos e de uma vitalidade- força vital, que explode na alegria de viver. 168 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 2. Conceito dependência química Segundo Ribeiro (2011, p. 43) o conceito de dependência é extremamente recente, se comparado ao consumo de substância psicoativas pela humanidade, que compreende vários milênios. Contudo, problemas relacionados ao consumo sempre existiram. Vive-se em um mundo onde o uso de drogas parece ser experimentado como uma prática de busca de gozo ou alivio da tensão individual gerada pelo estresse e pela depressão sentimental de uma sociedade hiperativa. Ainda, Ribeiro acrescenta que a disponibilidade e os usos de substâncias que carregam riscos de dependências químicas são sempre parte de contextos geográficos, econômicos, sociais, culturais e históricos. Vivemos na contemporaneidade uma crise da sociedade enquanto instância de referência para o individuo, onde a incerteza e o risco predominam sobre qualquer idéia de projeto sólido de vida, como sublinharam Bauman e Beck. Esse clima de incerteza leva a uma intensificação de um “cuidado de si”, com o individuo buscando na “autenticidade” de suas emoções, no refugio de seu “inner self”, o lugar privilegiado de sua existência; assim como na partilha dessas “vivências” em “comunidades emocionais”, com cada individuo que também as experienciou. (CAMURÇA, jul/dez.2009, p. 348-349). Todos os riscos que enfrentam hoje as mulheres por meio do uso do abuso das drogas, sobretudo do álcool e do crack a deixam fragilizadas, vivendo num mundo de incertezas de insegurança e de abandono e este quadro se constata na falta de cuidado de si e de desprezo total. Na vivência de comunidades terapêuticas, encontram ali, um refúgio como lugar que privilegia sua existência e que oferece um espaço para poder compartilhar suas vivências e suas emoções diante do estado fragilizado na qual se encontra. A biodança possibilita o cuidado de si e da coletividade na expressão do afeto e das emoções por meio da música e do movimento corporal baseado numa metodologia da vivência. 169 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 3. Definição de biodança A Biodança fundamentada no sistema biocêntrico traz uma metodologia própria na qual propõe uma teoria baseada nas vivências por meio do movimento corporal e da música. Rolando Toro, assim o define: A biodança é um sistema de integração, de renovação orgânica, de reeducação afetiva e de reaprendizagem das funções originais da vida. A sua metodologia consiste em induzir vivências integradoras por meio da música, do canto, do movimento e de situações de encontro em grupo. (TORO, 2002, p. 33). A sua aplicabilidade ocorre por meios da música, de exercícios e movimentos corporais em grupo, oferecendo possibilidades de comunicação e de vivência integradoras, que estabeleça vínculos afetivos com outras pessoas, contribuindo assim, para um processo de equilíbrio no seu organismo em todas as dimensões: biológica, físico, emocional, psicossocial, mental e espiritual. A vivência sendo a base da metodologia da biodança, baseia-se na experiência vivida com grande intensidade no momento presente, que envolve a cinestesia, as funções viscerais e emocionais. Confere uma qualidade existencial de modo intenso do aqui e agora. A metodologia da Biodança conduz o individuo as vivências de integração, através de uma imediata conexão consigo mesmo, reforçadas pela associação com situações prazerosas, estimuladas pela música, pela dança e pelas situações de encontro (TORO, 2002, p. 29-30). 3.1 O modelo teórico da biodança Rolando Toro criou o sistema e Modelo Teórico (vide anexo 1) traçando uma trajetória de profundas e amplas mudanças, um longo caminho percorrido com uma atenciosa investigação. Em 1965, Rolando Toro fez seus primeiros trabalhos de dança, com pacientes psiquiátricos, no Centro de Estudos de Antropologia Médica, da Escola de Medicina da Universidade do Chile, onde exercia a função de Membro Docente. Foram às atividades de pesquisa de Toro que o levaram a experimentar diferentes sistemas terapêuticos com pacientes que apresentavam 170 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e problemas mentais, e seu modo de inovar foi a partir da dança, inspirado no principio de que a dança e a música tinham um grande efeito no tratamento dos pacientes. Observou os efeitos da música por meio dos exercícios de contato na vida dos pacientes, percebendo os resultados positivos. A partir dessa experiência, Toro estruturou o modelo teórico., concretizando através das vivências integradoras e da comunicação grupal, que estabelecem vínculos com a própria vida, potencializando um desenvolvimento do ser humano comprometido e vinculado consigo, com o outro e com a natureza (TORO, 2002, p. 37). 3.2 Conceitos estruturais da biodança A Biodança está ancorada nas pesquisas cientificas que Rolando Toro desenvolveu, por meio de respostas neurovegetativas dos seus pacientes e demonstrou que determinados exercícios promovem uma ação reguladora ao nível visceral e que de certa forma ativa o sistema simpático-adrenérgico ou o parasimpático-colinergico. A partir do desenvolvimento dos seus estudos e experiências, Rolando Toro, deu-se conta de que a estrutura da Biodança está voltada e fundamentada nas ciências que tratam da vida e chegou à conclusão que a essência do ser humano não está nos aspectos psicológicos, mas sim, nos biológicos. O principio Biocêntrico é a inteligência afetiva; a transformação é integrar a inteligência ao amor através da música e do encontro afetivo. A vida ao centro é o novo paradigma. Esta é a proposta de evolução cósmica para nossa espécie. O núcleo criador da cultura do terceiro milênio está por nascer com a restituição da sacralidade da vida. (TORO, apud, Santos, p. 69). Assim os fundamentos estruturais da Biodança assentam numa abordagem calma, sem a produção de stress emocional, com comunicação leve, aberta e direta, trabalhando com grupos de pessoas e utilizando a música e o movimento para a expressividade do prazer e da vitalidade como força vital. 171 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 3.3 Inconsciente vital O Inconsciente Vital, parte integrante do psiquismo humano constituído de células, órgãos, em sua estrutura celular traz diversas formas de comunicação, por meio da memória, ora expresso em manifestações outras de afinidades e, solidariedade entre si, representado numa forma riquíssima de comunicação. “O inconsciente vital é assim, um comportamento que gera regularidade e mantém estável a função orgânica”. (TORO, 2005, p. 53). Continuando a aprofundar o conceito de “inconsciente vital” e sua conexão com o “inconsciente pessoal” e o “inconsciente coletivo”, Toro afirma: O conceito de “inconsciente vital” mantém relação com o de “inconsciente pessoal” e o de “inconsciente coletivo” definidos respectivamente por Sigmund Freud e Carl Jung. O inconsciente pessoal possui uma dimensão biográfica e se nutre da memória dos fatos vividos especialmente durante a infância. O inconsciente coletivo nutre-se da memória da espécie. O inconsciente vital se expressa pelo humor endógeno (euforia e depressão), pelo bem estar cenestésico, pelo estado geral de saúde. (TORO, 2002, p. 56-57). Esses componentes celulares estão representados em formas de sensações cinestesias, vitais por meio da vivência de biodaça, são acionados mecanismos que atuam nos níveis de integração motora afetiva repercutindo na estrutura do sistema nervoso, imunológico e sistema endócrino. Estes possibilitam uma elevação do humor, a expressão da alegria, do bem-estar físico, psíquico, emocional, e espiritual, potencializando a renovação e a vontade de viver plenamente no aqui e agora. 4. metodologia da vivencia A base metodológica da biodança é a vivência. A vivência tem um valor intrínseco e um efeito imediato de integração, razão pela qual não é necessário que seja posteriormente analisada no nível da consciência. Na Biodanza, propõe-se uma descrição das vivências pessoais, enquanto experiências interiores, sem análise ou interpretação psicológica. 172 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A seguir veremos estas cinco linhas de Vivências que promovem o desenvolvimento desta identidade relacional. Através desse modelo vivencial, estas dimensões denominadas de Linhas de Vivencias são possibilidades geradoras de vida e de aprendizagem no processo de evolução e desenvolvimento do potencial do ser humano vinculado com a própria vida. 4.1 Linha da Vitalidade A vitalidade é gerada por um conjunto de funções que tem por objetivo manter a homeostase, compreende os instintos de conservação, de fome, de sede, bem como o movimento de fuga, de luta e a regulação da atividade e de repouso. O impulso vital é a energia de que o individuo dispõe para enfrentar diversas situações do cotidiano com força vital, é a alegria de viver. De acordo com Toro (2002, p. 86), “uma das finalidades da Biodança consiste em garantir os ecos-fatores que permitam a expressão das potencialidades genéticas da vitalidade.” Esta Linha de Vitalidade tem como objetivo despertar e desenvolver a alegria e o ímpeto vital do ser. A vitalidade possui componentes genéticos importantes que podem ser expressos durante a existência. 4.2 Linha da Sexualidade A linha da sexualidade prepara o individuo a ter uma relação diferente com o corpo numa progressão de descoberta e de aprendizagem. Para Toro (2002, p. 87.), “não existe prazer verdadeiro que não provenha da profundidade e do entusiasmo natural para a vida.[...] o ato de viver é em si mesmo jubiloso” É evidente que o prazer de viver não se justifica quantidade de coisas que possuímos ou consumimos, mas sim, nas pequenas experiências do cotidiano, nos prazeres que vivenciamos nas pequenas coisas, que nos faz desfrutar no prazer de viver com intensidade. Este espaço de gozo é vivenciado no corpo como fonte de prazer, percebendo os sinais, e as necessidades em satisfazer os desejos essenciais coerente com o sentir e o pulsar da vida no momento presente. Toro nos faz lembrar que o corpo tem sido associado à dor, a doença e o sofrimento. Na biodança, o participante vai se exercitando e conectando com vivências prazerosas com a intenção de despertar sua percepção dos desejos mais genuínos na busca do prazer de viver. E, o prazer de 173 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e viver se concretiza pela dança, a alegria de viver, o movimentar, o escutar o próprio coração, pela capacidade de se maravilhar e do encantar-se com o belo e o que há de prazer no cotidiano da vida. Toro coloca que a Linha sexualidade não se restringe somente a sensualidade e o prazer genital. É sentir prazer na degustação de alimentos, pelo banho, pela brisa, pela chuva, pelas carícias, pelos beijos, é ter receptividade ao contato corporal (2002, p. 87) 4.3 Linha da Criatividade A linha da criatividade na Biodança, tem por objetivo trabalhar o desenvolvimento do nosso instinto e impulso para renovar, despertando-nos para o sentido existencial da criação. Para Toro (2002, p.89) “a atividade criadora é o desenvolvimento natural de uma função biológica”. No entanto, a Biodança atua no sentido de favorecer a expressão desta função criadora que é própria de todo ser humano. Toro (2002, p.88) nos convida a mudar a concepção de que existe dissociação entre o ser e sua obra ou ainda a mudar a crença de que a criatividade é apenas mérito de algumas pessoas extraordinárias. Extraordinário e maravilhoso é o nosso próprio viver, criando o nosso próprio existir, pois é chegado o momento de assumir a nossa grandeza, não só na dimensão intelectual ou cognitiva, mas na existência. A força vital da criatividade manifesta-se através do movimento orientado pela vivência e que nos conecta com a essência de nós mesmas, com o belo e com a obra de arte que desabrocha da autenticidade daquilo que é o ser humano na sua singularidade. 4.4 Linha da Afetividade Toro, afirma que a expressão privilegiada desta Linha é o amor, e “celebrar a presença do outro, exaltá-la no encanto essencial do encontro é, talvez, a única possibilidade saudável”. (2002, p.13). As vivências a nesta Linha aponta para despertar da ternura, a solidariedade, a cooperação e integração afetivo, potencializando uma força vital amorosa, em conexão consigo e com o outro. Paul Hoggertt e Simon Thompson fazem uma importante distinção entre o que seria afeto e emoção. Para eles, os afetos são aqueles sentimentos mais corporificados, menos conscientes, enquanto as 174 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e emoções concernem os sentimentos mais conscientes, ancorados na linguagem e nos significados. (WOLFF, 2015) Na experiência da vivência de biodança essas suas dimensões do afeto e da emoção estão vinculadas no contato corporal por meio da música e que pode afetar as subjetividades, potencializando uma dimensão do afeto que passa pelo sentir, pelo olhar, pela percepção, pela sensação e memória corporal, quer perpassa uma dimensão mental do individuo. Para SARPE (2017, 9.109) “a integração da afetividade extrapola a vivência e implica um vínculo, em continuidade, e a superação dos impasses que, entretanto, vão surgindo na relação com o outro e na relação grupal”. Nesse sentido, a afetividade humana se constitui numa expressão da explosão do potencial, força vital pela qual a vivência de biodança propicia a afetar o individuo por meio da música por meio do movimento corporal tanto a nível individual que coletivo. 4.5 Linha da Transcendência A Transcendência trata da vinculação com a natureza, este vínculo se expressa através do sentimento de pertença ao universo, são, pois, estados de expansão da consciência. Segundo Toro (2002, p. 91), a experiência de Transcendência é vista como superação do próprio eu, indo além da autopercepção para identificação com a própria natureza. Para ele, “a procura de harmonização com a natureza em sua totalidade é uma função orgânica [...] O impulso místico é visceral, e tal experiência provoca profundas modificações na homeostase, tanto em nível orgânico como em nível existencial”. Os efeitos dessa vivência estão na percepção do potencial energético do próprio corpo como canal que emana iluminação e um estado harmônico, de paz e felicidade como descreve os místicos. 5. Os efeitos da biodança na vida das mulheres O antropólogo Rolando Toro, fundador da biodança, em suas pesquisas percebeu um grande efeito da biodança em pacientes com 175 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e problemas mentais num hospital psiquiátrico, essa experiência se fundamenta na vivência de biodança por meio da musica, da dança e da interação, estabelecendo vínculos afetivos.Nesse processo observou os efeitos da música por meio dos exercícios de contato na vida dos pacientes, percebendo os resultados positivos. A antropóloga Miriam Pillar Grossi, em um texto intitulado Na busca do “outro”, encontra-se a “ si mesmo”, explica que a subjetividade do pesquisador, e o seu encontro com quem é pesquisado, ocupa um lugar central no processo de construção de teorias, etnografias e conceitos antropológicos. O texto encerra com a enunciação: “nunca é demais lembrar que só se encontra o outro, encontrando a si mesmo” e “cada caminho reflete a forma individual e subjetiva do encontro de si mesmo a partir do encontro com o outro”. (MARANHÃO, 2016, p. 216) De fato, somente ocorre uma transformação significativa considerando a individualidade e subjetividade, à medida que há esse encontro consigo mesmo e com o outro, e a vivência em biodança, favorece meios para que esse caminho se concretize por meio da corporalidade e a interação no grupo. O resultado desse relato parte da minha experiência como professora voluntária de biodança na aplicabilidade de aula semanais de biodança, por meio da vivência, da música e do movimento corporal, na Casa Betânia com mulheres dependentes químicas na faixa de 20 a 60 anos. Apresento alguns relatos de fala, após um processo de vivência de biodança, reconhecendo o bem-estar e os efeitos que a biodança produz na vida das mulheres. Jac. – 42 anos, mãe de quatro filhas e três netos. “Antes do crack eu era muito família. O crack devastou minha vida, minha família, perdi meu emprego, o nascimento do meu neto, o aniversario de minha filha, a separação do meu marido. E, minha filha de quinze anos perdeu o ano. A biodança traz a alegria dentro de mim. Meu prazer era dançar. Dançar sem droga é prazeroso. Sinto uma leveza espiritual, uma paz e coisas positivas, a energia se renova. Para mim, a melhor parte da biodança é a dança e a respiração, por que quando a gente fuma não tem condições de respirar. A biodança trabalha o corpo inteiro. Meu Deus, como é bom viver e respirar sem fumaça, sem droga”. 176 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e iv. – 47 anos – “Abandonei a família com 15 anos de idade, eu era muito fechada, não sorria, agora sou mais sorridente, um sorriso gostoso. A biodança me deixa mais alegre, não tinha vontade de dançar. A biodança me dar um equilíbrio melhor de poder viver, sentir o amor de Deus e me traz esperança, ter posse de viver mais.” S. C. F. – 26 anos – “Usuária da maconha, cigarro, cola, tiner, álcool, crack. Já havia escutado falar da biodança, mas agora, eu tenho outro conhecimento. A biodança me ajuda a melhorar o controle dos movimentos, a auto-estima, levanta a animação e faz desabrochar as coisas boas. Pois, me ajuda a descarregar todo o peso. A biodança é muito gratificante”. E. – 32 anos – “A experiência do abraço na roda de vivencia de progressão, me trouxe uma sensação de viver o abraço de forma tão natural, desinteressado. Uma expressão do beijo em roda sem maldade, eu fui expressando de maneira tão pura”. A – 23 anos – “Uma das coisas boas que a droga me trouxe, foi o nascimento do meu filho com 1 ano e seis meses um grande presente. Eu tinha muita resistência para entrar na roda de biodança. A musica : “Viver e não ter a vergonha de ser feliz”, me fez entrar na roda e sentir o prazer de dançar “. L. – 32 anos – “Tanto a espiritualidade que a biodança me traz leveza, toca minha alma, provoca uma mudança dentro do meu comportamento”. m.C – (monitora da casa Betânia) – “Não sei dançar, meu pai me privava muito. Hoje tive que resolver situação de agressão física na casa Betânia por motivo do processo abstinência no qual vive as mulheres. O que me ajudou na vivência de biodança, adquirir uma leveza no dançar com movimentos de fluidez e respiração, me ajudou a encontrar soluções para lidar com os problemas da agressão. A vivência me trouxe prazer, leveza, retirei todo o peso e carga do corpo, que vinha carregando diante dessa situação de agressão.” L. (assistente social) – “A nossa visão é a melhor possível como resposta da biodança. As mulheres acolhidas relatam que se sentem mais felizes e relaxadas quando fazem a atividade. As mulheres sinalizam que a principio sentiam vergonha, mas depois se sentem a vontade para realizar a atividade de biodança. Como efeito, nós profissionais da 177 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e casa percebemos que há uma socialização de atenção de paz e alegria junto com um equilíbrio em suas falas e posturas”. A analise dessas respostas apontam para o despertar de algumas categorias fenomenológicas do grupo de mulheres dependentes químicos: alegria, prazer de dançar,animação, auto-estima, leveza e paz. Os relatos confirmam o objetivo maior da Biodança que é de potencializar o prazer e a alegria de viver. Por meio da vivência de biodança são ativados os potenciais vitais, o aumento da auto-estima, a integração afetivo-motora, o melhoramento do humor, o bem-estar e o equilíbrio humano e espiritual, percorrendo o caminho da integração por meio de exercícios de respiração dançante, de sincronização e harmonização, redescobrindo o ímpeto vital, equilibrando o corpo em seus aspectos fisiológicos, antropológicos e psicológicos, trazendo a Luz própria de cada uma, dentro do seu momento de vida, dentro do seu momento de despertar. A partir da experiência de vivência de biodança com as mulheres dependentes química, fui me deixando afetar em vista de ajudá-las no processo de recuperação por meio da biodança, e este processo desembocou no meu projeto de pesquisa de mestrado em Ciências da religião na Universidade Federal da Paraíba. O referido projeto tem por objetivos: pesquisar a contribuição da espiritualidade no processo de recuperação da dependência química numa visão transdisciplinar a partir dos referenciais teóricos da biodança, com mulheres da Casa Betânia, uma ONG (Organização Não Governamental), na cidade de Maceió – Alagoas. 6. Considerações finais O presente trabalho teve como objetivo apresentar a dimensão do afeto na vivência de biodança com mulheres dependentes químicas e seus efeitos por meio da dança. E, para clarificar a nossa discussão sobre a temática, trouxemos os conceitos de afeto, de dependência química e de biodança e seus aspectos metodológicos expressos nas linhas de vivencias: Afetividade, Criatividade, Vitalidade, Sexualidade e Transcendência, que possibilita uma conexão de afetos potencializando 178 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a energia vital por meio da vivencia, da dança, da música e do movimento corporal produzindo um bem-estar harmônico de integração no individuo. Sendo assim, a Biodança enquanto força vital motivadora na descoberta do potencial humano por meio da música e da dança consegue afetar a vida dessas mulheres por meio da vivência proporcionando um bem estar pessoal e coletivo. Na vivencia de biodança não há observadores, todos se envolvem como participantes ativos de forma intensa no processo, permitindo viver com intensidade uma conexão consigo e com o outro numa integração harmônica. O resultado do presente artigo fundamentado em bases metodológicas e experiências em vivência de biodança com mulheres dependentes química, abre portas para ampliar um olhar sensível, e ético e uma maior consciência social como pesquisadora, mantendo uma postura de busca e de ampliação do conhecimento, abrindo possibilidades de me deixar ser afetada e afetar no processo da pesquisa. Nesse sentido vale salientar que a biodança potencializa a alegria de viver e de existir que levam o individuo a ter mudanças interiores e novas posturas, novas escolhas, atingido vários aspectos físico, emocional, psicossocial, cultural, ético, mental e espiritual de forma individual e coletiva por meio do movimento corporal e dançante da biodança. 179 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências CAMURÇA, Marcelo. “Cuidado de si”, ”imperativo de realização de si” e produção de subjetividades em redes carismáticas da igreja Católica no Brasil no meio universitário1. História: Debates e Tendências. v. 9, n.2, jul/dez.2009, p. 348-363. Disponível em: http://www.upf. br/seer/índex/php/rdt/article/ viewFile/2968/2015. FLICK, Uwe. Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2004. MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque. 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Maria Graciane Clemente de Melo1 Introdução Entendemos que a sociedade moderna é amplamente marcada pelas diferentes formas de estar no mundo. Não são poucas as expressões culturais que emergem a cada dia, derrocando o interesse de alguns em relação à padronização de práticas, de preferência, as hegemônicas. As subjetividades existem e sua negação apenas encontra eco naqueles que teimam em se sobrepor ao outro. E assim também se apresenta o mundo religioso. A pluralidade de expressões de fé é um fato. Cada vez mais, a pertença religiosa sai das mãos de religiões tradicionais e se incorpora nas mais diversas crenças. Isso leva grande parte de seus seguidores a experimentarem o desamparo em suas convicções mais profundas e faz de muitos líderes religiosos verdadeiros sentenciadores da conduta alheia, levando, inclusive, os fiéis a um a prática semelhante. Assim, cresce a intolerância. Aragão (2015) enfatiza a importância da discussão hermenêutica do diálogo inter-religioso na academia, que segundo ele, “pode servir-se de seu movimento transdisciplinar para alcançar novas lógicas” (ARAGÃO, 2015, p. 17). Enquanto isso, na sociedade que prioriza o mercado, crescem as desigualdades, a violência (inclusive em nome de Deus), a injustiça e todo tipo de sofrimento, que atinge prioritariamente os empobrecidos, afrontando a dignidade humana. Isso posto, entendemos que o ser humano está na contramão do desejo divino de que todos são indiscriminadamente, importantes, aos olhos de Deus. Pretendemos discorrer sobre a relação entre diálogo inter-religioso e dignidade humana, trazendo para a discussão uma persona- Mestranda do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco. Orientador: Professor Doutor Sérgio Vasconcelos. Lattes: http:// lattes.cnpq.br/5962345832328103. E-mail: gracianecmelo@yahoo.com.br 1 183 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e gem que tem se destacado no mundo moderno, como artífice da paz. O presente texto será ancorado na forte influência que o Papa Francisco, atual líder da Igreja Católica Apostólica Romana, vem exercendo sobre os mais diversos segmentos religiosos e até mesmo aos que se dizem sem religião. O Papa em questão, tem se mostrado preocupado com a pobreza, com a violência e com qualquer fenômeno social que gera sofrimento humano, dentre esses, encontramos caminhos apontados para a materialização do diálogo entre as religiões, elemento central dessa pesquisa. Elencamos como objetivo da pesquisa: analisar, a partir dos discursos proferidos pelo Papa Francisco entre 2013 e 2017, o engajamento das religiões na busca de elementos comuns, sobretudo nos que estão centrados na busca da dignidade humana. A fim de construir um caminho para elucidar esse objetivo, elegeremos como percurso metodológico uma análise documental dos discursos do Papa Francisco, durante os mais diversos encontros, seja no Vaticano, seja em visitas pastorais, entre o ano de sua eleição (2013), a 2017, totalizando os primeiros 5 anos do seu pontificado, por considerar que esse seria um tempo razoável para identificar pontos de congruência acerca de sua defesa do diálogo inter-religioso. Francisco, o Bispo de Roma Em 13 de março de 2013, sob a expectativa mundial da eleição do sucessor do Papa Bento XVI, que havia renunciado à Cátedra de Pedro em fevereiro do mesmo ano, é anunciado o novo líder da Igreja Católica Apostólica Romana. O cardeal Jorge Bergoglio, 266º na sucessão papal, apresentou-se na sacada da Basílica de São Pedro, fazendo, a princípio, alusão ao seu lugar de origem. Após instantes de silêncio, fitando a multidão presente, ele expressa, sob olhares curiosos: “Vocês sabem que o dever do conclave era dar um bispo a Roma. Parece que meus colegas foram buscar um papa no fim do mundo. Mas aqui estamos. Agradeço 184 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a acolhida. A comunidade diocesana de Roma tem seu bispo.”.2 Nesse momento, o neo-pontífice, em uma pequena alocução já demonstrara sua intenção de enfatizar a colegialidade da Igreja, ressaltada no Concílio Vaticano II, dando pistas de uma governabilidade pautada no diálogo com os demais bispos. Em demonstração de unidade com a Igreja, Francisco conclama a todos a se juntarem a ele em oração pelo então Papa emérito, Bento XVI. Após essa demonstração de carinho, ele em poucas palavras, vai descortinando a caminhada escolhida para o seu pontificado. E agora iniciemos esse caminho. Bispo e povo. Esse caminho da Igreja de Roma que preside todas as outras Igrejas na caridade. Um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós. Rezemos sempre uns pelos outros. Rezemos por todo mundo, para que haja uma grande fraternidade. (FRANCISCO, 2013)3 Francisco vai envolvendo as pessoas de outros credos, espalhando um clima de acolhimento indiscriminado, protagonizado pelo sorriso meigo e palavras fortes, que repercutem uma imagem positiva do líder católico. Francisco traduz o Evangelho para os dias atuais, antenado com os problemas impostos pela modernidade e buscando soluções pacíficas para eles. Miranda (2017) delineia alguns aspectos que envolvem a contemporaneidade, exigindo do cristianismo um posicionamento frente a estes. Instituições sociais tradicionais como a família, a escola, as entidades políticas, a nação, bem como o patrimônio cultural e religioso. O etos social com seus valores e interditos, enfim, todo esse nosso mundo se vê, queira ou não, posto diante de desafios inéditos que atingem toda a humanidade de modo diverso, embora globalmente propagados pelos modernos meios de comunicação e com as mais refinadas técnicas (MIRANDA, 2017 p. 138). Fala do papa Francisco, logo após a confirmação do seu nome para assumir a liderança da Igreja Católica Apostólica Romana, transmitida ao vivo pelos meios de comunicação, disponível em: <https://www.youtube.com/results?search_query=habemus+papam+2013>. Acesso em 25 de julho de 2018. 3 Ibidem. 2 185 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Nesse imenso desafio, Francisco se configura como uma liderança com amplas possibilidades de falar a todos e não apenas para os que professam sua fé. “o eco das palavras de Jesus ecoa no seu falar e no seu atuar. Suas palavras chegam à alma e seus gestos afagam o coração das pessoas” (BASTANTE E VIDAL, 2014, p. 100). Atento aos desafios da modernidade, o atual Papa vem se posicionando fortemente contra o atual sistema econômico e sua configuração de injustiça. Na sua carta pastoral, Francisco (2013) diz não à economia da exclusão e da desigualdade social. “Hoje tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco” (Evangelii Gaudium, 53). A essa questão Boff (2014), constata que Francisco coloca os pobres no centro do debate evangélico. O autor afirma que “o Papa Francisco tem consciência de que o modelo romanocêntrico e eurocêntrico está ‘sem saída’; não apresenta condições de resgatar o frescor do Evangelho e a alegria que a mensagem cristã produz” (BOFF, 2014, p. 124). Castilho (2014) provoca-nos a reflexão com o seguinte questionamento: “Pode um homem só influir na Igreja mundial de maneira que modifique a vida e a presença dessa Igreja no mundo inteiro?” A essa indagação, o autor enfatiza que, já em outubro de 2013, portanto com poucos meses de atuação, Francisco já se situava entre os quatro homens mais poderosos do mundo. Isso posto, percebe-se o seu poder de influenciar a opinião pública de todo o mundo. Francisco e suas intuições acerca da superação do sofrimento humano Entendemos que os discursos proferidos partem de um lugar de fala. Esse lugar vai se delineando no decorrer de uma construção identitária sedimentada nas experiências da caminhada ao longo do tempo. Assim se apresenta esse percurso de Francisco. Nas suas palavras sentimos a proximidade do chão das comunidades, com seus desafios e possibilidades. Uma fala de quem interage com as demandas sociais e eclesiais contemporâneas. 186 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Francisco tem se mostrado um líder atento às dores do povo. Além da preocupação com o “seu rebanho”, confiado por Cristo, o atual líder da Igreja Católica Apostólica Romana apresenta claramente sua atenção à vida das pessoas em todo o mundo, independentemente de abraçarem a sua religião. O “papa do fim do mundo” – como ele se apresentou ao encontrar-se com o povo na Praça São Pedro – é portador de grande sensibilidade às causas mundiais, dialogando com os mais diversos segmentos em vistas da construção de uma cultura de paz. Júnior (2018, p. 7) afirma que “a centralidade dos pobres e marginalizados e das pessoas em situação de sofrimento em geral é, sem dúvida nenhuma, a característica mais marcante e o aspecto mais determinante do ministério pastoral do Papa Francisco”. Isso posto, identificamos em sua trajetória de liderança espiritual de um segmento religioso, elementos que nos levam a crer na sua disposição em abraçar a todos indiscriminadamente, independentemente de credo. Em sua primeira Exortação Apostólica, Francisco (2013) enfatiza a importância do diálogo no processo de evangelização. Dentre as categorias de diálogo apontadas pelo sucessor de Pedro, tem um lugar reservado ao diálogo inter-religioso, diagnosticado como salutar para a paz no mundo. Aprender a aceitar os outros, na sua maneira diferente de ser, de pensar e de exprimir (EG, 250) é condição indispensável na visão do atual líder da Igreja de Roma. Ele afirma, na Evangelii Gaudium (2013), que os padres sinodais nos lembram a importância de se estabelecer o respeito à liberdade religiosa, direito fundamental do homem. Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os valorizem como tais, não implica uma privatização das religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio e à obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas (EG, 255). Em março de 2013, ao se dirigir aos representantes de diversas Igrejas, o Papa ressalta a importância do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, pelo valioso trabalho desenvolvido em prol da aproximação com outros credos. Ele vincula essa “promoção de amizade e do respeito entre homens e mulheres de diferentes tradições religiosas”4 à 4 Encontro com os representantes das Igrejas e comunidades eclesiais e de outras religiões, em 20 de março de 2013. Disponível em: <www.vatican.va>. Acesso em 27 de julho de 2018. 187 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e união em favor do pobre, dos mais frágeis e dos que sofrem. Segundo Francisco, essa relação favorece sobremaneira a justiça, a reconciliação e a paz. Nesse encontro, o líder da Igreja Católica Apostólica Romana, se dirige também aos sem religião. Nisso, sentimos que estão conosco também todos aqueles homens e mulheres que, embora não se reconhecendo filiados em nenhuma tradição religiosa, todavia andam à procura da verdade, da bondade e da beleza – esta verdade, bondade e beleza de Deus-, e que são nossos preciosos aliados nos esforços por defender a dignidade do homem, na construção duma convivência pacífica entre os povos e na guarda cuidadosa da criação5. Em encontro com o Corpo Diplomático Acreditado Junto da Santa Sé, Francisco ratifica sua intenção de que a Santa Sé se configure como um espaço que atente para o “bem de todo homem que vive nessa terra”6. O Papa justifica a escolha do seu nome, lembrando a figura de Francisco de Assis, homem conhecido para além do catolicismo, por sua vinculação afetiva com os pobres. A adequação do nome ao momento atual é enfatizada por Francisco, pelo fato de haver tantos pobres no mundo, além de tantas pessoas que sofrem. De acordo com Francisco, o seu ministério pastoral pretende dar sentido ao termo pontífice, lembrando que ele significa “aquele que constrói pontes”7. Desejo precisamente que o diálogo entre nós ajude a construir pontes entre todos os homens, de tal modo que cada um possa encontrar no outro, não um inimigo nem um concorrente, mas um irmão que se deve acolher e abraçar. E assim está sempre vivo em mim este diálogo entre lugares e culturas distantes, entre um extremo do mundo e o outro, actualmente cada vez mais próximos, interdependentes e necessitados de se encontrarem e criarem espaços efectivos de autêntica fraternidade8. Ibidem. Encontro com o Corpo Diplomático Acreditado Junto da Santa Sé, em 22de março de 2013. Disponível em: <www.vatican.va>. Acesso em 27 de julho de 2018. 7 Ibidem. 8 Ibidem. 5 6 188 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Compreendemos que a inserção do Papa Francisco nos mais diversos espaços, realça sua intenção de ser, ele próprio, um praticante daquilo que prega. Ao se encontrar com as mais diversas tradições religiosas e encorajá-las a serem porta-vozes dos mais necessitados, o sucessor de Pedro assume um papel de extrema importância na atualidade, apresentando-se no dizer de crentes e não-crentes, como um dos maiores, senão o maior, líderes religiosos da sociedade contemporânea. É desse modo que Francisco assume seu pontificado... Levando ao máximo o entendimento do significado da palavra ponte. Aquele que aproxima, aquele que une, aquele que propicia a caminhada. Considerações finais A sociedade moderna construiu, em certa medida, um cenário de individualismo, a partir da sua opção pela economia de mercado. Isso posto, a vida humana ficou relegada a segundo plano, aumentando consideravelmente as angústias e sofrimentos, consequentes dos conflitos marcados pelas guerras, pela fome, pelo abandono. O homem, transformado em objeto, tem sido alvo de inúmeras formas de violência, tornando-o, muitas vezes, insensível à dor dos que o rodeiam. Desse modo, as religiões assumem um papel de suma importância, sobretudo por ser uma via de ligação com o transcendente e, por isso, não poucas vezes, trazer aos crentes uma sensação de preenchimento das suas carências pessoais e materiais. Isso não seria um problema se as tradições religiosas se utilizassem dessa condição para auxiliar seus fiéis a se libertarem das amarras impostas pela sociedade de consumo. Ao contrário, inúmeras vezes, nela própria é reforçado o interesse material acima de todos os outros, inclusive como moeda de troca para o alcance do céu, por conseguinte, da salvação. Trouxemos, para essa discussão, a figura do Papa Francisco por entender que o líder da Igreja Católica Apostólica Romana aborda uma perspectiva contrária aos ideais de uma sociedade marcada pela desigualdade. Em suas alocuções, analisadas, sobretudo, no III capítulo, o pontífice dá sinais de como as religiões precisam, a partir de sua profunda relação com Deus, buscar alternativas de diálogo, a fim de salvaguardar 189 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a dignidade humana do irmão de caminhada, independentemente de sua confissão religiosa. O Papa dá indicações valiosas de como as religiões devem se colocar a serviço dos companheiros de caminhada e, para tanto, não precisa que esses professem a mesma fé. Francisco, inclusive, defende veementemente a liberdade religiosa, como princípio legal e legítimo. Ele enxerga beleza em outras tradições religiosas que são agraciadas pelo sopro do Espírito Santo. Francisco é enfático em denunciar as injustiças, colocando-se ao lado dos empobrecidos, dos marginalizados, dos sem chão. Inúmeras vezes, seu discurso é desenvolvido a partir de uma análise do cenário social daqueles a quem dirige suas considerações. O atual líder da Igreja Católica Apostólica Romana demonstra conhecimento dos fatos que afligem a comunidade local e apresenta pistas significativas para a minimização dos conflitos. Sempre apresentando o Deus da vida, Francisco faz questão de ir seguindo sua caminhada fazendo aquilo que acredita ser a tarefa principal de um líder religioso: ser ponte. 190 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ARAGÃO, Gilbraz. Do transdisciplinar ao transreligioso. In: ARAGÃO. Gilbraz. VICENTE, Mariano (ORGs). Espiritualidades, transdisciplinaridade e diálogo [e-book]. Vol I. Recife: Observatório Transdisciplinar das religiões no Recife, 2015. BASTANTE, Jesús & VIDAL, José M. As mudanças presentes e futuras da primavera de Francsico. In: SILVA, José M. (org). Papa Francisco: perspectivas de um papado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. BOFF, Leonardo. O papa Francisco e a refundação da Igreja. In: SILVA, José Maria(Org.). Papa Francisco: perspectivas e expectativas de um papado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. CASTILHO, José M. O papa Francisco e o futuro da Igreja Católica mundial. In: SILVA, José M. (org). Papa Francisco: perspectivas de um papado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. Francisco, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. A alegria do evangelho. Sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. Brasília: CNBB, 2013. JUNIOR, Francisco A. Teologia do papa Francisco: Igreja dos pobres. São Paulo: Paulinas, 2018). MIRANDA, Mário de F. A reforma de Francisco: fundamentos teológicos. São Paulo: Paulinas, 2017. [ Volta ao Sumário ] 191 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e dinâmiCa das CoRpoReidades masCulinas em tRanse na Casa de umBanda são joRge gueRReiRo em BatuRité/Ce Leonardo da Silva Leal maria Jardele da Silva Queiroz Como referenciar este capítulo: LEAL, Leonardo da Silva; QUEIROZ, Maria Jardele da Silva. Dinâmica das corporeidades masculinas em transe na Casa de Umbanda São Jorge Guerreiro em Baturité/CE. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p; 192-201. Leonardo da Silva Leal1 Maria Jardele da Silva Queiroz2 Introdução Inicialmente, a pesquisa pretendeu descortinar – por meio do exercício de uma abordagem interdisciplinar – a dinâmica da inserção de corporeidades homossexuais, em sua maioria negras, em práticas umbandistas, especificamente na Casa de São Jorge Guerreiro, em Baturité – CE. Em decorrência do contato com o campo de pesquisa e com seus interlocutores, decidimos ampliar a perspectiva do estudo para uma abordagem interdisciplinar sobre a dinâmica das corporeidades homossexuais e heterossexuais no terreiro, especificamente nos transes de culto a Exus femininos. Partimos do pressuposto de que compreender as ressignificações dos papéis de gênero, sobretudo do(a)s participantes que afirmam a sua identidade homossexual ou não – e ritualizam corporeidades em transe –, parece-nos de fundamental importância na agência específica de resistências contra hegemônicas de gênero, dentro e fora do terreiro. Nesse sentido, a pesquisa direciona-se em uma perspectiva interdisciplinar, qualitativa e exploratória, e, por meio da coleta de dados, com entrevistas e observação de campo, procedeu-se – por último – a uma etnografia, informada pelo entendimento de que a Umbanda é historicamente uma religião discriminada, e que acolhe diversos dos públicos socialmente estigmatizados. 1 Bacharel em Humanidades. Graduando em Licenciatura Plena em História. Universidade da Integração Internacional da lusofonia Afro-Brasileira. Orientador: Professor Dr. Francisco Vitor Macedo Pereira. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8006574276219751. E-mail: leoleal@aluno.unilab.edu.br 2 Bacharela em Humanidades. Graduanda em Bacharelado em Antropologia. Universidade da Integração Internacional da lusofonia Afro-Brasileira. Orientador: Professor Dr. Francisco Vitor Macedo Pereira. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4111692431929383. E-mail: jardelequeiroz@gmail.com 193 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O nosso intuito foi o de buscar compreender, por meio da pesquisa com o(a)s sujeito(a)s homossexuais e heterossexuais na Casa de Umbanda São Jorge Guerreiro, na cidade de Baturité/CE, como a homossexualidade e a heterossexualidade do(a)s umbandistas, notadamente daquele(a)s que se identificam como negro(a)s, é vista dentro e fora – no entorno comunitário mais próximo – do terreiro, bem como se dá a relação dos pais e das mães de santo com o(a)s seus/suas filho(a)s – especificamente no que toca os papéis de gênero e iniciação nas hierarquias de rituais e celebrações umbandistas. Assumimos como pressuposto o fato de que as práticas da religião de Umbanda são historicamente mais inclusivas do que as do cristianismo tradicional, na perspectiva da maior aceitação e do acolhimento dos diversos segmentos marginalizados da sociedade. Nesse sentido, devemos estar atento(a)s para não sermos, de certo modo, igualmente vítimas das generalizações concebidas por meio das imposições sociais de gênero. Do que disso se segue, a pesquisa também contribuiu para uma melhor compreensão quanto às complexidades sociais dos papéis de gênero, inseridos e institucionalizados na sociedade capitalista, e subvertidos – ao menos em parte – em práticas e lugares marginais como os da religião de Umbanda. Da gira das observações participantes e das diversas entrevistas realizadas com o(a)s participantes no terreiro, compreender que a lógica dual das identidades de gênero e dos papéis socialmente designados a corpos de homens e de mulheres não corresponde – nem ritual nem liturgicamente – com os pensamentos e as tradições umbandistas mais gerais, uma vez que o que está sendo pautado ali é a incorporação de entidades em corpos que tresmalham as construções hegemônicas de gênero e desafiam os adestramentos do domínio social, escapando-se – então – dos simbolismos culturalmente estabelecidos na sociedade brasileira: sobre imposições coloniais de gênero, moral e sexualidade. Compreender as ressignificações dos papéis de gênero representados no terreiro, sobretudo do(a)s participantes que afirmam a sua identidade homossexual e as suas corporeidades rituais e sociais diversas (notadamente negras e periféricas), parece-nos importante para a compreensão de como as suas subjetividades atuam no exercício crítico de resistências contra-hegemônicas, dentro e fora do terreiro; uma vez 194 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que as suas corporeidades desviantes – assim como todos os corpos subversivos – carregam consigo as marcas em decalque derrisório de suas subjetividades: sejam elas nas suas atuações em recidiva às impostações da sociedade, sejam elas na agência de sua subversão consciente e resistente a atavismos, abusos e violências históricas de multitudinários efeitos racistas e sexistas. Do que de tudo isso se infere, torna-se igualmente importante – de maneira específica – compreender o terreiro e o seu campo ritual como um espaço de integração, ressignificação e aceitação das diferenças de gênero e de corporeidades, no sentido de desconstrução de discursos, dispositivos e práticas que ainda levam o(a)s seus/suas participantes às sistemáticas exclusões sociais – historicamente motivadas por racismos, homofobia, misoginia e preconceitos diversos de classe. Igualmente nesse sentido, o trabalho permite a compreensão do terreiro de Umbanda como um espaço para todas e todos, onde igualmente gays e não gays exercem as suas funções comunitárias e de culto. Há o escopo, enfim, de igualmente auxiliar a futuras/os pesquisadoras/ es, que seguirão a mesma linha de investigação, posto que formulada a partir de suas próprias inquietações. Um olhar sobre sobre a Casa de Umbanda São Jorge Guerreiro Desenvolvemos as atividades da pesquisa a partir das observações participantes nas giras do terreiro, entrevistas e processos rituais de iniciação; intencionamos compreender, mais de perto, as corporeidades em transe dos Pais e dos Filhos de Santo nos rituais, especificamente com as entidades da Linha de Exu e de Pombagira, incorporados pelos interlocutores nos rituais observados e dos quais participamos. A partir das vivências das atividades do terreiro e da produção do caderno de campo, além dos registros audiovisuais, podemos analisar as diferentes masculinidades e corpos masculinos em transe mediúnico com as suas Pombagiras, nos seus aspectos performáticos, simbólicos, gestuais e imagéticos – pela relação dos corpos sacralizados e em 195 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e transe dos homens homossexuais e heterossexuais na manifestação ritual e sagrada do feminino exusíaco. Na prática, os cultos de Exus e Pombagiras têm muitas variedades e especificidades, em decorrência da própria variedade da manifestação dessas entidades junto aos/às seus/suas zeladore(a)s no terreiro. Seguimos pelo mapeamento dos entidades Exus e Pombagiras sacralizadas pelos rituais de iniciação dos sujeitos da pesquisa, para a partir desse traçado compreender a diversidades de entidades cultuadas no terreiro – dentro do vasto panteão exusíaco da umbanda cearense. No amplo espectro exusíaco da Casa de São Jorge Guerreiro, encontramos as Pombagiras que são chamadas de Dona Maria Padilha, Maria Molambo, Maria Sete Saias, Dona Cigana, Maria da Praia, Pombagira Rainha, entre outras... incorporadas por seus “cavalos” conforme a liturgia dos festejos, dos preceitos e dos rituais. Desse modo, Simas (2018) “define que Pombagiras são, portanto, o enigma que poetiza as transgressões necessárias às normatizações da dominação do homem na sociedade – que inferioriza, regula e interdita o papel da mulher” (SIMAS, 2018, p. 90-96). Com as análises das informações colhidas no campo de pesquisa e em suas problematizações, visamos também compreender os rituais umbandistas – justamente a partir das transgressões e das rupturas dos paradigmas de gênero e masculinidades, tanto quanto dos questionamentos dos papéis socialmente designados aos corpos dos homens nos rituais litúrgicos e nos festejos. Isso tudo contribui para que destaquemos, também na Umbanda, práticas de combate às desigualdades e às violências de gênero. Ao identificarmos o cotidiano comunitário e ritualístico do próprio terreiro, precisamos também as funções e as atribuições ali exercidas por estes mesmos participantes, na perspectiva de que nos fosse possível descrever – na configuração das suas dinâmicas internas e externas – as hierarquias e as práticas exercidas como formas de socialização, acolhimento e afirmação das referidas representações e corporeidades. 196 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Complexo ritualístico dos filhos de santo e as Pombagiras da casa Saudações as moças ou lebárias da casa “Laroiê Exú Pombagiras” Maria Padilha, Maria Mulambo, Cigana Maria Sete Saias, Maria Luziara, Maria da Praia e Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas. Como também as demais entidades na sub linha de Exú Pombagira Maria Quitéria, Chiquita Preta, Leviana e Negra Paulina grandes mestras da casa. Aos quais Simas (2018) vai conceituá-las como, A potência exusíaca encarnada no feminino é o que desestabiliza e transgride as regulações dos modos de ser, calcados em princípios racistas e patriarcais conservadores das heranças do colonialismo. [...] é o enigma que poetiza as transgressões necessárias às normatizações da dominação do homem na sociedade, que inferioriza, regula e interdita o papel da mulher. (SIMAS, 2018, p. 90-96). Nesse sentido, as referidas lebárias compõem o panteão de entidades femininas da linha de Exú, que atuam na segurança, firmeza, caminhos e na vitalidade do axé junto às demais entidades que trabalham nas sete linhas da umbanda Sagrada em cada terreiro. Contudo, a partir da relação dos pais e filhos de santo com suas lebárias, o terreiro compõe seu calendário litúrgico e ritualístico, que segue muitas vezes segue o calendário dos santos católicos sincretizados com os Orixás. Nessas festividades litúrgicas e ritualísticas sempre ocorrem momentos que antecedem de quatro a três dias da festança pública, ou seja, acontecem os ritos de passagem ou obrigações que envolvem segredo da religião, essa vivência é restrita, autorização somente aos filhos da casa e alguns visitantes de outros terreiros ou pessoas de confiança do Pai de Santo. Os rituais de passagem e as obrigações fazem parte do cotidiano de toda comunidade religiosa de matriz africana e afrobrasileira, dessa forma, segundo Ribeiro (1970) “os Exús são grandes agentes mágicos dentro do panteão Nagô, Exú é a força primitiva; é o subconsciente de Deus; é o grande fluido de energia que tudo envolve e abrange”. Nesse sentido, as pombagiras encontram-se dentro dessa mesma mesma 197 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e cosmovisão, assim em todo ritual são os primeiros que “comem”, pois a oferenda e a consubstanciação da relação entre os planos natural e espiritual. A Umbanda é uma religião em que o alimento oferecido às entidades, o beber e o pitar ou fumar pelos médiuns de incorporação se faz existir com suas corporeidades rituais em cada gira organizada e demandada pelas hierarquias da casa. É nesse processo em que se vivencia a experiência junto a ancestralidade e ocorre a manutenção do Axé de cada comunidade tradicional de terreiro. Nos processos de consagração dentro da hierarquia de cada terreiro os filhos(as) de santo sacralizam seu corpo numa relação de culto e ritual para as entidades que formaram seu panteão pessoal dentro das sete linhas da Umbanda em seus correspondentes femininos e masculinos, dessa forma, suas obrigações de alimentar e nos trabalhos das giras se darão pelas corporeidades de cada entidade a partir da utilização dos elementos rituais que compõem a representação de cada entidade, seja pela capa de Seu Sete Encruzilhadas, seja pela saia e o Ojá de dona Maria Sete Saias pelos filhos de santo, somando com os pontos específicos e demais elementos dos rituais e da gira. Tais aspectos estão no campo das análises e observações dos pais e filhos de santo e as construções de suas masculinidades que transmelham as relações ritualísticas e dos papéis de gênero binários, hegemonicamente conduzidos pela cultura patriarcal e consequentemente heteronormativa das sociedades capitalistas. Para o autor Robert Connel (1995) a construção da masculinidade ou melhor das masculinidades devemos compreender a partir de, Em primeiro lugar, a narrativa convencional adota uma das formas de masculinidade em geral. Isso confunde hegemônia de gênero com totalitarismo de gênero [...] as masculinidades são produzidas juntamente – e em relação às outras masculinidades. [...] Em segundo lugar a narrativa convencional vê o gênero como um molde social cuja marca é estampada na criança [...] Em terceiro lugar, devemos ver a construção das masculinidades tanto como um projeto coletivo quanto como um projeto individual. (CONNEL, 1995: 190-191). 198 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Nesse sentido, pensar as masculinidades enquanto um conjunto de práticas corporificadas e constantemente reafirmadas no conjunto de sociabilidades de gênero que Connel (1995) “vai apresentar o gênero enquanto organização das relações de poder, como a primeira forma de hierarquização e subalternização das feminilidades na sociedade capitalista”. Representações das Pombagiras no ritual de Umbanda 199 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Considerações finais As experiências adquiridas na participação das atividades da Casa de Umbanda São Jorge Guerreiro no percurso desta pesquisa, proporcionaram uma grandiosa sensibilização sobre o cotidiano dessa comunidade tradicional – que é o terreiro de pai Ricardo de Iansã, assim reconhecido pela comunidade. Nas orientações que ocorreram, houve indicação de leituras que auxiliaram e o estímulo à produção e difusão de conhecimento sobre a Umbanda e seus interlocutores. Por fim, articular de forma interdisciplinar a experiência de pesquisa e a promoção dos debates teóricos e cotidianos dos festejos, rituais e reuniões junto à comunidade do terreiro foi de extrema valia. Portanto, considero que os valores civilizatórios africanos e afrobrasileiros vivenciados na casa, são primordiais para se pensar o desenvolvimento do mundo, pois correspondente às exigências dos Exús e pombagiras no equilíbrio entre os planos natural e espiritual. 200 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências SIMAS, Luiz Antônio, 1967- Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas / Antônio Luiz Simas, Luiz Rufino. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2018. CONNEL, Robert. Políticas da masculinidade. Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, n. 20, p. 185-206, jul.,dez. de 1995. RIBEIRO, José. Pomba-Gira (mirongueira). Editora Espiritualista, 1970. [ Volta ao Sumário ] 201 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e do Beltane pagão ao são joão CRistão: a festa do fogo e suas resignificações no nordeste brasileiro Thaís Chianca Bessa Ribeiro do valle Como referenciar este capítulo: VALLE, Thaís Chianca Bessa Ribeiro do. Do Beltane pagão ao São João cristão: a festa do fogo e suas resignificações no Nordeste brasileiro. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 202-216. Thaís Chianca Bessa Ribeiro do Valle1 Introdução Entre os ciclos folclóricos brasileiros, um dos mais populares e festivos é o das festividades juninas, quando as homenagens aos santos Antônio, João e Pedro acontece com muita música, dança, adivinhações, fogueiras, e rica culinária de milho. As festas joaninas, popularmente conhecidas como celebração a São João, coincidem com o solstício de verão na Europa, ou de inverno na América do Sul, época em que populações agrícolas, anteriores ao desenvolvimento do cristianismo, comemoravam a fertilidade da terra e dos animais, e as boas colheitas. Acender fogueiras e dançar ao redor do fogo são costumes oriundos de ritos pagãos, realizados durante o Beltane, celebração pagã na qual se acendiam fogueiras de purificação, e os casais se uniam com objetivos de gestação. Dessas concepções, se originaram os costumes cristãos de pular fogueiras, e do casamento na quadrilha. Após a cristianização dos costumes pagãos, a fogueira de Beltane foi resignificada, tornando-se o símbolo da comunicação do nascimento de João Batista. Mas através da adaptação cultural que se deu entre povos pagãos e cristãos, tais costumes foram reproduzidos ao longo dos tempos, sedimentando-se na cultura brasileira, e principalmente, no nordeste do país. Assim, por intermédio de uma pesquisa bibliográfica, o presente artigo objetiva demonstrar as influências dos elementos pagãos nos festejos juninos cristãos, e como se deu o processo de adaptação cultural, capaz de transformar o festejo do calendário popular em patrimônio cultural imaterial, notadamente do Nordeste brasileiro. Bacharela em Direito, mestra e doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, graduanda em Turismo pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Pesquisadora do Observatório Transdisciplinar das Religiões em Recife – PE. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/7822186880352675. thaischianca@gmail.com. 1 203 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Dada a extensão do tema, ressalte-se que não se trata de um estudo com pretensão de esgotar as discussões, mas tão somente de introduzí-las. Os festejos joaninos: entre o Beltane pagão e o São João cristão Existem diversas explicações para a existência do termo “Beltane”, uma delas é a de que, durante muito tempo, o deus “Bel”, divindade mesopotâmica equivalente ao cananeu Baal, personificou em si todo o panteão de deuses da natureza. Bel-Marduque, principal deus da Babilônia, era adorado em todo o Oriente Médio. Assim, o significado do nome “Beltane” remete a “fogo brilhante”, ou “fogos de Bel”. Desde os primórdios, a humanidade comemora o início das estações do ano. Para algumas religiões pagãs e neopagãs, a Roda do Ano representa o ciclo da natureza: o começo, o fim, e o recomeço. Assim, o “calendário” cíclico é normalmente composto de Sabbats, ou festivais, os quais consideram a posição da Terra em relação ao Sol, ou seja, solstícios e equinócios. Este ciclo pode representar, ainda, as fases da vida do deus cornífero (Bel), protetor dos animais e da vida: nascimento, crescimento, união com a deusa-mãe (Terra), declínio e morte. O Beltane é um festival de influência celta em comemoração ao início do verão e à festa da primavera. É, portanto, a ocasião em que se comemora o retorno do sol e toda a sua magnitude, momento em que as flores surgem, os animais acasalam, unem-se os opostos e a natureza fecunda, buscando a imortalidade das espécies. Durante os festivais, pessoas cantam, dançam, comem e bebem de forma farta e celebram livremente a fertilidade da Terra e da humanidade, queimando oferendas e pulando fogueiras, para se encherem do poder do fogo, elemento que liberta de doenças e reinicia, de forma simples e pura, a vida. Assim, o fogo é visto como elemento de purificação, limpeza e revitalização: No mito, como na realidade, às vezes o fogo limita-se a destruir, mas muitas vezes destrói de maneira a criar um novo mundo a 204 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e partir do resíduo purificado ou da essência em cinzas. [...] Muitas religiões representaram um espírito divino habitando-nos na forma de um fogo que pode ser agitado ou extinto. Porque a descoberta de como fazer fogo nos distingue como humanos, em muitos mitos da criação o fogo é representado como uma dádiva inestimável dos deuses, uma descoberta fortuita ou um colossal roubo. [...] “É através do fogo que a Natureza muda”, escreveu Eliade, fazendo dele a “base das magias mais ancestrais”, e carregando no seu simbolismo, ainda hoje, os nossos terrores e esperanças de transmutação”. (O LIVRO DOS SÍMBOLOS, 2012, p. 23) Bel-Marduque era adorado em todo o Oriente Médio, mas precisava sucumbir ao cristianismo emergente, de modo que passou a ser citado, com fins de dominação entre povos, em textos bíblicos, como em Jeremias 51:442. No Hemisfério Norte, à época em que o cristianismo buscava se consolidar como religião hegemônica, o solstício de inverno, entre os povos pagãos ocorria nas proximidades de 25 de dezembro, ao passo em que o solistício de verão ocorria nas proximidades de 24 de junho. Assim, com o objetivo de facilitar a catequese dos pagãos, durante o século IV, o dia 24 de junho, dia mais longo do ano, quando se festejava a fatura da colheita e a fertilidade, foi transformado pela Igreja Católica em data de celebração ao nascimento de João Batista, e as fogueiras foram citadas como meios de comunicação entre Isabel e Maria sobre o nascimento do precursor de Cristo (SILVA, 1993, p. 30). Nas palavras de Roberto Benjamin: As festas juninas são festas de natureza agrária, de tradição européia, ligadas a ciclos de fertilidade da terra e do homem, do culto ao fogo, anteriores a difusão do cristianismo. A Europa, Ásia e África praticaram antes do Cristianismo ritos em honra a diversas divindades, por ocasião do início do verão no “Eu visitarei Bel na Babilônia E tirarei de sua boca o que engoliu. As nações não afluirão mais a ele. Mesmo a muralha da Babilônia cairá. Sai de seu meio, meu povo! Salve cada qual a sua vida Diante do ardor da ira de Iahweh! 2 205 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Hemisfério Norte. É o período em que se aproximam as colheitas de cereais. As cerimônias reverenciavam a fertilidade da terra, usando o fogo como elemento afugentador da fome, do frio e fecundador, purificador e conservador. Nos ritos de fertilidade estavam presentes também a idéia da fertilidade humana. A Igreja Católica situou a festa de São João nas proximidades da mudança de estação (solistício de verão) procurando absorver os cultos agrários pagãos. Para a hierarquia da Igreja a festa de São João constitui uma antecipação do anúncio do advento, considerando o papel de João Batista, como precursor de Cristo. [...] As festas juninas conservam os rituais do fogo, mais do que qualquer outra. [...] (BENJAMIN, 1992, p. 13) Assim também explica Pierre Paillard: Com a evangelização da Europa, os cultos da Antigüidade à fecundidade e ao Sol, que aconteciam no dia do solstício de verão, foram integrados ao cristianismo. Passaram a acontecer no dia 24 de junho, festa do nascimento de João Batista. Essa escolha não foi feita ao acaso e guiada apenas pela efeméride, ou seja, a suposta natividade do santo em seguida à noite mais curta do ano no Hemisfério Norte. Na verdade, João, aquele que purificava os judeus pecadores no rio Jordão, representa os elementos que governam as cerimonias solsticiais, a saber, o fogo e a água. Nos Evangelhos, João pronuncia as seguintes palavras: “Eu utilizo a água, mas aquele que vier depois de mim batizará com fogo”. Se os ritos ligados à água praticamente desapareceram, a tradição do fogo se manteve e permanece como o aspecto mais pagão dessa festa [...]. (PAILLARD, 2009, p. 52) Deste modo, João Batista, filho de Zacarias – o sacerdote – com sua esposa Isabel – prima de Maria de Nazaré –, profeta anunciador da vinda do Cristo, que pregava no deserto da Judéia batizando a todos e a todas no rio Jordão, diante da necessidade de “acomodação” da doutrina pregada pela Igreja Católica em solo pagão, tomou para si o protagonismo da festa do fogo. Explica Peter Burke: Um conceito tradicional que tem reaparecido é o de “acomodação”. Na Roma antiga, Cícero usou esse termo em um contexto retórico para se referir à necessidade de os oradores adaptarem seus 206 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e estilos às suas platéias. Os europeus do início da Idade Média, notadamente o papa São Gegório, o Grande, adaptaram o conceito a um contexto religioso, observando a necessidade de tornar a mensagem cristã aceitável aos pagãos da Inglaterra e de outras partes do mundo. (BURKE, 2003, p. 45-46) Mas não foi somente o fogo que foi “acomodado” às festividades cristãs de São João. As grandes festas realizadas com muita dança (xaxado, coco, baião, forró, xote, folguedo), comida farta e de milho (bolo, munguzá, arroz doce, canjica, pamonha, pé-de-moleque), quadrilha (casamento) e principalmente, adivinhações, superstições3 e simpatias4, mantiveram as características originárias pagãs da celebração. Entre as adivinhações, por exemplo, aquela conhecida como “o sonho da ceia”, remete ao costume pagão de ofertar alimentos aos deuses. Outra, como “o nome no papel com água”, têm suas explicações nos oráculos da fertilidade. A saber: O Barão de Studart estudando os “usos e superstições cearenses” registrou: – “Em noite de São João escrevem-se em papelitos os nomes de várias pessoas, enrolam-se os papelitos e os põem numa vasilha com água; o papel que amanhecer desenrolado indicará o nome da noiva ou noivo. A origem dessa adivinhação é o oráculo dos deuses Pálices, nos arredores da Vila de Palika, na Sicília. [...] Havia, perto do templo dos Pálices, um lago quente, d’água borbulhante, sulfurosa, sempre cheio e jamais transbordando. Da Grécia e de toda Península Itálica vinham os devotos saber as respostas do oráculo que era tido em alto respeito. O templo tinha direito de asilo inviolável, mesmo para os escravos fugidos aos seus senhores, como ocorria no Lago de Nemi com a deusa Diana. E como os Pálices transmitiam seu oráculo? Entenda-se por superstição a crença, ou noção que leva a temer coisas aparentemente inócuas ou depositar a confiança em coisas aparentemente absurdas, criando falsas obrigações e temor psicológico. 4 Entenda-se por simpatia uma forma de magia branda perpetuada através da cultura popular, para atrair benefícios pessoais: conquistar um amor, obter riqueza, curar doenças, etc. 3 207 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Da mesma forma que as moças e moços consultam a São João, enrolando papel em fitas, botinhos ou bolinhas com os nomes que o acaso descobrirá. (CASCUDO, 2002, p. 166-167) Continua Cascudo, adentrando-se na sabedoria dos povos pagãos campesinos sobre a utilização de plantas e vegetais, bem como na necessidade de adaptação do oráculo ao Santo em questão: Todos os folcloristas brasileiros têm registrado entre as adivinhações da véspera e noite de São João aquelas que se relacionam com vegetais de rápido crescimento. Sabemos que o alho se planta na véspera para verificar-se ao meio-dia seguinte se grelou. Então a resposta à consulta é um “sim”. Se estiver como dantes é um “não”. O mesmo com grãos de milho. Galhos verdes passados às chamas da fogueira são atirados para o telhado. Se estiverem verdes no dia imediato, sim: murchos, São João envia uma negativa. [...] Nas tradições orais sobre o patriarca São José há uma lenda em que os sacerdotes devendo escolher um esposo para a Virgem Maria mandaram que todos levassem seus bastões para o altar e na manhã seguinte o escolhido teria o bastão com flores vivas. [...] Vez por outra as adivinhações são empregadas como processos divinatórios, para sugestão de feitiçaria e catimbó citadino. [...] Essas nossas adivinhações são reminiscências vivas, indiscutíveis e verdadeiras dos cultos agrários, em convergência para uma tradição cristã. (CASCUDO, 2002, p. 174-176) Enfim, as festividades juninas, ou festejos de São João, encontram-se diretamente relacionadas à necessidade de adaptação do cristianismo às crenças dos povos pagãos nos quais pretendia ser disseminado. Sincretismo, hibridismo, e circularidade cultural: o catolicismo popular O sincretismo religioso refere-se ao fenômeno de fusão de doutrinas diversas originando uma nova doutrina, filosófica, cultural ou religiosa. Etimologicamente, a palavra “sincretismo” tem origem no grego 208 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e sygkretismós, que significa a reunião entre as ilhas de Creta contra um adversário em comum. O contato entre grupos sociais com diferentes culturas e tradições, gera a “adaptação” dos aspectos culturais, quando determinado grupo absorve certas crenças de outro. Sérgio Ferretti, por sua vez, alerta, também, para a possibilidade de uma influência recíproca entre culturas: A história apresenta numerosos casos de destruição de concepções divergentes, de intolerância religiosa e de conflitos entre a cultura das classes dominantes e das classes subalternas. Um bom exemplo são os trabalhos de Carlo Ginzburg (1987,1988), relatando confissões do moleiro Menocchio ao Tribunal da Santa Inquisição e perseguições aos “benedanti” no Norte da Itália no início da Idade Moderna. Discutindo estes contatos entre culturas distintas e a ambigüidade do conceito de cultura popular, Ginzburg (1987, p. 24) considera “frutífera a hipótese formulada por Bakhtin de uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante”. (FERRETTI, 1995, p. 18) A influência recíproca parece remeter a um hibridismo cultural, percebido através da caracterização da cultura como conceito amplo, capaz de abranger atitudes, mentalidades, valores, manifestados através de símbolos, práticas e representações, e em constante interação com outras manifestações do mesmo tipo. Neste sentido, certos contatos culturais possibilitam a determinadas culturas repetir, imitar, ou mesmo se apropriar, conforme a própria conveniência, das idéias de outras: Na história do Ocidente, uma das maneiras como a interação cultural tem sido discutida desde a Antigüidade clássica é por intermédio da idéia de imitação. [...] Uma alternativa à imitação era a idéia de apropriação ou, mais vividamente, “espoliação”, cujo contexto original eram as discussões travadas pelos teólogos agora reverenciados como Doutores da Igreja sobre os usos da cultura pagã que eram permitidos aos cristãos. Basil de Cesarea, por exemplo, defendeu uma apropriação seletiva da Antigüidade pagã [...]. Essa abordagem da troca cultural foi revivida na Renascença e vem sendo revivida novamente em nossa época. [...]. (BURKE, 2003, p. 41-42) 209 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O conceito da “Circularidade Cultural”, de Ginzburg (1987), por sua vez, propõe a existência de uma comunicabilidade dialógica, circular, mútua, entre as culturas, quando ambas corroboram para a interação cultural, uma relação de troca e reapropriações entre diversas culturas congênitas. Complementar a isso, José Maria Tavares de Andrade (2013, p. 27-28) explica o sistema simbólico da religiosidade como resultado da reapropriação de ritos impostos por organizações religiosas, os quais foram substituindo seus significados em um processo contínuo de reinterpretação, consoante a ausência de limites da imaginação popular quanto à criação de narrativas mitológicas. Retomam-se as forças sincréticas, as quais emergem das necessidades cotidianas dos povos, posto que as narrativas mitológicas nascem da necessidade de explicação simbólica para o cotidiano, o natural. No Nordeste brasileiro, por exemplo, as festas juninas estão diretamente vinculadas ao período de início da colheita do milho. É uma festa de cunho eminentemente agrário, desenvolvida por povos que dependem da natureza, mas que adaptou o catolicismo desenvolvido na região. O Catolicismo santorial (TEIXEIRA; MENEZES, 2009, p. 21-22), aquele que se desenvolve através das práticas da religião adaptadas a novos conceitos, similares aos mitológicos, evidencia os santos como novos heróis, adaptados à realidade local: Uma justaposição de sacrifícios articula-se, tanto a nível coletivo quanto individual, constituindo um traço de união entre religião oficial e religiosidade popular, apesar das diferenças que deduziremos existirem entre elas. Uma síntese se forja entre a mística do sacrifício e as lembranças de defuntos, casos exemplares, com os quais não deveria mais se comunicar, todavia santidades poderiam ser invocadas e comemoradas. Assim, protagonistas de vividos trágicos, fatalidades ou heroísmos poderiam ser rememorados, narrados, cantados, festejados e até “canonizados”. [...] Novos panteões e novas religiões poderão, em seguida, ser exportadas: estamos forjando nossos santos, nossas religiões, como as umbandas e reagrupando antigas magias, como a Jurema, (Yu-rema), dona da terra. [...] a integração de um rito em uma cultura local realiza-se na medida em que ele, sendo uma herança vinda de fora, se exprime em 210 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e torno de um significado elaborado inconscientemente e referindo-se à experiência vital do grupo em questão. Não obstante uma origem histórica longínqua, externa e até esquecida, um rito torna-se inteligível para o grupo que o pratica, pois ele dá corpo a nível local a uma explicação mitológica própria à dinâmica da cultura popular. (ANDRADE, 2013, p. 13-23) Ainda sobre o catolicismo popular, Faustino Teixeira e Renata Menezes: [...] há um aincorporação original por parte do povo de traços da romanização, o que evidencia “o aspecto dinâmico e criativo do catolicismo popular que se refaz continuamente”. O fato de a região Nordeste do Brasil despontar no Censo de 2000 como a mais católica revela, talvez, algo da força e presença da tradição do catolicismo santorial. Importantes estudos na área da antropologia mostraram com vigor a coerência, complexidade e diversidade desse catolicismo, que não pode ser apressadamente identificado como um aglomerado de superstições ou crendices. E além do mais, vem animado por impressionante poder de penetração e reprodução nos meios populares. No caso específico do Nordeste, há sem dúvida o influxo da presença de figuras do clero popular, como Padre Cícero e Frei Damião. [...] (TEIXEIRA; MENEZES, 2009, p. 21-22) Deste modo, o Nordeste brasileiro constitui-se como região de característica peculiar, onde o Catolicismo popular santorial, oriundo de zonas rurais e terras camponesas, desenvolvendo “concepções mitológicas” voltadas para as práticas rurais e originário do mesmo embrião campesino, pagão (do latim, paganus, “camponês”, “rústico”) concernente ao paganismo, pôde facilmente se desenvolver. A espetacularização cultural: implicações para a patrimonialização do São João do Nordeste As festas juninas no Nordeste do Brasil ganham especial destaque. A região vem sendo colocada como o melhor destino nessa época 211 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e do ano, porque é nela onde se situam as cidades mais festivas, com festas que duram, quase o mês de junho inteiro. Tem-se, por exemplo, as cidades de São Luis – MA, Terezina – PI, Mossoró – RN, Campina Grande – PB, Caruaru – PE, Aracaju – SE, e Salvador – BA. Cada cidade possui sua forma particular de celebrar a época. Na cidade de São Luis – MA são reverenciados grupos folclóricos de “Bumba meu boi”; em Terezina – PI, a “Cidade Junina”, há encontro de folguedos, festival de quadrilha, casamento coletivo e festival gastronômico; em Mossoró – RN, também “Cidade Junina”, tem-se o espetáculo “Chuva de Bala”; na cidade de Campina Grande – PB, cidade que tem “a melhor festa de São João do mundo”, compõe suas festividades com shows, campeonato de quadrilhas e casamento coletivo; Caruaru – PE, é conhecida como a “Capital do Forró”; já em Aracaju – SE, o “Forró Caju” é considerado o grande evento popular da capital sergipana; E em Salvador – BA, ocorrem shows e muita dança. O Nordeste, nas palavras de Leny de Amorim Silva: O Nordeste tem sido caracterizado pelo berço das festas populares, destacando-se com o colorido, comida, veste, música e bebida própria: O São João! São características peculiares que determinam as manifestações do CICLO JUNINO – que expande a sua alegria através dos “ARRAIÁS” – que servem de abrigo e palco para a comemoração eclética: colheita, festa do fogo, religiosidade, tradições, superstições e músicas do povo. (SILVA, 1993, p. 27) A riqueza, diversidade cultural, é flagrante. No entanto, a espetacularização da cultura tem ocasionado o risco de descaracterização dos festejos juninos, quando a caracterização cultural cede ao interesse político da supervalorização da festa enquanto “a maior”, “a melhor”, para consequente atração do turismo e movimentação desenfreada da economia e da estrutura local. Ao final, o risco de ocorrer a resignificação dos símbolos religiosos acaba sendo fortalecido pela comercialização da cultura. É o que acontece, por exemplo, quando da utilização de fogueiras meramente estéticas, eletrônicas, desprovidas de qualquer simbologia. Atingindo a simbologia da festa, esvaziam-se de fundamentos as disputas pela patrimonialização imaterial. 212 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, vigente, tráz consigo a definição de patrimônio cultural imaterial. Tem-se que: Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – As criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. [...] §4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. [...] O Decreto 3551/2000, instituindo o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial através de quatro Livros, entre eles, o Livro das Celebrações, provocou autoridades a procederem com os registros requerendo a patrimonialização de rituais e festas de vivência coletiva, inclusive de caráter religioso. No entanto, tais requisições se tornam vazias quando realizadas menos para a valorização da cultura e mais para a valorização político-econômica. Assim, sobre as características da imaterialidade que abrange ações e memórias, formas de expressão, modos de criar, fazer e viver, e criações, torna-se importante a produção cultural, em contínua transformação e adaptação, enquanto a cultura, a religiosidade, se mostram sincréticas, híbridas, circulares, enfim, mutantes! Considerações A princípio, os festejos joaninos, ou de São João, adaptaram conceitos religiosos pagãos à dogmática cristã, com o objetivo de facilitar a 213 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e dominação e a conversão cristã desses povos campesinos por parte da Igreja Católica. No Nordeste brasileiro, o catolicismo popular santorial se mostrou como alternativa de sincretismo, realizado com respeito ao hibridismo cultural e à capacidade de circularidade ou influência recíproca entre as culturas, adaptando-se à realidade e às necessidades físicas, psicológicas e mitológicas de cada comunidade através do processo de heroicização dos santos. Ultrapassada a problemática da “dominação cultural”, no entanto, a espetacularização de manifestação cultural causa constantes implicações negativas à patrimonialização imaterial das festividades em questão, uma vez que subjuga aspectos culturais e religiosos a interesses eminentemente políticos e econômicos. 214 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ANDRADE, José Maria Tavares de. mitologia: da Mata ao Sertão. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013. 295p. BENJAMIN, Roberto. Festas juninas. In: RECIFE (PE) Prefeitura; SILVA, Leny de Amorim. Ciclo junino. Recife: A prefeitura, 1992. 112p. ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno: arquétipos e repetição. Lisboa: Ed. 70, 2000. 174p. FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo. São Paulo: São Luis: FAPEMA, 1995. 234p. BEZERRA, Karina Oliveira. Wicca no Brasil: magia, adesão e permanência. São Paulo: Fonte Editorial, 2017. 238p. GINZBURG, Carlo. 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João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 217-229. Beatriz Alves dos Santos1 Lourival Andrade Júnior (Orientador)2 Considerações introdutórias Desde o Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, realizado em 1941 no Rio de Janeiro, os trabalhos a respeito da temática umbandista vêm crescendo dentro e fora do âmbito acadêmico. Muitas são as pesquisas que encontram-se empenhadas na investigação das bases que alicerçam a religião umbandista, se pautando em analisar a fundação do culto, suas tradições rituais ou estudando entidades em específico. Sejam na condição de umbandistas praticantes ou de apenas antropólogos, pesquisadores da área vêm dando a sua contribuição para a legitimação do culto. De maneira direta ou indiretamente, atuam colaborando para um dos objetivos do Congresso de 1941, o qual consta na introdução dos Anais do evento ter sido ele criado [...] precisamente para nele se estudar, debater e codificar esta empolgante modalidade de trabalho espiritual, afim de varrer de uma vez o que por aí se praticava com o nome de Espiritismo de Umbanda, e que no nível de civilização a que atingimos não tem mais razão de ser. (FEDERAÇÃO ESPÍRITA DE UMBANDA, 1942, p. 4) As investigações trabalham, portanto, no sentido de legitimar a religião e afastar o culto e seus participantes da identidade pejorativa que se construiu socialmente para tal grupo. Pode se compreender que as discussões se alçam a construir uma memória coletiva que Bacharelanda em História na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)/ Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES). Plano de Trabalho: Pretas-Velhas na Umbanda: Memória, Resistência e Escravidão. E-mail: beatriza@ufrn.edu.br. 2 Professor do Departamento de História do CERES. Orientador e Coordenador do Plano de Trabalho:Pretas-Velhas na Umbanda: Memória, Resistência e Escravidão. E-mail: lourivalandradejr@yahoo.com.br. 1 218 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e mantenha viva e válida as tradições umbandistas e deem conta também de discutir seus personagens. Entretanto, leituras realizadas aos trabalhos de Vanessa Pedro (1999), Lísias Nogueira Negrão (1996), Emanuel Zespo (1960), Florisbela Maria de Sousa (1964), Giovanni Martins (2011) dentre outros, causa inquietação ao percebermos como aparecem as entidades Pretos-Velhos nessas narrativas. Notamos que, as abordagens que dedicam um capítulo ou alguma passagem a analisar tais entidades, corriqueiramente, utilizam uma linguagem que se alicerça no uso dos pronomes masculinos. Apesar de serem muito reverenciadas nos espaços dos terreiros, as entidades Pretas-Velhas, no feminino, findam por serem pouco mencionadas na escrita umbandista; tendo-se narrativas que usam da descrição masculina como uma forma de englobar e dar conta do todo. A vista disso, essa comunicação se projeta em discutir as entidades Pretas-Velhas na Umbanda, a partir dos seus Pontos Cantados. Tencionamos aqui empreitar uma análise dos versos contidos nos pontos, tecendo um panorama a respeito das memórias da escravidão, resistência e liberdade das Pretas-Velhas, abarcados no seio dessas fontes. História, memória e esquecimento na escrita sobre as Pretas-velhas Tudo aquilo que compreendemos como passado é fundamentado com base nas memórias, são as recordações que nos fazem possuir a ideia de nós, do ontem, do hoje e de a qual grupo pertencemos. Do ponto de vista social, a memória se constitui no mecanismo de sustentação da coesão e do senso de uma identidade coletiva. Muito embora tenhamos a consciência de que o fenômeno das recordações ocorre na psique individual de cada ser, com detalhes e percepções singulares, são as memórias de outrem cruciais para dar continuidade, confirmação e sentido de valor às nossas, como assevera David Lowenthal (1998, p. 81). O saber histórico a respeito do passado nos concede o sentimento de coletividade e de pertencimento a uma determinada identificação cultural que compartilham conosco das nossas memórias. Daí se pode 219 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e explicar a preocupação que alguns grupos se encarregam em tomar para si a “liderança” na construção memorial, de maneira que [...] Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LEGOFF, 1990, p. 426) Significa pensar, dessa maneira, que a identidade cultural coletiva é também forjada partindo de uma seletividade das memórias a serem cristalizadas no processo de salvaguarda. No nível das memórias individuais podemos analisar, como Nietzsche propõe em sua Segunda Consideração Intempestiva (2003), que o esquecimento trata-se de um pilar fundamental para que as memórias existam, assim como também avalia Lowenthal Os esquemas da memória adulta não têm espaço para odores, sabores e outras sensações vívidas, ou para o pensamento pré-lógico e mágico da primeira infância; se a experiência profundamente sentida for socialmente inadequada, ela não se registra ou é esquecida. (LOWENTHAL, 1998, p. 91) A mente humana em sua condição natural, é incapaz de recordar de todos eventos que ocorreram em cada segundo de existência, o esquecimento atua, nesse âmbito, como um elemento crucial para descartar tudo o que é efêmero e armazenar o que se constitui enquanto importante para o desenvolvimento pessoal e social. Do mesmo modo, destarte, em que as memórias individuais sofrem o processo do esquecimento para manter vivo o que é fundamental, as recordações sociais também enfrentam etapas de silenciamentos de eventos em função da manutenção de outros no imaginário coletivo. Desde a Revolução Francesa, em 1789, as memórias vêm ganhando um olhar burocrático mais atento. A preocupação de erguer no povo francês uma identidade coletiva nacional caminhava atrelada à manutenção das memórias da revolução que seriam cultivadas. Era preciso apagar os vestígios do antigo regime e incutir no povo recordações que 220 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e legitimassem os atos revolucionários e as novas formas de governo. Theodore Schellenberg (2006, p. 26), analisa a criação do primeiro Arquivo Nacional, na França, como sendo fruto dessa ansiedade de manutenção social e como uma forma de salvaguardar os arquivos como um meio de consulta pública que lhes valide o senso histórico, seja para fins culturais, individuais ou de pesquisas. O que podemos perceber, todavia, é que a criação da identidade coletiva passa por uma seletividade memorial que para existir precisa relegar outras ao patamar do esquecimento. O trabalho historiográfico também envereda pela estrada das escolhas. O historiador no ato do fazer história necessita de tecer quais eventos irá analisar, haja vista a impossibilidade concreta de abraçar todo o arcabouço teórico e das fontes sobre os acontecimentos que são paridos todos os dias, a todo instante. Como nos lembra Ulpiano Menezes (1992, p.13), as fontes estão “longe de fornecer um caminho aberto aos historiadores do futuro, deles exigirão um penoso trabalho prévio de codificação desse simulacro de presente petrificado em memória”. Essa seleção dos fatos a serem trabalhados, entretanto, fez com que as mulheres enquanto objetos de estudo fossem o elemento relegado ao esquecimento. Como analisa Joana Maria Pedro e Rachel Soihet (2007, p. 284) as pesquisas e estudos históricos tenderam, durante muitas décadas, a se pautar em descrições sobre o “homem”, como um meio de englobar homens e mulheres dentro de uma mesma categoria. O predomínio do uso das fontes administrativas e militares, preservadas nos Arquivos, acrescia esse cenário de uma História que não postulava a mulher propriamente como um alvo de investigações. Em 1920, com as iniciativas de Marc Bloch e Lucien Febvre na Escola dos Annales, é que o cenário do uso das fontes adquire um teor mais crítico e abrangente no que se entende como tal. O alargamento das possibilidades de aportes, atrelado a ascensão dos movimentos pelas causas feministas, permite o surgimento do sujeito feminino como objeto de estudo. A construção da memória coletiva em uma sociedade patriarcal para legitimar a história dos homens, findou por causar um silenciamento na história das mulheres que durou séculos e, resulta ainda em 221 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e reflexos cotidianos mesmo diante da revisão das fontes. Cria-se, portanto, um ideal de uma coletividade que se representa no discurso pela palavra “homens”, como um substantivo que acopla em si o masculino e o feminino. No que cerne a temática nas narrativas umbandistas, é preciso atentar, mesmo que haja grande respeito e reverenciamento às sagradas figuras femininas, como Pombas-Giras, Ciganas, Caboclas, Pretas-Velhas, dentre outras demais, no que tange a escrita a respeito das entidades Pretas-Velhas, nota-se um esquecimento historiográfico. Esse contraste entre as demandas de procuras nos terreiros por Pretas-Velhas e a forma como estas aparecem nas narrativas, nos reiteram o pensamento de uma tradição historiográfica de se usar a história dos homens como a que abarca a si e às mulheres. A leitura de obras, brevemente citadas nas considerações introdutórias, como Pedro(1999), Martins (2011), Negrão (1996), dentre outros, nos faz atentar para descrições que abordam essas entidades em sua maioria referindo-se aos Pretos-Velhos, não sendo localizado por nós nenhum trabalho que se pautasse em problematizar e analisar as personagens Pretas-Velhas. Desta feita, nos empenhamos aqui em propor uma análise das vivências de tais sujeitos partindo das memórias presentes nos pontos cantados, entendendo-os como uma rica possibilidade de fonte para a compreensão das recordações de escravidão, resistência e liberdade. Os pontos cantados durante os rituais umbandistas se transportam para o mundo das pesquisas históricas como importantes fontes de trabalho. A leitura de tais pontos cantados possibilita a arguição de hipóteses interpretativas sobre as vivências das entidades Pretas-Velhas tanto no mundo espiritual, nos terreiros, como enquanto encarnadas no cotidiano das senzalas. Em um levantamento feito em dez ambientes virtuais3 e dois livros físicos4, pudemos reunir um universo de 200 Pontos Cantados Compreendemos aqui sites, blogs, canais do YouTube que tratam da temática umbandista e dispõe em seu arquivo virtual pontos cantados para Pretas-Velhas. 4 EDITORA ECO. 3000 Pontos cantados e riscados na Umbanda e no Candomblé. 26ª ed. Rio de Janeiro: Editora Eco, 1974. & PORDEUS JR., Ismael. Umbanda Ceará em Transe. Fortaleza: Museu do ceará, 2ª ed., Expressão Gráfica e Editora, 2011. 3 222 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e para Pretas-Velhas e identificar alguns que retratavam passagens sobre o contexto histórico escravagista. No ponto abaixo, identificado no site como “Ponto de Linha”5, é possível observar a narrativa ambientar as memórias de uma Preta-Velha que fora traficada da África para o Brasil: Navio negreiro no meio do mar Correntes pesadas na areia a arrastar E a negra escrava tristonha a chorar Saravá nossa mãe Yemanjá Saravá nosso pai Oxalá As memórias se manifestam, nesse ponto, carregadas de dor e angústia dos sofrimentos encarados pela Preta-Velha enquanto encarnada. A dor de atravessar a Calunga Grande, o temido e desconhecido Mar Atlântico, padecendo sob a fome, o cansaço e as epidemias durante meses em alto mar. A jornada que iniciava sua nova etapa ao ancorar nos litorais dos países que compravam a mão-de-obra escrava africana, se revela na expressão das correntes pesadas arrastando na areia. A narrativa desse ponto, cheia de historicidade, nos transporta a pensar o tráfico negro pelo viés da sensibilidade, de como esses sujeitos despossuídos se sentiam ao navegar e ancorar em terras brasileiras. Assim como em muitos outros escritos dessas fontes, está presente o teor do sagrado que serve como ponto de força e de apoio durante toda essa trajetória e toda a vivência no cotidiano escravocrata: o apego às entidades orixás, inquices, voduns, ancestrais e até mesmo seres do panteão católico. As narrativas presentes nos pontos são muitas. Assim como em algumas encontramos menção ao continente africano e à saudade das terras de origem, em outros percebemos se tratar do Brasil como sendo o espaço de nascimento. Diferentemente do anterior que retrata a trajetória de uma preta que sofreu a angústia do navio negreiro, no ponto “Casca de coco no terreiro”6 podemos perceber se tratar de uma Ponto retirado do site Remizerkowski. Disponível em: <http://remizerkowski. no.comunidades.net/preta-velha>. Acesso em: 05 de junho de 2019. 6 Ponto retirado do acervo virtual do site Filhos do mar. Disponível em: <http://tefilhosdomar.org/index.php/pontos-de-umbanda/pontos-cantados-preto-velho/>. Acesso em: 05 de julho de 2019. 5 223 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e mulher que nasceu já a partir do Ventre Livre, ou seja, pela temporalidade da Lei, pode-se asseverar situar-se em torno, ou após, o ano de 1871. A espacialidade dessa narrativa se situa em dois locais: o primeiro, é a Senzala; o segundo, o plano espiritual em que habitam as entidades. Vovó não quer casca de coco no terreiro Pra não lembrar do tempo do cativeiro Vovó é filha de um Ventre Livre, Nasceu feliz, depois da abolição. Casca de coco lhe traz na lembrança, O amor escravo, de seu Pai João. Vovó não quer casca de coco no terreiro, Pra não lembrar do tempo do cativeiro. Vovó se lembra da velha senzala, Da Casa Grande e do terreirão, Da machadada que cortava o coco, Do Nêgo Velho do seu coração, Da Sinhazinha, moça muito bela, Da saia de renda e do Pai João, Broa de milho em panela de ferro, De café socado a base de pilão, Vovó não quer casca de coco no terreiro, Pra não lembrar do tempo do cativeiro A análise desse ponto nos permite traçar duas interpretações que podem dialogar entre si. Por um lado podemos avaliar essa narrativa pensando tratar-se de uma Preta-Velha que adveio ao mundo já após a Lei do Ventre Livre, de 1871, mas que, contudo, seria filha de pais ainda escravos; pensamento que se reitera no trecho “o amor escravo, de seu Pai João”. Dessa forma, as memórias e as marcas do escravismo ainda são vivas na vida dessa Preta em questão, por se tratar de alguém que possui pais escravos. Por outro lado, podemos entender esse sujeito como sendo ela uma própria vítima do escravismo, mesmo tendo nascido após o Ventre Livre. Após a abolição da escravatura em 1888, entretanto, em larga maioria os negros não possuíam condições de sustento mínimo e ainda estavam inseridos em uma sociedade que além de não prover com o básico, ainda erguia sólidas paredes discriminatórias e dificultava a 224 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e inserção dos negros no mercado de trabalho. Resultado disso era uma grande massa de ex-cativos permanecendo ligados às senzalas na condição de trabalhar para seus ex-senhores, como forma de ganhar algum pecúlio financeiro. Situação essa que pode ser percebida no livro “Menino de Engenho”, no qual José Lins do Rêgo (2010, p. 75-76) trata ainda do mercado açucareiro nas décadas próximas a Lei Áurea de 1888: “As negras do meu avô, mesmo depois da abolição, ficaram todas no engenho (...). O meu avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas a trabalharem de graça, com a mesma alegria da escravidão”. Nascer de um Ventre Livre, contudo, em muitos casos não significava liberdade. Um filho nascido após 1871 podia estar ainda preso à realidade escravocrata de muitos modos; podia tanto estar nesses espaços pela dependência dos pais ainda escravos, quanto pela falta de condições financeiras para um sustento longe daquela realidade. De maneira muito sensível as dores se manifestam pelas lembranças do coco sendo quebrado no terreiro da casa grande. As recordações a respeito da casa grande e da senzala nos faz ter a sensação de caminharmos nesses espaços ao lermos o ponto. Conseguimos visualizar, junto com a vovó, o café sendo pilado, a broa de milho fervendo, a sinhazinha com suas vestes de renda e o suor dos seus pais servindo aos senhores brancos. Os rastros da escravidão se perpetuam não só no psicológico, mas também nas recordações que as marcas físicas evocam, como demonstrado no Ponto de Vovó Chica7, abaixo: A vovó Chica vem de longe, de tão longe Cansada de caminhar Ela vem devagarzinho, sinhazinha Quase que não pode andar A vovó Chica vem de longe, de tão longe Longe até que aqui chegou O seu corpo está marcado coitadinho Do chicote do senhor Seu caminho era de espinhos, só de espinhos Ponto retirado do acervo virtual do site Luz e Fé. Disponível em: <https://luzefe.com/ index.php?url=pontos&indice=0&BotaoPonto=ENTIDADES&BotaoSubponto=PRETO%20 VELHO&desentidade=VOVO%20CHICA>. Acesso em 05 de julho de 2019. 7 225 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Mas agora é só de flor Mas quanta dor, quanta tristeza Que a velha traz no coração Quando ainda ela se lembra Do tempo da escravidão Oh Deus nos salve a estrela guia Dos tempos da salvação Izabel a redentora Pôs a luz na escuridão Para além das marcas carregadas na pele e das memórias de dor e tristeza, outros dois elementos nos chamam atenção nessa narrativa. O primeiro que podemos analisar é o trecho final, o qual postula a Princesa Isabel como a salvadora, por ter assinado a lei de 1888 a qual abolia a escravidão. Esse tipo de homenagem à Isabel evidencia o caráter de má interpretação ou desconhecimento dos contextos históricos. Colocar Isabel como a responsável por trazer luz quando só havia escuridão, significa desconsiderar o cenário de pressões internacionais e de luta e resistência negra, que envolvem o fim da escravatura. O outro elemento que aparece e cabe menção é o apego ao mundo espiritual. Ao mesmo momento que a vovó Chica, enquanto encarnada, sofria com as marcas latentes do chicote, com o desencarne a pele ferida cicatriza e proporciona a paz; os espinhos dão lugar às flores. A vida cansada de andar por muitos lugares, de muito trabalho, ou de até mesmo ter vindo de África para o Brasil encontra-se também permeada de um apego espiritual que pede proteção e liberdade. O pós vida e a louvação a Deus e as entidades nos possibilita compreender que a espiritualidade era uma prática que permitia que a escravidão estivesse apenas na memória. A celebração pela marcante data do 13 de maio é viva nos terreiros até os dias contemporâneos e evidencia o caráter sagrado a que muitos negros, em muitos pontos, associam a liberdade como um ato das divindades. Pelo dia de hoje Eu quero alegria neste terreiro Foi dia 13 de maio que acabou o cativeiro8 Ponto retirado do site Remizerkowski. Disponível em: <http://remizerkowski. no.comunidades.net/preta-velha>. Acesso em: 05 de junho de 2019. 8 226 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O dia 13, desta forma, é comemorado como uma forma de relembrar toda a resistência negra que lutou pelo fim do cativeiro e de celebrar a vinda dos Pretos e Pretas-Velhas que trabalham nos terreiros pela cura e caridade dos mais necessitados. Nas palavras de Néstor Garcia Canclini (2008, p. XXVI) “As políticas de hibridação serviriam para trabalhar democraticamente com as divergências, para que a história não se reduza a guerras entre culturas (...)”. Entender o conceito do hibridismo como aquilo que sobrevive às diferenças e se mescla a estas dando origem ao novo, estando presente em diversas esferas do mundo moderno, é fundamental para que possamos compreender as religiões de matrizes afro-luso-ameríndias em sua riqueza cultural. O panteão umbandista apresenta-se de maneira totalmente cabível no conceito do hibridismo cultural, ao permitir a existência de elementos católicos e africanos, como podemos observar no ponto de linha9 abaixo: Vovó viveu no tempo da escravidão Corria milharal com a enxada na mão Benzia, fazia mironga Ajudava seus irmãos E um dia lá no céu Jesus lhe deu a redenção Além de retratar um cenário de trabalho no roçado, com a enxada no milharal, evoca o senso de cura e ajuda que é presente na caracterização das entidades Pretos e Pretas-Velhas; mesmo quando em vida, já possuía conhecimento de benzimentos e dos feitiços, ditos mirongas. A última estrofe, todavia, faz uma menção ao ícone das religiões cristãs, Jesus Cristo; o que nos possibilita reiterar ser a Umbanda uma religião de panteão híbrido que abriga no mesmo culto a figura de Jesus e os aprendizados das matrizes afro como os benzimentos, os passes, o uso das ervas, dentre tantos outros. A análise dos cinco pontos aqui empreendida, escolhidos perante o universo dos 200 pontos mapeados, nos permite um maior contato com os veios históricos que sobrevivem e aparecem nos pontos mesmo Ponto retirado do site Remizerkowski. Disponível em: <http://remizerkowski. no.comunidades.net/preta-velha>. Acesso em 05 de junho de 2019. 9 227 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e se tratando de narrativas que são feitas e destinadas ao universo sagrado da Umbanda. Dessa maneira, podemos compreender que se tratam de fontes que nasceram, em sua origem, para dar conta da musicalidade sagrada do ritual umbandista, mas que, nos servem como arcabouço para as análises históricas a respeito da escravidão, das resistências, dos hibridismos e da liberdade do nosso objeto de estudo, que são as entidades Pretas-Velhas. Reflexões finais A construção de uma memória coletiva perpassa, como pudemos compreender, o processo de escolhas, as quais selecionam as recordações que se farão basilares na criação de uma identidade cultural para um determinado grupo social. Implica dizer que eventos se sobressaem em detrimento de outros. A História, enquanto campo de escrita e eternização, envereda pelo caminho também das escolhas que o historiador necessita para desenvolver com maestria o seu trabalho. As seleções que os historiadores fazem diante de suas fontes, todavia, deixam narrativas que ficam guardadas na gaveta enquanto outras são discutidas e investigadas. O resultado de uma sociedade patriarcal, dessa maneira, é a construção de uma série de trabalhos que, no momento dos seus recortes metodológicos, findaram por silenciar a história das mulheres, construindo abordagens que retratam a história dos homens como uma forma de abranger o todo, como já mencionamos. Nos empreitamos, em fazer uso dos pontos cantados como uma fonte que nos proporcionasse um entendimento sobre a figura feminina das Pretas-Velhas dentro do panteão umbandista. Dessa maneira, buscamos produzir uma análise às fontes de modo a compreender a escravidão, as resistências e a liberdade de tais entidades a partir das suas memórias. As Pretas-Velhas são figuras que se revelam para nós enquanto personagens que personificam o hibridismo em si de fazer existir temporalidades e espacialidades diferentes na mesma narrativa. São fontes que nos permitem a compreensão de como o sagrado, o mundo espiritual, dava força para que as resistências se firmassem. Se apegar aos cultos religiosos no âmbito da senzala, significava um meio de transpor as mazelas da escravidão apenas para o mundo do imaginário. 228 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências LEGOFF, Jacques. História e memória. Tradução: Bernardo Leitão. São Paulo: Editora UNICAMP, 1990. LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. São Paulo: Revista Projeto História, 1998. MARTINS, Giovanni. Umbanda de Almas e Angola. 1ª ed. São Paulo: Ícone, 2011. MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista Inst. Est. Bras., São Paulo, 1992. NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada. São Paulo: EdUSP, 1996. NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva: Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2003. PEDRO, Vanessa. Almas e Angola: Ritual e Cotidiano na Umbanda. Florianópolis (SC): Biblioteca Imaginária: 1999. REGO, José Lins do. Menino de Engenho. 102ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2010. SCHELLENBERG, Theodore. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. 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João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 230-243. Klaus Eduardo da Rocha Furtado Tomaz1 Kallyne Fabiane Pequeno de Araújo2 Introdução A Wicca é uma religião no mundo contemporâneo, na qual cultua-se uma Deusa tríplice e um Deus cornífero. Para seu ingresso é necessário passar por um processo de iniciação, além de ser entendida como uma religião sacerdotal, politeísta, ecológica e que possui práticas consideradas mágicas. Alguns alegam que ela é uma antiga religião, com suas origens nos tempos antigos da Europa, já outros a compreendem como uma religião fruto da época de Gerald Gardner, seu fundador na Inglaterra em meados do século XX. Os wiccanos buscam uma religação do homem com a natureza e celebram os ciclos sazonais, chamados de sabás que compõe a Roda do Ano. A Cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, foi fundada em em 1599 às margens do rio Potengi, além de contar com importantes monumentos, parques, museus e pontos turísticos. Dentre esses pontos encontramos o Parque das Dunas, o Bosque das Mangueiras e a praia de Ponta Negra, espaços esses considerados pontos de encontros para um pequeno grupo de indivíduos seguidores de um caminho esotérico e religioso, os quais se nomeiam de Wicca. Na Wicca um dos elementos principais é a veneração da natureza, que é compreendida como sagrada e divina. Seu culto é ligado à mãe terra e a vários deuses pagãos, possuindo assim uma cosmovisão Graduando em Ciências da Religião pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7335361803761553. E-mail: klauseduardo123@ hotmail.com 2 Graduada em História (Bacharelado) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pós-graduanda em História e Espaços pelo Programa de Pós-Graduação em História – PPGH da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8540515362689644 E-mail: kallyne.araujo@yahoo.com.br. Trabalho orientado pelo Prof. Me. Genaro Camboim Lopes de Andrade Lula (UERN). 1 231 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e centrada nos mistérios cíclicos da natureza, as mudanças das estações, também refletindo em seus mitos e em como celebram a chegada dos solstícios e equinócios chamados de sabás. Criada por Gerald Gardner na década de 50, a Wicca é perpetuada até os dias atuais, mesmo existindo dificuldades no acesso a natureza por questões de se viver em um espaço urbano. Ao que diz respeito aos wiccanos dos grupos de seguidores que foram analisados para este trabalho, estes procuram manter suas práticas dentro da cidade de Natal, utilizando-se de parques e das praias e assim criando uma ligação espiritual nesses ambientes. Esses pontos de encontro com o passar do tempo para os wiccanos se transformam em espaços sagrados, pois segundo Mircea Eliade (2012, p. 25) ”para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferente das outras”, portanto, um espaço sagrado, e por consequência forte. Para os bruxos esses ambientes naturais criam uma consciência quando se acontece por muitas vezes nestes lugares a realização de práticas mágicas, por causa dessa essência vivente, esses locais são escolhidos para ser realizados os sabás3. Nessas reuniões a questão do espaço ser natural é muito importante, contudo muitas vezes o ambiente do lar tem maior predominância entre alguns praticantes, por ser um lugar mais fechado para as práticas e a utilização de elementos como o fogo, que por uma questão de proteção ambiental nos espaços urbanos das cidades não se pode ser utilizado, por isso alguns sacerdotes da Wicca oferecem seus lares para realização de alguns rituais. O presente artigo tem como objetivo analisar como as celebrações desses sabás é realizada pelos praticantes da Wicca no espaço urbano e como a ritualística dessas celebrações é feita na cidade de Natal. Através de alguns suportes documentais e da observação de alguns praticantes da Wicca da cidade analisada, queremos acessar os múltiplos sentidos que são atribuídos aos espaços urbanos, de como a paisagem é sacralizada para o exercer religioso dos wiccanos. Para o desenvolvimento desse trabalho, como metodologia, foi utilizada a análise de dois 3 Sabás: os sabás constituem em uma maneira de celebrar das feiticeiras que está interligada com as mudanças cíclicas da natureza (FARRAR, 1999, p. 13). 232 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e tipos de fontes: a literatura wiccana, fazendo a escolha de obras clássicas da Wicca, sendo estas Oito sabás para bruxas (1999), do casal inglês de bruxos Janet e Stewart Farrar e Wicca para todos (2009), do sacerdote brasileiro Claudiney Prieto. Também foi feito o uso da observação de alguns praticantes solitários e covens de wiccanos em Natal. Outra forma de análise também se deu através da revisão bibliográfica, que abordam as relações entre espaço sagrado, paisagem e a Wicca. Os sabás da Wicca Na Wicca ocorre a celebração da chamada Roda do Ano através de oito festivais sazonais que são conhecidos como Sabás. O calendário litúrgico wiccano é baseado em vinte e um rituais que ocorrem anualmente, dividido entre os oito Sabás e treze Esbás4. Segundo Ramalho (2015, p. 249) os sabás wiccanos são formados por quatro sabás maiores (Samhain, Imbolc, Beltane e Lughnasadh) que foram celebrados pelos Celtas; e por quatro sabás menores (Yule, Ostara, Litha e Mabon) que tem suas origens em celebrações de outros povos pagãos da Europa. O casal wiccano Farrar define o calendário das bruxas como: O calendário das bruxas (independentemente de sua escola) está enraizado, como o de suas predecessoras ao longo de séculos sem conta, nos sabás, festivais por estação que marcam pontos-chaves no ano natural, pois Wicca,como enfatizamos, é uma religião e ofício orientados pela natureza; e visto que para as bruxas a natureza é uma realidade de muitos níveis, seu “ano natural” inclui muitos aspectos agrícola, pastoral, da vida selvagem, botânico, solar, planetário, psíquico, cujas marés e ciclos se afetam ou refletem entre si. Os sabás constituem a maneira de celebrar das feiticeiras e destas se colocarem em sintonia com tais marés e ciclos, pois homens e mulheres são também uma parte da natureza de muitos níveis. (FARRAR, p. 12-13, 1999). “Os esbás são rituais conduzidos a cada lua cheia e dedicados ao culto da Deusa. Sua característica principal é serem restritos aos membros do coven, focados nos “mistérios” e no treinamento mágico dos dedicados e iniciados” (DUARTE, 2013, p. 180). 4 233 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Essas celebrações se popularizaram como sabás da Wicca entre os anos 1960 e 1970, embora os quatro sabás menores só tenham sido acrescentados no calendário wiccano a partir de 1980, através de sua inclusão nos livros sobre a Wicca. Portanto, a Roda do Ano que foi estabelecida é formada por Samhain, Yule (solstício de Inverno), Imbolc, Ostara (Equinócio de Primavera), Beltane, Litha (Solstício de verão), Lughnasadh e Mabon (Equinócio de Outono). Esses sabás são ritos solares em torno do mito da roda do ano sobre a deusa e o deus. Durante a primavera, a deusa apresenta seu aspecto jovem e o deus como criança divina. A medida que o verão se aproxima, eles amadurecerem e ocorre o casamento divino, para no auge do verão a deusa estar grávida e o deus passar a ser o Rei do carvalho; Ao chegar o outono o deus se torna o sábio rei azevinho e morre no final do outono. A deusa se recolhe no mundo inferior para no auge do inverno dar a luz ao deus, dando início a um novo ciclo (DUARTE, 2008, p. 74). Os sabás das bruxas como fora mencionado se dividem em oito, Imbolc que ocorre no hemisfério Sul no mês de agosto (as datas dos sabás variam de hemisfério para hemisfério, e os astronômicos que são os solstícios e equinócios variam dependendo do ano, caso ele seja bissexto ou não). É o festival do fogo que representa o fim do inverno, em que o gelo começa a derreter e as fogueiras são postas do lado de fora das casas e não mais nas lareiras, além de também ser considerado o período de lactação do gado (FARRAR, 1999, p.13). Após o derretimento do gelo, se inicia o que os wiccanos chamam de ritos da fertilidade para criação e semeação do plantio na terra, rituais que são destacados pelo Ostara e Beltane e são celebrados entre setembro e outubro no hemisfério Sul, e março e maio no hemisfério Norte. Muitos ritos sexuais são realizados nos campos nesse período, para a fertilização e a realização de casamentos na sociedade, já que nessa passagem deuses do amor são adorados. Os festivais da colheita que são Lughnasadh que representa a grande colheita, resultados de toda uma roda solar trabalhada pelos bruxos com a adoração ao Deus sol, celebração essa que marca que os frutos sejam bons ou ruins recebidos ao longo do ano para os wiccanos. Mabon, o festival do outono que marca o equilíbrio das estações e a segunda colheita wiccana sublinhada em agradecimentos e oferendas aos deuses 234 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e junto com um banquete entre os irmãos da bruxaria, são marcados com o fim do verão e começo do inverno (no caso o período marcado pelo que os wiccanos chamam de “corte escura”, onde elementais e criaturas da natureza do inverno começam a trabalhar para o surgimento desta estação), os sabás que representam o começo do inverno é Sahmain e Yule, ligados à crença dos ancestrais de suas famílias e marcando um fim de um ciclo, mas para o início de outro com o nascimento da criança da promessa que ocorre no mês de junho aqui no hemisfério sul e, em dezembro no hemisfério norte. Durante este processo vemos um momento de transformação refletido do espiritual para o material, ou o inverso já que seguindo o pensamento do sociólogo e historiador Karl Max, a religião pura e simplesmente como uma projeção de nossa realidade terrena para um plano superior metafísico (FADDEN, 1963, p. 15). A roda traz para os seguidores da Wicca sobre as passagens da vida humana, representadas pelo nascimento, crescimento, puberdade e morte. Para os bruxos, vivenciar a roda é como se vê em um filme de suas próprias vidas e dessa forma se encontrar com os mistérios da vida e da morte, pois tudo é um ciclo na visão da Wicca e por isso é representada pelo simbolismo do círculo, que representa uma linha perfeita sem começo e sem fim, dando assim alusão da roda cíclica da vida, de morte e renascimento. Como a natureza é a base da religião Wicca, vemos que nunca existe um fim para ela, e sim, uma transformação. Com as celebrações contínuas os wiccanos criam um elo de ligação com a natureza de tal sintonia que a roda também se transforma em uma forma de comunicação entre essa sincronia do homem com o macro universo ao seu redor. Se conclui desta forma que viver a roda do ano e se encontrar com o mundo dos deuses e compreender o mistério da vida e da morte. Natureza e espacialidades Na Wicca o espaço é algo de extrema relevância, pois se apresenta através de inúmeras representações no praticar dessa religiosidade por bruxas e bruxos. Os espaços são construídos desde a formação de 235 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e um círculo mágico que é um espaço de proteção traçado pelos bruxos, no qual impede o acesso de energias não convidadas para o círculo construído, onde ocorrem rituais, feitiços e a presença dos deuses e entidades são convidadas para estarem dentro dele com o wiccano. A natureza, também é outra espacialidade wiccana, pois a Terra é considerada divina e sagrada e tanto as suas florestas, bosques, rios, mares e árvores, são também a morada dos deuses, de entidades e elementais. Portanto a própria construção do espaço sagrado por Mircea Eliade (1992) ao diferenciá-lo do espaço profano e definí-los, relacionando também ao tempo sagrado e a hierofania, irá nos ajudar a entender a importância dos espaços para a Wicca. A hierofania é a manifestação do sagrado e sempre irá transformar um espaço que foi profano em sagrado. A repetição da hierofania que consagrou um determinado espaço, acaba o transformando, tornando-o singular em relação ao espaço profano que o cerca (ELIADE, 2002, p. 296), o que pode ser percebido em determinados espaços, como parques e bosques, em que praticantes da Wicca acabam sempre utilizando determinados locais nesses espaços para suas práticas religiosas, fazendo com que seja atribuído a esses espaços o sagrado. Eliade (2002, p. 295) também atenta para as relações que existem entre as hierofanias e a natureza, pois como a natureza passa por transformações no decorrer do ano e essas mudanças podem ser representadas através dos mitos, pode ser feita a relação dessa concepção com o modo dos wiccanos perceberem o sagrado nos espaços, já que é uma religião que acredita que seus ancestrais em um tempo antigo praticavam as sua crenças e ritualizavam na natureza- à morada dos deuses. Além, do aspecto voltado aos mitos e as transformações que ocorrem na natureza, levando os praticantes da Wicca à ritualizarem e celebrarem essas mudanças através dos sabás. A hierofania não apenas sacraliza uma fração do espaço profano homogêneo, mas ela assegura a perseverança dessa sacralidade no futuro. Transformando o lugar em uma fonte de força e sacralidade, permitindo que o homem tome parte dessa força e comungue com o sagrado. Através da hierofania, o lugar se torna um centro permanente do sagrado (ELIADE, 2002, p. 296). Noção que novamente retorna a ideia de que os wiccanos enxergam a natureza como esse centro permanente 236 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e do sagrado, que um dia também foi um espaço sagrado para os antigos pagãos. Segundo o sacerdote wiccano brasileiro e escritor Claudiney Prieto (2009, p. 62), houve historicamente uma espécie de transferência de rituais do “espaço aberto” para dentro de residências, locais privados ou “íntimos” para preservar a realização de tais atos que pareciam sofrer ameaça de realizarem-se em locais visíveis. A criação do círculo mágico tornou-se outra forma de criar e estabelecer com mais liberdade e flexibilidade um espaço sagrado para os bruxos que não tinham e não tem como fazerem seus rituais na natureza, principalmente no contexto atual que muitos dos praticantes dessa religião moram em centros urbanos onde há um maior afastamento de áreas rurais e campestres, que possui uma maior presença de espaços de natureza, de um ponto de vista até romantizado pelos wiccanos. Além da busca por praias, bosques e parques nesses espaços urbanos e públicos, que possibilita mesmo nas cidades urbanas, o que seria considerado esse contato com a natureza pelos praticantes da Wicca e por outros seguidores do Neopaganismo. Conforme Silva (2017, p. 38) por mais que alguns praticantes idealizem essa vivência no campo, na natureza, apenas uma minoria possui esse estilo de vida. No entanto, essa vivência de uma era dourada que o homem viveu em harmonia com a natureza é uma visão utópica e deslumbrada do passado, que o homem e a natureza seriam um só, fazendo com que muitos praticantes busquem morar perto desses bosques e parques, manter jardins e cultivar ervas em casa, ou até mesmo possuir sítios em cidades do interior, como uma espécie de santuário natural, além da preocupação com questões ecológicas e ambientais, mas que não deixa de ser um discurso profundamente urbano. Partindo da ideia que as hierofanias influenciam nas transformações da natureza e podem ser relacionadas com as celebrações pagãs dos solstícios e equinócios, que fazem parte da ritualística e das comemorações dos wiccanos, há uma associação desse tempo das festas com o tempo sagrado. Eliade (2012, p. 63) define que o tempo sagrado não é homogêneo nem contínuo para o homem religioso, pois acontecem intervalos entre o tempo sagrado, o tempo das festas e o tempo 237 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e profano e vai ser através do ato de ritualizar, que o homem religioso consegue passar do tempo considerado não-sagrado para o tempo sagrado. Além desse tempo das festas religiosas também ser entendido como algo cíclico, pois o evento definido como sagrado acaba repetindo e é algo que está presente na história humana e em diversas formas de rituais desde os primórdios. Essa celebração cíclica e repetitiva ocorre na Wicca através da Roda do Ano e suas festividades relacionadas aos clima e colheita, com seus oito sabás: Samhain, Yule, Imbolc, Ostara, Beltane, Litha, Lughnasad e Mabon, como já foram discutidos inicialmente. Por mais que as paisagens que moldem o espaço urbano sejam construídas e reconstruídas a todo tempo, isso não impede que as pessoas busquem nas paisagens, lugares que possam ser vistos como sagrados. Esta forma de fazer uso de um determinado espaço e sacralizado é feito por wiccanos ao realizarem seus rituais em praças públicas, parques, bosques e praias, e como é o caso das bruxas e bruxos de Natal, ao usarem o Parque das Dunas, o Bosque das Mangueiras e a Praia de Ponta Negra. Schama (1996, p. 24) conceitua toda natureza modificada ou que tenha tido presença ou interferência humana como sendo paisagem. E a paisagem se torna produto de uma cultura comum, de uma tradição construída a partir de um rico depósito de mitos, lembranças e obsessões, de cultos que buscamos em outras culturas nativas, desde a idealização de uma floresta primitiva ou de uma montanha sagrada (SCHAMA, 1996, p. 24). Sendo isto o que muito presenciamos nos discursos da Wicca e em sua visão de mundo relacionada aos espaços de natureza. Como também, em cada época o imaginário coletivo pode variar em suas definições sobre a concepção social de natureza e a transformar em cultura (LUCHIARI, 2001, p. 11). Pois essa concepção de natureza teve a sua tradução mais completa ao ser elaborado o conceito de paisagem, que vai muito além de apenas um modelo abstrato de compreensão do meio, mas também representa a materialidade em que a racionalidade humana organiza os homens e a natureza em territórios. Através da habilidade humana, a natureza é transformada em objetos culturais, portanto, o que é sugerido pela natureza, o imaginário social traduz (LUCHIARI, 2001, p. 22). 238 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Bruxaria em Natal A bruxaria em Natal é representada através de encontros e eventos relacionados a diversidade de assuntos envolvendo suas práticas e celebrações. Muitos dos seguidores de diversas tradições de bruxaria, incluindo a Wicca, procuram com a realização destes encontros discutirem sobre o que se tem aprendido solitariamente. Assuntos como ervas, criação de espaços sagrados, contatos com seres espirituais, entre outras diversas discussões relacionadas à linha do ocultismo e do misticismo. Os espaços para esse encontros se situam na Grande Natal, cidade do estado de do Rio Grande do Norte, nas regiões que se encontram o Parque das Dunas, Bosque das Mangueiras e a Praia de Ponta Negra. Para a contribuição deste artigo, através da nossa observação e participação no último ritual de Ostara que ocorreu em Setembro de 2018 no Bosque das Mangueiras, foi possível ter algumas conversas com os idealizadores dos eventos, buscando informações sobre cenário neopagão em Natal e a importância da celebração dos sabás. As primeiras reuniões foram oficializadas nos anos de 2012 através de Danilo Nobre (eterno estudante da bruxaria), Klaus Eduardo (Sacerdote Wicca), Chris Nóbrega (Sacerdote da tradição Green Faerie) e Marcelo Leal (Sacerdote da tradição Wanen em Natal), através do grupo de estudos chamado Ventre Negro, que buscavam não só discutirem assuntos relacionados a esoterismo e magia, como também assuntos relacionados ao meio ambiente, a questões de diversidade religiosa e o combate entre as diferenças sociais, trazendo para as reflexões dos iniciantes no caminho da Wicca para uma evolução não só pessoal, mas universal, em uma tentativa de tornar o meio vivido por eles melhor. Com o passar do tempo, eventos paralelos envolvendo práticas do que se era discutido foi sendo construindo e assim outros grupos para práticas da Wicca começaram a serem fundados e para a garantia de uma visibilidade e respeito, dessa forma esses locais que foram explorados para encontros de discussões teóricas, passam a ter um envolvimento de práticas mágicas para obtenção do desenvolvimento e a conexão com a natureza. Todo espaço sagrado implica em uma hierofonia, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio 239 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e cósmico que o envolve e o torna qualitativo diferente. (ELIADE, 2012, p. 30). Muitos wiccanos manifestam essa sacralização através da criação de um círculo sagrado, onde este possa ser levado em qualquer parte e criado em qualquer região seja na natureza, ou dentro de sua própria residência. Para o sacerdote Claudiney Prieto (2009) as práticas rituais pagãs eram sempre realizadas junto à sagrada natureza, considerando esta a morada dos Deuses e divina por si só, porém: Quando a Bruxaria passou a ser perseguida e os Bruxos tiveram que mover seus rituais das florestas e bosques para o interior de suas casas, os ritos passaram a ser realizados então no interior de um Círculo Mágico. Os rituais passaram a ser realizados em locais que ficavam distantes dos lugares de poder naturais, como os círculos de pedras ou bosques sagrados e o ato de lançar o Círculo Mágico passou a estabelecer, assim, não só um espaço sagrado, tornando-o um vórtice de poder onde os Espíritos da natureza eram atraídos, mas também um portal de comunicação com o Sagrado. E desta forma fazemos até os dias atuais, traçando um Círculo ao nosso redor para invocar as energias que reverenciamos e que conosco trabalham em perfeita harmonia (PRIETO, 2009, p. 62). Com a utilização deste artifício, muitos dos eventos abertos para aqueles indivíduos que queriam compreender as celebrações da Wicca passam a ter uma acessibilidade maior, pois o círculo torna-se um espaço sagrado, ou templo o qual pode ser movimentado para o lugar que o bruxo desejar. Facilitando essa acessibilidade, se inicia os eventos relacionados aos sabás já mencionados no artigo que são ritos de ligação com os ciclos da natureza. Surgindo essas celebrações abertas, nasceu o Dançando para Florescer em 2012, idealizado por Danilo Nobre através de um sonho que lhe ocorreu de celebrar o Ostara, o equinócio de primavera em volta de uma mangueira. Através deste sonho esse evento nasceu com a idealização de reunir os wiccanos e os bruxos para uma dança circular e adoração, não apenas em torno da passagem das estações da natureza, mas pensando também no crescimento espiritual de todos dessa comunidade pagã. Segundo Nobre, esse evento chega a reunir até 240 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e mais de 100 pessoas na cidade de Natal. E nele encontra-se palestrantes, dinâmicas como produção de perfumes, caça ao tesouro e tudo que é considerado como forma de trazer o resgate desse festival, o Ostara pagão. No ano de 2016, esse evento de bruxaria passou a ter uma maior visibilidade, através da criação de feirinhas de artesanato, com lanchonetes e artigos esotéricos a venda. Palestrantes de outros estados também passaram a se unir para a idealização deste evento, tendo a crença que isso daria abertura para novos rumos da bruxaria aqui em Natal. Outros pequenos rituais abertos no Bosque das Mangueiras e praias da Grande Natal, também foram realizados para celebração dos sabás, para que dessa forma mesmo aqueles indivíduos que não estariam integrados a um coven pudessem participar dos sabás. Através de uma contínua prática no ambiente, os wiccanos tem a crença que este espaço com o tempo crie um elo com os demais praticantes formando assim uma forma de pensamento, ou entidade do espaço. No ano de 2016, também ocorreu pela primeira vez o Dia Mundial da Deusa, realizado no dia 04 de setembro do referido ano. Esse projeto surgiu em 2014 para unir em todo o mundo, pessoas que cultuam a deusa e é celebrado sempre no primeiro domingo de cada mês de Setembro. O Projeto é uma iniciativa do sacerdote brasileiro Claudiney Prieto. Outro projeto, idealizado por Prieto e que ocorreu também pela primeira vez em Natal no ano de 2016, foi o Encontro Regional de Bruxos, que acontece a cada primeiro domingo de cada mês, em diferentes regiões do Brasil, assim como em parques, praças, praias, entre outros lugares. Atualmente as celebrações e eventos da Wicca em natal foram cessadas por questões de logística e tempo, mas ainda aberto à possibilidade de reencontros e organizações de novos eventos para celebrações dos sabás. Considerações finais A influência da natureza está presente em todas as representações divinas e sagradas da Wicca e também interfere na construção da espacialidade sagrada para os wiccanos, assim como também na 241 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e importância de celebrar as mudanças das estações. Através das fontes e do que foi discutido, foi possível compreendermos também o porquê da Wicca não necessariamente precisar ter templos erigidos, pois para existir o espaço sagrado não é necessário um templo físico, mas o círculo mágico é que irá possibilitar essa conexão com os deuses e com o sagrado. Também foi observado o quanto é delicado esse contato entre os seguidores da Wicca com a natureza, a forma de ver a natureza como uma fonte divina e única para todo o universo humano e acolhedor para todos. O respeito por cada ser, pedra, animal ou vegetal ao seu redor formando assim um elo psíquico e emocional. A natureza é uma mãe para Wicca, a própria Deusa, um ser vivo, uma criatura transcendental. Desse modo, foi possível compreender quais os elementos que conectam o espaço, a natureza e o sagrado para os wiccanos, diante das utopias, desejos e limitações que seus praticantes enfrentam ao praticar uma religião voltada para a natureza no meio urbano. Assim como também, perceber os simbolismos que os unem ao sagrado, possibilitando que eles encontrem a tão almejada harmonia com a natureza, mesmo diante das dificuldades que precisam enfrentar ao viver nos centros urbanos e que ainda assim, se torna possível que eles se conectem com o divino e realizem os seus rituais que possuem aspectos centrados na natureza. 