E duardo M EinbErg
dE a lbuquErquE
(Organização)
M aranhão Fº
CCJ/UFPB, 20 a 24 de maio de 2019
João Pessoa, Paraíba, Brasil
Os capítulos que compõem os Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR foram revisados
e em alguns casos adequados em relação às normas de formatação dos textos, exigidas
pelo Simpósio. O conteúdo, incluindo opiniões e eventuais erros ortográficos, é de inteira
responsabilidade dos/as/es autores/as.
Foram acolhidos aqui textos completos de comunicações orais em Grupos de Trabalho
(GTs).
Como se referir a essa obra:
MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste
da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020.
Projeto gráfico, diagramação e capa:
Rita Motta e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº
Arte do evento:
Oxum, de Rodrigo Lemos Soares
Comissão Editorial deste volume:
Mirinalda Alves Rodrigues dos Santos e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº
S612a Simpósio Nordeste da ABHR (3. : 2019 : João Pessoa, PB)
Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR [recurso eletrônico on-line] :
Religião, direitos humanos e laicidade : resistências, diversidades e
sensibilidades / Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (organização).
– João Pessoa : ABHR ; Fogo Editorial, 2020.
732 p. : il. , color.
Formato: PDF
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: www.fogoeditorial.com.br
Inclui referências
ISBN: 978-85-89749-42-8 (e-book)
1. Religião – Congressos. 2. Direitos humanos. 3. Sensibilidades.
4. Laicidade. 5. Diversidades. 6. Resistências. I. Maranhão Filho, Eduardo
Meinberg de Albuquerque. II. Associação Brasileira de História das Religiões.
III. Título.
CDU: 291
Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. É proibida a reprodução parcial ou integral desta obra, por quaisquer meios de difusão, inclusive pela internet sem prévia autorização da Fogo Editorial.
FOGO EDITORIAL
fogoeditorial.com.br
fogoeditorial@gmail.com
Associação Brasileira de
História das Religiões (ABHR)
www.abhr.org.br
D i r e t o r i a e x e c u t i va (G e s tã o 2 0 1 7 - i n í c i o D e 2 0 1 9 )
Presidência
Eduardo Meinberg de Albuquerque
Maranhão Fº, UFPB
Secretaria Geral
Leila Marrach Basto de Albuquerque, UNESP
Secretaria de Divulgação
Bruna Marques Cabral, UFRRJ
Tesouraria
Márcia Maria Enéas da Costa, UFPB
C O O R D E N A ç ã O D O 3 º S I m P ó S I O DA A B H R N O R D E S T E
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº, UFPB
APOIO DO EvENTO
Fogo Editorial
Grupo Raízes (UFPB)
Grupo Videlicet (UFPB)
Centro de Ciências Jurídicas (CCJ/UFPB)
PLURA - Revista de Estudos de Religião da ABHR
Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGDH/UFPB)
Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões (PPGCR/UFPB)
INSTITUIçãO SEDIADORA DO SImPóSIO
Universidade Federal da Paraíba – UFPB
Fogo Editorial
www.fogoeditorial.com.br
Coord En ação: Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº
Co Missão C i En T í Fi C A i n T Ern AC i o n AL dA F o g o E d i To r i A L
alejandra oberti – Universidad de Buenos Aires,
Argentina
Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET),
Argentina
Cecilia delgado-Molina – Universidad nacional
Autónoma de México, México
Margarita Zires – Universidad nacional
Autónoma de México, México
Claudia Touris – Universidad de Buenos Aires,
Argentina
Marie Hélène / Sam Bourcier – École des Hautes
Études en sciences sociales, França
Cristina Pompa – Universidade Federal de são
Paulo, Brasil / Universidade de Udine, itália
Mari-Sol García Somoza – Universidad de Buenos Aires, Argentina; Canthel/Université Paris
descartes, França
dario Paulo Barrera rivera – Universidade
Metodista de são Paulo, Brasil / Ecole d’Hautes
Etudes en sciences sociales, França
néstor da Costa – Universidad Católica del
Uruguay, Uruguai
david Thurfjell – södertörn University, suécia
oscar Calávia Sáez – Universidade Federal de
santa Catarina, Brasil / Universidad Complutense
de Madrid, Espanha
donizetti Tuga rodrigues – Universidade da
Beira interior, Portugal
Einar Thomassen – European Association for the
study of religions (EAsr), University of Bergen,
noruega
Pablo Pozzi – Universidad de Buenos Aires,
Argentina
Pablo Semán – Universidad nacional de san
Martin, Argentina
Elias Bongmba – African Association for the
study of religions (AAsr), rice University, EUA
Paulo Mendes Pinto – Universidade Lusófona,
Portugal
Francisco díez de Velasco – Universidad de La
Laguna, Espanha
Patricia Fogelman – Universidad de Buenos
Aires, Argentina
Gabriela Scartascini – Universidad de guadalajara, México
rita Laura Segato – Universidade de Brasília,
Brasil / Universidad nacional de san Martin,
Argentina
Giuseppe Tosi – Universidade Federal da Paraíba,
Brasil / Università degli studi di Firenze, itália
Giovanni Casadio – European Association for the
study of religions (EAsr), Università degli studi
di salerno, itália
João Eduardo Pinto Basto Lupi – Universidade
Federal de santa Catarina, Brasil / Universidade
Católica de Portugal / Boston College (EUA)
Javier romero ocampo – Universidad de Chile,
Brasil
Juan Esquivel – Associación de Cientistas sociales del Mercosul (AC srM); Consejo nacional de
Stefania Capone – Ecole d’Hautes Etudes en
sciences sociales, França
Steven Joseph Engler – Mount royal University,
Canadá
Stewart Hoover – University of Colorado,
Estados Unidos
Tim Jensen – international Association for the
History of the religions (iAHr); University of
southern denmark, dinamarca
Veronique Claire Gauthier de Lecaros de Cossio
– Pontificia Universidad Católica del Peru, Peru
Fogo Editorial
www.fogoeditorial.com.br
Coord En ação: Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº
Co Missão C i En T í Fi C A n AC i o n AL dA Fo g o E d i To r i A L
alexandre Brasil Fonseca, UFrJ
Marcelo Camurça, UFJF
ari Pedro oro, UFrgs
Melvina afra Mendes de araujo, UniFEsP
artur Cesar Isaia, UniLasalle
Mundicarmo Maria rocha Ferretti, UFMA
Cecilia Loreto Mariz, UErJ
Paula Montero, UsP
Christina Vital da Cunha, UFF
raymundo Heraldo Maués, UFPA
durval Muniz de albuquerque Junior, UFrn
regina novaes, UFrJ
Eduardo Meinberg de albuquerque Maranhão
Fº, UFPB
ricardo Mariano, UsP
Emerson Giumbelli, UFrgs
Gizele Zanotto, UPF
Joana Maria Pedro, UFsC
ricardo Mário Gonçalves, UsP
Sandra duarte de Souza, UMEsP
Solange ramos de andrade, UEM
Sônia Weidner Maluf, UFsC
Joanildo albuquerque Burity, Fundação
Joaquim nabuco
Tânia Mara Campos de almeida, UnB
Leila Marrach Basto de albuquerque, UnEsP
Zwinglio Mota dias, UFJF
Magali do nascimento Cunha, MirE/inTErCoM
SUmáRIO
Boas-vindas à ABHR Nordeste 2019
10
Carta da ABHR em repúdio à intolerância religiosa e
demais intolerâncias
15
Carta da ABHR sobre o resultado do primeiro turno da eleição
presidencial de 2018 e de estímulo à resistência política
18
Carta da ABHR pela Laicidade do Estado
19
Coordenação do Simpósio
21
A descolonização jurídica e a cosmovisão dos povos originários
no ordenamento jurídico da Nova Zelândia
23
Amanda Yvnne Figueiredo da Cruz
A diversidade religiosa dentro de um contexto grupal
psicológico formado por pessoas de diversas religiões
35
Marineide Felix de Queiroz Brito
A endemia iconoclasta na religião do Ocidente: um paradoxo
do imaginário segundo Gilbert Durand
47
A influência da meditação na saúde
58
José Herculano Filho
Carlos André Macêdo Cavalcanti
Ana Márcia Pereira Lima Albernaz
a literatura encantada dia de reis xukuru do ororubá
67
A memória simbólica e a mística do Toré dos povos indígenas
tabajara da Paraíba
78
A Revista Trimensal e a construção da identidade adventista
no Brasil
92
Natally Araújo da Silva Galindo
Márcia Medeiros Figueiredo
Lusival Antonio Barcellos
Daniel da Silva Firino
Carlos André Macedo Cavalcanti
A tradição do Yoga na Nova Era do Brasil
108
Concília Cléria Ferreira Muniz
A trajetória de dom José maria Pires na arquidiocese da Paraíba 123
Jaqueline Leandro Ferreira
Comblin para tempos de resistência: o centro de Formação
João Batista Barbosa da Silva
137
Da percepção extrassensorial ao tarô como recurso terapêutico:
um olhar fenomenológico
149
Fernanda Pinheiro Cavalcanti
Dançar com afeto: vivência de biodança com mulheres dependentes
químicas – é possível afetar e deixar ser afetada?
166
Carmen Lúcia dos Santos
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão F°
Diálogo inter-religioso e dignidade humana: contribuições do
pontificado de Francisco – 2013 a 2017
182
Dinâmica das corporeidades masculinas em transe na Casa de
Umbanda São Jorge Guerreiro em Baturité/CE
192
Maria Graciane Clemente de Melo
Leonardo da Silva Leal
Maria Jardele da Silva Queiroz
Do Beltane pagão ao São João cristão: a festa do fogo e suas
resignificações no Nordeste brasileiro
202
Thaís Chianca Bessa Ribeiro do Valle
Do chicote aos terreiros: memórias de escravidão e liberdade
das Pretas-velhas nos pontos cantados da umbanda
217
Do Samhain ao mabon: um estudo das celebrações sazonais
da Wicca no espaço urbano
230
Beatriz Alves dos Santos
Lourival Andrade Júnior
Klaus Eduardo da Rocha Furtado Tomaz
Kallyne Fabiane Pequeno de Araújo
Dos vedas aos Upanishads
244
Rosivânia Rodrigues Jordão
Educação intercultural como instrumento de combate à
intolerância religiosa
256
Juscelio Mauro de Mendonça Pantoja
Manoel Vitor Barbosa Neto
Educação Popular e Interculturalidade: desafios e possibilidades nas
intersecções da prática educativa
283
Adriel Rodrigues do Nascimento
Elisangela Maria da Silva
Ensaio sobre a prática docente em Ensino Religioso no Rio Grande do
Norte: entre a teoria e a prática
299
Diego Fontes de Souza Tavares
Erotismo e conversão religiosa no livro apócrifo José e Asenath
314
Kefren Kelsen Dantas Pereira
Leyla Thays Brito da Silva
Exorcização do mal: Ritual de cura e libertação no cenário
neopentecostalda Igreja Internacional da Graça de Deus
Antônio Santos
328
Feng Shui: uma visão holística para a cura de distúrbios psíquicos e
promoção da paz interior
345
Maria Fernanda Morais Tavares
Hungbê, educação e saberes no cotidiano do ilê axé omilodé
357
identidades ateístas no encontro da nova consciência
371
indicadores de saúde e espiritualidade em pessoas vivendo com Hiv
387
Laicidade parlamentar? Uma discussão sobre a atual política brasileira
401
Dulce Edite Soares Loss
Genaro Camboim L. A. Lula
Susana Silva Barros
Rafaela Duarte Moreira
Daniel Ferreira da Silva
Jéssica Emanuelly Santos Barboza da Silva
Lendas e superstições: contos de assombrações e catolicismo popular
na obra de ademar vidal
407
maria de magdala, de prostituta a deusa: marcas ancestrais da mulher
que sangram na contemporaneidade
421
Fabiano Cesar de Mendonça Vidal
Maria Nilza Barbosa Rosa
Izabel França de Lima
Maria Aparecida Porte Ferreira
messianismo nos sertões da província do Rio Grande do Norte
(1898-1899)
434
Vikelane Maria de Oliveira Silva
mito e rito: a espiritualidade indígena Potiguara da Paraíba
444
Carla Jaciara Jaruzo dos Santos
O afro-indo-brasileiro e a esfera pública: velhas e novas formas de presença 455
Roberta Campos
Raoni Silva
O budismo em Siddhartha, de Hermann Hesse
473
O neopaganismo contemporâneo por meio da análise de eventos
paralelos do encontro da Nova Consciência em Campina Grande – PB
503
João Florindo Batista Segundo
Carlos André Macêdo Cavalcanti
Silvia Letice Nascimento de Araújo
Genaro Camboim Lula
O papel da Igreja Católica na construção de um discurso patrimonialista
no Brasil: a primeira década do SPHAN
524
Bruna Valença Mallorga
O vaticano Alternativo: o espaço sagrado nos discursos da Igreja Católica
Palmariana (1978-2005)
540
Pedro Luiz Câmara Dantas
Para além dos processos: a imprensa portuguesa e os livros do
episcopado como fontes para os estudos inquisitoriais (1543 – 1589)
555
Maria Eduarda de Medeiros Brandão
Carlos André Macedo Cavalcanti
Persistência da religiosidade popular através das cerimônias de
coroação de Maria
573
Práticas, falas e experiências wiccanianas: a espiritualidade da Deusa
frente aos desafios contemporâneos
582
Anamélia Soares Nóbrega
Isabel Cristine Machado de Carvalho
Ana Laudelina Ferreira Gomes
Problematizando a utilização de drogas lícitas e ilícitas: práticas
educativas e experiências vivenciadas numa organização da sociedade
civil do agreste pernambucano
600
Elisângela Maria dos Santos Silva
Adriel Rodrigues do Nascimento
Raimundo Nonato de Queiroz: a Teologia da Enxada e seus
desdobramentos na cidade de Tacaimbó-PE entre 1969 e 1984
618
Adauto Guedes Neto
Reflexões sobre a indumentária no culto da Jurema na Paraíba
635
Larissa Lira
Religiosidade popular e festa, do campo à cidade: contribuições
antropológicas para a valorização de uma identidade cultural do
município de Itatuba – Paraíba/Brasil
652
Givanilton de Araújo Barbosa
Sexualidades não normativas em conflito com a fé adventista – disputas
e permanências na identidade adventista LGBT: um estudo de caso
664
Rafael Rodrigues Leite
Christina Gladys de Mingareli Nogueira
Sob as bênçãos do rosário
681
Eliane Cruz de Lima
Tabu numinoso: reflexões acerca do uso curativo da Cannabis
Clordana H. Lima de Aquino Oliveira
700
Uma voz que ecoou profetismo em Limoeiro-PE: reflexões sobre o
catoliscismo a partir de um recorte da história de vida de Padre
Luis cecchin
709
tradições e lembranças da comunidade sefardita de João Pessoa – PB
727
Marcos Lucena da Fonseca
Sergio Sezino Douets Vasconcelo
Renata Baltar Barros
Diógenes Faustino do Nascimento
Boas-vindas à
aBHR noRdeste 2019
A Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) acolhe você com suas melhores boas-vindas ao 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades.
A Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) foi criada
em 25 de junho de 1999, na Universidade Estadual Paulista (UNESP)
de Assis, durante Assembleia Geral daquele que é considerado seu primeiro evento nacional, o 1º Simpósio sobre História das Religiões, organizado por professoras/es da linha de pesquisa “Religiões e Visões de
Mundo”, do Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de
Ciências e Letras desta universidade.
A ABHR é filiada, desde 2000, à International Association for History
of Religions (IAHR), e se coloca aberta à criação e manutenção de diálogos,
vínculos e parcerias, em regime de colaboração mútua, com outras
entidades, organizações, instituições e núcleos de estudos acadêmicos de
religiões e religiosidades, em níveis regional, nacional e internacional.
Trata-se de uma entidade sem fins lucrativos, não confessional/
devocional/religiosa e apartidária, completamente independente de
grupos políticos ou religiosos, e que tem como objetivos:
• estimular a pesquisa, o ensino e a extensão universitária no
campo das religiões e religiosidades e em todos os níveis acadêmicos;
• promover e democratizar o intercâmbio de conhecimentos acadêmicos sobre religiões e religiosidades através de encontros
científicos em níveis regional, nacional e internacional;
• incentivar publicações acadêmica e socialmente relevantes de
suas/seus associadas/os, nas modalidades individual e coletiva;
• contribuir para o alargamento e consolidação dos estudos que
têm as religiosidades e religiões como mote nas diversas regiões do Brasil.
A ABHR promove intercâmbios entre pesquisadoras/es de quaisquer
áreas, e não somente entre historiadoras/es, e por esta razão é conhecida
como uma associação de estudos de religiões e religiosidades: grande
parte de nossas/os associadas/os são provenientes da(s) Ciência(s) da(s)
Religião(ões), Antropologia, Sociologia, Ciência Política, Direito, Teologia,
Letras, Psicologia e outros campos, além da própria História.
11
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
É composta por uma Diretoria Geral, à qual pertencem a Diretoria Executiva e por Coordenações Regionais. Além da Diretoria Geral, a
Associação é constituída por Conselho Fiscal, Conselho Científico, Comissão Editorial, Comissão de Redação da PLURA – Revista de Estudos
de Religião, Pessoas Associadas, e a Assembleia Geral. É também uma
entidade que repudia qualquer tipo de discriminação e intolerância, religiosas ou não, e se manifesta contrária a qualquer demonstração de
violação dos direitos constitucionais brasileiros, se amparando no Artigo 5º do 1º Capítulo (Título 2 – Dos Direitos e Garantias Fundamentais)
da Constituição da República Federativa do Brasil, que rege:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: VI – é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA BRASILEIRA, 1988. Artigo 5º.)”.
A ABHR destaca seu posicionamento favorável não somente aos
direitos constitucionais, mas aos Direitos Humanos em sua forma mais
ampla. Aliás, a ABHR é uma associação dos Direitos Humanos e das
Diversidades - de todas as diversidades: sexuais, de gênero, étnicoraciais, regionais, etc.
Como entidade que busca promover, da maneira mais democrática possível, o alargamento e aprofundamento de intercâmbios entre
pessoas que pesquisam as religiosidades e religiões, a ABHR tem investido em seu processo de midiatização via internet, em seu processo de regionalização através das Coordenações e Simpósios Regionais
(realizados desde 2013) e em seu processo de internacionalização, especialmente desde seu primeiro Simpósio Internacional, ocorrido em
2013 na Universidade de São Paulo (USP), com o tema Diversidades
e (In)Tolerâncias Religiosas. Nosso segundo Simpósio Internacional foi
realizado em 2016 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
com o mote História, Gênero e Religião: violências e Direitos Humanos e o terceiro, na mesma Universidade e em 2018, Política, Religião e
12
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Diversidades: Educação e Espaço Público. Em termos numéricos estes
foram provavelmente os maiores simpósios da área de estudos de religiões e religiosidades na América Latina (o segundo Internacional teve
entre 1.500 e 1.700 pessoas presentes, por exemplo). A ABHR anseia,
ardentemente, por um Simpósio Internacional que se realize no Nordeste ou no Norte brasileiros e conclama as pessoas associadas e interessadas a investir nessa ideia (para tal, conversar com quem assina
essa nota).
Como notado, desde 2013 o movimento de internacionalização da
ABHR tem sido potente. Concomitantemente, nossa regionalização também tem avançado com consistência. A ABHR realizou na região Nordeste
dois Simpósios Regionais, o primeiro na Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG), entre 28 a 31 de maio de 2013, sob a Organização Geral
de João Marcos Leitão Santos (UFCG), e intitulado Religião, a Herança das
Crenças e as Diversidades de Crer; e o segundo na Universidade Federal
do Pernambuco (UFPE), de 15 a 17 de setembro de 2015, coordenado
por Karla Patriota Bronzstein (UFPE) e Eduardo Meinberg de Albuquerque
Maranhão Filho (UFSC), com o tema Gênero e Religião: Diversidades e
(In)Tolerâncias nas mídias. O 3º Simpósio Nordeste da ABHR, acontecerá
na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) entre 20 e 24 de maio de 2019
e manterá o mote da Associação: Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades.
Durante o evento realizaremos diversas atividades relacionadas ao
estímulo a uma educação respeitosa às diversidades e aos Direitos Humanos, como o Fazendo Arte da ABHR Nordeste, conjunto de atividades
artísticas que ocorre desde 2013 e que este ano novamente agregará o
Cine ABHR (cuja primeira edição foi em 2016); o primeiro Prêmio ABHR
Nordeste de Teses, Dissertações e TCCs (Prêmio Mundicarmo Ferretti);
o Prêmio ABHR Nordeste de Fotos (Prêmio Mãe Stella de Oxóssi); o Prêmio ABHR Nordeste de Pôsteres (Prêmio Beliza Áurea); homenagens; o
Fórum Social da ABHR Nordeste (realizado desde 2015); a Assembleia
Geral Extraordinária da ABHR (que refletirá questões (inter)nacionais e
regionais)1; a Feira ABHR Nordeste de Publicações; Feira de Troca e/ou
1
Maiores informações disponíveis em: http://www.abhr.org.br/abhr-nordeste-2019/assembleiageralextraordinariadaabhr. Para conhecer o atual Estatuto da ABHR (2011), que
13
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Doações de Livros e Roupas; varal de Ideias da ABHR; além de diversas
outras atividades aprovadas após chamada pública, democrática e aberta: Mesas Redondas, Grupos de Trabalho (GTs), Minicursos e Oficinas.
A ABHR Nordeste 2019 é um Simpósio gratuito a pessoas que a auxiliam como monitoras e a ouvintes.
A ABHR Nordeste 2019 (apelido de nosso próximo regional) apresenta e aprofunda temas associados às (in)tolerâncias e violências
a diversas pessoas, com distintas crenças e descrenças. As reflexões
também incidem sobre preconceitos em razão de marcadores sociais
como identidades de gênero e orientações sexuais, conexões da religião
com a política, deslocamentos identitários e teorias e metodologias dos
estudos de religiões e religiosidades. A Direção Nacional da ABHR e a
Comissão Organizadora da ABHR Nordeste 2019 gostariam de reforçar
suas melhores boas-vindas a vocês e desejar que o compartilhamento
de experiências durante o evento vise, antes de tudo, um mundo mais
acolhedor, democrático, humano e diverso a todas as pessoas. Vamos
fazer um bom evento em conjunto. E fica o convite: organizemo-nos
para o quarto Simpósio Nordeste da ABHR! Candidaturas são bemvindas durante nossa Assembleia Geral Extraordinária, a se realizar na
noite do dia 23 de maio de 2019.
Por fim, vale realçar que a ABHR lançou em 28 de outubro de 2018,
dia em que foi divulgado o resultado do pleito presidencial que elegeu
Jair Messsias Bolsonaro, a Campanha Nacional pela Laicidade do Estado
e a Carta da ABHR pela Laicidade do Estado.2 É necessário que unamos
esforços em prol de um Estado laico, democrático, plural e inclusivo.
Eduardo meinberg de Albuquerque maranhão Fo,
Presidência da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR)
Gestões 2015-2017 e 2017- início de 2019
[ Volta ao Sumário ]
refere-se sobre Assembleia Geral Extraordinária e outros assuntos: http://www.abhr.org.
br/wp-content/uploads/2012/02/estatuto-abhr.doc.
2
Disponível em: http://www.abhr.org.br/campanha-nacional-pela-laicidade-do-estado.
14
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
CARTA DA ABHR Em REPúDIO
à INTOLERâNCIA RELIGIOSA E
DEmAIS INTOLERâNCIAS
25 de julho de 2015
Neste 25 de junho de 2015, data em que a Associação Brasileira
de História das Religiões (ABHR), entidade acadêmica não-confessional
e apartidária, completa 16 anos de atuação que deveriam ser festejados
com alegria, nossos sentimentos se encontram na iminência do luto.
Este intenso pesar se deve à crescente onda de intolerância, reacionarismo e fundamentalismo que vem assolando o Brasil e aviltando
a concepção de sociedade plural, relacionada a múltiplos episódios de
violência simbólica e física a pessoas de diferentes expressões religiosas, especialmente de religiões de matriz afro-brasileira e do espiritismo kardecista, e também a pessoas sem-religião, ateias e agnósticas.
Devemos recordar que a liberdade de crença é um direito fundamental assegurado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e por
nossa Constituição:
“Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou
crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL
DOS DIREITOS HUMANOS, 1948). “Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza [...] é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias”. (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL,1988).
15
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Além de manifestações de intolerância religiosa, desdobram-se
uma multiplicidade de violações igualmente execráveis aos Direitos
Humanos e constitucionais, por conta de marcadores sociais distintos,
como sexismo, misoginia, machismo, androcentrismo, capacitismo, racismo, colorismo, etnocentrismo, elitismo, lesbofobia, transfobia, homofobia, bifobia, etarismo, xenofobia, discriminação socioeconômica e
de procedência regional, dentre uma miríade de outras, muitas vezes
amalgamadas. A intolerância pode ser interseccional: o fundamentalismo religioso entrecruza com o de gênero, o étnico, o de orientação
afetiva, dentre outras equações. Assim, nos solidarizamos com todas
e todos que vêm sofrendo discriminações devido às suas escolhas religiosas ou a-religiosas, orientações afetivas e/ou sexuais, identidades
de gênero, raças, cores, aparências, origens, limitações e necessidades
especiais, ou por outros motivos.
No mesmo contexto, preocupa-nos o fomento, no Congresso
Nacional e em um contexto de laicidade, de pautas supostamente
fundamentadas em pressupostos religiosos e que pretendem barrar
avanços de minorias políticas, deslegitimando a diversidade do tecido
social. O Brasil é um país caracterizado pela multiplicidade de formas
de existir: todas/os cidadãs e cidadãos devem ter os mesmos direitos
e deveres, independentemente de suas religiões e de outros marcadores identitários.
A ABHR tem promovido discussões sobre política, religião e violações dos Direitos Humanos. Em 2013, na USP, realizamos um Simpósio Internacional / Regional que teve como tema as Diversidades e
(In)Tolerâncias Religiosas. Neste ano, temos prevista a realização de 5
Simpósios Regionais que tem Gênero e Religião como tema gerador,
relacionado às pluralidades e discriminações. O primeiro será realizado na UFPE em setembro. Simultaneamente, ofereceremos atividades direcionadas aos públicos infantil e adolescente. Sabemos que
isto não é suficiente e que são necessárias atitudes mais propositivas.
Convidamos todas e todos para que participem das discussões destes
e de outros fóruns, e que pensemos juntas/os em formas proativas de
atuação contra todas aformas de intolerâncias. Acreditemos na Educação: se uma pessoa aprende a odiar e ser intolerante, também pode
aprender a respeitar.
16
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A ABHR demonstra seu apoio e solidariedade a quem sofre intolerância religiosa ou por conta de outros marcadores sociais, de modo interseccional ou não. A ABHR apresenta seu veemente repúdio em relação a qualquer forma de intolerância, fundamentalismo e discriminação.
Entendemos que tais práticas violam direitos constitucionais e legítimos de cidadania e atentam contra os Direitos Humanos em sua forma
mais ampla. Sentimo-nos próximos ao luto, mas, ainda não enlutados,
lutemos – sempre pacificamente, através de ideias e atitudes proficientes. A ABHR assume aqui seu papel de colaboradora nas reflexões e na
preservação da democracia, cidadania, sociedade plural e diversidade
humana, que se encontram em risco de falência.
Eduardo meinberg de Albuquerque maranhão Fo
Presidência da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR)
[ Volta ao Sumário ]
17
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
CARTA DA ABHR SOBRE O RESULTADO
DO PRImEIRO TURNO DA ELEIçãO
PresiDenciaL De 2018 e De estíMuLo
à resistência PoLítica
7 de outubro de 2018
Apesar de você, amanhã há de ser outro dia
Respeitando o resultado do primeiro turno da eleição presidencial
realizada neste domingo, 7 de outubro de 2018, a Associação Brasileira de História das Religiões(ABHR) expressa nesta carta seu posicionamento em relação ao mesmo, em que Jair Bolsonaro (PSL) aparece
como uma das duas opções para o segundo turno. Como feito em ocasiões anteriores (Nota de repúdio da ABHR à apologia à tortura em declaração de Jair Bolsonaro, de 18 de abril de 2016; e A ABHR se posiciona:
#elenão, de 24 de setembro de 2018), a ABHR expressa seu repúdio a
Jair Bolsonaro por entender que as concepções ideológicas do mesmo
representam um retrocesso nos caminhos democráticos do Brasil, especialmente por conta de sua comprovada falta de conhecimento acerca
de como solucionar os problemas sócio-econômicos do país e de seus
posicionamentos contrários aos direitos de mulheres, pessoas pobres,
negras, indígenas, ribeirinhas, quilombolas, não-cisgêneras e não-heterossexuais, dentre outras. A ABHR estimula e conclama não somente a
sociedade acadêmica como a sociedade em geral à resistência política,
e que, em oposição ao modus operandi de propagação do ódio propagado por Jair Bolsonaro, que esta resistência se realize pacificamente no
campo das ideias e argumentos, com respeito, sabedoria, alegria, arte e
amor. Com a certeza de que as ideias reacionárias representadas por Jair
Bolsonaro passarão e nós, passarinho, resistamos e re-existamos.
Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR)
18
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
CARTA DA ABHR PELA
LAICIDADE DO ESTADO
28 de outubro de 2018
A Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) respeita o resultado das eleições presidenciais ocorridas em 28 de outubro
de 2018 e que elegeram Jair Messias Bolsonaro (Partido Social Liberal
– PSL) como o próximo Presidente da República, e deseja ao mesmo
um governo verdadeiramente democrático, laico, plural e inclusivo. No
entanto, externamos profunda preocupação com alguns dos primeiros
pronunciamentos do Presidente eleito, que sinaliza o rompimento do
princípio da laicidade do Estado. O Presidente eleito iniciou seu pronunciamento com a passagem bíblica de João 8:32 (“conhecereis a verdade
e a verdade vos libertará”) e apresenta-se como missionário de Deus.
Minutos antes, em cerimônia pública, convidou o Senador evangélico
Magno Malta (Partido da República – PR) a pronunciar-se. Além de ungir Bolsonaro, este fez notar que o mesmo foi posto no mando da nação
por Deus. O slogan da campanha presidencial também causa preocupação: “Deus acima de todos”.
Em uma sociedade verdadeiramente inclusiva, democrática, plural
e laica, o respeito à diversidade de crenças (e também de descrenças, ao
ateísmo e ao agnosticismo) deve ser devidamente assegurado. É urgente que a laicidade do Estado, prevista pela nossa Constituição Federal,
seja devidamente assegurada. Por uma sociedade realmente livre, democrática, progressista e acolhedora a todas as diferenças e diversidades, reivindicamos o respeito à devida separação entre Igreja e Estado.
Através desta carta informamos o lançamento da Campanha Nacional
pela Laicidade do Estado, pedindo que as entidades interessadas em
assinar a carta – que pede que a Laicidade do Estado seja devidamente
19
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
garantida – acessem nosso sítio www.abhr.org.br. Por fim, para além
da aparente dissolução de um Estado laico que garanta o devido respeito à liberdade de crenças, ainda nos preocupa as declarações de Jair
Bolsonaro antes de ser eleito acerca de temas como procedência regional, sexualidade, raça/etnia e gênero. Faz-se necessário observar que o
Presidente eleito governe para todas as pessoas de forma totalmente
justa, equânime e igualitária. Mantendo-se aberta aos diálogos necessários, cordialmente,
Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR)
[ Volta ao Sumário ]
20
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
CooRdenação
do simpósio
Eduardo meinberg de
Albuquerque maranhão Fo
Presidência da Associação Brasileira de História das
Religiões (ABHR) - Gestões 2015-2017 e 2017início de 2019
Docente-visitante do Programa de Pós-Graduação
em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas
(PPGDH/UFPB) e do Centro de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal da Paraíba (CCJ/UFPB);
Pós-Doutorado em Ciências das Religiões pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Pós-Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Pós-Doutorado em História pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC)
Doutorado em História Social pela Universidade de
São Paulo (USP)
Mestrado em História do Tempo Presente pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Coordenação da Fogo Editorial
Site: www.fogoeditorial.com.br
Instagram: @amarfogo
E-mail: edumeinberg@gmail.com
Acesse o Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7589132071776933
a desColonização
juRídiCa e a Cosmovisão
dos povos oRigináRios
no oRdenamento
juRídiCo da nova
zelândia
Amanda Yvnne Figueiredo da Cruz
Como referenciar este capítulo:
CRUZ, Amanda Yvnne Figueiredo da. A descolonização jurídica e a cosmovisão dos povos originários no ordenamento jurídico da Nova Zelândia. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio
Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências,
Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020.
p. 23-34.
Amanda Yvnne Figueiredo da Cruz1
Introdução
A crise ambiental que assola o nosso planeta vem gerando uma
reflexão acerca dos valores difundidos nas sociedades ocidentais, valores notadamente eurocêntricos. Um desses valores diz respeito ao
tratamento dado à natureza pelos ordenamentos jurídicos dos Estados. Nessa esteira, a natureza é tratada como propriedade privada, um
objeto passível de exploração e transformação através do trabalho do
homem. A crise deste paradigma vem ocasionando a emergência de
epistemologias antes marginalizadas, como as dos povos originários,
coletividades que reconhecidamente mantém um vínculo peculiar com
a natureza, acarretando, na Nova Zelândia, na incorporação de valores
do Povo Maori acerca da natureza no ordenamento jurídico desse país.
Após uma disputa judicial iniciada em 1975, relativa a discrepâncias textuais em um tratado assinado em 1848 entre a Coroa Britânica
e os Chefes Maoris sobre a posse e o uso do Rio Whanganui, foi considerado procedente o pedido de restituição deste rio ao Povo Maori, bem
como a restituição de porções de seu território tradicional – que haviam
sido suprimidos pela colonização britânica no país. Em decorrência dessa decisão foi promulgada a Lei Te Awa Tupua em 2017, que conferiu
personalidade jurídica ao sistema fluvial do Rio Whanganui, reconhecendo a necessidade de sua proteção por seu valor intrínseco, concedendo proteção legal aos valores espirituais do Povo Maori, positivando,
inclusive, aspectos metafísicos do seu relacionamento com a natureza.
Para bem elucidar esse fenômeno denominado de descolonização
jurídica e seu possível impacto no sistema de proteção ambiental e na
emancipação dos povos originários, esse artigo será dividido em três
partes, a primeira tratando sobre os efeitos da dominação político-ideológica nos ordenamentos jurídicos dos países colonizados, notadamente
1
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (2017).
24
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
acerca da natureza; a segunda tratando da incorporação dos valores do
Povo Maori sobre a natureza no ordenamento jurídico da Nova Zelândia
e a terceira, finalmente, analisando o impacto destes fatos no mundo
jurídico do direito ambiental e nas lutas dos povos originários por sua
emancipação.
1. A colonização e o domínio político-ideológico
Balandier (apud Moonen, 1983, p. 121), para introduzir o conceito de situação colonial, define três aspectos deste domínio. O primeiro refere-se ao domínio material, o segundo ao domínio político e administrativo e o terceiro ao domínio ideológico. Para fins deste artigo,
trataremos apenas dos dois últimos. Temos assim, respectivamente, a
substituição das autoridades locais por autoridades coloniais, dos sistemas de justiça comunitária e das regras que regem a vida em sociedade,
e no plano ideológico a desvalorização das epistemologias tradicionais
dos povos colonizados, a proibição do uso de línguas tradicionais e a
introdução dos valores do colonizador como o único sistema de valores válidos, verdadeiros. Concordamos com Boaventura Souza Santos
(2010) ao afirmar que séculos de conhecimentos tradicionais acumulados foram perdidos com a colonização europeia, fenômeno que o autor
denomina de epistemicídio.
Deste domínio político-ideológico resultou a imposição de normas
elaboradas pelos colonizadores que não só desprezaram os valores já
possuídos pelos povos originários como promoveram uma supressão
da identidade étnica e o controle populacional destas coletividades, resultando, respectivamente, na impossibilidade de viver de acordo com
sua cosmovisão e a obrigação de assumir a nacionalidade e a cultura do
colonizador, e a estratificação social à qual muitos desses povos ainda
hoje se encontram submetidos.
Entretanto, não obstante a situação colonial, diversas culturas originárias conseguiram preservar suas tradições e suas epistemologias e
as ideologias que uma vez justificaram a posição dominante do grupo
colonizador (Balandier, 1991), tais como a superioridade do europeu em
25
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
face das sociedades pejorativamente chamadas de “selvagens, nativas”,
vêm caindo por terra em virtude, entre outros fatores, da crise dos valores difundidos na modernidade, permitindo a emergência de novas
concepções e novos sistemas de conhecimentos (Santos, 2010) que por
séculos foram desprezados e marginalizados.
Tendo-se em mente a dominação político-ideológica, levemo-la
para o campo dos direitos da natureza. As ideologias eurocêntricas sobre a natureza a tratam como um objeto passível de domínio e exploração pelo homem, onde toda criação natural foi feita para a utilidade
daquele (Las casas apud Souza Filho, 2018, p. 6). Filho (2018) aponta,
inclusive, que os povos originários foram tratados como selvagens e
primitivos por sua estreita aproximação com a natureza. As civilizações
europeias modernas se relacionavam ainda com a natureza tão somente como propriedade privada e fornecedora de matérias-primas que
proporcionam maiores riquezas ao homem, considerando-se, em virtude do seu suposto domínio sobre a natureza, em um estágio superior da
evolução social em relação às sociedades originárias.
Os povos originários, na contramão deste pensamento, convivem
com a natureza em uma relação de simbiose e respeito, reconhecendo
a dependência do homem frente a esse Ser superior que lhes fornece a
vida. Por isso, diversas culturas tratam a natureza como uma Mãe que
de tudo provém aos seus filhos. Vemos isso no tratamento da natureza
como Mãe Terra, Gaia ou Pachamama.
No entanto, o pensamento ocidental moderno sobre a natureza
vem caindo por terra frente à crise ambiental global que enfrentamos.
Secas, enchentes, a extinção em massa de espécies, entre outros sinais,
nos demonstra que a natureza está rebelando-se contra a dominação
do homem. A natureza, concebida como dócil e passível de dominação e
sem valor enquanto não transformada pelo homem mostra agora toda
a sua força indomável, furiosa (Souza Filho, 2018). Como pode o homem
deter as forças da natureza? Esse desencanto com os valores difundidos na modernidade vem ocorrendo notadamente a partir das últimas
décadas do século XX e tem possibilitado a emergência de outros sistemas de valores diversos do sistema ocidental. É o caso da Lei Te Awa
Tupua que trataremos no tópico seguinte.
26
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
2. A Lei Te Awa Tupua na Nova Zelândia
Na primeira metade do século XIX, o imperialismo britânico alcançou o atual território da Nova Zelândia, encontrando como povo originário daquele país os Maoris. Para garantir o domínio colonial, a Coroa
Britânica assinou o Tratado de Waitangi em 1840 com chefes das tribos Maoris e de outros povos originários que estabelecia, entre outros
pontos, a posse do Rio Whanganui. Deliberadamente ou não, o Tratado foi traduzido de forma diferente entre os britânicos e o Povo Maori,
podendo-se falar, portanto, na existência de dois tratados (CHARPLEIX,
2017), que traziam abordagens diferentes sobre a posse e a governança
do sistema fluvial do Rio Whanganui. Analisemos o artigo 2° do Tratado,
que foi a principal fonte das reivindicações do Povo Maori. Vejamos a
versão inglesa deste artigo:
Her Majesty the Queen of England confirms and guarantees to the
Chiefs and Tribes of New Zealand and to the respective families and
individuals thereof the full exclusive and undisturbed possession
of their Lands and Estates Forests Fisheries and other properties
which they may collectively or individually possess so long as it is
their wish and desire to retain the same in their possession; but
the Chiefs of the United Tribes and the individual Chiefs yield to
Her Majesty the exclusive right of Preemption over such lands as
the proprietors there of may be disposed to alienate at such prices
as may be agreed upon between the respective Proprietors and
persons appointed by Her Majesty to treat with them in that behalf
(NOVA ZELÂNDIA, 2017, grifo nosso).
É possível perceber que nesta versão inglesa do tratado, os Chefes
Maoris cedem ao Império Britânico o direito exclusivo de utilização das
terras e propriedades do tratado, bem como sobre o direito de preferência
de pessoas apontadas pela Coroa Britânica sobre a compra destas terras.
Outro ponto que demonstra o ímpeto colonialista de dominação
política sobre os colonizados diz respeito à soberania da Coroa Britânica, que além de estabelecer a cessão de soberania pelos chefes Maoris,
indicava que as leis emanadas daquela fonte eram as únicas legítimas
(CHARPLEIX, 2017).
27
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
As discrepâncias entre a versão britânica e a versão Maori do Tratado levaram o debate ao Poder Judiciário em 1975, que reconheceu a
propriedade do Povo Maori sobre o Rio Whanganui em 1999. Os recursos naturais do rio vinham até então sendo utilizados de forma predatória pelos ingleses, em total desprezo aos valores culturais dos Maoris,
que consideram o Rio como um complexo ser vivo.
Negociações subsequentes levaram à promulgação da Lei Te Awa
Tupua em 2017, que concedeu personalidade jurídica ao sistema fluvial
do Rio Whanganui, reconhecendo-o como sujeito de direitos e, portanto, digno de ser protegido por seu valor intrínseco, independente de seu
valor de troca, incorporando ainda epistemologias ancestrais e espirituais do Povo Maori sobre o rio.2 Segundo Rodgers (2017), a promulgação
dessa lei evidencia a relevância de princípios culturais e consuetudinários dos Maoris em um aparato institucional moldado para a efetivação
de uma proteção integral ao Rio Whaganui.
Essa lei representou o surgimento de um novo paradigma jurídico na Nova Zelândia que, ao incorporar valores étnicos ao seu ordenamento jurídico, reconheceu a multiplicidade de visões de mundo sobre
a natureza, que vai muito além do seu valor econômico e utilitário para
o homem.
A Lei Te Awa Tupua também instituiu um regime de governança compartilhada do rio entre o Povo Maori e o Governo neozelandês,
um modelo mais inclusivo e participativo de gestão, “focalizando as
interpretações subjetivas e culturais do Direito e, ao mesmo tempo,
afastando-se de um paradigma centrado no Estado”, conforme analisa
Charpleix (2017). Ademais, a Lei prevê ainda a proteção das comunidades que vivem ao longo da bacia do rio, enquanto elementos deste
ambiente, evidenciando a perspectiva holítisca deste documento, que
considera o meio ambiente como um todo integrado e interdepedente.
Art. 12 (Te Awa Tupua Act): “Te Awa Tupua is an indivisible and living whole, comprising
the Whanganui River from the mountains to the sea, incorporating all its physical and
metaphysical elements.” (NOVA ZELÂNDIA, 2017). Disponível em: Acesso em: 13 de maio
de 2019.
2
28
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
3. A proteção do meio ambiente e a emancipação dos
povos originários
Como visto anteriormente, os povos originários incorporam em
suas cosmovisões sobre a natureza uma dimensão metafísica, tratando-a muitas vezes como sua Mãe, uma ancestral. Para eles, a natureza
não vale por seu valor de troca no mercado, mas por seu valor em si
mesmo. À Mãe Natureza rendem respeito e reverência, e seus territórios – ao menos aqueles de colonização mais recente – são barreiras
de preservação da biodiversidade contra os avanços predatórios do
sistema capitalista sobre a natureza e sua concepção individualista de
sociedade.
Por cultivarem um relacionamento tão próximo com a natureza,
pode-se dizer que os princípios ambientais difundidos nestas sociedades são bem mais amplos que as epistemologias ocidentais de origem
eurocêntrica que tratam a natureza como propriedade privada passível
de exploração. A incorporação de valores do Povo Maori no ordenamento jurídico da Nova Zelândia, portanto, rompe com o modelo jurídico ocidental no tocante à proteção ambiental.
Levi-Strauss (1989) aponta para a incompletude de todas as culturas humanas e, ainda, que as grandes civilizações se ergueram em
constante troca cultural com outros povos. O autor relembra que a consolidação de uma suposta superioridade da civilização europeia sobre
outras culturas se deu durante o período do Renascimento, “ponto de
encontro e de fusão das mais diversas influências: as tradições grega,
romana, germânica e anglo-saxônica; as influências árabe e chinesa”
(LÉVI-STRAUSS, 1989).
Com isso o autor construiu sua ideia de que não existem civilizações com sistemas de valores completos se estas vivem absolutamente isoladas de outras culturas, ou seja, “o progresso cultural é função
de uma coligação entre as culturas”, sendo “esta coligação tanto mais
fecunda quanto se estabelecia entre culturas mais diversificadas”
(LEVI-STRAUSS, 1989). E conclui afirmando que são as colaborações interculturais que permitem o progresso da humanidade (LEVI-STRAUSS,
29
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
1989). Portanto, o diálogo intercultural do direito consuetudinário do
Povo Maori com o ordenamento jurídico eurocêntrico da Nova Zelândia assinala um passo importante para suprir as incompletudes desta
ordem, notadamente no tocante à proteção ambiental. Ao conferir personalidade jurídica ao sistema fluvial do Rio Whanganui, o direito ambiental deu um passo importante na maximização da efetividade dos
instrumentos jurídicos de proteção ambiental. Segundo Chapleix (2017)
Te Awa Tupua Act “marca um novo paradigma do pluralismo jurídico,
apontando caminhos para a evolução de como as relações com os componentes não humanos da natureza podem ser entendidas no futuro”.
Quanto ao impacto nas lutas por emancipação dos povos originários, achamos pertinente introduzir o conceito de colonização interna,
cunhado por Casanova (apud Moonen, 1983, p. 121), para designar a
dominação de nativos praticada pela sociedade resultante da colonização, ou seja, os descendentes dos colonizadores, nascidos nas antigas
colônias que já alcançaram a Independência.
A colonização interna ainda é um fenômeno contemporâneo que
podemos observar nos massacres étnicos, nas supressões territoriais
dos povos originários, na elaboração de legislações concernentes a estes povos sem sua participação, na estratificação e marginalização social, enfim, os exemplos são longos de como essas práticas sociais se
perpetuam nos tempos presentes. No entanto, para fins deste artigo
somente analisaremos o conceito de colonização interna sob duas perspectivas: as lutas territoriais e a atividade legislativa.
Te Awa Tupua Act reconheceu o vínculo indissociável do Povo
Maori com o Rio Whanganui, constituindo um passo em frente ao entendimento das complexas relações dos povos originários com seus
territórios, a fim de promover uma proteção cada vez mais efetiva desses espaços. Além disso, a identidade étnica e as tradições culturais de
um determinado povo são construídas em paralelo com a identificação
coletiva a determinado território, local de reprodução – muitas vezes
imemorial – de suas tradições e modos de viver. O território é, portanto,
condição sine qua non de existência dos modos de vida dos povos originários, sendo possível constatar o desaparecimento de grupos étnicos
30
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que foram forçados a deixar seus territórios, como no caso de diversas
etnias da região Nordeste do Brasil.3
No plano político e administrativo, tomemos o raciocínio de Kelsen
(apud Ferrazzo, 2009, p. 36), para concluirmos o tópico sobre emancipação: “em nome da unidade política, a nação que se organiza em um
mesmo Estado concorda, num processo democrático, em se submeter
à força coativa estatal, pois é esta força que garante a segurança das
relações sociais”. No entanto, conforme já exposto, podemos extrair que
o processo de formação da Nova Zelândia enquanto Estado nacional
prescindiu da concordata dos povos originários que habitavam aquele
espaço territorial, antes mesmo da formação de um aparato administrativo estatal. Desse modo, a falta de representatividade dos povos
originários no processo constituinte ou legislativo, por causa da colonização neste Estado, acarreta que estas coletividades sofrem com os
efeitos de um consenso do qual não fazem parte (FERRAZZO, 2009).
Os avanços nos direitos dos povos originários, a inclusão de valores de suas cosmovisões e o alargamento de suas participações nos
processos políticos decisórios apontam, portanto, para uma “reestruturação da institucionalidade advinda do Estado nacional, reconhecendo a
necessidade de um sistema de foros de deliberação intercultural autenticamente democrática” (GRIJALVA, 2009), além de demonstrarem uma
“ruptura na lógica jurídica de mera importação de modelos institucionais” (ARAUJO JUNIOR, 2018) eurocêntricos e que não atentam para as
particularidades das populações aos quais são dirigidos, representando
um rompimento com o paradigma jurídico ocidental e a abertura para o
diálogo intercultural do Direito.
Considerações finais
A situação colonial pressupõe o domínio político e ideológico
dos povos colonizados, acarretando no desaparecimento de valores
Ver: OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”?: Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A Viagem
de volta: Etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de
Janeiro: Contra Capa Livraria, 2004. p. 13-42.
3
31
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
tradicionais destas populações, na imposição da nacionalidade e da
cultura do colonizador e no monopólio da produção do conhecimento
considerado válido, marginalizando corpos alternativos de saberes e taxando seus detentores de “selvagens e primitivos”. Um aspecto da imposição de valores estranhos a culturas colonizadas diz respeito ao caso
dos povos originários e suas cosmovisões sobre a natureza, que a consideram como uma Mãe, e o tratamento dado a ela por ordenamentos
jurídicos de tradição eurocêntrica que a consideram tão somente como
propriedade privada, fornecedora de matérias-primas.
O conflito entre essas duas visões de mundo resultou na promulgação do Te Awa Tupua Act, de 2017 que incorporou valores ancestrais
da cultura Maori no ordenamento jurídico da Nova Zelândia, território
colonizado pelo Império Britânico no século XIX. Esta lei conferiu personalidade jurídica ao sistema fluvial do Rio Whanganui, reconhecendo-o
como sujeito de direitos, passível de proteção por seu valor em si mesmo, rompendo com a tradição jurídica europeia que considera o valor da
natureza por seu valor de troca no mercado.
O diálogo intercultural do Te Awa Tupua Act importa significativos
avanços nos campos do direito ambiental e na luta por emancipação
dos povos originários, notadamente em suas reivindicações territoriais, criando um sistema de proteção ambiental biocêntrico, ou seja,
conferindo direitos a outros componentes não humanos da natureza,
demonstrando também a importância do ativismo das comunidades
tradicionais nas reivindicações pela efetivação dos seus direitos e pelo
respeito às suas culturas e modos de viver, além da emergência desses
novos sujeitos na esfera política do seu respectivo Estado.
32
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ARAUJO JUNIOR, Julio José.
A Constituição de 1988 e os
direitos indígenas: uma prática
assimilacionista? In: CUNHA, Manuela
Carneiro da; BARBOSA, Samuel
(Orgs). Direitos dos Povos Indígenas
em disputa. São Paulo: Unesp, 2018.
p. 175-236.
BALANDIER, Georges. Sociologie
actuelle d l’Afrique Noire. Paris: PUF,
1963.
BALANDIER, Georges. A Noção
de Situação Colonial. Cadernos de
Campo (São Paulo 1991), v. 3, n. 3,
p. 107-131, 30 mar. 1993. Disponível
em: . Acesso em: 26 jul. 2019.
CASANOVA, Pablo Gonzáles.
Sociedad plural, colonialismo interno
y dessarrollo. América Latina,
Desconhecido, v. 6, n. 3, p.15-32,
1963.
GRIJALVA, Augustín. O Estado
plurinacional e intercultural na
Constituição equatoriana de 2008.
Revista Ecuador Debate, Quito, v. 12,
n. 075, p. 49-62, dez. 2008. Disponível
em: . Acesso em: 13 maio 2019.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito:
introdução à problemática científica
do direito. Tradução de J. Cretella Jr.
e Agnes Cretella. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2001. 159p.
LAS CASAS, Bartolomé de. Obra
indigenista. Alianza Editorial: Madrid.
1985.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e
História. In: LÉVI-STRAUSS, Claude.
Antropologia estrutural dois. 3. ed.
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1989. p. 328-366.
MOONEN, Francisco. Pindorama
conquistada: Repensando a questão
indígena no Brasil. João Pessoa:
Alternativa, 1983. 154 p.
CHARPLEIX, Liz. The Whanganui
River as Te Awa Tupua: Place-based
law in a legally pluralistic society. The
Geographical Journal. Cambridge,
p. 19-30. out. 2017. Disponível em: .
Acesso em: 30 abr. 2019.
NOVA ZELÂNDIA. Te Awa Tupua
(whanganui River Claims Settlement)
Act 2017. Nova Zelândia, 20 mar.
2017. Disponível em: . Acesso em: 13
maio 2019.
FERRAZZO, Débora. O novo
constitucionalismo e a dialética
da descolonização. In: WOLKMER,
Antônio Carlos; CAOVILLA, Maria
Aparecida Lucca (Orgs). Temas atuais
sobre o Constitucionalismo Latinoamericano. São Leopoldo: Karywa,
2015. p. 32-46. Disponível em: .
Acesso em: 13 maio 2019.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma
etnologia dos “índios misturados”?:
Situação colonial, territorialização e
fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João
Pacheco de (Org.). A viagem de volta:
Etnicidade, política e reelaboração
cultural no Nordeste indígena. 2. ed.
Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria,
2004. p. 13-42.
33
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
RODGERS, Christopher. A new
approach to protecting ecosystems:
The Te Awa Tupua (Whanganui River
claims settlement) act 2017. 2017.
Disponível em: . Acesso em: 25 abr.
2019.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés
de. De como a natureza foi expulsa
da modernidade. Revista de Direitos
Difusos, São Paulo, v. 68,
n. 2, p.15-40, dez. 2018. Disponível
em: . Acesso em: 15 jul. 2019.
SANTOS, Boaventura de Sousa.
Descolonizar el saber, reiventar el
poder. Montevideo: Ediciones Trilceextensión Universitaria., 2010. 113
p. Disponível em: . Acesso em: 07 jul.
2019.
ZELÂNDIA, Nova. Read the treaty.
2017. Disponível em: . Acesso em: 09
ago. 2019.
[ Volta ao Sumário ]
34
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a diveRsidade Religiosa
dentRo de um Contexto
gRupal psiCológiCo
foRmado poR pessoas
de diveRsas Religiões
marineide Felix de Queiroz Brito
Como referenciar este capítulo:
BRITO, Marineide Felix de Queiroz. A diversidade religiosa dentro de um contexto grupal psicológico formado por pessoas de diversas religiões. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio
Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências,
Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020,
p. 35-56.
Marineide Felix de Queiroz Brito1
Introdução
O presente trabalho se propõe a fazer uma análise do problema
de preconceito religioso existente na diversidade religiosa dentro de um
contexto grupal psicológico formado por pessoas de diversas religiões e
as relações construídas no processo histórico, social, político, econômico e cultural. Pesquisar quais as religiões existentes na diversidade religiosa do grupo em evidência visando analisar as tradições religiosas no
contexto curricular e legal do Ensino Religioso, e finalmente, explicitar
os processos de constituição, identificação e interação das denominações religiosas em seus diferentes contextos.
As ações educacionais visam à superação de desigualdades que
atingem historicamente determinados grupos sociais discriminados
pelo preconceito social e religioso. Nesse estudo tendo em vista a pluralidade cultural religiosa, ser fundamental para desmistificar preconceitos e a intolerância religiosa contida nos grupos terapêuticos de psicologia na policlínica Nossa Senhora da Vitória, no município de Goiana-PE.
A diversidade cultural religiosa existente na educação escolar, nos currículos e práticas pedagógicas, ressaltando, os grupos terapêuticos,
permite a ampliação da consciência dos educadores, na formação de
professores e outros profissionais da área para ampliar o conhecimento
das tradições religiosas.
A espiritualidade é a dimensão peculiar que todo ser humano impulsiona na busca do sagrado, da experiência transcendente na tentativa de dar sentido e resposta aos aspectos fundamentais da vida.
O Conhecimento básico do fenômeno religioso a partir da experiência
pessoal de cada participante do grupo psicológico. A religião pode ter
1
Mestranda do Curso em Ciências das Religiões/Centro de Educação/UFPB-2018. Participante do grupo de pesquisa FIDELID (UFPB). Licenciatura e Formação em PsicologiaBacharel em Administração/UNIPÊ. Especialização em Programa Saúde da Família – FIP.
E-mail: felixmarineide@gmail.com.
36
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
efeito tano benéfico quanto maléfico à saúde, considerando que as
crenças ou práticas religiosas podem ser usadas como substitutos de
medicamentos necessários à saúde. (Cf. DUARTE; WANDERLEY, 2011).
Diversidade religiosa significação e as ações
educacionais
As religiões compõem uma pedra angular da coexistência social e
de disposição política. Hoje com a globalização vêm causando a miscigenação das culturas, impondo uma pluralidade de formas de fé. Falar
de religião significa enfrentar a pluralidade de diferenças crenças, e cada
indivíduo carregador de suas próprias histórias, memórias e analogias.
A natureza da fé individual e sobre a legalidade do anseio de verdade
que cada religião avança em relação às outras. A liberdade de expressão
religiosa, base da diversidade, não pode permitir as agressões entre as
religiões ou destas a não religiosos ou ainda destes às próprias religiões,
posto que exatamente estas agressões o objeto das militâncias e da
cultura universal pela paz.
Trigg alerta principalmente contra um erro: classificar o fenômeno
da “diversidade” como um mero “pluralismo religioso” no qual todos os
credos são iguais, afirmando uma visão e uma interpretação relativistas
das realidades. O “relativismo religioso” impede de perceber as especificidades de cada fé e de estabelecer prioridades: aspectos cruciais quando chega o momento das escolhas concretas que afetam a convivência
social e o espaço público. O relativismo ameaça banalizar as religiões e
anular o uso correto do princípio da intolerância.
Discorrer, conhecer, analisar ou pesquisar o universo religioso são
atividades fascinantes, interessantes e servem, sobretudo, para abolir
com os fundamentalismos. Os fundamentalismos são aqueles que cultivam a ideia de que sua religião é a única e de todas as demais formas
têm de ser abolidas. O Brasil é um país que possui uma rica diversidade religiosa e, com um número de seguidores, tradições, crenças, com
diversas religiões, devido a miscigenação cultural, fruto de vários processos imigratórios. A realidade brasileira é plurirreligiosa e traz como
37
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
característica a diversidade religiosa. O ensino religioso como disciplina
funciona como uma ferramenta que possibilita a formação de análise
do indivíduo, capaz de compreender a legalidade de outras tradições religiosas.
O ensino religioso se propõe a sinalizar caminhos para a compreensão da existência humana, desenvolvendo o respeito pelas diferenças, desencadeando a tolerância, acordando o diálogo entre as diversas crenças e religiões. Cláusulas, contidas na legislação brasileira é
o respeito à diversidade cultural ressaltado o pluralismo religioso. Comunicando um caráter científico ao ER (ensino religioso), A LDB (lei de
diretrizes e bases da educação nacional) levantou debates sobre esse
componente curricular, capacitando-o para a constituição plena do cidadão. Os estudos são necessários para alicerçar essa área disciplinar,
ao qual ainda se encontra em constante crescimento no Brasil.
Portanto podemos congregar alguns princípios básicos relacionados ao E.R:
a)
Contribuir para a formação plena do cidadão;
b) Assegurar o respeito à diversidade cultural e religiosa;
c)
Proibir quaisquer formas de proselitismo
O Ensino Religioso (ER) é regulamentado pela Constituição Federal
de 1988 em seu artigo 210 § 1°, seguindo ainda os preceitos da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB 9394/96, em seu art.33,
alterado pela Lei 9475/97. LDB 9394/96, em seu art.33, alterado pela
Lei 9475/97. Dispõe o art.33 da LDB:
O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da
formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o
respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1° Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para
a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as
normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2° Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas
diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos
do ensino religioso.
38
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Consta em uma das cláusulas da legislação é o respeito à diversidade cultural observado o pluralismo religioso. A Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) comunicando em caráter científico
ao Ensino Religioso (ER) levantou debates sobre esse componente curricular, capacitando-o para a formação plena do cidadão, o que explica
a necessidade de estudos nessa área disciplinar. A tolerância religiosa
afasta o proselitismo, suprime o preconceito reconhecendo as diferenças de crenças e considerando o direito do outro de não professar nenhuma crença.
O Ensino religioso no Brasil, segue orientações dos Parâmetros
Curriculares Nacionais do Ensino Religioso (PCNER), elaborado em 1997
pelo FONAPER após a promulgação da Lei 9394/96. Profissionais especializados sem a devida formação específica na pode trazer danos a
força necessária a todo contexto do ensino religioso em sua formação
específica dificultando assim os conteúdos próprios aperfeiçoados, e
importantes para a formação docente exclusiva seguida, pelos profissionais do ensino religioso.
Sem formação adequada encontrará dificuldades em falar com
excelência sobre questões polêmicas como intolerância, diversidade religiosa. O professor do ensino religioso será um intercessor ajudando
na perspectiva pluralista, acerca dos fenômenos religiosos, contribuindo
para o autoconhecimento e no desenvolvimento pleno do ser humano.
O ensino religioso caminha em processo de construção, ponderando a
importância da religião e cultura em constantes processos investigativos para o autoconhecimento das expressões de religiosidade acessível
a todos, desenvolvendo o respeito pelas diferenças.
Para o profissional em ensino religioso é de fundamental importância uma formação continuada para qualificar-se frente as exigências do perfil do ensino religioso recomendado para esse profissional
possuir a compreensão do fenômeno religioso cultural. O professor não
habilitado, com formação específica dificulta que os conteúdos próprios
sejam aplicados, fazendo-se necessário a formação docente específica
e continuada, pois um profissional sem formação adequada encontrará
dificuldades em discorrer com excelência sobre questões como pluralidade, a alteridade, discursando de maneira científica sobre questões
39
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
polêmicas como intolerância, diversidade religiosa, subsidiando o educando para a vida.
A Ciência da Religião subsidia a base epistemológica para o ensino
Religioso sob o enfoque do fenômeno religioso sugerido pelo PCNER.
Ela oferece aspectos teóricos metodológicos que atendem a demanda
dessa disciplina, assegurando a ausência de proselitismo e a finalidade a que dedica: a formação crítica do cidadão, favorecendo a prática
docente em consonância ao preceito legal. Encaminhado a partir da
abordagem da Ciência da Religião, o profissional estará qualificado para
atuar como professor do ensino religioso, intercedendo informações e
conhecimentos, distinguindo no aluno suas capacidades amplas de saberes, e com isso despertando a sua autonomia, estimulando seu senso
crítico, desenvolvendo a abertura ao diálogo e a tolerância religiosa em
todo ambiente ao qual se encontra inserido.
Por falta de políticas públicas de incentivo a cursos de graduação
de licenciatura em Ciência da Religião, com o benefício de cada estado normatizar a habilitação de seus profissionais e admissão desses,
faz com que o quadro de professores dessa disciplina seja preenchido
por profissionais com licenciatura em outras áreas, o que aponta para
a importância da formação continuada desses profissionais, através de
cursos de capacitação para docentes do ensino religioso em períodos
regulares. Justifica-se a formação continuada ainda para os egressos da
Ciência da Religião tendo em vista a complexidade do campo religioso
e do ensino religioso que é uma aprendizagem por etapas de processos
panejados junto as ações educacionais, progressiva e permanente dentro de um contexto legalmente instituído.
Acredita-se que o professor de Ensino Religioso congregue os requisitos necessários para estar apto a consolidar as finalidades do ensino religioso providos pelo FONAPER (FÓRUM NACIONAL PERMANENTE
DO ENSINO RELIGIOSO). O ensino religioso no Brasil segue direções do
“PCNER” Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso, elaborado em 1997 pelo FONAPER após a promulgação da Lei 9394/96. O
PCNER configurou-se como um referencial teórico-curricular, orientando diretrizes curriculares.
O PCNER, embasado na pluralidade cultural e religiosa propõe
como objetivos gerais do Ensino Religioso para o ensino fundamental:
40
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a)
b)
c)
d)
e)
f)
proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que
compõem o fenômeno religioso, a partir das experiências religiosas percebidas no contexto do educando;
subsidiar o educando na formulação do questionamento
existencial, para desenvolver-se em profundidade, para dar
sua resposta devidamente informado;
analisar o papel das Tradições Religiosas na estruturação e
manutenção das diferentes culturas e manifestações socioculturais e econômicas;
facilitar a compreensão do significado das afirmações e das
verdades de fé das Tradições Religiosas;
refletir o sentido da atitude moral, como consequência da vivência no fenômeno religioso e expressão da consciência e
da resposta pessoal e comunitária do ser humano;
possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença na
construção de estruturas religiosas. (PCNER, p. 47).
Espiritualidade e religião numa visão conceitual
De acordo com o pensamento de Otto (Cf. 2007), a busca em esclarecer a vivencia da espiritualidade do homem remete aos primórdios.
Assemelham pelo reconhecimento da necessidade do homem em se
relacionar-se com um Ser que o transcende, através da vivência de sua
espiritualidade. Diversos outros movimentos favorecem uma melhor
circunscrição e compreensão no desenvolvimento dos conceitos de religião e espiritualidade. A espiritualidade pode ou não estar ligada a uma
vivência religiosa.
A espiritualidade pode ser determinada como uma disposição humana a buscar acepção para a vida por meios de conceitos que transcendem o tangível, a procura de um sentido de atrelamento com algo
maior em si mesmo. A espiritualidade envolve um conceito mais amplo e não tem ligação com nenhuma doutrina específica. Cada religião
tem suas particularidades, exercendo a fé ou em conceitos defendidos
sobre determinados assuntos e contextos culturais. A religião é uma
41
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
construção multidimensional ao qual inclui crenças, questões comportamentais, rituais e cerimônias que podem ser executadas em particular
ou em público, mas que são derivadas de tradições que se desenvolveram ao longo do tempo em uma comunidade relata em um artigo de
2012, Harold Koenig, diretor do Centro para Teologia, Espiritualidade e
Saúde, e professor na Universidade de Duke, nos Estados Unidos.
A palavra religião vem da palavra em latim religare, que significa
se religar ao divino. Com o tempo as religiões foram se tornando instituições com suas normas próprias. Estamos falando em religião hoje
em dia como se referindo as instituições e não ato de se religar ao divino (como sugere a palavra de origem). Podemos dizer que religião é
um conjunto de crenças e filosofias que são acompanhadas por uma
grande massa de pessoas de acordo com seus ensinamentos, doutrinas
e costumes. Além da religião, também existe a religiosidade, que para
muitos nada mais é que ter a qualidade de ser religioso, ou seja, ter uma
religião. A religião diz respeito a um conjunto de crenças ou dogmas relacionados com a divindade e da relação do homem com essa divindade
e abrange também normas morais para o comportamento do sujeito de
maneira individual e social no seu contexto de vida.
Não existe certo ou errado e não devemos usar termos para
recriminar, discriminar os indivíduos de uma ou outro segmento de
escolha de pensamento religioso. Às vezes estar em conjunto com
pessoas conhecidas ou não, gostando de frequentar alguma religião
e isso te conecta ao divino. Percebida a religião, como riqueza da humanidade, revela-se como um patrimônio antropológico e cultural, da
sociedade ao longo do processo histórico da Brasil e, portanto deve
estar acessível a todos.
Intolerância religiosa
É um termo que descreve a atitude mental caracterizada pela
fata de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar diferenças
ou crenças religiosas de terceiros. Quanto mais conhecemos as
religiosidades, maior entendimento e clareza terão sempre uma maior
42
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
visão esclarecedora. Quando nos permitimos conhecer as vivências e
práticas religiosas das pessoas, não estamos abrindo mão de nossa
própria convicção ou crença. Quanto mais conhecemos as religiosidades,
maior discernimento e capacidade terão também sobre o nosso
segmento. Em nome das religiões, cabem atitudes de respeito, diálogo
e entendimentos em prol da cultura de paz e a grande consideração nas
relações entre as pessoas.
É sempre difícil respeitar o que não apreciamos. Tratando
do complexo mundo de crenças, experimentamos dificuldades de
compreensão, entendimento e respeito às religiosidades alheias. Dai
a importância do diálogo, pois nele iremos permitir o entendimento de
conhecer e reconhecer as realidades das diversas religiões. Conhecermos
pessoas de diferentes segmentos religiosos com tradições e hábitos
diversificados em nosso convívio ou não do nosso meio social.
Respeitar as diferenças religiosas é fundamental, principalmente
porque o objetivo principal das religiões é transmitir os aspectos positivos dos seres humanos, pautados à sua natureza, princípios e valores,
tendo sempre em mente a compreensão do outro congregando pacificamente no respeito às escolhas pessoais de cada indivíduo. Reivindicar
seus direitos e, ao mesmo tempo despertar de uma nova consciência
tão necessária.
Diante do preconceito religioso não podemos ficar como meros
espectadores. Quando nos permitimos conhecer as vivências e práticas religiosas dos outros, não estamos abrindo mão de nossa própria
convicção ou crença. Não se justificam guerras e conflitos em nome das
religiões, porque todas elas derivam ensinar o amor como valor maior
de toda convivência do ser humano. A intolerância é presente no Brasil com causas diversas, destacando-se o julgamento de superioridade
de uma religião à outra e de má fé, apresentando como consequências
o desrespeito dentro da sociedade e uma disputa acirrada pela maior
obtenção de crentes em suas igrejas ou templos. Existem religiões que
respeitam e outras que desrespeitam.
Embora a intolerância religiosa seja bastante recorrente, até mesmo, comum hoje, existem medidas que podem vir a proporcionar melhorias na convivência social entre as pessoas. A tolerância religiosa
afasta o proselitismo, bane o preconceito reconhecendo as diferenças
43
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de crenças e considerando o direito do outro de não professar nenhuma
crença.
Psicoterapia de grupo um breve histórico do surgimento
Segundo Stone, em seu estudo de terapias em grupo (2005) Terapia
em grupo é um método de Psicoterapia. É historicamente, a psicoterapia
grupal muito mais antiga do que pensamos. Suas raízes estão desde a
antiguidade, das mais diversas formas culturais, por meio do curandeiro,
danças xamanísticas, poções, Buda, etc. A psicoterapia de grupo surgiu
intuitivamente e foi adotada empiricamente, por Joseph H. Pratt. Pratt
era clínico geral. Sua origem remonta ao início do século passado – 1905.
A psicoterapia de grupo passou pala fase de expansão teórica nos anos
50 e 60, seguida da fase de consolidação na década de 70, e de amadurecimento nos anos 80 e 90. Finalmente, examina-se sua evolução recente,
dando ênfase especial à construção de novos modelos. De acordo com
Zimermam (2004), no início de 1948, Bion organizou os seus grupos terapêuticos, a partir dos quais fez importantes avaliações e contribuições
que permanecem vigentes e inspiradores na atualidade.
Considerações finais
As ações educacionais com orientações dos parâmetros curriculares nacionais do ensino religioso (PCNER), elaborado pelo fórum nacional permanente do ensino religioso (FONAPER), regulamentado pela
constituição federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), são propostas de fundamental importância, na visão
pluralista cultural religiosa, contida nos grupos terapêuticos de psicologia, na Policlínica Nossa Senhora da Vitória, visando a superação ao
preconceito social religioso.
Trabalhar com grupos é lidar com indeterminação, reconstrução e
surpresas em todos os momentos. Cada membro do grupo psicológico pode ser agente de sua própria mudança na construção de um novo
44
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
olhar para a diversidade religiosa. É um grande desafio estudar a riqueza
da diversidade cultural no contexto grupal psicológico formado por pessoas de diversas religiões e crenças.
Analisar as tradições religiosas no contexto curricular do ensino
religioso em seus diferentes contextos socioculturais são caminhos
para reflexões acerca do fenômeno religioso visando o desenvolvimento
pleno na formação do cidadão. Aqui se situam também as possibilidades para dialogar e aprofundar a pesquisa. Sendo assim, fica esclarecido
que lidamos com o desafio de respeito à diversidade de crenças e de
religiões presentes nos grupos terapêuticos. A pesquisa atinge a percepção de que é necessário e urgente o respeito mútuo nos desenvolvimentos das atividades educacionais para a tolerância da diversidade
religiosa grupal.
45
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BRASIL, (1988). Constituição:
República Federativa do Brasil.
Brasília: Senado Federal, Serviço
Gráfico. (1996).
Brasil. Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional. Lei
n. 9394/96. Diário Oficial da
União,Brasília,DF:1996.Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l9394.hm>. Último
acesso em: 14/06/2019.
______. Lei nº 9.475, de 22 de julho
de 1997 – Da nova redação ao art. 33
da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional. Diário
OficialdaUnião, Brasília, DF: 1997.
Disponívelem: <www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l9494.htm>. Último
acesso em: 14/06/2019.
DUARTE, F. M.; WANDERLEY, K. S.
Religião e espiritualidade de idosos
internados em uma enfermaria
geriátrica. Psicologia, Teoria e
Pequisa, 27 (1), 49-53, 2011.
FÓRUM NACIONAL PERMANENTE
DO ENSINO RELIGIOSO. Parâmetros
Curriculares Nacionais – Ensino
Religioso – São Paulo, Mundo Mirim,
2009.
KOENING, Harold. medicina, religião
e saúde: o encontro da ciência e da
espiritualidade. Tradutor: Abreu I.
Porto Alegre: L&PM, 2012.
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Sinodal,
EST; Petrópolis: Vozes, 2007.
STONE, M. H. História da
psicoterapia. In: Eizirik CL, Aguiar
RW, Achestatsky SS. Psicoterapia de
orientação analítica: fundamentos
teóricos e clínicos. 2 ed. Porto Alegre:
Artmed; 2005.
ZIMERMAM, David E. B. Teoria à
prática – uma leitura didática 2. Ed.
Porto Alegre: Artmed, 2004.
[ Volta ao Sumário ]
46
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a endemia iConoClasta
na Religião do oCidente:
um paradoxo do imaginário
segundo gilbert durand
José Herculano Filho
Carlos André macêdo Cavalcanti
Como referenciar este capítulo:
FILHO, José Herculano; CAVALCANTI, Carlos André Macêdo. A endemia iconoclasta na religião do ocidente: um paradoxo do imaginário segundo Gilbert
Durand. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais
do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade:
Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 47-57.
José Herculano Filho1
Carlos André Macêdo Cavalcanti2
Introdução
No livro O Imaginário: Ensaios acerca das ciências e da filosofia da
imagem, Gilbert Durand faz uma síntese da história da imagem no Ocidente, traça um cenário das diferentes posições e papéis ocupados pela
imaginação na filosofia, na religião e na formação do imaginário coletivo,
dialogando com pensadores clássicos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Weber, Hegel, entre outros.
A problemática durandiana reside em um antigo paradoxo: a civilização ocidental, por um lado, proporcionou técnicas de expansão das imagens, mas por outro lado, criou uma crescente desconfiança iconoclasta.
No primeiro momento o autor começa narrando sobre a nossa herança ancentral mais antiga e irrefutável que é o monoteísmo bíblico,
originado no judaismo. A princípio a proibição de criar imagem (eidôlon)
como um substituto para o divino encontra-se no mandamento de Moisés (Êxodo, 20: 4-5), deixando claro que não somente a imagem divina
está proibida, como também qualquer outra imagem; o Cristianismo
(I Coríntios, 8:1-13; Atos, 15: 29) e o Islamismo (Corão, III: 43; VII: 133134; XX: 96), também herdaram as mesmas proibições, visto que tiveram influências judaicas. “O judaísmo valoriza antes de tudo uma cultura da linguagem, que chega a condenar a imagem material por sua
propensão a conduzir os homens à idolatria, à confusão entre a imagem
e o ser divino” (WUNENBURGER, 2007, p. 29).
Doutorando em Ciências das Religiões (PPG-CR/UFPB), Mestre em Ciências das Religiões (PPG-CR/UFPB), Professor de filosofia e Metodologia do Ensino Médio Integrado
Técnico e Tecnológico do Instituto Federal da Paraíba – Campus Patos.
E-mail: herculanofilho@yahoo.com.br
2
Orientador, Doutor em História pela UFPE, Mestre em História pela UFPE. Professor do curso de pós-graduação em Ciências das Religiões da UFPB e do curso de graduação em História
da UFPB. Coordena o Grupo de Estudos Videlicet, sobre a Teoria do Imaginário de Durand.
1
48
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Na mitologia bíblica, Moisés quebra as tábuas da lei num acesso de
raiva ao ver seu povo adorando a imagem de um bezerro no deserto
do Sinai. A interdição das imagens é um dos dogmas fundamentais
da tradição judaico-cristã, tal como registrado nos textos do Velho
Testamento (MACHADO, 2001, p. 7).
Na Grécia antiga, as imagens não foram proibidas, de acordo com
Machado (2001, p. 9), mas o iconoclasmo tomou corpo no plano intelectual, sobretudo na filosofia.
Platão certamente foi o pensador que deu à iconoclastia tal expressão e furor, e ainda hoje o peso de sua doutrina ecoa em nossos
debates intelectuais. Para o autor de A República e de O Sofista, o
artista plástico é uma espécie de impostor: ele imita a aparência das
coisas, sem conhecer a verdade delas e sem ter a ciência que as
explica (MACHADO, 2001, p. 9).
De acordo com Durand (2014, p. 7) todas as civilizações não ocidentais, fundamentaram seus princípios de realidade, seu universo
mental, individual e social, em elementos pluralistas, portanto, diferenciados, fora do contexto de uma verdade única, de um processo de
dedução da verdade absoluta. Por sua vez, o Ocidente, univeso em que
estamos inseridos, “[...] a civilização que nos sustenta a partir do raciocínio socrático e seu subseqüente batismo cristão, além de desejar ser
considerado, e com muito orgulho, o único herdeiro de uma única Verdade, quase sempre desafiou as imagens” (DURAND, 2014, p. 7).
Conforme Durand (2014, p. 9) esse processo dualista também
ocorreu na filosofia ocidental, através do método da verdade, oriunda do
socratismo, baseada numa lógica binária (com apenas dois valores: um
falso e um verdadeiro), unindo-se desde a formação com o iconoclasmo
religioso, tornando-se uma herança inicialmente de Sócrates, depois de
Platão e em seguida de Aristóteles, como um único processo eficaz para
a busca e validação da verdade.
Portanto, para Durand (2014, p. 9-10), ao longo dos séculos o
mundo ocidental, a partir do pensamento de Aristóteles (século 4 a.C),
a dialética racional foi a via de acesso ao conhecimento, a experiência
dos fatos, ou seja, o caminho da lógica para se chegar a verdade. Uma
49
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
dialética do pensamento filosófico que propunha apenas dois caminhos
na construção do conhecimento racional: um absolutamente verdadeiro
e outro absolutamente falso, excluindo a possibilidade de toda e qualquer outra via de conhecimento.
O paradoxo da imagem
O surgimento da fotografia, do cinema, dos vídeos e seus meios
de transmissão no século XX, à televisão e por último a rede mundial de
computadores, a internet, consolidaram a construção de uma “civilização da imagem”, conforme afirma Durand (2014, p. 5) no seu livro.
A iconoclastia ocorre no Ocidente desde o período clássico grego,
com a sacralização do mito, depois com o advento do cristianismo, que
por fim estigmatizaram os símbolos e as imagens das inúmeras doutrinas filosóficas e religiosas que pairavam no universo grego/romano
e que se contraponham muitas vezes ao dualismo da época. No curso
dos séculos muitas tradições foram suprimidas, perseguidas e/ou reestruturadas, para se adaptarem as estruturas do pensamento dualista
no ocidente.
Para Durand (2014, p. 6) as civilizações não ocidentais nunca separaram as informações (digamos, “as verdades”) fornecidas pelas imagens daquelas fornecidas pelos sistemas da escrita. Cita por exemplo:
Os ideogramas (o signo escrito copia algo num desenho quase estilizado sem limitar-se a reproduzir os signos convencionais, alfabéticos e os sons da língua falada) dos hieróglifos egpícios ou os
caracteres chineses, por exemplo, misturam com eficácia os signos
das imagens e as sintaxes abstratas. Em contrapartida, antigas e
importantes civilizações como a América pré-colombiana, a África negra, a Polinésia etc, mesmo possuindo uma linguagem e um
sistema rico em objetos simbólicos, jamais utilizaram uma escrita
(DURAND, 2014, p. 6).
O paradoxo do monoteismo se enraizou pelas entranhas da desconstrução do politeísmo ocidental e continuou ao longo da sua expansão
50
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e dominação terretorial, violentando inúmeras iconófilos e suas deidades por onde se fixou, delimitando morada definitiva. Conforme Durand
(2014, p. 9) a nossa herença ancestral mais antiga e incontestável é
o monoteísmo bíblico, judaíco, que proibe qualquer imagem (eidôlon)
como substituto para o divino. Daí, portanto:
O método da verdade, oriundo do socratismo é baseado numa lógica binária, (com apenas dois valores: um falso e um verdadeiro),
uniu-se desde o início a esse iconoclasmo religioso, tornando-se
com a herença de Sócrates, primeiramente, e Platão e Aristóteles
em seguida, o único processo eficaz para a busca da verdade (DURAND, 2014, p. 9).
O autor destaca que a mensagem do Cristianismo foi difundida no
Ocidente em grego, a língua de Aristóteles. “Para alguns foi a sintaxe
grega que permitiu a lógica aristotélica! São Paulo, o “segundo fundador”
do Cristianismo, era um judeu helenizado. O texto dos Evangelhos só
nos foi transmitido na sua forma primitiva em grego” (DURAND, 2014,
p. 10-11). E foram justamente as obras de Aristóteles, desaparecidas
ao longo dos séculos e posto a luz por Averros de Córdoba (1126-1198),
pensador mulçumano da Espanha, sobre o domínio dos mouros, que
traduz para o árabe os escritos do filósofo grego, enquanto no Ocidente:
Os filósofos e teólogos cristãos passaram a ler avidamente as trudações. O mais famoso e influente foi São Tomás de Aquino. Numa
tentativa enorme para conciliar o racionalismo aristotélico e as verdades da fé numa “suma” teológica, seu sistema tornou-se a filosofia oficial da Igreja Romana e o eixo de reflexão de toda a escolástica
(a doutrina da escocla, isto é, das universidades controladas pela
Igreja) dos séculos 13 e 14 (DURAND, 2014, p. 12).
Na tradição ocidental, segundo Machado (2001, p. 10-11) ocorreu
quatro ciclos iconoclastas. O primeiro interdito aconteceu na Grécia antiga com a filosofia do simulacro de Platão e nas culturas judaico-cristã
e islâmica, nas quais a mitologia bíblica e do Corão atacaram as imagens
e quem as veneravam. O segundo ciclo iconoclasta ocorreu durante o
Império Bizantino sob as ordens do imperador Leão III, e aplicado por
51
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
seus sucessores. “A doutrina dilacerou o lado oriental do antigo Império
Romano durante mais de um século e provocou uma sagrenta guerra civil, que só terminaria em 843, com a restauração do culto aos ícones na
catedral de Santa Sofia, em Constantinopla, atual Istambul” (MACHADO,
2001, p. 10).
A Reforma Protestante marcou o terceiro ciclo de interdito às imagens no campo religioso, já na Idade Moderna, quando Calvino e Lutero
preparam uma insurreição contra as imagens e um retorno às Sagradas
Escrituras. Enquanto no viés das ciências “[...] Galileu e Descartes fundaram as bases da física moderna e o terceiro momento do iconoclasmo
ocidental” (DURAND, 2014, p. 12).
Para Durand (2014, p. 12) a partir do século 17, o imaginário passa a ser maginalizado, a ser exclcuído dos processos intelectuais. O exclusivismo de um único método, o método, “para descobrir a verdade
nas ciências”. O legado grego de Socrátes, Platão e agora Aristóteles se
firma no pensamento ocidental. O discurso do método, a mecânica de
Galileu idealisou as bases da nova ciência, forjou o mundo da técnica e
se distânciou do imaginário.
Todos esses três ciclos iconoclastas se ancoram numa crença
inabalável no poder, na superioridade e na transcendência da palavra,
sobretudo da palavra escrita, e nesse sentido não é inteiramente descabido caracterizar o iconoclasmo como uma espécie de “literolatria”: o
culto do livro e da letra. Para o iconoclasta, a verdade está nos Escritos;
Deus só pode ser representado por meio da Sua Palavra; Deus é Verbo
(MACHADO, 2001, p. 11).
De acordo com Durand (2014, p. 13), os grandes nomes de David
Hume e Isaac Newton impulsionaram o impirismo e com eles esboçou o inicio do quarto ciclo contra as imagens no Ocidente, no
qual ainda estamos mergulhados. E que, “felizmente, ao menos por
enquanto, ele se dá, tal como na sociedade grega antiga, apenas
no plano do pensamento filosófico, ou seja, nesse terreno que poderíamos definir genericamente como sendo o do neoplatonismo”
(MACHADO, 2001, p. 15).
Hoje, a visão das massas populares reunidas ao redor dos aparelhos de televisão é considerada, por um número bastante expressivo de
52
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
nossos intelectuais, tal qual aquela atribuída por Moisés ao povo judeu
reunido em torno do bezerro de ouro: uma insuportável manifestação
da iconofilia e da idolatria, um culto ao demônio, que se deve a qualquer
preço combater (MACHADO, 2001, p. 15).
Conforme Durand (2014, p. 14) o positivismo e as filosofias das
histórias foram frutos de um casamento entre o factual dos empiristas e o rigor iconoclasta do racionalismo clássico. “As duas filosofias que desvalorizarão por completo o imaginário, o pensamento
simbólico e o raciocínio pela semelhança, isto é, a metáfora, são o
cientificismo [...] e o historicismo [...]” (DURAND, 2014, p. 14). Para
essas doutrinas, só se conhecem a verdade comprovadas através
dos métodos científicos e pelas causas reais expressas nas formas
concretas dos eventos históricos.
A heurística do Imaginário ocidental
Os acervos imaginários da cultura dos povos estão recheados de
narrativas míticas, no mundo ocidental não é diferente, mesmo que tenha sofrido ao longo dos séculos as intervenções dualísticas do pensamento filosófico e do monoteismo religioso, que permeiaram um sistema binário de dialética, moldando a estrutura antropológica dos mitos.
“O imaginário neste sentido é um tecido complexo de afetos e de representações que permite, por sua vez, exprimir significações e produção
de sentido correndo mesmo o risco de ser objeto igualmente de erros e
de ilusões à semelhança” (ARAÚJO, ALMEIDA, 2018, p. 19).
A percepção da ação pelo homem ocorre quase que paralelamente
à construção da memória, marcada indelevelmente pelo imaginário,
que é estruturador, diga-se de passagem.
É, porém, a memória profunda do passado em suas múltiplas ilações que permite perceber o tempo. Para haver memória é preciso
haver imagem. Memória e imaginação residem lado a lado na alma
humana. Os acontecimentos passados são evocados pela memória
através de uma atitude deliberada que põe em ação ou movimento
a própria mente humana (CAVALCANTI, 2017, p. 14).
53
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A partir da leitura de Gilbert Durand podemos destacar algumas
questões importantes sobre a problemática do iconoclasma no Ocidente. Para o autor apesar da tão proveitosa concorrência do imaginário da
Reforma e Contra Reforma que ajudou a ruptura definitiva com a cristandade medieval, as “Guerras das Religiões” e a Guerra dos 30 Anos
arruinaram com o imaginário, “[...] que cobriu de sangue a Europa até
o tratado de Wesfália (1648) – obrigou os valores visionários do imaginário a procurarem refúgio longe dos combates fratricidas das Igrejas”
(DURAND, 2014, p. 26).
Claro que este imaginário autônomo junto com a desvalorização
dos seus suportes confessionais enfraqueceram os poderes da
imagem, e o preço desta autonomia foi, com freqüencia, o neo-racionalismo dos filosófos que, no século 18, retomaram a estético de
um ideal clássico. O neoclassicismo reintroduz o desequilíbrio inococlasta entre os poderes da Razão e a parte devida à imaginação
no século das Luzes. Objetivando desde logo uma funcionalidade
pura, o símbolo das arquiteturas austeras é substituído pela alegoria insípida (DURAND, 2014, p. 26-27).
No período moderno o imaginário se caracterizava na racionalização do conhecimento e no progresso, baseado num imaginário profético, arquitetado na crença e na moral. Na pós-modernidade a imagem
não é mais associada ao pensamento profético, à projeção assegurada do futuro já não mais funciona. Na pós-modernidade as imagens do
presente são acentuadas, ocorre à abolição das distâncias objetivas e
emerge uma nova relação com o tempo e o espaço, de simultaneidade,
a partir desse momento explode a “civilização da imagem”. A partir daqui
as relações humanas se transformam.
No século XX, na civilização da imagem, com o fim da galáxia de
Gutenberg, deu-se lugar ao reino da informação e da imagem visual,
que Durand (2014, p. 31) chama de “a revolução do vídeo”.
O que não deixa de ser extraodinário é que esta explosão da “civilização da imagem” tenha sido um efeito, e um “efeito perverso”
(que contradiz ou desmente as conseqüências teóricas da causa),
do iconoclasmo técnico-científico, e cujo resultado triunfante será a
pedagogia positivista (DURAND, 2014, p. 31).
54
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A explosão da imagem na modernidade, a redifinição dos limites
da razão e da crítica ao racionalismo, passa a ter um papel fundamental
na iconoclastia atual. “Se antes as querelas em torno da imagem eram
expressas sobretudo no domínio da teologia e da religião, a cultura midiática criou seus próprios ídolos bem como atualizou rituais de destruição de imagens” (KLEIN, 2009, p. 5).
O impulso de levar para o plano da imagem todos os aspectos da
vida humana tornou-se quase irresistível devido à disponibilidade
dos meios e à virulência assumida pela reprodução de imagens midiáticas em nosso cotidiano. A vida social só se legitima pela visibilidade midiática, em um processo maníaco de devoração de imagens
pelo homem, ou do homem pelas imagens (BAITELLO JR., 2005
apud KLEIN, 2009, p. 7).
Portanto, a verdade é que a “civilização da imagem” permitiu a
descoberta dos poderes da imagem há tanto tempo recalcados. De
maneira que “[...] aprofundou as definições, os mecanismos de formação, as deformações e as elipses da imagem. Por sua vez, a “explosão vídeo”, fruto de um efeito perverso, está prenhe de outros “efeitos perversos” e perigosos que ameaçam a humanidade do Sapiens”
(DURAND, 2014, p. 118).
Considerações finais
No curso da história as imagens sempre foram associadas às atividades marginais, esteve sempre no contexto underground, isto é, em
um ambiente cultural que foge dos padrões. No âmbito institucional da
religião as imagens foram toleradas com restrições pelas autoridades.
Portanto, o problema central das imagens na tradição ocidental é epistemológico.
A lógica, a razão e o raciocínio diminuíram o poder cognitivo da
imagem, nem mesmo os avanços técnicos que permitiram a produção
e reprodução das imagens foram suficientes para reverter à atuação da
iconoclastia religiosa.
55
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Na atualidade a imagem ganha outro contorno, um dos responsáveis pela mudança de paradigma é Gilbert Durand, que considera o
imaginário um conjunto de imagens que constitui o capital pensado do
homo sapiens. O imaginário, para ele, é o grande denominador onde se
encontra todas as criações do conhecimento. Tal entendimento abrange todo o universo que foi criado pelo pensamento humano, fundindo
em imaginação e razão, pensamento e criação, ou seja, o “museu” –
um acesso que guarda as memórias antropológicas, que denominamos o imaginário.
56
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ARAÚJO, Alberto Filipe. ALMEIDA,
Rogério de. Fundamentos
metodológicos do Imaginário:
mitocrítica e mitanálise. In: Téssera,
v. 1, n. 1, Uberlândia-MG, p. 18-42,
2018.
CAVALCANTI, Carlos André. Prefácio.
In: WUNENBURGER, Jean-Jacques.
ARAÚJO, Alberto Filipe. ALMEIDA,
Rogério de. Os Trabalhos da
Imaginação: Abordagens teóricas e
modelizações. João Pessoa: Editora
UFPB, 2017.
DURAND, Gilbert. Imaginário: Ensaio
acerca das ciências e da filosofia da
imagem. Tradução Renée Eve Levié,
6. ed. Rio de Janeiro: Editora Difel,
2014.
KLEIN, Alberto. Destruindo imagens:
configurações midiáticas do
iconoclasmo. In: E-compós, v. 12,
n. 2, Brasília-DF, p. 1-12, 2009.
MACHADO, Arlindo. O quarto
iconoclasmo e outros ensaios
hereges. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2001.
WUNENBURGER, Jean-Jacques. O
imaginário. Tradução Maria Stela
Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola,
2007.
[ Volta ao Sumário ]
57
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a influênCia da
meditação na saúde
Ana márcia Pereira Lima Albernaz
Como referenciar este capítulo:
ALBERNAZ, Ana Márcia Pereira Lima. A influência da meditação na saúde. In:
MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020,
p. 58-66.
Ana Márcia Pereira Lima Albernaz1
1. Introdução
Na atualidade, a humanidade atravessa um momento crítico devido ao do consumo ao consumo promovido pelo sistema capitalista que
traz consequências drásticas para a sociedade moderna. O resultado
dessa mudança no estilo de vida da população brasileira é o surgimento
de diversas enfermidades como: depressão, ansiedade, diabetes, hipertensão, entre outras.
No seio deste mundo caótico vem emergindo, o crescente interesse em estudos científicos sobre meditação. Esta atenção por parte dos
pesquisadores pela dimensão espiritual curativa, tem levado a investigações, que apontam constatações de que as práticas e crenças espirituais dos pacientes, influenciam o cuidado e a recuperação da saúde.
Diante desse contexto relacionado às problemáticas de saúde do
homem moderno, e a necessidade de religação com o sagrado, formulamos os seguintes questionamentos: Qual a influência de meditação
na saúde das pessoas? Que tipos de meditação são utilizados pelos
praticantes? Desse modo os objetivos do estudo são: compreender a
influência da meditação na saúde dos indivíduos e descrever alguns os
tipos de meditação que podem influenciar no bem estar das pessoas.
2. Breve histórico sobre meditação
Neste breve histórico iremos apresentar que foram os primeiros
xamãs, os antepassados da prática meditação e de outros mestres espirituais. Sendo assim, a história da pratica da meditação, advém deste a pré-história, na época de “domesticação” do fogo. Segundo Assis
Universidade Federal da Paraíba. Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões. E-mail: anamarcia.professora@gmail.com
1
59
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
(1995), no momento da caça ocorre o surgimento da meditação, quando
caçadores primitivos impossibilitados de arcos possantes para abater a
presa, deveriam aproximar-se dessas o máximo possível. Assim, houve
a necessidade de silenciar a mente de todos os pensamentos, mantendo a atenção e esperando o momento exato de confrontar a presa. No
enfrentamento com o inimigo, continua a discorrer que os guerreiros
primitivos também necessitavam destas habilidades. As artes marciais,
advindas do extremo oriente, seriam os descendentes contemporâneos
destas práticas ‘meditativas’, pois todas dependem de um êxtase meditativo, do esvaziamento da mente e das ansiedades autoconscientes e
bloqueadoras de ações.
Em busca de benefícios psicossomáticos, os nativos procuram desenvolver dois quesitos: o primeiro seria uma melhor estratégia no momento da caça e o segundo, responder de forma positiva aos desafios
que afligiam seus antepassados, diante da luta pela sobrevivência em
ambiente hostil. Assim, descreve os antropólogos que os primeiros xamãs são os antepassados de meditação e de outros mestres espirituais
(ASSIS, 1995).
Danucalov (2009), cita sobre a saga Muhammad ibn abdallah, hoje
conhecido como Maomé, dito como pessoa extremamente religiosa,
absorto por horas em intensas preces. No ano 610 Dc, Maomé foi arrancado do sono e sentiu-se tomado por uma força divina. Tendo que
recitar algumas “verdades divinas”, (escritos que seria chamado Corão).
As aparições do Anjo Gabriel perduraram por 23 anos, e a totalidade
desses escritos e relata que Maomé mergulhava em intenso estados de
transe, chegando a perder a consciência, apresentava suores profundos, mesmo em dias muito frios, e alegava um peso interior, unido a um
estranho sofrimento, que o obrigava a adotar uma posição semelhante, á realizada por alguns místicos(baixando a cabeça entre os joelhos e
entrando em estado alterado de consciência). Estudos sobre os efeitos
da prática da prece e da meditação, elucida sobre a origem da prática
da oração do Rosário, que foi introduzida na Europa e trazida pelos árabes, durante o período das cruzadas. O relevante é que esta prática da
oração do Rosário em que os árabes trouxeram para a Europa, supostamente a conheceram através dos monges tibetanos e de professores
de yoga da Índia.
60
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A história mais conhecida sobre a meditação é a de Sidarta Gautama, após muitos anos de peregrinação em busca da verdade, dirigiu-se
para debaixo de uma árvore, (árvore de tradição bramânica a fícus religiosa). Sidarta decidiu; que sairia debaixo daquela árvore se fosse lhe
revelada a Verdade do seu destino. Deu-se o começo de sua pratica
meditativa, na tentativa de decifrar os mistérios da vida e da morte, e
de compreender sobre as injustiças mundanas e a realidade do divino,
compreender o passado e o presente, tentando ultrapassar a ordem
temporal. Porém, o príncipe das trevas, Mara, na intenção de impedir
que Sidarta alcançasse a transcendência, tentava o futuro Buda de todas as formas, por meio de estratagemas, produzir visões de sexo, poder, enfim todos os tipos de ilusões. O pretendente iluminado resistiu,
manteve intacto e decidido a alcançar seu propósito. Após muita resistência, Sidarta Gaudama afungentou Mara e seus demônios e encontrou a Verdade suprema (DANUCALOV, 2009).
3. Conceituando meditação
O Ministério da Saúde conceitua Meditação, como Prática mental
da medicina tradicional chinesa, isto é, uma prática mental, que favorece ao desenvolvimento cognitivo, auxilia pessoas no equilíbrio do humor,
possibilita maior conexão entre mente, corpo e mundo exterior, baseia-se
em treinar e focalizar a atenção de modo não analítico ou discriminativo,
a reduzir o pensamento repetitivo e efetivar uma reorientação cognitiva.
Sendo assim, a Portaria Ministerial nº 849 (2018, p. 7) preconiza que:
A meditação desenvolve habilidades para lidar com os pensamentos e observar conteúdos que emergem a consciência ensinando
a não se deixar influenciar poe eles e compreendendo-os como
fluxos mentais. Coloca o indivíduo num local de equilíbrio e leveza,
no centro de si mesmo.
Assim, a meditação integra o rol de novas práticas institucionalizadas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares
no SUS: Práticas Integrativas e Complementares em Saúde.
61
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A respeito da meditação, os pesquisadores Varela, Thompson e
Rosch (2003), argumentam que o seu propósito é levar a pessoa a tornar-se atenta, experimentar o que a mente está fazendo, enquanto ela
o faz estar junto com a própria mente. Em outras palavra:
O ato de meditar como dimensão fisiológica, é caracterizada por um
estado alterado de consciência, no qual o organismo encontra-se
em estado holometabólico, dominado na grande maioria das vezes
pelo sistema autônomo parassimpático, estando ainda o indivíduo
em vigília (DANUCALOVE; SIMÕES, 2009, p. 223).
Os supracitados autores, esclarecem que uma das escolas de mediação mais conhecidas é a Meditação Transcendental – MT, esta é uma
das técnicas mais populares, foi criada por Maraishi Mach Logui; um mestre indiano que desembarcou no Ocidente e popularizou a meditação por
meio de artistas e celebridades de cinema. Consiste principalmente em
concentrar-se em um MT específico e repeti-lo inúmeras vezes.
Outra escola que chegou ao Ocidente, também originária da índia
é a Meditação do Yoga, que consiste na observação dos pensamentos,
para que seu fluxo incessante seja reduzido no qual o yogue permanece
como um observador, como que projetando em tela em branco os pensamentos, ideias, imagens e cores que não cessam em nossas mentes.
Os autores supracitados referem à existência de seis formas diferentes de meditação:
a)
Concentração, que é a forma mais genérica de treinamento
mental, e encerra muitas aplicações não necessariamente
espirituais. Podemos meditar no momento em que se escolhe um único ponto escuro em uma parede, fixando-se a
atenção de forma intensa nesse mesmo ponto;
b) Estado aberto, que é a forma de meditação onde o meditador
torna-se um mero expectador dos pensamentos intrusos
que invadem seu ser, estando atento a todos, porém não se
deixando levar por nenhum deles;
c)
Destemor, a partir da qual o praticante esforça-se por trazer
à mente uma certeza destemida, assim como uma confiança
profunda e inabalável de que nada poderá perturbá-lo. Sem
62
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
d)
e)
f)
hesitação, o meditador afirma internamente não ter aversão
a nada, reforçando de forma mental a ideia: ‘não tenho nada
a ganhar, não tenho nada a perder;
Compaixão, é a partir da qual alguns praticantes de meditação buscam a produção de um intenso sentimento de amor e
compaixão por todos os seres vivos levando à mente de que
todos os seres são bons e inspiram felicidade;
Devoção, é a forma na qual o praticante medita, estabelecendo como foco principal a devoção incondicional ao seu mestre ou a um ícone religioso que represente a sua doutrina;
Visualização é a uma forma de meditação na qual o praticante
pode construir em sua tela mental, uma imagem detalhada
ou especificada.
Geralmente, a posição utilizada para meditar em qualquer uma
das escolas é sentada com a coluna ereta, com os braçosnreoaadd0se
as mãos sobre os joelhos ou pés. Porém o praticante pode adotar qualquer outra postura, sendo importante permanecer consciente durante
toda a prática.
4. Benefícios da meditação
Na década de 70, Dr. Herbert Benson, cardiologista e professor da
(Faculdade de Medicina da universidade de Harvad, em sua obra que
tornou Best; Seller: The Relaxation Response, abordou os benefícios da
meditação em seus pacientes. A motivação para esta investigação foi
após observar que pacientes hipertensos, queixavam se de fraqueza e
vertigem, e que a pressão sanguínea quando aferida em seu consultório eram de valores mais altos. O referido médico percebeu que tais
alterações ocorriam devido a ansiedade que os pacientes apresentavam
diante do médico. Sendo assim, seu objetivo foi unir dois mecanismos:
(1 ) a meditação e (2) crença filosófica e religiosa. O cardiologista buscou
estabelecer uma ponte entre a fé tradicional, a prática da meditação e
a observação cientifica. Os resultados encontrados foram: a influencia
63
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
do fator fé, podia reduzir as dores causadas por angina ou até elimina a
necessidade de intervenção cirúrgica. E 80% dos casos reduzir a pressão
arterial e controlar problemas causados por hipertensão.
Assis (1995), nos momentos de meditação, os impulsos correlatos
do meditador estimulam o hipocampo direito que em contrapartida estimula a amígdala direita. A sensação de leveza, e prazer é o resultado
de uma estimulação das porções laterais do hipotálamo. Este processo,
realimenta o córtex pré-frontal reforçando todo o sistema em uma concentração progressiva que vai se intensificando em relação ao objeto.
Devido as interconexões que envolvem o sistema límbico, pode evitar
alterações emocionais de grande intensidade podendo assim contribuir
para a saúde física e mental.
5. metodologia
Pelo caráter plural do objeto deste estudo, buscou-se à luz das
Ciências das Religiões, na sua linha de pesquisa Religiosidade e Saúde,
também no seu viés multidisciplinar, analisar a adoção da Metodologia VEL e a Meditação, como práticas da Educação Emocional. Partindo
dessa abordagem foi feita a opção pela investigação de natureza qualitativa com partindo de uma abordagem bibliográfica.
Acerca da investigação qualitativa, pode ser dito, segundo Yin
(2010), que estuda significados, representa opiniões e perspectivas,
consegue ser mais abrangente e contextualizada, vai revelar conceitos
existentes ou emergentes e usa múltiplas fontes.
Já Sampieri; Collado e Lucio (2013, p. 33), afirmam que a pesquisa qualitativa, em sua etimologia, por se basear em uma lógica e em
um processo indutivo (explorar e descrever, e depois gerar perspectivas
teóricas) é bastante diversa e por demais abrangente. Por assim pensar, no entendimento de Creswell (2014), a importância se dá verdadeiramente no processo de pesquisa, bem como os procedimentos que a
envolvem, que por sua vez, vão delinear a Investigação qualitativa, bem
como o trabalho do pesquisador e o seu resultado. Assim, o autor vai
afirmar que:
64
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Sobre a sua abordagem bibliográfica, Vergara (2007), aponta para
a concepção de que diz respeito ao conjunto de conhecimentos humanos reunidos nas obras literárias. Este tipo de pesquisa conduziu ao ato
de ler e de selecionar trechos que sejam relevantes para ao desenvolvimento da pesquisa. Além de buscamos a realização da pesquisa ancorada nas literatura cientifica, a qual feitas a partir da leitura, fichamento
dos e resumos de alguns autores renomados, dentre eles Possebon
(2017); Gonsalves (2015) e Vergara (2007), por exemplo.
Salomom (2004), refere que a pesquisa bibliográfica se fundamenta em conhecimentos de outras ciências e técnicas empregadas
de forma metódica envolvendo a identificação, localização e obtenção
da informação, e redação do trabalho estudado esse processo solicita
uma busca planejada de informações bibliográficas para elaborar e documentar um trabalho de pesquisa cientifica, lembrando que os teóricos
reforçam a importância da interdisciplinaridade
6. Conclusão
Portanto, a prática da meditação tem sido utilizada para o controle do estresse e outras doenças crônicas, contribuindo na melhora da
saúde, qualidade de vida e bem estar físico e mental e espiritual. Alguns
tipos de meditação que são utilizados praticantes: concentração, estado
aberto, destemor, compaixão, devoção e visualização.
Sendo assim, ressaltamos que a meditação é uma prática milenar,
de extrema relevância, tendo em vista que, estudos apontam que essa
prática meditativa já era realizada por nossos ancestrais, em busca da
conexão com o sagrado. Além disso, a meditação não se restringiu apenas a história do oriente com Sidarta Gautama( Buda) mas sim, desde
os períodos da pré-história, nas culturas xamânicas, nas artes marciais
e com os personagens do cristianismo.
65
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ASSIS,Denise de, Os benefícios da
meditação: melhora na qualidade
devida, no controle do stress e
no alcance de metas. Lavras/
MG,1995. https://revistas.pucsp.
br/index.php/interespe/article/
viewFile/17445/12968 Acesso em
abril 2019
glossario-tematico.pdfhttp://
portalarquivos2.saude.gov.br/
images/pdf/2018/marco/12/
glossario-tematico.pdf
CRESWELL, J. W. Projeto de pesquisa:
métodos qualitativo, quantitativo e
misto. 3.ed. Porto Alegre: Artmed/
Bookman, 2010.
SAMPIERI, R. H.; COLLADO, C. F.;
LUCIO, M. P. B. metodologia de
pesquisa. 5 ed. Porto Alegre: Penso,
2013.
DANUCALOV, Marcelo Árias
Dias; SIMÕES, Roberto Serafim.
Neurofisiologia da meditação. São
Paulo, Phorte, 2009.
VARELA, F; THOMPSON E; ROSCH,
E. A mente incorporada: Ciências
cognitivas e experiência humana.
Porto Alegre: Art. Med., 2003.
Práticas Integrativas e
Complementares em Saúde
Glossário Temático ministério
da saúde Secretaria-Executiva
Secretaria de Atenção à Saúde
Tradução dos Termos para Espanhol
– Inglês Projeto de Terminologia
da Saúde – B -rasília – DF 2018.
http://portalarquivos2.saude.gov.
br/images/pdf/2018/marco/12/
VERGARA, Silvia Constant. A pesquisa
na metodologia e produção científica.
São Paulo, Martins Fontes, 2007
SALOMON, D. V. Como Fazer uma
monografia. 11 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
YIN, Robert K. Pesquisa qualitativa –
do início ao fim. Porto Alegre: Penso,
2016. ALMEIDA Alexander MoreiraLucchetti Giancarlo; Panorama das
pesquisas em ciência,
[ Volta ao Sumário ]
66
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a liteRatuRa
enCantada dia de Reis
xukuRu do oRoRuBá
Natally Araújo da Silva Galindo
Como referenciar este capítulo:
GALINDO, Natally Araújo da Silva. A literatura encantada dia de reis Xukuru do
Ororubá. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais
do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade:
Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 67-77.
Natally Araújo da Silva Galindo1
Introdução
Este artigo é proveniente de um recorte extraído de um estudo
sobre pontos e performances de Toré realizado junto ao povo Xukuru.
Trata-se da monografia intitulada por A literatura dos encantados: performance e etnografia do povo Xukuru do Ororubá, apresentada no ano de
2017, na UFRPE-UAG, para obtenção do grau de licenciada em Letras
– Português, Inglês e suas respectivas Literaturas.
Este trabalho versa sobre Pontos ou cantos e traços de performances de Toré, com o intuito de compreender como são reveladas
características etnográficas dos Xukuru do Ororubá, povo indígena que
habita no município de Pesqueira- PE. Isso a partir da celebração do Dia
de Reis, ocorrida no ano de 2017.
Através de pesquisa etnográfica foi possível conceber os Pontos de
Toré como A Literatura Encantada, que permeia o universo religioso Xukuru. Para tanto, utilizou-se como aporte teórico Candido (1996; 2006),
para embasar os estudos literários; Hall (2005), para tratar da dinamicidade identitária; Peirano (1995), no que tange os estudos etnográficos e
Zumthor (2007; 2010), para análise das performances da voz e do corpo.
O presente texto está disposto em duas seções, na primeira é analisada a dimensão religiosa do Toré Xukuru, sob um viés literário, e na
segunda é feita uma descrição e análise teórica da celebração ritualística do Dia de Reis.
Graduada em Letras – Português, Inglês e suas respectivas Literaturas, pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de Garanhuns (UAG);
Pós-graduada em Metodologia do ensino de língua portuguesa e Literatura, pela Faculdade Educacional da Lapa (FAEL), polo- Arcoverde- PE; Mestranda em Educação Contemporânea, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Centro Acadêmico do Agreste
(CAA); pesquisadora no grupo de pesquisa no Laboratório de Antropologia da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: natallyaraujo_2010@hotmail.com. Orientadora:
Profª. Drª. Marcia Felix da Silva Cortez. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4091073515532694.
E-mail: marciafelixuag@yahoo.com
1
68
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Considerando-se essa celebração, buscou-se respostas para a seguinte problematização: Pontos e performances de Toré revelam traços
etnográficos do povo Xukuru, contribuindo para o fortalecimento de sua
identidade?
É imprescindível que a memória do povo Xukuru seja preservada
e reconhecida. Estudar os Pontos ou canções de Toré aponta ser uma
possível maneira de contribuir para esse fim, uma vez que, grande parte
deles é apenas resguardada pela oralidade. Nesses termos, objetivou-se
incitar o reconhecimento e valorização dos Pontos de Toré, enquanto
produção artística e literária, essencial para o fortalecimento identitário
e cultural da etnia em pauta.
Nesses parâmetros, espera-se ser plausível, contribuir para estudos sobre performance, etnografia e literatura. Principalmente, os voltados ao povo Xukuru, frisando que cultura é algo dinâmico, ou seja, está
em constante transformação, embora, esse ideal seja negado por aqueles
que tentam deslegitimar as culturas indígenas, porque elas não atendem
ao imaginário do índio estereotipado, arraigado a uma condição de subalternidade, que vem sendo propagada desde o período colonial.
1. Literatura encantada: Toré Xukuru do Ororubá
O Toré é dotado de plurissignificação para os membros do povo
Xukuru do Ororubá, ele pode significar ritual, dança, religião e união.
Para compreender a sua dimensão simbólica, é essencial pontuar que:
O Toré é uma crença de origem muito especial, que faz o povo indígena acreditar que estamos mais próximos do nosso pai Tupã. Com
o Toré podemos preservar nossos costumes e nossas tradições.
Portanto, não podemos deixar o Toré sagrado desmoronar, cair no
esquecimento, porque é através do Toré que o povo indígena adquire forças para viver e para lutar pelos seus direitos. Devemos
procurar manter essas tradições. O Toré representa, para os índios,
a vida, um ato de louvor a Tupã e Tamain, nossa padroeira e mãe.
Enfim, o Toré representa uma purificação em tudo aquilo que nos
cerca (ALMEIDA, 2000, p. 41).
69
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Diante disso, é possível perceber que Toré e religião são dimensões indissociáveis na cultura Xukuru. Os Pontos de Toré se referem às
canções compartilhadas em rituais e danças, assim, é possível compreendê-los como cantos ou canções pertencentes à poesia oral.
Assim, “O texto oral, devido a seu modo de conservação, é menos
apropriável que o escrito; ele constitui um bem comum no grupo social
em que é produzido. Nesse sentido, ele é mais concreto que o escrito”
(ZUMTHOR, 2010, p. 258).
É importante destacar que a dança e o ritual de Toré também são
elementos correlacionados, assim, expressar os limites entre ambos
é uma tarefa que requer bastante atenção. Contudo, algumas de suas
particularidades é que durante o ritual há a realização da pajelança2,
ingestão da jurema3 e, além disso, algumas situações ritualísticas são
restritas, apenas, para indígenas, em determinados casos, por questões
religiosas; já o momento de execução das danças revela-se mais aberto aos não-indígenas. Inclusive, os Xukuru se mostram felizes quando
não-indígenas compõem a dança do Toré, porque eles compreendem
que essa ação significa respeito e soma de forças.
Diante disso, cabe ressaltar que os Pontos de Toré do povo Xukuru
não apenas comunicam, mas também expressam seus traços etnográficos, através do canto e dança, do corpo e da voz. O próprio processo de
criação literária de um Ponto de Toré é uma particularidade cultural, pois
ele é estabelecido no plano religioso, uma vez que, são os encantados
que revelam os cantos para aqueles que possuem o dom de ouvi-los
e, posteriormente, os ensinarem para os demais indígenas. Portanto é
através do compartilhamento que os Pontos de Toré configuram um dos
seus maiores propósitos, o da união. Assim, cabe pontuar que
Ritual realizado pelo pajé, liderança espiritual da etnia, para louvar Tupã, entre outras
entidades espirituais, além disso, a pajelança é feita para possibilitar o encontro com os
encantados, na busca de conselhos e forças para as lutas no Território Xukuru.
3
É uma planta sagrada com a qual se faz uma bebida de mesmo nome, através de sua
ingestão os Xukuru acreditam ser possível entrar em contanto com os encantados, entidades religiosas, espíritos de guerreiros falecidos. “Portanto, a Jurema (Mimosa hostilis)
e sua complexa forma religiosa, que é árvore sagrada e que é espaço mítico sagrado, nos
mostrarão o quanto é possível revelar uma teologia nordestina brasileira indígena, tipicamente catimbozeira” (OLIVEIRA, 2011, p. 1083).
2
70
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Os elementos individuais adquirem significado social na medida em
que as pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas,
agindo, permitem por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se,
encontrando repercussão no grupo. As relações entre o artista e o
grupo se pautam por esta circunstância e podem ser esquematizadas do seguinte modo: em primeiro lugar, há necessidade de um
agente individual que tome a si a tarefa de criar ou apresentar a
obra; em segundo lugar, ele é ou não reconhecido como criador ou
intérprete pela sociedade, e o destino da obra está ligado a esta
circunstância; em terceiro lugar, ele utiliza a obra, assim marcada
pela sociedade, como veículo das suas aspirações individuais mais
profundas (CANDIDO, 2006, p. 35).
Diante disso, cabe destacar também que segundo Candido
(1996, p. 11) “A literatura é o conjunto das produções feitas com base
na criação de um estilo que é finalidade de si mesmo e não instrumento para demonstração ou exposição”. Nesses termos, a literatura Xukuru sobrepuja interesses artísticos ou financeiros porque está alçada
nos liames da fé.
2. Dia de Reis Xukuru
O dia 06 de janeiro é dedicado à comemoração do Dia de Reis, no
calendário de festividades Xukuru, esse evento ocorre na aldeia Pedra
D’Água. No ano de 2017, ele começou por volta de 9 horas da manhã, o
cacique Marcos recebeu as bênçãos do pajé, bebeu jurema e, em seguida, deu-se início ao ritual de pajelança, no qual foram cantados vários
Pontos de Toré, essencialmente, os da linha4 da Jurema e, também, de
Oxóssi, o Rei das matas. Durante o ritual muitas pessoas, incluindo algumas lideranças Xukuru como o cacique, o pajé e o Bacurau receberam
encantados.
A expressão se refere a segmentos, subdivisões, conjuntos de pontos dedicados as entidades espirituais. Por exemplo a linha de Oxóssi, engloba os pontos de Toré destinados
a sua louvação.
4
71
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A aldeia Pedra D´água é um espaço sagrado para etnia Xukuru,
portanto a escolha desse ambiente é de fundamental importância para
celebração do Dia de Reis, pois é o local no qual Chicão5 morou e foi
plantado, além disso, é o lugar onde Marcos recebeu o cacicado.
Primeiramente, foi realizado um ritual de pajelança no terreiro
e outro na Pedra do Reino, como o próprio nome sugere ela é grande
pedra considerada sagrada para o povo em pauta. Durante esse primeiro ritual, uma peculiaridade percebida quanto aos traços de performance durante as incorporações dos encantados foi que além dos braços
esticados e postos um sobre os outros, dos rodopios, corpos trêmulos,
pisadas mais fortes ao ritmo dos Pontos que se intensificavam, dos choros, gritos, corpos lançados bruscamente ao chão ou sobre quem estivesse próximo, características ocorridas em outros momentos, no Dia
de Reis alguns índios estavam emitindo sons peculiares a de pássaros.
Isso pode ter sido propício pelo contexto espacial, ou seja, na natureza:
As sociedades humanas exploram, mais ou menos rigorosamente, essas virtualidades, privilegiando institucionalmente certos lugares. Quando intervém uma norma ritual, ela ata uma cadeia de
identificação entre o espaço e o tempo sacralizados, mimetizando
assim alguma eternidade utópica. [...] todas as culturas possuem ou
possuíram seus lugares sagrados, umbilicais, enraizando o homem
na terra e testemunhando que ele dali saiu; e penso que nunca li que
algum desses lugares não tenha sido ligado a alguma prática encantatória ou poética. Subsiste, nas sociedades diferenciadas, mais
que traços desse antigo estado. As práticas religiosas contribuem
para mantê-lo. Mas, ao fim mesmo das laicizações de toda ordem,
a sacralidade se interioriza, e se camufla em simples especialização:
assim, por todo mundo, lugares preparados para dança e a execução vocal que geralmente a acompanha (ZUMTHOR, 2007, p. 162).
O contexto espacial da celebração ritualística do Dia de Reis demostra se perfazer sob a égide citada acima. A aldeia Pedra D’Água e
a Pedra do Reino são consideradas sagradas para os Xukuru, portanto,
Nome pelo qual ficou conhecido o Cacique Francisco de Assis Araújo, uma das maiores
lideranças indígenas do Brasil e do mundo. Ele foi assassinado em 1988, devido a conflitos no contexto da luta pela retomada de terras (NEVES, 2005).
5
72
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
em torno delas se engendram histórias que ligam os índios a esses espaços, principalmente, em momentos ritualísticos.
Após a pajelança iniciou-se a dança do Toré, ao som do memby6,
em seguida começou-se a cantar os Pontos, deles selecionou-se o qual
nomeou-se de Ponto 1 para a análise seguinte.
Ponto 1
Obrigado Orubá e obrigada Orubá, tava sentado na beira do mar
Obrigado Orubá e obrigada Orubá, tava sentado na beira do mar
Obrigado Orubá e a pisada do Orubá, tava sentado na beira do mar
Obrigado Orubá responderam Orubá, tava sentado na beira do mar
Obrigado Orubá e dando viva a Orubá, tava sentado na beira do mar
Obrigado Orubá e obrigada Orubá, tava sentado na beira do mar
Obrigado Orubá e obrigada Orubá, tava sentado na beira do mar
Obrigado Orubá e a pisada do Orubá, tava sentado na beira do mar
Obrigado Orubá responderam Orubá, tava sentado na beira do mar
Obrigado Orubá e dando viva a Orubá, tava sentado na beira do mar
Através do Ponto 1 os Xukuru objetivam dar vivas e agradecer ao
seu Deus o Mestre do Ororubá as virtudes que lhes são concedidas, por
tudo aquilo de bom que ocorre para todos os demais integrantes da etnia em foco e pelas forças fornecidas pelos encantados.
Ao término de cada verso do Ponto repetem-se as seguintes palavras tava sentado na beira do mar. Presume-se que essa referência ao
mar pode ser advinda do fato de que os Xukuru cantam linhas relacionadas ao mar, como a de Iemanjá (rainha do mar) na religião da umbanda.
É cabível acrescentar a informação que o Ponto em questão é cantado, geralmente, no intervalo de tempo situado entre o início e o fim da
dança do Toré. Dada a plasticidade dos textos orais é possível que em
circunstâncias posteriores esse mesmo Ponto sofra alterações, rente,
entre outras questões, à dinamicidade identitária que a cultura indígena,
assim como qualquer outra está sujeita, uma vez que,
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente
é uma fantasia [...] é realmente algo formado, ao longo do tempo,
6
É um espaço considerado sagrado que se destina para a prática de rituais e danças do Toré.
73
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na
consciência no momento do nascimento [...] em vez de falar de
identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento” (HALL, 2005,
p. 38-39).
Diante disso, presume-se que esse seja um dos fatores pelo qual,
“diferente do que se constata em outras ciências sociais, dados etnográficos antropológicos frequentemente são alvo de reanálises” de
acordo com Peirano (1995, p. 51).
Feitas essas considerações, cabe observar que na Fotografia 01,
adiante, é possível perceber a concentração de todos os que estavam
participando dessa dança do Toré, observando na imagem a posição das
bocas e dos corpos dos Xukuru é dedutível o quanto cada gesto é simbólico no contexto em evidência. Nesses termos, sobre a recepção do
texto poético é cabível pontuar o que segue:
O ouvido, com efeito, capta diretamente o espaço ao redor, o que
vem de trás quanto o que está na frente. A visão também capta,
certamente, um espaço; mas um espaço orientado e cuja orientação exige movimentos particulares do corpo. É por isso que o corpo, pela audição, está presente em si mesmo, uma presença não
somente espacial, mas íntima. Ouvindo-me, eu me autocomunico.
Minha voz ouvida revela-me a mim mesmo, não menos – embora
de uma maneira diferente – que ao outro (ZUMTHOR, 2007, p. 87).
Nesses termos, é possível presumir através da fotografia em destaque, assim como nas demais observações feitas, que os índios eram
as pessoas que se mostravam mais concentradas em relação à voz que
deles emanava, considerando-se a presença de não-indígenas na dança. Acredita-se que a recepção do público (que na maioria das vezes demonstrava admiração) presumivelmente, não se daria da mesma forma
como para aqueles já inseridos dentro da cultura em pauta.
74
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Fotografia 1. Toré no Dia de Reis
Fonte: GALINDO, 2017.
Um detalhe importante a ser acrescentado sobre a Fotografia 01 é que muitos dos indígenas que dançavam estavam descalços,
fato simbólico, pois se acredita que a poeira do Toré pode curar muitas
doenças e renovar as energias, o ato de ficar descalço implica também
em um maior contato com a natureza.
Considerações finais
Chegou-se ao entendimento de que os Pontos de Toré compõem a
literatura Xukuru, que não nasce com fins literários ou lucrativos, e sim religiosos, por intermédio dos espíritos de luz ou encantados. É diante disso,
que esses Pontos foram aqui denominados como A Literatura dos Encantados, uma vez que a sua autoria, provém de uma dimensão espiritual.
A literatura Xukuru emerge para todos e tem sido perpassada para
as novas gerações de maneira oral, condição favorável para as transformações dos Pontos de Toré, que podem acompanhar a dinamicidade
75
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que provém da oralidade e mesmo da flexibilização identitária da etnia
Xukuru. Embora, ainda resista um imagético estereotipado de que os
povos indígenas e, respectivamente, suas tradições devam manter-se
inalteradas e aquém de qualquer privilégio da chamada modernidade.
O próprio Ritual do Dia de Reis, em análise, revelou que está passível à atualizações, perante as novas conotações que passou a receber
em torno do cacicado de Marcos. Para exemplificar essa questão é relevante postular que a escolha o dia 06 de janeiro como o primeiro dia do
calendário Xukuru é em si uma reconfiguração ritualística extremamente simbólica, pois é o primeiro dia em que Marcos recebe dos encantos a
missão de ser cacique. Momento propício para rememorar sua posição
de liderança no seio da religião indígena, associada a tradições católicas,
também seguidas pelo povo Xukuru.
Por fim, anseia-se pelo o dia em que o povo Xukuru não tema em
expor sua religião, podendo vivê-la em sua plenitude sem riscos de ser
depreciado ou mesmo perseguido. Espera-se que os rituais indígenas
não sejam mais sufocados pelas vozes do preconceito e da desinformação que as tentam dizimá-los desde a invasão ao Brasil, vulgo
descobrimento.
76
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALMEIDA, Eliene Amorim de. Xukuru
filhos da mãe natureza: uma história
de resistência e luta. Olinda: Centro
Luiz Freire, 1997.
CANDIDO, Antonio. O estudo
analítico do poema. 5. ed. São Paulo:
Humanitas Publicações, 1996.
______. Literatura e Sociedade.
9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2006.
GALINDO, Natally Araújo da Silva.
A Literatura dos Encantados:
Performance e Etnografia do Povo
Xukuru do Ororubá. Trabalho de
conclusão de curso (Monografia em
Literatura) – UFRPE, Garanhuns,
2017. Orientação de Marcia Felix da
Silva Cortez.
HALL, Stuart. A identidade cultural
na pós-modernidade. 10. ed. Rio de
janeiro: dp&a, 2005.
NEVES, Rita de Cássia Maria. Dramas
e Performances: o processo de
reelaboração étnica Xukuru nos
rituais, festas e conflitos. Tese
(Doutorado em Antropologia) – UFSC,
Florianópolis, 2005. Orientação de
Esther Jean Langdon.
PEIRANO, Mariza. A favor da
etnografia. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1995.
SANTOS, Hosana. A religiosidade
Xukuru: dialogando sobre símbolos e
rituais. 2015. Disponível em: <https://
sites.google.com/site/samtappga/
ensaios/hosana>. Acesso em: 18 mar.
2017.
ZUMTHOR, Paul. Performance,
recepção, leitura. 2. ed. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
______. Introdução à poesia oral.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
[ Volta ao Sumário ]
77
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a memóRia simBóliCa
e a místiCa do toRé
dos povos indígenas
taBajaRa da paRaíBa
márcia medeiros Figueiredo
Lusival Antonio Barcellos
Como referenciar este capítulo:
FIGUEIREDO, Márcia Medeiros; BARCELLOS, Lusival. A memória simbólica e a
mística do Toré dos povos indígenas Tabajara da Paraíba. In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 78-91.
Márcia Medeiros Figueiredo1
Lusival Antonio Barcellos2
Introdução
A proposta do artigo é ressaltar a memória simbólica indígena no
ritual do Toré dos Tabajara. A memória evoca ações inconscientes, ressignificando a cultura, a religiosidade e a espiritualidade o que contribui
para o reavivamente desses povos. Para Oliveira, Rosa e Mariano (2017,
p. 06), “[...] a memória é indispensável à renovação permanente da própria cultura, pois faz parte do processo de produção da informação, sendo fundamentada na coletividade (pessoas e instituições)”.
Este texto traz a memória dos Tabajara da Paraíba através dos
símbolos encontrados na dança do ritual do Toré. No momento místico
do Toré, os indígenas entram em contato com elementos simbólicos,
cujos significados evocam sua ancestralidade e isto contribui para o
ressurgimento e fortalecimento de suas tradições, assim como tantos
outros espalhados pelo Brasil. Esse povo está em fase de etnogênese,
isto é, o processo que busca a identidade étnica, a qual está arraigada e
clarificada nos saberes culturais advindos dos anciãos também conhecidos como troncos velhos3.
O estímulo em escrever sobre este assunto partiu de uma questão extremamente pessoal, depois de estudar no curso de graduação
de Pedagogia em Educação do Campo sobre populações camponesas
dentre elas os povos indígenas, os quais se encontram em uma batalha
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bolsista CAPES. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/0864882710933683. E-mail: marcinhamedeiros2@gmail.com.
2
Professor Doutor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e do Programa de PósGraduação em Ciências das Religiões (PPGCR/UFPB). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/9836893918228181. E-mail: lusivalb@gmail.com.
3
Os troncos velhos servem como reserva de memória, de cultura e de religiosidade – trazendo em si um passado real ou imaginado, que passa a fazer parte do presente, informa,
o justifica e o organiza, e não apenas como lembranças ou resgate (ARRUTI, 1995, p. 77).
1
79
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a fim de reaver seus territórios e seus direitos sociais e coletivos, pela
valorização dos seus costumes, tradições, etnia, identidade, espiritualidade/religiosidade, além da busca por melhorias de vida. Segundo Lisboa (2017, p. 79-80),
[...] os povos indígenas estão hoje vivendo um momento histórico
importante de reelaboração da consciência étnica e da autoestima
indígena, uma recuperação do orgulho nativo e da cidadania, acompanhada da retomada de tradições que estavam deixando de ser
praticadas, devido ao preconceito e perseguições que sofriam.
Os Povos Indígenas Tabajara da Paraíba, originários do litoral Sul
da Paraíba, residem nas periferias das cidades de João Pessoa, Alhandra, Pitimbu, Conde e em duas aldeias: Vitória, na Mata da Chica; e Barra
de Gramame, ambas também no município do Conde-PB. Desde o final
do século XIX, não se falava em Tabajara na Paraíba. Esses indígenas foram invisibilizados e silenciados devido às perseguições que sofreram.
Os troncos velhos tinham muito medo de revelar que eram indígenas e
preferiam sabiamente “silenciar” e viver em paz por trás de costumes
que não eram próprios da sua cultura. Nesse contexto:
Podemos dizer que a história do povo Tabajara é similar à de tantas
etnias indígenas do Brasil que buscam afirmação étnica, reconhecimento enquanto povo, direito, dignidade, respeito e, sobretudo,
lutam pela conquista de um território. Esse povo está presente nos
anais da história brasileira até o século XIX, quando cessaram os
registros historiográficos sobre esses indígenas, levando muitos a
acreditar na complexa extinção da etnia na Paraíba. Devido às perseguições, às opressões e aos preconceitos, os Tabajara ficaram silenciados no último século (BARCELLOS, et al. 2014, p. 28).
Com base no estudo etnográfico, a pesquisa foi realizada com
abordagem qualitativa, “porque lidamos com o sujeito histórico e suas
subjetividades, valores, crenças, afinidades, gestos, partilhas, significados, motivos, aspirações, valores, atitudes etc.” (MINAYO, 2003, p. 22).
Como instrumentos de pesquisa a observação participante foi utilizada
no momento da dança do ritual, investigando os significados simbólicos
dos elementos trazidos pelo grupo ou individualmente.
80
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O indígena / A memória / O símbolo
Sabemos que, nos tempos hodiernos, os povos indígenas do Brasil
em especial os indígenas do Nordeste estão passando por um processo
de etnogênese4, devido ao fato de ter vivido um longo período de silenciamento, ou seja, não podiam dizer quem são de verdade e de lutar por
seus direitos de ser indígena. Foram tempos de muito sofrimento em
que os primitivos tinham que esconder suas tradições, mito, língua, cultura, etnia, costumes, espiritualidade / religiosidade e não podiam “gritar” pelas suas terras/territórios, enfim, não lhes era permitido assumir
sua identidade para preservarem suas vidas e não serem dizimados.
De acordo com Lisboa (2017, p. 71):
Esses processos de etnogênese são ainda hoje responsáveis pelo
crescimento contínuo, desde o início desse movimento histórico ainda nos anos 1970, dos assim autodeclarados índios, cada vez mais
numerosos nos censos estatais. O agrupamento em torno de uma
identidade étnica – ou seja, em torno de um vínculo novo e ancestral
ao mesmo tempo – funciona agora como um instrumento político
desses povos frente às ameaças e pressões crescentes (ou em ondas, oscilando conforme os interesses dos mercados e dos projetos
governamentais) sobre seus territórios e modos de vida tradicionais.
O processo de ressignificação desses povos primitivos se dá a
partir de outros povos que conseguiram resistir em parte às opressões
sofridas por muitos donos de grandes propriedades – alguns latifundiários, pois, ao estabelecer uma ligação interétnica conseguem fazer
uma troca de saberes nas suas tradições e costumes, e, assim, interagem de forma espontânea coletando aquilo que considerar “relevante
ou adequado” para levar as suas comunidades indígenas. Para Oliveira
(1998, p. 60),
Populações amazônicas submetidas ao longo de séculos a relações de dominação e
subordinação, e que devido a esse sistema discriminatório já não se identificavam mais
como indígenas–os “caboclos”, ribeirinhos e os chamados “índios civilizados” – passaram
a se reagrupar em torno de identidades étnicas renascidas, reconhecendo em si mesmos
e sobretudo nas relações que travam entre si e com o território um diferencial marcante
perante às formas convencionais da “cultura nacional” (LISBOA, 2017, p. 71)
4
81
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O processo de territorialização não deve jamais ser entendido simplesmente como de mão única, dirigido externamente e homogeneizador, pois a sua atualização pelos indígenas conduz justamente
ao contrário, isto é, à construção de uma identidade étnica individualizada daquela comunidade em face de todo o conjunto genérico
de “índios do Nordeste”. Os pajés Pankararu podem ensinar a comunidades de parentes desgarrados como se faz um “praiá” (cerimonial em que as máscaras dançam representando os “encantados”),
mas cada nova aldeia (assim como cada grupo étnico dali surgido
– como os Pankararé, os Kantaruré e os Jeripancó) irá levantar sua
própria “casa dos praiás”, instituindo a sua própria galeria de “encantados” e instaurando uma relação específica com os “encantados” mais antigos.
Esse momento de ressurgimento provavelmente se concede através das memórias indígenas, as quais são trazidas pelos troncos velhos.
“A memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para
reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais.” (CHAUÍ, 2005,
p. 125).
Existem vários tipos de memórias – biológica, individual, coletiva,
o que contribui para um trabalho com maior agilidade quando é possível
recordar tais lembranças e, por isso, podem-se construir e reconstruir
histórias para que outras gerações possam se apropriar de conhecimentos que não ficarão perdidos e sim recuperados através da informação que alimenta a memória.
A memória pode ser evocada através dos cinco sentidos: paladar,
visão, audição, olfato e tato. Sentidos esses provocativos de processos
comunicativos verbais e não-verbais na linguagem dos sujeitos. Nas
palavras de Barcellos e Farias (2015, p. 56), “[...] a memória é uma categoria essencial para o meu objeto, pois o povo indígena se apropria da
memória para repassar suas tradições às suas gerações. A memória é
um dos elementos utilizado pelo povo Tabajara para construção de sua
história.”
No Brasil, a chegada da Família Real Portuguesa, por volta de
1808, trouxe em sua bagagem cultural a primeira biblioteca e a imprensa, as quais contribuíram de forma bastante positiva para a expansão
de gráficas e editoras de livros o que tornou um negócio muito lucrativo
82
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e também conservador de memórias. Apesar de os donos de empresas estarem voltados para o capital, essa fabricação de livros auxiliou
numerosamente no desenvolvimento do lado intelectual e mnemônico.
Sendo assim:
A memória, como um fenômeno de ocorrências variadas, tem períodos de retração, enquanto outras formas ganham espaço. Nessa
trajetória, Assmann problematiza esse fenômeno a partir das tradições (mnemotécnica, discurso de identidade), das perspectivas
(memória cultural, coletiva, individual) e das mídias (textos, imagens, lugares). Ao longo do livro, analisando suas funções, meios
e armazenadores, apresenta ao leitor os diferentes caminhos que
levam à memória. A memória é, pois, o veículo transmissor da informação e do conhecimento produzido (OLIVEIRA; ROSA; MARIANO,
2017, p. 02).
Falando sobre memória não se podem olvidar os símbolos, os
quais são chamadores de lembranças passadas ou que estejam armazenadas no nosso inconsciente esperando o “gatilho” do despertar e
possa vir à tona quando são “provocadas” ao entrar em contato direto
com determinados objetos que tenham um valor significativo. Nas populações primitivas, acredita-se que possui uma infinidade de símbolos,
os quais estão representados pelos seus maracás, cocares, indumentárias, artefatos, vestimentas, música, dança, dentre outros constituintes,
cada qual com suas peculiaridades.
Segundo Eliade (2002), “uma característica essencial do símbolo
é a sua multivalência, ou seja, a capacidade que possui de expressar simultaneamente um número de significados cuja relação não é manifesta no plano da experiência imediata” (GOMES, 2013, p. 24). Lévi-Strauss
(2008, p. 65) explica a natureza simbólica de sistemas de parentesco
em 1945:
Porque são sistemas de símbolos, os sistemas de parentesco fornecem ao antropólogo um campo privilegiado, no qual seus esforços
quase (e insistimos no quase) atingem os da ciência social mais desenvolvida, isto é, a linguística. Mas a condição desse encontro, de
que se pode esperar uma melhor compreensão do homem, é jamais
perder de vista o fato de que, tanto no caso do estudo sociológico
83
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
como no do estudo linguístico, estamos em pleno simbolismo. E se
é legítimo, até inevitável, em certo sentido, recorrer à interpretação
naturalista para tentar compreender o surgimento do pensamento
simbólico, uma vez dado este, a explicação deve mudar radicalmente de natureza, tanto quanto o fenômeno recém-surgido difere de
todos os que o precederam e prepararam.
Nesta passagem significativa, o próprio símbolo fala através
de uma linguagem não-verbal que se tornará verbal (falada/escrita).
O sentido simbólico é bem relativo, e, provavelmente, terá uma representatividade a partir da cultura que o indivíduo estar inserido. Alves
(2010) afirma que, “[...] os símbolos se transfiguram, uma vez que saem
do plano do imaginário para se tornarem aspectos do mundo real”. Segundo Pitta (2005, p. 18),
[...] o símbolo é todo signo concreto evocando, por uma relação natural, algo ausente ou impossível de ser percebido. É uma representação que faz “aparecer” um sentido secreto. Os símbolos são
visíveis nos rituais, nos mitos, na literatura, nas artes plásticas, etc.
Na cultura dos povos indígenas, o ritual do Toré é um símbolo de
indianidade de todas essas populações no Brasil; a dança tem um significado muito forte nas suas lutas e celebrações além de conter outros
elementos bastante representativos como o cocar, maracá, vestimentas, instrumentos, adornos, toadas, o ritmo dos passos de dança através da música, tudo repleto de ancestralidade e de uma importância ímpar para tais povos que sentem no momento místico/sagrado da dança
as energias da “mãe natureza e dos encantados”.
O ritual místico da dança do Toré Tabajara
A história da maioria dos povos indígenas, seja no Brasil ou em
qualquer região no caso do Nordeste e até mesmo na Paraíba, é marcada por muitas lutas: de territorialidade, etnia, costumes, cultura, tradições; são inúmeros embates para permanecer vivo todo esse arcabouço histórico dessas populações, a fim de que possam ser repassados
84
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a cada geração seguinte e assim continue vivo todo esse aparato de
tradições indígenas os quais se tornam patrimônios histórico-culturais.
Baniwa (2006, p. 39 apud LISBOA 2017, p. 80) esclarece que:
Os povos indígenas do Brasil vivem atualmente um momento especial de sua história no período pós – colonização. Após 500 anos de
massacre, escravidão, dominação e repressão cultural, hoje respiram um ar menos repressivo, o suficiente para que, de norte a sul do
país, eles possam reiniciar e retomar seus projetos sociais étnicos
e identitários. Culturas e tradições estão sendo resgatadas, revalorizadas e revividas. Terras tradicionais estão sendo reivindicadas,
reapropriadas ou reocupadas pelos verdadeiros donos originários.
Línguas vêm sendo reaprendidas e praticadas na aldeia, nas escolas
e nas cidades. Rituais e cerimônias tradicionais há muito tempo não
praticados estão voltando a fazer parte da vida cotidiana dos povos
indígenas nas aldeias ou nas grandes cidades brasileiras.
Os indígenas Tabajara significa “Senhor da Aldeia” pela linguagem
tupi (BARCELLOS; FARIAS; CÓZAR, 2015). Barcellos et al (2014, p. 30) relata a história indígena do povo Tabajara através do Cacique geral Ednaldo:
[...] junho de 2006 tem início a luta com a reunião dos troncos velhos que viveram a história, levantamento da documentação histórica de etnia (mapa da sesmaria da Jacoca); 2007, Ano das Alianças,
começamos a consolidar alianças com o movimento indígena e indigenista, como o Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA),
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste e Minas Gerais (APOINME), Conselho Nacional
Indigenista (CIMI), Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e outros;
em 2008, ano do Povo, tem início o reagrupamento, sensibilização,
instigando-os a revitalizar suas raízes Tabajara na Paraíba; o quarto
ano, 2009, Ano da cultura com a revitalização de sua tradições, dos
rituais, do toré, da pintura, do artesanato, da oca, da cosmologia, do
modo de viver; 2010, este ano e marcado pela entrega do Relatório de Fundamentação Antropológica a Funai, identificação do povo
pela Funai e a promulgação dos Tabajara para o Brasil e mundo.
Esse povo, desde 2006, está nesse processo de ressignificação das suas tradições, entre elas a dança do ritual do Toré, o que faz
com que vários povos a transmita através de uma educação informal e
85
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
posteriormente formal quando repassados conhecimentos teóricos e,
ao mesmo tempo, práticos sobre os costumes da etnia para o seus descendentes. Lisboa (2017, p. 79-80), traz na sua fala que:
[...] os povos indígenas estão hoje vivendo um momento histórico
importante de reelaboração da consciência étnica e da autoestima
indígena, uma recuperação do orgulho nativo e da cidadania, acompanhada da retomada de tradições que estavam deixando de ser
praticadas, devido ao preconceito e perseguições que sofriam.
A dança do ritual do Toré é um símbolo de luta e celebração dos
povos indígenas. A arte da dança, ao ser realizada, movimenta os corpos
daqueles que participam e também dos que assistem o Toré. O ritual
rememora mitos, ritos, símbolos, ancestralidade, ressignifica e reaviva
a cultura, os costumes e tradições (VILHENA, 2005), de modo que os
elementos utilizados no rito têm suas próprias representações para o
povo Tabajara repassar para os sucessores e permanecer vivo tudo o
que pertence a essa etnia indígena.
Ressaltamos a importância de ressignificação a partir de outros
povos indígenas para rememorar suas tradições dentre eles:
[...] o Toré Potiguara é o principal rito da sua etnia, é realizado nas
comemorações dentro e fora das aldeias. Segundo Nascimento et al
(2012, p. 43) o ritual “[...] é praticado nas festas religiosas ou sociais,
na alegria, na tristeza e na luta tendo todo um enfoque político-social-religioso”( PEREIRA; WANDERLEY, 2018, p. 05).
No referido ritual sagrado, diversos elementos têm os seus significados peculiares na sua representatividade. São eles – cocar, maracá,
saia, adereços (colares, pulseiras), cachimbo, defumador, bumbo, gaita,
música, dança, etc. Tudo que está presente nesse rito desvela o imaginário, o qual tem a possibilidade de trazer do inconsciente individual
ou coletivo memórias que estavam guardadas “esperando” o momento
talvez oportuno para serem rememoradas. Sendo assim,
[...] esta dança se configura em rotações com sentido horário, enquanto executam os movimentos cantam e tocam músicas autorais escritas por seus antepassados e também pelos componentes
86
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
indígenas que possuem a aptidão para compor novas letras. As canções entoadas durante o ritual, narram as histórias e lutas da etnia e enaltecem suas divindades, este é um momento sagrado que
aproxima o índio das suas raízes culturais (PEREIRA; WANDERLEY,
2018, p. 05).
Ao se considerar como sendo elementos simbólicos dentro de
um contexto de religiosidade, sacralidade, espiritualidade, misticismo,
concedem-se significados a objetos concretos que representam algo
não concreto dentro de uma perspectiva mágica5, o que faz com que sejam caracterizados inconscientemente dando um valor extremamente
subjetivo, o qual poderá talvez carregar a transcendência mística, por
exemplo, e venha a tornar-se fenomenal6, elementar, essencial no imaginário de cada ser. Pereira e Wanderley (2018, p. 07) afirmam que:
[...] o Toré simboliza representação do que é ser índio, este rito fortalece e uni o grupo. Segundo Barcellos (2012, p. 282) “o Toré é uma
das principais práticas religiosas [...]”, este ato, diante de sua relevância perante a etnia estudada, expõe em sua mais nítida forma a
essência Potiguara.
Numa experiência mística, ao se relacionar intrinsicamente com
o sagrado ocorrem vivências ímpares, indescritíveis, imensuráveis no
sentido de somente inebriar conhecimento aquele que viver plenamente tal experiência e provavelmente ao ser relatados em gestos; palavras
dificilmente terão o mesmo significado para aquele que vivenciou num
rito carregado de sacralidade:
Assim, para o homem religioso o tempo também se apresenta de
forma heterogêneo, com intervalos (duração): o tempo sagrado e
Segundo Mauss, do fato de que a religião tende à criação de imagens ideais, enquanto
a magia olha para o concreto, para o plano imediatamente operacional. A magia é vista essencialmente como uma “arte do fazer”, que possui a capacidade de colocar “a serviço da
imaginação individual forças e ideias coletivas” (MASSENZIO, 2005, p. 127).
6
Fenômeno religioso: reflexões que se caracterizam por uma abordagem sociológica à
realidade cultural e que, justamente em virtude disso, enriquecem com possibilidades inovadoras o campo das ciências religiosas. Uma das melhores obras sobre religião de Durkheim é: Le formes élémentaires de la vie religieuse, (Paris, 1912) (MASSENZIO, 2005, p. 99).
5
87
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
o tempo profano. O tempo sagrado é o tempo reversível, um tempo
mítico primordial (tempo original – fora a temporalidade) que está
presente e está a todo momento representando a reatualização de
um evento sagrado. Enquanto o tempo profano é a duração temporal
do cotidiano, tem um começo e um fim. “Esse comportamento em
relação ao Tempo basta para distinguir o homem religioso do homem
não-religioso. O primeiro recusa-se a viver unicamente no que, em
termos modernos, chamamos de ‘presente histórico’: esforça-se por
voltar a unir-se a um Tempo sagrado que, de certo ponto de vista,
pode ser equiparado à ‘Eternidade’” (ELIADE, 1999, p. 64).
Desse modo, no ritual7 do toré é apresentada essa sacralidade para
as populações indígenas. Geralmente a dança é iniciada com a realização de orações de modo que o cacique e os demais presentes balançam
seus maracás invocando os encantados, ao Deus Tupã pedindo licença
para suas ações, a fim de que tragam energias positivas para o seu povo
e todos que se encontram no local sagrado. Posteriormente continuam
o ritual com uma dança circular onde os indígenas participam e também
os que estiverem no ambiente se sintam à vontade para praticar o rito.
Considerações finais
A dança do Toré está presente nos rituais dos povos indígenas do
Nordeste (GRUNEWALD, 2005). É um símbolo sagrado repleto de inúmeros elementos com valores significativos dentro do rito. Através deles pretendemos evocar tais memórias, a fim de que essa investigação
O seu primeiro efeito [do rito] é, pois, o de aproximar os indivíduos, de multiplicar os
contatos entre eles e de torná-los mais íntimos. Já por isso mesmo o conteúdo das consciências muda. Durante os dias mais comuns, as preocupações utilitárias e individuais
ocupam maior espaço nos espíritos. Cada um ocupa-se de sua tarefa pessoal; para a
maior parte das pessoas, trata-se, antes de tudo, de satisfazer as exigências da vida material [...]. Certamente os sentidos sociais não poderiam estar totalmente ausentes dela.
Permanecemos em relação com nossos semelhantes; os hábitos, as ideias, as tendências
que a educação imprimiu em nós e que normalmente presidem nossas relações com os
outros continuam a fazer sentir sua ação. [...] Só se reunindo é que a sociedade pode reavivar a percepção, o sentimento que tem de si mesma (DURKHEIM apud VILHENA 2005,
p. 26-27).
7
88
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
resulte na produção de um conhecimento científico acerca dessa tradição cultural milenar.
Isso possibilitará contribuir para a ampliação do conhecimento
acumulado pelo pesquisador, bem como para a construção, reformulação e transformação das teorias científicas e a realização da função
social em benefício dos costumes de um povo que luta para pemanecer
viva sua etnia.
Portanto, através dessa arte da dança, a pesquisa torna-se mais
prazerosa, possibilitando ao pesquisador um conhecimento novo ou totalmente novo, isto é, o pesquisador pode aprender algo que ignorava
anteriormente, porém já conhecido por outro ou então chegar a dados
desconhecidos por todos. Pela pesquisa chega-se a uma maior precisão
teórica sobre os fenômenos ou problemas concretos.
Dessa forma, os aspectos culturais e referentes às memórias dessa etnia seja social / individual / coletivo são trazidos com os elementos
simbólicos encontrados / percebidos na dança do Toré, o que certamente poderá ou não interferir na dinâmica interna da mística e da espiritualidade nesse rito sagrado e transcendental, seja mantendo, inibindo ou
modificando aquilo que é praticado nessas sociedades primitivas.
89
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALVES, Rubem. O que é religião. São
Paulo: Edições Loyola, 2010.
ARRUTI, José Maurício Andion.
Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
v. 8, n. 15, 1995. p. 57-94.
BARCELLOS, Lusival. Práticas
educativo-religiosa dos Potiguara
da Paraíba. João Pessoa: Editora da
UFPB, 2012.
BARCELLOS, Lusival et al. Diversidade
Paraíba: indígenas, religiões afrobrasileiras, quilombolas, ciganos. João
Pessoa: Grafset, 2014. 143p.
BARCELLOS, Lusival; FARIAS, Eliane.
memória Tabajara: manifestações
de fé e identidade étnica. 2. ed. João
Pessoa: Editora da UFPB, 2015.
BARCELLOS, Lusival; FARIAS, Eliane;
CÓZAR, Juan. Paraíba Tabajara. João
Pessoa: Editora da UFPB, 2015.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia.
São Paulo: Ática, 2005.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o
profano – a essência de religião.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Tradução: Rogério Fernandes.
GOMES, Eunice Simões Lins. Um
baú de símbolos na sala de aula. São
Paulo: Paulinas, 2013. 71 p.
GRÜNEWALD, Rodrigo de Azevedo.
Toré: regime encantado do índio do
Nordeste. Recife: Fundaj; Editora
Massangana, 2005.
90
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia
Estrutural. São Paulo: CosacNaify,
2008.
LISBOA, João Francisco Kleba.
Etnogênese e movimento indígena:
lutas políticas e identitárias na virada
do século XX para o XXI. Interethnic@
– Revista de Estudos em Relações
Interétnicas, v. 20, n. 2, 2017. p. 6886. Disponível em: http://periodicos.
unb.br/index.php/interethnica/
article/view/10616. Acesso em: 07
jul. 2019.
MASSENZIO, Marcello. A História das
Religiões na Cultura moderna. São
Paulo: Hedra, 2005. 196p.
MINAYO, Maria Cecília de Souza.
(org.). Pesquisa social: teoria, método
e criatividade. 22. ed. Petrópolis:
Vozes, 2003.
OLIVEIRA, Bernardina Maria Juvenal
Freire de; ROSA, Maria Nilza Barbosa;
MARIANO, Nayana Rodrigues
Cordeiro. In: ASSmANN, Aleida.
Espaços da recordação: formas
e transformações da memória
cultural. Tradução de Paulo Soethe.
Campinas, SP: Unicamp, 2011. RACIn,
João Pessoa, v. 5, n. 1, p. 1-6, jan./
jun. 2017. Disponível em: racin.
arquivologiauepb.com.br/edicoes/
v5_n1/racin_v5_n1_resenha01.pdf.
Acesso em: 08 jul. 2019.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma
etnologia dos “índios misturados”?
Situação colonial, territorialização e
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
fluxos culturais, Mana 4(1): 47-77
(1998).
ABEPEM. Grupo Marista. 01-16 p.
Anais [...] Paraná: PUC, 2018.
PEREIRA, Erika Danielly Florêncio;
WANDERLEY, Ingrid Moura. Análise
da arte indígena na etnia potiguara
e suas colaborações para o design.
14º Colóquio da Moda – 11º Edição
Internacional. 13º Fórum das Escolas
Dorotéia Baduy Pires. 5º Congresso
Brasileiro de Iniciação Científica em
Design e moda. Associação Brasileira
de Estudos e pesquisa em Moda –
PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação
à teoria do imaginário de Gilbert
Durand. Rio de Janeiro: Atlântica
Editora, 2005. 106 p. (Coleção
filosofia).
VILHENA, Maria Ângela. Ritos:
expressões e propriedades. São
Paulo: Paulinas, 2005. (Coleção
Temas do Ensino Religioso).
[ Volta ao Sumário ]
91
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a Revista tRimensal
e a ConstRução da
identidade adventista
no BRasil
Daniel da Silva Firino
Carlos André macedo Cavalcanti
Como referenciar este capítulo:
FIRINO, Daniel da Silva; CAVALCANTI, Carlos André Macedo. A Revista Trimensal e a construção da identidade adventista no Brasil. In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 92-107.
Daniel da Silva Firino1
Carlos André Macedo Cavalcanti2
Introdução
Este trabalho pretende analisar a importância da Revista Trimensal (atual Revista Adventista) na construção de uma identidade brasileira dos adventistas do sétimo dia no início do século XX. Foram utilizadas, como fontes primárias, oito edições publicadas entre 1906 e 1907.
A partir de então, mudasse o nome para Revista Mensal e posteriormente para Revista Adventista em 1931.
A temática possui relevância acadêmica diante da tímida produção existente sobre o protestantismo e o uso de impressos na formação de suas identidades. Ademais, é importante compreender o papel
desempenhado pelas revistas e jornais protestantes no início do século
XX. Têm-se como objetivos identificar e analisar as práticas, os ritos, os
mitos, as representações e o conjunto simbólico que foram utilizados
na revista Trimensal para construção de uma identidade cultural desenvolvida nesta afiliação religiosa.
A inserção das ideias adventistas no Brasil deu-se no final do século XIX. Segundo Borges (2000), um jovem chamado Borchardt, pensou que tinha matado um homem durante uma briga e para evitar ser
preso, fugiu do país em um navio europeu. Durante a viagem, ele se encontrou com missionários adventistas que pegaram o endereço do seu
padrasto que se chamava Carlos Dreefke que morava na comunidade
alemã de Bruske (SC). Pelo que se sabe, Dreefke começou a receber a
revista Stimmeder Wahrheit (A Voz da Verdade) por volta de 1884.
A partir de então, a mensagem adventista3 começou a se espalhar
por todo solo brasileiro principalmente pelas comunidades alemãs.
Mestrando em Historia (PPGH- UFPB). http://lattes.cnpq.br/2815789935227215.
E-mail: danielfirino@hotmail.com
2
Doutor em Historia. Professor Associado da UFPB. http://lattes.cnpq.br/7764634
726743516. E-mail: carlosandrecavalcanti@gmail.com
3
Conjunto de crenças, símbolos e valores adventistas transmitidas pelos seus discursos.
1
93
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Azevedo, referindo-se as mudanças desse período no país, escreveu o
seguinte:
Em nenhuma outra época do século XIX, depois da Independência,
se prepararam e se produziram acontecimentos tão importantes
para a vida nacional como no último quartel desse século em que
se verificou o primeiro surto industrial, se estabeleceu uma política
imigratória, se aboliu o regime de escravidão, se iniciou a organização do trabalho livre e se inaugurou, com a queda do Império, a
experiência de um novo regime político (1971, p. 615).
Contudo, apenas em 1894 que a Igreja Adventista do Sétimo Dia
(IASD) enviou Frank H. Westphal, o primeiro pastor adventista a pisar
em solo Brasileiro. Porém, o primeiro batismo só aconteceu em 1995 no
qual Guilherme Stein, que vivia em Rio Claro (SP), tornou-se o primeiro
adventista batizado no Brasil.
Após batizado, Stein exerceu forte liderança sobre o adventismo
no Brasil, tornou-se diretor do colégio internacional em Curitiba e editor
das publicações adventistas no Brasil. Tal função foi conquista devido a
seus conhecimentos em inglês e sua fluência em alemão e português.
Desta forma, tornou-se uma ponte entre o órgão central da instituição,
que estava localizado nos estados unidos, e os adventistas de origem
alemã e brasileira.
Em 1900 é fundada a Sociedade Internacional de Tratados no Brasil que era responsável pelas publicações institucionais. A sua primeira
publicação foi à revista O Arauto da Verdade (1900 – 1913) que possuía
como editor Guilherme Stein e em 1906 a tipografia muda-se para uma
chácara em Taquary (RS) que foi comprada pela Conferencia do Brazil4 onde
já estava funcionando uma escola adventista e a clinica de A. L. Gregory.
Segundo Gregory (1906), em janeiro de 1906, em Taquary, já estava sendo impresso O Arauto da Verdade e a revista na língua alemã
Rundschau der Adventisten. A Revista Trimensal também seria impressa
a partir do seu segundo numero (abril – junho). Porém, no final de 1907
Divisão administrativa que gerencia as igrejas e grupos da instituição no Brasil. Ela durou até 1906 quando foram criadas a União sul americana e as conferencias do Rio Grande
do Sul e Santa Catarina
4
94
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
já se cogitava a mudança da tipografia para um lugar mais bem localizado para melhorar a distribuição das revistas.
A revista Trimensal (RT) foi importante para a construção de uma
identidade adventista brasileira. Suas páginas, das primeiras até as últimas, possuem símbolos, ritos, mitos e representações do que é ser
um adventista. Portanto, para compreender melhor a sua função nessa
construção, o trabalho será dividido em três partes. A primeira, o cabeçalho da primeira página das revistas, a segunda, seções e autores e a
ultima, Considerações Finais.
Cabeçalho da primeira página das revistas
A RT não possuía capa e seu conteúdo já se iniciava na primeira página, entretanto, ela possuía um cabeçalho na primeira página de
cada revista. Apesar de ser pequeno, ele é riquíssimo de significados.
Ele era composto pelo título, o nome do órgão que a revista era filiada,
a mensagem bíblica e o local e data da impressão. Começaremos pelo
então nome.
Inicialmente este periódico recebia seu nome de acordo com suas
periodicidades. O primeiro nome foi Revista Trimensal que durou de
1906 a 1907. Em 1908, ela passa a se chamar Revista Mensal e em
1931 o nome atual, Revista Adventista. Este trabalho visa analisar o
período inicial da revista, ou seja, enquanto ela ainda possuía o nome de
Revista Trimensal.
Como citado anteriormente, a RT possuía esse nome devido a sua
periodicidade. Apesar de que atualmente, o termo trimensal possui o
sentido de três vezes no mês, a revista era publicada trimestralmente. Ela
deixa claro sua periodicidade ao se referir as lições da escola sabatina da
seguinte forma: “É o desígnio usar as lições que se acham aqui na escola
sabbatina, principiando com o primeiro sabbado de Janeiro de 1906. Temos aqui treze lições ou para trez mezes” (GREGORY, 1906, p. 1).
Diante disso, Benedicto e Borges, ao se referir ao nome da revista,
falam que “o periódico nasceu como Revista Trimensal. O nome estava
errado, uma vez que deveria ser Revista Trimestral, por ser publicada de
95
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
três em três meses, não três vezes por mês, mas a ideia estava certa”
(2006, p. 9).
Após o nome do periódico, segue-se a frase Órgão da Igreja
Brasileira dos Adventistas do Sétimo dia. Tal afirmação tem objetivo de
informar a quem ele pertence, mas também fazer demarcações de fronteiras. Segundo Silva,
A afirmação da identidade e a marcação da diferença implica, sempre, as operações de incluir e de excluir. [...] dizer “O que somos”
significa também dizer “o que não somos”. Afirmar a identidade
significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que
fica dentro e o que fica fora.[...] essa demarcação de fronteiras, essa
separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo afirmam e reafirmam, relações de poder (2008, p. 82).
O nome Igreja Adventista do Sétimo dia trás consigo um apelo identitário. O nome Adventista refere-se à pregação da segunda vinda de Jesus. Os adventistas pregam que Jesus voltará de forma literal e visível a
toda humanidade para levar os salvos para o céu onde passarão mil anos.
Após esse período, a cidade santa, a nova Jerusalém, descerá do céu para
a terra onde permanecerá para sempre depois da restauração da terra5.
Para compreender essa crença é necessário voltar às origens dessa instituição. A igreja adventista surgiu de um movimento chamado
milerita que pregava a segunda vinda de Jesus para algo em torno de
1843 a 1844. Após nada acontecer na data marcada, muitos abandonaram o movimento e outros buscaram entender o que havia acontecido.
Os pioneiros adventistas fizeram parte desse segundo grupo, para
eles Jesus havia passado do lugar santo para o santíssimo no santuário
celestial e poderia voltar a qualquer momento. Desta forma, a pregação
do segundo advento tornou-se uma das características principais da
identidade adventista.
Há, portanto, um forte apelo escatológico do mito da era de ouro. Para Eliade (1963),
este mito é comum a várias religiões, existe um desejo do retorno ao paraíso, para isso a
terra terá que ser destruída e recriada. “O paraíso possui assim um caráter paradoxal: por
um lado, corresponde ao contrário deste mundo – a pureza, liberdade, beatitude, imortalidade e tudo mais; por outro, é concreto, isto é “não “espiritual”, e encontra-se incluído
neste mundo, visto por uma realidade e identidade geográfica (ELIADE, 1989, p. 131).”
5
96
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O termo do sétimo dia refere-se a guarda do sábado para fins missionários e filantrópicos6. A separação desse dia como dia santo remonta as origens do movimento adventista. Nem sempre os adventistas
guardaram o sábado, contudo em 1844 um grupo de adventistas, por
influência de Rachel Oakes7, passaram a exercer essa prática. Mais tarde, José Bates8, Thiago e Hellen White também aceitaram a guarda do
sábado e ela passou a ser uma das principais crenças dos adventistas.
Percebe-se que o nome dessa instituição trás consigo uma identidade que a difere das demais e tal identidade é reforçada na RT. Além
disso, o nome igreja brazileira é uma forma de criar uma identidade
própria desvinculada da norte-america, mas também tem objetivo de
permanecer unida a ela por serem todos Adventistas do sétimo dia.
Abaixo tem o texto bíblico santifica-os na tua verdade, a tua palavra
é a verdade João 17:17. Os adventistas consideram-se como pregadores
da verdade9 e enviados por Deus para levá-la a todo o mundo. Isso pode
ser visto em vários relatos como o que Spies escreveu: “Damos graças
ao nosso Pae celestial pelas ricas bênçãos a nós conferidas para a pregação da verdade e consagramo-nos novamente a Elie e a Sua obra”
(1906, p. 2).
Ademais, com esse texto bíblico, fica claro uma das principais
crenças adventistas que é herança protestante, a Sola Scriptura. A bíblia
é a regra de fé e a base das doutrinas adventistas. Desta forma, cria-se
outra fronteira entre aqueles que seguem a sola scriptura e os que não
seguem e estes últimos estão excluídos dessa identidade. Isso é importante tendo em vista que o Brasil sempre foi um país católico e tal
Segundo Eliade, “Tal como o espaço, o tempo não é, para o homem religioso, nem
homogêneo nem continuo. [...] por meio de ritos o homem religioso, pode ‘passar’, sem
perigo, da duração de temporal ordinária para o tempo sagrado” (1992, p. 38). O sábado
para os adventista é um dia sagrado que inicia-se no por do sol da sexta-feira e termina
no por do sol do próprio sábado. Através do ritual do culto por do sol, é feita a passagem
do tempo profano para o tempo sagrado e vise versa.
7
Ela era batista do sétimo dia que começara a frequentar uma igreja adventista.
8
Bates foi um dos pioneiros do adventismo junto com Thiago White e Hellen Harmond,
que mais tarde se casaria com Thiago e adquiriria seu sobrenome.
9
Para Knight (2011), essa verdade é chamada de verdade presente e possui uma natureza dinâmica. Com o tempo essas crenças vão sendo reformuladas, reinterpretadas e
até mesmo substituídas.
6
97
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
identidade religiosa não acredita na bíblia como única fonte de inspiração e utiliza-se para interpretação bíblica a tradição e no magistério.
Por último, a cidade e a data de publicação: Rio de Janeiro10, Janeiro
de 1906. Possivelmente a RT poderia ter seu primeiro numero impresso
em Taquary, onde o restante foi impresso, mas os editores preferiram
que a capital brasileira fosse à cidade do primeiro número da revista.
Talvez, essa escolha tenha sido uma forma de legitimação de uma identidade adventista brasileira no qual possuía um periódico cujo primeiro
número saiu da capital do país.
As seções e os autores
Com relação às seções, serão analisadas as suas funções e sua
importância na formação de uma identidade adventista brasileira. Já
com os autores, iremos identificar padrões que os ligam. Durante os
dois anos de publicação da RT, ela teve 08 números publicados, um total de 104 páginas, 69 seções e 12 autores nominalmente identificados.
Primeiro será trabalhada as seções e depois os autores.
A revista trimensal não possuía uma estrutura fixa, portanto cada
edição tinha uma divisão própria com títulos variados. Logo para analisar suas seções elas foram agrupas de acordo com o seu conteúdo e a
natureza da informação. Sendo assim, as cinco seções que mais se repetiram foram: notícias dos campos, editorial, avisos à escola sabatina,
lições da escola sabatina e conferências. Elas possuíam as quantidades
de publicações nas respectivas ordens 20, 9, 8, 8 e 6.
As noticias dos campos são as que mais aparecem. Elas traziam
informações das viagens dos pastores para os mais diversos lugares
do país. Os pastores informavam como estava o desenvolvimento da
instituição, quantas pessoas eles batizaram, a fundação de uma igreja
ou grupo, etc. é muito comum ser encontrado nos relatos um forte apelo
10
Era a capital do Brasil, apenas a primeira edição o restante foi em Taquary no Rio
Grande do Sul.
98
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a “irmandade” ou a “fraternidade”, a alegria no batismo ou comumente
chamado de “sepultamento no senhor11” como podemos ver a seguir:
No dia 11 de Julho chegei à nossa irmandade em Sto.Antonio da
Patrulha onde trabalhei sob a benção de Deus. Sabbado 29 de Julho
tive o privilegio de sepultar 5 almas com o Senhor no baptismo; 53
irmãos tiveram reunido com outro tanto de fóra. Também os escarnecedores não faltaram (SCHWANTES, 1906, p. 3).
Os membros da igreja são representados como irmãos que fazem parte de uma grande irmandade que cresce a cada dia com várias
pessoas que aceitam a mensagem e aderem o seu estilo de vida como
descreve Schwantes: “Também os irmãos ahi ja principiaram a pagar os
dizimos, e se dispor a cozer com azeite, plantando amendoins a este fim
para mandar soccar e tirar o azeite” (1906, p. 4).
Convém falar agora sobre os editoriais. Estão classificados como
editoriais todas as comunicações e avisos dos responsáveis da revista
ao leitor, exceto da lição da escola sabatina, pois serão analisadas melhor separadamente. O primeiro editorial intitulado Saudações foi escrito
por Gregory (1906) e traz as primeiras informações sobre o periódico
como público alvo que eram os membros de língua portuguesa, sua periodicidade trimestral, etc.
Também eram utilizadas para informar aos membros sobre seu
dever de adventistas como, por exemplo, auxiliando o crescimento da
instituição ofertando com dinheiro ou vendendo materiais da denominação como da seguinte forma:
Quem reconhece o seu dever para com Deus, e não está no alcance
de offertar a obra do Senhor com dinheiro, etc. poderá fazer bons
serviços para o Senhor em vender os “Arautos” encadernados dos
quaes temos 800 em deposito. Pois se espalhará muita verdade
com a venda delles, podendo salvar-se muitas almas. [...] Esperamos que muitos irmãos aproveitam esta occasiào própria para
11
Para Eliade “a imersão na água como instrumento de purificação e de regeneração foi
aceito pelo cristianismo e enriquecido por novos valores religiosos. [...] No cristianismo, o
batismo tornou-se o principal instrumento de regeneração espiritual, pois que a imersão
na água batismal equivale ao enterramento de cristo” (2008, p. 159-160).
99
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
introduzir estas verdades em muitos corações que andam pelas
trevas deste mundo (PARTICIPAÇÃO, 1906, p. 3).
As escolas sabatinas, que eram incentivadas pela Associação Internacional da Escola Sabatina12, são classes bíblicas realizadas todos
os sábados antes do culto. Entre as suas funções está a de revisão das
crenças adventistas através das lições. Os avisos voltados à Escola
Sabatina tinham o objetivo de informar a quantidade de Escolas e de
membros, afastamento de liderança, orientações para sua realização
como, por exemplo: “Na abertura da escola sabbatina não deveria o superintendente usar de um longo prólogo, nem tão pouco ler todo hymno
de abertura. Basta que um ou dous versos sejam lidos em quanto os
congregados abrem os livros” (A DIREÇÃO, 1906, p. 4).
As lições para Escola Sabatina ocupavam grande parte da RT. Das
104 páginas publicadas 75 eram desta secção, o que seria em torno de
72,11% do periódico. A grande quantidade de páginas indica a sua importância para os editores, pois nessas seções eram estudas as crenças
que compunham a identidade adventista e desta forma estabeleciam
uma fronteira que delimitava o que é ser um adventista.
De acordo com Benedicto e Borges (2006), as lições nem sempre
possuíam um temática bem definida. Contudo, houveram revistas em
que todas as trezes lições abordavam o mesmo tema. No total foram
104 lições que abordavam vários temas, no entanto convém conhecermos os que mais se repetiram. Os três principais foram às relacionadas
com profecias, o sábado e os dízimos e ofertas.
12
[Associação Internacional da Escola Sabatina] originou-se por iniciativa de James
[Thiago] White, que anunciou pela Review a revista mensal Youth’s Instructor, editada a
partir de 1952. Em Rochester e Bridge, Nova York, surgiram dois grupos de pessoas que
se dispuseram a estudar as lições bíblicas da revista, as Escolas Sabatinas, mais tarde
incorporadas ao ritual da igreja. Após a escola-modelo de Battle Creek ter surgido, um de
seus dirigentes sugeriu a criação de uma associação que englobasse as Escolas Sabatinas
em cada Estado, com objetivo de consultas mútuas; sugestão levada a efeito na Califórnia
e em Michigan, após o que, o plano generalizou-se. Essas associações estaduais vieram a
formar a Associação Internacional das Escolas Sabatinas, que chegaram a financiar, diretamente, o proselitismo no estrangeiro. A participação na Escola Sabatina não tem, como
pré-requisito, o batismo na Igreja e a classificação de membro da Escola Sabatina indica
esta característica.” (OLIVEIRA FILHO, 2004, p.165)
100
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referindo-se aos adventistas desse período George Knight escreveu:
Os primeiros adventistas do sétimo dia prezavam sua identidade.
Amavam suas grandes doutrinas básicas: o segundo advento, o sábado, o santuário celestial e o estado dos mortos. Entendiam que
o foco integrativo de sua teologia era a cadeia profética que vai de
Apocalipse 11:19 a 14:20 (2005, p. 91).
A forte ligação dos adventistas com as profecias bíblicas remontam a sua origem. O movimento milerita era fortemente ligado ao estudo das profecias bíblicas que falavam da segunda vinda de Jesus. E após
a fragmentação desse movimento, a busca por respostas fez com que
os pioneiros adventistas aprofundassem seus estudos nas profecias.
Desta forma, chegaram à conclusão que Jesus voltaria em breve e
que eles teriam uma mensagem urgente a levar a todo mundo. Logo, os
estudos sobre as profecias bíblicas estão na base da identidade adventista junto com a pregação do retorno de Jesus e a guarda do sábado13
que seria mais tarde adotada pela igreja.
Os dízimos e as ofertas também são importantes para a identidade adventista, pois se há uma mensagem urgente para levar a todo
mundo necessita-se de uma forma de sustentar as pessoas e os meios
para se fazer isso. Desta forma, contribuir financeiramente não é apenas sustentar a instituição, mas é feita a representação de que contribuir financeiramente a obra é tomar posição ativa na evangelização
para espalhar esta mensagem. E por isso Westphal escreveu que os
Dízimos e offertas não devem ser retidos, pois só com a máxima
fieldade pode progredir a obra. Todos sem excepção devem sentir
uma responsabilidade pessoal e reconhecer que é o seu dever de
alumiar Rio Grande do Sul com a terceira mensagem. O Senhor pôz
esta responsabilidade sobre elles (1906, p. 3).
A última seção que convém trabalhar é a que trata sobre as “Conferências”. As conferências eram uma divisão administrativa organizacional da IASD. Elas possuíam reuniões periódicas para mostrar o
13
Como a relação dos adventistas com a guarda do sábado já foi trabalhada acima, não
convém trabalhá-la novamente neste momento.
101
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
crescimento e planejar os próximos passos da instituição. No Brasil,
até 1906, existia a Conferencia do Brazil que foi dissolvida e foram criadas a União Sul-Americana e duas conferências, a do Rio Grande do
Sul e outra em Santa Catarina. Além disso, foram criadas missões em
todo o país.
Desta forma, estas seções serviam para informar aos leitores sobre as reuniões e o que ficou decidido nelas. É importante salientar que
até 1906 a igreja brasileira dependia muito da americana, mas a partir
desta data, ela ficaria subordinada a União Sul-Americana. As conferências buscariam independência financeira enquanto as missões seriam
mantidas pela União Sul-Americana.
Esta divisão foi favorável à criação de uma identidade adventista
sul-americana e consequentemente também contribuiu para uma identidade adventista brasileira. Spicer falando sobre as vantagens da nova
divisão organizacional escreveu que
Todos os irmãos reconheceram a vantagem, que offerece a divisão
dos campos e a organisação da Conferencia União Sul Americana.
Isto significa que maior obra e progresso mais rápido será feito.
Deus vos convida com isto a ajudar com os vossos esforços, orações e meios. O território está pois repartido e entregue ás Conferencias e Missões, como Canaan foi repartido entre os tribus d’Israël
no tempo de Josué. Eis pois chegado o tempo, para os crentes
occuparem a terra em nome de Deus d’Israël e possuil-a. Jesus o
commandante do exercito de Deus em cada paiz, guia nos á Victoria
certa (1906, p. 4).
Outro ponto muito importante são as pessoas que escreveram
para esse periódico. A RT chegou a ter 12 autores nominalmente conhecidos, mas também houveram várias seções em que autores não
puderam ser identificados. Os que mais escreveram para a revista foram Emilio Holzle, A. L. Gregory, F. W. Spies, H. F. Graf e A. Pages.
Todos possuem sobrenomes estrangeiros. Isso se dá por dois motivos: falta de mão de obra missionária brasileira e o perfil dos primeiros
conversos. A igreja brasileira estava ainda dando seus primeiros passos,
ainda não existiam seminários para a formação de pastores e por causa
disso todos os obreiros eram estrangeiros e normalmente vindos dos
102
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Estados Unidos ou Alemanha. Percebe-se isso nas palavras de Spies
após a criação da União Sul-Americana, ele relatou o seguinte:
Agradecemos aos nossos irmãos na America do Norte, dos quaes
após o Senhor somos devedores, pelo amor a nós mostrado, mandando obreiros e meios, afim de que fosse também ouvida a mensagem aqui na America do Sul e organizando a Conferencia União
S. A. promettemos de continuar a obra no mesmo espirito e para o
mesmo fim (1906, p. 2).
E quanto ao perfil dos primeiros conversos, Schunemann escreveu que
O perfil destes primeiros conversos era formado por uma camada
simples da sociedade rural. É interessante que as colônias alemãs
no sul do país ou no Espírito Santo composta de protestantes e
pequenos proprietários rurais eram semelhantes ao perfil do Adventismo do sétimo dia nos Estados Unidos, por ocasião de sua
formação. Há uma cultura bíblica que mantém boa parte destas
comunidades de imigrantes. Embora nem todos alemães fossem
protestantes, é entre estes que o Adventismo faz sua inserção e
expansão (2003, p.32).
Com o objetivo de inverter essas duas situações, começaram a
criar medidas com intuito de habilitar obreiros brasileiros para converter o seu próprio povo como descreve Westphal ao falar sobre as
medidas a serem tomadas com a nova União: “Ainda mais resolveu-se
que a instrucção na escola deve ser principalmente na língua portugueza, visto que devem ser formados obreiros para os campos brasileiros” (1906, p. 4).
Tanto os obreiros quanto os primeiros membros possuíam identidades diferentes da maioria da população brasileira. Desta forma, para o
desenvolvimento dessa instituição no país, era necessário romper com
as barreiras identitárias construindo uma identidade adventista brasileira. E essa construção deu-se principalmente através dos periódicos
incluindo a RT. Para isso, foi necessário um rompimento gradual com o
estrangeirismo inicialmente predominante na igreja no país.
103
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Considerações finais
Para a construção de uma identidade adventista brasileira, a principal ferramenta utilizada na RT foram às representações. Para Silva, “A
identidade e a diferença estão extremamente associadas a sistemas de
representação” (2008, p. 89). Ademais, “A representação atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no seu interior”
(Woodward, 2008, p. 8).
Através das representações foi construído um ideal do ser adventista. Esse ideal está repleto de símbolos, demarca fronteira, classifica o
mundo, e normaliza a sociedade. Há, portanto, uma exclusão14 do outro e
uma luta de representações15 no qual essa representação do ser adventista torna-se o padrão e possui as características positivas. Para silva,
Normalizar significa eleger – arbitrariamente- uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades
são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa
identidade todas as características positivas possíveis, em relação
às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa (SILVA, 2008, p. 83).
Logo, diante de tudo que foi exposto nesse trabalho e das analises das fontes, conclui-se que os adventistas brasileiros eram aqueles
que faziam parte de uma irmandade crescente, pregavam a verdade e
a segunda vinda de Jesus, guardavam o sábado, possuíam uma forte
ligação com as profecias bíblicas e alimentação saudável e auxiliavam
o crescimento da obra com seus talentos e com seus bens através dos
dízimos e das ofertas.
14
Para Woodward, “A diferença pode ser construída negativamente – por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que são definidas como “outros” ou “forasteiros” (2008, p. 50).
15
“[as lutas de representas de representações] dedica a atenção às estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que constroem, para cada classe, grupo ou
meio, um “ser percebido” constitutivo de sua identidade”. (CHARTIER, 2002b, p. 73), além
disso, “[...] lutas de representação cujo desafio é a hierarquização da própria estrutura
social”. (CHARTIER, 2002b, p. 76)
104
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Esses conjuntos de representações16 foram difundidos ao longo
de toda a RT. Portanto, ela possuiu um papel importante na construção de uma identidade adventista no Brasil. Sem um periódico direcionado ao público adventista seria difícil estabelecer uma identidade
que abarcasse o Ser Adventista em um país como o Brasil de tamanho
continental, que passava por várias mudanças e com uma diversidade
cultural gigantesca.
As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnostico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de
grupos que as forjam. (CHARTIER, 2002a, p.17)
16
105
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
A DIREÇÃO da Escola Sabatina. In:
Revista Trimensal, Taquary, v. 1, n. 2,
p. 4-5, 1906.
GREGORY, A. L. Saudações. In: Revista
Trimensal. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1,
p. 1, jan./mar. 1906.
AZEVEDO, F. A cultura brasileira.
5. ed. São Paulo: Melhoramentos:
Edusp,1971.
KNIGHT, George R. Em busca de
identidade: o desenvolvimento das
doutrinas Adventistas do Sétimo
Dia. 1. ed. Tatuí: Casa Publicadora
Brasileira, 2011.
BORGES, M.A. A chegada do
adventismo ao Brasil. 1. Ed. Tatuí:
Casa Publicadora Brasileira, 2000.
BENEDICTO, Marcos de; BORGES,
Michelson. Um século. In: Revista
Adventista, v. 101, n. 1, Tatuí, p. 8-13,
2006.
CARVALHO, Francisco Luiz Gomes de.
A Igreja Adventista do Sétimo Dia no
Brasil: inserção e desenvolvimento
institucional. In: Pistis Prax, Curitiba,
v. 6, n. 3, p. 1057-1075, 2014.
CHARTIER, Roger. A história cultural:
entre práticas e representações.
2. ed, Miraflores: Difel, 2002a.
______. à beira da falecia: a história
entre certezas e inquietudes. 1. ed.
Porto Alegre: editora UFRGS, 2002b.
ELIADE, Mircea. Aspecto do mito.
1. Ed. Lisboa: Edições 70, 1963.
______. Origens: história e sentido
da religião. 1. Ed. Lisboa, Edições 70,
1989.
______. Tratado de história das
religiões. 3. Ed. São Paulo: Martins
fontes, 2008.
106
OLIVEIRA FILHO, José Jeremias de.
Formação histórica do movimento
adventista. In. Estudos Avançados. São
Paulo, v. 52, n 18, p. 157-179. 2004.
O THESOIREIRO. Relação dos dízimos
e das offertas da conferencia do
Brazil para o quarto trimestre de
1905. In: Revista Trimensal. Taquary,
v. 1, n. 2, p. 5, 1906.
PARTICIPAÇÃO da Casa Edictora, In:
Revista Trimensal. Taquary, v. 1, n. 2,
p. 3 – 4, 1906.
SCHUNEMANN, Haller Elinar Stach.
A inserção do Adventismo no Brasil
através da comunidade alemã. In:
Rever. v.10 n. 1. p. 27-40, 2003.
SILVA, Tomaz Tadeu. A produção
social de Identidade e da Diferença.
In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.)
Identidade e Diferença. Petrópolis:
vozes, 2008. p. 73-102.
SCHWANTES, Ernesto. Ethos do
Campo: Relação duma viagem. In.
Revista Trimensal. Rio de Janeiro, v. 1,
n. 1, p. 3-4, 1906.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
SPIES, F. W. A ORGANIZAÇÃO DA
CONFERENCIA União Sul-Americana.
In. Revista Trimensal. Taquary, v. 1,
n. 3, p. 1-2, 1906.
SPICER, W. A. Avante na America do
Sul. IN: Revista Trimensal. Taquary,
v. 1, n. 3, p. 4, 1906.
Trimensal. Taquary, v. 1, n. 3, p. 3-4,
jul./set. 1906.
WOODWARD, Kathryn. Identidade
e Diferença: uma introdução teórica
e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu
(org.). Identidade e Diferença.
Petrópolis: Vozes, 2008. p. 7-72.
WESTPHAL, J. W. A conferencia do
Estado Rio Grande do Sul. In: Revista
[ Volta ao Sumário ]
107
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a tRadição do Yoga
na nova eRa do BRasil
Concília Cléria Ferreira muniz
Como referenciar este capítulo:
MUNIZ, Concília Cléria Ferreira. A tradição do Yoga na Nova Era do Brasil. In:
MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020,
p. 108-122.
Concília Cléria Ferreira Muniz1
1. Introdução
Este estudo propõe investigar a expansão do Yoga no Brasil no
Brasil da Nova Era, e tem significativa relevância, tendo em vista que
um resgate histórico sobre o desenvolvimento desse sistema na Índia e
posteriormente no Brasil constitui uma contribuição importante para a
História e para o campo das Ciências das Religiões.
A pesquisa sobre Yoga encontra-se inserida na linha de pesquisa
sobre história, filosofia e fenomenologia das religiões. Assim abrange,
estudos de antigas civilizações indianas, como também as transformações ocorridas a partir da incorporação de outras culturas, no caso em
particular, a cultura brasileira.
Além desses aspectos, verificamos que a história do Yoga no
Brasil, contém uma lacuna no que diz respeito à pesquisa sobre Yoga.
Assim, o trabalho desenvolvido, vêm ampliar a nossa visão acerca da
tradição do Yoga praticada na Índia, trazida para o Brasil na década de
50 e divulgada no movimento da Nova Era nas décadas de 80 e 90.
Tais colocações nos conduziram aos seguintes questionamentos:
Como aconteceu a expansão do Yoga no Brasil da Nova Era? Quais os
métodos e técnicas utilizadas pelos praticantes de Yoga no Brasil da
Nova Era?
Para realização desse trabalho, utilizou-se a revisão de algumas
obras importantes da literatura de caráter acadêmico e cientifico da Tradição do Yoga, das Ciências das Religiões, da História das Religiões e do
movimento da Nova Era no Brasil.
Possui Graduação e Licenciatura em Enfermagem pela Universidade Federal da Paraíba(1991), Especialização em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Paraíba(2001)
Mestrado em Enfermagem pela Universidade Federal da Paraíba (2005).Cumpriu estágio
de Mestrado na área de Saúde Pública(UFPB,2004).Possui formação complementar na
área de Yoga,massagem terapêutica e Reiki (método Mikao Usui).
1
109
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
2. Breve história do Yoga
De acordo com Feuerstein (2005), no sentido mais amplo a palavra
sânscrita Yoga significa “disciplina espiritual” no hinduísmo, no janaísmo
e em certas escolas de budismo. E sob um ponto de vista mais estreito, o Yoga é um ramo particular da gigantesca árvore da espiritualidade hindu, sendo o Vedanta e o Samkhya os dois outros grandes ramos.
A palavra Yoga é derivada da raiz verbal yuj (“jungir” ou “cangar” ou “arrear”). O que deve ser jungido é a atenção que de ordinário desloca-se
incessantemente de objeto em objeto.
Desse modo, os métodos e técnicas aplicadas nas aulas de Yoga,
prepara o aluno para entrar em estado de meditação. A atenção voltada
ora para o corpo, ora para a respiração, ora para observação dos pensamentos ou para o momento presente, cessa ou diminui os turbilhões da
mente. Yoga é a cessação das flutuações da mente.
Para Micea Eliade (2004) o Yoga pode ser definido como:
Um conjunto de técnicas que permitem ao homem realizar a si
mesmo, fundir a sua consciência egóica, individual com a mente universal. Desde sua origem, o problema central da filosofia é
a busca da verdade, mas não a verdade para enaltecer o ego do
filósofo, mas sim a verdade como meio para atingir a libertação
da ilusão. O fim supremo do sábio na Índia é a conquista liberdade: “libertar-se equivale a impor-se outro plano de existência,
apropriar-se de outro modo de ser, transcendendo a condição humana”. (ELIADE,2004, p. 20).
Assim, por meio da união ou fusão da consciência individual com
a consciência universal, o praticante de Yoga alcança a transcendência,
vive a experiência divina e atinge a libertação do ego.
Nessa linha de raciocínio, o mestre de Yoga indiano BKS Yengar
(2010), enfatiza que, Yoga significa elevar a inteligência do corpo ao nível da mente e então atar as duas para uni-las a alma. A alma e o espírito, o céu acima de nós. O Yoga é o instrumento que liga os dois, à
multiplicidade à unidade.
A representação metafórica da ligação entre o céu e a terra corresponde a união do corpo e da mente – e destes com alma universal – é o
110
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
elemento central das grandes definições de Yoga. Por isso, mesmo não
tendo um sistema teológico próprio, o Yoga seria uma forma de religião.
Pois seu objetivo supremo seria a própria fusão – ou união – com o espírito divino do qual se acredita que tudo deriva, e do qual tudo faz parte
GNERRE, 2010).
Na concepção de Hérmógenes, (2004) Yoga é uma filosofia, uma
ciência, uma técnica de vida que há milhares de anos vem servindo de
caminho de volta aqueles que buscam por novamente, fundirem-se na
plenitude. Yoga também quer dizer unificação de si mesmo.
O propósito original do Yoga sempre esteve conectado ao aspecto
espiritual da existência humana, ao que chamamos religare- processo
de religar o homem ao ser divino. Isto constitui o objetivo supremo do
yoga, assim podemos traduzir como um processo de busca do praticante pelas próprias transcendências do ego, que segundo um dos princípios filosóficos do Yoga é um dos aspectos da consciência que nos torna sempre sujeitos individuais separados do mundo no qual estamos
imersos.
Apesar da tradição do Yoga não obedecer a períodos lineares, o
entendimento ocidental, dividiu esse sistema filosófico indiano em três
períodos: pré-clássico, clássico e pós-clássico. O período pré-clássico
antecede a formação do Yoga como disciplina filosófica e espiritual,
dissociada de outras disciplinas ou sistemas de pensamento da Índia.
Nesse mesmo período ocorre a produção dos textos Upanisads, textos
escritos no final e no período posterior aos Veda, às escrituras sobre as
quais se fundamenta a tradição Hindu.
Os Upanishads são escritos posteriores aos Vedas. Trata-se de um
gênero da literatura hindu. Segundo Feuerstein (2005) a palavra Upanishad, significa “sentar-se perto do próprio mestre”, e seria uma referência à transmissão oral do conhecimento esotérico de mestre para discípulo. Os mais antigos foram compostos antes do Budismo, datando
talvez do segundo milênio antes de Cristo, e os mais recentes datam do
século XX. Todos os Upanishads são considerados revelações sagradas,
pertencendo à parte da sabedoria, em oposição à parte ritual da tradição
védica. As técnicas de Transcendência do Yoga surgem neste contexto
como ferramentas para canalizar a energia para o universo interior dos
homens. As referidas técnicas que se encontram descritas em diversas
111
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
passagens dos textos Upanisads, incluem, já neste período, a postura
correta, o controle da respiração, a entoação de mantras e, sobretudo a
concentração e a meditação (GNERRE, 2010).
No período clássico o sábio Patânjali produz uma compilação das
técnicas de Yoga já existentes. O Yoga Sutra foi o texto produzido por
esse sábio no sec. II a.C. depois desse período, o Yoga passa a ser reconhecido como sistema filosófico e constitui-se como um dos seis
sistemas ortodoxos. Segundo Gnerre (2010), a filosofia de Patânjali,
concebe o mundo através de um dualismo essencial entre o Si Mesmo
transcendente (Purusha) e a natureza manifestada das coisas (prakriti).
Para Patânjali, a nossa identificação com o corpo e a mente egóica, e
não com o Si Mesmo transcendente, é a causa do sofrimento humano. A distinção desta filosofia para o sistema Védico é que Patânjali não
aceitava a identificação proposta pelo sistema anterior entre o Si Mesmo Transcendente (Atman) e o fundamento transcendente do mundo
objetivo – Brahman.
Assim, a religião hindu pode ser considerada ao mesmo tempo poli
e monoteísta. Por isso temos, entre as práticas do Yoga, ao mesmo tempo concepções personalistas de uma Pessoa Suprema (Deus ou Deusa)
e a noção impessoal de um ser absoluto. Deste aspecto do hinduísmo
decorrem diferenças entre os ramos da prática do Yoga. Algumas seguem uma tendência mais religiosa (de adoração das divindades hindus
através de mantras, como no Bhakti Yoga), ao passo que outras tendem
a ser mais filosóficas e mais ligadas a um conceito de absoluto sem forma (como o Jnana Yoga, ou caminho da sabedoria auto-transcendente).
ou Yoga do corpo – constitui-se como um destes ramos. A raiz histórica
do HathaYoga remete ao século XI d. C., e por isso é considerada uma
forma de Yoga pós-clássica – pois sua origem está temporalmente situada no período posterior ao clássico, no qual prevaleceram as concepções do sábio Patânjali.
No século II d.C., Patânjali teria se tornado o grande compilador
dos conhecimentos sobre Yoga em seu texto Yoga Sutras, considerado
o marco do Yoga Clássico. A concepção de Patânjali era essencialmente dualista, e pensava na separação entre morte e vida, corpo e espírito, como elemento central na experiência do êxtase transcendental. Já
na HathaYoga este dualismo se dissolve, e o próprio corpo passa a ser
112
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
valorizado enquanto instrumento de iluminação. O surgimento desta
forma de Yoga relaciona-se ao advento do Tantrismo, ramo filosófico
que deixa de perceber o corpo como impuro, e passa a conceber o corpo como instância que também pode ser iluminada. Assim, a concepção central do HathaYoga é justamente a realização do Si Mesmo por
meio do aperfeiçoamento do corpo. Afinal, um corpo vigoroso seria um
pré-requisito para suportar a força da própria experiência transcendental.
Desse modo, o Yoga em sua origem é uma prática essencialmente
voltada para este aspecto espiritual e religioso do ser humano. Mas, trata-se também uma prática variada, que ao longo de sua história milenar
desenvolveu diversas técnicas de transcendência. Algumas destas técnicas estão diretamente relacionadas a práticas físicas, como a famosa
Hatha Yoga, ou Yoga do corpo.
No período pós-clássico ocorre à produção do texto Gheranda Samhita, onde ecoa voz das tradições tântricas. Embora seja uma matriz
ritualística muito antiga da tradição indiana, é na Índia medieval que o
tantrismo acaba se desenvolvendo na forma de várias escolas e tratados. E justamente por ganhar força neste período já avançado da história da Índia, acaba dialogando com as matrizes que o antecedem. Neste
sentido, o tantra pode ser considerado uma chave para compreendermos o próprio contexto histórico, filosófico e social, na qual a tradição do
Hatha Yoga se desenvolve. Os mestres tântricos aspiravam à criação de
um corpo divino, a morada de Deus, feito de substância imortal – o corpo de diamante. E este conceito de corpo de diamante è que dá origem
às posturas do Yoga e as diferentes práticas de purificação que fazem
parte desta técnica (GNERRE, 2011).
3. Hatha Yoga, o Yoga do corpo
O texto o Goracsa Sataka explica a palavra Hatha; Ha significa sol
e tha lua. Hatha, a união do sol com a lua. O termo também é utilizado
para designar o conjunto de regras e métodos tradicionais por meio das
quais se chega a dominar o corpo (ELIADE, 2004).
O Hatha yoga é considerado a mais importante das escolas do
Yoga pós-clássico que abarca um período compreendido entre os
113
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
séculos XII e XVII d.C. Trata-se de uma linha que representa as escolas
ligadas à tradição do tantrismo que criam o “cultivo do corpo adamantino” e desenvolve as posturas que tanto atraem os praticantes atuais.
Algumas das mais influentes linhas do Hatha Yoga são: Yengar Yoga,
Ashtanga-vinyasa yoga, Power yoga, Yoga integral, Kundalini yoga e yogaterapia integrativa.
O Yoga tem como objetivo principal o desenvolvimento espiritual
do ser, visando a autorealização, a descoberta da verdadeira natureza,
além do tempo e do espaço. Esse processo é facilitado pelos corpos livres da doença.
A ideia do corpo livre de doenças fundamenta toda tradição do Hatha Yoga, que tem suas origens no movimento tântrico da Índia medieval. Segundo Gnerre (2011) os mestres tântricos aspiravam à criação de
um corpo divino, a morada de Deus, feito de substância imortal – o corpo de diamante. E este conceito de corpo de diamante è que dá origem
às posturas do Yoga e as diferentes práticas de purificação que fazem
parte desta técnica.
4. Yoga, religião e espiritualidade
A palavra religião é definida por Geetz (2012) como sendo:
Um sistema de símbolos, que atua para estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da formulação de conceitos de uma ordem de existência
geral e vestindo estas concepções com tal aura de factualidade
que as disposições e motivações parecem singularmente realistas.
(GEETZ, 2012, p. 67)
O autor defende um conceito universal de religião, o que se torna
inviável, tendo em vista as características peculiares de cada cultura.
Nesse sentido, Assad (1993) argumenta que, não pode existir uma definição universal de religião não apenas porque seus elementos constituintes são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela
mesma, o produto histórico de processos discursivos.
114
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Prandi (1999, p. 267), apresenta o conceito de Yinger sobre religião:
A religião [...] pode ser pensada como um modo último de resposta
e de adaptação; é uma tentativa de explicar, o que de outra maneira não seria explicável; de recu.perar o vigor quando outras forças
terminam; e instaurar o equilíbrio e a serenidade diante do mal e
do sofrimento, que outros esforços não foram capazes de eliminar.
Desse modo, a civilização indiana, busca através da prática do
Yoga, com os diverso métodos e técnicas para alcançar a transcendência- a união da consciência individual com a consciência universal-,
libertar-se das amarras do ego, que produzem sofrimento. O objetivo
último do praticante de Yoga na índia é atingir o samadhi (iluminação).
No Brasil da Nova Era, poucos conseguem percorrer o caminho espiritual do Yoga. Os adeptos direcionam as práticas com o objetivo de exibir
um corpo perfeito, ou para a cura de doenças.
Quanto à espiritualidade Grof (2010), apresenta a seguinte definição:
A espiritualidade tem base em experiências direta de dimensões numinosas normalmente invisíveis da realidade.[...]. Não é necessário
um local especial ou pessoas especialmente indicadas para mediar o
contato com o divino. O contexto no qual experienciam as dimensões
sagradas da realidade, incluindo a própria divindade, é oferecida por
seus corpos e pela própria natureza. (GROF, 2010, p. 26)
Dessa forma, este estudo sobre Yoga, encontra-se contemplado
nesta definição, uma vez que, o yoga é uma filosofia indiana que nasceu
no período védico, onde havia o culto e experiências com divindades por
meio de métodos e técnicas que facilitavam o processo de transcendência da realidade.
De acordo com Hanegraff (1999), a religião pode se manifestar
como “uma espiritualidade”: “Uma espiritualidade = qualquer prática humana que mantém contato entre o mundo cotidiano e um quadro metaempírico mais geral de significado por meio da manipulação individual
de sistemas simbólicos.” O autor enfatiza que esse conceito de uma espiritualidade (plural: espiritualidades) é fundamental para interpretação
115
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
da Nova Era. Dentro de qualquer sistema simbólico – religioso ou não
religioso – “espiritualidades” podem surgir e, de fato, inevitavelmente
surgem. Isso porque as pessoas podem interpretar o simbolismo coletivo da religião em modos individuais, mas podem fazer o mesmo com
sistemas simbólicos não religiosos.
Assim, contextualizando o Yoga como uma espiritualidade, entendemos que os adeptos dessa prática, podem realiza-la interpretando o
simbolismo coletivo da religião Hindu.
A princípio estamos lidando com o fenômeno cotidiano: toda pessoa que dá um toque individual a símbolos religiosos existentes (mesmo
que seja apenas em um sentido mínimo) já está inserida na prática de
criar a sua própria espiritualidade. Nesse sentido, cada religião existente
gera várias espiritualidades como algo natural, e são apenas os casos
mais espetaculares que às vezes se tornam a base para uma nova tradição espiritual. “Espiritualidades” e “religiões” podem ser basicamente
caracterizadas como os polos individuais e institucionais dentro do domínio geral da “religião”. Uma religião sem espiritualidades é impossível
de imaginar. Mas, conforme será visto, o inverso – uma espiritualidade
sem uma religião – é perfeitamente possível, em princípio. Espiritualidades podem emergir a partir de uma religião existente, mas podem
muito bem emergir sem. A Nova Era é o exemplo dessa última possibilidade: um complexo de espiritualidades que emerge sobre o fundamento de uma sociedade secular pluralista. (HANEGRAFF, 1999).
5. Yoga no Brasil
O sistema Hatha yoga, tem sido a porta de entrada do Yoga no ocidente, num processo que tem início Brasil na primeira metade do século
XX. Mas, tanto aqui, quanto em outras sociedades ocidentais, podemos
dizer que, na maioria dos casos, a prática passa a ser incorporada à sua
cultura como uma espécie de ginástica ou um tipo de contorcionismo
que nos remete a uma tradição circense. Assim, temos esta dicotomia
básica entre corpo e espírito como um elemento marcante nas culturas ocidentais. Dessa forma, esta divisão torna difícil a compreensão do
116
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
yoga como prática espiritual já que ela vem sendo apresentada, sobretudo, como uma prática física aos nossos olhos (GNERRE, 2010).
O desenvolvimento do Yoga como forma de espiritualidade no
Brasil não alcança seu objetivo esperado. Cada vez mais a ditadura
da beleza reforça a busca pela silhueta delineada, curvas perfeitas e a
atenção geralmente voltada para o mundo externo.
O yoga é difundido no Brasil, durante o fenômeno da Nova Era, no
regime militar e ganha adeptos da contra cultura e entre os militares
o professor Hermógenes é o mestre militar mais conhecido, inclusive
escreveu vários livros sobre a prática do Yoga.
De acordo com Lima (2010), no Brasil, a primeira notícia sobre
Yoga data dos anos 50 do sec. XX. A academia Hermógenes é fundada
em 1962 no Rio de Janeiro. Em 1964, De Rose funda o Instituto Brasileiro de Yoga. Assim nas décadas de 50 e 60, deu o surgimento das
academias e o aparecimento dos pioneiros na instrução de Yoga no Brasil. Eles foram autodidatas e se formaram através de viagens à Índia e
muita leitura. Nas décadas de 70 e 80, a história do Yoga no Brasil é caracterizada pela sua popularidade e fundação das Associações de Yoga.
Hoje há diversos cursos de formação e mais de trinta linhas diferentes.
Estima-se mais de cinco milhões de praticantes entre as diversas linhas
de modalidades.
6. Yoga no Brasil da Nova Era
A terminologia “era”, está ligada aos aspectos astrológicos. Antes
era denominada a era de aquário, ou seja apontava para o fato do planeta terra estar entrando em uma nova era, saindo da de peixes e entrando na de aquário. Cada era astrológica dura em torno de 2.100 anos.
A era de peixes representou o domínio do cristianismo e da civilização
ocidental. A nova era de aquários provocaria profundas alterações no
ser humano, no modo de pensar, no agir, na maneira de se relacionar
com a natureza e com o sobrenatural (GUERRIERO, 2006).
Segundo Hanegraff (1999) o movimento da Nova Era representa o fenômeno historicamente inovador de um tipo secular de religião ancorado em um simbolismo radicalmente privado. Essa tese é
117
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
desenvolvida no contexto de uma definição tríplice de religião, segundo a qual a “religião” em geral pode se manifestar tanto na forma de
“religiões” quanto de “espiritualidades”. A secularização, nesse contexto, não diz respeito a um declínio ou desaparecimento, mas a uma mudança profunda da religião sob o impacto de novos desenvolvimentos.
A essência desse processo reside na autonomização das “espiritualidades” em relação às “religiões”: enquanto as espiritualidades tradicionalmente estiveram incorporadas ao simbolismo coletivo de uma
religião existente, as espiritualidades da Nova Era são manifestações
de um simbolismo radicalmente privado, incorporado na cultura secular. Do ponto de vista histórico, esse fenômeno é novo e sem precedentes. Especial atenção é dada à forma como e porque o simbolismo
particular no contexto da Nova Era tende a concentrar-se no “Self” e
sua evolução espiritual.
O autor enfatiza que, a Nova Era exemplifica um novo fenômeno
que pode ser definido como uma “religião secular” baseada em “simbolismo privado”. Como tal, representa um desafio para os sociólogos,
bem como para os historiadores da religião. O desafio consiste em tentar entender que o fenômeno da Nova Era pode nos ensinar sobre os
processos de modernização e secularização, e sua importância no que
diz respeito ao estudo sistemático das religiões.
Com relação ao movimento da Nova Era nos dias atuais, Sampaio
(2017, p. 83), realizou uma pesquisa etnográfica na cidade de Campina
Grande e relatou que:
Com o advento da (pós) modernidade , com a tão debatida, resumida secularização; com o inexorável pluralismo religioso em oposição
ao histórico monopólio de uma única religião no Ocidente e ainda
com o boom da Nova Era a partir dos anos 80, 90, muita tinta se
gastou na literatura especializada para mostrar a “desregulação do
religioso”, as “fronteiras borradas” do campo religioso, as movências, os sincretismos, os hibridismos e a pluralidade de um campo
religioso cada vez mais multifacetado. Talvez se pudesse acreditar
numa certa facilidade em ser “plural” num mundo (pós) moderno,
embora os fundamentalismos e as ortodoxias não tenham evidentemente saído de cena. Sempre estiveram ali, como a outra face da
(pós) modernidade, ou como o resquício de um mundo velho que
não se deseja mais. O que estamos querendo indicar é que houve
118
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
um conjunto de fatores [...] que, de certa forma, nos conduziram a
pensar numa certa “facilidade da pluralidade”, mas as experiências
vividas nos últimos Encontros da Nova Consciência têm revelado
justamente a dificuldade em ser plural, mesmo no século XXI.
Desse modo, verificamos os entraves existentes na cultura brasileira, no tocante a pluralidade religiosa. A Nova Era mostra como é difícil,
no mundo (pós) moderno, expressar as mais diversas formas de vivenciar a religiosidade e espiritualidade.
Um estudo realizado por Guerreiro (2016) que o movimento da
Nova Era sofreu mudanças ao longo da história. No início, na década de
1960, apresentava características mais milenaristas e ficava restrito a
círculos específicos. Após alguns anos, seus componentes constitutivos
passaram a ser difundidos na sociedade e incorporados na cultura mais
ampla, formando um ethos nova era.
A história do Yoga no Brasil se constitui em três fases: uma fase
inicial com a chegada da prática, que antecede a emergência da chamada nova era, uma segunda fase de difusão pelos professores Hermógenes e DeRose e a terceira fase, de novos discursos que emergem
à partir de revistas especializadas, grupos de estudos nas academias,
entre outros.
7. a divulgação do Yoga por meio dos militares
Vale destacar que, Uma informação histórica importante é que na
cidade de Resende, no Rio de Janeiro, onde Sevananda funda seu mosteiro, estava instalada também a sede da Academia Militar das Agulhas
Negras, uma das mais importantes escolas militares do Brasil. Provavelmente esta coincidência geográfica permite que o Yoga passe a ser
disseminado na sociedade brasileira também entre os militares, justamente nos primeiros anos da ditadura. Assim, o Yoga não entra em nossa cultura apenas pelo viés do Movimento da Nova Era (ligado a Hippies
ou esotéricos), mas também com o conhecimento dos próprios militares
(GNERRE, 2010).
119
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A religião Nova Era pode ser definida como uma forma de “esoterismo secularizado”: está enraizada nas chamadas tradições esotéricas ocidentais que podem ser rastreadas até o início do Renascimento,
masque passaram por um profundo processo de secularização no século XIX. O novo fenômeno de um esoterismo secularizado é mais conhecido como “ocultismo”, atingindo o desenvolvimento completo no início
do século XX e foi eventualmente adotado pelo movimento da Nova Era
esoterismo secularizado de um lado (um fenômeno que pertence primariamente à história das ideias, e que surgiu durante o século XIX), e
o movimento da Nova Era de outro (um fenômeno social que emergiu
durante a década de 1970 e que adotou e desenvolveu um sistema de
crenças de esoterismo secularizado) (HANEGRAFF, 1999).
Segundo Magnólia Gibson Cabral da Silva (docente da UFCG – PB)
define da seguinte maneira, em artigo recente, os conceitos de Nova
Era e Esoterismo: “O Movimento Nova Era, responsável pela difusão
destas tradições no Ocidente contemporâneo, é considerado pelos estudiosos como o ‘acabamento’ das idéias que surgiram nos séculos XVI,
XIX e XX na Europa com os Movimentos Esotéricos, que estabelecem
pontos de convergência entre ciência e religião, Oriente e Ocidente.
(GNERRE, 2010).
9. Considerações finais
O sistema hatha yoga, oferecem possibilidades de alcançar o
samadi(iluminação) pelo praticante de Yoga. Os métodos utilizados nas
práticas do Yoga possibilitam a percepção do corpo sutil, por meio da
visualização, execução de posturas, exercícios respiratórios e entoação
de mantras viabilizam o processo.
De uma forma pedagógica o praticante de Yoga aprende gradativamente a substituir velhos por novas formas de viver. Levar o autoconhecimento para pessoas que buscam a mudança de atitudes em benefício de bem estar e saúde, deve ser o objetivo daqueles que buscam
conhecer melhor o sistema Yoga e aplicar os ensinamentos nas suas
vidas, como forma de construir a paz em si mesmo, na relação com o
outro e no universo cósmico.
120
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O aprendizado do Yoga é contínuo e requer muita disciplina, esforço e dedicação. Entretanto, todo empenho é recompensado pelos resultados produzidos do decorrer do processo. A atenção no aqui e agora,
a paz espiritual, a plenitude do ser, a conexão com o divino fazem parte
da tradição do Yoga e podem ser experimentados por todos que buscam
a prática de qualquer uma das modalidades descritas nesse trabalho.
Além da incorporação sincrética por parte daqueles que já se identificam com uma religião tradicional, o Yoga tem se tornado uma forma
de prática espiritual para muitos adeptos que se encontram destituídos
de uma religiosidade em sua vida cotidiana – fenômeno tão característico da sociedade materialista contemporânea. Desse modo, embora
existam muitos discursos centrados no físico, pode-se é possível perceber que na sociedade brasileira também há também espaço para as
características espirituais da prática de Hatha Yoga.
Segundo Zica e Gnerre (2016) o Yoga indiano seria um pressuposto
de harmonia entre os movimentos da natureza e a própria movimentação humana, guiada na maior parte das vezes pela respiração. Por meio
dessa sinfonia fina entre o praticante e o fluir da natureza, que representa a própria ordem do universo, é possível sintonizar o ser individual a todas as coisas que existem. A unidade e a multiplicidade. Assim,
pode-se dizer em tal tradição, é possível estabelecer a unidade plena
através do movimento.
A Nova Era, foi um movimento de grande importância para a divulgação das práticas de Yoga no Brasil. Outros trabalhos podem ser realizados para o fortalecimento da cultura indiana no território brasileiro.
121
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ASAD, Talal. The construction of
religion as na Antroplogical category.
In Asad Talal, Genealogies of religion:
discipline and reasons of Power
in crisanity and Islã. Baltimori and
London: Teh Jonhns HopkinsUniversity
Press, 1993, p. 27-54. Tradução:
REINHARDT, , Bruno; Dullo,Eduardo.
A construção da Religião como uma
categoria Antropológica. Cadernos de
Campo, São Paulo, n. 19, p. 263-284,
2010. Disponível em: http://www.
sumários.org/sities/default/files/
pdfs/cadernos_campo_19_p263284_2010.pdf. Acesso em 18 de
set.2012.
FEURSTEIN, Georg. A Tradição do
Yoga. São Paulo, Pensamento, 2005.
ELIADE,Mircea. Yoga: imortalidade e
liberdade. São Paulo: Palas Athena,
1996.
GEETZ, Cliford. A religião como
sistema cultural. In: Interpretação das
culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012,
p. 65-91.
GNERRE, Maria Lúcia Abaurre.
Religiões Orientais: uma introdução.
João Pessoa. Ed. Universitária, 2011.
GUERRIERO, Silas. Novos
movimentos religiosos: o quadro
brasileiro. São Paulo: Paulinas, 2006.
______. Identidades e paradoxos
do Yoga no Fronteiras: Revista de
História. Universidade Federal da
Grande Dourados- V. 12, n. 21, Jan/
Jun., 2010.
GUERRIERO, Silas; STERN, Fábio,
L.; BESSA, Marcelino de Queiroz.
A difusão do Ethos Nova Era e o
declínio de estudos acadêmicos do
Brasil. Revista de Estudo da Religião
(REvER), v. 16, n. 13, 2016.
HANEGRAFF, Wolter J. New Age
spiritualities as secular religion:
a historians perspective. Social
Compass, 46(2), 1999, pp 145-160)
(tradução de Fábio L. Stern).
HÉRMÓGENES, José. Autoperfeição
com Hatha Yoga, um clássico sobre
saúde e qualidade de vida. Ed.Nova
Era, Rio de Janeiro, 2004.
PRANDI, Carlo. As Ciências das
Religiões. São Paulo: Paulus, 1999,
p. 253-275 / p. 282-284.
SAMPAIO, Dilaine. É fácil ser Plural?
Uma análise dos últimos encontros
da Nova Consciência de Campina
Grande-PB. Doi:http//dx.doi.
org/10.2017.24/rever vl 6i3.31183
YENGAR, Bks, A sabedoria e prática
do Yoga: Saúde, harmonia e equilíbrio
do corpo e da mente. Ed. Publifolha,
São Paulo, 2010.
ZICA, Matheus da Cruz; Gnerre,
Maria Lúcia. Índia “Ocidental”,
China“tropical”: uma “espiritualidade
do corpo” como elemento propiciador
de encontros culturais no Brasil.
Revista Horizonte. v. 14, nº 43, jul./
set. 2016-Dossiê: Espiritualidades,
Filosofias e Religião do Oriente.
[ Volta ao Sumário ]
122
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a tRajetóRia de dom
josé maRia piRes na
aRquidioCese da paRaíBa
Jaqueline Leandro Ferreira
Como referenciar este capítulo:
FERREIRA, Jaqueline Leandro. A trajetória de dom José Maria Pires na arquidiocese da Paraíba. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque
(Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos
e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR /
Fogo Editorial, 2020, p. 123-136.
Jaqueline Leandro Ferreira1
Introdução
Pretendemos, neste texto, discorrer sobre a trajetória do arcebispo Dom José Maria Pires na Arquidiocese da Paraíba, atentando, especialmente, para os contornos que a presença do arcebispo implementou
após a sua chegada na referida diocese após 1966. A escolha por percorrer esta narrativa se deu, notadamente, pela necessidade de entender como a atuação de Dom José Maria Pires esteve vinculada à Teologia
da Libertação. Para tanto, nos propomos a analisar, a seguir, o início da
trajetória de Dom José Maria Pires como arcebispo da Paraíba, percebendo como o nosso personagem se insere nesse contexto, através da
análise de alguns documentos, tais como pronunciamentos e textos do
arcebispo quando da sua chegada na Paraíba e nos anos iniciais seguintes de sua atuação.
Formação clerical
Dom José Maria Pires foi seminarista na cidade de Diamantina,
tornou-se Pároco de Curvelo e, posteriormente, foi nomeado bispo de
Araçuaí-MG (o primeiro bispo negro do Brasil), em 1957. Dom José Maria
Pires foi bispo conciliar do Concílio Vaticano II (1962-1965) participando
das suas quatro sessões: a primeira entre outubro e dezembro de 1962;
a segunda entre setembro e dezembro de 1963; a terceira entre setembro e novembro de 1964 e a quarta e última, que ocorreu entre setembro
Mestre em História pelo PPGH/UFCG. Doutoranda em História pelo PPGH da UFPE. Trabalho vinculado a pesquisa de doutoramento, orientada pelo professor Doutor Antonio
Torres Montenegro (http://lattes.cnpq.br/2193041856804070). Link para o Lattes da autora (http://lattes.cnpq.br/7843268722654727).
1
124
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e dezembro do ano de 1965. Signatário do Pacto das Catacumbas2, a participação de Dom José em todas as sessões do Concílio Vaticano II teve
ressonância nos seus discursos e práticas, como veremos adiante.
O Concílio vaticano II
A convocação do Concílio Vaticano II3 foi feita pelo então papa João
XXIII e foi realizada entre os anos de 1962 e 19654. O Vaticano II assentou um importante debate sobre a abertura da Igreja ao mundo secular.
O pacto aconteceu um pouco antes da clausura do Concilio Vaticano II e evidenciava a
necessidade de uma posição que corroborasse com uma vida de pobreza segundo o Evangelho. O resultado desse pacto foi um documento composto por 13 pontos que ressaltavam o compromisso dos integrantes para uma vivência mais humilde e no compromisso
pela luta dos mais pobres. No dia 16 de novembro de 1965, nas catacumbas romanas
de Domitila, 40 padres Conciliares celebraram uma Eucaristia para pedir fidelidade ao
Espírito de Jesus. Nessa celebração, firmaram o que ficou conhecido como o “Pacto das
Catacumbas”. Um dos principais animadores do grupo era Dom Helder Câmara, arcebispo
de Olinda e Recife e que foi um dos principais praticantes da Teologia da Libertação no
Nordeste, e por isso também, um dos mais perseguidos e vigiados pela Ditadura Militar
brasileira. Dentre os que assinaram o pacto no dia da sua proposta e aqueles que o fizeram depois, vale destacar a forte expressividade dos bispos do Nordeste, dentre eles
Dom João Batista da Mota e Albuquerque, arcebispo de Vitória, ES; o Pe. Luiz Gonzaga
Fernandes, que estava para ser sagrado bispo auxiliar de Vitória dias depois, lá mesmo em
Roma; Dom Jorge Marcos de Oliveira de Santo André, SP; Dom Henrique Golland Trindade,
OFM, arcebispo de Botucatu, SP. Desses, metade, ou seja, quatro, eram representantes do
Nordeste. Eram eles: Dom Antônio Fragoso, de Crateús-CE; Dom Francisco Austregésilo
Mesquita Filho, de Afogados da Ingazeira, PE; Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda
e Recife; Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba, PB. (PACTO DAS CATACUMBAS DA
IGREJA SERVA E POBRE, 1965).
3
Quando da anunciação da convocação do Concílio Vaticano II, se pensou que este seria
uma continuidade do Concílio do Vaticano I (1870), convocado pelo papa Pio IX. Segundo
Silva (2008), o Vaticano I, caracterizou-se pela reafirmação da unidade da Igreja católica
frente ao mundo moderno. Foi nesse momento que fora definida a infalibilidade papal – o
papa tornara-se infalível quando tomou decisões dogmáticas, inquestionável – a força
da Igreja católica seria, então, reafirmada, especialmente contra a ciência e sua postura
crítica em relação ao pensamento religioso. Neste sentido, o Vaticano I se fecha ao mundo
moderno, diferentemente da tentativa feita pelo Concílio do Vaticano II.
4
Os documentos decorrentes do Concílio Vaticano II podem ser acessados na página do
Vaticano através do link <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm>
2
125
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Alguns autores denominaram o período pós-conciliar de “Primavera da
Igreja, momento em que emergiram movimentos tão díspares quanto
a Revolução Carismática Católica, nos Estados Unidos, e a Teologia da
Libertação – TL, na América Latina”5.
A reunião de bispos e teólogos do Vaticano II era realizada em sessões que duravam cerca de três meses. Algumas constituições, declarações e decretos6, surgidos durante esses anos, ponderaram sobre os
mais diversos assuntos, como, por exemplo, tratando da relação da igreja
com os pobres, ressaltando: “como Cristo realizou a obra da redenção na
pobreza e na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir pelo mesmo
caminho para comunicar aos homens os frutos da salvação”7. A Lumen
Gentium (Sobre a Igreja) é uma constituição dogmática – assim como a Dei
Verbum – por isso, de fundamental importância para refletir sobre os dogmas, que são base para a fé católica. Os documentos lançados durante o
Vaticano II refletiam sobre essas problemáticas, enfatizando a necessidade de a Igreja estar atenta aos problemas reais dos cristãos na terra, assim expressa: “[...] a Igreja terrestre e a Igreja ornada com os dons celestes não se devem considerar como duas entidades, mas como uma única
realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino”8.
Nomeação e posse como arcebispo da Paraíba
Em 1965, Dom José Maria Pires foi ordenado arcebispo da Paraíba, o quarto a assumir o cargo. Ao tomar posse, no dia 26 de março de
BRITO, Lucelmo Lacerda. medellín e Puebla: epicentros do confronto entre progressistas e conservadores na América Latina. Revista Espaço Acadêmico – n° 111 – Agosto de
2010. p. 20.
6
Constituições: Dei Verbum, Lumen Gentium (Constituições Dogmáticas), Sacrosanctum
Concilium, Gaudium et Spes (constituições Disciplinares); Declarações: Gravissimum Educationis, Nostra Aetate, Dignitatis Humanae; Decretos: Ad Gentes, Presbyterorum Ordinis,
Apostolicam Actuositatem, Optatam Totius, Perfectae Caritatis, Christus Dominus, Unitatis Redintegratio, Orientalium Ecclesiarum, InterMirifica. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm> Acesso: 15/04/2019.
7
CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM, 1964.
8
CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM, 1964.
5
126
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
1966, Dom José fez um pronunciamento em frente ao Palácio do Carmo,
na praça Dom Adauto, na cidade de João Pessoa. Em seu primeiro pronunciamento, falou sobre sua trajetória eclesiástica e saudou a Nossa
Senhora das Neves, padroeira da cidade de João Pessoa. Com a presença das autoridades locais, como o então Governador do Estado da Paraíba, João Agripino (1966-1971), Dom José Maria destacou um suposto
posicionamento popular do governador, ressaltando o seu compromisso com as necessidades do povo. Dom José ressaltou a necessidade da
união de forças da Igreja e do Estado para o desenvolvimento material
do homem, destacando que não haveria condições para o desenvolvimento da missão sobrenatural da Igreja, em relação aos homens, se não
houvesse, também, o desenvolvimento material destes, uma vez que,
para o arcebispo, seria impossível dissecar o homem, dividindo-o entre
corpo e alma. O desenvolvimento espiritual e material, portanto, deveriam caminhar juntos9.
Ainda durante o pronunciamento em frente ao Palácio do Carmo, Dom José saúda o Monsenhor Pedro Anísio. Segundo as palavras
do primeiro, o monsenhor era a representação do clero ligado às tradições da Igreja. De acordo com Dom José, esse clero, no entanto, deveria
entender a importância de abrir-se para novos desafios, estimulando
“os seus filhos, sacerdotes, a acompanhá-la nessa verdadeira jornada
pelo desenvolvimento integral do homem”10. Dom José encaminha seu
pronunciamento dedicando, segundo suas palavras, com maior afeto, saudações àqueles que mais sofrem, como os “pobres, doentes e
encarcerados”11. Dom José Maria Pires fez, ainda, mais três pronunciamentos de posse, um na Igreja do Rosário, outro quando da primeira
visita ao poder legislativo e, por fim, quando da sua visita ao Tribunal de
Justiça do Estado.
Tomada de Posse – Primeiro Pronunciamento ao chegar em João Pessoa, em frente ao
Palácio do Carmo, na Praça em 26 de março de 1966. In: Dom José maria Pires: uma voz
fiel à mudança social /[organização e notas Sampaio Geraldo Lopres Ribeiro]. São Paulo:
Paulus, 2005.
10
Tomada de Posse – Primeiro Pronunciamento ao chegar em João Pessoa, em frente
ao Palácio do Carmo, na Praça em 26 de março de 1966. Dom José maria Pires: uma voz
fiel à mudança social /[organização e notas Sampaio Geraldo Lopres Ribeiro]. São Paulo:
Paulus, 2005, p. 16.
11
Tomada de Posse – Primeiro Pronunciamento ao chegar em João Pessoa, em frente ao
Palácio do Carmo, na Praça em 26 de março de 1966.
9
127
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
No dia 27 de março de 1966, na Igreja do Rosário, Dom José Maria
Pires destaca um compromisso de encaminhar a Igreja da Paraíba em
ressonância com o Vaticano II. Para tanto, destaca o papel de uma Igreja
que se insere no mundo como “fermento em sua construção”, de acordo
com Dom José Maria Pires:
Enquanto imperar a fome, a miséria, o analfabetismo, enquanto
não se respeitar no operário ou no camponês a dignidade da pessoa humana, os cristãos não estarão sendo cristãos, a Igreja não estará sendo
uma comunhão sem circulação de bens, de todos os bens, seja os do
espírito, seja os do corpo ou do exterior.12
Alguns elementos nos chamam atenção na fala de Dom José Maria
Pires. Primeiro destacamos a fala do arcebispo ressaltando a necessidade de que a Igreja possa se inserir no mundo, isto é, se envolver nos
problemas sociais que permeiam as realidades históricas dos sujeitos
em determinados espaços, como no Nordeste, por exemplo. Ao longo da
sua fala, Dom José destaca a necessidade de agir para diminuir o analfabetismo e a fome. O arcebispo destaca, ainda, a tarefa da Igreja para
além do espiritual, ou seja, uma tarefa também material que ajude na
promoção da circulação de bens, promovendo, assim, uma plena comunhão entre os homens.
A discussão em torno de uma Igreja “encarnada”, isto é, que tome
os problemas cotidianos dos sujeitos na sua dimensão histórica e material como parte de sua missão, foi tratado por inúmeros teólogos e
clérigos ao longo das décadas de 1970 e 1980. Dentre esses, destacamos, por exemplo, as obras do frei Leonardo Boff (1982) que chegou,
inclusive, a ser condenado pelo Vaticano ao silêncio obsequioso pela sua
obra Igreja: carisma e poder13. Para tratar do papel da Igreja para além do
espiritual, Boff propõe uma concepção de antecipação escatológica. Para
Boff, a Igreja não pode ser entendida de forma isolada, mas a partir de
realidades que a transcendem. Ela não pode ser entendida dentro de
Sermão de Dom José Maria Pires na Igreja do Rosário em 27 de março de 1966, Dom
José maria Pires: uma voz fiel à mudança social /[organização e notas Sampaio Geraldo
Lopres Ribeiro]. São Paulo: Paulus, 2005. p. 12.
13
BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. Ensaios de Eclesiologia militante. 3ª edição.
Editora Vozes: Petrópolis, 1982.
12
128
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
uma gama de dogmas que visam apenas a manutenção de uma tradição, mas deve levar em conta as realidades do mundo em seus diferentes contextos. Segundo o referido teólogo, é no mundo que se deve
pensar a realização histórica do Reino. A Igreja seria, portanto, o sinal do
Reino, sua concretude explícita e o instrumento capaz de mediar essa
prática no mundo. Vejamos como Boff entende essa relação:
Cumpre articular numa ordem correta estes três termos. Primeiro
vem o Reino como a primeira e última realidade englobando todas
as demais. Depois vem o mundo como o espaço da historificação do
Reino e de realização da própria Igreja. Por fim vem a Igreja como
a realização antecipatória e sacramental do Reino dentro do mundo e mediação para que o Reino se antecipe mais densamente no
mundo.14
Ainda, segundo o referido autor (1982), a práxis é um elemento
fundamental para a tarefa mediadora que a Igreja tem no mundo,
não apenas em seu aspecto sacramental, mas como instrumento que
busque a antecipação desse Reino, isto é, na luta contra as injustiças
e na busca de uma sociedade fraterna e de igualdade na realidade
concreta, no mundo. Os discursos proferidos pelo arcebispo paraibano
Dom José Maria Pires estão carregados desses elementos que,
acreditamos, estarem em ressonância com sua atuação no Concílio
Vaticano II. A participação de clérigos e teólogos nessa reunião conciliar
não determinaram, contudo, que esses sujeitos repercutissem em suas
dioceses e práticas religiosas as conclusões e orientação do documento
final do Vaticano II. Dom José Maria Pires, contudo, parece ter ecoado
em seus discursos e práticas uma orientação próxima às conclusões do
Concílio e da Teologia da Libertação.
Ao tomar as questões locais e contextuais como parte da atuação clerical, o arcebispo paraibano Dom José Maria Pires se coloca,
por exemplo, diante de questões políticas que faziam parte do cenário
em que estava inserido. O lugar de poder em que se encontrava fazia
com que ocupasse determinados espaços que o possibilitavam emitir
14
BOFF, Leonardo. 1982, p. 16.
129
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
posicionamentos contrários, por exemplo, a forma como o regime militar conduzia sua prática governamental instituindo limitações às liberdades individuais. Assim, quando de sua primeira visita ao Poder
Legislativo da Paraíba, no dia 29 de março de 1966, Dom José Maria
Pires emitiu um discurso condenando o cerceamento do direito ao voto
implementado pelo governo militar desde 1964. Dom José Maria faz referência ao voto, como expressão da manifestação popular e da vontade
de Deus. Assim destaca:
Faço profissão de fé na democracia. Não aceito, sem mais nem menos, a afirmação de que o poder vem do povo, a não ser que se
considere aqui o povo como causa instrumental e não como causa
original ou eficiente ao poder. O poder vem de Deus. Mas Deus o
comunica através da manifestação popular que ordinariamente é
o voto. O legitimamente eleito adquire direito de ser acatado, porque é revestido de uma autoridade divina em sua origem. Dessa
autoridade, porém, ele só pode servir-se em benefício comum e
não em proveito próprio de uma facção política ou de um credo
religioso. (...) E, se o poder vem de Deus através do voto popular,
não há justificativas para as ditaduras. Não somos pela anarquia
nem pela deliberação da autoridade. Não aplaudimos aqueles que,
sob pretexto, recusam a submissão devida ao poder constituído.
(...) Mas autoridade e cerceamento da liberdade, além do estritamente necessário para garantir o bem comum, não são sinônimos.
Falo como simples homem do povo. E o homem do povo ainda não
entende por que lhe negaram, por que não é mais permitido aos
cidadãos se agruparem em pequenos partidos políticos. (...) Permitir a existência, apenas a existência dos grandes partidos, não
seria sufocar a liberdade política, desde que os pequenos partidos
não constituem uma ameaça à segurança nacional ou ao bem da
sociedade? Faço minha profissão de fé na oposição. Ao meu ver,
ela não é um mal necessário, mas um bem necessário. (...) Creio
na oposição como poder moderador, como força complementar
diversa mas não necessariamente adversa.15
Discurso na primeira visita de Dom José Maria Pires ao poder Legislativo do Estado da
Paraíba, 29 de março de 1966. Dom José maria Pires: uma voz fiel à mudança social /
[organização e notas Sampaio Geraldo Lopres Ribeiro]. –São Paulo: Paulus, 2005, p. 28.
15
130
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
É interessante notarmos que, ao ressaltar o direito ao voto
enquanto representação do poder de Deus, Dom José, também,
condena o que ele intitula de anarquia ou recusa à submissão ao poder
constituído. Parece-nos que, apesar de se colocar contra as práticas
adotadas pela ditadura militar de não permitir, por exemplo, a escolha
direta dos representantes políticos por meio de eleição, Dom José Maria
Pires recusa, porém, deslegitimar o lugar de poder e de hierarquia da
qual a própria Igreja Católica se utiliza através de uma organização
estruturada com base nesses dois elementos.16 O lugar ocupado pelo
próprio arcebispo era também um lugar de poder. Para o arcebispo, o
poder constituído deveria ser respeitado no caso em questão, desde
que a dinâmica democrática e a escolha de representantes políticos,
através do voto direto, fossem respeitadas.
Em outros momentos, em discursos, Dom José Maria Pires retomou o tema do respeito as liberdades individuais. Em texto intitulado
O homem livre, imagem de Deus, o arcebispo direcionou sua leitura para
uma turma de formandos da UFPB, no ano de 1966, refletiu sobre a
liberdade a partir da ótica da criação divina. Dom José destacou em seu
discurso que a liberdade fazia parte, essencialmente, do homem enquanto criação divina, “preferiu Deus os riscos da liberdade às seguranças da escravatura”. A fala de Dom José ressalta, ainda:
Sendo os homens livres e iguais, são os homens sociais também. E a liberdade exigida para o indivíduo, a Igreja a deseja para
os grupos sociais – Liberdade “de se reunirem, de se associarem,
de exprimirem as próprias opiniões” (442), liberdade que não se
16
O Teólogo brasileiro Leonardo Boff, adepto da Teologia da Libertação, em sua obra Igreja: carisma e poder (1982), trouxe importantes reflexões quanto ao lugar que o poder
e a hierarquia ocuparam na constituição da Instituição Católica ao longo da história. O
referido autor realizou uma leitura crítica de como, historicamente, a Igreja Católica se
apropriou do poder através de pactos estabelecidos com o Estado, estabelecendo, por
exemplo, uma instituição hierárquica com poucas possibilidades de participação popular.
Para superar esse modelo historicamente amparado no poder e numa hierarquia fechada
e centralizadora, Boff (1982) propõe um novo modelo de Igreja baseado nos carismas, que
seriam as potencialidades individuais dos sujeitos. Apesar de elaborar duras críticas ao
modelo hierárquico, Boff (1982) entende que a hierarquia também faria parte dos carismas como um dom individual. Para o autor, contudo, esse não poderia ser confundido com
um lugar de poder rígido e centralizador.
131
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
funda em algarismo nem depende de quantos constituem um grupo humano, por isso a Igreja firmemente reivindica “que se respeitem os direitos das minorias no interior de uma nação” (443).17
Dom José Maria Pires retoma alguns trechos dos documentos do
Concílio Vaticano II, especificamente a Constituição Gaudium et Spesn,
para tratar sobre o cerceamento da liberdade por parte do poder político. É interessante destacarmos que o discurso do arcebispo foi direcionado a estudantes universitários da UFPB. Nessa instituição, as práticas
de vigilância, controle e punição a alunos que participavam de qualquer
movimento contrário a ditadura militar iam desde suspensão temporária até o desligamento definitivo da instituição. Em consulta aos documentos do DOPS-PB, identificamos listas de nomes de alunos suspensos e desligados da referida universidade acusados, segundo a Ideologia
de Segurança Nacional, de “envolvimento em atividades subversivas”.18
A UFPB possuía um aparato de vigilância e repressão das atividades estudantis que serviram de modelo, inclusive, para a ampliação
desses dispositivos em outras Instituições. De acordo com Rodrigo Patto Mota, em texto intitulado Os espiões do Campi (2014), a repressão se
instalou na UFPB através da atuação do reitor Guilardo Martins Alves,
capitão-médico do Exército, nomeado interventor na instituição, logo
após o golpe de 1964 quando foi destituído o então reitor Mário Moacyr
Porto. Segundo Patto Mota (2014):
Na UFPB, cujo reitor “anfíbio” (o militar e professor Guilardo Martins Alves) também já demonstrara seu empenho “purificador”, no início
de 1969 já estava em funcionamento um Serviço de Segurança de Informação. Essas experiências precursoras podem ter estimulado e inspirado a criação de agências de informação em todo o sistema universitário,
o que só aconteceu oficialmente em 1971. Graças a seu pioneirismo,
a Aesi/UFPB foi das mais bem-organizadas e atuantes na primeira
PIRES, Dom José Maria. O homem livre, imagem de Deus – in: Dom José maria Pires:
uma voz fiel à mudança social /[organização e notas Sampaio Geraldo Lopres Ribeiro].
–São Paulo: Paulus. 2005, p. 42.
18
ARQUIVO DO DOPS, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, UFPB.
17
132
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
metade dos anos 1970, quando seu regimento interno servia de modelo
para agências congêneres.19
A fala de Dom José Maria Pires assumiu, assim, um tom de denúncia das restrições das liberdades e da perseguição que ocorria no campus da UFPB desde o momento imediato pós-golpe, quando da atuação
do interventor Guilardo Martins. O discurso do arcebispo foi realizado
no ano de 1966, ainda durante o seu primeiro ano na Arquidiocese da
Paraíba.
No dia 6 de maio de 1973, os bispos e superiores do Nordeste publicaram o documento Eu ouvi os clamores do meu povo20. De acordo com
Löwy (2000): “Esses documentos foram, na verdade, as declarações
mais radicais jamais publicadas por um grupo de bispos em qualquer
parte do mundo”21. Seu conteúdo subdivide-se em apontamentos, tais
como: a realidade do homem nordestino; alguns elementos sobre as raízes desta situação; A caminho do desenvolvimento?; Subdesenvolvimento
como fatalidade?; Subdesenvolvimento como opressão; Milagre brasileiro?;
Marginalização crescente; O problema agrário. Dos dezessete clérigos que
assinaram o documento, sete pertenciam ao clero secular ou regular do
Estado de Pernambuco, os demais eram de outros estados da região.
Da Paraíba, apenas o arcebispo Dom José Maria Pires assinou, inicialmente, o manifesto.
O discurso de salvação numa dimensão transcendental, no reino de
Deus, passa a ser entendido enquanto uma antecipação, ou seja, o reino
de justiça e liberdade sendo buscado em um plano terreno. Esta é uma
problemática, a nosso ver, referencial para a Teologia da Libertação e que
esteve presente em vários discursos do arcebispo Dom José Maria Pires.
Essa realidade histórica não constitui apenas um produto de um
processo social simétrico, mas, teologicamente, significa a antecipação
e preparação do Reino de Deus e do Povo de Deus escatológico22. É essa
concepção que permeia o documento Eu ouvi os clamores do meu povo
19
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os espiões dos Campi. in: As Universidades e o Regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, págs: 193/241, p. 196.
20
Idem. Ibidem.
21
LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina. Tradução:
Vera Lúcia Melo Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 145.
22
BOFF, Leonardo. Op. Cit p. 185.
133
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
publicado pelos bispos e superiores religiosos do Nordeste, a “responsabilidade de pastores nos coloca, mais uma vez, diante de um desafio:
a fidelidade contínua a este homem, dentro do seu contexto histórico”23.
O documento aponta a situação dos altos índices de desemprego e do
subemprego, a subnutrição, falta de habitação e o número alarmante
de analfabetos. “Das pessoas com 5 anos e mais de idade, isto é, das
que deviam estar nas escolas ou já ter passado por ela, cerca de 60%
são analfabetos, segundo o senso de 1970”24. Esses números eram referentes ao ensino primário, refletindo-se, ainda, no ensino secundário
e superior. Para estes sacerdotes, a realidade nordestina foi produzida
através de certas condições históricas com a manutenção do monopólio
da terra, sendo o latifúndio o grande explorador da força de trabalho e
que permanecia sendo a base do poder econômico e político na região
produtor de condições sociais degradante para os mais pobres.
O trabalho pastoral de Dom José Maria Pires na Arquidiocese da
Paraíba, buscou denunciar a situação de exploração à qual estavam
submetidos trabalhadores do campo e da cidade. Particularmente no
campo, Dom José Maria Pires desenvolveu um importante trabalho de
atuação em favor dos trabalhadores com a formação do Centro de Promoção Humana (1970) e posterior Centro de Defesa dos Direitos Humanos (1976), instituição que prestou auxilio jurídico aos trabalhadores
e que atuou como espaço de resistência para os mais pobres. A trajetória e a presença de Dom José Maria Pires na Paraíba foram destacadas pela sua forte atuação social através de denúncias e práticas sociais
significativas em meio a um contexto marcado por um regime ditatorial.
Considerações finais
A trajetória de Dom José Maria Pires evidencia um posicionamento vinculado aos direcionamentos do Concílio Vaticano II e, mais particularmente, da Teologia da Libertação. Seus discursos, ao chegar na
23
24
SEDOC, 1973, p. 608.
SEDOC, 1973, p. 611.
134
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Arquidiocese da Paraíba, parecem evidenciar um trabalho direcionado para a defesa dos Direitos Humanos e de denúncia da repressão e
violação de Direitos Humanos cometidos pela ditadura militar. Ainda
na década de 1970, a criação do Centro de Promoção Humana, posteriormente transformado em Centro de Defesa dos Direitos Humanos
(CDDH) desenvolveu um importante trabalho social que exerceu, na prática, as orientações de uma Igreja voltada para os problemas sociais dos
mais pobres.
135
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ARQUIvO DO DOPS, Conselho
Estadual de Defesa dos Direitos do
Homem e do Cidadão, UFPB.
ARQUIvO ECLESIáSTICO Centro
Cultural São Francisco.
BOFF, Leonardo. Igreja: carisma
e poder. Ensaios de Eclesiologia
militante. 3ª edição. Editora Vozes:
Petrópolis, 1982.
BRITO, Lucelmo Lacerda. medellín
e Puebla: epicentros do confronto
entre progressistas e conservadores
na América Latina. Revista Espaço
Acadêmico – n° 111 – Agosto de
2010.
DocuMentos Do concíLio
vATICANO II. Constituições:
Dei verbum, Lumen Gentium
(Constituições Dogmáticas),
Sacrosanctum Concilium, Gaudium
et Spes (constituições Disciplinares);
Declarações: Gravissimum
Educationis, Nostra Aetate,
Dignitatis Humanae; Decretos: Ad
Gentes, Presbyterorum Ordinis,
Apostolicam Actuositatem, Optatam
Totius, Perfectae Caritatis, Christus
Dominus, Unitatis Redintegratio,
Orientalium Ecclesiarum,
Intermirifica. Disponível em:
<http://www.vatican.va/archive/
hist_councils/ii_vatican_council/
index_po.htm> Acesso: 15/04/2019.
JORNAL DIáRIO DA BORBOREmA,
1950-1980. Arquivo pessoal.
LÖWY, Michael. A guerra dos deuses:
religião e política na América Latina
tradução: Vera Lúcia Melo Joscelyne.
– Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os espiões
dos Campi. in: As Universidades e o
Regime militar. Rio de Janeiro: Zahar,
2014, págs: 193/241.
PIRES, Dom José Maria. Dom José
maria Pires: uma voz fiel à mudança
social /[organização e notas Sampaio
Geraldo Lopres Ribeiro]. –São Paulo:
Paulus, 2005
Revista SEDOC (Serviço de
Documentação), 1973. Arquivo
pessoal.
SILVA, Janaína da. NUNES, Paulo
Giovani Antonino. “Os anos de
chumbo” da ditadura militar na
Paraíba (1969-1974) Encontro
Nacional da Anpuh, Ceará, 2017.
[ Volta ao Sumário ]
136
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ComBlin paRa tempos
de ResistênCia: o
Centro de formação
João Batista Barbosa da Silva
Como referenciar este capítulo:
SILVA, João Batista Barbosa da. Comblin para tempos de resistência: o Centro
de Formação. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.).
Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e
Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR /
Fogo Editorial, 2020, p. 137-148.
João Batista Barbosa da Silva1
Introdução
O presente trabalho é fruto de experiências vivenciadas a partir
de 2016, quando a convite do padre italiano, radicado no Brasil, Hermínio Canova, comecei a frequentar o Centro de Formação Padre José
Comblin, localizado no Sítio Café do Vento, as margens da Rodovia BR
230, no município de Sobrado, onde fui acolhido e experimentado nas
práticas educativas e sociais que Comblin desenvolveu ao longo de sua
vida na América Latina.
Os momentos de vivências fomentaram o desejo de melhor conhecer esse sacerdote e as ações que ele desenvolveu desde sua chegada
ao Brasil, em 1958, até o momento de sua partida, em 27 de março de
2011. Nestas pesquisas constatei uma dinâmica metodológica utilizada
pelo padre e um desejo por mudança social, partindo de um trabalho de
conscientização/formação permanente, caracterizado pela resistência
mobilizadora/conscientizadora contra qualquer tipo de opressão, tendo
a libertação como objetivo a ser alcançado.
Tal processo de formação permanente foi crucial para a criação do
Grupo de Fé e Política que se reúne periodicamente, a cada bimestre,
para discutir o papel da Igreja Católica e das Religiões, na transformação da sociedade, formado basicamente por Jovens, estudantes de nível médio e graduação, agricultores, funcionários públicos, professores,
atendendo a moradores dos municípios de Sobrado, de Pilar, de São Miguel de Taipu, de Riachão do Poço e, eventualmente, de outros lugares.
A frente do Grupo, se encontra Padre Hermínio Canova, vigário
paroquial da Paróquia Nossa Senhora Rainha dos Anjos, do município de São Miguel de Taipu, mas com atuação nos municípios citados
Professor Mestre em Educação (PPGE/UFPB), estatutário da Rede Estadual de Educação da Paraíba (SEECT/PB). Membro Fundador do Centro de Formação Fé e Política Padre José Comblin, no Sítio Café do Vento, em Sobrado/PB.
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4892207D6.
1
138
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
anteriormente. O mesmo padre também é professor da UNICAP e por
muitos anos, membro da Coordenação Nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra), tendo por isso, no seu histórico uma série de perseguições políticas e religiosas.
Há, além do padre Hermínio, uma série de assessores que contribuem para um melhor desempenho do grupo, como o professor aposentado Júlio Alder Calado, da Universidade Federal da Paraíba, que indicam a temática e as metodologias a serem utilizados, além de outros
seguidores das ideias e práticas desenvolvidas pelo Padre José Comblin.
São esses últimos que se encarregam de organizar a Semana Teológica
Padre José Comblin, que acontece anualmente. Nesta, são organizadas
e apresentadas experiências exitosas e mobilizadoras acontecidas em
comunidades rurais ou periféricas, auxiliadas pelas metodologias ensinas e replicadas por Comblin e seus discípulos.
Embasamento teórico e justificativa
Este trabalho apresenta a noção da História do Tempo Presente e
sua relação com a memória, residida na contemporaneidade das experiências e ancorado nos estudos de Nora (1998), de Pollak (1989;1992),
Motta (1998), Barros (2004) e Dosse (2012). Para embasar as experiências vivenciadas com os diversos sujeitos envolvidos dentro da
narrativa, fizemos uso de autores que fazem uso da História Oral como
metodologia utilizada em pesquisas relacionadas com a memória e sua
coleta, tais como Alberti (1990), Ferreira (2000; 2002), Delgado (2003) e
Ferreira e Amado (1998).
A importância de se dedicar à análise do passado recente está ancorado no encontro de um outro tempo diferente daquele no qual está
integrado, mas que mantém grande contato emocional com o presente. Nesse processo realiza-se uma mistura peculiar caracterizado pelo
reencontro de singularidades temporais. Nas palavras de Delagado
(2003, p. 11) “Trata-se do encontro da História já vivida com a história
pesquisada, estudada, analisada, enfim, narrada”.
O Centro de Formação Padre José Comblin é um espaço de memória e de construção social, atuando desde os anos 1990, muitas vezes,
139
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
fazendo uso de pseudônimos, para evitar chamar a atenção de outros
setores da sociedade da região da Várzea Paraibana2. Este espaço foi
criado pelo Padre José Comblin, como uma experiência com o objetivo
de criar um “curso básico para animadores de comunidades de base”
(COMBLIN, 1997).
Desta forma, se faz jus não deixar cair no esquecimento ações
que contribuíram para a formação de dezenas de líderes comunitários,
pastorais e até mesmo, membros de sindicatos e líderes de associações. Além do mais, sua atuação está em pleno desenvolvimento, com
a organização de diversos programas de formação, como o CDL (Curso
de Dinâmica de Líderes Jovens) e o Grupo de Fé e Política, já citado anteriormente. Estes grupos são responsáveis por promover eventos de
massa, como a Páscoa Jovem das Comunidades, que está na sua nona
edição e a Festa da Colheita das Comunidades Agrícolas, que está na
sua sétima.
Com esta movimentação, o Centro de Formação, assim como os
demais espaços criados, organizados e dirigidos pelo Padre José Comblin, se caracteriza como espaços de resistência, por meio de formação
politizadora, com estudos de obras do padre citado anteriormente e de
conjuntura atual do Brasil.
A análise da problemática do presente, por meio da História Oral,
contribui para entender a possiblidade de desenvolvimento por meio da
formação de indivíduos para o futuro, como também auxilia no entendimento de atitudes e situações do passado recente.
Objetivos
Ao fazer uso da História do Tempo Presente e das metodologias
utilizadas na História Oral, buscamos demonstrar as experiências formativas organizadas metodológica e pedagogicamente por Comblin
que contribuíram para uma reafirmação do sujeito como agente social
transformador, ofertando uma educação amplamente de caráter cidadã
2
Região localizada no Estado da Paraíba, banhada pelo Rio Paraíba e seus afluentes.
140
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e de resistência à Ditadura Militar Brasileira (1964-1985) e a quaisquer
formas de autoritarismo, como também, com a formação social de indivíduos que habitam pequenas cidades do interior do estado da Paraíba,
onde se apresenta pouca participação política e social.
Dentro do aspecto de resistência, propomos analisar as práticas
educativas/formativas desenvolvidas no Centro de Formação Padre
José Comblin, a partir de um olhar historiográfico e social. Está análise também se relaciona com os últimos acontecimentos na História do
Brasil que levaram à presidência Jair Bolsonaro e a extrema direita, onde
se faz uso de forte diálogo com a obra Ideologia da Segurança Nacional:
O poder militar na América Latina (1977), onde o autor dialoga com a origem das ditaduras que surgem na américa latina no período da Guerra
Fria e de Nação e Nacionalismo: Doutrinas e Problemas (1965).
Por fim, descrevemos e comparamos as práticas utilizadas no
Centro de Formação com as utilizadas pela Educação Popular, protagonizadas pelas experiências de Paulo Freire, com a concepção de adotar
e reconhecer a existência desse vínculo essencial entre a vida do sujeito
e a coletividade.
As práticas metodológicas para o pensamento e à
resistência
Um dos principais livros de Comblim é a Teologia da Enxada de
1977, onde relata uma experiência de vida de membros da Igreja Católica no Nordeste. Esta experiência se inicia no Seminário Regional do
Nordeste, em 1969, já no período da História do Brasil, conhecido como
“Anos de Chumbo”, quando resolveu correr o risco de dar cobertura e
orientação a seminaristas de diversas dioceses nordestinas para viverem alguns anos nas regiões rurais desenvolvendo trabalhos na agricultura, estudos e trabalhos apostólicos.
Essa experiência é apresentada a partir de explicações sobre o
novo programa e da metodologia adotada, rompendo com as práticas
tradicionais utilizadas na formação daqueles que deveriam acompanhar
o povo e sua trajetória.
141
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Em primeiro lugar, resolveu-se prescindir da distribuição tradicional da matéria. Estávamos conscientes de que o próprio plano das
matérias e a divisão dos assuntos já constituem a adesão a todo
sistema que se procurava superar. Colocando no primeiro plano e
adotando como critério decisivo a finalidade pastoral dos estudos,
resolvemos tomar como material específica de consideração os diversos objetos que o povo encontra na vida. Em lugar dos assuntos dos tratados tradicionais, preferimos adotar os objetos da vida
quotidiana do povo rural. Afinal de contas, os tratados de teologia
resultam das controvérsias do passado. Ora, antes de tomar conhecimento das grandes controvérsias do passado, o apóstolo precisa
saber anunciar e explicar aos cristãos e aos homens em geral o que
é a própria mensagem cristã. Por princípio, deixamos de lado todos
os desenvolvimentos teológicos que se referem a uma situação histórica sem relacionamento com a vida dos camponeses do Agreste
nordestino, controvérsias sobre a graça, a justificação, os fins da
encarnação e assim por diante (COMBLIN, 1977, p. 10-11).
Para Comblin, oferecer uma formação integral deveria romper
com as experiências do passado e criar novas, que resultantes de uma
prática vivenciada, sentida, ultrapassando os muros dos seminários e
chegando ao povo. A proposta era de chegar aos homens e mulheres
do campo
Uma vez definida a divisão da matéria, urgia criar um método. O
método já estava definido pela própria escolha dos assuntos. Em
lugar de fazer como na formação tradicional, isto é, examinar os
dogmas numa certa lógica tomada a um sistema teológico, para
deixar aos próprios sacerdotes a tarefa – praticamente impossível
– de traduzir esses dogmas numa linguagem popular e descobrir as
aplicações que podiam ter na vida rural, achamos melhor projetar
sobre um assunto da vida humana à luz da revelação (COMBLIN,
1977, p. 11).
O assunto que Comblin escolheu para aplicar com a nova metodologia estava atrelado a palavras do cotidiano do camponês, como “a
casa, a terra, o trabalho, a paternidade, etc” e que objetivava “descobrir
a palavra de Deus que se refere a esse assunto” (COMBLIN, 1977, p. 11)
contribuindo para aproximar os futuros sacerdotes do povo de Deus e
142
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de sua fé. Todavia, essa aproximação demonstrou um novo problema,
que foi as contradições entre a fé popular e a fé bíblica, contornado a
partir da necessidade de aprender a reconhecer a mesma fé em dois
sistemas de expressão diferentes (COMBLIN, 1977).
O método e os assuntos saiam do meio do povo e se direcionavam
para o povo. Essa é a grande diferença da Teologia proposta por Comblin que contribuiria para criar uma nova prática pedagógica utilizada
até hoje no Centro de Formação Padre José Comblin, no Sitio Café do
Vento. Esse anseio de ir até o povo, de encontro com seus males, suas
dores e sofrimento, como também de suas alegrias, suas conquistas e
sua fé contribuiu para um novo modelo de Igreja, que faz pensar, que faz
resistir, que se faz libertadora.
A reflexão é a prática mais constante em Comblin (1977), onde se
busca entender todo a conjuntura ao seu redor, desde a simples política
coronelista do interior do Brasil até mesmo as dinâmicas do Neoliberalismo e as consequências da Guerra Fria (COMBLIN, 1965; 1980). Dessa
forma, a pedagogia combliniana, assim dita, contribui para compreender
o mundo a sua volta, a partir da reflexão e do entendimento que que a
conjuntura possibilita.
Compreendendo o mundo a sua volta, os alunos dos cursos promovidos/realizados por Comblin se colocam numa posição de crítica
social, não aceitando os ditames de políticos autoritários e assistencialistas, da economia e do mercado capitalista manipulador, que muitas
vezes, ferem a dignidade humana. Assim, essas práticas de pensar e de
agir, organizadas pelo Centro de Formação oferece um espaço de resistência e de compromisso para mudar a realidade ao seu redor.
Há vários exemplos de práticas de resistência e de comprometimento organizado pelo Centro de Formação Padre José Comblin. Citamos por exemplo, uma análise de conjuntura realizado no dia 24 de
fevereiro de 2019, pelo grupo de Fé e Política. Neste estudo, participavam aproximadamente 15 pessoas, entre agricultores e agricultoras,
universitários, professores, estudantes de Ensino Médio e três professores mestres, sendo um em História da Educação, outro em Políticas
Públicas Educacionais e outro em História das Religiões.
Naquele momento, todas as discussões políticas estavam direcionadas para a eleição e o governo do recém empossado Jair Bolsonaro
143
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
como presidente da república. E no momento em que se estavam escolhendo os temas que fariam parte da análise conjuntural, um agricultor, semianalfabeto, como o próprio se colocou, pediu para fazer uma
discussão sobre o feninicídio, justificando que tinha duas filhas e que,
precisava entender melhor os motivos da crescente onda de assassinados de mulheres.
Outro tema, que no mesmo encontro chamou muito a atenção, foi
a questão da migração e a crise na Venezuela, levantada por uma agricultora, que atualmente, trabalha no comércio informal, que se disse
perplexa com a situação desse país vizinho e que aparentemente ninguém faz nada para auxiliar, enquanto o povo, tentando fugir da fome,
se refugia no Brasil, criando sérios problemas para as populações dos
estados brasileiros que fazem fronteira.
Dentro do processo de análise de conjuntura, baseado no texto de
Herbert de Souza (2014), os estudantes devem apresentar a problemática, entender sua origem e apontar as possíveis soluções. Este processo possibilita que os frequentadores do Centro se percebam muito mais
que sujeitos católicos, mas sujeitos cidadãos, com obrigações éticas de
construir um mundo melhor.
É importante destacar que já em 1969, Comblin deixava muito
claro que suas formações não poderiam ser direcionada apenas para
os cristãos, ou seja, sua prática e metodologia deveria alcançar todas
as pessoas e não somente a cristandade católica, o que contribuiu para
o ecumenismo. Não por isso, que muitos não católicos comungam de
suas ideias.
Experiências ainda mais exitosas são os eventos de massa, quando o Centro realiza eventos com a finalidade de reunir o máximo de pessoas possíveis, evangelizando a partir dos ensinamentos de Jesus de
Nazaré, que uniu as pessoas de classe diferentes, acolheu a todos, pregando a paz e a justiça. Essas propostas são transformadas em temas,
que são trabalhados nesses momentos.
É importante destacar que esses eventos tem dois públicos
alvos distintos. São a juventude e os camponeses. Os primeiros por
serem considerados o futuro, aqueles que serão nossos profissionais
e precisam ter uma atenção especial, considerando que a educação
escolar é insuficiente para criar nas atitudes cotidianas práticas de
pensamento libertador.
144
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O segundo grupo foi escolhido por ser a grande maioria da população dos pequenos municípios da região Nordeste e em especial, os
vizinhos circovizinhos ao Centro de Formação Padre José Comblin. Esses agricultores, muitas vezes, não possuem formação escolar e não
conhecem seus direitos, ficando reféns de práticas assistencialistas e
corruptíveis.
A Páscoa Jovem e a Festa da Colheita das Comunidades representam a vontade de Comblin em construir práticas realmente libertadoras de seu povo, quando reunimos os pobres, elaborando estratégias
adequadas a cada momento político, economico e social, a partir de um
processo de conscientização e de ação de uma forma articulada.
Considerações finais
A atuação realizada pelo Centro de Formação Padre José Comblin,
em Café do Vento, apresenta uma reflexão de fé que se aproxima do que
poderíamos chamar, de forma generalizada, de Teologia da Libertação.
Caracterizamos assim, visto o confronto apresentado entre a fé católica
e as diversas situações de opressão vivenciada pelas comunidades que
cercam o citado centro.
A articulação promovida pelo Padre Hermínio Canova demonstra a
necessidade de continuar contribuindo para um pensamento que vá de
acordo com os ideias de Padre José Comblin, utilizando uma linguagem
popular, acolhedora e desmistificadora. Podemos afirmar que há um
compromisso oculto entre esses dois padre e o desejo de libertação de
todos os oprimidos, envolvendo um evangelho de credibilidade que teve
seus primórdios junto com o Concílio Vaticano II (1962-1965) e com o
CELAN de Medéllin (1969).
O compromisso em auxiliar os oprimidos ao redor do Centro, inclusive em parcerias com outros instrumentos mais organizados como
a Associação Comunitária Rural de Café do Vento ou ainda ainda, com o
órgãos de formação profissional como o SENAI, estabelecem certa credibilidade a coordenação, uma vez que efetiva uma parte na luta pela libertação daqueles que vivem oprimidos, seja lá qual for a forma de opressão.
145
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Assim, o papel relevante desempenhado pelo Centro, ao oferecer
certo respeito e credibilidade social, cria oposição por parte de uma parcela considerável do clero, que não consegue enxergar a natureza fidelissima aos ensinamentos de Nazareno. Soma ao desagrado, a relação
com os setores e pastorais sociais da Arquidiocese da Paraíba.
Todavia, mesmo com todas as situações vivenciadas, os conflitos
gerados, o Centro de Formação Padre José Comblin continua desempenhando suas funções de educar para a vida, para a cidadania e para a
Libertação, atuando discretamente nas Comunidades rurais, realizando
trabalhos com a juventude e com os agricultores, a ampliando e contribuindo com as experiências do Padre José Comblin,
Palavras-chave: Resistência. Centro de Formação. José Comblin.
146
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALBERTI, V. História oral: a
experiência do CPDOC. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1990.
na América Latina, 3ª edição, Rio
de Janeiro: Ed Civilização Brasileira,
1980.
BARROS, José D’Assunção. O campo
da história: especificidades e
abordagens. Rio de Janeiro: Vozes,
2004.
COMBLIN, Jose. Nação e
Nacionalismo. Doutrinas e
Problemas. São Paulo: Duas Cidades,
1965.
BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis.
Como fazer Teologia da Libertação.
Petrópolis: Vozes, 1988.1998
DELGADO, L.A.N. História oral
e narrativa: tempo, memória e
identidades. In. História Oral,
nº 6, 2003, p. 9-2. Disponível em:
<https://moodle.ufsc.br/pluginfile.
php/819734/mod_resource/
content/1/DELGADO%2C%20
Lucilia%20%E2%80%93%20
Hist%C3%B3ria%20oral%20e%20
narrativa.pdf>. Acesso em 16 de abril
de 2019.
BURKE, Peter. História como
memória social. In: _____.
variedades de história cultural. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.
COBLIM, Jose. Teologia da enxada.
Uma experiência da igreja no
Nordeste. Petrópolis: Vozes, 1977.