242 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências DUARTE, Janluis: Os bruxos do século XX: neopaganismo e invenção de tradições na Inglaterra do pós-guerra. Dissertação (Mestrado em História) – UNB, Brasília, 2008. Orientação de Vicente Dobroruka. ______. Reinventando tradições: Representações e identidades da bruxaria neopagã no Brasil. (Tese de doutorado) – UNB, Brasília, 2013. Orientação de Cléria Botelho da Costa. ELIADE, MIRCEA. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ______. Tratado de História das religiões. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. FADDEN, J. Mc. Filosofia do Comunismo. 2. ed. Lisboa: União Gráfica, 1963. FARRAR, Janet & Stewart. Oito Sabás para Bruxas. São Paulo: Anúbis, 1999. LUCHIARI, Maria Tereza Duarte Paes. A (re)significação da paisagem no período contemporâneo. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (orgs.). Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: Ed. da UERJ, 2001.p. 09-28. PRIETO, Claudiney. Wicca para todos. São Paulo: Alfabeto, 2009. ROCHA, Emmanuel Ramalho de Sá. A relação ser-humano natureza em um novo encantamento do mundo: uma investigação junto a um grupo Wicca de João Pessoa. Anais do XIv simpósio nacional da ABHR. Juiz de Fora, ABHR, 2015 (p. 241-254). SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SILVA, Dartagnan Abdias. Há Bruxas na cidade: A Wicca a partir da representação da UWB. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – UFJF, Juiz de Fora, 2017. Orientação de Marcelo [ Volta ao Sumário ] 243 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e dos vedas aos upanisHads Rosivânia Rodrigues Jordão Como referenciar este capítulo: JORDÃO, Rosivânia Rodrigues. Dos Vedas aos Upanishads. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 244-255. Rosivânia Rodrigues Jordão1 Introdução Antes de adentrarmos no tema em questão, isto é, os rituais que deram-se no período Védico e no período dos Upanishads, faz-se necessário nos embrenharmos, na história da Civilização Oriental especialmente a da sociedade indiana. O homem, ao estudar a história da Índia acaba-se esbarrando com alguns mistérios que à primeira vista é incompreensível. De fato, quando examinamos a Índia, um dos países do Oriente, passa por nossas mentes diversos tipos de ponderações, isto é, múltiplos pensamentos. É um território onde descortinamos uma série de conceitos religiosos e uma grande variedade cultural. E para se entender isto deveremos percorrer de forma extremamente precisa os acontecimentos inseridos nesta civilização e o colonialismo que sucederá na Índia, apontando os indo-europeus/ãryas e os drávidas. Ademais, faremos menção de como a crença, a fé, a religiosidade e a espiritualidade deste povo estava, e ainda está, ligada ao seu mais íntimo ser. Resultado disso, é uma vida totalmente voltada para as divindades. São elas que controla e coordena a razão de ser dos indivíduos do grupo. E quando falamos nestes deuses avistamos seres que o homem deveriam prestar-lhe certos ritos. O rito é um movimento que está entre os indianos desde os primórdios de sua história. A contar os primeiros povos percebemos a liturgia que os cercava. E, para dialogarmos a respeito do movimento indiano “Vedas” e “Upanishads” faz necessário uma volta no tempo histórico para se compreender o porquê de certos ritos e mitos fazerem parte do contexto cultura destes homens, pois assim fazendo chegaremos a alguns questionamentos a respeito de um certo rompimento entre os brâmanes e o surgimento do que ficou denominado e conhecido como os Upanishads. Graduanda em Ciências das Religiões (Bacharel) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Currículo Lates: http://lattes.cnpq.br/7358922065124176. 1 245 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Como conceituávamos anteriormente, para uma melhor percepção e entendimento do tema proposto convém revir a respeito dos indo-europeus fazendo uma caminhada até os drávidas, povo que, de certo modo, encontravam-se desde muito cedo em terras indiana as margens do rio Indo. Ademais, mencionaremos alguns deuses, os tipos de rituais presentes neste período védico, seu andamento e a eclosão dos Upanishads. Os indos-europeus e os drávidas Não se sabe ao certo como surgiu o povo indo-europeu, o que se tem conhecimento é que os tais vieram de uma região entre os Cáucaso e Carpatos próximo ao mar negro no III milênio. Além disso, é deste povo que descende as línguas conhecidas como latim, grego e o “sânscrito”, está última a língua dos textos sagrados do hinduísmo.2 É bem verdade que está é uma teoria que possivelmente não seja aceita por outros estudiosos, mas é nela que iremos cimentar nosso entendimento. Para adentrar na Índia os indo-europeus necessitavam trespassar a montanha sagrada, as cordilheiras do Himalaia. Não se percebe como estes indivíduos lograram este objetivo, mas os tais assim fizeram e conseguiram. Chegaram na Índia e se instalaram as margens do rio Indo. No entanto, achava-se naquela região um povo totalmente dispa em relação aos povos indo-europeus, eram os drávidas. Distinto dos indo-europeus, os drávidas, eram povos nômades que conhecia muito bem à agricultura, o cuidado com os animais, etc. Em contrapartida os indo-europeus detinham o conhecimento das guerras, pois em vista viviam conquistando territórios. Para uma melhor compreensão acerca disto contemple: “[...] Muitas teriam sido as condições que facilitaram a conquista do território indiano pelos ãrya, nesta época Dravídica. Os invasores GNERRE, Maria Lúcia Abaurre. Os arianos na Índia. In: GNERRE, Maria Lúcia Abaurre. Religiões Orientais: Uma introdução. Volume I : Tradições da Índia – Do Veda ao Yoga. ed. 1. João Pessoa: Universitária UFPB, 2010, p. 25. 2 246 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e estariam mais bem equipados para guerra, com carros puxados por cavalos e armas de Bronze, enquanto os Drávidas teriam carros puxados por bois e armas de cobre. Há também a hipótese de uma crise social desta civilização do Indo, que já estaria previamente enfraquecida no momento da chegada dos árias – hipótese esta que se vincula à questão ambiental, do rio Indo que secou.” 3 (Gnerre, 2010) De modo geral foi uma cultura que não suportou o tempo como muitas outras. Observe: “[...] De um modo geral, aceita-se a hipótese de que esta civilização harapiana-dravídica (bem como a protoaustralóide) teria sido, num primeiro momento, sufocada pela cultura ārya. Mas, com o passar do tempo, seus conceitos e crenças vão se infiltrando na sociedade ária indo-européia”.4 (Gnerre, 2010) Conforme o que já foi mencionado os indo-europeus chegaram as margens do rio Indo e encontram-se com um outro povo denominado drávidas. Os drávidas, por sua vez eram totalmente diferentes deste novo grupo de indivíduos; praticavam a agricultura e quando precisavam de algum outro ingrediente que não detinham entre si experimentavam trocas comerciais entre seu próprio ajuntamento. Este era basicamente o cenário apontado por alguns estudiosos da área: por um lado havia o grupo que possuía suas crenças e valores e que acabaram sendo influenciados e talvez forçados a abandonarem estes princípios. Em contrapartida achava-se os indo-europeus, um povo famoso pelas suas guerras, com novos planos, acaba persuadindo e intervindo no comportamento religioso dos drávidas. Esta ingerência vez com que deuses masculino tomasse o lugar da Grande-mãe. Veremos agora um pouco sobre está transição e algumas divindades. 3 4 GNERRE, Op. Cit., p.27. GNERRE, Op. Cit., p. 28. 247 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A transição: drávidas e indo-europeus Como já havíamos falado, os Vedas, mostram o panteão das divindades arianas e suas mitologias correspondentes. O período védico preocupava-se muito com os rituais para com os deuses. Geralmente o povo desta época se voltava muito para o rito. Por exemplo, ou seja, se uma jovem estivesse precisando alcançar um casamento iria até certo templo ou a um local consagrado para a realização de um rito com o intento de lograr este feito. O que podemos observar segundo Eliade (1992) na obra “O sagrado e o profano” é que o rito é uma ação do indivíduo para com a divindade, ou seja, pode ser uma oração, uma oferenda ou qualquer tipo de atitude perante o divino.5 É neste contexto que podemos mencionar os Veda ou vedas.6 Os Veda significa verdade ou conhecimento, é um escrito sagrado na língua sânscrita. É a literatura mais antiga do mundo, isto é, descrevem um universo mítico-ritual e a chegada dos arianos na Índia. No período da produção destes textos sagrados surge a antiga religião hindu, que está contida neste conjunto de escrituras.7 Estes textos fazem partem de uma sabedoria revelada transmitida de forma oral pelos Rishis. Os Rishis são abalizados como videntes ou profetas e foi por meio destes homens que os vedas foram escritos, isto é, estes homens foram o instrumento para que este texto sagrado fosse redigidos. Os Vedas contém a seguinte divisão: o Rig-veda (o principal livro do grupo), Sama-veda, Yajur-veda e Atharva-veda.8 Deuses do panteão védico Feito está síntese gostaríamos de falar um pouco sobre o panteão das divindades védicas. Destacaremos seis divindades principais. São ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução: Rogério Fernandes. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 6 Todas as duas formas estão corretas. A implementação do “s” é apenas uma aculturação da língua portuguesa. 7 GNERRE, Op. Cit., p. 29. 8 GNERRE, Op. Cit., p. 31-32. 5 248 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e eles: Agnis, Soma, Varuna, Indra, Vishnu e Rudra que mais tarde será conhecido como Shiva, mas comentaremos apenas alguns desses deuses. Posto isto, veremos como estes deuses eram e de certo modo ainda está presente na cultura oriental. Renomado como o deus do fogo, Agnis, estava presente em todos os rituais, sem ele era impossível ocorrer o rito. Segundo Gnerre (2010), este ser divino andava montado em um carneiro de fogo, a sua língua era de fogo e tinha uma ferramenta nas mãos. Além disso, era considerado um deus sacerdotal, ou seja, aquele que intermediava entre os deuses e os homens. Faz-nos lembrar de um texto bíblico, onde o próprio Sacerdote, descendente da tribo de Levi prestava todos os dias uma espécie de ritual em favor do povo de Israel, contudo, uma única vez no ano o sumo sacerdote entrava no lugar Santo dos Santos (uma das partes do tabernáculo móvel), um lugar sagrado, e prestava um sacrifício pelo povo e por seus próprios pecados em seguida o fogo era acesso para que assim o deus recebesse o sacrifício e não castigasse o povo pelos seus pecados. Contemple o escrito: “[...] E falou o SENHOR a Moisés, depois da morte dos dois filhos de Arão, que morreram quando se chegaram diante do SENHOR. Disse, pois, o Senhor a Moisés: Dize a Arão, teu irmão, que não entre no santuário em todo o tempo, para dentro do véu, diante do propiciatório que está sobre a arca, para que não morra; porque eu aparecerei na nuvem sobre o propiciatório. Com isto Arão entrará no santuário: com um novilho, para expiação do pecado, e um carneiro para holocausto. Vestirá ele a túnica santa de linho, e terá ceroulas de linho sobre a sua carne, e cingir-se-á com um cinto de linho, e se cobrirá com uma mitra de linho; estas são vestes santas; por isso banhará a sua carne na água, e as vestirá. E da congregação dos filhos de Israel tomará dois bodes para expiação do pecado e um carneiro para holocausto. Depois Arão oferecerá o novilho da expiação, que será para ele; e fará expiação por si e pela sua casa.”9 (Levítico Cap.: 16, Ver.: 1-6) Uma outra divindade era o soma e em concordância com Gnerre (2010), era uma bebida que estava presente nos rituais védico, é como ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 1995. 9 249 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e se está bebida proporcionasse uma espécie de estase, assim como ocorria nos rituais xâmanicos. Este ser divino com aparência feminina estava sempre amontado em uma carruagem, sobre uma flor de lótus e sendo carreado por cinco cavalos todos alinhados um ao outro. Ademais, os cinco cavalos alinhados nos traz a ideia dos cinco sentidos em pleno equilíbrio e alinhamento: visão, olfato, paladar, audição e tato. Muito embora na nossa mentalidade ocidental pensemos que uma bebida proporcione ao indivíduo uma falta de equilíbrio, na mentalidade oriental o deus soma era a bebida dos deuses e quando ser humano bebia dela alcançaria um nível maior no que tange aos rituais. Vejamos uma breve exposição sobre está divindade: “[...] O Soma é outro deus importante do Rig-Veda, a ele são dedicados 120 hinos, sendo o terceiro mais citado no panteão védico (perde para Indra e Varuna, dos quais falaremos a seguir). Como se sabe, o Soma era também a bebida sagrada dos rituais, e é muito difícil separar o Deus Soma da própria Bebida: ele era a divindade que está incorporada na bebida. Ao beber o soma, os praticantes do ritual sentiam sua própria imortalidade, tinham revelações de uma existência plena e beatífica, em comunhão com os deuses. Esse referencial da experiência divina com o soma vai nortear o caminho de buscas espirituais posteriores, mesmo para aqueles que não bebiam mais o soma.”10 (GNERRE, 2010) Um outro ser divino que merece destaque é Varuna. Varuna era um deus pertencente a primeira casta, isto é, os Brâmanes. Residia no fundo do oceano e a sua representação é sempre em cima de animais marinhos. Semelhante a um rei, o grande governante, ele é o responsável por desamarrar os nós que nos prende, além de governa todo o universo comanda a noite e o dia. Enfim, é o que coordena a virtude, a lei natural a retidão e a adequação. Contemple: “[...] Segundo ELIADE, aos sacerdotes corresponde a divindade védica Váruna, que é o Samrāj, ou rei universal. É a divindade que ocupa o lugar do par primordial Céu/Terra. Váruna faz o sol caminhar pelo dia, e a lua pela noite, é o regulador das águas e das nuvens. Com 10 GNERRE, Op. Cit., p. 39. 250 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e mil olhos, ele vê todas as coisas inclusive verdades e mentiras dos homens. É o rei do ฀ta a ordem cósmica, litúrgica e moral. Ao mesmo tempo, esta ordem universal está baseada em Váruna. Assim governa tanto o universo quanto os rituais e a vida moral humana. Por isso, Váruna é senhor dos homens, e alguns hinos mencionam os grilhões que nos prenderiam a ele. O próprio Váruna, no entanto, também instrui os homens (especificamente os sacerdotes) sobre como se libertar, através dos rituais sacrificiais. Se Váruna é o governante, o rei universal, por vezes aparece junto do Deus Mitra, o legislador benevolente, uma divindade que muitas vezes intervém a favor dos homens, também associada aos Brâmanes.”11 (ELIADE, apud, GNERRE, 2010) Em conformidade com esta assertiva foi possível identificar como este seres divino encontra-se presente nos rituais védicos. E para acessarmos a glória o ritual é importante, pois é por meio dele que os homens podem alcançar a liberdade dos laços impostos por ele. Talvez este foi um meio que o deus colocou dos indivíduos se aproximar do mesmo, entretanto, estas são apenas hipóteses que podem ser analisadas e pensadas em um outro momento. Como vimos a base da cultura védica na sua maior parte foram os rituais.12 Cada deus tinha uma função fundamental tanto para com o universo, tanto para com os indivíduos. Os homens tinham esta preocupação em ir até o deuses e praticarem os ritos corretamente. Só que estas práticas tornaram-se muito fatigante, ou seja, os homens só iam aos deuses quando precisavam e esqueciam que o sacrifício ia além da própria oferenda ofertada, por este motivo um grupo de indivíduos revoltam-se com toda esta ritualística e dão início na Índia há um novo movimento: os upanishads. Uma parte dos brâmanes se retiram daquele ambiente e começam a produzir uma outra forma de texto um pouco diferenciada dos veda. Os brâmanes como já havíamos falando anteriormente fazia parte da primeira classe da Índia, ou seja a classe dos sacerdotes. Desde modo, alguns brâmanes cansados destes tipos de rituais retiram-se para floresta e buscar algo que estava além dos rituais védicos. GNERRE, Op. Cit., p. 36 Os rituais védicos ainda estão sendo realizados na Índia, o que precisa ser analisado é o movimento dos upanishads que revolucionar alguns grupos indianos. 11 12 251 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Assim sendo, os Upanishads é um transição da cultura védica, ou seja, um desvios dos rituais sem uma verdadeira essência, muito embora eles tomasse como base os vedas. Os upanishads é um conjunto de textos considerados sagrados e com uma base de cunho filosófico que foram produzidos entre os anos de 1000 e 400 a.C., e eles são considerados um texto revelado. Neste mesmo período em que ocorre este movimento de reforma proposto pelos Upanishads, ocorre também o movimento dos brâmanes que continuam com a exegese contida no veda e não aderem a reforma dos upanishads, ou seja, diferente destes brâmanes que foram para floresta, eles, os brâmanes, continuam valorizando os rituais. Outrossim, o budismo e o jainimo são os dois movimentos que rompem completamente com os vedas, melhor dizendo, há uma discordância destes homens com as castas. Estes por sua vez buscaram uma base totalmente filosófica. Os upanishads ficaram conhecidos como os livros da floresta em virtude destes brâmanes estarem na floresta. Os seus ensinamentos traziam a ideia dos discípulos sentarem aos pés dos mestres. Mas eis que surge um questionamento: já que os upanishads rompem de certo modo com os rituais védicos do que realmente eles estavam se desviando? Enquanto os veda seguiam o Dharma, os upanishads buscavam o caminho do conhecimento. Para seguir este caminho seria necessário uma renúncia do próprio eu, do próprio ego, já que para os ocidentais o homem encontra-se preso nas garras de maya, isto é, na ilusão do mundo, e, para que o ser rompa este véu faz-se necessário o conhecimento que só ocorre quando há uma peregrinação interior e não uma peregrinação ao templo, pois neste novo movimento indiano o sacrifício seria a negação de si mesmo. O caminho do conhecimento: os upanishads O caminho para o conhecimento pregado nos upanishads e seguido pelos brâmanes buscava um conhecimento interno, isto é, o sacrifício aqui é do próprio eu como dantes já havíamos mencionado. Para o homem conseguir alcançar esta dádiva deveria seguir alguns passos. 252 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O primeiro passo a ser dado era o conhecimento de si mesmo. Embora o homem não tenha conhecimento de sua própria identidade há uma realidade inegável para os indianos que só é possível conhece-la conhecendo a si mesmo. Esta realidade é Brahman, aquele que estar para além de todos os deuses. O homem deve então ir em busca de algo cognitivo e vivencial, ou seja, deve ocorrer no ser humano uma libertação dos pensamentos dualistas e relativos para que ele vivencie o próprio Brahman. Um dos responsáveis para que o homem chegasse ao conhecimento de Brahman era o mestre. Mais quem é este Brahman? Brahman para os hindus é a mente indecifrável, é o olho por trás do olho. Aquele que acha-se presente em todos os lugares, o que conhece todas as coisas, conhece o passado, presente e futuro. E quando o homem conhece a si mesmo consegue alcançar Brahman. Um dos caminhos são as técnicas introspectivas, aquilo que existe no homem desde o princípio de sua existência, o atman, melhor dizendo, o próprio eu. Este conhecimento o faria símil a Brahman. Então o caminho seria perfeito, este é em sim o caminho do entendimento. O conhecimento deste caminho – Brahman – refletiria no próprio homem, nas águas de um rio, em uma folha que repousasse no chão, etc. Para mais, os deuses indianos é em suma uma das essências desde deus supremo, Brahman. Brahman é único. Os rituais é imprescindível para o povo indiano, mas o movimento dos Upanishads abriu caminho para o conhecimento do próprio divino, pois naquele período as liturgias não passava de mera ritualística. Quando o movimento dos Upanishads chegou na Índia revolucionou a maneira de pensar e de agir de muitos indianos que optaram morar nas florestas e andaram em buscar do domínio da própria fera interior com o objetivo principal de auferir o deus supremo. Este era um ritual não exterior, mas interior. O próprio Eliade escreveu: “[...] Pode-se dizer que, depois dos Upanixades, o pensamento religioso indiano identifica a libertação com um “despertar” ou com a tomada de consciência de uma situação que existia desde o início, mas que não chegava a realizar-se. A nesciência – que é de fato uma ignorância de si mesmo – pode ser aproximada de um “esquecimento” do verdadeiro eu (atman, purusa). A gnose (jnama, vidya), 253 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e suprimindo a ignorância ou rasgando o véu de maya, torna possível a libertação: a verdadeira “ciência” equivale a um “despertar”.13 (ELIADE, 2011) Considerações finais O nosso objetivo principal foi mostrar o quanto a cultura ocidental, especialmente a indiana, passou por uma grande mudança concernente a forma correta de oferecimento de um culto para com o divino. Avistamos que, tudo começou quando um povo denominado indo-europeus chegam nas margens do rio Indo e acabam implementando um certo colonialismo para com um outro povo já existe, os drávidas. A cultura destes últimos citados passa por uma espécie de transformação, pois eles acabam mudando sua forma de pensar e agir em virtude deste acontecimento. O ponto que marca o período védico para o período dos upanishads foi uma forma de sacrifício interior e não exterior. É este é uma questão que pode ser discutida por nós no que tange ao estudo comparado das religiões, pois, quantas formas religiosas preocupa-se apenas com o sacrifício exterior, ou seja, aquele hecatombe laborioso, que necessita ser visto pelos outros, onde só é feito quando o homem procura apenas seus próprios interesses e que, quando suas preces são atendidas o deus ou deuses é esquecido e não mais procurado. Os upanishads combateu isto! O sacrifício agora era do próprio ego, dos próprios desejos. O combate devia ser interior e consequentemente haveria uma modificação do próprio exterior. Nesta mobilização o mistério maior seria revelado para aqueles que assim o buscasse. Este mistério não era pluralista, mas carregava um significado ímpar: o conhecimento do próprio Brahman. E isto faria com que o homem compreendesse que ele próprio estava ligado a Brahman, isto é, o próprio indivíduo era uma das essências desta divindade. 13 ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas, volume II. De Gautama Buda ao triunfo do cristianimos. Tradução Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. 254 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 1995. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução: Rogério Fernandes. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas, volume II. De Gautama Buda ao triunfo do cristianismo. Tradução Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. GNERRE, Maria Lúcia Abaurre. Os arianos na Índia. In: GNERRE, Maria Lúcia Abaurre. Religiões Orientais: Uma introdução. Volume I: Tradições da Índia – Do Veda ao Yoga. ed. 1. João Pessoa: Universitária UFPB, 2010; [ Volta ao Sumário ] 255 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e eduCação inteRCultuRal Como instRumento de ComBate à intoleRânCia Religiosa Juscelio mauro de mendonça Pantoja manoel vitor Barbosa Neto Como referenciar este capítulo: PANTOJA, Juscelino Mauro de Mendonça; NETO, Manuel Vitor Barbosa. Educação intercultural como instrumento de combate à intolerância religiosa. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 256-282. Juscelio Mauro de Mendonça Pantoja1 Manoel Vitor Barbosa Neto2 Introdução Dentre os múltiplos desafios no qual a escola se depara, o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural é um deles. Por muito tempo esta foi reprimida e invisibilizada, seja nos conteúdos, seja nos materiais didáticos, ou na formação dos profissionais da educação. Pouco ou quase nada se apresentava, ou se refletia a respeito da importância de outros povos e culturas, em especial as culturas indígenas e africanas na formação da cultura brasileira. Dentro do vasto campo da diversidade cultural trazemos para o debate a questão da diversidade religiosa e intolerância, por entender que estes temas não só se fazem presentes no espaço escolar como influencia no seu cotidiano e nas ações educativas. Entendemos que a escola não está dissociado das outras esferas da sociedade, ao contrário, são complementares, portanto, a intolerância religiosa enquanto problemática evidente na atualidade não está fora dela. Entendemos ainda que a escola em quanto espaço formativo da cidadania, da pluralidade e da interculturalidade, é por excelência o lócus estratégico de onde deve emergir posturas, pensamentos e ações que tenham no reconhecimento da interculturalidade, na valorização da diversidade e no combate a intolerância religiosa suas prioridades, do mesmo modo, a escola que se omite dessas características torna-se espaço em potencial de promoção da intolerância religiosa. Entretanto, para a elaboração de estratégias pedagógicas e ações educativas que visem o reconhecimento da pluralidade e o combate Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará, membro do Grupo de Estudo de Religiões de Matriz Africana na Amazônia – GERMAA. E-mail: jusceliocol@yahoo.com.br 2 Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará, membro do Grupo de Estudo de Religiões de Matriz Africana na Amazônia – GERMAA. E-mail: neto_barbosa28@outlook.com 1 257 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e à intolerância consideramos ser necessário para a escola responder questionamentos como: O que é etnocentrismo? O que é intolerância religiosa? Quais as formas de manifestação? Que princípios pedagógicos são essenciais para um trabalho maduro, eficaz e profícuo contra a intolerância religiosa? A fim de respondermos a essas questões argumentamos que a intolerância religiosa é uma forma de expressão etnocêntrica de grupos, ou sujeitos que consideram seu modo de crer ou de não crer como a única maneira correta, enquanto as outras estão erradas, precisam ser ajustadas, ou em uma postura mais radical, precisam ser abandonadas. Nesse contexto, apresentamos cinco formas pelas quais a intolerância religiosa pode manifestar-se e a partir destas formas apresentamos e analisamos casos exemplos retirados de jornais eletrônicos para mostrar como a intolerância religiosa também se manifesta na escola. Ante esse quadro apontaremos a educação intercultural como estratégia pedagógica para a superação deste problema, uma vez que ela se pauta no reconhecimento e na valorização da diversidade cultural e no diálogo entre culturas onde estas são colocas em uma posição de horizontalidade, ou seja, na educação intercultural não há culturas privilegiadas, todas são merecedoras de respeito e são reconhecidas como importantes para o desenvolvimento do sujeito. Percebemos a educação intercultural como uma via onde a diversidade religiosa pode ser conhecida e respeitada. Na interculturalidade a intolerância religiosa e as demais formas de expressão etnocêntricas podem ser superadas por todos os atores que compõem o espaço escolar, através dela, a educação como aspecto essencial para o exercício da cidadania é possibilitada, respeitando inclusive as diretrizes constitucionais da educação, bem como o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Etnocentrismo: força motriz da intolerância religiosa Partimos do pressuposto que a intolerância religiosa é uma forma de expressão etnocêntrica3. E sobre o etnocentrismo, nos sustentamos 3 Essa elaboração conceitual encontra-se na introdução do trabalho intitulado “Extensão 258 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e na ideia proposta por Rocha (1988, p. 5) que o classifica como “uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”. Nessa perspectiva, etnocentrismo é uma postura hierarquizante diante do outro e sua etimologia já revela as informações e significados sobre: etno (cultura, valores, significados) + centro (ponto de referência, espaço de importância) + ismo (sufixo que pode indicar ideias, doutrinas, etc). O etnocentrismo pode manifestar-se de múltiplas formas, pode ser em relação aos valores, aos gostos, aos hábitos, às opções políticas, às crenças ou a todos esses elementos, de todo modo, ele é sempre uma forma de se pensar melhor que o outro, devendo este então se adequar aos seus ideais de ser, pois o etnocentrismo rejeita a diversidade. Rocha (1988, p.5) informa que no etnocentrismo pensamentos e sentimentos são afetados negativamente, inviabilizando a possibilidade de se conhecer o outro. A esse respeito, o referido autor ressalta: Como uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica temos a experiência de um choque cultural. De um lado, conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma, empresta à vida significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de repente, nos deparamos com um “outro”, o grupo do “diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, mais grave ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe. Neste interim, como apontado no inicio deste texto, ao argumentarmos que a intolerância religiosa é uma forma de expressão do etnocentrismo, entendemos que ela inviabiliza e nega a diversidade religiosa. Ela é a não aceitação do outro e de sua experiência religiosa, seja universitária e o combate à intolerância religiosa: o Grupo de Estudos de Religião de Matriz Africana na Amazônia – GERMAA/UEPA e sua atuação a partir da Lei 10.639/03”. 259 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e pela negação de seu(s) deus(es), dos seus rituais, dos seus símbolos e das suas doutrinas. É também a rejeição e não aceitação dos indivíduos não crentes. Grosso modo, a intolerância religiosa como forma de expressão etnocêntrica caracteriza-se pela postura onde “o grupo do “eu” faz, então, da sua visão a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do “outro” fica, nessa lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível” (ROCHA 1988, p. 5). Ante essa lógica, Rocha (1988, p. 5) afirma que para a desconstrução das posturas etnocêntricas se faz necessário “sabermos os mecanismos, as formas, os caminhos e razões, enfim, pelos quais tantas e tão profundas distorções se perpetuam nas emoções, pensamentos, imagens e representações que fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós”. Nesse sentido, ao sinalizarmos que a intolerância religiosa é uma forma de expressão etnocêntrica, nosso exercício é uma tentativa de compreender as ações de intolerância religiosa, partindo da premissa de que ela não se expressa de uma única forma, e nem por um único tipo de agente, ao contrário, pode expressar-se de múltiplas formas, bem como o intolerante pode ser qualquer social, desde parentes de sangue, indivíduos com os quais convivemos até de representantes da justiça4. A fim de ilustrarmos essa afirmativa apresentamos dados de denúncias de intolerância religiosa no Brasil através do Disque 1005, que mostram que de 2011 ao primeiro semestre de 2018 pessoas com os mais diversos graus de relação com as vítimas realizaram atos de intolerância religiosa. Dentro do universo de denúncias apresentadas pelo relatório, em 82 casos a mãe foi a responsável por essa violência; em 26 casos foi seu(sua) empregador(a); e ainda, em 727 casos, a pessoa responsável era vizinho(a) da vítima6. Para além dessas informações contidas no relatório há um vasto conteúdo de matérias jornalísticas que abordam a questão da intolerânAinda no artigo citado anteriormente via nota de rodapé apresentamos e analisamos casos de intolerância religiosa que partiram desde profissionais da educação, da sociedade civil organizada até de juízes no exercício da magistratura. 5 Informações a respeito do Disque 100 serão desenvolvidas no próximo tópico deste artigo. 6 Dados disponíveis em: <https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/ balanco-disque-100>. Acesso no dia 04/03/19. 4 260 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e cia religiosa, por exemplo: o que ocorreu em 2015, quando uma jovem candomblecista foi apedrejada na cabeça7; ou o caso das islâmicas que foram apedrejadas e cuspidas dias depois do ataque terrorista na França8; ou ainda o caso do “chute na santa” ocorrido em 1995 quando um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus em plena pregação chuta uma imagem de Nossa Senhora Aparecida9. Face ao exposto, considerando nosso aporte conceitual sobre intolerância religiosa como uma expressão etnocêntrica que pode se manifestar de diversas maneiras, classificamos cinco formas pelas quais intolerância religiosa pode ser manifestada/percebidas: a) Fundamentalismo Religioso: é a postura de intolerância religiosa contra todas as formas de crenças e não-crenças. Essa é a mais radical forma de intolerância, nela todas as formas de crer e não crer são depreciadas e rejeitadas e as experiências religiosas diferentes da religião predominante estão erradas e são perigosa e todos não deveriam segui-las, uma vez que são falsas e precisam ser abandonadas. Segundo Paine (2010) o fundamentalismo religioso caracteriza-se por: subjetivismo fechado; fideísmo radical, fé ou submissão a uma autoridade religiosa como fonte exclusiva ou predominante de certeza epistemológica; literalismo na interpretação de escrituras; e tendência a medidas radicais, à militância e até ao terrorismo na busca efetiva dos seus fins. b) Intolerância religiosa seletiva: essa forma se caracteriza pelo fato de que somente algumas religiões são alvos de intolerância, porque para a religião predominante “o problema não são todas as religiões, mas apenas algumas”. No A esse respeito ler a matéria: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/vitima-de-intolerancia-religiosa-menina-de-11-anos-apedrejada-na-cabeca-apos-festa-de-candomble-16456208.html>. Acessado no dia 04/03/19. 8 A esse respeito ler a matéria: <https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2015-01-25/ islamofobia-no-brasil-muculmanas-sao-agredidas-com-cuspidas-e-pedradas.html>. Acessado no dia 04/03/19. 9 A esse respeito ler a matéria: <https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/ooops/2017/09/11/pastor-chutou-imagem-da-santa-em-1995-e-causou-revolta-no-pais.htm>. Acessado no dia 04/03/19. 7 261 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e c) Brasil, as religiões que mais sofrem com essa realidade são as afrobrasileiras e as indígenas, sendo que as primeiras são alvos recorrentes de depredação de seus espaços de cultos e perseguição dos seus adeptos, enquanto que os adeptos das segundas desde o período colonial são alvos de missionamentos e conversões a uma “verdadeira fé”. Nesta forma de intolerância religiosa, tanto o discurso quanto os rituais da religião predominante são utilizados como ferramentas para justificar a perseguição, o desrespeito e a dessacralização das religiões perseguidas, por se acreditar que determinadas religiões deveriam ser abandonadas, mas não havendo esta possibilidade, seus praticantes deveriam ao menos ressignificar seu(s) deus(s), mudar suas formas de culto, reelaborar seus rituais, trocar seus símbolos e suas doutrinas, considerados pela religião predominante como danosos, ingênuos (a crença não funciona), ou charlatãs (que utiliza de má fé para enganar o ingênuo), ou que “pratica o mal” (demoníaca). Intolerância civil-religiosa: essa forma de intolerância se expressa principalmente através de valores civis como proteção dos animais, do meio-ambiente, da vigilância sanitária, da defesa da vida humana e da garantia da ordem social em que a religião predominante se utiliza desses mecanismos legais para limitar, engessar, tolher e não reconhecer o direito à Liberdade Religiosa do outro. Essa forma de intolerância religiosa tem aproximações com a anterior, pois nela perpassa a ideia que as formas de crer diferentes da predominante estão errada, são danosas, prejudicam o Estado Democrático de Direito e precisam ser ajustadas, ou até abandonadas. Ainda nessa forma, as justificativas da intolerancia estão baseadas no discurso legal, que vai desde a “violação da laicidade do Estado e da liberdade de culto10” até em nome da “proteção dos direitos dos animais”11. A esse respeito ler Nogueira (2013). Disponível em: <http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal14/Geografiasocioeconomica/Geografiacultural/07.pdf>. Acessado no dia 15/03/19. 11 A esse respeito ler Oro, Carvalho e Scuro (2017). Disponível em: <http://www.scielo.br/ pdf/rs/v37n2/0100-8587-rs-37-2-00229.pdf>. Acessado no dia 15/03/19. 10 262 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e d) e) Intolerância intrarreligiosa: essa forma de intolerância religiosa é expressa de uma pessoa para outra da mesma religião, ou da mesma matriz religiosa. Essa forma de intolerância está envolto da ideia que “eu” sou mais obediente aos interditos, sou mais conhecedor das doutrinas e da(s) divindade(s) e da correta realização dos rituais que o outro. Ou ainda que a forma do outro pensar e obedecer os interditos, o conhecimento dele sobre a(s) mesma(s) divindade(s), da(s) mesma(s)doutrina(s) e as formas de realizar os rituais está errada, ou não é a “tradicional”, a “pura”, ou está “inventando”, enfim, não é a correta. Nesse tipo de intolerância tem-se como pano de fundo o ideal de pureza e tradição e com isso outro precisa se ajustar a minha forma se quiser viver a “verdadeira fé”. Fundamentalismo da não crença contra todas as crenças: em relação à primeira, essa forma de intolerância, ao mesmo tempo em que se parecem no objetivo, diferenciam-se na justificativa, uma vez que nesta, todas as formas de crenças não são respeitadas e devem ser superadas para que se conheça uma possível “verdade absoluta”. É uma espécie de fundamentalismo não-religioso que parte da ideia de verdade absoluta muito característica do fundamentalismo religioso. Paine (2010), no estudo sobre fundamentalismo religioso e fundamentalismo ateu, indica que ambos possuem as mesmas características, mudando somente os referenciais onde a ideia de verdade absoluta recai: enquanto no primeiro fundamentalismo estaria a religião, no segundo estaria nas informações produzidas via conhecimento científico. As classificações apresentadas são em suma uma construção feita em vista de compreender a diversidade e complexidade que é a intolerância religiosa. Acreditamos que, com exceção das formas de intolerância expressas nos itens ‘a’ e ‘e’ que se pretendem totalizantes, as demais formas de intolerância podem tranquilamente perpassar um mesmo sujeito ou a mesma situação. Faz-se necessário lembrar nesse ponto do texto que entendemos o etnocentrismo como uma 263 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e postura onde está envolvida razão e emoção, sentimento e pensamento, ocasionando aversão, negação e não aceitação do outro – no caso aqui analisado – da dimensão religiosa do outro pelo fato de perceber nesta uma afronta a sua forma de ser que precisa no mínimo ser “ajustada”. Em situações mais radicais essa dimensão religiosa precisa ser completamente abandonada. Outra questão que é importante frisar ao considerarmos estas formas de intolerância religiosa é que elas se referem justamente ao modo como são externadas pelo agente/agressor a partir de seus discursos e de suas posturas ante o diferente, o não-igual, o oposto, o outro. Rocha (1988) afirma que o pensamento e o sentimento etnocêntrico estão justamente em perceber o outro a partir de sua lógica, ou percepção de existência, nesse contexto, para nós, a intolerância religiosa baseia-se na relação eu X outro; o meu grupo X o outro grupo; minha existência X a existência do outro; a minha experiência religiosa X a experiência religiosa do outro, de modo que as formas de intolerância apresentadas partem sempre da ideia que ela será manifestada. São formas de violência que tem no plano do discurso e no da agressão física, ou depredação patrimonial (principalmente no primeiro) são seus principais meios de manifestação e para nós as principais formas para decodificá-las. Para além dessas questões, a intolerância religiosa, independente da sua forma e do seu responsável, possui dupla característica: é produto e produtora de estigmas, é causa e consequência da estigmatização de sujeitos e grupos. Sobre o estigma, Goffman (1964, p. 5) esclarece: Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos. (grifo nosso) Nessa perspectiva, o ato de intolerância religiosa é a manifestação da rejeição que determinado agente tem em relação ao outro no que tange a experiência religiosa ou a ausência dela. O estigma é uma 264 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e condição negativa imposta ao outro através da noção que se tem a respeito dele e essa marca, fruto do etnocentrismo, está presente em todas as sociedades. No caso da sociedade brasileira, ao considerarmos as religiões de matriz africana e indígena, devemos lembrar que todo o processo de colonização foi marcado pela tentativa de supressão dessas religiões vistas como “demoníacas” e que precisavam ser abandonadas, pontuando inclusive, que no desenvolvimento da história do Brasil houve – e ainda há – momentos e mecanismos de perseguição para extirpar estas práticas da sociedade. No caso das religiões de matriz africana que se desenvolveram na urbe houve inúmeras tentativas de controle de suas práticas mesmo independente do regime político brasileiro, como no período republicano, por exemplo, onde se desenvolveu uma série de leis – chamadas de “códigos de postura” – em que parte de seu conteúdo proibia as manifestações religiosas de matriz afro pela “proibição de barulhos e batuques”, bem como a proibição da cura através do enquadramento dessas práticas religiosas ao “charlatanismo”, “prática ilegal da medicina”, etc., como mostra. Essa segunda proibição também afetou sobremaneira as práticas religiosas de matriz indígenas, a pajelança, faziam-se presente nas urbes. Outro elemento que diz respeito exclusivamente às práticas indígenas, e que permanece até os dias atuais, são as ações chamadas missionamentos, em que as religiões cristãs, em especial a católica e as evangélicas adentram territórios indígenas para convertê-los demonstrando, portanto, atitudes dos tempos coloniais presentes em pleno sec. XXI. Shilling e Myashiro (2008, p. 250) ao tratarem sobre o estigma – ainda que em outro contexto – no caso estudado, a parentes de presidiários e ex presidiários, inferem que é preciso atentar para o contexto e para a linguagem que permeia a relação dos indivíduos nos diferentes grupo, uma vez que as autoras, o que designará a condição de estigmatizado ou não, é “o contexto sociocultural e de relações em que essa informação é fornecida ou visível”. Nesse sentido, a estigmatização das religiões e/ou dos sujeitos religiosos, bem como de sujeitos não crentes precisam ser compreendidas considerando a história das relações sociais que possibilitaram tal imposição as esses sujeitos. A forma como a intolerância religiosa possa a vir se manifestar é múltipla: piadas, agressões físicas, destruição de espaços ou símbolos 265 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e sagrados, a profanação, ou em casos extremos, a morte. Seus promotores também são diversos: pode ser a mãe, o irmão, o vizinho, o líder religioso, agentes públicos, ou representantes do Estado. No contexto deste trabalho, apontamos como lócus da intolerância religiosa a escola e como agentes promotores desta ação profissionais e outros sujeitos que fazem parte desse universo. Sem sombra de dúvidas é muito preocupante para nós apontarmos a escola como lócus dessa violência, uma vez que este espaço e seus sujeitos deveriam ser incentivadores ou beneficiários de processos educativos que viabilizem a formação profissional e cidadã ao invés de tornarem-se promotores da intolerância religiosa como apresentaremos a partir de dados e notícias casos que atestam a presença desse tipo de violência. Intolerância religiosa nas escolas No âmbito legal, a educação no Brasil, é um dever do Estado (CF 1988, art. 205); tendo como um de seus princípios o desenvolvimento das pessoas para a prática cidadã (CF 1988, art. 205); assegurada como uma das garantias fundamentais que não pode privar ninguém desse direito por causa de sua opção religiosa (CF 1988, art. 5, inciso VIII). No entanto, esses princípios legais que deveriam nortear todo processo educativo escolar têm se deparado com a intolerância religiosa, ainda que esta não seja um problema restrito deste universo. A escola é somente mais um dos múltiplos espaços onde ocorrem essa e outras problemáticas. A intolerância religiosa na escola não é um tema novo em relação a produção científica, diversos pesquisadores em algum momento ou contexto já se debruçaram sobre esta questão: Silva Júnior e Santos (2016), por exemplo, no trabalho intitulado “Por mim não existiria, mas eu respeito”: representações sociais do Candomblé entre alunos de uma escola pública do Recife”, realizaram uma pesquisa de caráter qualitativo com 80 alunos do 3º ano do ensino médio para saber as percepções dos mesmos a respeito do Candomblé. Os autores, dentre os discursos por eles encontrados estão os que associam o Candomblé ao “mal, a 266 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e tragédia, uma mentira, uma coisa ruim, a morte, a falsidade, o perigo, a maldade, o instinto ruim, etc.” (SILVA JÚNIOR e SANTOS 2016). Em outro contexto, Albuquerque (2015) apresenta a pesquisa: “Narrativas orais sobre religiosidade e saberes escolares no município de Colares (PA)” onde entrevistou professoras da rede municipal de ensino para saber como as mesmas abordam em sala de aula temáticas relacionadas a religião, em especial a pajelança. Analisando as entrevistas, a pesquisadora percebeu que os professores não gostam e se negam a abordar temáticas relacionada as religiões de matriz africana e indígena, justificando que “causa conflito na sala”, ou porque “é católica” e por isso desconhecem a temática. As razões apresentadas dificultam o estudo da religião característica do local (pajelança), herança da cultura indígena presente na ilha em detrimento das religiões cristãs que lá se instalaram. Os trabalhos supracitados mostram, considerando suas especificidades, mostram como a diversidade religiosa ainda é alvo de controvérsias no ambiente escolar. Não queremos com esses exemplos sugerir que esse é o panorama brasileiro, todavia, indicar que há produções acadêmicas que têm se debruçado sobre a temática, convergindo e reverberando que as estatísticas tem apontado: a escola não está isenta de ser palco de casos e atos de intolerância religiosa. Entretanto, não devemos olhar e acolher essa realidade com naturalidade, ao contrário, frente a mesma, o incômodo, o mal estar, a insatisfação e o desejo de superação dessa condição devem ser os sentimentos norteadores e imperativos de todos os profissionais da educação, bem como de toda a comunidade escolar, uma vez que a educação, partindo de um ponto de vista pragmático, suas atribuições devem partir sempre do pressuposto da efetivação do que está preconizado na Constituição Federal Brasileira, bem como pela LDB 9.394/96 que entende que a educação deve estar pautada dentre outras coisas pela liberdade e solidariedade (art. 2) e pelo apreço à tolerância (art. 2 inciso IV) e ainda o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA que assegura às crianças e adolescentes todos os direitos fundamentais (art. 3), uma a educação que prima pelo desenvolvimento formativo e cidadão (art. 53), bem pela proteção dos seus valores culturais, artísticos e históricos (art. 56). 267 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Diante desse quadro legal, os processos educativos precisam garantir o respeito e valorização da diversidade religiosa, uma vez que faz parte da vida dos educandos, sejam eles adeptos ou não de uma religião. Partindo dessa premissa, se faz importante desenvolver ações efetivas para o combate a intolerância religiosa na escola. Para isso, deve-se primeiramente conhecer a realidade educacional brasileira diante dessa problemática e nesse contexto, as informações disponibilizadas pelo governo federal através do disque denúncia de violações de direitos humanos torna-se uma ferramenta válida como ponto de partida investigativo que auxilie na elaboração consistente e eficiente destas ações. No ano de 2003, como mecanismo de monitoramento de ações de violação de direitos humanos, o Governo Federal, por meio da Secretaria de Direitos Humanos passou a acompanhar de forma mais próxima e efetiva denúncias relacionadas à violação de direitos12 a partir do chamado Disque 100, um canal de denúncia criado para estreitar e potencializar um espaço de escuta e atenção às vitimas. Porém, foi somente a partir do ano de 2011 que esse espaço passou a acolher, monitorar e divulgar relatórios sobre violações da liberdade de crença, bem como acompanhar os casos de intolerância religiosa, de modo que de 2011 até o primeiro semestre de 2018 consta na base de dados do Governo Federal o registro de 1.70613 casos de intolerância religiosa denunciados nesta plataforma. Entretanto, considerando que nem sempre a vítima de intolerância religiosa realiza a denúncia através desse canal e que há casos em que aqueles que sofreram esse tipo de violência optam em manter-se em silêncio é pertinente considerar que o quadro de violações de direitos e de intolerância religiosa é bem mais profundo e grave do que aparenta. E, ao olharmos de forma atenta aos dados do Disque 100 é possível apontar as escolas como lócus de reprodução desse tipo de violação de direitos pelo fato de se perceber que naquele mesmo período, 109 casos denunciados davam conta destas como o local em que essa viola- 12 Saber mais em: < http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-3.html>. Acesso no dia 05/03/19. 13 Dados de denúncias feitas através do Disque 100, disponível em: <https://www.mdh. gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/balanco-disque-100>. Acesso no dia 04/03/19. 268 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e ção ocorreu e mais ainda, no que se refere a relação “vítima x agressor” os diretores de escola foram identificados em 42 denúncias como os agentes de promoção da intolerância religiosa, seguidas de 72 denúncias relacionando os professores como autores desse tipo de crime, o que totalizou 114 denuncias apontando os profissionais da educação como agentes promotores dessa forma de violação de direitos. A princípio, podemos até pensar em erro na amostra, uma vez que são 109 casos denunciados na escola para 114 denúncias de diretores e professores como autores de intolerância, todavia, quando partimos do princípio de que no caso de intolerância religiosa nem sempre é fácil para a vítima conseguir dar tantos detalhes sobre essa violação, este fato torna-se pequeno ante o cenário sem deixar de evidenciar as nuances que envolve a questão – não sendo interesse deste trabalho, cobrar ou dar sugestão para o aperfeiçoamento da catalogação das denuncias de intolerância -, de que a escola precisa direcionar atividades que visem o combate e a superação desta problemática. Destarte, considerando esse quadro de intolerância religiosa no ambiente escolar, realizamos uma pesquisa em sites de notícias que publicaram matérias sobre casos concretos que envolviam essa temática. Essa ação ocorreu nos dias 5 e 6 de março de 2019, sendo possível encontrar cinco notícias entre os anos de 2014 e 201714 os quais descreveremos a seguir: A primeira notícia encontrada foi publicada no site odia.ig15 no dia 02/09/14 com a chamada “Aluno barrado por usar guias de candomblé muda de escola”. Na matéria é relatado o fato de um aluno, na época com 12 anos, ter sido vítima de preconceito depois que se converteu ao Candomblé, tendo sido durante um mês impedido pela diretora de adentrar e frequentar a escola publica. Ressaltamos os casos apresentados aqui foram reportado também por outros jornais eletrônicos, no entanto, escolhemos para apresentar nesse artigo as notícias que mais detalhavam em seu conteúdo a intolerância religiosa sofrida, pois essas notícias serviram de base para fazer a correlação entre a ação de intolerância com a forma de intolerância religiosa que apresentamos no tópico anterior. 15 Link da notícia: <https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2014-09-02/ aluno-barrado-por-usar-guias-de-candomble-muda-de-escola.html>. 14 269 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A segunda notícia encontrada foi publicada no dia 12/02/15 ainda no site odia.ig16 e dava conta do caso de uma aluna de 11 anos que foi proibida de assistir a aula de uma professora pelo fato de estar usando um contra-egum17 no braço. Segundo relata a matéria, a professora justificou sua postura argumentando que aquele elemento utilizado pela aluna não fazia parte do uniforme da instituição e por isso a mesma não poderia permanecer em sala de aula. O terceiro caso de intolerância religiosa foi noticiado em uma matéria publicada pelo site extra.globo18 no dia 30/09/15 com a chamada “Estudante agredida por intolerância religiosa dentro de escola não quer voltar ao colégio” e relatava o caso de uma aluna de 14 anos que foi agredida por uma colega de turma em uma escola pública de Curitiba-PR, um dia depois de ter publicado em sua rede social uma foto que evidenciava a sua adesão religiosa. O quarto caso foi noticiado no dia 23/11/2016 no diarioonline19 em matéria intitulada “Diretora proíbe tema de religião de alunos” e trata de um caso ocorrido no Estado do Pará, no município de Ananindeua, região metropolitana de Belém. Uma diretora de uma escola privada proibiu um grupo de alunos de apresentar um trabalho que falaria sobre uma divindade afrorreligiosa, a Pomba-Gira. Segundo a notícia, a diretora da escola justificou a proibição da atividade por a sua escola ser de “orientação cristã”. Ao ser questionada pela reportagem argumentou sua proibição dizendo que: “os pais reclamam da Umbanda” e que “ouvia comentários que a entidade traz problemas para as pessoas ligadas a ela”. O quinto caso foi encontrado também no site extra.globo20 com a notícia publicada no dia 22/08/17 intitulada “Jovem é vítima de intolerância religiosa dentro de escola em São Gonçalo”. Na publicação, a 16 Link da notícia: <http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-02-11/intolerancia-religiosa-afasta-professora-de-escola-na-praca-seca-na-zona-oeste.html> 17 Bracelete de proteção espiritual utilizado por afrorreligiosos. 18 Link da notícia: < https://extra.globo.com/noticias/brasil/estudante-agredida-por-intolerancia-religiosa-dentro-de-escola-nao-quer-voltar-ao-colegio-17650415. html#ixzz3pjJlizYv> 19 Link da notícia: <http://www.diarioonline.com.br/noticias/para/noticia-386545-diretora-proibe-tema-de-religiao-de-alunos.html>. 20 Link da notícia: < https://extra.globo.com/casos-de-policia/jovem-vitima-de-intolerancia-religiosa-dentro-de-escola-em-sao-goncalo-21734126.html> 270 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e matéria relata o caso de uma jovem de 15 anos, aluna de uma escola pública do Rio de Janeiro que foi ofendida por parte de seus colegas de sala por causa de sua adesão religiosa. Ao buscar se defender dos ataques e ofensas dos colegas de turma, a aluna acabou sendo expulsa da sala de aula pela professora. Buscando relacionar os casos noticiados com as formas de intolerância religiosa apresentadas no tópico anterior, percebemos que tanto o primeiro quanto o segundo caso expressam claramente – e assim podem ser entendidos – como uma ação de intolerância civil-religiosa pelo fato de que tanto a diretora quanto a professora justificaram seus atos intolerantes apontando que as guias (primeiro caso) e o contra-egum (segundo caso) eram elementos que não faziam parte do uniforme escolar. As profissionais em questão usaram o discurso da guarda da ordem e do respeito à regra como elemento justificador tanto para a proibição da entrada do aluno, quanto para a expulsão da aluna da sala de aula. Faz-se necessário ressaltar então que quer as guias, quer o contra-egum, não são simples adereços estéticos como um brinco, uma tornozeleira, uma pulseira, um anel, um batom, etc., são elementos fazem parte dos ritos iniciáticos e litúrgicos das religiões afrobrasileiras e que não foram respeitados tanto pela diretora quanto pela professora. O terceiro, quarto e quinto caso expressam de forma contundente a intolerância religiosa seletiva, ação em que uma religião é tomada como prática que deve ser abandonada por ser entendida como promotora do mal, assim como aquele que a pratica, e por essa motivação deve ser combatida, rechaçada. Esta ideia foi muito bem expressada no terceiro caso noticiado onde a aluna que agrediu fisicamente a vítima justificou que sua intolerância religiosa foi motivada pelo fato de não querer nem sentar e nem ficar perto de sua colega porque ela “era da macumba”. No quarto caso, onde a diretora dentre suas justificativas informa que a proibição da realização do trabalho escolar sobre a Pomba-Gira, divindade afrobrasileira, fora motiva pelo fato de ter ouvido comentários do tipo: “ ela trás diversos problemas”, mesmo tendo reconhecido não tem conhecimento sobre a religião na qual esta divindade é cultuada. E ainda no quinto caso, onde a jovem, vítima de intolerância relatou que teve que ouvir muitos comentários, insultos e ameaças, dentre estas, a sentença: “macumbeiro tem que morrer”. 271 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Os casos apresentados são muito elucidativos na compreensão da intolerância religiosa como forma de expressão etnocêntrica, apontada por ROCHA (1988, p. 5) quando argumenta que o etnocentrismo “no plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.”. É válido indicar que no caso de atos de intolerância religiosa, seja ela qual for e de quem parta, seu combate deve partir do pressuposto de que ela enquanto expressão do etnocentrismo torna o sujeito míope ante a diferença, acabando o mesmo por criar uma relação de hierarquia onde o outro é subjugado se não abandonar seus referenciais para acolher os referenciais do seu agressor. Assim sendo, consideramos a intolerância religiosa como uma rejeição a dimensão religiosa do outro, em que para o(a) intolerante religioso(a), o que é diferente precisa se adequar e se isso não ocorrer, o sujeito intolerado torna-se vítima de agressões físicas, verbais, ou sanções travestida de legalidade, como no caso dos alunos que foram impedidos de entrar na escola. De certo, a intolerância religiosa como expressão etnocêntrica, tem no seu cerne o desconhecimento e a não aceitação do outro(a) e de tudo o que se refere a ele, também sua dimensão religiosa. Os casos apresentados ilustram bem as faces da intolerância religiosa nas escolas, sabemos que tanto o numero de casos, quanto o de notícias sobre, deve ser bem maior do que os que apontamos, porém, como nossa intenção com estas informações é provocar a percepção de que podem ser diversos os atores que no universo escolar tornam-se promotores da intolerância religiosa, esses números já nos auxiliam. Nos casos que apresentamos, alunos, professores e diretores foram os executores desse tipo de violação de direito, demonstrando não somente necessárias e urgentes ações e intervenções educacionais, mais que isso, opções pedagógicas claras, seguras e inspiradores de combate à intolerância e que envolvam todos os componentes da comunidade escolar, uma vez que a escola, sem dúvida, pelas suas atribuições é um espaço por excelência para a superação desta problemática. Face ao exposto, concluímos que se a escola se omite na valorização da diversidade religiosa e no combate a intolerância toda a comunidade escolar é vítima e/ou agressora em potencial de atos de 272 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e intolerância religiosa. Em contrapartida, acreditamos que a educação intercultural é uma postura pedagógica que possibilita o respeito à diversidade e o combate a qualquer postura intolerante, especialmente as que se referem ao fenômeno religioso. A educação intercultural como instrumento de combate à intolerância religiosa Em linhas gerais, a religiosidade ou a experiência religiosa é compreendida como uma dimensão do ser, cujo cultivo e valorização são necessários como forma de realização da pessoa humana, convocando então, a necessidade de ser olhada como parte dos pressupostos e das propostas educativas, uma vez que a educação é vista como um dos processos para o desenvolvimento humano. Ao se considerar a perspectiva da religiosidade se torna impossível falar do Brasil sem lançar mão da pluralidade do seu campo religioso, com suas manifestações, crenças e ritos. Todavia, quer a questão da diversidade e quer a da liberdade para ser praticante de determinada matriz ou para assumir formas de práticas ou cultos em determinadas religiões, ainda são temas de discussão que transpassam o espaço escolar e tomam tempo, caminhos e interpretações diversas no espaço jurídico brasileiro, apesar de a valorização da dignidade humana e da diversidade religiosa estar assegurada no artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos como direito fundamental. Este artigo preconiza que Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. (Art. 18. Declaração Universal dos Direitos Humanos. ONU, 1948). Apesar ainda, de Constituição Brasileira de 1988, no seu artigo 5º, declarar inviolável a liberdade de consciência e de crença e livre o exercício da adesão religiosa, uma vez que o Brasil é constituído por um 273 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e mosaico religioso na qual se expressa a diversidade de fé e de ser consenso que desde sua formação, caracterizou-se antagonicamente num processo que envolveu as culturas européia e indígena; européia e africana, africana e indígena, (FREYRE, 2004, p.116). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira 8.069/90 é uma das primeiras a no seu Título II, inciso IV, art. 3º, explanar a ação educativa baseada no “respeito à liberdade e apreço à tolerância”, fazendo a educação escolar buscar se entender e se compreender como um espaço sociocultural e institucional responsável pelo trato pedagógico do conhecimento e da cultura, se inserindo aqui os aspectos religiosos. Já o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007, p. 25) buscou de forma contumaz a formação do sujeito de direitos nas dimensões de valores, atitudes e práticas sociais para “exercitar o respeito, a tolerância, a promoção e a valorização das diversidades [...] e a solidariedade entre os povos e nações”. Entretanto, conforme apresentamos nos tópicos anteriores – sinalizando inclusive, com dados estatísticos e casos noticiados – nos parece que o espaço escolar nos últimos tempos tem se tornado campo minado para praticas e ações de intolerância religiosa, despercebidas pelo fato de encontrarem-se mascaradas e serem vistas somente no momento em que se incitam debates ou outras ações sobre o assunto, a desvelar o preconceito e a falta de conhecimento sobre as várias crenças religiosas e tornando notório que esta também se manifesta no cotidiano escolar, uma vez que “o preconceito faz parte do nosso comportamento cotidiano [...] e a sala de aula não escapa disso” (ITANI 1998, p.119). Para Milani (2013, p. 18615), no espaço escolar, [...] defrontamo-nos com várias situações que deixam transparecer a resistência ao diferente. A questão religiosa aparece não apenas como pano de fundo para grandes guerras e inúmeros conflitos sociais, mas também exerce intervenção sobre o comportamento social das massas, com estreita relação com nossa vida familiar, escolar, social e até mesmo política. Assim sendo, faz-se necessário desenvolver na escola ações que envolvam a comunidade escolar no combate a intolerância religiosa, principalmente a partir de práticas pedagógicas que oportunize o 274 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e debate e a reflexão sobre a diversidade cultural e religiosa e estimule a compreensão e o entendimento da escola enquanto espaço da interculturalidade, a fim de se construir e programar processos educativos que promovam o respeito às diferenças étnicas, raciais, culturais, linguísticas, de gênero, etc. e se possibilitar a formação de cidadãos conscientizados de seu papel na sociedade sedimentada numa democracia intercultural e altera. Deveria ser um princípio norteador elaborar propostas e práticas alicerçadas numa pedagogia difusora não somente das liberdades individuais e coletivas dos indivíduos, mas também das identidades e das diversidades culturais que considera a perspectiva interdisciplinar, facilita o estreitamento das relações, oportuniza convívio com a diferença e gera novas formas de ler e compreender o mundo. Ante esse cenário, apontamos a educação intercultural como um campo conceitual amplo para se entender as diversidades culturais e a interação entre os sujeitos. Fleuri e Souza (2003, p. 73) a definem como a possibilidade do pensar e do olhar de forma diferenciada, sem exclusão e nem preconceitos. Para eles, “a Educação Intercultural, não sendo uma disciplina, coloca-se como uma outra modalidade de pensar, propor, produzir e dialogar com as relações de aprendizagem, contrapondo-se àquela tradicionalmente polarizada, homogeneizante e universalizante”. A educação intercultural apresenta-se ainda, como um espaço propício para favorecer e possibilitar práticas e ações pautadas na promoção do encontro entre culturas e do diálogo entre saberes, onde a escola passa a ser concebida como espaço democrático de aprendizagens e que segundo Candau (2012, p. 242), “aponta à construção de sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da democracia e sejam capazes de construir relações novas, verdadeiramente igualitárias entre os diferentes grupos socioculturais”. Para esta autora, a interculturalidade “fortalece a construção de identidades dinâmicas, abertas e plurais, [...] estimula os processos de construção da autonomia num horizonte de emancipação social, de construção de sociedades onde sejam possíveis relações igualitárias” (CANDAU, 2012, p. 245). Assim sendo, respeitar a diversidade, incentivar a comunicação entre os grupos em posição de igualdade e promover o intercâmbio de conhecimentos, saberes e práticas culturais são pressupostos da 275 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e educação intercultural, que em sua essência objetiva “promover uma educação para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais [...] e favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente incluídas” (CANDAU, 2008, p.23). Na articulação entre identidade e diferença – faces da mesma moeda – estampadas na construção das relações de pertencimento e de presença do sujeito de direitos com lugar definido nos espaços de convivência humana, a escola se demarca como um destes e a compreensão do que significaria ações interculturais frente a valorização das diferenças nesta, é de que elas ensejam tanto processos educativos com vista ao reconhecimento da pluralidade cultural em busca de uma sociedade baseada no respeito às diferenças, quanto à valorização da mesma enquanto espaço privilegiado na construção da identidade, conforme indica o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007, p. 31) quando aponta: Nas sociedades contemporâneas, a escola é local de estruturação de concepções de mundo e de consciência social, de circulação e de consolidação de valores, de promoção da diversidade cultural, da formação para a cidadania, de constituição de sujeitos sociais e de desenvolvimento de práticas pedagógicas. Nesse sentido, o PNEDH (2007) assegura que uma educação intercultural pressupõe “reconhecimento da pluralidade e da alteridade, condições básicas da liberdade para o exercício da crítica, da criatividade, do debate de ideias e para o reconhecimento, respeito, promoção e valorização da diversidade”. Entretanto, para que esse processo ocorra e a escola possa de fato contribuir para a educação intercultural é preciso superar desafios estruturais, ao ponto que garantir igualdade de oportunidades, participação e autonomia aos membros da comunidade escolar, bem como promover situações que possibilite o reconhecimento entre os diferentes e a desconstrução de visões e atitudes que colocam uns em situações de melhores, verdadeiros, autênticos e válidos, em detrimento de outros. Outro desafio é efetivar e promover processos sistemáticos de interação com os “outros”, sem caricaturas, nem estereótipos, tornando-os 276 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e capazes de analisar sentimentos e impressões e a partir de então, alcançar o verdadeiro reconhecimento mútuo. Candau (2008, p. 31-32) assevera que para que de fato ocorram processos educativos interculturais “é necessário ultrapassar uma visão romântica do diálogo intercultural e enfrentar os conflitos e desafios que supõe”. Segundo ela, “situações de discriminação e preconceito estão com frequência presentes no cotidiano escolar e muitas vezes são ignoradas, encaradas como brincadeiras”, assim, é importante não negá-las, mas reconhecê-las e trabalhá-las tanto no diálogo interpessoal como em momentos de reflexão coletiva de fatos e situações que se manifestem no cotidiano escolar. No contexto escolar o reconhecimento do outro é uma necessidade humana, uma vez que o ser humano só existe através da vida social e, numa sociedade que apresenta em sua constituição identidades plurais, baseadas na diversidade de etnias, gêneros, classes sociais, a não discriminação se assenta na igualdade e nesse sentido, os educadores assumem papel importante, como “grandes artífices, queira ou não, da construção dos currículos que se materializam nas escolas e nas salas de aula” (MOREIRA e CANDAU, 2008, p.19), assumem papel primordial no desenvolvimento de processos educativos que valorizem o reconhecimento da diferença e do direito à diferença, das relações dialógicas, da integração e do respeito e aceitação entre os sujeitos. Assim, é primordial uma proposta educacional de matrizes culturais variadas, que possibilite o processo de valorização dos saberes. Também é primordial uma escola que assegure a igualdade e respeite as diferenças individuais e coletivas e que se permita entender e até deliberar sobre os problemas gerados pela heterogeneidade cultural, política, religiosa, étnica, racial, comportamental, econômica, já que, como dissemos o reconhecimento pelos outros é uma necessidade humana e um direito garantido. A interculturalidade, portanto, mostra-se essencial como uma forma de educação para que toda a comunidade escolar foque no propósito da diversidade e não permita se tratar da questão em uma disciplina isolada, mas problematiza-la e explica-la através de estratégias didático-metodológicas e de ações educativas diversificadas e articuladas em diferentes etapas e níveis de aprofundamento trazendo um novo olhar coletivo sobre a diversidade étnica e cultural. 277 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A Educação intercultural mostra-se imprescindível a toda comunidade escolar, objetivando a compreensão e o entendimento de que todos são ativos na gestão da escola. Ela é elemento importante para a construção de saberes que tornarão os alunos mais críticos e capazes de exercer sua cidadania de forma plena, compreendendo as circunstâncias globais que afetam sua vida cotidiana, de modo a conhecer e internalizar expectativas e comportamentos estabelecidos por valores, regras e normas que se dão fundamentalmente por meio de todas as instituições uma vez que a educação não acontece somente no espaço escolar, entretanto, é fundamental para a formação da cidadania. Considerações finais Como afirmado inicialmente, a intolerância religiosa é uma das formas de expressão etnocêntrica que faz seu promotor considerar seu modo de ser, pensar, agir, crer, etc., como o ideal, o correto, enfim, o mais coerente de se viver, enquanto os demais precisam ser ajustados ou mesmo extintos. No etnocentrismo o diálogo, a compreensão e o respeito à diversidade são inviáveis. O etnocentrismo produz e perpetua estigmas, marcas sociais negativas, podendo ser associadas a pessoas, grupos, religiões, etc. Essa marca imposta ao outro gera danos tanto para sua existência quanto para sua convivência em sociedade. Por isso, inferimos que estigma é um desdobramento do etnocentrismo, uma vez que imputa ao outro uma condição de inferioridade, de marginalização de exclusão e de não reconhecimento de sua dignidade. Esse entendimento aqui exposto, ajuda na compreensão do que seja a intolerância religiosa, uma vez que ela baseia-se no etnocentrismo e também é promotora de estigma e a título de exemplo podemos lembrar os corriqueiros discursos que demonizam as religiões afrobrasileiras, ou mesmo os jargões do tipo “só Jesus salva”; “Jesus quer te libertar”; “abandona o inimigo”; “deixa esse mundo”; “isso é coisa do satanás”, que mostra que a intolerância religiosa não é uma problemática recente e nem está reduzida a um único local, ou que se resume a um 278 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e único tipo de ato, uma vez que associar palavras pejorativas a outras religiões é uma ação de intolerância, tanto quanto jogar uma pedra da cabeça de outra pessoa porque ela é de uma religião diferente. Com o intuito de avançarmos no debate apresentamos uma proposta de classificação das formas de intolerância religiosa para melhor compreender os diversos mecanismos utilizados para sua manifestação. As formas apresentadas neste trabalho não estão finalizadas, ao contrário, sua exposição parte da necessidade de avançarmos no debate sobre esta questão e sua publicidade possa promover o aprofundamento e o aperfeiçoamento através das críticas advindas sobre. Por fim, ao apresentamos dados oficiais e notícias jornalísticas que mostram como a escola tem sido palco para ações de intolerância religiosa através de diversos atores, desde alunos até diretores, sinalizamos e provocamos a necessidade de se pensar em mecanismos de superação dessa realidade, e nesse sentido, apontamos que a educação intercultural é um mecanismo para esse enfrentamento, pois a partir dela cumprem-se os ditames constitucionais e legais atribuídos a educação brasileira, bem como, se possibilita a reconstrução das relações onde a diversidade cultural e religiosa é defendida e valorizada. Pela Educação Intercultural é possível construir saberes e mentalidades em que a hierarquia de culturas e sujeitos é abandonada e a horizontalidade torna-se o norte dos processos educativos. A interculturalidade possibilita o reconhecimento da diversidade e do diálogo, uma vez que nela a ideia de superioridade de saberes é compreendida como uma ação que gera preconceitos, intolerâncias e outras formas de violência e de negação de direitos, assim como torna incompleta a formação das cidadãs e cidadãos conforme a constituição brasileira. Ressaltamos que o combate a intolerância religiosa não é uma demanda que se restringe aos professores da disciplina Ensino Religioso, mas deve abarcar todo o processo educativo escolar e envolver todos os que cotidianamente transitam ou trabalham no espaço escolar, desde o(a) agente de portaria, as pessoas responsáveis pela gestão da escola, os educadores, os demais profissionais, até os alunos e alunas. Todos esses sujeitos têm parcela de responsabilidade para a superação desta problemática. Nesse sentido, a escola, deve desenvolver metodologias participativas e coletivas para a transformação e superação da 279 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e discriminação, da inferiorização e da desigualdade das identidades. Na escola, a interculturalidade dá a devida percepção e importância a todos e, segundo Costa e Guilherme (2013), especialmente às questões étnicas e de modo particularmente significativo as relacionadas as diversidades negras e indígena. 280 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa. Narrativas orais sobre religiosidade e saberes escolares no município de Colares (PA). Revista História Oral, v. 18, p. 179-206, 2015. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicaocompilado. htm>. 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[ Volta ao Sumário ] 282 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e eduCação populaR e inteRCultuRalidade: desafios e possibilidades nas intersecções da prática educativa Adriel Rodrigues do Nascimento Elisangela maria da Silva Como referenciar este capítulo: NASCIMENTO, Adriel Rodrigues; SILVA, Elisangela Maria da. Educação Popular e Interculturalidade: desafios e possibilidades nas intersecções da prática educativa. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 283-298. Adriel Rodrigues do Nascimento1 Elisangela Maria da Silva2 Introdução Ultimamente, vivenciamos a intensificação da onda ideológica ultradireitista numa escala global; no Brasil, este fenômeno evidenciou-se nos resultados das eleições de 2018 favorecendo o aprofundamento de retrocessos, refletidos nas sutis e avassaladoras desigualdades econômicas e simbólicas. Nesse sentido o elemento da padronização hegemônica sociocultural, torna-se um mecanismo de classificação e hierarquização segundo os interesses do capital internacional. Nesse interim, as notícias passam por um processo de transição entre os grandes meios de comunicação e as redes sociais, favorecendo, tanto a democratização das informações, quanto a veiculação irresponsável das fake News; atualmente esta possibilidade de manipulação ideológica tem ocorrido mais evidentemente através da campanha bolsonarista articulada aos setores neoconservadores que operam na manutenção do status hegemônico dominante. Atentos/as a esta realidade, o Centro de Educação Popular Assunção – CEPA, apresenta no conjunto de suas atividades, práticas educativas para a conscientização intercultural, desenvolvidas nas suas oficinas e projetos pedagógicos. Iniciaremos o nosso diálogo a partir da experiência vivenciada na aula passeio numa antiga senzala, e num terreiro de matriz africana, intencionando motivar a percepção dos/as Pedagogo, Educador Popular e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea – PPGEduc pela Universidade Federal de Pernambuco – Campus Acadêmico do Agreste, atua no acompanhamento de projetos pedagógicos no Centro de Educação Popular Assunção – CEPA, na cidade de Caruaru – PE. Curriculo lattes disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8754504T8. E-mail:adrielrodrigues.89@outlook.com 2 Possui graduação em Psicologia pela Faculdade do Vale do Ipojuca- FAVIP, atua como psicóloga social no Centro de Educação Popular Assunção – CEPA, na cidade de CaruaruPE. E-mail:silva.elisangelamaria@gmail.com 1 284 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e educandos/as sobre a educação intercultural e suas divergências com a ideologia neoconservadora, principal fundamento das violências físicas e simbólicas. O CEPA, está situado numa área periférica da cidade de Caruaru no agreste pernambucano, enquanto espaço educativo é reconhecido por aliar perspectivas da Educação Popular no conjunto de suas ações, e enquanto práxis pedagógica compreende a relação dialética entre as diferentes concepções que se convergem nos fazeres da prática educativa. As atividades desenvolvidas pelo CEPA têm produzido significativos impactos socioculturais, comunitários e cidadãos na vida dos/as seus/ suas participantes, conforme constatações a partir de observações e de reuniões com educadores/as, educandos/as, pais e/ou responsáveis e membros da comunidade. Nestas iniciativas, situam-se as oficinas educativas que envolve atividades de teatro, dança, capoeira, audiovisual, e Maracatu através de ações de preservação e valorização da cultura popular, como da promoção do desenvolvimento humano dos/as participantes, mediante a aquisição de novas condutas de comunicação e expressões individuais (desinibição, ousadia, senso crítico, enfrentamento de situações adversas, criatividade, transformação da realidade e outras). Nesta acepção em que os conceitos dialogam teoricamente, a Educação Popular, propõe ampliar a sua discussão a partir da sua refundamentação conceitual que agrega outras (re)interpretações acerca dos fenômenos sociais. A abordagem intercultural interseccionada na Educação Popular ocorre quando a questão econômica está condicionada para além dela mesma, a título de ilustração, geralmente, grande parte das funções de trabalho manual, estão direcionadas a população negra, tal como as funções sociais são determinadas e se desdobram na questão de gênero entre “tarefas para homem” e “ tarefas para mulheres”. Nessa perspectiva as desigualdades econômicas não explicam todo o fenômeno, mas não deixa de contribuir neste aspecto para se obter uma compreensão mais ampla da realidade. Neste sentido, a abordagem intercultural constitui-se num conjunto de experiências contra hegemônicas que se auto validam na desconstrução hierárquica de conhecimentos entre as narrativas hegemônicas/etnocêntricas e as culturas não hegemônicas; especificamente 285 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e as que resistiram ao epistemicídio imposta aos povos originários dos países latino americanos. A partir dessa breve exposição, apresentamos a seguinte questão problema: Como o conjunto de ações desenvolvidas pelo CEPA favorece aproximações/distanciamentos na conciliação conceitual entre a Educação Popular e a Educação Intercultural? Objetivo geral Compreender a relação de conceitos entre a abordagem intercultural e a educação popular nas ações desenvolvidas pelo CEPA. Objetivos específicos Caracterizar as intencionalidades da educação intercultural desenvolvida no conjunto das ações pedagógicas do CEPA; Identificar a intersecção conceitual da educação popular na educação intercultural; Analisar a intersecção conceitual entre a educação popular e a educação intercultural, viabilizada nas atividades desenvolvidas pelo CEPA. Procedimentos teórico metodológicos A escolha pelo enfoque fenomenológico, com ênfase na pesquisa participante, justifica-se por tratar-se da possibilidade de investigação que considera a relação sujeito-e-pesquisador, rompendo com o paradigma da coisificação3 dos sujeitos estudados. Gabarrón e Landa (2006) enfatizam que a pesquisa participante nos remete à relação de 3 A respeito desse termo, Freire (1983) trata sobre a invasão cultural e da desigualdade entre opressores e oprimidos, ao ponto destes últimos serem tratados como meros objetos. 286 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e igualdade entre os/as pesquisadores/as e os/as sujeitos/as, permitindo, desse modo, a superação da hierarquia entre sujeito (pesquisador) e “objeto” (sujeito estudado). A escolha pela pesquisa biográfica em educação justifica-se por se tratar de uma busca pela reafirmação das individualidades e na relação entre processos subjetivos e objetivos, além disso, a narrativa biográfica apresenta um caráter mais autônomo no envolvimento dos/as participantes em relação a outras perspectivas teórico-metodológicas. O que diferencia a pesquisa biográfica de outros tipos de pesquisa consiste na temporalidade biográfica, trata-se, pois, do tempo cronológico entre o nascimento e a morte no qual cada ser humano se constitui na e a partir das múltiplas experiências de vida. Delory-Momberger (2016), afirma-nos que as atribuições a pesquisa biográfica sugere “uma dimensão constitutiva da experiência humana, por meio da qual os homens dão forma ao que vivem”. Para atender aos objetivos deste trabalho que, consistem, entre outros, em caracterizar as intencionalidades da educação intercultural desenvolvida no conjunto das ações pedagógicas do CEPA, nos utilizaremos do diário de campo entendido “[...] como um instrumento não só de registro, mas fundamentalmente um instrumento de análise de todo o trabalho de campo” (LAGE, 2013, p. 63). Recorreremos ainda, à técnica da conversa informal a fim de recorrer às histórias de vida e suas trajetórias. Para identificar a intersecção conceitual da educação popular na educação intercultural, recorremos as vivencias experienciadas nas rodas de conversa, documentadas nos relatórios produzidos mensalmente; pois, apresenta-se como uma alternativa para captarmos “[...] o discurso dos sujeitos e da dinâmica que acontece naturalmente” (ROSA, 2008, p. 31). Desse modo, analisar a intersecção conceitual entre a educação popular e a educação intercultural, viabilizada nas atividades desenvolvidas pelo CEPA, subsidiou-se na análise de conteúdo temático, revelando-se “como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens” (BARDIN, 2007, p. 33). 287 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Análise e discussão dos dados As atividades desenvolvidas pelo CEPA, fundam-se nas concepções de Educação Popular que intencionam envolver os seus participantes para desenvolver mecanismos de participação, autonomia, conscientização, ação-transformação. O diálogo apresenta-se como uma ferramenta metodológica permanente vivenciada nas práticas pedagógicas/educativas, permitindo a vivência de outros princípios freireanos como a problematização, a autonomia crítica diante do mundo, que orientam a prática desenvolvida na relação educadores/as-educandos/ as nos diversos e diferentes processos aprendentes. As rodas de conversa vivenciada nas ocasiões diversas, envolvendo a participação dos/as educandos/as, pais, mães e/ou responsáveis, o encontro de formação continuada de educadores/as, as visitas domiciliares, além de outros mecanismos de incentivo à mobilização participativa na comunidade viabilizam o diálogo, principal instrumento teórico-metodológico presente nos fazeres da dimensão da prática educativa. Para melhor compreendermos a relação teoria-prática nas ações desenvolvidas no CEPA, ilustramos por meio do seguinte esquema: Esquema conceitual EDUCAçãO POPULAR CONCEITOS mETODOLOGIAS Práxis Pedagógica Desenvolve-se no conjunto de ações intencionalizadas. Ocorre a partir da reflexão sobre a ação da prática pedagógica Prática Educativa Busca a problematização de saberes adquiridos nas relações sociais e experiências vivenciais. Favorece a problematização/conscientização das desigualdades que são reproduzidas nas relações de poder Educação não formal Evidencia, no conjunto de ações/atividades, intencionalidades de um projeto de sociedade igualitário. Diálogo Favorece a horizontalidade dos conhecimentos Possibilita e instiga a curiosidade na desconstrução/reconstrução paradigmática Busca desenvolver a autonomia na coletividade (Continua) 288 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e EDUCAçãO POPULAR CONCEITOS mETODOLOGIAS Avaliação Identifica processos e mudanças de atitudes Promove a intervenção avaliativa dos discursos durante a mediação dos saberes/conhecimentos Acompanha a elaboração e socialização das produções elaboradas pelos/as educandos/as Retoma a vivência de encontros, aulas passeio, rodas de conversa, entre outras possibilidades de sistematização do conhecimento para a auto avaliação Tabela 1. Panorama da articulação conceitual intermediada nas ações do CEPA. Fonte: Projeto Político Pedagógico do CEPA (2019) Nesse conjunto de atividades, situamo-nos nas oficinas educativas que se desenvolvem nas oficinas de teatro, dança, capoeira, audiovisual, e Maracatu através de ações de preservação e valorização da cultura popular, como da promoção do desenvolvimento humano dos/as participantes, mediante a aquisição de novas condutas de comunicação e expressões individuais (desinibição, ousadia, senso crítico, enfrentamento de situações adversas, criatividade, transformação da realidade e outras). As aulas passeio, destacam-se pela intencionalidade educativa/ política que se ampliam a partir das percepções que os/as educandos/ as desenvolvem e constroem acerca de suas identidades, na articulação de suas experiências, vivenciadas pedagogicamente nos diferentes contextos educativos/culturais. O projeto que financia as oficinas educativas, intenciona promover Práticas educativas de sensibilidade à conscientização da diversidade cultural, para isso problematiza através das rodas de conversa, da exibição de material educativo, e das aulas passeio a articulação temática que se desdobram na compreensão/conscientização dos fenômenos que socialmente apresentam-se desiguais. Durante o primeiro semestre de 2019 já foram realizadas 05 aulas passeio, a saber, numa antiga Senzala, no memorial de Caruaru/PE, num terreiro de Candomblé – Nação Ketu, na sede cultural do coco raízes – Arcoverde/PE, e na Aldeia do Povo Xucuru localizada na cidade de Pesqueira/PE; Somam-se a estas iniciativas a mobilização cultural 289 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e e educativa do Orí cia. de dança4, desde a sua fundação este grupo de dança intenciona fomentar a interculturalidade afro-brasileira evidenciada nas suas apresentações culturais. Figura 1. Aula passeio à sede do coco raízes de Arcoverde/PE Figura 2. Educandos/as do CEPA conhecendo o sentido da arte indígena, na 19ª Assembleia do povo Xucuru em Pesqueira/PE Atualmente, o Orí é formado por um grupo que conta com 08 dançarinos/as, desse quantitativo, 02 são educandos/as do CEPA, além da educadora da oficina de dança que atua no grupo como dançarina e diretora cênica. A preocupação que o CEPA e o Orí tem em comum convergem na consolidação de ações que possam favorecer aspectos de uma educação intercultural, que possibilite a descolonização produzidas nos discursos e reproduzidas culturalmente. A produção das coreografias, aliam-se a linguagem dos corpos que anunciam pedagogicamente a interculturalidade entre as diferentes expressões culturais, tal como o toque dos tambores que ecoam o som da ancestralidade à medida em que rompe com o silenciamento da intolerância, de modo que estas ações não se reduzem numa encenação folclórica, esvaziada de sentido crítico. Para isso, busca envolver grupos de capoeira e grupos de umbandistas e juremeiros durante as suas apresentações culturais. Tratando-se de um grupo que atua na perspectiva afro-brasileira, o Orí, vem sendo alvo de racismo e O Orí Cia. de Dança originou-se em 10 de Maio de 2014 na cidade de Caruaru, com direção cênica de Renata Lima e direção geral de Vanaldo Brito. 4 290 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e discriminações institucionais, mais evidentemente quando concorre aos editais disponibilizados pela prefeitura de Caruaru/PE. Não favorecer a interculturalidade diminui a possibilidade de democratizar as multiplas relações construídas culturalmente, quando elege-se uma determinada expressão cultural-etnocêntrica, cria-se uma escala hierárquica, que desprestigia todas as outras formas de ser e de viver culturalmente. Nesse sentido, as culturas cumprem um papel político na reprodução de suas representações simbólicas, aparelhando-se ou não as estruturas de poder institucionalmente vigentes. Após a participação dos/as educandos/as nas aulas passeio, mais especificamente no terreiro de candomblé, duas situações chamou-nos a atenção pela intensidade em que ocorreram. Uma educanda, oriunda de religião evangélica juntamente com a sua mãe resolveram que a partir daquele dia não iria mais participar da oficina de dança, sob argumentos preconceituosos que desembocavam na rejeição as expressões religiosas não-cristãs. Já a postura de outra educanda favoreceu a organização do grupo no sentido de ‘tranquilizá-los/as’ antes e durante a visita ao terreiro de candomblé. Sabe-se que muitas lideranças religiosas, denominadas neopentecostais, em seus sermões, dirigem-se as diversidades, alternativas à versão bíblica como algo excêntrico/anormal/pejorativo; a demonização das religiões de matriz africana, a abominação de casais homoafetivos, e a veiculação de discursos vingativos/condenatórios a quem se opuser a cosmovisão fundamentalista, são alguns elementos que nos ajudam a refletir sobre o papel formativo desempenhado por estas instituições. Quem educa para a intolerância deseduca para o amor, quem não admite a existência do/a outro/a é favor de sua eliminação, seja ela física e mais precisamente ideológica-política. Não à toa estas temáticas perpassaram as campanhas eleitorais ocorridas em 2018, claramente evidenciadas no discurso fundamentalista, patriarcal e ultraliberal; apesar destes sistemas de poder serem divididos em escalas eles não operam isoladamente, mas no conjunto de ações cooperativas entre si, é o que chamamos de cultura hegemônica de lógica imperialista. Esta lógica fundamenta e dá sentido a depredação dos terreiros de candomblé/umbanda, favorece o massacre dos povos indígenas e 291 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e campesinos, justifica o genocídio da população negra, periférica, e parcamente escolarizada; naturaliza e justifica o feminicídio na culpabilização das vítimas, isto é, as mulheres que são vítimas das violências; subsidia o extermínio da comunidade LGBTQ+, entre tantas outras formas de violências. Por isso e por tudo o que não foi possível dizer aqui, é que nos contrapomos a este projeto anti-humano, quando somos capazes de acreditar/vivenciar e (re)construir um projeto humanamente planetário e planetariamente humano, quando nos comprometemos em reconhecer a equivalência entre as diferentes formas de ser e de viver. É importante lembrar que antes de realizar a visita ao Terreiro, alguns/algumas educandos/as já frequentaram e/ou frequentam os templos de candomblé/umbanda e até então, nós enquanto instituição educativa não sabíamos... Diante dessa constatação, nos indagamos: Seria o racismo o principal mecanismo que condiciona os imaginários que optam pela negação do seu sagrado? ou, enquanto educadores/as, quando permanecemos nos limites da ação pedagógica não percebemos a necessidade de articular/confirmar pedagogicamente os discursos na dimensão das práticas educativas? Figura 3. Roda de conversa, durante a socialização dos discursos com as intervenções pedagógicas, ocasionadas no terreiro. Figura 4. Nesta imagem o babalorixá Marivaldo, apresentou-nos alguns fundamentos realçando as principais diferenças entre o candomblé e a jurema/umbanda. De modo que a relação entre as abordagens temáticas desenvolvidas nas rodas de conversa do CEPA, possam se reencontrar nas aulas 292 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e passeio, possibilitando a problematização e criticidade dos/as educandos/as desvelando estereótipos que ideologicamente se ofuscam na versão cultural eurocêntrica. Quando comunicamos aos/às educandos/as que iríamos ao terreiro alguns/mas fizeram um olhar de estranheza, outros até manifestaram incisivamente algum tipo de rejeição. Todavia o que nos chamou a atenção foi a co-participação de uma educanda que conversava com os/as demais membros do grupo no sentido de convencê-los a conhecer o terreiro. Posteriormente, esta educanda declarou para a educadora que a maioria de seus membros familiares eram religiosos/as de matriz africana. Neste ano (2019) o projeto que financiou as oficinas educativas, sinalizou enquanto proposta pedagógica/educativa a necessidade de desenvolver ações para identificar e problematizar convergências discriminatórias perpassadas nas e entre as questões raciais, sociais, de gênero, de orientação sexual, de cosmovisão de mundo a partir de seus sagrados, entre outros; historicamente incrustados no imaginário do povo brasileiro. Nesse sentido, situar a matriz de pensamento que fundamenta a versão histórica colonialista problematizando suas contribuições, limites e contradições, possibilita-nos reapresentar alternativas que se contraponham a naturalização das desigualdades expostas e verticalizadas nas relações de poder. Nas aulas passeio nos propomos reconhecer e valorizar outros modos de vida alternativos à ‘civilização’ ocidental, europeia e burguesa. Assim chegamos a sede do coco raízes, lócus de nosso estudo situada na cidade de Arcoverde, sertão pernambucano; neste espaço as famílias mantêm viva a memória de seus ancestrais através da cultura popular. Conforme um breve histórico, fixado na parede do salão principal da sede; em Arcoverde, o coco existe a quase 70 anos, e suas origens históricas remete-nos ao antigo bairro do coqueiro, atualmente denominado como bairro da Cohab I, este espaço ficou conhecido por reunir os primeiros dançarinos e mestres do coco que passaram a popularizar esta arte através das apresentações realizadas tanto em Arcoverde quanto nas cidades da região. Um dos percussores da cultura do coco centra-se na figura do sr. Luis Calixto Montenegro, que entre a década de 1960 e 1990, atuou 293 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e como educador cultural, artesão, compositor das cantigas do coco impressas no seu patrimônio cultural atualmente mantido pela família Calixto, juntamente com outras famílias/descendentes dos mestres do coco arcoverdense. A aula passeio vivenciada na aldeia do Povo Xucuru foi marcada por tensões e emoções. Na ocasião, estava acontecendo a 19ª Assembleia do povo Xucuru na cidade de Pesqueira, agreste pernambucano, este evento ocorre anualmente e busca envolver e mobilizar a participação de lideranças indígenas locais e de outras regiões do país para que possam se fortalecer na luta pela preservação de seus territórios, suas culturas e, sobretudo a relação sagrada com a mãe natureza. É importante mencionar que este evento faz referência a memória de Francisco de Assis Araújo, o chicão, uma das principais lideranças do povo Xucuru, brutalmente assassinado no dia 20 de maio de 1998 em Pesqueira. Quando cacique, Chicão ficou conhecido por se empenhar junto ao povo Xucuru na reorganização política do movimento indígena e através da democratização da expressão cultural do seu povo, possibilitou que pessoas não indígenas também pudessem conhecer e participar das apresentações do toré5. O povo Xucuru expressa o toré a partir de duas perspectivas: a cultural e a religiosa, esta última é restrita aos povos indígenas e seus ‘parentes’ não indígenas, considerados/as dessa maneira pelo nível de sensibilidade e comprometimento com a causa. Nesse sentido o toré configura-se numa expressão social, cultural, política e religiosa a medida em que pode agregar adeptos, favorece a interculturalidade, desenvolve a necessidade de inserção coletiva, remetendo-se a cosmovisão do seu sagrado. Na atual conjuntura política, marcada por massacres e violências contra os povos indígenas precisamos nos politizar a partir de (re)leituras Manifestação cultural extensiva a diferentes grupos e por eles definidos como tradição, união e brincadeira, é um ritual complexo, que envolve uma dança circular, em fila ou pares, acompanhada por cantos, ao som de maracás, zabumbas, gaitas e apitos, de grande importância para os indígenas. Cada grupo possui um toré próprio e singular, apresentando variações de ritmos e toadas dependendo de cada povo. Disponível em: http://basilio. fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=863&It emid=1 – acessado em 09/07/2019 5 294 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e contra hegemônicas. A matriz de pensamento eurocêntrica, colonialista, e latifundiária através dos mecanismos de poder e controle ideológico determinou escalas de padronização para subalternização das culturas não europeias. Tudo o que não converge com a lógica de pensamento hegemônica é inaceitável por ser considerado “sem lógica”. Nesse sentido, a institucionalização da cultura branca, heteronormativa, urbanocêntrica, cristã, patriarcal e europeia; determinou padrões de comportamento na construção de paradigmas que legitimam maneiras de ser e de viver deslocando e classificando todos os outros modos de vida para o lado místico, e por isso mesmo inválido. Os ataques promovidos pelo Governo federal, favoráveis a extinção da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, alia-se ao fortalecimento da política armamentista dos latifundiários para que possam manter o controle e a invasão de territórios para a devastação e mercantilização dos recursos ecológicos. Nesse sentido a miséria não é uma condição genética, é um projeto da sociedade capitalista; de modo que estas atrocidades, politicamente encontram respaldo na farsa neoliberal da propriedade privada e da meritocracia, principais mecanismos ideológicos que atuam no campo dos imaginários das classes trabalhadores dando a entender que não a nada a se fazer que não seja a conformação pacífica de sua condição de miseráveis e submissos. O que tem favorecido o aumento qualitativo de educandos/as que assumem a sua negritude, constata-se, nas relações que são capazes de construir, no convívio com as diferenças, na elaboração de seus discursos e atitudes mais críticas diante de situações de opressão. Nesse sentido, a educação intercultural cumpre uma função de “guarda-chuva conceitual”, pois através do elemento da cultura é capaz de descentralizar a nossa percepção do mundo que não seja apenas interpretada através da versão etnocêntrica-colonialista-europeia. A nossa atuação política enquanto educador/militante deve estar consciente das armadilhas ideológicas impostas pelo sistema neoliberal. Só assim, estaremos mais habilitados para hospedá-lo sem aderir a sua lógica. Que possamos nos empenhar em dedicar nossas energias vitais para identificar/compreender as sutilezas da opressão que se estruturam nas relações de poder. Talvez uma dessas alternativas se 295 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e configure no desenvolvimento de uma prática comprometida e verdadeiramente transgressora às normas que verticalmente nos são impostas. Reeducar nossas percepções, significa coloca-las a serviço de uma pedagogia comprometida com as camadas populares e por isso mesmo é uma pedagogia da contraversão. Esta iniciativa propõe identificar e denunciar os contrastes sociais que na maioria das vezes são ideologicamente naturalizados e naturalmente reproduzidos nas múltiplas e diversas facetas das desigualdades. A educação intercultural, alia-se a educação popular, necessariamente por rejeitar e denunciar a insuficiência dos paradigmas que se colocam numa condição privilegiada como se fosse a única matriz de pensamento capaz de explicar as múltiplas experiências socializadas no mundo. Por fim e não menos importante, o empoderamento que é interpretado pela educação popular através dos processos de conscientização, do diálogo, da socialização, das vivências, etc., sugere a realização de ações epistemologicamente transgressoras quando pode contribuir na formação política de pessoas enquanto sujeitos capazes de compreender e transformar suas realidades a partir de suas histórias de vida. Conclusão Retomando a pergunta inicial que provocou esse exercício de pesquisa – Como o conjunto de ações desenvolvidas pelo CEPA favorece aproximações/distanciamentos na conciliação conceitual entre a Educação Popular e a Educação Intercultural? Constatamos alguns impasses e algumas conciliações conceituais entre a Educação popular na abordagem intercultural. A hibridização temática/conceitual desenvolvida no conjunto de atividades do CEPA reconhece a interculturalidade através da sua repercussão, explicitadas ou não nas posturas de vida dos/as educandos/ as, na socialização dos debates produzidos nas rodas de conversa, do processo de transição capilar, no caso das meninas/os que reconhecem ou negam a sua negritude, entre outras; evidenciando potencialidades ou fragilidades da maneira com que essas temáticas estão sendo vivenciadas. 296 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O CEPA é reconhecido por desenvolver através das suas ações a intersecção conceitual entre a educação popular e a educação intercultural, por outro lado, não perceber ou permanecer nos limites da ação pedagógica pode contribuir para a repetição da prática do discurso ao invés de colocar em prática o que se discute. A superação da cultura hegemônica (etnocêntrica-europeia-burguesa...) desafia-nos reavaliar continuamente a nossa prática pedagógica/educativa para o redirecionamento de intencionalidades emancipatórias. Superar o paradigma da cultura hegemônica não significa necessariamente a radicalização da sua ruptura, mas possibilitar a equivalência entre as diferentes experiências que são produzidas no mundo. O CEPA, Ciente de seus princípios, vivencia o diálogo enquanto metodologia de convivência, apresenta e reconhece a relação das diferenças, identifica a intersecção entre as diferentes etnias através da problematização histórica numa perspectiva dialética, favorecendo ou não a conscientização das pessoas envolvidas. 297 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BARDIN, Laurence. Análise do Conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro/ Laurence Bardin. – França, 2007 CALADO, Alder Júlio F. Movimentos Sociais Populares rumo a uma nova sociedade: o consenso ideológico ao dissenso alternativo. In: Revista eletrônica o comuneiro, n. 5, Lisboa, setembro de 2007. CEPA- Centro de Educação Popular Assunção. Projeto Político Pedagógico, Caruaru, Brasil: CEPA, 2019 DELORY-MOMBERGER, Christone. A Pesquisa Biográfica ou a Construção Compartilhada de um Saber do Singular. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) biográfica, v. 1, n. 1, p. 133-147, 2016 Epistemologias do Sul/ Boa ventura de Souza Santos, Maria Paula Meneses [orgs.]. – São Paulo: Cortez, 2010 FLEURI, Reinaldo M. e costa, Marisa V. Travessia: questões e perspectivas da pesquisa em educação popular. Ijuí: Editora Unijuí, 2005 FREIRE, Paulo. Conscientização/ Paulo Freire; tradução de Tiago José Risi Leme. – São Paulo: Cortez, 2016 ______. Extensão ou comunicação? Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira / prefácio de Jacques Chonchol 7ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983 ______. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2009 GABARRÓN e LANDA, in: capítulo 3. Pesquisa Participante: a partilha do saber/ Carlos Rodrigues Brandão, Danilo R. Streck (organizadores) Aparecida, SP: Ideias et letras, 2006 LAGE, Allene. Educação e movimentos Sociais: caminhos para uma pedagogia de luta/ Allene Lage. – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013 SOUZA, João Francisco de. Prática Pedagógica e Formação de Professores. Organizadores: João Batista Neto e Eliete Santiago. – Recife: ed. Universitária da UFPE, 2009. [ Volta ao Sumário ] 298 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e ensaio soBRe a pRátiCa doCente em ensino Religioso no Rio gRande do noRte: entre a teoria e a prática Diego Fontes de Souza Tavares Como referenciar este capítulo: TAVARES, Diego Fontes de Souza. Ensaio sobre a prática docente em Ensino Religioso no Rio Grande do Norte: entre a teoria e a prática. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 299-326. Diego Fontes de Souza Tavares1 Introdução O Ensino Religioso brasileiro é caracterizado por um forte preconceito que ainda o limita enquanto área científica e curricular. Esse atraso é produto de sua bagagem histórica caracterizada pela forte influência da Igreja Católica em sua base epistemológica desde sua gênese, como também com a cruzada que essa mantém em conservar-se como tutora dessa disciplina escolar. Essa mácula na qual carrega o Ensino Religioso reflete não só em sua base epistemológica, mas também na pedagógica. Os docentes dessa disciplina curricular carregam grandes dificuldades em suas atividades profissionais que são frutos ainda dessa herança confessional. A influência da Igreja Católica limitou a elaboração e desenvolvimento de uma grade curricular, que favorecesse os ideais científicos e pedagógicos dessa disciplina, como também impossibilitou a sua expansão, já que freava os seus avanços liberais – quando a disciplina abria-se às outras denominações religiosas, melindrando o seu florescimento. O presente trabalho almeja expor como ainda hoje, com uma república democrática consolidada e já obtendo o Ensino Religioso grandes conquistas, ainda se defrontam com grandes dificuldades os docentes de Ensino Religioso. Licenciatura plena em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutorando em Ciências das Religiões pelo Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões na Universidade Federal da Paraíba (PPGCR-UFPB). Pesquisador no Grupo SOCIUS e Professor de Ensino Religioso na rede estadual de ensino do Rio Grande do Norte (SEEC/RN). Curriculum Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8165861P8 Email: diegofontes.tavares@outlook.com 1 300 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A herança confessional do Ensino Religioso O Ensino Religioso brasileiro é caracterizado por um forte preconceito que ainda o limita enquanto área científica e curricular. Esse atraso é produto de sua bagagem histórica caracterizada pela forte influência da Igreja Católica em sua base epistemológica desde sua gênese, como também com a cruzada que essa mantém em conservar-se como tutora dessa disciplina escolar. Foi, sobretudo, com a chegada dos portugueses nas terras brasileiras que a ideia salvífica dos povos que aqui viviam fora posta em prática e desenvolvida o processo de catequização, conforme mesmo afirmou Pero Vaz de Caminha ao dizer que “a melhor ação que se podiam fazer era salvar essa gente”. Com a chegada dos Jesuítas em 1549, inicia-se o processo moralizador cristão pelo qual perduraria durante vários séculos na educação brasileira. É somente com o advento da República que o Brasil pôde afrouxar as amarras que o prendiam às ideias liberais. O paladino da laicidade Rui Barbosa era um defensor ferrenho dos ideais republicanos e liberais. Influenciado e fortemente positivista, via nas luzes do Iluminismo um avanço à ascendente nação que surgia. Foi dele a medida de proibir o ensino religioso2 nas escolas por serem ambientes públicos e não pertencentes às comunidades religiosas. A reação da Igreja e do episcopado foi severa, pois se minava cada vez mais a sua atuação em meio ao povo brasileiro. Daí resultou que, na Constituição de 1934, no artigo 153, a Igreja reivindica suas prerrogativas para que o Ensino Religioso – confessional cristão – voltasse a fazer parte da Educação Básica de forma obrigatória, mas de matrícula facultativa ao aluno/a. Com a elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1961, o Ensino Religioso, de acordo com o artigo 97, ele permanecia como disciplina obrigatória da Educação Básica. Ainda, de acordo com esse dispositivo, o Ensino Religioso seria ministrado pelas Vale aqui ressaltar que Rui Barbosa, segundo costa, se mostrava contrário ao ensino confessional e cristão, não podendo afirmar que ele seria nos tempos de hoje, contra o Ensino Religioso. 2 301 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Igrejas e sem custos aos cofres públicos. Conforme se pode ver, a Lei garantia que O Ensino Religioso constitui disciplina dos horários normais das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado sem ônus para os cofres públicos, de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo representante legal ou responsável (LEI 4.024/61: Art. 97). Embora pareça ter um caráter laico e democrático, ao propor que o ensino seria “de acordo com a confissão religiosa do aluno” ela ainda segregava as religiões diferentes da hegemônica, pois não tinham espaço os representantes de outras denominações religiosas, sofrendo preconceito religioso, e se tornava difícil à eleição e indicação desses representantes à docência, tendo a Igreja católica sempre êxito nessa questão por ser uma instituição a muito consolidada. Com o advento do golpe sofrido pela democracia em 1 de Abril de 1964, sendo deposto o presidente democraticamente eleito João Goulart, os militares estabeleceram profundas mudanças nas legislações como ferramenta para perpetuarem-se no poder. Uma dessas medidas autoritárias tangia à LDBEN, que havia sido elabora há poucos anos. Em 1971 e com o apoio da Igreja Católica, a Lei 5.692/71 reinseria o Ensino Religioso nos horários normais de aula, tornando-se novamente obrigatório. A Lei 5.692/71 estabelecia no Art. 7 [...] Parágrafo único – O Ensino Religioso de matrícula facultativa constituirá disciplina dos horários normais dos estabelecimentos oficiais de primeiro e segundo graus (LEI 5.692/71: Art. 7). Compondo-se às disciplinas “Moral e Cívica”, “Artes” e “Educação Física”, o Ensino Religioso convergia ao alinhamento ético proposto pelos militares, assumindo caráter e função ética e introduzindo a moral cristã e ressaltando os bons costumes. Essa é o contexto no qual está inserido o Ensino Religioso brasileiro, sendo durante quase toda a sua história traçado pelo viés confessional, sendo até hoje ainda visto pela ótica do senso comum por essa herança que o mancha como eternamente cristão. 302 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A LDB, o FONAPER e o CNE Como exposto, o Ensino Religioso é garantido pela Constituição Brasileira desde 1934. No entanto, sabemos da gênese confessional por qual passou e passa esse componente curricular e dos prejuízos que isso acarreta. Nessa etapa da história do Ensino Religioso, ele tinha um caráter estritamente confessional e catequético. Segundo o próprio Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER), Durante séculos, ou seja, até a segunda metade do século XX, predominou no Brasil o Ensino Religioso na concepção de reeligere, no entendimento do reescolher, com a finalidade de fazer seguidores. Nesse contexto, ele se caracterizava como evangelização, aula de religião, catequese, ensino bíblico. O conhecimento veiculado era da informação sobre elementos da religião e a LDB nº 4024/61 refletiu bem essa concepção (FONAPER, 2000, p. 13). Assim, o FONAPER estabelece que com a primeira LDB/61 o Ensino Religioso possuía uma vertente confessional, sendo caracterizado pela catequização dos alunos e alinhamento à religião cristã. Já na mudança da LDB/61 proposta pelo regime militar, em 1971 com a Lei 5.692/71, o Ensino Religioso era vertido na Concepção religare, significando religar as pessoas a si mesmas, aos outros, à natureza e a Deus, visou torá-las mais religiosas. Nesse contexto, o Ensino Religioso caracterizou-se como pastoral, aula de ética e valores, e o conhecimento veiculado foi o da formação antropológica da religiosidade, pelo saber em relação a si próprio, ao mundo, à natureza e a Deus (FONAPER, 2000, p. 13) Sobre a reformulação e novo viés epistemológico adquirido pelo Ensino Religioso na Ditadura Militar ele convergia ao projeto de educação3 que tinha o regime, no qual valorizava o alinhamento moral e Nessa linha, lembremos que a Educação é um sistema simbólico de poder e está diretamente ligada e subordinada à Política. Segundo Pierre Bourdieu, ela é uma estrutura que é ao mesmo tempo estrutularizada e estruturante, na medida em que tanto influencia a Política, quanto é por ela influenciada em suas medidas e decisões. 3 303 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e catequético, doutrinado aos bons costumes e valorizando a segurança nacional. Foi no contexto da redemocratização do Brasil em que entidades civis puderam reivindicar maiores causas e nisso alguns componentes curriculares obtiveram maior liberdade e autonomia em seu engajamento enquanto área de ensino4 Como prova disso, teve-se criação do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso, criado em 26 de Setembro de 1995, em Florianópolis/ SC na ocasião da Assembleia Ordinária Conselho de Igrejas para a Educação Religiosa. O contexto no qual emerge o FONAPER era a de uma frente Diante das diversas concepções de Ensino Religioso que se descortinavam por todo o território, em meio à diversidade religiosa, cada vez mais acentuada, exigindo uma educação que encaminhasse o diálogo entre as partes, em que o espaço da construção do conhecimento religioso fosse à ressignificação dos conhecimentos produzidos e acumulados ao longo da história (TORRES, 2012, p. 44). Não obstante a razão salutar no qual surge o FONAPER, como resposta a uma necessidade de uniformidade ao Ensino Religioso, ele possuiu e manteve essencial posicionamento quando da elaboração da LDB/96, com a Lei 9.394, de 20 de Dezembro de 1996. No que tangia ao Ensino Religioso, a LDB/96, embora em um meio pós-1988 totalmente democrático, retomava o caráter confessional e segregador do Ensino Religioso, ao estabelecer no artigo 33 que Art. 33 O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferencias manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter: I – confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas. Vide BITTENCOURT (2004) para o caso do ensino de História e SENA (2007) para o Ensino Religioso. 4 304 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e II – interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa (LEI 9.394/96: Art. 33, grifo meu). O presente artigo representava um retrocesso em meio aos avanços que vinham tendo nos últimos anos o Ensino Religioso. Ao ser oferecido ônus ao Estado, o Ensino Religioso, indiretamente, seria propriedade da Igreja Católica, já que possuía grande autonomia fruto de sua institucionalização e poderia subsidiar professores para sua catequese; já o inciso I garantia legalmente a confessionalidade do Ensino Religioso. A reação e resposta do FONAPER ao artigo 33 da LDB/96 foi imediata. Houveram mobilizações e ao longo de seis meses eles estabeleceram um novo artigo e deram releitura ao que era então proposto no artigo 33, tendo o presidente sancionado uma nova lei que dava nova redação ao antigo artigo. A Lei 9.475 de 22 de Julho de 1997 estabelecia que Art.1º O art. 33 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 33 O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurando o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. § 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. (LEI 9.475/97 Art. 33, grifo meu). Com a intervenção do FONAPER a essa nova redação do artigo 33, o Ensino Religioso retoma a sua função democrática e escolar, ao assegurar o respeito e à diversidade cultural brasileira e sendo impedida qualquer forma de proselitismo. Ainda, tornou responsáveis sistemas de ensino (Secretárias Municipais e Estaduais da Educação) pela elaboração de material e currículo a serem estudados, bem como garantiu a habilitação e admissão de professores, tendo agora ônus para os cofres públicos e investimento do Estado. 305 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Não obstante terem as Secretarias de ensino responsabilidade na elaboração dos conteúdos, o FONAPER elaborou e construiu em 1997 os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso (PCNER) como proposta de currículo ao Ensino Fundamental. Caracterizado e dividido em “Eixos Temáticos”, os PCNER estão estabelecidos em propostas de fundamento básicas para a ação pedagógica do Ensino Religioso, que são elas “Culturas e Tradições Religiosas”; “Escrituras Sagradas e/ ou Tradições Orais; “Teologias”; “Ritos” e “Ethos”. Tendo cada um desses eixos temas transversais às tradições religiosas e que facilitam a assimilação do conhecimento e dão um norte aos professores. Segundo o FONAPER (2009) é objeto de estudo das “Culturas e Tradições Religiosas” o fenômeno religioso a partir da ótica do sujeito, analisando elementos como teodiceia, função e valores éticos das tradições religiosas. Já para as “Escrituras Sagradas e/ou Tradições Orais” atenta-se aos textos ou relatos orais que transmitem aos adeptos, através da revelação, os mistérios e vontades do Transcendente, dando origem às tradições religiosas. No que tange às “Teologias” debruça-se sobre o conhecimento organizado e/ou sistematizado elaborado pela tradição religiosa e no qual são repassados aos adeptos. Com “Ritos”, estudam-se as práticas celebrativas em que se fundamentam as liturgias das tradições religiosas. Por fim, no “Ethos” é trabalhada a moralidade numa relação dialética entre o que prega a tradição religiosa e o que dela aspira o sujeito adepto e como ele o exterioriza sendo suas faculdades mentais. Outro avanço que consta na constituição do Ensino Religioso enquanto área disciplinar foi a decisão da Câmara de Educação Básica (CEB) através do Conselho Nacional de Educação, mediante a Resolução CEB Nº 2 de 7 de Abril de 1998, que instituía a “Educação Religiosa (de acordo com a nova redação do art. 33 da LDB/97) como disciplina obrigatória da Educação Básica. A prática docente de Ensino Religioso no Rio Grande do Norte Estabelecido a história do Ensino Religioso no Brasil, chega-se ao recorte proposto nesse trabalho, que é a atividade docente dos 306 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e professores de Ensino Religioso no Rio Grande do Norte. Entretanto, o referido trabalho atenta aos docentes ligados à Secretaria de Estado e da Cultura do Rio Grande do Norte/SEEC, não se estendendo, ao menos diretamente, aos professores veiculados à Secretaria Municipal de Educação de Natal. Necessário se faz estabelecer a distinção acima proposta pelo fato de que cada uma dessas secretarias possuírem autonomia na elaboração de seus conteúdos e bem como da escolha e promoção de seu pessoal. Sobre essa responsabilidade na elaboração de conteúdo e admissão de pessoal, bem como de outras diretrizes para o Ensino Religioso, a SEEC/RN forma o Conselho de Ensino Religioso (CONER) para a elaboração do Parecer Normativo Nº50/00, finalizado em 8 de Novembro de 2000. Destacarei as medidas por esse Parecer tomadas que tocam à proposta desse trabalho, que é a diferença entre a teoria e a prática na atividade docente do profissional de Ensino Religioso, ressaltando como as medidas por este Parecer não se alinham às decisões nacionais e vão à contramão do progresso científico e epistemológico da disciplina. Em especial, transcrevo as que estabelecem: o conteúdo a ser ministrado; a carga horária da disciplina e o critério para admissão de pessoal para lecionar essa disciplina. Segundo o Parecer Normativo Nº 050/00 No que diz respeito ao nº de horas/aula semanais, se 01 (uma) ou (duas) entende-se que não compete a este colegiado fixar este quantitativo, firmando-se, para tanto, nos princípios da autonomia e flexibilidade que foram conferidas à escola pela LDB. Fica, pois, a critério de cada estabelecimento de ensino deliberar sobre à matéria e, em seguida explicá-la no Regimento Escolar no seu Projeto Pedagógico [...] Com o intento de contribuir para que a prática pedagógica atenda aos novos paradigmas propõem-se os seguintes eixos temáticos: - O Ser Pessoa Humana; - O Universo e o Ser Humano; - Comunicação versus alteridade; - O Ciclo da Vida: nascer, crescer e morrer; - O Sentido da Vida; - Religião e Contexto Cultura; - Religiosidade: fé e relação com o divino. 307 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Outro fator preponderante para uma oferta qualitativa desse componente curricular é a formação do educador. Entende-se que, além de uma sólida formação geral, é preciso que detenha conhecimentos de Teologia e Ciência da Religião. Recomenda-se, pois, que sejam portadores dos seguintes diplomas: - Curso Normal, em nível médio e/ou Normal Superior, com estudos adicionais em Ciências da Religião ou Teologia, para lecionar nas séries iniciais do Ensino Fundamental; - Curso de Licenciatura Plena, em qualquer área, desde que possua Especialização em Ciência da Religião ou Teologia, com carga horária de 480 horas; - Curso de Bacharelado em Ciências da Religião, complementado por curso de formação pedagógica com carga horária de 208h; - Curso de Licenciatura em Ciências da Religião ou Teologia. (PARECER NORMATIVO 050/00, 8/11/00, grifo meu). As seguintes diretrizes postas no Parecer dificultam a atividade docente, na medida em que não se estabelece o número exato e ao certo de horas/aula semanais e imbuindo às escolas essa função, sendo unanimidade a delimitação de apenas uma hora/aula semanal, dada o desconhecimento dos coordenadores das escolas da disciplina Ensino Religioso enquanto laica, democrática e científica, tendo esses coordenadores uma visão da disciplina enquanto confessional e moralizadora cristã, o que dificulta totalmente o ajustamento da proposta curricular ao ensino, dado ser pequena as reuniões com os alunos para um currículo tão extenso e vasto. Junto a essa atribuição de apenas uma hora/aula, não obstante a dificuldade já ditas sobre ensino/conteúdo, o professor de Ensino Religioso acaba sobrecarregado com muitas turmas para completar sua carga horária de trabalho. Sabendo que é de responsabilidade do profissional da educação uma carga horária de 30h/semanais, sendo 10h dessas encarregadas à preparação de aulas e planejamento, sobra-se 20h para este se encarregar de um total de turmas. Tendo o Ensino Religioso apenas 1h/aula, tem que o professor dessa disciplina possuir 20 turmas para se adequar ao seu regime de trabalho, o que o sobrecarrega com 20 vezes mais alunos, dificultando a criação do vínculo com o aluno e a necessária relação individual do professor para reconhecer as necessidades de cada aluno. 308 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Para complicar ainda mais a atividade docente, o Ensino Religioso é pertencente ao Ensino Fundamental I e II, se resumindo apenas ao Fundamental II, já que em sua maioria no Fundamental I é ofertada pelo profissional pedagogo polivalente – que em sua maioria não teve uma formação adequada para lecionar a disciplina. Por ser predominante no Fundamental I (6º ao 9º ano) tem-se que o professor se alocar em várias escolas para completar a carga de 20 turmas, dado o fato que não é toda escola estadual que possui 20 turmas de Fundamental II, ficando na maioria das vezes em três escolas, não criando vínculo trabalhista e docente em nenhuma delas, dado estar sempre se deslocando, o que dificulta a presença em reuniões pedagógicas e com os responsáveis dos alunos, bem como a própria atividade docente em si, já que sua presença naquela escola se resume a um ou dois dias semanais, apenas. Ainda, no que compete aos conteúdos, o Parecer 050/00 estabelece “eixos temáticos” que em nada convergem com os propostos pelo FONAPER, conforme se nota na tabela: De acordo com esses eixos temáticos propostos pela SEEC/RN foram criados dois livros pedagógicos para fundamentarem os professores na atuação docente, são os Caderno Pedagóco I e Caderno Pedagógico II, que são deveras confessionais em sua proposta, possuindo um viés de caráter ecumênico travestido numa proposta cristã e monoteísta. Já fazendo 19 anos da elaboração desse Parecer, poucos são os profissionais que se apoiam nesses Cadernos Pedagógicos, seja por serem 309 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e deveras antigos e confessionais, seja pelo fato de o CONER não ter elaborado outro livro didático e os novos professores recém-formados não os tenham recebido ou conhecimento. O fator que isso acarreta é a dificuldade de estabelecer um padrão no conhecimento curricular dos alunos que, por exemplo, transitam entre uma escola e outra – algo inclusive bastante comum no público alvo da escola pública. Fruto disso são alunos que vem e vão sem um seguimento do conteúdo resultado da ausência curricular que tem os professores, sendo esses inclusive os responsáveis pela elaboração de todo o conteúdo a ser ministrado, o que dá margem, em razão dessa escassez de currículo, à confessionalidade e proselitismo por parte dos docentes. Como terceira medida destacada no Parecer 050/00 tem-se a diretriz para a admissão de professores de Ensino Religioso. O Parecer garante que qualquer profissional que não o formado pelo curso de Ciências da Religião possa lecionar a disciplina, desde que tenha alguma especialização ou simplesmente possua formação em Teologia. Isso abre precedentes à confessionalidade e ao proselitismo, dado o fato de que além de não possuir uma padronização curricular do conteúdo a ser ministrado, o então docente de Ensino Religioso também não foi formado e capacitado para tal, visto ter advindo de outras áreas que não a da Ciências das Religiões5, que é a mais apropriada para a capacitação e formação do professor nessa disciplina. É consenso em vários autores que estudam e pesquisam a importância epistemológica das Ciências da Religião como subsídio para o profissional docente em Ensino Religioso. Conforme defende Passos, O acúmulo de estudos de Ciências da Religião nos cursos de pós-graduação já deu um primeiro passo para a superação dos preconceitos e da própria institucionalização do estudo científico da religião no âmbito das ciências habilitadas nas áreas estabelecidas pelos órgãos do Ministério da Educação. As Ciências da Religião podem oferecer a base teórica para o ER, posicionando-se como Em outro trabalho já me propus a problematizar a grade curricular dos próprios cursos de Ciências da Religião que oferecem Licenciatura e capacitam os egressos à docência em Ensino Religioso, analisando o alinhamento desses ao que propõe os PCNER e a BNCCER. Vide TAVARES, 2018. 