COBLIM, Jose. vocação para a
liberdade. São Paulo: Paulus, 1998.
COMBLIN, José. A esperança
dos pobres vive. Coletânea em
homenagem aos 80 anos de José
Comblin. São Paulo: Paulus, 2003.
COMBLIN, Jose. Prefácio. In:
QUEIROZ, Raimundo Nonato de.
Como ser eficaz em grupo? Curso de
Formação para animadores e líderes
de grupos populares e de comunidade
de base. 2ª edição. Caxias do Sul/RS:
Paulus Gráfica, 1997.
COMBLIN, Joseph. A Ideologia da
Segurança Nacional – O Poder Militar
147
DOSSE, François. Entrevista com
François Dosse. In: História Agora
– A Revista da História do Tempo
Presente. Disponível em: <www.
historiagora.com/revistas-anteriores/
historia-agora-no7/39/118entrevista-com-francois-dosse>
Acesso em: 20 abril. 2019.
DOSSE, François. História do
tempo presente e historiografia.
In: Tempo e Argumento: A Revista
do Programa de Pós-graduação
em História. EDUSC. Florianópolis,
v. 4, n. 1, p. 5 – 22, jan/jun. 2012.
Disponível em http://www.revistas.
udesc.br/index.php/tempo/article/
view/2175180304012012005/2014
acesso em 20 de abril de 2019.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (Org.).
Usos e abusos da história oral. Rio
de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1998.
FERREIRA, Marieta de Moraes.
História do tempo presente: desafios.
Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, nº 3,
p.111-124, maio/jun., 2000
FERREIRA, Marieta de Moraes.
História, tempo presente e história
oral. Topoi, Rio de Janeiro, dezembro
2002, pp. 314-332. Disponível em:
http://revistatopoi.org/numeros_
anteriores/topoi05/topoi5a13.pdf
acesso em 19 de abril de 2019.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a
Liberdade e outros escritos. 5 ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da
Esperança: Um reencontro com
a Pedagogia do Oprimido. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992.
HALBWACHS, Maurice. A memória
coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
148
MOTTA, Márcia Maria Menendes.
História, memória e tempo presente.
In: CARDOSO, Ciro Flamarion;
VAINFAS, Ronaldo (Org). Novos
Domínios da História. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2011.
NORA, Pierre. Entre memória e
história: a problemática dos lugares.
Revista Projeto História – História e
Cultura. PUC/SP, n. 17, 1998.
POLLAK, Michael. Memória e
identidade social. In: Revista Estudos
Históricos, Vol. 5, n. 1. Rio de Janeiro:
1992.
POLLAK, Michael. Memória,
Esquecimento, silêncio. In: Estudos
históricos, Vol. 2, n. 03. Rio de janeiro:
1989.
SOUZA, Herbert José de. Como se
faz análise de conjuntura. 34.ed.
Petrópolis: Vozes, 2014.
[ Volta ao Sumário ]
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
da peRCepção
extRassensoRial ao
taRô Como ReCuRso
teRapêutiCo: um olhar
fenomenológico
Fernanda Pinheiro Cavalcanti
Como referenciar este capítulo:
CAVALCANTI, Fernanda Pinheiro. Da percepção extrassensorial ao tarô como
recurso terapêutico: um olhar fenomenológico. In: MARANHÃO Fº, Eduardo
Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR
- Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 149-165.
Fernanda Pinheiro Cavalcanti1
Introdução
Em linhas gerais, como não dispomos de páginas ilimitadas, e
como ensaio a uma pesquisa maior. Através de um estudo bibliográfico
ousaremos a princípio analisar através de um olhar fenomenológico, já
a partir do primeiro tópico destes escritos, a percepção extrassensorial
presente no jogo de Cartas do Tarô. Fazendo relação aos experimentos parapsicológicos de Joseph Banks Rhine (1920) e seus seguidores.
Ao perceberem que por meio da telepatia, diante de uma perspectiva
parapsicológica, com vistas àquele fim, obtêm respostas aos fenômenos ali apresentados. Em estudo realizado no contexto do início do século XX, onde havia a predominância do pensamento racionalista, o qual
é “[...] parte do sistema econômico da sociedade capitalista, que se alimenta dessa dinâmica frenética de vida do homem do século XX, onde o
imprescindível é o lucro e a geração de riquezas. [...]”2.
Além do que neste período, a parapsicologia é ciência relegada aos
assuntos ligados ao ocultismo. Diante do que, tal aspecto parapsicológico se desmembra ante o cartear de tarólogos, na busca seja de cunho
divinatório, oracular, ou simplesmente, como ferramenta de autoconhecimento, buscadas por consulentes das mais diversas culturas. Embora,
“[...] a missão das artes divinatórias não é manter a pessoa na submissão, na incompreensão e na ignorância, mas fazer com que ela chegue
ao domínio e ao conhecimento. [...]”3.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões. Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). Linha de Pesquisa: Espiritualidade e Saúde. Campus I. João
Pessoa/PB. Membro da Equipe Editorial – Revista Religare (Revista do Programa de
Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB). Pedagoga em Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP). Tutora EAD Virtual (UAB). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/5639489493325257. E-mail: fernandapcavalcanti@hotmail.com.
2
CAVALCANTI, 2018, p. 71.
3
MOREL, 2018, p. 12.
1
150
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Assim, voltando-nos especificamente, às 22 cartas que representam os Arcanos Maiores do jogo, e sua relação com os Arquétipos de Carl
Gustav Jung4, que as utilizou como recurso terapêutico no tratamento de seus pacientes, e sua relação simbólica, causal e sincrônica com
a Fenomenologia. Onde ensaiaremos a uma pesquisa posterior, mais
aprofundada acerca do método utilizado por Jung com seus pacientes.
Outrossim, uma vez que as Ciências das Religiões é nosso
campo de estudo. Ainda nesta pesquisa, apresentaremos alguns conceitos que, estão sobremaneira ligados à Fenomenologia das Religiões,
uma vez que, “[...] a Fenomenologia não estuda os fatos religiosos em
si mesmos (o que é tarefa da história das religiões), mas sua intencionalidade (seus eidos) ou essência. [...]”5. Como veremos notoriamente,
neste estudo em questão.
Logo quando além do que, a Fenomenologia é ainda utilizada
como método científico, em meio a diversas outras abordagens principalmente advindas das diversas áreas das ciências humanas. Enriquecendo então, pela diversidade plurimetodológica, o campo de pesquisa
em Ciências das Religiões. Onde o pesquisador tem a possibilidade de
ampliação metodológica à pesquisa, uma vez que tais ciências se completam, sobretudo ante ao fato religioso que,
[...] pode ser abordado por todas as ciências humanas ou ciências
sociais, cada uma a partir do que lhe é próprio. A aproximação fenomenológica é particular, mas necessária para enriquecer os outros acessos, pois evita os desvios causados por uma compreensão insuficiente da experiência religiosa e de suas manifestações
ou linguagens.6
De tal maneira, que possamos prosseguir a essa discussão trazendo logo a seguir, o aspecto fenomenológico nas Cartas do Tarô, que
Carl Jung (1875 a 1961), psiquiatra e psicólogo suíço fundador da psicologia analítica, foi
o “primeiro sucessor de Freud a fazer aproximações entre as tradições do oriente e do ocidente, criando pontes espaciais e temporais, contribuindo para um melhor conhecimento
do ser humano”. (FIALHO, 2014, Apud FIGUEIRA et al, 2016, p.143).
5
CROATTO, 2010, p. 25.
6
IBIDEM, p. 17.
4
151
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
é nosso objeto investigativo, fazendo relação, a partir da percepção extrassensorial, que é parte do campo de estudo da parapsicologia. Bem
como, sua utilização na área terapêutica, sobretudo, ao que concerne à
perspectiva jungiana, por meio das representações simbólicas arquetípicas, expressas pelos Arcanos Maiores do Tarô. Logo, ligadas aos aspectos das dimensões mais sutis que constituem o Ser. Sendo estas
evidentemente, as dimensões: espiritual e mental. Arcabouço da intuição, que será aqui fator de expressão da natureza extrassensória.
Trazendo assim, através da simbologia, importantes aspectos presentes sobremaneira no campo ligado intrinsecamente às Ciências das Religiões.
A qual pode chamar de simbologia mística sagrada fortemente presente neste estudo, de como o Tarô pode ser usado como recurso terapêutico.
Para tanto, Eliade (1992), nos traz a presença do sagrado mostrando a manifestação da presença religiosa, através do forte simbolismo presente nas cartas.
Retirado da vida religiosa propriamente dita, o sagrado celeste permanece ativo por meio do simbolismo. Um símbolo religioso transmite sua mensagem mesmo quando deixa de ser compreendido,
conscientemente, em sua totalidade, pois um símbolo dirige se ao
ser humano integral, e não apenas à sua inteligência.7
No que concerne ao “símbolo”, na perspectiva jungiana:
[...] Só através do símbolo o inconsciente pode ser atingido e expresso; este é o motivo pelo qual a individuação não pode, de forma
alguma, prescindir o símbolo. Este, por um lado, representa uma
expressão primitiva do inconsciente e, por outro, é uma ideia que
corresponde ao mais alto pressentimento da consciência.8
Para tanto, dentro de uma abordagem amplificada,
[...] Em sentido amplo, no entanto, tudo pode ser um símbolo ou
desempenhar o papel de um símbolo, desde a cratofania mais
7
8
ELIADE, 1992, p. 64.
JUNG, 2011, p. 35.
152
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
rudimentar (que “simboliza”, de uma maneira ou de outra, o poder
mágico-religioso incorporado num objeto qualquer) até Jesus Cristo, que, de certo ponto de vista, pode ser considerado um “símbolo”
do milagre da encarnação da divindade no homem.9
Além do que, perspectivas estas, que serão aqui neste artigo
abordadas de forma introdutória, voltadas, a abrir caminho aos estudos
posteriores a esta temática, dentro de uma proposta de metodologia
voltada à Fenomenologia da Religião, como campo de estudo promissor,
que vem a contribuir às várias áreas humanas. Todavia, especialmente
às Ciências das Religiões.
Sendo este trabalho aqui apresentado, um estudo que busca responder por ora, a basilares pressupostos voltados à fenomenologia presente
na percepção sensorial nas Cartas do Tarô. Onde sem sombra de dúvidas,
ao longo da pesquisa que está sendo desenvolvida, encontraremos respostas mais aprofundadas às questões pertinentes a este assunto.
A seguir iniciaremos falando acerca da percepção extrassensorial,
a partir da Parapsicologia, até chegarmos a um contemplar fenomenológico dentro do jogo de Cartas do Tarô. Dentro de toda a sua simbologia de arquétipos, expressas pelos 22 Arcanos Maiores deste histórico,
magnífico e intrigante baralho de cartas.
A percepção extrassensorial: da parapsicologia ao
olhar fenomenológico nas cartas do tarô
A extrassensorialidade como objeto de investigação da parapsicologia, abrange as diversas faculdades da mente. Além do que, é campo
de investigação, sobretudo, para alguns estudiosos, como Joseph Banks
Rhine, que em sua obra, Novas Fronteiras da Mente (1973), relata alguns
experimentos de pesquisas ligadas à percepção extrassensorial, como
a telepatia, por exemplo. Chave ao nosso estudo em questão. Onde
atribuímos a Fenomenologia, o papel de captar a intencionalidade, a
9
ELIADE, 2010, p. 365.
153
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
essência do que está por traz, nas entrelinhas às experiências e aos
discursos dos sujeitos que vivenciam ou vivenciaram determinado(s)
fenômeno(s), sendo estes de caráter religiosos ou não.
O ensaio de Rhine de maior destaque foi com os Cartões Zener
(1920). Nome em homenagem ao seu amigo, o psicólogo Karl Zener.
[...] Comecei a chamá-los no início de nosso trabalho, “cartões Zener”; mais tarde ao modificarmos dois dos desenhos, batizamo-los
com o nome de “cartões ESP” (Extra-sensory perception). Nessa
ocasião estávamos empregando o termo “percepção extra-sensória.” (ou ESP, para abreviar) à descrição da clarividência e da telepatia, para as quais são hoje conhecidos; os cartões de vários tipos –
postos à disposição do público – que agora estamos usando foram
modificados; aperfeiçoaram-se os desenhos primitivos elaborados
pelo dr. Zener e por mim.10
O ensaio “telepático” de Rhine foi também demonstrado por Jung,
ao falar a respeito de causalidade e sincronicidade em seus trabalhos.
[...] a experimentação consistia em um experimentador retirar sucessivamente uma serie de cartas de baralho, numeradas e contendo motivos geométricos, enquanto o sujeito de experimentação
(SE), separado espacialmente do experimentador, tinha como tarefa identificar os respectivos desenhos. Foi usado um baralho de
25 cartas divididos em cinco grupos de cinco, cada um dos quais
com um desenho especial. Cinco dessas cartas continham um estrela, um retângulo, cinco um círculo, cinco duas linhas onduladas e
cinco uma cruz. As cartas eram retiradas sucessivamente do maço
pelo experimentador, que desconhecia a disposição em que elas se
achavam dentro do baralho. [...].11
Logo, podemos perceber o Tarô, como objeto de estudo dentro da
parapsicologia. Uma vez que, o Tarô apresenta em seu desmembrar de
cartas dispostas durante o jogo, seu caráter genuíno, sutil, que corresponde ao “intuitivo”, a dimensão transcendente12 deste jogo de cartas.
10
11
12
RHINE, 1973, p. 33.
JUNG, 2012, p. 24 e 25.
Tavares (1999).
154
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Onde é perceptível que tal aspecto (intuição), está ligada, sobremaneira,
as dimensões mental e espiritual, que são partes integrantes, junto as
outras dimensões (ditas mais imanentes) que constituem o ser humano. Em conjunto, sendo todas estas assim definidas: “dimensão física,
dimensão sensorial, dimensão emocional, dimensão mental e dimensão
espiritual”13.
Constituindo, portanto, tais dimensões, especialmente a espiritualidade, objeto de estudo em determinadas áreas científicas, como
na saúde e nas Ciências das Religiões, por exemplo, que abre espaço a
linhas de pesquisa, como por exemplo, Espiritualidade e Saúde14, onde
diversos autores veem desenvolvendo pesquisas, acerca do fator espiritual, como componente intrínseco ao Ser.
Vários pesquisadores das ciências médicas e humanas, especialmente das Ciências das Religiões, vêem se debruçando em estudos
que dizem respeito à incidência relevante do componente espiritualidade na constituição do ser humano, unida as outras dimensões
numa total sincronia perpassando ao envoltório material denominado de corpo físico.15
Como mencionamos na introdução, há alguns parágrafos anteriores, tais dimensões, espiritual e mental são arcabouços à intuição, que é
um aspecto expressivo à extrassensorialidade presente no jogo de Tarô,
o qual é nosso foco nesse trabalho. Onde a leitura aliada às técnicas
desenvolvidas pelos tarólogos, cartomantes, juntamente com a percepção dispostas na simbologia trazida pelos arcanos, expressa nas falas,
tanto de quem as interpreta, como ainda de quem as busca, no caso os
consulentes. Ou se tratando de terapia, os pacientes.
Seja na curiosidade em estar em contato com um objeto, no caso
as cartas de Tarô, de denominação histórica oracular, de origem um tanto controversa. Ou quem sabe talvez em um ato de fé. Ou ainda simplesmente, na busca de respostas a perguntas relacionadas a caminhos
ROHR, 2011.
Linha de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
15
CAVALCANTI, 2018, p. 26.
13
14
155
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que levem ao autoconhecimento. Apresentando assim, a sutileza da fenomenologia, neste jogo embaralhado de cartas, símbolos e arquétipos.
Porém repleto de significados aos sujeitos que ali estão envolvidos.
A relação dos 22 arcanos maiores do tarô com os
arquétipos de jung como recurso terapêutico
Falaremos aqui dentro de uma perspectiva, a qual seguirá um estudo adiante dessa relação dos Arcanos Maiores do Tarô com os Arquétipos de Jung. A partir do pressuposto da relação da percepção extrassensorial com o aspecto fenomenológico presente nas Cartas do Tarô,
revelada na fala dos indivíduos envolvidos: tarólogo/terapeuta e consulente. Logo, o que aqui apresentamos são conceitos os quais estão
paulatinamente sendo estruturados.
Diante disso, é relevante o estudo da percepção extrassensorial no
jogo de Tarô que é usado como recurso terapêutico, uma vez que,
Jung apresentou provas extraídas do seu trabalho entre os chamados “loucos” e as centenas de pessoas “neuróticas” que lhes pediam uma resposta para os seus problemas, de que a maior parte
das formas de insanidade e desorientação mental eram causadas
por um estreitamento da consciência e de que, quanto mais estreita e mais racionalmente focalizada fosse a consciência do homem,
tanto maior seria o perigo de hostilização das forças universais do
inconsciente coletivo, a tal ponto que elas se levantariam, por assim
dizer, em rebelião e esmagariam os últimos vestígios de uma consciência penosamente adquirida pelo homem. [...]16
Com isso podemos perceber que pelas cartas, Jung traz aspectos
do inconsciente que podem ser trabalhados a partir das representatividades simbólicas arquetípicas apresentadas. Onde questões submersas, e por vezes escondidas, esquecidas pelo tempo, e pelos traumas
sofridos, são trazidas a luz para serem cogitadas, dentro da formatação
16
NICHOLS, 2007, p. 15 e 16.
156
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
terapêutica proposta pelo método através da simbologia trazida pelos
arquétipos representados nas cartas.
Ainda segundo, o psiquiatra Jung, “arquétipos” são determinados
a partir do “inconsciente coletivo”:
O inconsciente coletivo é uma figuração do mundo, representando
a um só tempo a sedimentação multimilenar da experiência. Com
ocorrer do tempo, foram-se definindo certos traços nessa figuração.
São os denominados arquétipos ou dominantes – os dominadores,
os deuses, isto é, configurações das leis dominantes e dos princípios
que se repetem com regularidade à medida que se sucedem as figurações, as quais são continuamente revividas pela alma. Na medida
em que essas figurações são retratos relativamente fiéis dos acontecimentos psíquicos, os seus arquétipos, ou melhor, as características
gerais que se destacam no conjunto das repetições de experiências
semelhantes, também correspondem a certas características gerais
de ordem física. Este é o motivo pelo qual é possível transferir figurações arquetípicas, como conceitos ilustrativos da experiência diretamente ao fenômeno físico – ao éter, o elemento arcaico do sopro
ou da alma, representado na imaginação geral, ou à energia, a força
mágica – outra idéia universalmente difundida.17
Sendo estes os conceitos fundamentais de “inconsciente coletivo”
e “arquétipos” dentro da concepção jungiana, pertinentes a este estudo.
O Tarô, nosso objeto de estudo, é composto por 78 cartas. Contudo, nesta pesquisa, trataremos das 22 cartas que correspondem aos
Arcanos Maiores do Tarô.
Todavia, com a perspectiva de focarmos na relação direta dos 22
Arcanos, com os arquétipos jungianos, o Tarô pode ser usado como recurso terapêutico, o qual já mencionamos anteriormente, através de
imagens, símbolos e numerações. Sendo, portanto, uma verdadeira Jornada Arquetípica18:
As 22 cartas dos Arcanos Maiores do Tarô consistem em uma série
de imagens retratando os diferentes estágios de uma jornada. Essa
17
18
JUNG, 1987, p. 86.
NICHOLS (2007).
157
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
jornada é a do Louco, a primeira das 22 figuras. Seguido pelo Mago,
A Sacerdotisa ou Papisa, A Imperatriz, O Imperador, O Papa ou Hierofante, Os Enamorados, O Carro, A Justiça, O Eremita, A Roda da
Fortuna, A Força, O Enforcado, A Morte, A Temperança, O Diabo, A
Torre, A Estrela, A Lua, O Sol, O Julgamento e O Mundo.19
As quais correspondem a fases da vida de um indivíduo, ao focarmos nas 22 lâminas20 do baralho. Seguindo a ordem disposta acima
citada, na ordem das numerações: do número 1 até o número 22. Correspondendo assim, o ciclo da vida. Trazendo por meio de cada arcano,
o seu significado arquetípico, de acordo com a disposição apresentada
pelo contexto do jogo.
Logo, o trabalho terapêutico na perspectiva trazida por Jung, acontece através da abertura de consciência, na qual o consulente, paciente,
terá a possibilidade de observar através das representações simbólicas dos arcanos à sua “vida”, os entrelaces do inconsciente. Já que, “[...]
Um símbolo revela sempre, qualquer que seja o seu contexto, a unidade
fundamental de várias zonas do real. [...]”21.
Diante disso, fazer e reformular perguntas. Encontrando respostas, caminhos. Ressignificando ao vivenciar, expressar assim então, o
sentido fenomenológico trazido pela ação terapêutica do jogo. Dentro
da proposta jungiana de utilização dos símbolos arquetípicos, apresentados pelos Arcanos Maiores (foco deste estudo) do baralho de cartas
do Tarô, que aqui nesta pesquisa nos lançamos.
A fenomenologia: conceito e método científico em
ciências das religiões
A fenomenologia quanto método científico em Ciências das Religiões, perpassa diversos espaços, fazendo uso de fundamentações
de diversas outras áreas científicas. Desde a História, Artes, Filosofia,
19
20
21
FERREIRA NETTO, 2016, p. 19.
Cartas.
Cartas.ELIADE, 2010, p. 368.
158
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Antropologia, Sociologia, Psicologia, Parapsicologia, a própria Ciências
das Religiões, dentre outras. Neste cenário plurimetodológico, sobre as
quais toma emprestado, e cria suas próprias definições teóricas e métodos de pesquisa.
Entretanto, de tal maneira, no nosso estudo que seguirá em andamento, faremos uso da fenomenologia, tanto como arcabouço de
embasamento teórico, como ainda método investigativo. Uma vez que
buscaremos na fala dos sujeitos envolvidos, o teor, a essência da experiência fenomenológica, vivenciada através do jogo de Cartas do Tarô.
Diante do que, seguimos, tornam-se relevantes algumas definições:
A Fenomenologia procura o fenômeno; o que é fenômeno? É aquilo
que se mostra. Isso comporta uma tríplice afirmação: (1) há alguma coisa; (2) esta se mostra; (3) é um fenômeno pelo fato mesmo
de se mostrar. Ora, o próprio fato de se mostrar afeta seja aquilo
que se mostra, seja aquele a quem é mostrado; por conseguinte,
o fenômeno não é um simples objeto; e não é tampouco o objeto,
a verdadeira realidade, cuja essência seria somente recoberta pela
aparência das coisas vistas. [...] Consequentemente, o fenômeno,
com relação a quem quer que ele se mostre, comporta três características fenomenais superpostas: (1) é – relativamente – escondido;
(2) revela-se progressivamente; (3) é – relativamente – transparente. Essas etapas sobrepostas não são iguais, mas correlativas
àquelas da vida: (1) experiência vivida; (2) compreensão; (3) testemunho. As duas últimas relações, cientificamente tratadas, constituem a tarefa da Fenomenologia22.
Entretanto, seguindo tais colocações acerca do embasamento
fenomenológico, para que compreendamos o que de fato almejamos,
ao nos debruçarmos nos estudos da fenomenologia ligada ainda à religião. Sobremaneira, neste estudo aqui do jogo de Tarô, especificamente pela riqueza mística e simbólica trazida pelos arcanos representados. Sob as asas da crença, seja religiosa, ou puramente terapêutica
de seus consulentes.
Sabendo-se ainda, que a “Fenomenologia”, aqui essencialmente
da “Religião”, se refestela de importantes primícias:
22
LEEWM (1975), Apud GASBARRO, 2013, p. 85.
159
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
[...] La fenomenologia de la religión ha encontrado una atención
cada vez mayor em los últimos años. La fenomenologia de La religión, es decir, pretende describir la religión tal como aparece em
sus cambiantes expresiones vitales. La fenomenologia de la religión
es, por tanto, la ciencia de lãs diversas formas de aparición de la
religión. [...].23
De tal modo, que a fenomenologia traz à religião, como ciência,
essencialmente como método, o olhar sobre o qual, vislumbra o que
há por traz das experiências ditas religiosas. Na sutileza dos atos de
atribuição fenomenológica. Tanto no que é dito, como no que está nas
entrelinhas dos acontecimentos. Ora explicando, ora simplesmente observando. Tomando por vezes emprestado aspectos de algumas outras
ciências que lhes assemelha ao que tange, dentro da religião, as experiências religiosas vividas por seus adeptos.
Além do que, trabalhar com a fenomenologia como método de
pesquisa, especialmente em Ciências das Religiões, exigirá do pesquisador então, algumas posturas que levam a considerar que,
- A abordagem fenomenológica não trabalha com hipóteses: ela
suspende o juízo, colocando-o entre parênteses, negando qualquer
julgamento ou pré-conceito a respeito de um determinado fenômeno. Ela se ocupa das “coisas mesmas”, tal como se manifestam e as
descreve. [...].24
Logo compreendemos, que de tal maneira a Fenomenologia da
Religião, é ciência arraigada por fundamento e método. Onde, seu objeto o “fenômeno” é visto tal como acontece. Sendo descrito ao deixar
de lado, todo e qualquer juízo valorativo, ou hipótese. Essencialmente,
advindo de quem o observa. No caso da pesquisa, o pesquisador.
[...] Em síntese, a fenomenologia da religião estuda:
1) o sentido das expressões religiosas no seu contexto específico;
23
24
WIDENGREN, 1976, p.1.
FERREIRA, 2018, p. 39.
160
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
2) sua estrutura e coerência (sua morfologia);
3) sua dinâmica (desenvolvimento, afirmação, divisões etc.).25
Além disso, tratar acerca da Fenomenologia das Religiões, como
conceito e método científico, exigem de quem se propõe a adentrar em
seu campo, uma disposição a deixar de lado, possíveis questões e embates, especialmente pré-concebidas. Já que o fenômeno, essencialmente religioso, o qual nos colocamos, a debater neste artigo, exige do
pesquisador uma postura de neutralidade.
Deixa caminho aberto a uma pesquisa que busca, sobretudo, o
significado no caso aqui específico da religião, em suas formas de expressão, dentro de um cenário específico, o qual se coloca em análise.
Através de um sentido quanto o que estruturou, e levou a uma lógica o
“fenômeno” pesquisado. Até adentrar no seu modo de desenvolver-se
dentro da estrutura, o qual é parte. Ou seja, da religião, ou maneiras de
religiosidade de onde se origina.
A inserção do fenômeno na nossa própria vida não é um ato arbitrário; não podemos abrir mão dele. A realidade é sempre a realidade
minha, a história é a história minha, “a projeção, o prolongamento
que acompanha o homem que vive agora” (Spranger). Mas devemos saber o que fazer quando nos colocamos a falar daquilo que
se manifestou a nós e ao qual damos um nome. Para tal fim devemos mentalizar que tudo o que se mostra a nós não ocorre de
modo imediato, mas somente como signo de um sentido a interpretar, como algo que quer ser interpretado por nós. Ora, a interpretação é impossível se não tivermos vivenciado aquilo que se mostra,
e vivenciado não involuntariamente e com meia consciência, mas
experimentado, vivido com assiduidade e método.26
Para responder acerca do fenômeno na nossa própria vida, como
citado acima. É preciso ainda, talvez não seguir respondendo a posturas prontas e fixas, caracterizadas por uma estrutura social arraigada de
preconceitos. E sim, abrir-se, ao fenômeno, despido de qualquer amarra, e dispor-se ao mergulho em campos nunca antes vistos. Logo, viver
sumariamente, experiências, talvez nunca antes imaginadas.
25
26
CROATTO, 2010, p. 27.
LEEWM (1975), Apud GASBARRO, 2013, p. 85.
161
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Considerações finais
O artigo aqui apresentado teve como pressuposto, introduzir um
estudo que se dispõe, a analisar fenomenologicamente, a percepção extrassensorial presente no jogo de Cartas do Tarô, relacionando-os aos
experimentos parapsicológicos dos “Cartões Zener” (1920) de Joseph
Banks Rhine, e seus coparticipantes.
Onde voltamo-nos, às 22 cartas que representam os Arcanos
Maiores do jogo, e sua relação com os Arquétipos de Carl Gustav Jung,
usados como recurso terapêutico. Dentro de uma perspectiva terapêutica, onde questões do inconsciente são trazidas à tona, a consciência
por meio das figuras, dos símbolos, representados, através dos Arcanos
do Tarô. Para serem trabalhadas com o intuito de ajudar o consulente (paciente), a compreender o que lhe aflige, e assim criar caminhos
que o permita ter melhor qualidade de vida. Voltadas a uma integração
das dimensões, que compõem o indivíduo. Diante do que, significativos
estudos estão sendo desenvolvidos acerca dessa perspectiva, do olhar
integrativo do Ser. Especialmente na linha de pesquisa Espiritualidade
e Saúde, que é parte do curso de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Além do que, nesta pesquisa realizamos um levantamento bibliográfico, onde apresentamos alguns conceitos que, sobretudo estão presentes nos estudos voltados à Fenomenologia das Religiões, de maneira especial como método científico.
Falar acerca da percepção extrassensorial no Tarô, como recurso
terapêutico, sobretudo, com um olhar fenomenológico, não é tarefa fácil. Porém, extremamente prazerosa. Uma vez que, trazer tal temática
ao debate acadêmico, especialmente no campo das Ciências das Religiões. Abrimos então, um leque de possibilidades. Já que se faz necessário comungar com as mais diversas áreas das ciências humanas:
História, Antropologia, Psicologia, Parapsicologia, Sociologia, Filosofia,
Artes, Geografia e dentre tantas outras que convidaremos a esse “jogo
de cartas”, ao longo dessa trajetória que está só começando.
Entretanto levar o estudo do Tarô primeiramente para dentro do
campo da parapsicologia, fazendo relação com o aspecto fenomenológico,
sobremaneira, por meio da fala dos sujeitos envolvidos, desprenderá
162
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
grande demanda de estudos que tangem mais profundamente estas
áreas: Parapsicologia, Fenomenologia e Ciências das Religiões. Precisaremos ampliar para bem mais além aos estudos de Rhine.
Além do que, trabalhar com os Arcanos Maiores do Tarô, relacionando aos arquétipos de Jung, dentro de uma perspectiva terapêutica,
exige uma bibliografia que não se detenha só ao famoso psiquiatra, seguidor de Freud. Mas é preciso que se estenda a outros autores e trabalhos dentro desta temática, a compreensão da simbologia que está por
trás do que se vê, e ainda não se vê nas cartas. Que são utilizadas como
instrumento terapêutico de autoconhecimento.
Já discorrer da Fenomenologia como ciência que fundamenta, e
ainda é método, requer da ajuda e integração de inúmeros autores, além
dos já citados neste ensaio. Onde será preciso um olhar aberto ao que
dizem campos, que tomam emprestados, e se misturam aos conceitos
da fenomenologia. Que são algumas das ciências humanas, que mencionamos logo acima.
Consideramos de total pertinência adentrar abertamente a essa
“aventura”, da relação da percepção extrassensorial do Tarô como recurso
terapêutico, sob um olhar estritamente fenomenológico. Mantendo-nos
sempre abertos a novos e ousados caminhos que esta pesquisa sinaliza
que provavelmente irá nos trazer.
Para que ainda, os aspectos relacionados à simbologia arquetípica
dos Arcanos das Cartas do Tarô. Traga possíveis respostas, por meio de
uma abordagem fenomenológica, ao nosso campo de estudo, que são
as Ciências das Religiões.
Além do que, contemplem as mais diversas áreas das ciências humanas, as quais auxiliam a integração tanto como teoria, como ainda
método científico a Fenomenologia das Religiões.
163
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
CAVALCANTI, Fernanda Pinheiro.
A Espiritualidade nas Práticas
Integrativas e Complementares:
Analisando discursos de
participantes. João Pessoa: Libellus
Editorial, 2018.
CROATTO, José Severino. As
Linguagens da experiência religiosa:
uma introdução à fenomenologia da
religião. 3. ed. Tradução de Carlos
Maria Vásquez Gutiérrez. São
Paulo:Paulinas, 2010. 521p. (Coleção
Religião e Cultura).
ELIADE, Mircea. O sagrado e o
profano: a essência das religiões.
Trad. Rogério Fernandes. 1 ed. São
Paulo, Martins Fontes Editora, 1992.
______. Tratado de História das
Religiões. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2010. 479p.
FERREIRA NETTO, Maura Silva. Tarô,
uma jornada arquetípica. 2016. 43 f.
TCC (Pós-Graduação) – Universidade
Vicentina e CLASI – Centro Latino
Americano de Saúde Integral,
Curitiba, PA, 2016. Disponível em:
<https://www.clasi.org.br/media/
user/downloads/maura-silviaferreira-netto_w3.pdf. Acesso em: 04
jan. 2019.
FERREIRA, Renata Shirley da Silva.
Reiki: uma abordagem do ponto de
vista das emoções. João Pessoa:
Libellus Editorial, 2018.
FIGUEIRA, Jussara Paraná Sanches
et al. “verbi – o idioma do caos”:
164
línguas, linguagens e a psique
Junguiana em cena. Revista Memorare,
[S.l.], v. 3, n. 3, p. 142-160, dez. 2016.
ISSN 2358-0593. Disponível em:
<http://portaldeperiodicos.unisul.
br/index.php/memorare_grupep/
article/view/4374/2941>. Acesso
em: 04 jan. 2019. doi:http://
dx.doi.org/10.19177/memorare.
v3e32016142-160.
GASBARRO, Nicola Maria.
Fenomenologia da Religião. In:
PASSOS, J. D; USARSKI, F. (Org.)
Compêndio de Ciência da Religião.
São Paulo: Paulinas/Paulus. 2013,
p. 75-99.
JUNG, C.G. Psicologia do inconsciente.
Trad. Maria Luiza Appy. Petrópolis:
Vozes, 1987.
______. Sincronicidade. 18. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
______. Psicologia e Alquimia. 5.ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
MOREL, Corinne. Tarô psicológico
para iniciantes: como utilizar a
sabedoria do Tarô de Marselha para
conhecer a si mesmo e os outros;
Trad. Karina Janbini. São Paulo:
Pensamento, 2018.
NICHOLS, Sallie. Jung e o Tarô: uma
jornada arquetípica. Introdução:
Laurens van der Post; Trad. Octavio
Mendes Cajado. – São Paulo: Cultrix,
2007.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
RHINE. J. B. Novas fronteiras da
mente: histórias das experiências na
universidade de Duke. Trad. Leonidas
Gontijo de Carvalho. 2 ed. Ibrasa: São
Paulo, 1973.
ROHR, Ferdinand. Espiritualidade e
formação humana. Revista Poiésis.
Universidade do Sul de Santa
Catarina, Santa Catarina. v. 4, nº. Esp.
(2011). Disponível em: http://www.
portaldeperiodicos.unisul.br/index.
php/Poiesis/article/view/748. Acesso
em: 02 jan. 2019.
TAVARES, F. R. G. Tornando-se
tarólogo: percepção ‘racional’
versus percepção ‘intuitiva’ entre os
iniciantes no tarot no Rio de Janeiro.
Numem (UFJF), Juiz de Fora, v. 2, n.1,
p. 97-123, 1999.
WIDENGREN, Geo. Fenomenologia
de La Religión. Trad. Alvaro Alemany.
In: Ediciones Cristiandad, S. L. Madrid,
1976.
[ Volta ao Sumário ]
165
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
dançaR Com afeto:
vivência de biodança
com mulheres dependentes
químicas – é possível afetar
e deixar ser afetada?
Carmen Lúcia dos Santos
Eduardo meinberg de Albuquerque maranhão F°
Como referenciar este capítulo:
SANTOS, Carmen Lúcia; MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque.
Dançar com afeto: vivência de biodança com mulheres dependentes químicas
– é possível afetar e deixar ser afetada?. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg
de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião,
Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades.
João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 166-181.
Carmen Lúcia dos Santos1
Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão F°2
Introdução
O presente trabalho visa tratar a vivência de biodança, fundamentada no seu modelo teórico e nas linhas de vivências, como elemento
importante capaz de propiciar experiências integradoras que visam aumentar o potencial afetivo por meio da música, da dança e do movimento corporal , permitindo ao individuo conectar-se consigo mesmo e com
os outros e com o cosmo. Tendo como base metodológica os conceitos
de biodança, de afeto e de dependência química, que se articulam entre
si, como suportes fundamentais que possibilita o indivíduo a ser afetado por suas experiências e assim, poder afetar outros por meio dos
vínculos afetivos que permitem o aumento do seu potencial energético, a expressão da alegria, do bem-estar físico, psíquico, emocional, e
espiritual, intensificando o ímpeto do afeto no aqui e agora. Utilizamos
uma abordagem metodológica qualitativa, descritiva, pois o objeto da
pesquisa determina o método a ser adotado para compreender a realidade. Como afirma Flick (2004, p.17) “Cada método baseia-se em uma
compreensão especifica do seu objeto”. Busca-se compreender o ser
humano em processo de superação de dependência química e como a
Mestranda em Ciências das Religiões pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências
das Religiões (PPGCR) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Campus I, João Pessoa, Paraíba. Endereço eletrônico: carmensasv@gmail.com. Sob a orientação do Professor Doutor Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão. Endereço eletrônico: edumeinberg@gmail.com.
2
Docente-visitante do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e
Políticas Públicas (PPGDH/UFPB) e do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (CCJ/UFPB). Pós-Doutorado em Ciências das Religiões pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Doutorado em História pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Pós-Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas pela UFSC.
Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em História
do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Coordenação
da Fogo Editorial. E-mail: edumeinberg@gmail.com.
1
167
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
biodança contribui para encontrar sentido para vida. Dançar com afeto
conecta-se com a linha da afetividade e da vitalidade, força vital da biodança, que possibilita a ativação de potenciais genéticos, por meio da
música e do movimento corporal contribuindo para a elevação da auto-estima afetando a elevação do humor e de um estilo de vida saudável.
Sendo assim, esses elementos ativam potenciais genéticos, ativando o “inconsciente vital”. Esses componentes celulares são acionados por meio da vivência, da música, elevando o estado de humor e
expressão vital da alegria e do bem estar – físico, mental, emocional e
espiritual.
1. Conceito de afeto
Por afeto, compreende as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções (ESPINOZA, 2009, p. 44). Segundo
Marques (2012, p.), o termo afeto (affectus) exprime a transição (transitio)
de um estado a outro, tanto no corpo afetado, como no corpo afetante.
Os afetos são, portanto, potência em processo de variação; ser afetado é passar a uma perfeição maior (alegria) ou menor (tristeza) do
que a do estado anterior. Essa transição, além de não envolver necessariamente a consciência da mesma, exprime a variação da potência
de agir do corpo... Os afetos podem ser ativos,quando exprimem a
passagem a uma perfeição maior (alegria), ou passivos, guando exprimem o movimento oposto (tristeza). (MARQUES, 2012, p.)
O sentido do afeto passa pela força de existir e da potencialidade de poder ser afetado, por meio do conjunto de afetos que circulam,
movimentam e preenchem um corpo composto pelos indivíduos e pela
coletividade. Assim, acontece no movimento da biodança, quando as
linhas de vivência da biodança proporcionam experiências que leva o
individuo a conectar-se com suas forças vitais e seu potencial afetivo
numa conexão e expansão de afetos e de uma vitalidade- força vital,
que explode na alegria de viver.
168
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
2. Conceito dependência química
Segundo Ribeiro (2011, p. 43) o conceito de dependência é extremamente recente, se comparado ao consumo de substância psicoativas
pela humanidade, que compreende vários milênios. Contudo, problemas
relacionados ao consumo sempre existiram.
Vive-se em um mundo onde o uso de drogas parece ser experimentado como uma prática de busca de gozo ou alivio da tensão individual gerada pelo estresse e pela depressão sentimental de uma sociedade hiperativa. Ainda, Ribeiro acrescenta que a disponibilidade e os
usos de substâncias que carregam riscos de dependências químicas são
sempre parte de contextos geográficos, econômicos, sociais, culturais
e históricos.
Vivemos na contemporaneidade uma crise da sociedade enquanto
instância de referência para o individuo, onde a incerteza e o risco
predominam sobre qualquer idéia de projeto sólido de vida, como
sublinharam Bauman e Beck. Esse clima de incerteza leva a uma
intensificação de um “cuidado de si”, com o individuo buscando na
“autenticidade” de suas emoções, no refugio de seu “inner self”, o
lugar privilegiado de sua existência; assim como na partilha dessas
“vivências” em “comunidades emocionais”, com cada individuo que
também as experienciou. (CAMURÇA, jul/dez.2009, p. 348-349).
Todos os riscos que enfrentam hoje as mulheres por meio do uso
do abuso das drogas, sobretudo do álcool e do crack a deixam fragilizadas, vivendo num mundo de incertezas de insegurança e de abandono e
este quadro se constata na falta de cuidado de si e de desprezo total. Na
vivência de comunidades terapêuticas, encontram ali, um refúgio como
lugar que privilegia sua existência e que oferece um espaço para poder
compartilhar suas vivências e suas emoções diante do estado fragilizado na qual se encontra. A biodança possibilita o cuidado de si e da coletividade na expressão do afeto e das emoções por meio da música e do
movimento corporal baseado numa metodologia da vivência.
169
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
3. Definição de biodança
A Biodança fundamentada no sistema biocêntrico traz uma metodologia própria na qual propõe uma teoria baseada nas vivências por
meio do movimento corporal e da música. Rolando Toro, assim o define:
A biodança é um sistema de integração, de renovação orgânica, de
reeducação afetiva e de reaprendizagem das funções originais da
vida. A sua metodologia consiste em induzir vivências integradoras
por meio da música, do canto, do movimento e de situações de encontro em grupo. (TORO, 2002, p. 33).
A sua aplicabilidade ocorre por meios da música, de exercícios e
movimentos corporais em grupo, oferecendo possibilidades de comunicação e de vivência integradoras, que estabeleça vínculos afetivos com
outras pessoas, contribuindo assim, para um processo de equilíbrio no
seu organismo em todas as dimensões: biológica, físico, emocional, psicossocial, mental e espiritual.
A vivência sendo a base da metodologia da biodança, baseia-se na
experiência vivida com grande intensidade no momento presente, que
envolve a cinestesia, as funções viscerais e emocionais. Confere uma
qualidade existencial de modo intenso do aqui e agora. A metodologia
da Biodança conduz o individuo as vivências de integração, através de
uma imediata conexão consigo mesmo, reforçadas pela associação com
situações prazerosas, estimuladas pela música, pela dança e pelas situações de encontro (TORO, 2002, p. 29-30).
3.1 O modelo teórico da biodança
Rolando Toro criou o sistema e Modelo Teórico (vide anexo 1) traçando uma trajetória de profundas e amplas mudanças, um longo caminho percorrido com uma atenciosa investigação. Em 1965, Rolando
Toro fez seus primeiros trabalhos de dança, com pacientes psiquiátricos, no Centro de Estudos de Antropologia Médica, da Escola de Medicina da Universidade do Chile, onde exercia a função de Membro Docente.
Foram às atividades de pesquisa de Toro que o levaram a experimentar diferentes sistemas terapêuticos com pacientes que apresentavam
170
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
problemas mentais, e seu modo de inovar foi a partir da dança, inspirado no
principio de que a dança e a música tinham um grande efeito no tratamento
dos pacientes. Observou os efeitos da música por meio dos exercícios de
contato na vida dos pacientes, percebendo os resultados positivos.
A partir dessa experiência, Toro estruturou o modelo teórico., concretizando através das vivências integradoras e da comunicação grupal,
que estabelecem vínculos com a própria vida, potencializando um desenvolvimento do ser humano comprometido e vinculado consigo, com
o outro e com a natureza (TORO, 2002, p. 37).
3.2 Conceitos estruturais da biodança
A Biodança está ancorada nas pesquisas cientificas que Rolando Toro desenvolveu, por meio de respostas neurovegetativas dos
seus pacientes e demonstrou que determinados exercícios promovem uma ação reguladora ao nível visceral e que de certa forma ativa o sistema simpático-adrenérgico ou o parasimpático-colinergico.
A partir do desenvolvimento dos seus estudos e experiências, Rolando Toro, deu-se conta de que a estrutura da Biodança está voltada e
fundamentada nas ciências que tratam da vida e chegou à conclusão
que a essência do ser humano não está nos aspectos psicológicos,
mas sim, nos biológicos.
O principio Biocêntrico é a inteligência afetiva; a transformação é
integrar a inteligência ao amor através da música e do encontro
afetivo. A vida ao centro é o novo paradigma. Esta é a proposta de
evolução cósmica para nossa espécie. O núcleo criador da cultura do
terceiro milênio está por nascer com a restituição da sacralidade da
vida. (TORO, apud, Santos, p. 69).
Assim os fundamentos estruturais da Biodança assentam numa
abordagem calma, sem a produção de stress emocional, com comunicação leve, aberta e direta, trabalhando com grupos de pessoas e utilizando a música e o movimento para a expressividade do prazer e da
vitalidade como força vital.
171
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
3.3 Inconsciente vital
O Inconsciente Vital, parte integrante do psiquismo humano constituído de células, órgãos, em sua estrutura celular traz diversas formas
de comunicação, por meio da memória, ora expresso em manifestações
outras de afinidades e, solidariedade entre si, representado numa forma
riquíssima de comunicação. “O inconsciente vital é assim, um comportamento que gera regularidade e mantém estável a função orgânica”.
(TORO, 2005, p. 53). Continuando a aprofundar o conceito de “inconsciente vital” e sua conexão com o “inconsciente pessoal” e o “inconsciente coletivo”, Toro afirma:
O conceito de “inconsciente vital” mantém relação com o de “inconsciente pessoal” e o de “inconsciente coletivo” definidos respectivamente por Sigmund Freud e Carl Jung. O inconsciente pessoal
possui uma dimensão biográfica e se nutre da memória dos fatos
vividos especialmente durante a infância. O inconsciente coletivo
nutre-se da memória da espécie. O inconsciente vital se expressa
pelo humor endógeno (euforia e depressão), pelo bem estar cenestésico, pelo estado geral de saúde. (TORO, 2002, p. 56-57).
Esses componentes celulares estão representados em formas de
sensações cinestesias, vitais por meio da vivência de biodaça, são acionados mecanismos que atuam nos níveis de integração motora afetiva
repercutindo na estrutura do sistema nervoso, imunológico e sistema
endócrino. Estes possibilitam uma elevação do humor, a expressão da
alegria, do bem-estar físico, psíquico, emocional, e espiritual, potencializando a renovação e a vontade de viver plenamente no aqui e agora.
4. metodologia da vivencia
A base metodológica da biodança é a vivência. A vivência tem um
valor intrínseco e um efeito imediato de integração, razão pela qual não
é necessário que seja posteriormente analisada no nível da consciência.
Na Biodanza, propõe-se uma descrição das vivências pessoais, enquanto experiências interiores, sem análise ou interpretação psicológica.
172
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A seguir veremos estas cinco linhas de Vivências que promovem o
desenvolvimento desta identidade relacional. Através desse modelo vivencial, estas dimensões denominadas de Linhas de Vivencias são possibilidades geradoras de vida e de aprendizagem no processo de evolução e
desenvolvimento do potencial do ser humano vinculado com a própria vida.
4.1 Linha da Vitalidade
A vitalidade é gerada por um conjunto de funções que tem por objetivo manter a homeostase, compreende os instintos de conservação,
de fome, de sede, bem como o movimento de fuga, de luta e a regulação
da atividade e de repouso. O impulso vital é a energia de que o individuo
dispõe para enfrentar diversas situações do cotidiano com força vital, é
a alegria de viver. De acordo com Toro (2002, p. 86), “uma das finalidades da Biodança consiste em garantir os ecos-fatores que permitam a
expressão das potencialidades genéticas da vitalidade.” Esta Linha de
Vitalidade tem como objetivo despertar e desenvolver a alegria e o ímpeto vital do ser. A vitalidade possui componentes genéticos importantes que podem ser expressos durante a existência.
4.2 Linha da Sexualidade
A linha da sexualidade prepara o individuo a ter uma relação diferente com o corpo numa progressão de descoberta e de aprendizagem. Para
Toro (2002, p. 87.), “não existe prazer verdadeiro que não provenha da
profundidade e do entusiasmo natural para a vida.[...] o ato de viver é em
si mesmo jubiloso” É evidente que o prazer de viver não se justifica quantidade de coisas que possuímos ou consumimos, mas sim, nas pequenas
experiências do cotidiano, nos prazeres que vivenciamos nas pequenas
coisas, que nos faz desfrutar no prazer de viver com intensidade.
Este espaço de gozo é vivenciado no corpo como fonte de prazer,
percebendo os sinais, e as necessidades em satisfazer os desejos essenciais coerente com o sentir e o pulsar da vida no momento presente.
Toro nos faz lembrar que o corpo tem sido associado à dor, a doença e o
sofrimento. Na biodança, o participante vai se exercitando e conectando
com vivências prazerosas com a intenção de despertar sua percepção
dos desejos mais genuínos na busca do prazer de viver. E, o prazer de
173
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
viver se concretiza pela dança, a alegria de viver, o movimentar, o escutar o próprio coração, pela capacidade de se maravilhar e do encantar-se
com o belo e o que há de prazer no cotidiano da vida. Toro coloca que a
Linha sexualidade não se restringe somente a sensualidade e o prazer
genital. É sentir prazer na degustação de alimentos, pelo banho, pela
brisa, pela chuva, pelas carícias, pelos beijos, é ter receptividade ao contato corporal (2002, p. 87)
4.3 Linha da Criatividade
A linha da criatividade na Biodança, tem por objetivo trabalhar o
desenvolvimento do nosso instinto e impulso para renovar, despertando-nos para o sentido existencial da criação. Para Toro (2002, p.89) “a
atividade criadora é o desenvolvimento natural de uma função biológica”.
No entanto, a Biodança atua no sentido de favorecer a expressão desta
função criadora que é própria de todo ser humano. Toro (2002, p.88) nos
convida a mudar a concepção de que existe dissociação entre o ser e sua
obra ou ainda a mudar a crença de que a criatividade é apenas mérito de
algumas pessoas extraordinárias. Extraordinário e maravilhoso é o nosso
próprio viver, criando o nosso próprio existir, pois é chegado o momento
de assumir a nossa grandeza, não só na dimensão intelectual ou cognitiva, mas na existência. A força vital da criatividade manifesta-se através
do movimento orientado pela vivência e que nos conecta com a essência
de nós mesmas, com o belo e com a obra de arte que desabrocha da autenticidade daquilo que é o ser humano na sua singularidade.
4.4 Linha da Afetividade
Toro, afirma que a expressão privilegiada desta Linha é o amor, e
“celebrar a presença do outro, exaltá-la no encanto essencial do encontro é, talvez, a única possibilidade saudável”. (2002, p.13). As vivências a
nesta Linha aponta para despertar da ternura, a solidariedade, a cooperação e integração afetivo, potencializando uma força vital amorosa, em
conexão consigo e com o outro.
Paul Hoggertt e Simon Thompson fazem uma importante distinção
entre o que seria afeto e emoção. Para eles, os afetos são aqueles
sentimentos mais corporificados, menos conscientes, enquanto as
174
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
emoções concernem os sentimentos mais conscientes, ancorados
na linguagem e nos significados. (WOLFF, 2015)
Na experiência da vivência de biodança essas suas dimensões do
afeto e da emoção estão vinculadas no contato corporal por meio da música e que pode afetar as subjetividades, potencializando uma dimensão
do afeto que passa pelo sentir, pelo olhar, pela percepção, pela sensação
e memória corporal, quer perpassa uma dimensão mental do individuo.
Para SARPE (2017, 9.109) “a integração da afetividade extrapola a vivência e implica um vínculo, em continuidade, e a superação dos
impasses que, entretanto, vão surgindo na relação com o outro e na relação grupal”.
Nesse sentido, a afetividade humana se constitui numa expressão
da explosão do potencial, força vital pela qual a vivência de biodança
propicia a afetar o individuo por meio da música por meio do movimento
corporal tanto a nível individual que coletivo.
4.5 Linha da Transcendência
A Transcendência trata da vinculação com a natureza, este vínculo
se expressa através do sentimento de pertença ao universo, são, pois,
estados de expansão da consciência. Segundo Toro (2002, p. 91), a experiência de Transcendência é vista como superação do próprio eu, indo
além da autopercepção para identificação com a própria natureza. Para
ele, “a procura de harmonização com a natureza em sua totalidade é
uma função orgânica [...] O impulso místico é visceral, e tal experiência
provoca profundas modificações na homeostase, tanto em nível orgânico como em nível existencial”.
Os efeitos dessa vivência estão na percepção do potencial energético do próprio corpo como canal que emana iluminação e um estado
harmônico, de paz e felicidade como descreve os místicos.
5. Os efeitos da biodança na vida das mulheres
O antropólogo Rolando Toro, fundador da biodança, em suas
pesquisas percebeu um grande efeito da biodança em pacientes com
175
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
problemas mentais num hospital psiquiátrico, essa experiência se fundamenta na vivência de biodança por meio da musica, da dança e da
interação, estabelecendo vínculos afetivos.Nesse processo observou os
efeitos da música por meio dos exercícios de contato na vida dos pacientes, percebendo os resultados positivos.
A antropóloga Miriam Pillar Grossi, em um texto intitulado Na busca
do “outro”, encontra-se a “ si mesmo”, explica que a subjetividade do
pesquisador, e o seu encontro com quem é pesquisado, ocupa um
lugar central no processo de construção de teorias, etnografias e
conceitos antropológicos. O texto encerra com a enunciação: “nunca é demais lembrar que só se encontra o outro, encontrando a si
mesmo” e “cada caminho reflete a forma individual e subjetiva do
encontro de si mesmo a partir do encontro com o outro”. (MARANHÃO, 2016, p. 216)
De fato, somente ocorre uma transformação significativa considerando a individualidade e subjetividade, à medida que há esse encontro
consigo mesmo e com o outro, e a vivência em biodança, favorece meios
para que esse caminho se concretize por meio da corporalidade e a interação no grupo.
O resultado desse relato parte da minha experiência como professora voluntária de biodança na aplicabilidade de aula semanais de
biodança, por meio da vivência, da música e do movimento corporal, na
Casa Betânia com mulheres dependentes químicas na faixa de 20 a 60
anos. Apresento alguns relatos de fala, após um processo de vivência de
biodança, reconhecendo o bem-estar e os efeitos que a biodança produz na vida das mulheres.
Jac. – 42 anos, mãe de quatro filhas e três netos. “Antes do crack
eu era muito família. O crack devastou minha vida, minha família, perdi
meu emprego, o nascimento do meu neto, o aniversario de minha filha,
a separação do meu marido. E, minha filha de quinze anos perdeu o ano.
A biodança traz a alegria dentro de mim. Meu prazer era dançar. Dançar
sem droga é prazeroso. Sinto uma leveza espiritual, uma paz e coisas
positivas, a energia se renova. Para mim, a melhor parte da biodança é a
dança e a respiração, por que quando a gente fuma não tem condições
de respirar. A biodança trabalha o corpo inteiro. Meu Deus, como é bom
viver e respirar sem fumaça, sem droga”.
176
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
iv. – 47 anos – “Abandonei a família com 15 anos de idade, eu
era muito fechada, não sorria, agora sou mais sorridente, um sorriso
gostoso. A biodança me deixa mais alegre, não tinha vontade de dançar.
A biodança me dar um equilíbrio melhor de poder viver, sentir o amor de
Deus e me traz esperança, ter posse de viver mais.”
S. C. F. – 26 anos – “Usuária da maconha, cigarro, cola, tiner, álcool, crack. Já havia escutado falar da biodança, mas agora, eu tenho
outro conhecimento. A biodança me ajuda a melhorar o controle dos
movimentos, a auto-estima, levanta a animação e faz desabrochar as
coisas boas. Pois, me ajuda a descarregar todo o peso. A biodança é
muito gratificante”.
E. – 32 anos – “A experiência do abraço na roda de vivencia de
progressão, me trouxe uma sensação de viver o abraço de forma tão
natural, desinteressado. Uma expressão do beijo em roda sem maldade,
eu fui expressando de maneira tão pura”.
A – 23 anos – “Uma das coisas boas que a droga me trouxe, foi o
nascimento do meu filho com 1 ano e seis meses um grande presente.
Eu tinha muita resistência para entrar na roda de biodança. A musica :
“Viver e não ter a vergonha de ser feliz”, me fez entrar na roda e sentir o
prazer de dançar “.
L. – 32 anos – “Tanto a espiritualidade que a biodança me traz
leveza, toca minha alma, provoca uma mudança dentro do meu comportamento”.
m.C – (monitora da casa Betânia) – “Não sei dançar, meu pai me
privava muito. Hoje tive que resolver situação de agressão física na casa
Betânia por motivo do processo abstinência no qual vive as mulheres.
O que me ajudou na vivência de biodança, adquirir uma leveza no dançar
com movimentos de fluidez e respiração, me ajudou a encontrar soluções para lidar com os problemas da agressão. A vivência me trouxe
prazer, leveza, retirei todo o peso e carga do corpo, que vinha carregando diante dessa situação de agressão.”
L. (assistente social) – “A nossa visão é a melhor possível como
resposta da biodança. As mulheres acolhidas relatam que se sentem
mais felizes e relaxadas quando fazem a atividade. As mulheres sinalizam que a principio sentiam vergonha, mas depois se sentem a vontade
para realizar a atividade de biodança. Como efeito, nós profissionais da
177
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
casa percebemos que há uma socialização de atenção de paz e alegria
junto com um equilíbrio em suas falas e posturas”.
A analise dessas respostas apontam para o despertar de algumas
categorias fenomenológicas do grupo de mulheres dependentes químicos: alegria, prazer de dançar,animação, auto-estima, leveza e paz.
Os relatos confirmam o objetivo maior da Biodança que é de potencializar o prazer e a alegria de viver. Por meio da vivência de biodança são ativados os potenciais vitais, o aumento da auto-estima, a
integração afetivo-motora, o melhoramento do humor, o bem-estar
e o equilíbrio humano e espiritual, percorrendo o caminho da integração por meio de exercícios de respiração dançante, de sincronização e
harmonização, redescobrindo o ímpeto vital, equilibrando o corpo em
seus aspectos fisiológicos, antropológicos e psicológicos, trazendo a
Luz própria de cada uma, dentro do seu momento de vida, dentro do
seu momento de despertar.
A partir da experiência de vivência de biodança com as mulheres
dependentes química, fui me deixando afetar em vista de ajudá-las no
processo de recuperação por meio da biodança, e este processo desembocou no meu projeto de pesquisa de mestrado em Ciências da religião
na Universidade Federal da Paraíba. O referido projeto tem por objetivos: pesquisar a contribuição da espiritualidade no processo de recuperação da dependência química numa visão transdisciplinar a partir dos
referenciais teóricos da biodança, com mulheres da Casa Betânia, uma
ONG (Organização Não Governamental), na cidade de Maceió – Alagoas.
6. Considerações finais
O presente trabalho teve como objetivo apresentar a dimensão
do afeto na vivência de biodança com mulheres dependentes químicas
e seus efeitos por meio da dança. E, para clarificar a nossa discussão
sobre a temática, trouxemos os conceitos de afeto, de dependência
química e de biodança e seus aspectos metodológicos expressos nas
linhas de vivencias: Afetividade, Criatividade, Vitalidade, Sexualidade e
Transcendência, que possibilita uma conexão de afetos potencializando
178
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a energia vital por meio da vivencia, da dança, da música e do movimento corporal produzindo um bem-estar harmônico de integração no
individuo.
Sendo assim, a Biodança enquanto força vital motivadora na descoberta do potencial humano por meio da música e da dança consegue
afetar a vida dessas mulheres por meio da vivência proporcionando um
bem estar pessoal e coletivo. Na vivencia de biodança não há observadores, todos se envolvem como participantes ativos de forma intensa
no processo, permitindo viver com intensidade uma conexão consigo e
com o outro numa integração harmônica.
O resultado do presente artigo fundamentado em bases metodológicas e experiências em vivência de biodança com mulheres dependentes química, abre portas para ampliar um olhar sensível, e ético e
uma maior consciência social como pesquisadora, mantendo uma postura de busca e de ampliação do conhecimento, abrindo possibilidades
de me deixar ser afetada e afetar no processo da pesquisa.
Nesse sentido vale salientar que a biodança potencializa a alegria
de viver e de existir que levam o individuo a ter mudanças interiores e
novas posturas, novas escolhas, atingido vários aspectos físico, emocional, psicossocial, cultural, ético, mental e espiritual de forma individual e coletiva por meio do movimento corporal e dançante da biodança.
179
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
CAMURÇA, Marcelo. “Cuidado de
si”, ”imperativo de realização de si”
e produção de subjetividades em
redes carismáticas da igreja Católica
no Brasil no meio universitário1.
História: Debates e Tendências.
v. 9, n.2, jul/dez.2009, p. 348-363.
Disponível em: http://www.upf.
br/seer/índex/php/rdt/article/
viewFile/2968/2015.
FLICK, Uwe. Uma introdução à
pesquisa qualitativa. 2. ed. Porto
Alegre: Bookman, 2004.
MARANHÃO FILHO, Eduardo
Meinberg de Albuquerque. Quando
Clio encontra Hermafrodito e
Tirésias, mas Narciso está no
caminho: Reflexões a partir de
história oral em mistérios de “cura”
de travestis. Esboços, Florianópolis,
v. 23, n. 35, p. 210-228, 2016.
MARQUES. Mariana Ribeiro. Afeto e
sensorialidade no pensamento de B.
Espinosa, S. Freud e D.W. Winnicott.
Tese de Mestrado em Psicologia
Clínica. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, 2012.
Orientação de Carlos Augusto Peixoto
Junior.
RIBEIRO, Lobo Hewdy. BOGAR,
Mariana. Espiritualidade e
Dependência Química. In:
Dependência Química. Porto AlegreRS, Artmed: 2011.
SARPE, Antonio. Programa Antonio
Sarpe para a criação e manutenção
de grupos regulares. Lisboa:
Finepaper, 2017.
SPINOZA, Benedictus de. Etíca
Spinoza. Tradução de Tomaz Tadeu.
Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2009.
TORO, Rolando. Biodanza. São Paulo:
Editora Olavobrás/EPB, 2002.
______ Biodanza. 2. Ed. São Paulo:
Olavobras, 2005.
WOLFF, Cristina Scheibe. Pedaços
de alma: emoções e gênero nos
discursos da resistência. Estudos
Feministas, Florianópolis, v. 23,
n. 3, p. 975-989, Nov. 2015.
[ Volta ao Sumário ]
180
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Anexo 1
181
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
diálogo inteR-Religioso
e dignidade Humana:
contribuições do pontificado
de francisco – 2013 a 2017
maria Graciane Clemente de melo
Como referenciar este capítulo:
MELO, Maria Graciane Clemente. Diálogo inter-religioso e dignidade humana:
contribuições do pontificado de Francisco – 2013 a 2017. In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 182-191.
Maria Graciane Clemente de Melo1
Introdução
Entendemos que a sociedade moderna é amplamente marcada
pelas diferentes formas de estar no mundo. Não são poucas as expressões culturais que emergem a cada dia, derrocando o interesse de alguns em relação à padronização de práticas, de preferência, as hegemônicas. As subjetividades existem e sua negação apenas encontra eco
naqueles que teimam em se sobrepor ao outro.
E assim também se apresenta o mundo religioso. A pluralidade de
expressões de fé é um fato. Cada vez mais, a pertença religiosa sai das
mãos de religiões tradicionais e se incorpora nas mais diversas crenças.
Isso leva grande parte de seus seguidores a experimentarem o desamparo em suas convicções mais profundas e faz de muitos líderes religiosos verdadeiros sentenciadores da conduta alheia, levando, inclusive, os
fiéis a um a prática semelhante. Assim, cresce a intolerância.
Aragão (2015) enfatiza a importância da discussão hermenêutica
do diálogo inter-religioso na academia, que segundo ele, “pode servir-se
de seu movimento transdisciplinar para alcançar novas lógicas” (ARAGÃO, 2015, p. 17).
Enquanto isso, na sociedade que prioriza o mercado, crescem as
desigualdades, a violência (inclusive em nome de Deus), a injustiça e
todo tipo de sofrimento, que atinge prioritariamente os empobrecidos,
afrontando a dignidade humana. Isso posto, entendemos que o ser humano está na contramão do desejo divino de que todos são indiscriminadamente, importantes, aos olhos de Deus.
Pretendemos discorrer sobre a relação entre diálogo inter-religioso e dignidade humana, trazendo para a discussão uma persona-
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade
Católica de Pernambuco. Orientador: Professor Doutor Sérgio Vasconcelos. Lattes: http://
lattes.cnpq.br/5962345832328103. E-mail: gracianecmelo@yahoo.com.br
1
183
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
gem que tem se destacado no mundo moderno, como artífice da paz.
O presente texto será ancorado na forte influência que o Papa Francisco,
atual líder da Igreja Católica Apostólica Romana, vem exercendo sobre
os mais diversos segmentos religiosos e até mesmo aos que se dizem
sem religião. O Papa em questão, tem se mostrado preocupado com
a pobreza, com a violência e com qualquer fenômeno social que gera
sofrimento humano, dentre esses, encontramos caminhos apontados
para a materialização do diálogo entre as religiões, elemento central
dessa pesquisa.
Elencamos como objetivo da pesquisa: analisar, a partir dos discursos proferidos pelo Papa Francisco entre 2013 e 2017, o engajamento
das religiões na busca de elementos comuns, sobretudo nos que estão
centrados na busca da dignidade humana. A fim de construir um caminho para elucidar esse objetivo, elegeremos como percurso metodológico uma análise documental dos discursos do Papa Francisco, durante
os mais diversos encontros, seja no Vaticano, seja em visitas pastorais,
entre o ano de sua eleição (2013), a 2017, totalizando os primeiros 5
anos do seu pontificado, por considerar que esse seria um tempo razoável para identificar pontos de congruência acerca de sua defesa do
diálogo inter-religioso.
Francisco, o Bispo de Roma
Em 13 de março de 2013, sob a expectativa mundial da eleição do
sucessor do Papa Bento XVI, que havia renunciado à Cátedra de Pedro
em fevereiro do mesmo ano, é anunciado o novo líder da Igreja Católica
Apostólica Romana. O cardeal Jorge Bergoglio, 266º na sucessão papal,
apresentou-se na sacada da Basílica de São Pedro, fazendo, a princípio,
alusão ao seu lugar de origem. Após instantes de silêncio, fitando a multidão presente, ele expressa, sob olhares curiosos: “Vocês sabem que o
dever do conclave era dar um bispo a Roma. Parece que meus colegas
foram buscar um papa no fim do mundo. Mas aqui estamos. Agradeço
184
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a acolhida. A comunidade diocesana de Roma tem seu bispo.”.2 Nesse
momento, o neo-pontífice, em uma pequena alocução já demonstrara
sua intenção de enfatizar a colegialidade da Igreja, ressaltada no Concílio Vaticano II, dando pistas de uma governabilidade pautada no diálogo com os demais bispos. Em demonstração de unidade com a Igreja,
Francisco conclama a todos a se juntarem a ele em oração pelo então
Papa emérito, Bento XVI. Após essa demonstração de carinho, ele em
poucas palavras, vai descortinando a caminhada escolhida para o seu
pontificado.
E agora iniciemos esse caminho. Bispo e povo. Esse caminho da
Igreja de Roma que preside todas as outras Igrejas na caridade. Um
caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós. Rezemos
sempre uns pelos outros. Rezemos por todo mundo, para que haja
uma grande fraternidade. (FRANCISCO, 2013)3
Francisco vai envolvendo as pessoas de outros credos, espalhando um clima de acolhimento indiscriminado, protagonizado pelo sorriso
meigo e palavras fortes, que repercutem uma imagem positiva do líder
católico. Francisco traduz o Evangelho para os dias atuais, antenado
com os problemas impostos pela modernidade e buscando soluções
pacíficas para eles. Miranda (2017) delineia alguns aspectos que envolvem a contemporaneidade, exigindo do cristianismo um posicionamento frente a estes.
Instituições sociais tradicionais como a família, a escola, as entidades políticas, a nação, bem como o patrimônio cultural e religioso.
O etos social com seus valores e interditos, enfim, todo esse nosso
mundo se vê, queira ou não, posto diante de desafios inéditos que
atingem toda a humanidade de modo diverso, embora globalmente
propagados pelos modernos meios de comunicação e com as mais
refinadas técnicas (MIRANDA, 2017 p. 138).
Fala do papa Francisco, logo após a confirmação do seu nome para assumir a liderança da
Igreja Católica Apostólica Romana, transmitida ao vivo pelos meios de comunicação, disponível em: <https://www.youtube.com/results?search_query=habemus+papam+2013>.
Acesso em 25 de julho de 2018.
3
Ibidem.
2
185
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Nesse imenso desafio, Francisco se configura como uma liderança
com amplas possibilidades de falar a todos e não apenas para os que
professam sua fé. “o eco das palavras de Jesus ecoa no seu falar e no
seu atuar. Suas palavras chegam à alma e seus gestos afagam o coração das pessoas” (BASTANTE E VIDAL, 2014, p. 100).
Atento aos desafios da modernidade, o atual Papa vem se posicionando fortemente contra o atual sistema econômico e sua configuração
de injustiça. Na sua carta pastoral, Francisco (2013) diz não à economia
da exclusão e da desigualdade social. “Hoje tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco”
(Evangelii Gaudium, 53).
A essa questão Boff (2014), constata que Francisco coloca os pobres no centro do debate evangélico. O autor afirma que “o Papa Francisco tem consciência de que o modelo romanocêntrico e eurocêntrico está
‘sem saída’; não apresenta condições de resgatar o frescor do Evangelho
e a alegria que a mensagem cristã produz” (BOFF, 2014, p. 124).
Castilho (2014) provoca-nos a reflexão com o seguinte questionamento: “Pode um homem só influir na Igreja mundial de maneira que
modifique a vida e a presença dessa Igreja no mundo inteiro?” A essa
indagação, o autor enfatiza que, já em outubro de 2013, portanto com
poucos meses de atuação, Francisco já se situava entre os quatro homens mais poderosos do mundo. Isso posto, percebe-se o seu poder de
influenciar a opinião pública de todo o mundo.
Francisco e suas intuições acerca da superação do
sofrimento humano
Entendemos que os discursos proferidos partem de um lugar de
fala. Esse lugar vai se delineando no decorrer de uma construção identitária sedimentada nas experiências da caminhada ao longo do tempo.
Assim se apresenta esse percurso de Francisco. Nas suas palavras sentimos a proximidade do chão das comunidades, com seus desafios e
possibilidades. Uma fala de quem interage com as demandas sociais e
eclesiais contemporâneas.
186
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Francisco tem se mostrado um líder atento às dores do povo. Além
da preocupação com o “seu rebanho”, confiado por Cristo, o atual líder da
Igreja Católica Apostólica Romana apresenta claramente sua atenção à
vida das pessoas em todo o mundo, independentemente de abraçarem
a sua religião. O “papa do fim do mundo” – como ele se apresentou ao
encontrar-se com o povo na Praça São Pedro – é portador de grande
sensibilidade às causas mundiais, dialogando com os mais diversos
segmentos em vistas da construção de uma cultura de paz.
Júnior (2018, p. 7) afirma que “a centralidade dos pobres e marginalizados e das pessoas em situação de sofrimento em geral é, sem
dúvida nenhuma, a característica mais marcante e o aspecto mais determinante do ministério pastoral do Papa Francisco”.
Isso posto, identificamos em sua trajetória de liderança espiritual
de um segmento religioso, elementos que nos levam a crer na sua disposição em abraçar a todos indiscriminadamente, independentemente
de credo. Em sua primeira Exortação Apostólica, Francisco (2013) enfatiza a importância do diálogo no processo de evangelização. Dentre as
categorias de diálogo apontadas pelo sucessor de Pedro, tem um lugar
reservado ao diálogo inter-religioso, diagnosticado como salutar para a
paz no mundo. Aprender a aceitar os outros, na sua maneira diferente
de ser, de pensar e de exprimir (EG, 250) é condição indispensável na
visão do atual líder da Igreja de Roma. Ele afirma, na Evangelii Gaudium
(2013), que os padres sinodais nos lembram a importância de se estabelecer o respeito à liberdade religiosa, direito fundamental do homem.
Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os valorizem como tais, não implica uma privatização das religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio e à
obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização no
recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas (EG, 255).
Em março de 2013, ao se dirigir aos representantes de diversas
Igrejas, o Papa ressalta a importância do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, pelo valioso trabalho desenvolvido em prol da aproximação com outros credos. Ele vincula essa “promoção de amizade e do
respeito entre homens e mulheres de diferentes tradições religiosas”4 à
4
Encontro com os representantes das Igrejas e comunidades eclesiais e de outras religiões,
em 20 de março de 2013. Disponível em: <www.vatican.va>. Acesso em 27 de julho de 2018.
187
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
união em favor do pobre, dos mais frágeis e dos que sofrem. Segundo
Francisco, essa relação favorece sobremaneira a justiça, a reconciliação
e a paz. Nesse encontro, o líder da Igreja Católica Apostólica Romana, se
dirige também aos sem religião.
Nisso, sentimos que estão conosco também todos aqueles homens
e mulheres que, embora não se reconhecendo filiados em nenhuma
tradição religiosa, todavia andam à procura da verdade, da bondade
e da beleza – esta verdade, bondade e beleza de Deus-, e que são
nossos preciosos aliados nos esforços por defender a dignidade do
homem, na construção duma convivência pacífica entre os povos e
na guarda cuidadosa da criação5.
Em encontro com o Corpo Diplomático Acreditado Junto da Santa Sé, Francisco ratifica sua intenção de que a Santa Sé se configure
como um espaço que atente para o “bem de todo homem que vive nessa terra”6. O Papa justifica a escolha do seu nome, lembrando a figura de
Francisco de Assis, homem conhecido para além do catolicismo, por sua
vinculação afetiva com os pobres. A adequação do nome ao momento
atual é enfatizada por Francisco, pelo fato de haver tantos pobres no
mundo, além de tantas pessoas que sofrem.
De acordo com Francisco, o seu ministério pastoral pretende dar
sentido ao termo pontífice, lembrando que ele significa “aquele que
constrói pontes”7.
Desejo precisamente que o diálogo entre nós ajude a construir pontes entre todos os homens, de tal modo que cada um possa encontrar no outro, não um inimigo nem um concorrente, mas um irmão
que se deve acolher e abraçar. E assim está sempre vivo em mim
este diálogo entre lugares e culturas distantes, entre um extremo
do mundo e o outro, actualmente cada vez mais próximos, interdependentes e necessitados de se encontrarem e criarem espaços
efectivos de autêntica fraternidade8.
Ibidem.
Encontro com o Corpo Diplomático Acreditado Junto da Santa Sé, em 22de março de
2013. Disponível em: <www.vatican.va>. Acesso em 27 de julho de 2018.
7
Ibidem.
8
Ibidem.
5
6
188
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Compreendemos que a inserção do Papa Francisco nos mais diversos espaços, realça sua intenção de ser, ele próprio, um praticante daquilo que prega. Ao se encontrar com as mais diversas tradições
religiosas e encorajá-las a serem porta-vozes dos mais necessitados,
o sucessor de Pedro assume um papel de extrema importância na atualidade, apresentando-se no dizer de crentes e não-crentes, como um
dos maiores, senão o maior, líderes religiosos da sociedade contemporânea. É desse modo que Francisco assume seu pontificado... Levando
ao máximo o entendimento do significado da palavra ponte. Aquele que
aproxima, aquele que une, aquele que propicia a caminhada.
Considerações finais
A sociedade moderna construiu, em certa medida, um cenário de
individualismo, a partir da sua opção pela economia de mercado. Isso
posto, a vida humana ficou relegada a segundo plano, aumentando consideravelmente as angústias e sofrimentos, consequentes dos conflitos
marcados pelas guerras, pela fome, pelo abandono. O homem, transformado em objeto, tem sido alvo de inúmeras formas de violência,
tornando-o, muitas vezes, insensível à dor dos que o rodeiam.
Desse modo, as religiões assumem um papel de suma importância, sobretudo por ser uma via de ligação com o transcendente e, por
isso, não poucas vezes, trazer aos crentes uma sensação de preenchimento das suas carências pessoais e materiais. Isso não seria um
problema se as tradições religiosas se utilizassem dessa condição para
auxiliar seus fiéis a se libertarem das amarras impostas pela sociedade
de consumo. Ao contrário, inúmeras vezes, nela própria é reforçado o
interesse material acima de todos os outros, inclusive como moeda de
troca para o alcance do céu, por conseguinte, da salvação.
Trouxemos, para essa discussão, a figura do Papa Francisco por
entender que o líder da Igreja Católica Apostólica Romana aborda uma
perspectiva contrária aos ideais de uma sociedade marcada pela desigualdade. Em suas alocuções, analisadas, sobretudo, no III capítulo, o
pontífice dá sinais de como as religiões precisam, a partir de sua profunda
relação com Deus, buscar alternativas de diálogo, a fim de salvaguardar
189
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a dignidade humana do irmão de caminhada, independentemente de
sua confissão religiosa.
O Papa dá indicações valiosas de como as religiões devem se colocar a serviço dos companheiros de caminhada e, para tanto, não precisa
que esses professem a mesma fé. Francisco, inclusive, defende veementemente a liberdade religiosa, como princípio legal e legítimo. Ele
enxerga beleza em outras tradições religiosas que são agraciadas pelo
sopro do Espírito Santo.
Francisco é enfático em denunciar as injustiças, colocando-se ao
lado dos empobrecidos, dos marginalizados, dos sem chão. Inúmeras
vezes, seu discurso é desenvolvido a partir de uma análise do cenário
social daqueles a quem dirige suas considerações. O atual líder da Igreja Católica Apostólica Romana demonstra conhecimento dos fatos que
afligem a comunidade local e apresenta pistas significativas para a minimização dos conflitos. Sempre apresentando o Deus da vida, Francisco faz questão de ir seguindo sua caminhada fazendo aquilo que acredita ser a tarefa principal de um líder religioso: ser ponte.
190
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ARAGÃO, Gilbraz. Do transdisciplinar
ao transreligioso. In: ARAGÃO.
Gilbraz. VICENTE, Mariano
(ORGs). Espiritualidades,
transdisciplinaridade e diálogo
[e-book]. Vol I. Recife: Observatório
Transdisciplinar das religiões no
Recife, 2015.
BASTANTE, Jesús & VIDAL, José M.
As mudanças presentes e futuras
da primavera de Francsico. In:
SILVA, José M. (org). Papa Francisco:
perspectivas de um papado.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
BOFF, Leonardo. O papa Francisco
e a refundação da Igreja. In: SILVA,
José Maria(Org.). Papa Francisco:
perspectivas e expectativas de um
papado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
CASTILHO, José M. O papa Francisco e
o futuro da Igreja Católica mundial. In:
SILVA, José M. (org). Papa Francisco:
perspectivas de um papado.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
Francisco, Papa. Exortação Apostólica
Evangelii Gaudium. A alegria do
evangelho. Sobre o anúncio do
evangelho no mundo atual. Brasília:
CNBB, 2013.
JUNIOR, Francisco A. Teologia do papa
Francisco: Igreja dos pobres. São
Paulo: Paulinas, 2018).
MIRANDA, Mário de F. A reforma de
Francisco: fundamentos teológicos.
São Paulo: Paulinas, 2017.
[ Volta ao Sumário ]
191
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
dinâmiCa das
CoRpoReidades
masCulinas em
tRanse na Casa de
umBanda são joRge
gueRReiRo em
BatuRité/Ce
Leonardo da Silva Leal
maria Jardele da Silva Queiroz
Como referenciar este capítulo:
LEAL, Leonardo da Silva; QUEIROZ, Maria Jardele da Silva. Dinâmica das corporeidades masculinas em transe na Casa de Umbanda São Jorge Guerreiro
em Baturité/CE. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.).
Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e
Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR /
Fogo Editorial, 2020, p; 192-201.
Leonardo da Silva Leal1
Maria Jardele da Silva Queiroz2
Introdução
Inicialmente, a pesquisa pretendeu descortinar – por meio do
exercício de uma abordagem interdisciplinar – a dinâmica da inserção
de corporeidades homossexuais, em sua maioria negras, em práticas
umbandistas, especificamente na Casa de São Jorge Guerreiro, em Baturité – CE. Em decorrência do contato com o campo de pesquisa e com
seus interlocutores, decidimos ampliar a perspectiva do estudo para
uma abordagem interdisciplinar sobre a dinâmica das corporeidades
homossexuais e heterossexuais no terreiro, especificamente nos transes de culto a Exus femininos.
Partimos do pressuposto de que compreender as ressignificações
dos papéis de gênero, sobretudo do(a)s participantes que afirmam a sua
identidade homossexual ou não – e ritualizam corporeidades em transe –, parece-nos de fundamental importância na agência específica de
resistências contra hegemônicas de gênero, dentro e fora do terreiro.
Nesse sentido, a pesquisa direciona-se em uma perspectiva interdisciplinar, qualitativa e exploratória, e, por meio da coleta de dados, com
entrevistas e observação de campo, procedeu-se – por último – a uma
etnografia, informada pelo entendimento de que a Umbanda é historicamente uma religião discriminada, e que acolhe diversos dos públicos
socialmente estigmatizados.
1
Bacharel em Humanidades. Graduando em Licenciatura Plena em História. Universidade da Integração Internacional da lusofonia Afro-Brasileira. Orientador: Professor
Dr. Francisco Vitor Macedo Pereira. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8006574276219751.
E-mail: leoleal@aluno.unilab.edu.br
2
Bacharela em Humanidades. Graduanda em Bacharelado em Antropologia. Universidade da Integração Internacional da lusofonia Afro-Brasileira. Orientador: Professor
Dr. Francisco Vitor Macedo Pereira. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4111692431929383.
E-mail: jardelequeiroz@gmail.com
193
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O nosso intuito foi o de buscar compreender, por meio da pesquisa
com o(a)s sujeito(a)s homossexuais e heterossexuais na Casa de Umbanda São Jorge Guerreiro, na cidade de Baturité/CE, como a homossexualidade e a heterossexualidade do(a)s umbandistas, notadamente
daquele(a)s que se identificam como negro(a)s, é vista dentro e fora –
no entorno comunitário mais próximo – do terreiro, bem como se dá
a relação dos pais e das mães de santo com o(a)s seus/suas filho(a)s
– especificamente no que toca os papéis de gênero e iniciação nas hierarquias de rituais e celebrações umbandistas.
Assumimos como pressuposto o fato de que as práticas da religião
de Umbanda são historicamente mais inclusivas do que as do cristianismo tradicional, na perspectiva da maior aceitação e do acolhimento dos
diversos segmentos marginalizados da sociedade.
Nesse sentido, devemos estar atento(a)s para não sermos, de certo modo, igualmente vítimas das generalizações concebidas por meio
das imposições sociais de gênero. Do que disso se segue, a pesquisa
também contribuiu para uma melhor compreensão quanto às complexidades sociais dos papéis de gênero, inseridos e institucionalizados na
sociedade capitalista, e subvertidos – ao menos em parte – em práticas
e lugares marginais como os da religião de Umbanda.
Da gira das observações participantes e das diversas entrevistas
realizadas com o(a)s participantes no terreiro, compreender que a lógica
dual das identidades de gênero e dos papéis socialmente designados
a corpos de homens e de mulheres não corresponde – nem ritual nem
liturgicamente – com os pensamentos e as tradições umbandistas mais
gerais, uma vez que o que está sendo pautado ali é a incorporação de
entidades em corpos que tresmalham as construções hegemônicas de
gênero e desafiam os adestramentos do domínio social, escapando-se
– então – dos simbolismos culturalmente estabelecidos na sociedade
brasileira: sobre imposições coloniais de gênero, moral e sexualidade.
Compreender as ressignificações dos papéis de gênero representados no terreiro, sobretudo do(a)s participantes que afirmam a sua
identidade homossexual e as suas corporeidades rituais e sociais diversas (notadamente negras e periféricas), parece-nos importante para a
compreensão de como as suas subjetividades atuam no exercício crítico
de resistências contra-hegemônicas, dentro e fora do terreiro; uma vez
194
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que as suas corporeidades desviantes – assim como todos os corpos
subversivos – carregam consigo as marcas em decalque derrisório de
suas subjetividades: sejam elas nas suas atuações em recidiva às impostações da sociedade, sejam elas na agência de sua subversão consciente e resistente a atavismos, abusos e violências históricas de multitudinários efeitos racistas e sexistas.
Do que de tudo isso se infere, torna-se igualmente importante –
de maneira específica – compreender o terreiro e o seu campo ritual
como um espaço de integração, ressignificação e aceitação das diferenças de gênero e de corporeidades, no sentido de desconstrução de
discursos, dispositivos e práticas que ainda levam o(a)s seus/suas participantes às sistemáticas exclusões sociais – historicamente motivadas
por racismos, homofobia, misoginia e preconceitos diversos de classe.
Igualmente nesse sentido, o trabalho permite a compreensão do
terreiro de Umbanda como um espaço para todas e todos, onde igualmente gays e não gays exercem as suas funções comunitárias e de culto.
Há o escopo, enfim, de igualmente auxiliar a futuras/os pesquisadoras/
es, que seguirão a mesma linha de investigação, posto que formulada a
partir de suas próprias inquietações.
Um olhar sobre sobre a Casa de Umbanda São Jorge
Guerreiro
Desenvolvemos as atividades da pesquisa a partir das observações participantes nas giras do terreiro, entrevistas e processos rituais
de iniciação; intencionamos compreender, mais de perto, as corporeidades em transe dos Pais e dos Filhos de Santo nos rituais, especificamente com as entidades da Linha de Exu e de Pombagira, incorporados
pelos interlocutores nos rituais observados e dos quais participamos.
A partir das vivências das atividades do terreiro e da produção do
caderno de campo, além dos registros audiovisuais, podemos analisar
as diferentes masculinidades e corpos masculinos em transe mediúnico
com as suas Pombagiras, nos seus aspectos performáticos, simbólicos, gestuais e imagéticos – pela relação dos corpos sacralizados e em
195
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
transe dos homens homossexuais e heterossexuais na manifestação
ritual e sagrada do feminino exusíaco.
Na prática, os cultos de Exus e Pombagiras têm muitas variedades
e especificidades, em decorrência da própria variedade da manifestação dessas entidades junto aos/às seus/suas zeladore(a)s no terreiro.
Seguimos pelo mapeamento dos entidades Exus e Pombagiras sacralizadas pelos rituais de iniciação dos sujeitos da pesquisa, para a partir
desse traçado compreender a diversidades de entidades cultuadas no
terreiro – dentro do vasto panteão exusíaco da umbanda cearense.
No amplo espectro exusíaco da Casa de São Jorge Guerreiro, encontramos as Pombagiras que são chamadas de Dona Maria Padilha,
Maria Molambo, Maria Sete Saias, Dona Cigana, Maria da Praia, Pombagira Rainha, entre outras... incorporadas por seus “cavalos” conforme
a liturgia dos festejos, dos preceitos e dos rituais. Desse modo, Simas
(2018) “define que Pombagiras são, portanto, o enigma que poetiza as
transgressões necessárias às normatizações da dominação do homem
na sociedade – que inferioriza, regula e interdita o papel da mulher” (SIMAS, 2018, p. 90-96).
Com as análises das informações colhidas no campo de pesquisa
e em suas problematizações, visamos também compreender os rituais
umbandistas – justamente a partir das transgressões e das rupturas
dos paradigmas de gênero e masculinidades, tanto quanto dos questionamentos dos papéis socialmente designados aos corpos dos homens
nos rituais litúrgicos e nos festejos. Isso tudo contribui para que destaquemos, também na Umbanda, práticas de combate às desigualdades
e às violências de gênero.
Ao identificarmos o cotidiano comunitário e ritualístico do próprio
terreiro, precisamos também as funções e as atribuições ali exercidas
por estes mesmos participantes, na perspectiva de que nos fosse possível descrever – na configuração das suas dinâmicas internas e externas
– as hierarquias e as práticas exercidas como formas de socialização,
acolhimento e afirmação das referidas representações e corporeidades.
196
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Complexo ritualístico dos filhos de santo e as
Pombagiras da casa
Saudações as moças ou lebárias da casa “Laroiê Exú Pombagiras”
Maria Padilha, Maria Mulambo, Cigana Maria Sete Saias, Maria Luziara,
Maria da Praia e Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas. Como também as demais entidades na sub linha de Exú Pombagira Maria Quitéria,
Chiquita Preta, Leviana e Negra Paulina grandes mestras da casa. Aos
quais Simas (2018) vai conceituá-las como,
A potência exusíaca encarnada no feminino é o que desestabiliza e
transgride as regulações dos modos de ser, calcados em princípios
racistas e patriarcais conservadores das heranças do colonialismo.
[...] é o enigma que poetiza as transgressões necessárias às normatizações da dominação do homem na sociedade, que inferioriza,
regula e interdita o papel da mulher. (SIMAS, 2018, p. 90-96).
Nesse sentido, as referidas lebárias compõem o panteão de entidades femininas da linha de Exú, que atuam na segurança, firmeza, caminhos e na vitalidade do axé junto às demais entidades que trabalham
nas sete linhas da umbanda Sagrada em cada terreiro. Contudo, a partir
da relação dos pais e filhos de santo com suas lebárias, o terreiro compõe seu calendário litúrgico e ritualístico, que segue muitas vezes segue
o calendário dos santos católicos sincretizados com os Orixás.
Nessas festividades litúrgicas e ritualísticas sempre ocorrem momentos que antecedem de quatro a três dias da festança pública, ou
seja, acontecem os ritos de passagem ou obrigações que envolvem
segredo da religião, essa vivência é restrita, autorização somente aos
filhos da casa e alguns visitantes de outros terreiros ou pessoas de confiança do Pai de Santo.
Os rituais de passagem e as obrigações fazem parte do cotidiano
de toda comunidade religiosa de matriz africana e afrobrasileira, dessa
forma, segundo Ribeiro (1970) “os Exús são grandes agentes mágicos
dentro do panteão Nagô, Exú é a força primitiva; é o subconsciente de
Deus; é o grande fluido de energia que tudo envolve e abrange”. Nesse sentido, as pombagiras encontram-se dentro dessa mesma mesma
197
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
cosmovisão, assim em todo ritual são os primeiros que “comem”, pois
a oferenda e a consubstanciação da relação entre os planos natural e
espiritual.
A Umbanda é uma religião em que o alimento oferecido às entidades, o beber e o pitar ou fumar pelos médiuns de incorporação se faz
existir com suas corporeidades rituais em cada gira organizada e demandada pelas hierarquias da casa. É nesse processo em que se vivencia a experiência junto a ancestralidade e ocorre a manutenção do Axé
de cada comunidade tradicional de terreiro.
Nos processos de consagração dentro da hierarquia de cada terreiro os filhos(as) de santo sacralizam seu corpo numa relação de culto e
ritual para as entidades que formaram seu panteão pessoal dentro das
sete linhas da Umbanda em seus correspondentes femininos e masculinos, dessa forma, suas obrigações de alimentar e nos trabalhos das giras se darão pelas corporeidades de cada entidade a partir da utilização
dos elementos rituais que compõem a representação de cada entidade,
seja pela capa de Seu Sete Encruzilhadas, seja pela saia e o Ojá de dona
Maria Sete Saias pelos filhos de santo, somando com os pontos específicos e demais elementos dos rituais e da gira.
Tais aspectos estão no campo das análises e observações dos pais
e filhos de santo e as construções de suas masculinidades que transmelham as relações ritualísticas e dos papéis de gênero binários, hegemonicamente conduzidos pela cultura patriarcal e consequentemente
heteronormativa das sociedades capitalistas.
Para o autor Robert Connel (1995) a construção da masculinidade
ou melhor das masculinidades devemos compreender a partir de,
Em primeiro lugar, a narrativa convencional adota uma das formas
de masculinidade em geral. Isso confunde hegemônia de gênero
com totalitarismo de gênero [...] as masculinidades são produzidas juntamente – e em relação às outras masculinidades. [...]
Em segundo lugar a narrativa convencional vê o gênero como um
molde social cuja marca é estampada na criança [...] Em terceiro
lugar, devemos ver a construção das masculinidades tanto como
um projeto coletivo quanto como um projeto individual. (CONNEL,
1995: 190-191).
198
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Nesse sentido, pensar as masculinidades enquanto um conjunto
de práticas corporificadas e constantemente reafirmadas no conjunto
de sociabilidades de gênero que Connel (1995) “vai apresentar o gênero enquanto organização das relações de poder, como a primeira
forma de hierarquização e subalternização das feminilidades na sociedade capitalista”.
Representações das Pombagiras no ritual de Umbanda
199
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Considerações finais
As experiências adquiridas na participação das atividades da Casa
de Umbanda São Jorge Guerreiro no percurso desta pesquisa, proporcionaram uma grandiosa sensibilização sobre o cotidiano dessa comunidade tradicional – que é o terreiro de pai Ricardo de Iansã, assim
reconhecido pela comunidade. Nas orientações que ocorreram, houve
indicação de leituras que auxiliaram e o estímulo à produção e difusão
de conhecimento sobre a Umbanda e seus interlocutores. Por fim, articular de forma interdisciplinar a experiência de pesquisa e a promoção
dos debates teóricos e cotidianos dos festejos, rituais e reuniões junto
à comunidade do terreiro foi de extrema valia. Portanto, considero que
os valores civilizatórios africanos e afrobrasileiros vivenciados na casa,
são primordiais para se pensar o desenvolvimento do mundo, pois correspondente às exigências dos Exús e pombagiras no equilíbrio entre os
planos natural e espiritual.
200
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
SIMAS, Luiz Antônio, 1967- Fogo
no mato: a ciência encantada das
macumbas / Antônio Luiz Simas, Luiz
Rufino. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula,
2018.
CONNEL, Robert. Políticas da
masculinidade. Revista Educação e
Realidade. Porto Alegre, n. 20,
p. 185-206, jul.,dez. de 1995.
RIBEIRO, José. Pomba-Gira
(mirongueira). Editora Espiritualista,
1970.
[ Volta ao Sumário ]
201
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
do Beltane pagão ao
são joão CRistão: a festa
do fogo e suas resignificações
no nordeste brasileiro
Thaís Chianca Bessa Ribeiro do valle
Como referenciar este capítulo:
VALLE, Thaís Chianca Bessa Ribeiro do. Do Beltane pagão ao São João cristão:
a festa do fogo e suas resignificações no Nordeste brasileiro. In: MARANHÃO
Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste
da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 202-216.
Thaís Chianca Bessa Ribeiro do Valle1
Introdução
Entre os ciclos folclóricos brasileiros, um dos mais populares e festivos é o das festividades juninas, quando as homenagens aos santos
Antônio, João e Pedro acontece com muita música, dança, adivinhações,
fogueiras, e rica culinária de milho.
As festas joaninas, popularmente conhecidas como celebração a
São João, coincidem com o solstício de verão na Europa, ou de inverno
na América do Sul, época em que populações agrícolas, anteriores ao
desenvolvimento do cristianismo, comemoravam a fertilidade da terra
e dos animais, e as boas colheitas.
Acender fogueiras e dançar ao redor do fogo são costumes oriundos de ritos pagãos, realizados durante o Beltane, celebração pagã na
qual se acendiam fogueiras de purificação, e os casais se uniam com
objetivos de gestação. Dessas concepções, se originaram os costumes
cristãos de pular fogueiras, e do casamento na quadrilha.
Após a cristianização dos costumes pagãos, a fogueira de Beltane
foi resignificada, tornando-se o símbolo da comunicação do nascimento
de João Batista. Mas através da adaptação cultural que se deu entre
povos pagãos e cristãos, tais costumes foram reproduzidos ao longo
dos tempos, sedimentando-se na cultura brasileira, e principalmente,
no nordeste do país.
Assim, por intermédio de uma pesquisa bibliográfica, o presente
artigo objetiva demonstrar as influências dos elementos pagãos nos
festejos juninos cristãos, e como se deu o processo de adaptação cultural, capaz de transformar o festejo do calendário popular em patrimônio
cultural imaterial, notadamente do Nordeste brasileiro.
Bacharela em Direito, mestra e doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade
Católica de Pernambuco – UNICAP, graduanda em Turismo pela Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE. Pesquisadora do Observatório Transdisciplinar das Religiões em Recife – PE. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/7822186880352675.
thaischianca@gmail.com.
1
203
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Dada a extensão do tema, ressalte-se que não se trata de um
estudo com pretensão de esgotar as discussões, mas tão somente de
introduzí-las.
Os festejos joaninos: entre o Beltane pagão e o São
João cristão
Existem diversas explicações para a existência do termo “Beltane”, uma delas é a de que, durante muito tempo, o deus “Bel”, divindade
mesopotâmica equivalente ao cananeu Baal, personificou em si todo o
panteão de deuses da natureza. Bel-Marduque, principal deus da Babilônia, era adorado em todo o Oriente Médio. Assim, o significado do
nome “Beltane” remete a “fogo brilhante”, ou “fogos de Bel”.
Desde os primórdios, a humanidade comemora o início das estações do ano. Para algumas religiões pagãs e neopagãs, a Roda do Ano
representa o ciclo da natureza: o começo, o fim, e o recomeço. Assim,
o “calendário” cíclico é normalmente composto de Sabbats, ou festivais, os quais consideram a posição da Terra em relação ao Sol, ou seja,
solstícios e equinócios. Este ciclo pode representar, ainda, as fases da
vida do deus cornífero (Bel), protetor dos animais e da vida: nascimento,
crescimento, união com a deusa-mãe (Terra), declínio e morte.
O Beltane é um festival de influência celta em comemoração ao
início do verão e à festa da primavera. É, portanto, a ocasião em que se
comemora o retorno do sol e toda a sua magnitude, momento em que
as flores surgem, os animais acasalam, unem-se os opostos e a natureza fecunda, buscando a imortalidade das espécies.
Durante os festivais, pessoas cantam, dançam, comem e bebem
de forma farta e celebram livremente a fertilidade da Terra e da humanidade, queimando oferendas e pulando fogueiras, para se encherem
do poder do fogo, elemento que liberta de doenças e reinicia, de forma
simples e pura, a vida. Assim, o fogo é visto como elemento de purificação, limpeza e revitalização:
No mito, como na realidade, às vezes o fogo limita-se a destruir,
mas muitas vezes destrói de maneira a criar um novo mundo a
204
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
partir do resíduo purificado ou da essência em cinzas. [...] Muitas
religiões representaram um espírito divino habitando-nos na forma
de um fogo que pode ser agitado ou extinto. Porque a descoberta
de como fazer fogo nos distingue como humanos, em muitos mitos
da criação o fogo é representado como uma dádiva inestimável dos
deuses, uma descoberta fortuita ou um colossal roubo. [...] “É através do fogo que a Natureza muda”, escreveu Eliade, fazendo dele a
“base das magias mais ancestrais”, e carregando no seu simbolismo, ainda hoje, os nossos terrores e esperanças de transmutação”.
(O LIVRO DOS SÍMBOLOS, 2012, p. 23)
Bel-Marduque era adorado em todo o Oriente Médio, mas precisava sucumbir ao cristianismo emergente, de modo que passou a ser
citado, com fins de dominação entre povos, em textos bíblicos, como
em Jeremias 51:442.
No Hemisfério Norte, à época em que o cristianismo buscava se consolidar como religião hegemônica, o solstício de inverno, entre os povos
pagãos ocorria nas proximidades de 25 de dezembro, ao passo em que o
solistício de verão ocorria nas proximidades de 24 de junho. Assim, com o
objetivo de facilitar a catequese dos pagãos, durante o século IV, o dia 24
de junho, dia mais longo do ano, quando se festejava a fatura da colheita
e a fertilidade, foi transformado pela Igreja Católica em data de celebração
ao nascimento de João Batista, e as fogueiras foram citadas como meios
de comunicação entre Isabel e Maria sobre o nascimento do precursor de
Cristo (SILVA, 1993, p. 30). Nas palavras de Roberto Benjamin:
As festas juninas são festas de natureza agrária, de tradição européia, ligadas a ciclos de fertilidade da terra e do homem, do culto ao
fogo, anteriores a difusão do cristianismo.
A Europa, Ásia e África praticaram antes do Cristianismo ritos em
honra a diversas divindades, por ocasião do início do verão no
“Eu visitarei Bel na Babilônia
E tirarei de sua boca o que engoliu.
As nações não afluirão mais a ele.
Mesmo a muralha da Babilônia cairá.
Sai de seu meio, meu povo!
Salve cada qual a sua vida
Diante do ardor da ira de Iahweh!
2
205
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Hemisfério Norte. É o período em que se aproximam as colheitas de
cereais. As cerimônias reverenciavam a fertilidade da terra, usando
o fogo como elemento afugentador da fome, do frio e fecundador,
purificador e conservador. Nos ritos de fertilidade estavam presentes também a idéia da fertilidade humana.
A Igreja Católica situou a festa de São João nas proximidades da mudança de estação (solistício de verão) procurando absorver os cultos agrários pagãos. Para a hierarquia da Igreja a festa de São João
constitui uma antecipação do anúncio do advento, considerando o
papel de João Batista, como precursor de Cristo.
[...] As festas juninas conservam os rituais do fogo, mais do que
qualquer outra. [...] (BENJAMIN, 1992, p. 13)
Assim também explica Pierre Paillard:
Com a evangelização da Europa, os cultos da Antigüidade à fecundidade e ao Sol, que aconteciam no dia do solstício de verão, foram
integrados ao cristianismo. Passaram a acontecer no dia 24 de junho, festa do nascimento de João Batista. Essa escolha não foi feita
ao acaso e guiada apenas pela efeméride, ou seja, a suposta natividade do santo em seguida à noite mais curta do ano no Hemisfério
Norte. Na verdade, João, aquele que purificava os judeus pecadores
no rio Jordão, representa os elementos que governam as cerimonias
solsticiais, a saber, o fogo e a água. Nos Evangelhos, João pronuncia
as seguintes palavras: “Eu utilizo a água, mas aquele que vier depois
de mim batizará com fogo”.
Se os ritos ligados à água praticamente desapareceram, a tradição
do fogo se manteve e permanece como o aspecto mais pagão dessa
festa [...]. (PAILLARD, 2009, p. 52)
Deste modo, João Batista, filho de Zacarias – o sacerdote – com
sua esposa Isabel – prima de Maria de Nazaré –, profeta anunciador da
vinda do Cristo, que pregava no deserto da Judéia batizando a todos e a
todas no rio Jordão, diante da necessidade de “acomodação” da doutrina
pregada pela Igreja Católica em solo pagão, tomou para si o protagonismo da festa do fogo. Explica Peter Burke:
Um conceito tradicional que tem reaparecido é o de “acomodação”.
Na Roma antiga, Cícero usou esse termo em um contexto retórico para se referir à necessidade de os oradores adaptarem seus
206
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
estilos às suas platéias. Os europeus do início da Idade Média, notadamente o papa São Gegório, o Grande, adaptaram o conceito a
um contexto religioso, observando a necessidade de tornar a mensagem cristã aceitável aos pagãos da Inglaterra e de outras partes
do mundo. (BURKE, 2003, p. 45-46)
Mas não foi somente o fogo que foi “acomodado” às festividades
cristãs de São João. As grandes festas realizadas com muita dança (xaxado, coco, baião, forró, xote, folguedo), comida farta e de milho (bolo,
munguzá, arroz doce, canjica, pamonha, pé-de-moleque), quadrilha (casamento) e principalmente, adivinhações, superstições3 e simpatias4,
mantiveram as características originárias pagãs da celebração. Entre as
adivinhações, por exemplo, aquela conhecida como “o sonho da ceia”,
remete ao costume pagão de ofertar alimentos aos deuses. Outra,
como “o nome no papel com água”, têm suas explicações nos oráculos
da fertilidade. A saber:
O Barão de Studart estudando os “usos e superstições cearenses”
registrou: – “Em noite de São João escrevem-se em papelitos os
nomes de várias pessoas, enrolam-se os papelitos e os põem numa
vasilha com água; o papel que amanhecer desenrolado indicará o
nome da noiva ou noivo.
A origem dessa adivinhação é o oráculo dos deuses Pálices, nos arredores da Vila de Palika, na Sicília. [...]
Havia, perto do templo dos Pálices, um lago quente, d’água borbulhante, sulfurosa, sempre cheio e jamais transbordando. Da Grécia
e de toda Península Itálica vinham os devotos saber as respostas do
oráculo que era tido em alto respeito.
O templo tinha direito de asilo inviolável, mesmo para os escravos
fugidos aos seus senhores, como ocorria no Lago de Nemi com a
deusa Diana.
E como os Pálices transmitiam seu oráculo?
Entenda-se por superstição a crença, ou noção que leva a temer coisas aparentemente
inócuas ou depositar a confiança em coisas aparentemente absurdas, criando falsas obrigações e temor psicológico.
4
Entenda-se por simpatia uma forma de magia branda perpetuada através da cultura
popular, para atrair benefícios pessoais: conquistar um amor, obter riqueza, curar doenças, etc.
3
207
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Da mesma forma que as moças e moços consultam a São João, enrolando papel em fitas, botinhos ou bolinhas com os nomes que o
acaso descobrirá. (CASCUDO, 2002, p. 166-167)
Continua Cascudo, adentrando-se na sabedoria dos povos pagãos
campesinos sobre a utilização de plantas e vegetais, bem como na necessidade de adaptação do oráculo ao Santo em questão:
Todos os folcloristas brasileiros têm registrado entre as adivinhações da véspera e noite de São João aquelas que se relacionam com
vegetais de rápido crescimento.
Sabemos que o alho se planta na véspera para verificar-se ao meio-dia seguinte se grelou. Então a resposta à consulta é um “sim”. Se
estiver como dantes é um “não”. O mesmo com grãos de milho. Galhos verdes passados às chamas da fogueira são atirados para o
telhado. Se estiverem verdes no dia imediato, sim: murchos, São
João envia uma negativa. [...]
Nas tradições orais sobre o patriarca São José há uma lenda em que
os sacerdotes devendo escolher um esposo para a Virgem Maria
mandaram que todos levassem seus bastões para o altar e na manhã seguinte o escolhido teria o bastão com flores vivas. [...]
Vez por outra as adivinhações são empregadas como processos divinatórios, para sugestão de feitiçaria e catimbó citadino. [...]
Essas nossas adivinhações são reminiscências vivas, indiscutíveis
e verdadeiras dos cultos agrários, em convergência para uma tradição cristã. (CASCUDO, 2002, p. 174-176)
Enfim, as festividades juninas, ou festejos de São João, encontram-se
diretamente relacionadas à necessidade de adaptação do cristianismo
às crenças dos povos pagãos nos quais pretendia ser disseminado.
Sincretismo, hibridismo, e circularidade cultural: o
catolicismo popular
O sincretismo religioso refere-se ao fenômeno de fusão de doutrinas diversas originando uma nova doutrina, filosófica, cultural ou religiosa. Etimologicamente, a palavra “sincretismo” tem origem no grego
208
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
sygkretismós, que significa a reunião entre as ilhas de Creta contra um
adversário em comum. O contato entre grupos sociais com diferentes
culturas e tradições, gera a “adaptação” dos aspectos culturais, quando
determinado grupo absorve certas crenças de outro. Sérgio Ferretti, por
sua vez, alerta, também, para a possibilidade de uma influência recíproca entre culturas:
A história apresenta numerosos casos de destruição de concepções
divergentes, de intolerância religiosa e de conflitos entre a cultura das
classes dominantes e das classes subalternas. Um bom exemplo são
os trabalhos de Carlo Ginzburg (1987,1988), relatando confissões do
moleiro Menocchio ao Tribunal da Santa Inquisição e perseguições
aos “benedanti” no Norte da Itália no início da Idade Moderna.
Discutindo estes contatos entre culturas distintas e a ambigüidade do conceito de cultura popular, Ginzburg (1987, p. 24) considera
“frutífera a hipótese formulada por Bakhtin de uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante”. (FERRETTI, 1995, p. 18)
A influência recíproca parece remeter a um hibridismo cultural,
percebido através da caracterização da cultura como conceito amplo, capaz de abranger atitudes, mentalidades, valores, manifestados através de símbolos, práticas e representações, e em constante
interação com outras manifestações do mesmo tipo. Neste sentido,
certos contatos culturais possibilitam a determinadas culturas repetir, imitar, ou mesmo se apropriar, conforme a própria conveniência,
das idéias de outras:
Na história do Ocidente, uma das maneiras como a interação cultural tem sido discutida desde a Antigüidade clássica é por intermédio
da idéia de imitação. [...]
Uma alternativa à imitação era a idéia de apropriação ou, mais vividamente, “espoliação”, cujo contexto original eram as discussões
travadas pelos teólogos agora reverenciados como Doutores da
Igreja sobre os usos da cultura pagã que eram permitidos aos cristãos. Basil de Cesarea, por exemplo, defendeu uma apropriação seletiva da Antigüidade pagã [...].
Essa abordagem da troca cultural foi revivida na Renascença e vem
sendo revivida novamente em nossa época. [...]. (BURKE, 2003,
p. 41-42)
209
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O conceito da “Circularidade Cultural”, de Ginzburg (1987), por sua
vez, propõe a existência de uma comunicabilidade dialógica, circular,
mútua, entre as culturas, quando ambas corroboram para a interação
cultural, uma relação de troca e reapropriações entre diversas culturas
congênitas.
Complementar a isso, José Maria Tavares de Andrade (2013,
p. 27-28) explica o sistema simbólico da religiosidade como resultado
da reapropriação de ritos impostos por organizações religiosas, os quais
foram substituindo seus significados em um processo contínuo de reinterpretação, consoante a ausência de limites da imaginação popular
quanto à criação de narrativas mitológicas.
Retomam-se as forças sincréticas, as quais emergem das necessidades cotidianas dos povos, posto que as narrativas mitológicas nascem da necessidade de explicação simbólica para o cotidiano, o natural.
No Nordeste brasileiro, por exemplo, as festas juninas estão diretamente vinculadas ao período de início da colheita do milho. É uma festa de
cunho eminentemente agrário, desenvolvida por povos que dependem
da natureza, mas que adaptou o catolicismo desenvolvido na região.
O Catolicismo santorial (TEIXEIRA; MENEZES, 2009, p. 21-22),
aquele que se desenvolve através das práticas da religião adaptadas a
novos conceitos, similares aos mitológicos, evidencia os santos como
novos heróis, adaptados à realidade local:
Uma justaposição de sacrifícios articula-se, tanto a nível coletivo
quanto individual, constituindo um traço de união entre religião oficial e religiosidade popular, apesar das diferenças que deduziremos
existirem entre elas. Uma síntese se forja entre a mística do sacrifício e as lembranças de defuntos, casos exemplares, com os quais
não deveria mais se comunicar, todavia santidades poderiam ser invocadas e comemoradas. Assim, protagonistas de vividos trágicos,
fatalidades ou heroísmos poderiam ser rememorados, narrados,
cantados, festejados e até “canonizados”.
[...] Novos panteões e novas religiões poderão, em seguida, ser
exportadas: estamos forjando nossos santos, nossas religiões,
como as umbandas e reagrupando antigas magias, como a Jurema,
(Yu-rema), dona da terra.
[...] a integração de um rito em uma cultura local realiza-se na medida em que ele, sendo uma herança vinda de fora, se exprime em
210
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
torno de um significado elaborado inconscientemente e referindo-se à experiência vital do grupo em questão. Não obstante uma origem histórica longínqua, externa e até esquecida, um rito torna-se
inteligível para o grupo que o pratica, pois ele dá corpo a nível local
a uma explicação mitológica própria à dinâmica da cultura popular.
(ANDRADE, 2013, p. 13-23)
Ainda sobre o catolicismo popular, Faustino Teixeira e Renata Menezes:
[...] há um aincorporação original por parte do povo de traços da romanização, o que evidencia “o aspecto dinâmico e criativo do catolicismo popular que se refaz continuamente”.
O fato de a região Nordeste do Brasil despontar no Censo de 2000
como a mais católica revela, talvez, algo da força e presença da
tradição do catolicismo santorial. Importantes estudos na área da
antropologia mostraram com vigor a coerência, complexidade e
diversidade desse catolicismo, que não pode ser apressadamente
identificado como um aglomerado de superstições ou crendices.
E além do mais, vem animado por impressionante poder de penetração e reprodução nos meios populares. No caso específico do
Nordeste, há sem dúvida o influxo da presença de figuras do clero
popular, como Padre Cícero e Frei Damião. [...] (TEIXEIRA; MENEZES,
2009, p. 21-22)
Deste modo, o Nordeste brasileiro constitui-se como região de característica peculiar, onde o Catolicismo popular santorial, oriundo de
zonas rurais e terras camponesas, desenvolvendo “concepções mitológicas” voltadas para as práticas rurais e originário do mesmo embrião
campesino, pagão (do latim, paganus, “camponês”, “rústico”) concernente ao paganismo, pôde facilmente se desenvolver.
A espetacularização cultural: implicações para a
patrimonialização do São João do Nordeste
As festas juninas no Nordeste do Brasil ganham especial destaque. A região vem sendo colocada como o melhor destino nessa época
211
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
do ano, porque é nela onde se situam as cidades mais festivas, com festas que duram, quase o mês de junho inteiro. Tem-se, por exemplo, as
cidades de São Luis – MA, Terezina – PI, Mossoró – RN, Campina Grande – PB, Caruaru – PE, Aracaju – SE, e Salvador – BA.
Cada cidade possui sua forma particular de celebrar a época. Na cidade de São Luis – MA são reverenciados grupos folclóricos de “Bumba
meu boi”; em Terezina – PI, a “Cidade Junina”, há encontro de folguedos,
festival de quadrilha, casamento coletivo e festival gastronômico; em
Mossoró – RN, também “Cidade Junina”, tem-se o espetáculo “Chuva
de Bala”; na cidade de Campina Grande – PB, cidade que tem “a melhor
festa de São João do mundo”, compõe suas festividades com shows,
campeonato de quadrilhas e casamento coletivo; Caruaru – PE, é conhecida como a “Capital do Forró”; já em Aracaju – SE, o “Forró Caju” é
considerado o grande evento popular da capital sergipana; E em Salvador – BA, ocorrem shows e muita dança.
O Nordeste, nas palavras de Leny de Amorim Silva:
O Nordeste tem sido caracterizado pelo berço das festas populares,
destacando-se com o colorido, comida, veste, música e bebida própria: O São João! São características peculiares que determinam as
manifestações do CICLO JUNINO – que expande a sua alegria através dos “ARRAIÁS” – que servem de abrigo e palco para a comemoração eclética: colheita, festa do fogo, religiosidade, tradições,
superstições e músicas do povo. (SILVA, 1993, p. 27)
A riqueza, diversidade cultural, é flagrante. No entanto, a espetacularização da cultura tem ocasionado o risco de descaracterização dos
festejos juninos, quando a caracterização cultural cede ao interesse político da supervalorização da festa enquanto “a maior”, “a melhor”, para
consequente atração do turismo e movimentação desenfreada da economia e da estrutura local.
Ao final, o risco de ocorrer a resignificação dos símbolos religiosos acaba sendo fortalecido pela comercialização da cultura. É o que
acontece, por exemplo, quando da utilização de fogueiras meramente
estéticas, eletrônicas, desprovidas de qualquer simbologia. Atingindo a
simbologia da festa, esvaziam-se de fundamentos as disputas pela patrimonialização imaterial.
212
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, vigente,
tráz consigo a definição de patrimônio cultural imaterial. Tem-se que:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – As criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
[...]
§4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na
forma da lei.
[...]
O Decreto 3551/2000, instituindo o Registro de Bens Culturais de
Natureza Imaterial através de quatro Livros, entre eles, o Livro das Celebrações, provocou autoridades a procederem com os registros requerendo a patrimonialização de rituais e festas de vivência coletiva, inclusive de caráter religioso. No entanto, tais requisições se tornam vazias
quando realizadas menos para a valorização da cultura e mais para a
valorização político-econômica.
Assim, sobre as características da imaterialidade que abrange
ações e memórias, formas de expressão, modos de criar, fazer e viver, e
criações, torna-se importante a produção cultural, em contínua transformação e adaptação, enquanto a cultura, a religiosidade, se mostram
sincréticas, híbridas, circulares, enfim, mutantes!
Considerações
A princípio, os festejos joaninos, ou de São João, adaptaram conceitos religiosos pagãos à dogmática cristã, com o objetivo de facilitar a
213
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
dominação e a conversão cristã desses povos campesinos por parte da
Igreja Católica.
No Nordeste brasileiro, o catolicismo popular santorial se mostrou
como alternativa de sincretismo, realizado com respeito ao hibridismo
cultural e à capacidade de circularidade ou influência recíproca entre as
culturas, adaptando-se à realidade e às necessidades físicas, psicológicas e mitológicas de cada comunidade através do processo de heroicização dos santos.
Ultrapassada a problemática da “dominação cultural”, no entanto,
a espetacularização de manifestação cultural causa constantes implicações negativas à patrimonialização imaterial das festividades em questão, uma vez que subjuga aspectos culturais e religiosos a interesses
eminentemente políticos e econômicos.
214
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ANDRADE, José Maria Tavares de.
mitologia: da Mata ao Sertão. Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 2013.
295p.
BENJAMIN, Roberto. Festas juninas.
In: RECIFE (PE) Prefeitura; SILVA, Leny
de Amorim. Ciclo junino. Recife: A
prefeitura, 1992. 112p.
ELIADE, Mircea. O mito do eterno
retorno: arquétipos e repetição.
Lisboa: Ed. 70, 2000. 174p.
FERRETTI, Sérgio Figueiredo.
Repensando o sincretismo. São
Paulo: São Luis: FAPEMA, 1995.
234p.
BEZERRA, Karina Oliveira. Wicca no
Brasil: magia, adesão e permanência.
São Paulo: Fonte Editorial, 2017.
238p.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os
vermes: o cotidiano e as idéias de um
moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras,
1987. 309p.
BRASIL. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm>. Acesso em: 08 jun.
2019.
GINZBURG, Carlo. mitos, emblemas,
sinais: morfologia e história. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras:
2002. 281p.
BRASIL. Decreto nº 3.551, de 4
de Agosto de 2000. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/d3551.htm>.
Acesso em: 08 jun. 2019.
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural.
São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS,
2003. 116p.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 12. ed. São
Paulo: Paulus, 2017. 2206p.
HIGGINBOTHAM, Joyce;
HIGGINBOTHAM, River. Paganismo:
uma introdução da Religião centrada
na terra. São Paulo: Madras, 2003.
238p.
LUCENA FILHO, Severino Alves de. A
festa junina em Campina Grande –
PB: uma estratégia de folmarketing.
João Pessoa: Universitária/UFPB,
2007. 218p.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário
do folclore brasileiro. 5. ed. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1984. 811p.
MENEZES NETO, Hugo. O balancê no
arraial da capital: quadrilha e tradição
no São João do Recife. Recife: O autor,
2009. 171p.
CASCUDO, Luís da Câmara.
Superstição no Brasil. 5. ed. São
Paulo: Global, 2002. p. 166-176.
MORAES FILHO, Mello. Festas e
tradições populares do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1999. 312p.
215
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O LIvRO dos símbolos: reflexões
sobre imagens arquetípicas. China:
Taschen, 2012. 807p.
SILVA, Leny de Amorim. Acorda povo,
são joão chegou!. Recife: O autor,
1993. 134p.
PAILLARD, Pierre. O fogo domado
pela cruz. In: Revista História viva,
São Paulo, vol. 6, n. 68, p. 52-55, jun.
2009.
TEIXEIRA, Faustino Luiz Couto;
MENEZES, Renata de Castro (Org).
Catolicismo plural: dinâmicas
contemporâneas. Petrópolis: Vozes,
2009. 212p.
RECIFE (PE) Prefeitura; SILVA, Leny
de Amorim. Ciclo junino. Recife: A
prefeitura, 1992. 112p.
SANTOS, Mário Ribeiro dos. Noites
festivas de junho: histórias e
representações do São João no Recife
(1910-1970). Recife: Ed. UFPE, 2018.
272p.
TURNER, Victor. Floresta de símbolos:
aspectos do Ritual Ndembu. Niterói,
RJ: EDUFF, 2005. 488p.
[ Volta ao Sumário ]
216
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
do CHiCote aos
teRReiRos: memórias de
escravidão e liberdade das
pretas-velhas nos pontos
cantados da umbanda
Beatriz Alves dos Santos
Lourival Andrade Júnior (Orientador)
Como referenciar este capítulo:
SANTOS, Beatriz Alves dos; JÚNIOR, Lorival Andrade. Do chicote aos terreiros:
memórias de escravidão e liberdade das Pretas-Velhas nos pontos cantados
da Umbanda. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.).
Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e
Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR /
Fogo Editorial, 2020, p. 217-229.
Beatriz Alves dos Santos1
Lourival Andrade Júnior (Orientador)2
Considerações introdutórias
Desde o Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, realizado em 1941 no Rio de Janeiro, os trabalhos a respeito da temática umbandista vêm crescendo dentro e fora do âmbito acadêmico.
Muitas são as pesquisas que encontram-se empenhadas na investigação das bases que alicerçam a religião umbandista, se pautando em
analisar a fundação do culto, suas tradições rituais ou estudando entidades em específico.
Sejam na condição de umbandistas praticantes ou de apenas antropólogos, pesquisadores da área vêm dando a sua contribuição para a
legitimação do culto. De maneira direta ou indiretamente, atuam colaborando para um dos objetivos do Congresso de 1941, o qual consta na
introdução dos Anais do evento ter sido ele criado
[...] precisamente para nele se estudar, debater e codificar esta empolgante modalidade de trabalho espiritual, afim de varrer de uma
vez o que por aí se praticava com o nome de Espiritismo de Umbanda, e que no nível de civilização a que atingimos não tem mais razão
de ser. (FEDERAÇÃO ESPÍRITA DE UMBANDA, 1942, p. 4)
As investigações trabalham, portanto, no sentido de legitimar
a religião e afastar o culto e seus participantes da identidade pejorativa que se construiu socialmente para tal grupo. Pode se compreender que as discussões se alçam a construir uma memória coletiva que
Bacharelanda em História na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)/
Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES). Plano de Trabalho: Pretas-Velhas na Umbanda: Memória, Resistência e Escravidão. E-mail: beatriza@ufrn.edu.br.
2
Professor do Departamento de História do CERES. Orientador e Coordenador do Plano
de Trabalho:Pretas-Velhas na Umbanda: Memória, Resistência e Escravidão. E-mail: lourivalandradejr@yahoo.com.br.
1
218
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mantenha viva e válida as tradições umbandistas e deem conta também de discutir seus personagens.
Entretanto, leituras realizadas aos trabalhos de Vanessa Pedro
(1999), Lísias Nogueira Negrão (1996), Emanuel Zespo (1960), Florisbela Maria de Sousa (1964), Giovanni Martins (2011) dentre outros, causa
inquietação ao percebermos como aparecem as entidades Pretos-Velhos nessas narrativas. Notamos que, as abordagens que dedicam um
capítulo ou alguma passagem a analisar tais entidades, corriqueiramente, utilizam uma linguagem que se alicerça no uso dos pronomes masculinos. Apesar de serem muito reverenciadas nos espaços dos terreiros, as entidades Pretas-Velhas, no feminino, findam por serem pouco
mencionadas na escrita umbandista; tendo-se narrativas que usam da
descrição masculina como uma forma de englobar e dar conta do todo.
A vista disso, essa comunicação se projeta em discutir as entidades
Pretas-Velhas na Umbanda, a partir dos seus Pontos Cantados. Tencionamos aqui empreitar uma análise dos versos contidos nos pontos, tecendo um panorama a respeito das memórias da escravidão, resistência
e liberdade das Pretas-Velhas, abarcados no seio dessas fontes.
História, memória e esquecimento na escrita sobre
as Pretas-velhas
Tudo aquilo que compreendemos como passado é fundamentado
com base nas memórias, são as recordações que nos fazem possuir a
ideia de nós, do ontem, do hoje e de a qual grupo pertencemos. Do ponto de vista social, a memória se constitui no mecanismo de sustentação
da coesão e do senso de uma identidade coletiva. Muito embora tenhamos a consciência de que o fenômeno das recordações ocorre na psique
individual de cada ser, com detalhes e percepções singulares, são as
memórias de outrem cruciais para dar continuidade, confirmação e sentido de valor às nossas, como assevera David Lowenthal (1998, p. 81).
O saber histórico a respeito do passado nos concede o sentimento de coletividade e de pertencimento a uma determinada identificação
cultural que compartilham conosco das nossas memórias. Daí se pode
219
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
explicar a preocupação que alguns grupos se encarregam em tomar
para si a “liderança” na construção memorial, de maneira que
[...] Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma
das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos
que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LEGOFF, 1990, p. 426)
Significa pensar, dessa maneira, que a identidade cultural coletiva é também forjada partindo de uma seletividade das memórias a serem cristalizadas no processo de salvaguarda. No nível das memórias
individuais podemos analisar, como Nietzsche propõe em sua Segunda
Consideração Intempestiva (2003), que o esquecimento trata-se de um
pilar fundamental para que as memórias existam, assim como também
avalia Lowenthal
Os esquemas da memória adulta não têm espaço para odores, sabores e outras sensações vívidas, ou para o pensamento pré-lógico
e mágico da primeira infância; se a experiência profundamente sentida for socialmente inadequada, ela não se registra ou é esquecida.
(LOWENTHAL, 1998, p. 91)
A mente humana em sua condição natural, é incapaz de recordar
de todos eventos que ocorreram em cada segundo de existência, o esquecimento atua, nesse âmbito, como um elemento crucial para descartar tudo o que é efêmero e armazenar o que se constitui enquanto
importante para o desenvolvimento pessoal e social. Do mesmo modo,
destarte, em que as memórias individuais sofrem o processo do esquecimento para manter vivo o que é fundamental, as recordações sociais
também enfrentam etapas de silenciamentos de eventos em função da
manutenção de outros no imaginário coletivo.
Desde a Revolução Francesa, em 1789, as memórias vêm ganhando um olhar burocrático mais atento. A preocupação de erguer no povo
francês uma identidade coletiva nacional caminhava atrelada à manutenção das memórias da revolução que seriam cultivadas. Era preciso
apagar os vestígios do antigo regime e incutir no povo recordações que
220
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
legitimassem os atos revolucionários e as novas formas de governo.
Theodore Schellenberg (2006, p. 26), analisa a criação do primeiro Arquivo Nacional, na França, como sendo fruto dessa ansiedade de manutenção social e como uma forma de salvaguardar os arquivos como um
meio de consulta pública que lhes valide o senso histórico, seja para fins
culturais, individuais ou de pesquisas.
O que podemos perceber, todavia, é que a criação da identidade
coletiva passa por uma seletividade memorial que para existir precisa
relegar outras ao patamar do esquecimento. O trabalho historiográfico
também envereda pela estrada das escolhas. O historiador no ato do
fazer história necessita de tecer quais eventos irá analisar, haja vista
a impossibilidade concreta de abraçar todo o arcabouço teórico e das
fontes sobre os acontecimentos que são paridos todos os dias, a todo
instante. Como nos lembra Ulpiano Menezes (1992, p.13), as fontes estão “longe de fornecer um caminho aberto aos historiadores do futuro,
deles exigirão um penoso trabalho prévio de codificação desse simulacro de presente petrificado em memória”.
Essa seleção dos fatos a serem trabalhados, entretanto, fez com
que as mulheres enquanto objetos de estudo fossem o elemento relegado ao esquecimento. Como analisa Joana Maria Pedro e Rachel
Soihet (2007, p. 284) as pesquisas e estudos históricos tenderam, durante muitas décadas, a se pautar em descrições sobre o “homem”, como um
meio de englobar homens e mulheres dentro de uma mesma categoria.
O predomínio do uso das fontes administrativas e militares, preservadas
nos Arquivos, acrescia esse cenário de uma História que não postulava a
mulher propriamente como um alvo de investigações. Em 1920, com as
iniciativas de Marc Bloch e Lucien Febvre na Escola dos Annales, é que o
cenário do uso das fontes adquire um teor mais crítico e abrangente no
que se entende como tal. O alargamento das possibilidades de aportes,
atrelado a ascensão dos movimentos pelas causas feministas, permite o
surgimento do sujeito feminino como objeto de estudo.
A construção da memória coletiva em uma sociedade patriarcal
para legitimar a história dos homens, findou por causar um silenciamento na história das mulheres que durou séculos e, resulta ainda em
221
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
reflexos cotidianos mesmo diante da revisão das fontes. Cria-se, portanto, um ideal de uma coletividade que se representa no discurso pela
palavra “homens”, como um substantivo que acopla em si o masculino
e o feminino.
No que cerne a temática nas narrativas umbandistas, é preciso atentar, mesmo que haja grande respeito e reverenciamento às
sagradas figuras femininas, como Pombas-Giras, Ciganas, Caboclas,
Pretas-Velhas, dentre outras demais, no que tange a escrita a respeito
das entidades Pretas-Velhas, nota-se um esquecimento historiográfico. Esse contraste entre as demandas de procuras nos terreiros por
Pretas-Velhas e a forma como estas aparecem nas narrativas, nos reiteram o pensamento de uma tradição historiográfica de se usar a história dos homens como a que abarca a si e às mulheres.
A leitura de obras, brevemente citadas nas considerações introdutórias, como Pedro(1999), Martins (2011), Negrão (1996), dentre
outros, nos faz atentar para descrições que abordam essas entidades
em sua maioria referindo-se aos Pretos-Velhos, não sendo localizado
por nós nenhum trabalho que se pautasse em problematizar e analisar as personagens Pretas-Velhas. Desta feita, nos empenhamos aqui
em propor uma análise das vivências de tais sujeitos partindo das memórias presentes nos pontos cantados, entendendo-os como uma rica
possibilidade de fonte para a compreensão das recordações de escravidão, resistência e liberdade. Os pontos cantados durante os rituais umbandistas se transportam para o mundo das pesquisas históricas como
importantes fontes de trabalho. A leitura de tais pontos cantados possibilita a arguição de hipóteses interpretativas sobre as vivências das
entidades Pretas-Velhas tanto no mundo espiritual, nos terreiros, como
enquanto encarnadas no cotidiano das senzalas.
Em um levantamento feito em dez ambientes virtuais3 e dois
livros físicos4, pudemos reunir um universo de 200 Pontos Cantados
Compreendemos aqui sites, blogs, canais do YouTube que tratam da temática umbandista e dispõe em seu arquivo virtual pontos cantados para Pretas-Velhas.
4
EDITORA ECO. 3000 Pontos cantados e riscados na Umbanda e no Candomblé. 26ª
ed. Rio de Janeiro: Editora Eco, 1974. & PORDEUS JR., Ismael. Umbanda Ceará em Transe.
Fortaleza: Museu do ceará, 2ª ed., Expressão Gráfica e Editora, 2011.
3
222
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
para Pretas-Velhas e identificar alguns que retratavam passagens sobre
o contexto histórico escravagista. No ponto abaixo, identificado no site
como “Ponto de Linha”5, é possível observar a narrativa ambientar as
memórias de uma Preta-Velha que fora traficada da África para o Brasil:
Navio negreiro no meio do mar
Correntes pesadas na areia a arrastar
E a negra escrava tristonha a chorar
Saravá nossa mãe Yemanjá
Saravá nosso pai Oxalá
As memórias se manifestam, nesse ponto, carregadas de dor e
angústia dos sofrimentos encarados pela Preta-Velha enquanto encarnada. A dor de atravessar a Calunga Grande, o temido e desconhecido
Mar Atlântico, padecendo sob a fome, o cansaço e as epidemias durante
meses em alto mar. A jornada que iniciava sua nova etapa ao ancorar
nos litorais dos países que compravam a mão-de-obra escrava africana, se revela na expressão das correntes pesadas arrastando na areia.
A narrativa desse ponto, cheia de historicidade, nos transporta a pensar o tráfico negro pelo viés da sensibilidade, de como esses sujeitos
despossuídos se sentiam ao navegar e ancorar em terras brasileiras.
Assim como em muitos outros escritos dessas fontes, está presente
o teor do sagrado que serve como ponto de força e de apoio durante
toda essa trajetória e toda a vivência no cotidiano escravocrata: o apego
às entidades orixás, inquices, voduns, ancestrais e até mesmo seres do
panteão católico.
As narrativas presentes nos pontos são muitas. Assim como em
algumas encontramos menção ao continente africano e à saudade das
terras de origem, em outros percebemos se tratar do Brasil como sendo o espaço de nascimento. Diferentemente do anterior que retrata
a trajetória de uma preta que sofreu a angústia do navio negreiro, no
ponto “Casca de coco no terreiro”6 podemos perceber se tratar de uma
Ponto retirado do site Remizerkowski. Disponível em: <http://remizerkowski.
no.comunidades.net/preta-velha>. Acesso em: 05 de junho de 2019.
6
Ponto retirado do acervo virtual do site Filhos do mar. Disponível em: <http://tefilhosdomar.org/index.php/pontos-de-umbanda/pontos-cantados-preto-velho/>. Acesso em:
05 de julho de 2019.
5
223
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mulher que nasceu já a partir do Ventre Livre, ou seja, pela temporalidade da Lei, pode-se asseverar situar-se em torno, ou após, o ano de 1871.
A espacialidade dessa narrativa se situa em dois locais: o primeiro, é a
Senzala; o segundo, o plano espiritual em que habitam as entidades.
Vovó não quer casca de coco no terreiro
Pra não lembrar do tempo do cativeiro
Vovó é filha de um Ventre Livre,
Nasceu feliz, depois da abolição.
Casca de coco lhe traz na lembrança,
O amor escravo, de seu Pai João.
Vovó não quer casca de coco no terreiro,
Pra não lembrar do tempo do cativeiro.
Vovó se lembra da velha senzala,
Da Casa Grande e do terreirão,
Da machadada que cortava o coco,
Do Nêgo Velho do seu coração,
Da Sinhazinha, moça muito bela,
Da saia de renda e do Pai João,
Broa de milho em panela de ferro,
De café socado a base de pilão,
Vovó não quer casca de coco no terreiro,
Pra não lembrar do tempo do cativeiro
A análise desse ponto nos permite traçar duas interpretações que
podem dialogar entre si. Por um lado podemos avaliar essa narrativa
pensando tratar-se de uma Preta-Velha que adveio ao mundo já após a
Lei do Ventre Livre, de 1871, mas que, contudo, seria filha de pais ainda
escravos; pensamento que se reitera no trecho “o amor escravo, de seu
Pai João”. Dessa forma, as memórias e as marcas do escravismo ainda
são vivas na vida dessa Preta em questão, por se tratar de alguém que
possui pais escravos.
Por outro lado, podemos entender esse sujeito como sendo ela
uma própria vítima do escravismo, mesmo tendo nascido após o Ventre
Livre. Após a abolição da escravatura em 1888, entretanto, em larga
maioria os negros não possuíam condições de sustento mínimo e ainda estavam inseridos em uma sociedade que além de não prover com
o básico, ainda erguia sólidas paredes discriminatórias e dificultava a
224
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
inserção dos negros no mercado de trabalho. Resultado disso era uma
grande massa de ex-cativos permanecendo ligados às senzalas na condição de trabalhar para seus ex-senhores, como forma de ganhar algum pecúlio financeiro. Situação essa que pode ser percebida no livro
“Menino de Engenho”, no qual José Lins do Rêgo (2010, p. 75-76) trata
ainda do mercado açucareiro nas décadas próximas a Lei Áurea de 1888:
“As negras do meu avô, mesmo depois da abolição, ficaram todas no
engenho (...). O meu avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas
a trabalharem de graça, com a mesma alegria da escravidão”.
Nascer de um Ventre Livre, contudo, em muitos casos não significava liberdade. Um filho nascido após 1871 podia estar ainda preso à
realidade escravocrata de muitos modos; podia tanto estar nesses espaços pela dependência dos pais ainda escravos, quanto pela falta de condições financeiras para um sustento longe daquela realidade. De maneira
muito sensível as dores se manifestam pelas lembranças do coco sendo
quebrado no terreiro da casa grande. As recordações a respeito da casa
grande e da senzala nos faz ter a sensação de caminharmos nesses espaços ao lermos o ponto. Conseguimos visualizar, junto com a vovó, o café
sendo pilado, a broa de milho fervendo, a sinhazinha com suas vestes de
renda e o suor dos seus pais servindo aos senhores brancos.
Os rastros da escravidão se perpetuam não só no psicológico, mas
também nas recordações que as marcas físicas evocam, como demonstrado no Ponto de Vovó Chica7, abaixo:
A vovó Chica vem de longe, de tão longe
Cansada de caminhar
Ela vem devagarzinho, sinhazinha
Quase que não pode andar
A vovó Chica vem de longe, de tão longe
Longe até que aqui chegou
O seu corpo está marcado coitadinho
Do chicote do senhor
Seu caminho era de espinhos, só de espinhos
Ponto retirado do acervo virtual do site Luz e Fé. Disponível em: <https://luzefe.com/
index.php?url=pontos&indice=0&BotaoPonto=ENTIDADES&BotaoSubponto=PRETO%20
VELHO&desentidade=VOVO%20CHICA>. Acesso em 05 de julho de 2019.
7
225
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Mas agora é só de flor
Mas quanta dor, quanta tristeza
Que a velha traz no coração
Quando ainda ela se lembra
Do tempo da escravidão
Oh Deus nos salve a estrela guia
Dos tempos da salvação
Izabel a redentora
Pôs a luz na escuridão
Para além das marcas carregadas na pele e das memórias de dor
e tristeza, outros dois elementos nos chamam atenção nessa narrativa.
O primeiro que podemos analisar é o trecho final, o qual postula a Princesa Isabel como a salvadora, por ter assinado a lei de 1888 a qual abolia a escravidão. Esse tipo de homenagem à Isabel evidencia o caráter de
má interpretação ou desconhecimento dos contextos históricos. Colocar Isabel como a responsável por trazer luz quando só havia escuridão,
significa desconsiderar o cenário de pressões internacionais e de luta e
resistência negra, que envolvem o fim da escravatura.
O outro elemento que aparece e cabe menção é o apego ao mundo espiritual. Ao mesmo momento que a vovó Chica, enquanto encarnada, sofria com as marcas latentes do chicote, com o desencarne a
pele ferida cicatriza e proporciona a paz; os espinhos dão lugar às flores.
A vida cansada de andar por muitos lugares, de muito trabalho, ou de
até mesmo ter vindo de África para o Brasil encontra-se também permeada de um apego espiritual que pede proteção e liberdade. O pós vida
e a louvação a Deus e as entidades nos possibilita compreender que a
espiritualidade era uma prática que permitia que a escravidão estivesse
apenas na memória.
A celebração pela marcante data do 13 de maio é viva nos terreiros
até os dias contemporâneos e evidencia o caráter sagrado a que muitos negros, em muitos pontos, associam a liberdade como um ato das divindades.
Pelo dia de hoje
Eu quero alegria neste terreiro
Foi dia 13 de maio que acabou o cativeiro8
Ponto retirado do site Remizerkowski. Disponível em: <http://remizerkowski.
no.comunidades.net/preta-velha>. Acesso em: 05 de junho de 2019.
8
226
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O dia 13, desta forma, é comemorado como uma forma de relembrar toda a resistência negra que lutou pelo fim do cativeiro e de celebrar a vinda dos Pretos e Pretas-Velhas que trabalham nos terreiros
pela cura e caridade dos mais necessitados.
Nas palavras de Néstor Garcia Canclini (2008, p. XXVI) “As políticas de hibridação serviriam para trabalhar democraticamente com as
divergências, para que a história não se reduza a guerras entre culturas
(...)”. Entender o conceito do hibridismo como aquilo que sobrevive às
diferenças e se mescla a estas dando origem ao novo, estando presente
em diversas esferas do mundo moderno, é fundamental para que possamos compreender as religiões de matrizes afro-luso-ameríndias em
sua riqueza cultural. O panteão umbandista apresenta-se de maneira
totalmente cabível no conceito do hibridismo cultural, ao permitir a existência de elementos católicos e africanos, como podemos observar no
ponto de linha9 abaixo:
Vovó viveu no tempo da escravidão
Corria milharal com a enxada na mão
Benzia, fazia mironga
Ajudava seus irmãos
E um dia lá no céu
Jesus lhe deu a redenção
Além de retratar um cenário de trabalho no roçado, com a enxada
no milharal, evoca o senso de cura e ajuda que é presente na caracterização das entidades Pretos e Pretas-Velhas; mesmo quando em vida,
já possuía conhecimento de benzimentos e dos feitiços, ditos mirongas.
A última estrofe, todavia, faz uma menção ao ícone das religiões cristãs,
Jesus Cristo; o que nos possibilita reiterar ser a Umbanda uma religião
de panteão híbrido que abriga no mesmo culto a figura de Jesus e os
aprendizados das matrizes afro como os benzimentos, os passes, o uso
das ervas, dentre tantos outros.
A análise dos cinco pontos aqui empreendida, escolhidos perante
o universo dos 200 pontos mapeados, nos permite um maior contato
com os veios históricos que sobrevivem e aparecem nos pontos mesmo
Ponto retirado do site Remizerkowski. Disponível em: <http://remizerkowski.
no.comunidades.net/preta-velha>. Acesso em 05 de junho de 2019.
9
227
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
se tratando de narrativas que são feitas e destinadas ao universo sagrado da Umbanda. Dessa maneira, podemos compreender que se tratam
de fontes que nasceram, em sua origem, para dar conta da musicalidade
sagrada do ritual umbandista, mas que, nos servem como arcabouço
para as análises históricas a respeito da escravidão, das resistências,
dos hibridismos e da liberdade do nosso objeto de estudo, que são as
entidades Pretas-Velhas.
Reflexões finais
A construção de uma memória coletiva perpassa, como pudemos
compreender, o processo de escolhas, as quais selecionam as recordações que se farão basilares na criação de uma identidade cultural para
um determinado grupo social. Implica dizer que eventos se sobressaem
em detrimento de outros. A História, enquanto campo de escrita e eternização, envereda pelo caminho também das escolhas que o historiador
necessita para desenvolver com maestria o seu trabalho.
As seleções que os historiadores fazem diante de suas fontes, todavia, deixam narrativas que ficam guardadas na gaveta enquanto outras
são discutidas e investigadas. O resultado de uma sociedade patriarcal,
dessa maneira, é a construção de uma série de trabalhos que, no momento dos seus recortes metodológicos, findaram por silenciar a história das
mulheres, construindo abordagens que retratam a história dos homens
como uma forma de abranger o todo, como já mencionamos.
Nos empreitamos, em fazer uso dos pontos cantados como uma
fonte que nos proporcionasse um entendimento sobre a figura feminina das Pretas-Velhas dentro do panteão umbandista. Dessa maneira,
buscamos produzir uma análise às fontes de modo a compreender a
escravidão, as resistências e a liberdade de tais entidades a partir das
suas memórias. As Pretas-Velhas são figuras que se revelam para nós
enquanto personagens que personificam o hibridismo em si de fazer
existir temporalidades e espacialidades diferentes na mesma narrativa. São fontes que nos permitem a compreensão de como o sagrado,
o mundo espiritual, dava força para que as resistências se firmassem. Se
apegar aos cultos religiosos no âmbito da senzala, significava um meio de
transpor as mazelas da escravidão apenas para o mundo do imaginário.
228
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
LEGOFF, Jacques. História e memória.
Tradução: Bernardo Leitão. São Paulo:
Editora UNICAMP, 1990.
LOWENTHAL, David. Como
conhecemos o passado. São Paulo:
Revista Projeto História, 1998.
MARTINS, Giovanni. Umbanda de
Almas e Angola. 1ª ed. São Paulo:
Ícone, 2011.
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A
História, cativa da memória? Para um
mapeamento da memória no campo
das Ciências Sociais. Revista Inst. Est.
Bras., São Paulo, 1992.
NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a
cruz e a encruzilhada. São Paulo:
EdUSP, 1996.
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda
Consideração Intempestiva: Da
utilidade e desvantagem da história
para a vida. Tradução: Marco Antônio
Casanova. Rio de Janeiro: Relume
Dumara, 2003.
PEDRO, Vanessa. Almas e Angola:
Ritual e Cotidiano na Umbanda.
Florianópolis (SC): Biblioteca
Imaginária: 1999.
REGO, José Lins do. Menino de
Engenho. 102ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 2010.
SCHELLENBERG, Theodore. Arquivos
modernos: princípios e técnicas. 6 ed.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria.
A emergência da pesquisa da História
das mulheres e das Relações de
Gênero. Revista Brasileira de História.
São Paulo, 2007, v. 27, nº 54, p. 281300.
SOUSA, Florisbela Maria de.
Umbanda. Rio de Janeiro: Editora
Espiritualista, 1964.
ZESPO, Emanuel. Codificação da Lei
de Umbanda. 2 ed. Rio de Janeiro:
Editora Espiritualista, 1960.
[ Volta ao Sumário ]
229
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
do samHain ao maBon:
um estudo das celebrações
sazonais da Wicca no
espaço urbano
Klaus Eduardo da Rocha Furtado Tomaz
Kallyne Fabiane Pequeno de Araújo
Como referenciar este capítulo:
TOMAZ, Klaus Eduardo da Rocha Furtado; ARAÚJO, Kallyane Fabiane Pequeno
de. Do Samhain ao Mabon: um estudo das celebrações sazonais da Wicca no
espaço urbano. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.).
Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e
Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR /
Fogo Editorial, 2020, p. 230-243.
Klaus Eduardo da Rocha Furtado Tomaz1
Kallyne Fabiane Pequeno de Araújo2
Introdução
A Wicca é uma religião no mundo contemporâneo, na qual cultua-se
uma Deusa tríplice e um Deus cornífero. Para seu ingresso é necessário
passar por um processo de iniciação, além de ser entendida como uma
religião sacerdotal, politeísta, ecológica e que possui práticas consideradas mágicas. Alguns alegam que ela é uma antiga religião, com suas
origens nos tempos antigos da Europa, já outros a compreendem como
uma religião fruto da época de Gerald Gardner, seu fundador na Inglaterra em meados do século XX. Os wiccanos buscam uma religação do
homem com a natureza e celebram os ciclos sazonais, chamados de sabás que compõe a Roda do Ano.
A Cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, foi fundada em
em 1599 às margens do rio Potengi, além de contar com importantes
monumentos, parques, museus e pontos turísticos. Dentre esses pontos encontramos o Parque das Dunas, o Bosque das Mangueiras e a
praia de Ponta Negra, espaços esses considerados pontos de encontros
para um pequeno grupo de indivíduos seguidores de um caminho esotérico e religioso, os quais se nomeiam de Wicca.
Na Wicca um dos elementos principais é a veneração da natureza, que é compreendida como sagrada e divina. Seu culto é ligado à
mãe terra e a vários deuses pagãos, possuindo assim uma cosmovisão
Graduando em Ciências da Religião pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte
(UERN). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7335361803761553. E-mail: klauseduardo123@
hotmail.com
2
Graduada em História (Bacharelado) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pós-graduanda em História e Espaços pelo Programa de Pós-Graduação em
História – PPGH da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista CAPES.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8540515362689644 E-mail: kallyne.araujo@yahoo.com.br.
Trabalho orientado pelo Prof. Me. Genaro Camboim Lopes de Andrade Lula (UERN).
1
231
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
centrada nos mistérios cíclicos da natureza, as mudanças das estações,
também refletindo em seus mitos e em como celebram a chegada dos
solstícios e equinócios chamados de sabás. Criada por Gerald Gardner
na década de 50, a Wicca é perpetuada até os dias atuais, mesmo existindo dificuldades no acesso a natureza por questões de se viver em um
espaço urbano. Ao que diz respeito aos wiccanos dos grupos de seguidores que foram analisados para este trabalho, estes procuram manter
suas práticas dentro da cidade de Natal, utilizando-se de parques e das
praias e assim criando uma ligação espiritual nesses ambientes.
Esses pontos de encontro com o passar do tempo para os wiccanos se transformam em espaços sagrados, pois segundo Mircea Eliade (2012, p. 25) ”para o homem religioso, o espaço não é homogêneo:
o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferente das outras”, portanto, um espaço sagrado, e por
consequência forte. Para os bruxos esses ambientes naturais criam
uma consciência quando se acontece por muitas vezes nestes lugares
a realização de práticas mágicas, por causa dessa essência vivente,
esses locais são escolhidos para ser realizados os sabás3. Nessas reuniões a questão do espaço ser natural é muito importante, contudo
muitas vezes o ambiente do lar tem maior predominância entre alguns
praticantes, por ser um lugar mais fechado para as práticas e a utilização de elementos como o fogo, que por uma questão de proteção
ambiental nos espaços urbanos das cidades não se pode ser utilizado,
por isso alguns sacerdotes da Wicca oferecem seus lares para realização de alguns rituais.
O presente artigo tem como objetivo analisar como as celebrações
desses sabás é realizada pelos praticantes da Wicca no espaço urbano e
como a ritualística dessas celebrações é feita na cidade de Natal. Através de alguns suportes documentais e da observação de alguns praticantes da Wicca da cidade analisada, queremos acessar os múltiplos
sentidos que são atribuídos aos espaços urbanos, de como a paisagem
é sacralizada para o exercer religioso dos wiccanos. Para o desenvolvimento desse trabalho, como metodologia, foi utilizada a análise de dois
3
Sabás: os sabás constituem em uma maneira de celebrar das feiticeiras que está interligada com as mudanças cíclicas da natureza (FARRAR, 1999, p. 13).
232
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
tipos de fontes: a literatura wiccana, fazendo a escolha de obras clássicas da Wicca, sendo estas Oito sabás para bruxas (1999), do casal inglês
de bruxos Janet e Stewart Farrar e Wicca para todos (2009), do sacerdote
brasileiro Claudiney Prieto. Também foi feito o uso da observação de alguns praticantes solitários e covens de wiccanos em Natal. Outra forma
de análise também se deu através da revisão bibliográfica, que abordam
as relações entre espaço sagrado, paisagem e a Wicca.
Os sabás da Wicca
Na Wicca ocorre a celebração da chamada Roda do Ano através de
oito festivais sazonais que são conhecidos como Sabás. O calendário
litúrgico wiccano é baseado em vinte e um rituais que ocorrem anualmente, dividido entre os oito Sabás e treze Esbás4. Segundo Ramalho
(2015, p. 249) os sabás wiccanos são formados por quatro sabás maiores (Samhain, Imbolc, Beltane e Lughnasadh) que foram celebrados pelos
Celtas; e por quatro sabás menores (Yule, Ostara, Litha e Mabon) que tem
suas origens em celebrações de outros povos pagãos da Europa. O casal
wiccano Farrar define o calendário das bruxas como:
O calendário das bruxas (independentemente de sua escola) está
enraizado, como o de suas predecessoras ao longo de séculos sem
conta, nos sabás, festivais por estação que marcam pontos-chaves
no ano natural, pois Wicca,como enfatizamos, é uma religião e ofício orientados pela natureza; e visto que para as bruxas a natureza
é uma realidade de muitos níveis, seu “ano natural” inclui muitos
aspectos agrícola, pastoral, da vida selvagem, botânico, solar, planetário, psíquico, cujas marés e ciclos se afetam ou refletem entre
si. Os sabás constituem a maneira de celebrar das feiticeiras e destas se colocarem em sintonia com tais marés e ciclos, pois homens
e mulheres são também uma parte da natureza de muitos níveis.
(FARRAR, p. 12-13, 1999).
“Os esbás são rituais conduzidos a cada lua cheia e dedicados ao culto da Deusa. Sua
característica principal é serem restritos aos membros do coven, focados nos “mistérios”
e no treinamento mágico dos dedicados e iniciados” (DUARTE, 2013, p. 180).
4
233
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Essas celebrações se popularizaram como sabás da Wicca entre
os anos 1960 e 1970, embora os quatro sabás menores só tenham
sido acrescentados no calendário wiccano a partir de 1980, através de
sua inclusão nos livros sobre a Wicca. Portanto, a Roda do Ano que foi
estabelecida é formada por Samhain, Yule (solstício de Inverno), Imbolc,
Ostara (Equinócio de Primavera), Beltane, Litha (Solstício de verão), Lughnasadh e Mabon (Equinócio de Outono). Esses sabás são ritos solares
em torno do mito da roda do ano sobre a deusa e o deus. Durante a
primavera, a deusa apresenta seu aspecto jovem e o deus como criança
divina. A medida que o verão se aproxima, eles amadurecerem e ocorre
o casamento divino, para no auge do verão a deusa estar grávida e o
deus passar a ser o Rei do carvalho; Ao chegar o outono o deus se torna
o sábio rei azevinho e morre no final do outono. A deusa se recolhe no
mundo inferior para no auge do inverno dar a luz ao deus, dando início a
um novo ciclo (DUARTE, 2008, p. 74).
Os sabás das bruxas como fora mencionado se dividem em oito,
Imbolc que ocorre no hemisfério Sul no mês de agosto (as datas dos
sabás variam de hemisfério para hemisfério, e os astronômicos que são
os solstícios e equinócios variam dependendo do ano, caso ele seja bissexto ou não). É o festival do fogo que representa o fim do inverno, em
que o gelo começa a derreter e as fogueiras são postas do lado de fora
das casas e não mais nas lareiras, além de também ser considerado o
período de lactação do gado (FARRAR, 1999, p.13).
Após o derretimento do gelo, se inicia o que os wiccanos chamam
de ritos da fertilidade para criação e semeação do plantio na terra, rituais que são destacados pelo Ostara e Beltane e são celebrados entre
setembro e outubro no hemisfério Sul, e março e maio no hemisfério
Norte. Muitos ritos sexuais são realizados nos campos nesse período,
para a fertilização e a realização de casamentos na sociedade, já que
nessa passagem deuses do amor são adorados.
Os festivais da colheita que são Lughnasadh que representa a grande colheita, resultados de toda uma roda solar trabalhada pelos bruxos
com a adoração ao Deus sol, celebração essa que marca que os frutos
sejam bons ou ruins recebidos ao longo do ano para os wiccanos. Mabon,
o festival do outono que marca o equilíbrio das estações e a segunda colheita wiccana sublinhada em agradecimentos e oferendas aos deuses
234
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
junto com um banquete entre os irmãos da bruxaria, são marcados com
o fim do verão e começo do inverno (no caso o período marcado pelo
que os wiccanos chamam de “corte escura”, onde elementais e criaturas
da natureza do inverno começam a trabalhar para o surgimento desta
estação), os sabás que representam o começo do inverno é Sahmain e
Yule, ligados à crença dos ancestrais de suas famílias e marcando um
fim de um ciclo, mas para o início de outro com o nascimento da criança
da promessa que ocorre no mês de junho aqui no hemisfério sul e, em
dezembro no hemisfério norte.
Durante este processo vemos um momento de transformação
refletido do espiritual para o material, ou o inverso já que seguindo o
pensamento do sociólogo e historiador Karl Max, a religião pura e simplesmente como uma projeção de nossa realidade terrena para um plano superior metafísico (FADDEN, 1963, p. 15). A roda traz para os seguidores da Wicca sobre as passagens da vida humana, representadas pelo
nascimento, crescimento, puberdade e morte. Para os bruxos, vivenciar
a roda é como se vê em um filme de suas próprias vidas e dessa forma
se encontrar com os mistérios da vida e da morte, pois tudo é um ciclo
na visão da Wicca e por isso é representada pelo simbolismo do círculo,
que representa uma linha perfeita sem começo e sem fim, dando assim
alusão da roda cíclica da vida, de morte e renascimento. Como a natureza é a base da religião Wicca, vemos que nunca existe um fim para ela, e
sim, uma transformação.
Com as celebrações contínuas os wiccanos criam um elo de ligação com a natureza de tal sintonia que a roda também se transforma
em uma forma de comunicação entre essa sincronia do homem com o
macro universo ao seu redor. Se conclui desta forma que viver a roda do
ano e se encontrar com o mundo dos deuses e compreender o mistério
da vida e da morte.
Natureza e espacialidades
Na Wicca o espaço é algo de extrema relevância, pois se apresenta através de inúmeras representações no praticar dessa religiosidade
por bruxas e bruxos. Os espaços são construídos desde a formação de
235
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
um círculo mágico que é um espaço de proteção traçado pelos bruxos,
no qual impede o acesso de energias não convidadas para o círculo construído, onde ocorrem rituais, feitiços e a presença dos deuses
e entidades são convidadas para estarem dentro dele com o wiccano.
A natureza, também é outra espacialidade wiccana, pois a Terra é considerada divina e sagrada e tanto as suas florestas, bosques, rios, mares e
árvores, são também a morada dos deuses, de entidades e elementais.
Portanto a própria construção do espaço sagrado por Mircea Eliade (1992) ao diferenciá-lo do espaço profano e definí-los, relacionando
também ao tempo sagrado e a hierofania, irá nos ajudar a entender a
importância dos espaços para a Wicca. A hierofania é a manifestação do
sagrado e sempre irá transformar um espaço que foi profano em sagrado. A repetição da hierofania que consagrou um determinado espaço,
acaba o transformando, tornando-o singular em relação ao espaço profano que o cerca (ELIADE, 2002, p. 296), o que pode ser percebido em
determinados espaços, como parques e bosques, em que praticantes da
Wicca acabam sempre utilizando determinados locais nesses espaços
para suas práticas religiosas, fazendo com que seja atribuído a esses
espaços o sagrado.
Eliade (2002, p. 295) também atenta para as relações que existem entre as hierofanias e a natureza, pois como a natureza passa por
transformações no decorrer do ano e essas mudanças podem ser representadas através dos mitos, pode ser feita a relação dessa concepção
com o modo dos wiccanos perceberem o sagrado nos espaços, já que
é uma religião que acredita que seus ancestrais em um tempo antigo
praticavam as sua crenças e ritualizavam na natureza- à morada dos
deuses. Além, do aspecto voltado aos mitos e as transformações que
ocorrem na natureza, levando os praticantes da Wicca à ritualizarem e
celebrarem essas mudanças através dos sabás.
A hierofania não apenas sacraliza uma fração do espaço profano
homogêneo, mas ela assegura a perseverança dessa sacralidade no futuro. Transformando o lugar em uma fonte de força e sacralidade, permitindo que o homem tome parte dessa força e comungue com o sagrado. Através da hierofania, o lugar se torna um centro permanente do
sagrado (ELIADE, 2002, p. 296). Noção que novamente retorna a ideia
de que os wiccanos enxergam a natureza como esse centro permanente
236
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
do sagrado, que um dia também foi um espaço sagrado para os antigos
pagãos.
Segundo o sacerdote wiccano brasileiro e escritor Claudiney Prieto
(2009, p. 62), houve historicamente uma espécie de transferência de
rituais do “espaço aberto” para dentro de residências, locais privados ou
“íntimos” para preservar a realização de tais atos que pareciam sofrer
ameaça de realizarem-se em locais visíveis. A criação do círculo mágico tornou-se outra forma de criar e estabelecer com mais liberdade e
flexibilidade um espaço sagrado para os bruxos que não tinham e não
tem como fazerem seus rituais na natureza, principalmente no contexto atual que muitos dos praticantes dessa religião moram em centros
urbanos onde há um maior afastamento de áreas rurais e campestres,
que possui uma maior presença de espaços de natureza, de um ponto de vista até romantizado pelos wiccanos. Além da busca por praias,
bosques e parques nesses espaços urbanos e públicos, que possibilita
mesmo nas cidades urbanas, o que seria considerado esse contato com
a natureza pelos praticantes da Wicca e por outros seguidores do Neopaganismo.
Conforme Silva (2017, p. 38) por mais que alguns praticantes idealizem essa vivência no campo, na natureza, apenas uma minoria possui
esse estilo de vida. No entanto, essa vivência de uma era dourada que o
homem viveu em harmonia com a natureza é uma visão utópica e deslumbrada do passado, que o homem e a natureza seriam um só, fazendo com que muitos praticantes busquem morar perto desses bosques e
parques, manter jardins e cultivar ervas em casa, ou até mesmo possuir
sítios em cidades do interior, como uma espécie de santuário natural,
além da preocupação com questões ecológicas e ambientais, mas que
não deixa de ser um discurso profundamente urbano.
Partindo da ideia que as hierofanias influenciam nas transformações da natureza e podem ser relacionadas com as celebrações pagãs
dos solstícios e equinócios, que fazem parte da ritualística e das comemorações dos wiccanos, há uma associação desse tempo das festas
com o tempo sagrado. Eliade (2012, p. 63) define que o tempo sagrado
não é homogêneo nem contínuo para o homem religioso, pois acontecem intervalos entre o tempo sagrado, o tempo das festas e o tempo
237
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
profano e vai ser através do ato de ritualizar, que o homem religioso
consegue passar do tempo considerado não-sagrado para o tempo sagrado. Além desse tempo das festas religiosas também ser entendido
como algo cíclico, pois o evento definido como sagrado acaba repetindo
e é algo que está presente na história humana e em diversas formas de
rituais desde os primórdios. Essa celebração cíclica e repetitiva ocorre
na Wicca através da Roda do Ano e suas festividades relacionadas aos
clima e colheita, com seus oito sabás: Samhain, Yule, Imbolc, Ostara, Beltane, Litha, Lughnasad e Mabon, como já foram discutidos inicialmente.
Por mais que as paisagens que moldem o espaço urbano sejam
construídas e reconstruídas a todo tempo, isso não impede que as pessoas busquem nas paisagens, lugares que possam ser vistos como sagrados. Esta forma de fazer uso de um determinado espaço e sacralizado é feito por wiccanos ao realizarem seus rituais em praças públicas,
parques, bosques e praias, e como é o caso das bruxas e bruxos de Natal, ao usarem o Parque das Dunas, o Bosque das Mangueiras e a Praia
de Ponta Negra.
Schama (1996, p. 24) conceitua toda natureza modificada ou que
tenha tido presença ou interferência humana como sendo paisagem. E
a paisagem se torna produto de uma cultura comum, de uma tradição
construída a partir de um rico depósito de mitos, lembranças e obsessões, de cultos que buscamos em outras culturas nativas, desde a idealização de uma floresta primitiva ou de uma montanha sagrada (SCHAMA, 1996, p. 24). Sendo isto o que muito presenciamos nos discursos da
Wicca e em sua visão de mundo relacionada aos espaços de natureza.
Como também, em cada época o imaginário coletivo pode variar
em suas definições sobre a concepção social de natureza e a transformar em cultura (LUCHIARI, 2001, p. 11). Pois essa concepção de natureza teve a sua tradução mais completa ao ser elaborado o conceito de
paisagem, que vai muito além de apenas um modelo abstrato de compreensão do meio, mas também representa a materialidade em que a
racionalidade humana organiza os homens e a natureza em territórios.
Através da habilidade humana, a natureza é transformada em objetos
culturais, portanto, o que é sugerido pela natureza, o imaginário social
traduz (LUCHIARI, 2001, p. 22).
238
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Bruxaria em Natal
A bruxaria em Natal é representada através de encontros e eventos relacionados a diversidade de assuntos envolvendo suas práticas e
celebrações. Muitos dos seguidores de diversas tradições de bruxaria,
incluindo a Wicca, procuram com a realização destes encontros discutirem sobre o que se tem aprendido solitariamente. Assuntos como ervas, criação de espaços sagrados, contatos com seres espirituais, entre
outras diversas discussões relacionadas à linha do ocultismo e do misticismo. Os espaços para esse encontros se situam na Grande Natal,
cidade do estado de do Rio Grande do Norte, nas regiões que se encontram o Parque das Dunas, Bosque das Mangueiras e a Praia de Ponta
Negra. Para a contribuição deste artigo, através da nossa observação
e participação no último ritual de Ostara que ocorreu em Setembro de
2018 no Bosque das Mangueiras, foi possível ter algumas conversas
com os idealizadores dos eventos, buscando informações sobre cenário
neopagão em Natal e a importância da celebração dos sabás.
As primeiras reuniões foram oficializadas nos anos de 2012 através de Danilo Nobre (eterno estudante da bruxaria), Klaus Eduardo
(Sacerdote Wicca), Chris Nóbrega (Sacerdote da tradição Green Faerie)
e Marcelo Leal (Sacerdote da tradição Wanen em Natal), através do grupo de estudos chamado Ventre Negro, que buscavam não só discutirem
assuntos relacionados a esoterismo e magia, como também assuntos
relacionados ao meio ambiente, a questões de diversidade religiosa e
o combate entre as diferenças sociais, trazendo para as reflexões dos
iniciantes no caminho da Wicca para uma evolução não só pessoal, mas
universal, em uma tentativa de tornar o meio vivido por eles melhor.
Com o passar do tempo, eventos paralelos envolvendo práticas
do que se era discutido foi sendo construindo e assim outros grupos
para práticas da Wicca começaram a serem fundados e para a garantia de uma visibilidade e respeito, dessa forma esses locais que foram
explorados para encontros de discussões teóricas, passam a ter um envolvimento de práticas mágicas para obtenção do desenvolvimento e a
conexão com a natureza.
Todo espaço sagrado implica em uma hierofonia, uma irrupção do
sagrado que tem como resultado destacar um território do meio
239
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
cósmico que o envolve e o torna qualitativo diferente. (ELIADE,
2012, p. 30).
Muitos wiccanos manifestam essa sacralização através da criação
de um círculo sagrado, onde este possa ser levado em qualquer parte
e criado em qualquer região seja na natureza, ou dentro de sua própria
residência. Para o sacerdote Claudiney Prieto (2009) as práticas rituais
pagãs eram sempre realizadas junto à sagrada natureza, considerando
esta a morada dos Deuses e divina por si só, porém:
Quando a Bruxaria passou a ser perseguida e os Bruxos tiveram que
mover seus rituais das florestas e bosques para o interior de suas
casas, os ritos passaram a ser realizados então no interior de um
Círculo Mágico. Os rituais passaram a ser realizados em locais que
ficavam distantes dos lugares de poder naturais, como os círculos
de pedras ou bosques sagrados e o ato de lançar o Círculo Mágico
passou a estabelecer, assim, não só um espaço sagrado, tornando-o um vórtice de poder onde os Espíritos da natureza eram atraídos,
mas também um portal de comunicação com o Sagrado. E desta
forma fazemos até os dias atuais, traçando um Círculo ao nosso
redor para invocar as energias que reverenciamos e que conosco
trabalham em perfeita harmonia (PRIETO, 2009, p. 62).
Com a utilização deste artifício, muitos dos eventos abertos para
aqueles indivíduos que queriam compreender as celebrações da Wicca
passam a ter uma acessibilidade maior, pois o círculo torna-se um espaço sagrado, ou templo o qual pode ser movimentado para o lugar que
o bruxo desejar.
Facilitando essa acessibilidade, se inicia os eventos relacionados
aos sabás já mencionados no artigo que são ritos de ligação com os ciclos da natureza. Surgindo essas celebrações abertas, nasceu o Dançando para Florescer em 2012, idealizado por Danilo Nobre através de um
sonho que lhe ocorreu de celebrar o Ostara, o equinócio de primavera
em volta de uma mangueira. Através deste sonho esse evento nasceu
com a idealização de reunir os wiccanos e os bruxos para uma dança
circular e adoração, não apenas em torno da passagem das estações da
natureza, mas pensando também no crescimento espiritual de todos
dessa comunidade pagã. Segundo Nobre, esse evento chega a reunir até
240
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mais de 100 pessoas na cidade de Natal. E nele encontra-se palestrantes, dinâmicas como produção de perfumes, caça ao tesouro e tudo que
é considerado como forma de trazer o resgate desse festival, o Ostara
pagão. No ano de 2016, esse evento de bruxaria passou a ter uma maior
visibilidade, através da criação de feirinhas de artesanato, com lanchonetes e artigos esotéricos a venda.
Palestrantes de outros estados também passaram a se unir para
a idealização deste evento, tendo a crença que isso daria abertura para
novos rumos da bruxaria aqui em Natal. Outros pequenos rituais abertos no Bosque das Mangueiras e praias da Grande Natal, também foram
realizados para celebração dos sabás, para que dessa forma mesmo
aqueles indivíduos que não estariam integrados a um coven pudessem
participar dos sabás.
Através de uma contínua prática no ambiente, os wiccanos tem a
crença que este espaço com o tempo crie um elo com os demais praticantes formando assim uma forma de pensamento, ou entidade do espaço.
No ano de 2016, também ocorreu pela primeira vez o Dia Mundial
da Deusa, realizado no dia 04 de setembro do referido ano. Esse projeto
surgiu em 2014 para unir em todo o mundo, pessoas que cultuam a deusa e é celebrado sempre no primeiro domingo de cada mês de Setembro. O Projeto é uma iniciativa do sacerdote brasileiro Claudiney Prieto.
Outro projeto, idealizado por Prieto e que ocorreu também pela primeira
vez em Natal no ano de 2016, foi o Encontro Regional de Bruxos, que
acontece a cada primeiro domingo de cada mês, em diferentes regiões
do Brasil, assim como em parques, praças, praias, entre outros lugares.
Atualmente as celebrações e eventos da Wicca em natal foram
cessadas por questões de logística e tempo, mas ainda aberto à possibilidade de reencontros e organizações de novos eventos para celebrações dos sabás.
Considerações finais
A influência da natureza está presente em todas as representações divinas e sagradas da Wicca e também interfere na construção
da espacialidade sagrada para os wiccanos, assim como também na
241
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
importância de celebrar as mudanças das estações. Através das fontes e do que foi discutido, foi possível compreendermos também o
porquê da Wicca não necessariamente precisar ter templos erigidos,
pois para existir o espaço sagrado não é necessário um templo físico,
mas o círculo mágico é que irá possibilitar essa conexão com os deuses e com o sagrado.
Também foi observado o quanto é delicado esse contato entre os
seguidores da Wicca com a natureza, a forma de ver a natureza como
uma fonte divina e única para todo o universo humano e acolhedor para
todos. O respeito por cada ser, pedra, animal ou vegetal ao seu redor
formando assim um elo psíquico e emocional. A natureza é uma mãe
para Wicca, a própria Deusa, um ser vivo, uma criatura transcendental.
Desse modo, foi possível compreender quais os elementos que
conectam o espaço, a natureza e o sagrado para os wiccanos, diante
das utopias, desejos e limitações que seus praticantes enfrentam ao
praticar uma religião voltada para a natureza no meio urbano. Assim
como também, perceber os simbolismos que os unem ao sagrado, possibilitando que eles encontrem a tão almejada harmonia com a natureza, mesmo diante das dificuldades que precisam enfrentar ao viver
nos centros urbanos e que ainda assim, se torna possível que eles se
conectem com o divino e realizem os seus rituais que possuem aspectos centrados na natureza.
242
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
DUARTE, Janluis: Os bruxos do século
XX: neopaganismo e invenção de
tradições na Inglaterra do pós-guerra.
Dissertação (Mestrado em História)
– UNB, Brasília, 2008. Orientação de
Vicente Dobroruka.
______. Reinventando tradições:
Representações e identidades da
bruxaria neopagã no Brasil. (Tese de
doutorado) – UNB, Brasília, 2013.
Orientação de Cléria Botelho da
Costa.
ELIADE, MIRCEA. O sagrado e o
profano. Trad. Rogério Fernandes. 3.
Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
______. Tratado de História das
religiões. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
FADDEN, J. Mc. Filosofia do
Comunismo. 2. ed. Lisboa: União
Gráfica, 1963.
FARRAR, Janet & Stewart. Oito Sabás
para Bruxas. São Paulo: Anúbis, 1999.
LUCHIARI, Maria Tereza Duarte
Paes. A (re)significação da paisagem
no período contemporâneo. In:
ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto
Lobato (orgs.). Paisagem, imaginário
e espaço. Rio de Janeiro: Ed. da UERJ,
2001.p. 09-28.
PRIETO, Claudiney. Wicca para todos.
São Paulo: Alfabeto, 2009.
ROCHA, Emmanuel Ramalho de Sá.
A relação ser-humano natureza em
um novo encantamento do mundo:
uma investigação junto a um grupo
Wicca de João Pessoa. Anais do XIv
simpósio nacional da ABHR. Juiz de
Fora, ABHR, 2015 (p. 241-254).
SCHAMA, Simon. Paisagem e
memória. Trad. Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SILVA, Dartagnan Abdias. Há Bruxas
na cidade: A Wicca a partir da
representação da UWB. Dissertação
(Mestrado em Ciência da Religião) –
UFJF, Juiz de Fora, 2017. Orientação
de Marcelo
[ Volta ao Sumário ]
243
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
dos vedas aos
upanisHads
Rosivânia Rodrigues Jordão
Como referenciar este capítulo:
JORDÃO, Rosivânia Rodrigues. Dos Vedas aos Upanishads. In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 244-255.
Rosivânia Rodrigues Jordão1
Introdução
Antes de adentrarmos no tema em questão, isto é, os rituais que
deram-se no período Védico e no período dos Upanishads, faz-se necessário nos embrenharmos, na história da Civilização Oriental especialmente a da sociedade indiana.
O homem, ao estudar a história da Índia acaba-se esbarrando com
alguns mistérios que à primeira vista é incompreensível. De fato, quando examinamos a Índia, um dos países do Oriente, passa por nossas
mentes diversos tipos de ponderações, isto é, múltiplos pensamentos.
É um território onde descortinamos uma série de conceitos religiosos
e uma grande variedade cultural. E para se entender isto deveremos
percorrer de forma extremamente precisa os acontecimentos inseridos
nesta civilização e o colonialismo que sucederá na Índia, apontando os
indo-europeus/ãryas e os drávidas. Ademais, faremos menção de como
a crença, a fé, a religiosidade e a espiritualidade deste povo estava, e
ainda está, ligada ao seu mais íntimo ser. Resultado disso, é uma vida
totalmente voltada para as divindades. São elas que controla e coordena
a razão de ser dos indivíduos do grupo. E quando falamos nestes deuses
avistamos seres que o homem deveriam prestar-lhe certos ritos.
O rito é um movimento que está entre os indianos desde os primórdios de sua história. A contar os primeiros povos percebemos a
liturgia que os cercava. E, para dialogarmos a respeito do movimento
indiano “Vedas” e “Upanishads” faz necessário uma volta no tempo histórico para se compreender o porquê de certos ritos e mitos fazerem
parte do contexto cultura destes homens, pois assim fazendo chegaremos a alguns questionamentos a respeito de um certo rompimento entre os brâmanes e o surgimento do que ficou denominado e conhecido
como os Upanishads.
Graduanda em Ciências das Religiões (Bacharel) pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Currículo Lates: http://lattes.cnpq.br/7358922065124176.
1
245
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Como conceituávamos anteriormente, para uma melhor percepção e entendimento do tema proposto convém revir a respeito dos
indo-europeus fazendo uma caminhada até os drávidas, povo que, de
certo modo, encontravam-se desde muito cedo em terras indiana as
margens do rio Indo. Ademais, mencionaremos alguns deuses, os tipos
de rituais presentes neste período védico, seu andamento e a eclosão
dos Upanishads.
Os indos-europeus e os drávidas
Não se sabe ao certo como surgiu o povo indo-europeu, o que se
tem conhecimento é que os tais vieram de uma região entre os Cáucaso
e Carpatos próximo ao mar negro no III milênio. Além disso, é deste povo
que descende as línguas conhecidas como latim, grego e o “sânscrito”,
está última a língua dos textos sagrados do hinduísmo.2 É bem verdade
que está é uma teoria que possivelmente não seja aceita por outros estudiosos, mas é nela que iremos cimentar nosso entendimento.
Para adentrar na Índia os indo-europeus necessitavam trespassar
a montanha sagrada, as cordilheiras do Himalaia. Não se percebe como
estes indivíduos lograram este objetivo, mas os tais assim fizeram e
conseguiram. Chegaram na Índia e se instalaram as margens do rio Indo.
No entanto, achava-se naquela região um povo totalmente dispa em
relação aos povos indo-europeus, eram os drávidas.
Distinto dos indo-europeus, os drávidas, eram povos nômades
que conhecia muito bem à agricultura, o cuidado com os animais, etc.
Em contrapartida os indo-europeus detinham o conhecimento das
guerras, pois em vista viviam conquistando territórios. Para uma melhor
compreensão acerca disto contemple:
“[...] Muitas teriam sido as condições que facilitaram a conquista do
território indiano pelos ãrya, nesta época Dravídica. Os invasores
GNERRE, Maria Lúcia Abaurre. Os arianos na Índia. In: GNERRE, Maria Lúcia Abaurre.
Religiões Orientais: Uma introdução. Volume I : Tradições da Índia – Do Veda ao Yoga. ed. 1.
João Pessoa: Universitária UFPB, 2010, p. 25.
2
246
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
estariam mais bem equipados para guerra, com carros puxados
por cavalos e armas de Bronze, enquanto os Drávidas teriam carros
puxados por bois e armas de cobre. Há também a hipótese de uma
crise social desta civilização do Indo, que já estaria previamente
enfraquecida no momento da chegada dos árias – hipótese esta
que se vincula à questão ambiental, do rio Indo que secou.” 3 (Gnerre, 2010)
De modo geral foi uma cultura que não suportou o tempo como
muitas outras. Observe:
“[...] De um modo geral, aceita-se a hipótese de que esta civilização
harapiana-dravídica (bem como a protoaustralóide) teria sido, num
primeiro momento, sufocada pela cultura ārya. Mas, com o passar
do tempo, seus conceitos e crenças vão se infiltrando na sociedade
ária indo-européia”.4 (Gnerre, 2010)
Conforme o que já foi mencionado os indo-europeus chegaram as
margens do rio Indo e encontram-se com um outro povo denominado
drávidas. Os drávidas, por sua vez eram totalmente diferentes deste
novo grupo de indivíduos; praticavam a agricultura e quando precisavam de algum outro ingrediente que não detinham entre si experimentavam trocas comerciais entre seu próprio ajuntamento.
Este era basicamente o cenário apontado por alguns estudiosos
da área: por um lado havia o grupo que possuía suas crenças e valores
e que acabaram sendo influenciados e talvez forçados a abandonarem
estes princípios. Em contrapartida achava-se os indo-europeus, um
povo famoso pelas suas guerras, com novos planos, acaba persuadindo
e intervindo no comportamento religioso dos drávidas. Esta ingerência
vez com que deuses masculino tomasse o lugar da Grande-mãe. Veremos agora um pouco sobre está transição e algumas divindades.
3
4
GNERRE, Op. Cit., p.27.
GNERRE, Op. Cit., p. 28.
247
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A transição: drávidas e indo-europeus
Como já havíamos falado, os Vedas, mostram o panteão das divindades arianas e suas mitologias correspondentes. O período védico
preocupava-se muito com os rituais para com os deuses. Geralmente o
povo desta época se voltava muito para o rito. Por exemplo, ou seja, se
uma jovem estivesse precisando alcançar um casamento iria até certo
templo ou a um local consagrado para a realização de um rito com o
intento de lograr este feito. O que podemos observar segundo Eliade
(1992) na obra “O sagrado e o profano” é que o rito é uma ação do indivíduo para com a divindade, ou seja, pode ser uma oração, uma oferenda
ou qualquer tipo de atitude perante o divino.5
É neste contexto que podemos mencionar os Veda ou vedas.6
Os Veda significa verdade ou conhecimento, é um escrito sagrado na
língua sânscrita. É a literatura mais antiga do mundo, isto é, descrevem
um universo mítico-ritual e a chegada dos arianos na Índia. No período da produção destes textos sagrados surge a antiga religião hindu,
que está contida neste conjunto de escrituras.7 Estes textos fazem partem de uma sabedoria revelada transmitida de forma oral pelos Rishis.
Os Rishis são abalizados como videntes ou profetas e foi por meio destes homens que os vedas foram escritos, isto é, estes homens foram o
instrumento para que este texto sagrado fosse redigidos.
Os Vedas contém a seguinte divisão: o Rig-veda (o principal livro
do grupo), Sama-veda, Yajur-veda e Atharva-veda.8
Deuses do panteão védico
Feito está síntese gostaríamos de falar um pouco sobre o panteão
das divindades védicas. Destacaremos seis divindades principais. São
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução: Rogério Fernandes. 1. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
6
Todas as duas formas estão corretas. A implementação do “s” é apenas uma aculturação
da língua portuguesa.
7
GNERRE, Op. Cit., p. 29.
8
GNERRE, Op. Cit., p. 31-32.
5
248
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
eles: Agnis, Soma, Varuna, Indra, Vishnu e Rudra que mais tarde será conhecido como Shiva, mas comentaremos apenas alguns desses deuses.
Posto isto, veremos como estes deuses eram e de certo modo ainda
está presente na cultura oriental.
Renomado como o deus do fogo, Agnis, estava presente em todos
os rituais, sem ele era impossível ocorrer o rito. Segundo Gnerre (2010),
este ser divino andava montado em um carneiro de fogo, a sua língua
era de fogo e tinha uma ferramenta nas mãos. Além disso, era considerado um deus sacerdotal, ou seja, aquele que intermediava entre os
deuses e os homens. Faz-nos lembrar de um texto bíblico, onde o próprio Sacerdote, descendente da tribo de Levi prestava todos os dias uma
espécie de ritual em favor do povo de Israel, contudo, uma única vez no
ano o sumo sacerdote entrava no lugar Santo dos Santos (uma das partes do tabernáculo móvel), um lugar sagrado, e prestava um sacrifício
pelo povo e por seus próprios pecados em seguida o fogo era acesso
para que assim o deus recebesse o sacrifício e não castigasse o povo
pelos seus pecados. Contemple o escrito:
“[...] E falou o SENHOR a Moisés, depois da morte dos dois filhos
de Arão, que morreram quando se chegaram diante do SENHOR.
Disse, pois, o Senhor a Moisés: Dize a Arão, teu irmão, que não entre no santuário em todo o tempo, para dentro do véu, diante do
propiciatório que está sobre a arca, para que não morra; porque eu
aparecerei na nuvem sobre o propiciatório. Com isto Arão entrará no
santuário: com um novilho, para expiação do pecado, e um carneiro
para holocausto. Vestirá ele a túnica santa de linho, e terá ceroulas de linho sobre a sua carne, e cingir-se-á com um cinto de linho,
e se cobrirá com uma mitra de linho; estas são vestes santas; por
isso banhará a sua carne na água, e as vestirá. E da congregação
dos filhos de Israel tomará dois bodes para expiação do pecado e
um carneiro para holocausto. Depois Arão oferecerá o novilho da
expiação, que será para ele; e fará expiação por si e pela sua casa.”9
(Levítico Cap.: 16, Ver.: 1-6)
Uma outra divindade era o soma e em concordância com Gnerre
(2010), era uma bebida que estava presente nos rituais védico, é como
ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das
Assembleias de Deus, 1995.
9
249
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
se está bebida proporcionasse uma espécie de estase, assim como
ocorria nos rituais xâmanicos. Este ser divino com aparência feminina
estava sempre amontado em uma carruagem, sobre uma flor de lótus
e sendo carreado por cinco cavalos todos alinhados um ao outro. Ademais, os cinco cavalos alinhados nos traz a ideia dos cinco sentidos em
pleno equilíbrio e alinhamento: visão, olfato, paladar, audição e tato.
Muito embora na nossa mentalidade ocidental pensemos que uma bebida proporcione ao indivíduo uma falta de equilíbrio, na mentalidade
oriental o deus soma era a bebida dos deuses e quando ser humano
bebia dela alcançaria um nível maior no que tange aos rituais. Vejamos
uma breve exposição sobre está divindade:
“[...] O Soma é outro deus importante do Rig-Veda, a ele são dedicados 120 hinos, sendo o terceiro mais citado no panteão védico
(perde para Indra e Varuna, dos quais falaremos a seguir). Como se
sabe, o Soma era também a bebida sagrada dos rituais, e é muito
difícil separar o Deus Soma da própria Bebida: ele era a divindade
que está incorporada na bebida. Ao beber o soma, os praticantes do
ritual sentiam sua própria imortalidade, tinham revelações de uma
existência plena e beatífica, em comunhão com os deuses. Esse referencial da experiência divina com o soma vai nortear o caminho
de buscas espirituais posteriores, mesmo para aqueles que não bebiam mais o soma.”10 (GNERRE, 2010)
Um outro ser divino que merece destaque é Varuna. Varuna era
um deus pertencente a primeira casta, isto é, os Brâmanes. Residia no
fundo do oceano e a sua representação é sempre em cima de animais
marinhos. Semelhante a um rei, o grande governante, ele é o responsável por desamarrar os nós que nos prende, além de governa todo o
universo comanda a noite e o dia. Enfim, é o que coordena a virtude, a lei
natural a retidão e a adequação. Contemple:
“[...] Segundo ELIADE, aos sacerdotes corresponde a divindade védica Váruna, que é o Samrāj, ou rei universal. É a divindade que ocupa
o lugar do par primordial Céu/Terra. Váruna faz o sol caminhar pelo
dia, e a lua pela noite, é o regulador das águas e das nuvens. Com
10
GNERRE, Op. Cit., p. 39.
250
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mil olhos, ele vê todas as coisas inclusive verdades e mentiras dos
homens. É o rei do ta a ordem cósmica, litúrgica e moral. Ao mesmo tempo, esta ordem universal está baseada em Váruna. Assim
governa tanto o universo quanto os rituais e a vida moral humana.
Por isso, Váruna é senhor dos homens, e alguns hinos mencionam
os grilhões que nos prenderiam a ele. O próprio Váruna, no entanto,
também instrui os homens (especificamente os sacerdotes) sobre
como se libertar, através dos rituais sacrificiais. Se Váruna é o governante, o rei universal, por vezes aparece junto do Deus Mitra, o
legislador benevolente, uma divindade que muitas vezes intervém
a favor dos homens, também associada aos Brâmanes.”11 (ELIADE,
apud, GNERRE, 2010)
Em conformidade com esta assertiva foi possível identificar como
este seres divino encontra-se presente nos rituais védicos. E para acessarmos a glória o ritual é importante, pois é por meio dele que os homens podem alcançar a liberdade dos laços impostos por ele. Talvez
este foi um meio que o deus colocou dos indivíduos se aproximar do
mesmo, entretanto, estas são apenas hipóteses que podem ser analisadas e pensadas em um outro momento.
Como vimos a base da cultura védica na sua maior parte foram os
rituais.12 Cada deus tinha uma função fundamental tanto para com o
universo, tanto para com os indivíduos. Os homens tinham esta preocupação em ir até o deuses e praticarem os ritos corretamente. Só que
estas práticas tornaram-se muito fatigante, ou seja, os homens só iam
aos deuses quando precisavam e esqueciam que o sacrifício ia além
da própria oferenda ofertada, por este motivo um grupo de indivíduos
revoltam-se com toda esta ritualística e dão início na Índia há um novo
movimento: os upanishads.
Uma parte dos brâmanes se retiram daquele ambiente e começam
a produzir uma outra forma de texto um pouco diferenciada dos veda.
Os brâmanes como já havíamos falando anteriormente fazia parte da
primeira classe da Índia, ou seja a classe dos sacerdotes. Desde modo,
alguns brâmanes cansados destes tipos de rituais retiram-se para floresta e buscar algo que estava além dos rituais védicos.
GNERRE, Op. Cit., p. 36
Os rituais védicos ainda estão sendo realizados na Índia, o que precisa ser analisado é o
movimento dos upanishads que revolucionar alguns grupos indianos.
11
12
251
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Assim sendo, os Upanishads é um transição da cultura védica, ou
seja, um desvios dos rituais sem uma verdadeira essência, muito embora eles tomasse como base os vedas.
Os upanishads é um conjunto de textos considerados sagrados e
com uma base de cunho filosófico que foram produzidos entre os anos de
1000 e 400 a.C., e eles são considerados um texto revelado. Neste mesmo período em que ocorre este movimento de reforma proposto pelos
Upanishads, ocorre também o movimento dos brâmanes que continuam
com a exegese contida no veda e não aderem a reforma dos upanishads,
ou seja, diferente destes brâmanes que foram para floresta, eles, os brâmanes, continuam valorizando os rituais. Outrossim, o budismo e o jainimo são os dois movimentos que rompem completamente com os vedas,
melhor dizendo, há uma discordância destes homens com as castas. Estes por sua vez buscaram uma base totalmente filosófica.
Os upanishads ficaram conhecidos como os livros da floresta em
virtude destes brâmanes estarem na floresta. Os seus ensinamentos
traziam a ideia dos discípulos sentarem aos pés dos mestres. Mas eis
que surge um questionamento: já que os upanishads rompem de certo
modo com os rituais védicos do que realmente eles estavam se desviando? Enquanto os veda seguiam o Dharma, os upanishads buscavam
o caminho do conhecimento. Para seguir este caminho seria necessário
uma renúncia do próprio eu, do próprio ego, já que para os ocidentais
o homem encontra-se preso nas garras de maya, isto é, na ilusão do
mundo, e, para que o ser rompa este véu faz-se necessário o conhecimento que só ocorre quando há uma peregrinação interior e não uma
peregrinação ao templo, pois neste novo movimento indiano o sacrifício
seria a negação de si mesmo.
O caminho do conhecimento: os upanishads
O caminho para o conhecimento pregado nos upanishads e seguido pelos brâmanes buscava um conhecimento interno, isto é, o sacrifício aqui é do próprio eu como dantes já havíamos mencionado. Para o
homem conseguir alcançar esta dádiva deveria seguir alguns passos.
252
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O primeiro passo a ser dado era o conhecimento de si mesmo. Embora o homem não tenha conhecimento de sua própria identidade há
uma realidade inegável para os indianos que só é possível conhece-la
conhecendo a si mesmo. Esta realidade é Brahman, aquele que estar
para além de todos os deuses. O homem deve então ir em busca de
algo cognitivo e vivencial, ou seja, deve ocorrer no ser humano uma libertação dos pensamentos dualistas e relativos para que ele vivencie o
próprio Brahman.
Um dos responsáveis para que o homem chegasse ao conhecimento de Brahman era o mestre. Mais quem é este Brahman? Brahman
para os hindus é a mente indecifrável, é o olho por trás do olho. Aquele
que acha-se presente em todos os lugares, o que conhece todas as coisas, conhece o passado, presente e futuro. E quando o homem conhece a si mesmo consegue alcançar Brahman. Um dos caminhos são as
técnicas introspectivas, aquilo que existe no homem desde o princípio
de sua existência, o atman, melhor dizendo, o próprio eu. Este conhecimento o faria símil a Brahman. Então o caminho seria perfeito, este é
em sim o caminho do entendimento.
O conhecimento deste caminho – Brahman – refletiria no próprio
homem, nas águas de um rio, em uma folha que repousasse no chão,
etc. Para mais, os deuses indianos é em suma uma das essências desde
deus supremo, Brahman. Brahman é único.
Os rituais é imprescindível para o povo indiano, mas o movimento dos Upanishads abriu caminho para o conhecimento do próprio divino, pois naquele período as liturgias não passava de mera ritualística.
Quando o movimento dos Upanishads chegou na Índia revolucionou a
maneira de pensar e de agir de muitos indianos que optaram morar nas
florestas e andaram em buscar do domínio da própria fera interior com
o objetivo principal de auferir o deus supremo. Este era um ritual não
exterior, mas interior. O próprio Eliade escreveu:
“[...] Pode-se dizer que, depois dos Upanixades, o pensamento religioso indiano identifica a libertação com um “despertar” ou com a
tomada de consciência de uma situação que existia desde o início,
mas que não chegava a realizar-se. A nesciência – que é de fato
uma ignorância de si mesmo – pode ser aproximada de um “esquecimento” do verdadeiro eu (atman, purusa). A gnose (jnama, vidya),
253
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
suprimindo a ignorância ou rasgando o véu de maya, torna possível a libertação: a verdadeira “ciência” equivale a um “despertar”.13
(ELIADE, 2011)
Considerações finais
O nosso objetivo principal foi mostrar o quanto a cultura ocidental,
especialmente a indiana, passou por uma grande mudança concernente
a forma correta de oferecimento de um culto para com o divino.
Avistamos que, tudo começou quando um povo denominado
indo-europeus chegam nas margens do rio Indo e acabam implementando um certo colonialismo para com um outro povo já existe, os drávidas.
A cultura destes últimos citados passa por uma espécie de transformação, pois eles acabam mudando sua forma de pensar e agir em virtude
deste acontecimento.
O ponto que marca o período védico para o período dos upanishads
foi uma forma de sacrifício interior e não exterior. É este é uma questão
que pode ser discutida por nós no que tange ao estudo comparado das
religiões, pois, quantas formas religiosas preocupa-se apenas com o
sacrifício exterior, ou seja, aquele hecatombe laborioso, que necessita
ser visto pelos outros, onde só é feito quando o homem procura apenas seus próprios interesses e que, quando suas preces são atendidas o
deus ou deuses é esquecido e não mais procurado. Os upanishads combateu isto! O sacrifício agora era do próprio ego, dos próprios desejos.
O combate devia ser interior e consequentemente haveria uma modificação do próprio exterior. Nesta mobilização o mistério maior seria revelado para aqueles que assim o buscasse.
Este mistério não era pluralista, mas carregava um significado ímpar: o conhecimento do próprio Brahman. E isto faria com que o homem
compreendesse que ele próprio estava ligado a Brahman, isto é, o próprio indivíduo era uma das essências desta divindade.
13
ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas, volume II. De Gautama Buda ao
triunfo do cristianimos. Tradução Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
254
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia
Sagrada. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa
Publicadora das Assembleias de
Deus, 1995.
ELIADE, Mircea. O sagrado e
o profano. Tradução: Rogério
Fernandes. 1. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
ELIADE, Mircea. História das crenças
e das ideias religiosas, volume II.
De Gautama Buda ao triunfo do
cristianismo. Tradução Roberto
Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro:
Zahar, 2011.
GNERRE, Maria Lúcia Abaurre. Os
arianos na Índia. In: GNERRE, Maria
Lúcia Abaurre. Religiões Orientais:
Uma introdução. Volume I: Tradições
da Índia – Do Veda ao Yoga. ed. 1.
João Pessoa: Universitária UFPB,
2010;
[ Volta ao Sumário ]
255
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
eduCação
inteRCultuRal
Como instRumento
de ComBate à
intoleRânCia Religiosa
Juscelio mauro de mendonça Pantoja
manoel vitor Barbosa Neto
Como referenciar este capítulo:
PANTOJA, Juscelino Mauro de Mendonça; NETO, Manuel Vitor Barbosa. Educação intercultural como instrumento de combate à intolerância religiosa. In:
MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020,
p. 256-282.
Juscelio Mauro de Mendonça Pantoja1
Manoel Vitor Barbosa Neto2
Introdução
Dentre os múltiplos desafios no qual a escola se depara, o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural é um deles. Por
muito tempo esta foi reprimida e invisibilizada, seja nos conteúdos, seja
nos materiais didáticos, ou na formação dos profissionais da educação.
Pouco ou quase nada se apresentava, ou se refletia a respeito da importância de outros povos e culturas, em especial as culturas indígenas e
africanas na formação da cultura brasileira.
Dentro do vasto campo da diversidade cultural trazemos para o
debate a questão da diversidade religiosa e intolerância, por entender
que estes temas não só se fazem presentes no espaço escolar como influencia no seu cotidiano e nas ações educativas. Entendemos que a escola não está dissociado das outras esferas da sociedade, ao contrário,
são complementares, portanto, a intolerância religiosa enquanto problemática evidente na atualidade não está fora dela. Entendemos ainda
que a escola em quanto espaço formativo da cidadania, da pluralidade e
da interculturalidade, é por excelência o lócus estratégico de onde deve
emergir posturas, pensamentos e ações que tenham no reconhecimento da interculturalidade, na valorização da diversidade e no combate a
intolerância religiosa suas prioridades, do mesmo modo, a escola que se
omite dessas características torna-se espaço em potencial de promoção da intolerância religiosa.
Entretanto, para a elaboração de estratégias pedagógicas e ações
educativas que visem o reconhecimento da pluralidade e o combate
Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará, membro do Grupo de Estudo de Religiões de
Matriz Africana na Amazônia – GERMAA. E-mail: jusceliocol@yahoo.com.br
2
Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará, membro do Grupo de Estudo de Religiões de
Matriz Africana na Amazônia – GERMAA. E-mail: neto_barbosa28@outlook.com
1
257
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
à intolerância consideramos ser necessário para a escola responder
questionamentos como: O que é etnocentrismo? O que é intolerância
religiosa? Quais as formas de manifestação? Que princípios pedagógicos são essenciais para um trabalho maduro, eficaz e profícuo contra a
intolerância religiosa?
A fim de respondermos a essas questões argumentamos que a
intolerância religiosa é uma forma de expressão etnocêntrica de grupos,
ou sujeitos que consideram seu modo de crer ou de não crer como a
única maneira correta, enquanto as outras estão erradas, precisam ser
ajustadas, ou em uma postura mais radical, precisam ser abandonadas.
Nesse contexto, apresentamos cinco formas pelas quais a intolerância
religiosa pode manifestar-se e a partir destas formas apresentamos e
analisamos casos exemplos retirados de jornais eletrônicos para mostrar como a intolerância religiosa também se manifesta na escola.
Ante esse quadro apontaremos a educação intercultural como estratégia pedagógica para a superação deste problema, uma vez que ela
se pauta no reconhecimento e na valorização da diversidade cultural e
no diálogo entre culturas onde estas são colocas em uma posição de
horizontalidade, ou seja, na educação intercultural não há culturas privilegiadas, todas são merecedoras de respeito e são reconhecidas como
importantes para o desenvolvimento do sujeito.
Percebemos a educação intercultural como uma via onde a diversidade religiosa pode ser conhecida e respeitada. Na interculturalidade a intolerância religiosa e as demais formas de expressão etnocêntricas podem
ser superadas por todos os atores que compõem o espaço escolar, através
dela, a educação como aspecto essencial para o exercício da cidadania é
possibilitada, respeitando inclusive as diretrizes constitucionais da educação, bem como o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos.
Etnocentrismo: força motriz da intolerância religiosa
Partimos do pressuposto que a intolerância religiosa é uma forma
de expressão etnocêntrica3. E sobre o etnocentrismo, nos sustentamos
3
Essa elaboração conceitual encontra-se na introdução do trabalho intitulado “Extensão
258
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
na ideia proposta por Rocha (1988, p. 5) que o classifica como “uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de
tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”. Nessa
perspectiva, etnocentrismo é uma postura hierarquizante diante do outro e sua etimologia já revela as informações e significados sobre: etno
(cultura, valores, significados) + centro (ponto de referência, espaço de
importância) + ismo (sufixo que pode indicar ideias, doutrinas, etc).
O etnocentrismo pode manifestar-se de múltiplas formas, pode
ser em relação aos valores, aos gostos, aos hábitos, às opções políticas,
às crenças ou a todos esses elementos, de todo modo, ele é sempre
uma forma de se pensar melhor que o outro, devendo este então se
adequar aos seus ideais de ser, pois o etnocentrismo rejeita a diversidade. Rocha (1988, p.5) informa que no etnocentrismo pensamentos e
sentimentos são afetados negativamente, inviabilizando a possibilidade
de se conhecer o outro. A esse respeito, o referido autor ressalta:
Como uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica temos a experiência de um choque cultural. De um lado, conhecemos
um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita
nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo estilo, distribui o
poder da mesma forma, empresta à vida significados em comum e
procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de repente, nos deparamos com um “outro”, o grupo do “diferente” que,
às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é
de forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, mais grave
ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela,
também está no mundo e, ainda que diferente, também existe.
Neste interim, como apontado no inicio deste texto, ao argumentarmos que a intolerância religiosa é uma forma de expressão do etnocentrismo, entendemos que ela inviabiliza e nega a diversidade religiosa. Ela é a não aceitação do outro e de sua experiência religiosa, seja
universitária e o combate à intolerância religiosa: o Grupo de Estudos de Religião de Matriz
Africana na Amazônia – GERMAA/UEPA e sua atuação a partir da Lei 10.639/03”.
259
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
pela negação de seu(s) deus(es), dos seus rituais, dos seus símbolos e
das suas doutrinas. É também a rejeição e não aceitação dos indivíduos
não crentes. Grosso modo, a intolerância religiosa como forma de expressão etnocêntrica caracteriza-se pela postura onde “o grupo do “eu”
faz, então, da sua visão a única possível ou, mais discretamente se for
o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do “outro” fica,
nessa lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível”
(ROCHA 1988, p. 5).
Ante essa lógica, Rocha (1988, p. 5) afirma que para a desconstrução
das posturas etnocêntricas se faz necessário “sabermos os mecanismos,
as formas, os caminhos e razões, enfim, pelos quais tantas e tão profundas distorções se perpetuam nas emoções, pensamentos, imagens e
representações que fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós”.
Nesse sentido, ao sinalizarmos que a intolerância religiosa é uma forma
de expressão etnocêntrica, nosso exercício é uma tentativa de compreender as ações de intolerância religiosa, partindo da premissa de que ela não
se expressa de uma única forma, e nem por um único tipo de agente, ao
contrário, pode expressar-se de múltiplas formas, bem como o intolerante pode ser qualquer social, desde parentes de sangue, indivíduos com os
quais convivemos até de representantes da justiça4.
A fim de ilustrarmos essa afirmativa apresentamos dados de denúncias de intolerância religiosa no Brasil através do Disque 1005, que
mostram que de 2011 ao primeiro semestre de 2018 pessoas com os
mais diversos graus de relação com as vítimas realizaram atos de intolerância religiosa. Dentro do universo de denúncias apresentadas pelo
relatório, em 82 casos a mãe foi a responsável por essa violência; em
26 casos foi seu(sua) empregador(a); e ainda, em 727 casos, a pessoa
responsável era vizinho(a) da vítima6.
Para além dessas informações contidas no relatório há um vasto
conteúdo de matérias jornalísticas que abordam a questão da intolerânAinda no artigo citado anteriormente via nota de rodapé apresentamos e analisamos
casos de intolerância religiosa que partiram desde profissionais da educação, da sociedade civil organizada até de juízes no exercício da magistratura.
5
Informações a respeito do Disque 100 serão desenvolvidas no próximo tópico deste artigo.
6
Dados disponíveis em: <https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/
balanco-disque-100>. Acesso no dia 04/03/19.
4
260
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
cia religiosa, por exemplo: o que ocorreu em 2015, quando uma jovem
candomblecista foi apedrejada na cabeça7; ou o caso das islâmicas que
foram apedrejadas e cuspidas dias depois do ataque terrorista na França8; ou ainda o caso do “chute na santa” ocorrido em 1995 quando um
pastor da Igreja Universal do Reino de Deus em plena pregação chuta
uma imagem de Nossa Senhora Aparecida9.
Face ao exposto, considerando nosso aporte conceitual sobre intolerância religiosa como uma expressão etnocêntrica que pode se manifestar de diversas maneiras, classificamos cinco formas pelas quais
intolerância religiosa pode ser manifestada/percebidas:
a)
Fundamentalismo Religioso: é a postura de intolerância religiosa contra todas as formas de crenças e não-crenças. Essa
é a mais radical forma de intolerância, nela todas as formas
de crer e não crer são depreciadas e rejeitadas e as experiências religiosas diferentes da religião predominante estão
erradas e são perigosa e todos não deveriam segui-las, uma
vez que são falsas e precisam ser abandonadas. Segundo
Paine (2010) o fundamentalismo religioso caracteriza-se
por: subjetivismo fechado; fideísmo radical, fé ou submissão
a uma autoridade religiosa como fonte exclusiva ou predominante de certeza epistemológica; literalismo na interpretação de escrituras; e tendência a medidas radicais, à militância
e até ao terrorismo na busca efetiva dos seus fins.
b) Intolerância religiosa seletiva: essa forma se caracteriza
pelo fato de que somente algumas religiões são alvos de
intolerância, porque para a religião predominante “o problema não são todas as religiões, mas apenas algumas”. No
A esse respeito ler a matéria: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/vitima-de-intolerancia-religiosa-menina-de-11-anos-apedrejada-na-cabeca-apos-festa-de-candomble-16456208.html>. Acessado no dia 04/03/19.
8
A esse respeito ler a matéria: <https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2015-01-25/
islamofobia-no-brasil-muculmanas-sao-agredidas-com-cuspidas-e-pedradas.html>.
Acessado no dia 04/03/19.
9
A esse respeito ler a matéria: <https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/ooops/2017/09/11/pastor-chutou-imagem-da-santa-em-1995-e-causou-revolta-no-pais.htm>. Acessado no dia 04/03/19.
7
261
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
c)
Brasil, as religiões que mais sofrem com essa realidade são
as afrobrasileiras e as indígenas, sendo que as primeiras são
alvos recorrentes de depredação de seus espaços de cultos e
perseguição dos seus adeptos, enquanto que os adeptos das
segundas desde o período colonial são alvos de missionamentos e conversões a uma “verdadeira fé”.
Nesta forma de intolerância religiosa, tanto o discurso quanto os rituais da religião predominante são utilizados como
ferramentas para justificar a perseguição, o desrespeito e a
dessacralização das religiões perseguidas, por se acreditar
que determinadas religiões deveriam ser abandonadas, mas
não havendo esta possibilidade, seus praticantes deveriam
ao menos ressignificar seu(s) deus(s), mudar suas formas
de culto, reelaborar seus rituais, trocar seus símbolos e suas
doutrinas, considerados pela religião predominante como
danosos, ingênuos (a crença não funciona), ou charlatãs (que
utiliza de má fé para enganar o ingênuo), ou que “pratica o
mal” (demoníaca).
Intolerância civil-religiosa: essa forma de intolerância se
expressa principalmente através de valores civis como proteção dos animais, do meio-ambiente, da vigilância sanitária,
da defesa da vida humana e da garantia da ordem social em
que a religião predominante se utiliza desses mecanismos
legais para limitar, engessar, tolher e não reconhecer o direito à Liberdade Religiosa do outro. Essa forma de intolerância
religiosa tem aproximações com a anterior, pois nela perpassa a ideia que as formas de crer diferentes da predominante
estão errada, são danosas, prejudicam o Estado Democrático de Direito e precisam ser ajustadas, ou até abandonadas.
Ainda nessa forma, as justificativas da intolerancia estão
baseadas no discurso legal, que vai desde a “violação da laicidade do Estado e da liberdade de culto10” até em nome da
“proteção dos direitos dos animais”11.
A esse respeito ler Nogueira (2013). Disponível em: <http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal14/Geografiasocioeconomica/Geografiacultural/07.pdf>. Acessado no dia 15/03/19.
11
A esse respeito ler Oro, Carvalho e Scuro (2017). Disponível em: <http://www.scielo.br/
pdf/rs/v37n2/0100-8587-rs-37-2-00229.pdf>. Acessado no dia 15/03/19.
10
262
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
d)
e)
Intolerância intrarreligiosa: essa forma de intolerância religiosa é expressa de uma pessoa para outra da mesma
religião, ou da mesma matriz religiosa. Essa forma de intolerância está envolto da ideia que “eu” sou mais obediente
aos interditos, sou mais conhecedor das doutrinas e da(s)
divindade(s) e da correta realização dos rituais que o outro.
Ou ainda que a forma do outro pensar e obedecer os interditos, o conhecimento dele sobre a(s) mesma(s) divindade(s),
da(s) mesma(s)doutrina(s) e as formas de realizar os rituais
está errada, ou não é a “tradicional”, a “pura”, ou está “inventando”, enfim, não é a correta. Nesse tipo de intolerância
tem-se como pano de fundo o ideal de pureza e tradição e
com isso outro precisa se ajustar a minha forma se quiser
viver a “verdadeira fé”.
Fundamentalismo da não crença contra todas as crenças:
em relação à primeira, essa forma de intolerância, ao mesmo tempo em que se parecem no objetivo, diferenciam-se
na justificativa, uma vez que nesta, todas as formas de crenças não são respeitadas e devem ser superadas para que se
conheça uma possível “verdade absoluta”. É uma espécie de
fundamentalismo não-religioso que parte da ideia de verdade absoluta muito característica do fundamentalismo religioso. Paine (2010), no estudo sobre fundamentalismo religioso e fundamentalismo ateu, indica que ambos possuem as
mesmas características, mudando somente os referenciais
onde a ideia de verdade absoluta recai: enquanto no primeiro
fundamentalismo estaria a religião, no segundo estaria nas
informações produzidas via conhecimento científico.
As classificações apresentadas são em suma uma construção
feita em vista de compreender a diversidade e complexidade que é a
intolerância religiosa. Acreditamos que, com exceção das formas de
intolerância expressas nos itens ‘a’ e ‘e’ que se pretendem totalizantes, as demais formas de intolerância podem tranquilamente perpassar um mesmo sujeito ou a mesma situação. Faz-se necessário lembrar nesse ponto do texto que entendemos o etnocentrismo como uma
263
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
postura onde está envolvida razão e emoção, sentimento e pensamento, ocasionando aversão, negação e não aceitação do outro – no caso
aqui analisado – da dimensão religiosa do outro pelo fato de perceber
nesta uma afronta a sua forma de ser que precisa no mínimo ser “ajustada”. Em situações mais radicais essa dimensão religiosa precisa ser
completamente abandonada.
Outra questão que é importante frisar ao considerarmos estas formas de intolerância religiosa é que elas se referem justamente ao modo
como são externadas pelo agente/agressor a partir de seus discursos
e de suas posturas ante o diferente, o não-igual, o oposto, o outro. Rocha (1988) afirma que o pensamento e o sentimento etnocêntrico estão
justamente em perceber o outro a partir de sua lógica, ou percepção de
existência, nesse contexto, para nós, a intolerância religiosa baseia-se
na relação eu X outro; o meu grupo X o outro grupo; minha existência X a
existência do outro; a minha experiência religiosa X a experiência religiosa do outro, de modo que as formas de intolerância apresentadas partem sempre da ideia que ela será manifestada. São formas de violência
que tem no plano do discurso e no da agressão física, ou depredação
patrimonial (principalmente no primeiro) são seus principais meios de
manifestação e para nós as principais formas para decodificá-las.
Para além dessas questões, a intolerância religiosa, independente
da sua forma e do seu responsável, possui dupla característica: é produto e produtora de estigmas, é causa e consequência da estigmatização
de sujeitos e grupos. Sobre o estigma, Goffman (1964, p. 5) esclarece:
Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais,
criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os
quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou
mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram
feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era
um escravo, um criminoso ou traidor uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares
públicos. (grifo nosso)
Nessa perspectiva, o ato de intolerância religiosa é a manifestação da rejeição que determinado agente tem em relação ao outro no
que tange a experiência religiosa ou a ausência dela. O estigma é uma
264
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
condição negativa imposta ao outro através da noção que se tem a respeito dele e essa marca, fruto do etnocentrismo, está presente em todas as sociedades. No caso da sociedade brasileira, ao considerarmos
as religiões de matriz africana e indígena, devemos lembrar que todo o
processo de colonização foi marcado pela tentativa de supressão dessas religiões vistas como “demoníacas” e que precisavam ser abandonadas, pontuando inclusive, que no desenvolvimento da história do Brasil houve – e ainda há – momentos e mecanismos de perseguição para
extirpar estas práticas da sociedade.
No caso das religiões de matriz africana que se desenvolveram na
urbe houve inúmeras tentativas de controle de suas práticas mesmo independente do regime político brasileiro, como no período republicano,
por exemplo, onde se desenvolveu uma série de leis – chamadas de “códigos de postura” – em que parte de seu conteúdo proibia as manifestações religiosas de matriz afro pela “proibição de barulhos e batuques”,
bem como a proibição da cura através do enquadramento dessas práticas
religiosas ao “charlatanismo”, “prática ilegal da medicina”, etc., como mostra. Essa segunda proibição também afetou sobremaneira as práticas religiosas de matriz indígenas, a pajelança, faziam-se presente nas urbes.
Outro elemento que diz respeito exclusivamente às práticas indígenas, e
que permanece até os dias atuais, são as ações chamadas missionamentos, em que as religiões cristãs, em especial a católica e as evangélicas
adentram territórios indígenas para convertê-los demonstrando, portanto, atitudes dos tempos coloniais presentes em pleno sec. XXI.
Shilling e Myashiro (2008, p. 250) ao tratarem sobre o estigma –
ainda que em outro contexto – no caso estudado, a parentes de presidiários e ex presidiários, inferem que é preciso atentar para o contexto
e para a linguagem que permeia a relação dos indivíduos nos diferentes
grupo, uma vez que as autoras, o que designará a condição de estigmatizado ou não, é “o contexto sociocultural e de relações em que essa
informação é fornecida ou visível”. Nesse sentido, a estigmatização das
religiões e/ou dos sujeitos religiosos, bem como de sujeitos não crentes
precisam ser compreendidas considerando a história das relações sociais que possibilitaram tal imposição as esses sujeitos.
A forma como a intolerância religiosa possa a vir se manifestar é
múltipla: piadas, agressões físicas, destruição de espaços ou símbolos
265
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
sagrados, a profanação, ou em casos extremos, a morte. Seus promotores também são diversos: pode ser a mãe, o irmão, o vizinho, o líder
religioso, agentes públicos, ou representantes do Estado.
No contexto deste trabalho, apontamos como lócus da intolerância religiosa a escola e como agentes promotores desta ação profissionais e outros sujeitos que fazem parte desse universo. Sem sombra de
dúvidas é muito preocupante para nós apontarmos a escola como lócus
dessa violência, uma vez que este espaço e seus sujeitos deveriam ser
incentivadores ou beneficiários de processos educativos que viabilizem
a formação profissional e cidadã ao invés de tornarem-se promotores
da intolerância religiosa como apresentaremos a partir de dados e notícias casos que atestam a presença desse tipo de violência.
Intolerância religiosa nas escolas
No âmbito legal, a educação no Brasil, é um dever do Estado
(CF 1988, art. 205); tendo como um de seus princípios o desenvolvimento das pessoas para a prática cidadã (CF 1988, art. 205); assegurada como uma das garantias fundamentais que não pode privar ninguém
desse direito por causa de sua opção religiosa (CF 1988, art. 5, inciso
VIII). No entanto, esses princípios legais que deveriam nortear todo processo educativo escolar têm se deparado com a intolerância religiosa,
ainda que esta não seja um problema restrito deste universo. A escola
é somente mais um dos múltiplos espaços onde ocorrem essa e outras
problemáticas.
A intolerância religiosa na escola não é um tema novo em relação a produção científica, diversos pesquisadores em algum momento
ou contexto já se debruçaram sobre esta questão: Silva Júnior e Santos
(2016), por exemplo, no trabalho intitulado “Por mim não existiria, mas
eu respeito”: representações sociais do Candomblé entre alunos de uma
escola pública do Recife”, realizaram uma pesquisa de caráter qualitativo com 80 alunos do 3º ano do ensino médio para saber as percepções
dos mesmos a respeito do Candomblé. Os autores, dentre os discursos
por eles encontrados estão os que associam o Candomblé ao “mal, a
266
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
tragédia, uma mentira, uma coisa ruim, a morte, a falsidade, o perigo, a
maldade, o instinto ruim, etc.” (SILVA JÚNIOR e SANTOS 2016).
Em outro contexto, Albuquerque (2015) apresenta a pesquisa:
“Narrativas orais sobre religiosidade e saberes escolares no município
de Colares (PA)” onde entrevistou professoras da rede municipal de ensino para saber como as mesmas abordam em sala de aula temáticas
relacionadas a religião, em especial a pajelança. Analisando as entrevistas, a pesquisadora percebeu que os professores não gostam e se
negam a abordar temáticas relacionada as religiões de matriz africana e
indígena, justificando que “causa conflito na sala”, ou porque “é católica”
e por isso desconhecem a temática. As razões apresentadas dificultam
o estudo da religião característica do local (pajelança), herança da cultura indígena presente na ilha em detrimento das religiões cristãs que
lá se instalaram.
Os trabalhos supracitados mostram, considerando suas especificidades, mostram como a diversidade religiosa ainda é alvo de controvérsias no ambiente escolar. Não queremos com esses exemplos sugerir que esse é o panorama brasileiro, todavia, indicar que há produções
acadêmicas que têm se debruçado sobre a temática, convergindo e reverberando que as estatísticas tem apontado: a escola não está isenta
de ser palco de casos e atos de intolerância religiosa.
Entretanto, não devemos olhar e acolher essa realidade com
naturalidade, ao contrário, frente a mesma, o incômodo, o mal estar,
a insatisfação e o desejo de superação dessa condição devem ser os
sentimentos norteadores e imperativos de todos os profissionais da
educação, bem como de toda a comunidade escolar, uma vez que a educação, partindo de um ponto de vista pragmático, suas atribuições devem partir sempre do pressuposto da efetivação do que está preconizado na Constituição Federal Brasileira, bem como pela LDB 9.394/96 que
entende que a educação deve estar pautada dentre outras coisas pela
liberdade e solidariedade (art. 2) e pelo apreço à tolerância (art. 2 inciso
IV) e ainda o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA que assegura às crianças e adolescentes todos os direitos fundamentais (art. 3),
uma a educação que prima pelo desenvolvimento formativo e cidadão
(art. 53), bem pela proteção dos seus valores culturais, artísticos e históricos (art. 56).
267
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Diante desse quadro legal, os processos educativos precisam garantir o respeito e valorização da diversidade religiosa, uma vez que faz
parte da vida dos educandos, sejam eles adeptos ou não de uma religião.
Partindo dessa premissa, se faz importante desenvolver ações efetivas
para o combate a intolerância religiosa na escola. Para isso, deve-se primeiramente conhecer a realidade educacional brasileira diante dessa
problemática e nesse contexto, as informações disponibilizadas pelo governo federal através do disque denúncia de violações de direitos humanos torna-se uma ferramenta válida como ponto de partida investigativo
que auxilie na elaboração consistente e eficiente destas ações.
No ano de 2003, como mecanismo de monitoramento de ações de
violação de direitos humanos, o Governo Federal, por meio da Secretaria
de Direitos Humanos passou a acompanhar de forma mais próxima e
efetiva denúncias relacionadas à violação de direitos12 a partir do chamado Disque 100, um canal de denúncia criado para estreitar e potencializar um espaço de escuta e atenção às vitimas. Porém, foi somente
a partir do ano de 2011 que esse espaço passou a acolher, monitorar e
divulgar relatórios sobre violações da liberdade de crença, bem como
acompanhar os casos de intolerância religiosa, de modo que de 2011
até o primeiro semestre de 2018 consta na base de dados do Governo
Federal o registro de 1.70613 casos de intolerância religiosa denunciados nesta plataforma.
Entretanto, considerando que nem sempre a vítima de intolerância
religiosa realiza a denúncia através desse canal e que há casos em que
aqueles que sofreram esse tipo de violência optam em manter-se em
silêncio é pertinente considerar que o quadro de violações de direitos e
de intolerância religiosa é bem mais profundo e grave do que aparenta.
E, ao olharmos de forma atenta aos dados do Disque 100 é possível apontar as escolas como lócus de reprodução desse tipo de violação
de direitos pelo fato de se perceber que naquele mesmo período, 109
casos denunciados davam conta destas como o local em que essa viola-
12
Saber mais em: < http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-3.html>. Acesso no dia
05/03/19.
13
Dados de denúncias feitas através do Disque 100, disponível em: <https://www.mdh.
gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/balanco-disque-100>. Acesso no dia 04/03/19.
268
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ção ocorreu e mais ainda, no que se refere a relação “vítima x agressor”
os diretores de escola foram identificados em 42 denúncias como os
agentes de promoção da intolerância religiosa, seguidas de 72 denúncias relacionando os professores como autores desse tipo de crime, o
que totalizou 114 denuncias apontando os profissionais da educação
como agentes promotores dessa forma de violação de direitos.
A princípio, podemos até pensar em erro na amostra, uma vez que
são 109 casos denunciados na escola para 114 denúncias de diretores
e professores como autores de intolerância, todavia, quando partimos
do princípio de que no caso de intolerância religiosa nem sempre é fácil
para a vítima conseguir dar tantos detalhes sobre essa violação, este
fato torna-se pequeno ante o cenário sem deixar de evidenciar as nuances que envolve a questão – não sendo interesse deste trabalho, cobrar
ou dar sugestão para o aperfeiçoamento da catalogação das denuncias
de intolerância -, de que a escola precisa direcionar atividades que visem o combate e a superação desta problemática.
Destarte, considerando esse quadro de intolerância religiosa no
ambiente escolar, realizamos uma pesquisa em sites de notícias que
publicaram matérias sobre casos concretos que envolviam essa temática. Essa ação ocorreu nos dias 5 e 6 de março de 2019, sendo possível
encontrar cinco notícias entre os anos de 2014 e 201714 os quais descreveremos a seguir:
A primeira notícia encontrada foi publicada no site odia.ig15 no dia
02/09/14 com a chamada “Aluno barrado por usar guias de candomblé
muda de escola”. Na matéria é relatado o fato de um aluno, na época
com 12 anos, ter sido vítima de preconceito depois que se converteu
ao Candomblé, tendo sido durante um mês impedido pela diretora de
adentrar e frequentar a escola publica.
Ressaltamos os casos apresentados aqui foram reportado também por outros jornais
eletrônicos, no entanto, escolhemos para apresentar nesse artigo as notícias que mais
detalhavam em seu conteúdo a intolerância religiosa sofrida, pois essas notícias serviram
de base para fazer a correlação entre a ação de intolerância com a forma de intolerância
religiosa que apresentamos no tópico anterior.
15
Link da notícia: <https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2014-09-02/
aluno-barrado-por-usar-guias-de-candomble-muda-de-escola.html>.
14
269
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A segunda notícia encontrada foi publicada no dia 12/02/15 ainda
no site odia.ig16 e dava conta do caso de uma aluna de 11 anos que foi
proibida de assistir a aula de uma professora pelo fato de estar usando
um contra-egum17 no braço. Segundo relata a matéria, a professora justificou sua postura argumentando que aquele elemento utilizado pela
aluna não fazia parte do uniforme da instituição e por isso a mesma não
poderia permanecer em sala de aula.
O terceiro caso de intolerância religiosa foi noticiado em uma matéria publicada pelo site extra.globo18 no dia 30/09/15 com a chamada
“Estudante agredida por intolerância religiosa dentro de escola não quer
voltar ao colégio” e relatava o caso de uma aluna de 14 anos que foi agredida por uma colega de turma em uma escola pública de Curitiba-PR,
um dia depois de ter publicado em sua rede social uma foto que evidenciava a sua adesão religiosa.
O quarto caso foi noticiado no dia 23/11/2016 no diarioonline19 em
matéria intitulada “Diretora proíbe tema de religião de alunos” e trata de
um caso ocorrido no Estado do Pará, no município de Ananindeua, região
metropolitana de Belém. Uma diretora de uma escola privada proibiu um
grupo de alunos de apresentar um trabalho que falaria sobre uma divindade afrorreligiosa, a Pomba-Gira. Segundo a notícia, a diretora da escola
justificou a proibição da atividade por a sua escola ser de “orientação cristã”. Ao ser questionada pela reportagem argumentou sua proibição dizendo que: “os pais reclamam da Umbanda” e que “ouvia comentários que a
entidade traz problemas para as pessoas ligadas a ela”.
O quinto caso foi encontrado também no site extra.globo20 com
a notícia publicada no dia 22/08/17 intitulada “Jovem é vítima de intolerância religiosa dentro de escola em São Gonçalo”. Na publicação, a
16
Link da notícia: <http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-02-11/intolerancia-religiosa-afasta-professora-de-escola-na-praca-seca-na-zona-oeste.html>
17
Bracelete de proteção espiritual utilizado por afrorreligiosos.
18
Link da notícia: < https://extra.globo.com/noticias/brasil/estudante-agredida-por-intolerancia-religiosa-dentro-de-escola-nao-quer-voltar-ao-colegio-17650415.
html#ixzz3pjJlizYv>
19
Link da notícia: <http://www.diarioonline.com.br/noticias/para/noticia-386545-diretora-proibe-tema-de-religiao-de-alunos.html>.
20
Link da notícia: < https://extra.globo.com/casos-de-policia/jovem-vitima-de-intolerancia-religiosa-dentro-de-escola-em-sao-goncalo-21734126.html>
270
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
matéria relata o caso de uma jovem de 15 anos, aluna de uma escola
pública do Rio de Janeiro que foi ofendida por parte de seus colegas de
sala por causa de sua adesão religiosa. Ao buscar se defender dos ataques e ofensas dos colegas de turma, a aluna acabou sendo expulsa da
sala de aula pela professora.
Buscando relacionar os casos noticiados com as formas de intolerância religiosa apresentadas no tópico anterior, percebemos que tanto o
primeiro quanto o segundo caso expressam claramente – e assim podem
ser entendidos – como uma ação de intolerância civil-religiosa pelo fato
de que tanto a diretora quanto a professora justificaram seus atos intolerantes apontando que as guias (primeiro caso) e o contra-egum (segundo
caso) eram elementos que não faziam parte do uniforme escolar. As profissionais em questão usaram o discurso da guarda da ordem e do respeito à regra como elemento justificador tanto para a proibição da entrada
do aluno, quanto para a expulsão da aluna da sala de aula.
Faz-se necessário ressaltar então que quer as guias, quer o contra-egum, não são simples adereços estéticos como um brinco, uma
tornozeleira, uma pulseira, um anel, um batom, etc., são elementos fazem parte dos ritos iniciáticos e litúrgicos das religiões afrobrasileiras e
que não foram respeitados tanto pela diretora quanto pela professora.
O terceiro, quarto e quinto caso expressam de forma contundente
a intolerância religiosa seletiva, ação em que uma religião é tomada
como prática que deve ser abandonada por ser entendida como promotora do mal, assim como aquele que a pratica, e por essa motivação
deve ser combatida, rechaçada. Esta ideia foi muito bem expressada no
terceiro caso noticiado onde a aluna que agrediu fisicamente a vítima
justificou que sua intolerância religiosa foi motivada pelo fato de não
querer nem sentar e nem ficar perto de sua colega porque ela “era da
macumba”. No quarto caso, onde a diretora dentre suas justificativas
informa que a proibição da realização do trabalho escolar sobre a Pomba-Gira, divindade afrobrasileira, fora motiva pelo fato de ter ouvido
comentários do tipo: “ ela trás diversos problemas”, mesmo tendo reconhecido não tem conhecimento sobre a religião na qual esta divindade
é cultuada. E ainda no quinto caso, onde a jovem, vítima de intolerância relatou que teve que ouvir muitos comentários, insultos e ameaças,
dentre estas, a sentença: “macumbeiro tem que morrer”.
271
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Os casos apresentados são muito elucidativos na compreensão
da intolerância religiosa como forma de expressão etnocêntrica, apontada por ROCHA (1988, p. 5) quando argumenta que o etnocentrismo
“no plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos
a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo,
hostilidade, etc.”. É válido indicar que no caso de atos de intolerância religiosa, seja ela qual for e de quem parta, seu combate deve partir do
pressuposto de que ela enquanto expressão do etnocentrismo torna o
sujeito míope ante a diferença, acabando o mesmo por criar uma relação de hierarquia onde o outro é subjugado se não abandonar seus
referenciais para acolher os referenciais do seu agressor.
Assim sendo, consideramos a intolerância religiosa como uma
rejeição a dimensão religiosa do outro, em que para o(a) intolerante
religioso(a), o que é diferente precisa se adequar e se isso não ocorrer, o sujeito intolerado torna-se vítima de agressões físicas, verbais, ou
sanções travestida de legalidade, como no caso dos alunos que foram
impedidos de entrar na escola. De certo, a intolerância religiosa como
expressão etnocêntrica, tem no seu cerne o desconhecimento e a não
aceitação do outro(a) e de tudo o que se refere a ele, também sua dimensão religiosa.
Os casos apresentados ilustram bem as faces da intolerância religiosa nas escolas, sabemos que tanto o numero de casos, quanto o de
notícias sobre, deve ser bem maior do que os que apontamos, porém,
como nossa intenção com estas informações é provocar a percepção de
que podem ser diversos os atores que no universo escolar tornam-se
promotores da intolerância religiosa, esses números já nos auxiliam.
Nos casos que apresentamos, alunos, professores e diretores foram os
executores desse tipo de violação de direito, demonstrando não somente necessárias e urgentes ações e intervenções educacionais, mais que
isso, opções pedagógicas claras, seguras e inspiradores de combate à
intolerância e que envolvam todos os componentes da comunidade escolar, uma vez que a escola, sem dúvida, pelas suas atribuições é um
espaço por excelência para a superação desta problemática.
Face ao exposto, concluímos que se a escola se omite na valorização da diversidade religiosa e no combate a intolerância toda a comunidade escolar é vítima e/ou agressora em potencial de atos de
272
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
intolerância religiosa. Em contrapartida, acreditamos que a educação
intercultural é uma postura pedagógica que possibilita o respeito à diversidade e o combate a qualquer postura intolerante, especialmente as
que se referem ao fenômeno religioso.
A educação intercultural como instrumento de
combate à intolerância religiosa
Em linhas gerais, a religiosidade ou a experiência religiosa é compreendida como uma dimensão do ser, cujo cultivo e valorização são
necessários como forma de realização da pessoa humana, convocando
então, a necessidade de ser olhada como parte dos pressupostos e das
propostas educativas, uma vez que a educação é vista como um dos
processos para o desenvolvimento humano.
Ao se considerar a perspectiva da religiosidade se torna impossível
falar do Brasil sem lançar mão da pluralidade do seu campo religioso,
com suas manifestações, crenças e ritos. Todavia, quer a questão da diversidade e quer a da liberdade para ser praticante de determinada matriz ou para assumir formas de práticas ou cultos em determinadas religiões, ainda são temas de discussão que transpassam o espaço escolar
e tomam tempo, caminhos e interpretações diversas no espaço jurídico
brasileiro, apesar de a valorização da dignidade humana e da diversidade religiosa estar assegurada no artigo 18º da Declaração Universal dos
Direitos Humanos como direito fundamental. Este artigo preconiza que
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou
crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. (Art. 18. Declaração Universal
dos Direitos Humanos. ONU, 1948).
Apesar ainda, de Constituição Brasileira de 1988, no seu artigo
5º, declarar inviolável a liberdade de consciência e de crença e livre o
exercício da adesão religiosa, uma vez que o Brasil é constituído por um
273
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mosaico religioso na qual se expressa a diversidade de fé e de ser consenso que desde sua formação, caracterizou-se antagonicamente num
processo que envolveu as culturas européia e indígena; européia e africana, africana e indígena, (FREYRE, 2004, p.116).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira 8.069/90 é uma
das primeiras a no seu Título II, inciso IV, art. 3º, explanar a ação educativa baseada no “respeito à liberdade e apreço à tolerância”, fazendo
a educação escolar buscar se entender e se compreender como um espaço sociocultural e institucional responsável pelo trato pedagógico do
conhecimento e da cultura, se inserindo aqui os aspectos religiosos. Já o
Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007, p. 25) buscou
de forma contumaz a formação do sujeito de direitos nas dimensões de
valores, atitudes e práticas sociais para “exercitar o respeito, a tolerância, a promoção e a valorização das diversidades [...] e a solidariedade
entre os povos e nações”.
Entretanto, conforme apresentamos nos tópicos anteriores – sinalizando inclusive, com dados estatísticos e casos noticiados – nos
parece que o espaço escolar nos últimos tempos tem se tornado campo
minado para praticas e ações de intolerância religiosa, despercebidas
pelo fato de encontrarem-se mascaradas e serem vistas somente no
momento em que se incitam debates ou outras ações sobre o assunto, a desvelar o preconceito e a falta de conhecimento sobre as várias
crenças religiosas e tornando notório que esta também se manifesta
no cotidiano escolar, uma vez que “o preconceito faz parte do nosso
comportamento cotidiano [...] e a sala de aula não escapa disso” (ITANI
1998, p.119). Para Milani (2013, p. 18615), no espaço escolar,
[...] defrontamo-nos com várias situações que deixam transparecer
a resistência ao diferente. A questão religiosa aparece não apenas
como pano de fundo para grandes guerras e inúmeros conflitos
sociais, mas também exerce intervenção sobre o comportamento
social das massas, com estreita relação com nossa vida familiar, escolar, social e até mesmo política.
Assim sendo, faz-se necessário desenvolver na escola ações que
envolvam a comunidade escolar no combate a intolerância religiosa, principalmente a partir de práticas pedagógicas que oportunize o
274
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
debate e a reflexão sobre a diversidade cultural e religiosa e estimule
a compreensão e o entendimento da escola enquanto espaço da interculturalidade, a fim de se construir e programar processos educativos
que promovam o respeito às diferenças étnicas, raciais, culturais, linguísticas, de gênero, etc. e se possibilitar a formação de cidadãos conscientizados de seu papel na sociedade sedimentada numa democracia
intercultural e altera.
Deveria ser um princípio norteador elaborar propostas e práticas
alicerçadas numa pedagogia difusora não somente das liberdades individuais e coletivas dos indivíduos, mas também das identidades e das
diversidades culturais que considera a perspectiva interdisciplinar, facilita o estreitamento das relações, oportuniza convívio com a diferença e
gera novas formas de ler e compreender o mundo.
Ante esse cenário, apontamos a educação intercultural como um
campo conceitual amplo para se entender as diversidades culturais e a
interação entre os sujeitos. Fleuri e Souza (2003, p. 73) a definem como
a possibilidade do pensar e do olhar de forma diferenciada, sem exclusão e nem preconceitos. Para eles, “a Educação Intercultural, não sendo
uma disciplina, coloca-se como uma outra modalidade de pensar, propor,
produzir e dialogar com as relações de aprendizagem, contrapondo-se
àquela tradicionalmente polarizada, homogeneizante e universalizante”.
A educação intercultural apresenta-se ainda, como um espaço
propício para favorecer e possibilitar práticas e ações pautadas na promoção do encontro entre culturas e do diálogo entre saberes, onde a
escola passa a ser concebida como espaço democrático de aprendizagens e que segundo Candau (2012, p. 242), “aponta à construção de
sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da democracia e sejam capazes de construir relações novas, verdadeiramente
igualitárias entre os diferentes grupos socioculturais”. Para esta autora,
a interculturalidade “fortalece a construção de identidades dinâmicas,
abertas e plurais, [...] estimula os processos de construção da autonomia num horizonte de emancipação social, de construção de sociedades
onde sejam possíveis relações igualitárias” (CANDAU, 2012, p. 245).
Assim sendo, respeitar a diversidade, incentivar a comunicação
entre os grupos em posição de igualdade e promover o intercâmbio
de conhecimentos, saberes e práticas culturais são pressupostos da
275
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
educação intercultural, que em sua essência objetiva “promover uma
educação para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais [...] e favorecer a construção de um
projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente incluídas”
(CANDAU, 2008, p.23).
Na articulação entre identidade e diferença – faces da mesma
moeda – estampadas na construção das relações de pertencimento e
de presença do sujeito de direitos com lugar definido nos espaços de
convivência humana, a escola se demarca como um destes e a compreensão do que significaria ações interculturais frente a valorização
das diferenças nesta, é de que elas ensejam tanto processos educativos
com vista ao reconhecimento da pluralidade cultural em busca de uma
sociedade baseada no respeito às diferenças, quanto à valorização da
mesma enquanto espaço privilegiado na construção da identidade, conforme indica o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007,
p. 31) quando aponta:
Nas sociedades contemporâneas, a escola é local de estruturação
de concepções de mundo e de consciência social, de circulação e de
consolidação de valores, de promoção da diversidade cultural, da
formação para a cidadania, de constituição de sujeitos sociais e de
desenvolvimento de práticas pedagógicas.
Nesse sentido, o PNEDH (2007) assegura que uma educação intercultural pressupõe “reconhecimento da pluralidade e da alteridade,
condições básicas da liberdade para o exercício da crítica, da criatividade, do debate de ideias e para o reconhecimento, respeito, promoção e
valorização da diversidade”.
Entretanto, para que esse processo ocorra e a escola possa de fato
contribuir para a educação intercultural é preciso superar desafios estruturais, ao ponto que garantir igualdade de oportunidades, participação e autonomia aos membros da comunidade escolar, bem como promover situações que possibilite o reconhecimento entre os diferentes e
a desconstrução de visões e atitudes que colocam uns em situações de
melhores, verdadeiros, autênticos e válidos, em detrimento de outros.
Outro desafio é efetivar e promover processos sistemáticos de interação com os “outros”, sem caricaturas, nem estereótipos, tornando-os
276
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
capazes de analisar sentimentos e impressões e a partir de então, alcançar o verdadeiro reconhecimento mútuo.
Candau (2008, p. 31-32) assevera que para que de fato ocorram
processos educativos interculturais “é necessário ultrapassar uma visão romântica do diálogo intercultural e enfrentar os conflitos e desafios que supõe”. Segundo ela, “situações de discriminação e preconceito
estão com frequência presentes no cotidiano escolar e muitas vezes
são ignoradas, encaradas como brincadeiras”, assim, é importante não
negá-las, mas reconhecê-las e trabalhá-las tanto no diálogo interpessoal como em momentos de reflexão coletiva de fatos e situações que
se manifestem no cotidiano escolar.
No contexto escolar o reconhecimento do outro é uma necessidade humana, uma vez que o ser humano só existe através da vida social
e, numa sociedade que apresenta em sua constituição identidades plurais, baseadas na diversidade de etnias, gêneros, classes sociais, a não
discriminação se assenta na igualdade e nesse sentido, os educadores
assumem papel importante, como “grandes artífices, queira ou não, da
construção dos currículos que se materializam nas escolas e nas salas
de aula” (MOREIRA e CANDAU, 2008, p.19), assumem papel primordial
no desenvolvimento de processos educativos que valorizem o reconhecimento da diferença e do direito à diferença, das relações dialógicas, da
integração e do respeito e aceitação entre os sujeitos.
Assim, é primordial uma proposta educacional de matrizes culturais variadas, que possibilite o processo de valorização dos saberes.
Também é primordial uma escola que assegure a igualdade e respeite
as diferenças individuais e coletivas e que se permita entender e até deliberar sobre os problemas gerados pela heterogeneidade cultural, política, religiosa, étnica, racial, comportamental, econômica, já que, como
dissemos o reconhecimento pelos outros é uma necessidade humana e
um direito garantido.
A interculturalidade, portanto, mostra-se essencial como uma forma de educação para que toda a comunidade escolar foque no propósito
da diversidade e não permita se tratar da questão em uma disciplina
isolada, mas problematiza-la e explica-la através de estratégias didático-metodológicas e de ações educativas diversificadas e articuladas em
diferentes etapas e níveis de aprofundamento trazendo um novo olhar
coletivo sobre a diversidade étnica e cultural.
277
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A Educação intercultural mostra-se imprescindível a toda comunidade escolar, objetivando a compreensão e o entendimento de que
todos são ativos na gestão da escola. Ela é elemento importante para a
construção de saberes que tornarão os alunos mais críticos e capazes
de exercer sua cidadania de forma plena, compreendendo as circunstâncias globais que afetam sua vida cotidiana, de modo a conhecer e
internalizar expectativas e comportamentos estabelecidos por valores,
regras e normas que se dão fundamentalmente por meio de todas as
instituições uma vez que a educação não acontece somente no espaço
escolar, entretanto, é fundamental para a formação da cidadania.
Considerações finais
Como afirmado inicialmente, a intolerância religiosa é uma das
formas de expressão etnocêntrica que faz seu promotor considerar seu
modo de ser, pensar, agir, crer, etc., como o ideal, o correto, enfim, o
mais coerente de se viver, enquanto os demais precisam ser ajustados
ou mesmo extintos. No etnocentrismo o diálogo, a compreensão e o
respeito à diversidade são inviáveis.
O etnocentrismo produz e perpetua estigmas, marcas sociais negativas, podendo ser associadas a pessoas, grupos, religiões, etc. Essa
marca imposta ao outro gera danos tanto para sua existência quanto
para sua convivência em sociedade. Por isso, inferimos que estigma é
um desdobramento do etnocentrismo, uma vez que imputa ao outro
uma condição de inferioridade, de marginalização de exclusão e de não
reconhecimento de sua dignidade.
Esse entendimento aqui exposto, ajuda na compreensão do que
seja a intolerância religiosa, uma vez que ela baseia-se no etnocentrismo e também é promotora de estigma e a título de exemplo podemos
lembrar os corriqueiros discursos que demonizam as religiões afrobrasileiras, ou mesmo os jargões do tipo “só Jesus salva”; “Jesus quer te
libertar”; “abandona o inimigo”; “deixa esse mundo”; “isso é coisa do satanás”, que mostra que a intolerância religiosa não é uma problemática
recente e nem está reduzida a um único local, ou que se resume a um
278
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
único tipo de ato, uma vez que associar palavras pejorativas a outras
religiões é uma ação de intolerância, tanto quanto jogar uma pedra da
cabeça de outra pessoa porque ela é de uma religião diferente.
Com o intuito de avançarmos no debate apresentamos uma proposta de classificação das formas de intolerância religiosa para melhor
compreender os diversos mecanismos utilizados para sua manifestação. As formas apresentadas neste trabalho não estão finalizadas, ao
contrário, sua exposição parte da necessidade de avançarmos no debate sobre esta questão e sua publicidade possa promover o aprofundamento e o aperfeiçoamento através das críticas advindas sobre.
Por fim, ao apresentamos dados oficiais e notícias jornalísticas
que mostram como a escola tem sido palco para ações de intolerância
religiosa através de diversos atores, desde alunos até diretores, sinalizamos e provocamos a necessidade de se pensar em mecanismos de
superação dessa realidade, e nesse sentido, apontamos que a educação
intercultural é um mecanismo para esse enfrentamento, pois a partir
dela cumprem-se os ditames constitucionais e legais atribuídos a educação brasileira, bem como, se possibilita a reconstrução das relações
onde a diversidade cultural e religiosa é defendida e valorizada. Pela
Educação Intercultural é possível construir saberes e mentalidades em
que a hierarquia de culturas e sujeitos é abandonada e a horizontalidade
torna-se o norte dos processos educativos. A interculturalidade possibilita o reconhecimento da diversidade e do diálogo, uma vez que nela a
ideia de superioridade de saberes é compreendida como uma ação que
gera preconceitos, intolerâncias e outras formas de violência e de negação de direitos, assim como torna incompleta a formação das cidadãs e
cidadãos conforme a constituição brasileira.
Ressaltamos que o combate a intolerância religiosa não é uma
demanda que se restringe aos professores da disciplina Ensino Religioso, mas deve abarcar todo o processo educativo escolar e envolver todos os que cotidianamente transitam ou trabalham no espaço escolar,
desde o(a) agente de portaria, as pessoas responsáveis pela gestão da
escola, os educadores, os demais profissionais, até os alunos e alunas.
Todos esses sujeitos têm parcela de responsabilidade para a superação
desta problemática. Nesse sentido, a escola, deve desenvolver metodologias participativas e coletivas para a transformação e superação da
279
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
discriminação, da inferiorização e da desigualdade das identidades. Na
escola, a interculturalidade dá a devida percepção e importância a todos
e, segundo Costa e Guilherme (2013), especialmente às questões étnicas e de modo particularmente significativo as relacionadas as diversidades negras e indígena.
280
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALBUQUERQUE, Maria Betânia
Barbosa. Narrativas orais sobre
religiosidade e saberes escolares no
município de Colares (PA). Revista
História Oral, v. 18, p. 179-206, 2015.
BRASIL. Constituição Federal de
1988. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.
htm>. Acesso em: 15/03/19.
______, Comitê Nacional de
Educação em Direitos Humanos.
Plano Nacional de Educação
em Direitos Humanos: 2007.
Brasília: Secretaria Especial
dos Direitos Humanos, 2007.
Disponível em: <http://portal.mec.
gov.br/index.php?option=com_
docman&view=download&alias=
2191-plano-nacionalpdf&Itemid=30192>. Acesso em
22/02/19.
______. Lei 8.069/90 dispõe
sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
L8069.htm>. Acesso em: 15/03/19
______. Lei 9.394/96 que
estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional- LDB. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/LEIS/L9394.htm>. Acesso
em: 15/03/19.
CANDAU, Vera Maria.
multiculturalismo e educação:
desafios para a prática pedagógica.
281
In: MOREIRA, A. F. ; CANDAU, V.
M. Multiculturalismo: Diferenças
culturais e práticas pedagógicas.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
CANDAU, vera Maria Ferrão.
Diferenças culturais,
interculturalidade e educação
em direitos humanos. Educ. Soc.,
Campinas, v. 33, n. 118, p. 235250, jan.-mar. 2012. Disponível
em: <http://www.scielo.br/pdf/es/
v33n118/v33n118a15.pdf>. Acesso
em: 22/03/19.
COSTA, Alice Maria Lozano da.
e GILHERME, Regina Aparecida
Messias. Diálogo Intercultural como
princípio para alcançar a Alteridade:
uma perspectiva para a Educação em
Direitos Humanos. Cadernos PDE,
V. 1, Paraná, 2013. Disponível em:
<http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.
br/portals/cadernospde/pdebusca/
producoes_pde/2013/2013_
uepg_gestao_artigo_alice_maria_
lozano_da_costa.pdf>. Acesso em:
22/02/19.
FLEURI, R. M. (Org.) Educação
intercultural: mediações necessárias.
Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande
& Senzala: formação da família
brasileira sob o regime da economia
patriarcal. São Paulo: Global, 2004.
GOFFMAN, Eving. Estigma. Disponível
em: <https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/4345298/mod_folder/
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
content/0/GOFFMAN%2C%20E.%20
Estigma%20notas%20sobre%20
a%20manipula%C3%A7%C3%A3o%20
da%20identidade%20deteriorada..
pdf?forcedownload=1.>. Acessado no
dia 29/03/2018.
ITANI, A. vivendo o preconceito em
sala de aula. In: AQUINO, G. (org.).
Diferenças e preconceitos na escola:
Alternativas teóricas e práticas. São
Paulo. Summus, 1998.
MILANI, Noeli Zanatta. A Escola
a favor a Diversidade Religiosa:
Importância dessa abordagem em
Sala de Aula. Anais do XI congresso
Nacional de Educação. Pontifícia
Universidade Católica do Paraná.
Curitiba 2013. Disponível em: <http://
educere.bruc.com.br/ANAIS2013/
pdf/9410_4926.pdf>. Acesso em:
15/03/19.
MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M.
multiculturalismo: Diferenças
culturais e práticas pedagógicas.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
SCHILLING, Flávia; Sandra Galdino
Miyashiro. Como incluir? O debate
sobre o preconceito e o estigma na
atualidade. Educação e Pesquisa, São
Paulo, v. 34, n. 2, 2008.
PAINE, Scott Randall.
Fundamentalismo ateu contra
fundamentalismo religioso. Revista
Horizonte, Belo Horizonte, vol. 8,
n.18, 2010.
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que
é etnocentrismo?.São Paulo: Editora
Brasiliense, 1988.
SILVA JÚNIOR, Renê Marcelino da;
SANTOS, Danilo Mamede da Silva.
“Por mim não existiria, mas eu
respeito”: representações sociais
do Candomblé entre alunos de uma
escola pública do Recife. Disponível
em: < http://www.editorarealize.
com.br/revistas/conedu/trabalhos/
TRABALHO_EV056_MD1_SA9_
ID10862_16082016144245.pdf>.
Acesso em: 15/03/19.
[ Volta ao Sumário ]
282
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
eduCação populaR e
inteRCultuRalidade:
desafios e possibilidades
nas intersecções da
prática educativa
Adriel Rodrigues do Nascimento
Elisangela maria da Silva
Como referenciar este capítulo:
NASCIMENTO, Adriel Rodrigues; SILVA, Elisangela Maria da. Educação Popular e Interculturalidade: desafios e possibilidades nas intersecções da prática
educativa. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais
do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade:
Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 283-298.
Adriel Rodrigues do Nascimento1
Elisangela Maria da Silva2
Introdução
Ultimamente, vivenciamos a intensificação da onda ideológica ultradireitista numa escala global; no Brasil, este fenômeno evidenciou-se
nos resultados das eleições de 2018 favorecendo o aprofundamento de retrocessos, refletidos nas sutis e avassaladoras desigualdades
econômicas e simbólicas. Nesse sentido o elemento da padronização
hegemônica sociocultural, torna-se um mecanismo de classificação e
hierarquização segundo os interesses do capital internacional.
Nesse interim, as notícias passam por um processo de transição
entre os grandes meios de comunicação e as redes sociais, favorecendo, tanto a democratização das informações, quanto a veiculação irresponsável das fake News; atualmente esta possibilidade de manipulação
ideológica tem ocorrido mais evidentemente através da campanha bolsonarista articulada aos setores neoconservadores que operam na manutenção do status hegemônico dominante.
Atentos/as a esta realidade, o Centro de Educação Popular Assunção – CEPA, apresenta no conjunto de suas atividades, práticas educativas para a conscientização intercultural, desenvolvidas nas suas
oficinas e projetos pedagógicos. Iniciaremos o nosso diálogo a partir
da experiência vivenciada na aula passeio numa antiga senzala, e num
terreiro de matriz africana, intencionando motivar a percepção dos/as
Pedagogo, Educador Popular e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea – PPGEduc pela Universidade Federal de Pernambuco – Campus
Acadêmico do Agreste, atua no acompanhamento de projetos pedagógicos no Centro
de Educação Popular Assunção – CEPA, na cidade de Caruaru – PE. Curriculo lattes disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8754504T8.
E-mail:adrielrodrigues.89@outlook.com
2
Possui graduação em Psicologia pela Faculdade do Vale do Ipojuca- FAVIP, atua como
psicóloga social no Centro de Educação Popular Assunção – CEPA, na cidade de CaruaruPE. E-mail:silva.elisangelamaria@gmail.com
1
284
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
educandos/as sobre a educação intercultural e suas divergências com a
ideologia neoconservadora, principal fundamento das violências físicas
e simbólicas.
O CEPA, está situado numa área periférica da cidade de Caruaru
no agreste pernambucano, enquanto espaço educativo é reconhecido
por aliar perspectivas da Educação Popular no conjunto de suas ações, e
enquanto práxis pedagógica compreende a relação dialética entre as diferentes concepções que se convergem nos fazeres da prática educativa. As atividades desenvolvidas pelo CEPA têm produzido significativos
impactos socioculturais, comunitários e cidadãos na vida dos/as seus/
suas participantes, conforme constatações a partir de observações e de
reuniões com educadores/as, educandos/as, pais e/ou responsáveis e
membros da comunidade.
Nestas iniciativas, situam-se as oficinas educativas que envolve
atividades de teatro, dança, capoeira, audiovisual, e Maracatu através
de ações de preservação e valorização da cultura popular, como da promoção do desenvolvimento humano dos/as participantes, mediante a
aquisição de novas condutas de comunicação e expressões individuais
(desinibição, ousadia, senso crítico, enfrentamento de situações adversas, criatividade, transformação da realidade e outras).
Nesta acepção em que os conceitos dialogam teoricamente, a
Educação Popular, propõe ampliar a sua discussão a partir da sua refundamentação conceitual que agrega outras (re)interpretações acerca dos
fenômenos sociais. A abordagem intercultural interseccionada na Educação Popular ocorre quando a questão econômica está condicionada
para além dela mesma, a título de ilustração, geralmente, grande parte
das funções de trabalho manual, estão direcionadas a população negra,
tal como as funções sociais são determinadas e se desdobram na questão de gênero entre “tarefas para homem” e “ tarefas para mulheres”.
Nessa perspectiva as desigualdades econômicas não explicam todo o
fenômeno, mas não deixa de contribuir neste aspecto para se obter uma
compreensão mais ampla da realidade.
Neste sentido, a abordagem intercultural constitui-se num conjunto de experiências contra hegemônicas que se auto validam na desconstrução hierárquica de conhecimentos entre as narrativas hegemônicas/etnocêntricas e as culturas não hegemônicas; especificamente
285
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
as que resistiram ao epistemicídio imposta aos povos originários dos
países latino americanos.
A partir dessa breve exposição, apresentamos a seguinte questão
problema: Como o conjunto de ações desenvolvidas pelo CEPA favorece
aproximações/distanciamentos na conciliação conceitual entre a Educação Popular e a Educação Intercultural?
Objetivo geral
Compreender a relação de conceitos entre a abordagem intercultural e a educação popular nas ações desenvolvidas pelo CEPA.
Objetivos específicos
Caracterizar as intencionalidades da educação intercultural desenvolvida no conjunto das ações pedagógicas do CEPA;
Identificar a intersecção conceitual da educação popular na educação intercultural;
Analisar a intersecção conceitual entre a educação popular e a educação intercultural, viabilizada nas atividades desenvolvidas pelo CEPA.
Procedimentos teórico metodológicos
A escolha pelo enfoque fenomenológico, com ênfase na pesquisa participante, justifica-se por tratar-se da possibilidade de investigação que considera a relação sujeito-e-pesquisador, rompendo com o
paradigma da coisificação3 dos sujeitos estudados. Gabarrón e Landa
(2006) enfatizam que a pesquisa participante nos remete à relação de
3
A respeito desse termo, Freire (1983) trata sobre a invasão cultural e da desigualdade
entre opressores e oprimidos, ao ponto destes últimos serem tratados como meros objetos.
286
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
igualdade entre os/as pesquisadores/as e os/as sujeitos/as, permitindo, desse modo, a superação da hierarquia entre sujeito (pesquisador) e
“objeto” (sujeito estudado).
A escolha pela pesquisa biográfica em educação justifica-se por
se tratar de uma busca pela reafirmação das individualidades e na relação entre processos subjetivos e objetivos, além disso, a narrativa biográfica apresenta um caráter mais autônomo no envolvimento dos/as
participantes em relação a outras perspectivas teórico-metodológicas.
O que diferencia a pesquisa biográfica de outros tipos de pesquisa
consiste na temporalidade biográfica, trata-se, pois, do tempo cronológico entre o nascimento e a morte no qual cada ser humano se constitui na e a partir das múltiplas experiências de vida. Delory-Momberger
(2016), afirma-nos que as atribuições a pesquisa biográfica sugere
“uma dimensão constitutiva da experiência humana, por meio da qual
os homens dão forma ao que vivem”.
Para atender aos objetivos deste trabalho que, consistem, entre
outros, em caracterizar as intencionalidades da educação intercultural
desenvolvida no conjunto das ações pedagógicas do CEPA, nos utilizaremos do diário de campo entendido “[...] como um instrumento não
só de registro, mas fundamentalmente um instrumento de análise de
todo o trabalho de campo” (LAGE, 2013, p. 63). Recorreremos ainda,
à técnica da conversa informal a fim de recorrer às histórias de vida e
suas trajetórias.
Para identificar a intersecção conceitual da educação popular na
educação intercultural, recorremos as vivencias experienciadas nas
rodas de conversa, documentadas nos relatórios produzidos mensalmente; pois, apresenta-se como uma alternativa para captarmos “[...] o
discurso dos sujeitos e da dinâmica que acontece naturalmente” (ROSA,
2008, p. 31).
Desse modo, analisar a intersecção conceitual entre a educação
popular e a educação intercultural, viabilizada nas atividades desenvolvidas pelo CEPA, subsidiou-se na análise de conteúdo temático, revelando-se “como um conjunto de técnicas de análise das comunicações,
que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens” (BARDIN, 2007, p. 33).
287
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Análise e discussão dos dados
As atividades desenvolvidas pelo CEPA, fundam-se nas concepções de Educação Popular que intencionam envolver os seus participantes para desenvolver mecanismos de participação, autonomia, conscientização, ação-transformação. O diálogo apresenta-se como uma
ferramenta metodológica permanente vivenciada nas práticas pedagógicas/educativas, permitindo a vivência de outros princípios freireanos como a problematização, a autonomia crítica diante do mundo, que
orientam a prática desenvolvida na relação educadores/as-educandos/
as nos diversos e diferentes processos aprendentes.
As rodas de conversa vivenciada nas ocasiões diversas, envolvendo a participação dos/as educandos/as, pais, mães e/ou responsáveis, o
encontro de formação continuada de educadores/as, as visitas domiciliares, além de outros mecanismos de incentivo à mobilização participativa na comunidade viabilizam o diálogo, principal instrumento teórico-metodológico presente nos fazeres da dimensão da prática educativa.
Para melhor compreendermos a relação teoria-prática nas ações
desenvolvidas no CEPA, ilustramos por meio do seguinte esquema:
Esquema conceitual
EDUCAçãO POPULAR
CONCEITOS
mETODOLOGIAS
Práxis Pedagógica
Desenvolve-se no conjunto de ações intencionalizadas.
Ocorre a partir da reflexão sobre a ação da prática pedagógica
Prática Educativa
Busca a problematização de saberes adquiridos nas relações sociais e experiências vivenciais.
Favorece a problematização/conscientização das desigualdades que são reproduzidas nas relações de poder
Educação não formal
Evidencia, no conjunto de ações/atividades, intencionalidades de um projeto de sociedade igualitário.
Diálogo
Favorece a horizontalidade dos conhecimentos
Possibilita e instiga a curiosidade na desconstrução/reconstrução paradigmática
Busca desenvolver a autonomia na coletividade
(Continua)
288
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
EDUCAçãO POPULAR
CONCEITOS
mETODOLOGIAS
Avaliação
Identifica processos e mudanças de atitudes
Promove a intervenção avaliativa dos discursos durante a
mediação dos saberes/conhecimentos
Acompanha a elaboração e socialização das produções
elaboradas pelos/as educandos/as
Retoma a vivência de encontros, aulas passeio, rodas de
conversa, entre outras possibilidades de sistematização do
conhecimento para a auto avaliação
Tabela 1. Panorama da articulação conceitual intermediada nas ações do CEPA.
Fonte: Projeto Político Pedagógico do CEPA (2019)
Nesse conjunto de atividades, situamo-nos nas oficinas educativas
que se desenvolvem nas oficinas de teatro, dança, capoeira, audiovisual,
e Maracatu através de ações de preservação e valorização da cultura
popular, como da promoção do desenvolvimento humano dos/as participantes, mediante a aquisição de novas condutas de comunicação e expressões individuais (desinibição, ousadia, senso crítico, enfrentamento
de situações adversas, criatividade, transformação da realidade e outras).
As aulas passeio, destacam-se pela intencionalidade educativa/
política que se ampliam a partir das percepções que os/as educandos/
as desenvolvem e constroem acerca de suas identidades, na articulação
de suas experiências, vivenciadas pedagogicamente nos diferentes contextos educativos/culturais. O projeto que financia as oficinas educativas,
intenciona promover Práticas educativas de sensibilidade à conscientização da diversidade cultural, para isso problematiza através das rodas de
conversa, da exibição de material educativo, e das aulas passeio a articulação temática que se desdobram na compreensão/conscientização dos
fenômenos que socialmente apresentam-se desiguais.