5 310 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e mediação epistemológica para as suas finalidades educacionais em cursos de licenciaturas (PASSOS, 2007, p. 38-39). Assim, os cursos de licenciaturas em Ciências da Religião devem outorgar conhecimento acerca da diversidade cultural e religiosa que compõe o campo religioso brasileiro, como também conceder conhecimentos teóricos aos principais assuntos no qual se necessita para fundamentar conceitualmente um bom cientista da religião e professor de Ensino Religioso. Partindo dessa ideia, entende-se que os cursos de licenciatura em Ciências da Religião em seu Projeto Político-pedagógico se propõem como mostra o objetivo do curso em Ciências da Religião da UERN: Formar um profissional da educação com sólida fundamentação filosófica, teológica e pedagógica, com ênfase nos estudos do fenômeno religioso, valorizando o pluralismo e a diversidade cultural presentes na história da humanidade. Com isso, a formação pretende capacitar profissionalmente o docente para a ação pedagógica levando em conta os conteúdos e as metodologias adequados à construção do conhecimento significativo, além de proporcionar a vivência dos valores éticos, morais e espirituais, na perspectiva do exercício pleno da cidadania e da atuação do professor do Ensino Religioso (PPP CIÊNCIAS DA RELIGIÃO, UERN, 2014). Ao estabelecer que profissionais de outras áreas diferentes da Ciências da Religião possam participar da docência em Ensino Religioso o CONER retrocede às grandes vitórias conseguidas a muitas lutas de todos os profissionais que militam um por Ensino Religioso de qualidade e científico. Esses critérios na seleção dos profissionais quanto ao diploma vigora ainda hoje, em 2019, quando no último concurso público da SEEC/ RN, em 2016, se cobravam como requisito ao professor Ensino Religioso diploma em Ciências da Religião e/ou Teologia, cabendo uma nota de repúdio do Departamento de Ciências da Religião/UERN ponderando a necessidade de profissionais com diplomas em Ciências da Religião – curso inclusive ofertado pela própria Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, que tem parceria com a SEEC/RN – demonstrando assim a falta de diálogo entre os dois órgãos. 311 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Ainda há pouco, quando da elaboração desse trabalho, a SEEC/RN lança um processo seletivo Edital Nº 001/2019 para a contratação de professores substitutos que estabelece e requer ao professor de Ensino Religioso “Licenciatura Plena em Ciências da Religião; Licenciatura Plena em Ensino Religioso; Licenciatura Plena em Teologia”. Considerações finais Embora tenha tido um legado histórico de proselitismo e confessionalidade, o Ensino Religioso vem progredindo e se adequando a uma proposta laica, democrática e plural, conforme se pode ver em sua história enquanto consolidação de disciplina escolar. No entanto, como tudo o que é político e ao que tange à educação, as propostas das disciplinas escolares, bem como os seus currículos, são passíveis de medidas que possam lhe fazer retroceder e ir a desencontro desses ideais democráticos e científicos, o que deve ser enfrentado com resistência pelas entidades civis que compõem e militam para um Ensino Religioso plural e laico. O presente trabalho estabeleceu alguns desses retrocessos no qual passa o Ensino Religioso no Rio Grande do Norte, estabelecendo um diálogo entre as diretrizes nacionais, propostas mediante legislações respaldadas nas entidades civis que lhes serviram de alicerce e fundamento, na tentativa de evidenciar a necessidade da SEEC/RN em cumprir com maior rigor o que define e propõe a LDB, o FONAPER, e a BNCCER. Recorre-se a essa necessidade de cumprimento para que não continue sofrendo o Ensino Religioso no Rio Grande do Norte prejuízos à educação por um profissional não capacitado e/ou sem condições em ofertar e ministrar essa disciplina, caindo no pecado do proselitismo e confessionalidade, resultando assim em uma disciplina que foge da sua característica não confessional e científica, além de não ser plural, na medida em que a laicidade peloo professor não ter sido valorizada. 312 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. FONAPER. Ensino Religioso: referencial curricular para a proposta pedagógica da escola. Brasília, 2000. FONAPER. Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Religioso. São Paulo: Mundo Mirim, 2009. 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Introdução Os apócrifos são textos excluídos pela tradição judaico-cristã, durante o processo que deu origem ao que conhecemos como textos canônicos, os quais são tidos como revelação do pensamento divino: Javé para os judeus e Deus para os cristãos. Dentre os vários textos apócrifos, que com o passar dos anos chegaram ao nosso conhecimento, destacamos a produção literária José e Asenath, alvo de diversas discussões relacionadas à sua autoria, datação e fonte original. O texto possui origem atribuída à comunidade judaica helenizada, localizada em Alexandria no Egito, e sua escrita possivelmente compreendida entre os séculos I a.C e I d.C. O texto que iremos analisar conta a história entre José filho de Jacó, e Asenath, filha do sumo sacerdote egípcio Pentefes. No cânone, a narrativa encontra-se desenvolvida ao longo do livro do Gênesis, no qual a personagem é citada apenas de forma pontual. O referido texto apócrifo, composto por 29 capítulos, se divide em duas partes: a primeira parte (capítulos 1 a 21) concentra-se na paixão de Asenath por José, na conversão ao monoteísmo da protagonista e o casamento entre os personagens; a segunda parte (capítulos 22 a 29) narra a reação do filho primogênito do Faraó (para quem Asenath estava prometida), que, com a honra ferida, decide sequestrar Asenath como uma forma de vingar-se de José. O trabalho a ser desenvolvido será uma análise dos capítulos 5 a 17, em que Asenath encontra José, e, em função da paixão erótica Discente do curso de Ciências das Religiões (Bacharelado) – UFPB, e-mail: kefren.kelsen@gmail.com. 2 Profa. Dra. do Departamento de Ciências das Religiões – UFPB, e-mail: leylahestia@ hotmail.com.. 1 315 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e despertada, passa por uma experiência mística, a partir da qual se confronta com uma realidade sagrada diferente da sua religiosidade politeísta. Diante da constatação de que é o desejo erótico que impulsiona Asenath à crença no Deus único, usaremos o pensamento do filósofo francês Georges Bataille desenvolvido no seu O Erotismo, para que possamos compreender como a personagem experimenta o rompimento drástico de sua vida cercada de riquezas, belos trazes e o cortejo de toda a sociedade egípcia, para adotar uma vida ao lado do governador José do Egito. 2 O Erotismo batailleano O erotismo, conforme compreende o filósofo francês Georges Bataille, é uma experiência de aproximação profunda como a interioridade humana e seus desejos, pela via da sexualidade. Trata-se de uma experiência interior, em que se dão atitudes subversivas de questionamentos e de desconstrução de valores anteriormente estabelecidos. O encontro com o sagrado, enquanto mistério profundo da vida e da morte, seria o ápice dessa experiência. “Do erotismo, é possível dizer que é a aprovação da vida até na morte” (BATAILLE, 2013, p. 35). Com esta frase, Bataille não pretende estabelecer um conceito sobre o erotismo, mas explica como se dá esse fenômeno em que os desejos humanos, sobretudo o sexual, levam o ser a experimentar sensações que lhe causam uma angústia, mediante os perigos que tal desejo acolhe. Seguindo essa compreensão, o autor diferencia homens e animais a partir da consciência que ambos possuem em relação à sua atividade sexual (2013, p. 35). A atividade sexual de reprodução é comum aos animais sexuados e aos homens, mas, aparentemente, apenas os homens fizeram de sua atividade sexual uma atividade erótica, ou seja, uma busca psicológica independe do fim natural dado na reprodução e no cuidado com os filhos. Seres humanos e animais diferenciam-se pelo que Bataille intitula por “descontinuidade”, na experiência humana, o erotismo configura-se 316 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e como uma “tentativa” de retorno à imanência e “continuidade” realizadas pelos animais, nesse sentido, a experiência humana provoca o rompimento com os compromissos culturais e a profundidade do encontro consigo mesmo. 2.1 Da descontinuidade à continuidade O homem, ao longo da história, foi o grande responsável pela criação de meios, que pudessem mostrar sua diferença em relação aos animais. Vivendo sob a cultura, criou o trabalho como uma forma de vida organizada e padronizada, essa condição de trabalho faz com que o homem esteja envolvido no sistema da descontinuidade, que pode levar a uma forma de vida sob rótulos e sem entrega as experiências de transformação. Na medida em que se beneficiava desta criação, o homem tornava-se um ser aprisionado por ela. Em contrapartida, o homem estando fora de sua condição animal, põe-se em liberdade a partir da experiência erótica, a experiência de sua ligação com outro indivíduo, pois seus desejos o movem a um estado, em que não é possível ser controlado pela razão. Bataille diz (2013, p. 30) Creio que o erotismo tem para os homens um sentido que a abordagem científica não pode atingir. O erotismo só pode ser considerado se, considerando-o, é o homem que é considerado. Em particular, ele não pode ser considerado independentemente da história do trabalho, não pode ser considerado independentemente da história das religiões. A experiência do ser humano como ser não é uma experiência fora da sua relação com o trabalho e com as religiões. A condição humana parece ter se estruturado, como aponta Bataille, por essas duas instâncias culturais. É essa descoberta como ser incompleto que faz o indivíduo ir ao encontro de sua própria continuidade, isto é, em busca de uma “continuação” ou complementação de seu ser num outro. Nesse sentido, sua integralidade individual e consciente parece estar sempre ameaçada pelo erotismo, que põe em xeque as formas estabelecidas. 317 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Esse movimento erótico da descontinuidade para a continuidade estaria, segundo Bataille nas bases da reprodução. observando que “a reprodução coloca em jogo seres descontínuos” (BATAILLE, 2013, p. 36), Bataille afirma que desde a geração da vida, todo indivíduo nasce de uma união de morte, pois os gametas feminino e masculino deixam de existir para formar um novo ser. “Tentarei mostrar que, para nós que somos seres descontínuos, a morte tem o sentido da continuidade do ser: a reprodução leva à descontinuidade dos seres, mas põe em jogo sua continuidade, ou seja, está intimamente ligada à morte” (2013, p. 37). A continuidade é gerada a partir do momento em que o indivíduo, consciente de sua própria identidade, movido pelo desejo de conhecer-se, quebra com sua condição individual, deixando as seguranças da consciência pela via do erotismo para conectar-se com o outro. 2.2 Erotismo como transgressão Diferenciando-se dos animais, além da forma como conscientemente realiza sua atividade sexual, o homem é um ser que realiza o trabalho e dele sobrevive (BATAILLE, 2013, p. 54). Sabemos que os homens fabricaram ferramentas e as utilizaram para prover sua subsistência; depois, sem dúvida em pouco tempo, para satisfazer “necessidades” supérfluas. Numa palavra, distinguiram-se dos animais pelo trabalho. A vida do homem, a partir do trabalho, possui uma organização, uma série de regras, para que a sociedade se mantenha em ordem. Essas regras de ajuste ou de manutenção social recebem o nome de interditos, que para Bataille recaíram inicialmente sobre a atitude para com os mortos e a atividade sexual (BATAILLE, 2013). Esses interditos fundamentais – assassinatos e relações sexuais – estão geralmente ligados às relações de parentesco. O homem pensou suas formas de descontinuidade, “já que o trabalho, ao que parece, engendrou logicamente a reação que determina a atitude diante da morte, é legítimo pensar que o interdito que regula e limita a sexualidade também foi um contragolpe ao trabalho” (BATAILLE, 318 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 2013, p. 54). Assim, por mais organizada que seja a vida social em meio ao trabalho, o homem observou que a manutenção de sua existência não está unicamente ligada ao trabalhar, lucrar e se alimentar. O desejo pela experiência consigo mesmo e com o outro, tornou o homem um ser entre o trabalho, o interdito (regras e proibições) e a transgressão. Na sua natureza, há sempre a necessidade de romper com aquilo que é organizado, proibido, pois essa forma de vida não completa o que o homem é e “o erotismo é a dança, propriamente humana, que se dá entre esses dois polos: o do interdito e o da transgressão” (BATAILLE, 2013, p. 16). O interdito tanto regula quanto limita, pois anda acompanhado pela transgressão. 2.3 Erotismo como experiência interior Frente a tudo o que realiza na vida: trabalho, experiência religiosa, paixões; o homem experimenta aquilo que o leva ao máximo de si, sendo assim, Bataille afirma que “o erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem” (2013, p. 53). Esse envolvimento com a dimensão interior, vem por sua vez, trazer ao homem: a morte, a violência, a angústia; “o erotismo do homem difere da sua sexualidade animal justamente por colocar em questão a vida interior. O erotismo é, na consciência do homem, o que nele coloca o ser em questão” (BATAILLE, 2013, p. 53). O próprio desejo questiona o homem na sua maneira de ser, tem consciência da existência do trabalho como uma invenção da cultura, algo que afasta de sua continuidade, o deixa como um ser descontínuo. Mexido com essas questões e com a necessidade de romper com os interditos que o impedem de buscar sua continuidade, o homem torna-se um transgressor, mas não nega a existência dessas proibições, pois “a transgressão difere do “retorno à natureza”: ela suspende o interdito sem suprimi-lo” (BATAILLE, 2013, p. 59). Sem o desejo erótico para questionar-lhe sobre sua existência, o ser humano talvez se limitasse a ser apenas objeto do trabalho e da cultura. Para Bataille, “o erotismo, já o disse, é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente” (2013, p.55). Em continuidade, o ser permite voluntariamente perder-se numa experiência sem o controle do racional, essa experiência erótica para 319 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Bataille é dividida em três dimensões: o erotismo dos corpos trata-se da experiência sexual dos corpos, que no humano apresenta a capacidade de domínio sobre a violência e sobre a violação dos corpos, o erotismo dos corações traz a sexualidade corpórea e a contemplação dos amantes no momento que se tornam seres contínuos, e o erotismo sagrado se revela na continuidade do ser, mediante a morte do ser descontínuo através dos ritos solenes; “a experiência interior nunca é dada independentemente de visões objetivas, nós a encontramos sempre ligada a tal ou tal aspecto, inegavelmente objetivo” (BATAILLE, 2013, p. 55-56). Ao embarcar nessa experiência, o homem não sabe o que virá. É uma experiência de profundidade, de intensos questionamentos, que faz o ser humano violentar-se causando a morte de sua individualidade, de sua descontinuidade, para tornar-se um ser contínuo, a partir da entrega erótica a um objeto de desejo. “No plano do erotismo, as modificações do próprio corpo, que correspondem aos movimentos vivos que nos alvoroçam interiormente, estão elas próprias ligadas aos aspectos sedutores e surpreendentes dos corpos sexuados” (BATAILLE, 2013, p. 59). Sem seus desejos, o homem não é capaz de confrontar a si mesmo. Sem questionar-se, o homem não pode ir contra as condições impostas pela cultura e pelo trabalho, não pode realizar seu processo de transgressão. Passando pelo processo de transgressão, as condições incontroláveis da experiência interior causam-no um movimento de violência física e provocando uma reconfiguração de sua condição anterior no mergulho erótico. “Se observarmos o interdito, se lhe somos submissos, deixamos de ter consciência dele. Mas experimentamos, no momento da transgressão, a angústia sem a qual o interdito não existiria: é a experiência do pecado” (BATAILLE, 2013, p. 62). Depois de todo esse movimento, é que o homem tem uma abertura à sua dimensão sagrada, tem acesso ao sagrado. “A experiência interior do homem é dada no instante em que, quebrando a crisálida, ele tem a consciência de dilacerar a si mesmo, não à resistência oposta de fora” (BATAILLE, 2013, p. 62). A partir do momento em que rompe com sua condição anterior, através de uma transgressão erótica, o homem adquire sua totalidade, pois estando na esfera do sagrado, chega ao conhecimento profundo de sua condição contínua. 320 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 3. O apócrifo José e Asenath José e Asenath é um dos textos configurados pela tradição judaico-cristã dentro da categoria dos escritos apócrifos. Diferente dos textos canônicos, os apócrifos não são considerados obras produzidas sob inspiração divina. Situado entre os séculos I a.C. a I d.C. originalmente em grego, o texto é produto da comunidade judaica helenizada de Alexandria, no Egito, durante o período da história judaica chamado de diáspora. Segundo Everson Spolaor (2012, p.12): José e Asenet é uma obra literária que reflete os processos culturais e religiosos de um grupo social em seus diálogos e confrontos com outros grupos sociais, resultando em construções e reconstruções contínuas de identidades de cada grupo. Ela mostra como as identidades se diluem nos processos históricos e revela a fragilidade das bordas e fronteiras identitárias. Neste sentido, o livro pode se considerado uma prova do vitalismo e dinamismo das estruturas que identificam um povo. O texto é considerado como sendo do gênero novela, como observam Silva e Cuesto, trata-se de “uma história para ser contada com o intuito de, a partir da admiração e identificação com os personagens, leva os ouvintes a refletirem sobre suas vidas, atitudes e valores” (2008, p. 49). Para Spolaor (2012, p.12): Muitas pesquisas têm sido feitas em José e Asenet. Algumas tentando ressaltar o aspecto ficcional da obra, outras afirmando uma origem cristã para a obra, algumas fazendo uma leitura a partir da ótica dos oprimidos e opressores, outras, ainda, adotando uma abordagem de gênero destacando a valorização feminina num ambiente grego-judaico-helênico. Fazendo uma análise do texto, observando as atribuições à personagem Asenath, é possível perceber a existência de uma diferença na forma como a personagem é descrita no texto apócrifo e no canônico livro do Gênesis. O apócrifo revela Asenath como uma figura de destaque 321 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e durante a narrativa, já no Gênesis, a personagem aparece apenas três vezes3. É possível perceber que nas três referências no Gênesis, Asenath não é apresentada como uma personagem autônoma e protagonista, uma vez que está sempre ligada às figuras masculinas de seu pai Pentefes e seu esposo José, é sempre descrita como a filha do sacerdote e como aquela que gerou filhos para seu esposo, o que revela a influência sofrida na escrita do texto canônico dentro do contexto de uma sociedade patriarcal. Segundo Alves (2007, p. 11): Desde o mais antigo manuscrito de José e Asenath que nos resta (uma versão siríaca do século VI d.C.) às diversas versões e traduções que foram sendo feitas ao longo da Idade Média, nota-se o interesse mantido nesta história de cunho simbólico. É importante observarmos como Asenath é colocada na narrativa, e para isso, faremos uso da teoria batailleana para analisar o texto dos capítulos 5 a 17, onde a personagem realiza um percurso interior que culmina em processo de conversão religiosa no Deus único do seu amado. 3.1 Asenath da descontinuidade à continuidade Asenath é a personagem principal do texto apócrifo, egípcia, filha do sacerdote mais importante Pentefes. Apresentada como virgem, que rejeita os pretendentes indicados por seu pai, até conhecer José, que vive em um palácio e possui outras sete virgens como servas. Perante o anúncio da presença de José, a primeira atitude da personagem é a fuga. “Nesse momento entrou a correr um jovem serviçal e falou a Pentefes: “José já está às portas do pátio”. Ao ouvir estas palavras, Asenath fugiu da presença do seu pai e da mãe, e subiu as escadas do solar” (JoAs 5, 1); ao esconder-se Asenath, ainda que inconscientemente, realiza uma ação de descontinuidade, cuja necessidade é a preservação de seus padrões culturais. Gn 41, 45, 50 e Gn 46, 20 são os versículos bíblicos onde a figura de Asenath é mencionada. 3 322 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Quando se encontra pela primeira vez com José, Asenath é tomada por sentimentos desconhecidos (JoAs 6, 1): Tendo Asenath visto José, ficou fortemente perturbada no seu íntimo. Seu coração palpitava e seus joelhos vacilavam. Todo o seu corpo tremia e uma grande angústia apossou-se dela. Com fortes suspiros, assim falou em seu coração: “Para onde eu, desgraçada, deverei fugir agora? Onde esconder-me da sua face? Como poderá José, esse filho de Deus, volver os seus olhos para mim, eu que tanto mal falei dele? Entra em cena, o que para Bataille é o desejo erótico, que toma conta da personagem Asenath, colocando todo seu ser em questão. Segundo Bataille “é, em sua totalidade, o ser elementar que está em jogo na passagem da descontinuidade à continuidade” (2013, p.40). O erotismo dos corpos faz com que Asenath suspire e deseje àquele que acabara de conhecer, sendo assim, tem início o processo psicológico, que na personagem provoca “o sentimento de uma violência elementar, que anima, quaisquer que sejam, os movimentos do erotismo” (BATAILLE, 2013, p. 40). Tomada de paixão e vislumbrada com as feições do amado, Asenath atribui a José qualidades divinas: “Agora vem ele a nós, semelhante a um sol divino, em seu carro, dando entrada em nossa casa e iluminando-a com a luz que ilumina toda a terra!” (JoAs 6, 3). Em JoAs 6, 4 Asenath suplica “ó pai, entrega-me a José como sua serva, melhor ainda, como sua escrava! Sim, desejo ser sua escrava para sempre”, observamos o desejo de pertencer a José de forma integral e na condição de escrava, pois “parece ao amante que só o ser amado [...] pode, neste mundo, realizar o que nossos limites interdizem, a plena confusão de dois seres, a continuidade de dois seres descontínuos” caracterizando o erotismo dos corações abordado por Bataille como parte do movimento que envolve Asenath. Por ser muito assediado, José sempre rejeitava presentes e mensagens que recebia dizendo: “jamais haverei de pecar contra Deus, o Senhor, nem contra a face do meu pai, Israel” (JoAs 7, 2). Até então os dois personagens, Asenath e José não tinham estado frente a frente, quando se conhecem, Asenath é rejeitada por José por sua cultura e religião, 323 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e alegando adorar o “Deus vivo”. Foi o suficiente para perturbar e provocar Asenath a experimentar uma mudança drástica em sua existência. 3.2 Experiência interior e transgressão de Asenath A experiência interior de Asenath inicia com a rejeição de seu amado. A crença no Deus único não permite que José mantenha contato com Asenath, que por sua vez, se isola em seus aposentos e já dirige orações ao deus de José, iniciando seu despojamento. Então tirou suas vestimentas reais e vestiu o vestido de luto. Desprendeu o cinto de ouro e cingiu-se com uma corda tirou o turbante, o diadema, os braceletes e as fitas de ouro e amontoou tudo isso no chão. [...] Depois, reuniu o grande número de estátuas de seus deuses feitos de ouro e prata, que se encontravam no quarto, quebrou-os em mil pedaços e atirou-os pela janela, aos mendigos e necessitados. (JoAs 9, 6-7) É necessário Asenath passar por este processo de renúncia para dar início a sua conversão, pois “sem uma violação do ser constituído – que se constituiu na descontinuidade – não podemos conceber a passagem de um estado a outro essencialmente distinto” (BATAILLE, 2013, p. 40). Ao converter-se, Asenath assume sua paixão por José e a revela ao deus de seu amado: “[...] eu confesso, meu senhor, eu o amo mais do que à minha própria alma. Conserva-o na sabedoria da tua graça, e entrega-me a ele como sua serva e escrava, para que eu possa lavar-lhe os pés, preparar-lhe a cama, e em tudo servi-lo com submissão atenção, como sua escrava, nada mais que escrava, por todos os dias da minha vida” (JoAs 13, 7). Neste sentido, a personagem realiza o que Bataille caracteriza como perda voluntária, quando conscientemente ela deixa envolver-se pelo erotismo que a questiona enquanto ser. Ao converter-se, ocorre a morte simbólica da personagem, que em seguida recebe a visita de um anjo que a seus olhos se assemelha a José. O anjo pede a Asenath que termine o jejum e o luto e retorne já 324 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e de novas vestes “vai agora mesmo ao teu segundo quarto, desveste a roupa de luto com que te cobriste e tira dos teus quadris a veste de penitência! Remove as cinzas de tua cabeça! Lava as mãos e o rosto com água pura e veste uma roupa branca e intacta!” (JoAs 14, 7). Asenath está tomada do erotismo sagrado, sua experiência interior e o contato com o anjo a preparam para casar-se com José. “No dia de hoje o Senhor te deu a José como sua noiva; ele será o teu esposo para sempre” (JoAs 15, 3). O anjo a convida para um banquete sagrado, onde observamos cenas com uma alta carga de simbolismo erótico no decorrer da narrativa com a presença de abelhas que fabricam o mel no paraíso das delícias. Esse favo é na realidade o espírito da vida, e foi preparado pelas abelhas do paraíso das delícias, extraído do orvalho e das rosas da vida do paraíso de Deus, bem como de todas as suas outras florações. [...] Com a própria mão tomou outra parte e chegou-a à boca de Asenath, dizendo: “come tu também!” E ela comeu (JoAs 16, 7-8). Bataille (2013, p. 62) explica que a experiência interior do ser humano equivale a saída de uma borboleta do seu casulo, ao quebrar a crisálida, a borboleta sofre uma drástica modificação assim como o indivíduo convertido, sua metamorfose ocorre sem que as forças externas interfiram nesse acontecimento pessoal. Segundo Branco (2004, p. 9): A ideia de união não se restringe aqui apenas à noção corriqueira de união sexual ou amorosa, que se efetua entre dois seres, mas se estende à ideia de conexão, implícita na palavra religare (da qual deriva religião) e que atinge outras esferas: a conexão (ou re-união) com a origem da vida (e com o fim, a morte) a conexão com o cosmo (ou com Deus, para os religiosos), que produziriam sensações fugazes, mas intensas, de completude e de totalidade. Pode-se observar que a personagem Asenath está pronta, rompendo com sua condição cultural anterior e aderindo ao Deus único, pode então casar-se com José, já que tudo o que impedia o relacionamento entre ambos foi solucionado a partir de um processo de mudança radical de vida. 325 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 4. Conclusão A narrativa José e Asenath apresenta uma composição de extrema beleza poética e simbólica, fazendo-se uma contribuição da comunidade judaico-helênica para literatura. Asenath foi tomada de um potente desejo sexual, um amor que lhe causou sofrimento, a personagem foi impulsionada a um mergulho erótico sobre sua existência, realizando um processo de conversão com arrependimento e renúncia sob sua antiga condição cultural, a egípcia. Transgredir seu modo de vida é uma condição necessária para que se efetue o desejo erótico. A experiência do ser em totalidade coloca Asenath sob uma nova vida e lado daquele que ama. Sendo assim, apesar desse mergulho erótico causar desconforto, angústia e colocar o indivíduo frente ao desconhecido, o percurso é necessário para que o ser humano na figura de Asenath atinja a totalidade do seu ser, pelas vias do erotismo que gera para o indivíduo seu autoconhecimento. 326 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALVES, S. M. José e Asenet: uma criação da literatura peculiar. Dissertação (Mestrado em Estudos Clássicos) – Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. Lisboa, 2007. SILVA, F. R., CUESTO, R. V. José e Asseneth – Pensando identidade e etnia a partir do texto e seu contexto. Revista Eletrônica âncora, São Paulo, v. IV, 2008. BRANCO, L. C. O que é erotismo. São Paulo: Brasiliense, 2004. SPOLAOR, E. José e Asenet: construção de identidade judaica na diáspora em Alexandria. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2012. BATAILLE, G. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. 1. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. [ Volta ao Sumário ] 327 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e exoRCização do mal: Ritual de cura e libertação no cenário neopentecostal da igreja internacional da graça de deus Antônio Santos Como referenciar este capítulo: SANTOS, Antônio. Exorcização do mal: Ritual de cura e libertação no cenário neopentecostal da Igreja Internacional da Graça de Deus. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 328-344. Antônio Santos1 1. Introdução O papel por excelência da religião é ajudar o homem na formulação de um conceito adequado da vida. Ela tem por objetivo dar sentido ao indivíduo para viver em meio ao contexto social. Além de tornar o indivíduo capaz para enfrentar os problemas sociais com dignidade e perseverança. A religião sempre teve presença marcante em toda a história das sociedades por ser um fenômeno inerente à cultura. Sendo assim, ela influencia em todos os movimentos que promovem e mantêm políticas sociais, que definem as regras e os padrões para a convivência. Ela oferece ainda a direção ao pensamento, à ação e ao sentimento humano. Segundo a Sociologia da Religião, área de estudos da Sociologia, a religião é uma das estruturas mais fortes do sistema social, porque ela é capaz de manter a ordem social estabelecida, além de ser um dos mecanismos mais viáveis de associação humana. A sociedade é a criadora dos conceitos religiosos e morais, que vão pautar as condutas humanas, apesar de o homem ser, por natureza, irreligioso e amoral. Para O’Dea (1969), a religião consegue enobrecer o homem e civilizá-lo, mantendo a moralidade, a ordem pública e oferecendo-lhe paz interior. Entretanto ela também pode incentivar o fanatismo, a intolerância e a ignorância prejudicando o progresso social. De acordo com a vertente sociológica da teoria funcionalista, a religião é uma das instituições que constitui o sistema social. Por ser uma atividade humana que dita normas de comportamento que são aceitas pelos seus membros como legítimas e obrigatórias, ela se constitui em uma instituição de fundamental importância para manutenção do equilíbrio do sistema social como tal. Antônio Santos, Mestrando em Ciências da Religião – Universidade Federal de Sergipe (UFS), Pós-Graduação em Ciência das Religiões: Metodologia e Filosofia do Ensino, Graduado em Teologia e História. http://lattes.cnpq.br/9749954816179687 E-mail: pr.antoniostos@gmail.com. 1 329 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e De acordo com Berger (1985), A religião é o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado. A religião é a cosmificação feita de maneira sagrada. Por sagrado entende-se aqui uma qualidade de poder misterioso e temeroso, distinto do homem e, todavia relacionado com eles, que se acredita residir em certos objetos da experiência (p. 38). Pode-se dizer, portanto, segundo Berger (1985) que a religião desempenhou uma parte estratégica no empreendimento humano da construção do mundo. A religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo. A religião está inserida no fenômeno cultural e, enquanto elemento da cultura define a ação de seus membros, influenciando o pensamento, sentimentos e comportamentos de seus fiéis. “A cultura é a criação, pelo homem, de um mundo de ajustamento e sentido, no contexto do qual a vida humana pode ser vivida de maneira significativa” (O’DEA, 1969, p. 11). Durkheim (apud 1969), o pioneiro da sociologia da religião, qualifica a religião como a mais elevada fonte de toda a cultura, uma “coisa social”, em que o culto a Deus é um culto da sociedade enquanto uma entidade viva e personalizada, com o intuito de regular o comportamento humano. É importante observar que, segundo Durkheim (1989 apud GOODY, 2012, p. 26), a dicotomia sagrado/profano existe dentro do sistema de coordenadas do ator; ele afirma estar lidando com conceitos que estão presentes em todas as culturas, e que são significativos para o próprio povo. Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam uma característica comum: elas pressupõem uma classificação de todas as coisas, reais e ideais, sobre as quais os homens pensam, em duas classes ou grupos opostos, geralmente designados por dois termos distintos que são bastante bem traduzidos pelas palavras profano e sagrado (GOODY, 2012). A religião dita regras de conduta com objetivos de dominação, mas é o homem, em sua liberdade fundamental, que vai optar em segui-la ou não. Pois todos os homens nascem iguais e dotados de certos direitos 330 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e inalienáveis, entre os quais à vida, à liberdade e o direito à felicidade! O homem tem o poder de escolher a religião que pode lhe proporcionar segurança e bem estar. É por este motivo que para a teoria funcionalista, a religião, contribui para humanidade, porque esta pode oferecer aos seus membros uma referência a um além, que transcende a sua experiência que é finita. Ou seja, o problema do sentido da vida do homem está relacionado com o desejo do próprio homem de estar no controle de sua vida. Por essa razão, a humanidade busca na religião uma resposta para o enfrentamento de seus problemas com mais segurança, na tentativa de diminuir as suas frustrações e privações. “Em outras palavras, os homens exigem respostas referentes ao destino humano, às exigências de moralidade e disciplina, aos males da injustiça, sofrimento e morte” (O’DEA, 1969, p. 22). Este sociólogo cita algumas das funções da religião que são a de oferecer ao homem um apoio emocional para incerteza, um consolo para decepção, através da invocação do além, trazendo ao homem o bem-estar em saber qual será o seu destino. “O crente que se comunicou com seu deus [...] é um homem mais forte. Em seu íntimo, sente mais força, seja para enfrentar as provas da existência seja para dominá-las” (O’DEA, 1969, p. 24). Bourdieu (1998) ao analisar a teoria da religião de Max Weber observa-se que os profetas e sacerdotes são os dois agentes da sistematização e da racionalização da ética religiosa. Mas também intervém neste processo um terceiro fator de grande importância: trata-se da influência daqueles sobre os quais os profetas e o clero procuram agir eticamente, ou seja, os leigos. A ética religiosa influencia o pensamento do homem em todas as instâncias sociais, seja na economia, na política, no lazer e na ciência, etc. Muitas vezes algumas regras entram em conflito com os desejos humanos e são então proibidas por serem consideradas profanas, portanto, produtos do ascetismo religioso. O Brasil na formação de sua matriz religiosa, teve como contribuições o pensamento e a prática de várias religiões. Desta forma, percebe-se que no mesmo encontramos um pluralismo e uma diversidade religiosa que precisam ser respeitados. Como diz Guerra (2000), o 331 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e pluralismo religioso é ocasionado devido a necessidade do sagrado adequar-se aos desejos e peculiariedade dos consumidores. Conquistado, colonizado e catequizado pelos portugueses, o Brasil foi um país oficialmente católico por quase quatro séculos. Entretanto, ao longo dos anos a Igreja Católica vem sofrendo a concorrência das doutrinas protestantes, já difundidas no país desde o século XX. No Brasil existe uma grande massa de católicos não-praticantes, proveniente da resistência da Igreja Católica a se adaptar a modernidade. Eles afirmam serem adeptos da religião, por frequentar cerimônias como casamentos e batizados, mas não toma parte regularmente de ritos como a missa aos domingos. Esses católicos muitas vezes discordam dos ensinamentos morais da Igreja por estes não serem adaptados a modelos do mundo contemporâneo como o relativismo cultural e o ceticismo científico. Na tentativa de atrair e manter os seus fiéis o Movimento de Renovação Carismática vem se aproximando da visão das Igrejas protestantes, com o intuito de oferecer aos consumidores católicos uma liturgia atraente,tendo como figura mais evidente o padre Marcelo Rossi, religioso paulistano que se tornou um fenômeno de mídia, outros como: Antônio Maria, Fábio de Melo, Reginaldo Manzotti e Alessandro Campos. Conforme Mariz (2009), no percurso da sua pesquisa sobre as “novas comunidades” inspirados pelos documentos do Concílio Vaticano II, a natureza missionária da Igreja Católica e a vocação missionária de cada um dos seus adeptos.Mariz (2009) afirma que: Com efeito, no Brasil, a Renovação carismática tem crescido muito dentro da Igreja Católica, reanimando a prática religiosa,reunindo os fiéis em grupos e criando comunidades de dimensões nacionais, algumas com regras similares a ordens religiosas e com projetos missionários (p. 171). Os discursos assumidos pelo indivíduo religioso transmitem em suas práticas litúrgicas a ideia do pecado, a qual faz com que os fiéis acreditem que tudo aquilo que ele pratica de “errado” estará desagradando ao seu Deus e consequentemente atraindo para si um castigo. Esse entendimento concentra nas mãos do agente religioso um controle de dominação da consciência dos seus seguidores. 332 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Quando pensamos na Reforma Protestante por volta de 1500, observamos os fundamentos da velha sociedade medieval ruídos, no sentido de desestruturados, e uma nova sociedade, com uma dimensão geográfica muito ampla e com transformações nos padrões político, econômicos, intelectuais e religiosos, começava a surgir lentamente. As mudanças foram revolucionárias, por sua natureza e pela força de seus efeitos sobre a ordem social. Martinho Lutero em 31 de outubro de 1517 afixou suas 95 teses, na porta da Igreja do castelo de Wittenberg, onde nelas condenava os abusos do sistema das indulgências e desafiava a todos que tomassem conhecimento delas para um debate sobre o assunto. O bem conhecido termo “Reforma Protestante” foi consagrado pelo tempo. Visto que a Reforma foi uma tentativa de voltar à pureza original do cristianismo do Novo Testamento é sábio que se continue a usar o termo para descrever o movimento religioso de 1517 a 1545. Os reformadores estavam interessados em desenvolver uma teologia que estivesse em completa concordância com o Novo Testamento eles, criam que isso seria possível a partir do instante em que a Bíblia se tornasse a autoridade final da Igreja (CAIRNS, 2008, p. 250). Diferentemente do catolicismo que adentrou no Brasil desde o início da colonização o protestantismo difundiu-se com o apoio de intelectuais, humanistas, estudantes e da nobreza. A partir daí, inúmeras vertentes foram formadas, sempre tendo um pensador central como seu mentor que fundaram suas próprias religiões, impulsionando a revolução protestante. 2. Protestantismo histórico O protestantismo histórico, originário da reforma do século XVI, outra mais precisamente no século XVIII, e que atua no Brasil, dentre elas, a Presbiteriana, Batista, Luterana e a Metodista. São grupos religiosos que se caracterizam pela sua conversaçãoracional e sistemática,fundamentada numa liturgia salvacionista, com incorporação de valores tradicional, 333 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e ratificado nos escritos Veterotestamentário e Neotestamentário dasEscrituras Sagradas, onde a Bíblia é aceita no seu todo como fonte de inspiração de Deus para o indivíduo. A Bíblia é uma fonte de saber religioso socialmente reconhecida ontem e hoje, por católicos, evangélicos, afro-brasileiro, no campo e na cidade, por bandidos e policiais, por moradores do centro e da periferia, por políticos e leitores. Inserida nesta dinâmica, não por acaso, na era da informação, em pleno século XXI, a Bíblia continua sendo um poderoso “recurso cultural” para o desvendamento do mundo e para ancorar escolhas religiosas com efeitos políticos (NOVAES, 2003, p. 33). Os pastores que exerce liderança ou o púlpito para proferir seus discursos têm formação teológica feita possivelmente nas Instituições teológicas da própria denominação de fé, ou seja, uma teologia exclusivamente confessional. Os lideres são preparados não apenas teologicamente, mas também em outras áreas do saber, como Administração, Direito, Sociologia, Filosofia, Psicologia Pastoral, com o objetivo de tornar o agente religioso realmente capaz dando-lhes as ferramentas necessárias para que durante a sua jornada no ministério e desenvolvimento da sua missão, possam ajudar os fiéis a enfrentar os problemas individuais e as questões existenciais complexas, utilizando a racionalização na resolução dos conflitos existentes. As resoluções teológicas concernente aos assuntos complexos são respondidas para os fiéis nas Escolas Bíblicas Dominicais. São questões bastante trabalhadas como: provar biblicamente a existência de Deus; em que aspecto Deus é diferente e igual ao homem? Como Jesus pode ser plenamente Deus e plenamente homem, e ainda assim uma pessoa. A questão do batismo com o Espírito Santo para o protestantismo histórico baseia-se na a experiência relatada no livro de Atos dos Apóstolos (Capitulo 2:1-13), cumprimento da profecia do profeta Joel (Capitulo 2:28 e 29), que para esse grupo, foi um fato único. O Espírito Santo já veio e está na terra, não precisando desta forma de rituais para recebê-lo. A cura divina e a libertação do indivíduo é uma parceria de Deus e do próprio indivíduo, cada um desempenhando o seu papel. Deus pode curar, como também pode não querer curar, vai depender da fé do 334 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e indivíduo, do esforço que este faz para adquirir e fazer por onde o milagre acontecer. Tem alguns textos bíblicos, que ajudam a entender o processo, como: “Sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam” (Carta aos Hebreus, capítulo 11, versículo 6). “Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito” (Carta aos Romanos, capítulo 8, versículo 28). Um dos grandes fatores pelos quais as religiões tradicionais perdem espaço para as pentecostais que conseguem se adequarem a pós-modernidade, seja o fato de que enquanto as tradicionais insistem numa ética de salvação que expressa grandes princípios dogmáticos universais transcendentes, as pós-modernas pregam e agem fora desistemas de verdades eternas e firmam-se na pura contingência das necessidades imediatas (MENDONÇA, 2006). 3. Protestantismo pentecostal As Igrejas do protestantismo pentecostal vêmascendendo na sociedade em virtude de suas práticas litúrgicas. A primeira dentre elas é a Igreja Evangélica Assembléia de Deus, conhecida pela ação do sobrenatural no campo religioso e pela busca incessante pelo dom do Espírito Santo, que diferentemente do grupo histórico, acredita que a graça de falar em línguas estranhas, fenômeno denominado de glossolalia, é a evidência de que o indivíduo é salvo. Os missionários suecos Daniel Berg e GunnerVingren chegaram ao Brasil em 1911 e foram recebidos em uma Igreja Batista local em Belém do Pará.Os pontos de atritos entre os missionários e a estrutura eclesiástica da igreja Batista logo ficaram evidentes. Os dois missionários foram expulsos e, com alguns fiéis batistas organizaram a Igreja Assembléia de Deus no mesmo ano. Esse grupo, desde a sua fundação, esteve sempre ligado à idéia de simplicidade, tanto por parte dos pregadores que utilizavam um conteúdo que oferecia aos fiéis a possibilidade de alcançarem a santificação através da busca incessante do Espírito Santo. 335 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e “A glossolalia, como ação do Espírito Santo na vida dos fiéis, gerou polêmica no interior do campo religioso brasileiro; divisões, e a formação de novos grupos.E continua a despertar a curiosidade de muitos, seja pelo estado especial a que o fiel é submetido nessas situações ou simplesmente porque permanece como fenômeno inexplicável para a maioria que dele participa ou que a ele assiste” (MENESES, 2008, p.130-131). Os outros grupos de Igreja, no qual identificamos práticas pentecostais e outras tais, como o ritual de cura divina, são a Igreja do Evangelho Quadrangular, fundada em 1951; a Igreja o Brasil para Cristo, fundada em 1955 e a Igreja Deus é Amor, fundada em 1962. O marketing é a marca forte desses grupos pentecostais para a ampliação de suas idéias e conquista de espaços no disputado mercado de bens simbólicos existente no interior do campo religioso brasileiro. Segundo Montero (2009), o sucesso de uma religião dependeria de sua capacidade de tornar-se espetáculo e de chamar atenção da mídia, ou seja, experiências televisivas como as do pentecostalismo e neopentecostalismo nos anos 1980 e dos carismáticos na década subsequente alteraram os espectadores da cena religiosa. Além disso, conforme a autora, não é um fenômeno recente a questão de concessão pública de canais televisivos e de radiodifusão a confissões religiosas. O ritual de cura divina também constitui um grande instrumento divulgador do desempenho da igreja na conquista de adeptos, se utilizando de práticas terapêuticas, no intuito de conseguir fiéis. As religiões pentecostais interagem com o Deus transcendente que age em outra escala de tempo, que opera no indivíduo, onde não há verdades eternas, mas verdades provisórias. Enquanto os históricos não satisfazem a esperança utópica do indivíduo, esses mesmos indivíduos acabam emigrando para outras religiões que pregam esperança e soluções imediatas. 4. protestantismo neopentecostal O neopentecostalismo é um segmento novo e sedutor para a pesquisa, pelo fato de reformular os discursos e liturgias desse outros 336 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e segmentos “históricos e pentecostais”, que já vem atuando no Brasil há mais tempo. Através desta fusão, os neopentencostais vêm conseguindo atrair adeptos. Dentre as Igrejas que estão arroladas nesta classe religiosa, citamos a Igreja Universal do Reino de Deus(IURD), Igreja Mundial do Poder de Deus, Renascer em Cristo e Igreja Internacional da Graça de Deus. No entanto iremos nos limitar à Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD), pela suas particularidades. Uma das principais características das igrejas neopentecostais é a ênfase na figura do líder religioso, e a IIGD possui um dos líderes mais influentes do País, Romildo Ribeiro Soares, conhecido como R. R. Soares. Ele adotou essa abreviatura para evitar qualquer constrangimento com outros pregadores que poderiam se chamar Romildo e, possivelmente, trazer escândalo para a obra. Nascido em 6 de dezembro de 1947, na pequena cidade de Muniz Freire, Estado do Espírito Santo. Capixaba de família humilde teve de trabalhar desde cedo. Ainda criança trabalhou um período plantando milho nas terras do avô, depois foi sapateiro e, aos 12 anos, começou a trabalhar no cinema da cidade, tornando-se gerente daquela unidade. Ele ajudava a exibir filmes aqui (Muniz Freire) e em Anutiba (cidade vizinha). Ficou pouco tempo na função, pois em seguida foi para o Rio, conta o primo Rubens Ribeiro Soares. No Rio de Janeiro, Romildo, com um dos seus irmãos (Adilson Soares), começou a vender roupas de porta em porta. “Comprávamos em São Paulo e vendíamos no Rio. Naquela época não havia problema de assalto, então as pessoas nos atendiam bem em casa” recorda-se Adilson ( REVISTA GRAÇA – Show da Fé, 2005, p. 49). Converteu-se ao Protestantismo aos seis anos de idade em uma igreja tradicional e aos 11 anos, em Cachoeira do Itapemirim, foi convidado por seu primo a conhecer o aparelho televisor que era novidade na época e ficou impressionado ao ver como as pessoas ficavam atentas ao assistirem à programação. Aos 20 anos de idade ganha um exemplar do livro “Curai os enfermos e expulsai os demônios”, do Dr. Osborn, que na época era missionário e escritor norte-americano. A partir da leitura desse livro aconteceu o chamado para a pregação do “Evangelho Pleno”. 337 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Mais adiante surge Edir Macedo, seu cunhado e irmão de fé desde a época da Igreja Nova Vida. Ambos fundaram a igreja da Benção que funcionava em uma antiga funerária, ou seja, um galpão. Em 1977 a igreja da Benção sofre alteração em seu nome passando a se chamar IURD. Em 1980 Soares decide deixar a IURD e funda a IIGD. Esta Igreja foi estabelecendo sua doutrina com ênfase na “cura divina”, realizando reuniões no Rio de Janeiro e em São Paulo sua capital e no interior. Esta igreja nasceu apoiada na teologia da prosperidade, uma doutrina que teve sua origem na década de 40 nos Estados Unidos, mas ficou conhecida como doutrina apenas na década de 70, por meio da confissão positiva, valorização do indivíduo, onde acredita que este indivíduo tem direito de adquirir tudo de bom e de melhor nesta vida. De acordo com Montero (2009), referindo-se ao neopentecostalismo: No caso dos neopentecostais, através das formulações da “teologia da prosperidade”, a noção de acesso aos bens articulou-se, paradoxalmente, não à lógica do mercado, mas à do dom, e contra-dom tão bem estudada pela antropologia. Com efeito, nas práticas discursivas neopentecostais todo indivíduo deve exercer seu “direito à prosperidade” (p. 9). Para a autora supracitada, no que diz respeito a legitimidade política de algumas categorias religiosas no contexto do neopentecostalismo, particulamente pelas práticas discursivas da IURD, na figura do seu fundador, o bispo Edir Macedo, principal expoente da “teologia da prosperidade”, que atribui ao dinheiro, o sentido de “vida em abundância e desqualifica o “pobre” como o sujeito e objeto da ação política. Esta Igreja vem utilizando como ferramenta de evangelização contemporânea o poder da mídia, oferecendo em troca ao telespectador um consolo para suas mazelas e esperança de prosperidade, cura, libertação, paz interior e soluções imediatas. A Igreja da Graça possui rádio,revista, jornal, portal na web, rede de emissora de televisão denominada Rede Internacional de Televisão acessível nas principais cidades do Brasil, além de exibir um programa diário em horário nobre e nas madrugadas da Rede Bandeirantes, editoras, gravadoras e realiza megaeventos no Brasil e em outros países. 338 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e R. R. Soares possui um discurso fortemente personalizado em seu programa, investe milhões de reais em conteúdo religioso veiculado nos meios de comunicação de massa, sobretudo na televisão, meios em que veicula o “Show da Fé”. Em sua programação televisiva o “Show da Fé” apresenta quadros musicais e exposição da Bíblia além de outros como: “Novela da Vida Real”, “O Missionário Responde”, “Abrindo o Coração”, “Momento da Nossa TV”, e, as quinta-feira é exibido o desenho “Midinho, o Pequeno Missionário” e ao final, a “Oração da Fé”, onde o missionário revestido de autoridade religiosa faz uma oração em nome do Cristo, expulsando todo espírito maligno que estiver atormentando o indivíduo e em seguida dá-se a oportunidade para os fiéis testemunharem a respeito da graça recebida. 5. Ritual de cura e libertação Oração da Fé: É o momento em que a oração é dirigida aos telespectadores com o objetivo de curar e libertar de diversos males. A oração da fé, segundo o portal ongrace.com é mais que um pedido a Deus; é uma ordem ao inimigo, que se esconde por trás do sofrimento, para que pegue tudo dele e abandone quem ele tem afligido, ou seja, ela leva a um diálogo com o divino e faz com que o indivíduo se acerte com Deus, e, então, o doente é levantado. Segundo o missionário Soares, a base bíblica para a “Oração da Fé” é o relato do evangelista Tiago, capítulo 5, versículos, 14 e 15 que diz: “Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da Igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo, em nome do Senhor. E a oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados” (Almeida Revista e Atualizada – ARA) De acordo com Soares (2015) Escrevo como ministro do Evangelho, e, como tal, venho trazer-lhe a revelação de como fazer a oração que funciona. Tenho certeza de que, se esse entendimento penetrar em seu espírito, haverá de transformá-lo completamente. A oração da fé é muito forte e operante (SOARES, 2015, p. 9). 339 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O ritual de cura divina e a libertação estão atrelados à oração fervorosa do missionário e dos obreiros da instituição religiosa. É um marco forte no ritual de culto da igreja, se utilizando de práticas terapêuticas, no intuito de captação de fiéis. O ritual foca exclusivamente nos dilemas dos consumidores religiosos, o agente religioso, coloca em dúvida o poder da medicina tradicional e de outras religiões que também tem forte relação com a magia onde as práticas populares de cura, como benzedura, e os rituais de cura do candomblé e da umbanda são criticados. É no ritual de cura e libertação que acontece a exorcização do mal, pois, para a IIGD, o mal é influência externa e traz consequência desagradáveis para o indivíduo, como: doenças, problemas familiares, cegueira, câncer, problemas cardíacos, paralisia, também libertação de vícios de drogas, álcool e até crise financeira. O tempo de duração do ritual de cura e libertação é em torno de 10 a 15 minutos. Listamos abaixo alguns resumos de episódios apresentados durante os programas: 5.1 Exemplo da roteirização do quadro “a oração da fé”, missionário R. R. Soares, fundador da IIGD [...] Deus quanta gente aqui está perdendo a vida, quantas gente está perdendo a honra, está perdendo a saúde, está perdendo o emprego, está perdendo, ó deus muitos anos de vida, porque um espírito maligno foi colocado na vida e separou o casal, entrou pra destruir a saúde dessa pessoa, já não têm mais paz, já não têm mais capacidade de resistir. Ó meu Deus eu estou pedindo agora, envia o teu anjo para tocar, ó pai assim como o anjo do senhor veio e envolveu os pastores, agora venha envolver o povo que está aqui orando, ó Deus começo pisar agora em nome de Jesus Cristo ... pisa no inimigo agora, porque esse demônio não pode continuar, ele está na vista dessa pessoa, está no ouvido da outra, ele está alojado no braço, no coração, nos pulmões, ele está alojado na vesícula,,,, pois Deus nós queremos agora muito poder do senhor, nós queremos muito operação do teu espírito e nós queremos este povo livre, nós queremos este povo liberto, eu estou pisando agora ó pai em nome de Jesus Cristo, eu estou determinando, eu estou dizendo, demônio você vai sair agora, todo o seu trabalho está quebrado, está 340 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e destruído, está agora em nome do senhor Jesus desfeito e vai soltando agora, vai soltando o filho, a filha... esse demônio que está roubando o filho, roubando a filha levou pra o crack, levou pro mau caminho, eu estou pisando nele agora, seja esmagado todo poder do inimigo, seja esmagado todo a doença, todo o sofrimento, toda a obra maligna que está na casa dessa pessoa agora em nome de Jesus Cristo, que está no trabalho, está na família, você já perdeu a batalha demônio, a batalha é nossa, a vitória é nossa em nome de Jesus Cristo cai por terra agora, estamos pisando agora, desfazendo todo o mal em nome de Jesus Cristo, estamos acabando agora com todo o seu poder, com toda a sua enfermidade, com toda a sua obra de macumbaria... vai saindo todo o mal, Jesus é em teu nome, no nome de Jesus é para tua glória ( YOUTUBE, 2016). 5.2 Exemplo da roteirização do quadro “a oração da fé”, do pastor Jayme de Amorim Campos, pastor da IIGD em São Paulo- SP. Ó meu Deus na mesma fé, na mesma autoridade em Nome de Jesus Cristo nós pisamos, ó pai, pisamos a doença, na enfermidade que atormenta essa pessoa, que tira a paz dessa pessoa, aquela dor de cabeça diária e a pessoa não sabe qual é a causa dela...diabo eu estou pisando agora eu recebi autoridade para pisar em serpentes, escorpiões e toda força do mal e nada de mal mim fará, pisa ó meu irmão, pisa no diabo, pisa na cabeça da serpente, pisa nesse mal agora em nome de Jesus, opera na doença maldita, calculo renal, insuficiência renal, nós pisamos toda cirrose, a hepatite, a gordura no fígado, é a doença ventricular, cardiovascular saia, saia, saia, saia... chame esse mal pelo nome e diga: eu estou pisando em você agora, histórico de família de diabetes, histórico de família de pressão alta, estou pisando agora em Nome de Jesus, trabalho de bruxaria, feitiçaria, magia negra, esse demônio que faz essa pessoa vê vultos, faz essa pessoa ouvir vozes, sai em Nome de Jesus, vai embora em Nome de Jesus( YOUTUBE, 2016). Ao final do ritual o agente religioso, pede aos fiéis presentes uma pausa para que apenas ele o líder religioso possa continuar com o procedimento, onde revestido de autoridade divina amarra os demônios que trabalha nos cemitérios, nas encruzilhadas e desafia pra luta todo trabalho que foi feito e no final expulsa em Nome de Jesus. Em seguida pede pra os adeptos erguerem as suas mãos e falarem em voz alta:“Eu tomo posse da minha benção agora em Nome de Jesus”. Em seguida 341 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e pede pra todos os presentes aplaudirem a Jesus e entoarem louvores e dar glórias a Deus. 6. Conclusão Este trabalho propõe também uma visão reflexiva acerca do assunto proposto, considerando a complexidade da temática. A IIGD, comumente denominada Igreja da Graça, é uma dissidência da IURD e foi criada em 1980, no Rio de Janeiro, por Romildo Ribeiro Soares, conhecido como o missionário R. R. Soares. Esta Igreja vem utilizando como ferramenta de evangelização contemporânea o poder da mídia, na busca por fieis. Oferecendo em troca ao telespectador um consolo aqui na terra, livre de doenças e qualquer influência de demônios que traz sofrimento e infortúnio para o indivíduo. Atualmente, a IIGD está presente em todo o Brasil e em países como Estados Unidos, Portugal, Índia, África do Sul e Japão. É reconhecida como igrejacristã pelos demais seguimentos do protestantismo. O ritual de cura divina na IIGD é um dos pontos fortes do culto onde o mal é influência externa e traz consequências desagradáveis para o ser humano, como: doença, problemas familiar, crise financeira que afetam não somente o corpo, mas também sua vida profissional e social. A IIGD percebendo o valioso instrumento por trás da mídia que quando bem aplicados produz resultados positivos, investiu um alto preço, colhendo frutos e continuando até hoje, colhendo e ampliando e modernizando cada vez mais seus aparelhos eletrônicos, reciclando suas táticas de captação defiéis e a arte de vender o seu produto religioso. No mundo contemporâneo, a televisão e as redes sociais passam cada vez mais a atrair a atenção das igrejas cristãs, sejam para utilizarem como um instrumento de evangelização ou para propagarem determinadas ideologias típicas no contexto de quem exerce o seu poder. De acordo com Birman (2003), As referências constantes na mídia a personagens evangélicos nos sugerem que o crescimento de suas presenças está vinculado ao enfraquecimento das crenças unificadoras e totalizantes da 342 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e sociedade nacional. Parece causa e efeito de um relativo esfacelamento das bases religiosas em que se apoiava o projeto hegemônico que se realizava no maior país do mundo”. A visibilidade que veio ganhando o pentecostalismo se relaciona com a instabilidade que se produziu neste processo de fragmentação e de perda progressiva de espaço da Igreja Católica (p. 237). A IIGD é uma igreja evangélica neopentecostal e incorpora elementos de outros segmentos religiosos erealiza um ritual de cura e libertação com o objetivo de desenvolver na vida dos fiéis uma teologia positivista onde acredita que o indivíduo deve gozar do bem e do melhor enquanto estiverna vida terrena. Por fim, concluímos que os meios de comunicação de massa têm contribuído para com o crescimento da IIGD. Este segmento religioso aproveitou-se do cenário religioso propício para o seudiscurso e liturgia da Igreja da Graça, expresso no ritual de cura e libertação, desafiando e expulsando todo tipo de moléstia nos fiéis, encontrando assim, um espaço de aceitação por parte dos ouvintes. 343 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985. BIRMAN, Patrícia (org.). Religião e espaço público. São Paulo: Attar Editorial, 2003. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. CAIRNS, Earle Edwin. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã.São Paulo: Vida Nova, 2008. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas, 1989. GOODY, Jack. O mito, o ritual e o oral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. GUERRA, Lemuel. 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Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 345-356. Maria Fernanda Morais Tavares1 Introdução O presente ensaio discorre sobre o Feng Shui e sua contribuição para o conforto espiritual e/ou a tão almejada paz interior. Esta sabedoria milenar que tem origem no oriente, tem como princípio básico o equilíbrio da energia vital, buscando promover a harmonia dos ambientes para que a energia yang (positiva) circule, atenuando os efeitos da energia yin (negativa). As forças yin e yang têm origem no taoísmo e representam a dualidade existente no universo. Enquanto o yin representa o princípio feminino, a noite, a lua e a absorção, o yang é relativo ao princípio masculino, representado pelo sol, o dia, a luz e a atividade. (Naiff, 2008) A Revolução Industrial que teve início no século XVIII, na Inglaterra, revolucionou o sistema de produção de mercadoria e as relações de trabalho. Entretanto, muito além disso, promoveu transformações econômicas, políticas e, sobretudo, sociais, desencadeando o surgimento de um novo indivíduo: um ser cético e individualista, que se afastou da sua essência humana. O caminho metodológico percorrido, parte da compreensão do surgimento de um novo homem como produto do efeito da Revolução Industrial – e do Iluminismo – do conceito do ser adotado por Possebon (2017) e da visão de espiritualidade como algo transcendente, para, em seguida, pontuar os preceitos do Feng Shui para uma visão holística do ser. Mergulhada no caos apocalíptico, a sociedade atual inicia um retorno ao transcendente – que foi, há séculos, colocado em segundo plano – numa busca desenfreada ao sentido da vida e à paz interior. No bojo deste contexto, o Feng Shui surge como uma das alternativas possíveis para esse reencontro do indivíduo consigo mesmo – e com Graduada em Licenciatura em Letras – Português – pela UFPB e Mestranda pelo PPGCR da UFPB 1 346 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e o cosmos – contribuindo para o alivio de distúrbios psíquicos como a angústia, o estresse, e a depressão, entre outros, ajudando, assim, na promoção da paz interior. O homem industrial A revolução industrial foi um processo gradual e marcado por um conjunto de mudanças que revolucionou, inicialmente, a Inglaterra e, posteriormente, o mundo. As transformações ocorridas a partir deste marco histórico impulsionaram o desenvolvimento tecnológico e científico, mas deixaram como uma das mazelas, o crescimento urbano desordenado, em consequência do êxodo rural, promovendo a flagelação do homem citadino. A vida bucólica campal, cede lugar – a contragosto – à agitação, poluição e os cortiços. O homem rural que, antes, vivia da agricultura de subsistência, passa a conviver com a exploração do trabalho e o desemprego, perdendo o controle do processo produtivo e a posse da matéria prima, do produto e do lucro. De acordo com Durkheim (2003), o homem é um ser eminentemente espiritual, sendo isto, uma característica comum à sociedade humana. Para o sociólogo, a religiosidade (entendida, aqui, como espiritualidade), traz consigo uma missão integradora, que fomenta a solidariedade e a empatia. No entanto, a nova ordem ditada em nome do desenvolvimento, a partir da Revolução Industrial, fez o homem se afastar de sua essência transcendental e adquirir uma Nova Consciência, guiado pelo liberalismo de Adam Smith (2010), que afirmava que o individualismo é benéfico para a sociedade – porque se alguém busca o melhor para si, todos tendem a ganhar com isso. Esse novo homem “vazio e triste”, nas palavras de Nicolescu (1999, p. 8), ou, segundo Elisa Possebon, “aliado ao conjunto de pessoas com tendências à depressão, apatia ou hostilidade” (2017, p. 8), segue, por séculos, naufragando no hedonismo, transformando-se em mais um robô da era tecnológica. 347 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Uma visão do ser O que somos e para aonde vamos são questões que inquietam o homem desde a antiguidade até os dias atuais. Entretanto, com o advento da Revolução Industrial e do iluminismo, esse homem sufocou sua veia existencial, colocando em relevo a razão e o individualismo como fonte de progresso e felicidade. Elisa Possebon afirma que: Aceitamos de forma irrefletida a condição de que as emoções trazem vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, construímos uma identidade coletiva de indivíduos que buscam felicidade e prazer no automatismo consumista, alimentando ignorâncias sobre o universo emocional. (2017, p. 7,8). Passados séculos, em que foi possível atingir o desejado desenvolvimento até chegarmos a famigerada era tecnológica, percebemos que a, também, almejada felicidade ficou no meio do caminho. Em meio a indagações e frustrações, a sociedade tenta, agora, iniciar um retorno à sua existencialidade, no intuito de se reencontrar, juntando os retalhos que sobraram dessa grande colcha materialista. Ao perceber que se afastou de sua condição humana, o homem contemporâneo tenta se reconectar consigo mesmo, impulsionando assim, o (re)surgimento de uma concepção holística, do ser. De acordo com Possebon: Sendo o ser, em síntese, uma entidade complexa e pluridimensional, formada por inúmeros envoltórios (somático, vital, emocional, mental e espiritual), conceitua-se saúde como a harmonia entre estas partes constituintes e doença, a desarmonia entre elas (pág. 44, 2017). O autor explica que a escolha do termo envoltório em lugar de órgãos, se justifica porque “órgão pressupõe alguma localização mais precisa, enquanto que envoltório abrange a totalidade do ser”. (2017, p. 17) É nessa visão integradora que as terapias holísticas se sustentam – e ganham força – proporcionando ao homem contemporâneo novas 348 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e formas de ver e estar no mundo. Por meio de técnicas terapêuticas que trabalham corpo, mente e espírito, é possível desconectar os fios do homem robô – ansioso e insatisfeito – e religar o fio condutor que irá permitir o retorno a sincronicidade que une o homem ao cosmos. Um conceito de espiritualidade Em uma sociedade guiada pelo capital, consumismo e ostentação, onde o ter vale mais que o ser, os valores éticos escoam pelo ralo da frenética corrida diária em busca de sucesso e prosperidade. No entanto, é possível desacelerar, respirar fundo e perceber que há outro mundo mais humano e espiritual. De acordo com Leonardo Boff (Pág. 29, 2006), há dois caminhos que conduzem à espiritualidade: “o primeiro deles se revela na comunhão pessoal com Deus, que inclui o todo, enquanto que o segundo, surge a partir da comunhão com o todo, que inclui Deus”. O Autor pontua que para os ocidentais “a relação com Deus é pessoal e dialogal”, enquanto que o oriente se detém em uma experiência de totalidade – ou não dualidade. Boff ressalta ainda que, de acordo com um mestre budista, “o caminho para dentro é tão perigoso quanto o caminho para fora” (p. 39, 2006). Nos dias atuais, cresce cada vez mais o número de pessoas que, insatisfeitas e angustiadas, buscam na espiritualidade apoio emocional – e alento. Segundo Rohr: Com certa frequência assistimos, hoje em dia, a pessoas se declarando espiritualistas. Sem sombra de dúvidas, recebemos as mais variadas respostas quando perguntamos o que de fato significa isso para essas pessoas. Nelas há em comum: a rejeição do materialismo, seja ele político, econômico, filosófico ou ateístico em geral; a crença numa força superior ao homem, que confere sentido à vida; e, no mínimo, um distanciamento em relação às religiões formais e tradicionais. (p. 13). É no conceito do Dalai Lama – citado por Boff – que define espiritualidade como “tudo aquilo que produz paz interior” (2006, p. 13), 349 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que o Feng Shui surge como uma alternativa rumo à espiritualidade e ao bem estar, porque como bem disse Possebon, “a busca por algo que seja transcendente, que estamos entendendo como espiritualidade, depende de o sistema estar plenamente harmonizado” (p. 45, 2017). O Feng Shui O Feng Shui tem como proposta a integração do indivíduo com o cosmos a partir da captação de energias positivas que possibilitam ao homem receber – e emanar – boas vibrações, com o propósito de harmonizar-se consigo mesmo, com seus semelhantes e com a natureza. O termo Feng Shui (cuja pronúncia, em mandarim, é fon suei) corresponde, respectivamente, a vento e água. De acordo com Boechat, o termo citado é uma combinação das forças que regem a energia vital, pois esta “circula invisível como o vento e desliza suave como a água” (Pág. 7, 2004). A filosofia do Feng Shui desenvolveu-se no oriente, expandindo-se, mais tarde, pelo resto do mundo. Os ensinamentos filosóficos – e morais – que constituem o cerne do Feng Shui, fundamentam-se no holismo, que é uma ideia de base da visão budista do mundo: no universo nada existe separado do todo; há uma unidade essencial de todas as coisas; o homem é parte desta unidade; não é possível qualquer mudança numa parte, sem que o todo seja afetado e, da mesma forma, qualquer mudança no todo afetará cada uma de suas partes. O Feng Shui sustenta-se em três princípios básicos: o primeiro se refere à energia vital ou energia chi (ki, em mandarim), que dá vida não tão somente às pessoas, mas a tudo que nos rodeia; o segundo princípio reza que há um elo entre as pessoas, as coisas, a natureza e a energia chi; o terceiro princípio, por sua vez, indica que a energia chi presente nas pessoas, nos lugares e na natureza como um todo, está em constante transformação. Sendo assim, podemos presumir que a energia chi dá vida a tudo, une tudo – e todos – e é responsável pela constante transformação do mundo. (Tien Pin, 1999) De acordo com Boechat, a energia chi “é composta por cinco elementos básicos: água, madeira, fogo, metal e terra” (p. 8, 2004), que 350 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e são forças, em constante movimento, proporcionando transformação contínua. Ainda de acordo com a autora: Há dois ciclos de interação entre os elementos básicos, que devem ser levados em consideração ao analisar os ambientes. Um (o construtivo) é usado para alimentar, estimular determinado tipo de energia ou sentimento. O outro, ao contrário, serve para bloquear, diminuir o que nos incomoda, ou está em excesso (p. 8, 2004). O primeiro ciclo, que é denominado ciclo criativo, segue um fluxo: “a água alimenta a madeira (vegetação), que nutre o fogo, que produz a terra (cinza), que cria o metal (minerais), que, por sua vez, transporta a água”. (Boechat, 2004, p.9). Na aplicação da técnica do Feng Shui, é necessário estar atento a esse caminho, para que a energia chi seja estimulada. O segundo ciclo recebe a denominação de ciclo da dominação e, assim como o primeiro, também segue um fluxo: “a água extingue o fogo, que derrete o metal, que corta a madeira, que exaure a terra que, por sua vez, obstrui a água”. (Boechat, 2004, p. 9). Nessa situação, o objetivo passa a ser aplicar o Feng Shui para, “por meio do controle, equilibrar um elemento que esteja com excesso de poder”. (Boechat, 2004, p.9) Há duas principais correntes filosóficas do Feng Shui. A escola da Bússola, mais tradicional e adotada na China, tem como principal ferramenta, a bússola de geomancia Luo Pan. Para aplicação dessa técnica, no correto posicionamento dos móveis, é levada em consideração a direção indicada pela bússola mais os conhecimentos da astrologia chinesa. Não irei me deter nesta corrente, por não ser meu objeto de estudo. A segunda corrente é a escola da Forma, que é a mais antiga e serviu de inspiração para o surgimento da escola do Chapéu Preto. Esta corrente, que é mais adotada no ocidente, tem como principal ferramenta o ba-guá, diagrama formado por oito lados em que cada lado representa um setor da vida. No centro do ba-guá está a harmonia de todos os setores, regido pelo elemento terra (que representa a estabilidade) e a cor amarela, que representa a luz. (Occhialine, 2015) 351 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A pronúncia de ba-guá, em mandarim, é pá – kuá e significa oito lados – que representam os principais aspectos da nossa vida. Fonte: domínio público De acordo com Boechat (2004), para aplicar o ba-guá, é necessário utilizar a planta do imóvel (casa, escritório, loja, etc.) e alinhar o setor do trabalho à entrada principal e, a partir daí, verificar em quais espaços estão alinhados os outros setores. A seguir, apresentaremos uma breve orientação de como ativar a energia chi em cada setor (ou guá) do ambiente, a partir das orientações de Occhialine (2015) Trabalho (entrada principal): Deve-se proporcionar uma entrada atraente, porque é por aí que a energia vital penetra no ambiente. Pode-se recorrer a um capacho de cores vibrantes e com mensagem acolhedora e/ou pendurar um sino dos ventos ao lado da porta principal. Espiritualidade (lado esquerdo, imediatamente ao lado da porta principal): Para esse espaço é indicado livros, santinhos, foto do cosmos, velas, pedra ametista, incensos e capela. Esse guá tem como elemento a terra. Deve-se usar a cor lilás em uma parede, em algum móvel ou em almofadas e objetos de decoração. 352 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Família (pela entrada da moradia, está situada no meio, à esquerda da porta de entrada): O elemento que rege esse guá é a madeira e a cor verde. É importante ter nesse espaço fotos da família, plantas, quadros com passagem da natureza ou algo que esteja na família por várias gerações. Prosperidade (situa-se na parede em frente da porta da entrada, do lado esquerdo): O elemento que rege esse guá é a madeira e as cores são o dourado, prateado e cinza. Para fortalecer a energia chi desse guá, deve-se ter uma fonte, quadro com imagem do sol ou de girassóis e luminárias. Sucesso (corresponde ao meio da parede em frente à porta da entrada): O elemento que rege esse guá é o fogo e as cores são vermelho, laranja e amarelo. Objetos indicados para essa área: diplomas, fotos de pessoas bem-sucedidas que os moradores admirem e premiações. Relacionamentos (corresponde ao lado direito da parede em frente à porta de entrada): Esse guá é regido pelo elemento terra e protegido pelas cores rosa, vermelho e branco. Para esse espaço é ideal objetos em pares, fotos do casal, objetos em forma de coração, velas e rosas. Criatividade (está localizado no meio da parede da porta de entrada): Tem como elemento o metal e as cores branco, metálicas, laranja e multicor. Os objetos indicados para esse guá são quadros coloridos, porta retratos com moldura prateada e objetos de arte. Amigos (está localizado imediatamente ao lado direito da porta da entrada): Este guá é regido pelo elemento metal e as cores cinza, branco e preto. Objetos indicados para esse ambiente são fotos dos lugares que deseja conhecer, presentes e fotos dos amigos. Saúde (o guá da saúde está localizado no centro do ba-guá): Corresponde ao elemento terra e é importante ter nesse ambiente plantas e quadros da natureza. 353 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Como elevar a energia positiva nos ambientes De acordo com o Feng Shui, todo – e qualquer – ambiente apresenta dois níveis: o visível, que se refere a tudo aquilo que podemos observar e o invisível, que está relacionado ao que sentimos. Esse invisível pode ser trabalhado para proporcionar bem-estar e paz, ativando a energia chi, o que contribui para o alivio de alguns distúrbios psíquicos.. Para manter a energia chi circulando, é importante manter no ambiente: • Espelhos, porque expandem as energias; • Móveis e pisos de madeira, que harmonizam os ambientes; • O bambu: fonte de boa sorte, saúde e de vida longa; • Plantas, que são elementos captadores de energias negativas; • Velas: são fontes de luz (devem ser sempre acessas com fósforos e apagadas sem sopro); • Sino dos ventos, que ativa a energia dos moradores – ou frequentadores do ambiente; • Os animais domésticos, que absorvem o fluxo negativo, protegendo os moradores. Por outro lado, para manter a energia chi, é necessário evitar: • Objetos e cristais quebrados, porque perdem sua energia; • Livros incompletos ou malconservados, pois concentram a energia negativa; • Relógios parados ou quebrados, bloqueiam a circulação da energia chi • Móveis empoeirados, provocam distúrbios relativos à saúde; • Objetos decorativos de plástico, atraem más vibrações: • Roupas e calçados que não estejam sendo usados, assim como os livros malconservados, concentram a energia negativa • Objetos do mar como caracóis, conchas, estrelas-do-mar, etc.: provocam conflitos entre os moradores ou frequentadores do ambiente. 354 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Considerações finais Parti do entendimento de que a Revolução Industrial trouxe o desenvolvimento científico e tecnológico, mas produziu o homem cético e individualista, o qual denominei de homem industrial. Em seguida, recorri à visão do ser pluridimensional, segundo Possebon, que me levou ao entendimento do conceito de espiritualidade como tudo aquilo que nos proporciona bem-estar e nos harmoniza com a natureza. O cristianismo serviu de sustentáculo para a condução da civilização grego romana, porém, com advento da Revolução Industrial no século XVIII, a razão e o individualismo passaram a ser o fio condutor de uma sociedade outrora mítica e mística. Essa transformação fez surgir o que Weber classificou como “desencantamento do mundo” (Pág. 188, 2012). Desencantada e perplexa, a sociedade contemporânea busca, em meio às suas contradições, reencontrar um caminho que indique uma nova direção ao âmago da existência humana e que possibilite harmonia entre o indivíduo e o mundo que o cerca. Ao fazer uso dos benefícios que o feng shui oferece, o individuo forma um elo com a energia chi, elevando sua espiritualidade, proporcionando bem estar e diminuindo as tensões emocionais que a vida cotidiana impõe. Nesse contexto e no bojo da Educação Emocional, o Feng Shui surge como uma das alternativas possíveis para religar o homem à sua espiritualidade e reconectá-lo ao cosmos, afinal, como bem nos disse Fabrício Possebon “o porquê dessa busca espiritual é transcendente, o indivíduo parece sentir uma força que o motiva, é sua razão de viver, é sua missão na terra”. 355 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ARAGÃO, G. S.; VASCONCELOS, S. S. D.; DE SOUZA, J. R. (Orgs.). mosaico Religioso: Interfaces entre experiências religiosas e leituras científicas. São Paulo: Fonte Editorial, 2016. BOECHAT, C. Feng Shui: Sua casa em harmonia. Coleção CARAS Zen. São Paulo: Editora Caras, 2004. DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. NAIFF, N. Consulte o I Ching. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Era, 2008. OCCHIALINI, S. Feng Shui: O poder de atrair harmonia e prosperidade. São Paulo: Editora Benvirá, 2015. PIERUCCI, A. F. O desencantamento do mundo: Todos os passos de um conceito de max Weber. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2005. POSSEBON, E. G.; POSSEBON, F. (Orgs.). Ensaios sobre espiritualidade, emoções e saúde. João Pessoa: Libellus Editorial, 2017. ROHR, F. (Org.). Diálogos em educação e espiritualidade. 2ª ed. UFPE: Editora Universitária. SASSI, S. O ABC do Feng Shui: 100 dicas para melhorar sua vida. São Paulo: Editora Nova Cultura Ltda, 2004. SMITH, A. A mão invisível. São Paulo: Cia das Letras, 2010. PIN, T. Feng Shui: O caminho do meio. São Paulo: Editora Nobel, 1999 [ Volta ao Sumário ] 356 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e HungBê, eduCação e saBeRes no Cotidiano do ilê axé omilodé Dulce Edite Soares Loss Como referenciar este capítulo: LOSS, Dulce Edite Soares. Hungbê, educação e saberes no cotidiano do Ilê Axé Omilodé. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 357-370. Dulce Edite Soares Loss1 Introdução O presente trabalho é fruto de uma pesquisa em andamento vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História (Mestrado) da Universidade Federal de Campina Grande – Paraíba, na linha de pesquisa 03 (três) História Cultural das Práticas Educativas, intitulada Hungbé: História das Práticas Educativas no Terreiro de Candomblé “Ilê Axé Omilodé” em João Pessoa – PB. Para fins de esclarecimento a palavra Hungbê é de origem ioruba e designa educação de axé nas comunidades de terreiro. A vida cotidiana de um terreiro de candomblé respira tradição histórica cultural africana milenar ressignificada em terras brasileiras por processos recíprocos de ensino e aprendizagem. Edificando-se sobre uma disciplina rígida, por meio de práticas sociais, de rituais litúrgicos que a religião impõe aos iniciados para efetivar sua senioridade, a educação em um terreiro acontece nas rodas de conversas e nas relações interpessoais nestes espaços. Uma gama de saberes circula nestas relações na vida cotidiana de um terreiro com diferentes nuances, tais como: saberes da prática religiosa e ritual; saberes dos ancestrais; saberes das alimentações ofertadas aos ancestrais divinizados; itans (lendas); orikis (rezas); saberes de folhas; saberes da música e dança; fundamentos religiosos (preservados pelo uso do segredo); saberes da linguagem procedente dos valores civilizatórios de uma tradição histórica africana. Uma prática social em que envolve uma construção cultural e humana, a educação em um terreiro de candomblé, viabiliza a sobrevivência dos saberes ancestral e a atualização de padrões culturais, possibilitando a transmissão pelas práticas educativas dos valores, normas de Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Cultural Universidade Federal de Campina Grande, linha 03 História Cultural e Práticas Educativas (PPGHC-UFCG), e-mail dulceloss@hotmail.com. Orientador Professor Doutor Matheus da Cruz e Zica, e-mail matheusczica@gmail.com., lattes.cnpq.br/4536380846550845. 1 358 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e comportamento, preservação da natureza e linguagens próprias difundidas de geração a geração. Diante deste cenário, o presente artigo tem como objetivo geral analisar e identificar o processo educativo e a multiplicidade dos saberes específicos presentes no cotidiano de um terreiro de candomblé. O lócus da pesquisa, o Ilê Axé Omilodé, “Águas na Casa do Caçador”, nação Ketú, está situado à Rua Valdemar Feliz dos Santos, Mangabeira I, João Pessoa – PB. Com trinta anos de fundação, o Axé tem como líder espiritual a Yalorixá (mãe de santo) Francisca das Chagas da Silva, conhecida na sociedade do santo como “Mãe Chaguinha” e como regência ancestral o orixá Oxum (Senhora das Águas Doces). Compreender a dinâmica da preservação dos saberes, dar visibilidade a educação e as práticas educativas culturais dos terreiros de candomblé perante a sociedade contemporânea, discorrer sobre uma cultura de sujeitos, até então oprimidos e constantemente violentados em suas identidades se torna de suma valia considerando que, a história da cultura do negro e seus saberes culturais representam, além de uma expressão de religiosidade, a manifestação genuína das culturas formadoras da sociedade brasileira, a cultura africana. metodologia Com uma abordagem qualitativa, a pesquisa tem como base um conjunto de dados produzidos que devem ser interpretados, compreendidos e contextualizados e não quantificados ou mensurados. Antônio Chizzotti (2003, p. 221) em relação às abordagens qualitativas afirma que “o termo qualitativo implica uma partilha densa com pessoas, fatos e locais que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio os significados visíveis e latentes que somente são perceptíveis a uma atenção sensível (...)”. Após esta experiência o pesquisador em uma hermenêutica traduz em texto os significados patentes ou ocultos do seu objeto de pesquisa. Em um levantamento bibliográfico os teóricos enfocados foram Brandão (2002) em educação popular, Santos (2010) pensamento abissal, Geertz (2008) na cultura, Verger (1995) na religião, Machado (2006) na educação iniciática, dentre outros. 359 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A metodologia aplicada utilizou-se da História Oral Temática, que nos permitiu, perante o tempo presente, a busca da compreensão dos adeptos do candomblé no seu cotidiano religioso, assim como o entendimento das lógicas que movem suas ações. Para o filósofo Gaston Bachelar (2007) o tempo é algo que não é o ontem e nem o amanhã, é o hoje. Passado e presente são elaborações da consciência humana onde somos o centro de projeção no presente. A História Oral caracteriza-se como uma metodologia de pesquisa que busca ouvir e registrar, as vozes dos sujeitos excluídos da história oficial, por meio de entrevistas gravadas, premeditadas de ordem pessoal, com questões abertas e semiestruturadas, e, inseri-los dentro delas, constituindo-se na construção de fontes para o estudo da história contemporânea. Sobre as entrevistas: Robert Bodgan e Sari Biklen (1994) ressaltam que a “entrevista é utilizada para recolher dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, permite ao investigador desenvolver intuitivamente uma ideia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo” (BODGAN e BIKLEN, 1994, p. 134). A técnica das entrevistas semiestruturadas foi aplicada em 03 (três) sujeitos. Conforme previamente solicitado por membros da comunidade religiosa, informamos que os nomes verdadeiros dos sujeitos entrevistados não serão utilizados no presente artigo. Os participantes são codificados pelos nomes dos Orixás aos quais foram iniciados: Xangô, Oxum e Iansã. A participação voluntária dos sujeitos na pesquisa foi oficializada pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, documento fundamental para definir a legalidade do uso da entrevista. Aspectos Éticos da Pesquisa: o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Campina Grande, sob o número CAAE: 96992618 9.0000.5182 e número do parecer 2.981.766. Um olhar ao Hungbê e sua perpetuação em um terreiro de Candomblé A educação, ao longo da história da humanidade, tem sido compreendida e conceituada de diferentes maneiras. Remetemo-nos ao 360 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e século XVI em que o pensamento científico moderno instaura uma racionalidade abissal, dividindo esta realidade “entre aquilo que está na lógica racional, como verdade e aquilo que está fora da lógica racional como residual e incompreensível” (COSTA, 2015, p. 3). O campo da educação historicamente não vai fugir a este paradigma moderno que prioriza o conhecimento racional estruturado e cerceado aos espaços da escola formal em oposição a outras formas de conhecimento tracejado na experiência e nas relações sociais cotidianas. Neste contexto a educação na modernidade se torna prisioneira de uma epistemologia em que o pensamento moderno ocidental hegemônico, cria durante séculos, ”linhas radicais invisíveis que separa os conhecimentos científicos dos não científicos e concede a ciência moderna o monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso gerando a exclusão e a eliminação total de todos os conhecimentos construídos do outro lado da linha tidos como não conhecimentos” (SILVA, 2013, p. 37). A racionalidade abissal anula assim, outras formas de conhecimento, tais como: os saberes populares, saberes indígenas, saberes das comunidades de terreiro e outras formas de conhecimento. Aliás, Boaventura dos Santos referindo a está lógica moderna afirma que estes saberes, “desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso. [...] Do outro lado da linha, não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objetos ou matéria-prima para a inquirição científica.” (SANTOS, 2010, p. 34). Posicionar-se contrária a esta vertente abissal é reconhecer que os terreiros de candomblé são espaços onde se produzem conhecimentos, valores e práticas educativas reais e válidas, ou seja, propomos uma análise inserida na linha da racionalidade pós-abissal, surgida na pós-modernidade, de Boaventura dos Santos. A racionalidade pós-abissal longe de ser delimitadora e excludente, pressupõe uma valorização em que uma gama de saberes e valores vão mais além do que a ciência moderna é capaz de comportar em sua epistemologia excludente. 361 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Boaventura Santos afirma que “o pensamento pós-abissal parte da ideia de que a diversidade do mundo é inesgotável e que esta diversidade continua desprovida de uma epistemologia adequada” (SANTOS, 2010, p. 51). E, ainda, O pensamento pós-abissal [...] é uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o conhecimento é interconhecimento. (SANTOS, 2010, p. 53) Ao nos debruçarmos por este viés epistemológico compreendemos que a educação não apresenta uma única forma, um único saber de conhecimentos válidos, e sim múltiplas formas de saberes construído cotidianamente por homens e mulheres em suas práticas sociais. De encontro ao pensamento epistemológico de Boaventura de Sousa Santos, entendemos como desafios na atualidade a educação pela experiência, a cultura, a oralidade, a prática educativa executada nos terreiros de candomblé e o cotidiano que circulam fora do espaço escolar. Para tal recorremos a Brandão (1984, p. 13) no qual afirma que “a educação existe onde não há a escola e por toda parte pode haver redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra [...]”. E, ainda, “ninguém escapa da educação, em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar [...]” (BRANDÃO, 1984, p. 07). Com métodos próprios de aprender e ensinar, diferentemente da escola, instituição social que tem no seu conceito a construção e socialização de conhecimentos por meio de uma didática previamente estabelecida, “a educação nos espaços de terreiro compreendem um lugar atemporal” (MACHADO, 2006, p. 22). Não seguem uma didática rígida, tampouco uma didática intencionalmente organizada, embora exista uma lógica orientadora como especifica. Sob esta ótica a educação ganha um alargamento nos processos educativos em que o saber está para além de um único local privilegiado 362 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e de circulação de conhecimento e consequentemente de aprendizados. Vejamos a educação na visão de nossos entrevistados: A educação no terreiro está presente nas conversas, nos diálogos e ensinando para o mundo lá fora. Porque terreiro de candomblé, não é só para se dançar, para você comer, para função (obrigação, oro, nota nossa) não, é para você sentar numa roda explicar como as coisas acontecem, o nosso cotidiano do dia a dia, saber instruir como as coisas estão do lado de fora do barracão, porque as coisas não estão fáceis. A gente não vive o candomblé só dentro do barracão, após a porta do candomblé para fora a gente tem que viver também, então o candomblé nos dá lição de vida, noções para reflexão do mundo, de comportamento, ensina como lidar com nossas dificuldades e encarar o mundo, porque hoje o candomblé é muito criticado, a gente é visto na sociedade como pessoas demoníacas, como pessoas que pratica o mal, dentro da nossa sociedade o preconceito é enorme, do lado de fora de nosso barracão e às vezes trás para dentro do barracão e quando traz a gente tem que dialogar, tem que explicar que a gente não tem que se igualar, a gente tem que mostrar às pessoas que não é daquela forma que as coisas acontecem, tem que mostrar o nosso cotidiano, o nosso amor aos orixás, as nossas lições de vida e comportamentos que recebemos dentro de uma casa de axé (Xangô). A nossa educação religiosa vem de nossos Babalorixás. Então dentro do que aprendi no candomblé é oral, é uma coisa que você não vai aprender chegando, você vai aprender no dia a dia dentro de uma tradição. Então você já aprendeu o que é um acaçá? (afirmação feita por a autora ser iniciada). Quando meu pai de santo disse assim pra mim, minha filha vá fazer um acaçá, ele não me disse o que era então eu recorri á minha mãe pequena. Minha mãe pequena foi me dizer que massa era como preparava a massa, e mandou eu (sic) ir fazer, que depois ela ia me ensinar a cozinhar e a preparar um acaçá. Então eu teve (sic) o meu ensinamento com os mais velhos, a importância de nossos mais velhos, de nós escutar os nossos mais velhos, de nós parar para ouvir eles, de, nos parar para observar eles é o maior professor. O maior mestrado que eu tive na minha vida foi com os meus mais velhos. Foi aprender ouvir eles (...) eu sempre estava perto dos meus mais velhos e foi dele que aprendi, apesar de eu não ter estudado, não saber ler, mas o que eles passaram para mim foi realmente tudo o que eu tenho comigo hoje (Oxum). 363 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Diante destes depoimentos podemos perceber que a educação no cotidiano do Ilê Axé Omilodé acontece por meio de situações presenciadas e experiências vividas por cada indivíduo em seu cotidiano. O saber flui pelo ensinamento dos mais velhos para os mais novos pela oralidade e, transborda um significado existencial vivido na comunidade, uma filosofia de vida, que perpassa os muros do terreiro orientando os sujeitos em comportamentos diante de suas dificuldades, transmitindo uma visão de mundo, orientando-os para a vida. O sagrado e o profano se interpenetram interagindo com a comunidade, evidenciando uma educação que fortalece o sujeito na sua liberdade de expressão e em seu direito de coexistir nesta sociedade muita das vezes recriminada. O antropólogo Carlos Brandão ao abordar a educação como cultura se refere a “tudo aquilo que criamos a partir do que nos é dado” (BRANDÃO, 2002, p. 22), nesse sentido subentendemos os processos educativos como sendo culturais, a educação se torna uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, incorporando os sujeitos sociais que o praticam ao mesmo tempo em que são afetados por ela. O antropólogo Clifford Geertz define cultura como “uma ‘teia de significados’ tecida pelo próprio homem e onde ele se acha amarrado” (GEERTZ, 1989, p. 15) o qual nos conduz ao analisar a educação e os saberes, como um conjunto de relações sociais no qual os sujeitos estão inseridos, ou seja, “um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida” (GEERTZ, 1989, p. 66). Sendo assim a educação é um domínio da cultura; socialmente é condição permanente em que a cultura é recriada e individualmente é condição de criação da própria pessoa na medida em que “aprender significa tornar-se, sobre o organismo, uma pessoa, ou seja, realizar em cada experiência humana individual a passagem da natureza à cultura” (BRANDÃO, 2002, p. 18). Sobre Educação, Cultura e Saberes, Sergio Martinic (1994) afirma que o saber que aflora em um cotidiano está estreitamente ligado à educação e à prática cultural dos sujeitos. Para o autor “el saber expressa lo que socialmente um grupo o sociedade institucionaliza como real” (MARTINIC, 1994, p. 71). 364 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O conceito de saber, numa dimensão epistemológica, significa “todo um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematicamente organizados e suscetíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino” (JAPIASSU, 1986, p. 15). No sentido lato, Hilton Japiassu (1986) afirma que este conceito pode ser empregado ao aprendizado de ordem prática (saber fazer) e, ao mesmo tempo, às determinações de ordem intelectual ou teórica. Utilizado no desenvolvimento de sua obra o último sentido, para este trabalho abordaremos a face contrária, visando um ângulo ampliado que considere ambas as dimensões, intelectiva e prática, relevando a multiplicidade dos saberes que circulam no cotidiano do terreiro pesquisado. Sobre os saberes existentes no Ilê Axé Omilodé nossos entrevistados assim se expressam: São muitos os saberes do terreiro, desde as rezas para os orôs até as vestes. Porque é importante que a gente saiba se vestir, que você mantenha não a sua conta exposta para se exibir, mas para que você seja sagrada, pois existe uma forma de preparar elas. A forma de preparar uma alimentação para seu orixá, não é só você cortar um quiabo e dizer eu vou fazer um caruru, você tem que se preparar para fazer, tem saberes para fazer (...) não é só saber que comida fazer, eu vejo que no candomblé as alimentações são muito importantes, como o acarajé, o abará, o caruru e outras comidas porque não são só para referencia do orixá, ela é para nos alimentar e nos fortalecer. Tem as folhas. É saber por que eu vou tirar uma folha de uma planta, pra que eu vou usar esta planta, é saber rezar uma planta, passar uma planta na pessoa. Na folha está sempre o alimento sagrado de nossa alma, perante nosso sagrado. Outro saber importante é saber respeitar seu mais velho, sem seu mais velho não existe continuidade (Oxum). O saber no terreiro é cozinhar para o orixá, conhecer uma erva, saber que hora vai colher, saber pra que essa erva serve, se ela é quente, se ela é fria, a que orixá pertence. É o saber da alimentação ofertado aos deuses, é você saber enrolar um acaçá, saber se um acarajé esta frio no ponto, é saber rezar, quando rezar, é saber dançar e quando fazer os movimentos de acordo com as cantigas, é saber a música e quando cantar, é saber os itans (mitos), os oríkìs os áduràs (orações apropriadas para determinantes momentos, nota nossa), é 365 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e ser ético e preservar a natureza e envolve também outros saberes, outros aprendizados que é o nosso segredo, que é justamente estes que a gente não cita (Iansã). Saberes de uma folha, de você saber o que é uma folha que você deve dar um banho no filho, você saber qual é a comida que você deve dar para aquele determinado orixá nos caminhos que ele se apresenta, a reza que você deve rezar para se alimentar, para tomar banho, para pegar numa faca, para ascender uma vela, essas são as importâncias dos saberes, de você ir na mata, pedir licença para entrar, porque todo lugar na natureza tem um morador, tem um dono, é saber respeitar a natureza. Então essas importâncias de você levantar na hora certa, de bater seu paó na hora certa, de saber seu lugar e porque do lugar num xirê, falar com seu mais velho na hora certa, saber se comportar em determinados momentos no culto, tudo são saberes específicos. E um dos mais específicos é o jogo de Ifá, jogo de búzios, que eu vejo como um dom, porque hoje em dia os Babalorixás jogam por odu, e tem que estudar estes odus. Mas tem aquele pai de santo que senta na mesa e joga por visão, que o búzio lhe mostra a visão, então você vai dizer o que o búzio esta falando, não é o odu, é o orixá conversando com você através de Ifá, dizendo assim, meu filho, o caminho deste filho é assim, e você vai fazer assim. Porque como já disse odu a gente aprende, mas a visão é o orixá quem dá (Xangô). Diante dos relatos, compreendemos que os saberes existentes no cotidiano do terreiro não apresentam uma única forma, um único saber de conhecimentos válidos, e sim múltiplas formas de saberes construído cotidianamente por homens e mulheres em suas práticas sociais. Há uma visão coletiva entre eles sobre estes saberes, que demonstram serem eles expoentes do terreiro. Chamam atenção dois saberes, folhas e alimentação retratadas nos três depoimentos. As plantas, no universo da casa pesquisada, apresentam grande valor por serem utilizadas para propósitos ritualísticos e de rotina com fins medicinais. O uso de plantas sagradas atende aos aspectos litúrgicos das casas-de-santo e possui um caráter fármaco-botânico, empírico e individual (Barros 1983, Verger 1995, Camargo 1988). Subentendemos nos depoimentos de Oxum e Iansã que as folhas são base fundamental do funcionamento do culto nos terreiros apresentando uma variedade de ritos particulares, seguindo uma estética ritual meticulosa. 366 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Sobre a alimentação a comida ritual do candomblé compreende toda uma expressão gastronômica com origem na mitologia dos orixás. No universo sagrado do candomblé a comida é um elemento essencial, assume um significado amplo, promovendo a socialização entre os iniciados, a comunidade e os orixás. A vestimenta e os seus acessórios, contas como se refere Oxum, reflete um sentido para além de “cobrir e enfeitar o corpo” carrega a compreensão do todo, vestimenta e acessórios como ritual, como parte de uma comunidade e pertença de um grupo. A indumentária no terreiro assim, se torna como um prolongamento da corporeidade e uma expressão da religiosidade negra constituindo parte da identidade da comunidade. Ao serem mencionadas as rezas, oríkìs e áduràs, se faz necessário compreender que eles são a essência da oferenda, invocação e agradecimento aos orixás em suas ritualísticas. Efetuadas em iorubá, é parte de um legado ancestral transmitido por gerações. As rezas, Oríkì, (do yorùbá, orí = cabeça, kì = saudar) tem a finalidade de louvar os orixás assim como solicitar ajuda para os problemas do dia a dia. Os áduràs ou orações tem a finalidade de invocar os orixás. Segundo Sìkúrì Sàlámì King os aduras e os oríkìs visam louvar e dar graça aos orixás, dirigindo-se aos elementos por eles denominados e ainda “feitas pelas pessoas ligadas ao culto difundem amplamente os conhecimentos relativos aos orixás e os perpetuam” (KING, 1990, p. 20). O jogo de búzios a que se refere Xangô é extensivamente usado em todos os passos dos rituais e nada se faz no candomblé sem uma consulta prévia as divindades do oráculo. Uma prática divinatória restrita aos Babalorixás e Yalorixás, o jogo de búzios além de consolidar a liderança sacerdotal, é um dos mais eficazes instrumentos de dominação e poder nas mãos dos pais de santos que governa sua comunidade com autoridade indiscutível. Caso suas atitudes não sejam aceitas por um ou vários membros, estes se inclinam a aceitá-las, pois os líderes espirituais se apoiam e se legitimam nas determinações anunciadas pela adivinhação. Muitas das vezes suas atitudes são ditadas por suas vontades pessoais, mas se o sacerdote as atribui às decisões divinas, as críticas não serão formuladas, facilitando assim, a sua condição de líder espiritual que encontra as melhores soluções para o grupo (BRAGA, 1988). Diante do exposto, reler uma tradição histórica africana milenar, ressignificada frente à diáspora é perceber como o candomblé, enquanto 367 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e religião de uma cultura africana, enxerga sua história por intermédio do hungbê e os saberes transmitidos no cotidiano do Ilê Axé Omilodé pela oralidade, configurando o advento da experiência e apreensão de uma memória ancestral. Conclusão preliminar O estudo realizado revela que a educação na modernidade fica presa a uma racionalidade científica, pensamento abissal, que preconiza o saber a um conhecimento estruturado em detrimento aos saberes adquiridos nas experiências e nas relações sociais cotidianas. Porém é na pós-modernidade, que são criados mecanismos e olhares analíticos que revela um posicionamento epistemológico, pós-abissal, em que a valorização dos saberes científicos se contrapõe e consequentemente há a valorização a outros conhecimentos que não sejam pautados em determinada forma epistemológica de ver o mundo. Esse movimento pós-abissal, segundo Boaventura Santos (2010), seria baseado no princípio da igualdade (não há conhecimentos melhores do que os outros) e no princípio do reconhecimento da diferença (nenhum conhecimento é o padrão, já que todos possuem suas próprias epistemologias). Sendo assim, a educação no Ilê Axé Omilodé se torna uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, incorporando os sujeitos sociais que o praticam ao mesmo tempo em que são afetados por ela. Contatamos que a educação no Ilê Axé Omilodé, realiza-se na experiência diária, nas relações sociais, nas rodas de conversa e nas práticas rituais. Os saberes específicos no espaço do terreiro estudado constituem um acervo de conhecimentos cultural ressignificado ao longo da história, um legado da ancestralidade que são construídos e transmitidos por processos de ensino-aprendizado de gerações a gerações, compondo a educação do axé. Para nós é muito significativo este trabalho, pois a educação nos espaços do terreiro carrega uma riqueza presente nos saberes destas tradições, bem como os processos próprios de formação humana cultural, por meio do hungbê num terreiro de candomblé. 368 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BARCHELAR Gaston. A dialética da duração [1936]. São Paulo: Ática, 2007. BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em Educação: fundamentos, métodos e técnicas. In: Investigação qualitativa em educação. Portugal: Porto Editora, 1994. BARROS, José Flávio Pessoa. O segredo das folhas: sistema de classificação de vegetais no Candomblé Jêje-Nagô do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas. 1983. BRAGA Júlio. O Jogo de Búzios: Um estudo se adivinhação no candomblé. Editora Brasiliense, 1988. BRANDÂO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. Campinas: Mercado das Letras, 2002. ______ Educação Popular. São Paulo: Brasiliense, 1984. 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Iansã. Entrevista concedida a Dulce Edite Soares Loss. João Pessoa, 2018. [ Volta ao Sumário ] 370 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e identidades ateístas no enContRo da nova ConsCiênCia Genaro Camboim L. A. Lula Susana Silva Barros Como referenciar este capítulo: LULA, Genaro Camboim L. A.; Barros, Susana Silva. Identidades ateístas no encontro da Nova Consciência. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 371-386. Genaro Camboim L. A. Lula1 Susana Silva Barros2 Considerações iniciais Há 28 anos, Campina Grande, segunda maior cidade do estado da Paraíba, sedia, durante o período de carnaval, o Encontro da Nova Consciência (ENC). Espaço caracterizado pela pluralidade religiosa e ambiente de difusão de movimentos neo-esotéricos, o “Carnaval da Alma”3, como certa vez foi assim referenciado por seus participantes e organizadores, é um vasto objeto de estudo para a academia, por se apresentar para literatura antropológica como uma expressão do Movimento Nova Era. Enquanto plural, o ENC abriga diversas representações artísticas, filosóficas e culturais. Representantes de diferentes universos confessionais e nomes influentes dos cenários religioso e acadêmico como Paulo Coelho, Leonardo Boff, Pierre Weil, já estiveram na programaçãodo ENC. Atualmente, contudo, a estrutura física e o público anteriormente alcançados são colocados em xeque, frutos de disputas religiosas, econômicas e políticas, dada a fomentação e incentivos financeiros desproporcionais para outros eventos religiosos4, essencialmente o de público evangélico. O que se percebe é um estreitamento das relações entre o Encontro para a Consciência Cristã (ECC) e os interesses do setor econômico e políticos locais, provocando, nos últimos anos, “um estrangulamento, uma asfixia da produção do ENC, bem como produz efeitos no modo como a pauta do ENC é organizada e na forma como os Professor Dr. do curso de Ciências da Religião da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. 2 Granduanda do curso de Ciências da Religião da Universidade do estado do Rio Grande do Norte-UERN. 3 “Carnaval da alma” – certa vez assim referenciado por seus participantes e organizadores – L. AMARAL, Carnaval da Alma: Comunidade, essência e sincretismo na Nova Era. 4 Além do Encontro da Nova Consciência (ENC), Campina Grande abriga, durante o carnaval, O Encontro para Consciência Cristã (de natureza evangélica), o Crescer (ligado à comunidade católica) e MIEP (Movimento de Integração Espírita da Paraíba). 1 372 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e realizadores do evento agenciam suas experiências” (LULA; SAMPAIO, 2016, p. 84). Com o tema “A Arte da Resistência”, a agenda do 28º Encontro da Nova Consciência assume conotações cada vez mais políticas, ainda que garanta o a presença de atividadesde dimensões espirituais, a presença do “clima espiritual” e da proposta de expansão da consciência humana. Ostentando caráter poroso, o ENC se enquadra nas características das novas religiões e de novos movimentos religiosos, a saber, o individualismo, a postura cosmopolita e a reflexividade5. Retornaremos as definições adiante, por ora, cabe introduzir nosso recorte: o evento paralelo para ateus e agnósticos. Apesar da estrutura física e o número de público do ENC ter minguado, existe uma estrutura que se repete ao longo dos anos: fórum principal, eventos paralelos, terapias e consultas, feira de livros e comércio de produtos esotéricos, além das atrações noturnas que prestigiam artistas locais e regionais. O fórum principal, destinado à discussão de temas globais e multiculturais, mesas redondas com previsões esotéricas e palestrantes das mais variadas confessionalidadesreligiosas, é situado, há sete anos, no Sesc Centro, local que também abrigas as terapias, consultas e atendimentos, como leitura esotérica de mãos, cromoterapia, acupuntura, tarô, astrologia, experiência somática, baralho cigano, alinhamento de chakras, reiki e assim por diante. A exposição de livros e comércio de produtos esotéricos são as primeiras coisas vistas ao adentrar o prédio. Os eventos paralelos, por sua vez, são uma oportunidade para que pessoas com interesses afins troquem experiências e participem de palestras, reuniões e mesas redondas voltadas para temáticas mais específicas (SCHWADE, 2011, p. 187). Ocorrendo em locais diferentesem não mais de dois quilômetros de distância do fórum principal, não se resumem a um caráter estritamente religioso. Neste sentido, eventos paralelos como de Xamanismo, Santo Daime, Neopaganismo acontecem também eventos de Ufologia, Arqueologia, Anime Cult, Jogadores de RPG. O evento paralelo que escolhemos acompanhar, isto é, o “Encontro de Ateus e Agnósticos” figura entre os mais antigos e solidificados 5 A. D’ANDREA, O Self Perfeito e a Nova Era. 373 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e da programação. Buscando entender como se negociam as relações entre um evento autodeclarado ateu dentro de um evento maior com características religiosas, que este artigo foi pensado, sem perder de vista as transformações do campo religioso brasileiro. A partir de diálogos e observações produzidas in loco durante o 28º Encontro da Nova Consciência e da coleta de dados posteriores através do intermédio de redes sociais, a etnografia multi-situada apresenta situações em que a identidade ateísta é reivindicada pelos frequentadores do evento. Ainda que o Carnaval da Nova Consciência já tenha sido objeto de importantes publicações6, os eventos paralelos do ENC são território pouco explorado. Montero e Dullo (2014) reforçam a ausência do ateísmo enquanto objeto de estudo para a pesquisa acadêmica no Brasil, o que também impulsiona a relevância deste artigo. Os “sem religião” e o ateísmo na literatura sociológica e no censo O evento paralelo para ateus e agnósticos completa 21 anos na programação do ENC conservando semelhanças junto aos eventos mais antigos, ligado às tradições religiosas, ao mesmo tempo em que compartilha o aspecto social e político, característico de eventos e temáticas adicionados mais recentemente à programação (SAMPAIO; LULA, 2016, p. 96-97)7. Em 2019, durante os quatro dias de carnaval (02 a 05 de março), pessoas que se definem como ateus, agnósticos, céticos e livres pensadores se reuniram no Centro de Arte e Cultura (antiga Faculdade de Administração – UEPB), localizado em uma área central de Os principais trabalhos são: L. AMARAL, Carnaval da Alma; E. SCHWADE, Carnaval da Nova Consciência; V. LAIN, Nova Consciência: a anatomia religiosa pós-moderna. 7 Os eventos paralelos com maior número de ocorrência são: o 27º. Encontro do Santo Daime, o 21º. Encontro de Ateus e Agnósticos, o 18º. Encontro da Iniciativa das religiões unidas – URI; 22º. Encontro para a Consciência Ecológica. Os eventos paralelos criados mais recentemente são: o 8º. Encontro de Literatura Contemporânea; o 9º. Encontro de Comunicação e Mídias Digitais e o 12º. Encontro da Sociedade Paraibana de Arqueologia. Apontamos que encontros de conotação religiosa e/ou espiritual também foram criados mais recentemente, como é o caso do 12º. Encontro Parahybano de Neopaganismo. 6 374 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Campina Grande, para discutir temas como fascismo, direito animal, literatura contemporânea, política e maniqueísmo, ativismo nas redes sociais. Prevalece neste evento paralelo uma organização que se assemelha a uma estrutura escolar – professores e/ou ativistas expondo para pessoas agrupadas em cadeiras enfileiradas; material explicativo projetado em slides ou entregue em mãos.Durante os quatro dias, ao final das explanações um círculo de cadeiras foi formado a fim de facilitar o diálogo e o compartilhamento de pontos de vistas e considerações entre participantes, organizadores e palestrantes. Por fim, o café e o bolo vegano oferecidos pelos organizadores do evento representavam um convite para permanecer um pouco mais, conversando sobre fotografia e pássaros, curtas nacionais e tatuagens, ou sobre assistir ou não a próxima palestra no fórum principal do ENC. A quantidade de participantes por dia fluía de acordo com atratividade representada pelo nome do palestrante e/ou tema da exposição, e entre habituais e menos assíduos, cerca de 35 pessoas assistiram pelo menos uma palestra durante a última edição do evento. O número é semelhante aos demais eventos paralelos oferecidos pelo ENC, todavia, quando comparado à Consciência Cristã, evento que nasceu no mesmo ano que o evento paralelo para ateus e agnósticos, e que alcança a marca de 100 mil pessoas durante o carnaval em Campina Grande8, 35 pessoas são dados concretizados, pois representam a dinâmica religiosa estabelecida no país. De acordo com informações levantadas pelo censo 2010, no Brasil, embora se perceba um aumento expressivo no número de sujeitos que se declaram “sem religião”, “o ateísmo como doutrina política permanece praticamente invisível como fenômeno social”9.Parte deste diagnóstico é explicado pelo fato de se tratar de um país de formação histórica católica, tendo a religião como peça do projeto de construção identitária nacional. Durante o período do Império, católicos e acatólicos eram as formas – impregnadas de valores morais – utilizadas para classificar a população. A partir de 1940, com o levantamento do censo incluindo a questão sobre o perfil religioso da população, as opções aumentam, 8 9 https://conscienciacrista.org.br/encontro/ acessado em 03 de abril de 2019. MONTERO, P.; DULLO, E.Ateísmo no Brasil: da invisibilidade à crença fundamentalista. 375 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e mas o catolicismo continuaria representando a quase totalidade das respostas. A década de 1980, entretanto, é considerada oturning point. O catolicismo sai da casa dos 90% e declina o suficiente para em 2010 registrar 64,4%. Por outro lado, os que se declaravam protestantes subiram de 5,2% para 22,2%, em cinco décadas. Além disso, a categoria “sem religião” ultrapassa a barreira do 1% em 1980, atingindo 8% em 2010. Já as alternativas “religiosas não-cristãs” não passaram dos 3% no último censo (MONTERO, DULLO, 2014). Como se sabe a categoria “sem-religião” não significa, necessariamente, não acreditar em Deus. Além disso, odesenvolvimento de novos movimentos espirituais, aumento das correntes carismáticas e sucesso da literatura de inspiração esotérica, não professar religião alguma é também um modo de se fazer escolha individual. Por trás do declínio da hegemonia católica está a relação dialética entre pluralismo e secularidade, a multiplicação das estruturas de plausibilidade religiosa, além da relativização, subjetivação dos discursos religiosos10. Hervieu-Léger (2008) nos chama a atenção para o desconforto cada vez maior com os modelos estabelecidos e práticas controladas pelas instituições tradicionais e, reforçando a tendência geral à individualização e à subjetivação, coloca a secularização não como a perda da religião no mundo moderno, mas antes uma reorganização das crenças que trazem à tona o caráter paradoxal da modernidade11. Para o ateu ou agnóstico, entretanto, não professar religião alguma não significa estar inserido em estatísticas que apontam em direção ao sincretismo ou trânsito religioso. Menos ainda ao modo de expressar a falta de especificidade da prática religiosa. O ateísmo como osnovos movimentos religiosos fazem parte deum processo de revisão contínuo das práticas e crenças na modernidade que fomentam a reflexividade e promovem rupturas em sistemas fechados ou dogmáticos (tradicionais). A reflexividade contribui para a constituição de identidades abertas e referenciais cognitivos mais flexíveis, ao mesmo tempo incertos e provisórios (D’ANDREA, 2000). BEGER apud MARIANO, Sociologia da Religião e seu foco na secularização. In: Compêndio de ciência da religião, 2013, p. 237. 11 HERVIEU-LÉGER, O peregrino e o convertido, 2008, p. 41. 10 376 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e No Brasil, o catolicismo, estando em posição de referência sincrética absoluta junto às religiosidades de natureza africana e indígena, e mais recentemente, às ligadas ao esoterismo Nova Era, alimenta a porosidade e a falta de nitidez das novas delimitações religiosas e, de igual modo, a flexibilidade das organizações religiosas mais tradicionais. Parece ser mais aceitável se declarar “sem religião” do que simplesmente declarar não acreditar em Deus. Um indício disso é apresentado pela Fundação Perseu Abramo, em pesquisa concebida com o intuito de medir a intolerância a homossexuais e transgêneros (2008/2009). De acordo com os dados, dentre os grupos pesquisados, aqueles que não acreditavam em Deus sofrem os mais altos índices de rejeição por parte da opinião pública12. Ateu “hard” e “soft”: conversão e identidade Percebemos algumas categorias êmicas que nos revelaram como os membros do evento paralelo para ateus e agnósticos no ENC falam sobre suas identidades a partir de situações etnográficas que não se restringiram aos debates unicamente durante as atividades. É assim que situações como pegar uma carona com alguns dos participantes se mostraram uma boa oportunidade para observar como algunsfrequentadores assíduos não somente do evento para ateus e agnósticoscompartilham interesse paralelos por terapias alternativas, palestras e outros eventos paralelos disponibilizados pela programação geral do ENC. Este é o caso de Breno* (34 anos) e de Rony* (40 anos) que, ao me oferecerem uma carona de onde estava ocorrendo o evento paralelo, no Centro de Arte e Cultura à sede central do ENC, o Sesc Centro, explicaram-me que não existe uma forma única de ser ateu.Breno colocou que por não acreditar em nada vindo do universo religioso, se definia como“um ateu hard”: “Eu acredito em nada: morreu, acabou. Pra que outra vida? Vou descansar em paz. Não quero outra vida para ter outros tumultos”. O contraponto a esta identidade foi estabelecido quando, logo em 12 VENTURI, BOKANY (Organizadores), Diversidade sexual e homofobia no Brasil, 2011. 377 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e seguida, Breno argumentou que o Rony, que nos acompanhava também no carro,representava um “ateu soft”, pois “continuava buscando a espiritualidade”. O que Ronyconcordou afirmativamente. Ao chegarmos em frente ao Sesc Centro, enquanto aguardávamos o início da última palestra do dia, na qual seriam debatidas questões da ordem de “Como o espiritismo vê os extraterrestes”, Breno explicou que, anteriormente, por influência de familiares, frequentava o ECC, mas há quatro anos “começou a duvidar”, e a inquietação, ponderou, o libertou: “É viver sem ter algo controlando você. Eu acreditava em céu e inferno, essas coisas, e tinha medo. Comecei a duvidar, aos poucos, questionar, provocar, e nada acontecia. Aí raciocinei, e vi que não existia, foi criado pelo homem” (Diário de Campo, março, 2019). Rony, por outro lado, explicou que se via como “ateusoft”por praticar técnicas espirituais como a meditação e ouvir “mantras e canto gregoriano para relaxar”. Explicou que para os hards, isso “tudo era balela”. Comentou que o ENC sempre foi noticiado nos jornais, e por ter alguns conhecidos que já haviam participado, foi pela primeira vez por “curiosidade, despretensiosamente, para assistir e voltar no mesmo dia para João Pessoa” (capital paraibana localizada a 134 quilômetros de Campina Grande). Como identificou-se “com tudo”, há sete anos retorna. O“ateu soft” Rony explicou que o ateísmo é o destino final de uma busca pessoal. Antes, pesquisou e praticou vertentes de espiritualidade (espiritismo, teosofia), entretanto,a procura não parecia ter fim. Até deparar-se com o livro,Deus, um Delírio13, e começar o interesse pela não-existência de uma divindade e ir ao encontro em Campina Grande. “Desde então, a não-crença numa divindade me libertou dessa busca e estou mais relaxado em relação a isso”. Deus, um Delírio, livro no qual o biólogo Richard Dawkins se propõe a mostrar como a religião alimenta a guerra, fomenta o fanatismo e doutrina as crianças. O texto objetiva provocar os religiosos convictos, mas principalmente provocar os que são religiosos “por inércia”, levando-os a pensar racionalmente e trocar sua “crença” pelo “orgulho ateu” e pela ciência. 13 378 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Outras categorias êmicas No universo ateísta destes frequentadores do evento paralelo da ENC, as categorias êmicas estão longe de se esgotarem em hard ou soft. No discurso de Breno, aparece outra categoria: o “agnóstico”. De acordo com Breno, “agnóstico”é todo “aquele que pergunta o porquê dessa pergunta”, ou seja, diante da existência ou não de Deus, questionaa relevância da indagação. Pude obter outra resposta a partir da ativista, Karina Meireles (36 anos), administradora da página no Instagram “Ateu com orgulho14” também participante e palestrante do evento paralelo em Campina Grande.Karina entende que esse é apenas um tipo de agnóstico -seeker (investigador), que não têm uma posição ideológica firme, “mas não é confuso, só abraça a incerteza”. Karina falou que este tipo de agnóstico (o seeker) difere do agnóstico-“intelectual” e também do agnóstico-“ativista”, que não se contentaem descrer, mas realiza uma atividade política de proselitismo do ateísmopara fins de uma“sociedade melhor”, se todos fizéssemos o mesmo. É assim que Karinadefine o Rony (o “ateu soft” para o Breno)como o“ateu ritualístico”, ou seja,“aquele que ainda acha úteis os ensinamentos de algumas tradições religiosas”, vendo-os como ensinamentos filosóficos. Breno, diante da reflexividade com relação aos questionamentos identitários, poucos dias após o carnaval, compartilhou a indagação sobre ser, de fato, ateu hard: “Numa conversa com um ateu, no show15, eu disse que era ateu e acreditava na ciência. E ele disse que então eu não era ateu, eu era cético. Já ouviu algo assim?!”. E concluiu: “Não acreditar na ciência acho que é o auge do ateísmo”. Porém, estas conversões e auto-afirmações ateístas não são estanques nem definitivas. Isto ficou evidente em uma outra situação etnográfica quando após o período do carnaval, compartilhou comigo via rede social (whatzapp), a incerteza sobre de fato ser ateu hard: “Numa Até a finalização do artigo a página no Instagram Ateu com Orgulho possuía 8.572 seguidores. 15 Breno refere-se à Casa Arte Paisà, sede da programação musical com shows, apresentações artísticas e culturais.Entrevista concedida aos autores em 29 e 30 de março de 2019. 14 379 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e conversa com um ateu, no show16, eu disse que era ateu e acreditava na ciência. E ele disse que então eu não era ateu, eu era cético. Já ouviu algo assim?!”. E concluiu: “Não acreditar na ciência acho que é o auge do ateísmo”. O que se observa é que a lógica que empreende estas identidades é exatamente uma dualidade entre um grau maior ou menor de abertura em relação com a espiritualidade e/ou religiosidade. O que querem? Na segunda-feira de carnaval, Karina palestrou sobre sua experiência com o Instagram e o ateísmo na internet. Campinense, participa do evento paralelo desde 2011. Em 2012 e 2013 conversou sobre sexualidade e religião, e em 2018, após um período apenas participando do evento, voltou a palestrar sobre a religião e a mulher, submissão e liberdade. Ao ser questionada sobre a relevância do evento, discorreusobre o ENC e em específico o evento paralelo serem espaços de resistência, destacando a importância deste fato diante do contexto local, isto é, a relação entre a religião e a cidade: Ser ateu em uma sociedade cristã é difícil e espaços de debate no mundo real são importantes para representar e também dizer que existimos e nossa existência não fere a sua, pois somos a favor da liberdade de pensamento. Com relação ao encontro, falo que é resistência porque somos uma minoria e não existe muitos espaços em nossa sociedade em que possamos falar sobre ateísmo e questionar a religião ou atividades metafisicas sem ser condenado por isso. Aqui em Campina existe uma força muito grande da religião e o fanatismo. Resistimos porque nadamos contra a maré17. A importância do evento paralelo para seus participantes, palestrantes, ativistas e organizadores, só pode ser entendida, portanto, a 16 Breno refere-se à Casa Arte Paisà, sede da programação musical com shows, apresentações artísticas e culturais.Entrevista concedida aos autores em 29 e 30 de março de 2019. 17 Karina Meireles, entrevista concedida aos autores em 25 e 26 de março de 2019. 380 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e partir da compreensão da visão que os frequentadores têm sobre a relação estabelecida entre o evento paralelo e o ENC e entre os demais eventos religiosos em Campina Grande.Por se tratar de um tipo de evento não-ordinário na sociedade brasileira, sobretudo, no estado da Paraíba e no Nordeste, Rogério Nascimento (50 anos), professor de antropologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), um dos criadores do evento paralelo, explica que embora já tenha sido tentado organizar algo mais periódico, ao menos com as pessoas mais próximas, o encontro se mantem apenas anual. Rogério organiza e articula palestrantes para o evento dos ateus e agnósticos há 15 anos, e a decisão de estar à frente do projeto partiu não apenas do interesse em discutir o tema, mas também pelo que chama de ajuste de contas com a própria biografia: Eu nasci no meio da igreja evangélica, pentecostal. Passei boa parte, quase toda a minha vida, envolvido com essas questões de Deus, Diabo, céu, inferno, pecado, essas coisas todas e fui bastante atuante dentro da igreja, mergulhei fundo e isso me criou muitas dificuldades em diversas áreas. A minha ruptura se deu de forma lenta e muito também atormentada e nesse sentido é que é um ajuste de contas com a minha biografia. Eu me empenhei muito, por exemplo, nessas coisas salvacionistas, proselitistas e sei como é olhar o mundo a partir daí. E hoje eu tenho nojo disso18. A fala do coordenador Rógerio, se apresenta reagente às morais totalizantes, intolerantes, com aspiração à hegemonia, coaduna-seà dimensão política cada vez mais abraçada pelo ENC. A princípio, ao se inserir no circuito de disseminação do universo neo-esotérico, o ENC objetivava reunir pessoas dispostas a discutir questões que diziam respeito à humanidade no seu conjunto e a cada um em particular, salientando a diversidade, a tolerância e o diálogo (SCHWADE, 2011). Nos últimos anos, entretanto, o acirramento das disputas econômicas, políticas e ideológicas entre os demais eventos culminaram em tensões e conflitos no campo religioso campinese, fazendo com que fique evidente 18 Prof. Rogério Nascimento, entrevista concedida aos autores em 29 e 30 de março de 2019. 