Durante o primeiro semestre de 2019 já foram realizadas 05 aulas passeio, a saber, numa antiga Senzala, no memorial de Caruaru/PE,
num terreiro de Candomblé – Nação Ketu, na sede cultural do coco raízes – Arcoverde/PE, e na Aldeia do Povo Xucuru localizada na cidade
de Pesqueira/PE; Somam-se a estas iniciativas a mobilização cultural
289
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e educativa do Orí cia. de dança4, desde a sua fundação este grupo de
dança intenciona fomentar a interculturalidade afro-brasileira evidenciada nas suas apresentações culturais.
Figura 1. Aula passeio à sede do
coco raízes de Arcoverde/PE
Figura 2. Educandos/as do CEPA
conhecendo o sentido da arte
indígena, na 19ª Assembleia do povo
Xucuru em Pesqueira/PE
Atualmente, o Orí é formado por um grupo que conta com 08 dançarinos/as, desse quantitativo, 02 são educandos/as do CEPA, além da
educadora da oficina de dança que atua no grupo como dançarina e diretora cênica. A preocupação que o CEPA e o Orí tem em comum convergem na consolidação de ações que possam favorecer aspectos de uma
educação intercultural, que possibilite a descolonização produzidas nos
discursos e reproduzidas culturalmente.
A produção das coreografias, aliam-se a linguagem dos corpos
que anunciam pedagogicamente a interculturalidade entre as diferentes expressões culturais, tal como o toque dos tambores que ecoam o
som da ancestralidade à medida em que rompe com o silenciamento
da intolerância, de modo que estas ações não se reduzem numa encenação folclórica, esvaziada de sentido crítico. Para isso, busca envolver grupos de capoeira e grupos de umbandistas e juremeiros durante as suas apresentações culturais. Tratando-se de um grupo que
atua na perspectiva afro-brasileira, o Orí, vem sendo alvo de racismo e
O Orí Cia. de Dança originou-se em 10 de Maio de 2014 na cidade de Caruaru, com direção cênica de Renata Lima e direção geral de Vanaldo Brito.
4
290
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
discriminações institucionais, mais evidentemente quando concorre aos
editais disponibilizados pela prefeitura de Caruaru/PE.
Não favorecer a interculturalidade diminui a possibilidade de democratizar as multiplas relações construídas culturalmente, quando
elege-se uma determinada expressão cultural-etnocêntrica, cria-se
uma escala hierárquica, que desprestigia todas as outras formas de ser
e de viver culturalmente. Nesse sentido, as culturas cumprem um papel
político na reprodução de suas representações simbólicas, aparelhando-se ou não as estruturas de poder institucionalmente vigentes.
Após a participação dos/as educandos/as nas aulas passeio, mais
especificamente no terreiro de candomblé, duas situações chamou-nos
a atenção pela intensidade em que ocorreram. Uma educanda, oriunda de religião evangélica juntamente com a sua mãe resolveram que a
partir daquele dia não iria mais participar da oficina de dança, sob argumentos preconceituosos que desembocavam na rejeição as expressões
religiosas não-cristãs. Já a postura de outra educanda favoreceu a organização do grupo no sentido de ‘tranquilizá-los/as’ antes e durante a
visita ao terreiro de candomblé.
Sabe-se que muitas lideranças religiosas, denominadas neopentecostais, em seus sermões, dirigem-se as diversidades, alternativas à
versão bíblica como algo excêntrico/anormal/pejorativo; a demonização
das religiões de matriz africana, a abominação de casais homoafetivos,
e a veiculação de discursos vingativos/condenatórios a quem se opuser
a cosmovisão fundamentalista, são alguns elementos que nos ajudam
a refletir sobre o papel formativo desempenhado por estas instituições.
Quem educa para a intolerância deseduca para o amor, quem não admite a existência do/a outro/a é favor de sua eliminação, seja ela física e
mais precisamente ideológica-política.
Não à toa estas temáticas perpassaram as campanhas eleitorais
ocorridas em 2018, claramente evidenciadas no discurso fundamentalista, patriarcal e ultraliberal; apesar destes sistemas de poder serem
divididos em escalas eles não operam isoladamente, mas no conjunto
de ações cooperativas entre si, é o que chamamos de cultura hegemônica de lógica imperialista.
Esta lógica fundamenta e dá sentido a depredação dos terreiros
de candomblé/umbanda, favorece o massacre dos povos indígenas e
291
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
campesinos, justifica o genocídio da população negra, periférica, e parcamente escolarizada; naturaliza e justifica o feminicídio na culpabilização das vítimas, isto é, as mulheres que são vítimas das violências; subsidia o extermínio da comunidade LGBTQ+, entre tantas outras formas
de violências. Por isso e por tudo o que não foi possível dizer aqui, é que
nos contrapomos a este projeto anti-humano, quando somos capazes
de acreditar/vivenciar e (re)construir um projeto humanamente planetário e planetariamente humano, quando nos comprometemos em reconhecer a equivalência entre as diferentes formas de ser e de viver.
É importante lembrar que antes de realizar a visita ao Terreiro,
alguns/algumas educandos/as já frequentaram e/ou frequentam os
templos de candomblé/umbanda e até então, nós enquanto instituição
educativa não sabíamos... Diante dessa constatação, nos indagamos:
Seria o racismo o principal mecanismo que condiciona os imaginários
que optam pela negação do seu sagrado? ou, enquanto educadores/as,
quando permanecemos nos limites da ação pedagógica não percebemos a necessidade de articular/confirmar pedagogicamente os discursos na dimensão das práticas educativas?
Figura 3. Roda de conversa, durante
a socialização dos discursos com
as intervenções pedagógicas,
ocasionadas no terreiro.
Figura 4. Nesta imagem o babalorixá
Marivaldo, apresentou-nos alguns
fundamentos realçando as principais
diferenças entre o candomblé e a
jurema/umbanda.
De modo que a relação entre as abordagens temáticas desenvolvidas nas rodas de conversa do CEPA, possam se reencontrar nas aulas
292
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
passeio, possibilitando a problematização e criticidade dos/as educandos/as desvelando estereótipos que ideologicamente se ofuscam na
versão cultural eurocêntrica.
Quando comunicamos aos/às educandos/as que iríamos ao terreiro
alguns/mas fizeram um olhar de estranheza, outros até manifestaram incisivamente algum tipo de rejeição. Todavia o que nos chamou a atenção
foi a co-participação de uma educanda que conversava com os/as demais
membros do grupo no sentido de convencê-los a conhecer o terreiro.
Posteriormente, esta educanda declarou para a educadora que a maioria
de seus membros familiares eram religiosos/as de matriz africana.
Neste ano (2019) o projeto que financiou as oficinas educativas,
sinalizou enquanto proposta pedagógica/educativa a necessidade de
desenvolver ações para identificar e problematizar convergências discriminatórias perpassadas nas e entre as questões raciais, sociais, de
gênero, de orientação sexual, de cosmovisão de mundo a partir de seus
sagrados, entre outros; historicamente incrustados no imaginário do
povo brasileiro.
Nesse sentido, situar a matriz de pensamento que fundamenta
a versão histórica colonialista problematizando suas contribuições, limites e contradições, possibilita-nos reapresentar alternativas que se
contraponham a naturalização das desigualdades expostas e verticalizadas nas relações de poder.
Nas aulas passeio nos propomos reconhecer e valorizar outros
modos de vida alternativos à ‘civilização’ ocidental, europeia e burguesa.
Assim chegamos a sede do coco raízes, lócus de nosso estudo situada
na cidade de Arcoverde, sertão pernambucano; neste espaço as famílias
mantêm viva a memória de seus ancestrais através da cultura popular. Conforme um breve histórico, fixado na parede do salão principal
da sede; em Arcoverde, o coco existe a quase 70 anos, e suas origens
históricas remete-nos ao antigo bairro do coqueiro, atualmente denominado como bairro da Cohab I, este espaço ficou conhecido por reunir
os primeiros dançarinos e mestres do coco que passaram a popularizar esta arte através das apresentações realizadas tanto em Arcoverde
quanto nas cidades da região.
Um dos percussores da cultura do coco centra-se na figura do sr.
Luis Calixto Montenegro, que entre a década de 1960 e 1990, atuou
293
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
como educador cultural, artesão, compositor das cantigas do coco impressas no seu patrimônio cultural atualmente mantido pela família
Calixto, juntamente com outras famílias/descendentes dos mestres do
coco arcoverdense.
A aula passeio vivenciada na aldeia do Povo Xucuru foi marcada
por tensões e emoções. Na ocasião, estava acontecendo a 19ª Assembleia do povo Xucuru na cidade de Pesqueira, agreste pernambucano,
este evento ocorre anualmente e busca envolver e mobilizar a participação de lideranças indígenas locais e de outras regiões do país para que
possam se fortalecer na luta pela preservação de seus territórios, suas
culturas e, sobretudo a relação sagrada com a mãe natureza. É importante mencionar que este evento faz referência a memória de Francisco
de Assis Araújo, o chicão, uma das principais lideranças do povo Xucuru,
brutalmente assassinado no dia 20 de maio de 1998 em Pesqueira.
Quando cacique, Chicão ficou conhecido por se empenhar junto ao
povo Xucuru na reorganização política do movimento indígena e através
da democratização da expressão cultural do seu povo, possibilitou que
pessoas não indígenas também pudessem conhecer e participar das
apresentações do toré5.
O povo Xucuru expressa o toré a partir de duas perspectivas: a
cultural e a religiosa, esta última é restrita aos povos indígenas e seus
‘parentes’ não indígenas, considerados/as dessa maneira pelo nível de
sensibilidade e comprometimento com a causa. Nesse sentido o toré
configura-se numa expressão social, cultural, política e religiosa a medida em que pode agregar adeptos, favorece a interculturalidade, desenvolve a necessidade de inserção coletiva, remetendo-se a cosmovisão
do seu sagrado.
Na atual conjuntura política, marcada por massacres e violências
contra os povos indígenas precisamos nos politizar a partir de (re)leituras
Manifestação cultural extensiva a diferentes grupos e por eles definidos como tradição,
união e brincadeira, é um ritual complexo, que envolve uma dança circular, em fila ou pares, acompanhada por cantos, ao som de maracás, zabumbas, gaitas e apitos, de grande
importância para os indígenas. Cada grupo possui um toré próprio e singular, apresentando variações de ritmos e toadas dependendo de cada povo. Disponível em: http://basilio.
fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=863&It
emid=1 – acessado em 09/07/2019
5
294
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
contra hegemônicas. A matriz de pensamento eurocêntrica, colonialista,
e latifundiária através dos mecanismos de poder e controle ideológico
determinou escalas de padronização para subalternização das culturas
não europeias. Tudo o que não converge com a lógica de pensamento
hegemônica é inaceitável por ser considerado “sem lógica”.
Nesse sentido, a institucionalização da cultura branca, heteronormativa, urbanocêntrica, cristã, patriarcal e europeia; determinou padrões de comportamento na construção de paradigmas que legitimam
maneiras de ser e de viver deslocando e classificando todos os outros
modos de vida para o lado místico, e por isso mesmo inválido.
Os ataques promovidos pelo Governo federal, favoráveis a extinção da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, alia-se ao fortalecimento
da política armamentista dos latifundiários para que possam manter o
controle e a invasão de territórios para a devastação e mercantilização
dos recursos ecológicos.
Nesse sentido a miséria não é uma condição genética, é um projeto da sociedade capitalista; de modo que estas atrocidades, politicamente encontram respaldo na farsa neoliberal da propriedade privada e
da meritocracia, principais mecanismos ideológicos que atuam no campo dos imaginários das classes trabalhadores dando a entender que não
a nada a se fazer que não seja a conformação pacífica de sua condição
de miseráveis e submissos.
O que tem favorecido o aumento qualitativo de educandos/as que
assumem a sua negritude, constata-se, nas relações que são capazes
de construir, no convívio com as diferenças, na elaboração de seus discursos e atitudes mais críticas diante de situações de opressão. Nesse
sentido, a educação intercultural cumpre uma função de “guarda-chuva
conceitual”, pois através do elemento da cultura é capaz de descentralizar a nossa percepção do mundo que não seja apenas interpretada através da versão etnocêntrica-colonialista-europeia.
A nossa atuação política enquanto educador/militante deve estar
consciente das armadilhas ideológicas impostas pelo sistema neoliberal. Só assim, estaremos mais habilitados para hospedá-lo sem aderir
a sua lógica. Que possamos nos empenhar em dedicar nossas energias
vitais para identificar/compreender as sutilezas da opressão que se
estruturam nas relações de poder. Talvez uma dessas alternativas se
295
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
configure no desenvolvimento de uma prática comprometida e verdadeiramente transgressora às normas que verticalmente nos são impostas.
Reeducar nossas percepções, significa coloca-las a serviço de uma
pedagogia comprometida com as camadas populares e por isso mesmo
é uma pedagogia da contraversão. Esta iniciativa propõe identificar e
denunciar os contrastes sociais que na maioria das vezes são ideologicamente naturalizados e naturalmente reproduzidos nas múltiplas e
diversas facetas das desigualdades.
A educação intercultural, alia-se a educação popular, necessariamente por rejeitar e denunciar a insuficiência dos paradigmas que se
colocam numa condição privilegiada como se fosse a única matriz de
pensamento capaz de explicar as múltiplas experiências socializadas no
mundo. Por fim e não menos importante, o empoderamento que é interpretado pela educação popular através dos processos de conscientização, do diálogo, da socialização, das vivências, etc., sugere a realização
de ações epistemologicamente transgressoras quando pode contribuir na
formação política de pessoas enquanto sujeitos capazes de compreender
e transformar suas realidades a partir de suas histórias de vida.
Conclusão
Retomando a pergunta inicial que provocou esse exercício de pesquisa – Como o conjunto de ações desenvolvidas pelo CEPA favorece
aproximações/distanciamentos na conciliação conceitual entre a Educação Popular e a Educação Intercultural? Constatamos alguns impasses e algumas conciliações conceituais entre a Educação popular na
abordagem intercultural.
A hibridização temática/conceitual desenvolvida no conjunto de
atividades do CEPA reconhece a interculturalidade através da sua repercussão, explicitadas ou não nas posturas de vida dos/as educandos/
as, na socialização dos debates produzidos nas rodas de conversa, do
processo de transição capilar, no caso das meninas/os que reconhecem
ou negam a sua negritude, entre outras; evidenciando potencialidades ou fragilidades da maneira com que essas temáticas estão sendo
vivenciadas.
296
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O CEPA é reconhecido por desenvolver através das suas ações a
intersecção conceitual entre a educação popular e a educação intercultural, por outro lado, não perceber ou permanecer nos limites da ação
pedagógica pode contribuir para a repetição da prática do discurso ao
invés de colocar em prática o que se discute.
A superação da cultura hegemônica (etnocêntrica-europeia-burguesa...) desafia-nos reavaliar continuamente a nossa prática pedagógica/educativa para o redirecionamento de intencionalidades emancipatórias. Superar o paradigma da cultura hegemônica não significa
necessariamente a radicalização da sua ruptura, mas possibilitar a equivalência entre as diferentes experiências que são produzidas no mundo.
O CEPA, Ciente de seus princípios, vivencia o diálogo enquanto
metodologia de convivência, apresenta e reconhece a relação das diferenças, identifica a intersecção entre as diferentes etnias através da
problematização histórica numa perspectiva dialética, favorecendo ou
não a conscientização das pessoas envolvidas.
297
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BARDIN, Laurence. Análise do
Conteúdo. Tradução de Luís Antero
Reto e Augusto Pinheiro/ Laurence
Bardin. – França, 2007
CALADO, Alder Júlio F. Movimentos
Sociais Populares rumo a uma nova
sociedade: o consenso ideológico
ao dissenso alternativo. In: Revista
eletrônica o comuneiro, n. 5, Lisboa,
setembro de 2007.
CEPA- Centro de Educação
Popular Assunção. Projeto Político
Pedagógico, Caruaru, Brasil: CEPA,
2019
DELORY-MOMBERGER, Christone. A
Pesquisa Biográfica ou a Construção
Compartilhada de um Saber do
Singular. Revista Brasileira de
Pesquisa (Auto) biográfica, v. 1, n. 1,
p. 133-147, 2016
Epistemologias do Sul/ Boa ventura
de Souza Santos, Maria Paula
Meneses [orgs.]. – São Paulo: Cortez,
2010
FLEURI, Reinaldo M. e costa, Marisa
V. Travessia: questões e perspectivas
da pesquisa em educação popular.
Ijuí: Editora Unijuí, 2005
FREIRE, Paulo. Conscientização/
Paulo Freire; tradução de Tiago José
Risi Leme. – São Paulo: Cortez, 2016
______. Extensão ou comunicação?
Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira
/ prefácio de Jacques Chonchol 7ª ed.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983
______. Educação como prática da
liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
2009
GABARRÓN e LANDA, in: capítulo 3.
Pesquisa Participante: a partilha do
saber/ Carlos Rodrigues Brandão,
Danilo R. Streck (organizadores)
Aparecida, SP: Ideias et letras, 2006
LAGE, Allene. Educação e
movimentos Sociais: caminhos para
uma pedagogia de luta/ Allene Lage.
– Recife: Ed. Universitária da UFPE,
2013
SOUZA, João Francisco de. Prática
Pedagógica e Formação de
Professores. Organizadores: João
Batista Neto e Eliete Santiago. –
Recife: ed. Universitária da UFPE,
2009.
[ Volta ao Sumário ]
298
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ensaio soBRe a
pRátiCa doCente em
ensino Religioso no
Rio gRande do noRte:
entre a teoria e a prática
Diego Fontes de Souza Tavares
Como referenciar este capítulo:
TAVARES, Diego Fontes de Souza. Ensaio sobre a prática docente em Ensino
Religioso no Rio Grande do Norte: entre a teoria e a prática. In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 299-326.
Diego Fontes de Souza Tavares1
Introdução
O Ensino Religioso brasileiro é caracterizado por um forte preconceito que ainda o limita enquanto área científica e curricular. Esse atraso
é produto de sua bagagem histórica caracterizada pela forte influência
da Igreja Católica em sua base epistemológica desde sua gênese, como
também com a cruzada que essa mantém em conservar-se como tutora
dessa disciplina escolar.
Essa mácula na qual carrega o Ensino Religioso reflete não só em
sua base epistemológica, mas também na pedagógica. Os docentes
dessa disciplina curricular carregam grandes dificuldades em suas atividades profissionais que são frutos ainda dessa herança confessional.
A influência da Igreja Católica limitou a elaboração e desenvolvimento
de uma grade curricular, que favorecesse os ideais científicos e pedagógicos dessa disciplina, como também impossibilitou a sua expansão,
já que freava os seus avanços liberais – quando a disciplina abria-se às
outras denominações religiosas, melindrando o seu florescimento.
O presente trabalho almeja expor como ainda hoje, com uma república democrática consolidada e já obtendo o Ensino Religioso grandes
conquistas, ainda se defrontam com grandes dificuldades os docentes
de Ensino Religioso.
Licenciatura plena em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN) e Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). Doutorando em Ciências das Religiões pelo Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões na Universidade Federal da Paraíba (PPGCR-UFPB). Pesquisador no
Grupo SOCIUS e Professor de Ensino Religioso na rede estadual de ensino do Rio Grande
do Norte (SEEC/RN). Curriculum Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8165861P8 Email: diegofontes.tavares@outlook.com
1
300
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A herança confessional do Ensino Religioso
O Ensino Religioso brasileiro é caracterizado por um forte preconceito que ainda o limita enquanto área científica e curricular. Esse atraso
é produto de sua bagagem histórica caracterizada pela forte influência
da Igreja Católica em sua base epistemológica desde sua gênese, como
também com a cruzada que essa mantém em conservar-se como tutora
dessa disciplina escolar.
Foi, sobretudo, com a chegada dos portugueses nas terras brasileiras que a ideia salvífica dos povos que aqui viviam fora posta em
prática e desenvolvida o processo de catequização, conforme mesmo
afirmou Pero Vaz de Caminha ao dizer que “a melhor ação que se podiam fazer era salvar essa gente”. Com a chegada dos Jesuítas em 1549,
inicia-se o processo moralizador cristão pelo qual perduraria durante
vários séculos na educação brasileira.
É somente com o advento da República que o Brasil pôde afrouxar
as amarras que o prendiam às ideias liberais. O paladino da laicidade
Rui Barbosa era um defensor ferrenho dos ideais republicanos e liberais.
Influenciado e fortemente positivista, via nas luzes do Iluminismo um
avanço à ascendente nação que surgia. Foi dele a medida de proibir o
ensino religioso2 nas escolas por serem ambientes públicos e não pertencentes às comunidades religiosas.
A reação da Igreja e do episcopado foi severa, pois se minava cada
vez mais a sua atuação em meio ao povo brasileiro. Daí resultou que,
na Constituição de 1934, no artigo 153, a Igreja reivindica suas prerrogativas para que o Ensino Religioso – confessional cristão – voltasse a
fazer parte da Educação Básica de forma obrigatória, mas de matrícula
facultativa ao aluno/a.
Com a elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1961, o Ensino Religioso, de acordo com o artigo 97, ele
permanecia como disciplina obrigatória da Educação Básica. Ainda, de
acordo com esse dispositivo, o Ensino Religioso seria ministrado pelas
Vale aqui ressaltar que Rui Barbosa, segundo costa, se mostrava contrário ao ensino
confessional e cristão, não podendo afirmar que ele seria nos tempos de hoje, contra o
Ensino Religioso.
2
301
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Igrejas e sem custos aos cofres públicos. Conforme se pode ver, a Lei
garantia que
O Ensino Religioso constitui disciplina dos horários normais das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado sem ônus
para os cofres públicos, de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo representante legal ou
responsável (LEI 4.024/61: Art. 97).
Embora pareça ter um caráter laico e democrático, ao propor que
o ensino seria “de acordo com a confissão religiosa do aluno” ela ainda segregava as religiões diferentes da hegemônica, pois não tinham
espaço os representantes de outras denominações religiosas, sofrendo
preconceito religioso, e se tornava difícil à eleição e indicação desses
representantes à docência, tendo a Igreja católica sempre êxito nessa
questão por ser uma instituição a muito consolidada.
Com o advento do golpe sofrido pela democracia em 1 de Abril de
1964, sendo deposto o presidente democraticamente eleito João Goulart, os militares estabeleceram profundas mudanças nas legislações
como ferramenta para perpetuarem-se no poder. Uma dessas medidas
autoritárias tangia à LDBEN, que havia sido elabora há poucos anos.
Em 1971 e com o apoio da Igreja Católica, a Lei 5.692/71 reinseria o Ensino Religioso nos horários normais de aula, tornando-se novamente obrigatório. A Lei 5.692/71 estabelecia no
Art. 7 [...] Parágrafo único – O Ensino Religioso de matrícula facultativa constituirá disciplina dos horários normais dos estabelecimentos oficiais de primeiro e segundo graus (LEI 5.692/71: Art. 7).
Compondo-se às disciplinas “Moral e Cívica”, “Artes” e “Educação
Física”, o Ensino Religioso convergia ao alinhamento ético proposto pelos militares, assumindo caráter e função ética e introduzindo a moral
cristã e ressaltando os bons costumes.
Essa é o contexto no qual está inserido o Ensino Religioso brasileiro, sendo durante quase toda a sua história traçado pelo viés confessional, sendo até hoje ainda visto pela ótica do senso comum por essa
herança que o mancha como eternamente cristão.
302
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A LDB, o FONAPER e o CNE
Como exposto, o Ensino Religioso é garantido pela Constituição
Brasileira desde 1934. No entanto, sabemos da gênese confessional
por qual passou e passa esse componente curricular e dos prejuízos que
isso acarreta. Nessa etapa da história do Ensino Religioso, ele tinha um
caráter estritamente confessional e catequético. Segundo o próprio Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER),
Durante séculos, ou seja, até a segunda metade do século XX, predominou no Brasil o Ensino Religioso na concepção de reeligere, no
entendimento do reescolher, com a finalidade de fazer seguidores.
Nesse contexto, ele se caracterizava como evangelização, aula de
religião, catequese, ensino bíblico. O conhecimento veiculado era da
informação sobre elementos da religião e a LDB nº 4024/61 refletiu
bem essa concepção (FONAPER, 2000, p. 13).
Assim, o FONAPER estabelece que com a primeira LDB/61 o Ensino Religioso possuía uma vertente confessional, sendo caracterizado pela catequização dos alunos e alinhamento à religião cristã. Já na
mudança da LDB/61 proposta pelo regime militar, em 1971 com a Lei
5.692/71, o Ensino Religioso era vertido na
Concepção religare, significando religar as pessoas a si mesmas, aos
outros, à natureza e a Deus, visou torá-las mais religiosas. Nesse
contexto, o Ensino Religioso caracterizou-se como pastoral, aula de
ética e valores, e o conhecimento veiculado foi o da formação antropológica da religiosidade, pelo saber em relação a si próprio, ao
mundo, à natureza e a Deus (FONAPER, 2000, p. 13)
Sobre a reformulação e novo viés epistemológico adquirido pelo
Ensino Religioso na Ditadura Militar ele convergia ao projeto de educação3 que tinha o regime, no qual valorizava o alinhamento moral e
Nessa linha, lembremos que a Educação é um sistema simbólico de poder e está diretamente ligada e subordinada à Política. Segundo Pierre Bourdieu, ela é uma estrutura que
é ao mesmo tempo estrutularizada e estruturante, na medida em que tanto influencia a
Política, quanto é por ela influenciada em suas medidas e decisões.
3
303
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
catequético, doutrinado aos bons costumes e valorizando a segurança
nacional.
Foi no contexto da redemocratização do Brasil em que entidades
civis puderam reivindicar maiores causas e nisso alguns componentes
curriculares obtiveram maior liberdade e autonomia em seu engajamento enquanto área de ensino4
Como prova disso, teve-se criação do Fórum Nacional Permanente
do Ensino Religioso, criado em 26 de Setembro de 1995, em Florianópolis/
SC na ocasião da Assembleia Ordinária Conselho de Igrejas para a Educação
Religiosa. O contexto no qual emerge o FONAPER era a de uma frente
Diante das diversas concepções de Ensino Religioso que se descortinavam por todo o território, em meio à diversidade religiosa, cada
vez mais acentuada, exigindo uma educação que encaminhasse o
diálogo entre as partes, em que o espaço da construção do conhecimento religioso fosse à ressignificação dos conhecimentos produzidos e acumulados ao longo da história (TORRES, 2012, p. 44).
Não obstante a razão salutar no qual surge o FONAPER, como
resposta a uma necessidade de uniformidade ao Ensino Religioso, ele
possuiu e manteve essencial posicionamento quando da elaboração da
LDB/96, com a Lei 9.394, de 20 de Dezembro de 1996. No que tangia ao
Ensino Religioso, a LDB/96, embora em um meio pós-1988 totalmente
democrático, retomava o caráter confessional e segregador do Ensino
Religioso, ao estabelecer no artigo 33 que
Art. 33 O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de
acordo com as preferencias manifestadas pelos alunos ou por seus
responsáveis, em caráter:
I – confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do
seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou
entidades religiosas.
Vide BITTENCOURT (2004) para o caso do ensino de História e SENA (2007) para o Ensino Religioso.
4
304
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
II – interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa (LEI 9.394/96: Art. 33, grifo meu).
O presente artigo representava um retrocesso em meio aos avanços que vinham tendo nos últimos anos o Ensino Religioso. Ao ser oferecido ônus ao Estado, o Ensino Religioso, indiretamente, seria propriedade da Igreja Católica, já que possuía grande autonomia fruto de sua
institucionalização e poderia subsidiar professores para sua catequese;
já o inciso I garantia legalmente a confessionalidade do Ensino Religioso.
A reação e resposta do FONAPER ao artigo 33 da LDB/96 foi imediata. Houveram mobilizações e ao longo de seis meses eles estabeleceram um novo artigo e deram releitura ao que era então proposto no artigo
33, tendo o presidente sancionado uma nova lei que dava nova redação
ao antigo artigo. A Lei 9.475 de 22 de Julho de 1997 estabelecia que
Art.1º O art. 33 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa
a vigorar com a seguinte redação:
Art. 33 O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurando o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos
para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. (LEI 9.475/97 Art. 33, grifo meu).
Com a intervenção do FONAPER a essa nova redação do artigo 33,
o Ensino Religioso retoma a sua função democrática e escolar, ao assegurar o respeito e à diversidade cultural brasileira e sendo impedida
qualquer forma de proselitismo. Ainda, tornou responsáveis sistemas
de ensino (Secretárias Municipais e Estaduais da Educação) pela elaboração de material e currículo a serem estudados, bem como garantiu a
habilitação e admissão de professores, tendo agora ônus para os cofres
públicos e investimento do Estado.
305
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Não obstante terem as Secretarias de ensino responsabilidade na
elaboração dos conteúdos, o FONAPER elaborou e construiu em 1997
os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso (PCNER)
como proposta de currículo ao Ensino Fundamental. Caracterizado e dividido em “Eixos Temáticos”, os PCNER estão estabelecidos em propostas de fundamento básicas para a ação pedagógica do Ensino Religioso,
que são elas “Culturas e Tradições Religiosas”; “Escrituras Sagradas e/
ou Tradições Orais; “Teologias”; “Ritos” e “Ethos”. Tendo cada um desses
eixos temas transversais às tradições religiosas e que facilitam a assimilação do conhecimento e dão um norte aos professores.
Segundo o FONAPER (2009) é objeto de estudo das “Culturas e
Tradições Religiosas” o fenômeno religioso a partir da ótica do sujeito,
analisando elementos como teodiceia, função e valores éticos das tradições religiosas. Já para as “Escrituras Sagradas e/ou Tradições Orais”
atenta-se aos textos ou relatos orais que transmitem aos adeptos,
através da revelação, os mistérios e vontades do Transcendente, dando
origem às tradições religiosas. No que tange às “Teologias” debruça-se
sobre o conhecimento organizado e/ou sistematizado elaborado pela
tradição religiosa e no qual são repassados aos adeptos. Com “Ritos”,
estudam-se as práticas celebrativas em que se fundamentam as liturgias das tradições religiosas. Por fim, no “Ethos” é trabalhada a moralidade numa relação dialética entre o que prega a tradição religiosa e
o que dela aspira o sujeito adepto e como ele o exterioriza sendo suas
faculdades mentais.
Outro avanço que consta na constituição do Ensino Religioso enquanto área disciplinar foi a decisão da Câmara de Educação Básica
(CEB) através do Conselho Nacional de Educação, mediante a Resolução
CEB Nº 2 de 7 de Abril de 1998, que instituía a “Educação Religiosa (de
acordo com a nova redação do art. 33 da LDB/97) como disciplina obrigatória da Educação Básica.
A prática docente de Ensino Religioso no Rio Grande
do Norte
Estabelecido a história do Ensino Religioso no Brasil, chega-se
ao recorte proposto nesse trabalho, que é a atividade docente dos
306
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
professores de Ensino Religioso no Rio Grande do Norte. Entretanto, o
referido trabalho atenta aos docentes ligados à Secretaria de Estado e
da Cultura do Rio Grande do Norte/SEEC, não se estendendo, ao menos
diretamente, aos professores veiculados à Secretaria Municipal de Educação de Natal.
Necessário se faz estabelecer a distinção acima proposta pelo fato
de que cada uma dessas secretarias possuírem autonomia na elaboração de seus conteúdos e bem como da escolha e promoção de seu
pessoal.
Sobre essa responsabilidade na elaboração de conteúdo e admissão de pessoal, bem como de outras diretrizes para o Ensino Religioso,
a SEEC/RN forma o Conselho de Ensino Religioso (CONER) para a elaboração do Parecer Normativo Nº50/00, finalizado em 8 de Novembro
de 2000. Destacarei as medidas por esse Parecer tomadas que tocam à
proposta desse trabalho, que é a diferença entre a teoria e a prática na
atividade docente do profissional de Ensino Religioso, ressaltando como
as medidas por este Parecer não se alinham às decisões nacionais e vão
à contramão do progresso científico e epistemológico da disciplina. Em
especial, transcrevo as que estabelecem: o conteúdo a ser ministrado;
a carga horária da disciplina e o critério para admissão de pessoal para
lecionar essa disciplina. Segundo o Parecer Normativo Nº 050/00
No que diz respeito ao nº de horas/aula semanais, se 01 (uma) ou
(duas) entende-se que não compete a este colegiado fixar este
quantitativo, firmando-se, para tanto, nos princípios da autonomia
e flexibilidade que foram conferidas à escola pela LDB. Fica, pois, a
critério de cada estabelecimento de ensino deliberar sobre à matéria e, em seguida explicá-la no Regimento Escolar no seu Projeto
Pedagógico [...]
Com o intento de contribuir para que a prática pedagógica atenda
aos novos paradigmas propõem-se os seguintes eixos temáticos:
- O Ser Pessoa Humana;
- O Universo e o Ser Humano;
- Comunicação versus alteridade;
- O Ciclo da Vida: nascer, crescer e morrer;
- O Sentido da Vida;
- Religião e Contexto Cultura;
- Religiosidade: fé e relação com o divino.
307
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Outro fator preponderante para uma oferta qualitativa desse
componente curricular é a formação do educador. Entende-se
que, além de uma sólida formação geral, é preciso que detenha
conhecimentos de Teologia e Ciência da Religião. Recomenda-se,
pois, que sejam portadores dos seguintes diplomas:
- Curso Normal, em nível médio e/ou Normal Superior, com estudos
adicionais em Ciências da Religião ou Teologia, para lecionar nas séries iniciais do Ensino Fundamental;
- Curso de Licenciatura Plena, em qualquer área, desde que possua
Especialização em Ciência da Religião ou Teologia, com carga horária de 480 horas;
- Curso de Bacharelado em Ciências da Religião, complementado
por curso de formação pedagógica com carga horária de 208h;
- Curso de Licenciatura em Ciências da Religião ou Teologia. (PARECER NORMATIVO 050/00, 8/11/00, grifo meu).
As seguintes diretrizes postas no Parecer dificultam a atividade
docente, na medida em que não se estabelece o número exato e ao certo de horas/aula semanais e imbuindo às escolas essa função, sendo
unanimidade a delimitação de apenas uma hora/aula semanal, dada o
desconhecimento dos coordenadores das escolas da disciplina Ensino
Religioso enquanto laica, democrática e científica, tendo esses coordenadores uma visão da disciplina enquanto confessional e moralizadora
cristã, o que dificulta totalmente o ajustamento da proposta curricular
ao ensino, dado ser pequena as reuniões com os alunos para um currículo tão extenso e vasto.
Junto a essa atribuição de apenas uma hora/aula, não obstante a
dificuldade já ditas sobre ensino/conteúdo, o professor de Ensino Religioso acaba sobrecarregado com muitas turmas para completar sua
carga horária de trabalho. Sabendo que é de responsabilidade do profissional da educação uma carga horária de 30h/semanais, sendo 10h
dessas encarregadas à preparação de aulas e planejamento, sobra-se
20h para este se encarregar de um total de turmas. Tendo o Ensino Religioso apenas 1h/aula, tem que o professor dessa disciplina possuir 20
turmas para se adequar ao seu regime de trabalho, o que o sobrecarrega com 20 vezes mais alunos, dificultando a criação do vínculo com o
aluno e a necessária relação individual do professor para reconhecer as
necessidades de cada aluno.
308
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Para complicar ainda mais a atividade docente, o Ensino Religioso
é pertencente ao Ensino Fundamental I e II, se resumindo apenas ao
Fundamental II, já que em sua maioria no Fundamental I é ofertada pelo
profissional pedagogo polivalente – que em sua maioria não teve uma
formação adequada para lecionar a disciplina. Por ser predominante no
Fundamental I (6º ao 9º ano) tem-se que o professor se alocar em várias escolas para completar a carga de 20 turmas, dado o fato que não
é toda escola estadual que possui 20 turmas de Fundamental II, ficando
na maioria das vezes em três escolas, não criando vínculo trabalhista e
docente em nenhuma delas, dado estar sempre se deslocando, o que
dificulta a presença em reuniões pedagógicas e com os responsáveis
dos alunos, bem como a própria atividade docente em si, já que sua presença naquela escola se resume a um ou dois dias semanais, apenas.
Ainda, no que compete aos conteúdos, o Parecer 050/00 estabelece “eixos temáticos” que em nada convergem com os propostos pelo
FONAPER, conforme se nota na tabela:
De acordo com esses eixos temáticos propostos pela SEEC/RN foram criados dois livros pedagógicos para fundamentarem os professores na atuação docente, são os Caderno Pedagóco I e Caderno Pedagógico
II, que são deveras confessionais em sua proposta, possuindo um viés
de caráter ecumênico travestido numa proposta cristã e monoteísta. Já
fazendo 19 anos da elaboração desse Parecer, poucos são os profissionais que se apoiam nesses Cadernos Pedagógicos, seja por serem
309
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
deveras antigos e confessionais, seja pelo fato de o CONER não ter elaborado outro livro didático e os novos professores recém-formados não
os tenham recebido ou conhecimento.
O fator que isso acarreta é a dificuldade de estabelecer um padrão
no conhecimento curricular dos alunos que, por exemplo, transitam entre uma escola e outra – algo inclusive bastante comum no público alvo
da escola pública. Fruto disso são alunos que vem e vão sem um seguimento do conteúdo resultado da ausência curricular que tem os professores, sendo esses inclusive os responsáveis pela elaboração de todo o
conteúdo a ser ministrado, o que dá margem, em razão dessa escassez
de currículo, à confessionalidade e proselitismo por parte dos docentes.
Como terceira medida destacada no Parecer 050/00 tem-se a diretriz para a admissão de professores de Ensino Religioso. O Parecer
garante que qualquer profissional que não o formado pelo curso de Ciências da Religião possa lecionar a disciplina, desde que tenha alguma
especialização ou simplesmente possua formação em Teologia. Isso
abre precedentes à confessionalidade e ao proselitismo, dado o fato de
que além de não possuir uma padronização curricular do conteúdo a ser
ministrado, o então docente de Ensino Religioso também não foi formado e capacitado para tal, visto ter advindo de outras áreas que não a da
Ciências das Religiões5, que é a mais apropriada para a capacitação e
formação do professor nessa disciplina.
É consenso em vários autores que estudam e pesquisam a
importância epistemológica das Ciências da Religião como subsídio para
o profissional docente em Ensino Religioso. Conforme defende Passos,
O acúmulo de estudos de Ciências da Religião nos cursos de
pós-graduação já deu um primeiro passo para a superação dos preconceitos e da própria institucionalização do estudo científico da
religião no âmbito das ciências habilitadas nas áreas estabelecidas
pelos órgãos do Ministério da Educação. As Ciências da Religião
podem oferecer a base teórica para o ER, posicionando-se como
Em outro trabalho já me propus a problematizar a grade curricular dos próprios cursos
de Ciências da Religião que oferecem Licenciatura e capacitam os egressos à docência em
Ensino Religioso, analisando o alinhamento desses ao que propõe os PCNER e a BNCCER.
Vide TAVARES, 2018.
5
310
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mediação epistemológica para as suas finalidades educacionais em
cursos de licenciaturas (PASSOS, 2007, p. 38-39).
Assim, os cursos de licenciaturas em Ciências da Religião devem
outorgar conhecimento acerca da diversidade cultural e religiosa que
compõe o campo religioso brasileiro, como também conceder conhecimentos teóricos aos principais assuntos no qual se necessita para fundamentar conceitualmente um bom cientista da religião e professor de
Ensino Religioso.
Partindo dessa ideia, entende-se que os cursos de licenciatura em
Ciências da Religião em seu Projeto Político-pedagógico se propõem
como mostra o objetivo do curso em Ciências da Religião da UERN:
Formar um profissional da educação com sólida fundamentação
filosófica, teológica e pedagógica, com ênfase nos estudos do fenômeno religioso, valorizando o pluralismo e a diversidade cultural
presentes na história da humanidade. Com isso, a formação pretende capacitar profissionalmente o docente para a ação pedagógica
levando em conta os conteúdos e as metodologias adequados à
construção do conhecimento significativo, além de proporcionar a
vivência dos valores éticos, morais e espirituais, na perspectiva do
exercício pleno da cidadania e da atuação do professor do Ensino
Religioso (PPP CIÊNCIAS DA RELIGIÃO, UERN, 2014).
Ao estabelecer que profissionais de outras áreas diferentes da
Ciências da Religião possam participar da docência em Ensino Religioso
o CONER retrocede às grandes vitórias conseguidas a muitas lutas de
todos os profissionais que militam um por Ensino Religioso de qualidade e científico.
Esses critérios na seleção dos profissionais quanto ao diploma vigora ainda hoje, em 2019, quando no último concurso público da SEEC/
RN, em 2016, se cobravam como requisito ao professor Ensino Religioso diploma em Ciências da Religião e/ou Teologia, cabendo uma nota
de repúdio do Departamento de Ciências da Religião/UERN ponderando
a necessidade de profissionais com diplomas em Ciências da Religião
– curso inclusive ofertado pela própria Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte, que tem parceria com a SEEC/RN – demonstrando
assim a falta de diálogo entre os dois órgãos.
311
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Ainda há pouco, quando da elaboração desse trabalho, a SEEC/RN
lança um processo seletivo Edital Nº 001/2019 para a contratação de
professores substitutos que estabelece e requer ao professor de Ensino
Religioso “Licenciatura Plena em Ciências da Religião; Licenciatura Plena em Ensino Religioso; Licenciatura Plena em Teologia”.
Considerações finais
Embora tenha tido um legado histórico de proselitismo e confessionalidade, o Ensino Religioso vem progredindo e se adequando a uma
proposta laica, democrática e plural, conforme se pode ver em sua história enquanto consolidação de disciplina escolar.
No entanto, como tudo o que é político e ao que tange à educação,
as propostas das disciplinas escolares, bem como os seus currículos,
são passíveis de medidas que possam lhe fazer retroceder e ir a desencontro desses ideais democráticos e científicos, o que deve ser enfrentado com resistência pelas entidades civis que compõem e militam para
um Ensino Religioso plural e laico.
O presente trabalho estabeleceu alguns desses retrocessos no qual
passa o Ensino Religioso no Rio Grande do Norte, estabelecendo um diálogo entre as diretrizes nacionais, propostas mediante legislações respaldadas nas entidades civis que lhes serviram de alicerce e fundamento, na
tentativa de evidenciar a necessidade da SEEC/RN em cumprir com maior
rigor o que define e propõe a LDB, o FONAPER, e a BNCCER.
Recorre-se a essa necessidade de cumprimento para que não continue sofrendo o Ensino Religioso no Rio Grande do Norte prejuízos à
educação por um profissional não capacitado e/ou sem condições em
ofertar e ministrar essa disciplina, caindo no pecado do proselitismo e
confessionalidade, resultando assim em uma disciplina que foge da sua
característica não confessional e científica, além de não ser plural, na
medida em que a laicidade peloo professor não ter sido valorizada.
312
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de
História: fundamentos e métodos.
São Paulo: Cortez, 2004.
FONAPER. Ensino Religioso:
referencial curricular para a proposta
pedagógica da escola. Brasília, 2000.
FONAPER. Parâmetros Curriculares
Nacionais Ensino Religioso. São
Paulo: Mundo Mirim, 2009.
JUNQUEIRA, Sérgio. materiais
Didáticos para o componente
curricular Ensino Religioso visando
a implementação do artigo 33
da Lei 9394/96 revisto na lei
9475/97. Projeto CNE/UNESCO
914BRZ1009.2, Brasília, 2016.
JUNQUEIRA, Sérgio; OLIVEIRA, Lilian
(org.). Ensino Religioso: no Ensino
Fundamental. São Paulo: Cortez.
2007. – (Coleção docência em
formação. Série ensino fundamental).
JUNQUEIRA, Sérgio; WAGNER, Raul
(org.). O Ensino Religioso no Brasil.
Curitiba: Champagnat, 2011.
______. Materiais Didáticos para
o componente curricular Ensino
Religioso visando a implementação
do artigo 33 da Lei 9394/96 revisto
na lei 9475/97. Projeto CNE/UNESCO
914BRZ1009.2, Brasília, 2016.
RIO GRANDE DO NORTE. Secretaria
do Estado da Educação e da Cultura
(SEEC/RN). Ensino Religioso: Caderno
Pedagógico I – Comissão do Ensino
Religioso da SEEC/RN. – Natal, 2009.
313
RIO GRANDE DO NORTE. Secretaria
do Estado da Educação e da Cultura
(SEEC/RN). Ensino Religioso: Caderno
Pedagógico II – Comissão do Ensino
Religioso da SEEC/RN. – Natal, 2009.
PASSOS, João Décio. Ensino Religioso:
mediações epistemológicas e
finalidades pedagógicas. In: SENA,
Luiza (org.). Ensino Religioso e
formação docente: Ciências da
Religião e Ensino Religioso em
diálogo. São Paulo: Paulinas, 2007.
SENA, Luiza (org.). Ensino Religioso
e formação docente: Ciências da
Religião e Ensino Religioso em
diálogo. São Paulo: Paulinas, 2007.
TAVARES, Diego Fontes de Souza.
Estariam as licenciaturas em Ciências
da Religião na Torre de Marfim? Uma
análise dos componentes curriculares
como base epistemológica para o
professor de Ensino Religioso. In:
IX Congresso Nacional do Ensino
Religioso; I Congresso Latino
Americano de Educação e Ciência(s)
da(s) Religião(ões), nº 9., 2017, Natal/
RN. Anais... . Florianópolis: FONAPER,
2018. v. 1, p. 22-27. Disponível em:
<fonaper.com.br> Acesso em: 5 de
Agosto de 2019.
TORRES, Maria Augusta de Souza.
Ensino Religioso e literatura: um
diálogo a partir do poema Morte e
Vida Severina. Recife: FASA, 2012.
[ Volta ao Sumário ]
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
eRotismo e
ConveRsão Religiosa
no livRo apóCRifo
josé e asenatH
Kefren Kelsen Dantas Pereira
Leyla Thays Brito da Silva
Como referenciar este capítulo:
PEREIRA, Kefren Kelsen Dantas; SILVA, Leyla Thays Brito da. Erotismo e conversão religiosa no livro apócrifo José e Asenath. In: MARANHÃO Fº, Eduardo
Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR
- Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 314-327.
Kefren Kelsen Dantas Pereira1
Leyla Thays Brito da Silva2
1. Introdução
Os apócrifos são textos excluídos pela tradição judaico-cristã, durante o processo que deu origem ao que conhecemos como textos canônicos, os quais são tidos como revelação do pensamento divino: Javé
para os judeus e Deus para os cristãos.
Dentre os vários textos apócrifos, que com o passar dos anos chegaram ao nosso conhecimento, destacamos a produção literária José e
Asenath, alvo de diversas discussões relacionadas à sua autoria, datação e fonte original. O texto possui origem atribuída à comunidade
judaica helenizada, localizada em Alexandria no Egito, e sua escrita possivelmente compreendida entre os séculos I a.C e I d.C.
O texto que iremos analisar conta a história entre José filho de
Jacó, e Asenath, filha do sumo sacerdote egípcio Pentefes. No cânone,
a narrativa encontra-se desenvolvida ao longo do livro do Gênesis, no
qual a personagem é citada apenas de forma pontual. O referido texto
apócrifo, composto por 29 capítulos, se divide em duas partes: a primeira parte (capítulos 1 a 21) concentra-se na paixão de Asenath por
José, na conversão ao monoteísmo da protagonista e o casamento entre os personagens; a segunda parte (capítulos 22 a 29) narra a reação
do filho primogênito do Faraó (para quem Asenath estava prometida),
que, com a honra ferida, decide sequestrar Asenath como uma forma
de vingar-se de José.
O trabalho a ser desenvolvido será uma análise dos capítulos 5
a 17, em que Asenath encontra José, e, em função da paixão erótica
Discente do curso de Ciências das Religiões (Bacharelado) – UFPB, e-mail: kefren.kelsen@gmail.com.
2
Profa. Dra. do Departamento de Ciências das Religiões – UFPB, e-mail: leylahestia@
hotmail.com..
1
315
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
despertada, passa por uma experiência mística, a partir da qual se confronta com uma realidade sagrada diferente da sua religiosidade politeísta.
Diante da constatação de que é o desejo erótico que impulsiona Asenath à crença no Deus único, usaremos o pensamento do filósofo francês
Georges Bataille desenvolvido no seu O Erotismo, para que possamos compreender como a personagem experimenta o rompimento drástico de sua
vida cercada de riquezas, belos trazes e o cortejo de toda a sociedade egípcia, para adotar uma vida ao lado do governador José do Egito.
2 O Erotismo batailleano
O erotismo, conforme compreende o filósofo francês Georges Bataille, é uma experiência de aproximação profunda como a interioridade
humana e seus desejos, pela via da sexualidade. Trata-se de uma experiência interior, em que se dão atitudes subversivas de questionamentos e de desconstrução de valores anteriormente estabelecidos. O encontro com o sagrado, enquanto mistério profundo da vida e da morte,
seria o ápice dessa experiência.
“Do erotismo, é possível dizer que é a aprovação da vida até na
morte” (BATAILLE, 2013, p. 35). Com esta frase, Bataille não pretende
estabelecer um conceito sobre o erotismo, mas explica como se dá esse
fenômeno em que os desejos humanos, sobretudo o sexual, levam o ser
a experimentar sensações que lhe causam uma angústia, mediante os
perigos que tal desejo acolhe. Seguindo essa compreensão, o autor diferencia homens e animais a partir da consciência que ambos possuem
em relação à sua atividade sexual (2013, p. 35).
A atividade sexual de reprodução é comum aos animais sexuados
e aos homens, mas, aparentemente, apenas os homens fizeram de
sua atividade sexual uma atividade erótica, ou seja, uma busca psicológica independe do fim natural dado na reprodução e no cuidado
com os filhos.
Seres humanos e animais diferenciam-se pelo que Bataille intitula
por “descontinuidade”, na experiência humana, o erotismo configura-se
316
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
como uma “tentativa” de retorno à imanência e “continuidade” realizadas pelos animais, nesse sentido, a experiência humana provoca o rompimento com os compromissos culturais e a profundidade do encontro
consigo mesmo.
2.1 Da descontinuidade à continuidade
O homem, ao longo da história, foi o grande responsável pela
criação de meios, que pudessem mostrar sua diferença em relação aos
animais. Vivendo sob a cultura, criou o trabalho como uma forma de
vida organizada e padronizada, essa condição de trabalho faz com que
o homem esteja envolvido no sistema da descontinuidade, que pode
levar a uma forma de vida sob rótulos e sem entrega as experiências
de transformação. Na medida em que se beneficiava desta criação, o
homem tornava-se um ser aprisionado por ela. Em contrapartida, o homem estando fora de sua condição animal, põe-se em liberdade a partir
da experiência erótica, a experiência de sua ligação com outro indivíduo,
pois seus desejos o movem a um estado, em que não é possível ser
controlado pela razão. Bataille diz (2013, p. 30)
Creio que o erotismo tem para os homens um sentido que a abordagem científica não pode atingir. O erotismo só pode ser considerado
se, considerando-o, é o homem que é considerado. Em particular,
ele não pode ser considerado independentemente da história do
trabalho, não pode ser considerado independentemente da história
das religiões.
A experiência do ser humano como ser não é uma experiência fora
da sua relação com o trabalho e com as religiões. A condição humana
parece ter se estruturado, como aponta Bataille, por essas duas instâncias culturais.
É essa descoberta como ser incompleto que faz o indivíduo ir
ao encontro de sua própria continuidade, isto é, em busca de uma
“continuação” ou complementação de seu ser num outro. Nesse
sentido, sua integralidade individual e consciente parece estar sempre
ameaçada pelo erotismo, que põe em xeque as formas estabelecidas.
317
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Esse movimento erótico da descontinuidade para a continuidade
estaria, segundo Bataille nas bases da reprodução. observando que “a
reprodução coloca em jogo seres descontínuos” (BATAILLE, 2013, p. 36),
Bataille afirma que desde a geração da vida, todo indivíduo nasce de
uma união de morte, pois os gametas feminino e masculino deixam de
existir para formar um novo ser.
“Tentarei mostrar que, para nós que somos seres descontínuos, a
morte tem o sentido da continuidade do ser: a reprodução leva à descontinuidade dos seres, mas põe em jogo sua continuidade, ou seja, está
intimamente ligada à morte” (2013, p. 37). A continuidade é gerada a
partir do momento em que o indivíduo, consciente de sua própria identidade, movido pelo desejo de conhecer-se, quebra com sua condição
individual, deixando as seguranças da consciência pela via do erotismo
para conectar-se com o outro.
2.2 Erotismo como transgressão
Diferenciando-se dos animais, além da forma como conscientemente realiza sua atividade sexual, o homem é um ser que realiza o trabalho e dele sobrevive (BATAILLE, 2013, p. 54).
Sabemos que os homens fabricaram ferramentas e as utilizaram
para prover sua subsistência; depois, sem dúvida em pouco tempo,
para satisfazer “necessidades” supérfluas. Numa palavra, distinguiram-se dos animais pelo trabalho.
A vida do homem, a partir do trabalho, possui uma organização,
uma série de regras, para que a sociedade se mantenha em ordem.
Essas regras de ajuste ou de manutenção social recebem o nome de
interditos, que para Bataille recaíram inicialmente sobre a atitude para
com os mortos e a atividade sexual (BATAILLE, 2013). Esses interditos
fundamentais – assassinatos e relações sexuais – estão geralmente ligados às relações de parentesco.
O homem pensou suas formas de descontinuidade, “já que o trabalho, ao que parece, engendrou logicamente a reação que determina a
atitude diante da morte, é legítimo pensar que o interdito que regula e limita a sexualidade também foi um contragolpe ao trabalho” (BATAILLE,
318
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
2013, p. 54). Assim, por mais organizada que seja a vida social em meio
ao trabalho, o homem observou que a manutenção de sua existência
não está unicamente ligada ao trabalhar, lucrar e se alimentar. O desejo
pela experiência consigo mesmo e com o outro, tornou o homem um
ser entre o trabalho, o interdito (regras e proibições) e a transgressão.
Na sua natureza, há sempre a necessidade de romper com aquilo que é
organizado, proibido, pois essa forma de vida não completa o que o homem é e “o erotismo é a dança, propriamente humana, que se dá entre
esses dois polos: o do interdito e o da transgressão” (BATAILLE, 2013,
p. 16). O interdito tanto regula quanto limita, pois anda acompanhado
pela transgressão.
2.3 Erotismo como experiência interior
Frente a tudo o que realiza na vida: trabalho, experiência religiosa, paixões; o homem experimenta aquilo que o leva ao máximo de si,
sendo assim, Bataille afirma que “o erotismo é um dos aspectos da vida
interior do homem” (2013, p. 53). Esse envolvimento com a dimensão
interior, vem por sua vez, trazer ao homem: a morte, a violência, a angústia; “o erotismo do homem difere da sua sexualidade animal justamente por colocar em questão a vida interior. O erotismo é, na consciência do homem, o que nele coloca o ser em questão” (BATAILLE, 2013,
p. 53). O próprio desejo questiona o homem na sua maneira de ser, tem
consciência da existência do trabalho como uma invenção da cultura,
algo que afasta de sua continuidade, o deixa como um ser descontínuo.
Mexido com essas questões e com a necessidade de romper com os interditos que o impedem de buscar sua continuidade, o homem torna-se
um transgressor, mas não nega a existência dessas proibições, pois “a
transgressão difere do “retorno à natureza”: ela suspende o interdito
sem suprimi-lo” (BATAILLE, 2013, p. 59).
Sem o desejo erótico para questionar-lhe sobre sua existência, o
ser humano talvez se limitasse a ser apenas objeto do trabalho e da cultura. Para Bataille, “o erotismo, já o disse, é a meus olhos o desequilíbrio
em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente” (2013,
p.55). Em continuidade, o ser permite voluntariamente perder-se numa
experiência sem o controle do racional, essa experiência erótica para
319
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Bataille é dividida em três dimensões: o erotismo dos corpos trata-se da
experiência sexual dos corpos, que no humano apresenta a capacidade
de domínio sobre a violência e sobre a violação dos corpos, o erotismo
dos corações traz a sexualidade corpórea e a contemplação dos amantes no momento que se tornam seres contínuos, e o erotismo sagrado
se revela na continuidade do ser, mediante a morte do ser descontínuo
através dos ritos solenes; “a experiência interior nunca é dada independentemente de visões objetivas, nós a encontramos sempre ligada a
tal ou tal aspecto, inegavelmente objetivo” (BATAILLE, 2013, p. 55-56).
Ao embarcar nessa experiência, o homem não sabe o que virá.
É uma experiência de profundidade, de intensos questionamentos,
que faz o ser humano violentar-se causando a morte de sua individualidade, de sua descontinuidade, para tornar-se um ser contínuo, a
partir da entrega erótica a um objeto de desejo. “No plano do erotismo,
as modificações do próprio corpo, que correspondem aos movimentos
vivos que nos alvoroçam interiormente, estão elas próprias ligadas
aos aspectos sedutores e surpreendentes dos corpos sexuados” (BATAILLE, 2013, p. 59).
Sem seus desejos, o homem não é capaz de confrontar a si mesmo. Sem questionar-se, o homem não pode ir contra as condições impostas pela cultura e pelo trabalho, não pode realizar seu processo de
transgressão. Passando pelo processo de transgressão, as condições
incontroláveis da experiência interior causam-no um movimento de
violência física e provocando uma reconfiguração de sua condição anterior no mergulho erótico. “Se observarmos o interdito, se lhe somos
submissos, deixamos de ter consciência dele. Mas experimentamos, no
momento da transgressão, a angústia sem a qual o interdito não existiria: é a experiência do pecado” (BATAILLE, 2013, p. 62). Depois de todo
esse movimento, é que o homem tem uma abertura à sua dimensão sagrada, tem acesso ao sagrado. “A experiência interior do homem é dada
no instante em que, quebrando a crisálida, ele tem a consciência de dilacerar a si mesmo, não à resistência oposta de fora” (BATAILLE, 2013,
p. 62). A partir do momento em que rompe com sua condição anterior,
através de uma transgressão erótica, o homem adquire sua totalidade,
pois estando na esfera do sagrado, chega ao conhecimento profundo de
sua condição contínua.
320
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
3. O apócrifo José e Asenath
José e Asenath é um dos textos configurados pela tradição judaico-cristã dentro da categoria dos escritos apócrifos. Diferente dos textos
canônicos, os apócrifos não são considerados obras produzidas sob inspiração divina.
Situado entre os séculos I a.C. a I d.C. originalmente em grego, o
texto é produto da comunidade judaica helenizada de Alexandria, no
Egito, durante o período da história judaica chamado de diáspora. Segundo Everson Spolaor (2012, p.12):
José e Asenet é uma obra literária que reflete os processos culturais
e religiosos de um grupo social em seus diálogos e confrontos com
outros grupos sociais, resultando em construções e reconstruções
contínuas de identidades de cada grupo. Ela mostra como as identidades se diluem nos processos históricos e revela a fragilidade das
bordas e fronteiras identitárias. Neste sentido, o livro pode se considerado uma prova do vitalismo e dinamismo das estruturas que
identificam um povo.
O texto é considerado como sendo do gênero novela, como observam Silva e Cuesto, trata-se de “uma história para ser contada com
o intuito de, a partir da admiração e identificação com os personagens,
leva os ouvintes a refletirem sobre suas vidas, atitudes e valores” (2008,
p. 49). Para Spolaor (2012, p.12):
Muitas pesquisas têm sido feitas em José e Asenet. Algumas tentando ressaltar o aspecto ficcional da obra, outras afirmando uma
origem cristã para a obra, algumas fazendo uma leitura a partir da
ótica dos oprimidos e opressores, outras, ainda, adotando uma
abordagem de gênero destacando a valorização feminina num ambiente grego-judaico-helênico.
Fazendo uma análise do texto, observando as atribuições à personagem Asenath, é possível perceber a existência de uma diferença na
forma como a personagem é descrita no texto apócrifo e no canônico
livro do Gênesis. O apócrifo revela Asenath como uma figura de destaque
321
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
durante a narrativa, já no Gênesis, a personagem aparece apenas três
vezes3. É possível perceber que nas três referências no Gênesis, Asenath
não é apresentada como uma personagem autônoma e protagonista,
uma vez que está sempre ligada às figuras masculinas de seu pai Pentefes e seu esposo José, é sempre descrita como a filha do sacerdote e
como aquela que gerou filhos para seu esposo, o que revela a influência
sofrida na escrita do texto canônico dentro do contexto de uma sociedade patriarcal.
Segundo Alves (2007, p. 11):
Desde o mais antigo manuscrito de José e Asenath que nos resta
(uma versão siríaca do século VI d.C.) às diversas versões e traduções que foram sendo feitas ao longo da Idade Média, nota-se o
interesse mantido nesta história de cunho simbólico.
É importante observarmos como Asenath é colocada na narrativa, e para isso, faremos uso da teoria batailleana para analisar o texto
dos capítulos 5 a 17, onde a personagem realiza um percurso interior
que culmina em processo de conversão religiosa no Deus único do seu
amado.
3.1 Asenath da descontinuidade à continuidade
Asenath é a personagem principal do texto apócrifo, egípcia, filha
do sacerdote mais importante Pentefes. Apresentada como virgem, que
rejeita os pretendentes indicados por seu pai, até conhecer José, que
vive em um palácio e possui outras sete virgens como servas.
Perante o anúncio da presença de José, a primeira atitude da personagem é a fuga. “Nesse momento entrou a correr um jovem serviçal
e falou a Pentefes: “José já está às portas do pátio”. Ao ouvir estas palavras, Asenath fugiu da presença do seu pai e da mãe, e subiu as escadas
do solar” (JoAs 5, 1); ao esconder-se Asenath, ainda que inconscientemente, realiza uma ação de descontinuidade, cuja necessidade é a preservação de seus padrões culturais.
Gn 41, 45, 50 e Gn 46, 20 são os versículos bíblicos onde a figura de Asenath é mencionada.
3
322
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Quando se encontra pela primeira vez com José, Asenath é tomada
por sentimentos desconhecidos (JoAs 6, 1):
Tendo Asenath visto José, ficou fortemente perturbada no seu íntimo. Seu coração palpitava e seus joelhos vacilavam. Todo o seu
corpo tremia e uma grande angústia apossou-se dela. Com fortes
suspiros, assim falou em seu coração: “Para onde eu, desgraçada,
deverei fugir agora? Onde esconder-me da sua face? Como poderá
José, esse filho de Deus, volver os seus olhos para mim, eu que tanto mal falei dele?
Entra em cena, o que para Bataille é o desejo erótico, que toma
conta da personagem Asenath, colocando todo seu ser em questão.
Segundo Bataille “é, em sua totalidade, o ser elementar que está em
jogo na passagem da descontinuidade à continuidade” (2013, p.40). O
erotismo dos corpos faz com que Asenath suspire e deseje àquele que
acabara de conhecer, sendo assim, tem início o processo psicológico,
que na personagem provoca “o sentimento de uma violência elementar,
que anima, quaisquer que sejam, os movimentos do erotismo” (BATAILLE, 2013, p. 40).
Tomada de paixão e vislumbrada com as feições do amado, Asenath atribui a José qualidades divinas: “Agora vem ele a nós, semelhante a um sol divino, em seu carro, dando entrada em nossa casa e
iluminando-a com a luz que ilumina toda a terra!” (JoAs 6, 3). Em JoAs
6, 4 Asenath suplica “ó pai, entrega-me a José como sua serva, melhor
ainda, como sua escrava! Sim, desejo ser sua escrava para sempre”, observamos o desejo de pertencer a José de forma integral e na condição
de escrava, pois “parece ao amante que só o ser amado [...] pode, neste
mundo, realizar o que nossos limites interdizem, a plena confusão de
dois seres, a continuidade de dois seres descontínuos” caracterizando o
erotismo dos corações abordado por Bataille como parte do movimento
que envolve Asenath.
Por ser muito assediado, José sempre rejeitava presentes e mensagens que recebia dizendo: “jamais haverei de pecar contra Deus, o Senhor, nem contra a face do meu pai, Israel” (JoAs 7, 2). Até então os dois
personagens, Asenath e José não tinham estado frente a frente, quando
se conhecem, Asenath é rejeitada por José por sua cultura e religião,
323
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
alegando adorar o “Deus vivo”. Foi o suficiente para perturbar e provocar
Asenath a experimentar uma mudança drástica em sua existência.
3.2 Experiência interior e transgressão de Asenath
A experiência interior de Asenath inicia com a rejeição de seu amado. A crença no Deus único não permite que José mantenha contato com
Asenath, que por sua vez, se isola em seus aposentos e já dirige orações
ao deus de José, iniciando seu despojamento.
Então tirou suas vestimentas reais e vestiu o vestido de luto. Desprendeu o cinto de ouro e cingiu-se com uma corda tirou o turbante, o diadema, os braceletes e as fitas de ouro e amontoou tudo
isso no chão. [...] Depois, reuniu o grande número de estátuas de
seus deuses feitos de ouro e prata, que se encontravam no quarto,
quebrou-os em mil pedaços e atirou-os pela janela, aos mendigos e
necessitados. (JoAs 9, 6-7)
É necessário Asenath passar por este processo de renúncia para
dar início a sua conversão, pois “sem uma violação do ser constituído
– que se constituiu na descontinuidade – não podemos conceber a passagem de um estado a outro essencialmente distinto” (BATAILLE, 2013,
p. 40). Ao converter-se, Asenath assume sua paixão por José e a revela
ao deus de seu amado:
“[...] eu confesso, meu senhor, eu o amo mais do que à minha própria alma. Conserva-o na sabedoria da tua graça, e entrega-me a
ele como sua serva e escrava, para que eu possa lavar-lhe os pés,
preparar-lhe a cama, e em tudo servi-lo com submissão atenção,
como sua escrava, nada mais que escrava, por todos os dias da minha vida” (JoAs 13, 7).
Neste sentido, a personagem realiza o que Bataille caracteriza
como perda voluntária, quando conscientemente ela deixa envolver-se
pelo erotismo que a questiona enquanto ser.
Ao converter-se, ocorre a morte simbólica da personagem, que em
seguida recebe a visita de um anjo que a seus olhos se assemelha a
José. O anjo pede a Asenath que termine o jejum e o luto e retorne já
324
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de novas vestes “vai agora mesmo ao teu segundo quarto, desveste a
roupa de luto com que te cobriste e tira dos teus quadris a veste de penitência! Remove as cinzas de tua cabeça! Lava as mãos e o rosto com
água pura e veste uma roupa branca e intacta!” (JoAs 14, 7).
Asenath está tomada do erotismo sagrado, sua experiência interior e o contato com o anjo a preparam para casar-se com José. “No dia
de hoje o Senhor te deu a José como sua noiva; ele será o teu esposo
para sempre” (JoAs 15, 3). O anjo a convida para um banquete sagrado,
onde observamos cenas com uma alta carga de simbolismo erótico no
decorrer da narrativa com a presença de abelhas que fabricam o mel no
paraíso das delícias.
Esse favo é na realidade o espírito da vida, e foi preparado pelas
abelhas do paraíso das delícias, extraído do orvalho e das rosas da
vida do paraíso de Deus, bem como de todas as suas outras florações. [...] Com a própria mão tomou outra parte e chegou-a à boca
de Asenath, dizendo: “come tu também!” E ela comeu (JoAs 16, 7-8).
Bataille (2013, p. 62) explica que a experiência interior do ser humano equivale a saída de uma borboleta do seu casulo, ao quebrar a
crisálida, a borboleta sofre uma drástica modificação assim como o indivíduo convertido, sua metamorfose ocorre sem que as forças externas
interfiram nesse acontecimento pessoal.
Segundo Branco (2004, p. 9):
A ideia de união não se restringe aqui apenas à noção corriqueira de
união sexual ou amorosa, que se efetua entre dois seres, mas se estende à ideia de conexão, implícita na palavra religare (da qual deriva
religião) e que atinge outras esferas: a conexão (ou re-união) com a
origem da vida (e com o fim, a morte) a conexão com o cosmo (ou
com Deus, para os religiosos), que produziriam sensações fugazes,
mas intensas, de completude e de totalidade.
Pode-se observar que a personagem Asenath está pronta, rompendo com sua condição cultural anterior e aderindo ao Deus único,
pode então casar-se com José, já que tudo o que impedia o relacionamento entre ambos foi solucionado a partir de um processo de mudança
radical de vida.
325
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
4. Conclusão
A narrativa José e Asenath apresenta uma composição de extrema
beleza poética e simbólica, fazendo-se uma contribuição da comunidade judaico-helênica para literatura. Asenath foi tomada de um potente
desejo sexual, um amor que lhe causou sofrimento, a personagem foi
impulsionada a um mergulho erótico sobre sua existência, realizando
um processo de conversão com arrependimento e renúncia sob sua antiga condição cultural, a egípcia.
Transgredir seu modo de vida é uma condição necessária para que
se efetue o desejo erótico. A experiência do ser em totalidade coloca
Asenath sob uma nova vida e lado daquele que ama.
Sendo assim, apesar desse mergulho erótico causar desconforto,
angústia e colocar o indivíduo frente ao desconhecido, o percurso é necessário para que o ser humano na figura de Asenath atinja a totalidade
do seu ser, pelas vias do erotismo que gera para o indivíduo seu autoconhecimento.
326
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALVES, S. M. José e Asenet: uma
criação da literatura peculiar.
Dissertação (Mestrado em Estudos
Clássicos) – Faculdade de Letras,
Universidade de Lisboa. Lisboa, 2007.
SILVA, F. R., CUESTO, R. V. José e
Asseneth – Pensando identidade e
etnia a partir do texto e seu contexto.
Revista Eletrônica âncora, São Paulo,
v. IV, 2008.
BRANCO, L. C. O que é erotismo. São
Paulo: Brasiliense, 2004.
SPOLAOR, E. José e Asenet:
construção de identidade judaica na
diáspora em Alexandria. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião) –
Faculdade de Humanidades e Direito,
Universidade Metodista de São Paulo.
São Bernardo do Campo, 2012.
BATAILLE, G. O erotismo. Tradução
Fernando Scheibe. 1. Ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
[ Volta ao Sumário ]
327
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
exoRCização do mal:
Ritual de cura e libertação
no cenário neopentecostal
da igreja internacional
da graça de deus
Antônio Santos
Como referenciar este capítulo:
SANTOS, Antônio. Exorcização do mal: Ritual de cura e libertação no cenário
neopentecostal da Igreja Internacional da Graça de Deus. In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 328-344.
Antônio Santos1
1. Introdução
O papel por excelência da religião é ajudar o homem na formulação
de um conceito adequado da vida. Ela tem por objetivo dar sentido ao indivíduo para viver em meio ao contexto social. Além de tornar o indivíduo
capaz para enfrentar os problemas sociais com dignidade e perseverança.
A religião sempre teve presença marcante em toda a história das
sociedades por ser um fenômeno inerente à cultura. Sendo assim, ela
influencia em todos os movimentos que promovem e mantêm políticas
sociais, que definem as regras e os padrões para a convivência. Ela oferece ainda a direção ao pensamento, à ação e ao sentimento humano.
Segundo a Sociologia da Religião, área de estudos da Sociologia, a
religião é uma das estruturas mais fortes do sistema social, porque ela
é capaz de manter a ordem social estabelecida, além de ser um dos mecanismos mais viáveis de associação humana. A sociedade é a criadora
dos conceitos religiosos e morais, que vão pautar as condutas humanas,
apesar de o homem ser, por natureza, irreligioso e amoral.
Para O’Dea (1969), a religião consegue enobrecer o homem e civilizá-lo, mantendo a moralidade, a ordem pública e oferecendo-lhe paz
interior. Entretanto ela também pode incentivar o fanatismo, a intolerância e a ignorância prejudicando o progresso social.
De acordo com a vertente sociológica da teoria funcionalista, a religião é uma das instituições que constitui o sistema social. Por ser uma
atividade humana que dita normas de comportamento que são aceitas pelos seus membros como legítimas e obrigatórias, ela se constitui
em uma instituição de fundamental importância para manutenção do
equilíbrio do sistema social como tal.
Antônio Santos, Mestrando em Ciências da Religião – Universidade Federal de Sergipe
(UFS), Pós-Graduação em Ciência das Religiões: Metodologia e Filosofia do Ensino,
Graduado em Teologia e História. http://lattes.cnpq.br/9749954816179687 E-mail:
pr.antoniostos@gmail.com.
1
329
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
De acordo com Berger (1985),
A religião é o empreendimento humano pelo qual se estabelece um
cosmos sagrado. A religião é a cosmificação feita de maneira sagrada. Por sagrado entende-se aqui uma qualidade de poder misterioso e temeroso, distinto do homem e, todavia relacionado com
eles, que se acredita residir em certos objetos da experiência (p. 38).
Pode-se dizer, portanto, segundo Berger (1985) que a religião
desempenhou uma parte estratégica no empreendimento humano da
construção do mundo. A religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo.
A religião está inserida no fenômeno cultural e, enquanto elemento da cultura define a ação de seus membros, influenciando o pensamento, sentimentos e comportamentos de seus fiéis. “A cultura é a criação, pelo homem, de um mundo de ajustamento e sentido, no contexto
do qual a vida humana pode ser vivida de maneira significativa” (O’DEA,
1969, p. 11).
Durkheim (apud 1969), o pioneiro da sociologia da religião, qualifica a religião como a mais elevada fonte de toda a cultura, uma “coisa
social”, em que o culto a Deus é um culto da sociedade enquanto uma
entidade viva e personalizada, com o intuito de regular o comportamento humano.
É importante observar que, segundo Durkheim (1989 apud GOODY,
2012, p. 26), a dicotomia sagrado/profano existe dentro do sistema de
coordenadas do ator; ele afirma estar lidando com conceitos que estão
presentes em todas as culturas, e que são significativos para o próprio povo.
Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam uma característica comum: elas pressupõem uma
classificação de todas as coisas, reais e ideais, sobre as quais os homens
pensam, em duas classes ou grupos opostos, geralmente designados
por dois termos distintos que são bastante bem traduzidos pelas palavras profano e sagrado (GOODY, 2012).
A religião dita regras de conduta com objetivos de dominação, mas
é o homem, em sua liberdade fundamental, que vai optar em segui-la ou
não. Pois todos os homens nascem iguais e dotados de certos direitos
330
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
inalienáveis, entre os quais à vida, à liberdade e o direito à felicidade! O
homem tem o poder de escolher a religião que pode lhe proporcionar
segurança e bem estar.
É por este motivo que para a teoria funcionalista, a religião,
contribui para humanidade, porque esta pode oferecer aos seus
membros uma referência a um além, que transcende a sua experiência
que é finita. Ou seja, o problema do sentido da vida do homem está
relacionado com o desejo do próprio homem de estar no controle de sua
vida. Por essa razão, a humanidade busca na religião uma resposta para
o enfrentamento de seus problemas com mais segurança, na tentativa
de diminuir as suas frustrações e privações.
“Em outras palavras, os homens exigem respostas referentes ao
destino humano, às exigências de moralidade e disciplina, aos males da
injustiça, sofrimento e morte” (O’DEA, 1969, p. 22).
Este sociólogo cita algumas das funções da religião que são a de
oferecer ao homem um apoio emocional para incerteza, um consolo
para decepção, através da invocação do além, trazendo ao homem o
bem-estar em saber qual será o seu destino. “O crente que se comunicou com seu deus [...] é um homem mais forte. Em seu íntimo, sente
mais força, seja para enfrentar as provas da existência seja para dominá-las” (O’DEA, 1969, p. 24).
Bourdieu (1998) ao analisar a teoria da religião de Max Weber
observa-se que os profetas e sacerdotes são os dois agentes da sistematização e da racionalização da ética religiosa. Mas também intervém
neste processo um terceiro fator de grande importância: trata-se da
influência daqueles sobre os quais os profetas e o clero procuram agir
eticamente, ou seja, os leigos.
A ética religiosa influencia o pensamento do homem em todas as
instâncias sociais, seja na economia, na política, no lazer e na ciência,
etc. Muitas vezes algumas regras entram em conflito com os desejos
humanos e são então proibidas por serem consideradas profanas, portanto, produtos do ascetismo religioso.
O Brasil na formação de sua matriz religiosa, teve como contribuições o pensamento e a prática de várias religiões. Desta forma,
percebe-se que no mesmo encontramos um pluralismo e uma diversidade religiosa que precisam ser respeitados. Como diz Guerra (2000), o
331
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
pluralismo religioso é ocasionado devido a necessidade do sagrado adequar-se aos desejos e peculiariedade dos consumidores.
Conquistado, colonizado e catequizado pelos portugueses, o
Brasil foi um país oficialmente católico por quase quatro séculos. Entretanto, ao longo dos anos a Igreja Católica vem sofrendo a concorrência das doutrinas protestantes, já difundidas no país desde o século
XX. No Brasil existe uma grande massa de católicos não-praticantes,
proveniente da resistência da Igreja Católica a se adaptar a modernidade. Eles afirmam serem adeptos da religião, por frequentar cerimônias como casamentos e batizados, mas não toma parte regularmente
de ritos como a missa aos domingos. Esses católicos muitas vezes
discordam dos ensinamentos morais da Igreja por estes não serem
adaptados a modelos do mundo contemporâneo como o relativismo
cultural e o ceticismo científico.
Na tentativa de atrair e manter os seus fiéis o Movimento de Renovação Carismática vem se aproximando da visão das Igrejas protestantes, com o intuito de oferecer aos consumidores católicos uma liturgia
atraente,tendo como figura mais evidente o padre Marcelo Rossi, religioso paulistano que se tornou um fenômeno de mídia, outros como: Antônio Maria, Fábio de Melo, Reginaldo Manzotti e Alessandro Campos.
Conforme Mariz (2009), no percurso da sua pesquisa sobre as “novas comunidades” inspirados pelos documentos do Concílio Vaticano
II, a natureza missionária da Igreja Católica e a vocação missionária de
cada um dos seus adeptos.Mariz (2009) afirma que:
Com efeito, no Brasil, a Renovação carismática tem crescido muito
dentro da Igreja Católica, reanimando a prática religiosa,reunindo
os fiéis em grupos e criando comunidades de dimensões nacionais,
algumas com regras similares a ordens religiosas e com projetos
missionários (p. 171).
Os discursos assumidos pelo indivíduo religioso transmitem em
suas práticas litúrgicas a ideia do pecado, a qual faz com que os fiéis
acreditem que tudo aquilo que ele pratica de “errado” estará desagradando ao seu Deus e consequentemente atraindo para si um castigo.
Esse entendimento concentra nas mãos do agente religioso um controle de dominação da consciência dos seus seguidores.
332
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Quando pensamos na Reforma Protestante por volta de 1500,
observamos os fundamentos da velha sociedade medieval ruídos, no
sentido de desestruturados, e uma nova sociedade, com uma dimensão geográfica muito ampla e com transformações nos padrões político,
econômicos, intelectuais e religiosos, começava a surgir lentamente. As
mudanças foram revolucionárias, por sua natureza e pela força de seus
efeitos sobre a ordem social.
Martinho Lutero em 31 de outubro de 1517 afixou suas 95 teses,
na porta da Igreja do castelo de Wittenberg, onde nelas condenava os
abusos do sistema das indulgências e desafiava a todos que tomassem
conhecimento delas para um debate sobre o assunto.
O bem conhecido termo “Reforma Protestante” foi consagrado
pelo tempo. Visto que a Reforma foi uma tentativa de voltar à pureza original do cristianismo do Novo Testamento é sábio que se
continue a usar o termo para descrever o movimento religioso de
1517 a 1545. Os reformadores estavam interessados em desenvolver uma teologia que estivesse em completa concordância com
o Novo Testamento eles, criam que isso seria possível a partir do
instante em que a Bíblia se tornasse a autoridade final da Igreja
(CAIRNS, 2008, p. 250).
Diferentemente do catolicismo que adentrou no Brasil desde o
início da colonização o protestantismo difundiu-se com o apoio de intelectuais, humanistas, estudantes e da nobreza. A partir daí, inúmeras
vertentes foram formadas, sempre tendo um pensador central como
seu mentor que fundaram suas próprias religiões, impulsionando a revolução protestante.
2. Protestantismo histórico
O protestantismo histórico, originário da reforma do século XVI,
outra mais precisamente no século XVIII, e que atua no Brasil, dentre elas,
a Presbiteriana, Batista, Luterana e a Metodista. São grupos religiosos que
se caracterizam pela sua conversaçãoracional e sistemática,fundamentada
numa liturgia salvacionista, com incorporação de valores tradicional,
333
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ratificado nos escritos Veterotestamentário e Neotestamentário dasEscrituras Sagradas, onde a Bíblia é aceita no seu todo como fonte de
inspiração de Deus para o indivíduo.
A Bíblia é uma fonte de saber religioso socialmente reconhecida
ontem e hoje, por católicos, evangélicos, afro-brasileiro, no campo e na
cidade, por bandidos e policiais, por moradores do centro e da periferia,
por políticos e leitores. Inserida nesta dinâmica, não por acaso, na era da
informação, em pleno século XXI, a Bíblia continua sendo um poderoso
“recurso cultural” para o desvendamento do mundo e para ancorar escolhas religiosas com efeitos políticos (NOVAES, 2003, p. 33).
Os pastores que exerce liderança ou o púlpito para proferir seus
discursos têm formação teológica feita possivelmente nas Instituições
teológicas da própria denominação de fé, ou seja, uma teologia exclusivamente confessional.
Os lideres são preparados não apenas teologicamente, mas também em outras áreas do saber, como Administração, Direito, Sociologia,
Filosofia, Psicologia Pastoral, com o objetivo de tornar o agente religioso realmente capaz dando-lhes as ferramentas necessárias para que
durante a sua jornada no ministério e desenvolvimento da sua missão,
possam ajudar os fiéis a enfrentar os problemas individuais e as questões existenciais complexas, utilizando a racionalização na resolução
dos conflitos existentes.
As resoluções teológicas concernente aos assuntos complexos são
respondidas para os fiéis nas Escolas Bíblicas Dominicais. São questões
bastante trabalhadas como: provar biblicamente a existência de Deus;
em que aspecto Deus é diferente e igual ao homem? Como Jesus pode
ser plenamente Deus e plenamente homem, e ainda assim uma pessoa.
A questão do batismo com o Espírito Santo para o protestantismo histórico baseia-se na a experiência relatada no livro de Atos dos
Apóstolos (Capitulo 2:1-13), cumprimento da profecia do profeta Joel
(Capitulo 2:28 e 29), que para esse grupo, foi um fato único. O Espírito
Santo já veio e está na terra, não precisando desta forma de rituais para
recebê-lo.
A cura divina e a libertação do indivíduo é uma parceria de Deus
e do próprio indivíduo, cada um desempenhando o seu papel. Deus
pode curar, como também pode não querer curar, vai depender da fé do
334
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
indivíduo, do esforço que este faz para adquirir e fazer por onde o milagre acontecer. Tem alguns textos bíblicos, que ajudam a entender o
processo, como: “Sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem se
aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o
buscam” (Carta aos Hebreus, capítulo 11, versículo 6).
“Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles
que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito”
(Carta aos Romanos, capítulo 8, versículo 28).
Um dos grandes fatores pelos quais as religiões tradicionais perdem espaço para as pentecostais que conseguem se adequarem a pós-modernidade, seja o fato de que enquanto as tradicionais insistem
numa ética de salvação que expressa grandes princípios dogmáticos
universais transcendentes, as pós-modernas pregam e agem fora desistemas de verdades eternas e firmam-se na pura contingência das
necessidades imediatas (MENDONÇA, 2006).
3. Protestantismo pentecostal
As Igrejas do protestantismo pentecostal vêmascendendo na sociedade em virtude de suas práticas litúrgicas.
A primeira dentre elas é a Igreja Evangélica Assembléia de Deus,
conhecida pela ação do sobrenatural no campo religioso e pela busca
incessante pelo dom do Espírito Santo, que diferentemente do grupo
histórico, acredita que a graça de falar em línguas estranhas, fenômeno
denominado de glossolalia, é a evidência de que o indivíduo é salvo.
Os missionários suecos Daniel Berg e GunnerVingren chegaram
ao Brasil em 1911 e foram recebidos em uma Igreja Batista local em
Belém do Pará.Os pontos de atritos entre os missionários e a estrutura
eclesiástica da igreja Batista logo ficaram evidentes. Os dois missionários foram expulsos e, com alguns fiéis batistas organizaram a Igreja
Assembléia de Deus no mesmo ano.
Esse grupo, desde a sua fundação, esteve sempre ligado à idéia de
simplicidade, tanto por parte dos pregadores que utilizavam um conteúdo que oferecia aos fiéis a possibilidade de alcançarem a santificação
através da busca incessante do Espírito Santo.
335
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
“A glossolalia, como ação do Espírito Santo na vida dos fiéis, gerou
polêmica no interior do campo religioso brasileiro; divisões, e a formação
de novos grupos.E continua a despertar a curiosidade de muitos, seja pelo
estado especial a que o fiel é submetido nessas situações ou simplesmente porque permanece como fenômeno inexplicável para a maioria
que dele participa ou que a ele assiste” (MENESES, 2008, p.130-131).
Os outros grupos de Igreja, no qual identificamos práticas pentecostais e outras tais, como o ritual de cura divina, são a Igreja do Evangelho Quadrangular, fundada em 1951; a Igreja o Brasil para Cristo, fundada em 1955 e a Igreja Deus é Amor, fundada em 1962.
O marketing é a marca forte desses grupos pentecostais para a
ampliação de suas idéias e conquista de espaços no disputado mercado
de bens simbólicos existente no interior do campo religioso brasileiro.
Segundo Montero (2009), o sucesso de uma religião dependeria de
sua capacidade de tornar-se espetáculo e de chamar atenção da mídia,
ou seja, experiências televisivas como as do pentecostalismo e neopentecostalismo nos anos 1980 e dos carismáticos na década subsequente
alteraram os espectadores da cena religiosa. Além disso, conforme a
autora, não é um fenômeno recente a questão de concessão pública de
canais televisivos e de radiodifusão a confissões religiosas.
O ritual de cura divina também constitui um grande instrumento
divulgador do desempenho da igreja na conquista de adeptos, se utilizando de práticas terapêuticas, no intuito de conseguir fiéis.
As religiões pentecostais interagem com o Deus transcendente
que age em outra escala de tempo, que opera no indivíduo, onde não
há verdades eternas, mas verdades provisórias. Enquanto os históricos
não satisfazem a esperança utópica do indivíduo, esses mesmos indivíduos acabam emigrando para outras religiões que pregam esperança e
soluções imediatas.
4. protestantismo neopentecostal
O neopentecostalismo é um segmento novo e sedutor para a
pesquisa, pelo fato de reformular os discursos e liturgias desse outros
336
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
segmentos “históricos e pentecostais”, que já vem atuando no Brasil há
mais tempo. Através desta fusão, os neopentencostais vêm conseguindo atrair adeptos.
Dentre as Igrejas que estão arroladas nesta classe religiosa, citamos a Igreja Universal do Reino de Deus(IURD), Igreja Mundial do Poder
de Deus, Renascer em Cristo e Igreja Internacional da Graça de Deus. No
entanto iremos nos limitar à Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD),
pela suas particularidades.
Uma das principais características das igrejas neopentecostais é a
ênfase na figura do líder religioso, e a IIGD possui um dos líderes mais
influentes do País, Romildo Ribeiro Soares, conhecido como R. R. Soares. Ele adotou essa abreviatura para evitar qualquer constrangimento
com outros pregadores que poderiam se chamar Romildo e, possivelmente, trazer escândalo para a obra.
Nascido em 6 de dezembro de 1947, na pequena cidade de Muniz Freire, Estado do Espírito Santo. Capixaba de família humilde teve
de trabalhar desde cedo. Ainda criança trabalhou um período plantando
milho nas terras do avô, depois foi sapateiro e, aos 12 anos, começou a
trabalhar no cinema da cidade, tornando-se gerente daquela unidade.
Ele ajudava a exibir filmes aqui (Muniz Freire) e em Anutiba (cidade
vizinha). Ficou pouco tempo na função, pois em seguida foi para o
Rio, conta o primo Rubens Ribeiro Soares. No Rio de Janeiro, Romildo, com um dos seus irmãos (Adilson Soares), começou a vender
roupas de porta em porta. “Comprávamos em São Paulo e vendíamos no Rio. Naquela época não havia problema de assalto, então as
pessoas nos atendiam bem em casa” recorda-se Adilson ( REVISTA
GRAÇA – Show da Fé, 2005, p. 49).
Converteu-se ao Protestantismo aos seis anos de idade em uma
igreja tradicional e aos 11 anos, em Cachoeira do Itapemirim, foi convidado por seu primo a conhecer o aparelho televisor que era novidade na
época e ficou impressionado ao ver como as pessoas ficavam atentas
ao assistirem à programação.
Aos 20 anos de idade ganha um exemplar do livro “Curai os enfermos e expulsai os demônios”, do Dr. Osborn, que na época era missionário e escritor norte-americano. A partir da leitura desse livro aconteceu
o chamado para a pregação do “Evangelho Pleno”.
337
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Mais adiante surge Edir Macedo, seu cunhado e irmão de fé desde a
época da Igreja Nova Vida. Ambos fundaram a igreja da Benção que funcionava em uma antiga funerária, ou seja, um galpão. Em 1977 a igreja da
Benção sofre alteração em seu nome passando a se chamar IURD.
Em 1980 Soares decide deixar a IURD e funda a IIGD. Esta Igreja
foi estabelecendo sua doutrina com ênfase na “cura divina”, realizando
reuniões no Rio de Janeiro e em São Paulo sua capital e no interior.
Esta igreja nasceu apoiada na teologia da prosperidade, uma doutrina que teve sua origem na década de 40 nos Estados Unidos, mas
ficou conhecida como doutrina apenas na década de 70, por meio da
confissão positiva, valorização do indivíduo, onde acredita que este indivíduo tem direito de adquirir tudo de bom e de melhor nesta vida.
De acordo com Montero (2009), referindo-se ao neopentecostalismo:
No caso dos neopentecostais, através das formulações da “teologia
da prosperidade”, a noção de acesso aos bens articulou-se, paradoxalmente, não à lógica do mercado, mas à do dom, e contra-dom
tão bem estudada pela antropologia. Com efeito, nas práticas discursivas neopentecostais todo indivíduo deve exercer seu “direito à
prosperidade” (p. 9).
Para a autora supracitada, no que diz respeito a legitimidade política de algumas categorias religiosas no contexto do neopentecostalismo, particulamente pelas práticas discursivas da IURD, na figura do
seu fundador, o bispo Edir Macedo, principal expoente da “teologia da
prosperidade”, que atribui ao dinheiro, o sentido de “vida em abundância
e desqualifica o “pobre” como o sujeito e objeto da ação política.
Esta Igreja vem utilizando como ferramenta de evangelização contemporânea o poder da mídia, oferecendo em troca ao telespectador
um consolo para suas mazelas e esperança de prosperidade, cura, libertação, paz interior e soluções imediatas.
A Igreja da Graça possui rádio,revista, jornal, portal na web, rede
de emissora de televisão denominada Rede Internacional de Televisão
acessível nas principais cidades do Brasil, além de exibir um programa
diário em horário nobre e nas madrugadas da Rede Bandeirantes, editoras, gravadoras e realiza megaeventos no Brasil e em outros países.
338
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
R. R. Soares possui um discurso fortemente personalizado em seu
programa, investe milhões de reais em conteúdo religioso veiculado nos
meios de comunicação de massa, sobretudo na televisão, meios em
que veicula o “Show da Fé”. Em sua programação televisiva o “Show da
Fé” apresenta quadros musicais e exposição da Bíblia além de outros
como: “Novela da Vida Real”, “O Missionário Responde”, “Abrindo o Coração”, “Momento da Nossa TV”, e, as quinta-feira é exibido o desenho
“Midinho, o Pequeno Missionário” e ao final, a “Oração da Fé”, onde o
missionário revestido de autoridade religiosa faz uma oração em nome
do Cristo, expulsando todo espírito maligno que estiver atormentando o
indivíduo e em seguida dá-se a oportunidade para os fiéis testemunharem a respeito da graça recebida.
5. Ritual de cura e libertação
Oração da Fé: É o momento em que a oração é dirigida aos telespectadores com o objetivo de curar e libertar de diversos males.
A oração da fé, segundo o portal ongrace.com é mais que um pedido a Deus; é uma ordem ao inimigo, que se esconde por trás do sofrimento, para que pegue tudo dele e abandone quem ele tem afligido,
ou seja, ela leva a um diálogo com o divino e faz com que o indivíduo se
acerte com Deus, e, então, o doente é levantado.
Segundo o missionário Soares, a base bíblica para a “Oração da Fé” é
o relato do evangelista Tiago, capítulo 5, versículos, 14 e 15 que diz: “Está
alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da Igreja, e estes façam
oração sobre ele, ungindo-o com óleo, em nome do Senhor. E a oração da
fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados” (Almeida Revista e Atualizada – ARA)
De acordo com Soares (2015)
Escrevo como ministro do Evangelho, e, como tal, venho trazer-lhe a revelação de como fazer a oração que funciona. Tenho certeza de que, se esse entendimento penetrar em seu espírito, haverá
de transformá-lo completamente. A oração da fé é muito forte e
operante (SOARES, 2015, p. 9).
339
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O ritual de cura divina e a libertação estão atrelados à oração fervorosa do missionário e dos obreiros da instituição religiosa. É um marco forte no ritual de culto da igreja, se utilizando de práticas terapêuticas, no intuito de captação de fiéis.
O ritual foca exclusivamente nos dilemas dos consumidores religiosos, o agente religioso, coloca em dúvida o poder da medicina tradicional e de outras religiões que também tem forte relação com a magia
onde as práticas populares de cura, como benzedura, e os rituais de cura
do candomblé e da umbanda são criticados.
É no ritual de cura e libertação que acontece a exorcização do
mal, pois, para a IIGD, o mal é influência externa e traz consequência
desagradáveis para o indivíduo, como: doenças, problemas familiares,
cegueira, câncer, problemas cardíacos, paralisia, também libertação de
vícios de drogas, álcool e até crise financeira.
O tempo de duração do ritual de cura e libertação é em torno de 10
a 15 minutos. Listamos abaixo alguns resumos de episódios apresentados durante os programas:
5.1 Exemplo da roteirização do quadro “a oração da fé”, missionário
R. R. Soares, fundador da IIGD
[...] Deus quanta gente aqui está perdendo a vida, quantas gente
está perdendo a honra, está perdendo a saúde, está perdendo o
emprego, está perdendo, ó deus muitos anos de vida, porque um
espírito maligno foi colocado na vida e separou o casal, entrou pra
destruir a saúde dessa pessoa, já não têm mais paz, já não têm
mais capacidade de resistir. Ó meu Deus eu estou pedindo agora,
envia o teu anjo para tocar, ó pai assim como o anjo do senhor veio
e envolveu os pastores, agora venha envolver o povo que está aqui
orando, ó Deus começo pisar agora em nome de Jesus Cristo ... pisa
no inimigo agora, porque esse demônio não pode continuar, ele está
na vista dessa pessoa, está no ouvido da outra, ele está alojado no
braço, no coração, nos pulmões, ele está alojado na vesícula,,,, pois
Deus nós queremos agora muito poder do senhor, nós queremos
muito operação do teu espírito e nós queremos este povo livre, nós
queremos este povo liberto, eu estou pisando agora ó pai em nome
de Jesus Cristo, eu estou determinando, eu estou dizendo, demônio você vai sair agora, todo o seu trabalho está quebrado, está
340
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
destruído, está agora em nome do senhor Jesus desfeito e vai soltando agora, vai soltando o filho, a filha... esse demônio que está
roubando o filho, roubando a filha levou pra o crack, levou pro mau
caminho, eu estou pisando nele agora, seja esmagado todo poder
do inimigo, seja esmagado todo a doença, todo o sofrimento, toda
a obra maligna que está na casa dessa pessoa agora em nome de
Jesus Cristo, que está no trabalho, está na família, você já perdeu a
batalha demônio, a batalha é nossa, a vitória é nossa em nome de
Jesus Cristo cai por terra agora, estamos pisando agora, desfazendo
todo o mal em nome de Jesus Cristo, estamos acabando agora com
todo o seu poder, com toda a sua enfermidade, com toda a sua obra
de macumbaria... vai saindo todo o mal, Jesus é em teu nome, no
nome de Jesus é para tua glória ( YOUTUBE, 2016).
5.2 Exemplo da roteirização do quadro “a oração da fé”, do pastor
Jayme de Amorim Campos, pastor da IIGD em São Paulo- SP.
Ó meu Deus na mesma fé, na mesma autoridade em Nome de Jesus
Cristo nós pisamos, ó pai, pisamos a doença, na enfermidade que
atormenta essa pessoa, que tira a paz dessa pessoa, aquela dor
de cabeça diária e a pessoa não sabe qual é a causa dela...diabo eu
estou pisando agora eu recebi autoridade para pisar em serpentes,
escorpiões e toda força do mal e nada de mal mim fará, pisa ó meu
irmão, pisa no diabo, pisa na cabeça da serpente, pisa nesse mal
agora em nome de Jesus, opera na doença maldita, calculo renal,
insuficiência renal, nós pisamos toda cirrose, a hepatite, a gordura
no fígado, é a doença ventricular, cardiovascular saia, saia, saia,
saia... chame esse mal pelo nome e diga: eu estou pisando em
você agora, histórico de família de diabetes, histórico de família de
pressão alta, estou pisando agora em Nome de Jesus, trabalho de
bruxaria, feitiçaria, magia negra, esse demônio que faz essa pessoa
vê vultos, faz essa pessoa ouvir vozes, sai em Nome de Jesus, vai
embora em Nome de Jesus( YOUTUBE, 2016).
Ao final do ritual o agente religioso, pede aos fiéis presentes uma
pausa para que apenas ele o líder religioso possa continuar com o procedimento, onde revestido de autoridade divina amarra os demônios
que trabalha nos cemitérios, nas encruzilhadas e desafia pra luta todo
trabalho que foi feito e no final expulsa em Nome de Jesus. Em seguida
pede pra os adeptos erguerem as suas mãos e falarem em voz alta:“Eu
tomo posse da minha benção agora em Nome de Jesus”. Em seguida
341
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
pede pra todos os presentes aplaudirem a Jesus e entoarem louvores e
dar glórias a Deus.
6. Conclusão
Este trabalho propõe também uma visão reflexiva acerca do assunto proposto, considerando a complexidade da temática.
A IIGD, comumente denominada Igreja da Graça, é uma dissidência
da IURD e foi criada em 1980, no Rio de Janeiro, por Romildo Ribeiro
Soares, conhecido como o missionário R. R. Soares.
Esta Igreja vem utilizando como ferramenta de evangelização contemporânea o poder da mídia, na busca por fieis. Oferecendo em troca
ao telespectador um consolo aqui na terra, livre de doenças e qualquer
influência de demônios que traz sofrimento e infortúnio para o indivíduo.
Atualmente, a IIGD está presente em todo o Brasil e em países
como Estados Unidos, Portugal, Índia, África do Sul e Japão. É reconhecida como igrejacristã pelos demais seguimentos do protestantismo.
O ritual de cura divina na IIGD é um dos pontos fortes do culto onde
o mal é influência externa e traz consequências desagradáveis para o ser
humano, como: doença, problemas familiar, crise financeira que afetam
não somente o corpo, mas também sua vida profissional e social.
A IIGD percebendo o valioso instrumento por trás da mídia que
quando bem aplicados produz resultados positivos, investiu um alto
preço, colhendo frutos e continuando até hoje, colhendo e ampliando e
modernizando cada vez mais seus aparelhos eletrônicos, reciclando suas
táticas de captação defiéis e a arte de vender o seu produto religioso.
No mundo contemporâneo, a televisão e as redes sociais passam
cada vez mais a atrair a atenção das igrejas cristãs, sejam para utilizarem como um instrumento de evangelização ou para propagarem determinadas ideologias típicas no contexto de quem exerce o seu poder.
De acordo com Birman (2003),
As referências constantes na mídia a personagens evangélicos
nos sugerem que o crescimento de suas presenças está vinculado ao enfraquecimento das crenças unificadoras e totalizantes da
342
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
sociedade nacional. Parece causa e efeito de um relativo esfacelamento das bases religiosas em que se apoiava o projeto hegemônico que se realizava no maior país do mundo”. A visibilidade que veio
ganhando o pentecostalismo se relaciona com a instabilidade que
se produziu neste processo de fragmentação e de perda progressiva de espaço da Igreja Católica (p. 237).
A IIGD é uma igreja evangélica neopentecostal e incorpora elementos de outros segmentos religiosos erealiza um ritual de cura e libertação com o objetivo de desenvolver na vida dos fiéis uma teologia
positivista onde acredita que o indivíduo deve gozar do bem e do melhor
enquanto estiverna vida terrena.
Por fim, concluímos que os meios de comunicação de massa têm
contribuído para com o crescimento da IIGD. Este segmento religioso
aproveitou-se do cenário religioso propício para o seudiscurso e liturgia
da Igreja da Graça, expresso no ritual de cura e libertação, desafiando
e expulsando todo tipo de moléstia nos fiéis, encontrando assim, um
espaço de aceitação por parte dos ouvintes.
343
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BERGER, Peter Ludwig. O dossel
sagrado: elementos para uma teoria
sociológica da religião. São Paulo:
Paulus, 1985.
BIRMAN, Patrícia (org.). Religião e
espaço público. São Paulo: Attar
Editorial, 2003.
BOURDIEU, Pierre. A economia das
trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1998.
CAIRNS, Earle Edwin. O cristianismo
através dos séculos: uma história da
igreja cristã.São Paulo: Vida Nova,
2008.
DURKHEIM, Émile. As formas
elementares da vida religiosa: o
sistema totêmico na Austrália. São
Paulo: Paulinas, 1989.
GOODY, Jack. O mito, o ritual e o oral.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
GUERRA, Lemuel. Competição,
demanda e a dinâmica da esfera
da religião no Nordeste do Brasil.
Recife, 2000. Tese ( Doutorado em
Sociologia) – UFPE.
IGREJA INTERNACIONAL DA
GRAÇA DE DEUS. A Igreja da Graça.
Disponível em: http://ongrace.com/
portal/?page_id=7. Acesso em 01 jul.
2018.
MENDONÇA, Antônio Gouvea.
Evangélicos e pentencostais: um
campo religioso em ebulição. In:
TEIXEIRA, Faustino; MENESES,
344
Renata. (org.). As religiões no Brasil:
continuidades e rupturas. Petrópolis:
Vozes, 2006. p. 98-110.
MENESES, Jonatas Silva.
Pentecostalismos e os rituais de cura
divina: personagens e percursos. São
Cristóvão: Editora UFS, 2008.
MARIZ, Cecília Loreto. Missão
religiosa e migração: “novas
comunidades” e igrejas Pentecostais
brasileiras no exterior. Análise Social,
Lisboa, v. 190, 161-187, 2009.
MONTERO, Paula. Secularização
e espaço público: a reinvenção
do pluralismo religioso no Brasil.
Etnográfica – Revista do Centro
em Rede de Investigação em
Antropologia, v. 13, n. 1, p. 7-16, 2009.
NOVAES, Regina. Errantes do novo
milênio: salmos e versículos bíblicos
no espaço público. In: BIRMAN,
Patrícia (org). Religião e espaço
público. São Paulo: Attar Editorial,
2003. p. 22-33.
O’DEA, Thomas F. Sociologia da
religião. São Paulo: Pioneira, 1969.
171 p.
YOUTUBE. 15 minutos de oração
com missionário Soares e Jayme
de Amorim: (sexta 29/07/16 –
culto das 14h). 2016. Disponível
em: HTTPS://www.youtube.com/
watch?v=iyZzR1tUcLg. Acesso em: 01
jul.2018.
[ Volta ao Sumário ]
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
feng sHui: uma visão
holística para a cura de
distúrbios psíquicos e
promoção da paz interior
maria Fernanda morais Tavares
Como referenciar este capítulo:
TAVARES, Maria Fernanda Morais. Feng Shui: uma visão holística para a cura
de distúrbios psíquicos e promoção da paz interior. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR
- Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 345-356.
Maria Fernanda Morais Tavares1
Introdução
O presente ensaio discorre sobre o Feng Shui e sua contribuição
para o conforto espiritual e/ou a tão almejada paz interior. Esta sabedoria milenar que tem origem no oriente, tem como princípio básico
o equilíbrio da energia vital, buscando promover a harmonia dos ambientes para que a energia yang (positiva) circule, atenuando os efeitos
da energia yin (negativa). As forças yin e yang têm origem no taoísmo e
representam a dualidade existente no universo. Enquanto o yin representa o princípio feminino, a noite, a lua e a absorção, o yang é relativo
ao princípio masculino, representado pelo sol, o dia, a luz e a atividade.
(Naiff, 2008)
A Revolução Industrial que teve início no século XVIII, na Inglaterra, revolucionou o sistema de produção de mercadoria e as relações de
trabalho. Entretanto, muito além disso, promoveu transformações econômicas, políticas e, sobretudo, sociais, desencadeando o surgimento
de um novo indivíduo: um ser cético e individualista, que se afastou da
sua essência humana.
O caminho metodológico percorrido, parte da compreensão do surgimento de um novo homem como produto do efeito da Revolução Industrial – e do Iluminismo – do conceito do ser adotado por Possebon (2017)
e da visão de espiritualidade como algo transcendente, para, em seguida,
pontuar os preceitos do Feng Shui para uma visão holística do ser.
Mergulhada no caos apocalíptico, a sociedade atual inicia um retorno ao transcendente – que foi, há séculos, colocado em segundo
plano – numa busca desenfreada ao sentido da vida e à paz interior.
No bojo deste contexto, o Feng Shui surge como uma das alternativas
possíveis para esse reencontro do indivíduo consigo mesmo – e com
Graduada em Licenciatura em Letras – Português – pela UFPB e Mestranda pelo PPGCR
da UFPB
1
346
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
o cosmos – contribuindo para o alivio de distúrbios psíquicos como a
angústia, o estresse, e a depressão, entre outros, ajudando, assim, na
promoção da paz interior.
O homem industrial
A revolução industrial foi um processo gradual e marcado por um
conjunto de mudanças que revolucionou, inicialmente, a Inglaterra e,
posteriormente, o mundo. As transformações ocorridas a partir deste
marco histórico impulsionaram o desenvolvimento tecnológico e científico, mas deixaram como uma das mazelas, o crescimento urbano desordenado, em consequência do êxodo rural, promovendo a flagelação
do homem citadino. A vida bucólica campal, cede lugar – a contragosto
– à agitação, poluição e os cortiços. O homem rural que, antes, vivia da
agricultura de subsistência, passa a conviver com a exploração do trabalho e o desemprego, perdendo o controle do processo produtivo e a
posse da matéria prima, do produto e do lucro.
De acordo com Durkheim (2003), o homem é um ser eminentemente espiritual, sendo isto, uma característica comum à sociedade
humana. Para o sociólogo, a religiosidade (entendida, aqui, como espiritualidade), traz consigo uma missão integradora, que fomenta a
solidariedade e a empatia. No entanto, a nova ordem ditada em nome
do desenvolvimento, a partir da Revolução Industrial, fez o homem se
afastar de sua essência transcendental e adquirir uma Nova Consciência, guiado pelo liberalismo de Adam Smith (2010), que afirmava que o
individualismo é benéfico para a sociedade – porque se alguém busca o
melhor para si, todos tendem a ganhar com isso.
Esse novo homem “vazio e triste”, nas palavras de Nicolescu (1999,
p. 8), ou, segundo Elisa Possebon, “aliado ao conjunto de pessoas com
tendências à depressão, apatia ou hostilidade” (2017, p. 8), segue, por
séculos, naufragando no hedonismo, transformando-se em mais um
robô da era tecnológica.
347
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Uma visão do ser
O que somos e para aonde vamos são questões que inquietam o
homem desde a antiguidade até os dias atuais. Entretanto, com o advento da Revolução Industrial e do iluminismo, esse homem sufocou
sua veia existencial, colocando em relevo a razão e o individualismo
como fonte de progresso e felicidade. Elisa Possebon afirma que:
Aceitamos de forma irrefletida a condição de que as emoções trazem vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, construímos uma identidade coletiva de indivíduos que buscam felicidade e prazer no automatismo consumista, alimentando ignorâncias sobre o universo
emocional. (2017, p. 7,8).
Passados séculos, em que foi possível atingir o desejado desenvolvimento até chegarmos a famigerada era tecnológica, percebemos
que a, também, almejada felicidade ficou no meio do caminho. Em meio
a indagações e frustrações, a sociedade tenta, agora, iniciar um retorno
à sua existencialidade, no intuito de se reencontrar, juntando os retalhos
que sobraram dessa grande colcha materialista.
Ao perceber que se afastou de sua condição humana, o homem
contemporâneo tenta se reconectar consigo mesmo, impulsionando
assim, o (re)surgimento de uma concepção holística, do ser. De acordo
com Possebon:
Sendo o ser, em síntese, uma entidade complexa e pluridimensional, formada por inúmeros envoltórios (somático, vital, emocional, mental e espiritual), conceitua-se saúde como a harmonia
entre estas partes constituintes e doença, a desarmonia entre elas
(pág. 44, 2017).
O autor explica que a escolha do termo envoltório em lugar de órgãos, se justifica porque “órgão pressupõe alguma localização mais precisa, enquanto que envoltório abrange a totalidade do ser”. (2017, p. 17)
É nessa visão integradora que as terapias holísticas se sustentam
– e ganham força – proporcionando ao homem contemporâneo novas
348
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
formas de ver e estar no mundo. Por meio de técnicas terapêuticas que
trabalham corpo, mente e espírito, é possível desconectar os fios do
homem robô – ansioso e insatisfeito – e religar o fio condutor que irá
permitir o retorno a sincronicidade que une o homem ao cosmos.
Um conceito de espiritualidade
Em uma sociedade guiada pelo capital, consumismo e ostentação,
onde o ter vale mais que o ser, os valores éticos escoam pelo ralo da frenética corrida diária em busca de sucesso e prosperidade. No entanto,
é possível desacelerar, respirar fundo e perceber que há outro mundo
mais humano e espiritual.
De acordo com Leonardo Boff (Pág. 29, 2006), há dois caminhos
que conduzem à espiritualidade: “o primeiro deles se revela na comunhão pessoal com Deus, que inclui o todo, enquanto que o segundo,
surge a partir da comunhão com o todo, que inclui Deus”. O Autor pontua que para os ocidentais “a relação com Deus é pessoal e dialogal”,
enquanto que o oriente se detém em uma experiência de totalidade –
ou não dualidade. Boff ressalta ainda que, de acordo com um mestre
budista, “o caminho para dentro é tão perigoso quanto o caminho para
fora” (p. 39, 2006).
Nos dias atuais, cresce cada vez mais o número de pessoas que,
insatisfeitas e angustiadas, buscam na espiritualidade apoio emocional
– e alento. Segundo Rohr:
Com certa frequência assistimos, hoje em dia, a pessoas se declarando espiritualistas. Sem sombra de dúvidas, recebemos as mais
variadas respostas quando perguntamos o que de fato significa isso
para essas pessoas. Nelas há em comum: a rejeição do materialismo, seja ele político, econômico, filosófico ou ateístico em geral; a
crença numa força superior ao homem, que confere sentido à vida;
e, no mínimo, um distanciamento em relação às religiões formais e
tradicionais. (p. 13).
É no conceito do Dalai Lama – citado por Boff – que define espiritualidade como “tudo aquilo que produz paz interior” (2006, p. 13),
349
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que o Feng Shui surge como uma alternativa rumo à espiritualidade e ao
bem estar, porque como bem disse Possebon, “a busca por algo que seja
transcendente, que estamos entendendo como espiritualidade, depende de o sistema estar plenamente harmonizado” (p. 45, 2017).
O Feng Shui
O Feng Shui tem como proposta a integração do indivíduo com o
cosmos a partir da captação de energias positivas que possibilitam ao
homem receber – e emanar – boas vibrações, com o propósito de harmonizar-se consigo mesmo, com seus semelhantes e com a natureza.
O termo Feng Shui (cuja pronúncia, em mandarim, é fon suei) corresponde, respectivamente, a vento e água. De acordo com Boechat, o
termo citado é uma combinação das forças que regem a energia vital,
pois esta “circula invisível como o vento e desliza suave como a água”
(Pág. 7, 2004).
A filosofia do Feng Shui desenvolveu-se no oriente, expandindo-se,
mais tarde, pelo resto do mundo. Os ensinamentos filosóficos – e morais – que constituem o cerne do Feng Shui, fundamentam-se no holismo, que é uma ideia de base da visão budista do mundo: no universo
nada existe separado do todo; há uma unidade essencial de todas as
coisas; o homem é parte desta unidade; não é possível qualquer mudança numa parte, sem que o todo seja afetado e, da mesma forma,
qualquer mudança no todo afetará cada uma de suas partes. O Feng
Shui sustenta-se em três princípios básicos: o primeiro se refere à energia vital ou energia chi (ki, em mandarim), que dá vida não tão somente
às pessoas, mas a tudo que nos rodeia; o segundo princípio reza que há
um elo entre as pessoas, as coisas, a natureza e a energia chi; o terceiro
princípio, por sua vez, indica que a energia chi presente nas pessoas, nos
lugares e na natureza como um todo, está em constante transformação. Sendo assim, podemos presumir que a energia chi dá vida a tudo,
une tudo – e todos – e é responsável pela constante transformação do
mundo. (Tien Pin, 1999)
De acordo com Boechat, a energia chi “é composta por cinco
elementos básicos: água, madeira, fogo, metal e terra” (p. 8, 2004), que
350
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
são forças, em constante movimento, proporcionando transformação
contínua. Ainda de acordo com a autora:
Há dois ciclos de interação entre os elementos básicos, que devem ser levados em consideração ao analisar os ambientes. Um (o
construtivo) é usado para alimentar, estimular determinado tipo de
energia ou sentimento. O outro, ao contrário, serve para bloquear,
diminuir o que nos incomoda, ou está em excesso (p. 8, 2004).
O primeiro ciclo, que é denominado ciclo criativo, segue um fluxo:
“a água alimenta a madeira (vegetação), que nutre o fogo, que produz
a terra (cinza), que cria o metal (minerais), que, por sua vez, transporta
a água”. (Boechat, 2004, p.9). Na aplicação da técnica do Feng Shui, é
necessário estar atento a esse caminho, para que a energia chi seja estimulada.
O segundo ciclo recebe a denominação de ciclo da dominação e, assim como o primeiro, também segue um fluxo: “a água extingue o fogo,
que derrete o metal, que corta a madeira, que exaure a terra que, por sua
vez, obstrui a água”. (Boechat, 2004, p. 9). Nessa situação, o objetivo passa a ser aplicar o Feng Shui para, “por meio do controle, equilibrar um elemento que esteja com excesso de poder”. (Boechat, 2004, p.9)
Há duas principais correntes filosóficas do Feng Shui. A escola da
Bússola, mais tradicional e adotada na China, tem como principal ferramenta, a bússola de geomancia Luo Pan. Para aplicação dessa técnica,
no correto posicionamento dos móveis, é levada em consideração a direção indicada pela bússola mais os conhecimentos da astrologia chinesa. Não irei me deter nesta corrente, por não ser meu objeto de estudo.
A segunda corrente é a escola da Forma, que é a mais antiga e
serviu de inspiração para o surgimento da escola do Chapéu Preto. Esta
corrente, que é mais adotada no ocidente, tem como principal ferramenta o ba-guá, diagrama formado por oito lados em que cada lado
representa um setor da vida. No centro do ba-guá está a harmonia de
todos os setores, regido pelo elemento terra (que representa a estabilidade) e a cor amarela, que representa a luz. (Occhialine, 2015)
351
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A pronúncia de ba-guá, em mandarim, é pá – kuá e significa oito
lados – que representam os principais aspectos da nossa vida.
Fonte: domínio público
De acordo com Boechat (2004), para aplicar o ba-guá, é necessário
utilizar a planta do imóvel (casa, escritório, loja, etc.) e alinhar o setor do
trabalho à entrada principal e, a partir daí, verificar em quais espaços
estão alinhados os outros setores.
A seguir, apresentaremos uma breve orientação de como ativar a
energia chi em cada setor (ou guá) do ambiente, a partir das orientações
de Occhialine (2015)
Trabalho (entrada principal):
Deve-se proporcionar uma entrada atraente, porque é por aí que
a energia vital penetra no ambiente. Pode-se recorrer a um capacho de
cores vibrantes e com mensagem acolhedora e/ou pendurar um sino
dos ventos ao lado da porta principal.
Espiritualidade (lado esquerdo, imediatamente ao lado da porta
principal):
Para esse espaço é indicado livros, santinhos, foto do cosmos, velas, pedra ametista, incensos e capela. Esse guá tem como elemento a
terra. Deve-se usar a cor lilás em uma parede, em algum móvel ou em
almofadas e objetos de decoração.
352
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Família (pela entrada da moradia, está situada no meio, à esquerda da porta de entrada):
O elemento que rege esse guá é a madeira e a cor verde. É importante ter nesse espaço fotos da família, plantas, quadros com passagem da natureza ou algo que esteja na família por várias gerações.
Prosperidade (situa-se na parede em frente da porta da entrada,
do lado esquerdo):
O elemento que rege esse guá é a madeira e as cores são o dourado, prateado e cinza. Para fortalecer a energia chi desse guá, deve-se
ter uma fonte, quadro com imagem do sol ou de girassóis e luminárias.
Sucesso (corresponde ao meio da parede em frente à porta da entrada):
O elemento que rege esse guá é o fogo e as cores são vermelho,
laranja e amarelo. Objetos indicados para essa área: diplomas, fotos de
pessoas bem-sucedidas que os moradores admirem e premiações.
Relacionamentos (corresponde ao lado direito da parede em frente à porta de entrada):
Esse guá é regido pelo elemento terra e protegido pelas cores rosa,
vermelho e branco. Para esse espaço é ideal objetos em pares, fotos do
casal, objetos em forma de coração, velas e rosas.
Criatividade (está localizado no meio da parede da porta de entrada):
Tem como elemento o metal e as cores branco, metálicas, laranja
e multicor. Os objetos indicados para esse guá são quadros coloridos,
porta retratos com moldura prateada e objetos de arte.
Amigos (está localizado imediatamente ao lado direito da porta da
entrada):
Este guá é regido pelo elemento metal e as cores cinza, branco e
preto. Objetos indicados para esse ambiente são fotos dos lugares que
deseja conhecer, presentes e fotos dos amigos.
Saúde (o guá da saúde está localizado no centro do ba-guá):
Corresponde ao elemento terra e é importante ter nesse ambiente
plantas e quadros da natureza.
353
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Como elevar a energia positiva nos ambientes
De acordo com o Feng Shui, todo – e qualquer – ambiente apresenta dois níveis: o visível, que se refere a tudo aquilo que podemos
observar e o invisível, que está relacionado ao que sentimos. Esse invisível pode ser trabalhado para proporcionar bem-estar e paz, ativando a
energia chi, o que contribui para o alivio de alguns distúrbios psíquicos..
Para manter a energia chi circulando, é importante manter no ambiente:
• Espelhos, porque expandem as energias;
• Móveis e pisos de madeira, que harmonizam os ambientes;
• O bambu: fonte de boa sorte, saúde e de vida longa;
• Plantas, que são elementos captadores de energias negativas;
• Velas: são fontes de luz (devem ser sempre acessas com fósforos e apagadas sem sopro);
• Sino dos ventos, que ativa a energia dos moradores – ou frequentadores do ambiente;
• Os animais domésticos, que absorvem o fluxo negativo, protegendo os moradores.
Por outro lado, para manter a energia chi, é necessário evitar:
• Objetos e cristais quebrados, porque perdem sua energia;
• Livros incompletos ou malconservados, pois concentram a
energia negativa;
• Relógios parados ou quebrados, bloqueiam a circulação da
energia chi
• Móveis empoeirados, provocam distúrbios relativos à saúde;
• Objetos decorativos de plástico, atraem más vibrações:
• Roupas e calçados que não estejam sendo usados, assim como
os livros malconservados, concentram a energia negativa
• Objetos do mar como caracóis, conchas, estrelas-do-mar, etc.:
provocam conflitos entre os moradores ou frequentadores do
ambiente.
354
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Considerações finais
Parti do entendimento de que a Revolução Industrial trouxe o desenvolvimento científico e tecnológico, mas produziu o homem cético e
individualista, o qual denominei de homem industrial. Em seguida, recorri à visão do ser pluridimensional, segundo Possebon, que me levou
ao entendimento do conceito de espiritualidade como tudo aquilo que
nos proporciona bem-estar e nos harmoniza com a natureza.
O cristianismo serviu de sustentáculo para a condução da civilização grego romana, porém, com advento da Revolução Industrial no século
XVIII, a razão e o individualismo passaram a ser o fio condutor de uma
sociedade outrora mítica e mística. Essa transformação fez surgir o que
Weber classificou como “desencantamento do mundo” (Pág. 188, 2012).
Desencantada e perplexa, a sociedade contemporânea busca, em
meio às suas contradições, reencontrar um caminho que indique uma
nova direção ao âmago da existência humana e que possibilite harmonia
entre o indivíduo e o mundo que o cerca.
Ao fazer uso dos benefícios que o feng shui oferece, o individuo
forma um elo com a energia chi, elevando sua espiritualidade, proporcionando bem estar e diminuindo as tensões emocionais que a vida cotidiana impõe.
Nesse contexto e no bojo da Educação Emocional, o Feng Shui surge como uma das alternativas possíveis para religar o homem à sua
espiritualidade e reconectá-lo ao cosmos, afinal, como bem nos disse
Fabrício Possebon “o porquê dessa busca espiritual é transcendente, o
indivíduo parece sentir uma força que o motiva, é sua razão de viver, é
sua missão na terra”.
355
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ARAGÃO, G. S.; VASCONCELOS,
S. S. D.; DE SOUZA, J. R. (Orgs.).
mosaico Religioso: Interfaces entre
experiências religiosas e leituras
científicas. São Paulo: Fonte Editorial,
2016.
BOECHAT, C. Feng Shui: Sua casa em
harmonia. Coleção CARAS Zen. São
Paulo: Editora Caras, 2004.
DURKHEIM, E. As formas
elementares da vida religiosa. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
NAIFF, N. Consulte o I Ching. 4ª ed.
Rio de Janeiro: Nova Era, 2008.
OCCHIALINI, S. Feng Shui: O poder de
atrair harmonia e prosperidade. São
Paulo: Editora Benvirá, 2015.
PIERUCCI, A. F. O desencantamento
do mundo: Todos os passos de um
conceito de max Weber. 2ª ed. São
Paulo: Editora 34, 2005.
POSSEBON, E. G.; POSSEBON, F.
(Orgs.). Ensaios sobre espiritualidade,
emoções e saúde. João Pessoa:
Libellus Editorial, 2017.
ROHR, F. (Org.). Diálogos em
educação e espiritualidade. 2ª ed.
UFPE: Editora Universitária.
SASSI, S. O ABC do Feng Shui: 100
dicas para melhorar sua vida. São
Paulo: Editora Nova Cultura Ltda,
2004.
SMITH, A. A mão invisível. São Paulo:
Cia das Letras, 2010.
PIN, T. Feng Shui: O caminho do meio.
São Paulo: Editora Nobel, 1999
[ Volta ao Sumário ]
356
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
HungBê, eduCação e
saBeRes no Cotidiano
do ilê axé omilodé
Dulce Edite Soares Loss
Como referenciar este capítulo:
LOSS, Dulce Edite Soares. Hungbê, educação e saberes no cotidiano do Ilê Axé
Omilodé. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais
do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade:
Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 357-370.
Dulce Edite Soares Loss1
Introdução
O presente trabalho é fruto de uma pesquisa em andamento vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História (Mestrado) da Universidade Federal de Campina Grande – Paraíba, na linha de pesquisa 03 (três)
História Cultural das Práticas Educativas, intitulada Hungbé: História das
Práticas Educativas no Terreiro de Candomblé “Ilê Axé Omilodé” em João
Pessoa – PB. Para fins de esclarecimento a palavra Hungbê é de origem
ioruba e designa educação de axé nas comunidades de terreiro.
A vida cotidiana de um terreiro de candomblé respira tradição histórica cultural africana milenar ressignificada em terras brasileiras por
processos recíprocos de ensino e aprendizagem. Edificando-se sobre
uma disciplina rígida, por meio de práticas sociais, de rituais litúrgicos
que a religião impõe aos iniciados para efetivar sua senioridade, a educação em um terreiro acontece nas rodas de conversas e nas relações
interpessoais nestes espaços.
Uma gama de saberes circula nestas relações na vida cotidiana de
um terreiro com diferentes nuances, tais como: saberes da prática religiosa e ritual; saberes dos ancestrais; saberes das alimentações ofertadas aos ancestrais divinizados; itans (lendas); orikis (rezas); saberes de
folhas; saberes da música e dança; fundamentos religiosos (preservados pelo uso do segredo); saberes da linguagem procedente dos valores
civilizatórios de uma tradição histórica africana.
Uma prática social em que envolve uma construção cultural e humana, a educação em um terreiro de candomblé, viabiliza a sobrevivência dos saberes ancestral e a atualização de padrões culturais, possibilitando a transmissão pelas práticas educativas dos valores, normas de
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Cultural Universidade Federal de Campina Grande, linha 03 História Cultural e Práticas Educativas (PPGHC-UFCG),
e-mail dulceloss@hotmail.com. Orientador Professor Doutor Matheus da Cruz e Zica,
e-mail matheusczica@gmail.com., lattes.cnpq.br/4536380846550845.
1
358
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
comportamento, preservação da natureza e linguagens próprias difundidas de geração a geração.
Diante deste cenário, o presente artigo tem como objetivo geral
analisar e identificar o processo educativo e a multiplicidade dos saberes específicos presentes no cotidiano de um terreiro de candomblé. O
lócus da pesquisa, o Ilê Axé Omilodé, “Águas na Casa do Caçador”, nação
Ketú, está situado à Rua Valdemar Feliz dos Santos, Mangabeira I, João
Pessoa – PB. Com trinta anos de fundação, o Axé tem como líder espiritual a Yalorixá (mãe de santo) Francisca das Chagas da Silva, conhecida
na sociedade do santo como “Mãe Chaguinha” e como regência ancestral o orixá Oxum (Senhora das Águas Doces).
Compreender a dinâmica da preservação dos saberes, dar visibilidade a educação e as práticas educativas culturais dos terreiros de
candomblé perante a sociedade contemporânea, discorrer sobre uma
cultura de sujeitos, até então oprimidos e constantemente violentados
em suas identidades se torna de suma valia considerando que, a história
da cultura do negro e seus saberes culturais representam, além de uma
expressão de religiosidade, a manifestação genuína das culturas formadoras da sociedade brasileira, a cultura africana.
metodologia
Com uma abordagem qualitativa, a pesquisa tem como base um
conjunto de dados produzidos que devem ser interpretados, compreendidos e contextualizados e não quantificados ou mensurados. Antônio
Chizzotti (2003, p. 221) em relação às abordagens qualitativas afirma
que “o termo qualitativo implica uma partilha densa com pessoas, fatos
e locais que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio
os significados visíveis e latentes que somente são perceptíveis a uma
atenção sensível (...)”. Após esta experiência o pesquisador em uma hermenêutica traduz em texto os significados patentes ou ocultos do seu
objeto de pesquisa.
Em um levantamento bibliográfico os teóricos enfocados foram
Brandão (2002) em educação popular, Santos (2010) pensamento abissal, Geertz (2008) na cultura, Verger (1995) na religião, Machado (2006)
na educação iniciática, dentre outros.
359
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A metodologia aplicada utilizou-se da História Oral Temática, que
nos permitiu, perante o tempo presente, a busca da compreensão dos
adeptos do candomblé no seu cotidiano religioso, assim como o entendimento das lógicas que movem suas ações. Para o filósofo Gaston Bachelar (2007) o tempo é algo que não é o ontem e nem o amanhã, é o
hoje. Passado e presente são elaborações da consciência humana onde
somos o centro de projeção no presente.
A História Oral caracteriza-se como uma metodologia de pesquisa
que busca ouvir e registrar, as vozes dos sujeitos excluídos da história
oficial, por meio de entrevistas gravadas, premeditadas de ordem pessoal, com questões abertas e semiestruturadas, e, inseri-los dentro delas, constituindo-se na construção de fontes para o estudo da história
contemporânea.
Sobre as entrevistas: Robert Bodgan e Sari Biklen (1994) ressaltam que a “entrevista é utilizada para recolher dados descritivos na
linguagem do próprio sujeito, permite ao investigador desenvolver intuitivamente uma ideia sobre a maneira como os sujeitos interpretam
aspectos do mundo” (BODGAN e BIKLEN, 1994, p. 134).
A técnica das entrevistas semiestruturadas foi aplicada em 03
(três) sujeitos. Conforme previamente solicitado por membros da comunidade religiosa, informamos que os nomes verdadeiros dos sujeitos
entrevistados não serão utilizados no presente artigo. Os participantes
são codificados pelos nomes dos Orixás aos quais foram iniciados: Xangô, Oxum e Iansã.
A participação voluntária dos sujeitos na pesquisa foi oficializada
pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, documento fundamental para definir a legalidade do uso da entrevista.
Aspectos Éticos da Pesquisa: o projeto foi aprovado pelo Comitê
de Ética da Universidade Federal de Campina Grande, sob o número
CAAE: 96992618 9.0000.5182 e número do parecer 2.981.766.
Um olhar ao Hungbê e sua perpetuação em um
terreiro de Candomblé
A educação, ao longo da história da humanidade, tem sido compreendida e conceituada de diferentes maneiras. Remetemo-nos ao
360
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
século XVI em que o pensamento científico moderno instaura uma racionalidade abissal, dividindo esta realidade “entre aquilo que está na
lógica racional, como verdade e aquilo que está fora da lógica racional
como residual e incompreensível” (COSTA, 2015, p. 3). O campo da educação historicamente não vai fugir a este paradigma moderno que prioriza o conhecimento racional estruturado e cerceado aos espaços da
escola formal em oposição a outras formas de conhecimento tracejado
na experiência e nas relações sociais cotidianas.
Neste contexto a educação na modernidade se torna prisioneira
de uma epistemologia em que o pensamento moderno ocidental hegemônico, cria durante séculos,
”linhas radicais invisíveis que separa os conhecimentos científicos
dos não científicos e concede a ciência moderna o monopólio da
distinção universal entre o verdadeiro e o falso gerando a exclusão e
a eliminação total de todos os conhecimentos construídos do outro
lado da linha tidos como não conhecimentos” (SILVA, 2013, p. 37).
A racionalidade abissal anula assim, outras formas de conhecimento, tais como: os saberes populares, saberes indígenas, saberes das comunidades de terreiro e outras formas de conhecimento. Aliás, Boaventura dos Santos referindo a está lógica moderna afirma que estes saberes,
“desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis
por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso.
[...] Do outro lado da linha, não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objetos ou
matéria-prima para a inquirição científica.” (SANTOS, 2010, p. 34).
Posicionar-se contrária a esta vertente abissal é reconhecer que
os terreiros de candomblé são espaços onde se produzem conhecimentos, valores e práticas educativas reais e válidas, ou seja, propomos
uma análise inserida na linha da racionalidade pós-abissal, surgida na
pós-modernidade, de Boaventura dos Santos. A racionalidade pós-abissal longe de ser delimitadora e excludente, pressupõe uma valorização
em que uma gama de saberes e valores vão mais além do que a ciência
moderna é capaz de comportar em sua epistemologia excludente.
361
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Boaventura Santos afirma que “o pensamento pós-abissal parte
da ideia de que a diversidade do mundo é inesgotável e que esta diversidade continua desprovida de uma epistemologia adequada” (SANTOS,
2010, p. 51). E, ainda,
O pensamento pós-abissal [...] é uma ecologia, porque se baseia no
reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos
(sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e
dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o conhecimento é interconhecimento. (SANTOS, 2010, p. 53)
Ao nos debruçarmos por este viés epistemológico compreendemos que a educação não apresenta uma única forma, um único saber de
conhecimentos válidos, e sim múltiplas formas de saberes construído
cotidianamente por homens e mulheres em suas práticas sociais.
De encontro ao pensamento epistemológico de Boaventura de
Sousa Santos, entendemos como desafios na atualidade a educação
pela experiência, a cultura, a oralidade, a prática educativa executada
nos terreiros de candomblé e o cotidiano que circulam fora do espaço
escolar. Para tal recorremos a Brandão (1984, p. 13) no qual afirma que
“a educação existe onde não há a escola e por toda parte pode haver
redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a
outra [...]”. E, ainda, “ninguém escapa da educação, em casa, na rua, na
igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos
pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar [...]” (BRANDÃO, 1984, p. 07).
Com métodos próprios de aprender e ensinar, diferentemente da
escola, instituição social que tem no seu conceito a construção e socialização de conhecimentos por meio de uma didática previamente estabelecida, “a educação nos espaços de terreiro compreendem um lugar
atemporal” (MACHADO, 2006, p. 22). Não seguem uma didática rígida,
tampouco uma didática intencionalmente organizada, embora exista
uma lógica orientadora como especifica.
Sob esta ótica a educação ganha um alargamento nos processos
educativos em que o saber está para além de um único local privilegiado
362
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de circulação de conhecimento e consequentemente de aprendizados.
Vejamos a educação na visão de nossos entrevistados:
A educação no terreiro está presente nas conversas, nos diálogos
e ensinando para o mundo lá fora. Porque terreiro de candomblé,
não é só para se dançar, para você comer, para função (obrigação,
oro, nota nossa) não, é para você sentar numa roda explicar como
as coisas acontecem, o nosso cotidiano do dia a dia, saber instruir
como as coisas estão do lado de fora do barracão, porque as coisas
não estão fáceis. A gente não vive o candomblé só dentro do barracão, após a porta do candomblé para fora a gente tem que viver
também, então o candomblé nos dá lição de vida, noções para reflexão do mundo, de comportamento, ensina como lidar com nossas
dificuldades e encarar o mundo, porque hoje o candomblé é muito
criticado, a gente é visto na sociedade como pessoas demoníacas,
como pessoas que pratica o mal, dentro da nossa sociedade o preconceito é enorme, do lado de fora de nosso barracão e às vezes
trás para dentro do barracão e quando traz a gente tem que dialogar, tem que explicar que a gente não tem que se igualar, a gente
tem que mostrar às pessoas que não é daquela forma que as coisas
acontecem, tem que mostrar o nosso cotidiano, o nosso amor aos
orixás, as nossas lições de vida e comportamentos que recebemos
dentro de uma casa de axé (Xangô).
A nossa educação religiosa vem de nossos Babalorixás. Então dentro do que aprendi no candomblé é oral, é uma coisa que você não
vai aprender chegando, você vai aprender no dia a dia dentro de
uma tradição. Então você já aprendeu o que é um acaçá? (afirmação feita por a autora ser iniciada). Quando meu pai de santo disse
assim pra mim, minha filha vá fazer um acaçá, ele não me disse o
que era então eu recorri á minha mãe pequena. Minha mãe pequena
foi me dizer que massa era como preparava a massa, e mandou eu
(sic) ir fazer, que depois ela ia me ensinar a cozinhar e a preparar um
acaçá. Então eu teve (sic) o meu ensinamento com os mais velhos, a
importância de nossos mais velhos, de nós escutar os nossos mais
velhos, de nós parar para ouvir eles, de, nos parar para observar eles
é o maior professor. O maior mestrado que eu tive na minha vida foi
com os meus mais velhos. Foi aprender ouvir eles (...) eu sempre
estava perto dos meus mais velhos e foi dele que aprendi, apesar de
eu não ter estudado, não saber ler, mas o que eles passaram para
mim foi realmente tudo o que eu tenho comigo hoje (Oxum).
363
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Diante destes depoimentos podemos perceber que a educação no
cotidiano do Ilê Axé Omilodé acontece por meio de situações presenciadas e experiências vividas por cada indivíduo em seu cotidiano. O saber
flui pelo ensinamento dos mais velhos para os mais novos pela oralidade e, transborda um significado existencial vivido na comunidade, uma
filosofia de vida, que perpassa os muros do terreiro orientando os sujeitos em comportamentos diante de suas dificuldades, transmitindo uma
visão de mundo, orientando-os para a vida. O sagrado e o profano se
interpenetram interagindo com a comunidade, evidenciando uma educação que fortalece o sujeito na sua liberdade de expressão e em seu
direito de coexistir nesta sociedade muita das vezes recriminada.
O antropólogo Carlos Brandão ao abordar a educação como cultura se refere a “tudo aquilo que criamos a partir do que nos é dado”
(BRANDÃO, 2002, p. 22), nesse sentido subentendemos os processos
educativos como sendo culturais, a educação se torna uma fração do
modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas
outras invenções de sua cultura, incorporando os sujeitos sociais que o
praticam ao mesmo tempo em que são afetados por ela.
O antropólogo Clifford Geertz define cultura como “uma ‘teia de
significados’ tecida pelo próprio homem e onde ele se acha amarrado”
(GEERTZ, 1989, p. 15) o qual nos conduz ao analisar a educação e os
saberes, como um conjunto de relações sociais no qual os sujeitos estão
inseridos, ou seja, “um sistema de concepções herdadas expressas em
formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à
vida” (GEERTZ, 1989, p. 66).
Sendo assim a educação é um domínio da cultura; socialmente
é condição permanente em que a cultura é recriada e individualmente
é condição de criação da própria pessoa na medida em que “aprender
significa tornar-se, sobre o organismo, uma pessoa, ou seja, realizar em
cada experiência humana individual a passagem da natureza à cultura”
(BRANDÃO, 2002, p. 18).
Sobre Educação, Cultura e Saberes, Sergio Martinic (1994) afirma
que o saber que aflora em um cotidiano está estreitamente ligado à
educação e à prática cultural dos sujeitos. Para o autor “el saber expressa lo que socialmente um grupo o sociedade institucionaliza como real”
(MARTINIC, 1994, p. 71).
364
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O conceito de saber, numa dimensão epistemológica, significa
“todo um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais
ou menos sistematicamente organizados e suscetíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino” (JAPIASSU, 1986, p. 15).
No sentido lato, Hilton Japiassu (1986) afirma que este conceito
pode ser empregado ao aprendizado de ordem prática (saber fazer) e, ao
mesmo tempo, às determinações de ordem intelectual ou teórica. Utilizado no desenvolvimento de sua obra o último sentido, para este trabalho abordaremos a face contrária, visando um ângulo ampliado que
considere ambas as dimensões, intelectiva e prática, relevando a multiplicidade dos saberes que circulam no cotidiano do terreiro pesquisado.
Sobre os saberes existentes no Ilê Axé Omilodé nossos entrevistados assim se expressam:
São muitos os saberes do terreiro, desde as rezas para os orôs até
as vestes. Porque é importante que a gente saiba se vestir, que
você mantenha não a sua conta exposta para se exibir, mas para
que você seja sagrada, pois existe uma forma de preparar elas. A
forma de preparar uma alimentação para seu orixá, não é só você
cortar um quiabo e dizer eu vou fazer um caruru, você tem que se
preparar para fazer, tem saberes para fazer (...) não é só saber que
comida fazer, eu vejo que no candomblé as alimentações são muito
importantes, como o acarajé, o abará, o caruru e outras comidas
porque não são só para referencia do orixá, ela é para nos alimentar
e nos fortalecer. Tem as folhas. É saber por que eu vou tirar uma
folha de uma planta, pra que eu vou usar esta planta, é saber rezar
uma planta, passar uma planta na pessoa. Na folha está sempre
o alimento sagrado de nossa alma, perante nosso sagrado. Outro
saber importante é saber respeitar seu mais velho, sem seu mais
velho não existe continuidade (Oxum).
O saber no terreiro é cozinhar para o orixá, conhecer uma erva, saber
que hora vai colher, saber pra que essa erva serve, se ela é quente,
se ela é fria, a que orixá pertence. É o saber da alimentação ofertado aos deuses, é você saber enrolar um acaçá, saber se um acarajé
esta frio no ponto, é saber rezar, quando rezar, é saber dançar e
quando fazer os movimentos de acordo com as cantigas, é saber a
música e quando cantar, é saber os itans (mitos), os oríkìs os áduràs
(orações apropriadas para determinantes momentos, nota nossa), é
365
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ser ético e preservar a natureza e envolve também outros saberes,
outros aprendizados que é o nosso segredo, que é justamente estes
que a gente não cita (Iansã).
Saberes de uma folha, de você saber o que é uma folha que você
deve dar um banho no filho, você saber qual é a comida que você
deve dar para aquele determinado orixá nos caminhos que ele se
apresenta, a reza que você deve rezar para se alimentar, para tomar banho, para pegar numa faca, para ascender uma vela, essas
são as importâncias dos saberes, de você ir na mata, pedir licença
para entrar, porque todo lugar na natureza tem um morador, tem
um dono, é saber respeitar a natureza. Então essas importâncias
de você levantar na hora certa, de bater seu paó na hora certa, de
saber seu lugar e porque do lugar num xirê, falar com seu mais velho
na hora certa, saber se comportar em determinados momentos no
culto, tudo são saberes específicos. E um dos mais específicos é o
jogo de Ifá, jogo de búzios, que eu vejo como um dom, porque hoje
em dia os Babalorixás jogam por odu, e tem que estudar estes odus.
Mas tem aquele pai de santo que senta na mesa e joga por visão,
que o búzio lhe mostra a visão, então você vai dizer o que o búzio
esta falando, não é o odu, é o orixá conversando com você através
de Ifá, dizendo assim, meu filho, o caminho deste filho é assim, e
você vai fazer assim. Porque como já disse odu a gente aprende,
mas a visão é o orixá quem dá (Xangô).
Diante dos relatos, compreendemos que os saberes existentes no
cotidiano do terreiro não apresentam uma única forma, um único saber
de conhecimentos válidos, e sim múltiplas formas de saberes construído cotidianamente por homens e mulheres em suas práticas sociais. Há
uma visão coletiva entre eles sobre estes saberes, que demonstram serem eles expoentes do terreiro. Chamam atenção dois saberes, folhas e
alimentação retratadas nos três depoimentos. As plantas, no universo
da casa pesquisada, apresentam grande valor por serem utilizadas para
propósitos ritualísticos e de rotina com fins medicinais.
O uso de plantas sagradas atende aos aspectos litúrgicos das casas-de-santo e possui um caráter fármaco-botânico, empírico e individual (Barros 1983, Verger 1995, Camargo 1988). Subentendemos nos
depoimentos de Oxum e Iansã que as folhas são base fundamental do
funcionamento do culto nos terreiros apresentando uma variedade de
ritos particulares, seguindo uma estética ritual meticulosa.
366
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Sobre a alimentação a comida ritual do candomblé compreende
toda uma expressão gastronômica com origem na mitologia dos orixás.
No universo sagrado do candomblé a comida é um elemento essencial,
assume um significado amplo, promovendo a socialização entre os iniciados, a comunidade e os orixás.
A vestimenta e os seus acessórios, contas como se refere Oxum,
reflete um sentido para além de “cobrir e enfeitar o corpo” carrega a compreensão do todo, vestimenta e acessórios como ritual, como parte de
uma comunidade e pertença de um grupo. A indumentária no terreiro assim, se torna como um prolongamento da corporeidade e uma expressão
da religiosidade negra constituindo parte da identidade da comunidade.
Ao serem mencionadas as rezas, oríkìs e áduràs, se faz necessário
compreender que eles são a essência da oferenda, invocação e agradecimento aos orixás em suas ritualísticas. Efetuadas em iorubá, é parte
de um legado ancestral transmitido por gerações. As rezas, Oríkì, (do
yorùbá, orí = cabeça, kì = saudar) tem a finalidade de louvar os orixás
assim como solicitar ajuda para os problemas do dia a dia. Os áduràs ou
orações tem a finalidade de invocar os orixás. Segundo Sìkúrì Sàlámì King
os aduras e os oríkìs visam louvar e dar graça aos orixás, dirigindo-se
aos elementos por eles denominados e ainda “feitas pelas pessoas ligadas ao culto difundem amplamente os conhecimentos relativos aos
orixás e os perpetuam” (KING, 1990, p. 20).
O jogo de búzios a que se refere Xangô é extensivamente usado em
todos os passos dos rituais e nada se faz no candomblé sem uma consulta prévia as divindades do oráculo. Uma prática divinatória restrita aos
Babalorixás e Yalorixás, o jogo de búzios além de consolidar a liderança
sacerdotal, é um dos mais eficazes instrumentos de dominação e poder
nas mãos dos pais de santos que governa sua comunidade com autoridade indiscutível. Caso suas atitudes não sejam aceitas por um ou vários
membros, estes se inclinam a aceitá-las, pois os líderes espirituais se
apoiam e se legitimam nas determinações anunciadas pela adivinhação.
Muitas das vezes suas atitudes são ditadas por suas vontades pessoais,
mas se o sacerdote as atribui às decisões divinas, as críticas não serão
formuladas, facilitando assim, a sua condição de líder espiritual que encontra as melhores soluções para o grupo (BRAGA, 1988).
Diante do exposto, reler uma tradição histórica africana milenar,
ressignificada frente à diáspora é perceber como o candomblé, enquanto
367
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
religião de uma cultura africana, enxerga sua história por intermédio do
hungbê e os saberes transmitidos no cotidiano do Ilê Axé Omilodé pela
oralidade, configurando o advento da experiência e apreensão de uma
memória ancestral.
Conclusão preliminar
O estudo realizado revela que a educação na modernidade fica
presa a uma racionalidade científica, pensamento abissal, que preconiza o saber a um conhecimento estruturado em detrimento aos saberes
adquiridos nas experiências e nas relações sociais cotidianas. Porém é
na pós-modernidade, que são criados mecanismos e olhares analíticos
que revela um posicionamento epistemológico, pós-abissal, em que a
valorização dos saberes científicos se contrapõe e consequentemente
há a valorização a outros conhecimentos que não sejam pautados em
determinada forma epistemológica de ver o mundo.
Esse movimento pós-abissal, segundo Boaventura Santos (2010),
seria baseado no princípio da igualdade (não há conhecimentos melhores do que os outros) e no princípio do reconhecimento da diferença
(nenhum conhecimento é o padrão, já que todos possuem suas próprias
epistemologias). Sendo assim, a educação no Ilê Axé Omilodé se torna
uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam,
entre tantas outras invenções de sua cultura, incorporando os sujeitos
sociais que o praticam ao mesmo tempo em que são afetados por ela.
Contatamos que a educação no Ilê Axé Omilodé, realiza-se na
experiência diária, nas relações sociais, nas rodas de conversa e nas
práticas rituais. Os saberes específicos no espaço do terreiro estudado constituem um acervo de conhecimentos cultural ressignificado ao
longo da história, um legado da ancestralidade que são construídos e
transmitidos por processos de ensino-aprendizado de gerações a gerações, compondo a educação do axé.
Para nós é muito significativo este trabalho, pois a educação nos
espaços do terreiro carrega uma riqueza presente nos saberes destas
tradições, bem como os processos próprios de formação humana cultural, por meio do hungbê num terreiro de candomblé.
368
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BARCHELAR Gaston. A dialética da
duração [1936]. São Paulo: Ática,
2007.
BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari.
Investigação qualitativa em Educação:
fundamentos, métodos e técnicas. In:
Investigação qualitativa em educação.
Portugal: Porto Editora, 1994.
BARROS, José Flávio Pessoa.
O segredo das folhas: sistema
de classificação de vegetais no
Candomblé Jêje-Nagô do Brasil. Rio
de Janeiro: Pallas. 1983.
BRAGA Júlio. O Jogo de Búzios: Um
estudo se adivinhação no candomblé.
Editora Brasiliense, 1988.
BRANDÂO, Carlos Rodrigues. A
educação como cultura. Campinas:
Mercado das Letras, 2002.
______ Educação Popular. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
Camargo, M.T.L.. Plantas medicinais e
de rituais afrobrasileiros. São Paulo:
ALMED, 1988.
CHIZOTTI, Antonio. Pesquisa em
Ciências Humanas e Sociais. São
Paulo: Cortez, 2003.
COSTA, Renata Silva da. Iniciação
religiosa e educação no terreiro
de Candomblé “Ilê Asé Gunidá.
Disponível em https://docplayer.
com.br/34380481-Iniciacaoreligiosa-e-educacao-no-terreiro-
369
de-candomble-ile-ase-gunida.html.
Acesso em 4/04/2019.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das
Culturas. Rio de Janeiro, 1989.
JAPIASSU, Hilton. Introdução ao
Pensamento Epistemológico. 7ed.
São Paulo: Paz e Terra, 1986.
KING, Síkírù Salaámì. A mitologia dos
Orixás Africanos. Editora Oduduwa,
1990.
MACHADO, Vanda. Àqueles que têm
na pele a cor da noite: ensinâncias
e aprendências com o pensamento
Africano Recriado na Diáspora.
Tese (Doutorado em Educação)Universidade Federal da Bahia.
Salvador 2006. Orientador Dr.
Augusto Dante Galeffi.
MARTINIC, Sergio. Saber popular
y Identidad. In: GADOTTI, Moacyr;
TORRES Carlo Alberto (ORGS).
Educação Popular: utopia latinoamerica. São Paulo: Cortez, 1994.
SANTOS, Boaventura de Souza.
Para além do pensamento
abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes. In: SANTOS,
Boaventura; MENESES, Maria Paula.
Epistemologias do Sul. 1.ed. São
Paulo: Cortez, 2010, Cap 1, p. 31-83
SILVA, Claudete do Socorro Quaresma
da. BRINQUEDOS DE MIRITI:
SABERES COTIDIANOS AFIRMANDO
A DIVERSIDADE E A IDENTIDADE. In
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Diálogos entre a Epistemologia e a
Educação/ Organizadoras: DOURADO
Cleonice Reis Souza, OLIVEIRA
Ivanilde Apoluceno de, SANTOS
Waldiza Lima Salgado dos. Belém:
CCSE-UEPA, 2013.
VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: o uso
das plantas na sociedade Iorubá. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Entrevistas
Xangô. Entrevista concedida a Dulce
Edite Soares Loss. João Pessoa, 2019.
Oxum. Entrevista concedida a Dulce
Edite Soares Loss. João Pessoa, 2018.
Iansã. Entrevista concedida a Dulce
Edite Soares Loss. João Pessoa, 2018.
[ Volta ao Sumário ]
370
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
identidades ateístas
no enContRo da
nova ConsCiênCia
Genaro Camboim L. A. Lula
Susana Silva Barros
Como referenciar este capítulo:
LULA, Genaro Camboim L. A.; Barros, Susana Silva. Identidades ateístas no
encontro da Nova Consciência. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos
Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 371-386.
Genaro Camboim L. A. Lula1
Susana Silva Barros2
Considerações iniciais
Há 28 anos, Campina Grande, segunda maior cidade do estado da
Paraíba, sedia, durante o período de carnaval, o Encontro da Nova Consciência (ENC). Espaço caracterizado pela pluralidade religiosa e ambiente
de difusão de movimentos neo-esotéricos, o “Carnaval da Alma”3, como
certa vez foi assim referenciado por seus participantes e organizadores,
é um vasto objeto de estudo para a academia, por se apresentar para
literatura antropológica como uma expressão do Movimento Nova Era.
Enquanto plural, o ENC abriga diversas representações artísticas, filosóficas e culturais. Representantes de diferentes universos confessionais e nomes influentes dos cenários religioso e acadêmico como Paulo
Coelho, Leonardo Boff, Pierre Weil, já estiveram na programaçãodo ENC.
Atualmente, contudo, a estrutura física e o público anteriormente alcançados são colocados em xeque, frutos de disputas religiosas,
econômicas e políticas, dada a fomentação e incentivos financeiros
desproporcionais para outros eventos religiosos4, essencialmente o
de público evangélico. O que se percebe é um estreitamento das relações entre o Encontro para a Consciência Cristã (ECC) e os interesses do
setor econômico e políticos locais, provocando, nos últimos anos, “um
estrangulamento, uma asfixia da produção do ENC, bem como produz
efeitos no modo como a pauta do ENC é organizada e na forma como os
Professor Dr. do curso de Ciências da Religião da Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte – UERN.
2
Granduanda do curso de Ciências da Religião da Universidade do estado do Rio Grande
do Norte-UERN.
3
“Carnaval da alma” – certa vez assim referenciado por seus participantes e organizadores – L. AMARAL, Carnaval da Alma: Comunidade, essência e sincretismo na Nova Era.
4
Além do Encontro da Nova Consciência (ENC), Campina Grande abriga, durante o carnaval, O Encontro para Consciência Cristã (de natureza evangélica), o Crescer (ligado à comunidade católica) e MIEP (Movimento de Integração Espírita da Paraíba).
1
372
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
realizadores do evento agenciam suas experiências” (LULA; SAMPAIO,
2016, p. 84).
Com o tema “A Arte da Resistência”, a agenda do 28º Encontro da
Nova Consciência assume conotações cada vez mais políticas, ainda que
garanta o a presença de atividadesde dimensões espirituais, a presença
do “clima espiritual” e da proposta de expansão da consciência humana.
Ostentando caráter poroso, o ENC se enquadra nas características das
novas religiões e de novos movimentos religiosos, a saber, o individualismo, a postura cosmopolita e a reflexividade5. Retornaremos as definições adiante, por ora, cabe introduzir nosso recorte: o evento paralelo
para ateus e agnósticos.
Apesar da estrutura física e o número de público do ENC ter minguado, existe uma estrutura que se repete ao longo dos anos: fórum
principal, eventos paralelos, terapias e consultas, feira de livros e comércio de produtos esotéricos, além das atrações noturnas que prestigiam artistas locais e regionais. O fórum principal, destinado à discussão
de temas globais e multiculturais, mesas redondas com previsões esotéricas e palestrantes das mais variadas confessionalidadesreligiosas, é
situado, há sete anos, no Sesc Centro, local que também abrigas as terapias, consultas e atendimentos, como leitura esotérica de mãos, cromoterapia, acupuntura, tarô, astrologia, experiência somática, baralho
cigano, alinhamento de chakras, reiki e assim por diante. A exposição de
livros e comércio de produtos esotéricos são as primeiras coisas vistas
ao adentrar o prédio.
Os eventos paralelos, por sua vez, são uma oportunidade para que
pessoas com interesses afins troquem experiências e participem de palestras, reuniões e mesas redondas voltadas para temáticas mais específicas (SCHWADE, 2011, p. 187). Ocorrendo em locais diferentesem
não mais de dois quilômetros de distância do fórum principal, não se resumem a um caráter estritamente religioso. Neste sentido, eventos paralelos como de Xamanismo, Santo Daime, Neopaganismo acontecem
também eventos de Ufologia, Arqueologia, Anime Cult, Jogadores de
RPG. O evento paralelo que escolhemos acompanhar, isto é, o “Encontro de Ateus e Agnósticos” figura entre os mais antigos e solidificados
5
A. D’ANDREA, O Self Perfeito e a Nova Era.
373
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
da programação. Buscando entender como se negociam as relações
entre um evento autodeclarado ateu dentro de um evento maior com
características religiosas, que este artigo foi pensado, sem perder de
vista as transformações do campo religioso brasileiro.
A partir de diálogos e observações produzidas in loco durante o 28º
Encontro da Nova Consciência e da coleta de dados posteriores através
do intermédio de redes sociais, a etnografia multi-situada apresenta situações em que a identidade ateísta é reivindicada pelos frequentadores do evento. Ainda que o Carnaval da Nova Consciência já tenha sido
objeto de importantes publicações6, os eventos paralelos do ENC são
território pouco explorado. Montero e Dullo (2014) reforçam a ausência
do ateísmo enquanto objeto de estudo para a pesquisa acadêmica no
Brasil, o que também impulsiona a relevância deste artigo.
Os “sem religião” e o ateísmo na literatura
sociológica e no censo
O evento paralelo para ateus e agnósticos completa 21 anos na
programação do ENC conservando semelhanças junto aos eventos mais
antigos, ligado às tradições religiosas, ao mesmo tempo em que compartilha o aspecto social e político, característico de eventos e temáticas adicionados mais recentemente à programação (SAMPAIO; LULA,
2016, p. 96-97)7. Em 2019, durante os quatro dias de carnaval (02 a 05
de março), pessoas que se definem como ateus, agnósticos, céticos e
livres pensadores se reuniram no Centro de Arte e Cultura (antiga Faculdade de Administração – UEPB), localizado em uma área central de
Os principais trabalhos são: L. AMARAL, Carnaval da Alma; E. SCHWADE, Carnaval da
Nova Consciência; V. LAIN, Nova Consciência: a anatomia religiosa pós-moderna.
7
Os eventos paralelos com maior número de ocorrência são: o 27º. Encontro do Santo
Daime, o 21º. Encontro de Ateus e Agnósticos, o 18º. Encontro da Iniciativa das religiões
unidas – URI; 22º. Encontro para a Consciência Ecológica. Os eventos paralelos criados
mais recentemente são: o 8º. Encontro de Literatura Contemporânea; o 9º. Encontro de
Comunicação e Mídias Digitais e o 12º. Encontro da Sociedade Paraibana de Arqueologia.
Apontamos que encontros de conotação religiosa e/ou espiritual também foram criados
mais recentemente, como é o caso do 12º. Encontro Parahybano de Neopaganismo.
6
374
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Campina Grande, para discutir temas como fascismo, direito animal, literatura contemporânea, política e maniqueísmo, ativismo nas redes sociais.
Prevalece neste evento paralelo uma organização que se assemelha a uma estrutura escolar – professores e/ou ativistas expondo para
pessoas agrupadas em cadeiras enfileiradas; material explicativo projetado em slides ou entregue em mãos.Durante os quatro dias, ao final
das explanações um círculo de cadeiras foi formado a fim de facilitar o
diálogo e o compartilhamento de pontos de vistas e considerações entre participantes, organizadores e palestrantes. Por fim, o café e o bolo
vegano oferecidos pelos organizadores do evento representavam um
convite para permanecer um pouco mais, conversando sobre fotografia
e pássaros, curtas nacionais e tatuagens, ou sobre assistir ou não a próxima palestra no fórum principal do ENC.
A quantidade de participantes por dia fluía de acordo com atratividade representada pelo nome do palestrante e/ou tema da exposição, e
entre habituais e menos assíduos, cerca de 35 pessoas assistiram pelo
menos uma palestra durante a última edição do evento. O número é
semelhante aos demais eventos paralelos oferecidos pelo ENC, todavia,
quando comparado à Consciência Cristã, evento que nasceu no mesmo ano que o evento paralelo para ateus e agnósticos, e que alcança a
marca de 100 mil pessoas durante o carnaval em Campina Grande8, 35
pessoas são dados concretizados, pois representam a dinâmica religiosa estabelecida no país.
De acordo com informações levantadas pelo censo 2010, no Brasil,
embora se perceba um aumento expressivo no número de sujeitos que
se declaram “sem religião”, “o ateísmo como doutrina política permanece praticamente invisível como fenômeno social”9.Parte deste diagnóstico é explicado pelo fato de se tratar de um país de formação histórica
católica, tendo a religião como peça do projeto de construção identitária
nacional. Durante o período do Império, católicos e acatólicos eram as
formas – impregnadas de valores morais – utilizadas para classificar
a população. A partir de 1940, com o levantamento do censo incluindo
a questão sobre o perfil religioso da população, as opções aumentam,
8
9
https://conscienciacrista.org.br/encontro/ acessado em 03 de abril de 2019.
MONTERO, P.; DULLO, E.Ateísmo no Brasil: da invisibilidade à crença fundamentalista.
375
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mas o catolicismo continuaria representando a quase totalidade das
respostas. A década de 1980, entretanto, é considerada oturning point.
O catolicismo sai da casa dos 90% e declina o suficiente para em 2010
registrar 64,4%. Por outro lado, os que se declaravam protestantes subiram de 5,2% para 22,2%, em cinco décadas. Além disso, a categoria “sem
religião” ultrapassa a barreira do 1% em 1980, atingindo 8% em 2010. Já
as alternativas “religiosas não-cristãs” não passaram dos 3% no último
censo (MONTERO, DULLO, 2014).
Como se sabe a categoria “sem-religião” não significa, necessariamente, não acreditar em Deus. Além disso, odesenvolvimento de novos
movimentos espirituais, aumento das correntes carismáticas e sucesso da literatura de inspiração esotérica, não professar religião alguma
é também um modo de se fazer escolha individual. Por trás do declínio
da hegemonia católica está a relação dialética entre pluralismo e secularidade, a multiplicação das estruturas de plausibilidade religiosa, além
da relativização, subjetivação dos discursos religiosos10. Hervieu-Léger
(2008) nos chama a atenção para o desconforto cada vez maior com os
modelos estabelecidos e práticas controladas pelas instituições tradicionais e, reforçando a tendência geral à individualização e à subjetivação, coloca a secularização não como a perda da religião no mundo
moderno, mas antes uma reorganização das crenças que trazem à tona
o caráter paradoxal da modernidade11.
Para o ateu ou agnóstico, entretanto, não professar religião alguma não significa estar inserido em estatísticas que apontam em direção
ao sincretismo ou trânsito religioso. Menos ainda ao modo de expressar
a falta de especificidade da prática religiosa. O ateísmo como osnovos
movimentos religiosos fazem parte deum processo de revisão contínuo
das práticas e crenças na modernidade que fomentam a reflexividade
e promovem rupturas em sistemas fechados ou dogmáticos (tradicionais). A reflexividade contribui para a constituição de identidades abertas e referenciais cognitivos mais flexíveis, ao mesmo tempo incertos e
provisórios (D’ANDREA, 2000).
BEGER apud MARIANO, Sociologia da Religião e seu foco na secularização. In: Compêndio
de ciência da religião, 2013, p. 237.
11
HERVIEU-LÉGER, O peregrino e o convertido, 2008, p. 41.
10
376
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
No Brasil, o catolicismo, estando em posição de referência sincrética absoluta junto às religiosidades de natureza africana e indígena,
e mais recentemente, às ligadas ao esoterismo Nova Era, alimenta a
porosidade e a falta de nitidez das novas delimitações religiosas e, de
igual modo, a flexibilidade das organizações religiosas mais tradicionais.
Parece ser mais aceitável se declarar “sem religião” do que simplesmente declarar não acreditar em Deus. Um indício disso é apresentado
pela Fundação Perseu Abramo, em pesquisa concebida com o intuito de
medir a intolerância a homossexuais e transgêneros (2008/2009). De
acordo com os dados, dentre os grupos pesquisados, aqueles que não
acreditavam em Deus sofrem os mais altos índices de rejeição por parte
da opinião pública12.
Ateu “hard” e “soft”: conversão e identidade
Percebemos algumas categorias êmicas que nos revelaram como
os membros do evento paralelo para ateus e agnósticos no ENC falam
sobre suas identidades a partir de situações etnográficas que não se
restringiram aos debates unicamente durante as atividades. É assim que
situações como pegar uma carona com alguns dos participantes se mostraram uma boa oportunidade para observar como algunsfrequentadores assíduos não somente do evento para ateus e agnósticoscompartilham interesse paralelos por terapias alternativas, palestras e outros
eventos paralelos disponibilizados pela programação geral do ENC. Este
é o caso de Breno* (34 anos) e de Rony* (40 anos) que, ao me oferecerem uma carona de onde estava ocorrendo o evento paralelo, no Centro
de Arte e Cultura à sede central do ENC, o Sesc Centro, explicaram-me
que não existe uma forma única de ser ateu.Breno colocou que por
não acreditar em nada vindo do universo religioso, se definia como“um
ateu hard”: “Eu acredito em nada: morreu, acabou. Pra que outra vida?
Vou descansar em paz. Não quero outra vida para ter outros tumultos”. O contraponto a esta identidade foi estabelecido quando, logo em
12
VENTURI, BOKANY (Organizadores), Diversidade sexual e homofobia no Brasil, 2011.
377
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
seguida, Breno argumentou que o Rony, que nos acompanhava também
no carro,representava um “ateu soft”, pois “continuava buscando a espiritualidade”. O que Ronyconcordou afirmativamente.
Ao chegarmos em frente ao Sesc Centro, enquanto aguardávamos
o início da última palestra do dia, na qual seriam debatidas questões da
ordem de “Como o espiritismo vê os extraterrestes”, Breno explicou que,
anteriormente, por influência de familiares, frequentava o ECC, mas há
quatro anos “começou a duvidar”, e a inquietação, ponderou, o libertou:
“É viver sem ter algo controlando você. Eu acreditava em céu e inferno,
essas coisas, e tinha medo. Comecei a duvidar, aos poucos, questionar,
provocar, e nada acontecia. Aí raciocinei, e vi que não existia, foi criado
pelo homem” (Diário de Campo, março, 2019).
Rony, por outro lado, explicou que se via como “ateusoft”por praticar técnicas espirituais como a meditação e ouvir “mantras e canto
gregoriano para relaxar”. Explicou que para os hards, isso “tudo era balela”. Comentou que o ENC sempre foi noticiado nos jornais, e por ter
alguns conhecidos que já haviam participado, foi pela primeira vez por
“curiosidade, despretensiosamente, para assistir e voltar no mesmo dia
para João Pessoa” (capital paraibana localizada a 134 quilômetros de
Campina Grande). Como identificou-se “com tudo”, há sete anos retorna. O“ateu soft” Rony explicou que o ateísmo é o destino final de uma
busca pessoal. Antes, pesquisou e praticou vertentes de espiritualidade (espiritismo, teosofia), entretanto,a procura não parecia ter fim. Até
deparar-se com o livro,Deus, um Delírio13, e começar o interesse pela
não-existência de uma divindade e ir ao encontro em Campina Grande.
“Desde então, a não-crença numa divindade me libertou dessa busca e
estou mais relaxado em relação a isso”.
Deus, um Delírio, livro no qual o biólogo Richard Dawkins se propõe a mostrar como a
religião alimenta a guerra, fomenta o fanatismo e doutrina as crianças. O texto objetiva
provocar os religiosos convictos, mas principalmente provocar os que são religiosos “por
inércia”, levando-os a pensar racionalmente e trocar sua “crença” pelo “orgulho ateu” e
pela ciência.
13
378
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Outras categorias êmicas
No universo ateísta destes frequentadores do evento paralelo
da ENC, as categorias êmicas estão longe de se esgotarem em hard ou
soft. No discurso de Breno, aparece outra categoria: o “agnóstico”. De
acordo com Breno, “agnóstico”é todo “aquele que pergunta o porquê
dessa pergunta”, ou seja, diante da existência ou não de Deus, questionaa relevância da indagação. Pude obter outra resposta a partir da
ativista, Karina Meireles (36 anos), administradora da página no Instagram “Ateu com orgulho14” também participante e palestrante do evento paralelo em Campina Grande.Karina entende que esse é apenas um
tipo de agnóstico -seeker (investigador), que não têm uma posição ideológica firme, “mas não é confuso, só abraça a incerteza”. Karina falou
que este tipo de agnóstico (o seeker) difere do agnóstico-“intelectual” e
também do agnóstico-“ativista”, que não se contentaem descrer, mas
realiza uma atividade política de proselitismo do ateísmopara fins de
uma“sociedade melhor”, se todos fizéssemos o mesmo. É assim que
Karinadefine o Rony (o “ateu soft” para o Breno)como o“ateu ritualístico”, ou seja,“aquele que ainda acha úteis os ensinamentos de algumas
tradições religiosas”, vendo-os como ensinamentos filosóficos.
Breno, diante da reflexividade com relação aos questionamentos
identitários, poucos dias após o carnaval, compartilhou a indagação sobre ser, de fato, ateu hard: “Numa conversa com um ateu, no show15, eu
disse que era ateu e acreditava na ciência. E ele disse que então eu não
era ateu, eu era cético. Já ouviu algo assim?!”. E concluiu: “Não acreditar
na ciência acho que é o auge do ateísmo”.
Porém, estas conversões e auto-afirmações ateístas não são estanques nem definitivas. Isto ficou evidente em uma outra situação etnográfica quando após o período do carnaval, compartilhou comigo via
rede social (whatzapp), a incerteza sobre de fato ser ateu hard: “Numa
Até a finalização do artigo a página no Instagram Ateu com Orgulho possuía 8.572 seguidores.
15
Breno refere-se à Casa Arte Paisà, sede da programação musical com shows, apresentações artísticas e culturais.Entrevista concedida aos autores em 29 e 30 de março
de 2019.
14
379
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
conversa com um ateu, no show16, eu disse que era ateu e acreditava na
ciência. E ele disse que então eu não era ateu, eu era cético. Já ouviu algo assim?!”. E concluiu: “Não acreditar na ciência acho que é o auge do ateísmo”.
O que se observa é que a lógica que empreende estas identidades
é exatamente uma dualidade entre um grau maior ou menor de abertura em relação com a espiritualidade e/ou religiosidade.
O que querem?
Na segunda-feira de carnaval, Karina palestrou sobre sua experiência com o Instagram e o ateísmo na internet. Campinense, participa
do evento paralelo desde 2011. Em 2012 e 2013 conversou sobre sexualidade e religião, e em 2018, após um período apenas participando do
evento, voltou a palestrar sobre a religião e a mulher, submissão e liberdade. Ao ser questionada sobre a relevância do evento, discorreusobre
o ENC e em específico o evento paralelo serem espaços de resistência,
destacando a importância deste fato diante do contexto local, isto é, a
relação entre a religião e a cidade:
Ser ateu em uma sociedade cristã é difícil e espaços de debate no
mundo real são importantes para representar e também dizer que
existimos e nossa existência não fere a sua, pois somos a favor da
liberdade de pensamento. Com relação ao encontro, falo que é resistência porque somos uma minoria e não existe muitos espaços
em nossa sociedade em que possamos falar sobre ateísmo e questionar a religião ou atividades metafisicas sem ser condenado por
isso. Aqui em Campina existe uma força muito grande da religião e o
fanatismo. Resistimos porque nadamos contra a maré17.
A importância do evento paralelo para seus participantes, palestrantes, ativistas e organizadores, só pode ser entendida, portanto, a
16
Breno refere-se à Casa Arte Paisà, sede da programação musical com shows, apresentações artísticas e culturais.Entrevista concedida aos autores em 29 e 30 de março
de 2019.
17
Karina Meireles, entrevista concedida aos autores em 25 e 26 de março de 2019.
380
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
partir da compreensão da visão que os frequentadores têm sobre a
relação estabelecida entre o evento paralelo e o ENC e entre os demais eventos religiosos em Campina Grande.Por se tratar de um tipo
de evento não-ordinário na sociedade brasileira, sobretudo, no estado
da Paraíba e no Nordeste, Rogério Nascimento (50 anos), professor
de antropologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG),
um dos criadores do evento paralelo, explica que embora já tenha sido
tentado organizar algo mais periódico, ao menos com as pessoas mais
próximas, o encontro se mantem apenas anual. Rogério organiza e articula palestrantes para o evento dos ateus e agnósticos há 15 anos, e
a decisão de estar à frente do projeto partiu não apenas do interesse
em discutir o tema, mas também pelo que chama de ajuste de contas
com a própria biografia:
Eu nasci no meio da igreja evangélica, pentecostal. Passei boa
parte, quase toda a minha vida, envolvido com essas questões de
Deus, Diabo, céu, inferno, pecado, essas coisas todas e fui bastante
atuante dentro da igreja, mergulhei fundo e isso me criou muitas
dificuldades em diversas áreas. A minha ruptura se deu de forma
lenta e muito também atormentada e nesse sentido é que é um
ajuste de contas com a minha biografia. Eu me empenhei muito,
por exemplo, nessas coisas salvacionistas, proselitistas e sei como
é olhar o mundo a partir daí. E hoje eu tenho nojo disso18.
A fala do coordenador Rógerio, se apresenta reagente às morais
totalizantes, intolerantes, com aspiração à hegemonia, coaduna-seà
dimensão política cada vez mais abraçada pelo ENC. A princípio, ao se
inserir no circuito de disseminação do universo neo-esotérico, o ENC
objetivava reunir pessoas dispostas a discutir questões que diziam respeito à humanidade no seu conjunto e a cada um em particular, salientando a diversidade, a tolerância e o diálogo (SCHWADE, 2011). Nos últimos anos, entretanto, o acirramento das disputas econômicas, políticas
e ideológicas entre os demais eventos culminaram em tensões e conflitos no campo religioso campinese, fazendo com que fique evidente
18
Prof. Rogério Nascimento, entrevista concedida aos autores em 29 e 30 de março de
2019.
381
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a ênfase no recorte político, uma vertente pouco explorada, mas ainda
assim inerente ao fenômeno Nova Era (Sampaio e Lula, 2016).
Nesse sentido, para os frequentadores do evento paralelo e do
ENC há um constrangimento que advémdo ECC aos demais eventos e
que não se limita a massiva divulgação midiática (cartazes e outdoors
evangélicos torneando a cidade) ou a ocupação de territórios disputados no interior da cidade como caso do Parque do Povo – maior espaço
de representatividade turística da cidade, onde ocorre o evento da prefeitura “O maior São João do Mundo” – afastando os demais eventos
da área mais privilegiada da cidade. O relato de Rony acerca do hotel
onde ficou hospedado sintetiza a sensação presente no discurso dos
frequentadores do evento paralelo ao circularem pelos espaços públicos
e privados da cidade:
A pessoa se sente super deslocado no café da manhã do hotel porque as pulseirinhas19 são uma forma do pessoal do outro encontro
se identificar também. Quando você não está com a pulseira, você
sente que as pessoas ficam olhando para você e tentando ver se
você está no encontro deles ou não. Dessa vez, teve até uma mulher
que estava falando da Bíblia e eu disse que não era da Igreja e ela
tocou no meu ombro e começou a fazer uma oração “para mim”.
Considero isso muito invasivo. Primeiro porque ela me tocou sem
minha permissão e segundo porque eu não solicitei nenhuma
oração. Cada um deveria cuidar da sua vida, né?20
A aposta na pluralidade, na diversidade, em abranger não apenas o neo-esotérico ou filosófico, mas o da ordem dos fundamentos
da espiritualidade laica21, em essência, caracterizam o ENC. Além disso,
o Encontro é um espaço de crenças, e que também acolhe a descrença.
Ocorre que a sensação é de por enquanto. Ribamar Bezerra (42 anos),
campinense e militante do evento paralelo, abrange que há um “espírito da Nova Consciência” que prevalece entre os participantes e que
Para os frequentadores do Encontro para a Consciência Cristã, a pulseira ajuda na identificação na entrada dos eventos paralelos que acontecem fora do ambiente do Parque do
Povo, localização principal do ECC.
20
Rony, entrevista concedida aos autores em 25 e 26 de março de 2019.
21
L. FERRY, M. GAUCHET, Depois da Religião, 2008.
19
382
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
permite a convivência. Em 2019, assistiu palestras espíritas, pagãs, sobre astrologia, ecologia, ponderando: “É muito plural, e mesmo sendo
ateu, uma coisa que aconteceu enquanto eu frequentava a Nova Consciência, eu nunca me senti compelido a evitar os outros encontros. Ali
fecharam a minha bolha, entende?22”
Ribamar compartilha com o ENC o desejo de conhecer o diferente
e de reconhecer a diversidade de pensamento: “deus não existe para
mim, deuses não existem para mim, mas existe para outras pessoas,
então a gente precisa respeitar esse princípio”. Para ele, o espírito do
Encontro da Nova Consciência proporcionao direito à liberdade de culto
e de crença, uma mensagem que ficou clara desde o princípio – “é tanto
que eles nunca se recusaram a receber os ateus, então é um ambiente
de extremo respeito a diversidade, e isso me encanta”.
Ausência de censura, enxerga Ribamar, se dá pelo fato de o
ENC não se tratar de um ambiente predominantemente cristão, mas
ecumênico, aonde não se pretende mudar a opinião do outro, ou, como
enfatizou,“fazer proselitismo”. Ajuíza ainda que o foco do ateísmo parece ser o cristianismo, religião de maior preeminência e destaque na
sociedade, mas explica que seria qualquer outra, se assumisse a mesma
postura de alguns segmentos cristãos, como os neopentecostais, que
tem um histórico de segregar e de combater outras religiões. Ribamar
conclui apontando que: “no geral, a gente trabalha com muitas religiões,
com muita fé, e a gente é o antagonista”.
Considerações finais
A delimitação do evento paralelo a ser estudado para essa pesquisa se deu às vésperas do carnaval, dada a incerteza, por parte dos
organizadores do ENC, da realização do evento, suspeita acarretada – já
enfatizamos – pelas questões político-religiosas mencionadas. Contudo, uma vez definido, dois questionamentos se fizeram constantes
durante a elaboração do artigo: o que significava ser ateu e, talvez mais
claramente, como se dava a relação entre um evento autodeclarado
22
Ribamar Bezerra, entrevista concedida aos autores em 02 e 03 de abril de 2019.
383
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ateu e outro maior, com caracteristicas neo-esotéricas. Contrapondo
ao antagonismo, que somente é possível numa relação de auteridade,
Breno, diante da reflexividade com relação aos questionamentos identitários, poucos dias após o carnaval, compartilhou a indagação sobre ser,
de fato, ateu hard: “Numa conversa com um ateu, no show23, eu disse
que era ateu e acreditava na ciência. E ele disse que então eu não era
ateu, eu era cético. Já ouviu algo assim?!”. E concluiu: “Não acreditar na
ciência acho que é o auge do ateísmo”.
Para o Ribamar, ateu é, primordialmente, ser descrente, não ter
uma crença numa divindade, ou divindades, e uma descrença do sobrenatural, e é também ressignificar a realidade:
Eu não estou mais vendo a realidade como a manifestação da vontade de um ser divino, ou de seres divinos, seres sobrenaturais. Eu
não estou vendo a realidade sobre a ótica do místico, da magia, enfim, de forças ocultas. Eu estou vendo como fenômenos metafísicos, estou vendo como uma série de fenômenos que moldaram a
realidade tanto geográfica, quanto cultural, quanto social da gente,
nós, enquanto raça humana24.
Ainda que possuam discursos e experiências distintas, os termos
resistência e liberdade repetiram-se na fala e na postura não apenas
pelos autodeclarados ateus, mas na quase totalidade dos agentes do
ENC. Eram, por conseguinte, a justificativapor trás da pauta de debate.
No último dia da programação, os antropólogos Genaro C. Lula e Dilaine
Sampaio, juntamente com os participantes presentes no fórum principal, refletiram sobre os desafios da Nova Era na contemporaneidade.
A proposta consistia em encontrar soluções que corroborassem para a
sobrevivência do ENC. Tratava-se do momento em que cabia, portanto, indagar-se sobre o afastamento do público vinculado ao mundo de
Campina Grande e pertencente às camadas populares; ou se já não seria
passada a hora do ENC optar por fazer uma proposta itinerante, cada
ano em um local diferente, como foi verbalizado por Iris Medeiros, coordenadora da ONG Nova Consciência.
Breno refere-se à Casa Arte Paisà, sede da programação musical com shows, apresentações artísticas e culturais.Entrevista concedida aos autores em 29 e 30 de março de 2019.
24
Ribamar Bezerra, entrevista concedida aos autores em 02 e 03 de abril de 2019.
23
384
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALVES, José Eustáquio; CAVENAGHI,
Suzana; BARROS, Luiz Felipe
e CARVALHO, Angelita A. de.
Distribuição espacial da transição
religiosa no Brasil. Tempo soc, 2017,
vol.29, n.2, pp.215-242.
MARIANO, Ricardo. Sociologia da
Religião e seu foco na secularização.
In: Compendio de ciência da religião
/ João Décio passos, Frank Usarki,
(organizadores). – São Paulo:
Paulinas: Paulus, 2013.
AMARAL, Leila. Carnaval da Alma:
comunidade, essência e sincretismo
na nova era.Petrópolis: Vozes, 2000.
MONTEIRO, Paula e DULLO, Eduardo.
Ateísmo no Brasil: da invisibilidade à
crença fundamentalista. Novos estud.
– CEBRAP, 2014, n.100, pp.57-79.
BERGER, Peter L. O dossel sagrado:
elementos para uma teoria
sociológica da religião.São Paulo:
Paulus, 1985.
_____. Os múltiplos altares da
modernidade: rumo a um paradigma
da religião numa época pluralista.
Petrópolis, Editora Vozes, 2017.
D’ANDREA, Anthony Albert F. O self
perfeito e a nova era: individualismo
e reflexividade em religiosidades póstradicionais. São Paulo: Loyola, 2000.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das
culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
GIDDENS, Anthony. As consequências
da modernidade. São Paulo: Editora
da UNESP,1991.
HERVIEU-LÉGER, Danièle. O
peregrino e o convertido: a religião
em movimento. Petrópolis, RJ: Vozes,
2008.
MAGNANI, José Guilherme Cantor.
O Brasil da Nova Era. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2000.
385
OLIVEIRA, Amurabi. Nova era com
axé: Umbanda esotérica e esoterismo
umbandista no brasil. R. Pós Ci. Soc.
v.11, n.21, jan/jun. 2014
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O
trabalho do antropólogo: olhar, ouvir,
escrever. Revista de antropologia, São
Paulo, USP, 1996, v.39
ONG NOVA CONSCIENCIA. 28º
Encontro da Nova Consciência:
a arte da resistência. Folder da
Programação. Campina Grande: 01 a
05 de março de 2018.
PEREIRA, Carlos Alberto M. O que
é Contracultura. 2.ed., nº 100. São
Paulo: Brasiliense, 1984 (Coleção
“Primeiros Passos”);
RODRIGUES, Donizete. Novos
movimentos religiosos: Realidade
e perspectiva sociológica. Revista
Anthropológicas, ano 12, volume
19(1): 17-42, 2008
SANCHIS, Pierre. O campo religioso
contemporâneo do Brasil. In_____:
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Religião, cultura e identidades:
Matrizes e matizes / Pierre Sanchis;
organização Mauro Passos e Léa
Freitas Peres. Petrópolis, RJ: Vozes,
2018. p. 160-173.
SCHWADE, Elisete. Carnaval da Nova
Consciência. In: Religião & Sociedade,
31, 1(2011).
SIQUEIRA, Deis. Novas religiosidades,
estilo de vida e sincretismo brasileiro.
In:______; LIMA, Ricardo Barbosa
de (Org.). Sociologia das adesões. Rio
de Janeiro: Garamond: Vieira, 2003.
VELHO, Gilberto. “Observando o
Familiar”. In: Individualismo e Cultura:
notas para uma antropologia da
sociedade contemporânea. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1980.
VENTURI, Gustavo; BOKANY Vilma.
Diversidade sexual e homofobia no
Brasil, Fundação Perseu Abramo,
2011.
[ Volta ao Sumário ]
386
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
indiCadoRes de saúde
e espiRitualidade em
pessoas vivendo Com Hiv
Rafaela Duarte moreira
Como referenciar este capítulo:
MOREIRA, Rafaela Duarte. Indicadores de saúde e espiritualidade em pessoas vivendo com HIV. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque
(Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos
e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR /
Fogo Editorial, 2020, p. 387-400.
Rafaela Duarte Moreira1
Introdução
A saúde traz uma ligação com os anseios por qualidade de vida. Por
isso, a pergunta “O que você pode fazer por mim?” aparece na esperança de um renovo externo ou mesmo milagroso, quando as fragilidades
humanas são externadas (ANJOS, 2008). Logo, o profissional de saúde deve acolher aos pacientes em suas angústias, para que o objetivo
de transformação ao bem-estar seja alcançando. Com tudo, o paciente
(ser humano) tem a espiritualidade como parte integrante do ser (RÖHR,
2011) e suas crenças e práticas religiosas podem interferir nos indicadores de saúde, levando a equipe multiprofissional a avaliar a conduta.
Medeiros e Barreto, 2016 trazem que a dimensão espiritual/
religiosa não pode ser suprimida na escolha terapêutica, visto que a
espiritualidade tem um impacto sobre a saúde física e mental. Logo,
é necessário incorporar a reflexão espiritual e religiosa para que esta
ajude nos processos de enfrentamento e sofrimentos que configuram
o processo saúde-doença, com o diálogo acerca da busca do sentido e
propósito de vida do individuo. (ESPERANDIO, 2014).
As necessidades espirituais se toram particularmente fortes em
tempos cuja vida encontra-se fragilizada, e coom 8% população brasileira
se declarando sem pertencer a uma religião declarada (BRASIL, 2010),
verifica-se a necessidade da equipe multiprofissional adentrar neste
universo, e assim utilizar esta dimensão em prol da qualidade de vida,
pois as crenças religiosas e suas práticas são usadas de forma para
regular a emoção durante os tempos de enfermidades, mudanças e
circunstancias que fogemdo controle pessoal.
Farmacêutica (UFPB) e Téologa (FTSA). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Ciências das Religiões – UFPB. Endereço lattes: http://lattes.cnpq.br/5699848230007474
E-mail: rafaeladuartejp@gmail.com
1
388
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Com isso, o universo das ciências das religiões pode contribuir à equipe de saúde com o estudosistemático das formas de expressão e como
estas podem interferir no processo saúde-doença, levando o profissional
a um olhar integral e mais humanizado no cuidar, através das reflexões do
pensamento e do imaginário religioso construído ao longo da história.
Adentrando na temática da Síndrome da Imunodeficiência Humana (AIDS) verificamos o seu efeito da brusca diminuição da imunidade
em resposta à infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV),
pois estes necessitam recrutar linfócitos CD4+ para a reprodução viral
(Diaz, 2017; Brasil, 2018).
Esta situação devastadora do sistema imunológico vem sendo
modificada pela introdução da terapia antirretroviral (TARV), pelos estudos sobre história natural da doença e toda a campanha de prevenção e
controle que as autoridades têm divulgado (Dourado et al, 2006; Alencar, 2006). Diante dos esforços realizados para que o avanço do prognóstico, a síndrome passou de algo totalmente devastadora à classificada como crônica (Alencar, Nemes e Velloso, 2008), logo o paciente se
depara com novas perspectivas de enfrentamento da doença.
Diante da temática espiritualidade e a problemática das pessoas
vivendo com HIV (PVH), levantou-se uma pesquisa bibliográfica sobre o
tema para compreender a relação da espiritualidade e dos indicadores
de saúde neste público, mais precisamente quais indicadores se apresentam relacionados com a espiritualidade.
Analisando os artigos selecionados, verificamos que estes poderiam ser agrupados em duas grandes temáticas: o domínio da Espiritualidade no contexto de qualidade de vida em PVHA e a expressão religiosa no processo saúde-doença do HIV/AIDS.
Observa-sequatro subgrupos na temática dodomínio da Espiritualidade no contexto de Qualidade: Influencia da Espiritualidade na
Adesão terapêutica, Autoconhecimento como fortalecimento do ser,
Espiritualidade e os Indicadores de Saúde e domínio prevalente da espiritualidade nos questionários de qualidade vida.
Já o grupo enfrentamento e a expressão religiosa no processo
saúde-doença do HIV/AIDS consegue-se reorganiza-los em três subgrupos: Relacionamento como Transcendente, Análise de Segmento
Religioso e Práticas Religiosas.
389
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Definições
Para entendermos como as ciências das religiões podem contribuir no contexto da saúde, é preciso explanar sobre os termos que
permeiam a espiritualidade, a religiosidade e a própria religião, gerando
assim um olhar diferenciado para aqueles que trabalham diretamente
na assistência.
Em um país que se declara com 92% da população pertencente a
uma religião-religiosidade (BRASIL, 2010), a primeira pergunta que deve
ser respondida é “o que é religião”?
A religião faz parte da condição de existência do ser humano, devido ao todo o processo de penetração social e cultural existente da mesma (HOCK, 2010 p. 27), ao ponto que pesquisar antropológica ou socialmente, o pesquisador se depara como a religião e seus enraizamentos
(GRESCHAT, 2005 p. 23).
A construção de conceitos deve ser interpretada conforme a época e lugar da fala (GRESCHAT, 2005 p. 22). A raiz da palavra religião,
deriva do latim que retoma a ideia de ligação da humanidade com a
divindade, religar a alma afastada de Deus (COUTINHO, 2012 e HOCK,
2010 p.18), através de um sistema de descrições do sagrado que permite conduzir regular a conduta individual permitindo a experiência do
sagrado (COUTINHO, 2012). Logo como traz Tavares et al (2016) que
religião é a crença na existência de forças sobrenaturais que se baseia
em um conjunto de escrituras ou ensinamentos que buscam o significado e o sentido do mundo.
Diante destas colocações trago aquilo que COUTINHO, 2012 traz
como definição do que religião é:
“um sistema composto por descrições do sagrado, respostas a sentido do mudo e da vida (crenças), meios sinais, experiências de ligação a esse sagrado (práticas), orientações normativas do comportamento (valores) e atores coletivos com regras e recursos próprios
(coletividade) (...) permite regular e justificar a conduta individual
(normativa), providenciar coesão social (coesão), consolar e aliviar
(tranquilizante), fortificar a vontade (estimulante), dar sentido à vida
(significantes), possibilitar a experiência do sagrado (experimental),
crescer e amadurecer (madurativa), proporcional identidade (indenitária) e ministrar salvação (redentora)”.
390
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Qualquer tentativa de explanar de conceituar o que é religião deve-se
ter à mente que ela é um assunto emotivo, por isso “a neutralidade
sempre esconde algum grau de preferência e de viés” (CRUZ, 2013), e
que o intérprete sempre estará envolvido de forma coparticipativa, no e
com objetivo de estudo da religião, (FILORAMO e PRANDI, 1999 p. 10),
cuja construção do pensamento religioso ao longo da humanidade, depende do lugar e da época de suas existências. (GRESCHAT, 2005 p. 22)
Aproveitando a afirmação de Hock, 2010 p. 22, que “o termo religião é estreito demais, ou amplo demais para abranger aquilo que em
outras tradições religiosas e culturais é descrito com termos que parecem corresponder a ele”, me outorga a liberdade de trazer a definição
que ajudará a compreender a relação da espiritualidade e a saúde. A religião tem como atribuição interligar o indivíduo a Deus. Esta religião é
conceituada por Tavares et al (2016) como
“crença na existência de forças sobrenaturais que estabelece dogmas, que envolvem doutrinas e ritos, envolvendo preceitos morais
e éticos. (...) Em geral, a religião se baseia em um conjunto de escrituras ou ensinamentos que buscam descrever o significado e o
sentido do mundo”.
Este significado e sentido a vida, nos retoma ao conceito interligado da espiritualidade, que pode ser descrita como esta busca de significado que levam o homem a transcender o seu existencial, podendo
ou não está ligada a uma prática formal religiosa (TAVARES, et al 2016).
Completado por Medeiros e Barreto (2016), estes afirmam que a
religião fornece um suporte doutrinário para a experiência na manifestação religiosa que pode está vinculada a uma espiritualidade ou não.
O conceito de espiritualidade que Medeiros e Barreto, 2016
trazem é que esta pode ser compreendida pela transcendência, cuja
perspectiva de cuidado e proteção nas situações adversas são atribuídas a forças superiores. Coutinho, 2012 traz que a espiritualidade
“parte da liberdade de escolha do sujeito, da sua experiência, dos seus
sentimentos, do seu bem-estar e da sua realização”, de forma que a
relação não seja por intermédio de práticas institucionalizadas, pois
estaria ligada a religião.
391
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A espiritualidade é “a busca de significado e sentido para a vida,
em dimensões que transcendem o tangível, que elevam o coração e
o sentir humanos à experiência com algo maior que o seu existencial
e que pode ou não estar relacionada a uma prática religiosa formal”.
(TAVARES, et al 2016).
“É indispensável ressaltar que a espiritualidade é universal, é parte
da vida e ocupa lugar em todo o ser humano, na sua inteireza, em
toda a sua essência. É um movimento interno, que dimensiona e
redimensiona o sentido da vida. É uma presença íntima e contínua,
embora nem sempre autopercebida... a espiritualidade é uma presença cotidiana, está ligada a dimensão social, relacional, profissional, na saúde, na educação, no lazer, na religião, no íntimo de cada
um”. (TAVARES, 2016)
Para falar sobre espiritualidade, devemos ter em mente a linha
histórica que a “durante muito tempo, ‘espiritualidade’ foi um conceito
do âmbito da teologia e dominado por essa”. (CALVANI, 2014). O que
este traz de alerta que devido ao conceito de espiritualidade primariamente está interligado historicamente à teologia cristã, não podemos
forçar esta, aos vários sistemas religiosos existentes, ultrapassando
as categorias religiosas com as quais estamos acostumados. Com isso,
surge-se o termo espiritualidades não-religiosas para
“estabelecer diálogos entre preocupações das ciências das religiões
e outras esferas da cultura, a partir da suspeita de que há formas de
espiritualidade que não se localizam no raio dos sistemas religiosos
organizados” (CALVANI, 2014)
As colocações de Calvani, 2014 mostram os avanços resultantes
das modificações que começaram a ocorrer na segunda metade do século XIX, cuja evidência da consciência da “religião”, que é um produto
de transformações ideológicas (USARKI, 2003) vai tomando seu lugar
como disciplina autônoma e liberta da raiz da teologia. (USARKI, 2013)
“Intelectuais da época chamariam a atenção, não por suas críticas
a convicções e práticas religiosas ‘naturalmente’ aceitas por seus
contemporâneos, mas por causa de sua postura emancipada do
392
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
então senso comum, ou seja, graças a uma atitude que aproximaria
de maneira ‘protodisciplinar’ ao ideal epistemológico do cientista da
religião moderno” (USARKI, 2013)
Este rompimento da hegemonia cristã no campo da teologia possibilitou surgimento da disciplina que trazendo o estudo comparado das
diferentes tradições religiosas da humanidade, sem a superioridade
frente às demais como era trazida (USARKI, 2013), apresenta o objetivo de reconstruir a “evolução religiosa da humanidade” (FILORAMO E
PRANDI, 1999, p. 7).
Espiritualidade e Saúde: conceitos históricos
A própria etimologia latina da palavra saúde (que significa salvação), traz a ligação existente entre a espiritualidade e saúde (Pontes,
Aquino e Caldas, 2016). Medeiros e Barreto (2016) apresentam que as
causas das doenças, em civilizações antigas, eram justificadas por causas sobrenaturais e consequentemente, os tratamentos também eram
nesta perspectiva. Porem, com as correntes históricas que surgiam, o
pensamento começou a romper com o sagrado, um olhar mais compartilhado centrado na racionalidade (TAVARES et al, 2016), todavia a
academia atualmente tem demonstrado sinais de retorno a temática,
como podemos observar no aumento de pesquisas sobre espiritualidade/religiosidade e saúde, principalmente nas ultimas décadas que foram apresentadas por Damiano et al, 2016.
Este aumento no número de pesquisas leva os profissionais de saúde a refletirem sobre as práticas de cuidado integral do paciente (Esperandio, 2014), objetivando o uso da influência positiva da espiritualidade
e religiosidade nas práticas terapêuticas (Koenig, 2005). Logo, Esperandio
(2014) propõe cursos de formação que abordem a referida temática e resultados em saúde, para que haja melhor interação entre as áreas.
Nesta mesma perspectiva, Gorene, 2016 sugere também integrar
ao currículo disciplinas que formem diálogos com o tema de forma interdisciplinar, ajudando na construção mais efetiva de um múltiplo olhar
no cuidado integralizado.
393
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Espiritualidade e saúde: relações
A espiritualidade se torna um rochedo para questões de incertezas
provenientes do enfrentamento das inseguranças diante do que ameaça o presente e futuro daquele que se ver a condição de fragilidade, que
quase sempre busca uma solução externa e mágica para o alivio desde (ANJOS, 2008). Estes processos são evidenciados, pois a religião e
a espiritualidade têm como característica trazer significado ajudando a
lidar com adversidades e o estresse da situação causado pelas perdas
ou mudanças. (ESPERANDIO, 2014; KOENIG, 2005)
Dado semelhante também foi encontrado por Volcan, et al. (2013)
que apresenta a espiritualidade como um aspecto positivo na melhora
da qualidade de vida na saúde mental, conforme eles trazem como conclusão de sua pesquisa:
“Assim, visto que a espiritualidade é considerada um recurso psicossocial individual – e possivelmente comunitário – de promoção
de saúde mental, é recomendável o incentivo da pratica de atividades espirituais e religiosas materializado em áreas que, além de
benéficas, não são onerosas aos sistemas de saúde”.
Os benefícios trazidos pela espiritualidade e religiosidade vêm
sendo estudados por vários teóricos cujos resultados apontam as influências sobre a saúde do homem. A adesão terapêutica, rede de apoio
e mudanças de hábitos foram algumas das influências citadas por
Koenig, 2005.
Podendo-a ser um aporte para sensação de bem-estar, segurança, proteção e conforto. Gorene, (2016) valida o mesmo pensamento
quando afirma que os fatores permeantes da espiritualidade influenciam as noções de saúde dos pacientes e dos trabalhadores da saúde,
pois resultam em fatores que ajudam o tratamento terapêutico. Santo,
Gomes e Oliveira (2013) também traz resultados parecidos, quando relata que a oração praticada é apresentada como fonte de enfrentamento
da doença em questão, conferindo a esta prática um papel importante
na maturidade espiritual e desenvolvimento de potenciais dos praticantes da oração, por isso julgam a importância da interação de análise de
394
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
estudo e saúde nas dimensões mentais e espirituais, devido a sua grande relevância ao bem-estar humano.
Koenig, 2005 e Volcan, et al. 2013 abordam pontos que justificam
a relação positiva desta relação com a saúde, nos quais podemos citar
melhora da depressão, menor taxa de suicídio ou pensamentos negativos, melhor apoio social e melhor qualidade de vida. Volcan, et al. 2013
recomenda o incentivo da prática de atividades espirituais e religiosas
como aliados, pois além de benéficas, não são onerosas aos sistemas
de saúde.
A identificação das características da religião e suas manifestações presentes revelam a importância do sentimento resiliente sobre
o físico, principalmente utilizando a prática da oração como estratégia
de enfrentamento religioso-espiritual, (Pinto, 2010 e Santo, Gomes e
Oliveira, 2013).
Espiritualidade, Saúde e Pessoas vivendo com HIv
Diante da descoberta diagnóstica, a PVH necessita ressignificar
ou manter o sentido para a vida e enfrentamento da doença e do estigma social, podendo usar para este enfrentamento, a religiosidade/
espiritualidade e todo o sistema religioso como aporte para capacidade
de transcender o momento e gerar vínculos de apoio (Santo, Gomes e
Oliveira, 2013, Pinho et al, 2017 e Pontes et al, 2015). Logo, a espiritualidade pode se apresentar como uma adjuvante no processo de resiliência, quando a mesma se apresenta como fonte de interpretação para os
acontecimento da vida (Calvetti, Muller e Nunes, 2008.
Estudos sobre esta temática vêm sendo desenvolvidos para melhor
compreender a relação da fé e religião, a exemplo o realizado por Galvão
et al, 2013 constatou que mães de crianças que vivem com HIV também
utilizaram a religiosidade como estratégia de enfrentamento. Assim,
como Gomes et al, 2016 em um estudo sobre representação social em
PVH, revelou que a espiritualidade foi evidenciada nesta população.
Verificaram-se também estudos sobre qualidade de vida, os quais
apontam que o domínio da espiritualidade apresenta as melhores
395
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
avaliações, evidenciando que a utilização deste como subsídios para lidar com a situação de advinda da descoberta diagnóstica (MEDEIROS e
SALDANHA, 2012 e Hipólito et al, 2017).
O suporte religioso-espiritual pode auxiliar a PVHA no enfrentamento da doença e do estigma social. Logo, o conhecimento da temática da religiosidade e espiritualidade auxilia a assistência, gerando vínculos (Pinho, et al, 2017).
Santo et al, 2013 também coloca que a religiosidade e espiritualidade podem ser utilizados como fator positivo à adesão medicamentosa com os antirretrovirais. Correlacionando o mesmo assunto, Pinho
et al, 2017 e Bellini, et al, 2015 revelam que indivíduos que apresentam
enfrentamento positivo aderem melhor a terapia antirretroviral (TARV),
e como isso melhoram a taxa de monitoramento de eficácia da terapia,
tais como aumento do número de linfócito CD4 e diminuição do número
de cópias de vírus circulantes, denominada de carga viral.
Medeiros e Saldanha, 2012 validam que o estudo da religiosidade
e da espiritualidade no contexto de doença crônica pode auxiliar profissionais de saúde no tratamento e planejamento de ações voltadas
a PVH. Os estudos se voltam para quanto a religião tem participado da
vida diária, revelando que o comprometimento religioso repercute em
ações de enfrentamento de problemas e promoção a saúde.
Pinho et al, 2017 trazem que o enfrentamento religioso negativo
tem relação direta com níveis de depressão e menores índices de qualidade de vida, revelando assim que a relação religiosidade e espiritualidade são relevantes no processo de enfrentamento da doença.
Silva, Passos e Souza, 2015 trazem que os benefícios da religiosidade e espiritualidade sobre a saúde mental em PVH.
A religião traz em sua essência, o sentimento de auxilio na difícil
tarefa de lidar com o sofrimento ocasionado pelos desafios da nossa
condição (Esperandio, 2014). A espiritualidade pode se tornar mais evidente em tempos cujas doenças alteraram a vida ou o modo desta, e
que as crenças religiosas e suas práticas ajudam a regular as mudanças que ocorrem durante o período de enfrentamento da doença, pois
Koenig, 2005 fala da importância da espiritualidade neste processo de
fragilidade, quando traz que o enfrentamento religioso
“é o uso das crenças religiosas ou práticas que reduzam o estresse
emocional causado por perdas ou mudanças. Os pacientes podem
passar a responsabilidade de seus problemas para Deus, acreditado
396
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que Deus resolva as doenças, assim eles não precisariam ruminar-se
ou preocupar-se com elas.”
Por isso, o mesmo traz que “negliciar a dimensão espiritual é como
ignorar o ambiente social de um paciente ou seu estado psicológico, e
resulta em falha ao tratar a pessoa integralmente”, resultando em relação positiva da espiritualidade com a saúde, tais como melhora da depressão, menor taxa de suicídio ou pensamentos negativos, diminuição
de uso de drogas, melhor bem-estar e satisfação de vida e melhor rede
de apoio social. (Koenig, 2005).
Quando as crenças religiosas entram em conflito com a terapia, a
equipe profissional precisa entrar no ponto de vista do paciente e tentar
entender a lógica da decisão. Por isso, o profissional necessita adentrar
no universo da religiosidade/espiritualidade.
Considerações
O presente estudo abre o caminho para que multiáreas do conhecimento desbravem o campo da religiosidade, espiritualidade e o estudo
das religiões, contribuir de forma efetiva para o bem-estar biopsicossocio-espirirual da pessoa vivendo com HIV.
O conhecimento, sem julgamentos, de outras religiões e o estudo sistemático podem auxiliar o profissional de saúde em suas diversas
áreas de abrangência, tais como o sentido e propósito da vida e práxi
em diversas áreas de abrangência. Os benefícios apontados pelos autores alargam ideias de como introduzir e como lidar com a temática
no processo de cura e/ou alívio de doença. Logo, o estudo das religiões
é levantada como fator de contribuição na formação do profissional de
saúde, trazendo um olhar integral e mais humanizado no cuidar; assim
como, também contribui no processo saúde-doença do individuo, pois
traz a reflexão ao sentido de vida e conforto.
Conclusão do artigo abre um alerta à comunidade em geral sobre necessidade da ampliação de debates acerca do tema pautado, pois
entender a relação da espiritualidade, religiosidade e saúde ajudará em
toda caminhada do processo saúde-doença.
397
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALENCAR, Tatianna Meirelles Dantas
de; NEMES, Maria InesBattistella;
VELLOSO, Marco Antonio.
Transformações da “aids aguda” para
a “aids crônica”: percepção corporal e
intervenções cirúrgicas entre pessoas
vivendo com HIV e AIDS. Ciência &
Saúde Coletiva, 2008.
CALVANI, Carlos Eduardo Brandão.
Espiritualidades não-religiosas:
desafios conceituais. Horizonte, Belo
Horizonte, v. 12, n. 35, p. 658-687,
jul./set. 2014. Disponível em: <http://
periodicos.pucminas.br/index.php/
horizonte/article/view/P.21755841.2014v12n35p658>
ALENCAR, Tatianna Meireles Dantas
de. A vida crônica é novidade na aids:
as transformações da aids aguda
para a aids crônica, sob o ponto de
vista dos pacientes [dissertação]. São
Paulo (SP): Faculdade de Medicina,
Universidade de São Paulo; 2006.
CALVETTI, Prisla Ücker; MULLER,
Marisa Campio; NUNES, Maria Lucia
Tiellet. Qualidade de vida e bemestar espiritual em pessoas vivendo
com HIv/AIDS. Psicologia em Estudo,
Maringá, v. 13, n. 3, p. 523-530, jul./
set. 2008
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética,
saúde e espiritualidade: para uma
compreensão das interfaces. In:
PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE,
Christian de P. de (Org.). Buscar
sentindo e plenitude de vida:
Bioética, saúde e espiritualidade. 1ed.
São Paulo: Paulinas, 2008, p 15-18.
COUTINHO, José Pereira. Religião
e outros Conceitos. Sociologia,
Revista da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Vol. XXIV,
2012, pág. 171-193. Disponível
em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/
ficheiros/10763.pdf>
BELLINI, Jessica Monique; REIS,
Renata Karina; REINATO, Lilian
Andreia Fleck; MAGALHÃES, Rosilane
de Lima Brito; GIR, Elucir. Qualidade
de vida de mulheres portadoras do
HIv.Acta Paul Enferm., 2015
CRUZ, Eduardo R. Estatuto
epistemológico da Ciência da
Religião. In: PASSOS, J. D; USASRKI,
F. (Org.) Compêndio de Ciência da
Religião. São Paulo. Paulinas/Paulus.
2013
BRASIL. IBGE. Censo Demográfico,
2010. Disponivel em: www.ibge.gov.
br. Acesso em: 18 maio. 2019.
DIAZ, Ricardo Sobhie. Virus e
Mecanismos da Doença. IN:
SALOMÃO, Reinaldo (Org.).
Infectologia: Bases Clíicas e
Tratamento. 1 ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2017
______. Ministério da Saúde.
Programa Nacional de DTST e AIDS.
Aids. Boletim epidemiologico. Brasilia,
jun.2018. Disponpivel em: www.aids.
gov.br. Acesso em: 15 maio 2019.
398
DAMIANO, Rodolf F.; COSTA,
Lucas A.;VIANA, Marcos Tulio S. A.;
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
MOREIRA-ALMEIDA, Alexander;
LUCCHETTI, Alessandra L.G.;
LUCCHETTI, Gioncarlo. Brazilian
scientific articles o “Spirituality,
Religion and Health”. Arc Clin
Psychiatry, 2016;43(1):11-6.
DOURADO, Inês; VERAS, Maria
Amélia de S. M; BARREIRA, Dráulio;
BRITO, Ana Maria de. Tendências da
epidemia de AIDS no Brasil após a
terapia antirretroviral. Rev Saúde
Publica. 2006
ESPERANDIO, Mary Rute Gomes.
Teologia e a pesquisa sobre
espiritualidade e saúde: um estudo
piloto entre profissionais da saúde
e pastoralistas. Horizonte, Belo
Horizonte, v.12, n. 35, p. 805-832,
jul/set.2014
FILORAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo.
As Ciências das Religiões. São Paulo:
Paulus, 1999
GALVÃO, Marli Teresinha Gimeniz;
LIMA, Ivana Cristina Vieira de;
CUNHA, Gilmara Holana da, SANTOS,
Vanessa da Frota; MINDELLO, Maria
Isabella Aguiar. Estratégia de mães
com filhos portadores de HIv para
conviverem com a doença. Cogitare
Enferm, 2013
GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que
é Ciência da Religião? São Paulo:
Paulinas, 2005
GORENE, Lucas Guilherme Teztlaff
de. A religiosidade/espiritualidade na
prática do cuidado entre profissionais
da saúde. Interações, Belo Horizonte,
399
Brasil, v. 11 , no 20, p. 129-151, jul/
dez. 2016
HOCK, KLAUS. Introdução à Ciência
da Religião. São Paulo: Loyola, 2010
KOENIG, H. G. Espiritualidade no
cuidado com o paciente. São Paulo:
Editora Fé Jornalística, 2005
MEDEIROS, Bruno; SALDAHA, Ana
Alayde Werba. Religiosidade e
qualidade de vida em pessoas com
HIv. Estudos de Psicologia, 2012
MEDEIROS, Waleska de Carvallho
Morroquim; BARRETO, Carmem
Lúcia. Brito Tavares. (RE) Integrando a
espiritualidade na saúde: um caminho
em construção. In: AQUINO, Thiago
Antonio Avellar de; CALDAS, Marcus
Tulio; PONTES, Alisson de Menezes.
Espiritualidade e saúde: teoria e
pesquisa. CRV: Curitiba, 2016
PINHO, Clarissa Mourão; DÂMASO,
Bruno Felipe Remigio; GOMES,
Eduardo Tavares; TRAJANO, Maria de
Fátima Cordeiro; ANDRADE, Maria
Sandra, VALENÇA, Marilia Perrelli.
Coping religioso e espiritual em
pessoas vivendo com HIV/Aids. Rev
Bras Enferm, 2017.
PINHO, Clarissa Mourão; GOMES,
Eduardo Tavares; TRAJANO, Maria
de Fátima Cordeiro; CAVALCANTI,
Aracele Tenório de Almeida e;
ANDRADE, Maria Sandra, VALENÇA,
Marilia Perrelli. Religiosidade
prejudicada e sofrimento espiritual
em pessoas vivendo com HIV/Aids.
Rev Gaucha Enferm, 2017.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
PONTES, Alisson de Meneses;
AQUINO, Thiago Antonio Avellar
de; CALDAS, Marcus Tulio.
Contextualizando a relação entre
religiosidade, espiritualidade e saúde.
In: AQUINO, Thiago Antonio Avellar
de; CALDAS, Marcus Tulio; PONTES,
Alisson de Menezes. Espiritualidade
e saúde: teoria e pesquisa. CRV:
Curitiba, 2016.
PONTES, Alisson de Meneses;
AQUINO, Thiago Antonio Avellar;
GOUVEIA, Valdiney Veloso; FONSÊCA,
Patricia Nunes de; KLUPPEL, Berta
Lúcia Pinheiro. Noopsicossomática
em Pessoas vivendo com HIvAIDS:
Evidências de um Modelo Explicativo.
Psico, 2015
RÖHR, Ferdinand. Espiritualidade e
formação humana. Revista Poiésis,
Santa Catarina, 2011. p. 53-68.
SANTO, Caren Camargo do Espírito;
GOMES, Antonio Marcos Tosili;
OLIVEIRA, Denize Cristina de;
MARQUES, Sérgio Correa. Adesão
ao tratamento antirretroviral e a
espiritualidade de pessoas com HIV/
AIDS:estudo de representações
sociais, Revista de Enfermagem UERJ,
2013.
SANTO, Caren Camargo do Espírito;
GOMES, Antônio Marcos Tosoli;
OLIVEIRA, Denize Cristina de. A
espiritualidade de pessoas com HIV/
aids: um estudo de representações
sociais. Revista de Enfermagem
Referência, Série III, Ano 10, 2013.
SILVA, Sally Knevitz da; PASSOS,
Susane Müller Klug; SOUZA, Luciano
Dias de Mattos. Associação entre
religiosidade e saúde mental
em pacientes com HIV. Revista
Psicologia: Teoria e Prática, 2015.
TAVARES, Cassia Quelho; VALENTE,
Tânia C.O.; CAVALCANTI, Ana Paula
Rodrigues; CARMOS, Hercules de
Oliveira. Espiritualidade, religiosidade
e saúde: velhos debates, novas
perspectivas. Interações, Belo
Horizonte, Brasil, v.11 n.20, p. 85-97,
jul./dez. 2016.
USARSKI, Frank. História da Ciência
da Religião. In: PASSOS, J. D; USASRKI,
F. (Org.) Compêndio de Ciência da
Religião. São Paulo. Paulinas/Paulus.
2013.
USARSKI, Frank. O caminho da
Institucionalização da Ciência da
Religião- Reflexos sobre a formativa
da disciplina. Religiões em Debate,
Vol. II , 2003.
VOLCAN, Sandra Maria Alexandre;
SOUSA, Paulo Luis Rosa; MARI, Jair
de Jesus; HORTA, Bernardo Lessa.
Relação entre bem-estar espiritual e
transtornos psiquiátricos menores:
estudo transversal. Revista de Saúde
Pública, 37(4), 440-445, 2003.
[ Volta ao Sumário ]
400
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
laiCidade paRlamentaR?
uma discussão sobre a
atual política brasileira
Daniel Ferreira da Silva
Jéssica Emanuelly Santos Barboza da Silva
Como referenciar este capítulo:
SILVA, Daniel Ferreira da; SILVA, Jéssica Emanuelly Santos Barboza da. Laicidade parlamentar? Uma discussão sobre a atual política brasileira. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio
Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências,
Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020,
p. 401-406.
Daniel Ferreira da Silva1
Jéssica Emanuelly Santos Barboza da Silva2
Introdução
Este trabalho assume como objeto de análise o discurso religioso cristão pentecostal, intensamente vigente nas atuais representatividades políticas nacionais. Para tanto, teremos como fio condutor da
discussão uma análise histórica que objetiva evidenciar a fomentação
do discurso político-religioso na manutenção ideológica. A problematização em torno da temática é um indicativo importante sobre como o
debate público acaba por incorporar, propagar e fortalecer a ideologia
dominante. Explicitando aos discursos moralista-cristãos promovidos
pela classe dominante, que oprimem e alienam os indivíduos, exporemos enfaticamente os interesses políticos e individuais presentes nas
manifestações ideológicas das classes opressoras. Para isto utilizaremos como método o levantamento bibliográfico de obras que explicitem ferramentas necessárias para a compreensão do objeto de estudo
apresentado, por meio das construções literárias produzidas nos campos da política e religião e a análise de discurso conceituada por Bernard
Berelson no final dos anos 40-50, como uma técnica de pesquisa que
visa a descrição do conteúdo manifesto de maneira objetiva, sistemática e quantitativa e posteriormente aprofundado por Bardin (1994)
que aponta o desvendar crítico como a função primordial da análise do
conteúdo. A partir dos métodos citados evidenciaremos nos discursos
políticos e religiosos aspectos morais que influenciam diretamente na
construção do pensar político atual e na vida social da população.
1
Graduando em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
E-mail: danielfds96@yahoo.com
2
Graduanda em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
E-mail: emanuelly471@gmail.com
402
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
País laico, pautas políticas e sociedade
O tema em questão tem sido foco de diversas áreas do saber no
período em que nos encontramos, pois, a atuação religiosa, principalmente do segmento evangélico tem crescido cada vez mais.
“O contexto brasileiro é marcado pela pluralidade de credos religiosos que disputam o espaço público para a legitimação de suas práticas (MACHADO, 2006, p.42-67). Mas recentemente, essa tendência
ampliou-se com várias instituições que passaram a apoiar pastores
e leigos a se elegerem em diversos cargos eletivos e executivos
existentes para alcançar os seus objetivos, que, na maioria das situações, consistem na divulgação e expansão de suas instituições
religiosas.” (PY; REIS, 2015, p. 137)
De acordo com Py e Reis (2015), a presença dos evangélicos antes de 1945 é praticamente nula, porém a partir do período getulista
há uma organização por parte dos evangélicos que acabam elegendo
primeiramente um nome para deputado federal e, nas eleições seguintes, mais alguns nomes vão surgindo, sendo sempre organizada
por algumas das instituições mais conceituadas do país, como a Igreja
Batista, a Igreja Assembleia de Deus que assume a liderança em 1987
com maior representação, abrindo espaço para a Igreja Universal do
Reino de Deus (IURD) com segundo maior número de representantes
no parlamento, as demais instituições aparecem cada vez mais, no entanto, em menor número.
A motivação que leva as instituições religiosas evangélicas a
participarem do poder político segundo Py e Reis (2015), está dividida
entre busca de adeptos, influencia em diversos setores da sociedade, e, por último, porém não menos importante acesso ao poder para
evangelização.
Para melhor entendermos a problemática em torno da ascensão
dessas representatividades religiosa evangélicas, devemos levar em
consideração as seguintes dimensões na formação discursiva político-religiosa: a moral e a ética. A partir delas encontraremos na essência do
discurso produzido, fortes impactos na vida social.
403
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A dimensão moral pode ser tratada como fator central na universalização dos interesses de grupos sociais, já que no decorrer da história
da humanidade torna-se evidente as transformações morais da sociedade. Deste modo, compreenderemos a moral como: “normas estabelecidas socialmente em determinado grupo e em determinado momento histórico” (SANTOS, 2016, p. 428).
Sendo assim, a dimensão ética se relaciona com a moral como ferramenta investigadora das ações morais, ou seja:
“O ético transforma-se assim numa espécie de legislador do comportamento moral dos indivíduos ou da comunidade. Mas a função
fundamental da ética é a mesma de toda teoria: explicar, esclarecer
ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos
correspondentes. Por outro lado, a realidade moral varia historicamente e, com ela, variam os seus princípios e as suas normas”
(VASQUEZ, 1975, p.10)
Entrelaçado pela dimensão ética e moral, o discurso produzido pelas comunidades evangélicas pentecostais estruturam-se na teologia
da prosperidade. Essa teologia associa-se muito com a lógica econômica neoliberal, provocando um individualismo e fortalecendo o mercado
empresarial. Deste modo, o discurso produzido pela teologia da prosperidade dispõe da seguinte lógica, “uma ética econômica voltada para o
mundo, onde possuir e ascender são sinais de que Deus, e não o diabo,
age em sua vida” (ALMEIDA, 2017, p. 14) Prandi e Santos (2017) reforçam dizendo que “essa ideologia deve aparecer maximizada no âmbito parlamentar por se tratar de um posto ao qual em geral apenas as
lideranças evangélicas ascendem, justamente os líderes responsáveis
por difundir tal ideologia entre os fiéis na prédica cotidiana.” (PRANDI,
SANTOS, 2017, p. 204)
A lógica promovida pela teologia da prosperidade reverbera na
vida cotidiana como ferramenta regulamentadora da sociedade. Podemos analisar nos últimos anos o posicionamento tomado pelos representantes da bancada evangélica e evidenciar nas suas intenções uma
força moralista que impedem avanços de lutas promovidas por movimentos sociais que se empenham em busca de igualdade, justiça e respeito na sociedade.
404
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
As consequências sociais provenientes da teologia da prosperidade refletem total domínio sobre a vida do indivíduo, de modo que ou
ele se enquadra aos “padrões doutrinários” ou passa por um processo
de demonização. Percebemos em torno desse domínio o surgimento de
forças que lutam contra as conquistas de direitos recentemente adquiridos pela sociedade, essas evidências são mostradas a partir da atuação
de políticos que, ligados institucionalmente ao segmento “evangélico”,
ingressam na vida pública a fim de regulamentar a sociedade a partir da
moral produzida por determinado grupo.
O discurso moralista desses segmentos está tão enraizado que “a
religião de hoje da tratamento privilegiado às coisas da intimidade em
detrimento das coisas do governo da nação: o indivíduo é que ocupa o
centro de sua preocupação.” (PRANDI, SANTOS, 2015, p. 188). Sendo
assim, as pautas que contrariam a moral defendida pelas igrejas, como
a questão da liberação do aborto e defesa dos homossexuais, acabam
por serem negadas pelos parlamentares evangélicos, mesmo que sejam pautas de relevância social.
Como vimos, um dos objetivos da participação das instituições religiosas no poder político é a influência nos setores da sociedade e a
evangelização, o que nos parece está dando certo, visto que o país sai
de um governo no qual grande parte das pautas sociais são aprovadas
e entra num governo conservador que assume como objetivo principal
voltar às tradições morais cristãs dos pentecostais em ascensão.
Longe de se esgotar as discussões sobre o tema apresentado,
tentamos por meio de fatos históricos evidenciados na sociedade, esclarecer criticamente o quadro político brasileiro atual em apoio com
forças e segmentos religiosos produzido pela teologia da prosperidade
que atinge os campos públicos e influenciam na demanda da sociedade
tendo por guia e orientação os segmentos religiosos a que pertence.
A partir do evidenciado é possível perceber que os parlamentares
evangélicos pentecostais não compreendem a proposta de um país laico,
em que não se deve ser feito normas e leis a partir do viés religioso, mas
pautas que realmente ajudem no bem-estar social e econômico da sociedade, privilegiando a vida de todo e qualquer indivíduo, não interessando
a cor de pele, a orientação sexual, o gênero ou seu segmento religioso,
mas a vida daquele pelo qual ele se propôs a defender através da lei.
405
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALMEIDA, R. A onda quebrada –
evangélicos e conservadorismo.
Cadernos Pagu, no.50, jun. 2017.
Disponível: < http://dx.doi.org/10.159
0/18094449201700500001 >
COSTA, C; LEPRE, R. M; MONTANHA,
L. T; SILVA, R. F. O percurso histórico
dos valores morais e éticos:
contribuições da psicologia do
desenvolvimento da moralidade. Rev.
Eletrônica Pesquiseduca, v. 08, n. 16,
p. 423-439, jul.-dez. 2016
ELPAÍS. “As pessoas não acreditam
mais em partido político, mas
acreditam na igreja”. 24 de novembro
de 2018. Disponível: <https://brasil.
elpais.com/brasil/2018/11/23/
politica/1543003396_706943.html>
GOBBI, B. C; SILVA, C. R; SIMÕES, A. A.
O uso da análise de conteúdo como
uma ferramenta para a pesquisa
qualitativa: descrição e aplicação
do método. Organ. rurais agroind.,
Lavras, v. 7, n. 1, p. 70-81, 2005
PRANDI, R; SANTOS, R, W. Quem
tem medo da bancada evangélica?
Posições sobre moralidade e política
no eleitorado brasileiro, no Congresso
Nacional e na Frente Parlamentar
Evangélica. Tempo Social, revista de
sociologia da USP, v. 29, n. 2, 2017
PY, F; REIS, M. V. F. Católicos e
evangélicos na política brasileira.
Estudos de Religião, v. 29, n. 2 • 135161 • jul.-dez. 2015
SANTOS, Fernanda Marsaro dos.
Análise de conteúdo: a visão de
Laurence Bardin. Resenha de:
[BARDIN, L. Análise de conteúdo.
São Paulo: Edições 70, 2011, 229p.
Revista Eletrônica de Educação. São
Carlos, SP: UFSCar, v.6, no. 1, p.383387, mai. 2012. Disponível em http://
www.reveduc.ufscar.br
[ Volta ao Sumário ]
406
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
lendas e supeRstições:
contos de assombrações e
catolicismo popular na obra
de ademar vidal
Fabiano Cesar de mendonça vidal
maria Nilza Barbosa Rosa
Izabel França de Lima
Como referenciar este capítulo:
VIDAL, Fabiano Cesar de Mendonça; ROSA, Maria Nilza Barbosa; LIMA, Izabel
França de. Lendas e superstições: contos de assombrações e catolicismo popular na obra de Ademar Vidal. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos
Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 407-420.
Fabiano Cesar de Mendonça Vidal1
Maria Nilza Barbosa Rosa2
Izabel França de Lima3
1. Introdução
Desde cedo fomos habituados a ouvir histórias, lendas e superstições que falavam de lobisomens e almas do outro mundo. A riqueza
histórica e cultural que nos foi passada de geração em geração continua
a ser preservada e vivida por muitos, por isso é que a sua preservação
resistiu e resiste ao longo dos anos. São práticas de cunho místico e
supersticioso que se complementaram, se misturaram ou se agregaram
à fé cristã. Tudo isso, passado de geração em geração constrói a identidade cultural de um povo, de uma religiosidade.
Pensando assim, decidimos trabalhar o tema Catolicismo popular,
com base na obra Lendas e superstições do escritor paraibano Ademar
Vidal, que possuía por característica a cultura popular na Paraíba, o que
o levou a registrar as peculiaridades de sua terra e de sua gente.
Natural de João Pessoa, onde nasceu no ano de 1897, Ademar Vidal, filho do jornalista e poeta Francisco de Assis Vidal, realizou extensa
coleta de dados sobre as manifestações culturais presentes na Paraíba.
Seus escritos abordam usos, costumes e lugares da Paraíba, enfatizando a cultura popular, o cotidiano do homem sertanejo, as festas, lendas,
danças encenadas, brincadeiras, enfim um patrimônio cultural que o levou a conviver com figuras expoentes dos meios político, como Getúlio
1
Graduado em Turismo (IESP Faculdades), Mestre em Ciências das Religiões (UFPB) e Doutorando em Ciência da Informação (UFPB). Integrante dos Grupos de Pesquisa Raízes e Imclusos.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7806127585750085. E-mail: fabianocmvidal@gmail.com
2
Graduada em Pedagogia, Mestre em Ciência da Informação (UFPB) e Doutora em Letras
(UFPB). Lattes: http://lattes.cnpq.br/8152747724329182. E-mail: nilzasor@yahoo.com.br
3
Graduação em Biblioteconomia e Administração(UFPB), Mestre em Educação (UFPB), Doutora
em Ciência da Informação (UFMG) e líder do grupo de Pesquisa iMclusoS da Universidade Federal
da Paraíba. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2774920113255079. E-mail: belbib@gmail.com
408
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Vargas, José Américo, Epitácio Pessoa e artístico, como Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Assis Chateaubriand, dentre outros. Sua produção literária é vasta, e foi doada por sua filha Alice Vidal ao
Instituto Histórico e Geográfico Paraibano – IHGP, contribuindo para que
a Paraíba recebesse um patrimônio cultural diversificado e plural.
Ao elaborar Lendas e superstições, Ademar Vidal buscava não apenas o registro dessas manifestações culturais populares, mas toda uma
peculiaridade religiosa e moral diferente daquela imposta pela cultura
dominante, revelando a mentalidade coletiva do homem nordestino.
Ao aproximar as tradições culturais através de contos sobre fantasmas
e almas do outro mundo, Lendas e superstições é uma obra elaborada
através da metodologia da história oral e da coleta de dados etnográficos, o que nos permitiu adentrar neste universo do maravilhoso com
raízes históricas baseadas na crença popular.
A metodologia aplicada por Ademar Vidal para o recolhimento
dessas informações cuja expressão material se visualiza no patrimônio
cultural, possui a capacidade de estimular a memória das pessoas historicamente vinculadas a ele, por isso é alvo de estratégias que visam a
sua preservação. Segundo alega Vidal (1949), ele se propôs a pesquisar
a “evolução do conto popular, das lendas e mitos em nosso país, através
da literatura ou da tradição oral”; ele procurou demonstrar o poder de
sua “transmissão e intuitos”, através das direções em “que se fazem circular essas histórias de fantasmas e marmotas carregados de oprimir, nunca deixando também de mostrar personalidade egoísta, sempre noturna e
orgulhosa dentro de constante importância repressora, impedindo que haja
“felicidade entre as crianças”. (VIDAL, 1949, p.19).
A literatura oral transmite de povo a povo, de indivíduo a indivíduo
as narrativas que se constituíram em algo fundamental a vida, e que
os homens, através dos tempos, selecionaram pela experiência. Desse
modo, as histórias permanecem no mundo pela tradição oral, no qual o
ato de contar e recontar histórias pode ser entendido como uma partilha
de lembranças, sabedoria e experiências adquiridas ao longo de uma
vida. “São os dias de lembrança que, muitas vezes, não são assinalados
por uma vivência, mas, ao contrário, destacam-se do tempo” (ROSA,
2012, p. 139-40).
Embora Lendas e superstições tenha sido lançada em 1949, sua
concepção por parte de Ademar Vidal surgira ainda nas primeiras
409
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
décadas do século XX, conforme seus registros preservados no Arquivo Ademar Vidal no IHGP, “ainda desorganizados, porém com intenções
explícitas de reunir em um livro, mitos do litoral, fantasias da várzea e do
brejo, lendas do sertão paraibano”. (ROSA, 2012, p. 140).
Neste trabalho, utilizamos a pesquisa qualitativa de cunho documental, selecionando e interpretando a informação contida nos contos
que compõem a obra Lendas e superstições, o que nos possibilitou um
incremento de detalhes à pesquisa. Desta forma, é possível dizer que a
pesquisa documental possibilita “produzir novos conhecimentos, criar
novas formas de compreender os fenômenos e dar a conhecer a forma
como foram produzidos” (BONOTTO; KRIPKA; SCHELLER; 2015, p. 57).
A obra Lendas e superstições contém 161 contos dos quais escolhemos cinco, por considerá-los representativos do tema aqui abordado, ou seja, crenças populares na Paraíba. O primeiro capítulo, “Mitos do
litoral”, é composto de cinquenta e cinco contos, dos quais destacamos
os textos: Alma de gato e O monstro Bambá. O segundo capítulo, “Fantazias da Varzea e do Brejo”, possui sessenta e um contos, dentre os
quais Zumbi de cavalo, que trata da alma do cavalo, pois “não é somente
o homem que tem alma” (Vidal, 1949, p.279). Ainda neste capítulo, destacamos Os passeios do vulto branco. Essa alma era vista próxima ao
canavial “todo de branco, vestido num largo camisolão, de cajado em
punho e com ares de quem anda fiscalizando algum serviço permanente.” (VIDAL, 1950, p.349-350). O terceiro e último capítulo, “Lendas do
Sertão”, com quarenta e cinco contos, entre os quais Bicho venenoso,
que desperta interesse por começar afirmando que “O homem do Cariri
acredita na existência da alma humana. Confia nos poderes do céu”. (VIDAL,
1949, p. 617).
Concordamos com Bernardes (2017, p. 56) quando este afirma
que “a crença nestas assombrações e a tradição de contar estas narrativas se configuram como elementos de uma identidade coletiva,
produzida historicamente”. Cremos como Bernardes (2017), que nestas
manifestações há o registro de uma religião e cultura diferentes da imposta pela religião dominante, o Catolicismo, ao demonstrar diálogos e
divergências culturais com outras religiosidades. Essa religiosidade não
está longe de cada um dos indivíduos, está presente no povo e por ele é
mantida. Foi esta a nossa motivação na realização deste tema.
410
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Os cinco contos ilustrativos do que foi coletado e disseminado
por Ademar Vidal, traduzem as memórias da religiosidade, ou seja, as
tradições e as práticas populares. São marcas que evidenciam como os
sujeitos dão sentido e significado ao tempo e a história local, reforçando
a ideia que as crenças chegaram até nós a partir das práticas populares.
2. Lendas, superstições e catolicismo popular
Embora não haja uma definição de religião que abarque todas as
suas dimensões, podemos considerá-la como um fenômeno presente
em todas as culturas, desde a pré-história até os dias atuais. Temas
como vida, morte, criação e vida após a morte, assim como o cosmos
estiveram sujeitos a explicações religiosas que os justificavam através
da existência de deuses e divindades que controlavam a realidade fora
do âmbito visível (INTRODUÇÃO, 2014, p. 12).
Para Vitor Frankl (2001) o ser humano possui uma “vontade de
sentido” que faz com que se questione quem é, de onde vem, para onde
vai e qual o propósito de sua vida, em uma busca pela transcendência,
em busca das respostas para suas razões de ser e agir, uma vez que não
tolera o “vazio existencial”. Em relação ao pensamento de Frankl, Borau
(2008, p. 12) entende ser o sentimento religioso “a necessidade afetiva
de estar ligado a algo diferente de nós próprios. […] Um sentimento que
procura penetrar e comunicar com as forças sensíveis que se pressente
que atuam no Universo”. Segundo este autor, embora a religião tenha
sido em certos momentos da história, perseguida pela “ideologia social,
muitas vezes, ao longo da história, a religião teve uma função de coesão
social a favor da ideologia dominante”, ao transmitir, de forma voluntária
ou involuntária, “as concepções sociais, os valores morais, nos quais o
sistema político se baseia” (BORAU, 2002, p. 17).
De acordo com Bezerra e Lemos (2012, p. 09), ao nos referir à religiosidade popular, associamos esta a “ideia das crenças, dos rituais de
uma determinada população, e principalmente, da sua relação com o
Sagrado”. De acordo com estas autoras, a religiosidade popular católica
tem sua origem no Brasil em 1500, tendo sido esta religião trazida pelos
411
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
colonizadores portugueses: “Como a população não conhecia outro tipo
de religião, ela tornou-se uma “religião de obrigação”. O Catolicismo foi
considerado a única e verdadeira religião, ela determinava onde as pessoas atuariam na sociedade” (BEZERRA; LEMOS, 2012, p. 09).
Segundo preceitua Rodrigues (2015, p.1725), embora o Catolicismo fosse a religião oficial do Brasil, enfrentava “inúmeras dificuldades
para se fazer presente no interior do país, deixando essas populações
desprovidas dos ritos e sacramentos”. Para o autor, diante disso os ritos
católicos ganhavam, ao longo dos anos, “novos signos e alegorias marcados por uma coexistência dissimuladamente pacífica entre a devoção
e a diversão. Isso fez surgir práticas reinventadas que se baseavam nos
preceitos sagrados, mas também envolviam elementos profanos”.
Em virtude dessa ressignificação do Catolicismo, há uma diferença
entre a religião popular e a oficial que, na visão de Chauí (2006, p. 82)
“manifesta-se como oposição entre leigos e clero, e entre festividades e
sacramentos, isto é, entre uma religiosidade espontânea e uma religião
vertical, imposta autoritariamente”. Vilhena (2008, p. 29) aponta para o
fato de que se aqui no Brasil aportou a ortodoxia católica de tradição tridentina, “também chegaram crenças populares ibéricas que sincretizavam com elementos cristãos, de modo próprio, tradições provenientes
de vários paganismos cuja ancestralidade se perde em tempos de longuíssima duração”. Do universo católico nos foram legados ritos como
bênçãos sobre os cadáveres, missas em sufrágio das almas, a presença
de cruzes e imagens sacras por sobre os jazigos e a arte mortuária. Além
da possibilidade de comunicação com os mortos, “que, não sofrendo a
perda de identidade e da capacidade de pensar, querer e agir, podem ser
invocados no sentido de intercederem junto a Deus em favor dos vivos”.
(VILHENA, 2008, p. 29) Ainda de acordo com Vilhena (2008, p. 29), este
imaginário está
Na base do Catolicismo santorial e devocional que sustenta relações de compadrio com os mortos tido como santos, orações de
súplica e agradecimento, promessas, festas por ocasião das datas
dedicadas aos protetores de cidades e oragos de igrejas, ladainhas,
ex-votos, culto às relíquias, não raramente originando confrarias e
irmandades religiosas.
412
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
É neste contexto de ressignificação da doutrina católica que
entendemos estar situada Lendas e superstições. Afinal, os contos de
fantasmas e assombrações, relatados por Ademar Vidal, nada mais são
que tentativas de responder o que acontece com o ser humano após a
sua morte. O espírito vai habitar outro mundo? Receberá prêmios ou
sofrerá punições? O mundo espiritual será de gozos ou sofrimentos? De
acordo com Prandi (2012, p. 10)
Somente a religião pode falar da existência ou não do mundo dos
espíritos e de tudo o que lá acontece. […] É a religião que dá sentido
a essa crença, justificando por que e como ocorre esse processo de
reencarnações da alma. Farão o mesmo todas as formas de crença
cujo atributo necessário está em acreditar que existem um outro
mundo ou uma outra dimensão de existência que não se confundem com o mundo material.
Corrêa (2008, p. 41-42) destaca a vontade do homem de existir
sempre, em busca de uma onipotência representada pela possibilidade
de renascimento dos mortos, ideia presente desde os povos arcaicos e
que assume, no domínio do pensamento e da cultura, um status de um
dado universal, pois crer na imortalidade representa opor-se ao traumatismo e ao horror causado pela morte. Neste contexto surge a crença
no “duplo”, entendido por Corrêa (2008, p. 42-43), como “O mesmo que
fantasma, o espírito, alma, e até a sombra do corpo. […] Está presente
igualmente nos fantasmas dos folclores e no “corpo astral” das doutrinas esotéricas”.
Para Bernardes (2017, p. 61), os contos populares de assombração “trazem em seu bojo a marca de religiosidades tecidas nas rotinas
e hábitos diários por séculos e que foram ganhando suas especificidades ao longo do tempo”. A comunicação entre vivos e mortos parece ser
uma “herança portuguesa e europeia marcada pelo medo e que desembarcou na América portuguesa convergindo-se com as representações
das etnias nativas e africanas”. Bernardes (2017) chama atenção para
o fato de que aproximações entre as concepções locais de almas penadas e assombrações, estas últimas comuns no catolicismo popular, são
entendidas pelo clero como superstições que extrapolam os limites do
catolicismo oficial, indicando uma convergência com a doutrina espírita
413
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
elaborada por Allan Kardec, ao envolver temáticas como: sofrimento,
dor, pecado e apego à materialidade da vida corpórea, o que, nas palavras de Bernardes (2017, p. 62) “reforça a ideia de proximidade com o
catolicismo popular e o dinamismo de um hibridismo cultural e religioso
que não se encontra de forma estagnada”.
Acerca desta hibridização, Vilhena (2008, p. 34-35) afirma que
as religiões não se encontram imunes às mudanças, pois na luta para
não desaparecerem, “tendem a transformações, pelo que são dinâmicas e não estáticas. Assim foi sempre, assim é e sempre será. […] Uma
religião petrificada é como uma pedra, sem vida”. Tomando a religião
Católica como exemplo, Prandi (2012, p.15) afirma que o tema da reencarnação, embora negada pelo Catolicismo, possui aceitação entre seus
adeptos: “Muitos católicos […] acreditam em vidas passadas, na reencarnação do espírito neste mundo” e que, apesar desta mesma Igreja
também rejeitar a comunicação com os espíritos dos mortos, “muitos
de seus fiéis creem nessa possibilidade e até lançam mão de rituais não
católicos para alcançar seus mortos.” (PRANDI, 2008, p. 16).
Desta forma é possível afirmar, tomando por base as ideias de
Souza (2013), que as práticas do catolicismo popular são exercidas à
margem da Igreja, possuindo um caráter de tradição que é transmitida de geração para geração, estando seus praticantes situados entre a
camada mais pobre da população, caracterizando-se por ser uma manifestação popular e religiosa que “muda de forma e posição a partir das
transformações ocorridas no contexto cultural mais amplo do qual faz
parte”. (SOUZA, 2013, p. 05-06).
3. Contos de assombrações na obra de Ademar vidal
Religião e religiosidade popular são dois fenômenos transversais
a todas as culturas. São fontes de agregação e funcionam como “vontade de sentido” do mundo, em toda a sua abrangência, como adverte
Victor Frankl (2001). Assim, o contexto cultural influencia a definição de
religião. Nas sociedades ocidentais, por exemplo, a religião é sistema
mediador entre o homem e entidades superiores. O Ocidente revela o
414
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Deus único e transcendente. Nas sociedades orientais este Deus único
não está presente, mas antes, um Deus em tudo. Assim, a religião é algo
ligado à própria natureza, a todos os seres vivos.
Em todos os contextos históricos e culturais, as sociedades humanas acreditam que existem forças espirituais e sobrenaturais, que
exercem influência ou mesmo controle sobre o mundo e sobre o próprio
homem. Neste tópico, daremos a conhecer de modo muito breve, cinco
contos que compõem a obra Lendas e superstições de Ademar Vidal, com
as suas tradições e práticas.
O primeiro conto por nós selecionado é Alma de gato, e trata de
uma “sombra” que, durante o dia, é percebida discretamente, de forma
imprecisa, sendo notada materialmente com a chegada da noite, possuindo a conformação de um gato preto comum, cujos olhos “destilam
luminosidade de fogo”. Sua missão (alma de gato) é aparecer para “despertar
mêdo aos meninos. […] Nenhum menino tem coragem de ir lá fora (no quintal) sem ser acompanhado de gente grande” (VIDAL, 1950, p. 33-34).
Já o conto, O monstro bambá, possuía formas de peixe: “tem olhos
com pestanas, orelhas salientes […] apresentando as partes inferiores como
sendo iguais à do homem”, cuja missão destinava-se a “caçar rapazes feios,
irremediavelmente doentes de feios, porisso (sic) mesmo desprezados e
olhados por tôda gente como réprobos, aleijados das formas”. Conta Ademar Vidal que ao serem capturados pelo monstro, os rapazes eram carregados e narcotizados “para os domínios da Mãe d’Água. Aí êle era massacrado com todas as honras do estilo. Massacrado em lindo estilo” (VIDAL,
1950, p. 91-92).
As crendices podem ou não ser fruto do nosso imaginário coletivo,
especialmente na literatura popular de tradição oral (histórias sob a forma de lendas, contos populares ou mitos). Em Lendas e superstições percebemos que o imaginário do povo paraibano era invadido por histórias
de assombração, introduzindo, sobretudo, as crianças e os jovens nos
medos e nas superstições, ao mesmo tempo os ajudavam a enfrentar
esses medos.
Nos relatos acerca dos Zumbis de cavalo, era constante a aparição destes, causando “estripolias medonhas. Causam terror aos tropeiros
e vaqueiros.” Entendemos que tais aparições nascem sempre num espaço nebuloso entre a realidade e a fantasia. A fantasia presentifica-se
415
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
quando a realidade está mal contada, tornando-se um campo fértil para
o imaginário. Assim, histórias como a dos Zumbis de cavalo ajudaram a
construir lendas e a justificar a criação do medo e terror nas pessoas,
numa dinâmica de ressignificações que as pessoas chamam a si no quadro dos seus impulsos identitários.
Os passeios do vulto branco é um conto que relata a vida de
um senhor de engenho, não nomeado, que maltratava seus escravos
no Engenho Santo André com destacada perversidade, punindo-os
severamente por qualquer motivo. Ao morrer, conta Vidal, “o corpo foi
enterrado e certamente que a terra o devorou com sofreguidão. A alma, porém, não se foi do lugar onde vivera sempre e praticara as suas crueldades”.
O sentido da religiosidade de um povo não se refere apenas ao
caráter supersticioso ou formas irracionais de expansão dos próprios
sentimentos e da própria impotência. Para entender esse sentido, antes
é preciso compreender a religiosidade como um conjunto simbólico e
ritual que tem a sua origem histórica, e que, apesar de conter elementos
culturais, há um forte sentido de dependência (BERNARDES, 2017).
A religiosidade popular constitui e manifesta uma forma de expressão ligada às vivências do cotidiano das populações, práticas que
muitas vezes se unem naturalmente aos ritos cristãos, como o nascimento e a morte. A religiosidade popular corresponde a um mundo variado de expressões e práticas, que acompanham o homem ao longo da
sua vida, transmitidas ao longo dos séculos, que chegam hoje até nós
com inúmeras alterações sujeitas a modificações. Chegam e persistem,
culturalmente, como uma identidade que se preserva porque ainda se
acredita ou por tradição. (NASCIMENTO e AYALA, 2013).
Tais significados devem ser compreendidos e partilhados de acordo com a vida social e como são classificados simbolicamente. Assim, a
vela que para alguns é apenas um elemento sob um túmulo, torna-se
sagrado para outros, podendo ser o canal entre o homem e o divino a
partir de como os sujeitos se identificam, criam e estabelecem valores
para as coisas (DURKHEIM, 1989).
Adentrando mais um pouco nas tradições, práticas e mitos da religiosidade popular, destacamos o conto Bicho venenoso, que fala de
dois vaqueiros que, ao saírem ao campo e após realizarem seu trabalho de cuidar do rebanho, foram dormir após realizar uma refeição, às
416
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
margens de um riacho que passava por perto. Um deles desperta repentinamente e observa uma cobra coral aproximando-se de seu companheiro que ainda dormia. Percebe posteriormente que não se trata
de uma cobra, mas de um calango que começava a entrar de mansinho
na boca de seu companheiro, que respirava com a boca completamente
aberta. Resolve, então, matar o réptil, “que logo se transmudou nas cores:
ficou pálido no corpo e arrocheado (sic) nas extremidades”. Tentou acordar
seu amigo sem sucesso. Estava duro, havia morrido. A história logo se
espalhou pelas redondezas: “aquele bicho tão bonito era a alma do homem
que saíra para tomar fôlego fora do corpo e, quando voltava para o seu lugar,
acabou-se, fôra morto pela mão assassina do desprevenido amigo”. Ao matá-la, acabou matando também a seu amigo (VIDAL, 1950, p. 617-618).
Como aponta Vidal (1950), a religião católica é o refúgio de sua
alma atribulada pela preocupação de melhorar sempre as suas condições materiais, enquanto traz o contraponto de uma “certa independência de pensamento” em relação a esta religião.
A religiosidade popular é por vezes associada a classes subalternas, religiosidade tradicional e folclórica; é a sobrevivência de algumas
crenças e práticas anteriores aos processos de cristianização que foram
sobrevivendo e chegaram até nós (PRANDI, 2012). Acreditamos que os
estudos etnográficos desenvolvidos por Ademar Vidal, contribuem para
divulgação de práticas que são resquícios de mentalidades e vivências
pessoais ou coletivas.
4. Considerações finais
Ademar Vidal ao recuperar e preservar para a posteridade narrativas acerca do sobrenatural registra a memória e mentalidade coletiva
do homem nordestino, ao legar às futuras gerações crenças populares
e narrativas que são capazes de subverter combinações hegemônicas
do que existe, ao divulgar fatos da memória cultural. No universo do sobrenatural, relatos de contos sobre assombrações e fantasmas ocorrem
desde a Antiguidade e a Idade Média, perpassando os séculos e enraizando-se numa cultura que acreditava em sua existência, demonstrando que nas narrativas populares existe uma vida para os mortos, que
417
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
podem surgir em locais como ruas escuras e desertas, casas abandonadas, torres de igrejas atrás de missas e orações que possam dar-lhes
paz no além-túmulo. Daí surgiu a crença de que as almas do outro mundo aqui permanecem enquanto não cumprissem os julgamentos que
lhes foram impostos por Deus.
Longe de querermos esgotar o assunto, inferimos que o registro
dessas crenças populares nordestinas por Ademar Vidal nos remete a
uma unidade de sentido que investe em uma vida após a morte ligada à
vida humana através da fé, pertencendo a um olhar temporal duradouro. O que faz com que essas crenças sejam reproduzidas ao longo do
tempo, através de uma história oral que nutre e preserva esses contos,
podendo ser continuamente atualizadas e registradas em uma cultura
escrita sem a qual muitos desses contos já estariam perdidos.
Portanto, uma religiosidade é geralmente conduzida pelo mistério
do sobrenatural, pela tradição do povo. Nas suas tradições e práticas, a
religiosidade popular serve na vida de um povo, para determinar a sua
identidade cultural e para dotar de sentido o lugar envolvente.
418
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BERNARDES, Marcelo Elias. Contos
de assombração e catolicismo
popular: aspectos da vivência
religiosa em uma comunidade
mineira. Equatorial. v.4 n.6. Jan/Jun
2017. ISSN: 2446-5674.
BEZERRA, Alana; LEMOS, Fernanda. A
cruz da menina: religiosidade popular
católica na cidade de Patos-PB.
In: História das Religiões: temas
e reflexões. Maria Lucia Abaurre
Gnerre (Org.). João Pessoa: Editora
Universitária da UFPB, 2012.
BONOTTO, Danusa de Lara; KRIPKA,
Rosana Maria Luvezute; SCHELLER,
Morgana. Pesquisa documental
na pesquisa qualitativa: conceitos
e caracterização. Revista de
investigaciones UNAD Bogotá –
Colombia No. 14, julio-diciembre ISSN
0124 793X. Disponível em: http://
hemeroteca.unad.edu.co/index.php/
revista-de-investigaciones-unad/
article/download/1455/1771. Acesso
em 20 maio 2019.
BORAU, José Luís Vázquez. As
religiões tradicionais. Lisboa: Paulus
Editora, 2008.
CHAUI, Marilena. Cultura e
democracia: o discurso competente e
outras falas. 11 ed. rev. e ampl. – São
Paulo: Cortez, 2006
CORRÊA, José de Anchieta. morte.
São Paulo: Globo, 2008.
CPDOC. O que é história oral.
Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/
419
acervo/historiaoral Acesso em 14
maio 2019.
DURKHEIM, Émile. As formas
elementares de vida religiosa. O
sistema totêmico na Austrália. 2. ed.
Tradução Joaquim Pereira Neto. São
Paulo: Paulus, 1989.
FONSECA, J.J.S. metodologia da
pesquisa científica. Fortaleza: UEC,
2002. Apostila
FRANKL, Victor. El hombre en busca
de sentido, 21a edição. Herder,
Barcelona, 2001.
INTRODUÇÃO. O livro das religiões.
São Paulo: Globo Livros, 2014.
NASCIMENTO, D. GOMES do; AYALA,
M. INEZ NOVAIS. As práticas orais
das rezadeiras: um patrimônio
imaterial presente na vida dos
itabaianenses. Nau Literária: crítica
e teoria de literaturas, vol. 9, n.
1, 2013. Disponível em: https://
seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/
view/43698/27901. Acesso em a 15
de maio 2019.
PRANDI, Reginaldo. Os mortos e os
vivos: uma introdução ao espiritismo.
São Paulo: Três Estrelas, 2012.
RODRIGUES, Cislene Dias. Da festa a
morte: uma análise sobre as práticas
devocionais do catolicismo popular.
Disponível em: http://www.enanpege.
ggf.br/2015/anais/arquivos/6/173.
pdf. Acesso em 15 maio 2019.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ROSA, Maria Nilza Barbosa. Usos,
costumes e encantamentos: a cultura
popular em Ademar Vidal. João
Pessoa: Editora F&A, 2012.
SOUZA, Ricardo Luiz. Festas,
procissões, romarias, milagres:
aspectos do catolicismo popular.
Natal: IFRN, 2013.
VIDAL, Ademar. Lendas e
superstições. Editora O Cruzeiro. Rio
de Janeiro: 1950.
Izabel França. Os escritos de Ademar
Vidal e seu papel na construção,
preservação e disseminação da
memória cultural. Disponível em:
http://enancib.marilia.unesp.br/index.
php/xviiienancib/ENANCIB/paper/
viewFile/180/1105 Acesso em 14
maio 2019.
VILHENA, Maria Ângela. Espiritismos:
limiares entre a vida e a morte. São
Paulo: Paulinas, 2008.
VIDAL, Fabiano Cesar de Mendonça;
ROSA, Maria Nilza Barbosa.; LIMA,
[ Volta ao Sumário ]
420
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
maRia de magdala, de
pRostituta a deusa:
marcas ancestrais da
mulher que sangra na
contemporaneidade
maria Aparecida Porte Ferreira
Como referenciar este capítulo:
FERREIRA, Maria Aparecida Porte. Maria de Magdala, de prostituta a deusa:
marcas ancestrais da mulher que sangra na contemporaneidade. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio
Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências,
Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020,
p. 421-433.
Maria Aparecida Porte Ferreira1
Introdução
Este artigo pretende refletir sobre o significado do mito de Maria
Madalena e como esse significado se construiu na psique da mulher na
contemporaneidade. O recorte deste estudo foi feito através da simbologia de Maria Madalena do ponto de vista histórico, partindo de fontes
bibliográficas, observando a complexa teia de significados em torno do
mito e buscando traçar uma analogia com a mulher atual.
Essa complexidade acerca do tema está embasada no aporte teórico dos interlocutores e interlocutoras como: Durand, Jung, Toro, Bourdieu,
Murano, Saffioti, entre outros. Dividimos o estudo em dois tópicos específicos: Os mitos e arquétipos de Maria Madalena e; Marcas ancestrais
na contemporaneidade: uma questão de gênero numa cultura patriarcal.
No primeiro tópico buscou-se trazer uma discussão partindo do
contexto histórico acerca dos mitos, símbolos e arquétipos representados por Maria Madalena, considerando aspectos relevantes sobre sua
origem e o seu papel enquanto mulher cristã na sociedade. No segundo
tópico abordamos a concepção de gênero, patriarcado e ancestralidade
com enfoque na violência psicológica e moral contra a mulher traçando
uma relação da mulher do tempo de Maria Madalena com a mulher na
contemporaneidade.
1. Tratando-se do mito e arquétipo de maria madalena
O estudo dos mitos, símbolos e arquétipos estão em constante
desenvolvimento na contemporaneidade, de forma que os mitos e seus
símbolos não significam apenas entender e aprender uma etapa da
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões/UFPB. Vinculada a Linha de pesquisa Saúde e Espiritualidade. E-mail: cidaportelua@gmail.com.
Lattes:http://lattes.cnpq.br/7102806160686735.
1
422
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
história dos seres humanos, mas compreender, na contemporaneidade,
como se apresentam e são compreendidos, já que o homem e a mulher de hoje são resultados e constituídos pelos eventos míticos. Para
Eliade, o mito está ligado às sociedades arcaicas. Ele diz que “o mito é
uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares”
(ELIADE, 1994, p.11).
O mito ensina as histórias primordiais que o constituíram existencialmente e tudo o que se relaciona com a sua existência e com o seu
modo de existir no cosmo o afeta diretamente. Os mitos, as imagens e
símbolos, têm a capacidade de responder a uma necessidade e de revelar as modalidades mais secretas do ser. Os símbolos jamais desaparecem da “atualidade” psíquica, podendo mudar de aspecto, mas com
a mesma função permanecendo. “O símbolo revela certos aspectos da
realidade – os mais profundos – que desafia qualquer outro meio de
conhecimento.” (ELIADE, 1991, p. 8).
A perspectiva antropológica do imaginário, proposta por Durand
(2012), pressupõe aspectos teóricos que nos levam entender que a dinâmica dos símbolos está arraigada na sociedade, mas que estes só são
compreendidos após interpretação mais aprofundada. Contudo, vão além
essas interpretações primeiras que dão suporte teórico para as análises.
“O trajeto antropológico pode indistintamente partir da cultura ou do natural psicológico, uma vez que o essencial da representação e do símbolo
está contido entre esses dois marcos reversíveis.” (DURAND, 2012, p. 42).
A concepção de arquétipos postulados por Jung surgiu a partir de
suas próprias experiências pessoais, como também com os trabalhos
com seus pacientes. Jung foi percebendo a presença, no inconsciente,
de fantasias constituintes das possibilidades herdadas da imaginação
humana. Essas estruturas inatas e capazes de formar ideias mitológicas, Jung denominou arquétipos.
Nas palavras de Jung,
“os arquétipos são formas de apreensão, e todas as vezes que nos
deparamos com formas de apreensão que se repetem de maneira
uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não o seu caráter mitológico”. (JUNG, 2000, p.73)
423
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O arquétipo feminino representado na roupagem de Maria Madalena, também conhecida por Maria de Magdala2, destaca-se como uma
das personagens mais enigmáticas, estando presente nas passagens
mais marcantes da vida de Jesus Cristo, na qual é mencionada pelas
narrativas e escritos.
Assim, diante dos segredos e das especulações em torno de sua
história, pouco sabemos, a não ser o que encontramos nos textos canônicos, apócrifos e gnósticos. É interessante ressaltar que o cristianismo
é o ponto de partida relevante na trajetória espiritual de sua história.
O estudioso Boberg (2018), em sua obra “O Evangelho de Maria
Madalena”, traz a ideia de que muitas pessoas que pertenceram àquela
época histórica, acreditavam que o início do cristianismo se deu apenas
por “um único bloco ortodoxo e monolítico, onde reinava a plena fraternidade, e por isso defendem a volta das origens” (BOBERG, 2018,
p. 24). O autor entende que, com as descobertas dos livros gnósticos,
colocou-se em xeque as ortodoxias do cristianismo vigente, modificando o cenário, uma vez que as várias correntes do pensamento cristão
se digladiavam tentando interpretar e impor suas verdades sobre Jesus
Cristo e a igreja.3
Historicamente, Maria de Magala destacou-se no Novo Testamento, sendo testemunha da “ressurreição” como a mensageira da
Boa Nova. Ela foi considerada por alguns evangelistas como discípula
do Cristo.
Maria de Magdala: atribui-se a origem e o significado do termo “Magdala” ao um adjetivo dentílico, ou nome pátrio de acordo com a tradição local como habitante da cidade
de Magdala, (Migdal, em hebraico) sua cidade natal conforme tradição bíblica, “Migdal
Nunnayah” chamada Torre dos peixes, considerado terra natal de Maria Madalena. No
entanto, existe controvérsia entre teóricos, pois alguns acreditam ser esta seria a cidade de origem da Madalena, porém, para outros provavelmente esta cidade nem existisse
no tempo da personalidade. BOBERG, J. L. O Evangelho de Maria Madalena – Ed. EME,
Capivari-SP, 2018.
3
Vale ressaltar que, conforme a lenda cristã, a antiga igreja era diferente. Todos os cristãos de todos os credos procuram encontrar nos primórdios da igreja a fé e a pureza.
Na época dos apóstolos, todos os membros cristãos compartilhavam dinheiro, bens,
ensinamentos e reverenciavam a autoridade dos apóstolos. Após esses anos dourados,
instalou-se o conflito e heresia como constelou Lucas, autor de Atos dos Apóstolos, o qual
atribuiu a si mesmo como sendo o primeiro historiador do cristianismo. PAGEL, Eliane. Os
Evangélicos Gnósticos – introdução, p. xxiv.
2
424
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
2. marcas ancestrais na contemporaneidade: uma
questão de gênero numa cultura patriarcal
Na história, embora Maria Madalena fosse considerada por alguns
como símbolo da pureza, amorosidade, dedicação, arrependimento e
santidade, por outros, ela protagonizou o lado oposto, obscuro e tenebroso. Foi rotulada como prostituta, pecadora, demônio, bruxa e tantos
outros estigmas lhe foram lançados no período de sua missão, passando por diversos tipos de humilhação.
Os “estigmas” que aqui foram mencionados revelam cicatrizes que
sangram não apenas no corpo físico, mas sangram na alma, deixando
marcas profundas, conhecidas na atualidade por violência psicológica
e moral, fenômenos estes tão comuns às mulheres do tempo de Maria
Madalena, mas que também estão presentes na vida cotidiana da mulher moderna. São marcas que ainda tendem a se apresentar de forma
mascarada, silenciosa e sorrateira na contemporaneidade.
A violência contra a mulher é um fenômeno antigo, trazido dos
primórdios e, por muitos, ainda banalizada em nossa sociedade. É relevante ressaltar que as condutas e comportamentos machistas equivocados e recorrentes são reforçados pelo patriarcado. Estudos no campo
da saúde, neurociências e da psicologia apontam que a violência psicológica pode ocasionar transtornos físicos, mentais, emocionais, afetivos e de nível moral, que podem deixar marcas profundas na psique das
mulheres. São marcas ancestrais que sangram na alma e por isso são,
por vezes, máscaras invisíveis no corpo físico, causando dor, sofrimento
e impedindo que a mulher tenha uma vida saudável e feliz.