381 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a ênfase no recorte político, uma vertente pouco explorada, mas ainda assim inerente ao fenômeno Nova Era (Sampaio e Lula, 2016). Nesse sentido, para os frequentadores do evento paralelo e do ENC há um constrangimento que advémdo ECC aos demais eventos e que não se limita a massiva divulgação midiática (cartazes e outdoors evangélicos torneando a cidade) ou a ocupação de territórios disputados no interior da cidade como caso do Parque do Povo – maior espaço de representatividade turística da cidade, onde ocorre o evento da prefeitura “O maior São João do Mundo” – afastando os demais eventos da área mais privilegiada da cidade. O relato de Rony acerca do hotel onde ficou hospedado sintetiza a sensação presente no discurso dos frequentadores do evento paralelo ao circularem pelos espaços públicos e privados da cidade: A pessoa se sente super deslocado no café da manhã do hotel porque as pulseirinhas19 são uma forma do pessoal do outro encontro se identificar também. Quando você não está com a pulseira, você sente que as pessoas ficam olhando para você e tentando ver se você está no encontro deles ou não. Dessa vez, teve até uma mulher que estava falando da Bíblia e eu disse que não era da Igreja e ela tocou no meu ombro e começou a fazer uma oração “para mim”. Considero isso muito invasivo. Primeiro porque ela me tocou sem minha permissão e segundo porque eu não solicitei nenhuma oração. Cada um deveria cuidar da sua vida, né?20 A aposta na pluralidade, na diversidade, em abranger não apenas o neo-esotérico ou filosófico, mas o da ordem dos fundamentos da espiritualidade laica21, em essência, caracterizam o ENC. Além disso, o Encontro é um espaço de crenças, e que também acolhe a descrença. Ocorre que a sensação é de por enquanto. Ribamar Bezerra (42 anos), campinense e militante do evento paralelo, abrange que há um “espírito da Nova Consciência” que prevalece entre os participantes e que Para os frequentadores do Encontro para a Consciência Cristã, a pulseira ajuda na identificação na entrada dos eventos paralelos que acontecem fora do ambiente do Parque do Povo, localização principal do ECC. 20 Rony, entrevista concedida aos autores em 25 e 26 de março de 2019. 21 L. FERRY, M. GAUCHET, Depois da Religião, 2008. 19 382 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e permite a convivência. Em 2019, assistiu palestras espíritas, pagãs, sobre astrologia, ecologia, ponderando: “É muito plural, e mesmo sendo ateu, uma coisa que aconteceu enquanto eu frequentava a Nova Consciência, eu nunca me senti compelido a evitar os outros encontros. Ali fecharam a minha bolha, entende?22” Ribamar compartilha com o ENC o desejo de conhecer o diferente e de reconhecer a diversidade de pensamento: “deus não existe para mim, deuses não existem para mim, mas existe para outras pessoas, então a gente precisa respeitar esse princípio”. Para ele, o espírito do Encontro da Nova Consciência proporcionao direito à liberdade de culto e de crença, uma mensagem que ficou clara desde o princípio – “é tanto que eles nunca se recusaram a receber os ateus, então é um ambiente de extremo respeito a diversidade, e isso me encanta”. Ausência de censura, enxerga Ribamar, se dá pelo fato de o ENC não se tratar de um ambiente predominantemente cristão, mas ecumênico, aonde não se pretende mudar a opinião do outro, ou, como enfatizou,“fazer proselitismo”. Ajuíza ainda que o foco do ateísmo parece ser o cristianismo, religião de maior preeminência e destaque na sociedade, mas explica que seria qualquer outra, se assumisse a mesma postura de alguns segmentos cristãos, como os neopentecostais, que tem um histórico de segregar e de combater outras religiões. Ribamar conclui apontando que: “no geral, a gente trabalha com muitas religiões, com muita fé, e a gente é o antagonista”. Considerações finais A delimitação do evento paralelo a ser estudado para essa pesquisa se deu às vésperas do carnaval, dada a incerteza, por parte dos organizadores do ENC, da realização do evento, suspeita acarretada – já enfatizamos – pelas questões político-religiosas mencionadas. Contudo, uma vez definido, dois questionamentos se fizeram constantes durante a elaboração do artigo: o que significava ser ateu e, talvez mais claramente, como se dava a relação entre um evento autodeclarado 22 Ribamar Bezerra, entrevista concedida aos autores em 02 e 03 de abril de 2019. 383 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e ateu e outro maior, com caracteristicas neo-esotéricas. Contrapondo ao antagonismo, que somente é possível numa relação de auteridade, Breno, diante da reflexividade com relação aos questionamentos identitários, poucos dias após o carnaval, compartilhou a indagação sobre ser, de fato, ateu hard: “Numa conversa com um ateu, no show23, eu disse que era ateu e acreditava na ciência. E ele disse que então eu não era ateu, eu era cético. Já ouviu algo assim?!”. E concluiu: “Não acreditar na ciência acho que é o auge do ateísmo”. Para o Ribamar, ateu é, primordialmente, ser descrente, não ter uma crença numa divindade, ou divindades, e uma descrença do sobrenatural, e é também ressignificar a realidade: Eu não estou mais vendo a realidade como a manifestação da vontade de um ser divino, ou de seres divinos, seres sobrenaturais. Eu não estou vendo a realidade sobre a ótica do místico, da magia, enfim, de forças ocultas. Eu estou vendo como fenômenos metafísicos, estou vendo como uma série de fenômenos que moldaram a realidade tanto geográfica, quanto cultural, quanto social da gente, nós, enquanto raça humana24. Ainda que possuam discursos e experiências distintas, os termos resistência e liberdade repetiram-se na fala e na postura não apenas pelos autodeclarados ateus, mas na quase totalidade dos agentes do ENC. Eram, por conseguinte, a justificativapor trás da pauta de debate. No último dia da programação, os antropólogos Genaro C. Lula e Dilaine Sampaio, juntamente com os participantes presentes no fórum principal, refletiram sobre os desafios da Nova Era na contemporaneidade. A proposta consistia em encontrar soluções que corroborassem para a sobrevivência do ENC. Tratava-se do momento em que cabia, portanto, indagar-se sobre o afastamento do público vinculado ao mundo de Campina Grande e pertencente às camadas populares; ou se já não seria passada a hora do ENC optar por fazer uma proposta itinerante, cada ano em um local diferente, como foi verbalizado por Iris Medeiros, coordenadora da ONG Nova Consciência. Breno refere-se à Casa Arte Paisà, sede da programação musical com shows, apresentações artísticas e culturais.Entrevista concedida aos autores em 29 e 30 de março de 2019. 24 Ribamar Bezerra, entrevista concedida aos autores em 02 e 03 de abril de 2019. 23 384 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALVES, José Eustáquio; CAVENAGHI, Suzana; BARROS, Luiz Felipe e CARVALHO, Angelita A. de. Distribuição espacial da transição religiosa no Brasil. Tempo soc, 2017, vol.29, n.2, pp.215-242. MARIANO, Ricardo. Sociologia da Religião e seu foco na secularização. In: Compendio de ciência da religião / João Décio passos, Frank Usarki, (organizadores). – São Paulo: Paulinas: Paulus, 2013. AMARAL, Leila. Carnaval da Alma: comunidade, essência e sincretismo na nova era.Petrópolis: Vozes, 2000. MONTEIRO, Paula e DULLO, Eduardo. Ateísmo no Brasil: da invisibilidade à crença fundamentalista. Novos estud. – CEBRAP, 2014, n.100, pp.57-79. 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Por isso, a pergunta “O que você pode fazer por mim?” aparece na esperança de um renovo externo ou mesmo milagroso, quando as fragilidades humanas são externadas (ANJOS, 2008). Logo, o profissional de saúde deve acolher aos pacientes em suas angústias, para que o objetivo de transformação ao bem-estar seja alcançando. Com tudo, o paciente (ser humano) tem a espiritualidade como parte integrante do ser (RÖHR, 2011) e suas crenças e práticas religiosas podem interferir nos indicadores de saúde, levando a equipe multiprofissional a avaliar a conduta. Medeiros e Barreto, 2016 trazem que a dimensão espiritual/ religiosa não pode ser suprimida na escolha terapêutica, visto que a espiritualidade tem um impacto sobre a saúde física e mental. Logo, é necessário incorporar a reflexão espiritual e religiosa para que esta ajude nos processos de enfrentamento e sofrimentos que configuram o processo saúde-doença, com o diálogo acerca da busca do sentido e propósito de vida do individuo. (ESPERANDIO, 2014). As necessidades espirituais se toram particularmente fortes em tempos cuja vida encontra-se fragilizada, e coom 8% população brasileira se declarando sem pertencer a uma religião declarada (BRASIL, 2010), verifica-se a necessidade da equipe multiprofissional adentrar neste universo, e assim utilizar esta dimensão em prol da qualidade de vida, pois as crenças religiosas e suas práticas são usadas de forma para regular a emoção durante os tempos de enfermidades, mudanças e circunstancias que fogemdo controle pessoal. Farmacêutica (UFPB) e Téologa (FTSA). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões – UFPB. Endereço lattes: http://lattes.cnpq.br/5699848230007474 E-mail: rafaeladuartejp@gmail.com 1 388 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Com isso, o universo das ciências das religiões pode contribuir à equipe de saúde com o estudosistemático das formas de expressão e como estas podem interferir no processo saúde-doença, levando o profissional a um olhar integral e mais humanizado no cuidar, através das reflexões do pensamento e do imaginário religioso construído ao longo da história. Adentrando na temática da Síndrome da Imunodeficiência Humana (AIDS) verificamos o seu efeito da brusca diminuição da imunidade em resposta à infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), pois estes necessitam recrutar linfócitos CD4+ para a reprodução viral (Diaz, 2017; Brasil, 2018). Esta situação devastadora do sistema imunológico vem sendo modificada pela introdução da terapia antirretroviral (TARV), pelos estudos sobre história natural da doença e toda a campanha de prevenção e controle que as autoridades têm divulgado (Dourado et al, 2006; Alencar, 2006). Diante dos esforços realizados para que o avanço do prognóstico, a síndrome passou de algo totalmente devastadora à classificada como crônica (Alencar, Nemes e Velloso, 2008), logo o paciente se depara com novas perspectivas de enfrentamento da doença. Diante da temática espiritualidade e a problemática das pessoas vivendo com HIV (PVH), levantou-se uma pesquisa bibliográfica sobre o tema para compreender a relação da espiritualidade e dos indicadores de saúde neste público, mais precisamente quais indicadores se apresentam relacionados com a espiritualidade. Analisando os artigos selecionados, verificamos que estes poderiam ser agrupados em duas grandes temáticas: o domínio da Espiritualidade no contexto de qualidade de vida em PVHA e a expressão religiosa no processo saúde-doença do HIV/AIDS. Observa-sequatro subgrupos na temática dodomínio da Espiritualidade no contexto de Qualidade: Influencia da Espiritualidade na Adesão terapêutica, Autoconhecimento como fortalecimento do ser, Espiritualidade e os Indicadores de Saúde e domínio prevalente da espiritualidade nos questionários de qualidade vida. Já o grupo enfrentamento e a expressão religiosa no processo saúde-doença do HIV/AIDS consegue-se reorganiza-los em três subgrupos: Relacionamento como Transcendente, Análise de Segmento Religioso e Práticas Religiosas. 389 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Definições Para entendermos como as ciências das religiões podem contribuir no contexto da saúde, é preciso explanar sobre os termos que permeiam a espiritualidade, a religiosidade e a própria religião, gerando assim um olhar diferenciado para aqueles que trabalham diretamente na assistência. Em um país que se declara com 92% da população pertencente a uma religião-religiosidade (BRASIL, 2010), a primeira pergunta que deve ser respondida é “o que é religião”? A religião faz parte da condição de existência do ser humano, devido ao todo o processo de penetração social e cultural existente da mesma (HOCK, 2010 p. 27), ao ponto que pesquisar antropológica ou socialmente, o pesquisador se depara como a religião e seus enraizamentos (GRESCHAT, 2005 p. 23). A construção de conceitos deve ser interpretada conforme a época e lugar da fala (GRESCHAT, 2005 p. 22). A raiz da palavra religião, deriva do latim que retoma a ideia de ligação da humanidade com a divindade, religar a alma afastada de Deus (COUTINHO, 2012 e HOCK, 2010 p.18), através de um sistema de descrições do sagrado que permite conduzir regular a conduta individual permitindo a experiência do sagrado (COUTINHO, 2012). Logo como traz Tavares et al (2016) que religião é a crença na existência de forças sobrenaturais que se baseia em um conjunto de escrituras ou ensinamentos que buscam o significado e o sentido do mundo. Diante destas colocações trago aquilo que COUTINHO, 2012 traz como definição do que religião é: “um sistema composto por descrições do sagrado, respostas a sentido do mudo e da vida (crenças), meios sinais, experiências de ligação a esse sagrado (práticas), orientações normativas do comportamento (valores) e atores coletivos com regras e recursos próprios (coletividade) (...) permite regular e justificar a conduta individual (normativa), providenciar coesão social (coesão), consolar e aliviar (tranquilizante), fortificar a vontade (estimulante), dar sentido à vida (significantes), possibilitar a experiência do sagrado (experimental), crescer e amadurecer (madurativa), proporcional identidade (indenitária) e ministrar salvação (redentora)”. 390 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Qualquer tentativa de explanar de conceituar o que é religião deve-se ter à mente que ela é um assunto emotivo, por isso “a neutralidade sempre esconde algum grau de preferência e de viés” (CRUZ, 2013), e que o intérprete sempre estará envolvido de forma coparticipativa, no e com objetivo de estudo da religião, (FILORAMO e PRANDI, 1999 p. 10), cuja construção do pensamento religioso ao longo da humanidade, depende do lugar e da época de suas existências. (GRESCHAT, 2005 p. 22) Aproveitando a afirmação de Hock, 2010 p. 22, que “o termo religião é estreito demais, ou amplo demais para abranger aquilo que em outras tradições religiosas e culturais é descrito com termos que parecem corresponder a ele”, me outorga a liberdade de trazer a definição que ajudará a compreender a relação da espiritualidade e a saúde. A religião tem como atribuição interligar o indivíduo a Deus. Esta religião é conceituada por Tavares et al (2016) como “crença na existência de forças sobrenaturais que estabelece dogmas, que envolvem doutrinas e ritos, envolvendo preceitos morais e éticos. (...) Em geral, a religião se baseia em um conjunto de escrituras ou ensinamentos que buscam descrever o significado e o sentido do mundo”. Este significado e sentido a vida, nos retoma ao conceito interligado da espiritualidade, que pode ser descrita como esta busca de significado que levam o homem a transcender o seu existencial, podendo ou não está ligada a uma prática formal religiosa (TAVARES, et al 2016). Completado por Medeiros e Barreto (2016), estes afirmam que a religião fornece um suporte doutrinário para a experiência na manifestação religiosa que pode está vinculada a uma espiritualidade ou não. O conceito de espiritualidade que Medeiros e Barreto, 2016 trazem é que esta pode ser compreendida pela transcendência, cuja perspectiva de cuidado e proteção nas situações adversas são atribuídas a forças superiores. Coutinho, 2012 traz que a espiritualidade “parte da liberdade de escolha do sujeito, da sua experiência, dos seus sentimentos, do seu bem-estar e da sua realização”, de forma que a relação não seja por intermédio de práticas institucionalizadas, pois estaria ligada a religião. 391 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A espiritualidade é “a busca de significado e sentido para a vida, em dimensões que transcendem o tangível, que elevam o coração e o sentir humanos à experiência com algo maior que o seu existencial e que pode ou não estar relacionada a uma prática religiosa formal”. (TAVARES, et al 2016). “É indispensável ressaltar que a espiritualidade é universal, é parte da vida e ocupa lugar em todo o ser humano, na sua inteireza, em toda a sua essência. É um movimento interno, que dimensiona e redimensiona o sentido da vida. É uma presença íntima e contínua, embora nem sempre autopercebida... a espiritualidade é uma presença cotidiana, está ligada a dimensão social, relacional, profissional, na saúde, na educação, no lazer, na religião, no íntimo de cada um”. (TAVARES, 2016) Para falar sobre espiritualidade, devemos ter em mente a linha histórica que a “durante muito tempo, ‘espiritualidade’ foi um conceito do âmbito da teologia e dominado por essa”. (CALVANI, 2014). O que este traz de alerta que devido ao conceito de espiritualidade primariamente está interligado historicamente à teologia cristã, não podemos forçar esta, aos vários sistemas religiosos existentes, ultrapassando as categorias religiosas com as quais estamos acostumados. Com isso, surge-se o termo espiritualidades não-religiosas para “estabelecer diálogos entre preocupações das ciências das religiões e outras esferas da cultura, a partir da suspeita de que há formas de espiritualidade que não se localizam no raio dos sistemas religiosos organizados” (CALVANI, 2014) As colocações de Calvani, 2014 mostram os avanços resultantes das modificações que começaram a ocorrer na segunda metade do século XIX, cuja evidência da consciência da “religião”, que é um produto de transformações ideológicas (USARKI, 2003) vai tomando seu lugar como disciplina autônoma e liberta da raiz da teologia. (USARKI, 2013) “Intelectuais da época chamariam a atenção, não por suas críticas a convicções e práticas religiosas ‘naturalmente’ aceitas por seus contemporâneos, mas por causa de sua postura emancipada do 392 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e então senso comum, ou seja, graças a uma atitude que aproximaria de maneira ‘protodisciplinar’ ao ideal epistemológico do cientista da religião moderno” (USARKI, 2013) Este rompimento da hegemonia cristã no campo da teologia possibilitou surgimento da disciplina que trazendo o estudo comparado das diferentes tradições religiosas da humanidade, sem a superioridade frente às demais como era trazida (USARKI, 2013), apresenta o objetivo de reconstruir a “evolução religiosa da humanidade” (FILORAMO E PRANDI, 1999, p. 7). Espiritualidade e Saúde: conceitos históricos A própria etimologia latina da palavra saúde (que significa salvação), traz a ligação existente entre a espiritualidade e saúde (Pontes, Aquino e Caldas, 2016). Medeiros e Barreto (2016) apresentam que as causas das doenças, em civilizações antigas, eram justificadas por causas sobrenaturais e consequentemente, os tratamentos também eram nesta perspectiva. Porem, com as correntes históricas que surgiam, o pensamento começou a romper com o sagrado, um olhar mais compartilhado centrado na racionalidade (TAVARES et al, 2016), todavia a academia atualmente tem demonstrado sinais de retorno a temática, como podemos observar no aumento de pesquisas sobre espiritualidade/religiosidade e saúde, principalmente nas ultimas décadas que foram apresentadas por Damiano et al, 2016. Este aumento no número de pesquisas leva os profissionais de saúde a refletirem sobre as práticas de cuidado integral do paciente (Esperandio, 2014), objetivando o uso da influência positiva da espiritualidade e religiosidade nas práticas terapêuticas (Koenig, 2005). Logo, Esperandio (2014) propõe cursos de formação que abordem a referida temática e resultados em saúde, para que haja melhor interação entre as áreas. Nesta mesma perspectiva, Gorene, 2016 sugere também integrar ao currículo disciplinas que formem diálogos com o tema de forma interdisciplinar, ajudando na construção mais efetiva de um múltiplo olhar no cuidado integralizado. 393 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Espiritualidade e saúde: relações A espiritualidade se torna um rochedo para questões de incertezas provenientes do enfrentamento das inseguranças diante do que ameaça o presente e futuro daquele que se ver a condição de fragilidade, que quase sempre busca uma solução externa e mágica para o alivio desde (ANJOS, 2008). Estes processos são evidenciados, pois a religião e a espiritualidade têm como característica trazer significado ajudando a lidar com adversidades e o estresse da situação causado pelas perdas ou mudanças. (ESPERANDIO, 2014; KOENIG, 2005) Dado semelhante também foi encontrado por Volcan, et al. (2013) que apresenta a espiritualidade como um aspecto positivo na melhora da qualidade de vida na saúde mental, conforme eles trazem como conclusão de sua pesquisa: “Assim, visto que a espiritualidade é considerada um recurso psicossocial individual – e possivelmente comunitário – de promoção de saúde mental, é recomendável o incentivo da pratica de atividades espirituais e religiosas materializado em áreas que, além de benéficas, não são onerosas aos sistemas de saúde”. Os benefícios trazidos pela espiritualidade e religiosidade vêm sendo estudados por vários teóricos cujos resultados apontam as influências sobre a saúde do homem. A adesão terapêutica, rede de apoio e mudanças de hábitos foram algumas das influências citadas por Koenig, 2005. Podendo-a ser um aporte para sensação de bem-estar, segurança, proteção e conforto. Gorene, (2016) valida o mesmo pensamento quando afirma que os fatores permeantes da espiritualidade influenciam as noções de saúde dos pacientes e dos trabalhadores da saúde, pois resultam em fatores que ajudam o tratamento terapêutico. Santo, Gomes e Oliveira (2013) também traz resultados parecidos, quando relata que a oração praticada é apresentada como fonte de enfrentamento da doença em questão, conferindo a esta prática um papel importante na maturidade espiritual e desenvolvimento de potenciais dos praticantes da oração, por isso julgam a importância da interação de análise de 394 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e estudo e saúde nas dimensões mentais e espirituais, devido a sua grande relevância ao bem-estar humano. Koenig, 2005 e Volcan, et al. 2013 abordam pontos que justificam a relação positiva desta relação com a saúde, nos quais podemos citar melhora da depressão, menor taxa de suicídio ou pensamentos negativos, melhor apoio social e melhor qualidade de vida. Volcan, et al. 2013 recomenda o incentivo da prática de atividades espirituais e religiosas como aliados, pois além de benéficas, não são onerosas aos sistemas de saúde. A identificação das características da religião e suas manifestações presentes revelam a importância do sentimento resiliente sobre o físico, principalmente utilizando a prática da oração como estratégia de enfrentamento religioso-espiritual, (Pinto, 2010 e Santo, Gomes e Oliveira, 2013). Espiritualidade, Saúde e Pessoas vivendo com HIv Diante da descoberta diagnóstica, a PVH necessita ressignificar ou manter o sentido para a vida e enfrentamento da doença e do estigma social, podendo usar para este enfrentamento, a religiosidade/ espiritualidade e todo o sistema religioso como aporte para capacidade de transcender o momento e gerar vínculos de apoio (Santo, Gomes e Oliveira, 2013, Pinho et al, 2017 e Pontes et al, 2015). Logo, a espiritualidade pode se apresentar como uma adjuvante no processo de resiliência, quando a mesma se apresenta como fonte de interpretação para os acontecimento da vida (Calvetti, Muller e Nunes, 2008. Estudos sobre esta temática vêm sendo desenvolvidos para melhor compreender a relação da fé e religião, a exemplo o realizado por Galvão et al, 2013 constatou que mães de crianças que vivem com HIV também utilizaram a religiosidade como estratégia de enfrentamento. Assim, como Gomes et al, 2016 em um estudo sobre representação social em PVH, revelou que a espiritualidade foi evidenciada nesta população. Verificaram-se também estudos sobre qualidade de vida, os quais apontam que o domínio da espiritualidade apresenta as melhores 395 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e avaliações, evidenciando que a utilização deste como subsídios para lidar com a situação de advinda da descoberta diagnóstica (MEDEIROS e SALDANHA, 2012 e Hipólito et al, 2017). O suporte religioso-espiritual pode auxiliar a PVHA no enfrentamento da doença e do estigma social. Logo, o conhecimento da temática da religiosidade e espiritualidade auxilia a assistência, gerando vínculos (Pinho, et al, 2017). Santo et al, 2013 também coloca que a religiosidade e espiritualidade podem ser utilizados como fator positivo à adesão medicamentosa com os antirretrovirais. Correlacionando o mesmo assunto, Pinho et al, 2017 e Bellini, et al, 2015 revelam que indivíduos que apresentam enfrentamento positivo aderem melhor a terapia antirretroviral (TARV), e como isso melhoram a taxa de monitoramento de eficácia da terapia, tais como aumento do número de linfócito CD4 e diminuição do número de cópias de vírus circulantes, denominada de carga viral. Medeiros e Saldanha, 2012 validam que o estudo da religiosidade e da espiritualidade no contexto de doença crônica pode auxiliar profissionais de saúde no tratamento e planejamento de ações voltadas a PVH. Os estudos se voltam para quanto a religião tem participado da vida diária, revelando que o comprometimento religioso repercute em ações de enfrentamento de problemas e promoção a saúde. Pinho et al, 2017 trazem que o enfrentamento religioso negativo tem relação direta com níveis de depressão e menores índices de qualidade de vida, revelando assim que a relação religiosidade e espiritualidade são relevantes no processo de enfrentamento da doença. Silva, Passos e Souza, 2015 trazem que os benefícios da religiosidade e espiritualidade sobre a saúde mental em PVH. A religião traz em sua essência, o sentimento de auxilio na difícil tarefa de lidar com o sofrimento ocasionado pelos desafios da nossa condição (Esperandio, 2014). A espiritualidade pode se tornar mais evidente em tempos cujas doenças alteraram a vida ou o modo desta, e que as crenças religiosas e suas práticas ajudam a regular as mudanças que ocorrem durante o período de enfrentamento da doença, pois Koenig, 2005 fala da importância da espiritualidade neste processo de fragilidade, quando traz que o enfrentamento religioso “é o uso das crenças religiosas ou práticas que reduzam o estresse emocional causado por perdas ou mudanças. Os pacientes podem passar a responsabilidade de seus problemas para Deus, acreditado 396 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que Deus resolva as doenças, assim eles não precisariam ruminar-se ou preocupar-se com elas.” Por isso, o mesmo traz que “negliciar a dimensão espiritual é como ignorar o ambiente social de um paciente ou seu estado psicológico, e resulta em falha ao tratar a pessoa integralmente”, resultando em relação positiva da espiritualidade com a saúde, tais como melhora da depressão, menor taxa de suicídio ou pensamentos negativos, diminuição de uso de drogas, melhor bem-estar e satisfação de vida e melhor rede de apoio social. (Koenig, 2005). Quando as crenças religiosas entram em conflito com a terapia, a equipe profissional precisa entrar no ponto de vista do paciente e tentar entender a lógica da decisão. Por isso, o profissional necessita adentrar no universo da religiosidade/espiritualidade. Considerações O presente estudo abre o caminho para que multiáreas do conhecimento desbravem o campo da religiosidade, espiritualidade e o estudo das religiões, contribuir de forma efetiva para o bem-estar biopsicossocio-espirirual da pessoa vivendo com HIV. O conhecimento, sem julgamentos, de outras religiões e o estudo sistemático podem auxiliar o profissional de saúde em suas diversas áreas de abrangência, tais como o sentido e propósito da vida e práxi em diversas áreas de abrangência. Os benefícios apontados pelos autores alargam ideias de como introduzir e como lidar com a temática no processo de cura e/ou alívio de doença. Logo, o estudo das religiões é levantada como fator de contribuição na formação do profissional de saúde, trazendo um olhar integral e mais humanizado no cuidar; assim como, também contribui no processo saúde-doença do individuo, pois traz a reflexão ao sentido de vida e conforto. Conclusão do artigo abre um alerta à comunidade em geral sobre necessidade da ampliação de debates acerca do tema pautado, pois entender a relação da espiritualidade, religiosidade e saúde ajudará em toda caminhada do processo saúde-doença. 397 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALENCAR, Tatianna Meirelles Dantas de; NEMES, Maria InesBattistella; VELLOSO, Marco Antonio. Transformações da “aids aguda” para a “aids crônica”: percepção corporal e intervenções cirúrgicas entre pessoas vivendo com HIV e AIDS. Ciência & Saúde Coletiva, 2008. CALVANI, Carlos Eduardo Brandão. Espiritualidades não-religiosas: desafios conceituais. Horizonte, Belo Horizonte, v. 12, n. 35, p. 658-687, jul./set. 2014. Disponível em: <http:// periodicos.pucminas.br/index.php/ horizonte/article/view/P.21755841.2014v12n35p658> ALENCAR, Tatianna Meireles Dantas de. 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[ Volta ao Sumário ] 400 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e laiCidade paRlamentaR? uma discussão sobre a atual política brasileira Daniel Ferreira da Silva Jéssica Emanuelly Santos Barboza da Silva Como referenciar este capítulo: SILVA, Daniel Ferreira da; SILVA, Jéssica Emanuelly Santos Barboza da. Laicidade parlamentar? Uma discussão sobre a atual política brasileira. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 401-406. Daniel Ferreira da Silva1 Jéssica Emanuelly Santos Barboza da Silva2 Introdução Este trabalho assume como objeto de análise o discurso religioso cristão pentecostal, intensamente vigente nas atuais representatividades políticas nacionais. Para tanto, teremos como fio condutor da discussão uma análise histórica que objetiva evidenciar a fomentação do discurso político-religioso na manutenção ideológica. A problematização em torno da temática é um indicativo importante sobre como o debate público acaba por incorporar, propagar e fortalecer a ideologia dominante. Explicitando aos discursos moralista-cristãos promovidos pela classe dominante, que oprimem e alienam os indivíduos, exporemos enfaticamente os interesses políticos e individuais presentes nas manifestações ideológicas das classes opressoras. Para isto utilizaremos como método o levantamento bibliográfico de obras que explicitem ferramentas necessárias para a compreensão do objeto de estudo apresentado, por meio das construções literárias produzidas nos campos da política e religião e a análise de discurso conceituada por Bernard Berelson no final dos anos 40-50, como uma técnica de pesquisa que visa a descrição do conteúdo manifesto de maneira objetiva, sistemática e quantitativa e posteriormente aprofundado por Bardin (1994) que aponta o desvendar crítico como a função primordial da análise do conteúdo. A partir dos métodos citados evidenciaremos nos discursos políticos e religiosos aspectos morais que influenciam diretamente na construção do pensar político atual e na vida social da população. 1 Graduando em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: danielfds96@yahoo.com 2 Graduanda em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: emanuelly471@gmail.com 402 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e País laico, pautas políticas e sociedade O tema em questão tem sido foco de diversas áreas do saber no período em que nos encontramos, pois, a atuação religiosa, principalmente do segmento evangélico tem crescido cada vez mais. “O contexto brasileiro é marcado pela pluralidade de credos religiosos que disputam o espaço público para a legitimação de suas práticas (MACHADO, 2006, p.42-67). Mas recentemente, essa tendência ampliou-se com várias instituições que passaram a apoiar pastores e leigos a se elegerem em diversos cargos eletivos e executivos existentes para alcançar os seus objetivos, que, na maioria das situações, consistem na divulgação e expansão de suas instituições religiosas.” (PY; REIS, 2015, p. 137) De acordo com Py e Reis (2015), a presença dos evangélicos antes de 1945 é praticamente nula, porém a partir do período getulista há uma organização por parte dos evangélicos que acabam elegendo primeiramente um nome para deputado federal e, nas eleições seguintes, mais alguns nomes vão surgindo, sendo sempre organizada por algumas das instituições mais conceituadas do país, como a Igreja Batista, a Igreja Assembleia de Deus que assume a liderança em 1987 com maior representação, abrindo espaço para a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) com segundo maior número de representantes no parlamento, as demais instituições aparecem cada vez mais, no entanto, em menor número. A motivação que leva as instituições religiosas evangélicas a participarem do poder político segundo Py e Reis (2015), está dividida entre busca de adeptos, influencia em diversos setores da sociedade, e, por último, porém não menos importante acesso ao poder para evangelização. Para melhor entendermos a problemática em torno da ascensão dessas representatividades religiosa evangélicas, devemos levar em consideração as seguintes dimensões na formação discursiva político-religiosa: a moral e a ética. A partir delas encontraremos na essência do discurso produzido, fortes impactos na vida social. 403 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A dimensão moral pode ser tratada como fator central na universalização dos interesses de grupos sociais, já que no decorrer da história da humanidade torna-se evidente as transformações morais da sociedade. Deste modo, compreenderemos a moral como: “normas estabelecidas socialmente em determinado grupo e em determinado momento histórico” (SANTOS, 2016, p. 428). Sendo assim, a dimensão ética se relaciona com a moral como ferramenta investigadora das ações morais, ou seja: “O ético transforma-se assim numa espécie de legislador do comportamento moral dos indivíduos ou da comunidade. Mas a função fundamental da ética é a mesma de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes. Por outro lado, a realidade moral varia historicamente e, com ela, variam os seus princípios e as suas normas” (VASQUEZ, 1975, p.10) Entrelaçado pela dimensão ética e moral, o discurso produzido pelas comunidades evangélicas pentecostais estruturam-se na teologia da prosperidade. Essa teologia associa-se muito com a lógica econômica neoliberal, provocando um individualismo e fortalecendo o mercado empresarial. Deste modo, o discurso produzido pela teologia da prosperidade dispõe da seguinte lógica, “uma ética econômica voltada para o mundo, onde possuir e ascender são sinais de que Deus, e não o diabo, age em sua vida” (ALMEIDA, 2017, p. 14) Prandi e Santos (2017) reforçam dizendo que “essa ideologia deve aparecer maximizada no âmbito parlamentar por se tratar de um posto ao qual em geral apenas as lideranças evangélicas ascendem, justamente os líderes responsáveis por difundir tal ideologia entre os fiéis na prédica cotidiana.” (PRANDI, SANTOS, 2017, p. 204) A lógica promovida pela teologia da prosperidade reverbera na vida cotidiana como ferramenta regulamentadora da sociedade. Podemos analisar nos últimos anos o posicionamento tomado pelos representantes da bancada evangélica e evidenciar nas suas intenções uma força moralista que impedem avanços de lutas promovidas por movimentos sociais que se empenham em busca de igualdade, justiça e respeito na sociedade. 404 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e As consequências sociais provenientes da teologia da prosperidade refletem total domínio sobre a vida do indivíduo, de modo que ou ele se enquadra aos “padrões doutrinários” ou passa por um processo de demonização. Percebemos em torno desse domínio o surgimento de forças que lutam contra as conquistas de direitos recentemente adquiridos pela sociedade, essas evidências são mostradas a partir da atuação de políticos que, ligados institucionalmente ao segmento “evangélico”, ingressam na vida pública a fim de regulamentar a sociedade a partir da moral produzida por determinado grupo. O discurso moralista desses segmentos está tão enraizado que “a religião de hoje da tratamento privilegiado às coisas da intimidade em detrimento das coisas do governo da nação: o indivíduo é que ocupa o centro de sua preocupação.” (PRANDI, SANTOS, 2015, p. 188). Sendo assim, as pautas que contrariam a moral defendida pelas igrejas, como a questão da liberação do aborto e defesa dos homossexuais, acabam por serem negadas pelos parlamentares evangélicos, mesmo que sejam pautas de relevância social. Como vimos, um dos objetivos da participação das instituições religiosas no poder político é a influência nos setores da sociedade e a evangelização, o que nos parece está dando certo, visto que o país sai de um governo no qual grande parte das pautas sociais são aprovadas e entra num governo conservador que assume como objetivo principal voltar às tradições morais cristãs dos pentecostais em ascensão. Longe de se esgotar as discussões sobre o tema apresentado, tentamos por meio de fatos históricos evidenciados na sociedade, esclarecer criticamente o quadro político brasileiro atual em apoio com forças e segmentos religiosos produzido pela teologia da prosperidade que atinge os campos públicos e influenciam na demanda da sociedade tendo por guia e orientação os segmentos religiosos a que pertence. A partir do evidenciado é possível perceber que os parlamentares evangélicos pentecostais não compreendem a proposta de um país laico, em que não se deve ser feito normas e leis a partir do viés religioso, mas pautas que realmente ajudem no bem-estar social e econômico da sociedade, privilegiando a vida de todo e qualquer indivíduo, não interessando a cor de pele, a orientação sexual, o gênero ou seu segmento religioso, mas a vida daquele pelo qual ele se propôs a defender através da lei. 405 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALMEIDA, R. A onda quebrada – evangélicos e conservadorismo. Cadernos Pagu, no.50, jun. 2017. Disponível: < http://dx.doi.org/10.159 0/18094449201700500001 > COSTA, C; LEPRE, R. M; MONTANHA, L. T; SILVA, R. F. O percurso histórico dos valores morais e éticos: contribuições da psicologia do desenvolvimento da moralidade. Rev. 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São Paulo: Edições 70, 2011, 229p. Revista Eletrônica de Educação. São Carlos, SP: UFSCar, v.6, no. 1, p.383387, mai. 2012. Disponível em http:// www.reveduc.ufscar.br [ Volta ao Sumário ] 406 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e lendas e supeRstições: contos de assombrações e catolicismo popular na obra de ademar vidal Fabiano Cesar de mendonça vidal maria Nilza Barbosa Rosa Izabel França de Lima Como referenciar este capítulo: VIDAL, Fabiano Cesar de Mendonça; ROSA, Maria Nilza Barbosa; LIMA, Izabel França de. Lendas e superstições: contos de assombrações e catolicismo popular na obra de Ademar Vidal. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 407-420. Fabiano Cesar de Mendonça Vidal1 Maria Nilza Barbosa Rosa2 Izabel França de Lima3 1. Introdução Desde cedo fomos habituados a ouvir histórias, lendas e superstições que falavam de lobisomens e almas do outro mundo. A riqueza histórica e cultural que nos foi passada de geração em geração continua a ser preservada e vivida por muitos, por isso é que a sua preservação resistiu e resiste ao longo dos anos. São práticas de cunho místico e supersticioso que se complementaram, se misturaram ou se agregaram à fé cristã. Tudo isso, passado de geração em geração constrói a identidade cultural de um povo, de uma religiosidade. Pensando assim, decidimos trabalhar o tema Catolicismo popular, com base na obra Lendas e superstições do escritor paraibano Ademar Vidal, que possuía por característica a cultura popular na Paraíba, o que o levou a registrar as peculiaridades de sua terra e de sua gente. Natural de João Pessoa, onde nasceu no ano de 1897, Ademar Vidal, filho do jornalista e poeta Francisco de Assis Vidal, realizou extensa coleta de dados sobre as manifestações culturais presentes na Paraíba. Seus escritos abordam usos, costumes e lugares da Paraíba, enfatizando a cultura popular, o cotidiano do homem sertanejo, as festas, lendas, danças encenadas, brincadeiras, enfim um patrimônio cultural que o levou a conviver com figuras expoentes dos meios político, como Getúlio 1 Graduado em Turismo (IESP Faculdades), Mestre em Ciências das Religiões (UFPB) e Doutorando em Ciência da Informação (UFPB). Integrante dos Grupos de Pesquisa Raízes e Imclusos. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7806127585750085. E-mail: fabianocmvidal@gmail.com 2 Graduada em Pedagogia, Mestre em Ciência da Informação (UFPB) e Doutora em Letras (UFPB). Lattes: http://lattes.cnpq.br/8152747724329182. E-mail: nilzasor@yahoo.com.br 3 Graduação em Biblioteconomia e Administração(UFPB), Mestre em Educação (UFPB), Doutora em Ciência da Informação (UFMG) e líder do grupo de Pesquisa iMclusoS da Universidade Federal da Paraíba. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2774920113255079. E-mail: belbib@gmail.com 408 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Vargas, José Américo, Epitácio Pessoa e artístico, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Assis Chateaubriand, dentre outros. Sua produção literária é vasta, e foi doada por sua filha Alice Vidal ao Instituto Histórico e Geográfico Paraibano – IHGP, contribuindo para que a Paraíba recebesse um patrimônio cultural diversificado e plural. Ao elaborar Lendas e superstições, Ademar Vidal buscava não apenas o registro dessas manifestações culturais populares, mas toda uma peculiaridade religiosa e moral diferente daquela imposta pela cultura dominante, revelando a mentalidade coletiva do homem nordestino. Ao aproximar as tradições culturais através de contos sobre fantasmas e almas do outro mundo, Lendas e superstições é uma obra elaborada através da metodologia da história oral e da coleta de dados etnográficos, o que nos permitiu adentrar neste universo do maravilhoso com raízes históricas baseadas na crença popular. A metodologia aplicada por Ademar Vidal para o recolhimento dessas informações cuja expressão material se visualiza no patrimônio cultural, possui a capacidade de estimular a memória das pessoas historicamente vinculadas a ele, por isso é alvo de estratégias que visam a sua preservação. Segundo alega Vidal (1949), ele se propôs a pesquisar a “evolução do conto popular, das lendas e mitos em nosso país, através da literatura ou da tradição oral”; ele procurou demonstrar o poder de sua “transmissão e intuitos”, através das direções em “que se fazem circular essas histórias de fantasmas e marmotas carregados de oprimir, nunca deixando também de mostrar personalidade egoísta, sempre noturna e orgulhosa dentro de constante importância repressora, impedindo que haja “felicidade entre as crianças”. (VIDAL, 1949, p.19). A literatura oral transmite de povo a povo, de indivíduo a indivíduo as narrativas que se constituíram em algo fundamental a vida, e que os homens, através dos tempos, selecionaram pela experiência. Desse modo, as histórias permanecem no mundo pela tradição oral, no qual o ato de contar e recontar histórias pode ser entendido como uma partilha de lembranças, sabedoria e experiências adquiridas ao longo de uma vida. “São os dias de lembrança que, muitas vezes, não são assinalados por uma vivência, mas, ao contrário, destacam-se do tempo” (ROSA, 2012, p. 139-40). Embora Lendas e superstições tenha sido lançada em 1949, sua concepção por parte de Ademar Vidal surgira ainda nas primeiras 409 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e décadas do século XX, conforme seus registros preservados no Arquivo Ademar Vidal no IHGP, “ainda desorganizados, porém com intenções explícitas de reunir em um livro, mitos do litoral, fantasias da várzea e do brejo, lendas do sertão paraibano”. (ROSA, 2012, p. 140). Neste trabalho, utilizamos a pesquisa qualitativa de cunho documental, selecionando e interpretando a informação contida nos contos que compõem a obra Lendas e superstições, o que nos possibilitou um incremento de detalhes à pesquisa. Desta forma, é possível dizer que a pesquisa documental possibilita “produzir novos conhecimentos, criar novas formas de compreender os fenômenos e dar a conhecer a forma como foram produzidos” (BONOTTO; KRIPKA; SCHELLER; 2015, p. 57). A obra Lendas e superstições contém 161 contos dos quais escolhemos cinco, por considerá-los representativos do tema aqui abordado, ou seja, crenças populares na Paraíba. O primeiro capítulo, “Mitos do litoral”, é composto de cinquenta e cinco contos, dos quais destacamos os textos: Alma de gato e O monstro Bambá. O segundo capítulo, “Fantazias da Varzea e do Brejo”, possui sessenta e um contos, dentre os quais Zumbi de cavalo, que trata da alma do cavalo, pois “não é somente o homem que tem alma” (Vidal, 1949, p.279). Ainda neste capítulo, destacamos Os passeios do vulto branco. Essa alma era vista próxima ao canavial “todo de branco, vestido num largo camisolão, de cajado em punho e com ares de quem anda fiscalizando algum serviço permanente.” (VIDAL, 1950, p.349-350). O terceiro e último capítulo, “Lendas do Sertão”, com quarenta e cinco contos, entre os quais Bicho venenoso, que desperta interesse por começar afirmando que “O homem do Cariri acredita na existência da alma humana. Confia nos poderes do céu”. (VIDAL, 1949, p. 617). Concordamos com Bernardes (2017, p. 56) quando este afirma que “a crença nestas assombrações e a tradição de contar estas narrativas se configuram como elementos de uma identidade coletiva, produzida historicamente”. Cremos como Bernardes (2017), que nestas manifestações há o registro de uma religião e cultura diferentes da imposta pela religião dominante, o Catolicismo, ao demonstrar diálogos e divergências culturais com outras religiosidades. Essa religiosidade não está longe de cada um dos indivíduos, está presente no povo e por ele é mantida. Foi esta a nossa motivação na realização deste tema. 410 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Os cinco contos ilustrativos do que foi coletado e disseminado por Ademar Vidal, traduzem as memórias da religiosidade, ou seja, as tradições e as práticas populares. São marcas que evidenciam como os sujeitos dão sentido e significado ao tempo e a história local, reforçando a ideia que as crenças chegaram até nós a partir das práticas populares. 2. Lendas, superstições e catolicismo popular Embora não haja uma definição de religião que abarque todas as suas dimensões, podemos considerá-la como um fenômeno presente em todas as culturas, desde a pré-história até os dias atuais. Temas como vida, morte, criação e vida após a morte, assim como o cosmos estiveram sujeitos a explicações religiosas que os justificavam através da existência de deuses e divindades que controlavam a realidade fora do âmbito visível (INTRODUÇÃO, 2014, p. 12). Para Vitor Frankl (2001) o ser humano possui uma “vontade de sentido” que faz com que se questione quem é, de onde vem, para onde vai e qual o propósito de sua vida, em uma busca pela transcendência, em busca das respostas para suas razões de ser e agir, uma vez que não tolera o “vazio existencial”. Em relação ao pensamento de Frankl, Borau (2008, p. 12) entende ser o sentimento religioso “a necessidade afetiva de estar ligado a algo diferente de nós próprios. […] Um sentimento que procura penetrar e comunicar com as forças sensíveis que se pressente que atuam no Universo”. Segundo este autor, embora a religião tenha sido em certos momentos da história, perseguida pela “ideologia social, muitas vezes, ao longo da história, a religião teve uma função de coesão social a favor da ideologia dominante”, ao transmitir, de forma voluntária ou involuntária, “as concepções sociais, os valores morais, nos quais o sistema político se baseia” (BORAU, 2002, p. 17). De acordo com Bezerra e Lemos (2012, p. 09), ao nos referir à religiosidade popular, associamos esta a “ideia das crenças, dos rituais de uma determinada população, e principalmente, da sua relação com o Sagrado”. De acordo com estas autoras, a religiosidade popular católica tem sua origem no Brasil em 1500, tendo sido esta religião trazida pelos 411 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e colonizadores portugueses: “Como a população não conhecia outro tipo de religião, ela tornou-se uma “religião de obrigação”. O Catolicismo foi considerado a única e verdadeira religião, ela determinava onde as pessoas atuariam na sociedade” (BEZERRA; LEMOS, 2012, p. 09). Segundo preceitua Rodrigues (2015, p.1725), embora o Catolicismo fosse a religião oficial do Brasil, enfrentava “inúmeras dificuldades para se fazer presente no interior do país, deixando essas populações desprovidas dos ritos e sacramentos”. Para o autor, diante disso os ritos católicos ganhavam, ao longo dos anos, “novos signos e alegorias marcados por uma coexistência dissimuladamente pacífica entre a devoção e a diversão. Isso fez surgir práticas reinventadas que se baseavam nos preceitos sagrados, mas também envolviam elementos profanos”. Em virtude dessa ressignificação do Catolicismo, há uma diferença entre a religião popular e a oficial que, na visão de Chauí (2006, p. 82) “manifesta-se como oposição entre leigos e clero, e entre festividades e sacramentos, isto é, entre uma religiosidade espontânea e uma religião vertical, imposta autoritariamente”. Vilhena (2008, p. 29) aponta para o fato de que se aqui no Brasil aportou a ortodoxia católica de tradição tridentina, “também chegaram crenças populares ibéricas que sincretizavam com elementos cristãos, de modo próprio, tradições provenientes de vários paganismos cuja ancestralidade se perde em tempos de longuíssima duração”. Do universo católico nos foram legados ritos como bênçãos sobre os cadáveres, missas em sufrágio das almas, a presença de cruzes e imagens sacras por sobre os jazigos e a arte mortuária. Além da possibilidade de comunicação com os mortos, “que, não sofrendo a perda de identidade e da capacidade de pensar, querer e agir, podem ser invocados no sentido de intercederem junto a Deus em favor dos vivos”. (VILHENA, 2008, p. 29) Ainda de acordo com Vilhena (2008, p. 29), este imaginário está Na base do Catolicismo santorial e devocional que sustenta relações de compadrio com os mortos tido como santos, orações de súplica e agradecimento, promessas, festas por ocasião das datas dedicadas aos protetores de cidades e oragos de igrejas, ladainhas, ex-votos, culto às relíquias, não raramente originando confrarias e irmandades religiosas. 412 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e É neste contexto de ressignificação da doutrina católica que entendemos estar situada Lendas e superstições. Afinal, os contos de fantasmas e assombrações, relatados por Ademar Vidal, nada mais são que tentativas de responder o que acontece com o ser humano após a sua morte. O espírito vai habitar outro mundo? Receberá prêmios ou sofrerá punições? O mundo espiritual será de gozos ou sofrimentos? De acordo com Prandi (2012, p. 10) Somente a religião pode falar da existência ou não do mundo dos espíritos e de tudo o que lá acontece. […] É a religião que dá sentido a essa crença, justificando por que e como ocorre esse processo de reencarnações da alma. Farão o mesmo todas as formas de crença cujo atributo necessário está em acreditar que existem um outro mundo ou uma outra dimensão de existência que não se confundem com o mundo material. Corrêa (2008, p. 41-42) destaca a vontade do homem de existir sempre, em busca de uma onipotência representada pela possibilidade de renascimento dos mortos, ideia presente desde os povos arcaicos e que assume, no domínio do pensamento e da cultura, um status de um dado universal, pois crer na imortalidade representa opor-se ao traumatismo e ao horror causado pela morte. Neste contexto surge a crença no “duplo”, entendido por Corrêa (2008, p. 42-43), como “O mesmo que fantasma, o espírito, alma, e até a sombra do corpo. […] Está presente igualmente nos fantasmas dos folclores e no “corpo astral” das doutrinas esotéricas”. Para Bernardes (2017, p. 61), os contos populares de assombração “trazem em seu bojo a marca de religiosidades tecidas nas rotinas e hábitos diários por séculos e que foram ganhando suas especificidades ao longo do tempo”. A comunicação entre vivos e mortos parece ser uma “herança portuguesa e europeia marcada pelo medo e que desembarcou na América portuguesa convergindo-se com as representações das etnias nativas e africanas”. Bernardes (2017) chama atenção para o fato de que aproximações entre as concepções locais de almas penadas e assombrações, estas últimas comuns no catolicismo popular, são entendidas pelo clero como superstições que extrapolam os limites do catolicismo oficial, indicando uma convergência com a doutrina espírita 413 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e elaborada por Allan Kardec, ao envolver temáticas como: sofrimento, dor, pecado e apego à materialidade da vida corpórea, o que, nas palavras de Bernardes (2017, p. 62) “reforça a ideia de proximidade com o catolicismo popular e o dinamismo de um hibridismo cultural e religioso que não se encontra de forma estagnada”. Acerca desta hibridização, Vilhena (2008, p. 34-35) afirma que as religiões não se encontram imunes às mudanças, pois na luta para não desaparecerem, “tendem a transformações, pelo que são dinâmicas e não estáticas. Assim foi sempre, assim é e sempre será. […] Uma religião petrificada é como uma pedra, sem vida”. Tomando a religião Católica como exemplo, Prandi (2012, p.15) afirma que o tema da reencarnação, embora negada pelo Catolicismo, possui aceitação entre seus adeptos: “Muitos católicos […] acreditam em vidas passadas, na reencarnação do espírito neste mundo” e que, apesar desta mesma Igreja também rejeitar a comunicação com os espíritos dos mortos, “muitos de seus fiéis creem nessa possibilidade e até lançam mão de rituais não católicos para alcançar seus mortos.” (PRANDI, 2008, p. 16). Desta forma é possível afirmar, tomando por base as ideias de Souza (2013), que as práticas do catolicismo popular são exercidas à margem da Igreja, possuindo um caráter de tradição que é transmitida de geração para geração, estando seus praticantes situados entre a camada mais pobre da população, caracterizando-se por ser uma manifestação popular e religiosa que “muda de forma e posição a partir das transformações ocorridas no contexto cultural mais amplo do qual faz parte”. (SOUZA, 2013, p. 05-06). 3. Contos de assombrações na obra de Ademar vidal Religião e religiosidade popular são dois fenômenos transversais a todas as culturas. São fontes de agregação e funcionam como “vontade de sentido” do mundo, em toda a sua abrangência, como adverte Victor Frankl (2001). Assim, o contexto cultural influencia a definição de religião. Nas sociedades ocidentais, por exemplo, a religião é sistema mediador entre o homem e entidades superiores. O Ocidente revela o 414 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Deus único e transcendente. Nas sociedades orientais este Deus único não está presente, mas antes, um Deus em tudo. Assim, a religião é algo ligado à própria natureza, a todos os seres vivos. Em todos os contextos históricos e culturais, as sociedades humanas acreditam que existem forças espirituais e sobrenaturais, que exercem influência ou mesmo controle sobre o mundo e sobre o próprio homem. Neste tópico, daremos a conhecer de modo muito breve, cinco contos que compõem a obra Lendas e superstições de Ademar Vidal, com as suas tradições e práticas. O primeiro conto por nós selecionado é Alma de gato, e trata de uma “sombra” que, durante o dia, é percebida discretamente, de forma imprecisa, sendo notada materialmente com a chegada da noite, possuindo a conformação de um gato preto comum, cujos olhos “destilam luminosidade de fogo”. Sua missão (alma de gato) é aparecer para “despertar mêdo aos meninos. […] Nenhum menino tem coragem de ir lá fora (no quintal) sem ser acompanhado de gente grande” (VIDAL, 1950, p. 33-34). Já o conto, O monstro bambá, possuía formas de peixe: “tem olhos com pestanas, orelhas salientes […] apresentando as partes inferiores como sendo iguais à do homem”, cuja missão destinava-se a “caçar rapazes feios, irremediavelmente doentes de feios, porisso (sic) mesmo desprezados e olhados por tôda gente como réprobos, aleijados das formas”. Conta Ademar Vidal que ao serem capturados pelo monstro, os rapazes eram carregados e narcotizados “para os domínios da Mãe d’Água. Aí êle era massacrado com todas as honras do estilo. Massacrado em lindo estilo” (VIDAL, 1950, p. 91-92). As crendices podem ou não ser fruto do nosso imaginário coletivo, especialmente na literatura popular de tradição oral (histórias sob a forma de lendas, contos populares ou mitos). Em Lendas e superstições percebemos que o imaginário do povo paraibano era invadido por histórias de assombração, introduzindo, sobretudo, as crianças e os jovens nos medos e nas superstições, ao mesmo tempo os ajudavam a enfrentar esses medos. Nos relatos acerca dos Zumbis de cavalo, era constante a aparição destes, causando “estripolias medonhas. Causam terror aos tropeiros e vaqueiros.” Entendemos que tais aparições nascem sempre num espaço nebuloso entre a realidade e a fantasia. A fantasia presentifica-se 415 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e quando a realidade está mal contada, tornando-se um campo fértil para o imaginário. Assim, histórias como a dos Zumbis de cavalo ajudaram a construir lendas e a justificar a criação do medo e terror nas pessoas, numa dinâmica de ressignificações que as pessoas chamam a si no quadro dos seus impulsos identitários. Os passeios do vulto branco é um conto que relata a vida de um senhor de engenho, não nomeado, que maltratava seus escravos no Engenho Santo André com destacada perversidade, punindo-os severamente por qualquer motivo. Ao morrer, conta Vidal, “o corpo foi enterrado e certamente que a terra o devorou com sofreguidão. A alma, porém, não se foi do lugar onde vivera sempre e praticara as suas crueldades”. O sentido da religiosidade de um povo não se refere apenas ao caráter supersticioso ou formas irracionais de expansão dos próprios sentimentos e da própria impotência. Para entender esse sentido, antes é preciso compreender a religiosidade como um conjunto simbólico e ritual que tem a sua origem histórica, e que, apesar de conter elementos culturais, há um forte sentido de dependência (BERNARDES, 2017). A religiosidade popular constitui e manifesta uma forma de expressão ligada às vivências do cotidiano das populações, práticas que muitas vezes se unem naturalmente aos ritos cristãos, como o nascimento e a morte. A religiosidade popular corresponde a um mundo variado de expressões e práticas, que acompanham o homem ao longo da sua vida, transmitidas ao longo dos séculos, que chegam hoje até nós com inúmeras alterações sujeitas a modificações. Chegam e persistem, culturalmente, como uma identidade que se preserva porque ainda se acredita ou por tradição. (NASCIMENTO e AYALA, 2013). Tais significados devem ser compreendidos e partilhados de acordo com a vida social e como são classificados simbolicamente. Assim, a vela que para alguns é apenas um elemento sob um túmulo, torna-se sagrado para outros, podendo ser o canal entre o homem e o divino a partir de como os sujeitos se identificam, criam e estabelecem valores para as coisas (DURKHEIM, 1989). Adentrando mais um pouco nas tradições, práticas e mitos da religiosidade popular, destacamos o conto Bicho venenoso, que fala de dois vaqueiros que, ao saírem ao campo e após realizarem seu trabalho de cuidar do rebanho, foram dormir após realizar uma refeição, às 416 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e margens de um riacho que passava por perto. Um deles desperta repentinamente e observa uma cobra coral aproximando-se de seu companheiro que ainda dormia. Percebe posteriormente que não se trata de uma cobra, mas de um calango que começava a entrar de mansinho na boca de seu companheiro, que respirava com a boca completamente aberta. Resolve, então, matar o réptil, “que logo se transmudou nas cores: ficou pálido no corpo e arrocheado (sic) nas extremidades”. Tentou acordar seu amigo sem sucesso. Estava duro, havia morrido. A história logo se espalhou pelas redondezas: “aquele bicho tão bonito era a alma do homem que saíra para tomar fôlego fora do corpo e, quando voltava para o seu lugar, acabou-se, fôra morto pela mão assassina do desprevenido amigo”. Ao matá-la, acabou matando também a seu amigo (VIDAL, 1950, p. 617-618). Como aponta Vidal (1950), a religião católica é o refúgio de sua alma atribulada pela preocupação de melhorar sempre as suas condições materiais, enquanto traz o contraponto de uma “certa independência de pensamento” em relação a esta religião. A religiosidade popular é por vezes associada a classes subalternas, religiosidade tradicional e folclórica; é a sobrevivência de algumas crenças e práticas anteriores aos processos de cristianização que foram sobrevivendo e chegaram até nós (PRANDI, 2012). Acreditamos que os estudos etnográficos desenvolvidos por Ademar Vidal, contribuem para divulgação de práticas que são resquícios de mentalidades e vivências pessoais ou coletivas. 4. Considerações finais Ademar Vidal ao recuperar e preservar para a posteridade narrativas acerca do sobrenatural registra a memória e mentalidade coletiva do homem nordestino, ao legar às futuras gerações crenças populares e narrativas que são capazes de subverter combinações hegemônicas do que existe, ao divulgar fatos da memória cultural. No universo do sobrenatural, relatos de contos sobre assombrações e fantasmas ocorrem desde a Antiguidade e a Idade Média, perpassando os séculos e enraizando-se numa cultura que acreditava em sua existência, demonstrando que nas narrativas populares existe uma vida para os mortos, que 417 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e podem surgir em locais como ruas escuras e desertas, casas abandonadas, torres de igrejas atrás de missas e orações que possam dar-lhes paz no além-túmulo. Daí surgiu a crença de que as almas do outro mundo aqui permanecem enquanto não cumprissem os julgamentos que lhes foram impostos por Deus. Longe de querermos esgotar o assunto, inferimos que o registro dessas crenças populares nordestinas por Ademar Vidal nos remete a uma unidade de sentido que investe em uma vida após a morte ligada à vida humana através da fé, pertencendo a um olhar temporal duradouro. O que faz com que essas crenças sejam reproduzidas ao longo do tempo, através de uma história oral que nutre e preserva esses contos, podendo ser continuamente atualizadas e registradas em uma cultura escrita sem a qual muitos desses contos já estariam perdidos. Portanto, uma religiosidade é geralmente conduzida pelo mistério do sobrenatural, pela tradição do povo. Nas suas tradições e práticas, a religiosidade popular serve na vida de um povo, para determinar a sua identidade cultural e para dotar de sentido o lugar envolvente. 418 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BERNARDES, Marcelo Elias. Contos de assombração e catolicismo popular: aspectos da vivência religiosa em uma comunidade mineira. Equatorial. v.4 n.6. Jan/Jun 2017. ISSN: 2446-5674. BEZERRA, Alana; LEMOS, Fernanda. A cruz da menina: religiosidade popular católica na cidade de Patos-PB. In: História das Religiões: temas e reflexões. Maria Lucia Abaurre Gnerre (Org.). João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2012. BONOTTO, Danusa de Lara; KRIPKA, Rosana Maria Luvezute; SCHELLER, Morgana. Pesquisa documental na pesquisa qualitativa: conceitos e caracterização. Revista de investigaciones UNAD Bogotá – Colombia No. 14, julio-diciembre ISSN 0124 793X. 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Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 421-433. Maria Aparecida Porte Ferreira1 Introdução Este artigo pretende refletir sobre o significado do mito de Maria Madalena e como esse significado se construiu na psique da mulher na contemporaneidade. O recorte deste estudo foi feito através da simbologia de Maria Madalena do ponto de vista histórico, partindo de fontes bibliográficas, observando a complexa teia de significados em torno do mito e buscando traçar uma analogia com a mulher atual. Essa complexidade acerca do tema está embasada no aporte teórico dos interlocutores e interlocutoras como: Durand, Jung, Toro, Bourdieu, Murano, Saffioti, entre outros. Dividimos o estudo em dois tópicos específicos: Os mitos e arquétipos de Maria Madalena e; Marcas ancestrais na contemporaneidade: uma questão de gênero numa cultura patriarcal. No primeiro tópico buscou-se trazer uma discussão partindo do contexto histórico acerca dos mitos, símbolos e arquétipos representados por Maria Madalena, considerando aspectos relevantes sobre sua origem e o seu papel enquanto mulher cristã na sociedade. No segundo tópico abordamos a concepção de gênero, patriarcado e ancestralidade com enfoque na violência psicológica e moral contra a mulher traçando uma relação da mulher do tempo de Maria Madalena com a mulher na contemporaneidade. 1. Tratando-se do mito e arquétipo de maria madalena O estudo dos mitos, símbolos e arquétipos estão em constante desenvolvimento na contemporaneidade, de forma que os mitos e seus símbolos não significam apenas entender e aprender uma etapa da Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões/UFPB. Vinculada a Linha de pesquisa Saúde e Espiritualidade. E-mail: cidaportelua@gmail.com. Lattes:http://lattes.cnpq.br/7102806160686735. 1 422 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e história dos seres humanos, mas compreender, na contemporaneidade, como se apresentam e são compreendidos, já que o homem e a mulher de hoje são resultados e constituídos pelos eventos míticos. Para Eliade, o mito está ligado às sociedades arcaicas. Ele diz que “o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares” (ELIADE, 1994, p.11). O mito ensina as histórias primordiais que o constituíram existencialmente e tudo o que se relaciona com a sua existência e com o seu modo de existir no cosmo o afeta diretamente. Os mitos, as imagens e símbolos, têm a capacidade de responder a uma necessidade e de revelar as modalidades mais secretas do ser. Os símbolos jamais desaparecem da “atualidade” psíquica, podendo mudar de aspecto, mas com a mesma função permanecendo. “O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafia qualquer outro meio de conhecimento.” (ELIADE, 1991, p. 8). A perspectiva antropológica do imaginário, proposta por Durand (2012), pressupõe aspectos teóricos que nos levam entender que a dinâmica dos símbolos está arraigada na sociedade, mas que estes só são compreendidos após interpretação mais aprofundada. Contudo, vão além essas interpretações primeiras que dão suporte teórico para as análises. “O trajeto antropológico pode indistintamente partir da cultura ou do natural psicológico, uma vez que o essencial da representação e do símbolo está contido entre esses dois marcos reversíveis.” (DURAND, 2012, p. 42). A concepção de arquétipos postulados por Jung surgiu a partir de suas próprias experiências pessoais, como também com os trabalhos com seus pacientes. Jung foi percebendo a presença, no inconsciente, de fantasias constituintes das possibilidades herdadas da imaginação humana. Essas estruturas inatas e capazes de formar ideias mitológicas, Jung denominou arquétipos. Nas palavras de Jung, “os arquétipos são formas de apreensão, e todas as vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não o seu caráter mitológico”. (JUNG, 2000, p.73) 423 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O arquétipo feminino representado na roupagem de Maria Madalena, também conhecida por Maria de Magdala2, destaca-se como uma das personagens mais enigmáticas, estando presente nas passagens mais marcantes da vida de Jesus Cristo, na qual é mencionada pelas narrativas e escritos. Assim, diante dos segredos e das especulações em torno de sua história, pouco sabemos, a não ser o que encontramos nos textos canônicos, apócrifos e gnósticos. É interessante ressaltar que o cristianismo é o ponto de partida relevante na trajetória espiritual de sua história. O estudioso Boberg (2018), em sua obra “O Evangelho de Maria Madalena”, traz a ideia de que muitas pessoas que pertenceram àquela época histórica, acreditavam que o início do cristianismo se deu apenas por “um único bloco ortodoxo e monolítico, onde reinava a plena fraternidade, e por isso defendem a volta das origens” (BOBERG, 2018, p. 24). O autor entende que, com as descobertas dos livros gnósticos, colocou-se em xeque as ortodoxias do cristianismo vigente, modificando o cenário, uma vez que as várias correntes do pensamento cristão se digladiavam tentando interpretar e impor suas verdades sobre Jesus Cristo e a igreja.3 Historicamente, Maria de Magala destacou-se no Novo Testamento, sendo testemunha da “ressurreição” como a mensageira da Boa Nova. Ela foi considerada por alguns evangelistas como discípula do Cristo. Maria de Magdala: atribui-se a origem e o significado do termo “Magdala” ao um adjetivo dentílico, ou nome pátrio de acordo com a tradição local como habitante da cidade de Magdala, (Migdal, em hebraico) sua cidade natal conforme tradição bíblica, “Migdal Nunnayah” chamada Torre dos peixes, considerado terra natal de Maria Madalena. No entanto, existe controvérsia entre teóricos, pois alguns acreditam ser esta seria a cidade de origem da Madalena, porém, para outros provavelmente esta cidade nem existisse no tempo da personalidade. BOBERG, J. L. O Evangelho de Maria Madalena – Ed. EME, Capivari-SP, 2018. 3 Vale ressaltar que, conforme a lenda cristã, a antiga igreja era diferente. Todos os cristãos de todos os credos procuram encontrar nos primórdios da igreja a fé e a pureza. Na época dos apóstolos, todos os membros cristãos compartilhavam dinheiro, bens, ensinamentos e reverenciavam a autoridade dos apóstolos. Após esses anos dourados, instalou-se o conflito e heresia como constelou Lucas, autor de Atos dos Apóstolos, o qual atribuiu a si mesmo como sendo o primeiro historiador do cristianismo. PAGEL, Eliane. Os Evangélicos Gnósticos – introdução, p. xxiv. 2 424 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 2. marcas ancestrais na contemporaneidade: uma questão de gênero numa cultura patriarcal Na história, embora Maria Madalena fosse considerada por alguns como símbolo da pureza, amorosidade, dedicação, arrependimento e santidade, por outros, ela protagonizou o lado oposto, obscuro e tenebroso. Foi rotulada como prostituta, pecadora, demônio, bruxa e tantos outros estigmas lhe foram lançados no período de sua missão, passando por diversos tipos de humilhação. Os “estigmas” que aqui foram mencionados revelam cicatrizes que sangram não apenas no corpo físico, mas sangram na alma, deixando marcas profundas, conhecidas na atualidade por violência psicológica e moral, fenômenos estes tão comuns às mulheres do tempo de Maria Madalena, mas que também estão presentes na vida cotidiana da mulher moderna. São marcas que ainda tendem a se apresentar de forma mascarada, silenciosa e sorrateira na contemporaneidade. A violência contra a mulher é um fenômeno antigo, trazido dos primórdios e, por muitos, ainda banalizada em nossa sociedade. É relevante ressaltar que as condutas e comportamentos machistas equivocados e recorrentes são reforçados pelo patriarcado. Estudos no campo da saúde, neurociências e da psicologia apontam que a violência psicológica pode ocasionar transtornos físicos, mentais, emocionais, afetivos e de nível moral, que podem deixar marcas profundas na psique das mulheres. São marcas ancestrais que sangram na alma e por isso são, por vezes, máscaras invisíveis no corpo físico, causando dor, sofrimento e impedindo que a mulher tenha uma vida saudável e feliz. A violência psicológica caracteriza-se pelo uso de palavras ofensivas, difamação, manipulação e ameaças. De acordo com Osterne, A violência psicológica, também conhecida como violência emocional, é aquela capaz de provocar efeitos torturantes ou causar desequilíbrios/sofrimentos mentais. A violência psicológica poderá vir pela via das insinuações, ofensas, julgamentos depreciativos, humilhações, hostilidades, acusações infundadas, e palavrões. (OSTERNE, 2011, p. 135) 425 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Sendo assim, a violência psicológica, na maioria das vezes, vem entrelaçada com a violência física, pois o homem, durante o ato de violência, faz uso de palavrões e ameaças que ofendem a mulher. A violência psicológica, também conhecida como violência emocional, é aquela capaz de provocar efeitos torturantes ou causar desequilíbrios e sofrimentos mentais. Esse tipo de violência poderá vir pela via das insinuações, ofensas, julgamentos depreciativos, humilhações, hostilidades, acusações infundadas e palavrões. Para Osterne (2011), a violência moral refere-se a qualquer ato que cause difamação ou injúria aos princípios da mulher. Nesses termos, ele afirma que “a violência moral é tida como aquele tipo que atinge, direta ou indiretamente, a dignidade, a honra e a moral da vítima” (OSTERNE, 2011, p. 135). Da mesma forma que a violência psicológica poderá manifestar-se por meio de ofensas e acusações infundadas, humilhações, tratamento discriminatório, julgamentos levianos, trapaça e restrição à liberdade, é relevante ressaltar que existem também outros tipos de violência pouco conhecidas, tais como: a simbólica, a financeira, a institucional e a patrimonial, sendo estas últimas não tratadas com mais ênfase neste trabalho. 3. metodologia A pesquisa é de natureza qualitativa, bibliográfica e com abordagem hermenêutica. O trabalho foi desenvolvido a partir de trabalhos já existentes acerca da temática e publicados em livros, revistas, artigos e internet. Para Gil (2008), a pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. A natureza qualitativa é caracterizada por Minayo como sendo um tipo de investigação que se aprofunda no mundo dos significados das ações e relações humanas. Esta abordagem “incorpora as questões do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas” (2010, p. 31). 426 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Ele acrescenta também que ela age com base em significados, razões, desejos, crenças, valores, atitudes e outras características subjetivas próprias do ser humano, que não podem ser limitadas a variáveis numéricas. O método hermenêutico é mediador no processo de interpretação dos textos, considerando-se que toda a compreensão necessita de contextualização, uma vez que buscamos entender o que ele pode significar. Para Gadamer, [...] Quando compreendemos um texto, não nos colocamos no lugar do outro, nem é o caso de pensar que se trata de penetrar a atividade espiritual do autor; trata-se, isto sim, de apreender simplesmente o sentido, o significado, a perspectiva daquilo que nos é transmitido. Tratase, em outros termos, de apreender o valor intrínseco dos argumentos apresentados, e isto de maneira mais completa possível. [...] compreender é o participar de uma perspectiva comum. (GADAMER, 2003, p. 59) Nesses termos, para o mencionado autor, conhecer essencialmente algo, conhecer a verdade, isto é, no caso dos textos não basta ser a correta expressão do pensamento, mas ele deve transmitir a verdade por si mesma. Capra (1982) defende que a nova visão de saúde considera dimensões espirituais, pois ela é essencialmente um fenômeno multidimensional que envolve a interdependência de aspectos psicológicos e sociais que são inerentes à vida humana. 4. Discussões e resultados Diante da complexidade da temática, sintetizamos alguns pontos relevantes para reflexão, com base nos dados em relação ao mito/patriarcado/violência/saúde da mulher: Eliade e Jung apontam que os mitos e arquétipos estão presentes em nossa vida cotidiana, são herdados através de nossos antepassados e sobrevivem na psique. Para Gilbert Durand, o universo do simbólico está relacionado à humanidade desde o princípio da civilização. O autor defende a 427 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e assertiva de que “o que importa no mito não é exclusivamente o encadeamento da narrativa, mas também o sentido simbólico dos termos”. (DURAND,1997, p. 356). O patriarcado, como um regime detentor do poder dos homens sobre as mulheres, desde os primórdios sobrevive em nossa cultura. Maria Madalena, representação arquetípica feminina da era cristã, considerada subversiva numa época onde a mulher era subordinada aos homens, detentores de poder que as tinham e as viam fonte de procriação e prazer, na civilização moderna, continua sendo vista como sexo frágil. A mulher daquele tempo era preparada para o ofício de ser uma boa esposa, temente a Deus e aos preceitos doutrinários, domésticos e familiares como se convinha. Por outro lado, àquela que ousasse mudar tais padrões era amaldiçoada e punida severamente pela sociedade e, ao extremo, banida e condenada como herege e feiticeira, a exemplo da Inquisição que acontecera na era medieval. Bourdieu (2003) defende a ideia de que o homem aprende a lógica da dominação masculina e a mulher absorve essa relação inconscientemente. A repetição então é entendida como inerente ao ser humano, pois aprendemos através de exemplos. Assim, muitas vezes, nós repetimos sem perceber. Nesse sentido, a sociedade, naturalizando comportamentos, legitima essa concepção através das repetições. Bourdieu define o poder simbólico como este “poder invisível no qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. (Bourdieu 1989, p. 6-16) Minayo (2003) aponta que as discussões, os estudos e as pesquisas sobre as causas da violência, até os nossos dias, voltam-se para a compreensão da violência no plano biológico, no plano psicológico e, ainda, no plano social. Nesse aspecto, entende-se que a violência é como uma ação que atinge todo o ser humano. Assim, não há uma causa única, mas uma interrelação de fatores que contribuem para a expressão da violência. Para Saffioti (1987, p. 47), “calcula-se que o homem haja estabelecido seu domínio sobre a mulher há cerca de seis milênios”. Com base nisso, a violência contra a mulher não é um problema atual; as mulheres convivem com isso desde os primórdios. Essa valorização do masculino 428 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a que são submetidas é algo que ultrapassa décadas e hoje, mesmo com tantas políticas voltadas para a igualdade e coibição, prevenção e punição do ato da violência, a mulher contemporânea ainda vivencia estas práticas no seu cotidiano. Em outra direção, o fenômeno da violência pode acarretar transtornos psicológicos para a saúde da mulher. A noção de autoestima é também apontada na literatura, quando se trata de descrever as consequências da situação de violência sofrida pelas mulheres. Para Gobitta e Guzzo (2003), a autoestima é frequentemente apontada como um aspecto importante na prevenção de desajustamento psicossocial. A violência psicológica procura atingir a mulher em sua saúde psicológica, causando prejuízos severos. Esse tipo de violência acarreta danos à autoestima e pode levar às doenças psicossomáticas ou até mesmo ao suicídio. Saffioti (2004) constatou, em suas diversas pesquisas, que muitas vezes as mulheres conseguem superar melhor uma violência física, pontapés, empurrões e tapas, do que as humilhações que provocam dores profundas, ferem a alma, feridas de difícil cura. Nesse sentido, a resiliência4, aliada a outras práticas terapêuticas pisicólogicas do cuidado, podem auxiliar em reestabeler vínculos saudáveis e uma melhor qualidade de vida para a mulher. Outro referencial importante ligado à saúde5 é a espiritualidade6. O bem-estar espiritual implica em diversas alterações nas habilidades e potencialidades das pessoas. Diferentes estudos vêm evidenciando a importância da Resiliência: Refere-se a capacidade das pessoas de enfrentarem adversidades sendo transformados por estas experiências no sentido de crescimento pessoal. (MELILLO, 2005). 5 “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença.” Organização Mundial de Saúde ( (OMS, 2002). 6 Espiritualidade: A definição de espiritualidade é abrangente e complexa e difere em diversas correntes teóricas e epistemológicas. Koenig (2001) conceitua a espiritualidade como uma busca pessoal pela compreensão das questões últimas acerca da vida, do seu significado, e da relação com o sagrado e o transcendente, podendo ou não conduzir ou originar rituais religiosos e formação de comunidades. A Organização Mundial de Saúde (OMS) tem investido em estudos e pesquisas sobre a espiritualidade enquanto parte integrante do conceito multidimensional de saúde. Atualmente, atribui como as dimensões físicas, psicológicas e sociais, o bem-estar espiritual é encarado como uma dimensão do estado de saúde. 4 429 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e espiritualidade como um componente essencial para a vida saudável das pessoas, sobretudo das mulheres. A nova visão de saúde considera a dimensão espiritual, pois ela é essencialmente um fenômeno multidimensional que envolve a interdependência de aspectos psicológicos e sociais (Capra, 2001). Por fim, Boff considera que “a espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano.” (BOFF, 2006, p. 51) 5. Considerações finais Ao montar este cenário, apontado na linha do tempo e trazendo à tona a experiência vivida de Maria Madalena representando o símbolo da mulher no tempo de Jesus, traçamos aqui um paralelo com a mulher contemporânea. Nesse sentido, atentamos acerca da mulher resiliente que, através de sua história, sobrevive na nossa psique. Assim, desvendar o primeiro véu de Maria Madalena como representação feminina em todas as suas nuances e em diferentes nomes, como Miriam ou Marta, e que por muito tempo vem sendo mal compreendida e interpretada. Desde os primórdios, a violência psicológica e moral contra a mulher vem se intensificando pelo domínio patriarcal e machista deixando marcas que sangram na alma até os dias atuais. Essas marcas ancestrais reverberam através da violência contra a mulher e se revelam somatizando nos “corpos”, podendo causar diversos transtornos psicológicos, emocionais e afetivos, como também patologias graves que impedem uma vida saudável e integral da mulher. Considerando que somos “seres multidimensionais”, Possebon (2017) sinaliza, com base na tradição grega arcaica e enriquecida pela filosofia oriental na modernidade, a ideia de que somos seres constituídos de diferentes dimensões e que se integram entre si (corpos ou envoltório). Conforme o autor, em síntese sobre a constituição do ser, temos o seguinte desdobramento: 430 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Dimensão Envoltório dimensão anímica psykhé, anima, alma dimensão intelectual ou mental noûs, intelligentia, inteligência e/ou ménos, mens, mente dimensão emocional thymós, animus, ânimo dimensão pneumática ou vital pneûma, spiritus, sopro Dimensão somática ou corporal sôma, corpus, corpo FONTE: Possebon/2016 É interessante ressaltar, nesta linha de pensamento, que formas mais holísticas de tudo que sentimos, pensamos, vivenciamos, falamos, ouvimos, comemos, percebemos e captamos energeticamente, fica registado nos nossos corpos; e ressignificar padrões de comportamentos e hábitos equivocados faz parte do percurso que precisamos trilhar para encontrarmos dentro de si o equilíbrio e harmonia. No que se refere ao direito e à valorização da mulher, reconhecemos os esforços, as lutas, as conquistas e os avanços, no que diz respeito aos direitos da mulher, do feminino e de igualdade de gênero em todos os âmbitos da sociedade e da vida. Seja nos movimentos sociais, ativistas, como também em programas de assistência e de saúde da mulher, nas políticas públicas e a Lei Maria da Penha, percebemos que estamos ainda distantes da tão almejada equidade. Atentamos para manifestação mítica de Madalena como símbolo de superação e resiliência da era patriarcal, apontando novos caminhos e possibilidades para que a mulher contemporânea possa despertar do sono profundo e ressignificar a sua vida de forma saudável na sociedade e no mundo. Nesses termos pode-se considerar a reflexão de Boff (2001), quando aponta que a humanidade busca o ponto de equilíbrio para um verdadeiro sentido da vida e a espiritualidade faz parte deste contexto, pois esta dimensão proporciona conhecimento com maior percepção e clareza da própria consciência. 431 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BOBERG, J. L. O Evangelho de maria madalena – Ed. EME, Capivari-SP, 2018. BOFF, L. Espiritualidade: um caminho de transformação. 6. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2001. ______. espiritualidade: Um caminho de transformação. 1. Ed. 2006. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Tradução de Helder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______. Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Tradução de Karina Jannini. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ______. 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Introdução No final dos anos de 1950 e nos primeiros de 1960, segundo a socióloga Cristina Pompa, impulsionados pela extensa revisão comparativa à qual a sociologia e a antropologia se submetiam, internacionalmente, os estudos sobre os movimentos religiosos sofreram significativas atualizações, surgindo uma nova releitura no Brasil no que diz respeito aos estudos dos movimentos religiosos que receberam novas designações, como movimento sócio- religioso, e por se tratar de movimentos que ocorreram em sua maioria nos sertões do nordeste brasileiro, onde predominava uma cultura “rústica” ganharam o termo de “messianismo rústico” evidenciado pelos estudos da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz. Nos sertões do nordeste brasileiro esses movimentos religiosos foram mais presentes devido ao catolicismo rústico, e enraizado, das condições de miséria e seca em que viviam os seus habitantes, criando um ambiente propício ao surgimento de líderes religiosos carismáticos que assim como Jesus “ O Messias”, teria a missão divina de libertar os sertanejos da opressão das elites locais. Segundo Celso Furtado (1983), era como se a única solução para os sertanejos fosse escapar para a dimensão do sobrenatural. Os Sertões nordestinos tornam-se assim espaço de construção dos movimentos ditos messiânicos. Mediante a análise realizada sobre o messianismo nos sertões do nordeste brasileiro, selecionamos como objeto de pesquisa um dos únicos movimentos messiânicos registrados nos Sertões da Província do Rio Grande do Norte durante finais do século XIX, liderado pelo beato Joaquim Ramalho. Optamos estudar esse movimento por se tratar do único caso de messianismo relatado nos sertões da Província do Rio Discente do Mestrado em História dos Sertões, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Cento de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó. Orientador: Profº. Lourival Andrade Júnior, Departamento de História do CERES (DHC), UFRN. 1 435 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Grande do Norte. Selecionamos o objeto da pesquisa com o objetivo de trabalhar conceitos como o de “messianismo rústico” aplicados por Maria Isaura Pereira de Queiroz aos movimentos messiânicos ocorridos nos sertões do nordeste brasileiro. Nos apropriamos deste conceito para problematizarmos as relações dos sertões com o surgimento de tais movimentos, além analisarmos o conceito de “Fanatismo” como um termo que desqualifica não só os movimentos messiânicos, mas que de forma mais ampla, desqualifica também os Sertões enquanto espaços de construção dos mesmos. Do aspecto acadêmico esse trabalho se justifica pelo fato de avançar sobre o campo da História Cultural, aprofundando os estudos sobre o movimento messiânico da Serra de João do Vale que até então se encontra “esquecido” com objetivo de trazê-lo para a história escrita abordando suas relações com os sertões enquanto espaços de sua construção. De acordo com o que foi exposto indagamos: Quais as peculiaridades do messianismo nos Sertões do nordeste brasileiro? Quais as relações entre os Sertões e a construção de tais movimentos? Como os sertões tornaram-se terra fértil para o brotar e florescer do messianismo? Quais discursos se apresentam em torno do movimento messiânico da Serra de João do Vale e dos sertões enquanto espaços de sua construção? Partindo desses questionamentos, os nossos objetivos serão problematizarmos os sertões do nordeste brasileiro enquanto espaços de construção dos movimentos messiânicos partindo do nosso objeto de pesquisa, o movimento messiânico da Serra de João do Vale. Quanto aos discursos que estão envolto nas fontes, nos atentaremos em analisar o termo “fanático” que por vezes é apresentado nas fontes. É importante ressaltar que este trabalho ainda está em fase embrionária já que se trata de uma proposta de dissertação do mestrado em História dos Sertões (MHIST-CERES) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sendo assim, partindo dos primeiros contatos com algumas fontes, como jornais, entrevistas, e algumas bibliografias consultadas, traçamos algumas hipóteses que serão comprovadas ou não a medida que este trabalho avance. A primeira hipótese que nos faz pensar os elementos que tornaram os Sertões nordestinos como principal palco de construção dos movimentos messiânicos, é que nos 436 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e sertões as práticas religiosas são e se constituem híbridas, que ultrapassa as barreiras do catolicismo oficial. Além da religiosidade, analisamos o contexto social dos sertões nordestinos durante o século XIX como duas dimensões essenciais na constituição dos sertões enquanto espaço de construção da maioria dos movimentos messiânicos no nordeste do Brasil, entre esses, o nosso objeto de pesquisa. 2. metodologia Para atingirmos os objetivos propostos em nossa pesquisa, partimos do uso das fontes orais para desenvolvimento da pesquisa histórica. No Brasil, a História Oral, surgiu com maior destaque em 1975, com o I Curso Nacional de História Oral, porém podemos observar que apesar do seu crescimento ainda há um certo preconceito quanto a utilização da História Oral enquanto metodologia, reconhecemos que atualmente apesar dessas barreiras, muitas universidades estão abrindo as portas para a oralidade reconhecendo assim o seu caráter de fonte histórica. Verena Alberti nos leva a pensarmos a fonte oral como um meio que nos permite o registro de testemunhos e o acesso a “histórias dentro da história” ampliando, dessa forma, as possibilidades de interpretação do passado (ALBERTI, 2013). Diante dessas discussões partiremos de técnicas de gravação de entrevistas que produzidas a partir daquilo que propõe o projeto de pesquisa determina quantas e quais pessoas entrevistar, e o que perguntar. Deste modo acessaremos a memória dos nossos narradores por meio da técnica da entrevista gravada a partir de um aparelho gravador de voz. Pollack nos faz compreender que a memória é elemento que faz parte de uma individualidade ou coletividade, sendo ela fator importante do sentimento de continuidade de uma pessoa ou de um grupo no processo de reconstrução de si. (POLLACK, 1992). Desta forma, delimitamos um perfil para os entrevistados, assim sendo, fará parte das colônias de narradores, alguns moradores da Serra de João do Vale e arredores dos Sertões que foram palcos do movimento messiânico da Serra de João do Vale. 437 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Após a realização das entrevistas e transcrições, seguiremos com a análise das fontes, nas quais utilizaremos a abordagem de História do Discurso para analisarmos os discursos presentes e envoltos nas falas dos entrevistados, tomando como ponto de partida as discussões de Eni Orlandi. Utilizaremos caderno de campo, além de possíveis documentos sobre o movimento, tais como: o processo crime do líder do movimento Joaquim Ramalho, que Segundo Luis da Câmara Cascudo (1941) se encontraria na Comarca da cidade de Apodi, além de possíveis registros guardados e colecionados pelo sr. Hugolino de Oliveira, escrivão na cidade de Caraúbas nos finais do século XIX, que se encontram no arquivo pessoal do escritor e pesquisador João Pegado de Oliveira Ramalho residente na cidade de Natal/RN. Consequentemente após a coletarmos as fontes e materiais, finalizaremos nossa pesquisa em campo e partiremos para uma reflexão acerca das fontes, e materiais coletados, que serão utilizadas no decorrer desse projeto. Lembrando que as entrevistas serão registros que nos possibilitarão fazermos uma ligação entre História e Memória. Compreendemos que ao entrevistar nossos narradores que na maioria das vezes se encontram a margem da história oficial, estamos fazendo uma história vista de baixo. A história que antes era vista de cima, das elites, e dos grandes personagens, agora dá espaço para uma história vista de baixo onde os sujeitos comuns passam a ter voz e vez. 3. Discussão dos resultados No que diz respeito a bibliografia que nos auxiliará na execução da pesquisa, e discussão dos resultados, faremos um ensaio desde o conceito de “messianismo rústico” proposto por pela socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, passando pela construção dos movimentos messiânicos nos sertões do nordeste brasileiro, até ao conceito de “fanatismo” e “religiosidade” como tentativa de compreendermos desde como a religiosidade se constitui enquanto um dos elementos responsáveis pela construção do movimento messiânico da Serra de João do Vale, de como tal evento se configura dentro do conceito de messianismo até 438 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e chegarmos ao conceito de fanatismo que de início tem nos auxiliado a entender os discursos presentes em algumas fontes e materiais já coletados. Como discutiremos o conceito de “messianismo” na construção do movimento messiânico da Serra de João do Vale, é importante fazermos menção aos estudos da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz em sua obra “O messianismo no Brasil e no mundo” publicada em 1965. Nela Maria Isaura fará um amplo estudo comparativo do messianismo no Brasil e no mundo, agrupando os movimentos messiânicos, denominando-os, e lhes dando características peculiares. No Brasil por se tratar de movimentos que aconteceram nos sertões do nordeste, em meio a uma cultura tida como “rústica”, Maria Isaura lhes atribuiu o conceito de “messianismo rústico”. Mediante a uma obra que tomou uma grande repercussão, tornando-se uma das mais importantes obras para o estudo do messianismo no Brasil, Maria Isaura além de organizar os movimentos messiânicos em grupos, ela os retira de uma condição pejorativa, na qual antes eram vistos como casos de fanatismo religioso, sendo vistos a partir dos seus estudos como movimentos messiânicos os quais são construídos e constituídos a partir da dinâmica religiosa e social de uma sociedade. Tal obra tem nos ajudado a entender as peculiaridades do messianismo nos sertões nordestinos, nos dando características que nos levarão a relacionar os sertões com a construção dos movimentos messiânicos rústicos. No que se refere aos sertões como espaço de múltiplos contrastes nos ateremos sobre o livro Culturas dos Sertões organizado por Alberto Freire e publicado no ano de 2014. Nessa obra podemos nos debruçarmos sobre vários artigos que tratam dos sertões das pluralidades desse território emblemático. “Pois o sertão é plural não apenas enquanto espaço, enquanto paisagem, enquanto clima, enquanto condições tecnológicas, econômicas, sociais, culturais; o sertão pode-se dizer sertões e contemporâneo porque guarda em seu interior diversas temporalidades, diversas camadas de tempo...” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2014, p. 55). A partir desses estudos podemos perceber o sertão como um espaço plural, um sertão que não é atraso, nem muito menos parado no tempo. As novas discussões acerca dos sertões, que tem sido discutidas e propostas pelo mestrado em História dos Sertões (MHIST-CERES), nos 439 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e permite problematizarmos a partir de alguns resultados que os sertões abordados nesse projeto de pesquisa, é uma espacialidade em movimento, onde as ideias, e as práticas circulam, onde diversas espacialidades e temporalidades se encontram. Nos desfazendo da ideia de um sertão estático, parado no tempo como por muitas vezes foi posto por alguns escritores. Além de um sertão em movimento, o nosso objeto de pesquisa nos dá respaldo para pensarmos um sertão onde as práticas religiosas são híbridas, sendo assim nos apropriamos do conceito de Hibridismo definido por Néstor Garcia Canclini como processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. (GARCIA CANCLINI, 2008, p. 19). No que tange ao conceito de fanatismo buscamos auxílio nos estudos da socióloga Cristina Pompa, podemos citar aqui um de seus trabalhos publicados em 2014 com o título Leituras do “fanatismo religioso” no sertão brasileiro, os seus estudos abordam as questões pertinentes ao sertões como um espaço simbólico, destacando as relações entre as práticas religiosas nos sertões, e a construção dos movimentos messiânicos, além de discutir a visão de mundo dos sertanejos a partir de duas esferas, a social e a religião. Cristina Pompa também nos dá embasamento para algumas leituras do “fanatismo religioso nos sertões brasileiros”. É importante mencionarmos outra obra de Cristina Pompa tem por título “A construção do fim do mundo. Para uma releitura dos movimentos sócio-religiosos do Brasil” rústico“” a autora nos auxilia para uma releitura dos movimentos religiosos, nos apresentando o conceito de movimentos sócio- religiosos, pois segundo a autora é necessário compreender estes movimentos a partir de duas dimensões, do social e da religião. Queremos dá destaque ao artigo publicado por Luís da Câmara Cascudo na Revista do Instituto histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte em 1941, intitulados “fanáticos da Serra de João do vale” aqui encontramos as primeiras sondagens e referências sobre o movimento messiânico dos “fanáticos da Serra de João do Vale”. Foi a partir desse artigo que o movimento foi descrito e designado como um movimento de fanáticos. Diante da leitura do artigo, tentamos compreender o lugar de escrita Cascudo, acreditado que toda pesquisa se articula com um lu- 440 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e gar, seja ele de produção socioeconômico, político ou cultural (CERTEAU, 2011, p. 47). Desse modo, encontramos alguns discursos que de certa forma desqualificaram o movimento, o termo “fanáticos” que faz parte do próprio título do artigo de Cascudo, em si, já se constitui enquanto um termo desqualificador. Ao analisarmos a bibliografia acerca do referido movimento, podemos perceber uma escassez de escritos, o que o levou a um quase esquecimento. Segundo Cascudo (1941), Canudos teve a honra de encontrar Euclides da Cunha e este transfigurou o tema, envolvendo-nos numa magia de uma evocação inesquecível, os “Fanáticos da Serra de João do Vale” não teve a mesma sorte, não mereceu registro nem alusão, passou despercebido, só perceberiam quando se tornasse uma tragédia. Diante das análises até aqui realizadas identificamos que o movimento messiânico da Serra de João do Vale teve seu fim de forma muito precoce, durando apenas 2 anos, os discursos das autoridades da época deram ao movimento um caráter de marginalidade, segundo Cascudo, o medo que acontecesse o mesmo em Canudos dominou as autoridades da época, que de forma sorrateira, determinou o fim do movimento, enviando uma tropa da polícia liderada pelo tenente Justino Cascudo para dispersar aqueles que para eles eram tido e concebidos como “fanáticos”. Isso nos mostra que o termo “fanáticos” foi construído pelo outro, um olhar de fora que desqualificou aqueles que participavam do movimento. Desta maneira dialogaremos com essas produções bibliográficas no sentido de pensar como elas podem contribuir para nosso trabalho nos dando subsídios para construção de nossa escrita, e que a partir de suas contribuições, os questionamentos e problematizações levantadas por nossa pesquisa sejam pensados também por outras diretrizes. 4. Conclusões Ao longo da Sociologia e da História tradicional os movimentos religiosos receberam várias designações, até mesmo pejorativas, denominados muita das vezes como movimento de fanáticos atrelados 441 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a um espaço de construção, os sertões nordestinos que por vezes foram representados como terra de fanáticos, onde habitava a desordem, tornando-se símbolos do atraso, e da barbárie. No Brasil, a maioria desses movimentos foram registrados nos sertões nordestino, sendo conhecidos tradicionalmente como movimentos “messiânicos rústicos” por este motivo atentamos em analisar os sertões e a compreender os elementos que os constituíram enquanto espaço de construção da maioria dos movimentos messiânicos, problematizando o sertão como um território em movimento, onde assim como as pessoas, as ideias, e práticas circulam numa dinâmica que movimenta os sertões, contrapondo a ideia de um sertão parado no tempo e espaço, onde não há comunicação com a exterioridade, e as práticas religiosas ditas populares são associadas ao “fanatismo”. Apesar dos avanços no que diz respeito aos estudos referentes ao messianismo no brasil, principalmente a partir dos estudos da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiróz em sua obra “O messianismo no Brasil e no mundo”, os movimentos messiânicos ainda são estudados de forma muito homogênea, como se cada movimento fossem iguais, por isso propomos um estudo em que eles sejam analisados em suas especificidades com outros olhares e por novas vertentes, e por novas áreas de conhecimento, sem dúvida a maior sugestão que podemos propor é problematizar os movimentos messiânicos sem os retirarem do seu espaço de construção, nesse caso sugerimos uma análise do sertão para entender os elementos que tornara-o palco da maioria dos movimentos messiânicos no Brasil. outra sugestão é estudar os movimentos messiânicos como movimentos que partem do hibridismo de práticas religiosas. O estudo dos movimentos messiânicos nos abre um leque de possibilidades de estudos e usos de fontes. Podemos sugerir como pesquisa os usos de filmes, cordéis, imagens entre outros, para compreender como esses movimentos e o sertão são representados nestas fontes, dessa forma estaremos propondo novas discussões acerca dos movimentos messiânicos, e do sertão. 442 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências SOLA, José Antonio. Canudos, uma utopia no sertão. Editoria Contexto, 1989. Bastide, Roger. Brasil, terra de contrastes. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1975. CUNHA, Euclides da. Os sertões (campanha de Canudos). 1902. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Distante e/ou do Instante: “sertões contemporâneos”, as antinomias de um enunciado. In: FREIRE, Alberto (Org.). Culturas dos Sertões. Salvador: EDUFBA, 2014. p. 41-57. CHARTIER, Roger et al. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: Difel, v. 1, p. 12, 1990. POMPA, Cristina. Leituras do “fanatismo religioso” no sertão brasileiro. 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Seus últimos remanescentes vivem atualmente nos municípios de Baía da Traição e Rio Tinto, no litoral setentrional da Paraíba. Variantes do nome, nos documentos históricos, são: Potygoar, Potyuara, Pitiguara, Pitagoar, Petigoar, entre outros. Não há acordo sobre o significado do nome, que geralmente é traduzido como ‘pescadores de camarão’ ou ‘comedores de camarão’ (MOONEN, 2008). No Estado da Paraíba a população indígena Potiguara, é uma das maiores do Brasil e a maior do Nordeste etnográfico. Sua população é 25.000 habitantes, dos quais 2.061 desaldeados, residindo nas cidades. Os demais aldeados residem em 33 aldeias nos municípios de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto (BARCELLOS, 2012). De acordo com Barcellos (2012), a religião e suas práticas sempre ocuparam importante espaço em nossa vida. E toda prática religiosa é educativa porque sempre estão ocorrendo novas aprendizagens durante o culto, o terço, a procissão, o batismo ou o toré. As mulheres Potiguaras são guardiãs da cultura Potiguara, como também responsáveis pela iniciação dos curumins nas tradições e demais rituais indígenas. Com suas práticas, perpetuam os costumes e as crenças, inclusive com relação à culinária. As mulheres indígenas também assumem a posição de liderança nas aldeias e promovem o fortalecimento das políticas de autoafirmação da etnia. Exercitam a sabedoria popular através da musicalidade, das rezas, cantigas, danças, comidas, ferramentas, dos cultivos de plantas e animais, segredos dos Possui graduação em Enfermagem - Faculdades Integradas de Patos (2008). Com Especialização em Urgência e Emergência, Unidade de Terapia Intensiva e Vigilância em Saúde. Tem experiência na área de Enfermagem, com ênfase em Enfermagem. Mestranda em Ciências das Religiões, pela Universidade Federal da Paraíba. 1 445 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e encantamentos, das histórias, dos sabores da sobrevivência. Com os Troncos Velhos (anciãos) todos os membros da aldeia exercitam e aprendem a ‘‘Pedagogia Existencial’’, caracterizada por oportunizar o aprender com a natureza, viver em comuna, partilhar, valorizar as tradições transmitidas de geração em geração, perpetuando a cultura indígena Potiguara (PALHANO SILVA; NASCIMENTO, 2013). E é a partir desta perspectiva que iniciarei toda minha discussão a respeito dos ritos, mitos e espiritualidade que permeia os indígenas Potiguara da Paraíba. Os europeus aqui chegaram e além de dominação do nosso povo, também definiam como deveria ser a vida dos nativos, seus costumes, suas crenças. Tudo com a força da imposição que os europeus tratavam como colonização para um povo que para eles não apresentavam significado algum. E devido ao processo colonizador, foram obrigados a sair de suas terras, perderem o direito de exercer sua cultura, foi obrigado a silenciar sua existência por todo um século (BARCELLOS, 2012). Todo rito tem seu mito e traz consigo uma ancestralidade que transcende através de rituais praticados de uma forma peculiar. O rito é e foi um fato originário de criação de ordenamentos, de estabilização de papéis, de distribuição de funções fundamentalmente por meio da interpretação de espaços. Não se deve esquecer que toda hierarquia, toda autoridade, nasce da conquista de um espaço, da posse física do espaço (VILHENA, 2005, apud TERRIN, 2004). O estudo do rito religioso não pode passar ao largo desses conjuntos de interpretações, conhecimentos e explicações que o próprio ser humano, na cultura e no tempo, elabora a respeito de si mesmo, dos outros, do universo, do sobrenatural. Até porque as religiões são simultaneamente depositárias, matrizes e comunicadoras desses conjuntos, o que acontece na medida em que as religiões recolhem e oferecem imagens, sentidos, significados e orientações para a vida e seus acontecimentos. Os rituais constituem uma forma privilegiada pela qual se expressa e visibiliza o imaginário religioso (VILHENA, 2005). As memórias indígenas Potiguara mostram espaços que ainda aparecem hoje carregados de símbolos e práticas tradicionais. Memórias estas que trazem consigo toda ancestralidade, rituais e mitos estabelecidos por estes povos que tanto fazem para que estas práticas permaneçam vivas. 446 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Quando pensamos em espiritualidade indígena, imediatamente fazemos relação com os rituais religiosos que acreditamos ser a representação na crença cultural da ancestralidade que estes povos indígenas carregam. Meu primeiro contato com um indígena potiguara foi na UFPB, no primeiro dia de aula, ele como aluno especial de uma disciplina que abordava justamente os mitos, ritos e espiritualidade indígena, e com o passar dos dias, comecei a compreender e perceber o quanto a espiritualidade está presente para eles, o quanto eles têm orgulho de sua cultura. E falar sobre indígenas é um bastante instigante, tendo em vista apresentar um modo de viver e conviver que atrai olhares dos que buscam entender esta relação deles como já mencionado, com a espiritualidade, os ritos e os mitos que permeiam e prevalecem a partir de uma ancestralidade ímpar. A ideia de falar desta temática surgiu a partir de uma visita à Aldeia Lagoa do Mato, no mês de setembro deste corrente ano, onde assistimos a um ritual da lua cheia, e presenciamos toda a importância que a cultura e as memórias revividas destes povos são fortemente presentes e vividas. Neste ritual, a jurema se faz presente, integrando o ritual de tradição indígena Potiguara, e todos que ali estavam, beberam dela. O pajé Isaias nos fez entender sobre a importância deste ritual, do contato próximo aos elementos da natureza, como a terra, onde todos ficaram descalçados para estar de uma forma mais próxima deste elemento da natureza, da dança, do ritmo e da espiritualidade que ali se fez presente. E desta forma surgiu o interesse nesta pesquisa, em aprofundar os conhecimentos a respeito da espiritualidade e todo este contexto que envolve ritos e mitos indígenas. Fundamentação teórica Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, i. e., como “fábula”, “invenção”, 447 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e “ficção”, eles o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma “história verdadeira” e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo. Mas esse novo valor semântico conferido ao vocábulo “mito” torna o seu emprego na linguagem um tanto equívoco. De fato, a palavra é hoje empregada tanto no sentido de “ficção” ou “ilusão”, como no sentido – familiar sobretudo aos etnólogos, sociólogos e historiadores de religiões – de “tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar” (ELIADE, 1972). O autor acima citado afirma que o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares. O autor ainda acrescenta que, nas sociedades em que o mito ainda está vivo, os indígenas distinguem cuidadosamente os mitos – “histórias verdadeiras” – das fábulas ou contos, que chamam de “histórias falsas”. Os mitos são verdadeiros porque são sagrados, porque falam dos seres e dos acontecimentos sagrados. Por conseguinte, recitando ou ouvindo o mito, retoma-se o contato com o sagrado e com a realidade (ELIADE, 1979). E falando sobre espiritualidade que remete aos indígenas, Leonardo Boff (2001) faz um questionamento e indaga se a espiritualidade muda ou é sempre a mesma coisa? E Dalai-Lama fala: Como diziam os antigos, os tempos mudam e as pessoas mudam com eles. O que ontem foi espiritualidade hoje não precisa mais ser. O que em geral se chama espiritualidade é apenas a lembrança de antigos caminhos e métodos religiosos. E arrematou: o manto deve ser cortado para se ajustar aos homens. Não os homens que devem ser cortados para se ajustar ao manto (BOFF, 2001, p.17). O autor acima citado conclui que neste pequeno diálogo com Dalai-Lama é que espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança. O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto, está sempre se fazendo, física, psíquica, social e culturalmente. E considerando que a espiritualidade esteja relacionada com aquelas qualidades do espírito humano – tais como amor e compaixão, 448 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e paciência e tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia – que trazem felicidade tanto para própria pessoa quanto para os outros rituais e oração estão diretamente ligados à fé religiosa, mas essas qualidades interiores não precisam ter a mesma ligação. Não existe, portanto, nenhuma razão pelo qual o indivíduo não possa desenvolvê-las, até mesmo em alto grau, sem recorrer a qualquer sistema religioso ou metafísico. Num Mundo como esse, o homem não se sente enclausurado em seu próprio modo de existir. Também ele é “aberto”. Ele se comunica com o Mundo porque utiliza a mesma linguagem: o símbolo. Se o Mundo lhe fala através de suas estrelas, suas plantas e seus animais, seus rios e suas pedras, suas estações e suas noites, o homem lhe responde por meio de seus sonhos e de sua vida imaginativa, de seus Ancestrais ou de seus totens (concomitantemente “Natureza”, sobrenatural e seres humanos), de sua capacidade de morrer e ressuscitar ritualmente nas cerimônias de iniciação (nem mais nem menos do que a Lua e a vegetação), de seu poder de encarnar um espírito ao cobrir-se com uma máscara etc (ELIADE, 1972). As religiões fornecem assim uma visão sobre deus, sobre o céu, sobre quem é o ser humano e o que deve fazer nesse mundo. Elaboram doutrinas e apontam caminhos para a luz. E não anunciam só prédicas, elas acentuam também práticas. As religiões são fontes éticas, isto é, de comportamentos e constituem uma das construções de maior excelência do ser humano. Elas todas trabalham com o divino, com o sagrado, com o espiritual, mas elas não são o espiritual. Espiritualidade é outra coisa (BOFF, 2001). Cada povo indígena tem seu jeito de ser, sua musicalidade, dança, coreografia, forma de estabelecer contato com os ancestrais que, durante o ritual do Toré, estão ali constituídos. Trata-se de um conjunto de elementos presentes nas várias etnias, mas cada grupo com suas especificidades locaise conservando sua singularidade, embora haja diálogo e troca de experiências entre povos distintos (BARCELLOS, 2012). O ritual é espaço ritualístico espiritual, onde os Potiguara buscam as energias de proteção e purificação dos seus corpos para suas famílias e toda etnia. Do cachimbo sai a fumaça que perfuma o ambiente, limpa os corpos, purifica à alma e as vestimentas. 449 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O Toré é um ritual sagrado marcado pela musicalidade, que une toda a comunidade Potiguara e parentes em dança circular, harmoniosa, onde de forma sincronizada, seus corpos bailam trajados com adornos, colares, cocás, saias de jangada, brincos e além de pintados com de jenipapo e urucum. Tocam pífanos, tambores e maracas. Fumando cachimbos da paz e tomando o líquido precioso da jurema. A sintonia desses elementos promove a singularidade da ritualística que envolve cada indígena Potiguara. Com os pés na mãe terra, lançam em coro seus cantos, buscando proteção e agradecendo aos “espíritos de luz’’, aos ancestrais e, especialmente, a Tupã (PALHANO SILVA; NASCIMENTO, 2013). Dessa forma, vem promovendo o referencial da autoctonia nordestina e vale ser apreendido de forma processual porque é justamente a sua dinâmica dentro dos e entre os grupos étnicos que vem ordenando a vida indígena no Nordeste. Toré e jurema são os dois principais ícones da indianidade nordestina. São elementos culturais que, embora não exclusivos das sociedades indígenas, codificam a autoctonia dos índios da região Nordeste do Brasil (GRÜNEWALD, 2005). Tanto o Toré como o culto à Jurema são marcas de espiritualidade dos Potiguara. Há um esforço de legitimar esses atos sagrados e resgatar sua história e autenticidade, distanciando-se da representação preconceituosa de feitiçaria e catimbó, criada pela predominância da fé católica e catequese no século XVI. A Jurema é tida como planta sagrada, bebida alucinógena, folhas secas fumadas no cachimbo, galhos e flores usados em rituais de limpeza do corpo, sendo considerada uma bebida sagrada, o que torna a cerimônia mágica e religiosa, capaz de provocar a comunicação com os ancestrais (SOUSA; NASCIMENTO, 2011). Ritos e mitos Estudar rito é uma das mais fascinantes vias de acesso para a compreensão dos seres humanos em suas culturas. Ele pode revelar profundas semelhanças entre os grupos humanos capazes de perpassar temporalidades, localizações, formações culturais. E coloca a nossa frente um imenso e complexo universo em parte conhecido, em parte a 450 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e ser desvelado (VILHENA, 2005). O mito está diretamente ligado com o rito. Dada a imensa variedade de ritos e a complexidade a eles inerente, pode-se facilmente concluir que uma ciência isolada não dá conta de explicá-los: [...] o mundo dos ritos enraíza-se no mundo dos seres humanos e que o mundo dos seres humanos constrói-se na cultura. Sendo assim, nem o ser humano nem o rito podem ter existência, tampouco ser compreendidos fora da cultura, que por sua vez é construção humana e histórica (VILHENA, 2005, p. 36). A autora acima citada complementa que, considerando parte integrante da cultura as maneiras pelas quais os seres humanos se distribuem socialmente e se organizam em instituições, associações, exercendo várias formas de poder. Aí estão também leis, regras, valores, tradições, crenças, costumes, linguagens. A maioria dos rituais da tradição indígena se dá em forma de festividades e ao som de bombo e maracá que convocam as forças sobrenaturais e os encantados. Nos ritos católicos do povo Potiguara, a difusão de uma fé que alimenta as procissões, os terços nas casas e as novenas aos seus santos protetores. Nos ritos evangélicos, a força do culto, do clamor que une a irmandade nas escolas dominicais e nos cultos da mocidade (MENDONÇA, 2014). Em Ferretti (1995), os rituais são quase sempre momentos de festa, que rompem a rotina da vida diária, embora haja ritos que não sejam propriamente festivos. Segundo Durkheim (1937): a própria idéia de uma cerimônia religiosa de alguma importância desperta naturalmente a idéia de festa. Inversamente, toda festa, mesmo que seja puramente leiga em suas origens, possui certas características de cerimônia religiosa, pois tem por efeito aproximar os indivíduos, colocar massas em movimentos, e suscitar assim um estado de efervescência, algumas vezes mesmo de delírio, que não é sem parentesco com o estado religioso. O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares. Fala apenas do que realmente ocorreu, do que se 451 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e manifestou plenamente. Revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também de todos os acontecimentos primordiais em conseqüência dos quais o homem se converteu no que é hoje. É o começo de tudo, a origem das coisas, seus primórdios, e sua importância se faz como um norteador para determinado grupo, e deve ser compreendido através de uma perspectiva histórico-religiosa. No entanto, o autor compreende que o mito é como uma história sagrada que tem como objetivo narrar uma ocorrência em um tempo fantástico e primeiro (ELIADE, 1972). O mito é o responsável pela formação, como a sociedade indígena se reproduz na maneira de ser, viver e de morrer. Detém as verdades das coisas e procura perpetuá-las para não serem esquecidas. O mito é assimilado pelos indígenas como verdade absoluta transmitida pelos “fundadores” das respectivas culturas num tempo ‘anterior ao tempo em que se vive’. Sua credibilidade e veracidade são inquestionáveis (BARCELLOS, 2005). Em Mendonça (2014), conhecidos entre os indígenas, alguns rituais foram reprimidos pelos colonizadores. Porém, as expressões nativas tornaram-se mais visíveis e populares no início do século XX dado registro apenas como manifestações folclóricas. A partir de então, os Potiguara e também seus rituais tornaram-se conhecidos em todo o Brasil, de modo que os rituais da tradição, em especial o Toré tiveram reconhecimento apenas como símbolo da cultura dos referidos indígenas. Uma imagem distorcida que acompanhará os Potiguara durante décadas, contribuindo assim dentre outros fatores para a construção de modelos de índios produzidos pela era do capital. Considerações finais Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também de todos os acontecimentos primordiais em conseqüência dos quais o homem se 452 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e converteu no que é hoje – um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras (ELIADE, 1972). A espiritualidade não é monopólio das religiões, nem dos caminhos espirituais codificados. É uma dimensão de cada ser humano. Essa dimensão espiritual que cada um de nós tem se revela pela capacidade d diálogo consigo mesmo e com o próprio coração, se traduz pelo amor, pela sensibilidade, pela compaixão, pela escuta do outro, pela responsabilidade e pelo cuidado como atitude fundamental. É alimentar um sentido profundo de valores pelos quais vale sacrificar tempo, energias e, no limite, a própria vida (BOFF, 2001). O autor citado remete nesta obra, que a primeira distinção que cabe fazer é entre religião e espiritualidade. Sem ela não resgatamos a alta relevância da espiritualidade para os dias atuais, marcados pelo modo secular de ver o mundo e pela redescoberta da complexidade misteriosa da subjetividade humana. Os rituais e vivências que permeiam toda esta cultura pertencente aos indígenas é uma marca registrada e extremamente significante para aqueles que remetem sua ancestralidade como forma ritualística. Cada sociedade, cada povo, cada grupo tem sua ancestralidade, que vem demarcada de mitos e ritos vivenciados na espiritualidade creditada, é vista como uma fonte de vivência, que remete a cultura e ao social. O que a espiritualidade traz para estes povos, é vivenciado de forma individual e coletiva através das memórias, porém com o mesmo significado e propósito. Todos os rituais praticados revitalizam os indígenas para que enfrentem a vida, gerando “ligações espirituais” com a mãe natureza, com seus ancestrais e o Deus Tupã, abrindo os caminhos para os passos firmes na caminhada Potiguara. 453 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BARCELLOS, Lusival Antonio. Práticas educativo-religiosas dos indígenas Potiguara da Paraíba. 2005. 310 f.il. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005. BARCELLOS, Lusival Antonio. As práticas educativo-religiosas dos índios Potiguara da Paraíba. 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[ Volta ao Sumário ] A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e o afRo-indo-BRasileiRo e a esfeRa púBliCa: velhas e novas formas de presença Roberta Campos Raoni Silva Como referenciar este capítulo: CAMPOS, Roberta; SILVA, Raoni. O afro-indo-brasileiro e a esfera pública: velhas e novas formas de presença. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 455-472. Roberta Campos1 Raoni Silva2 Introdução O presente artigo trata das relações entre as religiões afro-indo-brasileiras e a esfera pública, lançando um olhar atento às formas, às práticas, aos procedimentos e às relações através dos quais o afro-indo-brasileiro se projeta na esfera pública. Pretendemos mapear e sistematizar suas formas de presença pública a partir de dados da observação da realidade empírica da atuação do povo de santo na esfera pública e da análise da literatura socioantropológica especializada que trata da referida questão. O mapeamento das formas de presença das religiões afro-indo-brasileiras na esfera pública nos levou a cinco tipos: a cultural, a judicialização, a cultura de massa, a retomada da estrutura institucional de dependência e a patrimonialização. Contudo, é crucial salientarmos que as formas de presença na esfera pública aqui representadas não se esgotam neste artigo, visto que ainda há a possibilidade de outros modos de presença que até então não identificamos. A forma cultural tem se mostrado historicamente mais comum, entretanto o afro-indo-brasileiro já não se reduz a ela em suas formas de inserção pública; o que significa que é importante considerar a reflexividade dos atores sociais sobre suas práticas e o fato de cada terreiro “ser uma exceção à regra” (ver Germano, 2016), o que possibilita uma infinidade criativa de formas de se inserir publicamente sempre aberta à dinâmica dos processos sociais e históricos. 1 2 Professora Associada do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE. Doutorando do PPGA-UFPE. 456 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A Religião vai a Público José Casanova afirma que a religião “veio a público” na década de 1980, destacando dois sentidos dessa expressão: a entrada na esfera pública e a publicidade subsequente, quando vários públicos (mídia, cientistas sociais, políticos e o “público em geral”) começaram a prestar mais atenção nas religiões. Segundo o autor, isso deve-se ao fato da religião ter deixado o lugar conferido a ela na modernização, o privado, e entrado na arena pública através de contestações morais e políticas (Casanova, 1994). Ainda que se possa contestar Casanova, apontando para o fato de que a religião nunca teria realmente se restringido ao privado, compreende-se, com o autor, que a religião tem tornado, nos últimos anos, sua face pública bem mais eloquente. Destaca-se, ainda, em sua análise sobre a transformação da “religião privada” em “religião pública”, o fato das organizações religiosas passarem a rejeitar o lugar restrito de pastorado das almas, incluindo, por outro lado, em suas agendas, questões relativas às interconexões entre a moral privada e a moral pública. As religiões não estão apenas defendendo suas tradições, mas, na verdade, lutam pela participação nas definições das fronteiras modernas entre as esferas pública e privada, entre legalidade e moralidade, entre família, sociedade civil e o Estado, etc. É nesse contexto que podemos usar a ideia de religiões minoritárias (ver Connolly, 2011). Na situação de um mundo e de uma vida social de incontestável diversidade religiosa, com projeto de pluralismo religioso ainda por se realizar, o que experimentamos, segundo Connelly, é um acirramento entre as diferentes religiões, e entre elas e o Estado. As religiões minoritárias se constituem, nesta visão, com bandeiras próprias e que se confrontam na arena pública pelas disputas de fronteiras e de agendas elencadas anteriormente. Os desdobramentos do avanço do capitalismo e o processo crescente da individualização da vida social fizeram Richard Sennett (1999) descrever esse processo histórico como marcado pelo declínio do homem público. Nessa discussão, Sennett diagnosticou a fragmentação da sociedade, cada vez mais voltada para questões identitárias que promovem a emergência do que ele chamou de comunidades autodestrutivas. 