A violência psicológica caracteriza-se pelo uso de palavras ofensivas, difamação, manipulação e ameaças. De acordo com Osterne,
A violência psicológica, também conhecida como violência emocional, é aquela capaz de provocar efeitos torturantes ou causar desequilíbrios/sofrimentos mentais. A violência psicológica poderá
vir pela via das insinuações, ofensas, julgamentos depreciativos,
humilhações, hostilidades, acusações infundadas, e palavrões.
(OSTERNE, 2011, p. 135)
425
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Sendo assim, a violência psicológica, na maioria das vezes, vem
entrelaçada com a violência física, pois o homem, durante o ato de violência, faz uso de palavrões e ameaças que ofendem a mulher.
A violência psicológica, também conhecida como violência emocional, é aquela capaz de provocar efeitos torturantes ou causar desequilíbrios e sofrimentos mentais. Esse tipo de violência poderá vir pela
via das insinuações, ofensas, julgamentos depreciativos, humilhações,
hostilidades, acusações infundadas e palavrões.
Para Osterne (2011), a violência moral refere-se a qualquer ato
que cause difamação ou injúria aos princípios da mulher. Nesses termos, ele afirma que “a violência moral é tida como aquele tipo que atinge, direta ou indiretamente, a dignidade, a honra e a moral da vítima”
(OSTERNE, 2011, p. 135). Da mesma forma que a violência psicológica
poderá manifestar-se por meio de ofensas e acusações infundadas, humilhações, tratamento discriminatório, julgamentos levianos, trapaça e
restrição à liberdade, é relevante ressaltar que existem também outros
tipos de violência pouco conhecidas, tais como: a simbólica, a financeira,
a institucional e a patrimonial, sendo estas últimas não tratadas com
mais ênfase neste trabalho.
3. metodologia
A pesquisa é de natureza qualitativa, bibliográfica e com abordagem hermenêutica. O trabalho foi desenvolvido a partir de trabalhos já
existentes acerca da temática e publicados em livros, revistas, artigos e
internet.
Para Gil (2008), a pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base
em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos
científicos. A natureza qualitativa é caracterizada por Minayo como sendo um tipo de investigação que se aprofunda no mundo dos significados
das ações e relações humanas. Esta abordagem “incorpora as questões
do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no
seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas
significativas” (2010, p. 31).
426
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Ele acrescenta também que ela age com base em significados, razões, desejos, crenças, valores, atitudes e outras características subjetivas próprias do ser humano, que não podem ser limitadas a variáveis
numéricas.
O método hermenêutico é mediador no processo de interpretação
dos textos, considerando-se que toda a compreensão necessita de contextualização, uma vez que buscamos entender o que ele pode significar.
Para Gadamer,
[...] Quando compreendemos um texto, não nos colocamos no lugar do outro, nem é o caso de pensar que se trata de penetrar a
atividade espiritual do autor; trata-se, isto sim, de apreender simplesmente o sentido, o significado, a perspectiva daquilo que nos é
transmitido. Tratase, em outros termos, de apreender o valor intrínseco dos argumentos apresentados, e isto de maneira mais completa possível. [...] compreender é o participar de uma perspectiva
comum. (GADAMER, 2003, p. 59)
Nesses termos, para o mencionado autor, conhecer essencialmente algo, conhecer a verdade, isto é, no caso dos textos não basta ser
a correta expressão do pensamento, mas ele deve transmitir a verdade
por si mesma. Capra (1982) defende que a nova visão de saúde considera dimensões espirituais, pois ela é essencialmente um fenômeno multidimensional que envolve a interdependência de aspectos psicológicos
e sociais que são inerentes à vida humana.
4. Discussões e resultados
Diante da complexidade da temática, sintetizamos alguns pontos
relevantes para reflexão, com base nos dados em relação ao mito/patriarcado/violência/saúde da mulher:
Eliade e Jung apontam que os mitos e arquétipos estão presentes
em nossa vida cotidiana, são herdados através de nossos antepassados
e sobrevivem na psique.
Para Gilbert Durand, o universo do simbólico está relacionado à humanidade desde o princípio da civilização. O autor defende a
427
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
assertiva de que “o que importa no mito não é exclusivamente o encadeamento da narrativa, mas também o sentido simbólico dos termos”.
(DURAND,1997, p. 356).
O patriarcado, como um regime detentor do poder dos homens sobre as mulheres, desde os primórdios sobrevive em nossa cultura. Maria
Madalena, representação arquetípica feminina da era cristã, considerada
subversiva numa época onde a mulher era subordinada aos homens, detentores de poder que as tinham e as viam fonte de procriação e prazer,
na civilização moderna, continua sendo vista como sexo frágil.
A mulher daquele tempo era preparada para o ofício de ser uma
boa esposa, temente a Deus e aos preceitos doutrinários, domésticos e
familiares como se convinha. Por outro lado, àquela que ousasse mudar
tais padrões era amaldiçoada e punida severamente pela sociedade e,
ao extremo, banida e condenada como herege e feiticeira, a exemplo da
Inquisição que acontecera na era medieval.
Bourdieu (2003) defende a ideia de que o homem aprende a lógica
da dominação masculina e a mulher absorve essa relação inconscientemente. A repetição então é entendida como inerente ao ser humano,
pois aprendemos através de exemplos. Assim, muitas vezes, nós repetimos sem perceber.
Nesse sentido, a sociedade, naturalizando comportamentos,
legitima essa concepção através das repetições. Bourdieu define o
poder simbólico como este “poder invisível no qual só pode ser exercido
com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. (Bourdieu 1989, p. 6-16)
Minayo (2003) aponta que as discussões, os estudos e as pesquisas sobre as causas da violência, até os nossos dias, voltam-se para
a compreensão da violência no plano biológico, no plano psicológico
e, ainda, no plano social. Nesse aspecto, entende-se que a violência
é como uma ação que atinge todo o ser humano. Assim, não há uma
causa única, mas uma interrelação de fatores que contribuem para a
expressão da violência.
Para Saffioti (1987, p. 47), “calcula-se que o homem haja estabelecido seu domínio sobre a mulher há cerca de seis milênios”. Com base
nisso, a violência contra a mulher não é um problema atual; as mulheres
convivem com isso desde os primórdios. Essa valorização do masculino
428
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a que são submetidas é algo que ultrapassa décadas e hoje, mesmo
com tantas políticas voltadas para a igualdade e coibição, prevenção e
punição do ato da violência, a mulher contemporânea ainda vivencia estas práticas no seu cotidiano.
Em outra direção, o fenômeno da violência pode acarretar transtornos psicológicos para a saúde da mulher. A noção de autoestima é
também apontada na literatura, quando se trata de descrever as consequências da situação de violência sofrida pelas mulheres.
Para Gobitta e Guzzo (2003), a autoestima é frequentemente
apontada como um aspecto importante na prevenção de desajustamento psicossocial. A violência psicológica procura atingir a mulher em
sua saúde psicológica, causando prejuízos severos. Esse tipo de violência acarreta danos à autoestima e pode levar às doenças psicossomáticas ou até mesmo ao suicídio.
Saffioti (2004) constatou, em suas diversas pesquisas, que muitas vezes as mulheres conseguem superar melhor uma violência física,
pontapés, empurrões e tapas, do que as humilhações que provocam dores profundas, ferem a alma, feridas de difícil cura.
Nesse sentido, a resiliência4, aliada a outras práticas terapêuticas
pisicólogicas do cuidado, podem auxiliar em reestabeler vínculos saudáveis e uma melhor qualidade de vida para a mulher. Outro referencial importante ligado à saúde5 é a espiritualidade6. O bem-estar espiritual implica em diversas alterações nas habilidades e potencialidades
das pessoas. Diferentes estudos vêm evidenciando a importância da
Resiliência: Refere-se a capacidade das pessoas de enfrentarem adversidades sendo
transformados por estas experiências no sentido de crescimento pessoal. (MELILLO, 2005).
5
“Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença.” Organização Mundial de Saúde ( (OMS, 2002).
6
Espiritualidade: A definição de espiritualidade é abrangente e complexa e difere em diversas correntes teóricas e epistemológicas. Koenig (2001) conceitua a espiritualidade
como uma busca pessoal pela compreensão das questões últimas acerca da vida, do seu
significado, e da relação com o sagrado e o transcendente, podendo ou não conduzir ou
originar rituais religiosos e formação de comunidades. A Organização Mundial de Saúde
(OMS) tem investido em estudos e pesquisas sobre a espiritualidade enquanto parte integrante do conceito multidimensional de saúde. Atualmente, atribui como as dimensões
físicas, psicológicas e sociais, o bem-estar espiritual é encarado como uma dimensão do
estado de saúde.
4
429
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
espiritualidade como um componente essencial para a vida saudável
das pessoas, sobretudo das mulheres.
A nova visão de saúde considera a dimensão espiritual, pois ela
é essencialmente um fenômeno multidimensional que envolve a interdependência de aspectos psicológicos e sociais (Capra, 2001). Por fim,
Boff considera que “a espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano.” (BOFF, 2006, p. 51)
5. Considerações finais
Ao montar este cenário, apontado na linha do tempo e trazendo à
tona a experiência vivida de Maria Madalena representando o símbolo
da mulher no tempo de Jesus, traçamos aqui um paralelo com a mulher
contemporânea. Nesse sentido, atentamos acerca da mulher resiliente
que, através de sua história, sobrevive na nossa psique.
Assim, desvendar o primeiro véu de Maria Madalena como representação feminina em todas as suas nuances e em diferentes nomes,
como Miriam ou Marta, e que por muito tempo vem sendo mal compreendida e interpretada. Desde os primórdios, a violência psicológica
e moral contra a mulher vem se intensificando pelo domínio patriarcal
e machista deixando marcas que sangram na alma até os dias atuais.
Essas marcas ancestrais reverberam através da violência contra a mulher e se revelam somatizando nos “corpos”, podendo causar diversos
transtornos psicológicos, emocionais e afetivos, como também patologias graves que impedem uma vida saudável e integral da mulher.
Considerando que somos “seres multidimensionais”, Possebon
(2017) sinaliza, com base na tradição grega arcaica e enriquecida pela
filosofia oriental na modernidade, a ideia de que somos seres constituídos de diferentes dimensões e que se integram entre si (corpos ou
envoltório). Conforme o autor, em síntese sobre a constituição do ser,
temos o seguinte desdobramento:
430
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Dimensão
Envoltório
dimensão anímica
psykhé, anima, alma
dimensão intelectual ou mental
noûs, intelligentia, inteligência e/ou ménos,
mens, mente
dimensão emocional
thymós, animus, ânimo
dimensão pneumática ou vital
pneûma, spiritus, sopro
Dimensão somática ou corporal
sôma, corpus, corpo
FONTE: Possebon/2016
É interessante ressaltar, nesta linha de pensamento, que formas
mais holísticas de tudo que sentimos, pensamos, vivenciamos, falamos,
ouvimos, comemos, percebemos e captamos energeticamente, fica
registado nos nossos corpos; e ressignificar padrões de comportamentos
e hábitos equivocados faz parte do percurso que precisamos trilhar para
encontrarmos dentro de si o equilíbrio e harmonia.
No que se refere ao direito e à valorização da mulher, reconhecemos os esforços, as lutas, as conquistas e os avanços, no que diz respeito aos direitos da mulher, do feminino e de igualdade de gênero em
todos os âmbitos da sociedade e da vida. Seja nos movimentos sociais,
ativistas, como também em programas de assistência e de saúde da
mulher, nas políticas públicas e a Lei Maria da Penha, percebemos que
estamos ainda distantes da tão almejada equidade.
Atentamos para manifestação mítica de Madalena como símbolo
de superação e resiliência da era patriarcal, apontando novos caminhos
e possibilidades para que a mulher contemporânea possa despertar do
sono profundo e ressignificar a sua vida de forma saudável na sociedade e no mundo. Nesses termos pode-se considerar a reflexão de Boff
(2001), quando aponta que a humanidade busca o ponto de equilíbrio
para um verdadeiro sentido da vida e a espiritualidade faz parte deste contexto, pois esta dimensão proporciona conhecimento com maior
percepção e clareza da própria consciência.
431
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BOBERG, J. L. O Evangelho de maria
madalena – Ed. EME, Capivari-SP,
2018.
BOFF, L. Espiritualidade: um caminho
de transformação. 6. ed. Rio de
Janeiro: Sextante, 2001.
______. espiritualidade: Um
caminho de transformação. 1. Ed.
2006.
DURAND, Gilbert. As estruturas
antropológicas do imaginário:
introdução à arquetipologia geral.
Tradução de Helder Godinho. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
______. Gilbert. As estruturas
antropológicas do imaginário:
introdução à arquetipologia geral.
Tradução de Karina Jannini. 4. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2012.
______. Espiritualidade: um
caminho de transformação. Rio de
Janeiro: Sextante, 2006.
ELIADE, Mircea. mito e realidade. São
Paulo: Perspectiva, 1991.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
______. Mircea. mito e realidade
mito e realidade. Ed. 4°. Trad. Pola
Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1994.
______. Razões práticas: sobre
a teoria da ação. 3. ed. Campinas:
Papirus, 2003.
GADAMER, Hans-Georg. O problema
da consciência histórica. 2. ed. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2003.
BRASIL, Promoção da Saúde. As
Cartas da Promoção da Saúde /
ministério da Saúde, Secretaria de
Políticas de Saúde, Projeto Promoção
da Saúde. – Brasília: Ministério da
Saúde, 2002.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar
projetos de pesquisa. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2008.
Brasil, Congresso Nacional. Lei nº
10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Código Civil Brasileiro. Lei nº 11.340,
de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da
Penha.
CAPRA, F. O ponto de mutação.
A ciência, a sociedade e a cultura
emergente. São Paulo, Cultrix, 1982.
______. O ponto de mutação. 22.
ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
432
GOBITTA, M ; Guzzo, R. S. L. Estudo
Inicial do Inventário de auto-estima
(SEI) – Forma A. Psicologia: Reflexão
e Crítica, 15, 143-150, 2003.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos
e o inconsciente coletivo. 2.ed.
Petrópolis: Vozes, 2000.
KOENIG HG, McCullough M, Larson
DBB. Handbook of religion and
health: a century of research
reviewed. New York: Oxford
University press; 2001.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
MARTINS, Ronei Ximenes; RAMOS,
Rosana. metodologia de pesquisa:
guia de estudos. Lavras: UFLA,
p. 8-21, 2013.
MELILLO, A. Prefácio. In A. Melillo,
E. N. S. Ojeda e cols. Resiliência:
Descobrindo as próprias fortalezas
(V. Campos, Trad., pp. 23-38). Porto
Alegre: Artes Médicas, 2005.
MINAYO, M.C. de S. Pesquisa social:
teoria, método e criatividade. 22 ed.
Rio de Janeiro: Vozes, 2003.
______. M. C. S. O desafio do
conhecimento: pesquisa qualitativa
em saúde. 12ª ed. São Paulo: Hucitec,
2010.
Minayo, M. C, S. violência e Saúde.
Rio de Janeiro : Editora FIOCRUZ,
2006.
OSTERNE, Maria do Socorro. A
violência contra a mulher na
dimensão cultural da prevalência
do masculino. Revista O público e
o privado, Ceará, n°.18, p. 129-45,
julho/dez. 2011.
PAGEL, Eliane. Os evangelhos
gnósticos – introdução. p.xxivi,
POSSEBON, F. Espiritualidade
e Saúde: A Experiência Grega
Arcaica. A Interações Cultura e
Comunidade, Belo Horizonte,
Brasil, 2016. Disponível em:<http://
periodicos.pucminas.br/index.php/
interacoes/article/view/P.19832478.
2016v11n20p115/10913> Acesso
em 20/04/219.
SAFFIOTI, Heleieth, O Poder do
macho. Coleção Polêmica, São Paulo:
Moderna, 1987.
______. Heleieth. Gênero,
patriarcado e violência. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo,
2004.
[ Volta ao Sumário ]
433
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
messianismo nos
seRtões da pRovínCia
do Rio gRande do
noRte (1898-1899)
vikelane maria de Oliveira Silva
Como referenciar este capítulo:
SILVA, Vikelane Maria de Oliveira. Messianismo nos sertões da província do
Rio Grande do Norte (1898-1899). In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg
de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião,
Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades.
João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 434-443.
Vikelane Maria de Oliveira Silva1
1. Introdução
No final dos anos de 1950 e nos primeiros de 1960, segundo a socióloga Cristina Pompa, impulsionados pela extensa revisão comparativa
à qual a sociologia e a antropologia se submetiam, internacionalmente, os
estudos sobre os movimentos religiosos sofreram significativas atualizações, surgindo uma nova releitura no Brasil no que diz respeito aos estudos dos movimentos religiosos que receberam novas designações, como
movimento sócio- religioso, e por se tratar de movimentos que ocorreram em sua maioria nos sertões do nordeste brasileiro, onde predominava uma cultura “rústica” ganharam o termo de “messianismo rústico”
evidenciado pelos estudos da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz.
Nos sertões do nordeste brasileiro esses movimentos religiosos
foram mais presentes devido ao catolicismo rústico, e enraizado, das
condições de miséria e seca em que viviam os seus habitantes, criando
um ambiente propício ao surgimento de líderes religiosos carismáticos
que assim como Jesus “ O Messias”, teria a missão divina de libertar os
sertanejos da opressão das elites locais. Segundo Celso Furtado (1983),
era como se a única solução para os sertanejos fosse escapar para a
dimensão do sobrenatural. Os Sertões nordestinos tornam-se assim
espaço de construção dos movimentos ditos messiânicos.
Mediante a análise realizada sobre o messianismo nos sertões do
nordeste brasileiro, selecionamos como objeto de pesquisa um dos únicos movimentos messiânicos registrados nos Sertões da Província do
Rio Grande do Norte durante finais do século XIX, liderado pelo beato
Joaquim Ramalho. Optamos estudar esse movimento por se tratar do
único caso de messianismo relatado nos sertões da Província do Rio
Discente do Mestrado em História dos Sertões, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), Cento de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó. Orientador:
Profº. Lourival Andrade Júnior, Departamento de História do CERES (DHC), UFRN.
1
435
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Grande do Norte. Selecionamos o objeto da pesquisa com o objetivo
de trabalhar conceitos como o de “messianismo rústico” aplicados por
Maria Isaura Pereira de Queiroz aos movimentos messiânicos ocorridos nos sertões do nordeste brasileiro. Nos apropriamos deste conceito
para problematizarmos as relações dos sertões com o surgimento de
tais movimentos, além analisarmos o conceito de “Fanatismo” como
um termo que desqualifica não só os movimentos messiânicos, mas
que de forma mais ampla, desqualifica também os Sertões enquanto
espaços de construção dos mesmos.
Do aspecto acadêmico esse trabalho se justifica pelo fato de avançar sobre o campo da História Cultural, aprofundando os estudos sobre o movimento messiânico da Serra de João do Vale que até então
se encontra “esquecido” com objetivo de trazê-lo para a história escrita abordando suas relações com os sertões enquanto espaços de sua
construção.
De acordo com o que foi exposto indagamos: Quais as peculiaridades do messianismo nos Sertões do nordeste brasileiro? Quais as relações entre os Sertões e a construção de tais movimentos? Como os sertões tornaram-se terra fértil para o brotar e florescer do messianismo?
Quais discursos se apresentam em torno do movimento messiânico da
Serra de João do Vale e dos sertões enquanto espaços de sua construção? Partindo desses questionamentos, os nossos objetivos serão problematizarmos os sertões do nordeste brasileiro enquanto espaços de
construção dos movimentos messiânicos partindo do nosso objeto de
pesquisa, o movimento messiânico da Serra de João do Vale. Quanto aos
discursos que estão envolto nas fontes, nos atentaremos em analisar o
termo “fanático” que por vezes é apresentado nas fontes.
É importante ressaltar que este trabalho ainda está em fase
embrionária já que se trata de uma proposta de dissertação do mestrado
em História dos Sertões (MHIST-CERES) pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, sendo assim, partindo dos primeiros contatos
com algumas fontes, como jornais, entrevistas, e algumas bibliografias
consultadas, traçamos algumas hipóteses que serão comprovadas ou
não a medida que este trabalho avance. A primeira hipótese que nos
faz pensar os elementos que tornaram os Sertões nordestinos como
principal palco de construção dos movimentos messiânicos, é que nos
436
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
sertões as práticas religiosas são e se constituem híbridas, que ultrapassa as barreiras do catolicismo oficial. Além da religiosidade, analisamos o contexto social dos sertões nordestinos durante o século XIX
como duas dimensões essenciais na constituição dos sertões enquanto
espaço de construção da maioria dos movimentos messiânicos no nordeste do Brasil, entre esses, o nosso objeto de pesquisa.
2. metodologia
Para atingirmos os objetivos propostos em nossa pesquisa, partimos do uso das fontes orais para desenvolvimento da pesquisa histórica. No Brasil, a História Oral, surgiu com maior destaque em 1975, com
o I Curso Nacional de História Oral, porém podemos observar que apesar
do seu crescimento ainda há um certo preconceito quanto a utilização
da História Oral enquanto metodologia, reconhecemos que atualmente
apesar dessas barreiras, muitas universidades estão abrindo as portas
para a oralidade reconhecendo assim o seu caráter de fonte histórica.
Verena Alberti nos leva a pensarmos a fonte oral como um meio
que nos permite o registro de testemunhos e o acesso a “histórias
dentro da história” ampliando, dessa forma, as possibilidades de interpretação do passado (ALBERTI, 2013). Diante dessas discussões
partiremos de técnicas de gravação de entrevistas que produzidas a
partir daquilo que propõe o projeto de pesquisa determina quantas e
quais pessoas entrevistar, e o que perguntar. Deste modo acessaremos a memória dos nossos narradores por meio da técnica da entrevista gravada a partir de um aparelho gravador de voz. Pollack nos faz
compreender que a memória é elemento que faz parte de uma individualidade ou coletividade, sendo ela fator importante do sentimento
de continuidade de uma pessoa ou de um grupo no processo de reconstrução de si. (POLLACK, 1992).
Desta forma, delimitamos um perfil para os entrevistados, assim
sendo, fará parte das colônias de narradores, alguns moradores da Serra de João do Vale e arredores dos Sertões que foram palcos do movimento messiânico da Serra de João do Vale.
437
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Após a realização das entrevistas e transcrições, seguiremos com
a análise das fontes, nas quais utilizaremos a abordagem de História do
Discurso para analisarmos os discursos presentes e envoltos nas falas dos entrevistados, tomando como ponto de partida as discussões
de Eni Orlandi. Utilizaremos caderno de campo, além de possíveis documentos sobre o movimento, tais como: o processo crime do líder do
movimento Joaquim Ramalho, que Segundo Luis da Câmara Cascudo
(1941) se encontraria na Comarca da cidade de Apodi, além de possíveis
registros guardados e colecionados pelo sr. Hugolino de Oliveira, escrivão na cidade de Caraúbas nos finais do século XIX, que se encontram
no arquivo pessoal do escritor e pesquisador João Pegado de Oliveira
Ramalho residente na cidade de Natal/RN.
Consequentemente após a coletarmos as fontes e materiais, finalizaremos nossa pesquisa em campo e partiremos para uma reflexão
acerca das fontes, e materiais coletados, que serão utilizadas no decorrer desse projeto. Lembrando que as entrevistas serão registros que
nos possibilitarão fazermos uma ligação entre História e Memória.
Compreendemos que ao entrevistar nossos narradores que na
maioria das vezes se encontram a margem da história oficial, estamos
fazendo uma história vista de baixo. A história que antes era vista de
cima, das elites, e dos grandes personagens, agora dá espaço para uma
história vista de baixo onde os sujeitos comuns passam a ter voz e vez.
3. Discussão dos resultados
No que diz respeito a bibliografia que nos auxiliará na execução da
pesquisa, e discussão dos resultados, faremos um ensaio desde o conceito de “messianismo rústico” proposto por pela socióloga Maria Isaura
Pereira de Queiroz, passando pela construção dos movimentos messiânicos nos sertões do nordeste brasileiro, até ao conceito de “fanatismo” e “religiosidade” como tentativa de compreendermos desde como
a religiosidade se constitui enquanto um dos elementos responsáveis
pela construção do movimento messiânico da Serra de João do Vale, de
como tal evento se configura dentro do conceito de messianismo até
438
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
chegarmos ao conceito de fanatismo que de início tem nos auxiliado
a entender os discursos presentes em algumas fontes e materiais já
coletados.
Como discutiremos o conceito de “messianismo” na construção do
movimento messiânico da Serra de João do Vale, é importante fazermos
menção aos estudos da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz em
sua obra “O messianismo no Brasil e no mundo” publicada em 1965.
Nela Maria Isaura fará um amplo estudo comparativo do messianismo
no Brasil e no mundo, agrupando os movimentos messiânicos, denominando-os, e lhes dando características peculiares.
No Brasil por se tratar de movimentos que aconteceram nos sertões do nordeste, em meio a uma cultura tida como “rústica”, Maria
Isaura lhes atribuiu o conceito de “messianismo rústico”. Mediante a
uma obra que tomou uma grande repercussão, tornando-se uma das
mais importantes obras para o estudo do messianismo no Brasil, Maria
Isaura além de organizar os movimentos messiânicos em grupos, ela
os retira de uma condição pejorativa, na qual antes eram vistos como
casos de fanatismo religioso, sendo vistos a partir dos seus estudos
como movimentos messiânicos os quais são construídos e constituídos
a partir da dinâmica religiosa e social de uma sociedade. Tal obra tem
nos ajudado a entender as peculiaridades do messianismo nos sertões
nordestinos, nos dando características que nos levarão a relacionar os
sertões com a construção dos movimentos messiânicos rústicos.
No que se refere aos sertões como espaço de múltiplos contrastes
nos ateremos sobre o livro Culturas dos Sertões organizado por Alberto
Freire e publicado no ano de 2014. Nessa obra podemos nos debruçarmos sobre vários artigos que tratam dos sertões das pluralidades desse território emblemático. “Pois o sertão é plural não apenas enquanto
espaço, enquanto paisagem, enquanto clima, enquanto condições tecnológicas, econômicas, sociais, culturais; o sertão pode-se dizer sertões e
contemporâneo porque guarda em seu interior diversas temporalidades,
diversas camadas de tempo...” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2014, p. 55). A
partir desses estudos podemos perceber o sertão como um espaço plural,
um sertão que não é atraso, nem muito menos parado no tempo.
As novas discussões acerca dos sertões, que tem sido discutidas e
propostas pelo mestrado em História dos Sertões (MHIST-CERES), nos
439
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
permite problematizarmos a partir de alguns resultados que os sertões
abordados nesse projeto de pesquisa, é uma espacialidade em movimento, onde as ideias, e as práticas circulam, onde diversas espacialidades e temporalidades se encontram. Nos desfazendo da ideia de um
sertão estático, parado no tempo como por muitas vezes foi posto por
alguns escritores. Além de um sertão em movimento, o nosso objeto de
pesquisa nos dá respaldo para pensarmos um sertão onde as práticas
religiosas são híbridas, sendo assim nos apropriamos do conceito de Hibridismo definido por Néstor Garcia Canclini como processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.
(GARCIA CANCLINI, 2008, p. 19).
No que tange ao conceito de fanatismo buscamos auxílio nos estudos da socióloga Cristina Pompa, podemos citar aqui um de seus trabalhos publicados em 2014 com o título Leituras do “fanatismo religioso”
no sertão brasileiro, os seus estudos abordam as questões pertinentes
ao sertões como um espaço simbólico, destacando as relações entre as
práticas religiosas nos sertões, e a construção dos movimentos messiânicos, além de discutir a visão de mundo dos sertanejos a partir de
duas esferas, a social e a religião. Cristina Pompa também nos dá embasamento para algumas leituras do “fanatismo religioso nos sertões
brasileiros”. É importante mencionarmos outra obra de Cristina Pompa
tem por título “A construção do fim do mundo. Para uma releitura dos
movimentos sócio-religiosos do Brasil” rústico“” a autora nos auxilia para uma releitura dos movimentos religiosos, nos apresentando o
conceito de movimentos sócio- religiosos, pois segundo a autora é necessário compreender estes movimentos a partir de duas dimensões,
do social e da religião.
Queremos dá destaque ao artigo publicado por Luís da Câmara
Cascudo na Revista do Instituto histórico e Geográfico do Rio Grande
do Norte em 1941, intitulados “fanáticos da Serra de João do vale” aqui
encontramos as primeiras sondagens e referências sobre o movimento
messiânico dos “fanáticos da Serra de João do Vale”. Foi a partir desse
artigo que o movimento foi descrito e designado como um movimento
de fanáticos. Diante da leitura do artigo, tentamos compreender o lugar
de escrita Cascudo, acreditado que toda pesquisa se articula com um lu-
440
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
gar, seja ele de produção socioeconômico, político ou cultural (CERTEAU,
2011, p. 47). Desse modo, encontramos alguns discursos que de certa
forma desqualificaram o movimento, o termo “fanáticos” que faz parte
do próprio título do artigo de Cascudo, em si, já se constitui enquanto
um termo desqualificador.
Ao analisarmos a bibliografia acerca do referido movimento, podemos perceber uma escassez de escritos, o que o levou a um quase
esquecimento. Segundo Cascudo (1941), Canudos teve a honra de encontrar Euclides da Cunha e este transfigurou o tema, envolvendo-nos
numa magia de uma evocação inesquecível, os “Fanáticos da Serra de
João do Vale” não teve a mesma sorte, não mereceu registro nem alusão, passou despercebido, só perceberiam quando se tornasse uma
tragédia. Diante das análises até aqui realizadas identificamos que o
movimento messiânico da Serra de João do Vale teve seu fim de forma
muito precoce, durando apenas 2 anos, os discursos das autoridades
da época deram ao movimento um caráter de marginalidade, segundo Cascudo, o medo que acontecesse o mesmo em Canudos dominou
as autoridades da época, que de forma sorrateira, determinou o fim do
movimento, enviando uma tropa da polícia liderada pelo tenente Justino
Cascudo para dispersar aqueles que para eles eram tido e concebidos
como “fanáticos”. Isso nos mostra que o termo “fanáticos” foi construído pelo outro, um olhar de fora que desqualificou aqueles que participavam do movimento.
Desta maneira dialogaremos com essas produções bibliográficas
no sentido de pensar como elas podem contribuir para nosso trabalho
nos dando subsídios para construção de nossa escrita, e que a partir de
suas contribuições, os questionamentos e problematizações levantadas
por nossa pesquisa sejam pensados também por outras diretrizes.
4. Conclusões
Ao longo da Sociologia e da História tradicional os movimentos
religiosos receberam várias designações, até mesmo pejorativas, denominados muita das vezes como movimento de fanáticos atrelados
441
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a um espaço de construção, os sertões nordestinos que por vezes foram representados como terra de fanáticos, onde habitava a desordem,
tornando-se símbolos do atraso, e da barbárie.
No Brasil, a maioria desses movimentos foram registrados nos
sertões nordestino, sendo conhecidos tradicionalmente como movimentos “messiânicos rústicos” por este motivo atentamos em analisar
os sertões e a compreender os elementos que os constituíram enquanto espaço de construção da maioria dos movimentos messiânicos, problematizando o sertão como um território em movimento, onde assim
como as pessoas, as ideias, e práticas circulam numa dinâmica que movimenta os sertões, contrapondo a ideia de um sertão parado no tempo
e espaço, onde não há comunicação com a exterioridade, e as práticas
religiosas ditas populares são associadas ao “fanatismo”.
Apesar dos avanços no que diz respeito aos estudos referentes
ao messianismo no brasil, principalmente a partir dos estudos da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiróz em sua obra “O messianismo
no Brasil e no mundo”, os movimentos messiânicos ainda são estudados de forma muito homogênea, como se cada movimento fossem
iguais, por isso propomos um estudo em que eles sejam analisados
em suas especificidades com outros olhares e por novas vertentes, e
por novas áreas de conhecimento, sem dúvida a maior sugestão que
podemos propor é problematizar os movimentos messiânicos sem os
retirarem do seu espaço de construção, nesse caso sugerimos uma
análise do sertão para entender os elementos que tornara-o palco da
maioria dos movimentos messiânicos no Brasil. outra sugestão é estudar os movimentos messiânicos como movimentos que partem do
hibridismo de práticas religiosas.
O estudo dos movimentos messiânicos nos abre um leque de possibilidades de estudos e usos de fontes. Podemos sugerir como pesquisa os usos de filmes, cordéis, imagens entre outros, para compreender
como esses movimentos e o sertão são representados nestas fontes,
dessa forma estaremos propondo novas discussões acerca dos movimentos messiânicos, e do sertão.
442
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
SOLA, José Antonio. Canudos, uma
utopia no sertão. Editoria Contexto,
1989.
Bastide, Roger. Brasil, terra de
contrastes. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1975.
CUNHA, Euclides da. Os sertões
(campanha de Canudos). 1902.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval
Muniz de. Distante e/ou do Instante:
“sertões contemporâneos”, as
antinomias de um enunciado. In:
FREIRE, Alberto (Org.). Culturas dos
Sertões. Salvador: EDUFBA, 2014.
p. 41-57.
CHARTIER, Roger et al. A
história cultural. Entre práticas e
representações. Lisboa: Difel, v. 1,
p. 12, 1990.
POMPA, Cristina. Leituras do
“fanatismo religioso” no sertão
brasileiro. Novos Estudos Cebrap,
v. 69, p. 71-88, 2004.
POMPA, Cristina. A construção do
fim do mundo. Para uma releitura
dos movimentos sócioreligiosos
do Brasil” rústico”. Revista de
Antropologia, v. 41, n. 1, p. 177-211,
1998.
ALBERTI, Verena. manual de história
oral. Editora FGV, 2013.
POLLAK, Michael. memórias,
esquecimento, silêncio. Revista
Estudos Históricos, Rio de Janeiro:
Ed UFRJ, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
THOMPSON, Paul. História oral: a
voz do passado. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, v. 388, p. 229, 1992.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O
messianismo no Brasil e no mundo.
São Paulo: AlfaOmega, 1976.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de
discurso: princípios & procedimentos.
Pontes, 2012.
CASCUDO, Luís da Câmara. Fanáticos
da Serra de Joao Do valle. Natal:
Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, 1941.
BARTELT, Dawid Danilo; ABISÂMARA, Raquel; KRESTSCHMER,
Johannes. Sertão, república e nação.
Editora da Universidade de São Paulo,
2009.
PEREIRA, José Carlos. Devoções
marginais: interfaces do imaginário
religioso. Zouk, 2005. São Paulo:
Ática, 1983, p. 31.
443
[ Volta ao Sumário ]
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mito e Rito: a
espiritualidade indígena
potiguara da paraíba
Carla Jaciara Jaruzo dos Santos
Como referenciar este capítulo:
SANTOS, Carla Jaciara Jaruzo dos. Mito e rito: a espiritualidade indígena Potiguara da Paraíba. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque
(Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos
e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR /
Fogo Editorial, 2020, p. 444-454.
Carla Jaciara Jaruzo dos Santos1
Introdução
Potiguara era a denominação dos índios que no Século XVI habitavam o litoral do Nordeste do Brasil, aproximadamente entre as
atuais cidades de João Pessoa, na Paraíba, e São Luis, no Maranhão.
Seus últimos remanescentes vivem atualmente nos municípios de Baía
da Traição e Rio Tinto, no litoral setentrional da Paraíba. Variantes do
nome, nos documentos históricos, são: Potygoar, Potyuara, Pitiguara,
Pitagoar, Petigoar, entre outros. Não há acordo sobre o significado do
nome, que geralmente é traduzido como ‘pescadores de camarão’ ou
‘comedores de camarão’ (MOONEN, 2008).
No Estado da Paraíba a população indígena Potiguara, é uma das
maiores do Brasil e a maior do Nordeste etnográfico. Sua população é
25.000 habitantes, dos quais 2.061 desaldeados, residindo nas cidades.
Os demais aldeados residem em 33 aldeias nos municípios de Baía da
Traição, Marcação e Rio Tinto (BARCELLOS, 2012).
De acordo com Barcellos (2012), a religião e suas práticas sempre
ocuparam importante espaço em nossa vida. E toda prática religiosa é
educativa porque sempre estão ocorrendo novas aprendizagens durante o culto, o terço, a procissão, o batismo ou o toré.
As mulheres Potiguaras são guardiãs da cultura Potiguara, como
também responsáveis pela iniciação dos curumins nas tradições e demais rituais indígenas. Com suas práticas, perpetuam os costumes e
as crenças, inclusive com relação à culinária. As mulheres indígenas
também assumem a posição de liderança nas aldeias e promovem o
fortalecimento das políticas de autoafirmação da etnia. Exercitam a sabedoria popular através da musicalidade, das rezas, cantigas, danças,
comidas, ferramentas, dos cultivos de plantas e animais, segredos dos
Possui graduação em Enfermagem - Faculdades Integradas de Patos (2008). Com
Especialização em Urgência e Emergência, Unidade de Terapia Intensiva e Vigilância em
Saúde. Tem experiência na área de Enfermagem, com ênfase em Enfermagem. Mestranda
em Ciências das Religiões, pela Universidade Federal da Paraíba.
1
445
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
encantamentos, das histórias, dos sabores da sobrevivência. Com
os Troncos Velhos (anciãos) todos os membros da aldeia exercitam e
aprendem a ‘‘Pedagogia Existencial’’, caracterizada por oportunizar o
aprender com a natureza, viver em comuna, partilhar, valorizar as tradições transmitidas de geração em geração, perpetuando a cultura indígena Potiguara (PALHANO SILVA; NASCIMENTO, 2013).
E é a partir desta perspectiva que iniciarei toda minha discussão
a respeito dos ritos, mitos e espiritualidade que permeia os indígenas
Potiguara da Paraíba.
Os europeus aqui chegaram e além de dominação do nosso povo,
também definiam como deveria ser a vida dos nativos, seus costumes,
suas crenças. Tudo com a força da imposição que os europeus tratavam
como colonização para um povo que para eles não apresentavam significado algum. E devido ao processo colonizador, foram obrigados a sair
de suas terras, perderem o direito de exercer sua cultura, foi obrigado a
silenciar sua existência por todo um século (BARCELLOS, 2012).
Todo rito tem seu mito e traz consigo uma ancestralidade que
transcende através de rituais praticados de uma forma peculiar. O rito
é e foi um fato originário de criação de ordenamentos, de estabilização
de papéis, de distribuição de funções fundamentalmente por meio da
interpretação de espaços. Não se deve esquecer que toda hierarquia,
toda autoridade, nasce da conquista de um espaço, da posse física do
espaço (VILHENA, 2005, apud TERRIN, 2004).
O estudo do rito religioso não pode passar ao largo desses conjuntos de interpretações, conhecimentos e explicações que o próprio ser
humano, na cultura e no tempo, elabora a respeito de si mesmo, dos
outros, do universo, do sobrenatural. Até porque as religiões são simultaneamente depositárias, matrizes e comunicadoras desses conjuntos,
o que acontece na medida em que as religiões recolhem e oferecem
imagens, sentidos, significados e orientações para a vida e seus acontecimentos. Os rituais constituem uma forma privilegiada pela qual se
expressa e visibiliza o imaginário religioso (VILHENA, 2005).
As memórias indígenas Potiguara mostram espaços que ainda
aparecem hoje carregados de símbolos e práticas tradicionais. Memórias estas que trazem consigo toda ancestralidade, rituais e mitos estabelecidos por estes povos que tanto fazem para que estas práticas
permaneçam vivas.
446
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Quando pensamos em espiritualidade indígena, imediatamente
fazemos relação com os rituais religiosos que acreditamos ser a representação na crença cultural da ancestralidade que estes povos indígenas carregam. Meu primeiro contato com um indígena potiguara foi na
UFPB, no primeiro dia de aula, ele como aluno especial de uma disciplina
que abordava justamente os mitos, ritos e espiritualidade indígena, e
com o passar dos dias, comecei a compreender e perceber o quanto a
espiritualidade está presente para eles, o quanto eles têm orgulho de
sua cultura.
E falar sobre indígenas é um bastante instigante, tendo em vista
apresentar um modo de viver e conviver que atrai olhares dos que buscam entender esta relação deles como já mencionado, com a espiritualidade, os ritos e os mitos que permeiam e prevalecem a partir de uma
ancestralidade ímpar.
A ideia de falar desta temática surgiu a partir de uma visita à Aldeia
Lagoa do Mato, no mês de setembro deste corrente ano, onde assistimos a um ritual da lua cheia, e presenciamos toda a importância que a
cultura e as memórias revividas destes povos são fortemente presentes e vividas. Neste ritual, a jurema se faz presente, integrando o ritual
de tradição indígena Potiguara, e todos que ali estavam, beberam dela.
O pajé Isaias nos fez entender sobre a importância deste ritual, do contato próximo aos elementos da natureza, como a terra, onde todos ficaram descalçados para estar de uma forma mais próxima deste elemento da natureza, da dança, do ritmo e da espiritualidade que ali se fez
presente. E desta forma surgiu o interesse nesta pesquisa, em aprofundar os conhecimentos a respeito da espiritualidade e todo este contexto
que envolve ritos e mitos indígenas.
Fundamentação teórica
Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar
o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do
século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus predecessores,
o mito na acepção usual do termo, i. e., como “fábula”, “invenção”,
447
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
“ficção”, eles o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades
arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma “história verdadeira”
e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar
e significativo. Mas esse novo valor semântico conferido ao vocábulo
“mito” torna o seu emprego na linguagem um tanto equívoco. De fato,
a palavra é hoje empregada tanto no sentido de “ficção” ou “ilusão”,
como no sentido – familiar sobretudo aos etnólogos, sociólogos e
historiadores de religiões – de “tradição sagrada, revelação primordial,
modelo exemplar” (ELIADE, 1972).
O autor acima citado afirma que o mito é uma realidade cultural
extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através
de perspectivas múltiplas e complementares. O autor ainda acrescenta
que, nas sociedades em que o mito ainda está vivo, os indígenas distinguem cuidadosamente os mitos – “histórias verdadeiras” – das fábulas
ou contos, que chamam de “histórias falsas”.
Os mitos são verdadeiros porque são sagrados, porque falam dos
seres e dos acontecimentos sagrados. Por conseguinte, recitando ou
ouvindo o mito, retoma-se o contato com o sagrado e com a realidade
(ELIADE, 1979).
E falando sobre espiritualidade que remete aos indígenas, Leonardo Boff (2001) faz um questionamento e indaga se a espiritualidade
muda ou é sempre a mesma coisa? E Dalai-Lama fala:
Como diziam os antigos, os tempos mudam e as pessoas mudam
com eles. O que ontem foi espiritualidade hoje não precisa mais ser.
O que em geral se chama espiritualidade é apenas a lembrança de
antigos caminhos e métodos religiosos. E arrematou: o manto deve
ser cortado para se ajustar aos homens. Não os homens que devem
ser cortados para se ajustar ao manto (BOFF, 2001, p.17).
O autor acima citado conclui que neste pequeno diálogo com Dalai-Lama é que espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma
mudança. O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto,
está sempre se fazendo, física, psíquica, social e culturalmente.
E considerando que a espiritualidade esteja relacionada com
aquelas qualidades do espírito humano – tais como amor e compaixão,
448
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
paciência e tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção
de responsabilidade, noção de harmonia – que trazem felicidade tanto
para própria pessoa quanto para os outros rituais e oração estão diretamente ligados à fé religiosa, mas essas qualidades interiores não precisam ter a mesma ligação. Não existe, portanto, nenhuma razão pelo
qual o indivíduo não possa desenvolvê-las, até mesmo em alto grau,
sem recorrer a qualquer sistema religioso ou metafísico.
Num Mundo como esse, o homem não se sente enclausurado em
seu próprio modo de existir. Também ele é “aberto”. Ele se comunica
com o Mundo porque utiliza a mesma linguagem: o símbolo. Se o Mundo lhe fala através de suas estrelas, suas plantas e seus animais, seus
rios e suas pedras, suas estações e suas noites, o homem lhe responde
por meio de seus sonhos e de sua vida imaginativa, de seus Ancestrais
ou de seus totens (concomitantemente “Natureza”, sobrenatural e seres humanos), de sua capacidade de morrer e ressuscitar ritualmente
nas cerimônias de iniciação (nem mais nem menos do que a Lua e a
vegetação), de seu poder de encarnar um espírito ao cobrir-se com uma
máscara etc (ELIADE, 1972).
As religiões fornecem assim uma visão sobre deus, sobre o céu,
sobre quem é o ser humano e o que deve fazer nesse mundo. Elaboram
doutrinas e apontam caminhos para a luz. E não anunciam só prédicas,
elas acentuam também práticas. As religiões são fontes éticas, isto é, de
comportamentos e constituem uma das construções de maior excelência do ser humano. Elas todas trabalham com o divino, com o sagrado,
com o espiritual, mas elas não são o espiritual. Espiritualidade é outra
coisa (BOFF, 2001).
Cada povo indígena tem seu jeito de ser, sua musicalidade, dança,
coreografia, forma de estabelecer contato com os ancestrais que, durante o ritual do Toré, estão ali constituídos. Trata-se de um conjunto de
elementos presentes nas várias etnias, mas cada grupo com suas especificidades locaise conservando sua singularidade, embora haja diálogo
e troca de experiências entre povos distintos (BARCELLOS, 2012).
O ritual é espaço ritualístico espiritual, onde os Potiguara buscam
as energias de proteção e purificação dos seus corpos para suas famílias e toda etnia. Do cachimbo sai a fumaça que perfuma o ambiente,
limpa os corpos, purifica à alma e as vestimentas.
449
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O Toré é um ritual sagrado marcado pela musicalidade, que une
toda a comunidade Potiguara e parentes em dança circular, harmoniosa,
onde de forma sincronizada, seus corpos bailam trajados com adornos,
colares, cocás, saias de jangada, brincos e além de pintados com de jenipapo e urucum. Tocam pífanos, tambores e maracas. Fumando cachimbos da paz e tomando o líquido precioso da jurema. A sintonia desses
elementos promove a singularidade da ritualística que envolve cada indígena Potiguara. Com os pés na mãe terra, lançam em coro seus cantos, buscando proteção e agradecendo aos “espíritos de luz’’, aos ancestrais e, especialmente, a Tupã (PALHANO SILVA; NASCIMENTO, 2013).
Dessa forma, vem promovendo o referencial da autoctonia nordestina e vale ser apreendido de forma processual porque é justamente a sua dinâmica dentro dos e entre os grupos étnicos que vem ordenando a vida indígena no Nordeste. Toré e jurema são os dois principais
ícones da indianidade nordestina. São elementos culturais que, embora
não exclusivos das sociedades indígenas, codificam a autoctonia dos índios da região Nordeste do Brasil (GRÜNEWALD, 2005).
Tanto o Toré como o culto à Jurema são marcas de espiritualidade
dos Potiguara. Há um esforço de legitimar esses atos sagrados e resgatar sua história e autenticidade, distanciando-se da representação
preconceituosa de feitiçaria e catimbó, criada pela predominância da fé
católica e catequese no século XVI. A Jurema é tida como planta sagrada,
bebida alucinógena, folhas secas fumadas no cachimbo, galhos e flores
usados em rituais de limpeza do corpo, sendo considerada uma bebida
sagrada, o que torna a cerimônia mágica e religiosa, capaz de provocar a
comunicação com os ancestrais (SOUSA; NASCIMENTO, 2011).
Ritos e mitos
Estudar rito é uma das mais fascinantes vias de acesso para a
compreensão dos seres humanos em suas culturas. Ele pode revelar
profundas semelhanças entre os grupos humanos capazes de perpassar temporalidades, localizações, formações culturais. E coloca a nossa
frente um imenso e complexo universo em parte conhecido, em parte a
450
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ser desvelado (VILHENA, 2005). O mito está diretamente ligado com
o rito.
Dada a imensa variedade de ritos e a complexidade a eles inerente,
pode-se facilmente concluir que uma ciência isolada não dá conta de
explicá-los:
[...] o mundo dos ritos enraíza-se no mundo dos seres humanos e
que o mundo dos seres humanos constrói-se na cultura. Sendo assim, nem o ser humano nem o rito podem ter existência, tampouco
ser compreendidos fora da cultura, que por sua vez é construção
humana e histórica (VILHENA, 2005, p. 36).
A autora acima citada complementa que, considerando parte integrante da cultura as maneiras pelas quais os seres humanos se distribuem socialmente e se organizam em instituições, associações, exercendo várias formas de poder. Aí estão também leis, regras, valores,
tradições, crenças, costumes, linguagens.
A maioria dos rituais da tradição indígena se dá em forma de festividades e ao som de bombo e maracá que convocam as forças sobrenaturais e os encantados. Nos ritos católicos do povo Potiguara, a difusão
de uma fé que alimenta as procissões, os terços nas casas e as novenas
aos seus santos protetores. Nos ritos evangélicos, a força do culto, do
clamor que une a irmandade nas escolas dominicais e nos cultos da mocidade (MENDONÇA, 2014).
Em Ferretti (1995), os rituais são quase sempre momentos de festa, que rompem a rotina da vida diária, embora haja ritos que não sejam
propriamente festivos. Segundo Durkheim (1937): a própria idéia de
uma cerimônia religiosa de alguma importância desperta naturalmente
a idéia de festa. Inversamente, toda festa, mesmo que seja puramente
leiga em suas origens, possui certas características de cerimônia religiosa, pois tem por efeito aproximar os indivíduos, colocar massas em
movimentos, e suscitar assim um estado de efervescência, algumas vezes mesmo de delírio, que não é sem parentesco com o estado religioso.
O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que
pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas
e complementares. Fala apenas do que realmente ocorreu, do que se
451
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
manifestou plenamente. Revelam, portanto, sua atividade criadora e
desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de
suas obras. Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do
Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também de todos
os acontecimentos primordiais em conseqüência dos quais o homem
se converteu no que é hoje. É o começo de tudo, a origem das coisas,
seus primórdios, e sua importância se faz como um norteador para determinado grupo, e deve ser compreendido através de uma perspectiva
histórico-religiosa. No entanto, o autor compreende que o mito é como
uma história sagrada que tem como objetivo narrar uma ocorrência em
um tempo fantástico e primeiro (ELIADE, 1972).
O mito é o responsável pela formação, como a sociedade indígena
se reproduz na maneira de ser, viver e de morrer. Detém as verdades
das coisas e procura perpetuá-las para não serem esquecidas. O mito
é assimilado pelos indígenas como verdade absoluta transmitida pelos
“fundadores” das respectivas culturas num tempo ‘anterior ao tempo em que se vive’. Sua credibilidade e veracidade são inquestionáveis
(BARCELLOS, 2005).
Em Mendonça (2014), conhecidos entre os indígenas, alguns rituais foram reprimidos pelos colonizadores. Porém, as expressões nativas tornaram-se mais visíveis e populares no início do século XX dado
registro apenas como manifestações folclóricas. A partir de então, os
Potiguara e também seus rituais tornaram-se conhecidos em todo o
Brasil, de modo que os rituais da tradição, em especial o Toré tiveram
reconhecimento apenas como símbolo da cultura dos referidos indígenas. Uma imagem distorcida que acompanhará os Potiguara durante
décadas, contribuindo assim dentre outros fatores para a construção de
modelos de índios produzidos pela era do capital.
Considerações finais
Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também de todos os
acontecimentos primordiais em conseqüência dos quais o homem se
452
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
converteu no que é hoje – um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver, e trabalhando de acordo com
determinadas regras (ELIADE, 1972).
A espiritualidade não é monopólio das religiões, nem dos caminhos espirituais codificados. É uma dimensão de cada ser humano. Essa
dimensão espiritual que cada um de nós tem se revela pela capacidade
d diálogo consigo mesmo e com o próprio coração, se traduz pelo amor,
pela sensibilidade, pela compaixão, pela escuta do outro, pela responsabilidade e pelo cuidado como atitude fundamental. É alimentar um
sentido profundo de valores pelos quais vale sacrificar tempo, energias
e, no limite, a própria vida (BOFF, 2001).
O autor citado remete nesta obra, que a primeira distinção que
cabe fazer é entre religião e espiritualidade. Sem ela não resgatamos
a alta relevância da espiritualidade para os dias atuais, marcados pelo
modo secular de ver o mundo e pela redescoberta da complexidade
misteriosa da subjetividade humana.
Os rituais e vivências que permeiam toda esta cultura pertencente aos indígenas é uma marca registrada e extremamente significante
para aqueles que remetem sua ancestralidade como forma ritualística.
Cada sociedade, cada povo, cada grupo tem sua ancestralidade,
que vem demarcada de mitos e ritos vivenciados na espiritualidade creditada, é vista como uma fonte de vivência, que remete a cultura e ao
social. O que a espiritualidade traz para estes povos, é vivenciado de
forma individual e coletiva através das memórias, porém com o mesmo
significado e propósito.
Todos os rituais praticados revitalizam os indígenas para que enfrentem a vida, gerando “ligações espirituais” com a mãe natureza, com
seus ancestrais e o Deus Tupã, abrindo os caminhos para os passos firmes na caminhada Potiguara.
453
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BARCELLOS, Lusival Antonio. Práticas
educativo-religiosas dos indígenas
Potiguara da Paraíba. 2005. 310 f.il.
Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Natal, 2005.
BARCELLOS, Lusival Antonio. As
práticas educativo-religiosas dos
índios Potiguara da Paraíba. João
Pessoa: Editora da UFPB, 2012.
MENDONÇA, Joselma Bianca Silva
de Souza. Entre o tronco e o monte:
Convergências e divergências nas
espiritualidades dos inDíGenas
POTIGUARA e do CARmELO
mONáSTICO da Paraíba. 2014. 135
p. Dissertação (Mestrado em Ciências
das Religiões) – Universidade Federal
da Paraíba, João Pessoa, 2014.
BOFF, Leonardo 1938.
Espiritualidade: um caminho de
transformação. Rio de Janeiro:
Sextante, 2001.
PALHANO SILVA, P. R. ; NASCIMENTO,
J. M. DO. Educação e movimentos
sociais: registro do TORÉ POTIGUARA
– a força da espiritualidade. Cronos: R.
Pós-Grad. Ci. Soc. UFRN, Natal, v. 14,
n.2, p.216 – 221 jul./dez. 2013
DURKHEIM, E. As regras do método
sociológico. Tradução J. R. Meréje. São
Paulo: Companhia, 1937.
VILHENA, Maria Angela. Ritos:
expressões e propriedades. – São
Paulo: Paulinas, 2005.
ELIADE, Mircea. mito e Realidade. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
SOUSA, Rosineide Marta Maurício.
NASCIMENTO, José Matheus do. V
Colóquio Internacional – “Educação e
Contemporaneidade”. A JUREMA NO
RITUAL TORÉ DOS POTIGUARA. São
Cristóvão, 2011.
ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos.
Lisboa: Arcádia, 1979.
FERRETTI, Sérgio. Repensando o
Sincretismo: Estudo sobre a Casa
das Minas. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo; São Luís:
FAPEMA, 1995.
GRÜNEWALD, R. de A. “As múltiplas
incertezas do toré”. In: Toré: regime
encantado do índio do Nordeste.
Recife: Massangana, 2005.
MOONEN, Frans. os índios
Potiguaras da Paraíba. 2. Ed. digital
aumentada. Recife, 2008.
454
TERRIN, Aldo Natale. O rito:
antropologia e fenomenologia da
ritualidade. São Paulo, Paulus, 2004.
VILHENA, Maria Ângela. Rito:
expressões e propriedades. São
Paulo: Paulinas, 2005.
[ Volta ao Sumário ]
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
o afRo-indo-BRasileiRo
e a esfeRa púBliCa:
velhas e novas formas
de presença
Roberta Campos
Raoni Silva
Como referenciar este capítulo:
CAMPOS, Roberta; SILVA, Raoni. O afro-indo-brasileiro e a esfera pública:
velhas e novas formas de presença. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg
de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião,
Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades.
João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 455-472.
Roberta Campos1
Raoni Silva2
Introdução
O presente artigo trata das relações entre as religiões afro-indo-brasileiras e a esfera pública, lançando um olhar atento às formas, às práticas, aos procedimentos e às relações através dos quais o
afro-indo-brasileiro se projeta na esfera pública. Pretendemos mapear
e sistematizar suas formas de presença pública a partir de dados da observação da realidade empírica da atuação do povo de santo na esfera
pública e da análise da literatura socioantropológica especializada que
trata da referida questão.
O mapeamento das formas de presença das religiões afro-indo-brasileiras na esfera pública nos levou a cinco tipos: a cultural, a judicialização, a cultura de massa, a retomada da estrutura institucional
de dependência e a patrimonialização. Contudo, é crucial salientarmos
que as formas de presença na esfera pública aqui representadas não
se esgotam neste artigo, visto que ainda há a possibilidade de outros
modos de presença que até então não identificamos. A forma cultural
tem se mostrado historicamente mais comum, entretanto o afro-indo-brasileiro já não se reduz a ela em suas formas de inserção pública;
o que significa que é importante considerar a reflexividade dos atores
sociais sobre suas práticas e o fato de cada terreiro “ser uma exceção à
regra” (ver Germano, 2016), o que possibilita uma infinidade criativa de
formas de se inserir publicamente sempre aberta à dinâmica dos processos sociais e históricos.
1
2
Professora Associada do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE.
Doutorando do PPGA-UFPE.
456
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A Religião vai a Público
José Casanova afirma que a religião “veio a público” na década de
1980, destacando dois sentidos dessa expressão: a entrada na esfera pública e a publicidade subsequente, quando vários públicos (mídia,
cientistas sociais, políticos e o “público em geral”) começaram a prestar
mais atenção nas religiões. Segundo o autor, isso deve-se ao fato da
religião ter deixado o lugar conferido a ela na modernização, o privado,
e entrado na arena pública através de contestações morais e políticas
(Casanova, 1994). Ainda que se possa contestar Casanova, apontando
para o fato de que a religião nunca teria realmente se restringido ao
privado, compreende-se, com o autor, que a religião tem tornado, nos
últimos anos, sua face pública bem mais eloquente.
Destaca-se, ainda, em sua análise sobre a transformação da “religião privada” em “religião pública”, o fato das organizações religiosas passarem a rejeitar o lugar restrito de pastorado das almas, incluindo, por
outro lado, em suas agendas, questões relativas às interconexões entre
a moral privada e a moral pública. As religiões não estão apenas defendendo suas tradições, mas, na verdade, lutam pela participação nas definições das fronteiras modernas entre as esferas pública e privada, entre
legalidade e moralidade, entre família, sociedade civil e o Estado, etc.
É nesse contexto que podemos usar a ideia de religiões minoritárias
(ver Connolly, 2011). Na situação de um mundo e de uma vida social de
incontestável diversidade religiosa, com projeto de pluralismo religioso
ainda por se realizar, o que experimentamos, segundo Connelly, é um
acirramento entre as diferentes religiões, e entre elas e o Estado. As religiões minoritárias se constituem, nesta visão, com bandeiras próprias
e que se confrontam na arena pública pelas disputas de fronteiras e de
agendas elencadas anteriormente.
Os desdobramentos do avanço do capitalismo e o processo crescente da individualização da vida social fizeram Richard Sennett (1999)
descrever esse processo histórico como marcado pelo declínio do homem
público. Nessa discussão, Sennett diagnosticou a fragmentação da sociedade, cada vez mais voltada para questões identitárias que promovem a emergência do que ele chamou de comunidades autodestrutivas.
457
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Considerados os efeitos deletérios desses processos, ressaltados na
visão de Sennett, o que nos interessa destacar, entretanto, é que esse
processo de fragmentação na atualidade é marcado por conflitos e tensões relativos à presença da religião na esfera pública. A fragmentação e/ou pulverização dos movimentos sociais complexifica-se no seu
significado político, passando de um cenário descrito por fraturas ancoradas apenas nas suas diferenças e irredutibilidades a um processo
alimentado por forças macrossociológicas globalizantes e modernizadoras, com implicações para a democracia e seu respectivo potencial
libertador. Seguindo Connolly (2011), estaríamos falando da intensificação e aceleração da “minoritização” do mundo contemporâneo, processo levado a cabo pelas pressões, muitas delas vinculadas à expansão do
capitalismo neoliberal.
No Brasil, temos como exemplo marcante dessa dinâmica o enfrentamento entre evangélicos e movimentos sociais ligados aos direitos reprodutivos e sexuais. De outro lado, temos as religiões afro-indo-brasileiras articulando-se politicamente contra o racismo religioso. Os
evangélicos, destacadamente os pentecostais, apesar de constituírem
uma minoria em relação ao total da população, entram na esfera pública
com bastante força discursiva, um reflexo de sua relação com o campo
político e os meios de comunicação. É, portanto, como novos atores na
sociedade civil e política que os pentecostais contribuem para amplificar
as tensões constituintes da modernidade e dar à religião um novo lugar
(ver Machado, 2006; Birman, 2003; Duarte et al., 2009; Natividade e
Oliveira, 2013; Cunha e Lopes, 2013; Oro e Alves, 2016).
Há uma linha de investigação que vem surgindo nos últimos anos
e que tem como foco mapear analiticamente o quadro mais geral da
relação entre religião e esfera pública e tem evidenciado em suas análises as práticas discursivas dos diversos agentes e seus enfrentamentos na esfera pública (ver Montero, 2012; Giumbelli, 2014; Burity, 2015;
Campos et al., 2015; Almeida, 2017), mas ainda são os evangélicos que
assumem nessas análises papel de destaque. O presente artigo se liga
a esta linha de investigação, contudo tomando as religiões afro-indo-brasileiras como foco da análise. Nesse sentido, estaremos seguindo a trilha de autores como Van der Port (2007) e Sansi-Roca (2007),
Paula Montero (2012), Reginaldo Prandi (1992), Lúcia Guerra (2013),
458
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Paula Miranda e Roberta Boniolo (2017), autores estes que analisaram
a presença pública das religiões afro-indo-brasileiras.
O Afro-Indo-Brasileiro e a Esfera Pública
A literatura que versa sobre o campo religioso brasileiro, quando começou a se debruçar sobre as questões relativas ao secularismo
à moda brasileira, se interrogava sobre os modos, a capacidade e a
eficácia com que as religiões, de modo geral, inseriam-se na esfera
pública. Debates que partiam de uma discussão weberiana duvidavam
sobre os habitus e a eficácia com que as religiões afro-indo-brasileiras
se colocavam nessa ceara para reivindicar direitos e fazer enfrentamentos aos conflitos do campo religioso. Alguns autores acreditavam
que faltariam a esses sistemas simbólicos e práticos o habitus necessário para a ação racional imprescindível aos debates públicos e a legitimação de suas demandas.
Nesse contexto interpretativo da literatura especializada, as religiões de matriz afro-brasileira e afro-indígena acabavam sendo subestimadas em relação às suas capacidades de articulação política e a
eficácia de suas formas de presença na esfera pública, principalmente
por não seguirem, ou não conseguirem seguir, os modelos perpetrados
pelo catolicismo e por alguns dos seguimentos evangélicos. A esse respeito, Reginaldo Prandi diz que “Praticantes de uma religião da palavra,
os pentecostais, mais modernos que os afro-brasileiros, lançam mão
da mídia eletrônica e da política partidária” (PRANDI, 1992, p.89). Paula
Montero, por sua vez, afirma que “(…) os cultos de tradição afro-brasileira (…) tendem, de um modo geral, a ocupar a esfera pública em uma
posição mais marginal” (MONTERO 2012, p. 175).
Ambos os autores (MONTERO, 2012; PRANDI, 1992) argumentavam que o afro-indo-brasileiro configura-se como religiões mágicas e
portanto teriam dificuldade de engendrarem suas formas de presença
na esfera pública. Segundo Montero (2012), as igrejas cristãs, os católicos na década de 1970 e, só mais recentemente, os protestantes
estariam disseminando entre os seus agentes um habitus ajustado às
exigências de uma cultura pública.
459
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Os pesquisadores começaram, então, a perceber que as religiões
afro-indo-brasileiras vêm criando novas formas de presença na esfera pública. Paula Montero (1994) e Reginaldo Prandi (1994) já haviam
salientado que esse movimento derivaria de um processo de racionalização pelos quais essas religiões vêm passando. Em relação ao candomblé, autores como Paula Montero (1994) e Vagner Gonçalves (1992)
destacaram que sua presença nas grandes metrópoles contribuía para
torná-la mais universal e flexível às exigências do mundo moderno.
Um questionamento a ser feito é de onde vem o habitus, ajustado às exigências de uma cultura pública, no caso do afro-indo-brasileiro. Paula Montero (2012) já nos deixou algumas pistas: no ano de
1980, no Rio de Janeiro, um grupo de sacerdotes da umbanda e do
candomblé protagonizaram a Marcha Contra a Intolerância Religiosa,
organizando uma frente política em defesa da liberdade religiosa. Para
a autora, o sucesso do movimento e a visibilidade que ganhou no debate público decorreu, em parte, de alianças estabelecidas com movimentos negros, passando a conectar demandas que articulam raça
e religião. Acreditamos que esta vem se tornando uma das principais
estratégias do povo de santo.
Mattijs Van de Port (2007), foi um dos autores que estudou as dinâmicas das religiões afro-baianas na esfera pública, preocupado em
entender como, em Salvador, o candomblé passou de uma prática depreciativa e vista como um perigo à modernização da Bahia para adquirir o status de religião, ganhando uma visão valorativa e se tornando
indissociável da identidade cultural de Salvador e da Bahia, figurando
assim das mais diversas formas na esfera pública.
Van der Port (2007) deixa claro em suas análises que o caminho
encontrado pelo afro-baiano para poder se inserir na esfera pública
passa, necessariamente, por um processo de branqueamento da religião. Citando Renato Ortiz, Van der Port nos lembra que, devido à força que a ideologia do embranquecimento teve no Brasil, a cor branca
acabou passando a denotar tudo o que é puro, bom e benéfico. Nesse
sentido, ele argumenta que o foco na cor branca nas presenças públicas do candomblé é uma extensão dessa ideologia para o campo visual,
tentando com isso buscar transferir significados positivos para o culto.
Em outras palavras, as exposições do candomblé na arena pública estão
460
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
sendo mediadas por valores ocidentais, enquanto elementos ligados ao
fetichismo negro, como o sacrifício de animais e o transe de possessão,
são afastados de suas presenças públicas e cada vez mais figuram no
domínio do segredo. Van der Port (2007), assim comentou:
Para que o candomblé possa falar a um público maior na esfera
pública, ele deve demonstrar sua compatibilidade com o progresso, a modernidade e a civilização, dissociando-se das temidas dimensões da Bahia negra. O domínio de um branco imaculado na
iconografia pública do candomblé oculta práticas como o sacrifício
de animais e a possessão, encobre a miséria lamacenta dos bairros
pobres onde a maioria das casas de culto estão situadas e ajuda
o público a “esquecer” que o candomblé é uma coisa da noite, das
forças ocultas e da magia negra. É através dessa operação de clareamento que o candomblé pode se tornar o prestigiado e venerado
portador da identidade baiana, e é através desse branqueamento
que as imagens do candomblé se dispersam na sociedade baiana.
(VAN DER PORT, 2007:251-252. Tradução nossa).
Podemos agora então caracterizar a primeira forma de ir à público das religiões afro-indo-brasileiras que iremos expor aqui. O afro-brasileiro e o afro-indígena tradicionalmente, ao realizarem esse descolamento para a esfera pública, se apresentam mais como cultura do
que como religião. “Quando são considerados ‘tradições culturais’ (...)
os ritos africanos são mais facilmente incorporados às imagens de
identidade nacional do que quando são tratados como ‘ritos religiosos’”
(MONTERO 2012:176).
Essa foi por muito tempo a grande estratégia, para não dizer a
única, de reconhecimento acionada por essas religiões. Autores como
Gonçalves Fernandes (1937) já nos alertava a respeito dessa tática de
convivência do Xangô do Recife. Afoxés, Maracatus, Cocos e afins foram
e ainda são as formas de ir a público das religiões de matriz afro-brasileira e afro-indígena. É, de fato, através da arte, da música e da dança
que o afro-indo-brasileiro questiona e propõe modelos mais inclusivos
de sociedade.
Atualmente não é incomum encontrarmos grupos musicais, formados por integrantes de terreiros, que tenham entre seus objetivos
realizar o resgate, o fortalecimento e a divulgação de suas tradições
461
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
culturais e religiosas. Para tomar como exemplo, há um grupo musical
que nos últimos anos vêm ganhando grande visibilidade, o Grupo Bongar, composto por seis integrantes, todos membros do terreiro Xambá
do quilombo urbano do Portão do Gelo, localizado na cidade de Olinda –
PE. O grupo foi fundado em 2001 com o objetivo de levar aos palcos as
tradições culturais da Xambá. Como forma de trazer visibilidade ao grupo, o Bongar faz uso de mídias sociais, além de recorrer a editais públicos de incentivo à produção cultural. É dessa forma que o Grupo Bongar
consegue se inserir publicamente por meio da produção musical, dando
visibilidade às suas tradições culturais (ver Guerra, 2013).
Sansi-Roca (2007) nos dá outro importante exemplo do candomblé
cultural. Ao estudar o processo de museificação da cultura afro-brasileira
em Salvador, pensando como as imagens museais têm promovido mudanças na representação pública do candomblé, Sansi-Roca destaca, em
suas análises, como uma “elite de casas de candomblé” incorpora valores
de instituições da cultura e dos museus, ou seja, essa elite de casas de
candomblé aprendeu a se definir “(…) em termos de cultura e como instituições culturais, e a negociar o seu lugar na sociedade brasileira por
intermédio das instituições da cultura” (SANSI-ROCA, 2007, p. 96).
O afro-indo-brasileiro, então apropriado do espaço dos museus,
não o nega, mas passa a cobrar um lugar que o represente não como
crime ou doença – como era caso do Museu de Medicina Legal Estácio
de Lima3 –, mas como cultura. Ao reivindicar o museu, mais especificamente o museu de arte, como um espaço legítimo para a presença de
seus objetos, ele está acionando o que Sansi-Roca chamou de “novo
candomblé cultural” (2007, p. 110). Este seria justamente uma compreensão das religiosidades afro-brasileiras não mais como crimes ou
sintomas de doenças, mas, sim, como arte, reivindicando o seu lugar na
formação cultural brasileira.
No Museu de Medicina Legal Estácio de Lima, os objetos do candomblé – alguns comprados pelo próprio Estácio de Lima e outros, muito provavelmente, fruto de apreensões
policiais – conviviam com “objetos criminológicos, como armas homicidas e fetos humanos disformes e objetos de crime, como drogas” (Sansi-Roca, 2007:100). Tais associações
obviamente trazem consigo uma carga pejorativa ao candomblé sendo associado com o
crime ou com doenças.
3
462
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
É importante observamos que o modelo museológico vai ter um
lugar de destaque na construção dos símbolos públicos da cultura
afro-brasileira. Hoje, diversas casas de candomblé possuem seu museu
ou memorial. Talvez o mais conhecido seja o Ilê Ohun Lailai – casa das
coisas antigas, em ioruba – criado em 1982 por Mãe Stella de Oxóssi.
Em Pernambuco, temos o exemplo da Xambá que criou o Memorial
Severina Paraíso da Silva (Mãe Biu)4, em homenagem à segunda ialorixá
do terreiro, considerada por eles a grande matriarca da nação. Entre os
itens que compõem o Memorial, tem destaque a coleção de mais de
800 fotografias, registros dos anos 1930 a 1990, boa parte composta pelo arquivo pessoal de Mãe Biu. É importante destacar esse caso
pois ele mostra como a criação do memorial tinha entre suas funções
a de estabelecer um contato com a sociedade mais ampla (ver Campos
et al., 2008), como podemos ver na entrevista de Pai Ivo, atual babalorixá (sacerdote) do terreiro Xambá:
(…) uma vez Hildo Leal, que é meu historiador, aí perguntou a mim:
‘meu Pai por que você não se junta com eu, João Monteiro e Antônio
Albino pra construir o Memorial?’ (...) a partir do momento, que você
cria o Memorial, você sai da questão religiosa e entra na questão
histórica. Então você vai atrair pesquisadores, Antropólogos, Sociólogos e pessoas do povo, mesmo independente da cor, do ato
religioso ou não. (Adeíldo P. da Silva, 2010 apud OLIVEIRA; CAMPOS,
2010: 697-698).
Diferente dos evangélicos, que são treinados desde pequenos
para ir a público, à oratória e ao debate, o afro-indo-brasileiro possui um ethos e uma visão de mundo distinta, baseada no segredo, na
festa, na comida, na ética do cuidado e do acolhimento. Não queremos dizer com isso que o afro-indo-brasileiro não está indo a público
– questionando e debatendo –, mas o contrário: nos últimos anos o
Além de dados de campo, como forma de obter informações sobre o Memorial Severina Paraíso da Silva, recorremos ao blog Cultura PE, mantido pelo Governo do Estado
de Pernambuco, <http://www.cultura.pe.gov.br/canal/patrimonio/territorio-da-ancestralidade-africana-nacao-xamba-e-patrimonio-vivo-de-pernambuco/> acessado no
dia 28/03/2018, e também à própria página oficial do Memorial, mantida pelo terreiro,
<http://www.xamba.com.br/mem.html>, acessado em 28/03/2018.
4
463
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
afro-indo-brasileiro vem produzindo novas formas de presença na esfera pública para além da cultural.
A segunda forma de presença que gostaríamos de caracterizar
aqui é a judicialização das demandas e conflitos. Sobre judicialização,
Luiz Motta (2007) nos alerta sobre a polissemia do termo. Diferentes
áreas do conhecimento, do Direito à Psicologia, além de movimentos
sociais e de outros grupos da sociedade civil, fazem uso, das mais diversas formas, deste conceito. Sendo assim, o termo, conforme usado no
presente trabalho, parte da definição utilizada por Motta:
Entende-se por judicialização a expansão do direito e o fortalecimento das instituições de Justiça, e a inserção dos agentes jurídicos na esfera política e no mundo da vida, positivamente ou negativamente, de acordo com a perspectiva do intérprete (MOTTA,
2007:23).
Nesse sentido, o campo jurídico e seus diferentes atores acabam
por se tornar importantes agentes no acolhimento de demandas e de
resolução de conflitos, e dessa forma a busca pelo judiciário acaba por
se tornar uma tendência da sociedade brasileira, principalmente em se
tratando de minorias políticas. Em dezembro de 2018, tivemos um caso
emblemático desse processo que repercutiu largamente na mídia, a disputa judicial pelo corpo de Mãe Stella de Oxóssi, a quinta ialorixá de um
dos terreiros mais tradicionais de Salvador, o Ilê Axé Opô Afonjá. A forma
como se daria o sepultamento de Mãe Stella acabou por gerar um impasse entre a sua companheira, Graziela Dhomini, e os familiares (irmã
e o sobrinho) da ialorixá e integrantes do Opô Afonjá5.
Graziela Dhomini afirmava que era da vontade de Mãe Stella que
seu sepultamento fosse realizado em Nazaré, no recôncavo baiano,
cidade onde elas viviam, contudo os familiares da ialorixá – ligados
Para compreender um pouco dos acontecimentos neste caso, recorremos a algumas
matérias da mídia eletrônica, como o portal de notícias G1, <https://g1.globo.com/ba/
bahia/noticia/2018/12/28/apos-decisao-da-justica-corpo-de-mae-stella-chega-a-salvador-sepultamento-sera-no-sabado.ghtml>, acessado no dia 28/03/2018, e o Jornal
do Brasil, <https://www.jb.com.br/cultura/2018/12/968753-enterro-do-corpo-de-mae-stella-de-oxossi-vira-disputa-judicial.html>, acessado no dia 28/03/2018.
5
464
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ao terreiro – entraram com uma ação judicial para que o corpo fosse
levado para a cidade de Salvador, para que lá pudesse ser submetido aos rituais fúnebres do candomblé. Esse caso acaba por se tornar
emblemático devido à decisão proferida pela juíza Caroline Vieira, da comarca de Nazaré, dando veredito favorável à família de Mãe Stella, determinando a transferência do corpo da ialorixá para a cidade de Salvador.
Não havendo nos autos prova de manifestação da de cujus de lugar
de preferência de local sepultamento, pelo melhor interesse social,
é possível mitigar o direito de disponibilidade da de cujus, sobrepondo-se a proteção do patrimônio cultural, entendo que se deve conceder à comunidade o exercício do culto religioso, ante a supremacia
do princípio que aqui seria violado, de forma irreversível, do exercício livre da religião da qual a Iya Stella de Oxossi era líder, bem como
a proteção do patrimônio histórico e cultural do exercício da religião
de matriz africana (JUÍZO DE DIREITO PLANTONISTA DA COMARCA
DE NAZARÉ, 2018:5).
Nesta decisão, como podemos ver acima, a juíza Caroline Vieira
patrimonializa o corpo de Mãe Stella, colocando a “proteção do patrimônio histórico e cultural” acima do direito da família (neste caso, de
Graziela Dhomini, sua companheira).
Em Pernambuco, podemos observar também algumas articulações que visam conduzir a resolução de conflitos para o processo de
judicialização. Por exemplo, no dia 07 de novembro de 2018, o Coletivo
de Juristas Negras de Pernambuco (CJNPE) realizou, no Ilé Asé Orisalá
Talabi, o Primeiro Curso de Formação Jurídica para as Religiões de Matriz
Afro-Indígena. A missão do CJNPE, como podemos ver na página de uma
de suas redes sociais, é
Instrumentalizar a população negra e os povos tradicionais e de terreiro para o enfrentamento ao racismo, sexismo e outras formas de
opressão. E para desenvolvimento de ações por meio de orientação
jurídica e educação popular voltadas à melhoria das condições de
vida da população negra e das mulheres negras em especial.6
O texto pode ser acessado através do link https://www.facebook.com/pg/juristasnegraspe/about/?ref=page_internal, <acessado em 21 de março de 2018>.
6
465
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Vemos, com isso, que o afro-indo-brasileiro está recorrendo ao
processo de judicialização para reivindicar suas demandas e combater
o racismo religioso.
A terceira forma de presença do afro-indo-brasileiro descrita neste
artigo é a cultura de massa. Cada vez mais podemos encontrar meios de
divulgação em massa, que têm como objetivo dar visibilidade a alguns
aspectos das tradições afro-indo-brasileiras. Queremos destacar aqui
o uso dessa linguagem para construir uma visão positivada da mitologia dos orixás. Como exemplos dessa forma de publicização do universo
afro-brasileiro e afro-indígena, há histórias em quadrinhos, filmes, romances e livros infantis que apresentam os orixás como super-heróis.
Um exemplo que acabou tendo certa repercussão na mídia eletrônica foram os trabalhos do arquiteto e ilustrador baiano Hugo Canuto. Este foi responsável pela confecção da história em quadrinhos
“Os Contos dos Orixás”. Como o próprio autor afirma, estava entre seus
objetivos evidenciar as tradições ancestrais que moldaram sua terra de
origem – a Bahia – representando o legado das civilizações africanas,
como a ioruba, “representadas (…) pelas histórias dos Orixás, arquétipos
milenares de força, coragem, sabedoria e beleza.”7 Canuto, claramente
dotado de uma estética baseada nos famosos quadrinhos da Marvel
dos anos 1960, apresenta em suas histórias em quadrinhos os Orixás
como super-heróis.
A quarta forma de presença é o que vamos chamar de retomada da
estrutura institucional de dependência. Terence Turner, ao estudar os indígenas Kayapó, nos anos 1960, percebeu como este grupo compreende
a afirmação de “suas culturas tradicionais e a manutenção de suas instituições e ritos como parte integral de sua resistência política à perda de
suas terras, recursos e poderes de auto-determinação” (TURNER, 1991,
p. 69). É nesse sentido que os Kayapó produzem o que Turner vai chamar de “recolonização da estrutura institucional de dependência” (TURNER, 1991 p. 75), ou seja, quando os grupos Kayapó, no lugar de destruir ou lutar contra a “arquitetura de dependência”, sistematicamente,
Em sua página oficial, podemos encontrar essas referências. Está disponível em: <https://hugocanuto.com/gallery/contos-dos-orixas-tales-of-the-orishas>. Acessado em 28
de março de 2019.
7
466
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
assumem o controle dos principais focos institucionais e tecnológicos
de dependência com relação à sociedade brasileira, ao menos dentro
dos limites de sua comunidade reserva.
Como já foi possível notar, Turner faz uso de termos como “colonizando os colonizados” ou “recolonização” para descrever os fenômenos
citados acima. Por causa da implicação epistemológica e política dos
termos e das problemáticas decorrentes de seu uso, aqui nós optamos
por descrever este fenômeno não em termos de colonização nem fazendo uso de teorias pós-coloniais, preferindo então descrevê-lo como
uma retomada dos meios institucionais de dependência.
Precisamos levar em conta que o povo de santo vem ocupando cargos em instituições estratégicas, bem como formando pesquisadores no
âmbito das ciências humanas. Fatos como esses são essenciais para que
o afro-indo-brasileiro consiga adquirir um habitus mais compatível com
as exigências do mundo moderno e dos debates na esfera pública.
Hildo Leal é um historiador e membro do terreiro da Xambá, tendo
sido sua ajuda imprescindível, em diversos momentos, para seu terreiro e quilombo. Leal trabalha no Arquivo Público de Pernambuco, e esta
posição foi de fundamental importância durante o processo de tombamento do terreiro, pois permitiu o acesso a documentos valiosos. Hildo
Leal também é responsável pelo Memorial Severina Paraíso da Silva, e
não podemos desconsiderar que sua formação como historiador o auxilia
a compreender e desenvolver este padrão museológico, que é uma das
formas de relação que o terreiro possui com a sociedade mais ampla.
A quinta e última forma de ir a público do afro-indo-brasileiro que
iremos mencionar neste trabalho é a patrimonialização. João Leal (2018),
ao estudar a Festa do Divino, no tambor de mina, percebe que essa festa
assume um importante papel no processo de conexão do terreiro com
a sociedade mais ampla; é a festa que mais abre o tambor de mina para
fora de seu círculo habitual de frequentadores “conectando-os com redes sociais mais alargadas e projetando-os na esfera pública” (LEAL,
2018, p. 108). A Festa do Divino, ao ser compreendida também como
cultura, acaba sendo submetida aos regimes de patrimonialização. Nas
palavras do autor: “A linguagem do patrimônio tornou-se importante para negociar as condições de inserção e visibilidade das religiões
afro-brasileiras na esfera pública” (LEAL, 2018, p. 108).
467
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Para tentar ilustrar o caso maranhense, Leal faz um contraponto
com o contexto dos terreiros da Bahia.
De fato, em contraste com a Bahia, em São Luís é menor a importância dos processos de reafricanização dos terreiros. A maioria dos
terreiros – mesmo aqueles (...) em que o discurso africanista é mais
enfático –, mantém também um vínculo importante com o catolicismo (...) Faz portanto algum sentido que seja sobre as festas do
Divino que recaia parte importante das expectativas de representação dos terreiros no regime patrimonial (LEAL, 2018, p.109).
Nessa diferenciação, o autor, ao analisar o caso maranhense, compreende que o elemento acionado naquele contexto está relacionado à
Festa do Divino – entendido mais em sua dimensão católica –, e não
necessariamente à tradição dos terreiros maranhenses. Não obstante
as interpretações do autor, nos parece que é importante observar que
a diferença maior entre os terreiros da Bahia e do Maranhão se dá pelo
fato de recorrerem a distintas tradições; enquanto o primeiro, de modo
geral, está vinculado a processos de reafricanização e um movimento
contrassincrético, no segundo se recorre a uma tradição sincrética, onde
o elemento católico se faz mais claramente acionado.
Conclusão
Com este artigo, discutimos as especificidades das formas de presença pública das religiões afro-indo-brasileiras. Destacando que, na literatura especializada sobre esta temática, acabou sendo produzido um
ceticismo em relação à capacidade dessas religiões em conseguir produzir um habitus ajustado às exigências de uma cultura pública, sendo
assim questionada suas capacidades de articulação política e a eficácia
de suas presenças na esfera pública.
Na contramão desse tipo de diagnóstico analítico, tentamos demonstrar que a forma cultural tem se mostrado historicamente mais
comum, contudo destacamos que o afro-indo-brasileiro já não se reduz a ela em sua forma de inserção pública. Muito embora possamos
468
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
questionar a eficácia dessas religiões em reproduzir modelos usados
pelo catolicismo e por certos seguimentos evangélicos, é necessário
destacar sua grande capacidade criativa e versatilidade em articular novos modelos de presença pública.
Destacamos aqui cinco formas de presença – a cultural, a judicialização, a cultura de massa, a retomada da estrutura institucional de dependência e a patrimonialização – e compreendemos que elas não são
excludentes, podendo, sim, coexistirem no tempo e no espaço e muitas
vezes sendo articuladas de forma a se tornarem complementares. Acreditamos que tenha ficado claro que nossa proposta era perceber que os
modos de presença pública, de alguma forma, se diferenciavam do tradicional modelo cultural. Contudo, não é difícil perceber que a compreensão dessas religiões como patrimônio cultural ainda está permeando de
forma transversal todos os outros modelos de presença pública.
469
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALMEIDA, Ronaldo. A onda quebrada:
evangélicos e conservadorismos.
Campinas: Cadernos Pagu, 2017.
tramitação de projetos de lei sobre
temas morais controversos. Rio de
Janeiro: Editora Garamond, 2009.
BIRMAN, Patrícia (org.). Religião e
Espaço Público. São Paulo: Attar
Editorial/CNPq/PRONEX, 2003.
FERNANDES, Gonçalves. Xangôs do
Nordeste. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1937.
BURITY, Joanildo A. Minoritização,
glocalização e política: para uma
pequena teoria da translocalização
religiosa. Cadernos de Estudos
Sociais, Recife, v.30, n.2, p. 31-73,
jul/dez, 2015.
GERMANO, Pedro. Constituição da
Pessoa Ogã no Xangô/Candomblé
do Recife: O Modelo Nagô do Ilê Obá
Aganjú Okoloyá. Recife: Dissertação
de Mestrado em Antropologia, UFPE,
2016.
CAMPOS, Roberta; GUSMAO, Eduardo
e MAURICIO JUNIOR, Cleonardo. A
disputa pela laicidade: Uma análise
das interações discursivas entre Jean
Wyllys e Silas Malafaia. Religião &
Sociedade, vol.35, n.2, pp.165-188,
2015.
GIUMBELLI, Emerson. Símbolos
Religiosos em Controvérsias. São
Paulo: TERCEIRO NOME, 2014.
CASANOVA, José. Public Religions in
the modern World. Chicago: Chicago
University Press, 1994.
CONNOLLY, William.“Some theeses on
Secularism”. Cultural Anthropology,
v. 26, issue 4: 648–656, 2011.
CUNHA, Christina; LOPES, Paulo.
Religião e Política: uma análise
da atuação dos parlamentares
evangélicos sobre direitos das
mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio
de Janeiro: Fund. Heinrich Boll e ISER,
2013.
DUARTE, Luiz et al (orgs). valores
Religiosos e Legislação no Brasil. A
470
GUERRA, L. Xangô rezado baixo.
Xambá tocando alto: A reprodução da
tradição religiosa através da música.
Recife: Editora Universitária UFPE,
2013.
IBGE. Censo Demográfico 2010:
características gerais da população,
religião e pessoas com deficiência.
Censo demográfico, Rio de Janeiro,
2010.
LEAL, João. Religião como cultura? As
festas do divino, o tambor de mina e
o regime patrimonial. Revista Pós C.
S., v.15, n. 30, 2018.
MACHADO, Maria. Política e Religião:
A participação dos evangélicos nas
eleições. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 2006.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
MIRANDA, Paula; BONIOLO, Roberta.
“Em público, é preciso de unir”:
conflitos, demandas e estratégias
políticas entre religiosos de matriz
afro-brasileira na cidade do Rio de
Janeiro. Religião e Sociedade. 37(2), p.
86-119, 2017.
MONTERO, Paula. Magia,
racionalidade e sujeitos políticos.
Revista Brasileira de C. S. v.9 n.26
São Paulo out, 1994.
______. Controvérsias religiosas
e esfera pública; repensando as
religiões como discurso. Religião e
Sociedade, Rio de Janeiro, 32(1): 167183, 2012.
MOTTA, Luiz. Acesso à justiça,
cidadania e judicialização do Brasil.
Achegas.net – Revista de Ciência
Política, nº 36, 2007.
MOTTA, Roberto. Tempo e milênio
nas religiões afro-brasileiras.
XXIv Encontro Anual da ANPOCS.
Petrópolis, 2000.
______. “Filhos-de-santo e Filhos
de Comte: Crítica, Dominação e
Ressignificação da Religião AfroBrasileira pela Ciência Social”. In:
Mauro Passos (org.), Diálogos
Cruzados: Religião, História e
Construção Social, Belo Horizonte,
Argumentum, p.111-131, 2010.
NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA,
Leandro. “Threatening sexualities:
religion and homophobia(s) in
evangelical discourses”. In: Centro
Latino Americano em Sexualidade e
471
Direitos Humanos (CLASDH) (org.).
Sexuality, Culture and Politics – A
South American Reader. Rio de
Janeiro: CLASDH, 2013.
OLIVEIRA, Jéssica; CAMPOS, Zuleica.
Tradições e Resistência no Terreiro
Xambá: O resgate de uma herança.
IV Colóquio de História: Abordagens
Interdisciplinares Sobre História de
Sexualidade, Recife – PE, 2010.
ORO, Ari; ALVES, D. Renovação
Carismática Católica e
Pentecostalismo Evangélico:
convergências e divergências.
Debates do NER, vol. 30, Porto
Alegre, pp.219-245, 2016.
PRANDI, Reginaldo. Pombagira
dos candomblés e umbandas e as
faces inconfessas do Brasil. Revista
Brasileira de C. S. Vol. 9. n.º 26, São
Paulo, 1994.
SANSI-ROCA, Roger. De armas do
fetichismo a patrimônio cultural:
as transformações do valor
museográfico do Candomblé em
Salvador da Bahia no Século XX. In:
ABREU, Regina; CHAGAS et. al. (Orgs.).
museus, Coleções e Patrimônios:
narrativas polifônicas. Rio de Janeiro:
Garamond, MinC/IPHAN/DEMU,
2007.
SENNETT, Richard. O Declínio do
Homem Público: as tiranias da
intimidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.
SILVA, Vagner. O candomblé na
cidade. Tradição e renovação.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Dissertação de mestrado junto ao
Departamento de Antropologia-USP,
São Paulo, 1992.
TURNER, Terence. Da Cosmologia à
História: Resistência, adaptação e
consciência social entre os Kayapó.
Cadernos de Campo, v.1 n.1. p.68-85,
1991.
JUÍZO DE DIREITO PLANTONISTA
DA COMARCA DE NAZARÉ. (2018),
Ação de obrigação de fazer cumulada
com tutela de urgência para
transferência do cadáver de maria
stella de azevedo santos (mãe Stella
de Oxossí) da cidade de Nazaré das
farinhas para o ilê axé opô afonjá
na cidade de salvador Mandado de
intimação. Relator VIEIRA, Caroline.
Decisão Judicial.
Van de Port, M. Bahia white: the
dispersion of candomblé imagery in
the public sphere of Bahia. Material
Religion, 3(2), 242–274, 2007.
[ Volta ao Sumário ]
472
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
o Budismo em
siddHaRtHa, de
HeRmann Hesse
João Florindo Batista Segundo
Carlos André macêdo Cavalcanti (Orientador)
Como referenciar este capítulo:
SEGUNDO, João Florindo Batista; CAVALCANTI, Carlos André Macêdo. O budismo em Siddhartha, de Hermann Hesse. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg
de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião,
Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades.
João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 473-495.
João Florindo Batista Segundo1
Carlos André Macêdo Cavalcanti (Orientador)2
Resumo
O presente trabalho visa analisar a filosofia budista sob a ótica do
livro Siddhartha, publicado em 1922 pelo aclamado escritor alemão e
Nobel em Literatura Hermann Hesse, que é a estória de um personagem
fictício que se alterna entre a vida material e a vida religiosa dos tipos
brâmane, asceta, budista e mística, na busca pela Iluminação. Inspirado
em uma viagem pessoal à Índia, o livro é fruto também dos estudos do
autor sobre o Oriente e de suas leituras de filósofos como Nietzsche e
Schopenhauer, também fascinados pelo budismo. Em síntese, a obra
prega o ceticismo em relação a qualquer conjunto de doutrinas religiosas, a importância da jornada íntima e pessoal pela verdade (que é incomunicável e intransmissível) e afirma a possibilidade do aprendizado a
partir dos erros, temas já decantados pelo budismo, porém relidos para
um público outrora ainda desconhecedor do distante Oriente e apresentados com a beleza e a potência singulares que somente a palavra escrita em prosa e verso detém.
Palavras-chave: Siddhartha; Hermann Hesse; budismo
Doutorando em Ciências das Religiões (PPG-CR / UFPB), Mestre em Ciências
das Religiões (PPG-CR/ UFPB), membro do Grupo de Pesquisa Videlicet – UFPB.
E-mail: jf.segundo@gmail.com
2
Professor Doutor Associado da UFPB desde 1991, onde atua no ensino e na pesquisa
nos níveis de Graduação e Pós-Graduação nas áreas de Ciências e História das Religiões.
É líder dos Grupos Videlicet Religiões, de Estudos em Intolerância, Diversidade e Imaginário (CNPq) e Officium, de História da Inquisição, das Religiões e do Sagrado (CNPq). Tem
Mestrado (1990) e Doutorado (2001) em História pela UFPE com Dissertação e Tese sobre História das Religiões/ História da Inquisição. Cursa Pós-Doutorado em Ciências da
Religião na PUC-GO. Foi membro fundador do Comitê Nacional da Diversidade Religiosa
da SDH/Presidência da República. Atuou como titular na coordenação nacional do Fórum
Nacional Permanente do Ensino Religioso – Fonaper (2011 a 2014) e é membro das seguintes ONGs: Soter, ABHR, ISERTH e Anpuh. Está lotado no Departamento de Ciências
das Religiões da UFPB. E-mail: carlosandrecavalcanti@gmail.com
1
474
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Abstract
This paper analyzes the Buddhist philosophy from the perspective of the book Siddhartha, published in 1922 by Hermann Hesse, an
acclaimed German writer and Nobel Literature. The book tells the story
of a fictional character who alternates between material life and religious life of the types Brahmin, ascetic, Buddhist and mystic, in the
quest for Enlightenment. Inspired by a personal trip to India, the book
is also the result of the author’s studies on the East and his readings of
philosophers such as Nietzsche and Schopenhauer, also fascinated by
Buddhism. In short, the book preaches the skepticism about any set of
religious doctrines, the importance of intimate and personal journey for
the truth (which is incommunicable, non-transferable) and affirms the
possibility of learning from mistakes, issues already decanted by Buddhism, But re-read to an audience once still unaware of the Far East and
presented with the beauty and singular power that only the word written in prose and verse holds.
Keywords: Siddhartha; Hermann Hesse; Buddhism
Introdução
Há séculos, algumas informações desencontradas sobre a cultura oriental chegaram à Europa, devido, talvez, em primeiro lugar, às
viagens do veneziano Marco Polo (1254-1324). Foi por meio de Rusticiano, seu amanuense, que se soube de estranhos prodígios que o
navegador alegou ter presenciado entre os monges budistas e outros
mestres espirituais.
No século XIX, após a paixão pelo Egito – advinda das explorações
napoleônicas àquele país e à descoberta, por Champollion (1790-1832),
do método de tradução dos hieróglifos –, o interesse pelo Oriente em
geral e pelo budismo em particular atingiu em cheio o Ocidente, se
transformando em verdadeira febre. Na Alemanha, no início do século
XX, já estavam disponíveis traduções de várias obras filosóficas e religiosas orientais, bem como certa divulgação da doutrina budista. Nesta
475
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
seara, é obrigatório recordar as contribuições de Friedrich Max Müller
(1823-1900) no campo da religião comparada – em sua busca pela
identificação dos temas e características comuns às diversas religiões
–, com seus estudos sobre o Avesta, a tradução e publicação do Rig-Veda e a publicação da coleção The sacred books of the East (51 volumes!).
Em verdade, o pensamento budista já encontrara eco nos escritos de
Friedrich Nietzsche (1844-1900), no conceito do “eu” de Hume (17111776) e também na concepção da condição humana de Schopenhauer
(1788-1860), mas foi apenas no século XX que se verificou sua influência direta sobre o pensamento do Ocidente.
Foi nessa época que o escritor e poeta alemão Hermann Hesse
(1877-1962) escreveu Siddhartha1, mais precisamente entre 1919 e
1922, quando residia em Montagnola, Suíça (DINIZ, 2003). Em Hermann Hesse: Life and Art, Joseph Mileck (1978) afirma que Siddhartha
é a plena acepção do “artesanato consciente”, onde Hesse sincronizou
de modo complementar os elementos da jornada interior pelo corpo,
mente e alma.
O autor não foi necessariamente mais um que a espaços de distância se deixou levar pelas influências da época, pois seu conhecimento do Oriente era advindo do fato de – sob o desejo de se libertar da
escravidão da individualidade – haver viajado à Índia, em 1911, bem
como porque seu avô materno, o famoso sanscritista Hermann Gundert
(1814-1893), e seu pai, Johannes Hesse (1847-1916), foram missionários pietistas naquele país, razão pela qual desde cedo teve contato com
a visão de mundo protestante cristã ladeada pela hinduísta e a budista
(CARANDELL, 1984).
A obra não é um relato de tal viagem, mas, sim, uma síntese do
que Hesse vivenciou na Índia. Sua fonte imediata de inspiração foi naturalmente a vida de Sidarta Gautama (c. 563 a.C. - 483 a.C.), o príncipe
dos Sakyas, que abandonou os confortos materiais e se tornou Buda, “o
Iluminado”. Para melhor entender o livro, pertinente conhecer um pouco
da vida de Gautama, sua doutrina e os frutos dela advindos.
1
Optamos pela grafia original do título em alemão.
476
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
1 Pequena síntese do budismo
Sidarta Gautama nasceu em Kapilavastu, Nepal, no nordeste da Índia, quando o bramanismo era a fé dominante; esta religião evoluíra do
vedismo, antiga crença baseada nos textos sagrados chamados Vedas.
O príncipe, com seu raciocínio, foi o primeiro a desafiar tal sistema, e embora não tenha atuado como profeta, nem como messias, tornou-se alvo
de reverência de seus seguidores, que viriam a ser chamados budistas.
O divisor de águas entre o budismo e outras religiões é o fato de
que Sidarta não chegou às suas conclusões por revelação divina, mas
como fruto de profunda reflexão, o que o caracteriza também como uma
filosofia, se não o for mais que uma religião em si. Assim, ele afirmava que as verdades que encontrara estão disponíveis para qualquer um
que se dedique a usar da razão.
Sidarta optou por não se aventurar pela floresta das investigações
metafísicas – que no Ocidente, era alvo de preocupação dos gregos de
então –, pois considerava tais questionamentos irrespondíveis. O foco
do buscador era os problemas práticos do objetivo da vida e de como
bem viver. O primeiro passo na busca de respostas foi encontrar um
método teórico-prático de autoaperfeiçoamento, a saber, o caminho do
meio, entre a autoindulgência e automortificação. Tendo passado sete
anos como asceta, o Buda compreendeu que as privações e mortificações não traziam nenhuma satisfação interior, nem proporcionavam conhecimento transcendente algum.
Assim sendo, o passo seguinte foi eliminar os apegos, causa de
frustrações; porém, ele foi além e detectou também a necessidade de
superar o vínculo que temos com aquilo que nos faz desejar as coisas
às quais nos apegamos, a saber, o “eu”. Sidarta, então, demonstrou que
o “eu” não existe, porque tudo que é perceptível no universo é impermanente, insatisfatório e sem substância, uma vez que estaria sujeito
a um processo de morte e de renascimento na continuidade, mas sem
identidade. Logo, o que há é o “não eu”, pois não há qualquer “eu”, qualquer entidade permanente (satto) passando de uma encarnação a outra
e só o entendimento desta verdade é que pode nos livrar do sofrimento.
A noção de uma entidade, então, é puramente convencional, de modo
477
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que o que perece e ressurge é apenas uma individualidade (nāma-rūpa),
uma consciência discernente (viññāna) e herdeira dos feitos da outra
(karma; “ação-reação”; encadeamento de causa e efeito que faz com
que o indivíduo continue na roda de reencarnações).
Feito isto, o Buda (“o desperto”; como viria a ser chamado) codificou seu caminho do sofrimento à felicidade nas Quatro Nobres Verdades, a saber:
1. A verdade do sofrimento (dukkha) – o sofrimento é parte inerente da existência humana e nos acompanha por toda a vida;
2. A verdade da origem do sofrimento (samudaya) – o desejo
é a causa do sofrimento, pois ansiamos por prazeres sensórios, bens materiais e poder;
3. A verdade do fim do sofrimento (nirodha) – o desapego
pode por fim ao sofrimento; e
4. A verdade do caminho para o fim do sofrimento (magga) –
pela prática do Caminho Óctuplo, pode-se eliminar o desejo
e superar o ego (DHAMMASAMI, 2013).
Quanto ao Caminho Óctuplo, um verdadeiro código de ética que
Gautama foi o primeiro a praticar em busca da felicidade, este é constituído de:
1. Compreensão correta (samyag di): compreensão de acordo
com as Quatro Nobres Verdades;
2. Pensamento correto (samyag sakalpa): desenvolvimento de
qualidades nobres, a exemplo do altruísmo;
3. Fala correta (samyag vāc): usar o dom da palavra sempre de
forma construtiva e harmoniosa;
4. Ação correta (samyag karman): não matar, não se apossar do
que não lhe pertence e abster-se de práticas sexuais impróprias;
5. meio de vida correto (samyag ājīvana): um modo de vida
pessoal e profissional que não cause mal a outros seres;
6. Esforço correto (samyag vyāyāma): abandonar estados de
ânimo prejudiciais;
7. atenção correta (samyag smti): desenvolver a plena consciência de tudo o que faz; e
478
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
8.
Concentração correta (samyag samādhi): ter estabilidade e
foco mental (SILVA; HOMENKO, 1982).
Segundo os textos budistas, este processo de despertar (iluminação) se deu em três grandes etapas, após as quais, o Buda percorreu o
Vale do Ganges, ensinando as doutrinas que lhe foram inspiradas, rompendo com a restrição do sistema de castas, que limitava aos brâmanes
o direito de transmitir ensinamentos espirituais (SCHENKEL, 2013). Por
causa disso, ele ficou conhecido por diversos nomes: Sakyamuni (sábio
que veio da casta dos kshatriyas), Bhagavad (o que tem felicidade), Tathâgata (o que se tornou perfeito) e Jina (o que obteve a vitória).
Deve-se frisar ainda que outros mestres budistas e hinduístas
também receberam o epíteto de Buda, que Sidarta Gautama é considerado pelos hinduístas o nono avatar (descida de um ser divino à Terra) de
Vishnu e que os budistas o consideram o sétimo Buda (antecedido por
Vipashyin, Shikhin, Vishvabhû, Krakuchhanda, Kanakamuni e Kashyapa)
(SOKA GAKKAI INTERNATIONAL, 2016).
Após sua morte, conta-se que um concílio de monges foi realizado
próximo a Râjagriha, com o intuito de registrar por escritos as doutrinas
que ele ensinara a seus discípulos e as regras básicas que deviam reger
a vida monástica (a Sangha). Com o passar dos anos, surgiram correntes
distintas da transmissão do ensinamento do Buda histórico, sendo as
três principais:
1.
Hînayanâ (“pequeno veículo”) – expressão intelectual do budismo baseada no estudo exaustivo do Tripitaka;
2.
Mahâyanâ (“grande veículo”) – expressão emocional do budismo, que tem por base a compaixão; é a majoritária em
todo o mundo; e
3.
Vajrâyanâ (chamada de “tantrismo”) – busca atingir o nirvana
(estado daquele que se libertou da ilusão, do desejo e do sofrimento) pelo despertar das energias mais sutis do ser, via
estimulação dos chacras (vórtices de “energia” que “giram”
no interior do corpo humano) e da kundalini (forma de “energia divina” que se acredita estar localizada na base da coluna
vertebral) (SILVA; HOMENKO, 1982).
É ponto comum entre todas estas correntes a prática de mantras
(“controle da mente”; poema ou sílaba recitada ou cantada repetidamente),
479
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de mudrás (“selo”; gestos feitos com as mãos para penetrar certos setores do inconsciente) e de mandalas (“círculo”; elaboração de representação geométrica, plástica e visual da relação entre o homem e o Absoluto
e do retorno daquele à unidade).
Quanto ao Tripitaka (“as três corbelhas”), trata-se do cânone budista, composto por Vinayapitaka (livros de disciplina), Suttapitaka (livros
da doutrina) e Abhidhammapitaka (livros psicológicos) (GANERI, 2003).
Da profusão de correntes surgiu também a distinção entre Arahant
e Bodhisattva: enquanto o primeiro atinge a Iluminação e resolve permanecer no plano espiritual, o segundo decide se reencarnar para guiar a
humanidade no caminho ao nirvana.
Sabiamente, o Buda histórico recusou-se a responder se existe um
“eu”, pois se concordasse com tal afirmação ele favoreceria o “eternalismo” e se discordasse, incidiria no erro do “aniquilacionismo”. Igualmente,
ele afirmou não poder aplicar qualquer proposição ao destino de um Buda
no além (após deixar o corpo físico), uma vez que o Buda é exterior a todo
modo, a todo porvir, pois se recolheu em si mesmo; ou seja, sobre um
Arahant não se pode afirmar nem que se torna, nem que não se torna, ou
ainda que nem se torna, nem não se torna, ou que se torna ao mesmo
tempo que não se torna. Em síntese, pode-se dizer que pelo budismo,
na trajetória de Ätman (supremo espírito que reside em cada indivíduo)
busca-se rejeitar Maya (o mundo das aparências) para atingir Brahma (o
Todo) pela dissolução no Akasa (éter). (COOMARASWAMY, 1952)
Ademais, o budismo conta com estimados 535 milhões de adeptos, o que representaria entre 8% e 10% da população mundial. (WORLD
POPULATION REVIEW, 2020)
2 A trama de Siddhartha e seus personagens
Siddhartha está dividido em doze capítulos distribuídos em três grupos de três capítulos, com cada tríade acompanhada por um interlúdio.
Nessa estrutura, o rio que o protagonista atravessa duas vezes – para
em seguida mudar completamente de vida – é que divide o texto em três.
Igualmente, ao longo do texto é possível encontrar sequências de três
480
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
palavras, de três frases, de três cláusulas e outras alusões à tríade que
nos relembra a Tripitaka budista (textos sagrados compilados após a
morte do Buda).
De fato, a obra é prenhe de conceitos caros ao hinduísmo e ao
budismo, tais como o karma, o nirvana e a roda de samsâra (ciclo infinito
de vidas e mortes sucessivas de um suposto “eu”).
Devemos logo frisar que este livro não narra as vicissitudes experimentadas pelo Buda histórico, que aqui aparece como mero coadjuvante. O protagonista é um outro Siddhartha, que também nasce nobre.
Para evitar confundir os dois, então, a partir de agora, trataremos o príncipe dos Sakyas por Gautama e o personagem de Hesse, por Siddhartha.
Os três primeiros capítulos descrevem os anos iniciais do protagonista (O filho do brâmane, Com os samanas e Gotama). Enquanto Gautama foi preparado por seu pai para ser rei, Siddhartha – filho de brâmane – é educado para este mister, dentro do rígido sistema hindu de
castas. Ao conhecer profundamente as doutrinas religiosas que regem
a política e a cultura de seu povo, o personagem de Hesse abandona
a casa paterna para vagar pelo mundo, em busca da experiência viva,
para ele, a única maneira de se alcançar a realização espiritual, ou seja,
a experiência da identidade do indivíduo com o Absoluto, a Iluminação:
encerra-se a primeira tríade com o capítulo de interlúdio por nome de O
despertar. Nesta jornada em busca da causa última de todas as coisas,
ele é acompanhado por seu amigo Govinda.
Quanto à presença da tríade, Siddhartha decide tornar-se samana
– ascetas que viviam nas montanhas e vales – quando se depara com
três destes e comunica sua decisão, na sequência, a Govinda, ao pai e à
mãe. O pai faz três perguntas ao protagonista, seguida de três declarações, concluindo o diálogo por tolerar a partida do filho.
Tal qual Gautama, Siddhartha se junta aos samanas, renuncia aos
confortos do mundo material e se dedica a austeridades, tais como sacrifícios corporais (privação de sono, de alimento, de deitar-se etc.) e
longas meditações.
Um único objetivo surgia diante de Sidarta; o objetivo de tornar-se
vazio, vazio de sede, vazio de desejos, vazio de sonhos, vazio de
alegria e de pesar. Exterminar-se distanciando-se de si mesmo;
481
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
cessar de ser um eu; encontrar sossego, após ter evacuado o coração; abrir-se ao milagre, com o pensamento desindividualizado
– eis o que era o seu propósito. (HESSE, 2002, p. 28)
O Buda histórico reconheceu a inutilidade das práticas ascéticas e
tornou-se um iluminado pela prática do caminho do meio; igualmente,
Siddhartha também não se satisfaz com tais práticas, porém ainda não
descobre como alcançar a Iluminação; juntamente com Govinda, ele viaja em busca de Gautama... e o encontra.
[...] Oxalá te lembres também de outra frase que me ouviste proferir; a saber, que me tornei desconfiado com relação a ensinamentos
e aprendizagens, que me cansei deles e que minha fé em palavras
pronunciadas por mestres diminuiu muito. Mas, apesar disso, meu
querido [Govinda], vamo-nos [procurar o Buda]! (HESSE, 2002, p. 38)
No diálogo que se segue entre Siddhartha e Gautama, embora
aquele reconheça que o segundo tenha alcançado a Iluminação, afirma
que os ensinamentos deste não são completos porque a experiência da
realização espiritual seria algo tão pessoal que não se pode traduzir por
palavras e seus efeitos podem ser diferentes em cada pessoa. Já Govinda, se satisfaz plenamente com o que encontra na Shanga – a comunidade religiosa que se formou em torno do Gautama – e decide ali ficar
e viver como monge. Quanto a Siddhartha, este aponta a Gautama uma
lacuna em seus ensinamentos:
Mas, nessa doutrina [do Buda] há um único lugar em que tal unidade
e lógica das coisas estejam interrompidas. Por uma minúscula lacuna penetra na unidade desse mundo um elemento estranho, novo,
que antes não existiu, que não pode ser mostrado nem comprovado. Refiro-me à sua tese acerca da possibilidade de superarmos o
mundo e alcançarmos a redenção. Ora, essa pequeníssima lacuna,
essa brechazinha, basta para destruir e liquidar toda a unidade e
eternidade da lei cósmica. (HESSE, 2002, p. 49)
E ainda chega ao entendimento de que todas as doutrinas em algum momento tornam-se dispensáveis:
482
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
[...] E... eis o meu raciocínio, ó Augusto... ninguém chega à redenção mediante a doutrina! A pessoa alguma, ó Venerável, poderás
comunicar e revelar por meio de palavras ou ensinamentos o que
se deu contigo na hora da tua iluminação! [...] A numerosas pessoas indica o caminho para uma vida honesta, afastada do Mal. Mas
há uma única coisa que não se acha nessa doutrina, por mais clara
e venerada que ela seja. Não nos é dado saber o segredo daquela
experiência que teve o próprio Augusto, só ele entre centenas de
milhares de homens. São esses os pensamentos e as percepções
que me vieram, quando ouvi a doutrina. Por isso, hei de prosseguir
na minha peregrinação, não para ir à procura de outra doutrina
melhor, já que sei muito bem que não há nenhuma, senão para
separar-me de quaisquer doutrinas e mestres, a fim de que possa alcançar sozinho o meu destino ou então morrer. (HESSE, 2002,
p. 50-51; grifo nosso)
Nos três capítulos seguintes (Kamala, Entre os homens tolos e Sansara [sic]), Sidarta percorre os descaminhos dos prazeres sensórios. Se
a realização espiritual não advém da doutrina, o personagem de Hesse
deduz que é alcançável pela experiência, razão pela qual retorna à cidade, onde encontra a bela cortesã Kamala – que lhe ensina a arte de amar
– e o rico comerciante Kamaswami – que o ensina a obter riquezas;
Siddhartha tem agora prazeres sensórios, fortuna e poder. Novamente
a tríade quando o futuro patrão do nosso herói pergunta-lhe o que sabe
fazer e ele afirma saber pensar, esperar e jejuar. Assim, Siddartha transita da busca pela realização espiritual ao polo oposto da total imersão
no mundo material. “O mundo apanhara-o nas suas malhas, o prazer, a
cobiça, a inércia e, finalmente, também aquele vício que sempre se lhe
afigurara o mais estúpido de todos: a avareza”. (HESSE, 2002, p. 95)
E assim se passam 20 anos até ele compreender que tais deleites
também não o levaram à compreensão de Atman (a alma universal).
“Avante! Avante! Tu és eleito!” Essa voz íntima, ele ouvira-a no momento em que abandonara o lar paterno e escolhera a vida de samana e, novamente, ao separar-se dos samanas, a fim de dirigir-se
ao Homem Sublime, e ainda quando dele se apartara, para tomar
rumos incertos. Quanto tempo não decorrera, sem que a voz secreta ressoasse em seu íntimo, sem que ele galgasse altura alguma?
Como se tornara plano e desinteressante o caminho que trilhava,
483
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
fazia muitos anos, sem perseguir nenhum objetivo grandioso, sem
sede nem exaltação, saturado e, todavia, insaciável! Durante todos
esses anos, inconscientemente se esforçara, ansiara por ser uma
criatura igual às demais, igual àqueles todos e, apesar disso, levara
uma vida muito mais triste, muito mais pobre do que eles, que tinham
propósitos e preocupações diferentes. [...] Era esse um desígnio
para o qual se precisasse viver? Não, nunca! Esse jogo chamava-se
Sansara [sic], um brinquedo para criança, agradável talvez para quem
o usasse uma vez, duas, dez vezes. Mas, para que recomeçá-lo
sempre e sempre?
Neste instante, Sidarta deu-se conta de que o jogo terminara, de
que jamais poderia voltar a fazer parte dele. Um calafrio perpassou em seu corpo. Sentiu que algo acabava de morrer na sua alma.
(HESSE, 2002, p. 100-101)
A segunda tríade é seguida pelo interlúdio À beira do rio, que é o
corolário das experiências passadas e preparação do personagem – e
de nós, leitores – para uma nova etapa da história. Siddhartha se vai
mais uma vez; desta feita, deixa para trás também um filho que estava por nascer sem que ele soubesse. Reencontra o barqueiro Vasudeva, com quem aprende a linguagem do rio no qual navegam; quando o
encontrou pela primeira vez, a caminho da cidade, tomou o ancião por
um néscio, pois ao dizer que não tinha como pagar a travessia do rio já
realizada, o sábio respondeu que ele pagaria noutra oportunidade, pois
tudo que vai, volta.
A tríade final de capítulos (O balseiro, O filho e Om) desenvolve uma
síntese decorrente das tensões entre o sensual e o espiritual. É junto ao
córrego que o buscador alcança a perfeita compreensão do rio da vida,
aprende a ajudar a todos com os quais se encontra em razão do mister
de barqueiro e conquista a fusão com o Absoluto; instrui-se a sentir e a
viver cada momento atentamente (em atenção plena).
Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria.
Podemos achá-la; podemos vivê-la; podemos consentir em que ela
nos norteie; podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é
dado pronunciá-la e ensiná-la. Esse fato, já o vislumbrei às vezes
na minha juventude. Foi ele que me afastou dos meus mestres. [...]
Ora de unilateral é tudo quanto possamos apanhar pelo pensamento e exprimir pela palavra. [...] Sempre que o augusto Gotama [sic]
484
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
nas suas aulas nos falava do mundo, era preciso que o subdividisse
em Sansara [sic] e Nirvana, em ilusão e verdade, em sofrimento e
redenção. [...] Mas o próprio mundo, o ser que nos rodeia e existe no
nosso íntimo, não é nunca unilateral. (HESSE, 2002, p. 165)
Anos depois, reencontra Kamala à beira da morte, a qual lhe apresenta o filho que conceberam. A criança fica sob os cuidados de Siddhartha, mas algum tempo depois abandona este, tal qual o jovem brâmane
outrora largara o próprio pai. Percebe então que a história de seu pai e
a sua se repetem. “[...] Unicamente o meu consenso, a minha vontade, a minha compreensão carinhosa são necessários para que todas as
coisas sejam boas, a ponto de somente me trazerem vantagens, sem
nunca me prejudicarem. [...]” (HESSE, 2002, p. 167)
Govinda, por seu turno, embora tenha acompanhado Gautama por
toda a vida, não alcançou a Iluminação e ao reencontrar o protagonista da
trama, anos mais tarde, a despeito disso, consegue reconhecer em Siddhartha o sorriso dos “seres perfeitos”. Ao amigo ele afirma ainda que:
Todas as coisas alteram-se, logo que lhes pronunciamos o nome.
Então se tornam levemente falsas e ridículas... [...] Aprovo inteiramente e com o maior prazer o fato de que aquilo que para uma
pessoa é um tesouro e uma grande sabedoria representa para os
demais homens rematada tolice. (HESSE, 2002, p. 168)
E afirma que o mais importante a se fazer na vida é amar o mundo,
pois:
Analisar o mundo, explicá-lo, menosprezá-lo, talvez caiba aos grandes pensadores. Mas a mim me interessa exclusivamente que eu
seja capaz de amar o mundo, de não sentir desprezo por ele, de não
odiar nem a ele nem a mim, de contemplar a ele, a mim, a todas as
criaturas com amor, admiração e reverência. (HESSE, 2002, p. 170)
Siddhartha é arrematado pelo capítulo final (Govinda), no qual o
personagem expõe a totalidade de seu pensamento com base nas experiências acumuladas ao longo do percurso do rio da vida. Embora
iluminado, Siddhartha não decide criar um corpo de doutrina, nem sair
485
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
pregando suas experiências por aí: ele se contenta em ser um humilde
barqueiro, ganhando o necessário apenas para a subsistência e sujeito
aos sabores e dissabores de uma vida simples. É o rio que ensina a Siddhartha que o tempo é irreal e que a divisão é uma ilusão.
3 Siddhartha à luz do budismo
Realizada a digressão sobre a história da religião budista e sobre a
trama de Siddhartha de Hesse, é chegado o momento de averiguarmos
o que é a filosofia budista e a pertinência ou não da crítica a esta contida
neste livro de Hermann Hesse.
De logo, lembremos as pertinentes palavras de Benton (1997,
p. 13), para quem:
O desafio para todos nós, que somos estudantes de tradições
enraizadas em culturas em que não nascemos, é traçar um curso
academicamente verdadeiro e sólido, que ao mesmo tempo nos
permita “entrar” nessa nova cultura com consciência, sensibilidade, e respeito. Entrando com essas sensibilidades, nosso objetivo
é emergir de nosso estudo verdadeiramente fundamentados em
uma compreensão da nova cultura, bem como em uma compreensão mais profunda da nossa própria.2
Em Siddhartha, nossa entrada se dá singrando o rio: constata-se
que Hesse empregou magistralmente o curso d’água não apenas como
um divisor entre as experiências da mente e do espírito e entre as
experiências do corpo e dos sentidos, mas também como um catalisador
entre dois estilos de vida a princípio antagônicos, com as experiências
da alma situando-se às plácidas margens que medeiam a vida (o caminho do meio).
The challenge for all of us who are students of traditions rooted in cultures we were
not born into is to chart a course that is academically truthful and sound, which at the
same time allows us to “enter” that new culture with awareness, sensitivity, and respect.
Entering with these sensibilities, our goal is to emerge from our study truly grounded in
an understanding of the new culture, as well as with a deeper understanding of our own.
Benton (1997, p. 13; tradução nossa)
2
486
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
De acordo com Gouveia (2016, p. 27):
A filosofia budista, muito embora se comporte de forma similar [à
filosofia ocidental] e se dedique a questões semelhantes – particularmente no que concerne à percepção dos fenômenos e de nós
mesmos enquanto pessoas, a natureza do real e da realidade, a
epistemologia, a linguagem etc. – tem um caráter eminentemente
pragmático, i. e. não tem apenas um fim em si mesma, mas serve
como um trampolim para a libertação; e, neste contexto, libertação
significa a “remoção” de toda ignorância, que é a causa fundamental
de todo o sofrimento. Um filósofo budista paradigmático se propõe
a expor um sistema de pensamento que visa orientar os seus leitores – de uma maneira bastante prática e direta, ainda que intelectualmente bastante elaborada – sobre como se engajar na investigação de processos mentais e fenomenológicos e, partindo dessa
imersão, transformar a própria mente.
Constata-se que a filosofia budista desenvolve-se em um padrão
de pensamento e de explicação diferente do que remonta aos gregos a
partir do século VII antes de Cristo. E assim, explicar a filosofia budista
é a doutrina do Buda em si, pois nesta religião o aperfeiçoamento do
estudante se dá pela prática contínua dos postulados e uma das vias
de aprendizado é a reflexão constante. Tanto é assim, que há escolas
budistas místicas, mas também há as totalistas, fenomenológicas, niilistas, realistas, dentre outras. Logo, o budismo é também especulativo
em essência e, consequentemente, filosófico.
Entrementes, até pouco tempo atrás, pesquisadores ocidentais
reputavam à Grécia a primazia da filosofia, sob a alegação de que se encontravam “[...] diante de um fenômeno tão novo que não somente não
encontra uma correspondência precisa junto a esses povos [não helênicos], mas não há tampouco nada que lhe seja estreita e especificamente
análogo” (REALE; ANTISERI, 2012, p. 11). Visão bairrista que, preocupada em demonstrar que a filosofia grega não deriva do Oriente, descura
da capacidade dos orientais de especularem e assim elaborarem sua
própria filosofia, ainda que com outras terminologia e metodologia.
Bem diferente a perspectiva contemporânea, pois, ainda segundo
Gouveia (2016, p. 43): “Todavia, particularmente nos últimos 40 anos, a
forma de pensar sobre a filosofia asiática e budista vem se transformando;
487
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
[...]”. A rigor, grande parte do pensamento oriental não tem a mesma
afinidade que a filosofia ocidental pela mera dimensão intelectual do
estudo da realidade dos fenômenos, bem como não busca explicar o que
é o Ser. E em Alan Watts e sua interpretação do Zen, o budismo ganhará
ares de psicoterapia.
Observe-se então que o livro Siddhartha é desprovido de pretensões especulativas, nem se destina a criticar acintosamente a religião
budista; a bem da verdade, o autor nutria profunda admiração pelo
Oriente e seus temas, o que se pode constatar em títulos posteriores
dele, a exemplo de Viagem ao país da manhã, de 1932 – onde personagens de várias obras anteriores, inclusive Vasudeva, ressurgem numa
narrativa que perpassa os limites do tempo e do espaço (HESSE, 2011)
– e o monumental O jogo das contas de vidro, de 1943 –, uma síntese da
história do espírito humano, permeada pelos conhecimentos do autor
sobre música, arte, educação, e também da cultura chinesa; este livro
encerra com o capítulo A encarnação hindu, no qual o personagem Dasa
(um não-buscador; suposta encarnação anterior do protagonista Joseph
Knecht) vivenciará as desventuras da vida material antes de se tornar
discípulo de um reputado iogue. (HESSE, 2003)
O homem médio pode captar o sentido de Siddhartha sem necessidade de profundas abstrações e se identificar com a jornada de despertar
que leva o jovem futuro brâmane a se tornar um maduro barqueiro. Constata-se que o caminho de Siddhartha é pontilhado por tentativas e erros
até o encontro consigo, tal qual o autor percorreu o mundo em sua busca
espiritual, cansado dos credos ocidentais. Senão, vejamos a prevalência
da cultura indiana na formação do pensamento e do caráter de Hesse, a
despeito de uma admiração, ainda que à distância, do cristianismo:
Em comparação com esse cristianismo tão estreito, com os seus
versos um pouco adocicados, com os seus pastores e os seus sermões geralmente tão entediantes, o mundo da religião e da poesia
indiana certamente era muito mais atraente. Ali nada me perseguia
de perto, ali não dominava a sensação daqueles modestos púlpitos
pintados de cinza nem as pietistas escolas dominicais: a minha fantasia podia andar solta, eu podia acolher em mim sem resistências
as primeiras mensagens que me vinham do mundo indiano e cujos
efeitos durariam por toda a vida. [...]
488
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Em anos distantes, esses pensamentos me induziam a olhar com
uma certa inveja e reverência à Igreja Católica Romana, e o meu
anseio de protestante à forma consolidada, à tradição, à epifania do
espírito me ajuda ainda hoje a manter viva a minha veneração por
essa suprema entidade cultural do Ocidente.
No entanto, mesmo essa admirável Igreja Católica me parece digna de veneração apenas a uma certa distância: assim que eu me
aproximo, ela também, como qualquer criação do homem, exala
um intenso odor de sangue e de violência, de política e de baixeza.
(HESSE, 2012, s. p.)
Não esqueçamos que os pais de Hesse o destinaram à carreira eclesiástica, razão pela qual foi educado em quatro seminários, donde, ao
contrário, saiu para exercer os ofícios de aprendiz de relojoeiro e auxiliar
de livraria. A reação à vida religiosa o levaria a abrir caminho pela poesia e
literatura. No princípio, sua produção foi taxada de “escapista”, uma fuga
dos problemas da realidade, mas Hesse refutou tais afirmações com seu
engajamento contra o nacionalismo ufanista e o militarismo alemães, o
que lhe valeu o autoexílio na neutra Suíça (CARANDELL, 1984).
Essa aversão ao cristianismo institucionalizado estará presente no
pensamento de Nietzsche, que considera tal vertente religiosa a doença
do homem moderno; a influência do filósofo se sentirá na obra de Hesse,
particularmente no período entre 1919 e 1927 (PUNSLY, 2012, p. 18).
Mas não pense que o budismo passará imune a críticas do filósofo
alemão, apesar da admiração que nutria por Buda: ambas as profissões
de fé lhe são decadentes, só que a oriental muito menos, uma vez que
atua como uma higienização mental, a livrar o homem do ressentimento; porém o budismo ocuparia um patamar evolutivo que lhe garantia
o lugar de última religião antes da abolição de todas pelo Übermensch,
o “além-do-homem”, uma nova possibilidade de configuração humana
diante do tipo vigente, que precisa ser superado (NIETZSCHE, 2007).
“O erro do budismo, para Nietzsche, seria negar a vida, identificar a felicidade com o nada, a aniquilação ou nadificação do nibbana.” (ALVES,
2012, p. 241). Uma visão parcial do budismo, dado que o niilismo não é
pedra de toque de todas as correntes.
E ainda no campo da filosofia, Schopenhauer teve profunda influência sobre Hesse e também o instigou aos temas orientais, vez que
489
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
aquele pensador também foi posto nesta via de estudos, como registrou em uma carta datada de 1851:
Em 1813, eu me preparei para a pós-graduação [Ph.D.] em Berlim,
mas, deslocado pela guerra, me vi no outono na Turíngia. […] Posteriormente, passei o inverno em Weimar, onde desfrutei de uma estreita associação com Goethe […]. Ao mesmo tempo, o orientalista
Friedrich Majer me apresentou, sem que o pedisse, a antiguidade
indiana, e isso teve uma influência essencial sobre mim. (SCHOPENHAUER apud APP, 2006, p. 40-41)3
De novembro de 1813 a maio de 1814, Schopenhauer sentou-se
aos pés de Majer em Weimar, o qual lhe apresentou o hinduísmo e o
budismo.
Nos seus verdes anos, Hesse tinha de Schopenhauer uma leitura
não tão profunda nem favorável: se em 1895, Schopenhauer era-lhe
muito pessimista, em 1900, não era bastante autêntico. Apenas quatro
anos depois, quando surgiram suas preocupações com as religiões indianas, foi que o interesse em Schopenhauer foi aceso, mas só chegaria
ao clímax pelo decréscimo gradual da influência de Nietzsche sobre ele
após a redação de Demian, de 1919. (MILECK, 1978, p. 25-28).
Refletindo o movimento psicanalítico e o novo orientalismo em
voga nas primeiras décadas do século XX, alegam críticos que Siddhartha
responde ao desencanto com os valores morais ocidentais (forjados sobre o substrato do cristianismo), bem como ao pessimismo (tão caro a
Schopenhauer), o que levaria os jovens daquela porção do orbe à busca
das obras de Hesse, em dois momentos bem pronunciados. O primeiro
deles foi ao término da Primeira Guerra Mundial, quando a ruína dos
países europeus contrastava com a exaltação da cultura oriental. E o segundo momento, quando do surgimento do movimento hippie, frente ao
desencanto com a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e os “filhotes”
desta, a exemplo da Guerra do Vietnã.
In 1813 I prepared myself for [Ph.D.] promotion in Berlin, but displaced by the war I found
myself in autumn in Thuringia. […] Subsequently I spent the winter in Weimar where I enjoyed close association with Goethe […]. At the same time, the orientalist Friedrich Majer
introduced me, without solicitation, to Indian antiquity, and this had an essential influence
on me. (SCHOPENHAUER apud APP, 2006, p. 40-41; tradução nossa).
3
490
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
No período entre guerras, o interesse ocidental pelo Budismo decresceu, voltando a florescer numa nova onda orientalista por volta
das décadas de 50 e 60, pela via da contracultura americana: Jack
Kerouak, Alan Watts, Timothy Leary são os “gurus” por excelência
do “revival” budista. Nesta onda, o Sidarta de Hesse volta a ser editado, ganha diversas traduções e torna-se um best seller mundial.