457 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Considerados os efeitos deletérios desses processos, ressaltados na visão de Sennett, o que nos interessa destacar, entretanto, é que esse processo de fragmentação na atualidade é marcado por conflitos e tensões relativos à presença da religião na esfera pública. A fragmentação e/ou pulverização dos movimentos sociais complexifica-se no seu significado político, passando de um cenário descrito por fraturas ancoradas apenas nas suas diferenças e irredutibilidades a um processo alimentado por forças macrossociológicas globalizantes e modernizadoras, com implicações para a democracia e seu respectivo potencial libertador. Seguindo Connolly (2011), estaríamos falando da intensificação e aceleração da “minoritização” do mundo contemporâneo, processo levado a cabo pelas pressões, muitas delas vinculadas à expansão do capitalismo neoliberal. No Brasil, temos como exemplo marcante dessa dinâmica o enfrentamento entre evangélicos e movimentos sociais ligados aos direitos reprodutivos e sexuais. De outro lado, temos as religiões afro-indo-brasileiras articulando-se politicamente contra o racismo religioso. Os evangélicos, destacadamente os pentecostais, apesar de constituírem uma minoria em relação ao total da população, entram na esfera pública com bastante força discursiva, um reflexo de sua relação com o campo político e os meios de comunicação. É, portanto, como novos atores na sociedade civil e política que os pentecostais contribuem para amplificar as tensões constituintes da modernidade e dar à religião um novo lugar (ver Machado, 2006; Birman, 2003; Duarte et al., 2009; Natividade e Oliveira, 2013; Cunha e Lopes, 2013; Oro e Alves, 2016). Há uma linha de investigação que vem surgindo nos últimos anos e que tem como foco mapear analiticamente o quadro mais geral da relação entre religião e esfera pública e tem evidenciado em suas análises as práticas discursivas dos diversos agentes e seus enfrentamentos na esfera pública (ver Montero, 2012; Giumbelli, 2014; Burity, 2015; Campos et al., 2015; Almeida, 2017), mas ainda são os evangélicos que assumem nessas análises papel de destaque. O presente artigo se liga a esta linha de investigação, contudo tomando as religiões afro-indo-brasileiras como foco da análise. Nesse sentido, estaremos seguindo a trilha de autores como Van der Port (2007) e Sansi-Roca (2007), Paula Montero (2012), Reginaldo Prandi (1992), Lúcia Guerra (2013), 458 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Paula Miranda e Roberta Boniolo (2017), autores estes que analisaram a presença pública das religiões afro-indo-brasileiras. O Afro-Indo-Brasileiro e a Esfera Pública A literatura que versa sobre o campo religioso brasileiro, quando começou a se debruçar sobre as questões relativas ao secularismo à moda brasileira, se interrogava sobre os modos, a capacidade e a eficácia com que as religiões, de modo geral, inseriam-se na esfera pública. Debates que partiam de uma discussão weberiana duvidavam sobre os habitus e a eficácia com que as religiões afro-indo-brasileiras se colocavam nessa ceara para reivindicar direitos e fazer enfrentamentos aos conflitos do campo religioso. Alguns autores acreditavam que faltariam a esses sistemas simbólicos e práticos o habitus necessário para a ação racional imprescindível aos debates públicos e a legitimação de suas demandas. Nesse contexto interpretativo da literatura especializada, as religiões de matriz afro-brasileira e afro-indígena acabavam sendo subestimadas em relação às suas capacidades de articulação política e a eficácia de suas formas de presença na esfera pública, principalmente por não seguirem, ou não conseguirem seguir, os modelos perpetrados pelo catolicismo e por alguns dos seguimentos evangélicos. A esse respeito, Reginaldo Prandi diz que “Praticantes de uma religião da palavra, os pentecostais, mais modernos que os afro-brasileiros, lançam mão da mídia eletrônica e da política partidária” (PRANDI, 1992, p.89). Paula Montero, por sua vez, afirma que “(…) os cultos de tradição afro-brasileira (…) tendem, de um modo geral, a ocupar a esfera pública em uma posição mais marginal” (MONTERO 2012, p. 175). Ambos os autores (MONTERO, 2012; PRANDI, 1992) argumentavam que o afro-indo-brasileiro configura-se como religiões mágicas e portanto teriam dificuldade de engendrarem suas formas de presença na esfera pública. Segundo Montero (2012), as igrejas cristãs, os católicos na década de 1970 e, só mais recentemente, os protestantes estariam disseminando entre os seus agentes um habitus ajustado às exigências de uma cultura pública. 459 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Os pesquisadores começaram, então, a perceber que as religiões afro-indo-brasileiras vêm criando novas formas de presença na esfera pública. Paula Montero (1994) e Reginaldo Prandi (1994) já haviam salientado que esse movimento derivaria de um processo de racionalização pelos quais essas religiões vêm passando. Em relação ao candomblé, autores como Paula Montero (1994) e Vagner Gonçalves (1992) destacaram que sua presença nas grandes metrópoles contribuía para torná-la mais universal e flexível às exigências do mundo moderno. Um questionamento a ser feito é de onde vem o habitus, ajustado às exigências de uma cultura pública, no caso do afro-indo-brasileiro. Paula Montero (2012) já nos deixou algumas pistas: no ano de 1980, no Rio de Janeiro, um grupo de sacerdotes da umbanda e do candomblé protagonizaram a Marcha Contra a Intolerância Religiosa, organizando uma frente política em defesa da liberdade religiosa. Para a autora, o sucesso do movimento e a visibilidade que ganhou no debate público decorreu, em parte, de alianças estabelecidas com movimentos negros, passando a conectar demandas que articulam raça e religião. Acreditamos que esta vem se tornando uma das principais estratégias do povo de santo. Mattijs Van de Port (2007), foi um dos autores que estudou as dinâmicas das religiões afro-baianas na esfera pública, preocupado em entender como, em Salvador, o candomblé passou de uma prática depreciativa e vista como um perigo à modernização da Bahia para adquirir o status de religião, ganhando uma visão valorativa e se tornando indissociável da identidade cultural de Salvador e da Bahia, figurando assim das mais diversas formas na esfera pública. Van der Port (2007) deixa claro em suas análises que o caminho encontrado pelo afro-baiano para poder se inserir na esfera pública passa, necessariamente, por um processo de branqueamento da religião. Citando Renato Ortiz, Van der Port nos lembra que, devido à força que a ideologia do embranquecimento teve no Brasil, a cor branca acabou passando a denotar tudo o que é puro, bom e benéfico. Nesse sentido, ele argumenta que o foco na cor branca nas presenças públicas do candomblé é uma extensão dessa ideologia para o campo visual, tentando com isso buscar transferir significados positivos para o culto. Em outras palavras, as exposições do candomblé na arena pública estão 460 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e sendo mediadas por valores ocidentais, enquanto elementos ligados ao fetichismo negro, como o sacrifício de animais e o transe de possessão, são afastados de suas presenças públicas e cada vez mais figuram no domínio do segredo. Van der Port (2007), assim comentou: Para que o candomblé possa falar a um público maior na esfera pública, ele deve demonstrar sua compatibilidade com o progresso, a modernidade e a civilização, dissociando-se das temidas dimensões da Bahia negra. O domínio de um branco imaculado na iconografia pública do candomblé oculta práticas como o sacrifício de animais e a possessão, encobre a miséria lamacenta dos bairros pobres onde a maioria das casas de culto estão situadas e ajuda o público a “esquecer” que o candomblé é uma coisa da noite, das forças ocultas e da magia negra. É através dessa operação de clareamento que o candomblé pode se tornar o prestigiado e venerado portador da identidade baiana, e é através desse branqueamento que as imagens do candomblé se dispersam na sociedade baiana. (VAN DER PORT, 2007:251-252. Tradução nossa). Podemos agora então caracterizar a primeira forma de ir à público das religiões afro-indo-brasileiras que iremos expor aqui. O afro-brasileiro e o afro-indígena tradicionalmente, ao realizarem esse descolamento para a esfera pública, se apresentam mais como cultura do que como religião. “Quando são considerados ‘tradições culturais’ (...) os ritos africanos são mais facilmente incorporados às imagens de identidade nacional do que quando são tratados como ‘ritos religiosos’” (MONTERO 2012:176). Essa foi por muito tempo a grande estratégia, para não dizer a única, de reconhecimento acionada por essas religiões. Autores como Gonçalves Fernandes (1937) já nos alertava a respeito dessa tática de convivência do Xangô do Recife. Afoxés, Maracatus, Cocos e afins foram e ainda são as formas de ir a público das religiões de matriz afro-brasileira e afro-indígena. É, de fato, através da arte, da música e da dança que o afro-indo-brasileiro questiona e propõe modelos mais inclusivos de sociedade. Atualmente não é incomum encontrarmos grupos musicais, formados por integrantes de terreiros, que tenham entre seus objetivos realizar o resgate, o fortalecimento e a divulgação de suas tradições 461 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e culturais e religiosas. Para tomar como exemplo, há um grupo musical que nos últimos anos vêm ganhando grande visibilidade, o Grupo Bongar, composto por seis integrantes, todos membros do terreiro Xambá do quilombo urbano do Portão do Gelo, localizado na cidade de Olinda – PE. O grupo foi fundado em 2001 com o objetivo de levar aos palcos as tradições culturais da Xambá. Como forma de trazer visibilidade ao grupo, o Bongar faz uso de mídias sociais, além de recorrer a editais públicos de incentivo à produção cultural. É dessa forma que o Grupo Bongar consegue se inserir publicamente por meio da produção musical, dando visibilidade às suas tradições culturais (ver Guerra, 2013). Sansi-Roca (2007) nos dá outro importante exemplo do candomblé cultural. Ao estudar o processo de museificação da cultura afro-brasileira em Salvador, pensando como as imagens museais têm promovido mudanças na representação pública do candomblé, Sansi-Roca destaca, em suas análises, como uma “elite de casas de candomblé” incorpora valores de instituições da cultura e dos museus, ou seja, essa elite de casas de candomblé aprendeu a se definir “(…) em termos de cultura e como instituições culturais, e a negociar o seu lugar na sociedade brasileira por intermédio das instituições da cultura” (SANSI-ROCA, 2007, p. 96). O afro-indo-brasileiro, então apropriado do espaço dos museus, não o nega, mas passa a cobrar um lugar que o represente não como crime ou doença – como era caso do Museu de Medicina Legal Estácio de Lima3 –, mas como cultura. Ao reivindicar o museu, mais especificamente o museu de arte, como um espaço legítimo para a presença de seus objetos, ele está acionando o que Sansi-Roca chamou de “novo candomblé cultural” (2007, p. 110). Este seria justamente uma compreensão das religiosidades afro-brasileiras não mais como crimes ou sintomas de doenças, mas, sim, como arte, reivindicando o seu lugar na formação cultural brasileira. No Museu de Medicina Legal Estácio de Lima, os objetos do candomblé – alguns comprados pelo próprio Estácio de Lima e outros, muito provavelmente, fruto de apreensões policiais – conviviam com “objetos criminológicos, como armas homicidas e fetos humanos disformes e objetos de crime, como drogas” (Sansi-Roca, 2007:100). Tais associações obviamente trazem consigo uma carga pejorativa ao candomblé sendo associado com o crime ou com doenças. 3 462 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e É importante observamos que o modelo museológico vai ter um lugar de destaque na construção dos símbolos públicos da cultura afro-brasileira. Hoje, diversas casas de candomblé possuem seu museu ou memorial. Talvez o mais conhecido seja o Ilê Ohun Lailai – casa das coisas antigas, em ioruba – criado em 1982 por Mãe Stella de Oxóssi. Em Pernambuco, temos o exemplo da Xambá que criou o Memorial Severina Paraíso da Silva (Mãe Biu)4, em homenagem à segunda ialorixá do terreiro, considerada por eles a grande matriarca da nação. Entre os itens que compõem o Memorial, tem destaque a coleção de mais de 800 fotografias, registros dos anos 1930 a 1990, boa parte composta pelo arquivo pessoal de Mãe Biu. É importante destacar esse caso pois ele mostra como a criação do memorial tinha entre suas funções a de estabelecer um contato com a sociedade mais ampla (ver Campos et al., 2008), como podemos ver na entrevista de Pai Ivo, atual babalorixá (sacerdote) do terreiro Xambá: (…) uma vez Hildo Leal, que é meu historiador, aí perguntou a mim: ‘meu Pai por que você não se junta com eu, João Monteiro e Antônio Albino pra construir o Memorial?’ (...) a partir do momento, que você cria o Memorial, você sai da questão religiosa e entra na questão histórica. Então você vai atrair pesquisadores, Antropólogos, Sociólogos e pessoas do povo, mesmo independente da cor, do ato religioso ou não. (Adeíldo P. da Silva, 2010 apud OLIVEIRA; CAMPOS, 2010: 697-698). Diferente dos evangélicos, que são treinados desde pequenos para ir a público, à oratória e ao debate, o afro-indo-brasileiro possui um ethos e uma visão de mundo distinta, baseada no segredo, na festa, na comida, na ética do cuidado e do acolhimento. Não queremos dizer com isso que o afro-indo-brasileiro não está indo a público – questionando e debatendo –, mas o contrário: nos últimos anos o Além de dados de campo, como forma de obter informações sobre o Memorial Severina Paraíso da Silva, recorremos ao blog Cultura PE, mantido pelo Governo do Estado de Pernambuco, <http://www.cultura.pe.gov.br/canal/patrimonio/territorio-da-ancestralidade-africana-nacao-xamba-e-patrimonio-vivo-de-pernambuco/> acessado no dia 28/03/2018, e também à própria página oficial do Memorial, mantida pelo terreiro, <http://www.xamba.com.br/mem.html>, acessado em 28/03/2018. 4 463 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e afro-indo-brasileiro vem produzindo novas formas de presença na esfera pública para além da cultural. A segunda forma de presença que gostaríamos de caracterizar aqui é a judicialização das demandas e conflitos. Sobre judicialização, Luiz Motta (2007) nos alerta sobre a polissemia do termo. Diferentes áreas do conhecimento, do Direito à Psicologia, além de movimentos sociais e de outros grupos da sociedade civil, fazem uso, das mais diversas formas, deste conceito. Sendo assim, o termo, conforme usado no presente trabalho, parte da definição utilizada por Motta: Entende-se por judicialização a expansão do direito e o fortalecimento das instituições de Justiça, e a inserção dos agentes jurídicos na esfera política e no mundo da vida, positivamente ou negativamente, de acordo com a perspectiva do intérprete (MOTTA, 2007:23). Nesse sentido, o campo jurídico e seus diferentes atores acabam por se tornar importantes agentes no acolhimento de demandas e de resolução de conflitos, e dessa forma a busca pelo judiciário acaba por se tornar uma tendência da sociedade brasileira, principalmente em se tratando de minorias políticas. Em dezembro de 2018, tivemos um caso emblemático desse processo que repercutiu largamente na mídia, a disputa judicial pelo corpo de Mãe Stella de Oxóssi, a quinta ialorixá de um dos terreiros mais tradicionais de Salvador, o Ilê Axé Opô Afonjá. A forma como se daria o sepultamento de Mãe Stella acabou por gerar um impasse entre a sua companheira, Graziela Dhomini, e os familiares (irmã e o sobrinho) da ialorixá e integrantes do Opô Afonjá5. Graziela Dhomini afirmava que era da vontade de Mãe Stella que seu sepultamento fosse realizado em Nazaré, no recôncavo baiano, cidade onde elas viviam, contudo os familiares da ialorixá – ligados Para compreender um pouco dos acontecimentos neste caso, recorremos a algumas matérias da mídia eletrônica, como o portal de notícias G1, <https://g1.globo.com/ba/ bahia/noticia/2018/12/28/apos-decisao-da-justica-corpo-de-mae-stella-chega-a-salvador-sepultamento-sera-no-sabado.ghtml>, acessado no dia 28/03/2018, e o Jornal do Brasil, <https://www.jb.com.br/cultura/2018/12/968753-enterro-do-corpo-de-mae-stella-de-oxossi-vira-disputa-judicial.html>, acessado no dia 28/03/2018. 5 464 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e ao terreiro – entraram com uma ação judicial para que o corpo fosse levado para a cidade de Salvador, para que lá pudesse ser submetido aos rituais fúnebres do candomblé. Esse caso acaba por se tornar emblemático devido à decisão proferida pela juíza Caroline Vieira, da comarca de Nazaré, dando veredito favorável à família de Mãe Stella, determinando a transferência do corpo da ialorixá para a cidade de Salvador. Não havendo nos autos prova de manifestação da de cujus de lugar de preferência de local sepultamento, pelo melhor interesse social, é possível mitigar o direito de disponibilidade da de cujus, sobrepondo-se a proteção do patrimônio cultural, entendo que se deve conceder à comunidade o exercício do culto religioso, ante a supremacia do princípio que aqui seria violado, de forma irreversível, do exercício livre da religião da qual a Iya Stella de Oxossi era líder, bem como a proteção do patrimônio histórico e cultural do exercício da religião de matriz africana (JUÍZO DE DIREITO PLANTONISTA DA COMARCA DE NAZARÉ, 2018:5). Nesta decisão, como podemos ver acima, a juíza Caroline Vieira patrimonializa o corpo de Mãe Stella, colocando a “proteção do patrimônio histórico e cultural” acima do direito da família (neste caso, de Graziela Dhomini, sua companheira). Em Pernambuco, podemos observar também algumas articulações que visam conduzir a resolução de conflitos para o processo de judicialização. Por exemplo, no dia 07 de novembro de 2018, o Coletivo de Juristas Negras de Pernambuco (CJNPE) realizou, no Ilé Asé Orisalá Talabi, o Primeiro Curso de Formação Jurídica para as Religiões de Matriz Afro-Indígena. A missão do CJNPE, como podemos ver na página de uma de suas redes sociais, é Instrumentalizar a população negra e os povos tradicionais e de terreiro para o enfrentamento ao racismo, sexismo e outras formas de opressão. E para desenvolvimento de ações por meio de orientação jurídica e educação popular voltadas à melhoria das condições de vida da população negra e das mulheres negras em especial.6 O texto pode ser acessado através do link https://www.facebook.com/pg/juristasnegraspe/about/?ref=page_internal, <acessado em 21 de março de 2018>. 6 465 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Vemos, com isso, que o afro-indo-brasileiro está recorrendo ao processo de judicialização para reivindicar suas demandas e combater o racismo religioso. A terceira forma de presença do afro-indo-brasileiro descrita neste artigo é a cultura de massa. Cada vez mais podemos encontrar meios de divulgação em massa, que têm como objetivo dar visibilidade a alguns aspectos das tradições afro-indo-brasileiras. Queremos destacar aqui o uso dessa linguagem para construir uma visão positivada da mitologia dos orixás. Como exemplos dessa forma de publicização do universo afro-brasileiro e afro-indígena, há histórias em quadrinhos, filmes, romances e livros infantis que apresentam os orixás como super-heróis. Um exemplo que acabou tendo certa repercussão na mídia eletrônica foram os trabalhos do arquiteto e ilustrador baiano Hugo Canuto. Este foi responsável pela confecção da história em quadrinhos “Os Contos dos Orixás”. Como o próprio autor afirma, estava entre seus objetivos evidenciar as tradições ancestrais que moldaram sua terra de origem – a Bahia – representando o legado das civilizações africanas, como a ioruba, “representadas (…) pelas histórias dos Orixás, arquétipos milenares de força, coragem, sabedoria e beleza.”7 Canuto, claramente dotado de uma estética baseada nos famosos quadrinhos da Marvel dos anos 1960, apresenta em suas histórias em quadrinhos os Orixás como super-heróis. A quarta forma de presença é o que vamos chamar de retomada da estrutura institucional de dependência. Terence Turner, ao estudar os indígenas Kayapó, nos anos 1960, percebeu como este grupo compreende a afirmação de “suas culturas tradicionais e a manutenção de suas instituições e ritos como parte integral de sua resistência política à perda de suas terras, recursos e poderes de auto-determinação” (TURNER, 1991, p. 69). É nesse sentido que os Kayapó produzem o que Turner vai chamar de “recolonização da estrutura institucional de dependência” (TURNER, 1991 p. 75), ou seja, quando os grupos Kayapó, no lugar de destruir ou lutar contra a “arquitetura de dependência”, sistematicamente, Em sua página oficial, podemos encontrar essas referências. Está disponível em: <https://hugocanuto.com/gallery/contos-dos-orixas-tales-of-the-orishas>. Acessado em 28 de março de 2019. 7 466 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e assumem o controle dos principais focos institucionais e tecnológicos de dependência com relação à sociedade brasileira, ao menos dentro dos limites de sua comunidade reserva. Como já foi possível notar, Turner faz uso de termos como “colonizando os colonizados” ou “recolonização” para descrever os fenômenos citados acima. Por causa da implicação epistemológica e política dos termos e das problemáticas decorrentes de seu uso, aqui nós optamos por descrever este fenômeno não em termos de colonização nem fazendo uso de teorias pós-coloniais, preferindo então descrevê-lo como uma retomada dos meios institucionais de dependência. Precisamos levar em conta que o povo de santo vem ocupando cargos em instituições estratégicas, bem como formando pesquisadores no âmbito das ciências humanas. Fatos como esses são essenciais para que o afro-indo-brasileiro consiga adquirir um habitus mais compatível com as exigências do mundo moderno e dos debates na esfera pública. Hildo Leal é um historiador e membro do terreiro da Xambá, tendo sido sua ajuda imprescindível, em diversos momentos, para seu terreiro e quilombo. Leal trabalha no Arquivo Público de Pernambuco, e esta posição foi de fundamental importância durante o processo de tombamento do terreiro, pois permitiu o acesso a documentos valiosos. Hildo Leal também é responsável pelo Memorial Severina Paraíso da Silva, e não podemos desconsiderar que sua formação como historiador o auxilia a compreender e desenvolver este padrão museológico, que é uma das formas de relação que o terreiro possui com a sociedade mais ampla. A quinta e última forma de ir a público do afro-indo-brasileiro que iremos mencionar neste trabalho é a patrimonialização. João Leal (2018), ao estudar a Festa do Divino, no tambor de mina, percebe que essa festa assume um importante papel no processo de conexão do terreiro com a sociedade mais ampla; é a festa que mais abre o tambor de mina para fora de seu círculo habitual de frequentadores “conectando-os com redes sociais mais alargadas e projetando-os na esfera pública” (LEAL, 2018, p. 108). A Festa do Divino, ao ser compreendida também como cultura, acaba sendo submetida aos regimes de patrimonialização. Nas palavras do autor: “A linguagem do patrimônio tornou-se importante para negociar as condições de inserção e visibilidade das religiões afro-brasileiras na esfera pública” (LEAL, 2018, p. 108). 467 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Para tentar ilustrar o caso maranhense, Leal faz um contraponto com o contexto dos terreiros da Bahia. De fato, em contraste com a Bahia, em São Luís é menor a importância dos processos de reafricanização dos terreiros. A maioria dos terreiros – mesmo aqueles (...) em que o discurso africanista é mais enfático –, mantém também um vínculo importante com o catolicismo (...) Faz portanto algum sentido que seja sobre as festas do Divino que recaia parte importante das expectativas de representação dos terreiros no regime patrimonial (LEAL, 2018, p.109). Nessa diferenciação, o autor, ao analisar o caso maranhense, compreende que o elemento acionado naquele contexto está relacionado à Festa do Divino – entendido mais em sua dimensão católica –, e não necessariamente à tradição dos terreiros maranhenses. Não obstante as interpretações do autor, nos parece que é importante observar que a diferença maior entre os terreiros da Bahia e do Maranhão se dá pelo fato de recorrerem a distintas tradições; enquanto o primeiro, de modo geral, está vinculado a processos de reafricanização e um movimento contrassincrético, no segundo se recorre a uma tradição sincrética, onde o elemento católico se faz mais claramente acionado. Conclusão Com este artigo, discutimos as especificidades das formas de presença pública das religiões afro-indo-brasileiras. Destacando que, na literatura especializada sobre esta temática, acabou sendo produzido um ceticismo em relação à capacidade dessas religiões em conseguir produzir um habitus ajustado às exigências de uma cultura pública, sendo assim questionada suas capacidades de articulação política e a eficácia de suas presenças na esfera pública. Na contramão desse tipo de diagnóstico analítico, tentamos demonstrar que a forma cultural tem se mostrado historicamente mais comum, contudo destacamos que o afro-indo-brasileiro já não se reduz a ela em sua forma de inserção pública. Muito embora possamos 468 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e questionar a eficácia dessas religiões em reproduzir modelos usados pelo catolicismo e por certos seguimentos evangélicos, é necessário destacar sua grande capacidade criativa e versatilidade em articular novos modelos de presença pública. Destacamos aqui cinco formas de presença – a cultural, a judicialização, a cultura de massa, a retomada da estrutura institucional de dependência e a patrimonialização – e compreendemos que elas não são excludentes, podendo, sim, coexistirem no tempo e no espaço e muitas vezes sendo articuladas de forma a se tornarem complementares. Acreditamos que tenha ficado claro que nossa proposta era perceber que os modos de presença pública, de alguma forma, se diferenciavam do tradicional modelo cultural. Contudo, não é difícil perceber que a compreensão dessas religiões como patrimônio cultural ainda está permeando de forma transversal todos os outros modelos de presença pública. 469 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALMEIDA, Ronaldo. A onda quebrada: evangélicos e conservadorismos. Campinas: Cadernos Pagu, 2017. tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2009. BIRMAN, Patrícia (org.). Religião e Espaço Público. São Paulo: Attar Editorial/CNPq/PRONEX, 2003. FERNANDES, Gonçalves. Xangôs do Nordeste. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. BURITY, Joanildo A. Minoritização, glocalização e política: para uma pequena teoria da translocalização religiosa. 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[ Volta ao Sumário ] 472 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e o Budismo em siddHaRtHa, de HeRmann Hesse João Florindo Batista Segundo Carlos André macêdo Cavalcanti (Orientador) Como referenciar este capítulo: SEGUNDO, João Florindo Batista; CAVALCANTI, Carlos André Macêdo. O budismo em Siddhartha, de Hermann Hesse. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 473-495. João Florindo Batista Segundo1 Carlos André Macêdo Cavalcanti (Orientador)2 Resumo O presente trabalho visa analisar a filosofia budista sob a ótica do livro Siddhartha, publicado em 1922 pelo aclamado escritor alemão e Nobel em Literatura Hermann Hesse, que é a estória de um personagem fictício que se alterna entre a vida material e a vida religiosa dos tipos brâmane, asceta, budista e mística, na busca pela Iluminação. Inspirado em uma viagem pessoal à Índia, o livro é fruto também dos estudos do autor sobre o Oriente e de suas leituras de filósofos como Nietzsche e Schopenhauer, também fascinados pelo budismo. Em síntese, a obra prega o ceticismo em relação a qualquer conjunto de doutrinas religiosas, a importância da jornada íntima e pessoal pela verdade (que é incomunicável e intransmissível) e afirma a possibilidade do aprendizado a partir dos erros, temas já decantados pelo budismo, porém relidos para um público outrora ainda desconhecedor do distante Oriente e apresentados com a beleza e a potência singulares que somente a palavra escrita em prosa e verso detém. Palavras-chave: Siddhartha; Hermann Hesse; budismo Doutorando em Ciências das Religiões (PPG-CR / UFPB), Mestre em Ciências das Religiões (PPG-CR/ UFPB), membro do Grupo de Pesquisa Videlicet – UFPB. E-mail: jf.segundo@gmail.com 2 Professor Doutor Associado da UFPB desde 1991, onde atua no ensino e na pesquisa nos níveis de Graduação e Pós-Graduação nas áreas de Ciências e História das Religiões. É líder dos Grupos Videlicet Religiões, de Estudos em Intolerância, Diversidade e Imaginário (CNPq) e Officium, de História da Inquisição, das Religiões e do Sagrado (CNPq). Tem Mestrado (1990) e Doutorado (2001) em História pela UFPE com Dissertação e Tese sobre História das Religiões/ História da Inquisição. Cursa Pós-Doutorado em Ciências da Religião na PUC-GO. Foi membro fundador do Comitê Nacional da Diversidade Religiosa da SDH/Presidência da República. Atuou como titular na coordenação nacional do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso – Fonaper (2011 a 2014) e é membro das seguintes ONGs: Soter, ABHR, ISERTH e Anpuh. Está lotado no Departamento de Ciências das Religiões da UFPB. E-mail: carlosandrecavalcanti@gmail.com 1 474 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Abstract This paper analyzes the Buddhist philosophy from the perspective of the book Siddhartha, published in 1922 by Hermann Hesse, an acclaimed German writer and Nobel Literature. The book tells the story of a fictional character who alternates between material life and religious life of the types Brahmin, ascetic, Buddhist and mystic, in the quest for Enlightenment. Inspired by a personal trip to India, the book is also the result of the author’s studies on the East and his readings of philosophers such as Nietzsche and Schopenhauer, also fascinated by Buddhism. In short, the book preaches the skepticism about any set of religious doctrines, the importance of intimate and personal journey for the truth (which is incommunicable, non-transferable) and affirms the possibility of learning from mistakes, issues already decanted by Buddhism, But re-read to an audience once still unaware of the Far East and presented with the beauty and singular power that only the word written in prose and verse holds. Keywords: Siddhartha; Hermann Hesse; Buddhism Introdução Há séculos, algumas informações desencontradas sobre a cultura oriental chegaram à Europa, devido, talvez, em primeiro lugar, às viagens do veneziano Marco Polo (1254-1324). Foi por meio de Rusticiano, seu amanuense, que se soube de estranhos prodígios que o navegador alegou ter presenciado entre os monges budistas e outros mestres espirituais. No século XIX, após a paixão pelo Egito – advinda das explorações napoleônicas àquele país e à descoberta, por Champollion (1790-1832), do método de tradução dos hieróglifos –, o interesse pelo Oriente em geral e pelo budismo em particular atingiu em cheio o Ocidente, se transformando em verdadeira febre. Na Alemanha, no início do século XX, já estavam disponíveis traduções de várias obras filosóficas e religiosas orientais, bem como certa divulgação da doutrina budista. Nesta 475 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e seara, é obrigatório recordar as contribuições de Friedrich Max Müller (1823-1900) no campo da religião comparada – em sua busca pela identificação dos temas e características comuns às diversas religiões –, com seus estudos sobre o Avesta, a tradução e publicação do Rig-Veda e a publicação da coleção The sacred books of the East (51 volumes!). Em verdade, o pensamento budista já encontrara eco nos escritos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), no conceito do “eu” de Hume (17111776) e também na concepção da condição humana de Schopenhauer (1788-1860), mas foi apenas no século XX que se verificou sua influência direta sobre o pensamento do Ocidente. Foi nessa época que o escritor e poeta alemão Hermann Hesse (1877-1962) escreveu Siddhartha1, mais precisamente entre 1919 e 1922, quando residia em Montagnola, Suíça (DINIZ, 2003). Em Hermann Hesse: Life and Art, Joseph Mileck (1978) afirma que Siddhartha é a plena acepção do “artesanato consciente”, onde Hesse sincronizou de modo complementar os elementos da jornada interior pelo corpo, mente e alma. O autor não foi necessariamente mais um que a espaços de distância se deixou levar pelas influências da época, pois seu conhecimento do Oriente era advindo do fato de – sob o desejo de se libertar da escravidão da individualidade – haver viajado à Índia, em 1911, bem como porque seu avô materno, o famoso sanscritista Hermann Gundert (1814-1893), e seu pai, Johannes Hesse (1847-1916), foram missionários pietistas naquele país, razão pela qual desde cedo teve contato com a visão de mundo protestante cristã ladeada pela hinduísta e a budista (CARANDELL, 1984). A obra não é um relato de tal viagem, mas, sim, uma síntese do que Hesse vivenciou na Índia. Sua fonte imediata de inspiração foi naturalmente a vida de Sidarta Gautama (c. 563 a.C. - 483 a.C.), o príncipe dos Sakyas, que abandonou os confortos materiais e se tornou Buda, “o Iluminado”. Para melhor entender o livro, pertinente conhecer um pouco da vida de Gautama, sua doutrina e os frutos dela advindos. 1 Optamos pela grafia original do título em alemão. 476 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 1 Pequena síntese do budismo Sidarta Gautama nasceu em Kapilavastu, Nepal, no nordeste da Índia, quando o bramanismo era a fé dominante; esta religião evoluíra do vedismo, antiga crença baseada nos textos sagrados chamados Vedas. O príncipe, com seu raciocínio, foi o primeiro a desafiar tal sistema, e embora não tenha atuado como profeta, nem como messias, tornou-se alvo de reverência de seus seguidores, que viriam a ser chamados budistas. O divisor de águas entre o budismo e outras religiões é o fato de que Sidarta não chegou às suas conclusões por revelação divina, mas como fruto de profunda reflexão, o que o caracteriza também como uma filosofia, se não o for mais que uma religião em si. Assim, ele afirmava que as verdades que encontrara estão disponíveis para qualquer um que se dedique a usar da razão. Sidarta optou por não se aventurar pela floresta das investigações metafísicas – que no Ocidente, era alvo de preocupação dos gregos de então –, pois considerava tais questionamentos irrespondíveis. O foco do buscador era os problemas práticos do objetivo da vida e de como bem viver. O primeiro passo na busca de respostas foi encontrar um método teórico-prático de autoaperfeiçoamento, a saber, o caminho do meio, entre a autoindulgência e automortificação. Tendo passado sete anos como asceta, o Buda compreendeu que as privações e mortificações não traziam nenhuma satisfação interior, nem proporcionavam conhecimento transcendente algum. Assim sendo, o passo seguinte foi eliminar os apegos, causa de frustrações; porém, ele foi além e detectou também a necessidade de superar o vínculo que temos com aquilo que nos faz desejar as coisas às quais nos apegamos, a saber, o “eu”. Sidarta, então, demonstrou que o “eu” não existe, porque tudo que é perceptível no universo é impermanente, insatisfatório e sem substância, uma vez que estaria sujeito a um processo de morte e de renascimento na continuidade, mas sem identidade. Logo, o que há é o “não eu”, pois não há qualquer “eu”, qualquer entidade permanente (satto) passando de uma encarnação a outra e só o entendimento desta verdade é que pode nos livrar do sofrimento. A noção de uma entidade, então, é puramente convencional, de modo 477 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que o que perece e ressurge é apenas uma individualidade (nāma-rūpa), uma consciência discernente (viññāna) e herdeira dos feitos da outra (karma; “ação-reação”; encadeamento de causa e efeito que faz com que o indivíduo continue na roda de reencarnações). Feito isto, o Buda (“o desperto”; como viria a ser chamado) codificou seu caminho do sofrimento à felicidade nas Quatro Nobres Verdades, a saber: 1. A verdade do sofrimento (dukkha) – o sofrimento é parte inerente da existência humana e nos acompanha por toda a vida; 2. A verdade da origem do sofrimento (samudaya) – o desejo é a causa do sofrimento, pois ansiamos por prazeres sensórios, bens materiais e poder; 3. A verdade do fim do sofrimento (nirodha) – o desapego pode por fim ao sofrimento; e 4. A verdade do caminho para o fim do sofrimento (magga) – pela prática do Caminho Óctuplo, pode-se eliminar o desejo e superar o ego (DHAMMASAMI, 2013). Quanto ao Caminho Óctuplo, um verdadeiro código de ética que Gautama foi o primeiro a praticar em busca da felicidade, este é constituído de: 1. Compreensão correta (samyag d฀฀฀i): compreensão de acordo com as Quatro Nobres Verdades; 2. Pensamento correto (samyag sa฀kalpa): desenvolvimento de qualidades nobres, a exemplo do altruísmo; 3. Fala correta (samyag vāc): usar o dom da palavra sempre de forma construtiva e harmoniosa; 4. Ação correta (samyag karman): não matar, não se apossar do que não lhe pertence e abster-se de práticas sexuais impróprias; 5. meio de vida correto (samyag ājīvana): um modo de vida pessoal e profissional que não cause mal a outros seres; 6. Esforço correto (samyag vyāyāma): abandonar estados de ânimo prejudiciais; 7. atenção correta (samyag sm฀ti): desenvolver a plena consciência de tudo o que faz; e 478 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 8. Concentração correta (samyag samādhi): ter estabilidade e foco mental (SILVA; HOMENKO, 1982). Segundo os textos budistas, este processo de despertar (iluminação) se deu em três grandes etapas, após as quais, o Buda percorreu o Vale do Ganges, ensinando as doutrinas que lhe foram inspiradas, rompendo com a restrição do sistema de castas, que limitava aos brâmanes o direito de transmitir ensinamentos espirituais (SCHENKEL, 2013). Por causa disso, ele ficou conhecido por diversos nomes: Sakyamuni (sábio que veio da casta dos kshatriyas), Bhagavad (o que tem felicidade), Tathâgata (o que se tornou perfeito) e Jina (o que obteve a vitória). Deve-se frisar ainda que outros mestres budistas e hinduístas também receberam o epíteto de Buda, que Sidarta Gautama é considerado pelos hinduístas o nono avatar (descida de um ser divino à Terra) de Vishnu e que os budistas o consideram o sétimo Buda (antecedido por Vipashyin, Shikhin, Vishvabhû, Krakuchhanda, Kanakamuni e Kashyapa) (SOKA GAKKAI INTERNATIONAL, 2016). Após sua morte, conta-se que um concílio de monges foi realizado próximo a Râjagriha, com o intuito de registrar por escritos as doutrinas que ele ensinara a seus discípulos e as regras básicas que deviam reger a vida monástica (a Sangha). Com o passar dos anos, surgiram correntes distintas da transmissão do ensinamento do Buda histórico, sendo as três principais: 1. Hînayanâ (“pequeno veículo”) – expressão intelectual do budismo baseada no estudo exaustivo do Tripitaka; 2. Mahâyanâ (“grande veículo”) – expressão emocional do budismo, que tem por base a compaixão; é a majoritária em todo o mundo; e 3. Vajrâyanâ (chamada de “tantrismo”) – busca atingir o nirvana (estado daquele que se libertou da ilusão, do desejo e do sofrimento) pelo despertar das energias mais sutis do ser, via estimulação dos chacras (vórtices de “energia” que “giram” no interior do corpo humano) e da kundalini (forma de “energia divina” que se acredita estar localizada na base da coluna vertebral) (SILVA; HOMENKO, 1982). É ponto comum entre todas estas correntes a prática de mantras (“controle da mente”; poema ou sílaba recitada ou cantada repetidamente), 479 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e de mudrás (“selo”; gestos feitos com as mãos para penetrar certos setores do inconsciente) e de mandalas (“círculo”; elaboração de representação geométrica, plástica e visual da relação entre o homem e o Absoluto e do retorno daquele à unidade). Quanto ao Tripitaka (“as três corbelhas”), trata-se do cânone budista, composto por Vinayapitaka (livros de disciplina), Suttapitaka (livros da doutrina) e Abhidhammapitaka (livros psicológicos) (GANERI, 2003). Da profusão de correntes surgiu também a distinção entre Arahant e Bodhisattva: enquanto o primeiro atinge a Iluminação e resolve permanecer no plano espiritual, o segundo decide se reencarnar para guiar a humanidade no caminho ao nirvana. Sabiamente, o Buda histórico recusou-se a responder se existe um “eu”, pois se concordasse com tal afirmação ele favoreceria o “eternalismo” e se discordasse, incidiria no erro do “aniquilacionismo”. Igualmente, ele afirmou não poder aplicar qualquer proposição ao destino de um Buda no além (após deixar o corpo físico), uma vez que o Buda é exterior a todo modo, a todo porvir, pois se recolheu em si mesmo; ou seja, sobre um Arahant não se pode afirmar nem que se torna, nem que não se torna, ou ainda que nem se torna, nem não se torna, ou que se torna ao mesmo tempo que não se torna. Em síntese, pode-se dizer que pelo budismo, na trajetória de Ätman (supremo espírito que reside em cada indivíduo) busca-se rejeitar Maya (o mundo das aparências) para atingir Brahma (o Todo) pela dissolução no Akasa (éter). (COOMARASWAMY, 1952) Ademais, o budismo conta com estimados 535 milhões de adeptos, o que representaria entre 8% e 10% da população mundial. (WORLD POPULATION REVIEW, 2020) 2 A trama de Siddhartha e seus personagens Siddhartha está dividido em doze capítulos distribuídos em três grupos de três capítulos, com cada tríade acompanhada por um interlúdio. Nessa estrutura, o rio que o protagonista atravessa duas vezes – para em seguida mudar completamente de vida – é que divide o texto em três. Igualmente, ao longo do texto é possível encontrar sequências de três 480 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e palavras, de três frases, de três cláusulas e outras alusões à tríade que nos relembra a Tripitaka budista (textos sagrados compilados após a morte do Buda). De fato, a obra é prenhe de conceitos caros ao hinduísmo e ao budismo, tais como o karma, o nirvana e a roda de samsâra (ciclo infinito de vidas e mortes sucessivas de um suposto “eu”). Devemos logo frisar que este livro não narra as vicissitudes experimentadas pelo Buda histórico, que aqui aparece como mero coadjuvante. O protagonista é um outro Siddhartha, que também nasce nobre. Para evitar confundir os dois, então, a partir de agora, trataremos o príncipe dos Sakyas por Gautama e o personagem de Hesse, por Siddhartha. Os três primeiros capítulos descrevem os anos iniciais do protagonista (O filho do brâmane, Com os samanas e Gotama). Enquanto Gautama foi preparado por seu pai para ser rei, Siddhartha – filho de brâmane – é educado para este mister, dentro do rígido sistema hindu de castas. Ao conhecer profundamente as doutrinas religiosas que regem a política e a cultura de seu povo, o personagem de Hesse abandona a casa paterna para vagar pelo mundo, em busca da experiência viva, para ele, a única maneira de se alcançar a realização espiritual, ou seja, a experiência da identidade do indivíduo com o Absoluto, a Iluminação: encerra-se a primeira tríade com o capítulo de interlúdio por nome de O despertar. Nesta jornada em busca da causa última de todas as coisas, ele é acompanhado por seu amigo Govinda. Quanto à presença da tríade, Siddhartha decide tornar-se samana – ascetas que viviam nas montanhas e vales – quando se depara com três destes e comunica sua decisão, na sequência, a Govinda, ao pai e à mãe. O pai faz três perguntas ao protagonista, seguida de três declarações, concluindo o diálogo por tolerar a partida do filho. Tal qual Gautama, Siddhartha se junta aos samanas, renuncia aos confortos do mundo material e se dedica a austeridades, tais como sacrifícios corporais (privação de sono, de alimento, de deitar-se etc.) e longas meditações. Um único objetivo surgia diante de Sidarta; o objetivo de tornar-se vazio, vazio de sede, vazio de desejos, vazio de sonhos, vazio de alegria e de pesar. Exterminar-se distanciando-se de si mesmo; 481 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e cessar de ser um eu; encontrar sossego, após ter evacuado o coração; abrir-se ao milagre, com o pensamento desindividualizado – eis o que era o seu propósito. (HESSE, 2002, p. 28) O Buda histórico reconheceu a inutilidade das práticas ascéticas e tornou-se um iluminado pela prática do caminho do meio; igualmente, Siddhartha também não se satisfaz com tais práticas, porém ainda não descobre como alcançar a Iluminação; juntamente com Govinda, ele viaja em busca de Gautama... e o encontra. [...] Oxalá te lembres também de outra frase que me ouviste proferir; a saber, que me tornei desconfiado com relação a ensinamentos e aprendizagens, que me cansei deles e que minha fé em palavras pronunciadas por mestres diminuiu muito. Mas, apesar disso, meu querido [Govinda], vamo-nos [procurar o Buda]! (HESSE, 2002, p. 38) No diálogo que se segue entre Siddhartha e Gautama, embora aquele reconheça que o segundo tenha alcançado a Iluminação, afirma que os ensinamentos deste não são completos porque a experiência da realização espiritual seria algo tão pessoal que não se pode traduzir por palavras e seus efeitos podem ser diferentes em cada pessoa. Já Govinda, se satisfaz plenamente com o que encontra na Shanga – a comunidade religiosa que se formou em torno do Gautama – e decide ali ficar e viver como monge. Quanto a Siddhartha, este aponta a Gautama uma lacuna em seus ensinamentos: Mas, nessa doutrina [do Buda] há um único lugar em que tal unidade e lógica das coisas estejam interrompidas. Por uma minúscula lacuna penetra na unidade desse mundo um elemento estranho, novo, que antes não existiu, que não pode ser mostrado nem comprovado. Refiro-me à sua tese acerca da possibilidade de superarmos o mundo e alcançarmos a redenção. Ora, essa pequeníssima lacuna, essa brechazinha, basta para destruir e liquidar toda a unidade e eternidade da lei cósmica. (HESSE, 2002, p. 49) E ainda chega ao entendimento de que todas as doutrinas em algum momento tornam-se dispensáveis: 482 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e [...] E... eis o meu raciocínio, ó Augusto... ninguém chega à redenção mediante a doutrina! A pessoa alguma, ó Venerável, poderás comunicar e revelar por meio de palavras ou ensinamentos o que se deu contigo na hora da tua iluminação! [...] A numerosas pessoas indica o caminho para uma vida honesta, afastada do Mal. Mas há uma única coisa que não se acha nessa doutrina, por mais clara e venerada que ela seja. Não nos é dado saber o segredo daquela experiência que teve o próprio Augusto, só ele entre centenas de milhares de homens. São esses os pensamentos e as percepções que me vieram, quando ouvi a doutrina. Por isso, hei de prosseguir na minha peregrinação, não para ir à procura de outra doutrina melhor, já que sei muito bem que não há nenhuma, senão para separar-me de quaisquer doutrinas e mestres, a fim de que possa alcançar sozinho o meu destino ou então morrer. (HESSE, 2002, p. 50-51; grifo nosso) Nos três capítulos seguintes (Kamala, Entre os homens tolos e Sansara [sic]), Sidarta percorre os descaminhos dos prazeres sensórios. Se a realização espiritual não advém da doutrina, o personagem de Hesse deduz que é alcançável pela experiência, razão pela qual retorna à cidade, onde encontra a bela cortesã Kamala – que lhe ensina a arte de amar – e o rico comerciante Kamaswami – que o ensina a obter riquezas; Siddhartha tem agora prazeres sensórios, fortuna e poder. Novamente a tríade quando o futuro patrão do nosso herói pergunta-lhe o que sabe fazer e ele afirma saber pensar, esperar e jejuar. Assim, Siddartha transita da busca pela realização espiritual ao polo oposto da total imersão no mundo material. “O mundo apanhara-o nas suas malhas, o prazer, a cobiça, a inércia e, finalmente, também aquele vício que sempre se lhe afigurara o mais estúpido de todos: a avareza”. (HESSE, 2002, p. 95) E assim se passam 20 anos até ele compreender que tais deleites também não o levaram à compreensão de Atman (a alma universal). “Avante! Avante! Tu és eleito!” Essa voz íntima, ele ouvira-a no momento em que abandonara o lar paterno e escolhera a vida de samana e, novamente, ao separar-se dos samanas, a fim de dirigir-se ao Homem Sublime, e ainda quando dele se apartara, para tomar rumos incertos. Quanto tempo não decorrera, sem que a voz secreta ressoasse em seu íntimo, sem que ele galgasse altura alguma? Como se tornara plano e desinteressante o caminho que trilhava, 483 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e fazia muitos anos, sem perseguir nenhum objetivo grandioso, sem sede nem exaltação, saturado e, todavia, insaciável! Durante todos esses anos, inconscientemente se esforçara, ansiara por ser uma criatura igual às demais, igual àqueles todos e, apesar disso, levara uma vida muito mais triste, muito mais pobre do que eles, que tinham propósitos e preocupações diferentes. [...] Era esse um desígnio para o qual se precisasse viver? Não, nunca! Esse jogo chamava-se Sansara [sic], um brinquedo para criança, agradável talvez para quem o usasse uma vez, duas, dez vezes. Mas, para que recomeçá-lo sempre e sempre? Neste instante, Sidarta deu-se conta de que o jogo terminara, de que jamais poderia voltar a fazer parte dele. Um calafrio perpassou em seu corpo. Sentiu que algo acabava de morrer na sua alma. (HESSE, 2002, p. 100-101) A segunda tríade é seguida pelo interlúdio À beira do rio, que é o corolário das experiências passadas e preparação do personagem – e de nós, leitores – para uma nova etapa da história. Siddhartha se vai mais uma vez; desta feita, deixa para trás também um filho que estava por nascer sem que ele soubesse. Reencontra o barqueiro Vasudeva, com quem aprende a linguagem do rio no qual navegam; quando o encontrou pela primeira vez, a caminho da cidade, tomou o ancião por um néscio, pois ao dizer que não tinha como pagar a travessia do rio já realizada, o sábio respondeu que ele pagaria noutra oportunidade, pois tudo que vai, volta. A tríade final de capítulos (O balseiro, O filho e Om) desenvolve uma síntese decorrente das tensões entre o sensual e o espiritual. É junto ao córrego que o buscador alcança a perfeita compreensão do rio da vida, aprende a ajudar a todos com os quais se encontra em razão do mister de barqueiro e conquista a fusão com o Absoluto; instrui-se a sentir e a viver cada momento atentamente (em atenção plena). Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la; podemos vivê-la; podemos consentir em que ela nos norteie; podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la. Esse fato, já o vislumbrei às vezes na minha juventude. Foi ele que me afastou dos meus mestres. [...] Ora de unilateral é tudo quanto possamos apanhar pelo pensamento e exprimir pela palavra. [...] Sempre que o augusto Gotama [sic] 484 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e nas suas aulas nos falava do mundo, era preciso que o subdividisse em Sansara [sic] e Nirvana, em ilusão e verdade, em sofrimento e redenção. [...] Mas o próprio mundo, o ser que nos rodeia e existe no nosso íntimo, não é nunca unilateral. (HESSE, 2002, p. 165) Anos depois, reencontra Kamala à beira da morte, a qual lhe apresenta o filho que conceberam. A criança fica sob os cuidados de Siddhartha, mas algum tempo depois abandona este, tal qual o jovem brâmane outrora largara o próprio pai. Percebe então que a história de seu pai e a sua se repetem. “[...] Unicamente o meu consenso, a minha vontade, a minha compreensão carinhosa são necessários para que todas as coisas sejam boas, a ponto de somente me trazerem vantagens, sem nunca me prejudicarem. [...]” (HESSE, 2002, p. 167) Govinda, por seu turno, embora tenha acompanhado Gautama por toda a vida, não alcançou a Iluminação e ao reencontrar o protagonista da trama, anos mais tarde, a despeito disso, consegue reconhecer em Siddhartha o sorriso dos “seres perfeitos”. Ao amigo ele afirma ainda que: Todas as coisas alteram-se, logo que lhes pronunciamos o nome. Então se tornam levemente falsas e ridículas... [...] Aprovo inteiramente e com o maior prazer o fato de que aquilo que para uma pessoa é um tesouro e uma grande sabedoria representa para os demais homens rematada tolice. (HESSE, 2002, p. 168) E afirma que o mais importante a se fazer na vida é amar o mundo, pois: Analisar o mundo, explicá-lo, menosprezá-lo, talvez caiba aos grandes pensadores. Mas a mim me interessa exclusivamente que eu seja capaz de amar o mundo, de não sentir desprezo por ele, de não odiar nem a ele nem a mim, de contemplar a ele, a mim, a todas as criaturas com amor, admiração e reverência. (HESSE, 2002, p. 170) Siddhartha é arrematado pelo capítulo final (Govinda), no qual o personagem expõe a totalidade de seu pensamento com base nas experiências acumuladas ao longo do percurso do rio da vida. Embora iluminado, Siddhartha não decide criar um corpo de doutrina, nem sair 485 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e pregando suas experiências por aí: ele se contenta em ser um humilde barqueiro, ganhando o necessário apenas para a subsistência e sujeito aos sabores e dissabores de uma vida simples. É o rio que ensina a Siddhartha que o tempo é irreal e que a divisão é uma ilusão. 3 Siddhartha à luz do budismo Realizada a digressão sobre a história da religião budista e sobre a trama de Siddhartha de Hesse, é chegado o momento de averiguarmos o que é a filosofia budista e a pertinência ou não da crítica a esta contida neste livro de Hermann Hesse. De logo, lembremos as pertinentes palavras de Benton (1997, p. 13), para quem: O desafio para todos nós, que somos estudantes de tradições enraizadas em culturas em que não nascemos, é traçar um curso academicamente verdadeiro e sólido, que ao mesmo tempo nos permita “entrar” nessa nova cultura com consciência, sensibilidade, e respeito. Entrando com essas sensibilidades, nosso objetivo é emergir de nosso estudo verdadeiramente fundamentados em uma compreensão da nova cultura, bem como em uma compreensão mais profunda da nossa própria.2 Em Siddhartha, nossa entrada se dá singrando o rio: constata-se que Hesse empregou magistralmente o curso d’água não apenas como um divisor entre as experiências da mente e do espírito e entre as experiências do corpo e dos sentidos, mas também como um catalisador entre dois estilos de vida a princípio antagônicos, com as experiências da alma situando-se às plácidas margens que medeiam a vida (o caminho do meio). The challenge for all of us who are students of traditions rooted in cultures we were not born into is to chart a course that is academically truthful and sound, which at the same time allows us to “enter” that new culture with awareness, sensitivity, and respect. Entering with these sensibilities, our goal is to emerge from our study truly grounded in an understanding of the new culture, as well as with a deeper understanding of our own. Benton (1997, p. 13; tradução nossa) 2 486 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e De acordo com Gouveia (2016, p. 27): A filosofia budista, muito embora se comporte de forma similar [à filosofia ocidental] e se dedique a questões semelhantes – particularmente no que concerne à percepção dos fenômenos e de nós mesmos enquanto pessoas, a natureza do real e da realidade, a epistemologia, a linguagem etc. – tem um caráter eminentemente pragmático, i. e. não tem apenas um fim em si mesma, mas serve como um trampolim para a libertação; e, neste contexto, libertação significa a “remoção” de toda ignorância, que é a causa fundamental de todo o sofrimento. Um filósofo budista paradigmático se propõe a expor um sistema de pensamento que visa orientar os seus leitores – de uma maneira bastante prática e direta, ainda que intelectualmente bastante elaborada – sobre como se engajar na investigação de processos mentais e fenomenológicos e, partindo dessa imersão, transformar a própria mente. Constata-se que a filosofia budista desenvolve-se em um padrão de pensamento e de explicação diferente do que remonta aos gregos a partir do século VII antes de Cristo. E assim, explicar a filosofia budista é a doutrina do Buda em si, pois nesta religião o aperfeiçoamento do estudante se dá pela prática contínua dos postulados e uma das vias de aprendizado é a reflexão constante. Tanto é assim, que há escolas budistas místicas, mas também há as totalistas, fenomenológicas, niilistas, realistas, dentre outras. Logo, o budismo é também especulativo em essência e, consequentemente, filosófico. Entrementes, até pouco tempo atrás, pesquisadores ocidentais reputavam à Grécia a primazia da filosofia, sob a alegação de que se encontravam “[...] diante de um fenômeno tão novo que não somente não encontra uma correspondência precisa junto a esses povos [não helênicos], mas não há tampouco nada que lhe seja estreita e especificamente análogo” (REALE; ANTISERI, 2012, p. 11). Visão bairrista que, preocupada em demonstrar que a filosofia grega não deriva do Oriente, descura da capacidade dos orientais de especularem e assim elaborarem sua própria filosofia, ainda que com outras terminologia e metodologia. Bem diferente a perspectiva contemporânea, pois, ainda segundo Gouveia (2016, p. 43): “Todavia, particularmente nos últimos 40 anos, a forma de pensar sobre a filosofia asiática e budista vem se transformando; 487 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e [...]”. A rigor, grande parte do pensamento oriental não tem a mesma afinidade que a filosofia ocidental pela mera dimensão intelectual do estudo da realidade dos fenômenos, bem como não busca explicar o que é o Ser. E em Alan Watts e sua interpretação do Zen, o budismo ganhará ares de psicoterapia. Observe-se então que o livro Siddhartha é desprovido de pretensões especulativas, nem se destina a criticar acintosamente a religião budista; a bem da verdade, o autor nutria profunda admiração pelo Oriente e seus temas, o que se pode constatar em títulos posteriores dele, a exemplo de Viagem ao país da manhã, de 1932 – onde personagens de várias obras anteriores, inclusive Vasudeva, ressurgem numa narrativa que perpassa os limites do tempo e do espaço (HESSE, 2011) – e o monumental O jogo das contas de vidro, de 1943 –, uma síntese da história do espírito humano, permeada pelos conhecimentos do autor sobre música, arte, educação, e também da cultura chinesa; este livro encerra com o capítulo A encarnação hindu, no qual o personagem Dasa (um não-buscador; suposta encarnação anterior do protagonista Joseph Knecht) vivenciará as desventuras da vida material antes de se tornar discípulo de um reputado iogue. (HESSE, 2003) O homem médio pode captar o sentido de Siddhartha sem necessidade de profundas abstrações e se identificar com a jornada de despertar que leva o jovem futuro brâmane a se tornar um maduro barqueiro. Constata-se que o caminho de Siddhartha é pontilhado por tentativas e erros até o encontro consigo, tal qual o autor percorreu o mundo em sua busca espiritual, cansado dos credos ocidentais. Senão, vejamos a prevalência da cultura indiana na formação do pensamento e do caráter de Hesse, a despeito de uma admiração, ainda que à distância, do cristianismo: Em comparação com esse cristianismo tão estreito, com os seus versos um pouco adocicados, com os seus pastores e os seus sermões geralmente tão entediantes, o mundo da religião e da poesia indiana certamente era muito mais atraente. Ali nada me perseguia de perto, ali não dominava a sensação daqueles modestos púlpitos pintados de cinza nem as pietistas escolas dominicais: a minha fantasia podia andar solta, eu podia acolher em mim sem resistências as primeiras mensagens que me vinham do mundo indiano e cujos efeitos durariam por toda a vida. [...] 488 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Em anos distantes, esses pensamentos me induziam a olhar com uma certa inveja e reverência à Igreja Católica Romana, e o meu anseio de protestante à forma consolidada, à tradição, à epifania do espírito me ajuda ainda hoje a manter viva a minha veneração por essa suprema entidade cultural do Ocidente. No entanto, mesmo essa admirável Igreja Católica me parece digna de veneração apenas a uma certa distância: assim que eu me aproximo, ela também, como qualquer criação do homem, exala um intenso odor de sangue e de violência, de política e de baixeza. (HESSE, 2012, s. p.) Não esqueçamos que os pais de Hesse o destinaram à carreira eclesiástica, razão pela qual foi educado em quatro seminários, donde, ao contrário, saiu para exercer os ofícios de aprendiz de relojoeiro e auxiliar de livraria. A reação à vida religiosa o levaria a abrir caminho pela poesia e literatura. No princípio, sua produção foi taxada de “escapista”, uma fuga dos problemas da realidade, mas Hesse refutou tais afirmações com seu engajamento contra o nacionalismo ufanista e o militarismo alemães, o que lhe valeu o autoexílio na neutra Suíça (CARANDELL, 1984). Essa aversão ao cristianismo institucionalizado estará presente no pensamento de Nietzsche, que considera tal vertente religiosa a doença do homem moderno; a influência do filósofo se sentirá na obra de Hesse, particularmente no período entre 1919 e 1927 (PUNSLY, 2012, p. 18). Mas não pense que o budismo passará imune a críticas do filósofo alemão, apesar da admiração que nutria por Buda: ambas as profissões de fé lhe são decadentes, só que a oriental muito menos, uma vez que atua como uma higienização mental, a livrar o homem do ressentimento; porém o budismo ocuparia um patamar evolutivo que lhe garantia o lugar de última religião antes da abolição de todas pelo Übermensch, o “além-do-homem”, uma nova possibilidade de configuração humana diante do tipo vigente, que precisa ser superado (NIETZSCHE, 2007). “O erro do budismo, para Nietzsche, seria negar a vida, identificar a felicidade com o nada, a aniquilação ou nadificação do nibbana.” (ALVES, 2012, p. 241). Uma visão parcial do budismo, dado que o niilismo não é pedra de toque de todas as correntes. E ainda no campo da filosofia, Schopenhauer teve profunda influência sobre Hesse e também o instigou aos temas orientais, vez que 489 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e aquele pensador também foi posto nesta via de estudos, como registrou em uma carta datada de 1851: Em 1813, eu me preparei para a pós-graduação [Ph.D.] em Berlim, mas, deslocado pela guerra, me vi no outono na Turíngia. […] Posteriormente, passei o inverno em Weimar, onde desfrutei de uma estreita associação com Goethe […]. Ao mesmo tempo, o orientalista Friedrich Majer me apresentou, sem que o pedisse, a antiguidade indiana, e isso teve uma influência essencial sobre mim. (SCHOPENHAUER apud APP, 2006, p. 40-41)3 De novembro de 1813 a maio de 1814, Schopenhauer sentou-se aos pés de Majer em Weimar, o qual lhe apresentou o hinduísmo e o budismo. Nos seus verdes anos, Hesse tinha de Schopenhauer uma leitura não tão profunda nem favorável: se em 1895, Schopenhauer era-lhe muito pessimista, em 1900, não era bastante autêntico. Apenas quatro anos depois, quando surgiram suas preocupações com as religiões indianas, foi que o interesse em Schopenhauer foi aceso, mas só chegaria ao clímax pelo decréscimo gradual da influência de Nietzsche sobre ele após a redação de Demian, de 1919. (MILECK, 1978, p. 25-28). Refletindo o movimento psicanalítico e o novo orientalismo em voga nas primeiras décadas do século XX, alegam críticos que Siddhartha responde ao desencanto com os valores morais ocidentais (forjados sobre o substrato do cristianismo), bem como ao pessimismo (tão caro a Schopenhauer), o que levaria os jovens daquela porção do orbe à busca das obras de Hesse, em dois momentos bem pronunciados. O primeiro deles foi ao término da Primeira Guerra Mundial, quando a ruína dos países europeus contrastava com a exaltação da cultura oriental. E o segundo momento, quando do surgimento do movimento hippie, frente ao desencanto com a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e os “filhotes” desta, a exemplo da Guerra do Vietnã. In 1813 I prepared myself for [Ph.D.] promotion in Berlin, but displaced by the war I found myself in autumn in Thuringia. […] Subsequently I spent the winter in Weimar where I enjoyed close association with Goethe […]. At the same time, the orientalist Friedrich Majer introduced me, without solicitation, to Indian antiquity, and this had an essential influence on me. (SCHOPENHAUER apud APP, 2006, p. 40-41; tradução nossa). 3 490 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e No período entre guerras, o interesse ocidental pelo Budismo decresceu, voltando a florescer numa nova onda orientalista por volta das décadas de 50 e 60, pela via da contracultura americana: Jack Kerouak, Alan Watts, Timothy Leary são os “gurus” por excelência do “revival” budista. Nesta onda, o Sidarta de Hesse volta a ser editado, ganha diversas traduções e torna-se um best seller mundial. (SCHENKEL, 2013, p. 17). A princípio, quando lançado nos Estados Unidos, em 1951, este livro era impopular (HSU, 2016). Seus trabalhos se tornariam influentes por lá somente na década de 1960, marcando um passo importante na apresentação da filosofia oriental ao mundo ocidental e, não intencionalmente, Hesse ganhou aura de guru, para o que contribuiu seu exemplo de aplicação na vida pessoal dos princípios transmitidos em seus livros, aliado à conquista do prêmio Nobel de Literatura em 1946 e ao reconhecimento por personalidades como Thomas Mann, Stefan Zweig e Hugo Ball (CARANDELL, 1984). Com os temas recorrentes de desencanto social e religião oriental, o texto cativou a juventude, que naturalmente tende a protestar contra o peso da tradição; na escrita de Hesse, o despertar passa pelo percorrer o caminho; e através das vivências pessoais e de outros que encontra no trajeto o indivíduo chega à certeza de que os males advêm de más escolhas de um modo que não se iguala à transmissão das noções de “certo” e de “errado” de um mestre transmitir a seu discípulo. A respeito da fuga em busca de novas realidades, no contexto de Siddhartha, escreveu Malthaner (apud PUNSLY, 2012, p. 30): A auto-educação é o tema principal da maioria dos romances de Hesse, especialmente dos livros de sua juventude. A auto-educação tem sido há séculos um tema muito caro à literatura alemã e homens como Lutero, Goethe, Kant e muitos outros escritores e filósofos alemães foram os inspiradores da juventude alemã em seu anseio por independência.4 Self-education is the main theme of most the novels of Hesse, especially of the books of his youth. Self-education has been for centuries a very favorite theme in German literature and men like Luther, Goethe, Kant, and many other leading German writers and philosophers were the inspirers of German youth in their longing for independence. (MALTHANER apud PUNSLY, 2012, p. 30; tradução nossa) 4 491 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Só no próprio interior o buscador encontrará essa resposta. Isto, de fato, não contrasta com um dos pontos da doutrina budista, vez que em Anguttara Nikaya III, 65, temos as seguintes e esclarecedoras palavras atribuídas ao Bhagavad: Dessa forma, Kalamas, nesse caso não se deixem levar pelos relatos, pelas tradições, pelos rumores, por aquilo que está nas escrituras, pela razão, pela inferência, pela analogia, pela competência (ou confiabilidade) de alguém, por respeito por alguém, ou pelo pensamento, “Este contemplativo é o nosso mestre.” Quando vocês souberem por vocês mesmos que, “Essas qualidades são inábeis; essas qualidades são culpáveis; essas qualidades são passíveis de crítica pelos sábios; essas qualidades quando postas em prática conduzem ao mal e ao sofrimento” – então vocês devem abandoná-las. (BUDA, 2018). Com sua compreensão intuitiva da sabedoria, Siddhartha cria seu próprio método em busca da iluminação, individualista – que não se deve confundir com egoísta – e incorporador de questões pós-modernas sobre a transparência da linguagem e a subjetividade. Mas Hesse vai mais além, pois pela boca do ex-brâmane aprende-se que a sabedoria não é totalmente comunicável e transmissível: é preciso descobri-la no interior de si, após constatar a alternância entre a felicidade e o sofrimento que a instabilidade da vida apresenta a todos nós. Assim, o modo como Siddhartha atinge o nirvana se desvia da prática rigorosa das doutrinas budistas, não tendo correlação com os passos explicados nos textos budistas tradicionais, as denominadas seis perfeições: 1) Dana paramita – generosidade e doação; 2) Shila paramita – conduta apropriada, virtude; 3) Kshanti paramita – paciência; suportar dificuldades sem raiva ou irritação; 4) Virya paramita – esforço, energia, perseverança; 5) Dhyana paramita – algo maior que “concentração” (específico) e menor que “meditação” (geral); e 6) Prajna paramita – sabedoria, compreensão, insight. A busca presente em Siddhartha é uma busca universal, secular e que atinge a indivíduos do Oriente e do Ocidente, vez que: 492 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Imagina-se demasiadamente que a noção de um fim “além do bem e do mal” é de origem moderna. Ao contrário, ela se apresenta não somente nos textos hindus mas também islâmicos e cristãos, faz parte da diferenciação normal entre a vida ativa e a contemplativa: a virtude é essencial para a primeira, dispositiva somente para a segunda, cuja perfeição é precisamente o fim último do homem, isto é, a contemplação beatífica da Verdade. É uma idéia que é repetida muitas vezes nos textos budistas: aquilo de que o Homem Perfeito não é contaminado, não é somente o mal ou o vício, é também o bem e a virtude. Muitos textos o dizem em termos próprios: “não contaminado, seja pela virtude, seja pelo vício o eu rejeitado, pois nenhuma ação é doravante necessária aqui” (Sn. 790); “aquele que fugiu dos laços seja da virtude, seja do vício, que é sem mágoas, ao qual nenhuma poeira adere, aquele que é puro, é a ele que chamo um verdadeiro brâmane” (Dh. 412), isto é, um Arahant. (COOMARASWAMY, 1952, p. 57-58). Tecidas estas considerações sobre as lições que a obra sob comento apresenta, agora, ainda que sucintamente, analisemos os personagens do romance: 1) Siddhartha representa todos os indivíduos divididos entre a sabedoria e a ignorância: embora sedento por conhecimento, ainda se encanta momentaneamente com as honras e as posses materiais. 2) Kamala (em sânscrito, “a desejada”) e 3) Kamaswami (“o mestre dos desejos”), fiando-nos em Platão (2009), estão sob o domínio da parte concupiscente da alma humana, voltada para o prazer nos objetos sensíveis e que sente segurança apenas quando conta com o acúmulo de bens materiais e de poder. 4) O barqueiro vasudeva (mesmo nome do pai de Krishna: Suprema Personalidade de Deus, de acordo com os vedas os Vedas) é o ancião, o homem sábio, que conhece a causa primeira e o Absoluto. Sabe escutar sem emitir juízos de valor: as imagens dos Budas com grandes orelhas bem demonstram quanto a “arte” de ouvir é valorizada no Oriente. 5) E Govinda (“a parte minguante da lua”), chamado por Siddhartha de “a sombra”, representa aqueles que buscam 493 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e caminhos já percorridos por outros, que se deixam levar por terceiros (LUIS, 2015). Todos os personagens desta novela descrevem estados de ânimo vivenciados por Hesse e, obviamente, por qualquer um que ingressar na jornada da autodescoberta e na busca pela compreensão do sentido da vida. Para tanto, fundamental vencer a ignorância, pois é pela verdade que o “eu” poderá ser domado, pois somente “a verdade vos libertará!” (Jo 8, 32). Sobre suas crenças mais íntimas, o autor afirmou em carta: Não creio em nossa ciência, em nossa política, nem em nossa maneira de pensar, e não compartilho de nenhum dos ideais de nosso tempo, porém não careço de fé. Creio nas leis milenares da humanidade, e creio que sobreviverão a toda confusão de nossa época atual… Creio que, apesar de seu aparente absurdo, a vida tem um sentido. (HESSE apud LUIS, 2015, s. p.). E ainda: Não me foi concedido ser protestante nem católico, discípulo de Bach nem de Wagner. Par mim a vida e a História só adquirem pleno sentido e valor na multiplicidade com que Deus se manifesta inesgotavelmente em novas formas. E, assim sendo, eu amo e venero, muitas vezes com grande irritação de meus amigos, não só Buda e Jesus em seu templo, mas posso também amar e tentar compreender Spinoza ao lado de Kant, Görres ao lado de Nietzsche. E isto [...] porque sinto alegria na multiplicidade da unidade [...] (HESSE, 1975, p. 76) Enquanto alguns se entregam a doutrinas religiosas e as abraçam confortavelmente, ainda que não as compreendam amiúde (como Govinda), outros preferem a experiência prática, sem intermediários... e esta foi e ainda será a causa de vários conflitos. Logo, Siddhartha e seu amigo são os arquétipos universais dos dois tipos de buscadores das verdades últimas: um adota o meio como fim, enquanto o outro, não. Esse equívoco de Govinda, segundo o cânone budista, é repudiado pelo próprio Buda, que, teria afirmado, conforme Majjhima-Nikaya I (apud SILVA; HOMENKO, 1982, p. 30): 494 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Ó bhikkhus, esse ensinamento, que compreendeis de uma maneira tão pura e clara, se vos apegais a ele e o guardais como a um tesouro, então não compreendeis que o ensinamento é semelhante a uma jangada que é feita para um determinado fim, e não para ser continuamente carregada às costas. [...] A doutrina se assemelha à jangada; deve ser considerada não como um fim, mas como um meio; da mesma forma, a jangada é um meio para atravessar, mas não para se apegar. E uma rápida passagem pelos anais da cultura religiosa ocidental nos permite descobrir que: Temos uma analogia perfeita na frase de Santo Agostinho: “que ele não mais se sirva da Lei como meio de conseguir quando conseguiu” (De spir. et. Lit. 16) e aquela de Mestre Eckhart: “Atingida a outra [margem] não preciso mais da nau”; o mesmo autor diz também: “Olhai a alma divorciada do que quer que seja... não deixando mais traço nem de vício nem de virtude”. (COOMARASWAMY, 1952, p. 58). Surpreendentemente, ao que parece, ao longo da história, em alguns momentos, ocorreu uma leitura equivocada da mensagem do Buda, qual seja, de livre interpretação de sua doutrina, pois a rigor, este, nas horas finais de sua vida, segundo Digha Nikaya 16, Mahaparinibbana Sutta, “O Grande Discurso do Parinibbana”, teria dito: “Queridos amigos, meu corpo físico não estará aqui amanhã, mas meu corpo de ensinamentos (Dharmakaya) sempre estará com vocês. Considerem-no como o instrutor que nunca vai embora. Sejam como ilhas em si mesmos, e se refugiem no Darma. Usem o Darma como uma lanterna, como a sua ilha.” (apud HANH, 2001, p. 186). Não se percebe aí qualquer sinal de engessamento dogmático da atividade especulativa. Infelizmente, a história universal é prenhe de exemplos de deturpação do legado dos grandes líderes religiosos. Constata-se ab origine, no budismo, um ceticismo quando à capacidade das doutrinas apreenderem e transmitirem a natureza última do universo, o que foi potencializado com as profundas reflexões de Acharya 495 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Nagarjuna (c. 150 - 250 d.C.), para quem a Iluminação não se dá pelo nirvana (cessação de fenômenos), mas sim pela percepção da inexistência de uma realidade transcendental para onde a mente do indivíduo possa se transferir do mundo dos fenômenos, pelo que, através da lógica, demoliu a viabilidade de uma metafísica racional. Para o fundador da escola Madhyamaka, estar desperto é compreender que não há dualidade e não-dualidade, perceber o aqui e agora e a vacuidade deste campo onde nossas experiências individuais se desenvolvem (FERRARO, 2015). Descortina-se em Siddhartha um pessimismo metafísico, vez que os frutos do conhecimento não são necessariamente doces. Pela prática da razão, percebe-se que a vida é insatisfatória e não pode ser melhorada, e descortina-se como metodicamente pode-se vivenciá-la de modo a sofrer menos, pois: Além disso, no final de Siddhartha, quando Govinda encontra a Iluminação na face de Siddhartha, constata-se que O Perfeito era Siddhartha o tempo todo, e Govinda nunca teria percebido isso sem que Siddhartha houvesse se desviado do caminho em direção à decadência. Talvez se possa argumentar que, segundo Schopenhauer, Narciso, Goldmund5, Sidarta e Govinda “reconhecem que o fruto da vida é experiência, e não felicidade”. (PUNSLY, 2012, p. 33)6 Em Siddhartha, a maneira de bem viver apresentada por Hesse é semelhante à de Schopenhauer, qual seja, praticar a autoeducação pela experiência do mundo, todavia, diverge do filósofo por entender o vaguear pelos prazeres sensuais como parte válida do aprendizado. Logo, pelo acima exposto, percebe-se que a visão de Hesse para a solução das 5 Narciso e Goldmund são os personagens principais de livro homônimo escrito por Hermann Hesse, em 1930. Enquanto Narciso permanece isolado como professor no convento Mariabronn, na Alemanha, em uma vida de oração e meditação, Goldmund, seu discípulo favorito, decide sair e percorrer os caminhos do mundo. 6 Additionally, at the end of Siddhartha, when Govinda finds Enlightment in the face of the Siddhartha, it turns out the Perfect One was Siddhartha all along, and Govinda would never have accomplished this without Siddhartha straying from the path into decadence. Perhaps it can be argued, along the lines of Schopenhauer, Narcissus, Goldmund, Siddhartha and Govinda “recognize that the fruit of life is experience, and not happiness.” (PUNSLY, 2012, p. 33; tradução nossa) 496 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e inquietações existenciais humanas não é inovadora, porém, trata-se da visitação a pensadores do Ocidente e do Oriente e da releitura de suas ideias para um público jovem e sedento por entender e bem usufruir o que a vida tem a lhes oferecer. Hesse observou em Viagem ao país da manhã – uma síntese destes dois mundos e testemunho de sua ideia de uma unidade na filosofia oriental – que a Índia não é apenas uma localização geográfica, mas “o lar da juventude da alma”. É pertinente questionar se com o desaparecimento da geração hippie no século XXI, uma obra como Siddhartha ainda é relevante quanto à sua aplicabilidade prática. Em resposta, Ingo Cornils (2009) defende a conexão do pensamento de Hesse com a “mudança constante” típica da modernidade. Por outro lado, há quem o desaprove sob a afirmação de que nesse texto ocorre uma infiltração pelo pensamento oriental da compreensão ocidental da realidade (PASLICK, 1973), chegando mesmo ao ponto de se alegar que Siddhartha é um falso retrato do budismo permeado pelo individualismo ocidental. (BENTON, 1997) Não cremos que Siddhartha se encaixe no individualismo ocidental, tão tipicamente hedonista e estéril de vida espiritual, mas que na verdade é um místico, alguém que crê, pratica e estuda as leis que unem o homem à natureza (neste caso, o rio), numa experiência direta que põe termo à separação entre o que ama e o que é amado. Através das técnicas místicas, a vida se dá em estado de duração (o rio que está em todo lugar ao mesmo tempo). Graças à intuição mística adquirida em sua jornada, que complementaram a intuição filosófica, o protagonista passou a agir em perfeita harmonia com a vontade divina. Considerações finais Verifica-se que a interpretação do budismo realizada por Hesse em Siddhartha não é evasionista; alcançar a Iluminação não é certeza de felicidade no restrito entendimento cotidiano; é ir além; é alcançar a consciência de que a vida é insatisfatória e que a razão nos leva a vivê-la de maneira mais harmoniosa enquanto durarem os nossos dias, que breve ou não, serão atingidos pela doença e pela morte. 497 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O que vai diferir em relação ao budismo histórico é que em Hesse, esse e qualquer outro credo, ainda que sejam caminhos válidos, em determinado momento da vida podem se tornar dispensáveis, dado que não é fundamental professar uma religião para gozar dos benefícios da espiritualidade, “uma busca pessoal sobre questões existenciais como o sentido da vida, relações com a transcendência ou sagrado se estar, necessariamente, vinculada a uma orientação religiosa.” (FÁTIMA SILVA, 2016, p. 80). Inegável que as doutrinas de re-ligação podem tornar seus adeptos felizes, mas são caminhos que transmitem uma parte de realidade, pois esta não é plenamente transmissível por qualquer sistema religioso ou líder espiritual. Ainda assim, para ele: “A ideia de que somos todos apenas partes distintas da mesma eterna Unidade não implica que haja um só caminho, nem um caminho errado.” (HESSE, 1975, p. 76) O budismo de Hesse também não é hedonista (na acepção errônea e usual do termo), uma vez que a vivência dos prazeres sensórios não é estimulada (embora não seja dogmaticamente vedada), mas vista como uma etapa válida na busca por uma vida plena, pois, em seu entender, só percorrendo os caminhos é que se pode encontrar a melhor maneira de se viver. É assim que o herói dessa história descobre como banir todos os seus pensamentos anteriores e liberta-se do conflito entre a carne e o espírito. Este percurso é individual e resultante de uma experiência até certo ponto incomunicável e única, daí a incompletude que é doutrinar alguém, pois nem sempre o modo de viver que torna um sujeito pleno é satisfatório para outro. Então, para Hesse, a prática é superior à teoria e à mera abstração mental em torno da doutrina; pôr-se na estrada do mundo e ter a si mesmo por guia último é essencial para encontrar o sentido da vida. Em termos budistas, o primeiro dever do homem é realizar sua própria salvação a partir de si mesmo. Em Siddhartha, essa verdade tão buscada não é o logos ocidental, mas a fluidez da mente, que resulta de nossas vivências frente à aparente dualidade certo/errado, bem/mal, norma/transgressão que habita em cada um de nós, em proporções diferentes, ao longo da jornada. Reflexo da busca de Hesse pela perfeição no mundo do individualismo, Siddhartha apresentou o caminho da felicidade para quem busca 498 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e desesperadamente a cessação do sofrimento. Esta obra é uma versão romanceada do Übermensch nietzscheano, pois sua trajetória é de demolição de ídolos, autocompreensão pela vontade de poder, criação de novos valores e estabelecimento e aceitação de novas configurações, livre das correntes das concepções anteriores. Ao contrário da lógica dos tempos atuais – em que a cada dia surge uma nova lei para regular condutas que as normas sociais outrora conseguiam vedar –, a educação hesseana se dá pela não proibição. Fica patente que o maior perigo da ignorância é crer que somos “isto” ou “aquilo” e que um “eu” possa sobreviver ao longo do tempo e de sucessivas vidas. Siddhartha nos desvela que tudo o que vem a ser é mortal e que ao por termo ao porvir, não mais estaremos submetidos ao movimento, estando, como o rio, pleno, o mesmo em todo lugar, vez que o estado de Buda é aberto a todos. Em Siddhartha, seu protagonista homônimo, como vários outros peregrinos, vem fornecer instrumentos de “salvação” para as inquietas almas do Ocidente: para o barqueiro é possível a libertação neste mundo e desde agora de todos os sofrimentos mentais aos quais o homem está sujeito. 499 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALVES, Derley Menezes. Crítica budista de Nietzsche. In: Religare 9 (2), dez. 2012. Disponível em: http:// periodicos.ufpb.br/index.php/religare/ article/viewFile/15880/9091. Acesso em: 14 dez. 2015. APP, Urs. Schopenhauer’s Initial encounter with Indian thought. In: Schopenhauer Jahrbuch. n. 87. 2006. p. 35-76. Disponível em: https:// philpapers.org/rec/APPSIE. 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[ Volta ao Sumário ] 502 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e o neopaganismo ContempoRâneo poR meio da análise de eventos paRalelos do enContRo da nova ConsCiênCia em Campina gRande – pB Silvia Letice Nascimento de Araújo Genaro Camboim Lula Como referenciar este capítulo: ARAÚJO, Silvia Letice Nascimento; LULA, Genaro Camboim. O neopaganismo contemporâneo por meio da análise de eventos paralelos do encontro da Nova Consciência em Campina Grande – PB. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 496-517. Silvia Letice Nascimento de Araújo1 Genaro Camboim Lula 2 Introdução Em meio à discussão dos cientistas sociais da religião sobre como a religiosidade existe e é influenciada pela modernidade, a socióloga francesa, Danièlle Hervieu-Léger, em sua obra “O Peregrino e o Convertido” chega a conclusão (dentre várias outras) que a religião não estava a acabar ou diminuir (como pregava os entusiastas da teoria da secularização), mas sim, que as religiões hegemônicas, tal qual a Igreja Católica, estavam a perder fiéis em prol de um novo tipo de religiosidade que fosse mais flexível às necessidades do crente, de acordo com sua realidade social. A. Giddens também corrobora com a afirmação de Hervieu-Leger, incluindo as reflexões sobre o nascimento do movimento Nova Era, que para o autor, nasceu de profundas mudanças aceleradas na sociedade, e também de sua instabilidade e diversidade (GIDDENS, 2005, p. 443). A literatura sociológica aponta que o movimento Nova Era foi um fenômeno que marcou profundamente a sociedade Ocidental, iniciado em meados das décadas de 1960 e 1970, e seus efeitos são sentidos até hoje através das chamadas práticas “neo-esotéricas” (MAGNANI, 1999, p. 13). O Movimento Nova Era também originou eventos onde ocorrem os encontros dos atores sociais pertencentes ao mundo do neo-esoterismo, onde os mesmos realizam trocas que dinamizam e ressignificam as práticas esotéricas, que se adaptam a novas tendências sociais transcorridas pelo tempo; tais encontros, em sua origem, não são os mesmos que acontecem atualmente e novamente serão Autora e aluna do curso de Ciências da Religião da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN. 2 Possui graduação em Comunicação Social: Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (2000) e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (2004) e doutorado (2019) em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia PPGA da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.. Professor ajunto I da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN e ex- Diretor do Complexo Cultural da UERN. 1 504 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e modificados no futuro. Para mapear um evento neo-esotérico, num breve momento em meio às intensas transformações sociais, iniciamos um projeto de PIBIC encabeçados pelo Dr. Genaro Camboim Lula e com a participação da Dra. Dilaine Sampaio3 para mapear o Encontro da Nova Consciência em Campina Grande, Paraíba4. O ENC ocorre há 28 anos e oferece uma enorme gama de palestras, workshops, terapias e vivências variadas para aqueles interessados no mundo neo-esotérico, onde são reunidos os mais importantes líderes religiosos do campo (xamãs, sacerdotes, terapeutas holísticos, etc.) vindos de todo o Brasil, mas com maior destaque aos residentes da região Nordeste. Alguns trabalhos acadêmicos, como o da antropóloga Elisete Schwade5, já se propuseram anteriormente a fazer uma etnografia sobre esse evento; É neste sentido que procuramos através deste projeto revisitar e verificar se as informações trazidas pelos trabalhos anteriores sobre o ENC são ainda persistentes no ano de 2019. Este artigo pretende dar um enfoque mais preciso sobre as lacunas apresentadas em trabalhos anteriores a partir de um olhar sobre os eventos paralelos que compõem o ENC. Desta forma, escolhemos fazer uma etnografia do 12º Encontro Parahybano de Neopaganismo a fim de observar a atuação dos autodenominados bruxos para tentarmos como os organizadores e freqüentadores fazem com o ENC. Alguns autores apontam que há muitas dissidências sobre o neopaganismo ser parte do movimento New Age (DE LA TORRE, 2014, p. 36). Fizemos isso a partir da interpretação de dois palestrantes (um deles é o organizador e um dos mentores) do evento paralelo de neopaganismo e fazer a nossa pesquisa em cima de suas atuações dentro e fora do evento; procurando entender suas trajetórias e as ressignificações que trazem ao neopaganismo devido a elas. Para dar conta das propostas apresentadas para este artigo optamos por realizar uma etnografia do evento bem como seguir os passos des dois interlocutores em suas atividades virtuais. Assim sendo, começamos por apresentar a dinâmica do ENC na cidade de Campina Grande-PB e em particular os espaços onde Sá o Pesquisadora e docente da Universidade Federal da Paraíba, no curso de Ciências da Religião. 4 Anexo 1: Cartaz do Evento. 5 Artigo: Carnaval da Nova Consciência publicado na revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 31(1): 182-208, 2011. 3 505 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e circuito neo-esotérico (MAGNANI, 1999, p. 13) para, em seguida, nos concentramos na descrição do evento paralelo de neopaganismo e por fim, analisaremos os dois palestrantes do evento para nos ajudar a identificar a bruxaria tal qual foi apresentada durante o acontecimento, dentro do conceito de “agente nodal” (DE LA TORRE, 2014, p. 36). Da cidade Chegando em Campina Grande na noite de sexta feira, dia 01 de março, não consigo vislumbrar pela cidade qualquer indício do acontecimento do Encontro da Nova Consciência, ou até mesmo o MIEP e o Crescer. Para qualquer pessoa de fora, que assim como eu, entrasse na cidade naquele instante, só teria certeza de um evento: o Encontro da Consciência Cristã – ECC, o evento de características a abrigar um público pentecostal. Localizada no Parque do Povo, a extensão do local do evento do ECC representava uma boa distância percorrida pelo carro, no qual eu via todo o acontecimento pela janela. O Parque do Povo também é o local onde acontece a festa junina, que é apenas o maior evento da cidade e também é conhecido como “o maior São João do mundo”. No dia seguinte, que marcava o início oficial do evento, escuto no carro que me leva em direção ao Sesc centro (local onde ocorre o ENC) uma entrevista na rádio da cidade em que fala um dos organizadores do ENC, conhecido como Nildo Nascimento. Na entrevista, organizador aproveita par apresentar ao público ouvinte algumas das atividades ofertadas pelo ENC: a feira esotérica que ocorre no hall do SESC, a natureza das palestras, os tipos de terapias alternativas, as artes divinatórias e a programação noturna que é composta por shows de artistas e bandas do cenário alternativo paraibano. Depois que a divulgação acaba, presto atenção nas informações de meu orientador sobre onde ocorrem os múltiplos locais onde ocorrem (de maneira discreta, quase invisível) os eventos paralelos. Nada muito diferente do que Magnani descreve do circuito neo-esotérico do município de São Paulo (MAGNANI, 1999, p. 25). Os eventos paralelos embora estejam no folder da programação do ENC, são praticamente autônomos e se administram de forma independentee , por isso mesmo, estão espalhados pela cidade em teatros, escolas, 506 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e faculdades e são separados por múltiplos temas: Xamanismo, Neopaganismo, Ateísmo e etc.6 Assim como o circuito neo-esotérico paulista, a programação dos eventos paralelos em Campina Grande é destinada a divulgar as práticas, atrair clientes e promover a discussão de temas correlatos (MAGNANI, 1999, p. 40). Chegando no SESC Centro A característica discreta do ENC é também percebida na chegada ao Sesc centro (sede do ENC), percebo que do lado de fora não há nenhuma indicação do acontecimento interno, além de poucas pessoas vestidas em um estilo alternativo: roupas leves, tatuagens, cabelos ou muito longos ou curtos, e presença de pessoas de idades variadas. À entrada do Sesc avisto uma moça sentada ao chão vendendo bijuterias artesanais, caminhando um poço mais é possível ver a feira estotérica no térreo. Lá se encontram vendas de roupas e arte “indiana”: mantas, camisas, calças com estampas de mandalas ou de figuras de buda, krishna, etc. No mesmo ponto, também vende-se livros Hare Krishna, sobre meditação, e o mais popular, o Bhagavad Gita. Pode-se encontra também livros com temas que dão ênfase ao ocultismo, livros de auto ajuda dividem espaço com livros de autores universitários sobre história das religiões. Há na feira esotérica artigos para os consumidores que buscam um artesanato indígena, como os cocares da povos indígenas como os Pataxó e os Xucuru, cachimbos, vasos de barro, filtros de sonhos (indício de cultura indígena externa) disputam o espaço com a venda de plantas e de artesanato (caveiras, incensários, difusores, bijuterias, etc). Subindo ao primeiro andar, mesas dispostas indicavam a “recepção” onde se organizava o agendamento e o pagamento para as terapias alternativas, para as artes divinatórias e as oficinas. Os preços variavam entre 50 e 150 reais, tendo uma única sessão de SIR – Restruturação do Ser que custava 380 reais. Um senhor que frequenta o ENC já há 16 anos de evento, seu Araujo me fez uma fala longa sobre Programação completa no link https://sites.google.com/site/ongnovaconsciencia/programaao-geral. 6 507 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e assuntos diversos como o curso de terapia holística, sobre a sua identidade (“sou um pouco espírita, porém mais Yin do que Yang”), sobre defesa dos direitos dos animais contra a vaquejada, demonstrando a variedade de temas que todo ano são abordados no ENC. Assim, como o “seu Araújo”, os participantes e organizadores do evento paralelo apresentam a mesma característica de serem um agente nodal newager. Como tal, estas agentes nodais costuram várias religiões, práticas e tradições diferentes em sua trajetória de busca individual. Da radiestesia, ao estudo do taoísmo, das paraciências ao veganismo, do cristianismo à taromancia. Seu Araújo, assim como os personagens de que iremos tratar em seguida, traze em suas falas essa característica da pluralidade das práticas esotéricas que são ofertadas pelo ENC, sendo um exemplo do tipo de cliente que busca a demanda ofertada pelo ENC, que fazem uma “hibridização” de culturas por meio da rede neo- esotérica, criando um menú individualizado de conceitos e práticas da qual eles se servem (DE LA TORRE, 2014, p. 38). 12º ENCPBNP – Encontro Parahybano de Neopaganismo – Cine São José Nesse projeto de PIBIC, tínhamos inicialmente decidido mapear o máximo de eventos paralelos possíveis. Pretensão logo abandonada devido à impossibilidade de percorrer o ENC durante os quatro dias de carnaval. Tal tarefa tornou-se inviável devido a escassez de recursos para o projeto o que levou a uma redução Da quantidade de pesquisadores que o projeto de pesquisa conseguiu abrigar. Concordamos, com isso, que cada um de nós escolheria um evento paralelo para fazer a observação participante. Escolhi o de Neopaganismo por curiosidade e afinidade e espero através desta experiência demonstrar um vislumbre de como as práticas neopagãs se identificam. PALESTRA: A sombra como grande “iniciadora” Ainda no primeiro dia que chegamos (o sábado de carnaval), após o almoço, fui ao local do evento paralelo, o Cine São José onde haveria a primeira palestra sobre Neopaganismo. Ao entrar no local, um forte cheiro de incenso e uma música folk ao fundo dão as boas vindas ao 508 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e público. No palco há um altar feito acima de um pano preto, onde se encontra um caldeirão, cartas de tarot, recipiente com ervas e sal negro (que o palestrante ensina a fazer em workshop), tambor, caveira e uma vela preta no centro do caldeirão7. Há também um altar em frente ao palco, em frente às cadeiras. Esse altar está acima de uma apoio similar a uma coluna grega e porta um castiçal com três velas azuis, espelho, rosa vermelha e uma pequena escultura de um gato8. Ao me sentar, observo as interações entre as pessoas no lugar e o palestrante, Claudivam Barbosa, que estava sentado no limite entre o palco e as cadeiras conversando com um jovem rapaz que parecia muito animado em mostrar seu conhecimento. O público neste momento ainda tímido em número foi chegando aos poucos e no final já contava com o dobro de pessoas: 12 homens e 8 mulheres. A faixa etária das pessoas era de jovens adolescentes, universitários (maioria), sendo alguns de meia idade, mas que eram igualmente letrados com o curso superior. O palestrante tira um momento para ir até o altar central, onde escolhe algumas cartas de tarot e as dispõem ao redor do caldeirão. Claudivam dá início à sua palestra falando de como esse encontro aconteceu no início. Segundo ele, o encontro de neopaganismo ocorre há 12 anos no Nova Consciencia e o primeiro ocorreu com uma pequena reunião. Esse mesmo encontro, originou outros em mais dois Estados. A organização anterior era ele e mais quatro pessoas, nas quais como ele mesmo disse “seguiram os seus caminhos”. Atualmente, ele é o único organizador do evento. Entrando mais para o assunto do paganismo propriamente, Claudivam fala sobre o movimento pagão em como ele se originou historicamente. Ele ensina que antes do cristianismo, havia cultos a deuses e deusas diversos e que a manifestação da natureza também eram manifestações de divindades. O povo nômade cultuava a Terra para conseguir colheitas e caça. No paganismo de atualmente existem várias tradições que ele usa de exemplo: tradição helênica (grega) e nórdica fora uma delas. Na grega ele explica que os integrantes têm uma preocupação cívica, onde eles tentam adaptar os antigos ritos para os dias atuais 7 8 Anexo 2: Altar 1. Anexo 3: Altar 2. 509 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e (como todas as outras tradições). Ele chama isso de “ressignificação de tradições antigas”. Claudivam se diz parte da tradição Wanen, que cultua deuses nórdicos. Ele explica que a Wanen não é só uma tradição, mas sim um povo que vivia na antiga Germânia, antes de mitologicamente o deus Odin se tornar o rei dos deuses. Os deuses Wanen são ligados à fertilidade (onde há um culto natural e cíclico) e diferente dos povos posteriores, os Asen, que adotaram Odin como rei, para eles a deusa que tudo comanda é a Frayja (nome conhecido posteriormente como Freyja), só que ela é cultuada na Wanen pelo seu antigo nome de Mardoll. Depois de situar a plateia no contexto histórico da bruxaria e suas tradições, Claudivam adentra no assunto que nomeia o evento: a sombra. Ele pergunta para platéia o que eles acham que seria a sombra. Depois de um breve silêncio, uma moça responde que “a sombra é o que não queremos encarar em nós, mas é necessário para evoluir”. Claudivam aceita prontamente a resposta e explica que nosso lado consciente é apenas a ponta de um iceberg, como aponta o conceito junguiano, e abaixo dessa ponta há o que ele chamou de “explosão de sombra”. “A sombra é você mesmo. As pessoas negam a sombra” – complementa Claudivam, dizendo que na maioria dos caminhos iniciáticos fala-se muito em sombra. O palestrante explica que no Wanen, a sombra é celebrada num ritual chamado Ring. Para eles, a sombra tem o conhecimento de tudo, até de outras vidas. “Reconhecer a sombra é o primeiro passo para o equilíbrio” disse Claudivam, também afirmando que não existe tempo e espaço para ela. Ele conclui esse pensamento dizendo que vivemos um eterno presente, o resto é projeção. Tempo e espaço não é linear; por isso a sombra é capaz de trazer dons da vida passada. Claudivam passa a falar da deusa Hécate, que será cultuada no ritual posterior. Ele explica que essa não é uma deusa “Wanen”, mas ele diz ter um “carinho” por ela, pois a mesma o ajudou no início da sua jornada. Depois de explicar algumas atribuições da deusa (origem, aspectos), ele retoma o tema da sombra, dizendo que pessoas podem enlouquecer ou “sucumbir” à ela. “Você é luz e você é trevas. Trevas não é o mal, pois coisas germinam na escuridão da Terra. O mal é o desequilíbrio, é renegar o que há em você.” Depois ele faz uma recomendação de filme que fala em sombra: A Floresta Negra, de 1997, que conta uma versão da história de Branca de Neve e os Sete Anões. Ele explica que o espelho da Madrasta da Branca de Neve é a sombra dela mesma refletida. A platéia também aposta 510 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Cisne Negro como uma obra audiovisual que trata de sombra. Ele complementa falando que em Batman: O Cavaleiro das Trevas também é possível ver uma interação com sombra (Coringa e Batman). Ele retorna a discussão falando sobre o espelho na Wanen. O espelho é ligado a deusa Mardoll, pois é considerado a sua sombra. Também é utilizado na tradição como um portal de acesso às pessoas, servindo para curas, bençãos e ataques. O espelho negro é específico para a sombra e ele revela ter um espelho de obsidiana só para lidar com ela. A sombra no mito da caverna de Platão, segundo ele, é projetada de uma fonte que ninguém sabe qual é. Nesse momento, Claudivam para pra contar uma experiência pessoal de ataque através do Espelho. Ele emprestou um objeto a uma determinada pessoa, que o devolveu com um “presente”. Ao tocar o objeto, Claudivam sentiu que ele estava enfeitiçado. Ele prontamente agradeceu. Ao chegar em casa, foi até seu espelho e mandou o que lhe foi enviado de volta ao mandante. Ele conclui a experiência dizendo que trabalhar com sombra é acolhê-la. “Bruxaria é auto-conhecimento”, pois a sombra é tudo aquilo que fazemos quando ninguém vê. Por fim, ele passa a explicar o altar que está de frente ao palco. O espelho é para refletir o “ser sagrado” da pessoa, e também serve de portal. A rosa é um símbolo da Wanen, pois ela tem várias camadas e ajuda a conhecer a nossa essência. As velas azuis são ligadas a Mardoll e o gato é o animal guardião da tradição, e também vive entre os mundos. Claudivam explica que tem um culto um pouco fora da Wanen, mais particular, para a deusa Hécate. A tradição não o impede de cultuá-la. Ele também revela fazer parte de outra tradição que é mais fechada, chamada “Fellowship”, da qual ele explica que as pessoas têm mais dificuldades para entrar. A palestra é encerrada com ele nos convidando a subir no palco para iniciar o ritual. RITO: Hécate e a sombra – Aquela que conduz pelos caminhos Antes de iniciar o ritual, Claudivam começa a explicar sobre o altar do centro do palco. O caldeirão e a vela negra são símbolos da deusa Hécate. O tambor é “Lakota” (povo xamã da América do Norte) e o tarot é chamado de Tarot Mitológico (grego). Ele começa a explicar que a deusa Hécate é uma deusa do submundo, que vive entre os “caminhos” 511 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e e porta uma tocha para conduzir as almas e as pessoas vivas que necessitem de orientação. É conhecida como a deusa da Bruxaria e é uma deusa grega. O ritual então tem seu início, quando Claudivam nos pede para fazer um círculo e começa a tocar o tambor. Pede também para fecharmos os olhos, pois isso nos ajudaria a nos concentrar e entrar em sintonia, através da música. Depois que parou de tocar, ele pediu para nos sentarmos em círculo porque ia fazer uma meditação guiada. Quando todos estavam sentados e fecharam os olhos novamente (a seu pedido), ele reiniciou o toque do tambor, pedindo-nos para visualizar uma clareira em uma floresta, onde havia um caminho que se bifurcava em três direções. Após escolher o caminho, iríamos fazer uma breve caminhada e durante ela, as pessoas iam encontrar uma mulher (a deusa Hécate). Ela falou brevemente de sua aparência, e que ela teria um cão de três cabeças junto a ela. A deusa nos daria um objeto. Depois de pegar esse objeto (ele disse que algumas pessoas podem não receber nada), ela nos conduziria à clareira inicial, e lentamente voltaríamos ao nosso corpo. Depois, ele mandou as pessoas escolherem uma das cartas que estavam ao redor do caldeirão, mas devíamos devolver ao local inicial. Enquanto íamos escolhendo, ele tocava novamente o tambor. Quando todos já haviam acabado, ele ia perguntando quais as pessoas escolheram determinada carta e após as referidas pessoas levantarem as mãos, ele explicava o significado da carta, pois era uma mensagem da Deusa. Logo após, ele perguntou se seus conselhos oraculares haviam “batido”, recebendo muitas confirmação dos participantes. Por fim, ele agradeceu a todos e o evento foi dado como encerrado. VIVÊNCIA: Como despertar minha Deusa interior? No segundo dia de palestra no Cine São José, o público era praticamente o mesmo do dia anterior, mas só enquanto o número de pessoas estava “tímido”; coisa que mudou ao decorrer do evento. No palco, há novamente um altar com o mesmo caldeirão do dia anterior (pelo que ouvi da conversa entre a palestrante e Claudivam, ele o havia emprestado a ela). Outro ponto em comum é que haviam cartas de tarot dispostas ao redor do caldeirão; com a diferença de que não haviam apenas 512 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e algumas cartas escolhidas pela palestrante, mas sim, todas as cartas estavam cercando o caldeirão. Havia um porta-retrato com a imagem de uma Deusa que inicialmente não identifiquei, uma cuia de barro com ervas exalando um cheiro que vinha de um pequeno braseiro aceso, uma taça, incensário e um recipiente que lembrava um pequeno vidro de remédio. A cor do pano do qual o altar estava disposto acima era roxo. Á frente do altar, no mesmo altar do dia anterior, um castiçal com velas azuis, estatueta de gato, rosa vermelha, espelho etc. O toque de Claudivam e a deusa Mardoll se manteriam nesse encontro. Enquanto a palestrante organiza o altar do centro do palco, Claudivam interage com os convidados, perguntando quem estava participando do evento paralelo de neopaganismo pela primeira vez. A grande maioria levantou a mão. Ele se apresentou e retornou a falar que era o organizador “sobrevivente” do evento, pois deixava de “pular carnaval” para realizar o encontro, pois muitos o chamaram para ir a Recife aproveitar a festa. Ele se mantém como organizador desse evento, pois vê nessas palestras uma oportunidade de compartilhar e vivenciar seu conhecimento. Waleska finalmente estava pronta e começou a se apresentar. Disse que trabalhava com cura prânica, círculo de mulheres e sagrado feminino, com o foco no resgate e empoderamento deste. Ao ver alguns homens na plateia, Waleska disse que o homem também podia despertar o feminino dentro de si, pois são qualidades que existem em todos. Ela então nos chama para subir no palco e fazer a vivência. A palestrante nos convida a fazer um círculo em frente ao caldeirão e nos sentarmos. Ao fazermos isso ela começa a falar sobre o que seria o sagrado feminino, remontando à pré-história e a perseguição na Idade Média. Sua fala adentra num viés político que se perpetua até atualmente, com a mulher em posições inferiores aos homens na sociedade atual. Ela acredita que isso se deve a um provável que “eles” tem que a mulher tome consciência de sua força e poder, onde para isso, as relações femininas estão “envenenadas” por um ambiente que as “rivalizam” umas com as outras, do qual devia acabar, pois todas as mulheres eram irmãs. Depois dessa fala inicial, Waleska propõe que todos peguem uma carta que está no tarot do altar central. Enquanto as pessoas escolhiam essa carta (umas rápidas, outras andando ao redor do altar vagarosamente até escolher), ela toca um tambor. Quando todos haviam 513 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e escolhidos suas cartas, voltamos a nossos lugares e a palestrante pediu para cada um de nós falarmos brevemente sobre o sentimento que a carta passava. Não era um tarot comum, e sim o “Oráculo da Deusa”, onde cada carta tinha a imagem de uma deusa, com o seu nome e o nome de um sentimento atribuído a ela. Minha carta por exemplo, tinha a imagem de uma mulher dançando com asas de anjo acima do mar, uma cobra em forma de vento a circundava. Logo abaixo da imagem havia o nome dela – Eurínome – e abaixo de seu nome havia escrito “Êxtase”. Um por um, começamos a falar sobre a carta e o sentimento que ela passava, muitos se concentravam em dizer se tinha “algo haver” com seu momento atual na vida e nem todos, na verdade a maioria, não foram breves em suas falas. A participante que mais me chamou atenção foi uma senhora que chegou atrasada (pois muitos assim chegaram e puxaram uma carta durante a fala dos outros). A mulher era alcoólatra junto com todos os irmãos de sua família e ela estava nessa condição por muitos anos. Foi à Campina Grande fazer uma terapia de vidas passadas e graças a isso, estava sem beber por volta de um mês (todos aplaudiram quando ela o disse). Antes de ir ao evento, estava no Sesc em um evento político. Por não gostar do evento, procurou outro na programação e encontrou esse evento paralelo, no qual ela disse sentir ser o melhor lugar onde devia estar agora. Não obstante, sua carta era da Cura da deusa Pachamama, que era justamente o que ela dizia buscar naquele momento. Em algum momento, durante a fala dos participantes, Waleska recomendou que para manter o trabalho com o sagrado feminino em nossas casas, as mulheres deviam trabalhar com as energias do útero e os homens a do coração. A segunda vivência era em dupla. Após escolhermos a nossa parceria, Waleska explicou o exercício. Devíamos passar alguns minutos iniciais observando a pessoa a nossa frente e depois tentar dizer o que “sentiu” vindo de determinada pessoa. Suas impressões iniciais, se parecia triste, feliz, etc. Minha parceira era uma moça que estava do meu lado. Trocamos os olhares e depois contamos nossas impressões (enquanto trocamos olhares, Waleska novamente tocou seu tambor). Eu via nela uma pessoa forte, que gostava de proteger os seus com unhas e dentes e uma forte relação com a natureza. Ela via em mim uma pessoa cansada e cheia de decepções, que sofreu muito no passado, além 514 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e de ser bastante introspectiva. Depois de passarmos nossas impressões começamos a falar de nós mesmas. A moça também era de Natal, formada em antropologia pela UFRN. Ia a Recife para o carnaval, mas estava sem ânimo pois tinha terminado um relacionamento amoroso recentemente e então resolveu vir à Campina Grande, pois tinha família na cidade, e aproveitou para vir ao evento. Depois Waleska retomou a palestra, nos pedindo a voltar para nossos lugares e falou o resultado da vivência: o que víamos um no outro era um espelho nosso, um reflexo. Na terceira vivência, Waleska nos convidou a “conversar com o nosso útero”. No caso dos homens, eles imaginariam um à sua frente para a conversa. Todos deviam escolher uma posição confortável para ficar. Alguns perguntaram se era possível deitar e Waleska hesitou, pois tinha medo das pessoas dormirem, mas acabou aceitando no final. Entre algumas pessoas deitadas e outras sentadas, ela pediu-nos para fechar os olhos. Ela foi nos guiando ao relaxamento total de nosso corpo, e então, nós iríamos nos concentrar no útero e tentaríamos “conversar” com ele, entender o que se passava, se “ele” estava bem ou não. Depois desse momento, o útero foi ganhando um tamanho cada vez maior, até nos tomar por completo, para nos sentirmos protegidos e aquecidos. Lentamente, Waleska foi conduzindo o útero para voltar ao normal, e nos convocou a retornarmos à consciência. Enquanto o útero “nos tomava” por completo, ela tocou o tambor, cantando uma música em espanhol. Ao final, retornamos aos nossos lugares e Waleska perguntou sobre a experiência. Cada um falava enquanto o vidrinho de remédio passava, era um “floral da lua”, que com um conta-gotas calculava as oito gotas que Waleska nos recomendou a tomar, pois servia para equilíbrio da energia feminina. Houve muitos relatos de sensação de acolhimento. Um rapaz falou que teve um “medo inicial” desse contato com o útero mas depois se sentiu muito bem. Outras mulheres relataram uma cólica leve, e Waleska disse que isso significava purificação. Nesse momento, uma moça falou que lembrou de sua mãe. Ela notadamente tinha problemas de aceitação pela família por ser da comunidade LGBTQ+. Ela disse que no exercício, passou a entender que as brigas que sua mãe tinha com ela sobre isso era uma forma de tentar protegê-la das outras pessoas de sua família e do mundo. Ela chorava durante o relato, e Waleska disse que por isso para fora era também uma forma de retirar esse peso e se curar, enquanto a consolava. 515 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O evento foi concluído com o agradecimento de Waleska para com nós e algumas pessoas que se manifestaram para também agradecê-la. Claudivam chegou (ele havia se ausentado durante quase todo o evento) e disse que sentiu que “algo mudou” durante sua ausência no local. Uma moça chegou com uma máquina e pediu para que nos reuníssemos para tirar uma foto coletiva9, que finalizou o evento. Nas várias vezes que Waleska tocou o seu tambor, ela entoou cânticos; alguns estrangeiros, outros em português. Um deles falava assim: “Mãe eu te sinto sob os meus pés, o teu coração eu posso escutar. Mãe eu te sinto sob os meus pés, o teu coração eu posso escutar… Heya heya heya heya heya heya ho Heya heya heya heya heyaaaa ho...” O pós-evento Ao eleger esses dois palestrantes como personagens centrais da etnografia, busquei maiores informações após os eventos paralelos que eles ministraram. Pessoalmente, meu contato com o primeiro palestrante foi mais profundo. Ele contou-me sua trajetória: infância, quando se descobriu bruxo em contato com a natureza; adolescência e o tempo que passou convertido à Igreja Protestante; ida à Campina Grande para fazer sua faculdade e como se reencontrou no caminho do neopaganismo novamente, assim como sua busca para entrar na tradição Wanen. Após essa conversa, nos encontramos ocasionalmente pelo evento onde o vi como um dos terapeutas. Ao fim de tudo, passei a continuar a etnografia no meio virtual, seguindo sua rede social. Seu perfil é bastante intimista: suas fotos são selfies em maioria (demonstrando um pequeno número de amigos), há também registros de altares em datas de festivais pagãos (feitas por ele mesmo aparentemente) e publicações relacionadas à sua prática terapêutica (convites para workshops, notas 9 Anexo 4: Foto Coletiva do evento “Como despertar a minha Deusa interior?”. 516 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e sobre benefícios da terapia). Também há registros de sua ida à Europa, sobretudo na Alemanha (onde ele me explicou que nasceu a tradição Wanen). Como integrante também da tradição internacional Fellowship of Isis, foi provavelmente no exterior que ele se juntou. A segunda palestrante é quase o oposto do primeiro. Não pude ter muito contato pessoal justamente por ser uma pessoa muito requisitada. No evento, a vi andar muito com os integrantes do Xamanismo. Nunca cheguei a conversar com ela na rede social, mas seu perfil é bastante dinâmico. Suas fotos, na maioria das vezes, são registradas por outras pessoas, enquanto ela está em plena atividade ritualística, rodeada por outros fazendo o mesmo: mulheres em sua maioria. Descobri que tem seu próprio centro holístico, onde realiza a maior parte de suas práticas, que vão de rituais pagãos a práticas terapêuticas, como também cursos sobre esse conhecimento. O primeiro ponto que podemos salientar deste estudo é a releitura da tradição. O que Claudivam também chamou por “ressignificação”: o ato de pegar uma prática cultural antiga e atribuir novos significados para adaptá-la a nossa época, adicionando novos conceitos que antes nem sequer existiam. Para exemplificar podemos falar em como é utilizado o conceito de Sombra dentro da tradição Wanen, do qual o palestrante se baseou no conceito junguiano, além de trazer exemplos de filmes da cultura pop para ilustrar sua palestra. Outro ponto que vale salientar é o altar do rito, que levava um tarô de mitos gregos, um tambor da tribo indígena norte-americana Lakota, caldeirão, vela e incenso próprios do neopaganismo. Também temos na primeira palestra, durante o rito, uma leve tendência a “terapeutização da magia”, onde cada um falou sua experiência de acordo com a carta do tarô retirada. Essa “terapeutização” é vista com maior efeito na segunda palestra, e é provavelmente a maior identificação entre os dois personagens. Temos uma proposta de palestra que se transformou em vivências de trocas e confissões variadas, com o intuito de atingir a cura. Na vivência houve o toque do tambor e cânticos neoxamânicos, o uso de um oráculo com deusas de variados panteões e a aplicação de florais da lua, dentro de um evento com proposta neopagã. A terapia em ambas as palestras parece ser usada como um ponto de atração do público, aparentando ser uma tendência crescente no neopaganismo e também parte da 517 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e divulgação do trabalho dos dois facilitadores. Outro ponto interessante de análise é a pluralidade da trajetória dos personagens: o primeiro palestrante pertence a uma tradição nórdica, a outra tradição que leva o nome de uma deusa egípcia (Fellowship of Isis) e em sua palestra, ensinou sobre e fez um ritual para uma deusa grega; além de ser terapeuta holístico. Já a segunda é, antes de tudo, terapeuta holística, passando por práticas neoxamãs, se identifica em sua rede social como sacerdotisa da Deusa e realiza rituais da roda do ano wiccaniana (SOARES, 2007, p. 24). A releitura da tradição e a pluralidade no caminhar e nas práticas desses personagens reafirmam o conceito de agente nodal de Renée de la Torre em relação à prática newager: No se pretende reivindicar purezas originales ni esencializar culturas previas a la hibridación, ni tampoco caer en el relativismo cultural, sino más bien ubicar el problema de la hibridación en la redefinición de nuevas identidades que siendo hibridas son sobre todo ambivalentes. (DE LA TORRE, 2014, p. 37) Em tal análise, vemos que a “hibridização de culturas” é natural no caminhar desses agentes, e a partir disso novas identidades e práticas são reescritas. Esses agentes também, como líderes espirituais, acabam dando origem a outros novos agentes, num processo que De la Torre vai chamar de “polinização”: 3) su competencia de “polinizador” (Soares 2009) de culturas y religiones, que destaca que los buscadores espirituales en su andar no sólo recogen fragmentos culturales de distintas tradiciones para armar menús personalizados de creencias, sino que además son transmisores de significados que contribuyen a hibridar las culturas por donde van pasando. (DE LA TORRE, 2014, p. 38) O processo já citado de “releitura da tradição” também é explicado por De laTorre: Los agentes newagers van apropiándose de distintos elementos tomados de diferentes culturas y tradiciones con los que van armando sus narrativas hibridas. También van incorporando símbolos y rituales 518 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que son practicados en nuevos registros con usos culturales y sentidos funcionales distintos a los que les imprimían sus practicantes en los contextos tradicionales de donde fueron extraídos. Las prácticas y símbolos entonces quedan engarzadas en nuevas narrativas que son continuamente socializadas a nuevos usuarios en cursos, talleres, terapias, conferencias y nuevas ceremonias. (DE LA TORRE, 2014, p. 38) A partir dessa análise é possível concluir que os palestrantes do evento paralelo são atores sociais que representam o neopaganismo e a bruxaria nos dias atuais, como uma mescla de culturas que se apresentam de forma personalizada, para atender sua demanda, procurando sempre se ancorar no culto à natureza (SOARES, 2007, p. 10) e buscando nesses elementos naturais a compreensão e o equilíbrio do eu interior. Tais práticas passam por conceitos filosóficos, uso de oráculos, meditações e curas terapêuticas para se perpetuarem, tendo também forte presença nas redes sociais, para acompanhamento de conteúdos e divulgação de encontros. Considerações finais Através das nossas vivências, apenas no evento paralelo de neopaganismo, é presumível que a multiplicidade de práticas ritualísticas que nos é ofertadas. Nesse curto espaço dentro das práticas neopagãs podemos compreender porque o mesmo faz parte de um evento como o Encontro da Nova Conciência. O Encontro Parahybano de Neopaganismo é uma ramificação bastante plausível do encontro maior, demonstrando a pluralidade de coisas que o mesmo nos oferece. É claro que não pode falar por todo o evento, que conta com exposições sobre ateísmo, xamanismo, ufologia, camdomblé, política, direito dos animais, RPG, animes e etc; mas sua dinâmica de fusões culturais variadas, é em essência a mesma. Esta multiplicidade é o que permite ao neopaganismo fazer parte do Encontro da Nova Consciência e também, mesmo com opiniões contrárias (SOARES, 2007, p. 10), permite ao neopaganismo ser identificado como parte de um fenômeno da Nova Era da contemporaneidade. 519 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento/ Danièle HervieuLéger; tradução de João Batista Kreuch. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. GIDDENS, Anthony. Sociologia/ Anthony Giddens; tradução Sandra Regina Netz. – 4. ed. – Porto Alegre: Artmed, 2005. MAGNANI, José Guilherme C., 1944 – mystica Urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neoesotérico na cidade. – São Paulo: Studio Nobel, 1999. – (Coleção cidade aberta). 520 DE LA TORRE, Renée. Los Newagers: el efecto colibrí. Artífices de menús especializados, tejedores de circuitos en la red, y polinizadores de culturas híbridas. Revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 34(2): 36-64, 2014. SOARES, Danieli Siqueira. Rituais Contemporâneos e o Neopaganismo Brasileiro: O caso da Wicca. 2007. 135 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007. A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Anexo 1 – Cartaz do evento 521 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Anexo 2 – Altar 1 522 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Anexo 3 – Altar 2 523 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Anexo 4 – Foto coletiva do evento “como despertar minha deusa interior?” [ Volta ao Sumário ] 524 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e o papel da igReja CatóliCa na ConstRução de um disCuRso patRimonialista no BRasil: a primeira década do spHan Bruna valença mallorga Como referenciar este capítulo: MALLORGA, Bruna Valença. O papel da Igreja Católica na construção de um discurso patrimonialista no Brasil: a primeira década do SPHAN. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 518-532. Bruna Valença Mallorga1 Introdução O primeiro passo para compreender o intuito dessa investigação é analisarmos o que foi a Instituição Igreja Católica Apostólica Romana – ICAR2 – em território brasileiro. Apontando que a ICAR aqui trabalhada será tanto na esfera regular quanto na secular. Para isso traremos alguns episódios que demonstram a importância que essa instituição possuiu na consolidação desse território atualmente conhecido como Brasil, levando-se em consideração que a preservação patrimonial muito tem a dizer com a identidade forjada de uma nação (ANDERSON, 2008, p. 32; CANCLINI, 2015, p. 160; CHUVA,2017, p. 24; HALL, 2015, p. 31). Ainda é importante apontarmos a primeira década do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN – está compreendida entre os anos de 1937 e 1947. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo. Este artigo é resultado parcial da pesquisa de mestrado em desenvolvimento “O Patrimônio Congregado: a presença da Igreja Católica nas ações de preservação do IPHAN, em São Paulo (1937-2002)”, orientada pelo Prof. Dr. Fernando Atique e coorientada pela Prof.ª Dr.ª Lucília Santos Siqueira. A mestranda pertencente ao Grupo de Pesquisa Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica – CAPPH. Apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP – Nº Processo: 2017/02173-0. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7947088130535280. E-mail: brunamallorga@gmail.com 2 Podemos ver a utilização dessa sigla no trabalho de LUI, Janayna de Alencar. “Em nome de Deus”: um estudo sobre a implementação do ensino religioso nas escolas públicas de São Paulo. 2006. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Departamento de Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/88373/230688. pdf?sequence=1>, acesso em 13/11/2018. 1 526 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A ICAR e o relato de “apenas” alguns episódios de consolidação no território O primeiro episódio que abordaremos tratou-se sobre a chegada dos portugueses no continente americano. Kenneth P. Serbin apontou dois dados significativos sobre este episódio: a) representantes da instituição religiosa chegaram no novo território a ser explorado juntamente com representante administrativo nas caravelas; b) nomeou – importante fazermos um parênteses para salientar que nomear também significa dar identidade a algo (MOREIRA, p. 2916) – o território e em período posterior fundou porções territoriais, como está evidente no excerto a seguir: A Igreja legitimou o empreendimento colonial no Brasil dando nomes cristãos ao território. Conheceu-se primeiro o Brasil como Terra de Santa Cruz, e o símbolo da fé e da conquista militar estampou as velas das embarcações portuguesas. Tomé de Souza governador do Brasil, chegou a Salvador, Bahia, com o padre Manuel de Nóbrega e mais cinco jesuítas em 1549. Entraram na baía de Todos os Santos, assim batizada em honra ao importante feriado católico. Em 1554 os jesuítas fundaram a povoação de São Paulo, hoje a maior cidade do país. Nomes como esses são abundantes no Brasil. (SERBIN, 2008, p.44) Ainda sobre o período consagrado pela historiografia como Colonial, Luiz Mott nos ofereceu alguns apontamentos de como era o cotidiano colonial e como a presença católica estava impregnada nas práticas diárias: No Brasil colonial, seguindo o costume português, desde o despertar o cristão se via rodeado de lembranças do Reino dos Céus. Na parede contígua à cama, havia sempre algum símbolo visível da fé cristã: um quadrinho ou caixilho com gravura do santo anjo da guarda ou do santo onomástico; uma pequena concha com água benta; o rosário dependurado na própria cabeceira da cama. Antes de levantar-se da cama, da esteira ou da rede, todo cristão devia fazer imediatamente o sinal da cruz completo, recitando a jaculatória: “Pelo sinal da santa cruz, livrai-nos Deus nosso Senhor, dos nossos 527 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e inimigos. Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém”. Os mais devotos, ajoelhados no chão, recitavam quando menos o bê-a-bá do devocionário popular: a ave-maria, o pai-nosso, o credo e a salve-rainha. Orações que via de regra todos sabiam de cor, inclusive os suspeitos ou convencidos de heterodoxias atinentes à Santa Inquisição, pois ao serem inquiridos nos cárceres secretos do Santo Ofício, um dos primeiros “exames” a que se submetiam todos os presidiários era recitar as citadas orações, acrescidas dos dez mandamentos da Lei de Deus e dos cinco preceitos da Lei da Igreja. A quase totalidade dos colonos do Brasil presos pela Inquisição de Lisboa desincumbiram-se perfeitamente de tal prova, resvalando contudo, alguns poucos, sobretudo nos mandamentos da Lei da Igreja. (MOTT, 1997, p. 164-5) Nesse excerto notamos que embora não fosse a totalidade da população católica, e nem isso era esperado, a maioria significativa sabia os ritos básicos para evitar alguns problemas inquisitoriais, sendo assim vivendo sem levantar suspeita. A informação acerca dos ritos fez-se interesse pensando na perspectiva de que a Igreja possuía grande poder sobre a vida dessas pessoas. E podemos afirmar que a ICAR não foi detentora apenas de grande influência na vida da população brasileira, mas também na morte de muitos brasileiros do período consagrado com Brasil-Império. João José Reis apresentou em sua obra A morte é uma festa como a igreja também influenciou a vida sobrenatural: Extraordinário acontecimento teve lugar na Bahia do século passado, uma revolta contra um cemitério. O episódio, que ficou conhecido como Cemiterada, ocorreu em 25 de outubro de 1936. No dia seguinte entraria em vigor uma lei proibindo o tradicional costume de enterros nas igrejas e concedendo a uma companhia privada o monopólio dos enterros em Salvador por trinta anos. A Cemiterada começou com uma manifestação de protesto convocada pelas irmandades e ordens terceiras de Salvador, organizações católicas leigas que, entre outras funções, cuidavam dos funerais de seus membros. Naquele dia, a cidade acordou com o barulho dos sinos de muitas igrejas. Os mesmos sinos usados na convocação para missas, procissões, festas religiosas e funerais eram agora dobrados para chamar ao protesto coletivo. A reunião fora marcada para acontecer no terreiro de Jesus, no adro da igreja da Ordem Terceira 528 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e de São Domingos. De suas sedes marcharam para ali centenas de membros de irmandades. Na praça do terreiro estavam, além da igreja de São Domingos, as igrejas do antigo Colégio dos Jesuítas (atual Catedral) e a de São Pedro dos Clérigos; a uma pequena distância, podia-se ver a igreja do convento de São Francisco e a seu lado e da Ordem Terceira de São Francisco. Do terreiro, por sobre os telhados dos sobrados, era possível ver as torres de muitas outras igrejas, inclusive a Sé, que abrigavam dezenas de irmandades. Com seus muitos templos, o lugar era uma espécie de território sagrado da Bahia. (REIS, 1991, p.13) João José Reis além do acontecimento da Cemiterada também trouxe informações de como a Igreja, na sua esfera edificada, poderia ter significados muito aquém das questões religiosas, que aliás estava muito além de apenas comportar eventos de caráter sagrado. Reis afirmou que: [...] as igrejas brasileiras serviam de salas de aula, de recinto eleitoral, de auditório para tribunais de júri e discussões políticas. Ali se celebravam os momentos maiores do ciclo da vida – batismo, casamento e morte. Ali, no interior daquelas altivas construções coloniais, os mortos estavam integrados à dinâmica da vida (REIS, 1991, p. 172) A ICAR, de modo geral, não apenas na perspectiva de suas edificações, foi financiada por quase 400 anos por meio do Padroado Régio no Brasil, tal cenário possibilitou que uma relação visceral ocorresse entre os dois membros por esse longo período (BOXER, 2002; DOLHNIKOFF, 2006, p. 48; NEVES,2011; SOUZA,2008, p. 129). Tal simbiose foi rompida, porém não de forma abrupta, com a chegada do período republicano nos findos do século XIX (SOUZA, 2007, p. 12), e embora o Período Republicano tenha construído novos artefatos de identificação, ainda assim não ocorreu total ruptura com os símbolos identitários do período que o antecedeu (JURT, 2012, p. 478). Tanto é verdade que a ICAR permaneceu ainda como fator forte de identificação, inclusive Getúlio Vargas enxergou nesta instituição uma aliada para permanência no poder (CHUVA, 2017, p. 234; SANTOS, 2013, p. 74-75). Retornando ao período entre a separação das duas instituições: Estado e ICAR, a relação umbilical sofreu uma cisão com o Decreto 529 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 119-A de 1980, composto por sete artigos que legislava no intuito de “Prohibe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em materia religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias” (BRASIL, 1890). O decreto em sua integra trouxe diversas mudanças para a relação entre o Estado brasileiro e a ICAR (BRASIL, 1890). Acerca deste Decreto Mauro Ferreira de Souza, em sua dissertação, A Igreja e o Estado: uma análise da separação da Igreja Católica do Estado brasileiro na Constituição de 1891, defendeu que O Decreto do Governo Provisório, de certa forma foi uma preparação do que viria ser confirmado na Constituição no ano seguinte. Mesmo que o Decreto separou a Igreja do Estado, não realizou plenamente essa ruptura, sustentando segundo conta por mais um ano, os seminários católicos e os clérigos professores, bem como nada dizendo a respeito dos patrimônios da Igreja que se confundiam com o patrimônio público (SOUZA, 2007, p. 163). As medidas patrimonialistas Após abordarmos a ICAR na expectativa de demonstrar sua participação na constituição daquilo que pode ser considerado Brasil, trataremos de questões patrimonialistas. Este preâmbulo ancorado em uma breve apresentação da ICAR teve o intuito de pensarmos sua importância na construção de uma identidade nacional. Embora seja um tema batido é necessário passarmos mesmo que de modo an passant sobre a criação e consolidação do órgão. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN3 – no ano de 2017 O atualmente denominado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) já teve denominações diferentes como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e Diretoria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), mudanças em decorrência da esfera administrativa. Informação disponível em: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. In: ______. (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPa- 3 530 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e comemorou seu octogésimo aniversário. E devemos pensar o que esta instituição quase centenária consolidou como identidade brasileira por meio do patrimônio cultural? Este órgão foi concebido por intermédio das adaptações realizadas por Rodrigo Melo Franco de Andrade no Anteprojeto escrito por Mário de Andrade (CAVALCANTI, 1999, 186) que o elaborou a pedido do Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema (FREITAS, 1999, p.78) Em 1936, de modo experimental, o SPHAN foi criado (BRASIL, 1980, p.13-14). No ano seguinte foi o órgão foi oficializado por meio de uma lei e ainda contou com um decreto que organizava suas atividades.4 Importante mencionarmos, de acordo com Sonia Rabelo, que este decreto “[...] foi examinado e aprovado, em primeira votação, pelo Congresso Nacional. No entanto, antes de ser novamente apreciado, aquela casa parlamentar foi fechada. [...] o Presidente da República editou a norma sob a forma de decreto-lei”(RABELO,2009,p.15). Embora o Congresso Nacional estivesse fechado mesmo assim Getúlio Vargas, presidente da República no período em que o decreto-lei foi sancionado, podia expedir decretos-lei, de acordo com a Constituição que entrara em vigor vinte dias antes da decretação da medida legal acerca do patrimônio (BRASIL, 1937b). Logo percebemos que o Presidente da República estava apto a sancionar o decreto-lei. Importante destacarmos, assim como Márcia Chuva defendeu, que “o Sphan foi uma peça no conjunto de atos políticos, implementados especialmente a partir de 1937, pelos quais uma gama de tradições foi inventada, identificando, recorrentemente, Estado e nação, e construindo uma “memória nacional” (CHUVA, 2017, p. 28). trimonioCultural/detalhes/55/instituto-do-patrimonio-historico-e-artistico-nacional-iphan-1970-1979-e-1994>, acesso em: 30/08/2016. 4 O SPHAN foi oficializado por meio da lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937. BRASIL. Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937. Dá nova organização ao ministério da educação e saúde pública. Artigo 46. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/ Lei_n_378_de_13_de_janeiro_de_1937.pdf>, acesso em: 23/10/2018.; e o decreto-lei que o regulamentou foi o de nº25, de 30 de novembro de 1937. BRASIL. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0025. htm>, acesso em: 13/09/2018. 531 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Mediante esta afirmação de que o órgão preservacionista foi auxiliando na composição de uma identidade nacional é necessário entender o que se escolher para ser o símbolo desta identificação. A participação da ICAR nas medidas de preservação do SPHAN Autores que são referências no estudo sobre a preservação de bens culturais no Brasil apontam a ICAR como uma peça significativa dentro do mosaico da identidade nacional construída pelo SPHAN (CHUVA, 2017; FONSECA, 2005; MARINS, 2008; MARINS, 2016; MICELI, 2001; RUBINO, 1992; SCIFONI,2012). Entendendo peça significativa como aquela que teve um número expressivo de bens tombados pelo Serviço, mas que também teve um papel indireto, e por vezes, direto na preservação dos bens. Silvana Rubino fez um levantamento e constatou que entre os anos de 1938-1967 foram tombados 687 bens, separando estes dados por períodos anuais ou quinquenais, fato é que por meio destes dados, jogando luz ao período que analisamos (1937-1947) conseguimos aproximar de nosso recorte e ao olharmos entre os anos de 1938-1945, dados utilizados como referência pela autora, foram tombados 386 bens, ou seja, nos 8 primeiros anos foram tombados mais da metade do fora tombado em 3 décadas de trabalho de preservação do patrimônio (RUBINO, 1992, p. 118 – quadro nº1 ). Oportuno acentuar que estas três primeiras décadas conhecida como fase heroica, período este que além de sempre fazer alusão ao tempo em Rodrigo M. F. de Andrade esteve à frente do SPHAN, entre os anos de 1937 e 1967, também fora considerado heroico devido às dificuldades enfrentadas para implantação e consolidação de medidas preservacionistas do órgão (CHUVA, 2017, p. 28; CAVALCANTI, 1999, p.187). Retornando aos números apresentados por Rubino, no levantamento apresentado para fase heroica, dos 687 bens tombados, 49.8% é considerado arquitetura religiosa (RUBINO, 1992, p. 130 – quadro nº 5 – tipos de bens). Mediante as informações levantadas por Rubino 532 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e e apontadas por outros estudiosos do tema, o SPHAN, pelo menos no seu início, deu grande valor aos bens religiosos (MARINS, 2008, p. 148; CHUVA, 2017. p. 234) edificados e a reboque à arquitetura, já que 82.6% do que foi tombado no período considerado heroico foi arquitetura, em grande medida, como já mencionado, a religiosa, porém no rol da preservação ao estava presente a urbana, a ligada ao Estado, a rural e a militar (RUBINO, 1992, p. 130 – quadro nº 5 – tipos de bens). Muitas vezes encontrar informações acerca apenas do período analisado não é uma tarefa fácil, portanto recortamos informações de períodos anteriores ou posteriores ao de nosso interesse para preencher as lacunas. Lorraine Oliveira Nunez, que realizou seu mestrado em preservação do patrimônio cultural no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN –, ao analisar a questão patrimonialista no Estado do Espírito Santo, Nunez afirmou que Entre 1940 e 1965, na primeira fase com Carloni à frente das ações do Iphan no Espírito Santo, as escolhas seguiram uma tendência nacional, buscando-se, através da seleção de bens, construir o universo simbólico do patrimônio cultural nacional. Ao longo desses 25 anos foram tombados apenas quatro edifícios, todos exemplares da arquitetura luso-brasileira do período colonial, sendo um de arquitetura civil e três de arquitetura religiosa. [...]. Os bens imóveis também foram privilegiados em relação aos móveis, que continuavam relegados à proteção da igreja. (NUNEZ, 2016, p. 203) Percebemos pelo excerto que a tendência nacional era o tombamento de arquitetura reforçada pela de caráter religioso enfatizado no período colonial, assim como já tínhamos percebido pelos dados apresentados por Silvana Rubino. Além do Estado do Espírito Santo, o de São Paulo também ajudou a reforçar estas preferências como apontado por Garcez Marins de que o catolicismo teve papel central na construção da identidade patrimonial brasileira e o SPHAN teve como referência o tombamento de edificações de gabarito religioso (MARINS, 2008, p. 145, 148-150). Para o Estado de São Paulo Marins reforçou que: Nos anos do SPHAN sob o Estado Novo, em que Mário de Andrade esteve a ele ligado por meio do escritório paulista, o órgão tombou 533 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 17 bens no Estado de São Paulo. [...]Nesse grupo, constituem exceções a Casa do Trem de Santos, um edifício de uso militar para guarda de armamentos e munições erguido provavelmente no primeiro quartel do século XVIII, o Forte de São Tiago, que ajudava a defender a barra entre Bertioga e a ilha de Santo Amaro (Guarujá) e o Sítio de Santo Antônio, cujo tombamento atingiu a já aludida sede e sua capela anexa. Todos os demais são edifícios religiosos, replicando em São Paulo o padrão que o SPHAN aplicou para outros estados. (MARINS, 2008, p. 148) É importante mencionar que a ICAR teve um papel significativo dentro do órgão nacional de preservação e não apenas ancorada pelo número de preservação de suas edificações. Apontamos ainda que dentro do SPHAN tivemos membros religiosos atuando como corpo técnico da instituição, no período de analisamos podemos mencionar pelo menos dois: Dom Clemente Maria da Silva Nigra e Cônego Raimundo Otávio Trindade (CHUVA, 2017, p.436; RIBEIRO, 2013, p.134-135). Importante salientar que ambos personagens contribuíram de maneira assídua na Revista do Patrimônio (SILVA, 2010, p. 105 – Quadro 8 – Trajetória dos autores mais assíduos da Revista do Patrimônio), este publicação foi um relevante meio de disseminação de informações referente as discussões voltadas à área patrimonialista (CAVALCANTI, 1999, p. 188). E além de ter religiosos atuando como técnicos, a ICAR chegou a indicar pessoas para trabalharem no SPHAN, como ocorreu com Paulo Thedim Barreto, que colaborou já no início do órgão, atuando inclusive como corpo técnico (BRASIL, 1958, f. 6; CAVALCANTI, 1999, p.186; CHUVA, 2017, 451). Embora enxergamos na ICAR uma instituição com privilégios e certa preponderância dentro do SPHAN, inclusive “A Igreja foi também a grande beneficiária das obras de restauração empreendidas pelo Sphan, na maioria absoluta das vezes financiadas pelo próprio poder público” (CHUVA, 2017, p. 234). É necessário também apontar que o órgão preservacionista também obteve alguns benefícios com esta parceria: É importante registrar que a relação do Sphan com esses intelectuais não era apenas intelectual. Por meio dela, o órgão construía uma aliança estratégica com a igreja católica, uma vez que era fundamental o apoio dessa instituição para conseguir cumprir a 534 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e tarefa do “patrimônio”. Não foram raros os embates entre clérigos da igreja e o Serviço. Esses defendendo o tombamento de um monumento e aqueles defendendo sua autonomia para reformá-lo, ampliá-lo ou demoli-lo. Desse modo, a intervenção de colaboradores do Serviço junto a outros eclesiásticos era imprescindível. É significativo, quando se pensa nessa relação, que o único texto da Revista do Patrimônio que teve o século XX como “recorte histórico” seja justamente a transcrição da circular do arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, solicitando a colaboração da “igreja” com as atividades do Sphan (RIBEIRO, 2013, p. 134-135). Como caso concreto desta intervenção podemos citar o processo de tombamento 370-T-DPHAN-47 referente à casa-grande do Sítio Morrinhos , edifício localizado no Estado de São Paulo, Dom Clemente Maria da Silva Nigra contribuir neste processo em duas frentes: como corpo técnico e também nas intermediações com os proprietários do imóvel, que eram beneditinos assim como ele (MAYUMI, 2005, p. 264-267). Considerações Percebemos que a ICAR foi uma peça fundamental na construção do patrimônio cultural brasileiro. E isto ocorreu devido a junção de vários fatores: a) a instituição religiosa era a proprietária de um alto número de bens considerados representantes da identidade brasileira; b) provavelmente este alto número de bens selecionados diz respeito ao grande período em que a ICAR esteve ligada ao Estado brasileiro; c) religiosos trabalhando como técnicos no SPHAN; d) a ICAR indicando funcionário ao órgão. Situações demonstradas ao longo do texto e que evidenciaram a importância desta instituição na criação e consolidação do órgão preservacionista. E auxiliando dar feição à identidade patrimonial brasileira. 535 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ANDERSON, Benedict. Introdução. IN: ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 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Pedro Luiz Câmara Dantas1 Introdução No Catolicismo Romano, as aparições da Virgem são fenômenos muito antigos, existindo alguns relatos que demonstram a existência de contatos diretos entre Maria e inúmeras pessoas desde tempos remotos. No entanto, esses acontecimentos são sujeitos a questionamentos acerca de sua veracidade, envolvendo altos clérigos da Igreja, teólogos especialistas em aparições e os videntes. Muitas das narrativas em torno das aparições marianas permaneceram afastadas do reconhecimento e da oficialidade concedidas pela Igreja Católica, sendo jamais tidas como verdadeiras nem recebendo o status de oficiais, uma vez que a mesma Igreja considera que uma aparição verídica é um tipo de revelação de caráter privado, sendo diferente de uma revelação divina. Sobre isso, Magnus Lundberg afirmou: From the official Roman Catholic perspective, a true apparition is a type of private revelation. [...]Divine revelation is already complete, perfected in Christ. [...] One of the differences between the divine and private revelations is that the later is not considered a necessary matter of Faith; Catholics are not requested to believe in private apparitions, even if they are authorized by the church (LUNDBERG, 2017, p. 17).2 Foi em meio a este contexto mundial de manifestações do sagrado que emergiram as narrativas acerca das aparições de Nossa Senhora do Mestrando em História e Espaços pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7129727215897777. E-mail: pluizcd@gmail.com. 2 Na perspectiva católica romana oficial, uma verdadeira aparição é um tipo de revelação privada. [...] A revelação divina já está completa, aperfeiçoada em Cristo. [...] Uma das diferenças entre as revelações divinas e privadas é que esta última não é considerada uma questão necessária da Fé; os Católicos não são solicitados a acreditarem em aparições privadas, mesmo que sejam autorizados pela igreja LUNDBERG, 2017, p. 17). 1 541 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Carmo, ocorridas no povoado espanhol de El Palmar de Troya a partir do dia 30 de março de 1968. Os acontecimentos que se sucederam ao advento dessas aparições resultaram no surgimento de uma nova ordem religiosa desautorizada pelo Vaticano (os Carmelitas da Santa Face), que posteriormente se separou da Igreja Católica Apostólica Romana e se tornou uma nova Igreja independente seu próprio papa, doutrina e liturgia. A Igreja Palmariana A história da Igreja Católica Apostólica e Palmariana começou com as aparições da Virgem do Carmo registradas no povoado de El Palmar de Troya, interior da Província de Sevilha na Espanha. No dia 30 de março de 1968, quatro meninas da localidade, Ana García, Josefa, Rafaela e Ana Aguillera, afirmaram haver visto uma bela mulher sobre um pequeno arbusto (lentisco) no campo de La Alcaparrosa, que fica a 1 km de distância do Palmar. A história rapidamente se espalhou por todo o povoado e para outras cidades da Andaluzia, mobilizando grandes multidões que passaram a se dirigir ao terreno para rezarem o rosário à espera de algum sinal da presença da Virgem. Devido a esse fluxo de peregrinos, o grande campo passou a ser chamado de Lugar das Aparições. Sobre esta primeira aparição, Garrido Vázquez (2004, p. 102) fez a seguinte descrição: Vimos una cara de mujer muy guapa, con ojos negros y bonitos. Al principio pensamos que era un ahorcado, o un toro con cuernos verdes, pero luego vimos que era la cara de la Señora, muy redonda y sonrojada, con una cosa verde alrededor de ella y vestida con un manto marrón. Nos sonreía. Era la Virgen (GARRIDO VÁZQUEZ, 2004, p. 102).3 Vimos um rosto de mulher muito bonita, com belos olhos negros. A princípio pensamos que era um homem enforcado, ou um touro com chifres verdes, mas depois vimos que era o rosto da Senhora, muito redondo e corado, com uma coisa verde ao seu redor e vestida com um manto marrom. Ele sorriu para nós. Era a Virgem (GARRIDO VÁZQUEZ, 2004, p. 102). 3 542 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Foi em meio a esse cenário que começaram a surgir outras pessoas que também se diziam videntes, retirando das quatro meninas pioneiras o protagonismo das visões. Assim, meses mais tarde, Clemente Domínguez y Gómez (1946-2005), um jovem de 23 anos que era funcionário de uma empresa de Sevilha, visitou o lugar, passando a ir até lá com mais frequência na companhia de seu amigo Manuel Alonso Corral (1934-2011). Esses dois personagens tiveram papel central na criação da Ordem religiosa que seria a precursora da Igreja Palmariana. Primeiramente, Clemente, que a partir do mês de setembro de 1969 passou a afirmar que também tinha visões e entrava em estado de êxtase durante elas. Poucos anos mais tarde, dizendo estar em diálogo com Jesus e vários santos católicos, recebeu deles a missão de espalhar pelo mundo a devoção à imagem do rosto de Cristo do Sudário de Turim, conhecida também como Santa Face. Noutra dessas visões, a Virgem Maria conferiu ao vidente a missão de fundar uma nova ordem religiosa que seria junção de todas as ordens existentes na Igreja e a guardiã da tradição. Dessa forma, por meio desta revelação divina que ele afirmou receber, Clemente fundou a Ordem dos Carmelitas da Santa Face, nome derivado da própria devoção à imagem do rosto de Cristo, no dia 23 de dezembro de 1975.4 Se Clemente, à época como o mais importante vidente do Palmar e fundador da nova Ordem religiosa, passou a exercer o papel de líder entre os adeptos do seu grupo, Manuel Alonso foi designado a uma série de funções administrativas, se tornando a segunda pessoa mais importante dentro da Ordem.5 O movimento religioso do Palmar de Troya se inseriu numa forma de vivência da fé que apareceu no Catolicismo Romano a partir do início do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), e que se solidificou e se acentuou após sua conclusão: o Tradicionalismo Católico. Os chamados católicos tradicionalistas, entre outras questões, reivindicam a continuidade de uma série de pontos doutrinários que sofreram alterações A data de fundação da Ordem dos Carmelitas da Santa face está no Capítulo LXX do Catecismo Palmariano de Grau Superior. 5 Após a morte de Clemente (Papa Gregório XVII do Palmar) em 2005, Manuel Alonso se tornou seu sucessor no papado adotando o nome de Pedro II. 4 543 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e durante o concílio, sendo o aspecto ritualístico, o mais visível sinal de sua presença dentro da Igreja, pois muitos grupos permaneceram fazendo uso da chamada Missa Tridentina, celebrada em latim. Com o crescimento do número de seguidores da congregação e dada a ausência de sacerdotes que a representassem, sabendo da passagem do arcebispo tradicionalista vietnamita Pierre Martin Ngô Đình Th฀c (1897-1984) pelo Palmar de Troya, Clemente e Manuel Alonso se mobilizaram para solicitar a este arcebispo que os concedesse a ordenação sacerdotal. No dia 01 de janeiro de 1976, atendendo ao pedido dos palmarianos, Clemente Domínguez e Manuel Alonso, junto a mais três religiosos da Ordem, foram ordenados padres da Igreja Católica segundo o Rito Tridentino. Dez dias depois, a 11 de janeiro, o mesmo arcebispo Th฀c os elevou ao bispado em uma cerimônia de sagração celebrada no altar do Lugar das Aparições. As ordenações logo foram reportadas às autoridades eclesiásticas da região e o arcebispo Th฀c, junto com Clemente, Manuel Alonso e os demais ordenados, foram oficialmente excomungados da Igreja Católica Apostólica Romana por decreto do então núncio papal na Espanha. Em maio do mesmo ano, em missão no País Basco, Clemente sofreu um grave acidente automobilístico que o deixou completamente cego. Mas ele, mesmo nesta condição, continuou à frente do seu movimento, presidindo os ritos e ordenando mais padres e bispos. Devido à perda de seus olhos e suas posteriores visões celestiais, o fundador da Ordem dos Carmelitas da Santa Face foi apelidado de vidente cego. Quanto a este acidente, a documentação produzida pela Igreja Palmariana diz o seguinte: El 29 de mayo de 1976, en uno de sus incansables viajes apostólicos, el Padre Clemente Domínguez perdió sus dos ojos en un accidente automovilístico, lo cual fue para él de inimaginable sufrimiento. No obstante, como ciego, continuó con la misma intensidad apostólica por España, otras naciones de Europa y de América, proclamando en sus sermones la Verdadera Fe, la Tradición y la Santa Moral, defendiendo enérgicamente al Papa San Pablo VI, combatido por progresistas y tradicionalistas, y denunciando principalmente las herejías y corrupciones propagadas por cardenales y obispos desde 544 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e el Vaticano y distintas diócesis (MENSAJES SOBRE LA SANTA FAZ, 2018, p. 5).6 Em 6 de agosto de 1978, a morte do Papa Paulo VI (1897-1978), acontecida naquele mesmo dia, estava sendo noticiada em todo o mundo. Clemente estava numa viagem apostólica à capital da Colômbia tentando conseguir mais membros para a sua Ordem religiosa e angariar fundos. Rapidamente, ao tomar conhecimento da notícia, o fundador dos Carmelitas da Santa Face caiu em êxtase, afirmando receber outra mensagem divina através de uma visão. Nela, o próprio Jesus Cristo o coroava papa na presença dos apóstolos Pedro e Paulo. De volta a Sevilha em 9 de agosto, o agora Papa Gregório XVII, nome que ele adotou durante a visão acontecida em Bogotá, afirmou que a Sé de Roma havia sido misticamente transferida para El Palmar de Troya e que a verdadeira Igreja Católica e Apostólica já não era mais Romana, mas sim, Palmariana, em referência à localidade das aparições. Sobre isso, o Catecismo Palmariano de Grau Superior afirma: 4. A Igreja Palmariana é a única e autêntica Igreja Cristã, nome de que vem de Cristo, seu Divino Fundador. 5. No dia 6 de agosto de 1978, depois da morte do Papa São Paulo VI, Nosso Senhor Jesus Cristo, acompanhado dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, elegeu e coroou ao novo Papa, Sua Santidade Gregório XVII. Desde esse momento, a igreja romana deixou de ser a verdadeira igreja (CATECISMO PALMARIANO DE GRAU SUPERIOR, 2003, p. 47). Com a crença na mudança da Sé Papal para essa nova localidade, a Igreja Católica Apostólica Romana, que não deixou de existir por causa disso, passou a ser considerada uma seita herética pelos palmarianos. Em 29 de maio de 1976, em uma de suas incansáveis viagens apostólicas, o Padre Clemente Domínguez perdeu seus dois olhos em um acidente automobilístico, o qual foi para ele de inimaginável sofrimento. Não obstante, como cego, continuou com a mesma intensidade apostólica pela Espanha, outras nações da Europa e da América, proclamando em seus sermões a Verdadeira Fé, a Tradição e a Santa Moral, defendendo energicamente o Papa São Paulo VI, combatido por progressistas e tradicionalistas, e denunciando principalmente as heresias e corrupções propagadas por cardeais e bispos do Vaticano e distintas dioceses (MENSAGENS SOBRE A SANTA FACE, 2018, p. 5). 6 545 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Isso criou um Vaticano alternativo no povoado do Palmar de Troya, já que, para os seguidores do Papa Gregório XVII, o papado de Roma continuava a existir em heresia. Clemente foi coroado em Sevilha no dia 15 de agosto, onde recebeu as insígnias papais das mãos de seus bispos. Como sinal de obediência e lealdade, o novo papa também foi reverenciado por seu colégio episcopal, pelas monjas e demais fiéis membros da Ordem dos Carmelitas da Santa Face presentes na cerimônia. A criação do Vaticano Alternativo Quando Clemente valeu-se de outra de suas visões para declarar-se como legítimo papa católico, subverteu a lógica de muitos grupos tradicionalistas que preferiram manter a doutrina e a liturgia tradicionais em comunhão com o Bispo de Roma. Assim, mesmo se colocando como verdadeiro Pontífice Máximo, instituiu uma nova forma de crença com acréscimos doutrinários extra-canônicos que se distanciaram do Catolicismo Romano e mantiveram uma estética balizada por elementos diretamente extraídos das crenças marianas da Andaluzia. Somando-se a isso, ainda se observa que sua Igreja Palmariana difundiu, a partir de 1978 um sistema teológico bastante elaborado que tem raízes no catolicismo romano tradicionalista e nas devoções populares oriundas da cultura da Andaluzia. Sobre estes fatores, na página dezoito do Extrato Atualizado dos Documentos Pontifícios de Sua Santidade o Papa Gregório XVII está o Nono Documento papal que trata da total ruptura da Igreja Palmariana com a Igreja de Roma. Sobre isso, lê-se o seguinte: Nos, declaramos como Doctrina Infalible que, la Iglesia fundada por Nuestro Señor Jesucristo, Una, Santa, Católica y Apostólica, radica en esta Sede Apostólica del Palmar de Troya, de la que Nos, por la infinita misericordia de Dios, somos la Cabeza Visible. Nos, declaramos como Doctrina Infalible, que sólo hay una única verdadera Iglesia; y ésta se cumple en la Santa Sede del Palmar de Troya (EXTRACTO DE LOS DOCUMENTOS PONTIFICIOS, 2002, p. 18).7 Nós declaramos, como doutrina infalível, que a Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, Una, Santa, Católica e Apostólica, radica nesta Sede Apostólica do Palmar de Troya, 7 546 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Observando a narrativa presente neste fragmento documental, percebe-se que a Igreja Palmariana, através da pessoa de seu fundador, apropria-se de um estilo de escrita muito comum em decretos, bulas e outros documentos papais católicos, especialmente ao iniciar os períodos com nós, ao invés de eu. Esse tipo de referência na primeira pessoa do plural serve para mostrar que a figura do papa, mesmo no caso palmariano, transcende a individualidade daquele que ocupa o cargo e se manifesta como um conjunto de agentes que operam por meio dele. A construção de espaço sagrado que aqui é apresentada se torna perceptível não apenas por meio desses elementos textuais, mas de forma geral, como característica do propósito que esta organização religiosa quer mostrar como um de seus pilares de sustentação mais importantes: a reivindicação da legítima sucessão apostólica por meio de seu colégio episcopal e a sucessão do papado Católico Romano através do próprio Clemente. Assim, a Igreja Palmariana fez um duplo processo de afastamento em relação à Igreja Católica Apostólica Romana, pois tomou seu fundador como verdadeiro líder desta última e transferiu sua sede para outro lugar, que é o Palmar. A perspectiva político-religiosa do Santoral Palmariano A Igreja Católica Palmariana realizou, desde o momento de sua fundação formal em 6 de agosto de 1978, uma série de canonizações que elevaram aos seus altares personagens históricos, particularmente de origem espanhola. Dentro da análise documental do Extrato dos Documentos Pontifícios de Gregório XVII, noutra sessão que trata de algumas das canonizações realizadas por este pontífice alternativo, o nome do ex-ditador espanhol Francisco Franco Bahamonde (1892-1975), aparece listado entre os santos do Palmar como invicto Caudilho da paz, conforme mostrado na seguinte citação: da qual Nós, pela infinita misericórdia de Deus, somos a Cabeça Visível. Nós declaramos como Doutrina Infalível que só há uma única verdadeira Igreja; e esta se cumpre na Santa Sé do Palmar de Troya (EXTRACTO DE LOS DOCUMENTOS PONTIFICIOS, 2002, p. 18). 547 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e San Francisco Franco, fue el invicto Caudillo de la guerra contra el comunismo, y también fue el Caudillo de la paz. Durante su carismática Jefatura de Estado restableció el sagrado respeto a la Iglesia Católica, convirtiéndola en religión oficial y única del estado y de la patria (EXTRACTO DE LOS DOCUMENTOS PONTIFICIOS, 2002, p. 37).8 Observando este fragmento documental retirado do já referido Extrato dos Documentos Pontifícios do fundador da Igreja Palmariana, percebe-se que esta compilação de decretos pretende ser um guia prático para a compreensão e o conhecimento desse mesmo tipo de documentação nele contida, bem como um guia dinâmico da biografia de seus santos. Assim, nesse caso, o objetivo deste documento está centrado nas engrenagens da pesquisa histórica em forma de hagiografia, ou seja, de uma história biográfica sagrada moldada a partir do fornecimento de uma série de fontes, tomadas como obras históricas, e como estas apresentam uma melhor imagem desses personagens. Dentro do livro, dois importantes alicerces fornecem dados que certamente são indispensáveis para qualquer pesquisador que faça buscas sobre estes santos: os dados biográficos contidos nas narrativas da vida e morte deles, e o discurso visivelmente político que se soma aos seus dados. O Extrato dos Documentos Pontifícios ainda apresenta exemplos retirados das supostas experiências de vida dos próprios santos em seu campo de trabalho, mostrando detalhadamente como interpretações de questões pessoais importantes podem ser aplicadas nessa mesma análise documental, sendo pressupostos de santidade para eles. Seguindo essa linha de raciocínio, num trabalho que trate da construção do espaço sagrado da Igreja Palmariana, esses fatores também implicam observar uma teia de relações entre os discursos e os projetos políticos visivelmente expostos nos textos oficiais dessa organização. São Francisco Franco foi o invicto Caudilho da guerra contra o comunismo, e também foi o Caudilho da Paz. Durante sua carismática Chefia de Estado, restabeleceu o Santo Crucifixo em todos os centros oficiais. Restabeleceu o sagrado respeito à Igreja Católica, convertendo-a em religião única do estado e da pátria (EXTRACTO DE LOS DOCUMENTOS PONTIFICIOS, 2002, p. 37). 8 548 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A simpatia dos palmarianos pelo regime franquista, a ponto de canonizarem o próprio Franco e colocarem sua estátua9 na fachada de sua basílica, é mais uma amostra de como eles imaginaram aquilo que depois chamariam de Império Hispano-Palmariano10. Este estado militar idealizado teria o Papa Clemente como chefe e Caudilho, e dominaria os cinco continentes. Assim, diante das narrativas acerca do santoral palmariano, nota-se que esses fatores político-religiosos podem ser aplicados no olhar que se deve ter sobre o projeto político da Igreja Palmariana e como estes surtiram efeito na localidade onde está sua sede mundial, mas sobretudo, na mentalidade de seus seguidores. As atribuições dadas a maria e José na doutrina Palmariana Outro fator que ainda pode ser considerado neste trabalho é o dos novos significados dados às figuras de Maria e de José na doutrina da Igreja do Palmar de Troya. A estes dois santos católicos, que exerceram papéis centrais na narrativa da vida do próprio Cristo e da Igreja, se adicionaram mais atribuições extra-canônicas que os divinizaram e os elevaram à um patamar muito superior ao dos demais santos, quase que os tornando divindades de caráter secundário, num tipo de nova perspectiva trinitária em que Maria e José passam a formar uma Trindade similar à do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No Capítulo XVI do No mês de julho de 2015 a estátua de Franco foi removida da fachada da Basílica do Palmar, sendo substituída pela estátua de São Fernando III, Rei de Leão e Castela. Informação extraída da notícia do jornal UtreraWeb de 03/08/2015. Disponível em: <https:// www.utreraweb.com/noticias_de_utrera/5562/La_basilica_de_El_Palmar_de_Troya_ retira_la_escultura_del_general_Franco_y_la_sustituye_por_San_Fernando/> (acesso em 10/08/2018). 10 O Sacro Império Hispânico Palmariano é um estado teocrático e militar idealizado pelo Papa Gregório XVII. Ele acreditava que o mundo viveria uma Terceira Guerra, e que depois desta, os sobreviventes se refugiariam na Catedral Basílica do Palmar, que permaneceria intacta. Todo o planeta falaria espanhol e os bispos palmarianos seriam reis dos países. O papa seria o imperador e caudilho de todo o mundo. Mesmo após a morte de Gregório XVII em 2005, os seus sucessores mantiveram a crença na concretização deste império no futuro. 9 549 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Catecismo Palmariano de Grau Superior, intitulado A Santíssima Virgem Maria se lê o seguinte: 9. A Divina Maria, além do estado natural glorioso que possui sempre em sua Alma e em seus corpos, teve também, durante a maior parte de sua vida na terra, estado passível em sua Alma e seu Corpo acidental, a fim de poder sofrer por nós. Seu Corpo essencial jamais teve estado passível. 10. No Céu, a Alma Divina de Maria exerce as funções superiores beatíficas para com seu corpo essencial e as funções inferiores beatíficas para com seu Corpo acidental. [...]12. Maria supera em santidade a todos os Anjos e Santos juntos (CATECISMO PALMARIANO DE GRAU SUPERIOR, 2003, p. 28). Observando esse fragmento documental, percebe-se que há uma série de atributos dados à Virgem que a colocam em uma condição de divindade, muito próxima de Cristo. O Papa Gregório XVII, logo depois de sua autoproclamação, elaborou uma série de novos dogmas marianos, muitos dos quais, a Igreja Católica Romana historicamente discutiu se poderiam ou não serem aprovados, dada a grande exaltação que atribuem a Maria. Na doutrina palmariana, a Virgem é considerada co-Redentora, co-Reparadora e mediadora no plano da Salvação, sendo inúmeras vezes chamada de Divina Maria nos textos que a ela se referem. Outro fator que visivelmente apresenta sua divinização por parte da Igreja do Palmar é o da crença em sua presença real no sacramento da Eucaristia. Assim, sabendo que a doutrina da Igreja Palmariana é complexa, e está carregada de referências históricas e bíblicas para justificar seus argumentos, no documento denominado Tratado de la Misa, aparecem várias atribuições doutrinárias específicas da Virgem, entre as quais está a preexistência de sua alma e sua presença espiritual no Sacramento da Comunhão através da entronização de uma gota de seu sangue e de um pedaço de seu coração no corpo de Jesus Cristo. Muitas dessas considerações foram aprovadas durante o Primeiro Concílio Palmariano11, e, sobre isso, o referido Tratado destaca: O Primeiro Concílio Palmariano, também denominado de Santo Magno e Dogmático Concílio Palmariano, foi uma série de reuniões convocadas pelo então Papa Gregório XVII para tratar da doutrina e da liturgia de sua Igreja junto com todos os seus bispos em 1980. 11 550 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Este Santo Concilio manifiesta con júbilo su gratitud a la Trinidad Augusta, por haber revelado ahora el misterio de la presencia sacramental, en el Inmaculado Corazón de María, de los sacramentos de la Gota de Sangre de Ella y de su Trozo de Corazón, que el Espíritu Santo obró con amorosísimo anhelo de Esposo. Dichos sublimísimos sacramentos, son la expresión más hermosa y perfecta de la Consagración que la Divina María hizo a Dios de su Carne y Sangre para la Obra de la Reparación y Redención; generosísima entrega que Ella efectuó nuevamente de Sí misma, mediante su voto de perpetua virginidad, en el mismo instante de su Inmaculada Concepción (TRATADO DE LA MISA, 2002, p. 80). Conforme visto no fragmento documental anterior, ao Sacramento da Eucaristia se adicionaram mais dois sacramentos extra-canônicos, que divinizaram a Virgem Maria. Ao afirmar que uma gota de seu sangue e um pedaço de seu coração, entronizados no corpo de Cristo, são a expressão máxima de sua consagração total à obra de Deus, à Igreja Palmariana deu status de divindade à Virgem. Isso a coloca num patamar muito próximo ao de Jesus Cristo, que assim como para a Igreja Romana, é Deus. No documento, os sacramentos da Gota de Sangue e do Pedaço do Coração aparecem adicionados ao sacramento eucarístico, através dos quais a Divina Maria está espiritualmente presente com Jesus na hóstia consagrada. Sobre isso, pode-se destacar: After this proclamation, the Palmarians took one further step in declaring that both Christ and the Virgin Mary are present in the Eucharist, as she never left the side of Christ. It is also stated that her presence in the Eucharist is in no way symbolic, but real. Not only the body and blood of Christ is present in the Eucharist, but also the Virgin, kneeling beside him (LUNDBERG, 2017, p. 195). Dessa maneira, a presença real de Jesus e Maria na Sagrada Forma é fato inquestionável para os palmarianos. Por isso, o papa e os padres conciliares do Primeiro Concílio Dogmático elaboraram o Tratado da Missa para justificar teologicamente suas doutrinas. Esse mesmo documento já vinha sendo publicado em diversos volumes separados desde 1982, até ter sido compilado e lançado como único livro. Sobre São José, a o Catecismo Palmariano de Grau Superior apresenta os argumentos que 551 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e justificam sua divinização, particularmente a partir da prerrogativa da pré-santificação a ele atribuída. No capítulo XVII do Catecismo, intitulado O Santíssimo José, afirma-se o seguinte: 4. São José, foi pré-santificado no terceiro mês de sua concepção, recebendo a Habitabilidade do Espírito Santo. Desde esse mesmo instante gozou do uso da razão, da visão beatífica, da ciência infusa e de outros altíssimos dons; e também, desde então, seus corpos essencial e acidental foram perfeitíssimos e belíssimos. [...] 10. Depois de Maria, São José, em graças e prerrogativas, supera a todos os Anjos e Santos juntos. 11. São José é: Co-Sacerdote da Divina Maria. Pai e Doutor da Igreja (CATECISMO PALMARIANO DE GRAU SUPERIOR, 2003, p. 29-30). Tendo observado atentamente estes fragmentos, mesmo que os dois sejam uma minúscula amostra da vastidão de doutrinas e conceitos de fé elaborados pela Religião Palmariana, identifica-se que esta instituição religiosa realmente deificou estes dois personagens de seu santoral, colocando-os em um lugar muito próximo ao do próprio Deus. Assim, considerando Maria e José como divindades, a Sagrada Família aparenta assumir um papel trinitário similar ao da já referida Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), que igualmente ao que foi estabelecido pela Igreja Romana, é um só Deus para a Igreja Palmariana. Para a temporalidade de vinte e sete anos abarcada neste trabalho, tentou-se extrair da documentação analisada os pontos mais intrinsecamente atrelados ao caráter das aparições e à fundação da Igreja, pois englobaram suficientemente a maior concentração discursiva pertinente a um artigo com a dimensão deste. Ainda nesse sentido, pode-se estabelecer mais um nexo entre as anteriormente referidas atribuições dadas a Maria e José pela Igreja Palmariana como fator para a criação de uma identidade e de uma nova espacialidade sagradas que se configuram por meio desses acréscimos extra-canônicos forjados a partir de sua fundação em 1978. Quanto à Ordem dos Carmelitas da Santa Face, pode-se dizer que esta foi a precursora da Igreja Católica Apostólica e Palmariana, pois o que aconteceu em 1978 foi que seu superior-geral e fundador, Clemente Domínguez y Gómez, ao se proclamar papa, criou a Igreja do Palmar 552 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e e fez da então congregação Carmelita, a única ordem religiosa dentro de sua Igreja. Todo fiel palmariano é terciário da Ordem dos Carmelitas da Santa Face, enquanto suas religiosas e clérigos correspondem aos ramos de segundo e primeiro graus respectivamente. Considerações finais Os referenciais de matriz católica romana que dão base às crenças da Igreja Palmariana, ainda que ampliados e/ou modificados em meio às tradições do imaginário religioso oriundo da cultura da província de Sevilha, como no caso do estilo iconográfico de suas imagens de culto, são mais uma amostra de como essa cismática Igreja procura afirmar-se como um catolicismo genuinamente espanhol em detrimento do herético Catolicismo Romano do Concílio Vaticano II, conforme adjetivado em seus discursos. Quanto ao nome oficial da instituição, que se chama Igreja Cristã Palmariana dos Carmelitas da Santa Face, este se deveu à já mencionada inserção da Ordem Carmelitana fundada por Clemente em 1975 dentro da nova Igreja. A ausência dos termos católica e apostólica, como apareceu aqui várias vezes, ocorreu devido a um problema de registro jurídico acontecido na década de 1980. Pelo fato de ter sido considerada uma cópia da Igreja Católica Apostólica Romana e uma afronta à sua identidade, o Ministério da Justiça Espanhol solicitou que a Igreja do Palmar de Troya adotasse outra nomenclatura para poder obter reconhecimento jurídico. Por isso o termo Igreja Católica, Apostólica e Palmariana, como aparece nas fontes aqui analisadas, foi substituído por Igreja Cristã. Dessa maneira, conclui-se o presente trabalho na certeza de que o movimento palmariano, ao romper com a Igreja Católica de Roma, se tornou uma nova religião que busca ser a continuidade desta última por meio da pessoa de seus papas e de seu aparato ritualístico e doutrinário. 553 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências CATECISmO PALmARIANO DE GRAU SUPERIOR. Sevilla: Santo Sínodo Dogmático Palmariano, 2003, 149p. GARRIDO VÁZQUEZ, Moisés. El negocio de la virgen. Madrid: Ediciones Nowtilus, 2004. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992. LUNDBERG, Magnus. A Pope of Their Own: Palmar de Troya and the Palmarian Church. Uppsala: Uppsala University, Department of Theology, 2017. EL TRATADO DE LA mISA A LA LUZ DE LA HISTORIA SAGRADA O SANTA BIBLIA PALmARIANA. Sevilla: Santo Sínodo Dogmático Palmariano, 2002, 248p. EXTRACTO ACTUALIZADO DE LOS DOCUmENTOS PONTIFICIOS DE SU SANTIDAD EL PAPA GREGORIO XvII A LA LUZ DE LA HISTORIA SAGRADA O SANTA BIBLIA PALmARIANA. Sevilla: Santo Sínodo Dogmático Palmariano, 2002, 360p. mENSAJES DADOS A CLEmENTE DoMínGueZ Y GÓMeZ, HoY eL PaPa san GreGorio xvii MaGnísiMo SOBRE LA SANTA FAZ DE NUESTRO SEÑOR JESUCRISTO. 2019. Disponível em: <https://cdn.ocsficp.org/ wp-content/uploads/2018/06/ Mensajes-de-la-Santa-Fazespa%C3%B1ol.pdf>. Acesso em: 28 fev. 2019. [ Volta ao Sumário ] 554 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e paRa além dos pRoCessos: a imprensa portuguesa e os livros do episcopado como fontes para os estudos inquisitoriais (1543 – 1589) maria Eduarda de medeiros Brandão Carlos André macedo Cavalcanti Como referenciar este capítulo: BRANDÃO, Maria Eduarda de Medeiros; CAVALCANTI, Carlos André Macedo. Para além dos processos: a imprensa portuguesa e os livros do episcopado como fontes para os estudos inquisitoriais (1543 – 1589). In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 548-565. Maria Eduarda de Medeiros Brandão1 Carlos André Macedo Cavalcanti2 O processo inquisitorial é fonte primária comum na historiografia do Santo Ofício, possibilitando abordagens diversas e sendo a base para obras célebres como O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg (1976). No entanto, com o avanço do campo, percebe-se não só a possibilidade, como também a necessidade, de análise do objeto por fontes que vão além deste conjunto documental, para maior amplitude do escopo de observação dos elementos que compunham a conjuntura inquisitorial. O quinhentismo representou para Portugal um momento intelectualmente rico, atrelado ao humanismo e às possibilidades proporcionadas pela imprensa, que chega ao reino em 1489. Contudo, o momento de contrarreforma católica, sentenciou as obras à censura. Em consequência disto, encontra seu lugar nas publicações o bispado; intelectuais que não apenas precisavam legitimar seus cargos, mas também assumirem a nova postura pastoral que Trento passou a exigir. Intenciona-se neste trabalho apontar os livros publicados por estes bispos como fontes primárias possíveis, para pensar a sintonia ideológica entre o episcopado e a inquisição, historicizando a relação entre as demais camadas da igreja e o tribunal, por considerar o Santo Ofício como um elemento jurídico e eclesiástico, inserido numa conjuntura de sínodos religiosos e seculares, que negociavam politicamente a atuação. Para tanto, o olhar sobre as fontes será focado no discurso antijudaico das obras, por perceber neste um forte elemento de conexão entre as jurisdições. Consequentemente, questiona-se aqui, os elementos que constituíam o discurso teológico que fundamentava as perseguições. Graduanda da Licenciatura em História da Universidade Federal da Paraíba: http://lattes. cnpq.br/8463152089999728. 2 Professor do Departamento e da Pós-Graduação de Ciências das Religiões/UFPB e da Pós-Graduação em História/UFPB; líder dos Grupos Videlicet Religiões, de Estudos em Intolerância, Diversidade e Imaginário (CNPq) e Officium, de História da Inquisição, das Religiões e do Sagrado (CNPq): http://lattes.cnpq.br/7764634726743516. 1 556 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Embora os livros do episcopado não sejam inéditos no estudo da mentalidade católica antijudaica, tendo José Pedro Paiva (2011) e Bruno Feitler (2005) como principais referências, esta pesquisa trabalha as fontes selecionadas de uma forma qualitativa, em detrimento dos estudos quantitativos dos autores, embora reconheça neles os principais pontos de referência no que concerne a seleção das fontes. A sintonia entre o episcopado e a inquisição O séc. XVI simboliza para Portugal um momento de transformações no campo dos poderes. A coroa se reorganizou, desenvolveu seu aparelho burocrático e montou os sínodos que constituiriam seu aparato corporativo polissinodal, enquanto a igreja também se submeteu a reformas; reconstituição hierárquica, formas de disciplinarização do rebanho, dentre outros casos. Assim como a coroa, era constituída por “[...] múltiplos organismos por vezes de contornos mal definidos e com interesses nem sempre coincidentes” (BETHENCOURT, 1997, p. 139), estando sujeita a uma miríade de agentes negociadores internos e externos. O episcopado, por exemplo, passou por um processo de transição entre a figura do bispo jovem, de pouca instrução e senhor de terra com vivência na corte – que delegava tarefas de administração das dioceses a outros –, para a figura do Bispo construída ao longo do Concílio de Trento. Passou a ser exigido do cargo um porte de “pastor”, ou seja, a vigilância dos párocos e fiéis, o cuidado no conhecimento, na difusão da mensagem cristã, etc (PAIVA, 2006). Não obstante, independente do modelo episcopal adotado na modernidade, cabia-lhes desde fins da idade média, o julgamento das heresias. Este quadro normativo teria as suas mais remotas raízes em legislação promulgada pelos imperadores romanos Teodósio e Justiniano (séculos IV e VI), na qual se consignava que os bispos deviam assumir competências de justiça ordinária reservada nos processos relativos ao clero e bens eclesiásticos, habilitando-os também a julgar leigos em causas sacramentais (sobretudo para a questão da 557 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e legitimidade do baptismo e imposição da disciplina do matrimónio monogâmico), bem como nos crimes de heresia, apostasia e cisma. (PAIVA, 2011, p. 20). A fundação do Santo Ofício português em 1536 introduziu o inquisidor como um novo agente eclesiástico, que gozava de competências delegadas pela própria cúria romana e apoio direto da coroa portuguesa, culminando numa distinção simbólica frente aos agentes clericais de então. Consequentemente, a inquisição não apenas “[...] alterou substancialmente o campo religioso, forçando um reordenamento e reequilíbrio dos poderes, jurisdições e agentes que o integravam” (idem, p. 15), mas também provocou remodelações nas relações de poder eclesiásticas de então. No entanto, o Santo Ofício em meio a definição desta nova conjuntura, não anulou a jurisdição episcopal em torno das heresias, e sim “[...] introduziu ao seu flanco um novo órgão, igualmente competente, em função da delegação de poderes pontifícios especiais que recebera” (ibd, p. 33). O processo de delineação das jurisdições entre as instâncias se dá num posicionamento de fluidez das divisas, sobretudo com o Santo Ofício se apropriando de questões até então concernentes ao bispado e legitimando seu espaço hegemônico inquisitorial. Entretanto, este cenário de negociações e conflitos não culmina numa cisma profunda entre os poderes. [...] Uma análise global das relações entre estas duas instâncias do campo religioso revela que, regra geral, elas foram de grande harmonia, estreita colaboração e profunda complementaridade. Pode dizer-se que, por norma, houve uma convergência tácita de interesses entre as duas instâncias, assente numa comunhão ideológica de fundo, decorrente de uma visão global do mundo, da sociedade, da religião e do tempo, na qual a preservação da ortodoxia da fé católica, tal como definida pela autoridade da Igreja, era um pilar essencial. (ibd, p. 140) Esta união de interesses em torno da preservação da ortodoxia católica é exposta principalmente na disciplinarização da população, ao passo que reafirma a autoridade e o poder da igreja, conectando as 558 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e instâncias através de uma sintonia ideológica. Um ponto chave para expressar esta sintonia é o fato de que nos primórdios, as cadeiras da inquisição eram compostas por bispos titulares que se tornaram inquisidores, nomeados na bula de fundação da instituição, embora não fosse a regra e os bispos se envolvessem de diferentes formas, como no concelho geral, na elaboração dos regimentos, enfim: “desde a fundação do Santo Ofício que a colaboração e o aproveitamento das relações que mantinha com o episcopado foram fundamentais para que pudesse ter tido a imensa capacidade que alcançou” (ibd, p. 188). No entanto, um aspecto em específico impregnava o âmago da conexão ideológica entre ambas as instâncias: “A generalidade dos bispos compartilhava e defendia a função e os métodos do Tribunal da Fé, sobretudo aquilo que era o cerne da política inquisitorial: a perseguição dos cristãos-novos [...] (ibd, p. 199)”. Consequentemente, e nisso também os antístites se sintonizavam com a Inquisição, era necessária uma instituição forte, vigilante, com meios especiais para poder erradicar este problema, cuja solução passava, aos olhos da maioria esmagadora dos bispos e inquisidores, pela punição pública e a aplicação de castigos violentos – que no limite podiam significar a morte – aos judaizantes portadores do “sangue infecto”, para usar a força segregadora e intolerante da expressão coeva. (ibd, p. 198). Era momento de conflito no âmago da sociedade portuguesa pós-reconquista, com pessoas não pertencentes à fé ocupando posições que a sociedade caucasiana e católica almejava, posterior às expulsões muçulmanas. O Estatuto de Toledo de 1449, introduziu oficialmente o impedimento daqueles de sangue impuro, judeu ou mouro, de assumir cargos municipais. Progressivamente, o famoso édito de 1492 levou a comunidade judaica espanhola à conversão forçada ou à saída do reino, criando-se assim o fenômeno cristão-novo: o judeu convertido ou, em relação de sinonímia, o cristão que, devido às conversões peninsulares, apresentava ascendência judaica. Este cenário propicia a expulsão dos judeus portugueses em 1497 e, aqueles que ficaram no território, foram forçados ao batismo, levando o reino a se tornar terra de um sem-número de conversos sem 559 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e instrução na fé católica e pressionados a agirem como tal, perpetuando e confundindo costumes e vivências judaicas aprendidas hereditariamente. Houveram aqueles que de fato se converteram. Outros, que conservaram um criptojudaísmo, ou seja, professavam sua fé no campo privado enquanto se mostravam cristãos em público. Muitos confundiam preceitos mosaicos com os cristãos e assim por diante. Em suma, com problemas identitários e falta de catequese, os casos de heresias por equívocos e afins, não eram incomuns. Para além das punições: imprensa & investidas intelectuais A igreja como todo sofria ablações. O problema dos cristãos-novos era eminentemente ibérico. Sob lente mais ampla, o catolicismo revia seus próprios conceitos em meio a uma contrarreforma como reação ao recente protestantismo e as angústias advindas de frontes diversas; internas e externas. Precisava-se sistematizar as ameaças, perpetuando um viés medieval de luta contra inimigos da fé motivados por um império do mal, no qual encontrava em Satanás o soberano. Evidentemente, é Satã que conduz com fúria seu derradeiro grande combate antes do fim do mundo. Nesse supremo ataque, ele utiliza todos os meios e todas as camuflagens. É ele que faz os turcos avançarem; é ele que inspira os cultos pagãos da América; é ele que habita o coração dos judeus; é ele que perverte os heréticos [...] Não há por que surpreender-se se esses ataques se produzem ao mesmo tempo. Soou a hora da ofensiva demoníaca generalizada, sendo evidente que o inimigo não está apenas nas fronteiras, mas na praça, e que é preciso ser ainda mais vigilante. (DELUMEAU, 2009, p. 586). Tornava-se indispensável encontrar formas de desestabilizar estes “sequazes do mal” e nisso se uniam os Bispos e o Santo Ofício, estendendo a luta para além das punições do tribunal. Dentre tantos pormenores que compunham a conjuntura, era o momento perfeito para uma investida intelectual por parte da igreja, com a ascensão das 560 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e correntes renascentistas e humanistas no reino. O florescimento cultural proporcionado por estas correntes estava submetido à censura. Cabia ao Santo Ofício a vigilância sobre a posse e publicação de livros não apenas por parte dos leigos, mas também do próprio clero. Esta censura literária abriu caminho para que o novo bispado pastoral encontrasse seu lugar na imprensa, ainda no início, num sentimento de contra-humanismo. Fazia sentido que o episcopado representasse o grosso intelectual da igreja nos quinhentos. Possuíam comumente formações teológicas em Castela3 e utilizavam dos prelos – as impressões pioneiras – como um veículo de disseminação teológica e legitimidade política. Aproveitaram-nos para colocar em letra de forma a doutrina que criaram, para expandir de um modo mais célere e espacialmente mais abrangente as determinações do seu governo, para normalizar os ritos e as liturgias nos seus territórios, para melhorar a preparação do clero e doutrinar os fiéis e até para embelezar e enriquecer o património das catedrais. Não esquecendo a sua função de consumidores, pois houve-os proprietários de valiosas e quantitativamente bem apetrechadas bibliotecas. E tendo em conta que a produção do livro podia ser sinónimo do elevado nível intelectual e de preparação do seu autor, para alguns, a publicação feita ainda antes de terem a mitra episcopal, pode ter sido um precioso contributo para que o monarca tivesse decidido pela sua selecção para a restrita elite episcopal. (PAIVA, 2007, p. 689). As áreas de publicações episcopais eram variadas, perpassando por missais, breviários e afins. Obras doutrinais também encontraram seu espaço através de tratados de teologia, catecismos e espiritualidade num geral. Este inventário diverso concebe fonte abundante de pesquisa e, como aponta José Pedro Paiva (2011), não apenas os sermões de auto-de-fé, mas também publicações autorais e patrocínio dos livros pelo episcopado, mostram-se caminhos possíveis para a investigação da sintonia ideológica entre os bispos e a inquisição, especialmente no principal ponto em comum: o antijudaísmo ibérico (op cit, 2011 p. 203). 3 MARCOCCI, 2012, p. 130 – 131. 561 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Esse pensamento fomentou esta pesquisa, e assim, foram traçadas as seguintes delineações metodológicas: as obras analisadas deveriam, primeiramente, ter sido aprovadas pela censura inquisitorial. Em segundo lugar, serem trabalhos autorais de bispos portugueses, em detrimento do patrocínio, para um melhor escopo do local social de produção do discurso. Em adição, constituírem um corte-histórico próximo e com foco no século XVI, por ser o momento de fundação do tribunal em Portugal, almejando assim investigar a disseminação ainda nos primórdios. E, como condição sine qua non, carregar um forte teor antijudaico. Por meio deste crivo, selecionou-se duas obras para levantamento qualitativo de enxertos textuais selecionados: a edição de 1543 do Libro d la verdade d la fe, de D. Frei João Soares e Diálogos (1589) do D. Frei Amador Arrais. Bispos & Obras: resultados e discussões O libro d la verdad d la fe salta aos olhos por ser um tratado teológico escrito inteiramente por um bispo legitimado no status quo e que trás forte sintonia com a ideologia por trás do tribunal inquisitorial ainda com pouco tempo de desenvolvimento. Contudo, a obra e o bispo foram pouco analisados até então. D. Frei João Soares assinou a autoria do livro e, em crítica externa da fonte, frente ao cenário de patrocínio das obras, acredita-se que ele tenha sido de fato o autor, sobretudo por ser um Bispo dominante no que tange às publicações da época. Como 38º bispo de Coimbra, atendia de forma secular pelo nome de João Soares de Urrô e religiosamente, como João Soares de Albergaria. Natural da freguesia de S. Miguel de Urrô, nascido em 1507, é filho de Diogo Dias de Urrô e Luciana de Alcântara, ambos de famílias nobres. Aos dezesseis anos, em 1523, recebeu o hábito de eremita de Santo Agostinho em Salamanca, doutorando-se em Teologia no ano de 1529. Em sua trajetória, adquiriu um status para além de muitos outros bispos do império, pois por volta de 1537, sentou-se à Mesa da Consciência como presidente e, posteriormente, foi nomeado por D. João III como confessor régio e pregador, além de mestre dos seus filhos D. Filipe e D. João. 562 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Em 1539, foi nomeado Deputado da Inquisição, por D. Henrique I e, apesar do desgosto de Roma4, foi eleito Bispo de Coimbra em 1545, cargo que manteve até seu falecimento em 1572, sendo um dos Bispos a representarem Portugal em Trento. José Pedro Paiva levanta que ao longo do Séc. XVI, dentre 64 Bispos que governaram Dioceses no Reino, 33 foram vinculados à imprensa tipográfica, totalizando 51% e D. João Soares estava na vanguarda destas publicações5. Dentre elas, o Libro d la verdade d la fe é reconhecido por autores como Paiva e Bruno Feitler (2005) como uma das primeiras obras de intolerância judaica a percorrer a península, sendo publicada com privilégio real por D. João III, na casa de Luiz Rodriguez, “livreiro del Rey”, e aprovada pela censura inquisitorial, no qual também demonstra apoio ainda em sua dedicatória. Ainda agora ho mandey estampar sendo primeiro visto por letrados pera isso deputados pelo sãcto officio da inquisição espertado e movido por pessoas que ho viram/ parecendo lhes que seria bom escudo pera defensão dos catholicos contra as heresias que por nossos pecados tanto molestam a ygreja de deos neste tempo. (Libro de la verdad d la fe, dedicatoria, p. 9). Pareceome que era razão pedir a V. M que ho recebesse debaixo de sua proteiçã e favor: assim que polla qualidade do que nelle se trata: como pollo fervente zelo com q V. M prossegue todas as cousas da nossa sancta fe catholica: e ho bem da christandade e da repubrica. (Como se mostra polla sãcta inquisição do santo Padre pera todos seus reynos e senhorios”. (idem, p. 9). Ainda no prólogo – prohemio – oferece a fundamentação base para o decorrer de seu discurso e a finalidade da obra: “El fundamento Fr. João Soares –– diz-se ahi –– é um frade de poucas letras, mas de grande audácia e em extremo ambicioso. As suas opiniões são péssimas, e ele publico inimigo da sé apostólica, do que não duvida gabar-se, como refinado hereje que é. Todos o conhecem por tal, menos o rei, por cujo temor, e porque, com pretexto da confissão, obtem dele a solução de muitos negócios, todos o acatam. É homem perigoso e de vida dissoluta. (HERCULANO, 1859, p. 215). 5 D. frei João Soares (bispo de Coimbra) foi responsável por 13 títulos; D. Henrique (arcebispo de Braga, Évora e Lisboa) por 12; D. Frei Bartolomeu dos Mártires (arcebispo de Braga) por 8, D. Jerónimo Osório (bispo do Algarve) por 6 [...] (op, cit, 2007, p. 691). 4 563 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e de escrevir este libro fue, considerar la muchedumbre de errores que cada dia por nuestros pecados se levantan cõtra la infalible verdade de la sancta fe catholica” (Libro de la verdad, prohemio, p. 11). Com base na escolástica de São Tomás de Aquino, Soares trabalha a ideia de “razão natural” como a razão atrelada à teologia, ou fé, católica, e “quan contra la razon es toda heresia/ pues la verdade catholica es tan allegada a razon” (idem, p.11). Indo para além das heresias, afirma o mesmo para a figura do outro; Ansi que declaran las razones naturales la conformidad de la fe con la razon: y quan contra razon son todas las sectas delos judios/ morros/ydolatras/y los errores delos hereges/pues la sancta fe catholica tiene toda la razon buena por si” (ibid, p. 12). Ao fim das fundamentações do prólogo, o autor busca explicar em seu livro questões teológicas da fé católica tais como a Santa Trindade, o Pecado Original e como Jesus Cristo é o Messias, buscando trazer ao leitor uma instrução básica em torno dos quesitos da fé. Dentre os capítulos, dois em específico são voltados aos inimigos do catolicismo: O “Capítulo IX – en el qual se declara porq los Judios no creyeron a Christo/ teniendo tantas y tan claras prophecias del” e o “Capítulo XXV – de quan erradas y falsas sõ las sectas gentílicas y la porfiada infidelidade judayca”. No cap. IX, é direto ao afirmar que os Judeus não acreditaram em Cristo porque não quiseram, com base na ideia de livre arbítrio agostiniana. No decorrer do argumento, afirma que um homem pode dizer que uma parede branca é negra e mesmo que todos o contradigam, o indivíduo pode continuar a acreditar que o branco é negro, indo contra a razão estipulada e óbvia da parede sendo branca. A verdade em torno de Cristo no argumento é “mas clara q la luz del sol” (op cit, Cap. IX, Col. 1. p. 83), consequentemente, aqueles que permanecem na fé judaica, apegam-se a uma corrente, ou saber, contrária à dominante. Assim, evoca para os judeus a ideia de “conversão”, atribuindo-lhes a ideia de “porfiados” e detentores de “incredulidad”; Y ansi la yglesia sãcta catholica les pone este ditado de porfiados en el viernes santo/ quãdo com ardentíssima charidad ruega al señor q 564 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e los cõvierta diziendo. Roguemos por los porfiados Judios/ por q Dios y nustro señor Jesu xpo les quite la cobertura de su coraçõ/ para q ellos conoscã a Jesu xpo nuestro señor. (idem, Col. 2, p.83). Para embasamento, ou melhor didática ao leitor, faz um retorno histórico-teológico aos tempos bíblicos e delega aos Sacerdotes Fariseus corrupção, avareza, hipocrisia e falsos profetas, sendo a base para a relutância em crer inicialmente na figura de Cristo. Quanto ao cap. XXV, inicia: “Agora en este capitulo brevemente declaramos quan erradas y falsas son las sectas que no tiene la sancta fe catholica” (op cit, Cap. XXV, Col. 1, p. 227), afirmando a “falsedad delos errores gentílicos e Judaycos” (idem,. Cap. XXV, Col. 2, p. 227). Monta assim um modelo de contra-argumento às ideias do outro: “Mas esto sera brevemente: porque tan ajenas sõ las porfias de los gentiles e judios de razon/ que a ningun buen entendimento para conoscer la falsedad delas es necessário largo discurso de razones” (ibid, Col. 2, p. 227). Principia seus contra-argumentos destrinchando os idolatras; adoradores de pau e pedra, corpos mudos de prata e ouro e que atribuem a estes objetos inanimados divindades politeístas. Segue posteriormente para “la vanidad e error dela secta Maomethica que los morros siguen” (ibid, Col. 2, p. 231) e o quão contraditório é o Alcorão. Por fim, “resta agora declarar la porfiada supersticion Judayca quan contra toda razones” (ibid, Col. 1, p. 234). Contudo, ao tecer seu discurso neste capítulo, volta seu argumento contra aqueles que “[...] no son Judios/ mas llaman se Judios” (ibid, Col. 1, p. 234). Supõe-se que João Soares aqui, refira-se à figura do cristão-novo6. Faz referência ainda ao fenômeno da diáspora judaica, embora não especifique o contexto diaspórico ibérico em si. Sobre isto, comenta: Las cerimonias que por Moysen les fueron dadas cõforme aquel tempo/ ni las tienen: ni las guardan. Bivê de su cabeça/ciegos/ porfiados/ y malditos entre todas las nasciones [...] captivos em todas “porque ellos ni son ydolatras: ni morros: no Judios/ como guardan la ley mandada por Moysen: ni Christianos/ porque no creen em Jesu Christo nuestro señor” (ibid, Cap. XXV, Col. 1, p. 234). Seus costumes se diferenciam dos judeus tradicionais e “por una parte confessar/ niegan por outra” (ibid, Cap. XXV, Col. 1, p. 234). 6 565 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e las nasciones/ injuriados de todos/ desamparados de Dios y de las consolaciones celestiales (ibid, Cap. XXV, Col. 2, p.234). Logo, seu discurso se volta às razões histórico-teológicas abordadas no cap. IX, expandindo os debates para os episódios na Babilônia e Jerusalém, retornando a afirmar Jesus como o messias e a tamanha falta de razão que seria contrariar este pensamento. Os judeus não são mais o povo de Deus, pois este não lhe estende mais suas bênçãos devido à negação de seu filho. A obra de D. João Soares chama a atenção por apresentar características que iriam permear a teologia em torno dos inimigos da fé e, sobretudo, a ascendência judaica, por décadas a fio. Destaca-se não apenas a investida intelectual de diminuição da razão de outrem em prol da cristandade, mas também recorrer constantemente a termos que iriam pulular o discurso antijudaico. Destaca-se aqui principalmente a “cegueira”, “porfia”, “incredulidade” e “errores” – equívocos – para se referir a uma contrarrazão judaica em não aceitar cristo como messias. Narrativa similar é encontrada nos Diálogos de D. Frei Amador Arrais, quarenta e seis anos depois. Diferente do primeiro, os Diálogos começaram a ser escritos pelo irmão do Bispo, Hieronimo Arrais, médico. No entanto, com o falecimento deste, assumiu o Frei. Carmelita, nasceu em Beja, filho de Simão Arraes, por volta do primeiro quarto do séc. XVI. Formado em teologia pela universidade de Coimbra, assumiu o hábito apenas em 1545. Tornou-se pregador régio de D. Sebastião, esmoler-mor do cardeal-rei D. Henrique – enquanto Bispo de Tripoli – e, por fim, Bispo de Portalegre em 1581, eleito por D. Felipe II, falecendo em 1600. D. Amador Arrais não apenas se tornou mais popular que João soares na historiografia, como também seus Diálogos se tornaram uma das principais obras do contra-humanismo português. O período é marcado pelo triunfo do tridentismo e a inserção desta mentalidade nas políticas seculares. Os Diálogos estão imersos num sentimento de desengano barroco e à perda da ampla autonomia portuguesa frente a união das coroas ibéricas. O contra-humanismo doutrinário teve um expoente maior em Frei Amador Arrais. Os seus Diálogos, de 1589 [...] compartilham o 566 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e estilo de associar inumeráveis autores e lugares selectos do classicismo ao discurso apologético da causa católica, mas esta causa é assumida em um tónus “político” e militante, que cerceia qualquer margem de tolerância. O frade carmelita e bispo de Portalegre não faz concessões ao inimigo – seja ele o judeu [...], seja o cristão humanista. (MENDES, 1997, p. 359). Devido a obra ser um diálogo e não um tratado, Arrais não oferece embasamento inicial ou comentários extensos no prólogo, apenas afirma a opção pela língua portuguesa. No entanto, em sessão anterior, carrega as aprovações da censura, enfatizando a não ameaça à fé católica e ao mesmo tempo a erudição do conteúdo. Os diálogos se dão entre Antiocho, um enfermo, e um outro indivíduo que o visita. A enfermidade de Antiocho abre espaço para expressar o trágico do momento e a desilusão em seus pensamentos em torno da morte e afins, sendo uma personificação da aura barroca. O foco aqui será dado ao Diálogo Segundo, denominado “Da gente judaica”. Os interlocutores são Antiocho e Herculano; um fidalgo que o visita. A premissa é a cura do primeiro pelas mãos de “inimigos”, como aponta Herculano: – Hum homem quomo vos de honra, e letras, e autoridade, que saúde espera de imigos? [...] Pondes vos nas mãos de gente, que pôs o filho de Deos na cruz, e o enxapou com fel, e vinagre? Curaes vos com gente sospeita, e fias dela a vida, quomo vos não dâ nada per dela? (Diálogos, Cap. I, p. 42). Este extrato aponta três importantes informações: Primeiro, os judeus como inimigos devido a crucificação de Jesus. Segundo: uma observação social da inserção do judeu nos ofícios liberais da medicina. Terceiro: A revelação do local social de Antiocho, estando numa posição de vantagem na estratificação do Antigo Regime, para além dos ofícios mecânicos e afins. Em perpetuação da narrativa vista em João Soares, o capítulo VI “Donde os Hebreos tomaram o apelido de judeus, e da sua incredulidade”, não apenas a incredulidade, mas também a cegueira em relação a figura de cristo retorna, como visto na fala de Antiocho: 567 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e – Isaac, com sua cegueira, designou a deste povo: qua assi quomo estando cego, e não vêdo o filho, que estava presente, prognosticou muitas cousas, que lhe aviam de sobrevier em o futuro: Assi o povo judaico, sendo cego, per spiritu prophetico profetizou do Messias vindouro [...] (idem, Cap. VI, p. 50). […] –En fin cegou os judeus sua malicia, e foi sua cegueira tam excessiva, que quomo diz Sam Paulo, foi sua increduliadade incredible [...] Finalmente não crêram ao Senhor, porque não crêram a Moises, quanto ao verdadeiro entendimento do que avia de vir. (ibd, p. 50). No capítulo seguinte, “Porque permitio Deos a cegueira, e obstinação dos judeus”, Antiocho abre, afirmando que “– Bem sabeis, que a causa, desta miserable cegueira, forão seus corações duros, e encravados” (ibd, p. 51). Reitera a forte posição ao longo do capítulo: “– [...] mas não ouve no mundo gente, que tanto cuidado tevesse de preservar suas leis de corrupção, e vicio, quomo a judaica” (ibd, p. 52). Um elemento principal chama a atenção nos diálogos, que não aparece com tamanha ênfase no libro d la verdade e é perceptível no cap. XVII: “Que a avareza he casa da obstinação dos judeus e de suas vans esperanças”. Amador Arrais, por meio de Antiocho, vai adiante e disserta em torno da conversão judaica, destacando a figura de Cain, sua cobiça e falta de entendimento. – Parece que não errará quem dixer, que hua das causas principaes, porque hoje se não convertem os judeus, he sua cubiça. Filhos são de Cain, tam cubiçoso, que segundo Iosepho diz, por cubiça se moveo a cultivar a terra: esta acabou co ele, que offerecesse a Deos os piores frutos de sua colheita; esta lhe eclipsou o entendimento. (ibd, Cap. XVII, p. 73). Afirma ainda que “não hâ, nem ouve nação tam inclinada a usura, quomo a judaica” (ibd, p. 73) e, por isso, “[...] por serem avaríssimos, lhe não agradou o nosso Messias” (ibd, p. 73). Posicionamento este interessante frente ao momento histórico, no qual, por mais que o mercador já não possuísse o mesmo estigma de antes – estando este na vanguarda no monopólio ibérico comercial – havia-se ainda uma delineação entre o bom e o mal mercador; sendo o primeiro “[...] aquele que limita seus 568 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e horizontes, evita as ocasiões de pecado ao circunscrever seu raio de ação” (LE GOFF, 1991, p. 100). Já o segundo recairia mais comumente à figura do judeu, em detrimento do cristão obediente aos parâmetros de mentalidade que a igreja estipulava às trocas. Era ainda política inquisitorial o confisco de bens, bastante aplicado aos cristãos-novos mercadores, conectados ao abastecimento do erário régio e do próprio tribunal, ainda que por intermédio da coroa7. Por fim, os temas abordados não se limitam ao XVI. A retórica passa adiante e chega à população iletrada por meio dos púlpitos de autos-de-fé, aos quais os Bispos subiam para proferir os sermões antes das punições serem aplicadas. Percebe-se, por exemplo, ideias trabalhadas pelo Libro de la verdade d la fe e nos Diálogos reaparecendo direta ou indiretamente em em 1629, por meio de D. João Mendes Távora, Bispo de Coimbra, ao tratar dos judeus num auto-de-fé em Lisboa: Se a cegueira deste Povo obstinado, naõ fora tão pertinaz, bastante era certo este seu castigo, pera verem seu erro, & acabarem de achar seu desengano: mas está tão afferrado a esta sua ignorancia, que não soo não entendem as Escripturas, ainda explicadas por seus Rabbinos, mas totalmente, fechão a porta à toda a rezão por mais forçosa que seja [...] Sua pertinacia será tão ferós, que serão semelhantes a Aspide surda, com as orelhas tapadas. (TÁVORA, 1629, fl. 3, prg. 1). Tais ideias percorrem também um dos sermões de D. Afonso de Castelo Branco – assim como os outros dois, Bispo de Coimbra – traduzido para latim em 1589. Novamente, retratando a “cegueira” e “perfídia” dos cristãos-novos e reafirmando Cristo como salvador (PAIVA, 2011, 204-205). Considerações finais Acredita-se que averiguar a sintonia ideológica entre o Santo Ofício e o Episcopado como diferentes sínodos clericais unidos em prol de 7 SIQUEIRA, 1970, 336-340. 569 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e um inimigo em comum, oferece elementos para aprofundamento dos estudos inquisitoriais ao pensar não apenas a relação tribunal-réu e sim, um elemento jurídico imerso numa constelação de poderes clericais e seculares, fazendo-se necessária a investigação para além dos processos. As publicações do bispado carregam teor não apenas teológico, mas também de disseminação ideológica e social frente aos grupos perseguidos pelo império, sendo a fé institucionalizada uma ferramenta si ne qua non deste monopólio. No que tange ao posicionamento antijudaico no XVI por parte do núcleo episcopal, percebe-se ainda uma sistematização inicial, considerando que a imprensa antijudaica se desenvolve fortemente nos séculos seguintes. Contudo, é visto uma tentativa de legitimação teológica das perseguições, ao passo que deslegitima outrem, oferecendo ao tribunal a construção de um discurso pautado na (des)razão atrelada a cegueira ou teimosia em crer na verdade católica e, consequentemente, na mentalidade hegemônica que fundamentava o império português. 570 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BETHENCOURT, Francisco. Os equilíbrios sociais do poder. In: MATTOSO, José; MAGALHÃES, Joaquim Romero (coord.). História de Portugal: No alvorecer da modernidade. [S. l.]: Estampa, 1997. v. 3, cap. O poder. CHAGAS, Manoel Pinheiro. Diccionario popular: histórico, geográfico, mythologico, biográfico, artístico, bibliográfico e litterario. 1º vol, lallemant fréres, typ. Lisboa, 1876. Collecçam dos documentos, e memorias da Academia Real da História Portugueza, que neste anno de 1724 se compuzeraõ, e se imprimiraõ por ondem de seus Censores, dedicada a El Rey Nosso Senhor, seu augustíssimo protector, e ordenada pelo Marquez de Alegrete Manoel Telles da Sylva, secretario da mesma academia. Lisboa occidental: officina de Pascoal de Sylva, impressor de sua majestade, e da Academia Real. 1724. DELUMEAU, Jean. HISTÓRIA DO MEDO NO OCIDENTE 1300 – 1800: UMA CIDADE SITIADA. São Paulo: Companhia das letras, 2009. Dialogos de Dom Frei Amador Arraiz Bispo de Portalegre. Em Coimbra. Em casa de Antonio de Mariz, Impressor. Anno de 1589. Com licença do Sancto Officio, e do Ordinario. Com Privilegio Real. DOMINGUES, Gabriel de Paiva. Oração de André Resende 571 pronunciada no colégio das artes em 1551. Reprodução fac-similada, leitura moderna, tradução e notas. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1982 FEITLER, Bruno. 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Sermam que pregou Joanne Mendes de Tavora, doutor na Sagrada Theologia, conego magistral na Santa Sé de Lisboa, deputado ordinario do Santo Officio da Inquisição da mesmacidade e sumilher de cortina de Sua Magestade, no auto da fe que se celebrou em Lisboa, em 2 de Setembro de 1629. Lisboa, por Antonio Aluare, 1629. SIMÕES, Maria Alzira Proença, Catálogo dos impressos de tipografia portuguesa do século XVI, Lisboa: Biblioteca Nacional, 1990. SIQUEIRA, Sônia A. A Inquisição Portuguesa e os confiscos. Revista de História, São Paulo, ano 1970, v. 40, n. 82, p. 323 – 340, 29 jun. 1970. DOI https://doi.org/10.11606/issn.23169141.rh.1970.128993. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ revhistoria/article/view/128993. Acesso em: 14 maio 2019. [ Volta ao Sumário ] 572 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e peRsistênCia da Religiosidade populaR atRavés das CeRimônias de CoRoação de maRia Anamélia Soares Nóbrega Como referenciar este capítulo: NÓBREGA, Anamélia Soares. Persistência da religiosidade popular através das cerimônias de Coroação de Maria. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 566-575. Anamélia Soares Nóbrega1 Introdução Na religiosidade popular, no encerramento do mês de maio de cada ano, principalmente no último dia, os católicos realizam a cerimônia de coroação das representações iconográficas marianas. Nesse contexto, destacamos que várias paróquias nordestinas são dedicadas a Maria, através dos numerosos títulos de Nossa Senhora que lhe foram atribuídos. Por isso, essa comemoração enfatiza a religiosidade popular que alicerça as tradições católicas. Com a ajuda dos cânticos, do cenário e do laicato católico, as cerimônias de coroação destacam a figura de Maria de Nazaré. Por isso, no título, optamos por sintetizar todas as denominações de Nossa Senhora em uma única expressão, que é Maria. O núcleo das imagens iconográficas é a representação de uma mulher que se tornou a Mãe de Jesus. Por conseguinte, várias pinturas e esculturas possuem Jesus Menino em seus braços ou no seu colo maternal. No entanto, ressaltamos que culturas diferentes possuem projeções artísticas diferenciadas na elaboração da imagem mariana com aparências específicas. A persistência da cerimônia de coroação nas paróquias ocasiona questionamentos acerca dos motivos que ainda continuam a impulsionar a sua realização. Nesse aspecto, as obras lidas ajudam a compreender a multiplicidade dos significados culturalmente atribuídos ao simbolismo da coroação, evocando a maternidade divina, os sentimentos religiosos, os aspectos artísticos e os fatos históricos. Percebemos que essa cerimônia acompanha simultaneamente o culto a Maria e o imaginário católico, pois diante da imagem da coroa, que representa um dos ornamentos da realeza, a sociedade idealiza Doutoranda em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/4658739448203146. E-mail: anameliasn@gmail.com. 1 574 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e várias representações do título de rainha para Maria no campo religioso. Nessa perspectiva, a hermenêutica apresenta-se como um método de interpretação do simbolismo da cerimônia de coroação. Tanto no Nordeste quanto em outras regiões brasileiras, a religiosidade popular é o ponto alto das comemorações, envolvendo os fiéis católicos de todas as faixas etárias. Das crianças vestidas de anjinhos até os adultos entoando os cânticos, a participação popular é fundamental para que essa cerimônia resista no calendário comemorativo das paróquias. Se depender dos católicos, o símbolo da coroa será lembrado desde as capelas até os santuários, pois a força simbólica e ritual dessa cerimônia buscou frear o avanço de uma mentalidade iconoclasta. Por conseguinte, essa cerimônia fortalece a piedade mariana, herança recebida das tradições católicas e assimilada, muitas vezes, por meio dos eventos populares. A crença na intercessão mariana nas necessidades espirituais e temporais também é importante para embasar essa comemoração. Por isso, os católicos não consideram presunção, mas antes um sinal de confiança, a realização dessa cerimônia. Assim, ela propõe uma renovação coletiva da fé do povo em suas dimensões interiores, servindo para reforçar o catolicismo popular. Observamos que as coroações das representações iconográficas de Maria ainda possuem receptividade nas paróquias católicas. É um dia especial, sendo uma comemoração da religiosidade popular, contendo orações, atividades cênicas e cânticos. De fato, o comparecimento dos fiéis nessa cerimônia reflete uma forma de expressar sua religiosidade, uma vez que o simbolismo da coroação marca a iconografia do catolicismo popular e o discurso mariológico. A coroação de maria no âmbito religioso, artístico e histórico A coroação das imagens que representam Maria é uma cerimônia bastante antiga no catolicismo. Nessa perspectiva, explica Cabral (2017, 575 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e p. 174): “Iniciadas na Europa, no século XII, as cerimônias de Coroação de Nossa Senhora chegaram ao Brasil através dos portugueses e ainda são vivenciadas na contemporaneidade”. Desse modo, analisamos que as cerimônias de coroação estão inseridas no catolicismo popular. A maioria dos católicos, sejam eles da zona rural ou urbana, costuma realizar comemorações no âmbito religioso. Por isso, a espontaneidade dessa cerimônia torna sua realização diferente da liturgia institucionalizada, havendo o predomínio dos hábitos da religiosidade popular. As paróquias concentram muitas atividades em torno da imagem de Maria no mês de maio, principalmente após as aparições de Nossa Senhora de Fátima, em maio de 1917. Assim, as comunidades católicas fazem suas celebrações marianas. Nesse aspecto, Murad (2012, p. 211) mostra que: “No correr do ano litúrgico, há três tipos de celebrações marianas: as solenidades, as festas e as memórias. [...]. A principal festa mariana é a da Visitação (31 de maio).” Por isso, refletimos que o fato da cerimônia de coroação ser comemorado no encerramento do mês de maio e, muitas vezes, coincidir com a festa mariana da Visitação é importante para consolidar a participação do laicato católico nessa cerimônia. Assim, a Igreja católica encerra o mês de maio com a festa da Visitação de Nossa Senhora. Simultaneamente, os fiéis católicos encerram o mês de maio coroando as várias imagens que representam a Mãe de Jesus. Em ambas as comemorações, ressalta-se o exemplo de Maria na vida cristã, tanto no contexto da solidariedade missionária quanto da maternidade divina, aproximando a espiritualidade mariana do fundamento cristocêntrico. Destacamos que a piedade popular possui uma identidade religiosa, como esclareceu Boff (2006, p. 565): “O povo católico em geral sente em relação a Maria uma identificação profunda [...]. A razão disso é a sorte comum que aproxima o povo da Virgem: uma vida simples, anônima e sofrida [...]”. E nessa linha de pensamento, destacamos a reflexão de Murad (2012, p. 199): “Os católicos demonstram amor a e confiança na Mãe de Jesus de muitas maneiras: o terço, a coroação no mês de maio, as romarias aos santuários marianos [...]”. O Dicionário de Mariologia (De Fiores; Meo, 1995, p. 1104) registra, no verbete rainha, que: “O título de rainha é atribuído a Maria pela 576 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e tradição cristã pelo menos a partir do séc. IV”. Ainda segundo o mesmo verbete, podemos encontrar a explicação que Pio XII, no ano de 1954, publicou a encíclica Ad coeli Reginam, um importante documento do Magistério da Igreja sobre a realeza mariana. A dimensão simbólica da coroa colocada nas esculturas e pinturas marianas permite sua interpretação em aspectos visuais, materiais e psicológicos. Nessa abordagem, destacamos a observação de Higuet (2015, p. 25): “No simbólico, o simbolizante imagético remete a um simbolizado que, por sua vez, remete a uma rede de ideias, uma arborescência de pensamentos, segundo níveis hierárquicos”. Várias ladainhas marianas foram propagadas e ajudaram a manter a invocação do título de rainha. Temos na memória algumas recordações dos títulos de realeza: rainha dos anjos, rainha dos apóstolos e rainha da paz. O uso das ladainhas contribuiu para aproximá-las das práticas religiosas populares. Decifrar a imagem simbólica, especialmente nas crenças religiosas, necessita de uma interpretação dos conteúdos inseridos no pensamento humano. Assim, a hermenêutica torna-se um recurso importante. Nesse aspecto, Higuet (2015, p. 60) propõe: “É que as imagens, por serem polissêmicas, dependem, antes de tudo, de uma abordagem interpretativa, suscetível de desvendar, além do sentido imediato, o sentido indireto e oculto”. A linguagem metafórica da realeza de Maria está ligada à maternidade de Jesus. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II, através da Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium destacou: “Finalmente, a Virgem Imaculada [...] foi levada à glória celeste em corpo e alma, e exaltada pelo Senhor como Rainha do universo, para que se conformasse mais plenamente com o seu Filho [...]” (LG, n. 59). Maria esteve sempre ao lado de Jesus, conforme os relatos bíblicos. Maria ao lado do filho na manjedoura. Maria aos pés da cruz de Cristo. Maria coroada na glória celeste pelos méritos de Jesus. As funções messiânicas da salvação da humanidade possuem implicações teológicas que envolvem Maria de Nazaré. Maria é homenageada pelos numerosos títulos de Nossa Senhora. Nesse sentido, Murad (2012, p. 206) reflete que: “Quando os católicos chamam Maria de ‘Nossa Senhora’ ou usam outro título, fazem isso com delicadeza e afeto, reconhecimento e gratidão”. 577 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Nessa discussão, verificamos que um dos motivos que sustenta a coroação das representações iconográficas de Maria seria o desejo de antecipar o triunfo do reinado de Deus. Um sinal da esperança popular baseado nas promessas contidas no cântico do Magnificat, tal como o hino mariano proclama no Evangelho de Lucas. Seria uma antecipação de um reino repleto de mudanças. sociais. Assim, Boff analisa (2006, p. 367): “as reviravoltas sociais e políticas deste mundo não estão fora do horizonte do Magnificat. É verdade que essas reviravoltas são vistas de cima, do ponto de vista da fé, e penetram mais fundo, até o espírito do homem”. A oração Salve-Rainha, rezada e cantada pelos fiéis católicos, teve sua origem comentada na obra de Kurten; Santos (2017, p. 9): “A autoria da oração é atribuída a Hermano Contracto, monge beneditino que teria escrito por volta de 1050, no mosteiro de Reichenau, no Sacro Império Romano-Germânico”. Nas raízes religiosas populares, observamos que a contemplação da coroação de Maria no plano celestial está presente no quinto mistério glorioso rezado pelos fiéis católicos através da recitação do rosário. Além disso, diante dos ícones marianos, os fiéis rezam orações, acendem velas e fazem súplicas. Nesse sentido, Boff (2006, p. 542) considera que: “Maria, na glória, brilha como sinal de esperança e de verdadeira reconciliação. Ela desautoriza tanto o otimismo ingênuo como o pessimismo resignado”. A cerimônia de coroação reflete o costume das comunidades paroquiais. Uma descrição da cerimônia de coroação pode ser encontrada no artigo de Cabral (2017, p. 176) que “reporta ao segundo lustro da década de 1970, na cidade de Monte Alegre (RN), quando ela, junto com mais outras duas (Vera Cruz e Lagoa Salgada), compunham a Paróquia de São Joaquim e Sant’Ana [...]”. Na contemporaneidade, constatamos que, na parte artística, alguns elementos continuam perenes na cerimônia de coroação e outros foram substituídos. Para minimizar o desgaste do tempo, as renovações ocorrem conforme as transformações culturais. A cerimônia cresce paralelamente ao apoio promovido pelo laicato católico. O cenário, a coreografia dos anjinhos e os cânticos são pontos que embelezam os elementos artísticos da coroação. As imagens que representam Maria são colocadas de forma especial nos altares das 578 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e paróquias. Desse modo, a religiosidade é estimulada pela sensibilidade artística, fazendo a comunidade celebrar com mais entusiasmo. Em contrapartida, desvios da religiosidade tradicional podem acontecer, uma vez que as cerimônias abrangem aspectos sociológicos e culturais. Por conseguinte, algumas comemorações já não existem mais como no passado, pois há o predomínio da cultura vigente em cada época. Podemos verificar que ao longo da história muitos eventos, públicos e oficiais, relacionados à coroação da imagem que representa Maria ocorreram no Brasil e no mundo. A Princesa Isabel, no regime imperial brasileiro, participou de um momento simbólico ao doar uma coroa de ouro para ser colocada na imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Com relação à descrição dessa coroa, verificamos na obra de Brustoloni (1998, p. 44): “É de ouro 24 quilates, pesa 300 gramas e tem 24 diamantes maiores e 16 menores”. Os gestos simbólicos expressam tanto sua relação com o sagrado quanto sua interferência no campo sociopolítico. Por isso, em alguns momentos históricos, a hierarquia eclesiástica brasileira se apoderou do simbolismo da coroação, através de fatos públicos e oficiais, pois houve a coroação oficial da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida em 8 de setembro de 1904. Esse fato marcou a história religiosa brasileira. A coroa de Nossa Senhora de Fátima, exposta no santuário localizado em Portugal, mostra o protagonismo do símbolo religioso nos episódios mundiais que marcaram a hierarquia eclesiástica. Desse modo, explica Alvarez (2015, p. 201): “A bala que quase matou um dos líderes religiosos mais queridos de todos os tempos foi retirada de seu corpo e incorporada à coroa de ouro da imagem de Maria [...]”. Esclarecemos que esse ato violento ocorreu contra o Papa João Paulo II. Essa bala não tirou a vida do papa, o qual continuou a conduzir os rumos da Igreja católica no mundo, durante o período do seu pontificado. A coroação da imagem mariana é um símbolo que oferece recursos mobilizadores para o povo. Saber aproveitar positivamente tais recursos foi um exemplo dado por muitos eventos históricos, em solo brasileiro e mundial, principalmente estimulando as peregrinações dos romeiros aos grandes santuários marianos. 579 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Considerações finais Embora existam sinais de desgaste, a cerimônia de coroação ainda permanece entre as comemorações realizadas nas paróquias. O fato de ser repetida, em cada ano, promove a consolidação da imagem coroada no simbolismo religioso católico. O simbolismo da coroação representa a possibilidade de um reinado celestial, fonte de esperança para os fiéis católicos. O triunfo celeste, já cantado no hino do Magnificat, enfatiza um mundo no qual o poder político e os bens econômicos serão distribuídos com mais justiça. A maternidade divina seria uma das principais justificativas para a realeza de Maria. Isso facilitaria a sua compreensão, caracterizando o seu valor bíblico. Desse modo, a cerimônia da coroação possui seu efeito na religiosidade popular, pois alimenta dentro das paróquias a energia mobilizadora das manifestações religiosas. A estrutura artística dessa comemoração provoca entusiasmo nos católicos, principalmente naqueles mais engajados na sua organização. Além disso, as razões para a coroação oficial das imagens ultrapassam o campo estritamente religioso, contendo motivações sociopolíticas. Tradição religiosa, atividades artísticas e fatos históricos envolvem essa comemoração realizada pelos católicos no mês de maio. Portanto, concluímos que a cerimônia de coroação, por meio do seu simbolismo, está interligada à persistência da religiosidade popular na sociedade contemporânea. 580 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALVAREZ, Rodrigo. maria: a biografia da mulher que gerou o homem mais importante da história, viveu um inferno, dividiu os cristãos, conquistou meio mundo e é chamada de Mãe de Deus. São Paulo: Globo, 2015. BOFF, Clodovis. mariologia Social: O significado da Virgem para a sociedade. São Paulo: Paulus, 2006. BRUSTOLONI, Júlio. História de Nossa Senhora Aparecida: sua imagem e seu santuário. Aparecida, SP: Editora Santuário, 1998. CABRAL, Newton Darwin de Andrade. As Cerimônias de Coroação de Nossa Senhora: memórias e análise de uma prática devocional mariana. In: Paralellus, Recife, v. 8, n. 17, p. 173190, 2017. CONSTITUIÇÃO Dogmática Lumen Gentium. In: COSTA, Lourenço (Org.). Documentos do Concílio Ecumênico vaticano II (1962-1965). São Paulo: Paulus, 1997, p. 101-197. DE FIORES, Stefano; MEO, Salvatore (Dir.). Dicionário de mariologia. São Paulo: Paulus, 1995. HIGUET, Etienne Alfred. Imagens e imaginário: subsídios teóricometodológicos para a interpretação das imagens simbólicas e religiosas. In: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (Org.). Religião e linguagem: abordagens teóricas interdisciplinares. São Paulo: Paulus, 2015, p. 15-62. KURTEN, Ivonete; SANTOS, Francisco Eduardo de Souza. Um mês com a rainha do céu: refletindo a SalveRainha. São Paulo: Paulinas, 2017. MURAD, Afonso Tadeu. maria, toda de Deus e tão humana: Compêndio de mariologia. São Paulo: Paulinas; Santuário, 2012. [ Volta ao Sumário ] 581 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e pRátiCas, falas e expeRiênCias WiCCanianas: a espiritualidade da deusa frente aos desafios contemporâneos Isabel Cristine machado de Carvalho Ana Laudelina Ferreira Gomes Como referenciar este capítulo: CARVALHO, Isabel Cristine Machado de; GOMES, Ana Laudelina Ferreira. Práticas, falas e experiências wiccanianas: a espiritualidade da Deusa frente aos desafios contemporâneos. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 575-592. Isabel Cristine Machado de Carvalho1 Ana Laudelina Ferreira Gomes2 Introdução Este artigo é resultado de uma pesquisa de doutorado, ora em andamento, que se propõe a investigar nos espaços de atuação da Wicca no Brasil, práticas, falas e experiências, que uma religião alternativa, de raiz ocidental, centrada na espiritualidade da Deusa, orientam e estimulam seus praticantes e adeptos em relação as possibilidades, os caminhos e os respiros para lidar com os desafios atuais. Além da observação de campo em São Paulo (SP) e Brasília (DF)3, realizamos uma análise documental da literatura produzida por autores wiccanianos, representada pela fonte bibliografia de autores brasileiros, europeus e norte-americanos. Buscamos o diálogo com aportes teóricos elaborados pelos autores do campo da sociologia, antropologia, história e filosofia. Pretendemos ainda entrevistar representantes, adeptos e praticantes da Wicca, pertencentes à Tradição Diânica Nemorensis e à Tradição Diânica do Brasil. Justificamos a escolha desses grupos, uma vez que possuem produção e representatividade mais expressiva. Seus representantes são fundadores e responsáveis pelos dois maiores eventos que correspondem ao campo observado. Dessa tecitura concatenada entre a observação, a entrevista, os conteúdos produzidos e disponibilizados na internet pelos grupos 1 Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista CNPq. Membro do Grupo de Pesquisa Mythos-Logos: religião, ciência e espiritualidade. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/8381013278219249. E-mail: isabelcristinemc@gmail.com. 2 Doutora em Ciências Sociais (PUC-SP). Professora titular da UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa Mythos-Logos: religião, ciência e espiritualidade. Curriculum Lattes: http://lattes. cnpq.br/7178264870931102. E-mail: analaudare@gmail.com. 3 Elencamos como campo de observação em São Paulo, a Conferência Anual de Wicca & Espiritualidade da Deusa no Brasil e o Encontro Anual de Bruxos (EAB). Em Brasília, o evento Bruxos Brasileiros em Brasília (BBB). 583 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e wiccanianos e a leitura da bibliografia nativa e de aporte teórico-metodológico vai-se tecendo e configurando os elementos da investigação. Contudo, para este momento, lançamos mão de uma produção textual em que abordaremos os seguintes aspectos da pesquisa: o surgimento da bruxaria moderna, a crise dos paradigmas vigentes e em curso, cenário e dilemas do contemporâneo e a espiritualidade da Deusa para um novo paradigma civilizatório. Bruxaria moderna A raiz da bruxaria moderna4 advém do ressurgimento do movimento romântico do século XIX. O Iluminismo e o racionalismo do final do século XVIII haviam excluído a bruxaria e também outras crendices ou superstições da esfera da realidade. Não se compreendia tais práticas como sendo dotadas de credibilidade. No entanto, o caminho da racionalidade, do progresso e do materialismo não extirpou movimentos voltados para a magia e para os mistérios. As sombras haviam sumido; a luz do dia era comum e tornava tudo concreto e claro, porém o homem do século XIX percebeu-se abandonado em um mundo materialista e monótono. Na Idade Média, os diabos eram uma realidade que todos aceitavam sem questionar. E os românticos olharam para trás nostalgicamente: a era dos demônios e dos íncubos, muito mais estimulante para a imaginação do que as estradas de ferro e os navios a vapor. (RUSSEL; ALEXANDER, 2008. p. 151). É preciso considerar que a bruxaria moderna aparece nas pesquisas de historiadores, antropólogos, cientistas da religião e na bibliografia produzidas pelos seus praticantes também como bruxaria neopagã, Wicca, antiga religião ou religião da Deusa. A denominação religião da Deusa é a mais difundida aqui no Brasil. Inclusive, Claudiney Prieto, um dos maiores divulgadores da Wicca no país, publicou o livro cujo título é: Wicca, a religião da Deusa. A obra está na sua 53ª edição, como mais de 200 mil exemplares vendidos, segundo informações da editora Alfabeto (https://editoraalfabeto.com.br/shop/wicca-a-religiao-da-deusa/). 4 584 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Russel e Alexander (2008) reforçam que o racionalismo era hostil ao significado profundo da humanidade e às preocupações humanas. Em resposta as mudanças profundas preconizadas pelo impacto de dois grandes acontecimentos no Ocidente, que foram a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, exaltaram o não racional e o antirracional, o básico, o intuitivo e o extático. “Tal ênfase despertou o interesse renovado pela magia e por outras artes ocultas – um entusiasmo que também ajudou a reabrir a discussão sobre a bruxaria e a loucura da caça às bruxas, cuja memória ainda estava fresca o bastante para assombrar as mentes europeias” (RUSSEL; ALEXANDER, 2008. p. 151). É nesse cenário que emerge um dos principais conceitos associados à bruxaria moderna ou Wicca: que a bruxaria medieval era, de fato, uma sobrevivência do paganismo pré-cristão. Portanto, a bruxaria moderna não está historicamente ligada ao fenômeno medieval, mas sim às especulações sobre a bruxaria, que começaram a surgir posteriormente ao declínio do próprio fenômeno. Entende-se, então, por essa vertente religiosa, um sistema de práticas e crenças relativas ao fenômeno da bruxaria tradicional retomado por meio das investigações da egiptóloga e antropóloga inglesa, Margaret Murray (2003), na década de 1920, pelo antropólogo James Frazer (1982) e pelo historiador Jules Michelet (2003). A Wicca5 foi fundada por Gerald Brousseau Gardner na década de 1950 na Inglaterra. Foi ele quem agrupou elementos da magia cerimonial, com o folclore das ilhas britânicas e as teorias preconizadas a respeito da existência de um culto religioso pré-cristão e fundou a religião da bruxaria moderna. Ele desencadeou a evolução/invenção e disseminação da Wicca Gardneriana. Gardner era funcionário público, antropólogo e folclorista amador. Apresentou o que afirmava serem as crenças e rituais de uma religião ancestral em vias de extinção. A origem do moviWica foi a grafia original apresentada por Gerald Gardner e usada por ele no final da década de 1940 e início da década seguinte, e abandonada depois disso, sendo usada a atual, Wicca. Em inglês antigo, a palavra wicce (forma feminina) ou wicca (forma masculina) indicava pessoa capaz de fazer adivinhações ou lançar feitiços. “De acordo com a etimologia popular introduzida pelo fundador ou descobridor da Wicca, Gerald Gardner, e aceita por muitos pagãos modernos, wicce deriva de uma antiga raiz indo-europeia que significa ‘sábio’, e por isso witchcraft (‘bruxaria”) significa ‘a arte do sábio”(GREER, 2012, p. 667). 5 585 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e mento Wicca Garderiana tem laços estreitos com o despertar do oculto6 no século XIX. A filosofia oriental fundiu-se com o ocultismo ocidental, modificando muitos dos antigos conceitos fundamentais para os sistemas mágicos ocidentais. Elas foram as bases dos ensinamentos secretos do sistema mágico de Gardner. O acréscimo às tradicionais crenças pagãs celtas vieram de tais fontes. (TERZETTI FILHO, 2012, p. 29). As tradições mágicas folclóricas de Gardner foram sendo engendradas no final da década de 1930, quando ele é iniciado, segundo sua biografia, pelo Coven de New Forest. O coven professava uma religião pré-cristã muito antiga. A senhora Old Dorothy o teria levado ao coven e o iniciado na bruxaria. “Estava quase iniciado quando a palavra Wicca foi mencionada pela primeira vez: foi então que ele soube que aquilo que pensava ter desaparecido nas fogueiras, anos atrás, ainda sobrevivia” (TERZETTI FILHO, 2012, p. 27-28)7. Segundo Terzetti Filho (2016), Gardner, no primeiro momento de sua formação, apresenta a Wicca como uma religião ancestral que, em sua visão, provavelmente encontra origens no período pré-histórico das ilhas britânicas e são transmitidas em segredo ao longo de séculos. Suas concepções foram baseadas principalmente a partir de uma reeleitura dos autores que defendem a ideia de uma sobrevivência folclórica e foram repetidas, ampliadas e reformuladas por outros membros da Wicca desde sua época. Gardner ainda localizou nas ideias de Robert Graves a abordagem literária em relação à noção de uma Deusa tríplice. Ou seja: donzela, A pesquisa de Terzetti Filho (2012) explica que a Wicca Gardneriana foi fortemente influenciada pela Golden Dawn, também conhecida como Hermética Ordem da Aurora Dourada. Fundada por Liddel McGregor Mathers e William Westcott, segundo o pesquisador, “ela teve um papel importante no desenvolvimento da história da magia ocidental e, até hoje, muitos de seus princípios e elementos são encontrados em correntes da Nova Era, assim como entre os grupos neopagãos” (TERZETTI FILHO, p. 48). 7 A biografia de Gardner foi escrita por Jack Bracelin (Gerald Gardner: Witch. London: Octagon Press, 1960). Não tive acesso à obra original. Trago os fragmentos disponíveis na dissertação de Terzetti Filho. 6 586 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e mãe e anciã. Graves foi um poeta, ensaísta e romancista inglês. Seu impacto sobre a formação da bruxaria moderna deriva de seu livro de 1948, The white goddess, publicado no Brasil com o título A deusa branca: uma gramática histórica do mito poético. Em 1951, na Inglaterra, a última das leis contra Bruxaria foi revogada pelo Parlamento; pouco depois, Gardner, sentindo-se mais seguro, promove um despertar da Bruxaria. Em 1954 e 1959, publicou seus livros Witchcraft Today, no Brasil, a obra recebeu o título A bruxaria hoje (2003) e The Meaning of Witchcraft, O significado da bruxaria (2018), título registrado no Brasil. “A estrutura da Wicca baseava-se numa quantidade indeterminada de elementos de magia cerimonial e teorias folclóricas que exerciam grande fascínio no meio ocultista” (TERZETTI FILHO, 2012, p. 30). Quer Gerald Gardner tenha descoberto a religião da bruxaria, quer ele a tenha inventado, não pode haver dúvida de que foi ele que a tornou pública e a promoveu na contemporaneidade. Na década de 1960 e 1970, a Wicca deslocou-se para os Estados Unidos e encontrou terreno fértil para germinar. Ela se percebeu encaixada e em sintonia com o contexto do movimento da Nova Era que emergia naquele país. A Nova Era é formada por um conjunto de práticas, valores e comportamentos que remontam ao movimento beat e à contracultura dos anos 1950 e 1960, uma espécie de filosofia de vida, que acredita que o mundo passa agora por uma Nova Era que é a Era de Aquário, antecedida pela Era de Peixes, que foi a Era Cristã. Técnicas espirituais e metafísicas do Oriente e de culturas antigas são valorizados (OSÓRIO, 2001; BEZERRA, 2012). Disseminou-se mais firmemente a partir do movimento hippie, assumindo novas dimensões. No bojo do cenário surge o Neopaganismo que abrange uma ampla variedade de crenças e tradições que incluem recriações do antigo druidismo celta, Wicca, magia cerimonial e neoxamanismo. É um fenômeno relativamente novo do ressurgimento na sociedade contemporânea de uma espiritualidade centrada na percepção da Terra como sagrada e que tomou impulso a partir dos movimentos da contracultura dos anos 1960 e se auto-define como um sucessivo das tradições religiosas dos antigos povos pré-cristãos europeus, particularmente os celtas, gregos, germânicos e nórdicos (OLIVEIRA, 2009). 587 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Para Terzetti Filho (2016), novas espiritualidades e religiosidades alternativas vinham ao encontro a motivação de se construir sociedades mais justas. Comunidades independentes e autossustentáveis, manifestações contra as guerras, enfim, a mensagem anunciada pelo movimento da Nova Era tinha interesse pacificador, de experiência pessoal interior, de sacralização da natureza e do anti-autoritarismo representado pelo patriarcalismo. É nesse período que a Wicca foi apropriada de modo significativo pelo feminismo e, nos Estados Unidos, passou por significativas mudanças. O cenário da contracultura americana revelou-se uma opção aos jovens da geração baby boom no tocante a um estabelecimento cristão patriarcal. Com autoras como Zsuzsanna Budapeste, fundadora da Wicca Diânica, e Starhawk (Miriam Simos), idealizadora da Tradição Reclaiming (Reclaiming Tradition), a Wicca tornava-se, agora, a face espiritualizada do feminismo contracultural (TERZETTI FILHO, 2016). Adota uma postura intensamente política, combinando práticas religiosas e mágicas neopagãs com ativismo político de esquerda, especialmente nas áreas ambientais e do feminismo. A Wicca chega ao Brasil, no final da década de 1990, trazendo o contexto da Nova Era e suas espiritualidades alternativas. Foi a Wicca com contornos de valorização do feminino e da natureza que foi disseminada no Brasil. Herança histórica da Wicca reinventada no contexto dos Estados Unidos, essa forma de bruxaria, de acordo com Terzetti Filho (2016), irá se ramificar em práticas mais voltadas para o culto à Deusa na forma como é conhecido no neopaganismo como Goddess Orientation [orientação da deusa]. “Estamos considerando como referência a produção de autores wiccanianos brasileiros considerados entre os adeptos os bruxos e bruxas pioneiros no país” (TERZETTI FILHO, 2016, p. 22). Com aproximadamente 70 anos de existência, a Wicca nasce, então, em um território específico, a Inglaterra, como a ideia de projeto nacional e enfatiza em suas obras introdutórias a Wicca como uma religião ancestral que encontra suas origens no período pré-histórico. Com sua ampliação e a iniciação de mais pessoas, a Wicca Gardneriana não tardou em cruzar o Atlântico e ser introduzida nos Estados Unidos e, posteriormente, chega ao Brasil. Embora ela tenha influenciado em 588 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e termos de prática (Terzetti Filho, 2016) todas as formas de Wicca posteriores e outras vertentes neopagãs, a Wicca que nasce com Gerald Gardner sofre atualizações, adaptações e ressignificações. A bruxaria neopagã é uma expressão religiosa de muito movimento e transição. Os bruxos de hoje, segundo Russel e Alexander (2008), podem rememorar mais de meio século de evolução e inovação; tendo aceito o princípio da invenção criativa como parte da sua religião, acreditam que sua habilidade de improvisar à medida que avança é uma das principais forças de sua comunidade. Eles chamam a atenção, ainda, para a possibilidade do pensamento sincrético, intuitivo e mítico, característica desse Saber Mágico, ser tão valioso quanto o pensamento analítico e que o panteísmo possa ajudar a entender concepções que o monoteísmo perdeu ao longo de anos na sociedade. Para Lévi-Strauss (1989), as narrativas míticas e a experiência estética cumprem a importante função de manter, alimentar e expandir reservas antropológicas complexas. A ruptura entre natureza e cultura transformou o homem em um ser domesticado, racional, desconectado com os operadores totalizantes das sensibilidades, do pensamento selvagem. A magia é uma forma de pensar e fazer no mundo que se aproxima de uma lógica do sensível (LÉVI-STRAUSS, 1989). Estamos aqui, portanto, nos referindo a uma possibilidade de reabilitação de uma ciência primeira, como afirma Almeida (2012), próxima de uma lógica do sensível. Numa concepção cartesiana não se reconhece geralmente que possa existir um conhecimento (ou consciência) intuitivo, o qual é tão válido e seguro quanto o outro. Não nos faltam mais operadores técnicos e tecnológicos para explicar os grandes esquemas do mundo, explica Almeida (2012), nos faltam o sentir, o imaginar, o contemplar, o enxergar e o ouvir. Falta aos homens resgatar os operadores pela lógica do sensível, da prática social e de outros saberes, sobre o mundo, como a arte e a espiritualidade. Cenários do contemporâneo e espiritualidade da Deusa A espiritualidade da Deusa dos dias atuais não está tentando recriar as condições exatamente como eram na Idade da Pedra ou em 589 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e qualquer outra época ou lugar. Ao contrário, busca-se aprender com essas pessoas (ancestralidade) como dar vida à Deusa de uma maneira que corresponda a sua própria experiência (POLLACK, 1998). Esse (re) despertar da Deusa pressupõe numa retomada de um saber mágico que só faz sentido, explica Morin (2015), se conectado às noções de símbolo, mito e magia que estão subentendidas umas nas outras: O símbolo que pode, certo, emitir de modo relativamente autônomo, alimenta o pensamento mitológico, e a magia alimenta-se do pensamento simbólico-mitológico-mágico; deve-se unir essas três noções num macroconceito para que cada um atinja a sua plena realização; em contrário, o símbolo permanece um estado de espírito; o mito, uma narrativa legendária; a magia, um abracadabra. (MORIN, 2015, p. 183). Na Wicca é possível perceber o estímulo contínuo ao pensamento simbólico-mitológico-mágico. A bruxaria sempre foi uma religião de poesia [...] Os mitos, as lendas e os ensinamentos são compreendidos como metáforas ‘daquilo-que-não-pode-ser’ dito, a realidade absoluta que as nossas mentes limitadas jamais conseguem apreender completamente. [...] Atos simbólicos, rituais são utilizados para revelar insights que vão além das palavras. (STARHAWK, 1999, p. 35). Entendemos ser possível aproximar os argumentos de Lévi-Strauss, Morin e Starhawk. Para Lévi-Strauss e Morin, o uso do simbólico, da imaginação foi sufocado pelo homem da ciência moderna. Starhawk nos fala de mentes limitadas. Carvalho (2017) afirma que a relação nos conduz a reflexão sobre a hegemonia do quadrinômio ciência-técnica-indústria-capitalismo em que não há espaço para o livre curso da imaginação, da energia da contemplação, da epifania da meditação. Estamos ressacados pela herança de valores que estiveram associados a várias correntes da cultura ocidental, entre elas a revolução científica, o Iluminismo e a Revolução Industrial. De acordo com Capra (1985), a maneira como encaramos o mundo, imputamos sentidos às 590 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e coisas, defendemos nossas ideias e nos relacionamos socialmente é a parte visível do iceberg de um padrão psíquico internalizado e nem sempre consciente. Porém correspondente a uma dinâmica construída a partir de um ethos8, enraizada a tempos e que confere um olhar peculiar de formação da sociedade ocidental. Capra (1985) denomina de força yang. Evocando valores da cultura chinesa, o físico, expõe o que parecem existir duas espécies de atividades: Uma em harmonia com a natureza e outra, contrária ao fluxo natural das coisas. [...] Em vista das imagens originais associadas aos dois polos arquetípicos, diríamos que yin pode ser interpretado como correspondente à atividade receptiva, conciliadora, cooperativa; o yang, à atividade agressiva, expansiva e competitiva. Em terminologia moderna, poderíamos chamar à primeira ‘eco-ação’ e à segunda, ‘ego-ação’. (CAPRA, 1985, p. 35). O físico apresenta o argumento que o projeto de sociedade ocidental baseou-se sistematicamente e preferencialmente em valores, atitudes e padrões de comportamento yang9. Ou seja: o conhecimento racional prevalece sobre a sabedoria intuitiva, a competição sobre a cooperação, a exploração de recursos naturais em vez da conservação, e assim por diante. Essa ênfase, sustentada pelo sistema patriarcal acarretou um profundo desequilíbrio cultural – um desequilíbrio nos pensamentos e sentimentos, nos valores e atitudes e nas estruturas sociais e políticas. Teria chegado o tempo de refletir sobre os avanços e (des)caminhos tomados. Bauman (2009; 2003) nos convida a exercitar aquela qualidade de espírito que combina pensamento, sentimento, imaginação e sensibilidade. Boff (2014) lembra que o sintoma mais doloroso, já Boff (2014) destaca que ethos em seu sentido originário grego significa a toca do animal ou casa humana, sendo assim aquela porção do mundo que reservamos para organizar, cuidar e fazer nosso habitat. Esse ethos (modelação da casa humana) abriga um espírito, “um corpo em morais concretas (valores, atitudes e comportamentos práticos) em consoante às várias tradições culturais e espirituais” (BOFF, 2014, p. 32). A noção de ethos, portanto, que adotamos parte de um conceito que evoca hábitos, modos e costumes. 9 Capra (1985) apresenta ainda um quadro associativo do yin e yang em relação a valores e atitudes culturais. “Yin: feminino, contrátil, conservador, receptivo, cooperativo, intuitivo e sintético. Yang: masculino, expansivo, exigente, agressivo, competitivo, racional e analítico” (CAPRA, 1985, p. 36). 8 591 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e constatado há décadas por analistas e pensadores contemporâneos, é um difuso mal-estar da civilização. Aparece sob o fenômeno do descuido, do descaso e do abandono, numa palavra, da falta de cuidado. “Há um descuido e um abandono dos sonhos de generosidade, agravados pela hegemonia do neoliberalismo com o individualismo e a exaltação da propriedade privada que comporta. Menospreza-se a tradição da solidariedade” (BOFF, 2014, p. 18-19). A solidariedade, complementa Carvalho (2012, p. 65), “tem a ver com a nossa responsabilidade ético-política diante da violência do capitalismo global”. Valores, atitudes e padrões de comportamento yang se distanciam de valores como intuição, solidariedade, cooperação, manutenção e nutrição da vida. “O mundo precisa ser mais feminino, slogan muito repetido em reuniões de ecologistas, não é palavra de ordem inútil, panfletária, mas algo apropriado para fundamentar a ideia de um mundo sustentável” (CARVALHO, 2012, p. 67). O fato de criar máquinas que permitam reduzir os efeitos da natureza sobre a vida cotidiana dá ao homem moderno a sensação de que sua razão é suficiente para se opor também à natureza interna. Tem-se, portanto, a sensação de que a sociedade industrial permitiu o desenvolvimento da potencialidade humana porque se opôs aos limites da natureza. Não há respeito aos ritmos dos ciclos naturais. Sem respeito aos ciclos, o sujeito de desempenho (Han, 2017), por exemplo, desenvolve quadros de ansiedade, depressão e transtornos de déficit de atenção. No extremo, ele busca a tentação contemporânea de desaparecer de si, conforme afirma Le Breton (2018, p. 9): “às vezes nossa existência nos pesa. Em uma sociedade onde se impõe a urgência, a agilidade, a concorrência, a eficácia etc., ser si mesmo já não é algo evidente”. A exploração da natureza tem andado de mãos dadas com a exploração das mulheres. A relação de igualar a natureza às mulheres tem sido identificada ao longo dos tempos. Desde as mais remotas épocas, a natureza – e, especialmente a terra – tem sido vista como uma nutriente e benévola mãe, mas também uma fêmea selvagem e incontrolável. Essa hostilidade emocional, considera Campbell (1997), tem raízes profundas na formação judaico-cristã da imagem normativa do ego masculino transcendente é a conquista da natureza, imaginada como 592 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e conquista e transcendência da Mãe. A noção do homem como dominador da natureza e da mulher e a crença no papel superior da mente racional foram apoiadas e encorajadas pela tradição judaico-cristã, que adere à imagem de um deus masculino, personificação da razão suprema e fonte de poder último. As leis da natureza investigadas pelos cientistas, de acordo com Capra (1985, p. 38), “eram vistas como reflexos dessa lei divina, originada pelo espírito de Deus”. No ocidente, não é apenas a ciência, a economia e a política que estão impregnadas como o paradigma centrado no masculino; Campbell (1997, p. 15) afirma que “a sociedade mantém a crença promulgada pelas religiões judaico-cristãs de que Deus sempre foi masculino”. Se a Terra está sob a regência do que alguns chamam de Deus, na visão de Prieto (2018, p. 11), “ele tem se mostrado extremamente ineficiente e incapaz de governar o mundo”. Sintomas de um mundo que tem crescido durante milhares de anos sem sua mãe, a Deusa. A Deusa com seus ciclos de uma progressão em espiral, deslocando-se para frente e para trás, num movimento espiralado, volta e se abre para novas experiências. A Wicca reacende esse movimento espiralado e traz como divino sagrado a Deusa: Ela é a fonte de toda vida. A força vital provém e flui por meio dela. A Deusa é a deidade primordial, sobrenatural, a força criativa de toda a vida. Se existe um Deus, ele é filho, o consorte ou uma manifestação da Grande Deusa. Qualquer outra divindade que possa existir emana dela. Na realidade, as múltiplas divindades reconhecidas e invocadas podem ser vistas com diferentes aspectos e faces da Deusa. Pensemos em um imenso corpo (Deusa) que possui e é formado por vários órgãos e membros (Deuses). Nenhum dos órgãos e membros (Deuses) vive e atua à parte do corpo (Deusa). (PRIETO, 2018, p. 208-209). Essa espiritualidade é pautada na adoração de uma Grande Deusa que pode ter muitos nomes e imagens, mas sempre representa a divindade como uma presença feminina: “doadora da vida, protetora, às vezes apavorante, mas sempre liga à natureza e à verdade dos nossos corpos” (POLLACK, 1998, p. 15). 593 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A Deusa cultuada na Wicca, não sofre uma abstração, passando para algum outro mundo além desta terra, mas é a fonte abrangente de nova vida que rodeia o mundo presente e assegura sua continuação. Segundo Faur (2011), enquanto Deus é uma força espiritual e transcendente, a Deusa é imanente e permanente, presente em todas as formas, energias, seres e ciclos naturais. Ela é, portanto, a própria Terra e seu conjunto que inclui plantas, rochas e homens. A bruxaria neopagã, então, emerge do mundo. Vem da terra, das pessoas, das plantas, dos animais, de toda a teia da vida. “Está aqui, no tempo presente. Há transformação e há revolução. Está é uma verdade feminina, esta é a Deusa que percorreu a história para estar conosco agora” (GREY, 2017, p. 10). Isso sugere que a Deusa10 não é um foco de pessoalidade, mas, primeiro, uma imagem impessoal dos poderes misteriosos da fecundidade. A humanidade de outrora não se enxerga como se estivesse controlando os processos vitais, mas, antes, como cooperadora deles. Considerações finais Diante do que expomos, percebemos que é necessária uma mudança de paradigma que só se faz emergente porque nos perdemos no meio do caminho. “O amor é a guerra para acabar com todas as guerras, e a guerra se abate sobre nós. Enquanto a nossa cultura se lamenta, o que fizemos de errado? É simples: a humanidade quebrou a aliança com a natureza” (GREY, 2017, p. 11). “Cada época possuiu suas enfermidades fundamentais”, lembra-nos Han (2017). No século XXI, a sociedade do cansaço, enquanto sociedade ativa e do desempenho, nos põe em um cansaço solitário que tem individualizado e isolado. Ela impede o ver, o agir, o regenerar. Contudo, não basta esperar apenas o que virá. Regeneração é a 10 Campbell (1997) afirma que existem fortes evidências de que, embora tanto as divindades femininas quanto masculinas fossem reverenciadas nessas sociedades arcaicas, o poder mais elevado do universo era visto como o poder feminino de dar e manter a vida, o poder encarnado no corpo da mulher. 594 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e palavra-chave dos desafios a serem enfrentados. A urgente reforma da sociedade, da vida, da alma e do corpo incide na regeneração de Eros (HAN, 2017; CARVALHO, 2017). Uma alma possuída de Eros, religa, integra e promove o retorno às fontes cósmicas (MORIN, 2005). São os dilemas do humano e os cenários sociais dos dias atuais que nos impulsionam a refletir quanto à necessidade de reconsiderarmos paradigmas vigentes e em curso. Concordamos com Almeida (2012) que afirma não se tratar de defender nenhuma apologia demissionária diante do desenvolvimento do processo civilizatório, da ciência e da tecnologia. No entanto, esse projeto de sociedade tem levado à degradação ambiental, ao estímulo à competição agressiva, ao consumo desmedido e aos excessos, porque é preciso ter, pois o sentimento de ser esvaziou-se. Vivemos tempos estranhos, um pouco como se estivéssemos em suspenso entre duas histórias, que falam ambas de um mundo que se tornou ‘global’. Uma é conhecida de todos. Seu ritmo é marcado pelas notícias do fronte da grande competição mundial, e seu crescimento segue a flecha do tempo. Ela tem a clareza da evidência quanto ao que exige e promove, mas é marcada por uma notável confusão em relação às suas consequências. A outra, em compensação, pode ser pensada como nítida quanto ao que está acontecendo, mas obscura no que exige, na resposta àquilo que está acontecendo. (STENGERS, 2017, p. 9). Longe de empreender uma solução para o problema, Morin (2005) alerta que não se trata de forma alguma de alcançar uma sociedade de harmonia na qual tudo seria paz. Para ele, a ‘boa sociedade’ só pode ser uma sociedade complexa que abraçaria a diversidade, não eliminaria as contradições e as dificuldades de viver, e que comportaria mais religação, compreensão, consciência, solidariedade e responsabilidade. Boff (2014) defende que a religião por si só não consegue corrigir os desvios, dilemas e enfermidades da sociedade. “O decisivo não são as religiões, mas a espiritualidade subjacente a elas. É a espiritualidade que une, liga, re-liga e integra. Ela e não a religião ajuda a compor as alternativas de um novo paradigma civilizatório” (BOFF, 2014, p. 23). Partindo dessa ideia, argumentamos que a Wicca se apresenta como 595 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e uma espiritualidade alternativa de enfrentamento aos desafios e cenários dos dias atuais, uma vez que adota outro ethos a partir de um outro paradigma. Essa outra ótica, portanto, celebra, em que pese o estudo até o momento, uma divindade feminina como Criadora de toda a vida, de cosmovisão que permite articulação com o ambiental e com o feminino, além de uma prática e pensamento orientado pela magia e pelo mito. Nesse sentido, existe uma tentativa de construir outras subjetividades cotidianas, criadoras de outras formas de viver, quiçá pelas vias regeneradoras, pela reforma da vida, do ser e retorno às fontes cósmicas (MORIN, 2005). Ou ainda, segundo Boff (2014), num notável esforço de superação do patriarcalismo e pelo fortalecimento da anima no homem e na mulher pelo apoio às mulheres. 596 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALMEIDA, Maria da Conceição de. Tecnociência e globalização. In: ALMEIDA, Maria da Conceição de; CARVALHO, Edgard de Assis. Cultura e pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 27-63. BAUMAN, Zygmunt. vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. ______. A sociedade líquida. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 out., de 2003, p. 8.( Entrevista concedida a Maria Lúcia G. Pallares-Burke) BEZERRA, Karina Oliveira. A Wicca no Brasil: adesão e permanência dos adeptos na Região Metropolitana do Recife. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião, Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2012. Orientação de Gilbraz de Souza Aragão. 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A deusa não conhece fronteiras e fala todas as línguas: [ Volta ao Sumário ] 599 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e pRoBlematizando a utilização de dRogas líCitas e ilíCitas: práticas educativas e experiências vivenciadas numa organização da sociedade civil do agreste pernambucano Elisângela maria dos Santos Silva Adriel Rodrigues do Nascimento Como referenciar este capítulo: SILVA, Elisângela Maria dos Santos; NASCIMENTO, Adriel Rodrigues do. Problematizando a utilização de drogas lícitas e ilícitas: práticas educativas e experiências vivenciadas numa organização da sociedade civil do agreste pernambucano. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 593-610. Elisângela Maria dos Santos Silva1 Adriel Rodrigues do Nascimento2 Introdução O consumo de substâncias psicoativas no mundo é um fenômeno que sempre acompanhou a formação das civilizações e seus contextos socioculturais. Fosse para cura de doenças, experiências religiosas e transcedentais, prazer individual e coletivo, raramente era vista como ameaçadora para o indivíduo e a sociedade. Isso porque para cada cultura, o uso de substâncias psicoativas estava intrisecamente relacionado aos princípios, leis e regras de conduta que determinavam quem, como e qual a finalidade do uso, de acordo com sua forma de organização e compreensão do sujeito e do mundo. A história sobre uso de drogas apresenta profundas transformações pois suas características foram se modificando com o tempo, a partir dos controles sociais formais e informais de agentes políticos, repressores, religiosos, familiares, comunitários, de saúde, dentre outros. Poderiamos retormar a uma descrição retrospectiva ancestral do uso do ópio originário da Asia Menor e Europa há 5.000 anos, da Cannabis encontrada no continente asiátio há 4.000 a.C, da bebida alcoolica utilizada em vários fins pelos egípcios, mas vamos particularizar recortes de alguns momentos específicos que trarão todo sentido para as discussões atuais sobre sujeitos, contextos e uso de drogas, que estão intimamente relacionadas ao relato das vivências que apresentaremos. Possui graduação em Psicologia pela Faculdade do Vale do Ipojuca- FAVIP, atua como psicóloga social no Centro de Educação Popular Assunção – CEPA, na cidade de Caruaru-PE. E-mail: silva.elisangelamaria@gmail.com. 2 Pedagogo e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea – PPGEduc da Universidade Federal de Pernambuco – Campus Acadêmico do Agreste, atua no acompanhamento de projetos pedagógicos no Centro de Educação Popular Assunção – CEPA, na cidade de Caruaru – PE. E-mail: adrielrodrigues.89@outlook.com 1 601 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e No século IV, a cristianização do Império Romano levou, todavia, ao colapso as antigas noções pagãs sobre o uso de drogas, as quais passaram a ser estigmatizadas não só por sua associação a cultos mágicos e religiosos, mas também por seus usos terapêuticos para aliviar o sofrimento [...] Assim, no século X, o emprego de drogas para fins terapêuticos tornara-se sinônimo de bruxaria ou heresia a ser punida, tanto por católicos como por protestantes, com torturas e morte. As acusações serviam, evidentemente, a fins políticos e econômicos. Ajudavam, também, a estigmatizar grupos, como o das mulheres, dos camponeses e dos pensadores que punham em questão os dogmas eclesiásticos [grifo nosso] (MACRAE, 2014, p. 33). Esse elemento da padronização hegemônica sociocultural de movimentos eurocentricos e fundamentalistas, originou a classificação econômica e organização social feudal, que passou a perseguir qualquer dissidente e a punir usuários de alcool e cannabis. Concomitante, a nobreza enchia os olhos com a exploração dos novos horizontes encontrados no comércio das principais drogas como ópio, alcool, tabaco, cannabis e coca, se instituindo os primeiros sinais da prática do narcotráfico. Vemos assim nascer a política proibicionista que perdura até os dias atuais. Para os proibicionistas, a cultura milenar sobre uso de subtâncias psicoativas, as crenças, valores, estilos de vida, religiosidade, contexto social se tornam irrelevantes diante das novas concepções de que o uso de drogas apenas degrada o sujeito, a sociedade e cria um perigoso comércio ilícito mundial. Em 1930 os Estados Unidos, não muito diferente de hoje, era um país extremamente xenofóbico e, encontrando uma estratégia higienista de tentar dizimar as comunidades imigrantes africanas e mexicanas, dentre outras menores, criaram uma ideia de condenação de um comércio maligno e prejudicial de narcóticos instaurando uma guerra implacável contra a maconha. Na verdade, o problema não estava em usar a maconha, os cientistas provaram isso. A questão é que negros usavam maconha. Pessoas negras representavam 78% das prisões por uso de maconha só em Nova Iorque. Essa disparidade social continua até hoje e esse elemento é representativo à discussões. Atualmente, após um paulatino processo de liberação nos estados americanos, a pergunta 602 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que se fazem é: Porque naquele período a maconha foi proibida e agora está sendo liberada? Na mesma época, no Brasil, o governo de Getúlio Vargas também adere a guerra contra as drogas, atingindo principalmente a população negra, indígena e mestiça da região Norte e Nordeste. Concidência? Essa proposta, nitidamente fortaleceu processos discriminatórios, preconceituosos e segregadores. As campanhas antidrogas, muitas com um cunho moralista, racista e religioso- tendo instauraram a política do terror. Os usuários, eram vistos como pessoas de alta periculosidade, violentas, incapazes de se responsabilizarem por suas vidas. Em 21 de outubro de 1976 é instituida a Lei de Drogas n° 6.3683, que trazia em si um caráter mais penalista, criminal do que social. Na prática, a lei foi amplamente usada para legitimizar uma verdadeira higienização, abarrotando os presídios e unidades socioeducativas- Fundação do Bem Estar do Menor (FUNABEM) e Fundaçação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM)- com pobres, jovens e adolescentes negros, intitulados traficantes, enquanto que, os verdadeiros agenciadores do tráfico permaneciam livres, em sociedade, agindo na obscuridade. Vale salientar que, de acordo com os principais documentos legais internacionais, o Estado não poderia adotar tão somente medidas repressivas e proibicionistas pois, os instrumentos de garantia de direitos já previam ampla proteção aos usuários/ dependentes de drogas, de acordo com os princípios do respeito a dignidade da pessoa humana. A Lei 6.368/76 foi definida sob as principais Convenções da Organização das Nações Unidas (ONU) das quais o Brasil era signatário: Convenção Única sobre Entorpecentes (1961) e Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (1971). Ambas definem quais substâncias ficam sob controle das comunidades internacionais, estabelecem os critérios para a disponibilização destas para uso médico e cientifico e combatem a prática do comércio ilegal. Enquanto dávamos os primeiros passos para o controle de substâncias e repressão ao tráfico ilícito de drogas, na década de 70, alguns países europeus já caminhavam às discussões sobre novos paradigmas que apresentavam o uso e dependência de drogas como um fenômeno complexo, multifatorial, indiciando assim os primeiros experimentos em Redução de Danos como alternativa às estratégias proibicionista estabelecidas pela “Guerra as Drogas”. As respectivas leis encontram se disponíveis em: http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/multilaterais/emenda-a-convencao-sobre-entorpecentes-de-1961-como-emendada-pelo-protocolo--de-25-03-1972/. Acesso em 09 de junho de 2019. http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/documentos/Legislacao/ ONU/329618.pdf. Acesso em 09 de junho de 2019. 3 603 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A partir disso, podemos considerar que em nosso país, a preocupação com os aspectos gerais sobre drogas lícitas e ilícitas- reconhecimento da fatores subjetivos, sociais, familiares, políticos, econômicos, assistenciais e criminológicos- aconteceu de fato com a promulgação da nova Lei de Drogas n° 11.343 (BRASIL, 2006). A implantação desta lei trouxe grandes impactos no aumento do número de presos por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias- INFOPEN(BRASIL, 2017) num período de 16 anos, entre 2000 e 2016 a população prisional aumentou 157%, sendo composta por 64% de negros, 55% de jovens entre 18 a 29 anos e 28% condenados e/ou aguardando julgamento por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Nesse sentido, percebemos que ao longo da trajetória, os principais aspectos das discussões produzidas, necessitam seguir ao campo de visão das complexidades existentes nesses fenômenos, que implicam diretamente nos contextos, sujeitos e drogas. Para a compreensão dos contextos, entendemos que se faz necessário dimensionar as características econômicas e políticas presentes nos diversos cenários sobre a comercialização de drogas, os aspectos socioculturais, as conjunturas sociais, a importância da identidade comunitária sob seus valores, crenças, história e a participação do sujeito na construção destas. O sujeito, em suas diversas possibilidades de SER, constitue sua subjetividade nas relações consigo mesmo, com o corpo, com o outro e o coletivo. Compreende-lo em suas múltiplas características biopsicossociais nos empodera de uma visão histórica dialética de nós mesmos e nossa relação com o mundo. O Centro de Educação Popular Assunção- CEPA, uma organização da sociedade civil localizada em Caruaru, município do agreste pernambucano, tem se firmado como um espaço socioeducativo que alia as perspectivas freireanas da Educação Popular a um novo modelo de gestão social, que estimula a institucionalização dos movimentos sociais a partir da participação social e popular, instrumentalizando-os para o constante diálogo entre Estado e sociedade. Nas oficinas (dança, teatro, capoeira, maracatu, informática, audiovisual), na educação infantil, no acompanhamento familiar, no 604 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e envolvimento de educadores/as, educandos/as, pais e/ou responsáveis, membros da comunidade, do sistema de garantia de direitos, é onde desenvolvemos a prática dialógica a partir das rodas de conversa, oficinas educativas, aulas passeios e ações culturais, que nos permitem refletir sobre a construção histórica dos elementos estigmatizadores da população negra, empobrecida, vítima de violências físicas, psicológicas e simbólicas, por vezes condicionadas nas desigualdades socioeconômicass em favor a manutenção da supremacia hegemonica que ainda sustentam concepções pseudocientíficas sobre o uso de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas que deram espaço a leis antidrogas e práticas de higienização social através da criminalização e da segregação do usuário/dependente. Com o objetivo de problematizar junto aos/às educadores/as, educando/as, família e comunidade questões biopsicosociais relacionadas ao uso de drogas lícitas e ilícitas; promover ações de cunho preventivo e protetivo acerca dos mecanismos sutis e avassaladores de aliciamentos, dependências e multiplos fenômenos gerados pela dependência e comercialização das drogas; problematizar o imaginário social4 predominante sobre as drogas, o Centro de Educação Popular Assunção-CEPA vem desenvolvendo um projeto de práticas preventivas sobre o uso de drogas, o qual nos propomos a socializar nossas vivências em algumas atividades (rodas de diálogo e aulas passeio) norteadoras de importantes considerações sobre a temática. Cartografia dos saberes Trazemos em nossa atuação a intervenção psicossocial (NEIVA, 2010), por compreender que na esfera individual e coletiva se faz Sobre Imaginário Social e Hegemonia Cultural, revisitar: Bronislaw Baczko. “Imaginação social”. In Enciclopédia Einaudi, s. 1. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Editora Portuguesa, 1985, p. 403. Carlos Nelson Coutinho. A dualidade de poderes: introdução à teoria marxista do Estado e da revolução. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 61. Maria-Antonietta Macciocchi. A favor de Gramsci. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 183. 4 605 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e necessário olhar para a construção das relações sociais, suas conjunturas e para a ação dos sujeitos no espaço individual e compartilhado. A intervenção psicossocial tem com característica o caráter científico usado desde a construção e planejamento de uma atividade até ao ato de provocar e gerar mudanças em grupos, instituições e comunidades. Essas mudanças são atemporais sem que seja necessário ser sentida e percebida pelo grupo. As ações acontecem na imersão das demandas trazidas pelos envolvidos. Demandas essas que podem estar relacionadas a problemas atuais ou antigos do sujeito, podem estar relacionadas com o assunto trabalho e/ou circular em questões sociais como acesso a moradia, alimentação, educação, trabalho, etc. Assim sendo, constantemente estaremos trabalhando com grupos complexos, homogêneos, heterogêneos, participantes ativos ou passivos, entre outros. O papel do interventor, portanto, é assumir dois lugares distintos: prático/facilitador e pesquisador. Conforme Neiva (2010, p. 49) “Sua capacidade de observação, escuta e análise deverá estar em constante uso, durante todas as etapas da intervenção”. Na proximidade com o outro se faz a construção de sentidos. Na psicologia, autores como Kenneth Gergen (apud SPINK, 1999) discutiam sobre a ideia de um movimento que adota a construção do conhecimento no coletivo, por meio da socialização de saberes e práticas. Na perspectiva construcionista, a produção de sentidos se dá pela compreensão da relação que as ciências tem com a realidade, pela constante procura de desconstruir a retórica da verdade e pelo empoderamento de grupos e sujeitos socialmente marginalizados. A Fenomenologia Existencial apresenta o sujeito nos seus vários modos de ser, buscando não uma única verdade, mas procurando novas perspectivas para olhar as verdades como sendo relativas ou diferentes umas das outras. Segundo Critelli (2007), a fenomenologia rompe com a idéia da metafísica que traz a verdade como única e absoluta. Mostra que a perspectiva e a verdade são relativas e provisórias. Além de preconizar a existência de verdades a fenomenologia também fala dos infindáveis modos de ser no mundo. “[...] um modo de habitar o mundo, de instalar-se nele, de conduzir sua vida e a dos outros homens com quem convive de forma próxima ou distante” (p.16). Segundo Pokladek 606 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e (2004) os caminhos da fenomenologia permitem ao ser humano uma compreensão do seu cotidiano e de suas formas de existir. E o que significa esse existir? Para Heidegger (apud JOSGRILBERG, 2002, p. 32-33), a existência é uma característica do ser humano que lhe permite uma abertura para o mundo e que sua existência, só existe de fato, quando ele se permite à essa abertura. O diário de campo, é uma importante ferramenta que tanto nos orienta para construção de novas vivências como para análise dos fenômenos emergidos em intervenções anteriores (LAGE, 2013), aliado ao conhecimento das práticas discursivas (SPINK, 1999) que nos conduz a compreender as interfaces dos dircussos subjetivos e sociais em suas liguagens e formas de produção. Nas práticas, visão e valores do CEPA temos como base as concepções da Educação Popular (FREIRE, NOGUEIRA, 1993) que tem como sentido de existir no esforço para mobilizar, organizar e capacitar científica e tecnicamente as classes populares através do estímulo à participação, construção do empoderamento, autonomia e ação-transformação. É no diálogo constante que surgem as provocativas, as reflexões e as mudanças. Esse diálogo se inicia no campo da prática educativa/ pedagógica que intencionalmente busca problematizar discursos hegemonistas e excludentes, e se multiplica nas rodas de conversa, nos encontros de formação continuada de educadores/as, nas oficinas educativas e aulas passeios. Caminhando nos territórios do vivido No Cepa temos oficinas educativas de dança, teatro, maracatu, capoeira, e audiovisual, além de um curso técnico de informática. Esses espaços acolhem educandos/as entre 08 anos a 18 anos de idade, bem como suas familias. Nas oficinas educativas nos uilizamos da oficina de criatividade para a discussão das temática. As oficinas de criatividade são espaços de construção de experiências tanto pessoal como coletiva. Ocorrem seguindo etapas: aquecimento, desenvolvimento fechamento. Ao se pensar em uma oficina 607 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e de criatividade podemos estimar um tempo para seu desenvolvimento, mas temos que considerar os tempos subjetivos, que nos são apresentados através da observação e interação. Além disso, nas oficinas o foco está direcionado à construção de potencialidades, criatividade e espontaneidade entre as pessoas do grupo. Vale ressaltar que esta intervenção pode atingir também quem está fora do grupo. Pois um sujeito que se encontra apenas como observador da ação pode se implicar com esta. Os recursos utilizados podem ser: música, teatro, artes plásticas (desenho, pintura, mosaico, etc.). O local utilizado para esta intervenção não precisa ser necessariamente fixo. Ele vai se apresentando de acordo com as disponibilidades e os modos de apropriação do espaço para cada proposta, provocando assim, um novo modo de agir sobre este espaço e criando uma nova forma de relação interpessoal (JORDÃO, 1999;MORATO, 1999). A oficina temática “Isto é droga?” foi realizada com dois grupos (dança e capoeira) e em dois momentos distintos. Traremos sua proposição, em comum, seguida pelos sentidos e representações que emergiram em cada vivência. Expomos dois cartazes com as palavras lícito e ilícito e suas definições. Apresentamos rótulos de diferentes produtos e algumas imagens impressas (cerveja, remédios, chocolate, açúcar, maconha, cigarro, guaraná em pó, ervas medicinais, refrigerantes, café, chá, dentre outros) que foram distribuídos aleatoriamente para cada educando/a e educador/a. Solicitamos que escrevessem seus nomes atrás das imagens. Em seguida, perguntamos para cada educando/a com relação a sua ilustração: ISTO É DROGA?, ISTO NÃO É DROGA?, ISTO É LÍCITO?, ISTO É ILÍCITO?, segundo os seus conhecimentos prévios. Após os educandos/as interagirem, socializamos as respostas, construindo um diálogo com as seguintes provocações; Porque jovens e adolescentes usam drogas? O que para você são drogas e quais as que conhece? No seu entender quais os efeitos das drogas para o sujeito, família e sociedade? Porque existem drogas ilícitas/proibidas? Qual droga consideram ser a mais prejudicial? Onde encontramos as bebidas alcoólicas? Porque o álcool e o tabaco é aceito em nossa sociedade enquanto que a maconha não é aceita? As crianças têm fácil acesso às bebidas alcoólicas? E outras Drogas? Como? 608 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Para a realização da atividade os grupos naturalmente se posicionaram em círculo, o que em muito contribuiu pois, a cada pergunta que fazíamos aos educandos/as nos foi possível aproximar deles, olhar no olho, trazer visibilidade ao sujeito e escuta a sua fala. Todos os educandos/as estavam participativos, fosse na inquietação, no silêncio, nos questionamentos ou relatos de vivência. No entanto, percebemos maior engajamento do coletivo da oficina de capoeira. Em análise, consideramos que os fatores faixa etária e gênero -na oficina de capoeira temos participação expressiva de meninos entre 10 a 16 anos- e os processos de constantes discussões que realizamos sobre interculturalidade5 estão gerando empoderamento dos educandos no que se refere a aceitação de suas raízes ancestrais e a formação crítica sobre os posicionamentos racistas tão evidentes contra o negro e sua cultura africana em nossa sociedade. Ainda sobre a oficina de capoeira, os educandos adolescentes, inicialmente se mostraram resistentes quando sinalizamos que a temática em discussão seria drogas por considerarem que os discursos trazidos em vários contextos sociais caminham para o repressionismo. A partir do diálogo estes, trouxeram significativas contribuições sobre suas concepções e relatos de vivências no/do contexto comunitário ao qual estão inseridos. De modo geral a compreensão sobre o uso de drogas segue ao entendimento do proibicionismo, associado a estereótipos disseminados por uma sociedade segregadora, tendo na figura do negro, jovem e pobre o protagonista dos problemas relacionados as drogas. Falas como “maconheiro”, “traficante”, “aviãozinho”, “morreu ou matou porque estava usando droga”, sinalizam a compreensão social sobre o sujeito usuário/dependente de drogas. Sobre o uso, emergiram as seguintes compreensões: “maconha mata”, “droga vicia no primeiro uso”, “maconha é a pior de todas”, o que nos remete a conjecturas formadas entre as décadas de 70 a 90, onde fortemente se faziam presentes os processos de segregação social. 5 No CEPA desenvolvemos uma projeto de práticas educativas de sensibilidade à conscientização da diversidade cultural 609 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O fechamento se deu a partir da escuta e reflexão da música Legalize it de Bob Marley. Ao final da atividade, fizemos uma avaliação grupal, onde os educandos/as sinalizaram o desconhecimento sobre algumas questões biológicas, sociais e culturais relacionadas ao uso de drogas, apontadas no momento de diálogo. Os educandos/as concordaram em dar continuidade ao diálogo, em outras vivências, a partir de propostas que se correlacionam com sua realidades, visão de mundo e modos de Ser. Figura 1. Oficina Isto é droga? Educandos e educadora da oficina de dança. Figura 2. Oficina Isto é droga? Educandos e educador da oficina de capoeira. Foto: Cepa. Foto: Cepa A droga do Ser Humano, foi uma proposta de teatro espontâneo6, realizada com educandos/as e educadores da oficina de teatro, que teve como objetivo provocar a construção de quadros de imagens, a partir de uma narrativa, preservando os traços subjetivos, mas colocando o sujeito no espaço do outro através da espontaneidade que o teatro possibilita. A experiência psicodramática se iniciou com todos andando pelos espaços como um movimento urbano cotidiano, em seguida se colocaram como pessoas em situação de rua, perpassando pelos processos de invisibilidade, segregação e vulnerabilidades (frio, fome, adoecimento, desproteção). Deitados no tapete, de olhos fechados, os participantes foram absorvendo os personagens enquanto um cenário era construído ao seu redor (papelão, lixo e outros objetos espalhados). No centro da cena montamos a frase A droga do Ser Humano. Ao abrirem os olhos, 6 Ver Aguiar, M. Teatro espontâneo e psicodrama. São Paulo: Ágora, 1998. 610 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e projetamos no cenário e nos personagens o debate sobre a vivência. Sobre o que se emergiu surgiram os seguintes sentidos: O humano, enquanto sujeito, ser caracterizado como uma droga; a pessoa em situação de rua ser rotulada como usuário de drogas; a pessoa em situação de rua ser excluída por sua condição social e subjetiva; as expressões de sentimentos, emoções e medos relacionados ao sujeito morador de rua e usuário de drogas. Seguindo sob os sentidos trazidos solicitamos que um integrante do grupo trouxesse um relato de uma história real e convidamos integrantes do grupo para representarem a história relatada. O protagonista relatou a história de um vizinho que ao ser descoberto se tratar de um usuário de drogas, foi expulso de casa e passou a morar nas ruas. O protagonista foi questionado pela diretora de cena sobre como processaria a sequencia dos pensamentos. Após o diálogo, em que diversas possibilidades foram pensadas, foi recriada a cena a partir de uma interlocução (como podemos montar a cena?) a diretora retirou-se do cenário, deixando o desenvolvimento das cenas aos egos-auxiliares e educandos, com liberdade de modificá-las a partir do papel que lhes foi encomendado. Na interação com os outros participantes e com a emergência de novas questões e alternativas, o grupo foi construindo uma representação cênica, atribuindo os papéis de um usuário de drogas, um amigo conselheiro, uma pessoa preconceituosa, tendo a dramatização uma participação coletiva entre atores e platéia que iam se revezando na cena. Na proposta psicodramática, a importância e a ênfase na expressão de sentimentos e emoções durante a dramatização localiza-se na possibilidade de ampliar a compreensão integrando-a à experiência vivenciada. Pensar sobre as contribuições e possibilidades do teatro espontâneo como estratégia no processo ensino aprendizagem em educação popular abre um fecundo caminho para se viver práticas inovadoras e ressignificantes. Ressignificar constitui o aprender, pois implica articular diferentes níveis de análise: individual – a partir dos diferentes personagens, seus contextos e histórias de vida –, grupal e social. 611 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Figura 3. Oficina A droga do Ser Humano Educandos e educadores da oficina de teatro. Figura 4. Oficina A droga do Ser Humano Educandos e educador da oficina de teatro. Foto: Cepa. Foto: Cepa. As aulas passeio possibilitam uma conexão do sujeito, sua identidade com diferentes contextos educativos/culturais. Nesta proposta os educandos/as vivênciam experiências de forma autônoma, a partir da sua curiosidade natural, enquanto que o educador realiza conexões entre a história do educando/a e as informações que vai absorvendo e assim, ele pode assimilar novas experiências com seu modo de ser no mundo. Inspirados na cultura africana e afro-brasileira, tendo por objetivo dialogar sobre as diversas manifestações e contextos psicossociais que permeiam a história dos caminhos africanos até chegar a conjuntura sociohistórica afro-brasileira, realizamos uma visita a um terreiro de candomblé da comunidade. A atividade teve como intuito incentivar educadores/as e educandos/as à discussão sobre o tema, apontando percursos que relacionam história, poesia, teatro, dança, capoeira, cinema, música, como produtores de conhecimento e ferramenta de diálogos sobre a luta dos antigos quilombos e mocambos, escravização do negro, marginalização pós abolição e identidade cultural (religião, arte, costumes, relações sociais, entre outros). A partir de um movimento de participação e vivência comunitária coletiva poderíamos discutir sobre preconceitos, violências, empoderamento, autonomia, o papel do corpo nos movimentos de luta, na dança, a construção da cidadania, dilemas contemporâneos, relações de gênero e étnicos-raciais, identidades nas religiões de matriz africana, o 612 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e sentido do uso de bebidas alcoólicas e ervas em celebrações/rituais, relação com a natureza e comunidade, entre outras demandas que viessem a emergir. A atividade se iniciou com uma visita na Academia de Letras de Caruaru, onde puderam conhecer os resquícios históricos de uma senzala e da participação dos negros escravizados na construção do município, culminando com a visita ao terreiro de candomblé do Pai Marivaldo, localizado no bairro Vila Kenedy, próximo ao CEPA. Tivemos como resultado o estimulo à reflexão crítica sobre os assuntos abordados dando maior permeabilidade à discussão e criação de novos sentidos sobre interculturalidade, preconceitos, estereótipos e processos de segregação social de sujeitos pertencentes a culturas de matriz africana. Os educandos/as trouxeram questões discursivas sobre o tema tratado a partir das concepções apreendidas e novos olhares alcançados durante a vivência. Alguns educandos, durante a visita, manifestaram ter a participação familiar em grupos religiosos de matriz africana, gerando assim um sentimento de visibilidade e pertença social. Trabalhamos também o sentimento de resistência, por estar no lugar de incômodo pela não aceitação, inicialmente, de visitar um terreiro de candomblé. Construímos um novo diálogo acerca das religiões, histórias, costumes, uso de substâncias e ervas psicoativas num contexto sócio histórico e cultural. Figura 5. Visita ao terreiro de Candomblé. Figura 6. Visita ao terreiro de Candomblé. Foto: Cepa. Foto: Cepa. 613 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O sentimento de identidade ligado ao território de nascença ou de pertencimento é um dos mais fortes na composição da subjetividade humana. Tivemos a oportunidade de vivenciar essa experiência de conexão profunda com a cultura a partir de uma visita à comunidade indígena Xucuru de Orubá, localizada no município de Pesqueira-PE. Para os indígenas, a relação com a terra denota sobrevivência, luta, resistência – algo pelo qual se vive e se morre. Na oportunidade podemos acompanhar a 18° Assembléia Xucuru, um espaço onde representantes religiosos e movimentos sociais discutiam diretrizes que norteiam a organização do seu povo, realizando um chamamento para a retomada das tradições, da relação com a terra, da importância da juventude para a disseminação da cultura às próximas gerações. Durante o evento tivemos oportunidade de visitar stands -instrumentos musicais, ervas e produtos medicinais, vestimentas, adornos, ferramentas de caça e pesca-, dialogar com indígenas e presenciar apresentações- Ritual de Celebração- tendo um contato mais próximo com a cultura e seus costumes. Para educandos/as e educadores/as, essa experiência proporcionou a possibilidade de estar em um novo lugar. Alguns adolescentes ficaram surpresos com a naturalidade em que grupos se reuniam para fazer uso de ervas diversas nos mais diversificados cachimbos. Esse impacto trouxe uma reflexão sobre a diferentes formas de socialização e uso de drogas lícitas e ilícitas em nossa sociedade. Enquanto que nas comunidades urbanas a socialização ilícita da cannabis, por exemplo, é tida como algo prejudicial ao ser humano e sociedade, o uso desta na cultura indígena sempre existiu e sempre esteve precedido de valores religiosos. A natureza concede as folhas, as plantas. O humano utiliza-a como medicamento pra cura, cura pela reza e reza que fortalece o corpo e a relação do ser com a terra, o sagrado. 614 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Figura 7 e 8. Visita a comunidade Xucuru de Orubá, Pesquera- PE. Fotos: Cepa. (IN) Continuum Poderíamos nos utilizar de conclusões sobre os relatos destas vivências, todavia, o projeto de práticas preventivas tem sua continuidade até o final do ano corrente. Durante esse período, temos a visão e certeza que estaremos mais próximos dos sujeitos, comunidade e dos representantes políticos, levando os resultados deste trabalho a partir das vozes dos até então silenciados. Aos educandos/as e educadores/ as lançamos o desafio de utilizarem da ferramenta de poder trazido pelo conhecimento para, através da dança, teatro, capoeira, música, documentários, curta metragens, exposições, seminários, conferências, entre outros, mostrarem o vivido e apreendido, lutando contra a despolitização da transformação social, rompendo com a aceitação de uma política neocolonialista e hegemônica. O processo de compreensão sobre a presença de drogas lícitas e ilícitas na sociedade deve perpassar uma aprendizagem política dos direitos do indivíduo potencializando a ser um problematizador em suas realidades mas, não menos importante, implica também na transformação da subjetividade. Ampliar a capacidade do sujeito pensar e agir diferente converje com a necessidade do sujeito ser diferente. Desta forma, a mudança e evolução de uma sociedade não haverá de se findar. 615 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências AFONSO, M. L. (Org.). Oficinas em dinâmica de grupo: um método de intervenção psicossocial; São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Ministério da Justiça. Lei Ordinária nº 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília (DF), p.14839, 22 de out. 1976. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6368. htm. Acesso em 10 de junho de 2019. ______. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad); prescreve medidas para a prevenção e uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e de dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília (DF), p. 2, 24 de ago. 2006. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2006/Lei/L11343.htm. Acesso em 10 de junho de 2019. ______. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Prevenção dos problemas relacionados 616 ao uso de drogas: Capacitação para conselheiros e lideranças comunitárias/ Ministério da Justiça. 6.ed. Brasília, DF: SENAD-MJ/NUTEUFSC, 2014. ______. Caderno de Educação Popular e Direitos Humanos. Porto Alegre: CAMP, 2013. ______. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. SUPERA: Sistema para detecção do Uso abusivo e dependência de substâncias Psicoativas: Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção social e Acompanhamento / Organizadoras: Paulina do Carmo Arruda Vieira Duarte, Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni/ 11. ed. – Brasília: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2017. ______. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN, 2ª edição. Brasília:MJ, 2017. Disponível em: http://depen. gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/ infopen-levantamento-nacional-deinformacoes-penitenciarias-2016/ relatorio_2016_22111.pdf Acesso em 15 de junho de 2019. CRITELLI, M. D. Analítica do sentido: uma aproximação e interpretação de orientação fenomenológica. São Paulo: EDUC/Brasiliense, 2007. FREIRE, Paulo. NOGUEIRA, Adriano. Que fazer? Teoria e A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e prática em educação popular. 4. Ed. 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Raimundo Nonato de Queiroz: a Teologia da Enxada e seus desdobramentos na cidade de Tacaimbó-PE entre 1969 e 1984. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 611-627. Adauto Guedes Neto1 Introdução Buscamos analisar a experiência da Teologia da Enxada, a partir da vivência e atuação do seminarista Raimundo Nonato de Queiroz2. O método de formação denominado Teologia da Enxada, que se deu sob a coordenação do padre José Comblin e cobertura do II SERENE, ocorreu entre 1969-1971 nas cidades de Tacaimbó-PE e Salgado de São Félix-PB. Nosso objetivo, no entanto, é compreender tal processo e seus desdobramentos, em meio à conjuntura católica e política de então, impactada sobretudo pelas transformações ocorridas na América Latina, a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965). Para tanto, trabalharemos com fontes oriundas do DOPS-PE, pertencente ao acervo do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE e documentos pessoais do próprio Raimundo Nonato. Do ponto de vista metodológico, a História Oral será utilizada na coleta de entrevistas, bem como análise de conteúdo da documentação citada. Por isso, a história oral que muitas vezes se torna um mergulho na cotidianidade é utilizada na nossa pesquisa como uma possibilidade a mais de entender o passado, mas tendo a noção também que a mesma “não é, portanto, um compartimento da história vivida, mas sim o registro de depoimentos sobre essa história vivida” (DELGADO, 2010, p. 15-16). Mestre e Doutorando em História pela UFPE. Professor Efetivo da Rede Estadual de Pernambuco, atualmente exercendo a função de Assistente de Gestão e Professor contratado da Faculdade do Belo Jardim – FBJ. Pertence ao Grupo de Estudos José Comblin – Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP. Endereço do Currículo Lattes: http://lattes. cnpq.br/0015352555852293. Endereço eletrônico: adautogn1917@gmail.com. 2 Natural de Limoeiro, Raimundo Nonato de Queiroz , destaca-se como um dos mais atuantes seminaristas na cidade de Tacaimbó entre 1969 e 1982. Formado em Teologia e Filosofia, assume a cadeira de Cultura Religiosa na FAFICA entre 1977 e 1980. Publica em 1996 o livro: Como ser eficaz em grupo pela Ed. Paulus e atualmente, acumula as funções de Conselheiro Tutelar na cidade de Serra Redonda-PB e Membro do Conselho Administrativo da Fundação Dom José Maria Pires na mesma cidade. 1 619 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Essa perspectiva metodológica, não nos serve apenas para tentar preencher algumas lacunas deixadas pela impossibilidade de uma quantidade maior de registros escritos, mas também por ser um método que nos remete à oportunidade de problematizar sobre a memória do referido período através dos depoimentos dos entrevistados, muito embora ressaltamos que: a memória, principal fonte dos depoimentos orais, é um cabedal infinito, onde múltiplas variáveis – temporais, topográficas, individuais, coletivas – dialogam entre si, muitas vezes revelando lembranças, algumas vezes, de forma explícita, outras vezes de forma velada, chegando em alguns casos a ocultá-las pela camada protetora que o próprio ser humano cria ao supor, inconscientemente, que assim está se protegendo das dores, dos traumas e das emoções que marcaram sua vida. (DELGADO, 2010, p. 16). O que afirma acima Lucilia de Almeida Neves Delgado pudemos perceber em alguns momentos em nossa pesquisa, especialmente nas entrevistas quando algumas questões que pensávamos serem descritas pelos entrevistados não eram relatadas, como uma espécie de vazio na memória que fora excluído intencionalmente ou inconscientemente. Por isso, a importância de outras fontes documentais como as que utilizamos para confrontarmos as informações adquiridas. Nossa intenção não é um estudo biográfico, mas a partir da atuação de um dos seminaristas que vivenciaram a Teologia da Enxada, compreender as características e o contexto em que a mesma se desenvolveu, bem como, percebê-la na prática tendo como referencial a atuação de Raimundo Nonato de Queiroz, que como toda trajetória por continuidades ou rupturas e que não segue necessariamente uma ordem cronológica ou fio condutor linear da vida aqui, como nos explica Bourdieu (2002, p. 184): A noção sartriana de ‘projeto individual’ somente coloca de modo explícito nos ‘já’, ‘desde então’, ‘desde pequeno’ etc. das biografias comuns ou nos ‘sempre’ (sempre gostei de música) das histórias de vidas. Essa vida organizada como uma história transcorre, segundo uma ordem cronológica que também é uma ordem lógica, desde um começo, uma origem, no duplo sentido do ponto de partida, de 620 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e início, mas também de princípio, e razão de ser, de causa primeira, até seu término, que também é um objetivo. Ou seja, não seguimos a perspectiva exposta na citação, por defender que nenhuma trajetória de vida tem caráter organizado na linearidade, mas que é cheia de imbricações, contextos diversos que nem sempre estão conectados com as diferentes fases da vida, e claro, por aqui não se tratar também de uma biografia, como já afirmamos. Sendo assim, destacaremos o que foi a Teologia da Enxada e seus desdobramentos na cidade de Tacaimbó, através da atuação do Seminarista Nonato. Contexto e Conjuntura da Teologia da Enxada Os fatores que contribuíram para o surgimento da Teologia da Enxada são diversos e dialoga com momentos distintos do catolicismo e sua relação com o mundo, seu envolvimento com as questões sociais, econômicas, culturais e políticas, como por exemplo as atividades desenvolvidas pelos Padres operários na França e a Ação Popular no Brasil, bem como o processo de modernização e abertura promovidos por João XXIII3 e continuado por Paulo VI. Analisamos anteriormente o contexto interno da Igreja Católica, as mudanças que ocorreram em sua maneira de lidar com as questões de seu tempo, e como isso acentuaram os conflitos entre conservadores e progressistas. A partir de então, percebemos parte da Igreja Católica, especialmente os grupos mais afeitos às mudanças aproximarem-se das camadas populares e distanciar-se da elite provocando fissuras no relacionamento entre ambos, “O pontificado de João XXIII (1958-1963) é a expressão mais visível das mudanças introduzidas na igreja. Durante sua curta passagem na direção da Igreja, com seus gestos surpreendentes e seus pronunciamentos inovadores, João XXIII inaugura uma grande sensibilidade em relação aos problemas contemporâneos, ao diálogo com outras ideologias e à preocupação pastoral com a situação de miséria das populações subdesenvolvidas”. (SEMERARO, 1994, p. 35). 3 621 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e As classes dominantes e o Estado não conseguiam aceitar a nova mensagem da Igreja que foi por eles percebida como excessivamente política no melhor dos casos, quando não subversiva. Nada demonstra esse fato com tanta clareza como os muitos casos de prisão, tortura, destruição de propriedade da Igreja e outros exemplos de repressão privada e estatal procedida contra líderes eclesiásticos. (MAINWARING, 2004, p. 190). O desenvolvimento de estudos da Teologia da Enxada no agreste pernambucano, especialmente na cidade de Tacaimbó ocorreu entre 1969-1971, período envolto a uma efervescência de acontecimentos que influenciou a formação dos seminaristas do ITER – Instituto de Teologia do Recife. A ideia de formação dos seminaristas numa perspectiva diferente da que comumente acontecia – estudos pautados, sobretudo na fundamentação teórica – entre as paredes do seminário e sem contato muitas vezes com o mundo externo, para a formação que partisse a partir do conhecimento da realidade do outro, mergulhado em suas dificuldades políticas e sociais cotidianas, na perspectiva dos temas geradores como vai se dar o método da Teologia da Enxada, não é uma experiência do ITER, mas surgem dos próprios seminaristas, conta com o apoio do seu professor e que foi o coordenador do método, o padre belga, José Comblin, e tem a cobertura do Seminário Regional do Nordeste II. Ainda sobre o contexto de surgimento da Teologia da Enxda, outros movimentos contribuíram para a atuação progressista católica que vão desde o catolicismo de esquerda desenvolvido pela AP – Ação Popular e passando pelo Concílio Vaticano II, anteriores ao período referido (19691971) e a Teologia da Libertação, que tem como um dos aspectos de seu nascimento a publicação da obra Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez em 19714, justamente o período em que estava se desenvolvendo o estudo coordenado por Comblin em Tacaimbó. Tais acontecimentos confluíam e se imbricavam, assim como a atuação dos dominicanos contra a Ditadura Militar no Brasil e a nova linha de pensamento da Igreja “Depois de sua criação em 1961, a Ação Católica Popular (AP) representou um dos principais canais católicos para a atividade política de esquerda”. MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo. Editora Brasiliense, 2004, p. 85. 4 622 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e para a América Latina, presente nas decisões da II Conferência do Episcopado Latino-Americano de Medellín, ocorrido em 1968. Sobre o II CELAM ocorrido em Medellín – Colômbia no ano de 1968, além de percebermos os ventos do Concílio Vaticano II chegando à América Latina, o mesmo foi influenciado pelo progressismo católico brasileiro, ao passo que suas decisões também o fortaleceu. Vários movimentos progressistas surgiram atravessados com o contexto de transformação da Igreja Católica apresentado até aqui. A Ação Católica Rural, a Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base, e especialmente a Teologia da Enxada, objeto de análise do referido capítulo, são as pontas do iceberg de tal momento histórico em passou a Igreja na década de 1960. Todos estão relacionados de alguma forma no seguinte trecho de conclusão do II CELAM: “queremos sentir os problemas, perceber as exigências, compartilhar as angústias, descobrir os caminhos e colaborar nas soluções”. (FERREIRA, 2003, p. 114). O mencionado trecho do texto de conclusão de Medellín foi encarnado como prática da atuação pastoral do Padre José Comblin, que a partir de diferentes momentos de reflexão junto com seus alunos-seminaristas do ITER, resolvem experimentar uma formação inovadora, percebendo, compartilhando e solucionando. Surgia a Teologia da Enxada, a partir de diferentes movimentos internos e externos ao catolicismo, movimentos que no dizer de Löwy (2000, p. 71), sobre o cristianismo da libertação não surgiam de cima para baixo ou de baixo para cima, mas da periferia para o centro: [...] o processo de radicalização da cultura católica latino-americana que iria levar à formação do cristianismo da libertação não começou, de cima para baixo, dos níveis superiores da Igreja, como a análise funcionalista que aponta para a busca de influência por parte da hierarquia sugeriria, e nem de baixo para cima, como argumentam certas interpretações de orientação popular e, sim, da periferia para o centro. Löwy utiliza o termo cristianismo da libertação se referindo à Teologia da Libertação por considerar que tal movimento não foi feito apenas por teólogos, e sim por cristãos, sejam eles católicos ou protestantes. Consideramos, que a Teologia da Enxada foi um desses passos 623 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e dados da periferia para o centro no sentido de ter contribuído para uma nova prática de atuação da Igreja Católica no agreste pernambucano, nesse caso por católicos, mas não apenas por teólogos, mais além deles por seminaristas e leigos que se engajaram no processo. Raimundo Nonato: um seminarista da Teologia da Enxada e a experiência do catolicismo progressista no agreste pernambucano Todo esse processo de transformações que a Igreja Católica vivia na década de 1960 pode ser percebido no agreste pernambucano, especialmente na cidade de Tacaimbó, quando da chegada dos seminaristas do ITER na referida cidade, que se instalaram em tal região e desenvolveu uma etapa complementar de sua formação no Seminário Maior, coordenada pelo Teólogo e Professor belga Padre José Comblin, e tendo como demais Professores e apoiadores da experiência os Padres: René Guérre e Joseph Servat (franceses), Humberto Plummen (holandês) e Eduardo Hoonaert (belga), ou seja, todos estrangeiros, pois nenhum Padre brasileiro à princípio deu apoio a ideia desse novo processo de formação. Assim descreve Comblin (1977, p. 09), como se deu o surgimento da formação dos seminaristas do ITER entre 1969 e 1971: No início de 1969, o Seminário Regional do Nordeste resolveu correr o risco de dar cobertura e orientação a uma experiência de tipo novo. Nove seminaristas de diversas dioceses, autorizados pelos seus respectivos bispos, projetaram viver alguns anos numa região rural. [...] Repartiram-se em dois grupos, um de quatro pessoas e outro de cinco. O primeiro instalou-se em Tacaimbó, município do Agreste pernambucano, situado a 170 km do Recife. O segundo foi viver em Salgado, município do Agreste paraibano, situado perto de Itabaiana a 80 km de João Pessoa e a 130 km do Recife. Os dois grupos constituíram um programa de vida em que a parte da manhã era reservada aos trabalhos de agricultura, a parte da tarde ao estudo e a noite aos trabalhos apostólicos. 624 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Dentre os seminaristas que foram para Tacaimbó, ali estava Nonato, e junto com ele: João Firmino, Francisco das Chagas e João Moura. Depois, com a saída de Francisco das Chagas no primeiro ano da formação, chegou para substituí-lo o seminarista Enoque Salvador. Estes seminaristas solicitam ao Bispo da Diocese de Caruaru Dom Augusto Carvalho, a ida de Pedro Aguiar para Tacaimbó e o mesmo concedeu, numa demonstração à priori de apoio às perspectivas de trabalho pastoral que seria realizado pelos seminaristas e por entender as afinidades existentes entre o Padre e os seminaristas, uma delas, a ligação com o campo, com os agricultores; Pedro, por ser de origem camponesa e os seminaristas por terem uma atuação pastoral muito ligada ao homem do campo. Dom Augusto (Bispo da Diocese de Caruaru, da qual a cidade de Tacaimbó faz parte), muito embora sempre tenha demonstrado posições conservadoras, é um dos Bispos a apoiaram a experiência da Teologia da Enxada no agreste pernambucano e participa da 4ª sessão do Concílio Vaticano II, conforme pudemos constatar no Jornal A Defesa, Jornal de orientação católica da Diocese de Caruaru, Nº 42 de 24 de outubro de 1965. Ambos, Padre e seminaristas, tinham a mesma formação teórica, ligada às ideias do Concílio Vaticano II, à experiência de Medellín, ou seja à efervescência progressista que o catolicismo vivenciava. A partir da escolha do local ordenação de Padre Pedro Aguiar, podemos fazer uma reflexão sobre o seu alinhamento com o Concílio Vaticano II (1962-1965), a partir da sua justificativa sobre o local da sua ordenação (bairro do Salgado, Caruaru-PE), “é porque os pobres também são Igreja”. O pobre, sobretudo na América Latina, será a partir do Concílio, forte objeto de atuação da Igreja Católica, principalmente no que concerne às reflexões necessárias para o mesmo se perceber enquanto sujeito e provocar sua libertação. O trabalho realizado foi inovador e um dos seminaristas nos explica melhor a ideia inicial da Teologia da Enxada e suas influências: “A ideia de ir para o interior do Estado, saindo da capital, era a ideia de buscar um diálogo novo com a população, sobretudo com os camponeses, com os agricultores [...]. A formação que a gente tinha em Recife, era uma formação sacerdotal influenciada positivamente pelo Concílio Vaticano II que se iniciou em 1962, e até 1969 quando fomos para Tacaimbó, houve realmente muita energia, 625 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e muita vontade de mudança... O Seminário Regional do Nordeste, onde estávamos estudando, a ideia era de evangelização popular, era de formar Comunidades Eclesiais de Base, no meio popular, quer urbano, quer rural.5 Esta iniciativa de trabalho que relaciona as atividades pastorais às atividades do campo, teoria e prática, na intenção de sentir de perto as dificuldades do agricultor, o sofrimento da população, no dizer de Nonato: “com o mesmo calor do sol, com o mesmo peso da enxada”, é entender melhor a sociedade; pensar alternativas para as dificuldades existentes e elaborar os estudos teológicos; Nascia assim, a Teologia da Enxada. Tacaimbó foi a primeira cidade no agreste pernambucano a conhecer esta nova experiência. Sendo o trabalho com o homem e a mulher do campo realizado numa perspectiva de troca de experiências, os seminaristas ao mesmo tempo que, discutiam e apresentavam seus conhecimento a cerca do evangelho, também aprendia a pegar na enxada, um dos fatores que contribuíram para o surgimento do referido trabalho pastoral, Teologia da Enxada, marca presente na ordenação dos seminaristas, conforme podemos observar na fotografia abaixo que registrou a ordenação de Frei Enoque em Tacaimbó: Ordenação de Frei Enoque em Tacaimbó. Percebe-se entre o ordenado, duas enxadas, símbolo do trabalhador(a) do campo. Foto pertencente ao autor. Entrevista concedida ao autor em 07 de março de 2009, no Centro de Formação Missionária, na sede da Fundação D. José Maria Pires. Serra Redonda – PB. 5 626 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e No ritual de ordenação ocorrida na Igreja Matriz de Santo Antônio em Tacaimbó, deitado de bruços, está Frei Enoque Salvador e ao seu lado direito e esquerdo uma enxada de cada lado, símbolo então dessa nova perspectiva de trabalho pastoral. O momento segue todos os rituais de ordenação estabelecidos por Roma, porém não deixa der em parte rompimento com as mesmas, ao estabelecer símbolos que não compõem as dinâmicas do rito das ordenações de maneira geral. Do grupo que viveu a experiência de formação em Tacaimbó, além de Enoque Salvador, João Firmino e João Moura ordenaram-se Padre. Nonato não se ordenou, escolheu a vida de missionário e continuou em Tacaimbó, animando, organizando, articulando, a comunidade local e contribuindo para uma participação do pobre de maneira mais efetiva na vida política e sindical da cidade, além das contribuições com dinâmica religiosa de então. Nonato: a luta e as perseguições sofridas por um ministro dos pobres Como já destacamos aqui, o contexto político do período analisado é marcado pela ditadura militar (1964-1985), é claro que a perspectiva inovadora da Teologia da Enxada e atuação dos de tal grupo, logo encontrou em nível local a resistência dos grupos políticos conservadores que estavam alinhados através da ARENA ao poder político estadual e federal. De tal forma os Governos Militares garantiam apoio nos municípios que se caracterizavam de certa forma como seus representantes nas cidades do interior brasileiro. Sobre a presença do ambiente vivido no Brasil durante a Ditadura e de que forma tal ambiente gerou impactos na cidade tacaimboense, uma das pessoas que viveram de perto tal momento, comentou: A ditadura militar manteve uma linha de informações, de deduragem. Qualquer mal entendido, a vingança era denunciar. Aí, houve quem fizesse isso, dizendo que os seminaristas tinham rádio que se comunicava com Cuba, Havana e outros países comunistas. Ouvia 627 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a BBC de Londres. Ela está em sintonia com outros sistemas políticos.6 Perseguições ou invenções como estas foram frequentes, e serem chamados de comunistas e subversivos era uma constante. Ou seja, a cidade estava em sintonia inclusive com os mesmos tipos de discursos e rótulos direcionados a todos que se posicionavam contra o Regime. Em cidades pequenas do interior, como Tacaimbó, basta ouvir a BBC ou ter uma prática pastoral de atenção aos pobres para ter tal tratamento. Outro entrevistado descreve outro tipo de situação, mas ainda se referindo às perseguições sofridas: Fomos visitados pela Polícia Federal. Eles nunca se apresentavam como policiais federais. A gente percebia, naturalmente, mas eles não se apresentavam como Polícia Federal. Era uma verificação, porque muitos vereadores na Câmara falavam de comunistas, subversivos. Para ser subversivo não precisa muita coisa não.7 A Igreja Católica em Tacaimbó, depois da chegada dos seminaristas do Padre Pedro Aguiar, ambos sob a orientação teológica do Concílio Vaticano II que, mais tarde seria teorizado pela Teologia da Libertação8, assumem uma postura de contraposição à teatralização9 da política local e a seus dispositivos de assujeitamento das camadas populares. Um desses momentos se deu o mandato do Prefeito Francisco Quirino (1979-1982), eleito com o apoio do ex-prefeito Carlos Leite, que havia se destacado por obras conseguidas para a cidade devido seu Entrevista concedida ao autor na cidade de Caruaru-PE, em 2003. Entrevista concedida ao autor em 07 de março de 2009. Serra Redonda – PB. 8 A Teologia da Libertação se autodefine como um “novo modo” de fazer Teologia. Esse “novo modo” se caracteriza por uma palavra: práxis. Práxis é aqui entendida sobretudo como prática política, a saber, como ação de intervenção sobre as estruturas sociais. BOFF, Clodovis. Comunidade Eclesial, comunidade Política: Ensaios de Eclesiologia Política. Ed. Vozes, Petrópolis, 1978, p. 191. 9 A esfera teatral do exercício do poder político busca conformar os governados, manter seu consentimento, ativo ou passivo; perpetuar o respeito às normas, valores e símbolos; fixar os limites do politicamente possível e tolerável. Constitui parte fundamental da hegemonia, domínio não baseado diretamente na coerção material. Thompson, E. P. (1982a, p. 8-11) a seção “O ‘Teatro do Apocalipse’”, de seu ensaio “Notas sobre o Exterminismo”. 6 7 628 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e bom trânsito com os ditadores militares que governavam o país. O caso se deu entre o ex-prefeito e Nonato, quando da visita do Secretário de agricultura do Estado em 1981. O mesmo visitou Tacaimbó para promover as ações do Governo Estadual (Marco Maciel), eleito indiretamente e filiado à ARENA, além de vir incentivar o agricultor à produção em prol do desenvolvimento do país. No sentido de criticar a atuação do Governo Estadual e local por falta de políticas públicas voltadas para os agricultores, a Igreja produziu uma faixa com o seguinte dizer: “plantar sem terra e colher com fome?10. Esta atitude provocou a ira de Carlos Leite, que repudiou tal atitude chamando os membros da Igreja de subversivos. Dona Maria, assim chamada aqui para não tornarmos pública a sua identidade, uma das leigas do movimento católico de então, descreve o que teria acontecido em tal ocasião: Lembro de uma vez em que Igreja colocou uma faixa sobre o comportamento dos políticos de Tacaimbó. Não lembro o que estava escrito. Um político na época, rebatendo começou a ofender pessoas das comunidades, e a alguns se dirigia como medrosos, isto em cima de um caminhão, feito um palanque, pois ninguém sabia quem havia colocado a faixa. Nonato deixou o político terminar de falar, subiu no caminhão e rebateu as críticas. Eu lembro quando Nonato disse: eu estou tremendo, mas não é de medo.11 No mesmo ano (1981), a Igreja registrou o acontecimento num caderno distribuído nas missas sobre a Festa de Santo Antônio, que refletia sobre a atuação da mesma em Tacaimbó: No dia 07 de abril passado, levantando a voz em defesa da vida estragada e ameaçada dos irmãos necessitados, a comunidade cristã, a Igreja local, fez uma faixa e colocou na frente da Igreja, lembrando ao Secretário de Agricultura do Estado, a situação de fome de nosso povo. Desafiados pelos políticos em praça pública, dois membros da comunidade testemunharam, na praça, a dor e as injustiças que Documento: O Rolo do Tempo 1969 – 1989: 20 anos de caminhada das Comunidades Eclesiais de Base CEBs de Tacaimbó, p. 01. 11 Entrevista concedida ao autor em Tacaimbó-PE, no ano de 2003. 10 629 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e sofre nossa gente. Irritado com isso o Sr. Carlos Leite, chefe do grupo político no poder, acusou na mesma praça, a Igreja de Tacaimbó, de pregar a agitação, a subversão e o comunismo. Unidas ao seu vigário Padre Pedro e ao Bispo de toda Igreja de Caruaru, as comunidades dos sítios e da cidade de Tacaimbó, enviam uma carta a todo povo do município. E no sábado santo, ao meio dia, o nosso Bispo D. Augusto fala pela rádio difusora de Caruaru, afirmando publicamente que tudo o que fazemos de evangelização aqui em Tacaimbó, fazemos com o seu incentivo, seu apoio e aprovação.12 O presente documento, além de nos servir para destacar a veracidade do acontecimento e os termos pejorativos utilizados pelos políticos da cidade para com a Igreja no sentido de atingir Raimundo Nnato, serve-nos para analisar a articulação da mesma com a comunidade, o apoio e confiança que tiveram do Bispo neste episódio diferente dos momentos de conflito sobre a Festa de Santo Antônio em outro momento. O poder político local, quando não consegue vencer com ideias a atuação política e pastoral articulada por Nonato em Tacaimbó, tenta desestabilizar os seus membros através de atitudes que visam atacar a moral destas pessoas, pondo em dúvida para a população o caráter e a honestidade dos mesmos. Numa destas tentativas com a intenção de atacar moralmente Nonato, um dos vereadores da cidade falsifica um pedido por escrito do mesmo, no qual solicitara do vereador um bujão de gás. A falsificação do bilhete é facilmente identificada, pois o falsificador assina Nonato Farias, porém o nome correto é: Raimundo Nonato Queiroz. Nonato responde ao vereador da seguinte maneira: Sr. Sizenando, Causou-me muito espanto e repúdio a sua atitude desonesta de usar o meu nome num bilhete falso para conseguir um bujão de D. Júlia. O senhor deve saber que isso é um crime muito grave, principalmente para quem é uma autoridade. Comportamento tão desonesto e baixo, só faz estragar a sua própria pessoa e colocá-la numa situação de descrédito muito elevado. Saiba o Sr. 12 Caderno comemorativo referente à Festa de Santo Antônio - Igreja Católica de Tacaimbó. 1981, p. 24-25. 630 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que isso foi uma profunda ofensa a minha pessoa. Pois eu nunca lhe autorizei a fazer nada em meu nome. O Sr. me obriga a esclarecer publicamente o seu comportamento desonesto, pois do contrário eu seria cúmplice de uma traficiência que aí em Riacho Fechado já se tornou pública. [...].13 O documento acima citado foi enviado ao referido Vereador e distribuído entre os populares como forma de esclarecer o ocorrido. As tentativas de desqualificar a atuação da Igreja em Tacaimbó, que se inicia com a chegada dos seminaristas na referida em cidade em 1969 e continua com as atividades realizadas por Nonato e Pedro Aguiar nas décadas de 1970, 1980 e início da década de 1990, foram constantes. Entre os anos 1960, 1970 e início dos anos 1980, a maneira que o poder político local encontrou para colocar a população contra as atividades realizadas por Pedro Aguiar a frente da Igreja de Tacaimbó é a de associar a Igreja a grupos de vândalos contrários ao Governo, isto é, subversivos, comunistas, palavras utilizadas em tom depreciativo. Este pensamento transformado em atitudes se confrontou com os agentes de tais práticas. Em nível nacional, a partir de meados da década de 1970 a Igreja Católica posiciona-se de maneira mais direta14 contra a Ditadura Militar, contrária às torturas, à falta de democracia e ajudando na resistência contra tal Regime. Aliás, no momento em que os espaços democráticos do país são tolhidos pela Ditadura, são as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs15, durante este período um espaço de resistência, mas sobretudo de articulação contra o poder militar. Em Tacaimbó, Nonato foi a principal liderança de organização das comunidades. A articulação da comunidade de Tacaimbó, feita por movimentos de leigos16, coordenados por Nonato e pelo padre Pedro Aguiar, chegou Trecho do documento redigido por Raimundo Nonato em 13 de maio de 1975. Ver: ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a Política no Brasil. São Paulo, Editora Brasiliense. 1979. p. 201. 15 “Quando o Estado reprimia os sindicatos e as associações de bairro, as CEBs tornavamse quase as únicas organizações populares onde as pessoas se organizavam para discutir suas vidas cotidianas, seus valores e suas necessidades políticas”. MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo. Editora Brasiliense. 2004. p. 200. 16 “Os cristãos leigos, nos diz o Vaticano II, são fiéis cristãos que, tendo sido incorporados em Cristo pelo batismo e constituídos Povo de Deus e, no modo a eles próprio, tornados 13 14 631 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e na zona rural através da Teologia da Enxada, como já fora citado, através da fundação do Sindicato de Trabalhadores Rurais em 1973, fundação da Cooperativa Agrícola Mista dos Pequenos Agricultores de Tacaimbó Ltda – CAMPEATA, em 1983, e construção de salões comunitários nos sítios, que serviam para a realização de missas, festas e articulação da comunidade. Tais realizações, destacam a importância do trabalho desenvolvido por Nonato no Agreste pernambucano, que no início dos anos 1980 foi para outra missão, desta feita em Serra Redonda-PB, contribuir com a criação do Centro de Formação Missionária, que reeditou a formação da Teologia da Enxada, sob a coordenação de José Comblin que voltava para o Brasil, depois de ter sido expulso pela ditadura brasileira em 1972. Considerações finais Buscamos alocar a partir de Raimundo Nonato, sua liderança e atuação, o entendimento sobre o progressismo católico, a partir de dois lugares – a Teologia da Enxada e o agreste pernambucano. O primeiro, trata-se do lugar da construção de uma nova formação teológica que apontava para uma nova prática pastoral; o segundo seria o lugar enquanto espaço de atuação. Preferirmos optar em deixar claro o lugar social originário de nossa produção histórica, pois conforme aponta De Certeau (2007, p. 77): Levar a sério o seu lugar não é ainda explicar a história. Mas é a condição para que alguma coisa possa ser dita sem ser nem legendária (ou edificante), nem a-tópica (sem pertinência). [...] instalando o discurso em um não-lugar, proíbe a história de falar da sociedade e da morte, quer dizer, proíbe-a de ser a história. Pois bem, perceber a atuação de Nonato a partir do desenvolvimento da Teologia da Enxada, dentro de um determinado universo, nos participantes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, cumprem da sua parte, na Igreja e no Mundo, a missão própria de todo o povo cristão”. LORSCHEIDER, Aloísio Cardeal. Os Ministérios na Igreja. IN: A Esperança dos Pobres Vive: coletânia em homenagem aos 80 anos de José Comblin. São Paulo, Editora Paulus, 2003, p. 553. 632 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e permite a realização de um trabalho que tem pertinência sem necessariamente ser apologética, já que tentamos destacar as continuidades e rupturas de um lugar que sofre alterações e recebe influências do contexto sócio-político, daí porque a variação de discursos e práticas. A Teologia da Enxada foi uma experiência realizada na busca de novos métodos de formação pastoral, rompendo com as práticas tradicionais e que resultou em conflitos internos e externos ao catolicismo, mas que sobre a mesma não temos a pretensão de cristalizar uma verdade absoluta, posto que “toda interpretação histórica depende de um sistema de referência; que este sistema permanece uma ‘filosofia’ implícita particular; que infiltrando-se no trabalho de análise, organizando-a à sua revelia, remete à ‘subjetividade’ do autor” (CERTEAU, 2007, p. 67). Porém, mesmo que nossa análise seja fruto de um olhar particular, promovemos uma análise que trouxe a oportunidade de reflexão sobre espaços pouco ou nunca antes estudados na perspectiva que propusemos discutir. As conclusões a que chegamos permite-nos destacar resultados da ação prática de um sujeito que se notabiliza pela simplincidade de viver e conviver o sofrimento e as dores dos mais pobres, já que a sua atitude de fé e crença de um Deus presente nos insjustiçados, foi indispensável na organização da classe trabalhadora na cidade de Tacaimbó, tanto os trabalhadores da cidade – através de cursos para o trabalho com teares (este voltado para artesãos da cidade ou pessoas que queriam aprender a tecer) e até mesmo a construção civil, quanto os trabalhadores rurais que tiveram na prática dos mutirões a formação da solidariedade e coletividade, e a fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Pudemos constatar que Raimundo Nonato e a Teologia da Enxada são frutos do seu período, de sua época, ou seja, de uma série de movimentos que confluem em sua formação. Desde os primeiros movimentos dos padres operários franceses, passando pelos movimentos de Juventude Católica, o Concílio Vaticano II e a experiência política de então, especialmente o contexto de ditaduras que impregnou na América do Sul, sobretudo no Brasil. A mesma se insere numa formação cultural político-religiosa especialmente brasileira, independentemente das influências dos movimentos franceses, pois “o que os brasileiros fizeram não foi ‘aplicar’ um corpo de ideias francesas, e sim usá-las como um ponto de partida para criar novas ideias, para inventar uma cultura político-religiosa”. (LOWY, 2000, p. 138). Nonato e a sua atuação, fram indispensáveis em tal processo. 633 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História Oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica. 2010. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes; Revisão técnica de Arno Vogel. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2007. COMBLIN, José. Teologia da Enxada: uma experiência da Igreja no Nordeste. Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 1977. 634 LÖWY, Michael. A Guerra dos Deuses: religião e política na América Latina. Rio de Janeiro. Editora Vozes. 2000. MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo. Editora Brasiliense, 2004. SEMERARO, Giovanni. A Primavera dos Anos 60: a geração de Betinho. São Paulo. Edições Loyola, 1994. [ Volta ao Sumário ] A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Reflexões soBRe a indumentáRia no Culto da juRema na paRaíBa Larissa Lira Como referenciar este capítulo: LIRA, Larissa. Reflexões sobre a indumentária no culto da Jurema na Paraíba. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 628-644. Larissa Lira1 Introdução Nossa reflexão versa sobre os materiais elaborados que constituem um acervo de significados, um patrimônio de símbolos expresso na estética corporal que constitui o universo mágico-religioso da Jurema. Pretende-se analisar elementos da indumentária que possibilitem melhor compreender e caracterizar o culto, o valor e usos que se faz do acervo visual construído pelos diferentes grupos e para uma multiplicidade de entidades. A expressão estética se apresenta aqui como extremamente importante na preservação da memória religiosa, o corpo se traduz como um espaço portador de informações, mensagens e sensações vivas, as performances das entidades trazem a memória de “um outro” que já foi corpo um dia, a dança, os objetos que carregam, a indumentária, são aspectos que ativam uma comunicação mnemônica entre passado e presente. Reflexões sobre o estudo proposto A planta de nome científico Mimosa Tenuiflora popularmente conhecida como Jurema, floresce no agreste e na caatinga nordestina, é nessa região, mais especificamente no estado da Paraíba, o campo empírico de observação que se pretende essa pesquisa. Na Paraíba, a Jurema é tida como “tradição da terra”, o seu uso é típico entre os indígenas do sertão ao litoral. A cidade de Alhandra, município localizado no sul do Graduada em Filosofia (UEPB), Pós-graduada em Design de Moda (SENAI Cetiqt-Rj), mestre e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões – PPGCR (UFPB). Integrante do Raízes: grupo de pesquisa sobre religiões mediúnicas e suas interlocuções, vinculado ao PPGCR. Orientado por Dra. Dilaine Soares Sampaio. http://lattes. cnpq.br/6302744951679133 (larissalira1306@gmail.com). 1 636 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e estado a 44 quilômetros da capital João Pessoa é considerada como o “berço da Jurema”, também reconhecida como um dos espaços sagrados desta religião. Tem essa importância, dentre outras, por ser o berço de uma linhagem de catimbozeiros importantes, dentre eles Maria do Acais2. As primeiras formas de manifestação das religiões afro-brasileiras na Paraíba e a compreensão da Jurema passa pelo entendimento da sua matriz indígena, o Catimbó. Roger Bastide (2011, p.149) vai destacar a contribuição do negro, sua adesão e influências ao Catimbó que, como aponta, era o que mais se aproximava das suas práticas, pois o negro encontrou no Catimbó a mesma estrutura mística existente em sua religião, a mesma resposta às mesmas tendências. Num esforço de recuperação e análise dos autores pioneiros dos estudos do Catimbó/Jurema, Dilaine Sampaio (2016) traça um mapeamento/estado da arte para o entendimento dos estudos dedicados ao tema. Segundo a autora: A Jurema e o Catimbó, inicialmente presentes no norte e nordeste brasileiro, embora já tenham ganhado outras regiões no Brasil e no mundo, estando, portanto, trasnacionalizadas, não receberam a mesma atenção dos autores pioneiros do campo de estudos afro-brasileiros, pois devido à concentração dos estudos na tradição jeje-nagô, o interesse pelo Catimbó/Jurema se mostrou ainda mais tardio se comparado às demais religiões afro-brasileiras, pois estudos mais detidos apareceram somente nos anos 30 (SAMPAIO, 2016, p. 152-153). Antes de pensar essa expansão do Catimbó/Jurema vale destacar a forma hostil, desqualificadora quando no uso de tons pejorativos essas manifestações foram sempre niveladas por “baixo espiritismo” e classificadas homogeneamente como magia ou feitiçaria e não como religião. Desse modo, foram tomadas como manifestações indignas de Maria do Acais é um nome central e fundamental para a memória afro-brasileira na Paraíba, especialmente do Catimbó e da Jurema, conhecida matriarca de linhagem de juremeiros, hoje uma mestra de jurema. Por tudo que já foi coletado, sabe-se que não existe uma única Maria do Acais, de modo que entre os juremeiros, até hoje, se menciona “a primeira”, a “segunda” e até uma terceira. Sua fama ultrapassava a Paraíba, como se tem notícias nos registros “involuntários” de Artur Ramos, passando por Gonçalves Fernandes, dentre outros autores que remetem a ela (SAMPAIO, 2016, p. 164). 2 637 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e existirem e, por consequência, de serem até mesmo registradas. Todavia, persistiram enquanto espaço de resistência das populações marginalizadas do Nordeste. O interesse nos estudos do Catimbó/Jurema passa despercebido ou foram mesmo ignorados pela linhagem denominada de “africanistas”. São os chamados “folcloristas”, estudiosos interessados no folclore, na cultura popular e, particularmente, na cultura nordestina (SAMPAIO, 2016, p. 185) os que se dedicarão aos primeiros registros. Fazendo um levantamento dos trabalhos mais recentes no campo percebe-se que ainda não existem trabalhos específicos (do gênero de dissertações e teses) sobre as indumentárias litúrgicas e as multiplicidades estéticas nos ritos de Jurema que, em nossa apreciação, abordem satisfatoriamente o assunto, tecendo esclarecimentos e considerações acerca do uso das vestes e adereços sagrados nessa tradição religiosa. Raul Lody destaca: Louva-se o pioneiro trabalho de Mário de Andrade, Câmara Cascudo, Renato Almeida, entre outros etnógrafos/folcloristas, que se dedicaram às coisas populares, porém sem ênfase na cultura material (LODY, 2010, p. 29). Compreendemos que a cultura material não era o foco dos seus trabalhos, o retardamento de pesquisas sobre o Catimbó/Jurema acabam por contribuir com algumas lacunas. Os estudos dedicados à indumentária nas religiões afro-brasileiras seguem a lógica das pesquisas com ênfase no Candomblé, que se destaca por um ritual em que a beleza, o esmero e investimentos no vestuário e outros paramentos são fundamentais no culto aos orixás. Pretendemos entender as trocas, influências e reinvenções de um quadro atual que já se apresenta bem diverso do que foi registrado pelos estudos pioneiros. Os trajes litúrgicos são de extrema importância na constituição dos rituais, preservam costumes e são fortes mediadores na construção de identidades religiosas, são linguagens visuais que expressam discursos. A espacialidade, local onde se realiza o culto veste-se a caráter a cada ritual, a estética elaborada na construção dos pejis3, tem por Altares onde são colocados os assentamentos e os apetrechos dos diversos espíritos. É onde também se energizam os objetos e as pessoas, onde se deixam os pedidos, as comidas, etc. (GONÇALVES, 2012, p. 7). 3 638 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e objetivo fazer a conexão entre a natureza e o mundo dos encantados, a multiplicidade de símbolos e objetos que constituem esses espaços sinalizam o gosto e a personalidade das entidades que estarão em terra no momento determinado pelo ritual. Esses espaços servem como depositários, dos altares, alguns objetos são levados para o corpo, que vai dar vida às expressões dos “senhores do outro mundo”. A indumentária ritual supera a dimensão estética, sendo utilitária e necessária, os adereços que compõem uma indumentária servem de instrumento para uso ritual. Por exemplo, a chianca4 que um mestre recebe, além de caracterizá-lo, é parte dos instrumentos que ele precisa para realizar seus trabalhos estando em terra, os movimentos com ele tem ação e sentidos precisos, exerce funções. A preservação, a valorização, os investimentos feitos nas vestes assim como os demais detalhes da ornamentação pessoal e espacial nas religiões afro-brasileiras movimentam um grande mercado de oferta e demanda que dinamiza a economia de cidades e estados5, somando-se ainda ao mercado virtual e a infinidade de lojas que movimentam as redes com enorme oferta de objetos litúrgicos. O terreno da economia, dos signos, dos ritos, da religião esclarecem comportamentos vestimentários, aprofundam a dimensão social do vestuário, apontando a importância e o valor que essas religiões depositam nas roupas e demais acessórios que trajam as entidades que “baixam” em terreiros dos mais simples aos mais sofisticados. Nas religiões afro-brasileiras as coisas deste mundo são elementos fundamentais para a manifestação do sagrado, no dizer de Vagner Gonçalves da Silva prefaciando a obra Joias de Axé de Raul Lody (2009). A estética compreendida nesta análise se distancia do sentido clássico dado à estética no campo filosófico6, como doutrina da sensibilidade, filosofia da arte e na busca por conclusões teóricas universais, Espécie de chicote. Destaque ao mercado São José em Recife -PE que favorece o abastecimento do mercado paraibano e que possibilita conhecimento sobre produção, circulação e consumo em âmbito afro-brasileiro. 6 Para uma introdução a estética no sentido filosófico, ver PAREYSON, Luigi. Os problemas da Estética (1997), onde o autor deixa claro o papel do filósofo e o valor do olhar filosófico nas especulações sobre a teoria do belo. 4 5 639 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e indispensáveis à reflexão filosófica. É louvável o papel do filósofo nas especulações sobre a estética, mas aqui destacamos que a reflexão não se limita a esse campo do saber e é para além dele que pretendemos caminhar. Na sociologia, Durkheim ao discutir os ritos positivos no livro terceiro, capítulo II de As Formas Elementares da vida religiosa (2008) destaca a importância do elemento estético como necessário e parte constituinte da representação ritual, ainda que o culto não vise esse único aspecto, o autor destaca que praticamente não há ritos que não apresentem o elemento estético em algum grau. Os efeitos físicos reproduzidos pelos símbolos religiosos não são imagens vazias que a nada correspondem na realidade, nem puramente uma obra de arte, expressam sentido, têm a função de manter, afirmar e são necessários ao sustento da crença do grupo. O ato de o/a juremeiro(a) vestir a entidade é parte da sua crença e cumprimentos dos seus deveres rituais, traduzem a confiança e disposição do/da fiel à religião. Esta é uma questão central e em torno dela gravitarão outras que, espero, possam ser equacionadas e satisfatoriamente respondidas ao longo do desenvolvimento da pesquisa aqui proposta. A partir dessas premissas, o enfoque dado ao tema nos parece bastante significativo: analisar elementos que possibilitem melhor compreender e caracterizar o complexo mágico-religioso do culto da Jurema, o valor e usos que se faz do acervo visual construído pelos diferentes grupos e para uma multiplicidade de entidades7. O sistema de produção que envolve o valor sagrado e mercadológico, estratégias de criação – processos de produção, distribuição e abastecimento – não apenas do vestuário, mas da cultura da aparência para além das roupas, expressas na materialidade construída nos espaços sagrados são aspectos também relevantes. Para análise empírica, nos propomos a desenvolver a pesquisa em três cidades do estado da Paraíba: João Pessoa, Alhandra e Campina Grande, e em três terreiros, a saber: um que opere com rito de Jurema e Candomblé (casa mista, onde há o Orixá e a Jurema, como se diz popularmente na Paraíba); um terreiro de Jurema (onde não se encontra Caboclos, pretos-velhos, baianos, boiadeiros, ciganos, zé pelintras, cangaceiros, pombagiras, que se constituem em linhas e se desdobram em falanges. 7 640 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e tão fortemente a presença de traços de origem africana na doutrina e no ritual) e um terreiro de Candomblé Ketu, para entender a presença do Catimbó/Jurema em rituais de Candomblé de Caboclo. Registrado por Mário de Andrade (2006, p.30), a presença de caboclos nos rituais de Candomblé marca a insistência da Jurema nos Candomblés, remetendo também a ligação do Candomblé com o Catimbó. Alguns desses espaços já foram visitados e contatos já foram feitos em ocasiões da pesquisa realizada no Mestrado, o que me faz pisar em universo um pouco familiar. Familiar também é a minha proximidade ao universo da produção de indumentária, como designer de moda tenho me dedicado aos estudos e divulgação da indumentária afro-brasileira, fator que me influenciou na escolha do tema do plano preliminar, serve de eco a minha experiência. Consideramos que o tema em questão não só está circunscrito ao espaço religioso dos terreiros, o espaço midiático8 e público9 nos faz ampliar o raio de análise. Detalharemos melhor o campo de pesquisa a seguir. Do tema ao campo Muitos são os processos de reelaboração do culto da Jurema, num fluxo contínuo de transformações os cultos praticados no espaço urbano vão se distanciando das práticas dos grupos indígenas. Devido ao desenvolvimento e expansão da Umbanda e do Candomblé, na Jurema, foram sendo repensadas as práticas, rituais e indumentárias entrando em sintonia com os acontecimentos do mundo afro-brasileiro. Segundo Gonçalves: Foram assimilados os exus e pombagiras, pretos velhos, baianos, processos de recolhimento, sacrifício, assentamentos e festas de apresentação dos iniciados, além da roda de santo (gira), os tambores (elus), os cânticos, pontos riscados, os trabalhos mágicos (linhas de direita e esquerda), jogo de búzios (cauris escuros e maiores que os usados no candomblé) etc. (GONÇALVES, 2012, p. 6-7). 8 9 Internet. Encontros de juremeiros/as realizados em Alhandra (PB) e o Kipupa Malunguinho (PE). 641 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Estas mudanças, contudo, não ocorreram de modo passivo, mas dentro de um processo dinâmico e dialético (SALLES, 2004, p. 99). A glamorização, ou espetacularização como alguns autores vêm denominando os processos de maiores investimentos e elaboração dos rituais no culto de Jurema nasce nesse processo. O abandono da rusticidade que dá lugar ao esmero na forma de vestir e de caracterizar os espaços de culto é uma marca de destaque em um grande número de terreiros de Jurema. Há um claro requinte que marca a preocupação na adoção de roupas e materiais industrializados que se distinguem da rusticidade de tecidos de baixo valor, acessórios simples e pés no chão batido. Essa realidade se destaca e evidencia um tempo distinto do que foi registrado pelos primeiros estudos referentes ao Catimbó/Jurema. Nosso objeto de reflexão são os materiais elaborados que constituem um acervo de significados e representações, um patrimônio de símbolos expresso na estética espacial e corporal que constitui o universo mágico-religioso da Jurema. Pretendemos classificar as indumentárias e acessórios como forma de aprofundar os conhecimentos sobre os importantes significados desse sistema de comunicação, obtidos diretamente a partir do valor e uso que deles se faz. Dentre os diferentes grupos religiosos que poderiam ser selecionados, fazemos a opção metodológica de dividi-los por modalidades distintas de culto, assim sendo tomamos: (1) Um terreiro de Umbanda/Candomblé em João Pessoa; (2) Um terreiro de Jurema na cidade de Alhandra e (3) Um terreiro de Candomblé Ketu, em Campina Grande. O espaço de análise pode ser ampliado como também maior diversificado, saberemos definir melhor numa fase de progressão da pesquisa. Pensar o tema em nível de Paraíba é uma tentativa de delimitar esse espaço de pesquisa, tendo consciência que poderão ser feita conexões com os estados vizinhos, Pernambuco e Rio Grande do Norte, regiões históricas de forte expressões juremeiras. As discussões que envolvem a experiência antropológica do estar em campo variam de modo a nos fornecer diversas formas de pensar a inserção e contato com o objeto de pesquisa. Minayo (2016, p. 57) entende o campo na pesquisa qualitativa, como o recorte espacial que diz respeito à abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico correspondente ao objeto de investigação. Para o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva: 642 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O “campo” não é somente a nossa experiência concreta (mesmo se esta fosse mensurável de forma tão objetiva) que se realiza entre o projeto e a escrita etnográfica. Junto a essa experiência, o “campo” (no sentido amplo do termo) se forma através dos livros que lemos sobre o tema, dos relatos de outras experiências que nos chegam por diversas vias, além dos dados que obtemos em “primeira-mão” (SILVA, 2015, p. 27). As possibilidades teóricas contemplam o rigor metodológico e analítico da pesquisa e somam à experiência. Para a realização, contaremos com um aporte de blocos teóricos de naturezas complementares. Nessa trama, a literatura de estudos sobre o Catimbó nos fornece a base para as primeiras reflexões acerca da religião de destaque na pesquisa. Na obra Música de Feitiçaria no Brasil (1933) Mário de Andrade, interessado em conhecer a musicalidade da região em viagens pelo Nordeste faz registros importantes sobre o Catimbó paraibano e nordestino. O folclore mágico do Nordeste: usos, costumes, crenças e ofícios mágicos das populações nordestinas (1938), de Gonçalves Fernandes é mais uma importante obra, Meleagro (1978) considerado o primeiro estudo mais completo acerca do Catimbó, Câmara Cascudo assinalou a influência da bruxaria europeia na religiosidade popular brasileira, tendo aqui encontrado canais de assimilação principalmente junto às populações negras e índias que também possuíam seus rituais mágicos. O sociólogo francês Roger Bastide (1945) em viagens pelo nordeste e estada em João Pessoa, faz registros sobre o Catimbó paraibano, é um dos autores que mantém a visão do Catimbó tendo em vista o Candomblé. René Vandezande foi o primeiro a se dedicar aos estudos dos espaços sagrados da Jurema, registrando a presença das cidades da Jurema em Alhandra em sua dissertação intitulada de Catimbó (1975). Um bloco teórico de uma literatura clássica contempla a primeira parte deste trabalho. A temática da corporeidade e os significados que o corpo assume ganha relevância para pensarmos a importância dele como cerne comunicacional, repleto de mensagens, sentidos, símbolos, signos e significados. Esses temas nos aproxima da antropologia da performance para pensar o Catimbó/Jurema, religião onde o corpo ritualmente preparado, passa por etapas de aprendizagem, recebe fundamentos e é portador de uma tradição religiosa. Essa abordagem nos possibilita estabelecer 643 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e um diálogo fecundo com Marcel Mauss (2003). Segundo Gilmar Rocha (2008): (...) a partir da etnologia religiosa de Marcel Mauss sobre a magia, e na sequência, as técnicas corporais nos ajudam a compreender melhor o sentido das performances verbais e corporais no âmbito das religiões mágicas (principalmente, afro-brasileiras, carismáticas e neopetencostais, sem excluir expressões do kardecismo, catolicismo popular e seitas esotéricas) no cenário brasileiro contemporâneo (ROCHA, 2008, p. 142). Outra obra de destaque é Antropologia do corpo e modernidade (2011) onde Le Breton analisa os significados que o corpo assume na modernidade e suas implicações antropológicas. O autor menciona os terreiros de candomblé no Brasil como local onde as pessoas buscam a parte de símbolo que falta a sua vida cotidiana (LE BRETON, 2011, p. 305), já que o homem é um ser de relação e de símbolo (LE BRETON, 2011, p. 290), um animal symbolicum no dizer de Ernst Cassirer na sua introdução a uma filosofia da cultura humana (2012). Pensar a dimensão simbólica que permeiam os corpos imagéticos e o sentido que ele assume nos cultos da Jurema é parte da reflexão que abarca a discussão entre a relação do juremeiro(a) e as entidades espirituais. Temos aí um campo antropológico fértil a explorar. Um terceiro bloco que se faz importante são as produções contemporâneas que diagnosticam as reelaborações do antigo culto indígena, com destaque aos escritos sobre os cultos da Jurema na Umbanda nordestina e paraibana de Sandro Guimarães Salles (2004) e Luiz Assunção (2006; 2011). Um quarto bloco que denomino de literatura local, é constituído de autores que estão produzindo e refletindo o contexto paraibano com pesquisas dedicadas aos cultos da Jurema, são eles: Idalina Santiago (2008), Rodrigo Grunewald (2009), Giovanni Boaes Gonçalves (2012) e Dilaine Soares Sampaio (2016). Um quinto bloco diz respeito a produções sobre a Umbanda e o Candomblé para entender a Jurema no contexto em que nos interessa: Lima (1979), Magnani (1986), Concone (1987; 2011), Prandi (1991; 2011) para citar alguns. O livro de Dilson Lima, Malungo decodificação 644 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e da Umbanda, é um dos poucos trabalhos que se dedicam a um maior número de linhas para a indumentária de uso ritual na Umbanda. Ao destacar a presença dos quatro elementos nos rituais (fogo, água, ar e terra), a terra é tomada como limite espacial representada na vestimenta. Identifica roupas utilizadas pelas pretas-velhas, pombagiras, uso dos colares (guias), do ojá (pano da costa) na Umbanda-Catimbó identificando a influência do Candomblé nos ritos de Umbanda. Num sexto bloco, autores que exploraram o campo da estética afro-brasileira traçam linhas marcantes e nos inspiram refletir a cerca da importância desta dimensão no universo afro-nordestino. Na tese Axós e Ilequês (2007) de Patrícia Ricardo de Souza, a estética, a beleza, a indumentária e os adereços litúrgicos descritos de forma minuciosa são reveladoras de uma dimensão de sentidos que se apresentam como aspectos centrais no entendimento do Candomblé. A tese de Eufrazia Cristina Menezes Santos: Religião e espetáculo (2005) situa a festa na estrutura ritual do Candomblé, a autora defende que a sua dimensão espetacular que envolve a estética, o simbolismo das cores, o aparato, a linguagem visual e gestual constitui um dos fatores responsáveis pelo aumento da visibilidade social alcançada pela religião no espaço público. O livro, Joias de Axé de Raul Lody (2010) apresenta estudo detalhado sobre a joalheria religiosa africana e afro-brasileira, com destaque aos fios de contas que na religião dos terreiros desempenham inúmeros papéis, o estudo aprofunda conhecimentos sobre os importantes significados dos elementos materiais no desenvolvimento das religiões de origem africana. É do mesmo autor o livro Moda e História: as indumentárias das mulheres de fé (2015) que destaca o papel das mulheres como mantenedoras de uma experiência patrimonial verdadeira, que mantêm, na criação de suas indumentárias, sua própria história. Dentre os vários estudos de Vagner Gonçalves da Silva, um de interesse para esse bloco: Arte Religiosa Afro-brasileira (2008), sobre as múltiplas estéticas de devoção brasileira com enfoque no Candomblé e Umbanda. Vale destacar que nenhum dos autores citados se deteram ao tema das expressões estéticas no culto de Jurema, a indumentária é sempre mencionada como importante na constituição dos rituais, porém nenhum estudo foi dedicado a essa religião. O sétimo e último bloco constitui-se da literatura que nos permitirá pensar o percurso metodológico da pesquisa, é sobre ele que nos detemos adiante. 645 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Nos rumos de um percurso etnográfico Tendo em vista os objetivos a que se propõem essa pesquisa optamos como recurso metodológico a etnografia. Aqui vale destacar que a etnografia não se resume ao trabalho de campo, nem tão pouco a observação participante, não se limita somente ao método utilizado, como nos orienta Mariza Peirano (2014, p. 383), para quem a etnografia transcende o método, são formulações teórico-metodológicas, a etnografia não se opõe a teoria, nem dela se distingue, nega-se assim a arbitrariedade do corte entre empiria e teoria. A favor da concepção e inspirada na antropóloga é que, para Gilmar Rocha (2006, p. 106) a etnografia deixa de ser vista como uma estratégia metodológica e passa a significar um empreendimento textual situado em contextos históricos e culturais específicos. Considerando a pesquisa de campo como empreendimento, desde o estágio inicial ao seu desenvolvimento e conclusão, planejamentos, produções e negociações se fazem necessários para que o/a pesquisador/a consiga realizar o que se propõe. Esse plano preliminar visa atravessar o obstáculo burocrático de submissão de análise ao Comitê de Ética, tendo em vista as licenças necessárias para contatos, entrevistas e uso de imagens, tornando documentalmente possível a sua realização. Pensar no objeto de estudo exige identificar a importância dele, tendo em vista seu impacto presente e futuro. A participação observante nos rituais tem em vista as condições de produzir os dados de pesquisa, o acompanhamento aos rituais, feitura e processos de sacralização desse acervo material possibilitará uma posterior classificação e melhor entendimento sobre a materialidade construída, cientes das dificuldades, implicações e respeitando regras e proibições da religião em questão. Para obter o detalhamento, descrição acurada do nosso objeto de pesquisa, pretendemos realizar entrevistas semi-estruturadas que serão gravadas e transcritas, falas que se somarão à escrita. Os sujeitos da pesquisa serão: dirigentes e filhos (as) dos terreiros, em diferentes idades e tempos de permanência na religião. O estudo que intersecciona relações entre produção, consumo e mercado pretende ouvir também profissionais, tendo estes vínculos ou 646 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e não com a religião, como: costureiras (os) e comerciantes, como forma de entender a rede de trabalho e comércio que se constrói ao redor dos terreiros e que colabora com a manutenção dos rituais. A vitrine virtual é também um espaço de análise, home pages de terreiros, de sacerdotes/ sacerdotisas, sites informativos, lojas virtuais de objetos religiosos, nos auxiliam na compreensão do mercado e análise desta rede de contatos que se intercomunicam e expressam sua fé nas “redes”. Os encontros de juremeiros/as a nível regional e nacional também são espaços de socialização férteis a nossa observação. Acompanho há dois anos alguns desses encontros de juremeiros/as. No Kipupa Malunguinho (2018) tivemos a oportunidade de fazer registros fotográficos que se transformaram posteriormente em exposição fotográfica, também nos rendeu a participação em concurso e foto premiada em evento acadêmico. Aqui destaco que a etnografia me despertou/incitou a arte da fotografia. A câmera fotográfica será um dos equipamentos utilizados, além do gravador de voz. Os objetos visuais que dão forma a etnografia é uma experiência heterogênea e rica: Para a antropologia, o cinema e a fotografia se apresentam seja como instrumentos de pesquisa, linguagens com potencial de expressão de conhecimento ou mesmo veículos de representações, valores, ideias, ethos, códigos, dentre outras coisas que investigamos quando olhamos para o mundo (BARBOSA, 2016, p. 12). A imagem, segundo Bittencourt (1998, p. 198) pode contribuir para a captura de aspectos visuais que transcendem a capacidade de representação da escrita. E ainda: “Na realidade, a imagem e os meios visuais, quando utilizados como instrumentos etnográficos, ampliam as condições para o estabelecimento de um diálogo fecundo com outros universos culturais” (1998, p. 200). A pretensão é trabalhar o material imagético em consonância com a produção teórica, esse é uma questão que pretendemos amadurecer e que teremos dimensão no progredir da pesquisa. Serão acrescidos aos blocos teóricos bibliografias sobre a dimensão dos estudos de uso de imagem (filme e fotografia) na etnografia, destacamos autores como; Gregory Bateson e Margareth Mead (1942), Roland Barthes (1984), Elisabeth Edwards (2011), Chris 647 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Morton (2005), Sylvia Caiuby Novaes (2006;2008), Francirosy C. B. Ferreira (2016), dentre outros. A literatura disponível sobre o tema será objeto de consulta e espera-se que a etnografia realizada venha a ser esclarecedora e de fato traga à tona resultados que dialoguem com trabalhos anteriores, confronte dúvidas, incitem a despertar novas questões, seja fecunda, ampliando o leque de possibilidades interpretativas e desempenhe o papel dela que é de ser também uma boa teoria. Breves e iniciais considerações Nossa hipótese de trabalho é que a análise da indumentária, adereços e objetos litúrgicos são peças-chaves no entendimento de um complexo religioso. Tendo em vista a introdução de uma pluralidade de elementos das variadas tradições religiosas nos cultos de Jurema na Paraíba, pressupomos que há um acervo material múltiplo e diverso a ser investigado, compreendido de modo mais atento e acurado. Descrever a evolução das maneiras de vestir, analisar o vestuário a partir da produção, do consumo, do mercado, inovações aceleradas e espetaculares que mudam obedecendo aos frêmitos do ar do tempo, é uma tentativa de diagnosticar uma gama de costumes presentes nas estéticas juremeiras. É o estudo da linguagem, as interseccionalidades produzidas por esse texto visual, origens e transformações na configuração dos cultos de Jurema e o registro dessas expressões, que nos interessam como objeto de estudo. No trilhar deste percurso, a etnografia aparece como abordagem de pesquisa eficaz aos resultados a que se propõe esse plano preliminar, refletir e amadurecer os rumos iniciais é o objetivo do presente escrito. 648 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ANDRADE, Mário de. música de feitiçaria no Brasil, 2ª ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2006. ASSUNÇÃO, Luiz. O reino dos mestres: a tradição da jurema na umbanda nordestina. 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Religiosidade popular e festa, do campo à cidade: contribuições antropológicas para a valorização de uma identidade cultural do Município de Itatuba – Paraíba/Brasil. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 645-656. Givanilton de Araújo Barbosa1 Introdução Os Fenômenos Sociais requerem pesquisa empírica e acadêmica para a sua compreensão. Centrado na área dos estudos de Antropologia da Religião, está situado no que diz respeito a formação da identidade cultural brasileira, contudo, a que remete este estudo, se dá nas manifestações imbricadas na religiosidade popular, isto é, caracterizam-se nos princípios da pessoalidade, fé e devoção a imagem sacra e espiritualidade. Além do mais, há a criatividade persuasiva com base na crença religiosa de mobilização comunitária, fazendo com que haja significativo reconhecimento desta crença, aceitação e integração da comunidade. O artigo visa apresentar resultados primeiros da etnografia sobre uma expressiva celebração imbricada na religiosidade popular denominada de “Festa de Maria Machado”. De acordo com os interlocutores, a festa sagrada tendo o próprio nome da idealizadora se inicia por volta de 1970 devido à devoção de Maria Machado ao “São Sebastião”. Os primeiros preparativos iniciaram em sua própria residência localizada na zona rural do Município de Itatuba – região agreste, próximo de Campina Grande e em média 120 KM da capital João Pessoa, Estado da Paraíba, anos depois, Maria Machado passa a morar em um bairro da zona urbana da mesma cidade. Maria Machado não é mais viva, mas deixou seu legado singular e sobretudo sua devoção entre o sagrado e profano, tornando um passado vivo. O estudo etnográfico objetiva identificar a “Festa de Maria Machado” sendo de caráter à uma manifestação popular na constituição da identidade cultural e religiosa do município e região, do campo para a cidade, reconhecer e valorizar a festa como potencial de desenvolvimento Mestrando em Antropologia Social (PPGA), membro do grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Sociedade e Ambiente todos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/7215509323122028, givaniltonbarbosa10@gmail.com. 1 653 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e do patrimônio cultural local. Ao aprofundar o estudo vinculado ao tema, espera incentivar o contato dialógico com essa realidade sociocultural, introduzindo os métodos e técnicas de abordagem à pesquisa antropológica. O percurso metodológico segue a continuidade de breves apontamentos de trabalho de campo seguindo do exercício dialógico coordenado para exercitar métodos e técnicas de pesquisa antropológica (MALINOWSKI, 1986, p. 156-157; DURKHEIM, 1996, p. 166; VELSEN, 1987, p. 355; NADEL, 1987, p. 56 e 62), elaboração de dados empíricos, registros fotográficos e sistematização dos dados coletados, sobretudo, relacionar o objeto de estudo com perspectivas epistemológicas para pensar, refletir e compreender à luz de conceitos na qual abordam a religião como sistema cultural (GEERTZ, 1989, p. 101). A “Festa de Maria Machado” possui especificidade própria caracterizada na devoção ao São Sebastião, Rural/Urbano, Sagrado/Profano e consequentemente possuidora de uma dualidade. É uma etnografia. Olhar investigativo numa religiosidade popular na qual direcionada para seu modo de fazer, está vinculada a uma sabedoria individual atrelado ao sentimento de coletividade de indivíduos. As contribuições antropológicas se dão no reconhecimento empírico e na produção desse saber relacionando-o com a ciência antropológica de modo geral, um estudo antropológico, tendo em vista que não há um estudo minucioso e nem se quer registros e documentos sobre a festa popular de cunho católico. Quanto ao objeto de estudo do antropólogo ou o objeto da Antropologia Social quer historicamente quer quanto a orientação total de seu enfoque relaciona-se à compreensão dos povos nativos, das culturas que criaram e dos sistemas sociais nos quais vivem e agem (NADEL, 1987, p. 49). Nadel afirma também que o antropólogo será diferenciado pelo papel ocupacional que tem de desempenhar por ser um observador científico, sempre curioso e fazendo perguntas. “penso que esta é a condição do trabalho antropológico e é esta condição que devemos justificar e explicar para as pessoas as quais estamos trabalhando, o antropólogo deve tentar se aceito enquanto desempenha o papel de antropólogo (1987, p. 56). Todavia, está relacionada intrinsecamente ao sincretismo católico em devoção a são Sebastião, isto é, um fenômeno de religiosidade 654 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e popular está caracterizado sobretudo na ideia de catolicismo plural, dos movimentos do catolicismo voltado para o que algo que se renova, tendo vista a tradição para algo pulsante que se renova, tornando-se tradição viva no processo de espetacularização desta cultura. Além do mais, é um patrimônio imaterial, como elemento nordestino que está previsto no artigo 216 da constituição de 1988 que caracteriza dentro da imaterialidade as festas populares. Outro marco institucional se dá com o Decreto 3551/2000 que prevê a preservação do modo de fazer, neste sentido, é importante que os agentes reconheçam esse pertencimento. Ao estudar esta manifestação popular religiosa de fé católica, espera-se o fortalecimento, reconhecimento e valorização de uma expressiva força de representatividade cultural e simbólica e em outras instituições, assim, forma pela qual de manutenção da sociabilidade festiva e da religiosidade popular local fazendo com que novas gerações possam ter acesso e conhecimento da trajetória de Maria Machado e seu legado. Maria Machado saia de casa em casa pedindo mantimentos e auxílio financeiro aos amigos da cidade e região em cidades vizinhas para fazer a homenagem ao “São Sebastião”. A festa continua sendo cultuada na zona urbana, foi construída uma capela que era o sonho de Maria Machado para a continuidade da homenagem ao “São Sebastião”. Atualmente continuam os mesmos rituais comemorativos, a solicitação da colaboração de setores públicos e apoio da comunidade. A festa como um todo, há a parte lúdica com parque infantil, barracas de comidas típicas e as comemorações religiosas ao santo, agora em nome de “Maria Machado”. De acordo com os recursos financeiros disponibilizados pode possibilitar a contratação de grupos atrações musicais, há a permanência anualmente da participação de uma banda de pífaros para os cortejos e oferendas com apoio popular. Por fim, a etnografia tendo o princípio norteador a alteridade busca a oportunidade de formação e qualificação por meio desta etnografia coadunando com a reflexão acadêmica, patrimônio cultural imaterial e o contato com a cultura da religiosidade popular do interior da Paraíba. Maria Machado não é mais viva, mas deixou o seu legado de honra, respeito, protagonismo, singularidade e sobretudo sua devoção ao São Sebastião, tornando um passado vivo. 655 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A Gênese da Celebração O estudo interpretativo da cultura representa um esforço para aceitar a diversidade entre várias maneiras que seres humanos tem de construir suas vidas no processo de vive-las (GEERTZ, 1997, p. 29). Diante disso, ao indagar duas interlocutoras em roda de conversa sobre a origem da festa e da devoção que Maria Machado as iniciaram, relatam que os primeiros preparativos se dão por volta do ano de 1970 quando morava na zona rural do município. Em destarte, relataram que o fazer da festa era algo significativo e enriquecedor para a vida de Maria Machado como também seu gosto e apreço em organizar os festejos e oferendas ao santo em sua própria residência, na frente de sua moradia ainda na zona rural instalava-se um parque infantil, que ali, as crianças presente pudessem ser agraciadas, os adultos localizavam-se na “seresta”, um espaço destinado para músicos apresentarem seu trabalho, de forma geral, o divertimento e lazer para os visitantes. Os primeiros preparativos sagrados em devoção ao “São Sebastião” iniciavam-se dentro de sua residência com as imagens do santo, rezas, agradecimentos, ramalhetes de flores junto a imagem sacra. A celebração realiza-se anualmente no mês de janeiro, os preparativos iniciam no mês de agosto como o pedido de colaboração nas comunidades circunvizinhas como também ao setor público municipal. A festa religiosa conta com a colaboração dos familiares, mas, sobretudo da comunidade e vizinhança, amigos e amigas de longas datas que teve e mantiveram o respeito a Maria Machado e sua devoção. Atualmente, a celebração conta com apoio dos filhos e filhas dos que já colaboravam desde a gênese da festa. A “Festa de Maria Machado” não faz parte do calendário de festividades e datas comemorativas do município, não ocorrendo o reconhecimento da municipalização da tal celebração. Em vias de fato, por mais que diversas gestões do município colaboravam com as comemorações desde o início da festa, porém não ocorreu de forma efetiva aderência significativa quanto ao repasse anual de recurso financeiro. Por mais que a festa possui valor simbólico no local e região não houve uma espécie de apropriação absoluta de toda a população para com a representatividade religiosa popular, permanecendo uma festa da comunidade. 656 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e É uma festa da comunidade que tomou grandes proporções no município e região. Possui força maior pelo respeito a religiosidade e devoção ao santo, outra característica se dá em sua dualidade, antes, Maria Machado fazia uma grande mobilização cultural com teor fortemente religioso de forma pessoal em nome do São Sebastião. No final dos anos 90, Maria Machado se mudara para a zona urbana, uma localidade caracterizada como periférica na época, assim, dando continuidade à celebração em sua residência conforme fazia anualmente. Seu sonho era ter as devidas condições econômicas para construir uma capela em nome de sua devoção ao São Sebastião, mobilizou toda a comunidade e colaboradores para aderirem a oferta de material de construção para a construção da capela, assim que conseguiu o material de construção, construiu o templo no final do quintal de sua casa, anos depois, a capela foi realocada para um terreno na mesma rua e bairro que residia. Após o falecimento da coordenadora, a festa passa a ter um duplo significado de honra e respeito à dedicação de Maria Machado como também à sua devoção ao santo. Na capela, passou a realizar-se missas, a igreja católica matriz da cidade passou a dá suas contribuições dando essa legitimidade. No mês de maio, ocorrem no turno da noite reuniões de rezas ao “terço” na qual cada família convidada pode fazer doações a capela. Há missas ou pequenas comemorações em todo o curso do ano, não há um calendário de comemorações da capela, quando há um voluntário a requerer tal comemoração, ocorre a mobilização em toda comunidade. A Festa de Maria Machado quando passou a ser realizada na zona urbana, sem dúvida, tomou maior proporção, ficou mais repercutida na cidade e região. Seu caráter simbólico com vista ao fortalecimento da sua legitimidade na crença em uma religiosidade popular tanto na sagrada quanto profana. Quanto a profanidade, acontece a sociabilidade através do consumo de bebidas, barracas de comidas típicas, atrações musicais quando a gestão municipal colabora neste quesito. Há uma banda de pífaros na qual está para seguir os pequenos cortejos da celebração como uma anunciação de uma representatividade imaginária e simbólica como forma de homenagem. Maria Machado com sua criatividade e mobilização através da crença popular, fé e devoção ao São Sebastião desenvolveu no tempo 657 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e e no espaço uma maneira de integração socia, na qual pode contemplar diversas gerações no âmbito do sagrado e do profano. O parque infantil possibilita as crianças serem socializadas no cerne da celebração, adolescentes, adultos, homens e mulheres e sobretudo os idosos a contemplarem a cultuar sua religiosidade festividade profana possibilitando a construção de novos laços socioculturais para celebrações do presente e futuras. A cultura não é meramente um sistema de convicções e práticas formais. É essencialmente formada por reações individuais a um padrão tradicionalmente determinado e por variações deste padrão; e, realmente, nenhuma cultura jamais poderá ser entendida se atenção especial não for dedicada a esta variação de manifestações individuais (VELSEN, 1987, p. 355). Antropologia da Religião Ao levar em conta tipos de crenças que foram classificados buscando expressar suas afinidades e distinções naturais, Malinowski, (1986, pp. 156-157), caracteriza em ideias sociais ou dogmas que são as crenças incorporadas nas instituições, nos costumes, nas fórmulas mágico-religiosas, nos rituais e nos mitos. Estão essencialmente relacionadas com e caracterizadas pelos elementos emocionais expressos no comportamento. Teologia ou interpretação dos dogmas: explicações ortodoxas consistindo nas explicações de especialistas; opiniões populares e gerais formuladas pela maioria dos membros de uma comunidade e especulações individuais. De acordo com Malinowski (1986, p. 157) busca-se demonstrar a dimensão bem como a profundidade social em termos quantitativos e qualitativos em cada item de uma crença. DURKHEIM (1996) em “As Formas Elementares da Vida Religiosa” quanto ao totemismo, destaca que há a predominância existência da crença no totem quando se leva em conta que há um ancestral em que o indivíduo deposita sua fé e devoção. As crenças são de natureza manifestamente religiosa, já que implicam uma classificação das coisas 658 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e em sagradas e profanas, é inseparável da organização social (p. 165). Durkheim infere que para Tylor e Wilken, o totemismo seria uma forma particular do culto dos antepassados; a doutrina da transmigração das almas, certamente muito difundida, é que teria servido de transição entre esses dois sistemas religiosos. (p.166). “A Religião como um Sistema Cultural” Ao estudar a religião como um sistema cultural, e além do mais imbricada numa religiosidade popular para além do indivíduo e que está intrinsecamente imbricada em dois contextos sociais distintos entre espaço rural e o urbano como se define a “festa de Maria Machado”, esta etnografia é caracterizada sobretudo como um estudo antropológico na qual tem está designando a presença da religião, fé e devoção atreladas a um sistema cultural. Com base nos pressupostos epistemológicos que busca definir a religião como sistema cultural Clifford Geertz (1989, p. 101), é tomado como ponto de partida para analisar, descrever densamente o fenômeno que apresenta o objeto de estudo para compreender essa dimensão cultural religiosa. De acordo com Geertz (1989, p. 103), os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo, o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos e sua visão de mundo. Outra que, o autor aborda na crença e prática religiosa de um grupo torna-se intelectualmente razoável porque demonstra representar um tipo de vida idealmente adaptado ao estado de coisas atual que a visão de mundo descreve, enquanto essa visão de mundo torna-se emocionalmente convincente por ser apresentada como bem arrumado parra acomodar tal tipo de vida (p. 104). O problema do significado em cada um dos seus aspectos de transição, de como os aspectos se fundem gradativamente, de fato, em cada caso particular, que espécie de influência recíproca existe entre os sentidos do analítico, do emocional e da impotência moral [...]. Por outro lado, é justamente em termos de um simbolismo religioso, um simbolismo que relaciona a esfera de existência do homem a uma esfera mais ampla dentro da qual se concebe que ele repouse, que tanto a afirmação como a negação são feias (GEERTZ, 1989, p. 124). 659 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e No ponto de vista do autor, o mundo da vida cotidiana, sem dúvida em si mesmo é um produto cultural, uma vez que é enquadrado em termos das concepções simbólicas do fato obstinado passado de geração a geração, é a cena estabelecida e o objeto dado de nossas ações (p. 127). Ao analisar o evento, sobretudo, na ótica da crença religiosa tem sido apresentada, habitualmente, como uma característica homogênea de um indivíduo, como seu local de residência, seu papel ocupacional, sua posição de parentesco e assim por diante. Por outro lado, Geertz (1989), trata a crença religiosa no meio do ritual, situando a pessoa em sua totalidade e transportando-a no que lhe concerne, para outro modo de existência e a crença religiosa é como um pálido e relembrado reflexo dessa experiência na vida cotidiana não são precisamente a mesma coisa, a falha na compreensão disso levou a alguma confusão, principalmente em relação ao problema da chamada mentalidade primitiva de uma “natureza do pensamento primitivo” (p. 136). Ao situar a religião como estudo investigativo antropológico, Geertz (1989, p. 140) destaca a importância da religião que está na capacidade de servir, tanto para um indivíduo como para um grupo, de um lado, como fonte de concepções gerais, embora diferentes, do mundo, de si próprio e das relações entre elas – seu modelo da atitude – e de outro, das disposições mentais enraizadas, mas nem por isso menos distintas – seu modelo para a atitude. A partir dessas funções culturais fluem, por sua vez, as suas funções social e psicológica. Para Geertz (1989, p. 144), a religião nunca é apenas metafísica. Em todos os povos as formas, os veículos e os objetos de culto são rodeados por uma aura de profunda seriedade moral. Em todo lugar, o sagrado contém em si mesmo um sentido de obrigação intrínseca: ele não apenas encoraja a devoção como exige; não apenas induz a aceitação intelectual como reforça o compromisso emocional. Considerações primeiras O presente estudo buscou apresentar os resultados parciais de uma etnografia em andamento, nesta visando evidenciar uma festa imbricada na religiosidade popular denominada de “Festa de Maria Machado”, 660 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e porventura, uma celebração religiosa intrínseca ao sagrado e profano de oferendas e devoção a “São Sebastião”. Nesta etnografia, de modo geral como resultados primeiros, ocupou-se em tratar a denominação da festa vinculada a religiosidade popular do Nordeste, modo pela qual, caracteriza-se em uma manifestação popular regional e de cultura local. Neste primeiro momento, não obstante, ateve-se ao esforço para selecionar referencial bibliográfico antropológico que pudesse dialogar intrinsecamente com o objeto da etnografia, sobretudo, com a finalidade para com a reflexão acadêmica caracterizando-a como um patrimônio cultural imaterial pertencente ao Município de Itatuba, de modo que, concomitantemente situa o contato com a cultura da religiosidade popular do agreste da Paraíba. Por fim, almeja-se a continuidade desta etnografia para além do saber local, isto é, que os nativos possam externalizar sua identidade local, ou seja, externalizar a identidade da festa. Como já foi dito, Maria Machado não é mais viva, mas deixou o seu legado de honra, respeito, protagonismo, singularidade e sobretudo sua devoção ao São Sebastião, tornando um passado vivo imaterializado no saber local de um povo. 661 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BRASIL, Constituição Federal (Texto promulgado em 05/10/1988). Art. 216. ______. Decreto Nº 3.551 de 04 de agosto de 2000. Institui o registro de Bens Culturais de natureza Imaterial que constituem o Patrimônio Cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. BASTOS, M. J. M. A Religiosidade Camponesa na Alta Idade média Ocidental. In: Oliveira, Terezinha. (Org.). Antiguidade e Medievo: Olhares Histórico-Filosóficos da Educação. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2008, v. 1, p. 121-149. BARBOSA, G. A. 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[ Volta ao Sumário ] 663 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e sexualidades não noRmativas em Conflito com a fé adventista – disputas e peRmanênCias na identidade adventista lgBt: um estudo de caso Rafael Rodrigues Leite Christina Gladys de mingareli Nogueira Como referenciar este capítulo: LEITE, Rafael Rodrigues; NOGUEIRA, Christina Gladys de Mingareli. Sexualidades não normativas em conflito com a fé adventista – disputas e permanências na identidade adventista LGBT: um estudo de caso. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 657-673. Rafael Rodrigues Leite1 Christina Gladys de Mingareli Nogueira2 1. Introdução É lugar comum reconhecermos a relevância que a religião tem em nossas sociedades. Durkheim, por exemplo, concebe a religião como um fato social total, o motor da sociedade, o que faz a sociedade se agregar, efervescer e, inclusive, passar por mudanças (DURKHEIM, 1996). Mais contemporaneamente, o debate sobre sexualidade vem sendo exposto e trabalhado de maneira muito profunda. O movimento feminista e a emergência da chamada Teoria Queer (MISKOLCI, 2007), é exemplo disso. Os estudos queer ainda hoje são referência para dialogar com políticas da diversidade. (PEREIRA, 2012). Colocando-se na observação e descrição do Habitus Clivado (BOURDIEU, 2009) de sujeitos que estão em ambos os pontos do campo em disputa: é religioso, nesse caso é cristão Adventista, e é LGBT; qual seria o espaço de uma subjetividade tão marcada pela sexualidade a ponto de se desviar do ideal de sagrado do cristianismo (CAVALCANTI, 2017), e tão religioso a ponto de se desviar, talvez, do ideal de empoderamento (TAQUES, 2006) da militância LGBT? Qual o lugar do Adventista LGBT? Como se colocar enquanto LGBT e ter sua sexualidade respeitada dentro da igreja? Como se colocar enquanto Adventista e ter sua fé respeitada dentro de círculos LGBTs? O presente trabalho consistiu em procurar compreender as motivações, aspirações, significações, cotidiano, ansiedades, etc, dessas pessoas, na procura em analisar qual o espaço, ou o não-lugar, desses sujeitos no mundo. Nesse sentido, compreender como o adventista lgbt se relaciona com as questões de sexualidade e de fé. Graduando em Ciências Sociais pela UFPE. Membro do OCRE, pesquisador associado do IEASIA e membro editorial da Revista Idealogando. Lattes: http://lattes.cnpq. br/7466953166954643. 2 Mestra em Antropologia e professora substituta da UFPE. Lattes: http://lattes.cnpq. br/1278375635746927. 1 665 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e A Igreja Adventista do Sétimo Dia é uma denominação cristã protestante, restauracionista, trinitariana, sabatista, não-cessacionista, mortalista e aniquilacionista, que se distingue pela observância do sábado como dia do Senhor, o sétimo dia da semana judaico-cristã (sabbath) e por sua ênfase na iminente segunda vinda de Jesus Cristo. Também é conhecida por sua ênfase na alimentação salutar e na mensagem de saúde, por sua compreensão indivisível entre corpo, mente e alma, pela promoção dos princípios morais e pelo estilo de vida conservador4. Em maio de 2007, os adventistas eram o décimo segundo maior corpo religioso do mundo e o sexto maior movimento religioso internacional. Também é a oitava maior organização internacional de cristãos do planeta. No mundo, são regidos por uma Conferência Geral, com pequenas regiões administradas por divisões, uniões, associações e missões locais. Possui atualmente mais de 21 milhões de membros, no Brasil existem cerca de 1,6 milhões de membros4. As doutrinas da IASD são divididas em 28, segundo o site oficial da igreja5. A posição oficial da Igreja Adventista do Sétimo dia quanto à homossexualidade6, está ancorada em sua 23º doutrina, sobre o “Matrimônio e família”, como mostra o fragmento: [...] ”Os Adventistas do Sétimo Dia acreditam que a intimidade sexual é apropriada unicamente no relacionamento conjugal entre um homem e uma mulher. Este foi o desígnio estabelecido por Deus na Criação. As Escrituras declaram: “Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne” (Gn 2:24, NVI). Por todas as Escrituras, este padrão heterossexual é afirmado. Atos sexuais fora do círculo do casamento heterossexual são proibidos (Lv 18:5-23, 26; Lv 20:7-21; Rm 1:24-27; 1Co 6:911). Jesus Cristo reafirmou a intenção da criação divina: “Vocês não leram que, no princípio, o Criador ‘os fez homem e mulher’ e disse: ‘Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne?’ Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne” (Mt 19:4-6, NVI). Por essas razões, os Adventistas do Sétimo Dia são opostos às práticas e relacionamentos homossexuais”6. Os Pequenos Grupos são visto como a célula central da IASD, resultado do evangelismo e motor da igreja. No site oficial da IASD7, diz que 666 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e “O Pequeno Grupo é um grupo de pessoas que se reúne semanalmente sob a coordenação de um líder visando o crescimento espiritual, relacional e evangelístico, objetivando sua multiplicação. [...] Sugerimos a formação e desenvolvimento do Pequeno Grupo como a estrutura que proporcionará: atendimento pastoral, comunidade relacional e mobilização dos membros para o cumprimento da missão em todo o território da DSA” 7. Fundada em 1991, A SDA Kinship (Seventh-day Adventist Kinship International) é uma organização de apoio que fornece uma comunidade espiritual e social aos atuais e ex-adventistas do sétimo dia que são lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, assexuais e / ou intersexuais (LGBTI), e se sentiram/sentem feridos ou rejeitados por causa de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero. A SDA Kinship oferece-lhes a compaixão e o apoio que se percebe não estarem disponíveis dentro da Igreja Adventista organizada 8. No site oficial em inglês da SDA Kinship8, diz que a missão da organização é “fornecer uma comunidade e defender os direitos das pessoas LGBTIQ com uma conexão Adventista do Sétimo Dia, incluindo suas famílias e aqueles que as apoiam”.9 2. Percurso metodológico Trata-se de um estudo exploratório baseado em uma pesquisa de campo de um estudo de caso etnográfico de abordagem qualitativa. Para tal, utilizamos técnicas de observação participante e de entrevista semiestruturada. A pesquisa qualitativa, segundo MINAYO (2008) “trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes” (p. 21). O método etnográfico foi desenvolvido nos moldes científicos na década de 1920, por Bronislaw Malinowski, um dos fundadores da antropologia moderna (LAPLATINE, 2003). Baseamo-nos no conceito de GEERTZ (1989), nesse caso, a “descrição densa” de Geertz, que nos ajuda a pensar a etnografia antropológica derivada da observação de campo na igreja e no PG do nosso informante, 667 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e mediante a observação participante (BEAUD & WEBER, 2014), a etnografia (ANBROSINO, 2009) e a entrevista semiestruturada (BAUER & GASKELL, 2002). Os dados foram analisados mediante Análise de Conteúdo (aliada à algumas técnicas de Análise de Discurso), por meio da Triangulação, que compreende três aspectos: o primeiro aspecto se refere às informações concretas levantadas com a pesquisa, quais sejam, os dados empíricos, as narrativas dos entrevistados; o segundo aspecto compreende o diálogo com os autores que estudam a temática em questão; e o terceiro aspecto se refere à análise de conjuntura, entendendo conjuntura como o contexto mais amplo e mais abstrato da realidade, articulando os três aspectos da triangulação.(MARCONDES & BRISOLA, 2014). A pesquisa foi realizada na cidade do Recife-PE, onde as observações foram feitas em IASDs no entorno. É importante ressaltar aqui que a pesquisa foi feita em meio ao turbulento ano de 2018, entre a eleição de Jair Messias Bolsonaro (PSL). Para a pesquisa, fiz uma entrevista presencial com meu informante privilegiado, Gustavo (com quem realizei observações participantes no PG que ele coordena e fui a um batismo de sua amiga). 3. Resultados e discussão 3.1 Caminhada religiosa Gustavo nasceu em um lar laico e aos 11 anos começa a se interessar por questões derivadas da religião. Nessas andanças, se batizou na IASD aos 16 anos e teve embates de sexualidade e fé mais acentuados aos 19 anos, o que fez com que ele saísse da IASD por um ano. Nesse meio tempo, mergulhou nos movimentos sociais, mas o excesso de imposição e a falta de pedagogia o fizeram retornar para a IASD: “foi um ano em que eu ((Incomp)), eu vivia pra militar (risos). E aí, é, eu percebi como era engraçado que as pessoas que mais diziam buscar assim, melhorias sociais e tudo o mais, são mais bem egoístas do que o discurso, sabe?! [...] Acho que a gente tem que caminhar, tem que ter um norte, pra saber pra onde caminhar. Mas eu não ouso pensar que aquilo vai ser plenamente plausível, que 668 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e a gente vai ter um mundo de mãos dadas, e todos vão ser felizes, sabe?! E aí, tipo, a noção de eu precisar de salvação, de redenção, se tornou muito evidente sabe... O ser humano e muito ruim, a gente é muito ruim... Enfim, isso tudo. [...] Me fizeram sentir necessidade de um salvador e ver ((Incomp)) um salvador” (Informação verbal) 3 Um traço muito presente na vida de Gustavo são suas questões existenciais e sua busca pela religião. Na entrevista semiestruturada, do dia 14 de novembro de 2018, Gustavo disse: “Fui passando de igreja em igreja, estudando cada uma, inclusive entendendo como eles usavam a bíblia ou o livro sagrado que acreditassem para defender suas doutrinas e com base em quê os que não eram daquela religião, é, o que utilizavam, especialmente a bíblia, para discordar daquelas doutrinas. Nesse processo eu passei por alguns lugares, muitas igrejas, muitas religiões” (Informação verbal) 3 É visível o quanto que Gustavo tem um espírito espiritualista questionador quanto à religião. Algo que está muito ligado com o advento da chamada “pós-modernidade”. BRANDÃO (2016) nos diz que: “Com o advento da pós-modernidade, a religião sofre significativas transformações, os indivíduos pós-modernos se relacionam com a religião e exercem sua religiosidade de forma renovada” (p. 58). Com a pós-modernidade e seu processo de secularização, a religião não se encerra, todavia, ganha novas formas e contornos, novos sabores, numa dinâmica que, ao mesmo tempo que se esgota, se dilui, renasce, ressurge e se difunde (HERVIEU LÉGER, 1993, p. 36) (BRANDÃO, 2016, p. 67). Deste modo, podemos observar que essa ânsia do nosso interlocutor Gustavo se assemelha, em algum grau, com a condição pós-moderna da qual os autores nos falam. Sua vida está imersa nessa visão de religião mais como “um instrumento de descoberta da vida e de Deus” que um “fim”, fazendo com que ocorram trânsitos religiosos e que ele não mais se sinta obrigado a frequentar igrejas para ter contato com Deus. EP: “Quando eu era mais novo, tipo uma criança de 12 anos, saia por aí pegando ônibus e indo pra tudo o que é igreja, em qualquer lugar. 669 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Aí eles (os pais) ficavam com medo, primeiro por eu ser uma criança na época, segundo porque eles não acham normal essa insaciedade, sabe? Só que eis a questão: eu não busco uma religião, assim, eu não busco um clero” [...] E: “Você não acata o pacote da religião em tudo...” EP: “É. Eu acho que a religião é muito um instrumento de descoberta da vida e de Deus. E não um ‘fim’, sabe?! O ‘fim’ da minha busca teológica não é seguir uma religião e achar que ela é plenamente verdadeira. Eu acho que ninguém consegue abranger totalmente a plena verdade” [...] (Informação verbal) 3 As verdades absolutas existem, porém não são tangíveis por nós humanos. Essa visão traz uma “decorrência ética” em Gustavo, aliada à um “propósito”: “É muito mais uma decorrência (abc) ética comigo mesmo, sabe, porque eu acredito que esse é meu propósito aqui. Então eu tenho muito medo de assumir posturas erradas que machuquem as pessoas... Então isso sempre me leva a repensar as posições que eu tomo... Filosoficamente, teologicamente... Pra poder, a partir dessas posições, conseguir cumprir o que acredito que é um papel que eu deveria exercer. E aí por isso que eu gosto muito dessa pluralidade da teologia, da filosofia Eu acho que, se permitir encontrar essa pluralidade é uma maneira muito boa tanto de conhecer mais de Deus como de se tornar um ser humano melhor. Porque por mais que eu acredite que existe uma verdade absoluta, eu não acredito que essa verdade absoluta é totalmente tangível por nós humanos”. (Informação verbal) 3 Mediante um agregado de capital cultural (BOURDIEU, 2009), sem dúvidas sua relação com a religião se torna mais holística e menos rígida. Apesar desse caminhar fluido por igrejas, Gustavo se identifica muito mais com o cristianismo de base protestante e diz que “o cristianismo pra mim ele responde plenamente tudo o que, todos os anseios, sabe, e eu não me vejo fora disso”. 3.2 Pequeno Grupo e Movimento Social Outro aspecto importante para Gustavo é a arena política. Gustavo participa do movimento estudantil de seu curso, o que levantou 670 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e questionamentos meus quanto à efetiva consequência desse fato para sua visão de religião: “Ah, com certeza. Eu acho que todo empoderamento, essa tomada de consciência política, faz a gente enxergar muito claramente algumas coisas. [...] eu tenho essa consciência de que ninguém parte para ler a bíblia de maneira neutra. [...] A gente tem uma construção, sabe?! A gente identifica muito mais o que é opressão e essas coisas que a bíblia fala que a gente tem que se engajar. Então eu acho que tudo, esse processo todo, ajuda sim”. (Informação verbal) 3 O Pequeno Grupo (PG) em sua casa começou em 2013. No total, com os três anos da primeira vez e um ano agora, foram quatro anos coordenando esse PG em sua casa. Analisamos o modo com que ele fala sobre o PG e o liga com os movimentos sociais em que participa na universidade, falando, inclusive, sobre a saudade que irá ter do PG agora que pretende sair da IASD: “Enfim é muito massa, eu vou sentir muita falta sabe...” (Informação verbal) 3. No primeiro ponto desta análise, falamos sobre como que o “conceito de redenção” e o “conceito de queda” foram vistos por Gustavo no ano em que passou fora da IASD e ‘mergulhado’ nos movimentos sociais. Gustavo volta para a igreja, sem se desvincular totalmente dos movimentos sociais, por ele ter vivido uma experiência em que viu a necessidade de Deus na humanidade, pelo ‘egoísmo’ de alguns militantes. Dentro da IASD novamente, ele volta a coordenar o PG em sua casa e se esforça para fazer algo dentro do mesmo de modo ativo: “E eu me esforço para fazer algo de qualidade pras pessoas puderem abrir, ver (abc) outras perspectivas, ver o que é o cristianismo e não seguir as coisas somente no automático. E pra elas não é um problema, sabe. Tipo, elas podem ter ((Imcomp)) de pecado e tudo o mais, mas isso em momento algum faz elas me verem como menos cristão ou algo do tipo. As pessoas geralmente da igreja, todas as ((Incomp)) que eu tenho de pessoas lgbts são ((Incomp)) que saíram da igreja. Se distanciaram. E eu sou a pessoa que fica lá... ((Incomp)) E eu era a pessoa que dava aula... Então as pessoas ficam assim: “po, como é que o menino dá aula, sabe tanto, e diz que não é errado?”, sabe... “O que é que... Será que existe essa possibilidade?”. 671 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Eu acho que eles não chegam nem a estudar, mas eu acho que fica aquela pulga atrás da orelha sabe... E tipo, eu acho que é bom esse incômodo que se causam neles, sabe...” (Informação verbal) 3 Quando pergunto se ele vê o PG como um espaço de abertura para novas questões e de mudanças, a longo prazo, da própria estrutura da IASD, ele diz que também acha, porém o seu PG escolheu não seguir o ‘caderninho de estudos’ dos PGs que a igreja oferece, porque ele acha que “a igreja não dá o alimento sólido para as pessoas refletirem teologia”. (Informação verbal) 3. Além disso, Gustavo é cauteloso com essa perspectiva “revolucionária” dos PGs quanto à IASD e individualiza a experiência do seu PG, se atentando para as condições sociais, e de capital cultural (BOURDIEU, 2009) de favorecimento das pessoas participantes: “É um grupo de jovens, de classe média, que teve estudo, então é muito mais fácil trabalhar esses assuntos, sabe? Por isso que eu acho que é um ambiente muito selecionado, elitizado, no sentido em que são pessoas que têm maior oportunidade de atingir esse... de ter acesso à isso, de ter essa crítica. Não sei se é algo que é fácil de se conseguir em outros lugares, sabe? E acho que isso é... um ponto bem...uma dificuldade desse trabalho todo”. (Informação verbal) 3 O caráter ‘revolucionário’ dos PGs da IASD deve ser questionado, portanto. A visão que tive tem mais que ver com a configuração do PG de Gustavo do que com uma generalização dos PGs da Igreja Adventista do Sétimo dia. Acredito que é preciso mais estudos sobre o caráter que os PG realizam dentro da IASD, para que essa questão seja melhor analisada. Visto não se configurar como objetivo para esse estudo, paramos por esse indicador aqui. Questionado, em outro momento, sobre a frase de alguns grupos de movimentos lgbts de que “ser gay e cristão é como ser judeu e nazista”, Gustavo discorda e argumenta que o problema não é o instrumento em si, mas o uso que se faz das coisas, desessencializando a religião de uma perspectiva conservadora, por exemplo: “Assim como o fundamentalismo religioso pode ser bem ruim, acho que todo extremismo e toda generalização tende a ser bem doentia. 672 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e [...] Primeiro, quando eles fazem isso, eles não estão sendo o porto seguro que eles se propõem ser para os lgbts, eles estão apenas fazendo a fogueira dos lgbts que são religiosos. Eles mesmo estão sendo contraditórios no que eles se propõem... E eu acho que a gente tem que abrir os olhos pra própria realidade... o modo com que a sociedade se configura. Primeiro que muitas coisas são usadas para o mal, e nem por isso a gente culpabiliza isso, por exemplo, o comunismo matou MUITO mais que o nazismo, e a galera usa muito isso pra criticar o comunismo. A gente, na história do cristianismo, tiveram pessoas que usaram a religião pra libertar e pra dominar, e é uma disputa”. (Informação verbal) 3 Essa visão do não-lugar do cristão lgbt dentro dos círculos militante é muito trabalhada por Murilo Araújo (2014), militante católico e lgbt que combate tanto a discriminação LGBT dentro dos círculos cristãos, quanto a discriminação cristã dentro dos círculos LGBTs. Essa entrevista nos mostra que essa questão é muito urgente e real: é preciso mais pesquisas sobre essa dupla discriminação na academia: não só da discriminação religiosa com referência à cristãos LGBTs, mas também da discriminação cristã com referência à cristãos LGBTs dentro dos círculos ativistas. 3.3 SDA Kinship e a relação sexualidade e fé dentro da IASD Visto o caráter muito esclarecido de Gustavo sobre assuntos teológicos, é interessante ver como que a discriminação LGBT dentro da IASD o fez saltar para os estudos teológicos e filosóficos ainda mais do que o interesse que tinha por ‘natureza’. A relativa acolhida familiar (laica, onde a mãe não questiona, o pai ainda não sabe e a irmã católica é homofóbica afeita ao celibato) – digo relativa pois Gustavo nos confidenciou que não sabe como será se aparecer com um namorado em casa –, e o possível ambiente científico de uma família com ensino superior, mobilizou um capital cultural (BOURDIEU, 2009) que talvez tenha ajudado Gustavo nessa busca por alternativas à visão tradicional conservadora da perspectiva teológica do adventismo e do cristianismo, consequentemente. Hoje, “faço uma reflexão não só sobre esse assunto de sexualidade, mas no modo com que as pessoas realizam missão dentro do cristianismo, 673 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e no modo como as pessoas veem a organização social, justiça social, essas coisas todas”. (Informação verbal) 3 Podemos analisar essa questão sobre o ponto de vista do conceito de Habitus Clivado de BOURDIEU (2009). Utilizo aqui esse conceito para qualificar essa tensão entre a identidade LGBT e a identidade Cristã Adventista. Para o autor, “O habitus funcionaria como uma espécie de gramática cultural para a ação, profundamente estruturada” (MANGI, 2012, p. 5), através de práticas e noções de ser, estar, sentir e fazer. Quando este se apresenta incoerente ou complexo, é o que Bourdieu chama de “clivado”: “Pode se apresentar ‘clivado’, ostentando a ‘marca das contradições que o produziram’ (Bourdieu, 2001)” (MANGI, 2012, p. 10). Nesse sentido, concebemos a identidade adventista e lgbt como um Habitus Clivado. É interessante observar essa questão subjacente ao discurso à luz da Teologia Queer. Essa sensação de angústia que Gustavo sente é resultado de uma construção histórica própria da Teologia cristã ocidental, que historicamente tem assimetria com questões LGBTs e invisibiliza a espiritualidade para estas pessoas. Segundo CAVALCANTI (2017), “A construção cultural-histórica-religiosa foi fundamental ao desenvolvimento da sacralização dos corpos e à institucionalização do modelo de família advindo das tradições judaico-cristã heteronormativas, eurocêntricas e androcêntricas. Esse formato binário representado pela masculinidade atribuída a Deus como “pai” é a metáfora que está intimamente ligada com o desenvolvimento de uma estrutura eclesiástica centrada no homem, neste caso no pater famílias, seguindo, desta forma a estrutura social, política e econômica do oikos (casa) greco-romano dos primeiros séculos da Era Cristã e é de posse dessa projeção que a não heterossexualidade pós-moderna se torna o pecado (mal) principal do homem e fruto de perseguição religiosa em pleno século XXI”. (p. 743-4). Podemos ver que a perspectiva da Teologia Queer se coloca como uma nova forma de olhar a relação sexualidade e religiosidade numa perspectiva cristã. Gustavo chegou a essa noção através de andanças permeadas de angústias e estudos teológicos depois de seu percurso de angústias e náuseas. 674 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Gustavo se denomina Bissexual. Em sua família, só seu pai ainda não sabe. Na minha observação participante na cerimônia de batismo (28/09) da amiga de Gustavo, soube que ela tinha recebido estudo bíblico dele e que ele lhe contou, e para sua mãe, que também se batizou no dia, sobre sua bissexualidade. É muito visível aqui o quanto que o protestantismo faz o coração de Gustavo palpitar. Quando perguntado sobre a SDA Kinship, Gustavo não parece muito entusiasmado. Ele não se sente parte do movimento e ainda não reconhece a organização como um espaço de acolhimento aqui no Brasil (diz que pode funcionar bem nos EUA e promover reflexões nas lideranças da igreja de lá) por não se configurar um ambiente rigidamente LGBT e Adventista, mas sim mais LGBT que adventista: “Eu não acho que o Kinship tem um potencial muito bom de trabalho dentro da igreja. Porque a maior parte das pessoas não são da igreja. E as pessoas lgbts adventistas vivem numa dualidade e elas querem manter isso muito coeso, sabe... E quando a alternativa seria uma instituição adventista e lgbt é muito mais lgbt que adventista, eles já têm um pouco receio com lgbts, mesmo que eles mesmos sejam, por tudo que eles passam... Acho que tem pouca perspectiva de trabalho. Eu acho que teria que... ou então... Eu acho que, é, pelo menos aqui no Brasil, teria que assumir uma postura, pelo menos que tenha uma ramificação, não uma ramificação, mas alguma uma área de trabalho dentro da instituição que conseguisse conciliar, sabe, isso. Muitas das pessoas tenham contato para que elas mantenham a vida delas, e não que elas achem que por serem lgbts, elas terem que deixar de ser adventistas do local do Kinship”. (Informação verbal) 3 Quando perguntado se ele acha que a IASD aqui no Brasil estaria aberta para essa articulação, Gustavo diz que não: “Acho que teria (que ser) algo marginal mesmo, sabe. E de resistência”. (Informação verbal)3. Mais uma vez é interessante o quanto que a noção de “disputa” e de “resistência” perpassa toda a fala de Gustavo. Para ele, o adventista lgbt tem um espaço, necessariamente, marginal. 675 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e 4. Considerações finais O presente trabalho consistiu em compreender como o adventista lgbt se relaciona com as questões de sexualidade e de fé, mediante, 1º, a compreensão do ethos do adventista lgbt, 2º, a observação da relevância da relação entre ser lgbt, ser militante lgbt e adventista. Consideramos, assim, estar contribuindo para os debates acerca da relação entre sexualidade e fé. A pesquisa se realizou a partir de um estudo de caso de um adventista Bissexual na cidade do Recife (PE). É importante destacar os limites da referente pesquisa, por se tratar de um estudo de caso e nosso informante ser branco, de classe média/alta e homem bissexual. Além do presente pesquisador também possuir marcadores sociais que informam e guiam o olhar. Nossas conclusões são localizadas e referem-se a um lugar de fala, portanto. Foi possível analisar o quanto que as condições familiares e de acesso à informação e à capital cultural (BOURDIEU, 2009) podem ter atenuado as experiências traumáticas na vida de Gustavo quanto a esse embate sexualidade/religião. Aspectos da relação da religião na pós-modernidade (BRANDÃO, 2016), também puderam ser acionados para análise dessa relação tão flácida e rica que Gustavo tem com o fenômeno religioso, muito embora o caráter protestante de nosso informante se mantenha fiel em todo projeto futuro que ele planeje. A experiência da amiga batizada do nosso interlocutor também tem que ver com essa questão: embora batizada na IASD, ela não gosta de frequentar a igreja de Gustavo por não se sentir confortável com os sermões e comentários lgbtfóbicos da mesma – uma vez que tem opinião diversa da IASD sobre questões relacionadas às sexualidades não normativas. O aspecto do acesso à capital cultural (BOURDIEU, 2009) talvez, neste caso, tenha impacto direto sobre a experiência “pós-modernizante” que ela tem com a religião neste aspecto: embora discordando deste ponto, ela aceita ser membro da denominação religiosa. É importante deixar aqui indícios para posteriores pesquisas. Um indício que gostaríamos de colocar aqui seria o de analisar o quanto que as variáveis ‘vivência pós-moderna da religião’ e ‘ter acesso à capital cultural’ são dependentes entre si. As duas variáveis apareceram nesta 676 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e pesquisa, porém não ficou muito claro se são necessariamente correlatas, funcionando como causa e efeito em algum grau, ou se são circunstanciais. Deixo esta questão em aberto para futuras pesquisas. Outra questão não trabalhada por essa pesquisa, por não ser do escopo da mesma, foi a dimensão das significações do ritual de iniciação da IASD, materializadas no momento Batismal (que observei com referência à amiga de Gustavo). Apesar de ser algo importante, e que poderia nos trazer algumas chaves de interpretação, não tratamos a respeito, pois não era este o objetivo da presente pesquisa. Em outro momento, em futuras pesquisas, é interessante tratar este aspecto. A experiência que nosso interlocutor tem com a esquerda e os movimentos sociais, claro, também fazem parte e são articuladas nessa experiência religiosa do mesmo. Segundo nossas análises, é possível dizer que para além dos PGs serem vistos como o motor da enfervescência religiosa (DURKHEIM, 1996), eles também são vividos por Gustavo como um espaço político, onde a tentativa de política ‘sem egoísmo’ se faz presente, já que a religião é esse espaço de constantes disputas se concebermos a mesma como um “Campo” no sentido Bourdiesiano (BOURDIEU, 2003). É interessante observar que Gustavo parece estar sempre se diferenciando da visão ‘egoísta’ que sua fase mergulhada nos movimentos sociais o fizeram experimentar, fazendo com que ele procure efetivar no PG uma espécie de política que não reproduza estes percalços e relações. Apesar da SDA Kinship existir, ainda não se mostra eficaz no Brasil por uma série de questões levantadas nesse estudo: o seu caráter mais LGBT que adventista, é um ponto. Nosso informante, no ápice do seu Habitus Clivado (MANGI 2012), não se sente parte desta organização. É só através dos seus estudos que consegue articular sexualidade e religião de uma maneira muito próxima à Teologia Queer (CAVALCANTI, 2017), só que sob outros caminhos. Se nosso informante não tivesse acesso à capital cultural (BOURDIEU, 2009), o que seria de sua vivência Adventista LGBT? Acreditamos que a pesquisa se mostrou algo inicial para dialogar e poder perguntar: afinal, quem ora pelo Adventista LGBT? Quem luta pelo LGBT Adventista? 677 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Notas ENTREVISTA concedida por Gustavo. Entrevista I. [nov. 2018]. Entrevistador: Rafael Rodrigues Leite. Recife, 2018. 1 arquivo .mp3 (65 min.). 3 WIKIPÉDIA. Igreja Adventista do Sétimo Dia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Igreja_Adventista_do_S%C3%A9timo_Dia. Acessado em: 01 de dezembro de 2018. 4 ADVENTISTAS. Crenças. Disponível em: https://www.adventistas.org/pt/institucional/ crencas/. Acessado em: 01 de dezembro de 2018. 5 ADVENTISTAS. 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Sob as bênçãos do rosário. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 674-692. Eliane Cruz de Lima1 Introdução O presente trabalho tem como objeto central de estudo a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da cidade de Mamanguape/PB, no século XIX, onde procuraremos discorrer sobre a formação desta instituição, suas características, bem como sua importância como espaço social, cultural e religioso na vida daqueles que a integram. Objetiva-se tal estudo por entendermos que o objeto em questão é pouco conhecido, sendo portanto, algo contributivo para a história regional possibilitando a geração atual e futura, a oportunidade de entender o que foi a irmandade, a partir de um contexto histórico, cultural, social e religioso da época. Entendemos que a história da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Mamanguape/PB, trata-se de um espaço histórico importante, que favoreceu aos interesses dos negros escravos ou libertos, inseridos em uma sociedade escravocrata, permitindo a estes manifestar-se religiosamente e até mesmo socialmente dentro do âmbito da irmandade. Sabe-se que essas instituições foram espaços de adoração e devoção católica, utilizadas como meio de conversão ao catolicismo, quando das irmandades negras. Todavia, esses espaços se firmaram também como espaços assistenciais aos quais possibilitavam aos seus irmãos vários tipos de assistência, como médica, jurídica, financeira, além de fúnebre para com seus membros e familiares, contando ainda com compras de alforrias. Trata-se de um espaço de ajuda mútua, de solidariedade entre aqueles que ali se inseriam. Salientando ainda que eram locais que promoviam atividades festivas, religiosas e profanas nas festas do orago. Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (2003). Licenciatura em Ciências Naturais pela Universidade Federal da Paraíba (2014). Licenciatura em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Pós-graduação/Especialização em Pedagogia Sexual pela Universidade Federal da Paraíba (2007). Supervisão e Orientação Educacional, pela Faculdade Integrada de Patos (2010). Coordenação Pedagógica pela Universidade Federal da Paraíba (2015). E-mail: eliannedlima@hotmail.com. 1 682 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e O culto a Nossa Senhora do Rosário não se origina no Brasil, mas que se faz presente a séculos. De acordo com a tradição católica a devoção branca teria surgido no medievo, mais precisamente século XIII, através da ordem dos Dominicanos. Pacheco (apud TOMASSI, 2002, p. 2) escreve que: “(...) São Domingos, da ordem dos pregadores, sofreu muito para conciliar o ataque aos heréticos com o cristianismo. Nessa ocasião, Nossa Senhora lhe apareceu na Igreja de Notre Dame de la Dreche, para consolá-lo dessa tristeza, dando-lhe a oração do rosário como antídoto que o povo deveria usar contra a heresia.” Após esse acontecimento, Santa Maria recebe o título de N. S. do Rosário, passando a ser um símbolo da luta contra os considerados hereges, a exemplo dos cátaros. Porém, a propagação da devoção do Santo Rosário, atribui-se aos frades dominicanos, sendo estes autores de muitos escritos publicados visando a propagação da devoção do rosário. Delfrate (2011) nos diz que “Em 1478 surgiu, em Lisboa, a primeira Irmandade do Rosário dos Brancos de Portugal.” Partimos, portanto, da compreensão que é no meio dos brancos que emerge a primeira irmandade em terras portuguesas de devoção ao Rosário. Todavia, não possuímos documentação necessárias que comprovem tal afirmação. Mais adiante dentro do contexto da escravidão da população africana em terras portuguesas a figura negra encontra espaço para a devoção, dando início as irmandades de cor. Silva (2016) cita o Termo de Compromisso de 1575 como uma das bases, para compreender o desenvolvimento da Irmandade do Rosário dos Pretos ligada em Lisboa ao processo de transição entre o medievo e a era moderna: No tocante a devoção negra ao Santo Rosário, muitas histórias surgem, permeando o universo imaginário. Desde o achado da imagem da santa no mar da Costa Africana por brancos, a qual não emergiu das águas pelas mãos brancas, mas pelas mãos negras ao tocarem e dançarem, o que fez com que a Santa viessem ao encontro destes. Outra lenda, é a de um negro cativo, que ao observar as águas do mar em um momento de tristeza por sua vida escrava, chorando, rogou a santa, que transformou suas lágrimas em sementes, que depois serviram para confecção de rosários. Percebe-se que a devoção a Nossa Senhora do Rosário atravessa séculos e apesar de existirem as mais diversas histórias em torno da 683 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e iniciação da devoção ao Santo Rosário, sejam estas cristãs ou não, brancas ou negras, o que se constata é que a adoração ganhou proporções enormes, atraindo milhares de adeptos, independentes da raça, etnia a que pertença. Para Neves (2007), “o Rosário é uma oração cuja origem se perde nos tempos”. Nesse contexto, nosso objeto de estudo permeia sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na cidade de Mamanguape/PB, mais especificamente no século XIX, onde procuraremos discorrer sobre a formação desta instituição, suas características, bem como sua importância como espaço social e cultural na vida daqueles que a integram. Para compreendermos melhor a dinâmica do nosso objeto de estudo partimos dos seguintes questionamentos: Em que ano se deu a sua fundação? Como se organizava? Que importância teve dentro do contexto da época? A partir destes questionamentos, utilizou-se de diversas fontes como: jornais da época, dissertações e teses, livros, documentos oficiais como o Compromisso da Irmandade pesquisada, arquivos diocesanos da Arquidiocese da Paraíba, além de visitações a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a qual iremos fazer um breve estudo. As informações encontradas possibilitaram fazer um resgate histórico sobre a instituição ora pesquisada a qual é desconhecida, ou não mencionada na história da cidade, sendo, portanto, uma pesquisa relevante não só para a pesquisadora, mas para enriquecer ainda mais a história de Mamanguape-PB. mamanguape: de vila a cidade, um breve relato Mamanguape, nome de origem indígena, que se traduz em “BEBEDOURO”, possui alicerces em um aldeamento indígena, Monte Mor, transformando-se no decorrer do tempo em povoamento, evoluindo depois para vila e por fim, cidade. Sua área territorial foi inicialmente explorada pelos franceses, expulsos pelos portugueses. Tempos depois, holandeses e portugueses passaram a disputar o território, que resultou na vitória lusitana. 684 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Foi no século XVII, de acordo com Costa e Lins (1992, p.71) que se deu início ao processo de implantação dos engenhos, através da lavoura da cana de açúcar, do algodão, e no trabalho com o couro. É dentro dessa dinâmica que Mamanguape, configurou-se como um dos centros econômicos e populacionais da Paraíba, atraindo famílias oriundas de estados vizinhos como o de Pernambuco. Sua ascensão como vila ocorre em meados do século XIX, através da Lei provincial de 23 de janeiro de 1839, apresentando-se como um local próspero, contando já com uma agência dos correios desde o ano de 1829. “A assembleia geral por decreto de 20 de julho de 1831, criou uma escola de primeiras letras.” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1854, p. 2) “(...) em pleno século 19, no Brasil-Império, Mamanguape atingira a sua ascensão econômica, a plenitude política e social, o que surtiu na sua elevação como Sede do Povoado, posição administrativa que pertencia a Montemor até 1839. Estava legalmente criada a Vila de Mamanguape de São Pedro e São Paulo, nome que conservou até sua emancipação.” (COSTA E LINS,1992, p. 39) Notícias em vários jornais da Paraíba, bem como de Pernambuco eram comuns sobre Mamanguape. O jornal DIÁRIO DE PERNAMBUCO (1854, p. 2) por exemplo, traz informações que nos possibilitam ter uma visão da representatividade social, política, econômica e religiosa da então vila, através de um correspondente que se intitula “O ordeiro”, “(...) a nossa terra faz bulha na nossa bela provincia. Não falaremos nos seus trinta seis engenhos de assucar, nos seus vinte e oito negociantes, quase todos com loja e venda;(...) tem ella em seu seio oito bachareis formados em direito, nove padres, um hábil cirurgião, dous pharmacêuticos e dous advogados licenciados: possue um senador e um deputado a assembleia geral, os quatro primeiros vice-presidentes e cinco deputados provinciaes:dous comendadores da ordem de Christo, um oficial da ordem da Rosa, oito cavallleiros de deversas ordens, e uma legião imensa de oficiais superiores da guarda nacional:etc.etc,(...)” Percebe-se, que, Mamanguape vivenciava momentos promissores, no ano de 1853, pela Lei nº 5 de 17 de setembro, é destinada verba 685 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e para a construção da cadeia pública, prédio que existe até os dias atuais. Mamanguape, estava imerso ao seu desenvolvimento, sendo uma das principais causas possuir um porto, o Porto de Salema, considerado por Costa (1986, p. 66), “a porta aberta para o desenvolvimento de Mamanguape”. A comercialização de produtos se dava por intermédio de barcaças para o mar, e via animais de cargas, para as áreas rurais. O progresso evidenciava-se cada vez mais, fazendo com que Mamanguape, se tornasse um grande polo de comercialização da época. De acordo com Costa e Lins (1992, p. 36), “Além de alimentar vantajoso comércio, Mamanguape era o centro polarizador de todos os negócios da região, comercializando e exportando através do Porto de Salema, no Rio Mamanguape: – o açúcar, o algodão; e vendendo o bacalhau, o azeite, o vinho e tecidos recebidos da Europa.” Tal afirmação, também é alicerçada no DIÁRIO DE PERNAMBUCO (1854, p. 4), a qual traz uma matéria contendo dentre outros, as exportações do então Porto de Salema, as quais eram destinadas ao Porto de Recife e a partir deste, para a metrópole. Ressalta-se que o referido porto foi a porta de entrada de muitos escravos oriundos da África, principalmente angolanos. “As exportações de Mamanguape no anno próximo passado consistiram em 112,255 arrobas de assucar, 1.972 sacas de lãa, 6,098 couros salgados, 9450 couros cortidos, 9,810 saccas de faarinha, 3,976 saccas de milho, 100 paos de angico, 56 saccas de arroz, 19 cascos d’aguardente, feijão, azeite de mamona, carnaúba, fora outros gêneros, excedendo o valor da exportação a 350,000,000.” Na marcha do progresso, de acordo com Costa (1986, p. 64) foi também no ano de 1854 que Mamanguape passou a ser incorporada a capital, provocando certo descontentamento dos habitantes da capital da província, fato este que influenciou diretamente na sua emancipação, sendo elevada à categoria de cidade, pela Lei nº 1 de 25 de outubro de 1855, sancionada pelo Presidente Flávio Clementino Freire, que futuramente se tornaria Barão de Mamanguape. Tal ascensão oportunizou a 686 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Mamanguape em 1863, ter sua comarca. Ainda de acordo com o autor, Mamanguape possuía a única Agência Consular do Reino. Ressalta-se a relevância da cidade por suas ruas calçadas e iluminadas a lampiões de azeite, além de teatro, escola de latim, jornais, lojas maçônicas e bandas de músicas. Mamanguape, era sem dúvida alguma um local onde a cultura emergia em grau elevado, ofuscando até mesmo a capital. Outro avanço da cidade foi a chegada do telegrafo, em 1877, (BRADO CONSERVADOR,1877, p. 2) Todo esse desenvolvimento possui suas raízes econômicas em um processo agrário escravocrata. A cidade, envolta a agricultura canavieira, dentre outras, utilizou-se da força motriz negra, Segundo Lima (2010, p. 68), Mamanguape, na metade do século XIX chegou a ter uma população escrava de 2.395 almas. Verifica-se, portanto, uma população numerosa, o que nos leva a compreender a dinâmica econômica a qual a cidade possuía, resultado do trabalho negro escravo. mãos que se entrelaçam: fé e desenvolvimento Sabemos que o processo de colonização no Brasil ocorre simultaneamente a catequização dos povos aqui encontrados, os indígenas. A Igreja Católica possui raízes profundas na sociedade brasileira, sendo responsável pela fundação de muitas cidades. Assim, o território que compreende a formação do que hoje é a cidade de Mamanguape não ocorreria diferente, a presença da igreja católica é notória e contribuiu para o seu desenvolvimento. “Desde os primeiros momentos que se tem notícia da fundação de Mamanguape, como se deu em todas as regiões, a igreja católica foi marcante e eficiente na formação da cidade” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 98) Neste contexto, iremos nos debruçar sobre questões que envolvem o alimento da alma: a fé, a religião. Nesta esfera de desenvolvimento, de construção de sociedade, não poderemos deixar de nos remeter a Igreja, instituição tradicional, que condicionava, e até mesmo regia o modo de vida das pessoas, através das leis divinas. Os casamentos, nascimentos e obituários, além dos cemitérios, eram religiosos, ou seja, de domínio da igreja. 687 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Foram os padres jesuítas, os primeiros evangelizadores e catequistas, encarregados por difundir a fé, sendo o catolicismo, religião oficial na época, “[...] em Mamanguape, além da catequese dos índios, os jesuítas contribuíram com a educação e com a formação moral e religiosa do povo [...]” (Albuquerque, 2010, p.98). Sabe-se também que, foram os padres jesuítas que edificaram a primeira igreja de Mamanguape, a Matriz de São Pedro e São Paulo. Em relação a Mamanguape e a Igreja Matriz, O DIÁRIO DE PERNAMBUCO, (1854, p. 2) nos diz, “[...}Do seu histórico, sabemos todos, que elle já existia em 1634 formando uma aldeia de índios Potygares, como atestam os testemunhos hollandezes, os quaes naquela epoca apossaram-se desta província, e sendo expelidos, os jesuítas nelle estabeleceram-se para doutrinarem os índios, e edificaram a igreja dos apóstolos São Pedro e São Paulo, que hoje serve de Matriz:[...]” De acordo com Albuquerque (2010, p. 99), “Conforme o Anuário da Mitra Arquidiocesana da Paraíba, a Paroquia de São Pedro e São Paulo de Mamanguape, é a segunda mais antiga da Paraíba, criada em 1630.” Partimos do entendimento que a edificação da matriz se deu através de mãos indígenas, estes já catequizados, servindo de mão-de-obra aos brancos, aqui especificamente a igreja. Não descartamos também, a presença do negro escravo na construção, visto que a igreja passou por modificações ao longo do tempo. Em visitação a igreja, foi possível observar na sacristia, resquícios do piso original em tijolos de barro, observamos ainda que, várias pessoas foram sepultadas na igreja, principalmente em altares, o que era comum, aos mais abastados e padres, porém, o que nos chama atenção são argolas em uma altura considerável nas paredes laterais da parte do altar, segundo informações, ali estão sepultados pessoas muito importantes de séculos passados. Entendemos que se trata de ossuários. Mas, a quem pertenciam? Não temos respostas, pois não há nada que possa identificar. Mas, com certeza, deveriam ser pessoas de alto poder aquisitivo, tendo em vista toda a conjuntura da época. Além da Igreja Matriz, foram erguidas as Igrejas de Nossa Senhora do Rosário e a do Santíssimo Coração de Jesus. No tocante a primeira, encontramos informações que apontam o ano de 1781, como o de 688 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e sua fundação, sendo construídas por negros escravos, que ali podiam professar sua fé. A construção da igreja do Rosário, por negros, dar-se pelo fato de que estes não podiam frequentar o espaço da fé branca, em Mamanguape, a igreja matriz de São Pedro e São Paulo. Em relação a Igreja do Santíssimo Coração de Jesus, é considerada a mais nova entre as três, teve sua construção iniciada no ano de 1810, “[...] ao lado direito da matriz, na distancia de 50 braças, está colocada a igreja de Nossa Senhora do Rosario, sendo eregida pelos pretos em 1781. No centro da villa existe a igreja do Santissimo Coração de Jesus, principiada em 1810 e não está acabada; espera-se que o Sr. Pedro José Filippe da Cunha, por ser zeloso do que he concernente ao culto divino, promova a continuação da obra da mesma igreja, [...]”(DIÁRIO DE PERNAMBUCO,1854, p. 2) Já a igreja localizada no cemitério local, sua construção é datada de 1856, assim como o próprio cemitério (DIARIO DE PERNAMBUCO,1857, p. 2). Tal ato é atribuído ao frei Serafim da Catania, de origem italiana, missionário da ordem dos Capuchinhos1. “Acha-se aqui promto o cemitério da cidade de Mamanguape, tendo ele dispensado os cofres da provinciaes, apenas a quantia de 800$000, que mandei pôr a disposição do Exm. Senador Antonio da Cunha Vasconcellos. O restante foi dado pelos habitantes daquele município, a esforço do digo missionário frei Serafim da Catania, que fez com que contribuíssem com materiaes, cujo valor excedeu 6:000$000. Levantou-se ainda pelo zelo do mesmo missionário uma capella dentro do cemitério para as encomendações e mais cerimonias religiosas.” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO,1857, p. 2) A história envolta a edificação do cemitério e sua capela é imersa ao universo de religiosidade, de purificação local, que envolveu toda a população da cidade. Ricos e pobres, homens, mulheres e crianças, se uniram em prol da construção, liderados pelas palavras de fé, nos sermões proferidos pelo frei em frente ao largo da igreja matriz. Mamanguape passava por um momento delicado, cerca de quase três mil pessoas foram vítimas de uma peste avassaladora, era 1856. 689 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Centenas de cadáveres foram sepultados em torno das igrejas. Pessoas moribundas e gemidos de dor se via e ouvia por todos os cantos. Tal enfermidade era vista como castigo divino. Penitências, procissões e vigílias incessantes eram realizadas para que as bênçãos do Senhor viesse a expelir o mau que hora acometera a cidade. É nesse universo devastador que o frei Serafim da Catania, exaltando a Deus, para a expiação dos pecados cometidos, dá início às obras do cemitério e da capela, convocando o povo para a construção, de acordo com o que ele determinara. O terreno tratava-se de um local para pasto, mas no decorrer de vinte dias, fora limpo e edificada a obra, ao canto de hinos e salmos. A cruz, símbolo de remissão e salvação, construída pelos fieis, de acordo com o desenho traçado pelo frei, foi levada em procissão pelos irmãos da irmandade do Santíssimo Sacramento, acompanhada de uma multidão, além de padres e o próprio frei, sendo colocada no centro do cemitério, após benzida. (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1857, págs. 1,2) Neste contexto percebe-se o quanto a fé, a doutrinação, conduzia a vida das pessoas. A proteção ou o castigo, eram divino, e podiam manifestar-se de diversas maneiras. Acontecimentos como mencionados acima, nos permite perceber a dinâmica da religiosidade que conduzia a sociedade, acontecimentos bons ou ruins, e no caso destes, eram tidos como punição, que só seriam sanados pelas penitencias, orações, missas e procissões, dependendo das orientações, pregações conduzidas por padres ou missionários, verdadeiros representantes de Deus, que se faziam presentes em meio ao povo. Assim, Igreja e desenvolvimento se entrelaçam, sendo fios condutores do progresso e da vida cotidiana das pessoas. A formação das cidades sempre tiveram entrelaçadas a presença da Igreja Católica. É comum, cidades terem como ponto central igrejas. Em Mamanguape, ou no território que compreendia a cidade na época, várias igrejas foram edificadas, principalmente nos engenhos, algumas hoje em ruínas. Por aqui passaram várias ordens religiosas, a exemplo, o frei Serafim da Catania, dos capuchinos, o que nos faz compreender dentro do contexto da época que a igreja foi contributiva na estruturação da cidade de Mamanguape. 690 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Andar com fé ou vou, que a fé não costuma falhar: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos A Fé, considerada por muitos, sem distinção de cor, o alimento da alma, conduzia os passos daqueles que sofriam na carne os mais diversos castigos e privações no âmbito de uma sociedade escravocrata. Negros, escravos ou libertos eram constantemente submetidos a humilhações, trabalhos forçados, alimentação e moradias precárias. Vida sofrida, ao som de seus batuques, mas na maioria das vezes das vozes de feitores e seus chicotes. Mamanguape, de economia agrícola escravocrata, não fugia a regra dos rigores ao tratamento de seus escravos. É nessa esfera de amparo e religiosidade, que os negros encontram em espaços como as irmandades, a liberdade da alma, do pensamento e o alimento para suas necessidades espirituais. As irmandades negras, configuram-se como locais onde o negro proferia sua religiosidade, além de encontrarem em seus irmãos a força da resistência, da assistência, negada na sociedade vigente da época. Registros nos mostra que, Mamanguape, possuía três irmandades, a do Santíssimo Sacramento (1872), desconhecemos sua formação; a de São José dos Artistas (1867), formada por pessoas livres, aceitava homens de cor. Ambas tinham como sede a matriz de São Pedro e São Paulo, e a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, com sede na igreja do mesmo nome, objeto do nosso estudo. Os registros inicialmente encontrados sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, da então Parahyba do Norte, data de 1711, constante na renovação de seu compromisso em 1867, nos artigos 77 e 87, Art. 77 “A adoração do presente Compromisso não prejudica o direito de antiguidade, que esta irmandade tem e conta desde 4 de setembro de 1711 quando pelo Breve Pontificado de Clemente Undecimo foi aprovado o Compromisso, porque ella até agora se regeo”. [...] Art. 87 “A irmandade solicitará do prelado Diocesano a precisa graça para que lhe sejão concedidas como remédio espiritual todas aquellas graças, e privilégios, de que gozava; e que forão concedidas pelo 691 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e compromisso porque se regia, aprovado pelo Pappa Clemente Undecimo aos quatro de setembro de 1711”. No livro Datas e notas para a história da Paraíba, Irineu Ferreira Pinto, também faz referência a aprovação do referido compromisso em 4 de setembro de 1711, “pelo Papa Clemente XI, é aprovado o compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos da cidade da Parahyba” (1977, p. 106). No tocante a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Mamanguape, objeto do nosso estudo, tinha como sede a igreja de mesmo nome, com data provável de sua construção o ano de 1781, de acordo com nossas pesquisas, sendo edificada pelas mãos dos negros. Tivemos acesso ao Compromisso da Irmandade (1852), documento normativo, também sendo intitulado de estatuto, contendo 26 capítulos, o qual trabalhamos. Não descartamos a possibilidade que o referido compromisso possa ser uma renovação, afinal, as irmandade poderiam renovar seus então compromissos, como mencionado na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da cidade da Parahyba do Norte. Sendo assim, nos questionamos: Em que ano teria dado a edificação da igreja? Quando realmente teria sido o ano exato da criação da irmandade? Poderia ser a irmandade fundada a partir de outra já existente? a respeito dessa indagação temos como exemplo, a irmandade de Taquara, na Paraíba, que estava ligada a de Goiana, em Pernambuco. Em conversas in loco com o professor Cristiano Amarante da Silva, pesquisador sobre as irmandades negras, nos foi relatado tal constatação. Infelizmente, não encontramos documentos diocesanos que nos possibilite afirmações precisas sobre a fundação da igreja e o compromisso da irmandade. Porém, não há dúvidas sobre a mão negra na sua edificação. Pessoas mais velhas da cidade, contam que ouviam dos mais antigos da proibição dos negros de entrarem na igreja matriz, e por isso, teriam construído sua igreja. De acordo com o jornal O ARAUTO, (1900, p.1), “na igreja também era celebrada a festa de São Benedito, no dia nove de setembro, com procissão, ladainha e sermão”. Em visitação a igreja, constatamos a presença da imagem do referido santo, que segundo informações estaria lá desde a fundação. No jornal O LIBERAL PARAIBANO, 1883, encontramos uma publicação sobre o suicídio de um escravo/irmão do Rosário de Mamanguape, 692 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e de nome Honorato, que por descumprir a ordem do seu senhor quanto ao horário do retorno das festividades do orago, é duramente castigado. Triste e revoltado, comete suicídio, “[...] Honorato vivia na cidade, era escravo do portuguez Antonio Cuique, que o tractava com toda liberdade, deixando-o pagar semana, gozar ser irmão do Rosario, em cujas festas fazia sempre figura, desfructando uma vez no anno os prazeres d’um homem livre, os gozos d’uma festa christã. O senhor do Honorato, porem, o vendeu ao capitão José Félix, que o conduziu para para o seu engenho, entregou-o aos rigores da enchada e do azorrague d’um feitor. Chegando a festa do Rosario Honorato alcança licença para vir a cidade preencher as funcções de irmão que era, e cumprir com seus deveres de christão, mas teve a infelicidade não chegar ao serviço na manhã seguinte á hora propria. Isso era impossivel para uma creatura humana, que passara um dia de festa, seis legoas distante de casa, e assistia n’um engenho, não ha humanidade, nem coração: o escravo foi surrado ... - No dia seguinte foi visto Honorato assustado, e compassos, incertos errar nas ruas d’esta cidade: deu a sua velha mai cinco mil reis, dizendo-lhe que era o ultimo mimo que lhe fazia; entrou em casa do vigario deu-lhe cinco mil reis apressadamente, dizendo-lhe que dissesse missas por sua alma. Foi visto ainda parado em frente a porta da matriz, que se achava feixada e ... no dia seguinte era encontrado, sem alma, suicida, á sombra d’um cajueiro. [...]” Sabe-se que o ato suicida provocado por escravos, era uma forma de libertação. Durante nossas pesquisas, constatamos que Honorato era escravo do Engenho Camaratuba, o qual era de propriedade do Capitão José Félix do Rego Barros, na época. Ficava distante quase trinta quilômetros da cidade. Atualmente, o referido engenho não mais existe, Camaratuba, hoje, é Distrito de Mamanguape. Em relação ao vigário, trabalhamos com a possibilidade de ser o padre Antonio Ayres de Mello, que de acordo com Albuquerque (2010, p. 68) foi vigário da paróquia de São Pedro e São Paulo, nos anos de 1880 a 1898. A partir do ano do Compromisso que trabalhamos ao do suicídio de Honorato, constata-se que a irmandade já existia há três décadas, e com festividades todos 693 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e os anos, o que nos faz dimensionar, o poder aquisitivo a qual possuía, visto que realizar tais festividades requeria muita pompa, ou seja, um alto custo. Outro ponto a ser destacado, é a importância da irmandade para os negros/irmãos, como Honorato, que participou de toda a festividade, mesmo sabendo, acreditamos, que não chegaria a tempo na casa de seu senhor, e que poderia ser castigado. Esperaria ele tamanha crueldade? Acreditamos que não, prova disso se encontra no seu ato, tirar a própria vida, mesmo diante da fé que o conduzia. A formação da irmandade era de homens de cor, cativos ou libertos, além de pessoas que quisessem servir ao orago, o capitulo 1º, afirma “[...] se admitirão para irmãos todas as pessôas, que quiserem servir á dita Senhora, e as que forem captivas trarão licença de seus senhores [...]”. Na ocupação dos cargos da mesa regedora determina, no capítulo 20º “Havendo irmãos brancos na nossa irmandade não terão voto, como também não servirão cargo algum [...]”. Comparando ao compromisso de Taquara, Lima (2010, p. 92), nos diz que “A Irmandade do Rosário da povoação de Taquara, município da Cidade da Parahyba, era de pretos e pardos, porém estes não podiam aspirar aos cargos de Rei e de Rainha porque tais cargos estavam reservados aos pretos pelo critério da antiguidade.” Observa-se portanto, o quanto o negro submergia do universo preconceituoso a qual vivia na medida que no espaço da irmandade, estes se fazem condutores únicos, não admitindo serem administrados de porta a dentro da igreja seja por brancos ou pardos, apesar de admiti-los como irmãos pela devoção, o que para nós fica explicito a supremacia negra, levando-nos a entender a importância da irmandade para eles, já que oportunizava certo status social e religioso, o que não tinham porta a fora da igreja. Silva (2016, p. 89), “Ingressar nas irmandades abria a possibilidade de se organizar e lutar de forma coletiva pelos direitos que as vezes eram garantidos pelo Estado, bem como pela Igreja, diversas ignorados por seus senhores”. A coletividade presente na irmandade, dava aos irmãos o suporte necessário para que estes pudessem através da religiosidade, externar seus pensamentos, expressar sua cultura, lutar pela liberdade de seus irmãos, quando da compra de alforrias, sendo assim, 694 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e vistos, notados, principalmente nas festas do orago, regadas a batuques, cantos e alegrias nas ruas da cidade. A festa do Rosário, em Mamanguape, era no dia vinte e sete de dezembro, no compromisso, capítulo 7, diz “Serão obrigados a ter sua Igreja com todo o acceio, limpeza, e decência possível, na qual celebrarão sua festa no dia 27 de Dezembro com sermão, missa cantada, conforme a possibilidade da Irmandade, e accordão da Meza [...]”. Todas as decisões referentes a Irmandade eram de conformidade com a mesa regedora, formada por doze irmãos de cor, de ambos os sexos. Ocorria nessa mesma data a eleição e posse da mesa. Já na Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Preto da Capital (1867), a eleição da mesa regedora ocorria no dia 21 de dezembro, a festa do orago no dia 28 do mesmo mês e a posse da nova mesa, no dia primeiro de janeiro. Na irmandade não eram admitidos irmãos que praticassem ou viessem a praticar atos que iam contra as regras contidas no compromisso, como: feitiçarias, bebedeiras, orgias, entre outras. Estes deveriam ser fieis aos princípios da boa conduta e da fé, sendo zelosos aos serviços da igreja. Quando um irmão não fizesse jus a sua condição poderia ser expulso da irmandade. O sepultamento dos irmãos e seus filhos legítimos, era uma das obrigações da irmandade, o que para negros escravos ou libertos era uma garantia que seu corpo teria um sepultamento decente. Ao defunto seria dado além de um enterro decente, acompanhado pelo irmãos, missas por sua alma. Aqueles que ocupavam cargos na irmandade, ao falecerem teriam um sepultamento mais pomposo, capitulo 18 “[...] sendo que morra algum irmão Rei, Juiz, ou outro qual quer official de dignidade será enterrado com alguma pompa, dando-lhes sepultura no lugar mais decente das grades para dentro [...]” Os irmãos brancos também eram acompanhados pela irmandade quando do seu sepultamento, mesmo que estes não fossem sepultados na igreja, quando o eram, podiam ser no corpo da igreja. Porém, caso queira um lugar privilegiado teriam que pagar certa quantia, assim também aqueles que não fossem irmãos, capítulo 18, “[...] querendo alguma pessoa, que não for irmão, enterrar-se das grades para cima, ao para dentro, dará pela sepultura de esmolas quatro mil reis; e o mesmo se entenderá nas meias covas.” Quanto aos irmãos pobres com débitos na 695 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e irmandade, ao falecerem, seriam sepultado, porém, se este, tivesse alguém que pagasse sua dívida, a irmandade não custearia o sepultamento. Não foram encontrados registros sobre irmãos suicidas como Honorato, mencionado acima. Assim, acreditamos não haver na irmandade assistência aos defuntos, mediante o suicídio, tendo em vista ser esse ato para os cristãos, considerado um pecado grave. Considerações finais Ao final deste trabalho, compreendemos que a cidade de Mamanguape/PB, foi um grande centro econômico, cultura e populacional, construído sobre alicerces religiosos e escravocrata. Essa estrutura não se difere de outros povoados, vilas e cidades da época. Mamanguape, por ter um porto, alcançou patamares de segunda melhor cidade, perdendo apenas para a sede da capitania, mas que ao mesmo tempo não deixava a desejar, já que possuía elementos urbanos, culturais e econômicos que ofuscando a então Parahyba do Norte, causando por vezes alguns entraves entre as mesmas. Andrade e Vasconcelos (2005), afirmam que, “Mamanguape, por desfrutar de grande prestígio e beleza foi cognimada a Atenas Paraibana”. Neste contexto, verificou-se que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que possuía sua sede própria, tendo a igreja do mesmo nome, surge como referência de um poderio econômico da referida instituição, imersa ao desenvolvimento de Mamanguape. Verificou-se ainda que trata-se de uma irmandade que existia há mais de três décadas, constatado a partir da notícia suicida do irmão Honorato. De certo que não temos uma data precisa de sua fundação, nem tão pouco da sua sede, trabalhamos com levantamentos que apontam as datas já mencionadas, mas não podemos bater o martelo da exatidão, até porque, não há nenhum livro de atas, compromissos mais antigos ao que trabalhamos, que apontem datas anteriores ao mesmo, assim como a igreja, que não foram encontrados documentos diocesanos. Diferentemente, o compromisso da irmandade dos Homens Pretos da capital, que faz menção de compromisso anterior. 696 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Contudo, verificou-se a relevância da irmandade para os negros escravos ou libertos, o respeito e a devoção de seus irmãos a esta, como vimos na postura do irmão Honorato, que foi duramente surrado, e mesmo assim, não deixou de cumprir sua função de irmão, participando dos festejos em comemoração ao dia de Nossa Senhora do Rosário. A distância entre o local que era cativo até a igreja, não existia na sua alma, na sua fé, a “dita senhora”, estava no coração livre de Honorato. Nessa esfera religiosa e social a irmandade cumpria seu papel, oportunizando aqueles discriminados, excluídos de porta a fora da igreja, a serem verdadeiramente vistos, respeitados e ouvidos. Das festas religiosas aos ritos fúnebres, a irmandade exercia um papel essencial, inserindo os irmãos em uma esfera de segurança e acolhimento. Não podemos deixar de ressaltar a conduta que os irmãos tinham de ter mediante a sociedade e aos seus irmãos de fé. Para isso, a irmandade era firme na moral e nos bons costumes, não admitindo em seu espaço irmãos que não seguissem as normas estabelecidas em seu compromisso. A mesa regedora, local de decisão, só era permitido irmãos negros, algo que nos chama atenção, pois, mesmo admitindo-se pessoas brancas na irmandade, estas, não poderiam tornar-se irmão de mesa, ocupar cargos, demonstrando assim, que, aquele local era espaço de domínio de cor, diferentemente da sociedade a qual se inseriam. Nesse universo do poderio negro, a irmandade, oportunizava aos seus irmãos um local onde estes poderiam sentir-se como verdadeiramente humanos, com deveres, mas com direitos, viver e morrer como irmão era um privilégio. Nossa pesquisa, continuará, pois entendemos que a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Preto de Mamanguape, ainda tem muito a nos dizer sobre a fé, o negro, o irmão e toda a dinâmica escravocrata da sociedade da época, e libertária, social, cultural e religiosa da irmandade, até porque a fé, o rosário, não tem cor, nem a dita Senhora, como assim é chamada Nossa Senhora do Rosário, pelos irmãos, que sob as bênçãos do rosário, edificaram além da igreja, a irmandade e a tão sonhada liberdade. 697 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALBUQUERQUE, Marcos Cavalcanti de. História da Freguesia de Mamanguape. João Pessoa: A União, 2010. ALMEIDA, Maurílio Augusto de. Presença de D. Pedro II na Paraíba. 2ª ed. João Pessoa: Vozes,1982. ANDRADE, Ana Isabel de S. Leão e VASCONCELOS, Severina Maria Oliveira de. Mamanguape, 150 anos: uma cidade histórica. João Pessoa. UNIGRAF. 2005. 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Tabu numinoso: reflexões acerca do uso curativo da Cannabis. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 693-701. Clordana H. Lima de Aquino Oliveira1 Introdução A relação do homem com as plantas foi estabelecida desde os tempos primórdios, manifestando-se em contextos sociais, culturais e até mesmo espirituais ao longo de toda história, suas mais variadas utilizações e contribuições até os dias atuais pautam novas descobertas e possibilidades. Data-se que a relação do homem com a Cannabis2, se dá há 2 mil anos a.C, um relacionamento tão sério que mesmo diante fatores proibitivos, a história do homem com a maconha que nunca foi interrompida. Devido suas propriedades psicoativas, e valores unilaterais difundidos ao longo da sua formação e compreensão histórica, a cannabis, ou maconha como é popularmente conhecida, carrega consigo a fama de contribuir com problemas sociais, gerando em torno desta problematização críticas severas e segregações sociais com relação a seus adeptos, reconhecidos e julgados como desviantes dos bons modos e costumes no qual estrutura-se uma sociedade sadia. A cannabis, pertence à família botânica Cannabaceae, sua gênese é narrada entre historiadores, antropólogos e até cientistas com divergências de onde realmente se estabeleceu sua origem, nos fazendo Graduada em Comunicação Social – Jornalismo (UEPB), Mestranda no Programa de Pós Graduação em Antropologia – PPGA (UFPB). Orientada por Dra Márcia Reis Longhi. http:// lattes.cnpq.br/5961576414978725 (clordanaquino@gmail.com) 2 A planta possuí três diferentes variedades, sendo elas: sativa, indica e rudelaris. Contém cerca de 460 compostos e mais de 60 canabinoides, dentre eles se destacam o tetrahidrocanabinol (THC) principal substância psicoativa, e o cannabidiol (CBD) substância que constituí mais de 40% da planta, este por sua vez possuí efeitos contrários ao THC e interagem com receptores específicos das células do cérebro, qual surtem efeitos terapêuticos. Realçamos aqui optar por esta terminologia ao longo do projeto, o termo cannabis/canabis é considerado preferível em diversos segmentos especialmente entre os praticantes de diferentes usos ritualísticos/religiosos. A fim de consolidar sua nomenclatura legitima, não dispensando a popularidade e utilização dos vocábulos: maconha, diamba, ganja, erva. 1 701 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e refletir diante deste ponto a ligação milenar que o homem já possuía com esta plantas e suas propriedades. Contudo, com base em amplas pesquisas subscrevemos a partir de autores idôneos à área de etnobotânica e demais especialistas, a reprodução histórica em que se reconhece a origem da cannabis a partir da Ásia Central, em uma região próxima à China, de onde parece ter se expandido para Ásia Menor, África e, posteriormente para a Europa (GUIMARÃES, 2010). A utilização da maconha, nomenclatura popular utilizada no Brasil, remonta-se a períodos muito antigos, e seus indícios são percebidos ao longo da história: Na China, existem registros do uso da maconha pelo imperador Shen-Nung, no compêndio de ervas medicinais denominado PenTsao Ching, que data de 2737 a.C. Em um tratado médico chamado Nei-Ching, de 2698-2599 a.C, e atribuído ao imperador Kwang-Ti também existem evidências do uso da maconha, bem como no tratado médico chinês denominado Rh-Va, de 1500 a.C. (GUIMARÃES, 2010; ABANADES, 2005; CAVALCANTI, 2005) A cannabis também é mencionada em textos religiosos do hinduísmo, considerados como as escrituras mais antigas do mundo, os textos védicos datam 2000 a.C. destacando a planta com finalidades sagradas, no qual deveriam ser cultivadas e usadas com respeito, atribuindo-a sinônimos de: alegria, prosperidade, felicidade, libertação, boa sorte, coragem até mesmo aumento da libido (VIDAL, 2010; GODLASKI, 2012; MACRAE, 2005; ROBINSON, 1999). No hinduísmo cannabis é considerada um néctar divino, sendo consagrada ao deus Shiva até os dias atuais, onde se espalha ramagens de suas folhas sobre altares e se faz consagração. Também é conhecida por ser a bebida favorita do deus Indra, e ainda hoje se constata o seu consumo na cultura indiana. Alguns grupos de sadhus, homens santos que vivem uma vida dedicada à espiritualidade, muitas vezes vivendo em cavernas ou selvas, fumam a resina da maconha em seus chillums, uma espécie de cachimbo. Bhang é um dos termos mais comuns para se referir à maconha na Índia, e se refere a uma bebida à base de maconha, leite e ingredientes como noz moscada, pimenta, canela e mel. O bhang é amplamente consumido durante grandes festivais 702 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e religiosos na Índia. (GUIMARÃES, 2010; GODLASKI, 2012; MACRAE, 2005; ROBINSON, 1999). Destarte, de períodos remotos até os dias atuais a maconha segue sento utilizada pelos indivíduos, seja para finalidades recreativas, espirituais, culturais ou medicinais, essa planta ao longo da história tem nos acompanhado e levantado grandes questionamentos quanto ao seu reconhecimento utilitário, ao mesmo tempo em que enfrenta opiniões parciais construídas ao longo de todo esse processo histórico. Embora conte com a forte guarida midiática, de autoridades públicas, respaldados no próprio processo de sua construção histórica dada proibição e estigmatização propagada, responsável por reforçar e fortalecer estereótipos, maior parte destes usuários lidos como: desviantes sociais, nos põe a refletir sobre um problema notavelmente diagnosticado: o problema de classes. Tornando perceptível a aplicação desses estigmas sobre os mais vulneráveis. Contudo como bem observamos apesar da proibição que se deu a esta e outras substâncias influentes no estado de alteração da consciência, suas práticas de consumo nunca foram totalmente ignoradas, a exemplo do próprio álcool. Nos dias atuais percebemos com mais destaque a movimentação de um cenário que busque encarar e construir debates políticos e sociais, onde finalmente se possa debater e encarar questões como a guerra as drogas, legalização, descriminalização e diversas outras estruturas que necessitam maior compreensão nesta área. Espaço sacro Hoje é possível termos acesso a várias pesquisas comprobatórias sobre o uso dos psicoativos na antiguidade, ligação esta fortemente realçada por fatores ancestrais, nativos, responsáveis por viabilizar os acessos da consciência não só terrena, mas ao mundo espiritual. Terence Mckenna (1995) famoso etnobotânico por seu escrito “Alimento dos Deuses” defendia a hipótese que através da ingestão dos psicotrópicos os primatas deram inicio ao “despertar da consciência humana”. 703 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Para o autor que é referência nos estudos sobre os efeitos das plantas psicotrópicas, como propulsora dos estados numinosos como agentes de mudanças e comportamentos de estado, até mesmo de conversões, McKenna defende a hipótese de que estas experiências psicotrópicas são motrizes básicos das grandes religiões ancestrais. Fato é, que a presença da cannabis há mais de 10 mil anos permanece em interação com nosso meio social, não sendo nenhuma novidade o seu uso em diversos segmentos como bem podemos perceber. Até os dias atuais, muitas religiões ainda são adeptas e consideram com grande devoção o poder desta planta. Em algumas tribos brasileiras por exemplo, o uso da cannabis é fortemente presente, como expõe Ubirajara Ferreira, escritor da dissertação Representações sociais da planta cannabis na religião do Santo Daime: entre a sagrada Santa Maria e a proibida maconha, o autor explana acerca do estudo e adesão da cannabis dentro da doutrina brasileira caracterizada pelo uso da bebida ayahuasca3, enteógeno assim classificado, responsável por propiciar fortes alterações do estado de consciência. Sabe-se que a Cannabis faz parte da cosmologia dos índios Mura do Amazonas, sendo lembrada como “degua89” ou “dirijo”. No documentário curta-metragem“Dirijo” (MURA; VALLE, 2010), os índios Mura relatam de seus diversos usos nas tribos, como uma pratica sistematizada, controlada, absolutamente adaptada aos seus hábitos, que se encontravam não só incluída em suas pajelanças de cura e contato com os espíritos, mas também fazia parte dos demais hábitos cotidianos, do trabalho ao lazer. Suas plantações foram proibidas e destruídas pela chegada da Policia Federal na década de 1960. (FERREIRA, 2017, p. 120) Os povos Guajajaras do Maranhão, os Filniô de Pernambuco, Sateré-Mawé, no Amazonas; Kraho, no Tocantins entre outros povos indígenas do Brasil nos mostram como a prevalência ao uso da cannabis pode ser compreendida em ato de resistência às praticas de sua Costuma-se utilizar pejorativamente o termo “alucinógeno” para classificar essa substância. O termo “enteógeno” (a realização de Deus no interior). Disponível em: <www. mestreirineu.org/livro_juarez.pdf>. Acesso em 20/04/2019. 3 704 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e espiritualidade. Revelando-nos que entre indígenas, os populares rastafáris, a doutrina do Santo Daime, os Sufis do Islão, as freiras ativistas “Irmãs do Vale”4, e tantos outros segmentos religiosos/espiritualistas o uso da maconha ainda parece permanecer religado aos fatores históricos que se fazem presentes até hoje na forma de cultuar, devotar, consagrar, vivenciar a divindade manifesta por meio dos efeitos provocados pela planta, onde esta viabiliza a seus credores experiências como a cura. A maconha medicinal Coincidência ou não, hoje a maconha retoma os debates discursivos por meio de sua atuação no campo medicinal. Tal portaria tem se destacado frente a eficácia comprobatória de diversas patologias severas que encontraram na planta a remediação eficaz para seus sintomas. Doenças como Mal de Parkinson, Esclerose Múltipla, Epilepsia, Alzheimer, Autismo, dores crônicas e diversas outras, buscam hoje meios de conseguir os benefícios que assegurem legalmente a possibilidade de manterem qualidade de saúde através do tratamento com a cannabis. Devido a estrutura da política nacional brasileira, que implica na dificuldade de acesso a estes medicamentos e de outras demandas, que preveem a necessidade de uma regulamentação alinhada com a legislação, muitas famílias hoje se submetem a ilegalidade para poder salvar a vida daqueles que tiveram consideráveis melhoras ao tratamento com a cannabis. A própria ciência hoje parece correr atrás de recuperar o tempo de desatenção aos diagnósticos que comprovam a eficácia no tratamento terapêutico com a maconha. Atualmente só uma associação5 no Brasil conseguiu judicialmente o direito para cultivar, manipular Localizadas em Merced, cidade da Califórnia- Estados Unidos, as freiras do vale possuem uma missão de curar e emponderar mulheres a partir dos seus produtos feitos a base de cannabis. EL, Pais As “freiras” da maconha Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/20/album/1492705960_507322.html#foto_gal_9> Acesso em: 20/04/2019. 5 A Associação Brasileira de Apoio a Cannabis Esperança (Abrace) em 2017 tornou-se a pioneira no país a ter autorização concedida pela Justiça Federal da Paraíba. 4 705 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e e distribuir a medicação a base de maconha para os pacientes do país, estes estando devidamente resguardados sob registros médicos que afirmem a patologia e autorizem o tratamento. Enfrenta-se ainda o fator da disseminação de termos que tolhem as compreensões necessárias para o próprio esclarecimento legislativo, por exemplo: drogas, tóxicos, entorpecentes, problematiza-se a utilização e classificação destas nomenclaturas imprecisas na própria legislação, indicando dissensão ou desconhecimento das reais implicações que designam cada substância. Pois se em termos médicos/farmacológicos droga significa remédio, e ao se reconhecer drogarias como fonte de referência na distribuição de medicamentos, torna-se contestável estas significações assim atribuídas. Estás más aplicações, que reúnem as drogas ilícitas sob nomenclaturas imprecisas, devem parte de sua existência a práticas e atos classificatórios que se reproduzem, mas que também, da perspectiva política, acabam cumprindo uma função importante, que consiste em condensar em um único bloco substâncias que são alvo de perseguição governamental. Assim, o inimigo fica agrupado, fato que torna mais simples a declaração de guerra às drogas. (RODRIGUES, 2003, p. 18) Outro fator é observado frente a inflexibilidade da medicina no que tange as autorizações exigidas para se ter acesso ao tratamento, tal fator é relatado por pacientes e familiares, logo sendo verificados e analisados diante a quantidade mínima de médicos que acreditam no potencial da maconha como método terapêutico. A maior parte destes casos, nos revela que os médicos interessados no assunto hoje são os responsáveis por recorrem a experiência empírica dessas famílias que se submetem ao tratamento com a cannabis, bem como ao trabalho desenvolvido pelas associações, para assim poderem compreender a aplicabilidade medicinal dos efeitos da planta nos casos diagnosticados, reconfigurando por tanto alternativas que a própria medicina se absteve em acessar. Tal contradição diante a agência da cannabis se faz notar na produção deste tabu numinoso. Como entender o clamor de uma nação que sente dor, tendo em foco a problemática que esta planta dispõe? 706 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Seja pela ausência de saúde, ou pela ausência dos que se vão na mira de uma guerra declarada, precisamos recorrer a antigas compreensões, evidências, as análises minuciosas da história, que nos possa clarear os sub julgamentos pré concedidos e adquiridos ao longo do tempo. O momento por tanto, mostra-se oportuno diante as urgências que se estabelecem e reivindicam atenção à vida. Se as sociedades antigas buscavam através desta planta a cura para o corpo e pro espirito, a história certamente torna a repetir-se e nos propicia melhor debruçar-se sobre o entender deste campo. Retoma-se os debates sobre uma planta social, histórica e politicamente demonizada e silenciada, mas que tem ganhado volume e voz diante as necessidades do seu valor curativo. A isto nos cabe hoje prosseguir com os registros que religam a história de um passado aparentemente ou propositalmente sem memórias. 707 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. 1928. FERREIRA Junior, Ubirajara. Representações sociais da planta Cannabis na religião do Santo Daime: entre a sagrada Santa maria e a proibida maconha. Disponível em <https://www.academia. edu/34055229/FERREIRA_ JUNIOR_Ubirajara._2017._ Representac_%C3%B5es_ sociais_da_planta_Cannabis_ na_religi%C3%A3o_do_ Santo_Daime_entre_a_ sagrada_Santa_Maria_e_a_ proibida_maconha_._2017._ Disserta%C3%A7%C3%A3o_de_ Mestrado_em_Psicologia_Social._ Rio_de_Janeiro_Universidade_ do_Estado_do_Rio_de_ Janeiro_UERJ_202p> Acesso em: 20/04/2019. GROOPMAN, Jerome. maconha: para um debate sem preconceito. Disponível em <https:// outraspalavras.net/posts/ maconha-para-um-debatesem-preconceito/>Acesso em: 20/04/2019. G1 PB. Paraíba: G1 Globo, 2017. Juíza autoriza cultivo e maconha para tratamento medicinal na Paraíba. Disponível em < https://g1.globo. com/pb/paraiba/noticia/juizaautoriza-cultivo-da-maconha-paratratamento-medicinal-na-paraiba. ghtml> Acesso em: 20/04/2019. LABATE, Beatriz; POLICARPO, Frederico; GOULART, Sandra Lúcia; ROSA, Pablo. Drogas, políticas públicas e consumidores. – Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo, SP : Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP), 2016. MACRAE, Edward; COUTINHO, Wagner Alves. Fumo de Angola: canabis, racismo, resistência e espiritualidade. Salvador: EDUFBA, 2016. RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2003, p.18. VIDAL, Sérgio M.S. Cannabis medicinal: Introdução ao Cultivo Indoor. Salvador – BA: Edição do autor, 2010. [ Volta ao Sumário ] 708 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e uma voz que eCoou pRofetismo em limoeiRo-pe: reflexões sobre o catolicismo a partir de um recorte da história de vida de padre luis Cecchin marcos Lucena da Fonseca Sergio Sezino Douets vasconcelo Como referenciar este capítulo: FONSECA, Marcos Lucena da; VASCONCELO, Sergio Sezino Douets. Uma voz que ecoou profetismo em Limoeiro-PE: reflexões sobre o catolicismo a partir de um recorte da história de vida de Padre Luis Cecchin. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 702-719. Marcos Lucena da Fonseca1 Sergio Sezino Douets Vasconcelo2 Introdução Este texto está pautado a partir das reflexões do Grupo de estudo Religiões, Identidades e Diálogos, do PPGCR da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), alicerçado na linha de pesquisa – Campo Religioso Brasileiro, Cultura e Sociedade – a qual se baseia no pressuposto epistemológico de que a prática da religião e/ou religiosidades constitui-se em um fenômeno social cujo estudo crítico e sistemático, com o aporte transdisciplinar das diversas ciências (como antropologia, sociologia, psicologia e teologia), é essencial para a compreensão da cultura brasileira. Ele está em consonância com tema central do Simpósio Nordeste da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR): Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades, 2019. Tal tema teve por objetivo estimular diálogos que valorizassem o respeito a todas as diversidades como elementos centrais dos processos de formação educacional e humana, numa perpspectiva de, em tempos de polarização e intolerância, de censura e perseguições político-ideológicas, pudesse, o tema, ser de suma importância, já que o evento intentou ser um posicionamento a favor da liberdade de pesPossui graduação em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia -INSAF (2010), graduação em Pedagogia pela Faculdade de Ciências de Wenceslau Braz-FACIBRA (2015), graduação em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP (2016), graduação em Psicologia pela Faculdade Frassinetti do Recife-FAFIRE (2019) e mestrado em Mestrado em Educação pela Universidade de Pernambuco-UPE (2017). Atualmente é doutorando da Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP (2019). 2 Doutorando pelo PPGCR da UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco). Endereço para acessar o CV: http://lattes.cnpq.br/8857252261158471. Endereço eletrônico: fonsecalucena@hotmail.com Grupo de pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos. Orientadores: Luiz Alencar Libório – Endereço para acessar o CV: http://lattes.cnpq. br/2889916979419619. Endereço eletrônico: laliborio@terra.com.br e Sergio Sezino Douets Vasconcelo – Endereço para acessar o CV: http://lattes.cnpq.br/4339279132579440 Endereço eletrônico: douets@uol.com.br. 1 710 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e quisa, docência e extensão, e da análise crítica e sensível da sociedade. Este textou esá voltado, também, para o GT do Simpósio – Profetismo e lideranças católicas no Brasil: histórias e memórias que movimentam este campo religioso – que possibilitou comunicações e debates que apresentaram, profetas e lideranças que dispunham de características distintas, porém num sistema religioso que adquiriram importâncias semelhantes, que ajudam e podem contribuir na compreensão da dinâmica e do funcionamento da religião. Este texto, fruto da nossa pesquisa de mestrado, endoçada e enriquecida, pelo doutoramento, o qual se propõe a ser uma reflexão acerca do catolicismo a partir de um recorte da história de vida do Padre Luis Cecchin, pois tal sacerdote católico é consederado em Limoeiro-PE, um “homem de Deus” que fez muito pelos desvaforecidos, sobretudo, por famílias e crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, disprovidos de dignidade e cidadania. A metodologia utilizada foi qualitativa de cunho explorário, norteada pela ferramenta histórias de vida, onde se tem destaque o tempo, o processo e a interlocução construída no recolhimento da história de vida, de modo a aprofundar reflexões, trabalhos com a memória e, ainda, sobre como é importante ponderar sobre os lugares de onde se fala. Nas histórias de vida, além da história individual, conta-se sobre a história de uma época, grupo ou povo (PAULILO, 2019). Padre Luis Cecchin e os impactos dos mundos eclesial e civil Tem gente que tem cheiro das estrelas que Deus acendeu no céu e daquelas que conseguimos acender na Terra. Ao lado delas, a gente não acha que o amor é possível, a gente tem certeza. (Almas Perfumadas – Carlos Drummond Andrade) Diante do que expõe Drummond, destacamos, aqui, o Pe. Luis, não só no aspecto religioso, de sacerdote, mas, como educador e agente transformador social da cidade de Limoeiro-PE. O que trago é o que vislumbra e atesta em sua pesquisa de cunho científico, o autor Franco Marton, em sua obra: Quem fostes ver no sertão? Perfil do Pe. Luis Cecchin, missionário “fideidonum” no Brasil, coleção testemunhas 11, 2014. 711 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Já na apresentação do livro, Giofranco Agostino Gardin, ressalta uma das afirmações de Pe. Luis: “Os pobres, os oprimidos, os sofredores de tantas formas, me ajudaram a conhecer melhor e a seguir Jesus pobre, desprezado, sofredor por nosso amor e sempre misericordioso’”. “Os pobres e Jesus. (...) Precisamos, redescobrir a ligação inseparável dessas palavras. A vida do Pe. Luis nos ajudará a compreendê-la”. (Marton, 2014, p. 8). A vida de Pe. Luis para Merton, foi, concomitantemente, como o predecessor de Jesus, João Batista, que conclamava: “Eu não sou o Cordeiro de Deus, o Salvador. É alguém que é maior que eu. Jesus, o Filho de Deus”. Dizia constantemente o que se devia fazer: “quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; quem tiver comida, faça o mesmo a quem tem fome”. Aos mais “fortes”, com condições biológica, psíquica, cultural, social, econômica, dizia-lhes: “não maltrateis a ninguém, nem tomeis dinheiro a força; contentai-vos com os vossos salários; amai os necessitados”. (BIBLÍA JERUSALÉM, 2016, Lucas 3, 10-14). Quando se ordenou, vivenciou época de mudanças na Igreja Católica e no Mundo. Na primeira, vieram metamorfoses trazidas pelo Concílio Vaticano II, pois as mudanças sociais, culturais, políticas e religiosas ocorridas nos séculos XIX e XX foram alguns dos principais motivos para a convocação do Concílio, já que João XXIII, ao convocar o Concílio Vaticano II, dizia como queria a Igreja: “uma Igreja pobre para os pobres” e como apontam Almeida, Maçaneiro e Manzini (2013), no livro As janelas do vaticano II, eram necessárias uma renovação e adaptação da Igreja Católica às chamadas questões modernas, já em pleno ebulição nos anos 1950 cinquenta. Imbuído do espírito de “aggiornamento” do Vaticano II, bem como dos influxos das universidades americanas na Itália, que trouxeram temas de contestação juvenil, desarmamento nuclear, étnica, justiça internacional, crise da cultura acadêmica das universidades e didática, questionamento aos exames, pedia-se voto político, contestava-se as aulas catedráticas, movimento estudantil, junto com o sindical, desconfiança em relação aos políticos, a petição de democracia já, revolução cultural, o assassinato de Che Guevara, de Martin Luter King, influenciando muitos jovens, etc., conduziram o jovem Pe. Luis, considerado coerente em sua vida sacerdotal, bondoso de ânimo, crítico e equilibrado, sobretudo, voltado aos problemas dramáticos, sociais e eclesiais, a ter mais tarde atitudes, como a que teve no que concerne a famílias, mas, sobretudo a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social (CASVS). 712 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Vale salientar que o Pe. Luis Cecchin, quando chega ao Brasil, na década de 60, veio certamente, entremeado das ideias que já circulavam na Europa, como as do Vaticano II, com seu “aggiornamento”, seu “abramos a Igreja e deixemos sair a poeira para que ar novo possa entrar”. Tal aggiornamento significa “atualização” e foi a orientação chave dada como objetivo para o Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII em 1962, que buscava adaptação e nova apresentação dos princípios católicos ao mundo atual e moderno, sendo por isso um dos objetivos fundamentais do Concílio Vaticano II: “fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja”. (SC, n.1). Certamente, o Pe. Luis realizou suas ações missionárias em Limoeiro-PE embebido naquilo que o Vaticano II trouxe para a Igreja Católica segundo Brighenti (2015), quando aponta que o Vaticano II é uma combinação de “continuidade” e “descontinuidade”, de fidelidade à Tradição, mas também de profunda reforma, na perspectiva cunhada por Calvino, oriunda dos santos Padres e que o Concílio também fez sua: Ecclesia semper reformanda. O Vaticano II foi um passo ousado no resgate das fontes bíblicas e patrísticas, relidas e assumidas no contexto do mundo moderno, contra o qual a Igreja se opunha há cinco séculos. Por um lado, a renovação conciliar é “continuidade”, uma vez que o Vaticano II, por mais inovador que seja, não rompeu com a Tradição da Igreja e, consequentemente, é continuidade de muito do que foi recebido, de geração em geração, através dos séculos. Por outro lado, se tudo é continuidade, então não haveria novidade ou mudança, quando, na realidade, o Vaticano II fez uma profunda reforma da Igreja em todos os campos, ad intra e ad extra, seja no âmbito das práticas pastorais, seja nas estruturas eclesiais. Desta maneira, nos quinze capítulos que compõem a obra, Brighenti (2015) mostra como o Vaticano II superou tanto o eclesiocentrismo do Catolicismo medieval como o clericalismo e a romanização do Catolicismo tridentino e elaborou uma nova autocompreensão da Igreja, em diálogo com o mundo moderno, em espirito de serviço, especialmente aos mais pobres. Entretanto, além de novos princípios provindos da reforma do Vaticano II, com certeza um 713 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e dos documentos que mais deram impulso de ação ao jovem Pe. Luis foi Declaração Gravissimum Educationis – Sobre a Educação Cristã, onde encontramos uma defesa eminente acerca da Educação como direito de todos, sobretudo, das crianças e jovens e àqueles que não têm acesso à Educação, como declara o citado documento: “O sagrado Concílio Ecuménico considerou atentamente a gravíssima importância da educação na vida do homem e a sua influência cada vez maior no progresso social do nosso tempo. (GE, n. 1 e 3). As mudanças do Vaticano II foram mais incisivas na vida do Pe. Luis, mormente, com o grande fomento da Doutrina Social da Igreja, pois o documento da Igreja acima propõe que os sacerdotes tratassem a Educação como um ato de evangelização como era um ato benéfico tanto para conservar como para aumentar a presença da Igreja no mundo, desenvolvendo nos alunos o espírito de Cristo, que não custa lembrar, era um espírito humano, libertador, generoso, preocupado com a causa dos necessitados e desfavorecidos tinham como escopo a vida em sua forma mais plena possível. A Doutrina Social da Igreja pretende agir a partir da realidade das próprias coisas. Em outras palavras, o escopo da doutrina social da Igreja (DSI) é “levar os homens a corresponderem, com o auxílio também da reflexão racional e das ciências humanas, à sua vocação de construtores responsáveis da sociedade terrena”. (SRS, n. 41). Joao Paulo II, ainda, saliente: A atividade econômica, sobretudo a da economia de mercado, não pode desenvolver-se num vazio institucional, jurídico e político. Ela supõe que sejam asseguradas as garantias das liberdades individuais e da propriedade, sem esquecer uma moeda estável e serviços públicos eficazes. O dever essencial do Estado, no entanto, é assegurar essas garantias, para que aqueles que trabalham possam gozar do fruto de seu trabalho e portanto sentir-se estimulados a realizá-lo com eficácia e honestidade… O Estado tem o dever de vigiar e conduzir a aplicação dos direitos humanos no setor econômico; nessa esfera, porém, a primeira responsabilidade não cabe ao Estado mas às instituições e aos diversos grupos e associações que compõem a sociedade. (CA 48). Outro ponto a se destacar, além da Doutrina Social da Igreja, é o da Teologia da Libertação, que, corrente teológica cristã nascida na América 714 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Latina, depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, que parte da premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres e especifica que a Teologia, para concretar essa opção, deve usar também as ciências humanas e sociais. Tal corrente interpreta os ensinamentos de Jesus Cristo em termos de uma libertação de injustas condições econômicas, políticas ou sociais. Ela foi descrita, pelos seus proponentes como reinterpretação analítica e antropológica da fé cristã, em vista dos problemas sociais, embora, seus oponentes a descrevem como um marxismo, relativismo e materialismo cristianizado. (DUSSEL, 1999). O método destas teologias é indutivo: não parte da Revelação e da Tradição eclesial para fazer interpretações teológicas e aplicá-las à realidade, mas partem da interpretação da realidade da pobreza e exclusão e do compromisso com a libertação para fazer a reflexão teológica e convidar à ação transformadora desta mesma realidade. Ocorre também uma crítica à teologia moderna e sua pretensão de universalidade. Consideram esta teologia eurocêntrica e desconectada da realidade dos países periféricos. (BOFF, 2003). Início da trajetória do Padre Luis Cecchin: missão e educação libertadoras Em 28 de fevereiro, desembarca no Brasil, para começar sua trajetória de profetismo, abnegação e luta para amar Jesus nos pobres, embebido por documentos do vaticano II, dos da Igreja na América Latina, como Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida e influenciado por Dom Helder Câmara, por teólogo como José Comblin e Gustavo Gutiérrez. Pe. Luis chega a Limoeiro-PE, com as citadas influências e com a realidade de Limoeiro-PE clamando por justiça social, como aponta alguns motivos, Marton ao dizer: Em Limoeiro ‘a miséria e a injustiça que grita ao céu’ estavam sob os olhos de todos e pesavam sobre as costas dos pobres, oprimidos e humilhados. O evangelho, anúncio de libertação para os afadigados e os oprimidos, bem como Medellín, pediam com força à Igreja latino-americana que se empenhasse corajosamente na libertação dos pobres de toda opressão. (2014, p. 27). 715 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Seguindo o profeto bíblico Amós, gritou altissonante contra os que “vendiam o justo por dinheiro e o pobre por uma par de sandálias” e “pisavam a cabeça dos pobres como se pisam o pó da terra” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2016, Amós 2, 6-7); derramavam sangue dos pobres, as matanças a mando dos coronéis e donos de terras limoeirenses; contra as desigualdades e injustiças. O foco era sempre lutar a favor dos pobres, oprimidos e injustiçados. Usando o nome de Jesus, clamava: os pobres são os mais amados de Deus, portanto, devem o ser da Igreja e de todo aquele que se diz cristão. Amar o pobre não é aprisioná-lo, mas liberta-lo por meio da promoção humana. A pedagoga Maria do Carmo, que trabalhou com o Pe. Luis e hoje, também é uma das que da continuidade ao Instituto Padre Luis Cecchin (IPLC)3, guardou escritas algumas assertivas de Pe. Luis que podemos ler nas frases anotadas por ela e fornecida do seu arquivo pessoal: Se as crianças não reconhecem que são amadas, não serão felizes. Como é visível a presença de Deus no olhar de cada criança. O amor de Deus nos chama para amar. O rumo todo da nossa vida é o amor. Somos chamados a semear a boa semente. Cedo ou mais tarde ela vai germinar. Deus nos chamou ao fundamental que é a vida. Ele nos colocou a fé que nos compromete a servir aos outros. Ninguém é feliz vivendo para si mesmo. Quem ama a Deus- fonte da vidaama a vida. Nossa vida é o reflexo de nossas ações. Somos chamados a ser instrumento de vida e libertação neste mundo. Prove o seu amor a Deus, amando o seu irmão. Nossa tarefa de cristãos é colocar no coração da humanidade o amor. Eu sou justo, se respeito à vida. Faça crescer a sua pessoa, aprendendo uma profissão. Vai ganhar na sua qualidade de vida, vai facilitar seu futuro econômico! Deus está conosco neste esforço de nos aprimorar, nesta nossa atividade de educadora junto com ele. A nossa ajuda aos pobres tem estas finalidades: desenvolver a sua pessoa; como homem de bem, sadio no corpo e no coração; como trabalhador competente; como bom cristão alegre; como cidadão responsável pelo bem comum. O IPLC continua a dar a mão amiga aos pobres, para que alcancem uma vida digna como Deus quer para todos os seus filhas e filhas. Devemos ajudar os filhos a usar a liberdade para o bem. O jovem Para saber sobre o Instituto Padre Luis Cecchin acessar: https://iplclimoeiro.wixsite. com/iplclimoeiro. 3 716 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e não é só do futuro, é do presente também. Devemos ajudar o povo de Limoeiro a ser amado, a ser valorizado, sentir-se respeitado. Despertar na criança e no adolescente a amar a si mesmo. (Texto escrito por Maria do Carmo, livreto que se encontra no arquivo da sede do IPLC). As palavras de Pe. Luis tiveram registros, ecos e são valorizadas, porque junto com elas, vinham aquilo que podemos encontrar na seguinte máxima: “o exemplo não é a melhor formar de educar, é a única”. Embora, o exemplo, também, não seja a única, mais é uma das mais eficazes que conhecemos, na modalidade missionária e educativa, com público que Pe. Luis teve como foco. Ele falava e praticava. O conceito de missão e educação que possuía e realizava na prática era o da Educação libertadoras. Num breve comentário, vale dizer que quando o Pe. Luis chegou a Limoeiro-PE não sabendo falar português e até as crianças o ensinava, mas, depois foi ele que fez por muitas delas. De fato, vale ressaltar que No dia 6 de janeiro de 1969, na igreja de Galliera Veneta, o Bispo Mons. Antonio Mistrorigo presidiu a cerimônia de “envio” do Padre Luis como missionário “fidei donum” para a Diocese de Nazaré, Estado de Pernambuco, Brasil. Um mês depois, em 6 de fevereiro, desembarcou no Brasil, no Rio de Janeiro e, em 26 de maio, chegou de ônibus a Limoeiro-PE, perto de Recife-PE, diocese de Nazaré. Naquela terra, por 40 anos esteve a serviço dos pobres, dos “Últimos”, e, para ser como eles, viveu na simplicidade. Portador de uma doença grave, não aceitou privilégios para tratar-se, porque os pobres, dizia ele, não tem privilégios. Voltou à Itália em 28 de fevereiro de 2010, para tratar-se. Isto fez somente por obediência ao seu Bispo. Morreu em Mussolente – Diocese de Treviso – em 26 de março de 2010, assistido por seu Bispo Diocesano do Brasil, Dom Severino Batista de França e o Vigário Geral da diocese, na época, Pe. Antônio Inácio Pereira da Silva, que propositadamente, vieram à Itália para acompanhá-lo em sua “última viagem”. Foi sepultado, na segunda feira de Páscoa de 2010, na sua igreja paroquial de São Sebastião em Limoeiro-PE, acompanhado de uma multidão, de seus “Pobres” que sempre viram nele a manifestação do amor de Deus. (MARTON, 2014). 717 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Falas que reverberam Padre Luis Cecchin e suas ações proféticas Do testamento espiritual (09 de junho de 2008) do Pe. Luis: Eu, Luís Cecchin, agradeço com todo o coração a Deus meu Criador pelo dom da vida. A história da minha vida é um constante ato de amor de Deus Pai, de Deus Filho, de Deus Espírito Santo, no qual creio firmemente por meio do dom da fé cristã, na qual fui batizado (…). Chegando o momento da minha passagem desta vida terrena a vida eterna, pedindo humildemente perdão dos meus muitos pecados, confiante no amor misericordioso de Deus que quer me salvar por meio da paixão e morte amorosa de Jesus seu Filho, meu Redentor, me entrego a Ti, meu Deus, Pai amoroso, como um filho, assim como sou; entrego-me a Ti, Jesus, Filho de Deus, feito homem no seio da Virgem Maria, que me amaste até mesmo sacrificando a tua vida humana. (…) Me entrego a Ti, Deus Espírito Santo, que desde o batismo me santificaste e me acompanhaste com infinita paciência para ser e viver como filho de Deus, que é Santo, e a todos oferece por teu meio o dom para ser santos. Entrego-me a Ti, Maria, Mãe Santíssima de Jesus e da Igreja e minha amada Mãe de misericórdia. Estiveste sempre presente com teu amor materno na minha vida e, nesta hora da minha morte, acompanha-me ao teu amado Filho. (…) Sou muito agradecido a Deus que me quis missionário no Brasil. Conheci momentos de alegria espiritual, experimentei minha fragilidade de pecador, provei a presença de Jesus… Os pobres, os oprimidos, os sofredores em tantas maneiras, me ajudaram a conhecer melhor e a seguir Jesus pobre, desprezado, sofredor por nosso amor e sempre misericordioso. O trabalho com crianças, rapazes e jovens pobres materialmente, moralmente e espiritualmente, me colocaram mais perto de Jesus, que, sem descuidar de nenhuma pessoa, dá um amor predileto a eles (…). Maria, mãe santa de Jesus e minha amorosa mãe, acompanham-me ao teu bendito Filho Jesus. Assim seja. O testamento para o seu povo (24 de janeiro de 2010) No fim da Santa Missa da festa do padroeiro São Sebastião, para as pessoas da sua paróquia em Limoeiro-PE, deixou uma mensagem de vida, que somente por um homem santo, apaixonado por 718 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Deus, podia surgir. Eis algumas frases: “Eu estou no fim da minha vida, e pouco tempo me resta; mas, gostaria de deixar para vocês esta lembrança. Nós hoje, eu por primeiro, vocês pais de família, nos perguntamos: estamos transmitindo aos nossos filhos, aos nossos jovens, a riqueza da fé dos nossos pais? Se nós não transmitimos a fé, os nossos filhos ficam vazios. Nós cristãos devemos começar a assumir o compromisso de ensinar aos nossos filhos o amor à vida. Eu gostaria, saindo desta igreja, que todos nós, eu por primeiro, mais velho, pelo tempinho que o Senhor me dá ainda, pudéssemos dizer: “Quero ser cristão no mundo de hoje. Quero ser cristão hoje. Em todas as atividades, em toda parte, quero ser cristão!“. Última mensagem do Pe. Luis Cecchin no leito do hospital, em 09 de março de 2010, poucos dias antes de morrer, disse: Estou aqui nas mãos do Senhor, confiante. Aquilo que Ele dispõe é a coisa mais bela. Deus nos quer bem em todos os momentos da vida. Continuem a serem unidos na oração, no amor e na solidariedade. Este meu sofrimento é um dom de Deus. Agora olho a Ressurreição! A nossa família não deve dissolver-se nem preocupar-se em nenhum momento da vida…”. No prefácio do livro de venerando, o último bispo de Pe. Luis Dom Severino Batista, diz acerca de Pe. Luis: Ouvimos dizer que não se avalia uma pessoa pelo que ela faz, mas pelo que ela é. Contudo, quero afirmar que nestas páginas, não somente encontramos o ser, mas, também, a ação de um sacerdote que, nas terras do Nordeste brasileiro, viveu sua identidade de consagração expressa no seu fazer, no agir e na missão... por mais de quarenta anos viveu entre nós como missionário, principalmente na cidade de Limoeiro. Foi às margens do rio Capibaribe que este homem de Deus dedicou sua vida aos pobres com ardor e zelo missionário. (...) Para padre Cecchin não bastava anunciar as boas novas, mas sim concretizar sua mensagem à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, pois Jesus veio como o “ungido do Espírito do Senhor para evangelizar os pobres” (Lc 4,18). Esta foi sua grande preocupação ao chegar como missionário às terras do Agreste pernambucano, e encontrar tantos necessitados vivendo em total abandono nas periferias de nossas cidades. A partir desta 719 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e realidade, com contraste com que viveu na relicária Itália, seu berço natal, impulsionado pelo Espírito do Senhor, é que assumiu a missão evangélica com os pobres, dedicando-se às crianças e adolescentes da cidade de Limoeiro. A opção preferencial pelos menos favorecidos nas famílias constituídas de crianças e adolescentes jogadas ao relento da vida, tornou-se a meta de Pe. Luis Cecchin, sendo a principal pastoral missionária e profética. Nos necessitados, ele via a pessoa humana transformada em trapo. A sua visão de homem aberto aos sinais dos tempos, era de preparar e formar as pessoas. É sobre o ser humano reerguido e liberto das injustiças sociais, que a pessoa se lança à fé tornando-se verdadeiro cristão, para em seguida ser um homem novo, transfigurado na pessoa de Cristo. Assim, a primeira preocupação do Pe. Luis Cecchin foi formar o homem, e, depois, o cristão. (VENERANDO, 2012, prefácio). Fica claro nessas falas que a sua motivação era evangélica de libertar aos pobres como o fez Jesus e por motivo cristão de amor ao próximo, que o levou a retalhar as injustiças sociais, exclusão social, desigualdades, mormente, com um gesto concreto em prol das CASVS da cidade de Limoeiro-PE durante e depois daquele período do engendramento do IPLC, como, também, atestam alguns testemunhos apresentados por Venerando (2012): seu irmão Angelo Cecchin: Em cada cidade que passou, deixou um exemplo. Em todos as paróquias tomava boas iniciativas. Vivia para os pobres. Era muito preocupado com os jovens” (p.15). Tereza Toniolo, Cunhada: “o Pe. Luis deixou-nos um grande exemplo pois ele sabia, como ninguém, amar a todos de maneira igual. Renunciou tudo que poderia ter para si. Não queria nada. Ao contrário disso, estimulou pessoas para que, a cada ano, procurassem doar para os outros alguma coisa de que não precisassem, de maneira que sempre dividissem o que tinham com os que precisassem mais. (...) Desde a infância percebe-se que ele verdadeiramente percorreu um caminho diverso das outras pessoas. Ele dizia que somos todos irmãos perante Deus. Ensinava a formar uma consciência de amor e afeto”. (p. 9). Pe. Jorge Barbieri, amigo: “convivi quarenta anos com o Pe. Luis. Era amadurecido, tinha uma experiência profunda, atenção especial para as crianças abandonadas, idosos e desempregados. Ele tinha uma grande espiritualidade. Amava Jesus Cristo. A missa e o terço ministrados por ele eram de uma piedade extraordinária. Ele tinha grande capacidade de unir o espiritual com o material, sempre em espírito cristão, 720 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e que o ajudava a levar uma vida dedicada. Viveu sempre de forma humilde. Ele dizia: ‘o essencial é de Deus’. Era de uma simplicidade grande. Vivia uma vocação voltada à pobreza, de forma concreta”. (pp. 22-23). Pe. José Nivaldo, ex-pároco de Nossa Senhora da Apresentação em Limoeiro-PE: “o Pe. Luis deixou grandes marcas no sentido da caridade, fé cristã e serviço aos pobres. Teve o heroísmo de ser a presença de Cristo em meio às pessoas. Foi fiel à fé ao evangelho até o extremo, ao qual demonstrava um amor verdadeiro; qualquer um percebia isso. Ele deixou a semente do amor, da escuta. Por isso continua vivo pelo grande bem que fez”. (p.26). Adalto Duarte, amigo: “o Pe. Luis fez muita coisa boa pelo povo de Limoeiro; protegeu as crianças, e foi um amigo. Vai ser difícil aparecer outro aqui em Limoeiro para fazer o que ele fez. Foi um grande exemplo de vida cristã. Exemplo de dedicação à Igreja e ao povo pobre com integridade”. (p. 39). Jaime Lima, amigo: “a virtude maior do Pe. Luis, foi saber amar. As crianças adoravam estar perto dele. Tinha muito jeito com os pequeninos e foi um grande missionário querido por todos até hoje”. (p. 59). Seu pensamento, já naquela época, norteado pelas ideias vigentes no seu contexto religioso, sociohistoricocultural e do documento de Medellín, que tratou de uma “Educação Libertadora”, “que transforma o educando em sujeito do próprio desenvolvimento. A Educação é, de fato, o instrumento-chave para libertar os povos e cada um dos indivíduos de toada escravidão e para fazê-los ascender de ‘condições menos humanas para condições mais humanas’”. (IDEM, pp. 38-39). A pergunta que norteava e angustiava Medellín, Puebla e Pe. Luis era: como pode países de confissão católica, na América Latina, como o Brasil, existir tanta injustiça? Não era fácil chegar a uma resposta, mas para Pe. Luis, uma das respostas era: ausência de E, mas, não qualquer uma, tinha que ser libertadora. Para que a E libertadora entrasse em ação, pensou não em uma obra grande, mas, numa “Grande Obra”, que a chamou assim, por causa dos seus princípios. Criou um “Centro de Formação”, que depois transformou em “Centro de Formação de Menores” (CFM). “Grande obra”, porque quis primeiro formar as famílias para que estas formassem as crianças. Mas, como a demanda era grande, criou o CFM, com os seguintes princípios: a família deve estar envolvida no processo de E dos “menores”, o povo de Limoeiro, pobres e ricos, quem deveria prover as necessidades do CFM, como expressão da comunidade; o foco 721 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e da formação era promover o homem e o cristão, sem partidarismo, isto é, qualquer pessoa poderia contribuir com o CFM, seja cristão ou não cristão, só precisava ter o vento evangélico (homem de boa vontade), sensibilidade para humanizar e libertar os pobres da sua condição desumana, pois no CFM, não se tinha o ar clerical e sim vento humanizante e libertador. Diz Marton: Em limoeiro já existia uma atividade de assistência às crianças pobres. Mas na linguagem atual diríamos que se tratava de uma atividade “assistencialista”, com todas as vantagens e limites que o assistencialismo comporta. Um episódio narrado recentemente pelo proprietário de uma Olaria em Limoeiro ilustra bem a visão do Pe. Luis a este respeito. Este tinha ido comprar as telhas para as capelas qua as comunidades estavam construindo no interior. Logo passaram também duas crianças pedindo dinheiro. O dono da olaria, talvez até pensando que na frente do padre não seria o caso de negar uma esmola aos pequenos, lhes deu logo. A reação do Pe. Luis ainda continuava viva na lembrança do senhor Duarte: “jamais se deve dar dinheiro às crianças!” no começo parecia um conselho, mas depois acabou se tornando uma recomendação argumentada e no final praticamente virou uma ordem: “nunca dê dinheiro a crianças! Pode dar a quem quiser: um doente, a portador de necessidades, a um adulto... mas jamais a uma criança!” Pe. Luis repetia frequentemente o provérbio chinês do livrinho de Mao: “não dê o peixe, ensine a pescar!” e completava evangelicamente: “na fraternidade!” As crianças e os jovens tinham necessidades não de esmolas, mas de Educação. Essa foi uma de suas batalhas, que levou em 1970 ao surgimento do Centro de Formação de Menores, a obra que tornou o Pe. Luis conhecido também fora de Limoeiro, mas que nunca pode ser compreendida se for separada da pastoral social que estamos descrevendo. (2014, pp. 37-38). Daí, o CFM foi construído fora dos âmbitos da Igreja Matriz da cidade e afastado da cidade, para que não tivesse nem promoção midiática, nem política, nem empresarial, nem assistencialista, nem paroquial, nem a ideia de ser católica, mas do humano e do cristão. Incentivou amigos italianos a serem padrinhos dos chamados “menores”. Todavia, a administração do dinheiro e CFM era dele, com rigor e singeleza, simultâneas, sobre três fundamentos: sobre a opção preferencial pelos 722 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e pobres, uso evangélico do dinheiro e a pessoa de Jesus educador. Era sóbrio no vestir, quase esquivo no andar, falar interiorizado, e, apesar da “cruzinha”, que sempre usava, quem se aproximava, não importava a postura religiosa, ficava à vontade, ao ponto de dizermos, quanto mais religioso mais “leigo”. Também, era relevante seu olhar, ao ponto de podermos dizer como disse o comunista Ignazio Silone sobre um padre: “aquilo que dele, na minha lembrança ficou mais marcado, a pacata ternura do olhar. A luz dos seus olhos tinha bondade e a clarividência que às vezes se encontra em certas velhinhas camponesas, em certas avós, que na vida pacientemente sofreram todo tipo de tribulações e por isso mesmo sabem ou advinham as penas mais secretas”. (Idem, p. 49). Pe. Luis não queria nem uma educação tradicional, nem clerical, e por isso, não era impositivo nas suas formações, mas, dialogada, capturando a realidade social e aberta a críticas. Também Pe. Luis dialogou com adultos sobre “formação marxistas”, não raro naqueles anos, os quais ainda hoje lembram as longas conversações muito respeitosas (ele nunca buscava “capturá-los” os “convertê-los” à sua ideia). Aceitava até mesmo as críticas mais duras, sempre desejando conhecer melhor a situação social, inclusive com a ajuda de quem viesse de outro horizonte cultural. Isso tudo não havia sido dito pelo Concílio? Por conseguinte, diante de tanta coerência de vida, os não crentes ficavam admirados. (MARTON, 2014, p. 42) Essa abertura para outros conhecimentos e outras formas de pensar e agir, provinham do seu respeito ao ser humano, pois o próprio sentiu na própria pele o que era ser rejeitado em suas ideias, ditas nas homilias dominicais, quando foi considerado indesejado por suas ideias ao ponto da Polícia Federal lutar para deportá-lo do Brasil em uma semana, como já foi acenado. Todavia, sem nenhuma prova específica de ser um pecha, continua sua missão por uma libertação dos pobres e oprimidos. Alicerçado na Pedagogia dos Oprimidos de Freire, de quem era leitor assíduo; na Teologia da Libertação da América Latina, de bispos como Dom Aluísio Lorscheider, Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casadáliga, Dom José Maria Pires; e nos documentos da Igreja, Medellín e Populorum Progressio, buscou aquilo que chamou de solução mais 723 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e adequada para os diversos problemas que atingiam os pobres na América Latina, se centrando em Limoeiro-PE, já que muitas respostas aos novos desafios eram inadequadas. Criou as Comunidades Eclesiais de Bases (CEBs), realizando, assim, o protagonismo do leigo, convocando que eles se tornassem não vice-padre, mas a terem “maturidade espiritual” para assumirem “responsabilidades numa linha de autonomia” diante dos compromissos enormes de “libertação, humanização e de desenvolvimento”. Os leigos deveriam ser não clericais e nem prisioneiros das formas deterioradas da religiosidade popular, mas de espiritualidade encarnada, evangelho ligado à vida, ao ponto de serem autônomos em relação a tantas amarras, entre elas aos sacerdotes. Na esteira de Medellín insuflava nos leigos que não deviam pensar que os seus sacerdotes estão de tal modo preparados que tenha uma solução pronta para qualquer questão, mesmo grave, que surja, ou que tal é a sua missão. Antes, esclarecidos pela sabedoria cristã, e atendendo a doutrina do magistério, tomem por si mesmos as próprias responsabilidades, pois compete aos leigos por suas livres iniciativas e sem esperar passivamente ordens e diretrizes, introduzir espírito cristão, na mentalidade e nos costumes, nas leis e nas estruturas das suas comunidades de vida. Por motivação evangélica, com uma pedagogia baseada no discernimento dos sinais dos tempos na trama dos acontecimentos, procurava não só ajudar aos pobres, mas, sobretudo, honrá-los, no sentido de não os humilhar com o assistencialismo, pois dizia: A ajuda material aos pobres não se deve se dá como benfeitor, mas como se dá a um amigo”. Assim, “não aconteça que se ofereça com dom de caridade aquilo que já é devido como justiça; suprimam-se as causas dos males, e não apenas os seus efeitos; e de tal modo se preste a ajuda que os que a recebem se libertem pouco a pouco da dependência alheia e se bastem a si mesmos” (MARTON, 2014, p. 79). Sendo assim, a cátedra que deveria existir no mundo, pelo menos a que ele lutava, para que fosse a dos pobres, pois além de estarmos lhes fazendo justiça, tinham muito a nos ensinar. Por isso, devem ser os primeiros, sobretudo, a partir de uma ação colaborativa, partilhada e 724 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e não impositiva, como missionários de Cristo, batalhar por ela ser ocupada por eles, vaticinava Padre Luis Cecchin. Para não concluir Na tentativa de colocar um ponto “final” do presente texto, não da proposta científica, nele, já que em ciência, ponto “final” está mais para morte, espécie de suicídio científico, que o que tem sido, nos últimos tempos, o desafio da ciência: propor estabilidade sem deixar de ser devir. Recorro ao Livro sobre nada de Manoel de Barros (2010, p. 350), quando alerta: “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem no canto de um sabiá. Quem acumula muita informação, perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam”. Portanto, em outras palavras, já intento dizer que, por mais que eu tentasse exaustivamente exaurir a história de vida de Padre Luis Cecchin, seria um tentava em vão, símil a ciência pretender “calcular quantos cavalos de força existem no canto de um sabiá”. Entretanto, a partir do que, aqui, expomos e discutimos, inferimos a eminente contribuição de Padre Luis deu a Limoeiro-PE. Ele lutou pelos menos favorecidos e desprovidos de direitos básicos do cidadão e do ser humano, como o se alimentar e o direito de ir e vir. A sua história é contada e recontada entre os limoeirenses como um grande profeta, pois lutou contra o regime opressor dos coroneis existente no período que chegou a Limoeiro-PE e erigiu o maior instituito de luta em favor de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social daquela cidade e região: o Instituto Padre Luis Cecchi. A sua história de vida impacta e desafia a nós brasileiros a termos coragem de lutarmos contra todo tipo de fascismo e totalitarismo. Eis, para mim, um pouco da história de vida de um profeta de nossos dias. Com o que, aqui, me prôpus, não fiz e nem pretendi esgotar o tema, mas, apresentar a história de vida de alguém que deu sua vida em favor dos menos favorecidos e que ao seu lado, não achamos que o amor existe, “temos certeza”. 725 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ALMEIDA, Joãozinho; MAÇANEIRO, Marcial; MANZINI, Rosana. As janelas do vaticano II: a Igreja em diálogo com o mundo. 3 ed. Aparecida-SP: Santuário, 2013. BARROS, M. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. [original 1998]. BíBLia JerusaLÉM. 17 impressão. São Paulo: Paulos, 2016. BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. 18a edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003. BRIGHENTI, Agenor. Em que o vaticano II mudou a Igreja. Paulinas, São Paulo, 2015. 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Recife: Gráfica Salesiana Dom Bosco, 2012. [ Volta ao Sumário ] 726 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e tRadições e lemBRanças da Comunidade sefaRdita de João Pessoa – PB Renata Baltar Barros Diógenes Faustino do Nascimento Como referenciar este capítulo: BARROS, Renta Baltar; NASCIMENTO, Diógenes Faustino do. Tradições e lembranças da Comunidade Sefardita de João Pessoa – PB. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 720-731. Renata Baltar Barros1 Diógenes Faustino do Nascimento2 Introdução Intentamos destacar e dissertar sobre os desafios que esta comunidade enfrenta: comemorar suas datas festivas, obter alimentos para o Kasher (Kosher), fomentar seus hábitos e costumes e como preservaram suas tradições. Trata-se do resgate da memória/lembranças daquilo que foi passado e daquilo que pudesse ser identificado e resgatado nos resquícios do que se era praticado as escondidas. Objetivamos trazer à tona a empatia e o conhecimento de uma visão de família, de cultura, sociedade, saúde e espiritualidade, ajudando na fomentação integral do ser humano como indivíduo religioso sefardita e suas relações com o povo paraibano (João Pessoa). Nosso fundamento principal traz a presença histórica deste povo e como eles lidam com os desafios antissemitista e conservação das suas memórias e tradições. Esta pesquisa teve como foco corroborar para a apresentação do 3º Simpósio Regional da ABHR Nordeste: Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades, trazendo uma visão da Religião, através de um olhar significativo no processo das praticas da educação Judaica Sefaradita. Encontrando traços nas práticas da religião que perpetuam de geração a geração através da memória na qual se definem como uma identidade. A comunidade busca seguir as leis do livro sagrado a Torá, a alimentação kasher, entre outros costumes como a circuncisão (Brit Milá) dos meninos e o Bar Mitzvah, no Graduada em História – Unavida/UVA-CE; Concluindo a especialização em Ciências das Religiões, Diversidade e Ensino Religioso – IESP. 2 Mestre e doutorando em Ciências das Religiões\UFPB. Membro pesquisador do Grupo Videlicet de Estudos em Religiões,Cultura e sistemas Simbólicos –UFPB/CE/PPGCR. Sócio da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) – Nordeste. Coordenador Adjunto na Especialização em Ciências das Religiões, Diversidade e Ensino Religioso (IESP), diogenesnascimento38@gmail.com. 1 728 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e qual representa sua iniciação na vida adulta e espiritual. Assim como os homens utilizarem o Kippa em respeito a Deus no momento de suas rezas. Sabemos que as religiões estão presentes no meio social, e que podem se manifestar de diferentes formas e comportamentos em nossa cultura, levanto questões sobre as práticas educacionais judaicas nas quais são relacionadas a códigos rígidos, como a respeito da comida Kasher (dieta alimento judaico). São relatados também alguns conflitos de questões religiosas similares a mesmas dando um enfoque sobre o olhar dessas comunidades Judaicas. No qual alegam sua luta por sua fiel identidade cultural e religiosa a um determinado povo. Este artigo tenta construir significativas respostas a desafios existentes em nossa época atual, retratando o cultural e religioso, mostradas pelo panorama de uma comunidade referente ao Judeu Sefardita e sua representatividade milenar. Ao que parece a comunidade busca assim como qualquer outra minoria, pela preservação de suas ideias religiosas tradicionais, e integrar-se num corpo social, dentro de seus direitos e deveres. Com respeito à diversidade religiosa, na busca pelo dialogo e reflexão. Desenvolvimento A religião Judaica está para sua cultura assim como sua cultura para sua religião, para eles não há separação entre cultura e religião, sendo assim pode dizer que ao longo da história da humanidade a maioria das culturas criou-se uma forma de preservação para suas tradições, isto não seria diferente com os Judeus, uma das mais antigas religiões monoteísta milenar, no qual se tem uma obediência a códigos morais rigorosos, como o estudo da Torá (livro sagrado), frequência à sinagoga, comemorações festivas ao calendário Judaico, o consumo de comida kosher, vestimentas, o convívio social fora e dentro das diferentes instituições e sua busca pela fidelidade ao passado e suas tradições e uma obrigação de transmissão e educação feita de geração para geração. Sendo uma religião cultural monoteísta por 5.779 anos (calendário Judaico). Os judeus procuraram manterem-se firmes em suas leis de acordo com a Torá, mesmo em meio a mudanças culturais estes 729 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e buscaram manter-se fieis, sendo talvez um dos povos que mais influenciaram outras religiões, hábitos, costumes, ritos, vestimentas, alimentação. O povo judeu não é um povo laico, portanto podemos afirmar que sua religião estabelece suas regras e leis e assim seu modo de vida em particular e obviamente, tendo seus limites estabelecidos pela Torá. Já no cristianismo muitas das vezes respeitando um Estado Laico, baseia se no seu livro sagrado a Bíblia na quais umas de suas regras construídas é a evangelização, ao contrário dos os Judeus que são proibidos de praticar proselitismo, como afirma Borges, líder da comunidade judaica Sefardita de João Pessoa; Nós somos proibidos de fazer proselitismo, o judeu não pode fazer com que ninguém queira se tornar Judeu, porque nós não somos os únicos que estamos com a verdade, existem muitas verdades por ai, a gente só pede o seguinte, você quer ser cristão? Seja o melhor cristão, você quer ser budista seja o melhor budista, você quer ser mulçumano seja o melhor mulçumano, a gente não quer que venha pra se converter, ou seguir a gente, não. Então nós não fazemos proselitismo. (...) Mas divergências sempre haverá, não é fácil, lidar com pessoas com pensamentos diferentes discordantes, e entre a diversidade religiosa a gente tende a encontrar, “o diferente”, é como qualquer outro, seja dentro de uma Igreja Católica, dentro de uma Igreja Protestante, Centro Espírita, um Terreiro de Umbanda, desde as pessoas mais intelectualizadas aquelas menos abastadas, então não é fácil lidar com o ser humano. Segundo Borges, o Judaísmo messiânico não existe, ou se é Judeu (Sefardita ou Asquenazi) ou se é cristão. Existem algumas denominações que se dizem Judaicas, mas são messiânicas, são cristãs com viés judaico, pegaram as simbologias, as práticas, os costumes com a mesma roupagem que já tinha, e só aflorou mais a simbologia deles, mas pra ratificar aquilo que eles já acreditavam que é a ramificação do cristianismo, eu já digo a você de antemão que judaísmo messiânico não é judaísmo, é cristianismo com outro viés. Porém é um direito de cada um acreditar em sua ideologia, ainda que essa vá contra a identidade de outra dentro de suas convicções, no 730 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e caso dos messiânicos assim são chamados por seguirem aquele que eles consideram Jesus Cristo como Messias. Outra similaridade entre os Judeus messiânicos e Judeus são as comemorações festivas, ambos procuram guardar festividades da Torá, porém com diferentes correntes de interpretações, mas os messiânicos são bem similares aos cristãos. Já na questão da alimentação nota-se que a dieta Judaica é muito rígida. Onde alguns historiadores identificaram em suas pesquisas inúmeros hábitos do povo Judeu, e através da memória foram buscando o resgate de suas raízes, passando de geração a geração. Borges (2016) também fala um pouco sobre alguns hábitos e tradições que buscam manter ate os dias atuais através da resistência; [...] é impossível à gente não vivificar o judaísmo em nossa vida, ao acordar a gente já diz logo, uma prece, uma oração... [...] tanto aquele que é mais religioso até aquele que não é tão religioso, se faz uma pequena oração, na hora da alimentação, quando vai comer, quando vai tomar uma água, quando vai tomar um suco, um refrigerante, você agradece, é costume nosso agradecer a Deus, por ter se alimentando daquela forma, e pra trabalhar [...], então a gente está constantemente em agradecimento a Deus, com pequenas Brachots (Benções) para cada ocasião, se é com a minha esposa, se é com meus amigos, com tudo, por sermos um povo, contamos uns com os outros é algo que vivemos em comunidade mesmo, isso é ser judeu, entendeu?! É muito bom, muito bom mesmo. (...) Os cristãos novos tentaram preservar essas memórias, como afirma Pinto (2006): “Trazia o Sefardita à tradição das rezas e das adivinhações; dos provérbios, dos exorcismos, das alegorias e das parábolas. Coisas que se encontram a cada momento em nosso cotidiano e expressões corriqueiras. Pequenos hábitos e gestos despercebidos.”. Uma prática muito observada por pessoas de fora da religião é quando veem um homem com kipá na cabeça. Este costume milenar e tradicional tem sido passado de geração a geração representando como simbolismo da religião judaica. Outra pratica muito comum no judaísmo passada de geração a geração, é quando o jovem atinge seus 13 anos de idade, no decimo terceiro aniversário do menino ele faz o que chamam de Bar Mitzvá, onde o garoto passa a ser considerada a maioridade religiosa, e responsável pelos seus próprios atos para com Deus, esta passagem é 731 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e celebrada na sinagoga com seus pais e familiares. Esta tradição é celebrada a mais de três mil anos. É quando se inicia a busca por um significado maior na vida e uma conexão entre os seus diversos aspectos, em um mundo complexo e conflitante, cumprindo sua missão de acordo com o pacto assumido pelo “povo judeu” com seu D›us. São hábitos e costumes que são passados de geração a geração no qual dependem muito da mulher que é considerada a Luz do lar. De acordo com Anita Novinsky; “As mulheres eram consideradas pelos inquisidores uma ameaça à continuidade do catolicismo, pois sabiam que eram responsáveis pela transmissão da religião judaica. As práticas que atravessaram séculos eram de domínio doméstico, a portas fechadas”. (NOVINSKY, 2015. p. 22) Assim como a circuncisão que é feita ao oitavo dia de nascimento do menino, esta tradição também acontece a mais de três mil anos segundo mandamento do livro sagrado Torá. Tem o sentido de um sinal de aliança entre Deus e Abraão. Torna-se um requisito obrigatório na Lei dada a Moisés (Levítico 12:2-3). “Mohel” é a pessoa credenciada para essa prática. O “Mohel” deve ser um judeu observante da Torá (livro sagrado) e que tenha o conhecimento das leis judaicas. Na criação os hábitos e costumes são passados através das mães, no qual depende muito da mulher que é considerada a Luz do lar, estas mulheres buscaram a preservação religiosa e espiritual de suas famílias, tentando proteger os costumes e simbolismos através de estratégias que ao longo dos séculos, passaram a ser vistos como crendices populares, para tentar encobrir a necessidade de suas práticas e afazeres religiosos. Muitos cristãos novos fugiram para o nordeste, conseguintemente foram perseguidos, como afirma a historiadora Anita Novinsky; Na primeira metade do século XVIII, foram presos cerca de cinquenta paraibanos. O estigma, a exclusão e a perseguição revitalizaram o judaísmo na Paraíba. [...] Diversos paraibanos presos entre 1729 e 1735 tinham nascido em Pernambuco. Conta-se que, no engenho de São Bento, os cristãos novos trabalhavam aos domingos e dias santos e, com afrontas, tentavam ridicularizar o catolicismo chamando Jesus de “feiticeiro”. (NOVINSKY, 2015 p. 176) Apesar do cristianismo ainda ser predominante em João Pessoa, os Bnei Anussim, buscam manter sua alimentação Kasher ou Kosher 732 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e (alimento correto, justo). As palavras Bnei Anussim (Filho forçado), é um termo utilizado para os descendentes de judeus ibéricos que foram forçados a se converter ao cristianismo. Hoje após 500 anos eles ainda mantem viva a memória, e continuam praticando rituais judaicos, os Bnei Anussim pedem para retornar ao judaísmo de maneira aberta e oficial. Em uma sociedade majoritariamente cristã, é notória a dificuldade por parte de grupos de minorias manterem-se vivos numa identidade específica, sem que caiam no isolamento. Ainda hoje apesar das dificuldades buscam manter por parte deles uma compreensão de cuidados no processo saúde-doença, no qual envolve cuidados nos fatores que podem estar relacionados com o processo da manutenção do preparo do alimento, que são consideradas práticas relevantes para o processo de sua natureza física e espiritual. No documentário a Estrela oculta do Sertão pode observar hábitos mantidos ate os dias atuais, nos quais se confundiram com as crendices populares chamando atenção para uma questão delicada que é a situação dos “anussins”, os “marranos”, convertidos que buscam o regresso, ou seja, os descendentes desses fugitivos que escaparam da região litorânea e buscaram abrigo nos mais longínquos para o sertão nordestino. De acordo com a autora do livro Os cristãos Novos na Paraíba, Zilma, Pinto: A filiação da Igreja com o Judaísmo e a familiaridade com os costumes portugueses facilitavam ao cristão novo judaizante vivenciar a duplicidade religiosa que, se não resultou em outro sincretismo, resultaria por certo em práticas peculiares da religiosidade brasileira. O calendário litúrgico católico do congênere hebraico, e as similitudes existentes entre as duas religiões, coincidindo datas, festas, e cerimoniais que permitiram ao falso convertido à prática da lei de Moisés. (PINTO, 2006 p. 70). No Documentário a Estrela Oculta do Sertão3 pode encontrar sobrenomes comuns às famílias nordestinas de origem judia, pois quando da grande conversão forçada, no final do século XV, houve um pacto entre os judeus para adotarem nomes de plantas, árvores, animais, lugar de origem, etc., objetivando se reconhecerem no futuro. Oliveira, 3 Conferir Referência bibliográfica 733 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Cardoso, Fernandes Pimenta, Gurgel, Carneiro, Alencar, Mangueira, Nogueira, Carvalho, Pereira, são exemplos. Já quando falamos da visão de sua criação de mundo, a fé judaica acredita que a criação foi feita por um único Deus, que havia criado o homem a sua própria imagem. Abraão é considerado o pai do povo judeu, e estabeleceu um pacto com Deus, Moises é considerado pelos judeus como um profeta superior a todos os demais, no qual libertou seu povo da escravidão do Egito. Os cristãos novos tentaram preservar em suas memórias, os vestígios de suas lembranças e costumes religiosos, como a forma na matança de aves, entre outros hábitos. Pinto, (2006) afirma que; “Trazia o Sefardita à tradição das rezas e das adivinhações; dos provérbios, dos exorcismos, das alegorias e das parábolas”. Os contos e cânticos... A numerologia e a astrologia nas formas e formulas popularizada da Cabala. Coisas que se encontram a cada momento em nosso cotidiano e expressões corriqueiras. Pequenos hábitos e gestos despercebidos. A medicina caseira. Usanças e sabenças judaicas das quais algumas se fizeram vulgarmente conhecidas. (saga dos Cristãos Novos na Paraíba, ano, p. 74)”. Todavia, nada impede que todos estes costumes passem despercebidos ou desacreditados por termos consciência de vivermos em um país repleto de sincretismos, assim como também não devemos desrespeitar aqueles que têm fé em sua busca pelo que acreditam serem suas raízes. Vemos casos, de pessoas que por serem levadas desde criança à igreja ou por influência familiar acabam permanecendo a vida em igrejas ou religiões, sem se permitir questionar ou talvez por algo que já virou rotina em suas vidas. A convivência em meio a outros indivíduos é muito complexa e muitas vezes se mescla na diversidade das relações dos sujeitos que a constituem. Também podemos observar que fatores como rituais, alimentação assim como e demais costumes permanecem na convivência entre as culturas variadas, mesmo que com o tempo as famílias sofram modificações, elas não deixam de passar alguns costumes relacionados às tradições de seus antepassados, provocando assim às lembranças que veem de suas memórias, sejam através da oralidade, no diálogo ou em simples atitudes que algumas 734 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e vezes despertam curiosidade as gerações mais novas. E mesmo com a diversidade elas procuram se adequar às novas relações dentro de suas necessidades, de certa forma há uma participação daquilo que é passado e vai permanecendo os significados de uma identidade perdida. A respeito da Cosmogonia Judaica, deixo aqui uma citação do Filósofo, Rabino e médico judaico do século XV, mais conhecido entre os cristãos como Maimônides: “O tempo é um acidente da coisa movida. O tempo não existia antes da criação do mundo, por Deus: o tempo “é uma coisa criada e nascida, como os outros acidentes e como as substâncias que levam a esses acidentes”. “A criação do mundo por Deus não pode ter um começo temporal, porque o tempo também é uma coisa criada” (por Deus).”. Guia dos Perplexos, do Rabino espanhol Moshe ben Maimon, ou Rambam, mais conhecido como Maimônides. A obra busca conciliares as doutrinas do judaísmo com a lógica Aristotélica e filosófica (2000 Omar F. Aly. As Cosmogonias de Platão, Aristóteles, e Judaica, comentadas por Maimônides, no GUIA DOS PERPLEXOS). Já segundo Eliade, toda hierofania espacial, ou consagração de um espaço pode equivaler a uma criação de mundo Sagrado. Para o homem tradicional seu corpo corresponde ao microcosmo e sua casa o Cosmos. O templo ou sua casa seriam também assimilados ao corpo humano, uma conexão na busca com o sagrado, buscando um modelo de criação divina. Onde algumas vezes esta conexão pode entrar em caos. [...] mediante o esgotamento do mundo cabe à Cosmogonia, num ato simbólico de fundação por meio de qualquer construção, reproduzir a Criação do Mundo recriando mais uma vez a ordem cósmica e, consequentemente, social e religiosa. Ou seja, “Toda construção e toda inauguração de uma nova morada equivalem de certo modo a um novo começo, a uma nova vida” (ELIADE, 2010, p. 54) Em relação ao bem e ao mal, o judaísmo tem uma visão de que todo indivíduo tem inclinações para o bem e para o mal, mas tem o livre-arbítrio moral para escolher. A ética judaica traz a ideia de que os seres humanos decidem por si mesmos como agir. Assim existe a possibilidade de evoluir moralmente e espiritualmente. 735 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e metodologia Trata de uma pesquisa bibliográfica, havendo também uma pesquisa de campo baseada na História Oral para colher dados e dar voz aos adeptos desta tradição, nos remetendo a área de conhecimento presente. Para um melhor embasamento de campo para entrevista, foi necessário o conhecimento sobre História Oral, nas qual buscamos contextualizar o trabalho a partir do processo bibliográfico afim de melhor embasar nossa pesquisa. Havendo também a necessidade da história oral à construção no tema central. Nosso fundamento principal traz a presença histórica deste povo e como eles lidam com os desafios antissemitas e conservação das suas memórias e tradições no dia a dia. A entrevista é o aporte empírico para nossa produção textual. Os materiais utilizados para configuração da História Oral foram; um gravador portátil da Sony, papel e caneta esferográfica. Os demais complementos bibliográficos foram necessários para um estudo sobre atuais pesquisas identitárias. O entrevistado Hugo de Alencar Borges, é o Líder da comunidade Shomer Israel, é casado com Sheila Barreto Borges, graduado em administração de empresas, até o ano de 2018 cursava Ciências das Religiões na UFPB, trabalha na prefeitura de João pessoa, administra as encomendas de Carnes Kosher para as comunidades de João Pessoa e PB. Neste trabalho também foi utilizado, para corroborar na pesquisa, o documentário “A estrela oculta do sertão” por apresentar o dilema do regresso dos convertidos e descendentes dos fugitivos que escaparam da região litorânea e buscaram abrigo nos sertões. Já em As Cosmogonias de Platão, Aristóteles, e Judaica, comentadas por Maimônides, no Guia dos perplexos, é um artigo comentado onde acrescentamos uma das citações sobre a explicação de Maimônides no contexto Cosmogônico, sendo este primordial para o fenômeno religioso, na qual Maimônides relata em seu discurso questões para uma elucidação da existência de Deus baseando na filosofia e sua crença religiosa, o Judaísmo. Considerações finais Este trabalho teve o objetivo de trazer à tona a empatia e o conhecimento de uma visão de família, de cultura, sociedade, saúde e 736 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e espiritualidade, ajudando na fomentação integral do ser humano como indivíduo religioso sefardita e suas relações com o povo paraibano (João Pessoa). E sendo uma das características predominantes da nossa nação a diversidade étnica no que diz respeito às diferenças, seja cultural ou religiosa, acreditamos que são necessárias incessantes informações tanto no âmbito de contexto cultural quanto religioso de um povo, pois a falta de informação leva a ignorância e esta ao preconceito. E através desta visão que mostramos a necessidade do respeito às religiões e daquilo que as comunidades buscam em sua memória resgatando como identidade, para preservar suas lembranças e tradições. E assim concluímos que trabalhar esta temática nos conduz a novos conhecimentos e ao reconhecimento das comunidades como identidade cultural e religiosa de um povo. “Ao se falar em memória, é fundamental definir de qual tipo de memória se trata. A primeira operação a ser feita é a definição de memória individual, diferenciada da grupal. Como para a história oral a memória individual apenas serve para dar sentido às situações sociais, convém supor atenção prevalente a memória grupal, que, contudo, é sempre filtrada pelas narrativas pessoais. Uma depende da outra e uma se explica pela outra. “(MEIHY, 2002, p. 61) Buscamos construir uma pesquisa bibliográfica baseada dentro do contexto histórico religioso macro para o micro. Acreditamos que foi de fundamental importância para analisarmos, no sentido de perceber a força do judaísmo na Paraíba. Assim como as demais pesquisas que foram feitas para corroborar com este trabalho. Concluo ao dizer que hoje em dia as comunidades judaicas sefarditas da Paraíba, assim como qualquer outra minoria, busca preservar suas ideias, e integram-se num corpo social, com seus direitos e deveres. Acrescento este trabalho de pesquisa especialmente aos interessados no estudo dos Judeus Sefarditas, para podermos construir um acervo que sirva às novas consultas, para uma continua produção de conhecimento. 737 A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Referências ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 54. NOVINSKY, Anita. Os judeus que construíram o Brasil. Ed: Planeta, 2015. p. 22-176. BORGES, Hugo L. de A. W., representante da Comunidade Sefardita de João Pessoa, no dia 19 de fevereiro, de 2016 na cidade de João Pessoa Paraíba. Entrevista concedida a Renata Baltar Barros. OMAR, F. Aly. As Cosmogonias de Platão, Aristóteles, e Judaica, comentadas por maimônides, no GUIA DOS PERPLEXOS. Artigo revistas. FFLCH. In.: http://revistas. fflch.usp.br/vertices/article/ view/2106/2345 Acessado EM: 07/05/2019. Revista Vértices, No. 17, 2014. Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. MAGAL. A Estrela Oculta do Sertão. – Disponível em http://www. coisasjudaicas.com/2010/07/ estrela-oculta-do-sertao.html. Acesso em 20/12/2018 – A Estrela Oculta do Sertão, 2005, direção Elane Eiger e Luize Valente. MEIHY, J. C. S. B. manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola, 4° edição, 2002. p. 61. 738 PINTO, ZILMA F. In: A Saga dos Cristãos-Novos na Paraíba. João Pessoa: Ideia, 2006. p. 70-74. [ Volta ao Sumário ] A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e Site da Fogo Editorial Instagram da Fogo Editorial Facebook da Fogo Editorial Perfil de Facebook da Fogo Editorial