(SCHENKEL, 2013, p. 17).
A princípio, quando lançado nos Estados Unidos, em 1951, este
livro era impopular (HSU, 2016). Seus trabalhos se tornariam influentes
por lá somente na década de 1960, marcando um passo importante na
apresentação da filosofia oriental ao mundo ocidental e, não intencionalmente, Hesse ganhou aura de guru, para o que contribuiu seu exemplo de aplicação na vida pessoal dos princípios transmitidos em seus
livros, aliado à conquista do prêmio Nobel de Literatura em 1946 e ao
reconhecimento por personalidades como Thomas Mann, Stefan Zweig
e Hugo Ball (CARANDELL, 1984).
Com os temas recorrentes de desencanto social e religião oriental,
o texto cativou a juventude, que naturalmente tende a protestar contra
o peso da tradição; na escrita de Hesse, o despertar passa pelo percorrer o caminho; e através das vivências pessoais e de outros que encontra no trajeto o indivíduo chega à certeza de que os males advêm de más
escolhas de um modo que não se iguala à transmissão das noções de
“certo” e de “errado” de um mestre transmitir a seu discípulo. A respeito
da fuga em busca de novas realidades, no contexto de Siddhartha, escreveu Malthaner (apud PUNSLY, 2012, p. 30):
A auto-educação é o tema principal da maioria dos romances de
Hesse, especialmente dos livros de sua juventude. A auto-educação
tem sido há séculos um tema muito caro à literatura alemã e homens como Lutero, Goethe, Kant e muitos outros escritores e filósofos alemães foram os inspiradores da juventude alemã em seu
anseio por independência.4
Self-education is the main theme of most the novels of Hesse, especially of the books
of his youth. Self-education has been for centuries a very favorite theme in German
literature and men like Luther, Goethe, Kant, and many other leading German writers
and philosophers were the inspirers of German youth in their longing for independence.
(MALTHANER apud PUNSLY, 2012, p. 30; tradução nossa)
4
491
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Só no próprio interior o buscador encontrará essa resposta. Isto,
de fato, não contrasta com um dos pontos da doutrina budista, vez que
em Anguttara Nikaya III, 65, temos as seguintes e esclarecedoras palavras atribuídas ao Bhagavad:
Dessa forma, Kalamas, nesse caso não se deixem levar pelos relatos,
pelas tradições, pelos rumores, por aquilo que está nas escrituras,
pela razão, pela inferência, pela analogia, pela competência (ou confiabilidade) de alguém, por respeito por alguém, ou pelo pensamento,
“Este contemplativo é o nosso mestre.” Quando vocês souberem por
vocês mesmos que, “Essas qualidades são inábeis; essas qualidades
são culpáveis; essas qualidades são passíveis de crítica pelos sábios;
essas qualidades quando postas em prática conduzem ao mal e ao
sofrimento” – então vocês devem abandoná-las. (BUDA, 2018).
Com sua compreensão intuitiva da sabedoria, Siddhartha cria seu
próprio método em busca da iluminação, individualista – que não se
deve confundir com egoísta – e incorporador de questões pós-modernas sobre a transparência da linguagem e a subjetividade. Mas Hesse
vai mais além, pois pela boca do ex-brâmane aprende-se que a sabedoria não é totalmente comunicável e transmissível: é preciso descobri-la
no interior de si, após constatar a alternância entre a felicidade e o sofrimento que a instabilidade da vida apresenta a todos nós. Assim, o
modo como Siddhartha atinge o nirvana se desvia da prática rigorosa
das doutrinas budistas, não tendo correlação com os passos explicados
nos textos budistas tradicionais, as denominadas seis perfeições:
1) Dana paramita – generosidade e doação;
2) Shila paramita – conduta apropriada, virtude;
3) Kshanti paramita – paciência; suportar dificuldades sem raiva ou irritação;
4) Virya paramita – esforço, energia, perseverança;
5) Dhyana paramita – algo maior que “concentração” (específico) e menor que “meditação” (geral); e
6) Prajna paramita – sabedoria, compreensão, insight.
A busca presente em Siddhartha é uma busca universal, secular e
que atinge a indivíduos do Oriente e do Ocidente, vez que:
492
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Imagina-se demasiadamente que a noção de um fim “além do bem
e do mal” é de origem moderna. Ao contrário, ela se apresenta não
somente nos textos hindus mas também islâmicos e cristãos, faz
parte da diferenciação normal entre a vida ativa e a contemplativa:
a virtude é essencial para a primeira, dispositiva somente para a segunda, cuja perfeição é precisamente o fim último do homem, isto
é, a contemplação beatífica da Verdade. É uma idéia que é repetida
muitas vezes nos textos budistas: aquilo de que o Homem Perfeito
não é contaminado, não é somente o mal ou o vício, é também o
bem e a virtude. Muitos textos o dizem em termos próprios: “não
contaminado, seja pela virtude, seja pelo vício o eu rejeitado, pois
nenhuma ação é doravante necessária aqui” (Sn. 790); “aquele que
fugiu dos laços seja da virtude, seja do vício, que é sem mágoas, ao
qual nenhuma poeira adere, aquele que é puro, é a ele que chamo
um verdadeiro brâmane” (Dh. 412), isto é, um Arahant. (COOMARASWAMY, 1952, p. 57-58).
Tecidas estas considerações sobre as lições que a obra sob comento apresenta, agora, ainda que sucintamente, analisemos os personagens do romance:
1) Siddhartha representa todos os indivíduos divididos entre a
sabedoria e a ignorância: embora sedento por conhecimento, ainda se encanta momentaneamente com as honras e as
posses materiais.
2) Kamala (em sânscrito, “a desejada”) e 3) Kamaswami (“o
mestre dos desejos”), fiando-nos em Platão (2009), estão
sob o domínio da parte concupiscente da alma humana, voltada para o prazer nos objetos sensíveis e que sente segurança apenas quando conta com o acúmulo de bens materiais e de poder.
4) O barqueiro vasudeva (mesmo nome do pai de Krishna: Suprema Personalidade de Deus, de acordo com os vedas os
Vedas) é o ancião, o homem sábio, que conhece a causa primeira e o Absoluto. Sabe escutar sem emitir juízos de valor:
as imagens dos Budas com grandes orelhas bem demonstram quanto a “arte” de ouvir é valorizada no Oriente.
5) E Govinda (“a parte minguante da lua”), chamado por Siddhartha de “a sombra”, representa aqueles que buscam
493
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
caminhos já percorridos por outros, que se deixam levar por
terceiros (LUIS, 2015).
Todos os personagens desta novela descrevem estados de ânimo
vivenciados por Hesse e, obviamente, por qualquer um que ingressar na
jornada da autodescoberta e na busca pela compreensão do sentido da
vida. Para tanto, fundamental vencer a ignorância, pois é pela verdade
que o “eu” poderá ser domado, pois somente “a verdade vos libertará!”
(Jo 8, 32).
Sobre suas crenças mais íntimas, o autor afirmou em carta:
Não creio em nossa ciência, em nossa política, nem em nossa maneira de pensar, e não compartilho de nenhum dos ideais de nosso
tempo, porém não careço de fé. Creio nas leis milenares da humanidade, e creio que sobreviverão a toda confusão de nossa época
atual… Creio que, apesar de seu aparente absurdo, a vida tem um
sentido. (HESSE apud LUIS, 2015, s. p.).
E ainda:
Não me foi concedido ser protestante nem católico, discípulo de Bach
nem de Wagner. Par mim a vida e a História só adquirem pleno sentido e valor na multiplicidade com que Deus se manifesta inesgotavelmente em novas formas. E, assim sendo, eu amo e venero, muitas
vezes com grande irritação de meus amigos, não só Buda e Jesus em
seu templo, mas posso também amar e tentar compreender Spinoza
ao lado de Kant, Görres ao lado de Nietzsche. E isto [...] porque sinto
alegria na multiplicidade da unidade [...] (HESSE, 1975, p. 76)
Enquanto alguns se entregam a doutrinas religiosas e as abraçam
confortavelmente, ainda que não as compreendam amiúde (como Govinda), outros preferem a experiência prática, sem intermediários... e
esta foi e ainda será a causa de vários conflitos. Logo, Siddhartha e seu
amigo são os arquétipos universais dos dois tipos de buscadores das
verdades últimas: um adota o meio como fim, enquanto o outro, não.
Esse equívoco de Govinda, segundo o cânone budista, é repudiado
pelo próprio Buda, que, teria afirmado, conforme Majjhima-Nikaya I (apud
SILVA; HOMENKO, 1982, p. 30):
494
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Ó bhikkhus, esse ensinamento, que compreendeis de uma maneira
tão pura e clara, se vos apegais a ele e o guardais como a um tesouro, então não compreendeis que o ensinamento é semelhante
a uma jangada que é feita para um determinado fim, e não para ser
continuamente carregada às costas. [...] A doutrina se assemelha
à jangada; deve ser considerada não como um fim, mas como um
meio; da mesma forma, a jangada é um meio para atravessar, mas
não para se apegar.
E uma rápida passagem pelos anais da cultura religiosa ocidental
nos permite descobrir que:
Temos uma analogia perfeita na frase de Santo Agostinho: “que ele
não mais se sirva da Lei como meio de conseguir quando conseguiu” (De spir. et. Lit. 16) e aquela de Mestre Eckhart: “Atingida
a outra [margem] não preciso mais da nau”; o mesmo autor diz
também: “Olhai a alma divorciada do que quer que seja... não deixando mais traço nem de vício nem de virtude”. (COOMARASWAMY, 1952, p. 58).
Surpreendentemente, ao que parece, ao longo da história, em
alguns momentos, ocorreu uma leitura equivocada da mensagem do
Buda, qual seja, de livre interpretação de sua doutrina, pois a rigor, este,
nas horas finais de sua vida, segundo Digha Nikaya 16, Mahaparinibbana
Sutta, “O Grande Discurso do Parinibbana”, teria dito:
“Queridos amigos, meu corpo físico não estará aqui amanhã, mas
meu corpo de ensinamentos (Dharmakaya) sempre estará com vocês. Considerem-no como o instrutor que nunca vai embora. Sejam
como ilhas em si mesmos, e se refugiem no Darma. Usem o Darma
como uma lanterna, como a sua ilha.” (apud HANH, 2001, p. 186).
Não se percebe aí qualquer sinal de engessamento dogmático
da atividade especulativa. Infelizmente, a história universal é prenhe
de exemplos de deturpação do legado dos grandes líderes religiosos.
Constata-se ab origine, no budismo, um ceticismo quando à capacidade
das doutrinas apreenderem e transmitirem a natureza última do universo, o que foi potencializado com as profundas reflexões de Acharya
495
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Nagarjuna (c. 150 - 250 d.C.), para quem a Iluminação não se dá pelo nirvana (cessação de fenômenos), mas sim pela percepção da inexistência
de uma realidade transcendental para onde a mente do indivíduo possa
se transferir do mundo dos fenômenos, pelo que, através da lógica, demoliu a viabilidade de uma metafísica racional. Para o fundador da escola Madhyamaka, estar desperto é compreender que não há dualidade e
não-dualidade, perceber o aqui e agora e a vacuidade deste campo onde
nossas experiências individuais se desenvolvem (FERRARO, 2015).
Descortina-se em Siddhartha um pessimismo metafísico, vez que
os frutos do conhecimento não são necessariamente doces. Pela prática da razão, percebe-se que a vida é insatisfatória e não pode ser melhorada, e descortina-se como metodicamente pode-se vivenciá-la de
modo a sofrer menos, pois:
Além disso, no final de Siddhartha, quando Govinda encontra a Iluminação na face de Siddhartha, constata-se que O Perfeito era Siddhartha o tempo todo, e Govinda nunca teria percebido isso sem
que Siddhartha houvesse se desviado do caminho em direção à
decadência.
Talvez se possa argumentar que, segundo Schopenhauer, Narciso,
Goldmund5, Sidarta e Govinda “reconhecem que o fruto da vida é
experiência, e não felicidade”. (PUNSLY, 2012, p. 33)6
Em Siddhartha, a maneira de bem viver apresentada por Hesse é
semelhante à de Schopenhauer, qual seja, praticar a autoeducação pela
experiência do mundo, todavia, diverge do filósofo por entender o vaguear pelos prazeres sensuais como parte válida do aprendizado. Logo,
pelo acima exposto, percebe-se que a visão de Hesse para a solução das
5
Narciso e Goldmund são os personagens principais de livro homônimo escrito por Hermann Hesse, em 1930. Enquanto Narciso permanece isolado como professor no convento
Mariabronn, na Alemanha, em uma vida de oração e meditação, Goldmund, seu discípulo
favorito, decide sair e percorrer os caminhos do mundo.
6
Additionally, at the end of Siddhartha, when Govinda finds Enlightment in the face of
the Siddhartha, it turns out the Perfect One was Siddhartha all along, and Govinda would
never have accomplished this without Siddhartha straying from the path into decadence.
Perhaps it can be argued, along the lines of Schopenhauer, Narcissus, Goldmund, Siddhartha and Govinda “recognize that the fruit of life is experience, and not happiness.”
(PUNSLY, 2012, p. 33; tradução nossa)
496
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
inquietações existenciais humanas não é inovadora, porém, trata-se da
visitação a pensadores do Ocidente e do Oriente e da releitura de suas
ideias para um público jovem e sedento por entender e bem usufruir o
que a vida tem a lhes oferecer. Hesse observou em Viagem ao país da
manhã – uma síntese destes dois mundos e testemunho de sua ideia
de uma unidade na filosofia oriental – que a Índia não é apenas uma
localização geográfica, mas “o lar da juventude da alma”.
É pertinente questionar se com o desaparecimento da geração hippie no século XXI, uma obra como Siddhartha ainda é relevante quanto
à sua aplicabilidade prática. Em resposta, Ingo Cornils (2009) defende a
conexão do pensamento de Hesse com a “mudança constante” típica
da modernidade. Por outro lado, há quem o desaprove sob a afirmação
de que nesse texto ocorre uma infiltração pelo pensamento oriental da
compreensão ocidental da realidade (PASLICK, 1973), chegando mesmo
ao ponto de se alegar que Siddhartha é um falso retrato do budismo permeado pelo individualismo ocidental. (BENTON, 1997)
Não cremos que Siddhartha se encaixe no individualismo ocidental,
tão tipicamente hedonista e estéril de vida espiritual, mas que na verdade é um místico, alguém que crê, pratica e estuda as leis que unem
o homem à natureza (neste caso, o rio), numa experiência direta que
põe termo à separação entre o que ama e o que é amado. Através das
técnicas místicas, a vida se dá em estado de duração (o rio que está em
todo lugar ao mesmo tempo). Graças à intuição mística adquirida em
sua jornada, que complementaram a intuição filosófica, o protagonista
passou a agir em perfeita harmonia com a vontade divina.
Considerações finais
Verifica-se que a interpretação do budismo realizada por Hesse
em Siddhartha não é evasionista; alcançar a Iluminação não é certeza
de felicidade no restrito entendimento cotidiano; é ir além; é alcançar a
consciência de que a vida é insatisfatória e que a razão nos leva a vivê-la de maneira mais harmoniosa enquanto durarem os nossos dias, que
breve ou não, serão atingidos pela doença e pela morte.
497
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O que vai diferir em relação ao budismo histórico é que em Hesse, esse e qualquer outro credo, ainda que sejam caminhos válidos, em
determinado momento da vida podem se tornar dispensáveis, dado que
não é fundamental professar uma religião para gozar dos benefícios da
espiritualidade, “uma busca pessoal sobre questões existenciais como
o sentido da vida, relações com a transcendência ou sagrado se estar,
necessariamente, vinculada a uma orientação religiosa.” (FÁTIMA SILVA,
2016, p. 80). Inegável que as doutrinas de re-ligação podem tornar seus
adeptos felizes, mas são caminhos que transmitem uma parte de realidade, pois esta não é plenamente transmissível por qualquer sistema
religioso ou líder espiritual. Ainda assim, para ele: “A ideia de que somos
todos apenas partes distintas da mesma eterna Unidade não implica
que haja um só caminho, nem um caminho errado.” (HESSE, 1975, p. 76)
O budismo de Hesse também não é hedonista (na acepção errônea
e usual do termo), uma vez que a vivência dos prazeres sensórios não é
estimulada (embora não seja dogmaticamente vedada), mas vista como
uma etapa válida na busca por uma vida plena, pois, em seu entender,
só percorrendo os caminhos é que se pode encontrar a melhor maneira
de se viver. É assim que o herói dessa história descobre como banir todos os seus pensamentos anteriores e liberta-se do conflito entre a carne e o espírito.
Este percurso é individual e resultante de uma experiência até
certo ponto incomunicável e única, daí a incompletude que é doutrinar
alguém, pois nem sempre o modo de viver que torna um sujeito pleno é
satisfatório para outro. Então, para Hesse, a prática é superior à teoria
e à mera abstração mental em torno da doutrina; pôr-se na estrada do
mundo e ter a si mesmo por guia último é essencial para encontrar o
sentido da vida.
Em termos budistas, o primeiro dever do homem é realizar sua
própria salvação a partir de si mesmo. Em Siddhartha, essa verdade tão
buscada não é o logos ocidental, mas a fluidez da mente, que resulta
de nossas vivências frente à aparente dualidade certo/errado, bem/mal,
norma/transgressão que habita em cada um de nós, em proporções diferentes, ao longo da jornada.
Reflexo da busca de Hesse pela perfeição no mundo do individualismo, Siddhartha apresentou o caminho da felicidade para quem busca
498
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
desesperadamente a cessação do sofrimento. Esta obra é uma versão
romanceada do Übermensch nietzscheano, pois sua trajetória é de demolição de ídolos, autocompreensão pela vontade de poder, criação de
novos valores e estabelecimento e aceitação de novas configurações,
livre das correntes das concepções anteriores. Ao contrário da lógica
dos tempos atuais – em que a cada dia surge uma nova lei para regular
condutas que as normas sociais outrora conseguiam vedar –, a educação hesseana se dá pela não proibição.
Fica patente que o maior perigo da ignorância é crer que somos
“isto” ou “aquilo” e que um “eu” possa sobreviver ao longo do tempo e
de sucessivas vidas. Siddhartha nos desvela que tudo o que vem a ser é
mortal e que ao por termo ao porvir, não mais estaremos submetidos
ao movimento, estando, como o rio, pleno, o mesmo em todo lugar, vez
que o estado de Buda é aberto a todos. Em Siddhartha, seu protagonista
homônimo, como vários outros peregrinos, vem fornecer instrumentos
de “salvação” para as inquietas almas do Ocidente: para o barqueiro é
possível a libertação neste mundo e desde agora de todos os sofrimentos mentais aos quais o homem está sujeito.
499
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALVES, Derley Menezes. Crítica
budista de Nietzsche. In: Religare 9
(2), dez. 2012. Disponível em: http://
periodicos.ufpb.br/index.php/religare/
article/viewFile/15880/9091. Acesso
em: 14 dez. 2015.
APP, Urs. Schopenhauer’s Initial
encounter with Indian thought. In:
Schopenhauer Jahrbuch. n. 87. 2006.
p. 35-76. Disponível em: https://
philpapers.org/rec/APPSIE. Acesso
em: 12 jan. 2018.
BENTON, Cathy.Teaching Indian
Buddhism with Hermann Hesse’s
Siddhartha — or
Not? In: Education About Asia. 2(1).
1997. p. 9-13. Disponível em: http://
aas2.asian-studies.org/EAA/EAAArchives/2/1/83.pdf. Acesso em: 03
jan. 2020.
BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São
Paulo: Editora Paulus, 2015.
BUDA. Anguttara Nikaya. Disponível
em: http://www.acessoaoinsight.net/
sutta/anguttara_nikaya.php. Acesso
em: 12 jan. 2018.
CARANDELL, José María. Hermann
Hesse. Barcelona: Barcanova, 1984.
COOMARASWAMY, Ananda C. O
pensamento vivo de Buda. Biblioteca
do pensamento vivo (coleção). São
Paulo: Martins Fontes, 1952.
CORNILS, Ingo. From Outsider to
Global Player: Hermann Hesse in the
500
Twentieth Century. In: A Companion
to the Works of Hermann Hesse.
Ingo Cornils (ed.). New York: Camden
House, 2009. p. 1-16.
DHAMMASAMI, Khammai. As quatro
nobres verdades. In: Joias Raras do
ensinamento buddhista. Ricardo
Sasaki (org.) Belo Horizonte: Edições
Nalanda, 2013.
DINIZ, Ronaldo Navarro. Sidarta. In:
AmORC Cultural. 1º trimestre 2003.
Curitiba: AMORC-GLP, 2003. p. 36-41.
FÁTIMA SILVA, Giselle de. A
espiritualidade na prática do
profissional de saúde: desafios e
oportunidades. In: Espiritualidade
e saúde: teoria e pesquisa. AQUINO,
Thiago A. Avellar et al (org.). Curitiba:
Editora CRV, 2016. p. 73-92.
FERRARO, Giuseppe. Finalidade
antimetafísica da filosofia de
Nagarjuna. Disponível em: http://
periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/co/
article/view/23543. Acesso em: 20
dez. 2015.
GANERI, Anita. The Tipitaka and
Other Buddhist Texts. Londres: Evans
Brothers Ltd, 2003.
GOUVEIA, Ana Paula Martins.
Introdução à filosofia budista. São
Paulo: Paulus, 2016.
HANH, Thich Nhat. A essência dos
ensinamentos de Buda. Rio de
Janeiro: Rocco, 2001.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
HESSE, Hermann. Para ler e guardar.
Rio de Janeiro: Record,1975.
HESSE, Hermann. Sidarta. Rio de
Janeiro: Record, 2002.
HESSE, Hermann. viagem ao país da
manhã. Isola Del Liri: Cavalo de Ferro,
2011.
HESSE, Hermann. O jogo das contas
de vidro. Rio de Janeiro: Record,
2003.
HESSE, Hermann. Por que eu fugi do
cristianismo. Publicado em 08 set.
2012. Disponível em: http://www.ihu.
unisinos.br/noticias/513314-porque-eu-fugi-do-cristianismo-artigode-hermann-hesse. Acesso em: 25
dez. 2015.
HSU, Hui-Fen. Siddhartha: An
Encounter of Buddhism and
Postmodernism. In: Chang Gung
Journal of Humanities and Social
Sciences. 9:1. abr. 2016. p. 151-175.
Disponível em: http://cgjhsc.cgu.
edu.tw/data_files/CGJ9-1-006.pdf.
Acesso em: 02 jan. 2020.
LUIS, Pilar. mitos e simbolismo
em Sidarta de Hermann Hesse.
Disponível em: http://revistaesfinge.
com.br/mitos-e-simbolismo-emsidarta-de-hermann-hesse/. Acesso
em: 12 dez. 2015.
MILECK, Joseph. Hermann Hesse:
Life and Art. Berkeley e Los Angeles:
University of California Press, 1978.
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo.
Tradução: Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
501
PASLICK, Robert. H. (1973). Dialectic
and Non-Attachment: The Structure
of Hermann Hesse’s Siddhartha. In:
Symposium: A Quarterly Journal in
modern Literatures. 27 (1), 1973.
p. 64-75. Disponível em: https://
www.tandfonline.com/doi/abs/10
.1080/00397709.1973.10733193
#.VF83L9gcT5o. Acesso em: 03 jan.
2020.
PLATÃO. O banquete. Tradução de
Donaldo Schuler. Porto Alegre: L&PM,
2009.
PUNSLY, Kathryn. The Influence of
Nietzsche and Schopenhauer on
Hermann Hesse. 23 abr. 2012. For
senior thesis. Claremont McKenna
College. Disponível em: https://
scholarship.claremont.edu/cgi/
viewcontent.cgi?referer=https://www.
google.com/&httpsredir=1&article=
1353&context=cmc_theses. Acesso
em: 17 dez. 2015.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario.
História da filosofia: Antiguidade e
Idade Média. v. 1. 11. ed. São Paulo:
Paulus, 2012.
SOKA GAKKAI INTERNATIONAL.
Seven Buddhas of the past.
Dicionário eletrônico. Disponível em:
http://www.sgilibrary.org/search_
dict.php?id=1954. Acesso em: 04 jan.
2016.
SCHENKEL, Klara Maria. O Buddha
e o extremo oriental das Américas:
um estudo etnográfico das práticas
budistas no estado da Paraíba.
Dissertação apresentada junto
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ao Programa de Pós-graduação
em Ciências das Religiões da
Universidade Federal da Paraíba
como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre. João
Pessoa: 2013.
SILVA, Georges da; HOMENKO,
Rita. Budismo: psicologia do
autoconhecimento (o caminho da
correta compreensão). São Paulo:
Pensamento, 1982.
WORLD POPULATION REVIEW.
Buddhist Countries 2020. Disponível
em: http://worldpopulationreview.
com/countries/buddhist-countries/.
Acesso em: 12 jan. 2020.
[ Volta ao Sumário ]
502
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
o neopaganismo
ContempoRâneo poR
meio da análise de
eventos paRalelos
do enContRo da nova
ConsCiênCia em Campina
gRande – pB
Silvia Letice Nascimento de Araújo
Genaro Camboim Lula
Como referenciar este capítulo:
ARAÚJO, Silvia Letice Nascimento; LULA, Genaro Camboim. O neopaganismo
contemporâneo por meio da análise de eventos paralelos do encontro da Nova
Consciência em Campina Grande – PB. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg
de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião,
Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades.
João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 496-517.
Silvia Letice Nascimento de Araújo1
Genaro Camboim Lula 2
Introdução
Em meio à discussão dos cientistas sociais da religião sobre como
a religiosidade existe e é influenciada pela modernidade, a socióloga
francesa, Danièlle Hervieu-Léger, em sua obra “O Peregrino e o Convertido” chega a conclusão (dentre várias outras) que a religião não estava
a acabar ou diminuir (como pregava os entusiastas da teoria da secularização), mas sim, que as religiões hegemônicas, tal qual a Igreja Católica,
estavam a perder fiéis em prol de um novo tipo de religiosidade que fosse mais flexível às necessidades do crente, de acordo com sua realidade
social. A. Giddens também corrobora com a afirmação de Hervieu-Leger,
incluindo as reflexões sobre o nascimento do movimento Nova Era, que
para o autor, nasceu de profundas mudanças aceleradas na sociedade,
e também de sua instabilidade e diversidade (GIDDENS, 2005, p. 443).
A literatura sociológica aponta que o movimento Nova Era foi um
fenômeno que marcou profundamente a sociedade Ocidental, iniciado
em meados das décadas de 1960 e 1970, e seus efeitos são sentidos
até hoje através das chamadas práticas “neo-esotéricas” (MAGNANI,
1999, p. 13). O Movimento Nova Era também originou eventos onde
ocorrem os encontros dos atores sociais pertencentes ao mundo do
neo-esoterismo, onde os mesmos realizam trocas que dinamizam e
ressignificam as práticas esotéricas, que se adaptam a novas tendências sociais transcorridas pelo tempo; tais encontros, em sua origem,
não são os mesmos que acontecem atualmente e novamente serão
Autora e aluna do curso de Ciências da Religião da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN.
2
Possui graduação em Comunicação Social: Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (2000) e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (2004)
e doutorado (2019) em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia PPGA da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.. Professor ajunto I da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte - UERN e ex- Diretor do Complexo Cultural da UERN.
1
504
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
modificados no futuro. Para mapear um evento neo-esotérico, num
breve momento em meio às intensas transformações sociais, iniciamos
um projeto de PIBIC encabeçados pelo Dr. Genaro Camboim Lula e com
a participação da Dra. Dilaine Sampaio3 para mapear o Encontro da Nova
Consciência em Campina Grande, Paraíba4. O ENC ocorre há 28 anos e
oferece uma enorme gama de palestras, workshops, terapias e vivências variadas para aqueles interessados no mundo neo-esotérico, onde
são reunidos os mais importantes líderes religiosos do campo (xamãs,
sacerdotes, terapeutas holísticos, etc.) vindos de todo o Brasil, mas com
maior destaque aos residentes da região Nordeste. Alguns trabalhos
acadêmicos, como o da antropóloga Elisete Schwade5, já se propuseram anteriormente a fazer uma etnografia sobre esse evento; É neste
sentido que procuramos através deste projeto revisitar e verificar se as
informações trazidas pelos trabalhos anteriores sobre o ENC são ainda
persistentes no ano de 2019. Este artigo pretende dar um enfoque mais
preciso sobre as lacunas apresentadas em trabalhos anteriores a partir de um olhar sobre os eventos paralelos que compõem o ENC. Desta
forma, escolhemos fazer uma etnografia do 12º Encontro Parahybano
de Neopaganismo a fim de observar a atuação dos autodenominados
bruxos para tentarmos como os organizadores e freqüentadores fazem
com o ENC. Alguns autores apontam que há muitas dissidências sobre o
neopaganismo ser parte do movimento New Age (DE LA TORRE, 2014,
p. 36). Fizemos isso a partir da interpretação de dois palestrantes (um
deles é o organizador e um dos mentores) do evento paralelo de neopaganismo e fazer a nossa pesquisa em cima de suas atuações dentro
e fora do evento; procurando entender suas trajetórias e as ressignificações que trazem ao neopaganismo devido a elas. Para dar conta das
propostas apresentadas para este artigo optamos por realizar uma etnografia do evento bem como seguir os passos des dois interlocutores
em suas atividades virtuais.
Assim sendo, começamos por apresentar a dinâmica do ENC na
cidade de Campina Grande-PB e em particular os espaços onde Sá o
Pesquisadora e docente da Universidade Federal da Paraíba, no curso de Ciências da
Religião.
4
Anexo 1: Cartaz do Evento.
5
Artigo: Carnaval da Nova Consciência publicado na revista Religião e Sociedade, Rio de
Janeiro, 31(1): 182-208, 2011.
3
505
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
circuito neo-esotérico (MAGNANI, 1999, p. 13) para, em seguida, nos
concentramos na descrição do evento paralelo de neopaganismo e por
fim, analisaremos os dois palestrantes do evento para nos ajudar a
identificar a bruxaria tal qual foi apresentada durante o acontecimento,
dentro do conceito de “agente nodal” (DE LA TORRE, 2014, p. 36).
Da cidade
Chegando em Campina Grande na noite de sexta feira, dia 01 de
março, não consigo vislumbrar pela cidade qualquer indício do acontecimento do Encontro da Nova Consciência, ou até mesmo o MIEP e o
Crescer. Para qualquer pessoa de fora, que assim como eu, entrasse na
cidade naquele instante, só teria certeza de um evento: o Encontro da
Consciência Cristã – ECC, o evento de características a abrigar um público pentecostal. Localizada no Parque do Povo, a extensão do local do
evento do ECC representava uma boa distância percorrida pelo carro, no
qual eu via todo o acontecimento pela janela. O Parque do Povo também
é o local onde acontece a festa junina, que é apenas o maior evento da
cidade e também é conhecido como “o maior São João do mundo”. No dia
seguinte, que marcava o início oficial do evento, escuto no carro que me
leva em direção ao Sesc centro (local onde ocorre o ENC) uma entrevista
na rádio da cidade em que fala um dos organizadores do ENC, conhecido
como Nildo Nascimento. Na entrevista, organizador aproveita par apresentar ao público ouvinte algumas das atividades ofertadas pelo ENC:
a feira esotérica que ocorre no hall do SESC, a natureza das palestras,
os tipos de terapias alternativas, as artes divinatórias e a programação noturna que é composta por shows de artistas e bandas do cenário
alternativo paraibano. Depois que a divulgação acaba, presto atenção
nas informações de meu orientador sobre onde ocorrem os múltiplos
locais onde ocorrem (de maneira discreta, quase invisível) os eventos
paralelos. Nada muito diferente do que Magnani descreve do circuito
neo-esotérico do município de São Paulo (MAGNANI, 1999, p. 25). Os
eventos paralelos embora estejam no folder da programação do ENC,
são praticamente autônomos e se administram de forma independentee , por isso mesmo, estão espalhados pela cidade em teatros, escolas,
506
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
faculdades e são separados por múltiplos temas: Xamanismo, Neopaganismo, Ateísmo e etc.6 Assim como o circuito neo-esotérico paulista,
a programação dos eventos paralelos em Campina Grande é destinada
a divulgar as práticas, atrair clientes e promover a discussão de temas
correlatos (MAGNANI, 1999, p. 40).
Chegando no SESC Centro
A característica discreta do ENC é também percebida na chegada
ao Sesc centro (sede do ENC), percebo que do lado de fora não há nenhuma indicação do acontecimento interno, além de poucas pessoas
vestidas em um estilo alternativo: roupas leves, tatuagens, cabelos
ou muito longos ou curtos, e presença de pessoas de idades variadas.
À entrada do Sesc avisto uma moça sentada ao chão vendendo bijuterias artesanais, caminhando um poço mais é possível ver a feira estotérica no térreo. Lá se encontram vendas de roupas e arte “indiana”:
mantas, camisas, calças com estampas de mandalas ou de figuras de
buda, krishna, etc. No mesmo ponto, também vende-se livros Hare
Krishna, sobre meditação, e o mais popular, o Bhagavad Gita. Pode-se
encontra também livros com temas que dão ênfase ao ocultismo, livros
de auto ajuda dividem espaço com livros de autores universitários sobre
história das religiões. Há na feira esotérica artigos para os consumidores que buscam um artesanato indígena, como os cocares da povos indígenas como os Pataxó e os Xucuru, cachimbos, vasos de barro, filtros
de sonhos (indício de cultura indígena externa) disputam o espaço com
a venda de plantas e de artesanato (caveiras, incensários, difusores, bijuterias, etc). Subindo ao primeiro andar, mesas dispostas indicavam a
“recepção” onde se organizava o agendamento e o pagamento para as
terapias alternativas, para as artes divinatórias e as oficinas. Os preços
variavam entre 50 e 150 reais, tendo uma única sessão de SIR – Restruturação do Ser que custava 380 reais. Um senhor que frequenta o
ENC já há 16 anos de evento, seu Araujo me fez uma fala longa sobre
Programação completa no link https://sites.google.com/site/ongnovaconsciencia/programaao-geral.
6
507
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
assuntos diversos como o curso de terapia holística, sobre a sua identidade (“sou um pouco espírita, porém mais Yin do que Yang”), sobre
defesa dos direitos dos animais contra a vaquejada, demonstrando a
variedade de temas que todo ano são abordados no ENC. Assim, como o
“seu Araújo”, os participantes e organizadores do evento paralelo apresentam a mesma característica de serem um agente nodal newager.
Como tal, estas agentes nodais costuram várias religiões, práticas e tradições diferentes em sua trajetória de busca individual. Da radiestesia,
ao estudo do taoísmo, das paraciências ao veganismo, do cristianismo
à taromancia. Seu Araújo, assim como os personagens de que iremos
tratar em seguida, traze em suas falas essa característica da pluralidade
das práticas esotéricas que são ofertadas pelo ENC, sendo um exemplo
do tipo de cliente que busca a demanda ofertada pelo ENC, que fazem
uma “hibridização” de culturas por meio da rede neo- esotérica, criando
um menú individualizado de conceitos e práticas da qual eles se servem
(DE LA TORRE, 2014, p. 38).
12º ENCPBNP – Encontro Parahybano de
Neopaganismo – Cine São José
Nesse projeto de PIBIC, tínhamos inicialmente decidido mapear
o máximo de eventos paralelos possíveis. Pretensão logo abandonada
devido à impossibilidade de percorrer o ENC durante os quatro dias de
carnaval. Tal tarefa tornou-se inviável devido a escassez de recursos
para o projeto o que levou a uma redução Da quantidade de pesquisadores que o projeto de pesquisa conseguiu abrigar. Concordamos, com
isso, que cada um de nós escolheria um evento paralelo para fazer a
observação participante. Escolhi o de Neopaganismo por curiosidade e
afinidade e espero através desta experiência demonstrar um vislumbre
de como as práticas neopagãs se identificam.
PALESTRA: A sombra como grande “iniciadora”
Ainda no primeiro dia que chegamos (o sábado de carnaval), após
o almoço, fui ao local do evento paralelo, o Cine São José onde haveria
a primeira palestra sobre Neopaganismo. Ao entrar no local, um forte
cheiro de incenso e uma música folk ao fundo dão as boas vindas ao
508
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
público. No palco há um altar feito acima de um pano preto, onde se
encontra um caldeirão, cartas de tarot, recipiente com ervas e sal negro
(que o palestrante ensina a fazer em workshop), tambor, caveira e uma
vela preta no centro do caldeirão7. Há também um altar em frente ao
palco, em frente às cadeiras. Esse altar está acima de uma apoio similar
a uma coluna grega e porta um castiçal com três velas azuis, espelho,
rosa vermelha e uma pequena escultura de um gato8. Ao me sentar,
observo as interações entre as pessoas no lugar e o palestrante, Claudivam Barbosa, que estava sentado no limite entre o palco e as cadeiras conversando com um jovem rapaz que parecia muito animado em
mostrar seu conhecimento. O público neste momento ainda tímido em
número foi chegando aos poucos e no final já contava com o dobro de
pessoas: 12 homens e 8 mulheres. A faixa etária das pessoas era de jovens adolescentes, universitários (maioria), sendo alguns de meia idade,
mas que eram igualmente letrados com o curso superior. O palestrante
tira um momento para ir até o altar central, onde escolhe algumas cartas de tarot e as dispõem ao redor do caldeirão.
Claudivam dá início à sua palestra falando de como esse encontro
aconteceu no início. Segundo ele, o encontro de neopaganismo ocorre
há 12 anos no Nova Consciencia e o primeiro ocorreu com uma pequena
reunião. Esse mesmo encontro, originou outros em mais dois Estados.
A organização anterior era ele e mais quatro pessoas, nas quais como
ele mesmo disse “seguiram os seus caminhos”. Atualmente, ele é o único organizador do evento.
Entrando mais para o assunto do paganismo propriamente, Claudivam fala sobre o movimento pagão em como ele se originou historicamente. Ele ensina que antes do cristianismo, havia cultos a deuses e
deusas diversos e que a manifestação da natureza também eram manifestações de divindades. O povo nômade cultuava a Terra para conseguir colheitas e caça. No paganismo de atualmente existem várias tradições que ele usa de exemplo: tradição helênica (grega) e nórdica fora
uma delas. Na grega ele explica que os integrantes têm uma preocupação cívica, onde eles tentam adaptar os antigos ritos para os dias atuais
7
8
Anexo 2: Altar 1.
Anexo 3: Altar 2.
509
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
(como todas as outras tradições). Ele chama isso de “ressignificação de
tradições antigas”. Claudivam se diz parte da tradição Wanen, que cultua
deuses nórdicos. Ele explica que a Wanen não é só uma tradição, mas
sim um povo que vivia na antiga Germânia, antes de mitologicamente
o deus Odin se tornar o rei dos deuses. Os deuses Wanen são ligados à
fertilidade (onde há um culto natural e cíclico) e diferente dos povos posteriores, os Asen, que adotaram Odin como rei, para eles a deusa que
tudo comanda é a Frayja (nome conhecido posteriormente como Freyja),
só que ela é cultuada na Wanen pelo seu antigo nome de Mardoll.
Depois de situar a plateia no contexto histórico da bruxaria e suas
tradições, Claudivam adentra no assunto que nomeia o evento: a sombra.
Ele pergunta para platéia o que eles acham que seria a sombra. Depois de
um breve silêncio, uma moça responde que “a sombra é o que não queremos encarar em nós, mas é necessário para evoluir”. Claudivam aceita
prontamente a resposta e explica que nosso lado consciente é apenas a
ponta de um iceberg, como aponta o conceito junguiano, e abaixo dessa
ponta há o que ele chamou de “explosão de sombra”. “A sombra é você
mesmo. As pessoas negam a sombra” – complementa Claudivam, dizendo que na maioria dos caminhos iniciáticos fala-se muito em sombra.
O palestrante explica que no Wanen, a sombra é celebrada num
ritual chamado Ring. Para eles, a sombra tem o conhecimento de tudo,
até de outras vidas. “Reconhecer a sombra é o primeiro passo para o
equilíbrio” disse Claudivam, também afirmando que não existe tempo e
espaço para ela. Ele conclui esse pensamento dizendo que vivemos um
eterno presente, o resto é projeção. Tempo e espaço não é linear; por
isso a sombra é capaz de trazer dons da vida passada. Claudivam passa
a falar da deusa Hécate, que será cultuada no ritual posterior. Ele explica
que essa não é uma deusa “Wanen”, mas ele diz ter um “carinho” por
ela, pois a mesma o ajudou no início da sua jornada. Depois de explicar
algumas atribuições da deusa (origem, aspectos), ele retoma o tema da
sombra, dizendo que pessoas podem enlouquecer ou “sucumbir” à ela.
“Você é luz e você é trevas. Trevas não é o mal, pois coisas germinam
na escuridão da Terra. O mal é o desequilíbrio, é renegar o que há em
você.” Depois ele faz uma recomendação de filme que fala em sombra: A
Floresta Negra, de 1997, que conta uma versão da história de Branca de
Neve e os Sete Anões. Ele explica que o espelho da Madrasta da Branca de Neve é a sombra dela mesma refletida. A platéia também aposta
510
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Cisne Negro como uma obra audiovisual que trata de sombra. Ele complementa falando que em Batman: O Cavaleiro das Trevas também é
possível ver uma interação com sombra (Coringa e Batman). Ele retorna
a discussão falando sobre o espelho na Wanen. O espelho é ligado a
deusa Mardoll, pois é considerado a sua sombra. Também é utilizado
na tradição como um portal de acesso às pessoas, servindo para curas,
bençãos e ataques. O espelho negro é específico para a sombra e ele
revela ter um espelho de obsidiana só para lidar com ela. A sombra no
mito da caverna de Platão, segundo ele, é projetada de uma fonte que
ninguém sabe qual é. Nesse momento, Claudivam para pra contar uma
experiência pessoal de ataque através do Espelho. Ele emprestou um
objeto a uma determinada pessoa, que o devolveu com um “presente”.
Ao tocar o objeto, Claudivam sentiu que ele estava enfeitiçado. Ele prontamente agradeceu. Ao chegar em casa, foi até seu espelho e mandou
o que lhe foi enviado de volta ao mandante. Ele conclui a experiência
dizendo que trabalhar com sombra é acolhê-la. “Bruxaria é auto-conhecimento”, pois a sombra é tudo aquilo que fazemos quando ninguém
vê. Por fim, ele passa a explicar o altar que está de frente ao palco. O
espelho é para refletir o “ser sagrado” da pessoa, e também serve de
portal. A rosa é um símbolo da Wanen, pois ela tem várias camadas e
ajuda a conhecer a nossa essência. As velas azuis são ligadas a Mardoll
e o gato é o animal guardião da tradição, e também vive entre os mundos. Claudivam explica que tem um culto um pouco fora da Wanen, mais
particular, para a deusa Hécate. A tradição não o impede de cultuá-la.
Ele também revela fazer parte de outra tradição que é mais fechada,
chamada “Fellowship”, da qual ele explica que as pessoas têm mais dificuldades para entrar. A palestra é encerrada com ele nos convidando a
subir no palco para iniciar o ritual.
RITO: Hécate e a sombra – Aquela que conduz pelos caminhos
Antes de iniciar o ritual, Claudivam começa a explicar sobre o altar
do centro do palco. O caldeirão e a vela negra são símbolos da deusa
Hécate. O tambor é “Lakota” (povo xamã da América do Norte) e o tarot é chamado de Tarot Mitológico (grego). Ele começa a explicar que a
deusa Hécate é uma deusa do submundo, que vive entre os “caminhos”
511
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e porta uma tocha para conduzir as almas e as pessoas vivas que necessitem de orientação. É conhecida como a deusa da Bruxaria e é uma
deusa grega.
O ritual então tem seu início, quando Claudivam nos pede para fazer um círculo e começa a tocar o tambor. Pede também para fecharmos
os olhos, pois isso nos ajudaria a nos concentrar e entrar em sintonia,
através da música. Depois que parou de tocar, ele pediu para nos sentarmos em círculo porque ia fazer uma meditação guiada. Quando todos
estavam sentados e fecharam os olhos novamente (a seu pedido), ele
reiniciou o toque do tambor, pedindo-nos para visualizar uma clareira
em uma floresta, onde havia um caminho que se bifurcava em três direções. Após escolher o caminho, iríamos fazer uma breve caminhada
e durante ela, as pessoas iam encontrar uma mulher (a deusa Hécate). Ela falou brevemente de sua aparência, e que ela teria um cão de
três cabeças junto a ela. A deusa nos daria um objeto. Depois de pegar
esse objeto (ele disse que algumas pessoas podem não receber nada),
ela nos conduziria à clareira inicial, e lentamente voltaríamos ao nosso
corpo. Depois, ele mandou as pessoas escolherem uma das cartas que
estavam ao redor do caldeirão, mas devíamos devolver ao local inicial.
Enquanto íamos escolhendo, ele tocava novamente o tambor. Quando
todos já haviam acabado, ele ia perguntando quais as pessoas escolheram determinada carta e após as referidas pessoas levantarem as
mãos, ele explicava o significado da carta, pois era uma mensagem da
Deusa. Logo após, ele perguntou se seus conselhos oraculares haviam
“batido”, recebendo muitas confirmação dos participantes. Por fim, ele
agradeceu a todos e o evento foi dado como encerrado.
VIVÊNCIA: Como despertar minha Deusa interior?
No segundo dia de palestra no Cine São José, o público era praticamente o mesmo do dia anterior, mas só enquanto o número de pessoas
estava “tímido”; coisa que mudou ao decorrer do evento. No palco, há
novamente um altar com o mesmo caldeirão do dia anterior (pelo que
ouvi da conversa entre a palestrante e Claudivam, ele o havia emprestado a ela). Outro ponto em comum é que haviam cartas de tarot dispostas ao redor do caldeirão; com a diferença de que não haviam apenas
512
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
algumas cartas escolhidas pela palestrante, mas sim, todas as cartas
estavam cercando o caldeirão. Havia um porta-retrato com a imagem
de uma Deusa que inicialmente não identifiquei, uma cuia de barro com
ervas exalando um cheiro que vinha de um pequeno braseiro aceso,
uma taça, incensário e um recipiente que lembrava um pequeno vidro
de remédio. A cor do pano do qual o altar estava disposto acima era
roxo. Á frente do altar, no mesmo altar do dia anterior, um castiçal com
velas azuis, estatueta de gato, rosa vermelha, espelho etc. O toque de
Claudivam e a deusa Mardoll se manteriam nesse encontro.
Enquanto a palestrante organiza o altar do centro do palco, Claudivam interage com os convidados, perguntando quem estava participando do evento paralelo de neopaganismo pela primeira vez. A grande
maioria levantou a mão. Ele se apresentou e retornou a falar que era
o organizador “sobrevivente” do evento, pois deixava de “pular carnaval” para realizar o encontro, pois muitos o chamaram para ir a Recife
aproveitar a festa. Ele se mantém como organizador desse evento, pois
vê nessas palestras uma oportunidade de compartilhar e vivenciar seu
conhecimento. Waleska finalmente estava pronta e começou a se apresentar. Disse que trabalhava com cura prânica, círculo de mulheres e sagrado feminino, com o foco no resgate e empoderamento deste. Ao ver
alguns homens na plateia, Waleska disse que o homem também podia
despertar o feminino dentro de si, pois são qualidades que existem em
todos. Ela então nos chama para subir no palco e fazer a vivência.
A palestrante nos convida a fazer um círculo em frente ao caldeirão
e nos sentarmos. Ao fazermos isso ela começa a falar sobre o que seria
o sagrado feminino, remontando à pré-história e a perseguição na Idade
Média. Sua fala adentra num viés político que se perpetua até atualmente, com a mulher em posições inferiores aos homens na sociedade atual.
Ela acredita que isso se deve a um provável que “eles” tem que a mulher
tome consciência de sua força e poder, onde para isso, as relações femininas estão “envenenadas” por um ambiente que as “rivalizam” umas com
as outras, do qual devia acabar, pois todas as mulheres eram irmãs.
Depois dessa fala inicial, Waleska propõe que todos peguem uma
carta que está no tarot do altar central. Enquanto as pessoas escolhiam essa carta (umas rápidas, outras andando ao redor do altar vagarosamente até escolher), ela toca um tambor. Quando todos haviam
513
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
escolhidos suas cartas, voltamos a nossos lugares e a palestrante pediu
para cada um de nós falarmos brevemente sobre o sentimento que a
carta passava. Não era um tarot comum, e sim o “Oráculo da Deusa”,
onde cada carta tinha a imagem de uma deusa, com o seu nome e o
nome de um sentimento atribuído a ela. Minha carta por exemplo, tinha
a imagem de uma mulher dançando com asas de anjo acima do mar,
uma cobra em forma de vento a circundava. Logo abaixo da imagem
havia o nome dela – Eurínome – e abaixo de seu nome havia escrito
“Êxtase”. Um por um, começamos a falar sobre a carta e o sentimento
que ela passava, muitos se concentravam em dizer se tinha “algo haver”
com seu momento atual na vida e nem todos, na verdade a maioria,
não foram breves em suas falas. A participante que mais me chamou
atenção foi uma senhora que chegou atrasada (pois muitos assim chegaram e puxaram uma carta durante a fala dos outros). A mulher era
alcoólatra junto com todos os irmãos de sua família e ela estava nessa
condição por muitos anos. Foi à Campina Grande fazer uma terapia de
vidas passadas e graças a isso, estava sem beber por volta de um mês
(todos aplaudiram quando ela o disse). Antes de ir ao evento, estava no
Sesc em um evento político. Por não gostar do evento, procurou outro na programação e encontrou esse evento paralelo, no qual ela disse sentir ser o melhor lugar onde devia estar agora. Não obstante, sua
carta era da Cura da deusa Pachamama, que era justamente o que ela
dizia buscar naquele momento. Em algum momento, durante a fala dos
participantes, Waleska recomendou que para manter o trabalho com o
sagrado feminino em nossas casas, as mulheres deviam trabalhar com
as energias do útero e os homens a do coração.
A segunda vivência era em dupla. Após escolhermos a nossa parceria, Waleska explicou o exercício. Devíamos passar alguns minutos
iniciais observando a pessoa a nossa frente e depois tentar dizer o que
“sentiu” vindo de determinada pessoa. Suas impressões iniciais, se parecia triste, feliz, etc. Minha parceira era uma moça que estava do meu
lado. Trocamos os olhares e depois contamos nossas impressões (enquanto trocamos olhares, Waleska novamente tocou seu tambor). Eu
via nela uma pessoa forte, que gostava de proteger os seus com unhas
e dentes e uma forte relação com a natureza. Ela via em mim uma pessoa cansada e cheia de decepções, que sofreu muito no passado, além
514
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de ser bastante introspectiva. Depois de passarmos nossas impressões começamos a falar de nós mesmas. A moça também era de Natal,
formada em antropologia pela UFRN. Ia a Recife para o carnaval, mas
estava sem ânimo pois tinha terminado um relacionamento amoroso
recentemente e então resolveu vir à Campina Grande, pois tinha família
na cidade, e aproveitou para vir ao evento. Depois Waleska retomou a
palestra, nos pedindo a voltar para nossos lugares e falou o resultado da
vivência: o que víamos um no outro era um espelho nosso, um reflexo.
Na terceira vivência, Waleska nos convidou a “conversar com o
nosso útero”. No caso dos homens, eles imaginariam um à sua frente
para a conversa. Todos deviam escolher uma posição confortável para
ficar. Alguns perguntaram se era possível deitar e Waleska hesitou, pois
tinha medo das pessoas dormirem, mas acabou aceitando no final. Entre algumas pessoas deitadas e outras sentadas, ela pediu-nos para fechar os olhos. Ela foi nos guiando ao relaxamento total de nosso corpo,
e então, nós iríamos nos concentrar no útero e tentaríamos “conversar”
com ele, entender o que se passava, se “ele” estava bem ou não. Depois
desse momento, o útero foi ganhando um tamanho cada vez maior, até
nos tomar por completo, para nos sentirmos protegidos e aquecidos.
Lentamente, Waleska foi conduzindo o útero para voltar ao normal, e
nos convocou a retornarmos à consciência. Enquanto o útero “nos tomava” por completo, ela tocou o tambor, cantando uma música em espanhol. Ao final, retornamos aos nossos lugares e Waleska perguntou
sobre a experiência. Cada um falava enquanto o vidrinho de remédio
passava, era um “floral da lua”, que com um conta-gotas calculava as
oito gotas que Waleska nos recomendou a tomar, pois servia para equilíbrio da energia feminina. Houve muitos relatos de sensação de acolhimento. Um rapaz falou que teve um “medo inicial” desse contato com
o útero mas depois se sentiu muito bem. Outras mulheres relataram
uma cólica leve, e Waleska disse que isso significava purificação. Nesse
momento, uma moça falou que lembrou de sua mãe. Ela notadamente
tinha problemas de aceitação pela família por ser da comunidade LGBTQ+. Ela disse que no exercício, passou a entender que as brigas que sua
mãe tinha com ela sobre isso era uma forma de tentar protegê-la das
outras pessoas de sua família e do mundo. Ela chorava durante o relato,
e Waleska disse que por isso para fora era também uma forma de retirar
esse peso e se curar, enquanto a consolava.
515
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O evento foi concluído com o agradecimento de Waleska para com
nós e algumas pessoas que se manifestaram para também agradecê-la.
Claudivam chegou (ele havia se ausentado durante quase todo o evento)
e disse que sentiu que “algo mudou” durante sua ausência no local. Uma
moça chegou com uma máquina e pediu para que nos reuníssemos para
tirar uma foto coletiva9, que finalizou o evento.
Nas várias vezes que Waleska tocou o seu tambor, ela entoou cânticos; alguns estrangeiros, outros em português. Um deles falava assim:
“Mãe eu te sinto sob os meus pés,
o teu coração eu posso escutar.
Mãe eu te sinto sob os meus pés,
o teu coração eu posso escutar…
Heya heya heya heya heya heya ho
Heya heya heya heya heyaaaa ho...”
O pós-evento
Ao eleger esses dois palestrantes como personagens centrais da
etnografia, busquei maiores informações após os eventos paralelos que
eles ministraram. Pessoalmente, meu contato com o primeiro palestrante foi mais profundo. Ele contou-me sua trajetória: infância, quando
se descobriu bruxo em contato com a natureza; adolescência e o tempo
que passou convertido à Igreja Protestante; ida à Campina Grande para
fazer sua faculdade e como se reencontrou no caminho do neopaganismo novamente, assim como sua busca para entrar na tradição Wanen. Após essa conversa, nos encontramos ocasionalmente pelo evento
onde o vi como um dos terapeutas. Ao fim de tudo, passei a continuar
a etnografia no meio virtual, seguindo sua rede social. Seu perfil é bastante intimista: suas fotos são selfies em maioria (demonstrando um
pequeno número de amigos), há também registros de altares em datas
de festivais pagãos (feitas por ele mesmo aparentemente) e publicações
relacionadas à sua prática terapêutica (convites para workshops, notas
9
Anexo 4: Foto Coletiva do evento “Como despertar a minha Deusa interior?”.
516
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
sobre benefícios da terapia). Também há registros de sua ida à Europa,
sobretudo na Alemanha (onde ele me explicou que nasceu a tradição
Wanen). Como integrante também da tradição internacional Fellowship
of Isis, foi provavelmente no exterior que ele se juntou.
A segunda palestrante é quase o oposto do primeiro. Não pude
ter muito contato pessoal justamente por ser uma pessoa muito requisitada. No evento, a vi andar muito com os integrantes do Xamanismo. Nunca cheguei a conversar com ela na rede social, mas seu perfil
é bastante dinâmico. Suas fotos, na maioria das vezes, são registradas
por outras pessoas, enquanto ela está em plena atividade ritualística,
rodeada por outros fazendo o mesmo: mulheres em sua maioria. Descobri que tem seu próprio centro holístico, onde realiza a maior parte de
suas práticas, que vão de rituais pagãos a práticas terapêuticas, como
também cursos sobre esse conhecimento.
O primeiro ponto que podemos salientar deste estudo é a releitura
da tradição. O que Claudivam também chamou por “ressignificação”: o
ato de pegar uma prática cultural antiga e atribuir novos significados
para adaptá-la a nossa época, adicionando novos conceitos que antes
nem sequer existiam. Para exemplificar podemos falar em como é utilizado o conceito de Sombra dentro da tradição Wanen, do qual o palestrante se baseou no conceito junguiano, além de trazer exemplos de
filmes da cultura pop para ilustrar sua palestra. Outro ponto que vale
salientar é o altar do rito, que levava um tarô de mitos gregos, um tambor da tribo indígena norte-americana Lakota, caldeirão, vela e incenso próprios do neopaganismo. Também temos na primeira palestra,
durante o rito, uma leve tendência a “terapeutização da magia”, onde
cada um falou sua experiência de acordo com a carta do tarô retirada.
Essa “terapeutização” é vista com maior efeito na segunda palestra, e é
provavelmente a maior identificação entre os dois personagens. Temos
uma proposta de palestra que se transformou em vivências de trocas e
confissões variadas, com o intuito de atingir a cura. Na vivência houve
o toque do tambor e cânticos neoxamânicos, o uso de um oráculo com
deusas de variados panteões e a aplicação de florais da lua, dentro de
um evento com proposta neopagã. A terapia em ambas as palestras
parece ser usada como um ponto de atração do público, aparentando
ser uma tendência crescente no neopaganismo e também parte da
517
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
divulgação do trabalho dos dois facilitadores. Outro ponto interessante de análise é a pluralidade da trajetória dos personagens: o primeiro
palestrante pertence a uma tradição nórdica, a outra tradição que leva
o nome de uma deusa egípcia (Fellowship of Isis) e em sua palestra,
ensinou sobre e fez um ritual para uma deusa grega; além de ser terapeuta holístico. Já a segunda é, antes de tudo, terapeuta holística,
passando por práticas neoxamãs, se identifica em sua rede social
como sacerdotisa da Deusa e realiza rituais da roda do ano wiccaniana
(SOARES, 2007, p. 24).
A releitura da tradição e a pluralidade no caminhar e nas práticas
desses personagens reafirmam o conceito de agente nodal de Renée de
la Torre em relação à prática newager:
No se pretende reivindicar purezas originales ni esencializar
culturas previas a la hibridación, ni tampoco caer en el relativismo
cultural, sino más bien ubicar el problema de la hibridación en la
redefinición de nuevas identidades que siendo hibridas son sobre
todo ambivalentes. (DE LA TORRE, 2014, p. 37)
Em tal análise, vemos que a “hibridização de culturas” é natural
no caminhar desses agentes, e a partir disso novas identidades e práticas são reescritas. Esses agentes também, como líderes espirituais,
acabam dando origem a outros novos agentes, num processo que De la
Torre vai chamar de “polinização”:
3) su competencia de “polinizador” (Soares 2009) de culturas y
religiones, que destaca que los buscadores espirituales en su andar
no sólo recogen fragmentos culturales de distintas tradiciones para
armar menús personalizados de creencias, sino que además son
transmisores de significados que contribuyen a hibridar las culturas
por donde van pasando. (DE LA TORRE, 2014, p. 38)
O processo já citado de “releitura da tradição” também é explicado
por De laTorre:
Los agentes newagers van apropiándose de distintos elementos
tomados de diferentes culturas y tradiciones con los que van armando
sus narrativas hibridas. También van incorporando símbolos y rituales
518
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que son practicados en nuevos registros con usos culturales y sentidos
funcionales distintos a los que les imprimían sus practicantes en los
contextos tradicionales de donde fueron extraídos. Las prácticas y
símbolos entonces quedan engarzadas en nuevas narrativas que son
continuamente socializadas a nuevos usuarios en cursos, talleres,
terapias, conferencias y nuevas ceremonias. (DE LA TORRE, 2014, p. 38)
A partir dessa análise é possível concluir que os palestrantes do
evento paralelo são atores sociais que representam o neopaganismo e a
bruxaria nos dias atuais, como uma mescla de culturas que se apresentam de forma personalizada, para atender sua demanda, procurando
sempre se ancorar no culto à natureza (SOARES, 2007, p. 10) e buscando nesses elementos naturais a compreensão e o equilíbrio do eu
interior. Tais práticas passam por conceitos filosóficos, uso de oráculos,
meditações e curas terapêuticas para se perpetuarem, tendo também
forte presença nas redes sociais, para acompanhamento de conteúdos
e divulgação de encontros.
Considerações finais
Através das nossas vivências, apenas no evento paralelo de neopaganismo, é presumível que a multiplicidade de práticas ritualísticas
que nos é ofertadas. Nesse curto espaço dentro das práticas neopagãs
podemos compreender porque o mesmo faz parte de um evento como
o Encontro da Nova Conciência. O Encontro Parahybano de Neopaganismo é uma ramificação bastante plausível do encontro maior, demonstrando a pluralidade de coisas que o mesmo nos oferece. É claro que não
pode falar por todo o evento, que conta com exposições sobre ateísmo,
xamanismo, ufologia, camdomblé, política, direito dos animais, RPG,
animes e etc; mas sua dinâmica de fusões culturais variadas, é em essência a mesma. Esta multiplicidade é o que permite ao neopaganismo
fazer parte do Encontro da Nova Consciência e também, mesmo com
opiniões contrárias (SOARES, 2007, p. 10), permite ao neopaganismo
ser identificado como parte de um fenômeno da Nova Era da contemporaneidade.
519
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
HERVIEU-LÉGER, Danièle. O
peregrino e o convertido: a religião
em movimento/ Danièle HervieuLéger; tradução de João Batista
Kreuch. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
GIDDENS, Anthony. Sociologia/
Anthony Giddens; tradução Sandra
Regina Netz. – 4. ed. – Porto Alegre:
Artmed, 2005.
MAGNANI, José Guilherme C.,
1944 – mystica Urbe: um estudo
antropológico sobre o circuito neoesotérico na cidade. – São Paulo:
Studio Nobel, 1999. – (Coleção cidade
aberta).
520
DE LA TORRE, Renée. Los Newagers:
el efecto colibrí. Artífices de menús
especializados, tejedores de circuitos
en la red, y polinizadores de culturas
híbridas. Revista Religião e Sociedade,
Rio de Janeiro, 34(2): 36-64, 2014.
SOARES, Danieli Siqueira. Rituais
Contemporâneos e o Neopaganismo
Brasileiro: O caso da Wicca. 2007.
135 f. Dissertação (Mestrado) –
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia, Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, 2007.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Anexo 1 – Cartaz do evento
521
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Anexo 2 – Altar 1
522
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Anexo 3 – Altar 2
523
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Anexo 4 – Foto coletiva do evento “como despertar
minha deusa interior?”
[ Volta ao Sumário ]
524
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
o papel da igReja
CatóliCa na ConstRução
de um disCuRso
patRimonialista no
BRasil: a primeira década
do spHan
Bruna valença mallorga
Como referenciar este capítulo:
MALLORGA, Bruna Valença. O papel da Igreja Católica na construção de um
discurso patrimonialista no Brasil: a primeira década do SPHAN. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio
Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências,
Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020,
p. 518-532.
Bruna Valença Mallorga1
Introdução
O primeiro passo para compreender o intuito dessa investigação
é analisarmos o que foi a Instituição Igreja Católica Apostólica Romana
– ICAR2 – em território brasileiro. Apontando que a ICAR aqui trabalhada será tanto na esfera regular quanto na secular. Para isso traremos
alguns episódios que demonstram a importância que essa instituição
possuiu na consolidação desse território atualmente conhecido como
Brasil, levando-se em consideração que a preservação patrimonial muito tem a dizer com a identidade forjada de uma nação (ANDERSON,
2008, p. 32; CANCLINI, 2015, p. 160; CHUVA,2017, p. 24; HALL, 2015,
p. 31). Ainda é importante apontarmos a primeira década do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN – está compreendida entre os anos de 1937 e 1947.
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
São Paulo. Este artigo é resultado parcial da pesquisa de mestrado em desenvolvimento “O Patrimônio Congregado: a presença da Igreja Católica nas ações de preservação
do IPHAN, em São Paulo (1937-2002)”, orientada pelo Prof. Dr. Fernando Atique e coorientada pela Prof.ª Dr.ª Lucília Santos Siqueira. A mestranda pertencente ao Grupo de
Pesquisa Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica – CAPPH. Apoio
financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP – Nº
Processo: 2017/02173-0. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7947088130535280.
E-mail: brunamallorga@gmail.com
2
Podemos ver a utilização dessa sigla no trabalho de LUI, Janayna de Alencar. “Em nome
de Deus”: um estudo sobre a implementação do ensino religioso nas escolas públicas de
São Paulo. 2006. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Departamento de
Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/88373/230688.
pdf?sequence=1>, acesso em 13/11/2018.
1
526
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A ICAR e o relato de “apenas” alguns episódios de
consolidação no território
O primeiro episódio que abordaremos tratou-se sobre a chegada
dos portugueses no continente americano. Kenneth P. Serbin apontou
dois dados significativos sobre este episódio: a) representantes da instituição religiosa chegaram no novo território a ser explorado juntamente com representante administrativo nas caravelas; b) nomeou – importante fazermos um parênteses para salientar que nomear também
significa dar identidade a algo (MOREIRA, p. 2916) – o território e em
período posterior fundou porções territoriais, como está evidente no
excerto a seguir:
A Igreja legitimou o empreendimento colonial no Brasil dando nomes cristãos ao território. Conheceu-se primeiro o Brasil como Terra de Santa Cruz, e o símbolo da fé e da conquista militar estampou
as velas das embarcações portuguesas. Tomé de Souza governador
do Brasil, chegou a Salvador, Bahia, com o padre Manuel de Nóbrega e mais cinco jesuítas em 1549. Entraram na baía de Todos
os Santos, assim batizada em honra ao importante feriado católico. Em 1554 os jesuítas fundaram a povoação de São Paulo, hoje a
maior cidade do país. Nomes como esses são abundantes no Brasil.
(SERBIN, 2008, p.44)
Ainda sobre o período consagrado pela historiografia como Colonial, Luiz Mott nos ofereceu alguns apontamentos de como era o cotidiano colonial e como a presença católica estava impregnada nas práticas diárias:
No Brasil colonial, seguindo o costume português, desde o despertar o cristão se via rodeado de lembranças do Reino dos Céus.
Na parede contígua à cama, havia sempre algum símbolo visível da
fé cristã: um quadrinho ou caixilho com gravura do santo anjo da
guarda ou do santo onomástico; uma pequena concha com água
benta; o rosário dependurado na própria cabeceira da cama. Antes
de levantar-se da cama, da esteira ou da rede, todo cristão devia fazer imediatamente o sinal da cruz completo, recitando a jaculatória:
“Pelo sinal da santa cruz, livrai-nos Deus nosso Senhor, dos nossos
527
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
inimigos. Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém”.
Os mais devotos, ajoelhados no chão, recitavam quando menos o
bê-a-bá do devocionário popular: a ave-maria, o pai-nosso, o credo e a salve-rainha. Orações que via de regra todos sabiam de cor,
inclusive os suspeitos ou convencidos de heterodoxias atinentes à
Santa Inquisição, pois ao serem inquiridos nos cárceres secretos do
Santo Ofício, um dos primeiros “exames” a que se submetiam todos
os presidiários era recitar as citadas orações, acrescidas dos dez
mandamentos da Lei de Deus e dos cinco preceitos da Lei da Igreja.
A quase totalidade dos colonos do Brasil presos pela Inquisição de
Lisboa desincumbiram-se perfeitamente de tal prova, resvalando
contudo, alguns poucos, sobretudo nos mandamentos da Lei da
Igreja. (MOTT, 1997, p. 164-5)
Nesse excerto notamos que embora não fosse a totalidade da população católica, e nem isso era esperado, a maioria significativa sabia
os ritos básicos para evitar alguns problemas inquisitoriais, sendo assim vivendo sem levantar suspeita. A informação acerca dos ritos fez-se
interesse pensando na perspectiva de que a Igreja possuía grande poder sobre a vida dessas pessoas. E podemos afirmar que a ICAR não foi
detentora apenas de grande influência na vida da população brasileira, mas também na morte de muitos brasileiros do período consagrado
com Brasil-Império. João José Reis apresentou em sua obra A morte é
uma festa como a igreja também influenciou a vida sobrenatural:
Extraordinário acontecimento teve lugar na Bahia do século passado, uma revolta contra um cemitério. O episódio, que ficou conhecido como Cemiterada, ocorreu em 25 de outubro de 1936. No dia
seguinte entraria em vigor uma lei proibindo o tradicional costume
de enterros nas igrejas e concedendo a uma companhia privada o
monopólio dos enterros em Salvador por trinta anos.
A Cemiterada começou com uma manifestação de protesto convocada pelas irmandades e ordens terceiras de Salvador, organizações
católicas leigas que, entre outras funções, cuidavam dos funerais de
seus membros. Naquele dia, a cidade acordou com o barulho dos sinos de muitas igrejas. Os mesmos sinos usados na convocação para
missas, procissões, festas religiosas e funerais eram agora dobrados para chamar ao protesto coletivo. A reunião fora marcada para
acontecer no terreiro de Jesus, no adro da igreja da Ordem Terceira
528
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de São Domingos. De suas sedes marcharam para ali centenas de
membros de irmandades.
Na praça do terreiro estavam, além da igreja de São Domingos, as
igrejas do antigo Colégio dos Jesuítas (atual Catedral) e a de São Pedro dos Clérigos; a uma pequena distância, podia-se ver a igreja do
convento de São Francisco e a seu lado e da Ordem Terceira de São
Francisco. Do terreiro, por sobre os telhados dos sobrados, era possível ver as torres de muitas outras igrejas, inclusive a Sé, que abrigavam dezenas de irmandades. Com seus muitos templos, o lugar
era uma espécie de território sagrado da Bahia. (REIS, 1991, p.13)
João José Reis além do acontecimento da Cemiterada também trouxe informações de como a Igreja, na sua esfera edificada, poderia ter significados muito aquém das questões religiosas, que aliás estava muito
além de apenas comportar eventos de caráter sagrado. Reis afirmou que:
[...] as igrejas brasileiras serviam de salas de aula, de recinto eleitoral, de auditório para tribunais de júri e discussões políticas. Ali
se celebravam os momentos maiores do ciclo da vida – batismo,
casamento e morte. Ali, no interior daquelas altivas construções
coloniais, os mortos estavam integrados à dinâmica da vida (REIS,
1991, p. 172)
A ICAR, de modo geral, não apenas na perspectiva de suas edificações, foi financiada por quase 400 anos por meio do Padroado Régio
no Brasil, tal cenário possibilitou que uma relação visceral ocorresse
entre os dois membros por esse longo período (BOXER, 2002; DOLHNIKOFF, 2006, p. 48; NEVES,2011; SOUZA,2008, p. 129). Tal simbiose
foi rompida, porém não de forma abrupta, com a chegada do período
republicano nos findos do século XIX (SOUZA, 2007, p. 12), e embora o
Período Republicano tenha construído novos artefatos de identificação,
ainda assim não ocorreu total ruptura com os símbolos identitários do
período que o antecedeu (JURT, 2012, p. 478). Tanto é verdade que a
ICAR permaneceu ainda como fator forte de identificação, inclusive Getúlio Vargas enxergou nesta instituição uma aliada para permanência no
poder (CHUVA, 2017, p. 234; SANTOS, 2013, p. 74-75).
Retornando ao período entre a separação das duas instituições:
Estado e ICAR, a relação umbilical sofreu uma cisão com o Decreto
529
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
119-A de 1980, composto por sete artigos que legislava no intuito de
“Prohibe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados
em materia religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o
padroado e estabelece outras providencias” (BRASIL, 1890). O decreto
em sua integra trouxe diversas mudanças para a relação entre o Estado
brasileiro e a ICAR (BRASIL, 1890).
Acerca deste Decreto Mauro Ferreira de Souza, em sua dissertação, A Igreja e o Estado: uma análise da separação da Igreja Católica do
Estado brasileiro na Constituição de 1891, defendeu que
O Decreto do Governo Provisório, de certa forma foi uma preparação do que viria ser confirmado na Constituição no ano seguinte.
Mesmo que o Decreto separou a Igreja do Estado, não realizou plenamente essa ruptura, sustentando segundo conta por mais um
ano, os seminários católicos e os clérigos professores, bem como
nada dizendo a respeito dos patrimônios da Igreja que se confundiam com o patrimônio público (SOUZA, 2007, p. 163).
As medidas patrimonialistas
Após abordarmos a ICAR na expectativa de demonstrar sua participação na constituição daquilo que pode ser considerado Brasil, trataremos de questões patrimonialistas. Este preâmbulo ancorado em uma
breve apresentação da ICAR teve o intuito de pensarmos sua importância na construção de uma identidade nacional.
Embora seja um tema batido é necessário passarmos mesmo que
de modo an passant sobre a criação e consolidação do órgão. O Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN3 – no ano de 2017
O atualmente denominado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) já teve denominações diferentes como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e Diretoria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN),
mudanças em decorrência da esfera administrativa. Informação disponível em: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. In: ______. (Orgs.). Dicionário
IPHAN de Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPa-
3
530
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
comemorou seu octogésimo aniversário. E devemos pensar o que esta
instituição quase centenária consolidou como identidade brasileira por
meio do patrimônio cultural?
Este órgão foi concebido por intermédio das adaptações realizadas por Rodrigo Melo Franco de Andrade no Anteprojeto escrito por Mário de Andrade (CAVALCANTI, 1999, 186) que o elaborou a pedido do Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema (FREITAS, 1999, p.78)
Em 1936, de modo experimental, o SPHAN foi criado (BRASIL,
1980, p.13-14). No ano seguinte foi o órgão foi oficializado por meio
de uma lei e ainda contou com um decreto que organizava suas atividades.4 Importante mencionarmos, de acordo com Sonia Rabelo, que
este decreto “[...] foi examinado e aprovado, em primeira votação, pelo
Congresso Nacional. No entanto, antes de ser novamente apreciado,
aquela casa parlamentar foi fechada. [...] o Presidente da República editou a norma sob a forma de decreto-lei”(RABELO,2009,p.15). Embora
o Congresso Nacional estivesse fechado mesmo assim Getúlio Vargas,
presidente da República no período em que o decreto-lei foi sancionado,
podia expedir decretos-lei, de acordo com a Constituição que entrara
em vigor vinte dias antes da decretação da medida legal acerca do patrimônio (BRASIL, 1937b).
Logo percebemos que o Presidente da República estava apto a sancionar o decreto-lei. Importante destacarmos, assim como Márcia Chuva
defendeu, que “o Sphan foi uma peça no conjunto de atos políticos, implementados especialmente a partir de 1937, pelos quais uma gama de
tradições foi inventada, identificando, recorrentemente, Estado e nação, e
construindo uma “memória nacional” (CHUVA, 2017, p. 28).
trimonioCultural/detalhes/55/instituto-do-patrimonio-historico-e-artistico-nacional-iphan-1970-1979-e-1994>, acesso em: 30/08/2016.
4
O SPHAN foi oficializado por meio da lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937. BRASIL.
Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937. Dá nova organização ao ministério da educação
e saúde pública. Artigo 46. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/
Lei_n_378_de_13_de_janeiro_de_1937.pdf>, acesso em: 23/10/2018.; e o decreto-lei
que o regulamentou foi o de nº25, de 30 de novembro de 1937. BRASIL. Decreto-lei nº
25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico
nacional. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0025.
htm>, acesso em: 13/09/2018.
531
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Mediante esta afirmação de que o órgão preservacionista foi auxiliando na composição de uma identidade nacional é necessário entender o que se escolher para ser o símbolo desta identificação.
A participação da ICAR nas medidas de preservação
do SPHAN
Autores que são referências no estudo sobre a preservação de
bens culturais no Brasil apontam a ICAR como uma peça significativa dentro do mosaico da identidade nacional construída pelo SPHAN
(CHUVA, 2017; FONSECA, 2005; MARINS, 2008; MARINS, 2016; MICELI, 2001; RUBINO, 1992; SCIFONI,2012). Entendendo peça significativa
como aquela que teve um número expressivo de bens tombados pelo
Serviço, mas que também teve um papel indireto, e por vezes, direto na
preservação dos bens.
Silvana Rubino fez um levantamento e constatou que entre os
anos de 1938-1967 foram tombados 687 bens, separando estes dados por períodos anuais ou quinquenais, fato é que por meio destes dados, jogando luz ao período que analisamos (1937-1947) conseguimos
aproximar de nosso recorte e ao olharmos entre os anos de 1938-1945,
dados utilizados como referência pela autora, foram tombados 386
bens, ou seja, nos 8 primeiros anos foram tombados mais da metade do
fora tombado em 3 décadas de trabalho de preservação do patrimônio
(RUBINO, 1992, p. 118 – quadro nº1 ).
Oportuno acentuar que estas três primeiras décadas conhecida
como fase heroica, período este que além de sempre fazer alusão ao tempo em Rodrigo M. F. de Andrade esteve à frente do SPHAN, entre os anos
de 1937 e 1967, também fora considerado heroico devido às dificuldades
enfrentadas para implantação e consolidação de medidas preservacionistas do órgão (CHUVA, 2017, p. 28; CAVALCANTI, 1999, p.187).
Retornando aos números apresentados por Rubino, no levantamento apresentado para fase heroica, dos 687 bens tombados, 49.8%
é considerado arquitetura religiosa (RUBINO, 1992, p. 130 – quadro
nº 5 – tipos de bens). Mediante as informações levantadas por Rubino
532
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e apontadas por outros estudiosos do tema, o SPHAN, pelo menos no
seu início, deu grande valor aos bens religiosos (MARINS, 2008, p. 148;
CHUVA, 2017. p. 234) edificados e a reboque à arquitetura, já que 82.6%
do que foi tombado no período considerado heroico foi arquitetura, em
grande medida, como já mencionado, a religiosa, porém no rol da preservação ao estava presente a urbana, a ligada ao Estado, a rural e a
militar (RUBINO, 1992, p. 130 – quadro nº 5 – tipos de bens).
Muitas vezes encontrar informações acerca apenas do período
analisado não é uma tarefa fácil, portanto recortamos informações de
períodos anteriores ou posteriores ao de nosso interesse para preencher as lacunas. Lorraine Oliveira Nunez, que realizou seu mestrado em
preservação do patrimônio cultural no Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional – IPHAN –, ao analisar a questão patrimonialista no
Estado do Espírito Santo, Nunez afirmou que
Entre 1940 e 1965, na primeira fase com Carloni à frente das ações
do Iphan no Espírito Santo, as escolhas seguiram uma tendência
nacional, buscando-se, através da seleção de bens, construir o universo simbólico do patrimônio cultural nacional. Ao longo desses 25
anos foram tombados apenas quatro edifícios, todos exemplares da
arquitetura luso-brasileira do período colonial, sendo um de arquitetura civil e três de arquitetura religiosa. [...]. Os bens imóveis também foram privilegiados em relação aos móveis, que continuavam
relegados à proteção da igreja. (NUNEZ, 2016, p. 203)
Percebemos pelo excerto que a tendência nacional era o tombamento de arquitetura reforçada pela de caráter religioso enfatizado no
período colonial, assim como já tínhamos percebido pelos dados apresentados por Silvana Rubino. Além do Estado do Espírito Santo, o de
São Paulo também ajudou a reforçar estas preferências como apontado
por Garcez Marins de que o catolicismo teve papel central na construção da identidade patrimonial brasileira e o SPHAN teve como referência o tombamento de edificações de gabarito religioso (MARINS, 2008,
p. 145, 148-150). Para o Estado de São Paulo Marins reforçou que:
Nos anos do SPHAN sob o Estado Novo, em que Mário de Andrade
esteve a ele ligado por meio do escritório paulista, o órgão tombou
533
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
17 bens no Estado de São Paulo. [...]Nesse grupo, constituem exceções a Casa do Trem de Santos, um edifício de uso militar para guarda de armamentos e munições erguido provavelmente no primeiro
quartel do século XVIII, o Forte de São Tiago, que ajudava a defender
a barra entre Bertioga e a ilha de Santo Amaro (Guarujá) e o Sítio
de Santo Antônio, cujo tombamento atingiu a já aludida sede e sua
capela anexa. Todos os demais são edifícios religiosos, replicando
em São Paulo o padrão que o SPHAN aplicou para outros estados.
(MARINS, 2008, p. 148)
É importante mencionar que a ICAR teve um papel significativo
dentro do órgão nacional de preservação e não apenas ancorada pelo
número de preservação de suas edificações. Apontamos ainda que
dentro do SPHAN tivemos membros religiosos atuando como corpo
técnico da instituição, no período de analisamos podemos mencionar
pelo menos dois: Dom Clemente Maria da Silva Nigra e Cônego Raimundo Otávio Trindade (CHUVA, 2017, p.436; RIBEIRO, 2013, p.134-135).
Importante salientar que ambos personagens contribuíram de maneira
assídua na Revista do Patrimônio (SILVA, 2010, p. 105 – Quadro 8 – Trajetória dos autores mais assíduos da Revista do Patrimônio), este publicação foi um relevante meio de disseminação de informações referente
as discussões voltadas à área patrimonialista (CAVALCANTI, 1999, p.
188). E além de ter religiosos atuando como técnicos, a ICAR chegou a
indicar pessoas para trabalharem no SPHAN, como ocorreu com Paulo
Thedim Barreto, que colaborou já no início do órgão, atuando inclusive
como corpo técnico (BRASIL, 1958, f. 6; CAVALCANTI, 1999, p.186; CHUVA, 2017, 451).
Embora enxergamos na ICAR uma instituição com privilégios e
certa preponderância dentro do SPHAN, inclusive “A Igreja foi também a
grande beneficiária das obras de restauração empreendidas pelo Sphan,
na maioria absoluta das vezes financiadas pelo próprio poder público”
(CHUVA, 2017, p. 234). É necessário também apontar que o órgão preservacionista também obteve alguns benefícios com esta parceria:
É importante registrar que a relação do Sphan com esses
intelectuais não era apenas intelectual. Por meio dela, o órgão
construía uma aliança estratégica com a igreja católica, uma vez que
era fundamental o apoio dessa instituição para conseguir cumprir a
534
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
tarefa do “patrimônio”. Não foram raros os embates entre clérigos
da igreja e o Serviço. Esses defendendo o tombamento de um
monumento e aqueles defendendo sua autonomia para reformá-lo,
ampliá-lo ou demoli-lo. Desse modo, a intervenção de colaboradores do Serviço junto a outros eclesiásticos era imprescindível. É
significativo, quando se pensa nessa relação, que o único texto da
Revista do Patrimônio que teve o século XX como “recorte histórico”
seja justamente a transcrição da circular do arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, solicitando a colaboração da “igreja” com
as atividades do Sphan (RIBEIRO, 2013, p. 134-135).
Como caso concreto desta intervenção podemos citar o processo
de tombamento 370-T-DPHAN-47 referente à casa-grande do Sítio Morrinhos , edifício localizado no Estado de São Paulo, Dom Clemente Maria
da Silva Nigra contribuir neste processo em duas frentes: como corpo
técnico e também nas intermediações com os proprietários do imóvel,
que eram beneditinos assim como ele (MAYUMI, 2005, p. 264-267).
Considerações
Percebemos que a ICAR foi uma peça fundamental na construção
do patrimônio cultural brasileiro. E isto ocorreu devido a junção de vários fatores: a) a instituição religiosa era a proprietária de um alto número de bens considerados representantes da identidade brasileira;
b) provavelmente este alto número de bens selecionados diz respeito
ao grande período em que a ICAR esteve ligada ao Estado brasileiro;
c) religiosos trabalhando como técnicos no SPHAN; d) a ICAR indicando funcionário ao órgão. Situações demonstradas ao longo do texto e
que evidenciaram a importância desta instituição na criação e consolidação do órgão preservacionista. E auxiliando dar feição à identidade
patrimonial brasileira.
535
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ANDERSON, Benedict. Introdução. IN:
ANDERSON, Benedict. Comunidades
imaginadas: reflexões sobre a origem
e a difusão do nacionalismo. Tradução
de Denise Bottman. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
ANDRADE, Mário de. mário de
Andrade: cartas de trabalho:
correspondências com rodrigo Mello
Franco de Andrade, 1936-1945. –
Brasília: Secretaria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional:
Fundação Pró-Memória, 1981.
ANDRADE, Rodrigo M. F. de. Rodrigo
e seus tempos/ Rodrigo M.F. de
Andrade. – Rio de Janeiro: Fundação
Nacional Pró-Memória, 1986.
BOXER, Charles. O Padroado da
Coroa e as missões católicas. In:
BOXER, Charles. O Império marítimo
português 1415-1825 / Charles
Boxer; tradução Anna Olga de Barros
Barreto. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
BRASIL. Constituição (1937).
Constituição Dos Estados Unidos Do
Brasil, de 10 de novembro de 1937b.
Rio de Janeiro, 10 de novembro
de 1937. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Constituicao37.htm>,
acesso em 01/07/2019.
BRASIL. Decreto-lei nº 25, de 30
de novembro de 1937c. Organiza
a proteção do patrimônio histórico
e artístico nacional. Rio de Janeiro,
536
Capítulo I: do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Art.1. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Decreto-Lei/Del0025.htm>,
acesso em: 13/09/2018.
BRASIL. Decreto Nº 119-A, de
7 de janeiro de 1890. Prohibe a
intervenção da autoridade federal e
dos Estados federados em materia
religiosa, consagra a plena liberdade
de cultos, extingue o padroado e
estabelece outras providencias. Casa
Civil – Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Governo Provisório, Rio de
Janeiro, 1890. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/1851-1899/D119-A.htm>,
acesso em 27/06/2019.
BRASIL. Lei nº 378, de 13 de janeiro
de 1937a. Dá nova organização ao
ministério da educação e saúde
pública. Artigo 46. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/
legislacao/Lei_n_378_de_13_de_
janeiro_de_1937.pdf>, acesso em:
23/10/2018.
BRASIL. Ministério da Cultura.
Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Igreja da Ordem
Terceira do Carmo, incluindo o
seu acervo móvel, integrado e
documental, em São Paulo, SP.; Oito
quadros do século XIX, de autoria
de Padre Jesuíno do monte Carmelo,
expostos em edifício conventual das
Irmãs de São José, em Itu, SP. Nº
Processo “T” 1176. São Paulo – SP
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e Itu – SP. 1985. BRASIL. Ministério
da Cultura. Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Igreja:
Carmo (Ordem 3ª). Nº Processo “T”
586. São Paulo – SP. 1958. Processo
digitalizado pelo IPHAN.
BRASIL. Ministério da Educação e
Cultura. Secretária do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional.
Fundação Pró-Memória. Proteção e
Revitalização do Patrimônio Cultural
do Brasil: uma trajetória. Brasília
– DF, 1980. Disponível em: <http://
portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/
arquivos/Protecao_revitalizacao_
patrimonio_cultural(1).pdf, acesso
em 27/06/2019.
CANCLINI, Néstor Garcia. O Porvir do
Povo. IN: CANCLINI, Néstor Garcia.
Culturas Híbridas: Estratégias para
entrar e sair da modernidade. 4.ed
7. Reimp. – São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2015.
Cap.4.
CAVALCANTI, Lauro. Modernistas,
arquitetura e patrimônio. IN:
PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando
o Estado Novo. Organizadora: Dulce
Pandolfi. Rio de Janeiro: Ed. Fundação
Getulio Vargas, 1999. 345 p.
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os
Arquitetos da memória: sociogênese
das práticas de preservação do
patrimônio cultural no Brasil (anos
1930-1940). 2ªed. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2017.
DOLHNIKOFF, Miriam. Diogo Antônio
Feijó: padre regente. São Paulo:
537
Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2006.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O
Patrimônio em processo: trajetória
da política federal de preservação no
Brasil. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ; MinC – Iphan, 2005.
FREITAS, M. de B. (1999). Mário
de Andrade e Aloísio Magalhães:
Dois personagens e a questão
do patrimônio cultural brasileiro.
Pós. Revista Do Programa De
Pós-Graduação Em Arquitetura
E Urbanismo Da FAUUSP, (7),
71-93. Disponível em: <https://
doi.org/10.11606/issn.23172762.v0i7p71-93>, acesso em
03/07/2019.
HALL, Stuart. A identidade cultural
na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2015.
JURT, Joseph. Brasil: um estadonação a ser construído. O papel
dos símbolos nacionais, do império
à república. mANA 18(3): 471509, 2012. Disponível em: <http://
www.scielo.br/pdf/mana/v18n3/
a03v18n3.pdf>, acesso em
09/01/2018.
LUI, Janayna de Alencar. “Em
nome de Deus”: um estudo sobre
a implementação do ensino
religioso nas escolas públicas de
São Paulo. Dissertação (Mestrado
em Antropologia Social) –
Departamento de Antropologia
Social da Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2006.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Orientação de Prof. Dra. Maria Amélia
Schmidt Dickie.
MARINS, Paulo César Garcez.
Trajetórias de preservação do
patrimônio cultural paulista. IN:
SETÚBAL, Maria Alice (coord. do
projeto) Terra paulista: trajetórias
contemporâneas. São Paulo:
CENPEC/Imprensa Oficial, p. 137167, 2008.
_____. Novos patrimônios, um
novo Brasil? Um balanço das
políticas patrimoniais federais
após a década de 1980. Estudos
Históricos (Rio de Janeiro), v. 29, p.
9-28, 2016. Disponível em: <http://
bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/
reh/article/view/59122/59342>,
acesso em 13/01/2018.
MAYUMI, Lia. Taipa, canela preta
e concreto: um estudo sobre a
restauração de casas bandeiristas
em São Paulo. 329f. Tese (doutorado
em estruturas ambientais urbanas)
– Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2005. Orientação
de Prof. Dr. Carlos Alberto Cerqueira
Lemos.
MICELI, Sergio. SPHAN: refrigério
da cultura oficial. Intelectuais à
brasileira. São Paulo: Companhia das
Letras, p.357-368, 2001.
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência
religiosa: entre a capela e o calundu.
IN: SOUZA, Laura de Mello e. História
da vida privada no Brasil: cotidiano e
vida privada na América Portuguesa
538
/ coordenador-geral da coleção
Fernando A. Novais; organização
Laura de Mello e Souza. – São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. –
(História da vida privada no Brasil; 1).
MOREIRA, Thami Amarílis Straiotto.
O Ato de Nomear- da Construção de
Categorias de Gênero até a Abjeção.
Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 4,
t. 4, p. 2914-2926.Disponível em:
<http://www.filologia.org.br/xiv_cnlf/
tomo_4/2914-2926.pdf>, acesso em
27/06/2019.
NEVES, Guilherme Pereira das. A
religião do Império e a Igreja. In
GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo
(Orgs.). O Brasil imperial: volume I,
1808-1831. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011. v. 1.
P.377 – 428.
NUNEZ, Lorraine Oliveira. As
transformações no conceito de
patrimônio do IPHAN e suas práticas
de tombamento no estado do Espírito
Santo. FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP,
v.3, nº2, p. 194-212, jul.-dez., 2016.
RABELLO, Sonia. Introdução. IN:
RABELLO, Sonia. O Estado na
preservação dos bens culturais: o
tombamento. Rio de Janeiro: IPHAN,
2009.
REIS, João José. A morte é uma festa:
ritos fúnebres e revolta popular
no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das letras, 1991.
REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO,
Bettina; TEIXEIRA, Luciano;
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
THOMPSON, Analucia. Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN. In: ______.
(Orgs.). Dicionário IPHAN de
Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro,
Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015.
(verbete). ISBN 978-85-7334-279-6.
Disponível em: <http://portal.iphan.
gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/
detalhes/55/instituto-dopatrimonio-historico-eartistico-nacional-iphan-19701979-e-1994>, acesso em:
30/08/2016.
RIBEIRO, Robson Orzari. Revista Do
Patrimônio Histórico E Artístico
Nacional: Textos De História Da Arte
Engajados Na Política De Preservação
No Brasil. 261f. Dissertação (Mestrado
em História da Arte) – Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2013. Orientação de Prof.
Dr. Marcos Tognon.
RUBINO, Silvana. As fachadas da
história: os antecedentes, a criação e
os trabalhos do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, 19371968. Dissertação (Mestrado em
Arqueologia) – Departamento de
Antropologia do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas, Campinas,
SP, 1992. Orientação de Dr. Antonio
Augusto Arantes Neto.
SANTOS, Lourival dos. O
enegrecimento da Padroeira do
Brasil: religião, racismo e identidade
(1854-2004). Salvador: Editora
Pontocom, 2013. Série Acadêmica, 3.
Coleção NEHO-USP.
539
SCIFONI, Simone. Educação e
patrimônio cultural: reflexões sobre
o tema. IN: Caderno Temático de
Educação Patrimonial 2. João Pessoa:
Superintendência do Iphan na
Paraíba, p.30-37, 2012.
SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato
e conflito social: uma história da
Igreja católica no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
SILVA, Cintia Mayumi de Carli.
Revista do Patrimônio: editor,
autores e temas. 185 f. Dissertação
(mestrado) – Centro de Pesquisa
e Documentação de História
Contemporânea do Brasil, Programa
de Pós-Graduação em História,
Política e Bens Culturais. Fundação
Getúlio Vargas, Rio de Janeiro – RJ,
2010. Orientação de Ângela Maria de
Castro Gomes
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira.
Religião e Política no Primeiro
Reinado e Regências: a atuação
dos padres-políticos no contexto
de formação do Estado imperial
brasileiro. Revista Almanack
Braziliense n°08, p.127-137,
novembro 2008. Disponível em: <
www.revistas.usp.br/alb/article/
download/11700/13471>, acesso
em 02/02/2014.
SOUZA, Mauro Ferreira de. A Igreja e
o Estado: uma análise da separação
da Igreja Católica do Estado brasileiro
na Constituição de 1891. Dissertação
(Dissertação em Ciências da Religião)
– Universidade Presbiteriana
Mackenzie. São Paulo – SP, 2007.
Orientação de Prof. Dr. João Baptista
Borges Pereira.
[ Volta ao Sumário ]
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
o vatiCano
alteRnativo:
o espaço sagrado nos
discursos da igreja Católica
palmariana (1978-2005)
Pedro Luiz Câmara Dantas
Como referenciar este capítulo:
DANTAS, Pedro Luiz Câmara. O Vaticano alternativo: o espaço sagrado nos
discursos da Igreja Católica Palmariana (1978-2005). In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 533-547.
Pedro Luiz Câmara Dantas1
Introdução
No Catolicismo Romano, as aparições da Virgem são fenômenos
muito antigos, existindo alguns relatos que demonstram a existência de
contatos diretos entre Maria e inúmeras pessoas desde tempos remotos. No entanto, esses acontecimentos são sujeitos a questionamentos
acerca de sua veracidade, envolvendo altos clérigos da Igreja, teólogos
especialistas em aparições e os videntes. Muitas das narrativas em torno das aparições marianas permaneceram afastadas do reconhecimento e da oficialidade concedidas pela Igreja Católica, sendo jamais tidas
como verdadeiras nem recebendo o status de oficiais, uma vez que a
mesma Igreja considera que uma aparição verídica é um tipo de revelação de caráter privado, sendo diferente de uma revelação divina. Sobre
isso, Magnus Lundberg afirmou:
From the official Roman Catholic perspective, a true apparition is a
type of private revelation. [...]Divine revelation is already complete,
perfected in Christ. [...] One of the differences between the divine
and private revelations is that the later is not considered a necessary
matter of Faith; Catholics are not requested to believe in private
apparitions, even if they are authorized by the church (LUNDBERG,
2017, p. 17).2
Foi em meio a este contexto mundial de manifestações do sagrado
que emergiram as narrativas acerca das aparições de Nossa Senhora do
Mestrando em História e Espaços pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7129727215897777. E-mail: pluizcd@gmail.com.
2
Na perspectiva católica romana oficial, uma verdadeira aparição é um tipo de revelação
privada. [...] A revelação divina já está completa, aperfeiçoada em Cristo. [...] Uma das diferenças entre as revelações divinas e privadas é que esta última não é considerada uma
questão necessária da Fé; os Católicos não são solicitados a acreditarem em aparições
privadas, mesmo que sejam autorizados pela igreja LUNDBERG, 2017, p. 17).
1
541
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Carmo, ocorridas no povoado espanhol de El Palmar de Troya a partir
do dia 30 de março de 1968. Os acontecimentos que se sucederam
ao advento dessas aparições resultaram no surgimento de uma nova
ordem religiosa desautorizada pelo Vaticano (os Carmelitas da Santa
Face), que posteriormente se separou da Igreja Católica Apostólica
Romana e se tornou uma nova Igreja independente seu próprio papa,
doutrina e liturgia.
A Igreja Palmariana
A história da Igreja Católica Apostólica e Palmariana começou com
as aparições da Virgem do Carmo registradas no povoado de El Palmar
de Troya, interior da Província de Sevilha na Espanha. No dia 30 de março de 1968, quatro meninas da localidade, Ana García, Josefa, Rafaela
e Ana Aguillera, afirmaram haver visto uma bela mulher sobre um pequeno arbusto (lentisco) no campo de La Alcaparrosa, que fica a 1 km
de distância do Palmar. A história rapidamente se espalhou por todo o
povoado e para outras cidades da Andaluzia, mobilizando grandes multidões que passaram a se dirigir ao terreno para rezarem o rosário à
espera de algum sinal da presença da Virgem. Devido a esse fluxo de
peregrinos, o grande campo passou a ser chamado de Lugar das Aparições. Sobre esta primeira aparição, Garrido Vázquez (2004, p. 102) fez a
seguinte descrição:
Vimos una cara de mujer muy guapa, con ojos negros y bonitos.
Al principio pensamos que era un ahorcado, o un toro con cuernos
verdes, pero luego vimos que era la cara de la Señora, muy redonda y sonrojada, con una cosa verde alrededor de ella y vestida con
un manto marrón. Nos sonreía. Era la Virgen (GARRIDO VÁZQUEZ,
2004, p. 102).3
Vimos um rosto de mulher muito bonita, com belos olhos negros. A princípio pensamos
que era um homem enforcado, ou um touro com chifres verdes, mas depois vimos que era o
rosto da Senhora, muito redondo e corado, com uma coisa verde ao seu redor e vestida com
um manto marrom. Ele sorriu para nós. Era a Virgem (GARRIDO VÁZQUEZ, 2004, p. 102).
3
542
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Foi em meio a esse cenário que começaram a surgir outras pessoas que também se diziam videntes, retirando das quatro meninas
pioneiras o protagonismo das visões. Assim, meses mais tarde, Clemente Domínguez y Gómez (1946-2005), um jovem de 23 anos que era
funcionário de uma empresa de Sevilha, visitou o lugar, passando a ir
até lá com mais frequência na companhia de seu amigo Manuel Alonso
Corral (1934-2011).
Esses dois personagens tiveram papel central na criação da Ordem religiosa que seria a precursora da Igreja Palmariana. Primeiramente, Clemente, que a partir do mês de setembro de 1969 passou a
afirmar que também tinha visões e entrava em estado de êxtase durante elas. Poucos anos mais tarde, dizendo estar em diálogo com Jesus e
vários santos católicos, recebeu deles a missão de espalhar pelo mundo
a devoção à imagem do rosto de Cristo do Sudário de Turim, conhecida
também como Santa Face.
Noutra dessas visões, a Virgem Maria conferiu ao vidente a missão
de fundar uma nova ordem religiosa que seria junção de todas as ordens
existentes na Igreja e a guardiã da tradição. Dessa forma, por meio desta
revelação divina que ele afirmou receber, Clemente fundou a Ordem dos
Carmelitas da Santa Face, nome derivado da própria devoção à imagem
do rosto de Cristo, no dia 23 de dezembro de 1975.4 Se Clemente, à época
como o mais importante vidente do Palmar e fundador da nova Ordem
religiosa, passou a exercer o papel de líder entre os adeptos do seu grupo,
Manuel Alonso foi designado a uma série de funções administrativas, se
tornando a segunda pessoa mais importante dentro da Ordem.5
O movimento religioso do Palmar de Troya se inseriu numa forma
de vivência da fé que apareceu no Catolicismo Romano a partir do início
do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), e que se solidificou e
se acentuou após sua conclusão: o Tradicionalismo Católico. Os chamados católicos tradicionalistas, entre outras questões, reivindicam a continuidade de uma série de pontos doutrinários que sofreram alterações
A data de fundação da Ordem dos Carmelitas da Santa face está no Capítulo LXX do
Catecismo Palmariano de Grau Superior.
5
Após a morte de Clemente (Papa Gregório XVII do Palmar) em 2005, Manuel Alonso se
tornou seu sucessor no papado adotando o nome de Pedro II.
4
543
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
durante o concílio, sendo o aspecto ritualístico, o mais visível sinal de
sua presença dentro da Igreja, pois muitos grupos permaneceram fazendo uso da chamada Missa Tridentina, celebrada em latim.
Com o crescimento do número de seguidores da congregação e
dada a ausência de sacerdotes que a representassem, sabendo da passagem do arcebispo tradicionalista vietnamita Pierre Martin Ngô Đình
Thc (1897-1984) pelo Palmar de Troya, Clemente e Manuel Alonso se
mobilizaram para solicitar a este arcebispo que os concedesse a ordenação sacerdotal.
No dia 01 de janeiro de 1976, atendendo ao pedido dos palmarianos, Clemente Domínguez e Manuel Alonso, junto a mais três religiosos
da Ordem, foram ordenados padres da Igreja Católica segundo o Rito
Tridentino. Dez dias depois, a 11 de janeiro, o mesmo arcebispo Thc os
elevou ao bispado em uma cerimônia de sagração celebrada no altar do
Lugar das Aparições. As ordenações logo foram reportadas às autoridades eclesiásticas da região e o arcebispo Thc, junto com Clemente, Manuel Alonso e os demais ordenados, foram oficialmente excomungados
da Igreja Católica Apostólica Romana por decreto do então núncio papal
na Espanha.
Em maio do mesmo ano, em missão no País Basco, Clemente sofreu um grave acidente automobilístico que o deixou completamente
cego. Mas ele, mesmo nesta condição, continuou à frente do seu movimento, presidindo os ritos e ordenando mais padres e bispos. Devido
à perda de seus olhos e suas posteriores visões celestiais, o fundador
da Ordem dos Carmelitas da Santa Face foi apelidado de vidente cego.
Quanto a este acidente, a documentação produzida pela Igreja Palmariana diz o seguinte:
El 29 de mayo de 1976, en uno de sus incansables viajes apostólicos,
el Padre Clemente Domínguez perdió sus dos ojos en un accidente
automovilístico, lo cual fue para él de inimaginable sufrimiento. No
obstante, como ciego, continuó con la misma intensidad apostólica
por España, otras naciones de Europa y de América, proclamando
en sus sermones la Verdadera Fe, la Tradición y la Santa Moral,
defendiendo enérgicamente al Papa San Pablo VI, combatido por
progresistas y tradicionalistas, y denunciando principalmente las
herejías y corrupciones propagadas por cardenales y obispos desde
544
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
el Vaticano y distintas diócesis (MENSAJES SOBRE LA SANTA FAZ,
2018, p. 5).6
Em 6 de agosto de 1978, a morte do Papa Paulo VI (1897-1978),
acontecida naquele mesmo dia, estava sendo noticiada em todo o mundo. Clemente estava numa viagem apostólica à capital da Colômbia tentando conseguir mais membros para a sua Ordem religiosa e angariar
fundos. Rapidamente, ao tomar conhecimento da notícia, o fundador
dos Carmelitas da Santa Face caiu em êxtase, afirmando receber outra
mensagem divina através de uma visão. Nela, o próprio Jesus Cristo o
coroava papa na presença dos apóstolos Pedro e Paulo. De volta a Sevilha em 9 de agosto, o agora Papa Gregório XVII, nome que ele adotou
durante a visão acontecida em Bogotá, afirmou que a Sé de Roma havia
sido misticamente transferida para El Palmar de Troya e que a verdadeira Igreja Católica e Apostólica já não era mais Romana, mas sim, Palmariana, em referência à localidade das aparições. Sobre isso, o Catecismo
Palmariano de Grau Superior afirma:
4. A Igreja Palmariana é a única e autêntica Igreja Cristã, nome de
que vem de Cristo, seu Divino Fundador. 5. No dia 6 de agosto de
1978, depois da morte do Papa São Paulo VI, Nosso Senhor Jesus
Cristo, acompanhado dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, elegeu
e coroou ao novo Papa, Sua Santidade Gregório XVII. Desde esse
momento, a igreja romana deixou de ser a verdadeira igreja (CATECISMO PALMARIANO DE GRAU SUPERIOR, 2003, p. 47).
Com a crença na mudança da Sé Papal para essa nova localidade,
a Igreja Católica Apostólica Romana, que não deixou de existir por causa
disso, passou a ser considerada uma seita herética pelos palmarianos.
Em 29 de maio de 1976, em uma de suas incansáveis viagens apostólicas, o Padre Clemente Domínguez perdeu seus dois olhos em um acidente automobilístico, o qual foi para
ele de inimaginável sofrimento. Não obstante, como cego, continuou com a mesma intensidade apostólica pela Espanha, outras nações da Europa e da América, proclamando em
seus sermões a Verdadeira Fé, a Tradição e a Santa Moral, defendendo energicamente o
Papa São Paulo VI, combatido por progressistas e tradicionalistas, e denunciando principalmente as heresias e corrupções propagadas por cardeais e bispos do Vaticano e distintas dioceses (MENSAGENS SOBRE A SANTA FACE, 2018, p. 5).
6
545
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Isso criou um Vaticano alternativo no povoado do Palmar de Troya, já
que, para os seguidores do Papa Gregório XVII, o papado de Roma continuava a existir em heresia. Clemente foi coroado em Sevilha no dia 15
de agosto, onde recebeu as insígnias papais das mãos de seus bispos.
Como sinal de obediência e lealdade, o novo papa também foi reverenciado por seu colégio episcopal, pelas monjas e demais fiéis membros
da Ordem dos Carmelitas da Santa Face presentes na cerimônia.
A criação do Vaticano Alternativo
Quando Clemente valeu-se de outra de suas visões para declarar-se
como legítimo papa católico, subverteu a lógica de muitos grupos tradicionalistas que preferiram manter a doutrina e a liturgia tradicionais
em comunhão com o Bispo de Roma. Assim, mesmo se colocando como
verdadeiro Pontífice Máximo, instituiu uma nova forma de crença com
acréscimos doutrinários extra-canônicos que se distanciaram do Catolicismo Romano e mantiveram uma estética balizada por elementos diretamente extraídos das crenças marianas da Andaluzia.
Somando-se a isso, ainda se observa que sua Igreja Palmariana difundiu, a partir de 1978 um sistema teológico bastante elaborado que
tem raízes no catolicismo romano tradicionalista e nas devoções populares oriundas da cultura da Andaluzia. Sobre estes fatores, na página dezoito do Extrato Atualizado dos Documentos Pontifícios de Sua Santidade o
Papa Gregório XVII está o Nono Documento papal que trata da total ruptura
da Igreja Palmariana com a Igreja de Roma. Sobre isso, lê-se o seguinte:
Nos, declaramos como Doctrina Infalible que, la Iglesia fundada por
Nuestro Señor Jesucristo, Una, Santa, Católica y Apostólica, radica en
esta Sede Apostólica del Palmar de Troya, de la que Nos, por la infinita
misericordia de Dios, somos la Cabeza Visible. Nos, declaramos como
Doctrina Infalible, que sólo hay una única verdadera Iglesia; y ésta
se cumple en la Santa Sede del Palmar de Troya (EXTRACTO DE LOS
DOCUMENTOS PONTIFICIOS, 2002, p. 18).7
Nós declaramos, como doutrina infalível, que a Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus
Cristo, Una, Santa, Católica e Apostólica, radica nesta Sede Apostólica do Palmar de Troya,
7
546
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Observando a narrativa presente neste fragmento documental,
percebe-se que a Igreja Palmariana, através da pessoa de seu fundador,
apropria-se de um estilo de escrita muito comum em decretos, bulas e
outros documentos papais católicos, especialmente ao iniciar os períodos com nós, ao invés de eu. Esse tipo de referência na primeira pessoa
do plural serve para mostrar que a figura do papa, mesmo no caso palmariano, transcende a individualidade daquele que ocupa o cargo e se
manifesta como um conjunto de agentes que operam por meio dele.
A construção de espaço sagrado que aqui é apresentada se torna perceptível não apenas por meio desses elementos textuais, mas de
forma geral, como característica do propósito que esta organização religiosa quer mostrar como um de seus pilares de sustentação mais importantes: a reivindicação da legítima sucessão apostólica por meio de
seu colégio episcopal e a sucessão do papado Católico Romano através
do próprio Clemente. Assim, a Igreja Palmariana fez um duplo processo
de afastamento em relação à Igreja Católica Apostólica Romana, pois
tomou seu fundador como verdadeiro líder desta última e transferiu sua
sede para outro lugar, que é o Palmar.
A perspectiva político-religiosa do Santoral Palmariano
A Igreja Católica Palmariana realizou, desde o momento de sua
fundação formal em 6 de agosto de 1978, uma série de canonizações
que elevaram aos seus altares personagens históricos, particularmente
de origem espanhola. Dentro da análise documental do Extrato dos Documentos Pontifícios de Gregório XVII, noutra sessão que trata de algumas
das canonizações realizadas por este pontífice alternativo, o nome do
ex-ditador espanhol Francisco Franco Bahamonde (1892-1975), aparece listado entre os santos do Palmar como invicto Caudilho da paz,
conforme mostrado na seguinte citação:
da qual Nós, pela infinita misericórdia de Deus, somos a Cabeça Visível. Nós declaramos
como Doutrina Infalível que só há uma única verdadeira Igreja; e esta se cumpre na Santa
Sé do Palmar de Troya (EXTRACTO DE LOS DOCUMENTOS PONTIFICIOS, 2002, p. 18).
547
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
San Francisco Franco, fue el invicto Caudillo de la guerra contra
el comunismo, y también fue el Caudillo de la paz. Durante su
carismática Jefatura de Estado restableció el sagrado respeto a la
Iglesia Católica, convirtiéndola en religión oficial y única del estado y
de la patria (EXTRACTO DE LOS DOCUMENTOS PONTIFICIOS, 2002,
p. 37).8
Observando este fragmento documental retirado do já referido Extrato dos Documentos Pontifícios do fundador da Igreja Palmariana, percebe-se que esta compilação de decretos pretende ser um guia prático
para a compreensão e o conhecimento desse mesmo tipo de documentação nele contida, bem como um guia dinâmico da biografia de seus
santos. Assim, nesse caso, o objetivo deste documento está centrado
nas engrenagens da pesquisa histórica em forma de hagiografia, ou
seja, de uma história biográfica sagrada moldada a partir do fornecimento de uma série de fontes, tomadas como obras históricas, e como estas
apresentam uma melhor imagem desses personagens.
Dentro do livro, dois importantes alicerces fornecem dados que
certamente são indispensáveis para qualquer pesquisador que faça
buscas sobre estes santos: os dados biográficos contidos nas narrativas
da vida e morte deles, e o discurso visivelmente político que se soma
aos seus dados. O Extrato dos Documentos Pontifícios ainda apresenta
exemplos retirados das supostas experiências de vida dos próprios santos em seu campo de trabalho, mostrando detalhadamente como interpretações de questões pessoais importantes podem ser aplicadas nessa mesma análise documental, sendo pressupostos de santidade para
eles. Seguindo essa linha de raciocínio, num trabalho que trate da construção do espaço sagrado da Igreja Palmariana, esses fatores também
implicam observar uma teia de relações entre os discursos e os projetos
políticos visivelmente expostos nos textos oficiais dessa organização.
São Francisco Franco foi o invicto Caudilho da guerra contra o comunismo, e também
foi o Caudilho da Paz. Durante sua carismática Chefia de Estado, restabeleceu o Santo
Crucifixo em todos os centros oficiais. Restabeleceu o sagrado respeito à Igreja Católica,
convertendo-a em religião única do estado e da pátria (EXTRACTO DE LOS DOCUMENTOS
PONTIFICIOS, 2002, p. 37).
8
548
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A simpatia dos palmarianos pelo regime franquista, a ponto de
canonizarem o próprio Franco e colocarem sua estátua9 na fachada de
sua basílica, é mais uma amostra de como eles imaginaram aquilo que
depois chamariam de Império Hispano-Palmariano10. Este estado militar
idealizado teria o Papa Clemente como chefe e Caudilho, e dominaria
os cinco continentes. Assim, diante das narrativas acerca do santoral
palmariano, nota-se que esses fatores político-religiosos podem ser
aplicados no olhar que se deve ter sobre o projeto político da Igreja Palmariana e como estes surtiram efeito na localidade onde está sua sede
mundial, mas sobretudo, na mentalidade de seus seguidores.
As atribuições dadas a maria e José na doutrina
Palmariana
Outro fator que ainda pode ser considerado neste trabalho é o dos
novos significados dados às figuras de Maria e de José na doutrina da
Igreja do Palmar de Troya. A estes dois santos católicos, que exerceram papéis centrais na narrativa da vida do próprio Cristo e da Igreja, se
adicionaram mais atribuições extra-canônicas que os divinizaram e os
elevaram à um patamar muito superior ao dos demais santos, quase
que os tornando divindades de caráter secundário, num tipo de nova
perspectiva trinitária em que Maria e José passam a formar uma Trindade similar à do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No Capítulo XVI do
No mês de julho de 2015 a estátua de Franco foi removida da fachada da Basílica do
Palmar, sendo substituída pela estátua de São Fernando III, Rei de Leão e Castela. Informação extraída da notícia do jornal UtreraWeb de 03/08/2015. Disponível em: <https://
www.utreraweb.com/noticias_de_utrera/5562/La_basilica_de_El_Palmar_de_Troya_
retira_la_escultura_del_general_Franco_y_la_sustituye_por_San_Fernando/> (acesso em 10/08/2018).
10
O Sacro Império Hispânico Palmariano é um estado teocrático e militar idealizado pelo
Papa Gregório XVII. Ele acreditava que o mundo viveria uma Terceira Guerra, e que depois
desta, os sobreviventes se refugiariam na Catedral Basílica do Palmar, que permaneceria
intacta. Todo o planeta falaria espanhol e os bispos palmarianos seriam reis dos países.
O papa seria o imperador e caudilho de todo o mundo. Mesmo após a morte de Gregório
XVII em 2005, os seus sucessores mantiveram a crença na concretização deste império
no futuro.
9
549
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Catecismo Palmariano de Grau Superior, intitulado A Santíssima Virgem
Maria se lê o seguinte:
9. A Divina Maria, além do estado natural glorioso que possui sempre em sua Alma e em seus corpos, teve também, durante a maior
parte de sua vida na terra, estado passível em sua Alma e seu Corpo
acidental, a fim de poder sofrer por nós. Seu Corpo essencial jamais
teve estado passível. 10. No Céu, a Alma Divina de Maria exerce as
funções superiores beatíficas para com seu corpo essencial e as
funções inferiores beatíficas para com seu Corpo acidental. [...]12.
Maria supera em santidade a todos os Anjos e Santos juntos (CATECISMO PALMARIANO DE GRAU SUPERIOR, 2003, p. 28).
Observando esse fragmento documental, percebe-se que há uma
série de atributos dados à Virgem que a colocam em uma condição de
divindade, muito próxima de Cristo. O Papa Gregório XVII, logo depois de
sua autoproclamação, elaborou uma série de novos dogmas marianos,
muitos dos quais, a Igreja Católica Romana historicamente discutiu se
poderiam ou não serem aprovados, dada a grande exaltação que atribuem a Maria.
Na doutrina palmariana, a Virgem é considerada co-Redentora,
co-Reparadora e mediadora no plano da Salvação, sendo inúmeras vezes chamada de Divina Maria nos textos que a ela se referem. Outro
fator que visivelmente apresenta sua divinização por parte da Igreja do
Palmar é o da crença em sua presença real no sacramento da Eucaristia.
Assim, sabendo que a doutrina da Igreja Palmariana é complexa, e está
carregada de referências históricas e bíblicas para justificar seus argumentos, no documento denominado Tratado de la Misa, aparecem várias atribuições doutrinárias específicas da Virgem, entre as quais está
a preexistência de sua alma e sua presença espiritual no Sacramento da
Comunhão através da entronização de uma gota de seu sangue e de um
pedaço de seu coração no corpo de Jesus Cristo. Muitas dessas considerações foram aprovadas durante o Primeiro Concílio Palmariano11, e,
sobre isso, o referido Tratado destaca:
O Primeiro Concílio Palmariano, também denominado de Santo Magno e Dogmático Concílio
Palmariano, foi uma série de reuniões convocadas pelo então Papa Gregório XVII para tratar da doutrina e da liturgia de sua Igreja junto com todos os seus bispos em 1980.
11
550
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Este Santo Concilio manifiesta con júbilo su gratitud a la Trinidad
Augusta, por haber revelado ahora el misterio de la presencia
sacramental, en el Inmaculado Corazón de María, de los
sacramentos de la Gota de Sangre de Ella y de su Trozo de Corazón,
que el Espíritu Santo obró con amorosísimo anhelo de Esposo.
Dichos sublimísimos sacramentos, son la expresión más hermosa
y perfecta de la Consagración que la Divina María hizo a Dios de
su Carne y Sangre para la Obra de la Reparación y Redención;
generosísima entrega que Ella efectuó nuevamente de Sí misma,
mediante su voto de perpetua virginidad, en el mismo instante de
su Inmaculada Concepción (TRATADO DE LA MISA, 2002, p. 80).
Conforme visto no fragmento documental anterior, ao Sacramento da Eucaristia se adicionaram mais dois sacramentos extra-canônicos, que divinizaram a Virgem Maria. Ao afirmar que uma gota de seu
sangue e um pedaço de seu coração, entronizados no corpo de Cristo,
são a expressão máxima de sua consagração total à obra de Deus, à
Igreja Palmariana deu status de divindade à Virgem. Isso a coloca num
patamar muito próximo ao de Jesus Cristo, que assim como para a Igreja
Romana, é Deus. No documento, os sacramentos da Gota de Sangue e
do Pedaço do Coração aparecem adicionados ao sacramento eucarístico,
através dos quais a Divina Maria está espiritualmente presente com Jesus na hóstia consagrada. Sobre isso, pode-se destacar:
After this proclamation, the Palmarians took one further step in
declaring that both Christ and the Virgin Mary are present in the
Eucharist, as she never left the side of Christ. It is also stated that
her presence in the Eucharist is in no way symbolic, but real. Not
only the body and blood of Christ is present in the Eucharist, but
also the Virgin, kneeling beside him (LUNDBERG, 2017, p. 195).
Dessa maneira, a presença real de Jesus e Maria na Sagrada Forma
é fato inquestionável para os palmarianos. Por isso, o papa e os padres
conciliares do Primeiro Concílio Dogmático elaboraram o Tratado da Missa para justificar teologicamente suas doutrinas. Esse mesmo documento já vinha sendo publicado em diversos volumes separados desde
1982, até ter sido compilado e lançado como único livro. Sobre São José,
a o Catecismo Palmariano de Grau Superior apresenta os argumentos que
551
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
justificam sua divinização, particularmente a partir da prerrogativa da
pré-santificação a ele atribuída. No capítulo XVII do Catecismo, intitulado O Santíssimo José, afirma-se o seguinte:
4. São José, foi pré-santificado no terceiro mês de sua concepção,
recebendo a Habitabilidade do Espírito Santo. Desde esse mesmo
instante gozou do uso da razão, da visão beatífica, da ciência infusa
e de outros altíssimos dons; e também, desde então, seus corpos
essencial e acidental foram perfeitíssimos e belíssimos. [...] 10. Depois de Maria, São José, em graças e prerrogativas, supera a todos
os Anjos e Santos juntos. 11. São José é: Co-Sacerdote da Divina
Maria. Pai e Doutor da Igreja (CATECISMO PALMARIANO DE GRAU
SUPERIOR, 2003, p. 29-30).
Tendo observado atentamente estes fragmentos, mesmo que os
dois sejam uma minúscula amostra da vastidão de doutrinas e conceitos de fé elaborados pela Religião Palmariana, identifica-se que esta
instituição religiosa realmente deificou estes dois personagens de seu
santoral, colocando-os em um lugar muito próximo ao do próprio Deus.
Assim, considerando Maria e José como divindades, a Sagrada Família
aparenta assumir um papel trinitário similar ao da já referida Santíssima
Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), que igualmente ao que foi estabelecido pela Igreja Romana, é um só Deus para a Igreja Palmariana.
Para a temporalidade de vinte e sete anos abarcada neste trabalho, tentou-se extrair da documentação analisada os pontos mais
intrinsecamente atrelados ao caráter das aparições e à fundação da
Igreja, pois englobaram suficientemente a maior concentração discursiva pertinente a um artigo com a dimensão deste. Ainda nesse sentido,
pode-se estabelecer mais um nexo entre as anteriormente referidas
atribuições dadas a Maria e José pela Igreja Palmariana como fator para
a criação de uma identidade e de uma nova espacialidade sagradas que
se configuram por meio desses acréscimos extra-canônicos forjados a
partir de sua fundação em 1978.
Quanto à Ordem dos Carmelitas da Santa Face, pode-se dizer que
esta foi a precursora da Igreja Católica Apostólica e Palmariana, pois o
que aconteceu em 1978 foi que seu superior-geral e fundador, Clemente Domínguez y Gómez, ao se proclamar papa, criou a Igreja do Palmar
552
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e fez da então congregação Carmelita, a única ordem religiosa dentro
de sua Igreja. Todo fiel palmariano é terciário da Ordem dos Carmelitas
da Santa Face, enquanto suas religiosas e clérigos correspondem aos
ramos de segundo e primeiro graus respectivamente.
Considerações finais
Os referenciais de matriz católica romana que dão base às crenças
da Igreja Palmariana, ainda que ampliados e/ou modificados em meio às
tradições do imaginário religioso oriundo da cultura da província de Sevilha, como no caso do estilo iconográfico de suas imagens de culto, são
mais uma amostra de como essa cismática Igreja procura afirmar-se
como um catolicismo genuinamente espanhol em detrimento do herético Catolicismo Romano do Concílio Vaticano II, conforme adjetivado em
seus discursos.
Quanto ao nome oficial da instituição, que se chama Igreja Cristã
Palmariana dos Carmelitas da Santa Face, este se deveu à já mencionada
inserção da Ordem Carmelitana fundada por Clemente em 1975 dentro
da nova Igreja. A ausência dos termos católica e apostólica, como apareceu aqui várias vezes, ocorreu devido a um problema de registro jurídico
acontecido na década de 1980. Pelo fato de ter sido considerada uma
cópia da Igreja Católica Apostólica Romana e uma afronta à sua identidade, o Ministério da Justiça Espanhol solicitou que a Igreja do Palmar
de Troya adotasse outra nomenclatura para poder obter reconhecimento jurídico. Por isso o termo Igreja Católica, Apostólica e Palmariana, como
aparece nas fontes aqui analisadas, foi substituído por Igreja Cristã. Dessa maneira, conclui-se o presente trabalho na certeza de que o movimento palmariano, ao romper com a Igreja Católica de Roma, se tornou
uma nova religião que busca ser a continuidade desta última por meio
da pessoa de seus papas e de seu aparato ritualístico e doutrinário.
553
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
CATECISmO PALmARIANO DE GRAU
SUPERIOR. Sevilla: Santo Sínodo
Dogmático Palmariano, 2003, 149p.
GARRIDO VÁZQUEZ, Moisés. El
negocio de la virgen. Madrid:
Ediciones Nowtilus, 2004.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o
Profano: A Essência das Religiões.
São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LUNDBERG, Magnus. A Pope of
Their Own: Palmar de Troya and the
Palmarian Church. Uppsala: Uppsala
University, Department of Theology,
2017.
EL TRATADO DE LA mISA A LA LUZ
DE LA HISTORIA SAGRADA O SANTA
BIBLIA PALmARIANA. Sevilla: Santo
Sínodo Dogmático Palmariano, 2002,
248p.
EXTRACTO ACTUALIZADO DE LOS
DOCUmENTOS PONTIFICIOS DE SU
SANTIDAD EL PAPA GREGORIO XvII A
LA LUZ DE LA HISTORIA SAGRADA O
SANTA BIBLIA PALmARIANA. Sevilla:
Santo Sínodo Dogmático Palmariano,
2002, 360p.
mENSAJES DADOS A CLEmENTE
DoMínGueZ Y GÓMeZ, HoY eL PaPa
san GreGorio xvii MaGnísiMo
SOBRE LA SANTA FAZ DE NUESTRO
SEÑOR JESUCRISTO. 2019. Disponível
em: <https://cdn.ocsficp.org/
wp-content/uploads/2018/06/
Mensajes-de-la-Santa-Fazespa%C3%B1ol.pdf>. Acesso em: 28
fev. 2019.
[ Volta ao Sumário ]
554
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
paRa além dos
pRoCessos: a imprensa
portuguesa e os livros
do episcopado como
fontes para os estudos
inquisitoriais (1543 – 1589)
maria Eduarda de medeiros Brandão
Carlos André macedo Cavalcanti
Como referenciar este capítulo:
BRANDÃO, Maria Eduarda de Medeiros; CAVALCANTI, Carlos André Macedo.
Para além dos processos: a imprensa portuguesa e os livros do episcopado
como fontes para os estudos inquisitoriais (1543 – 1589). In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 548-565.
Maria Eduarda de Medeiros Brandão1
Carlos André Macedo Cavalcanti2
O processo inquisitorial é fonte primária comum na historiografia
do Santo Ofício, possibilitando abordagens diversas e sendo a base para
obras célebres como O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg (1976). No
entanto, com o avanço do campo, percebe-se não só a possibilidade,
como também a necessidade, de análise do objeto por fontes que vão
além deste conjunto documental, para maior amplitude do escopo de
observação dos elementos que compunham a conjuntura inquisitorial.
O quinhentismo representou para Portugal um momento intelectualmente rico, atrelado ao humanismo e às possibilidades proporcionadas pela imprensa, que chega ao reino em 1489. Contudo, o
momento de contrarreforma católica, sentenciou as obras à censura.
Em consequência disto, encontra seu lugar nas publicações o bispado;
intelectuais que não apenas precisavam legitimar seus cargos, mas
também assumirem a nova postura pastoral que Trento passou a exigir.
Intenciona-se neste trabalho apontar os livros publicados por estes bispos como fontes primárias possíveis, para pensar a sintonia ideológica entre o episcopado e a inquisição, historicizando a relação entre
as demais camadas da igreja e o tribunal, por considerar o Santo Ofício
como um elemento jurídico e eclesiástico, inserido numa conjuntura de
sínodos religiosos e seculares, que negociavam politicamente a atuação.
Para tanto, o olhar sobre as fontes será focado no discurso antijudaico das obras, por perceber neste um forte elemento de conexão
entre as jurisdições. Consequentemente, questiona-se aqui, os elementos que constituíam o discurso teológico que fundamentava as
perseguições.
Graduanda da Licenciatura em História da Universidade Federal da Paraíba: http://lattes.
cnpq.br/8463152089999728.
2
Professor do Departamento e da Pós-Graduação de Ciências das Religiões/UFPB e da
Pós-Graduação em História/UFPB; líder dos Grupos Videlicet Religiões, de Estudos em
Intolerância, Diversidade e Imaginário (CNPq) e Officium, de História da Inquisição, das
Religiões e do Sagrado (CNPq): http://lattes.cnpq.br/7764634726743516.
1
556
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Embora os livros do episcopado não sejam inéditos no estudo da
mentalidade católica antijudaica, tendo José Pedro Paiva (2011) e Bruno Feitler (2005) como principais referências, esta pesquisa trabalha as
fontes selecionadas de uma forma qualitativa, em detrimento dos estudos quantitativos dos autores, embora reconheça neles os principais
pontos de referência no que concerne a seleção das fontes.
A sintonia entre o episcopado e a inquisição
O séc. XVI simboliza para Portugal um momento de transformações no campo dos poderes. A coroa se reorganizou, desenvolveu seu
aparelho burocrático e montou os sínodos que constituiriam seu aparato corporativo polissinodal, enquanto a igreja também se submeteu
a reformas; reconstituição hierárquica, formas de disciplinarização do
rebanho, dentre outros casos. Assim como a coroa, era constituída
por “[...] múltiplos organismos por vezes de contornos mal definidos
e com interesses nem sempre coincidentes” (BETHENCOURT, 1997,
p. 139), estando sujeita a uma miríade de agentes negociadores internos e externos.
O episcopado, por exemplo, passou por um processo de transição
entre a figura do bispo jovem, de pouca instrução e senhor de terra com
vivência na corte – que delegava tarefas de administração das dioceses
a outros –, para a figura do Bispo construída ao longo do Concílio de
Trento. Passou a ser exigido do cargo um porte de “pastor”, ou seja, a
vigilância dos párocos e fiéis, o cuidado no conhecimento, na difusão
da mensagem cristã, etc (PAIVA, 2006). Não obstante, independente do
modelo episcopal adotado na modernidade, cabia-lhes desde fins da
idade média, o julgamento das heresias.
Este quadro normativo teria as suas mais remotas raízes em legislação promulgada pelos imperadores romanos Teodósio e Justiniano (séculos IV e VI), na qual se consignava que os bispos deviam
assumir competências de justiça ordinária reservada nos processos
relativos ao clero e bens eclesiásticos, habilitando-os também a julgar leigos em causas sacramentais (sobretudo para a questão da
557
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
legitimidade do baptismo e imposição da disciplina do matrimónio
monogâmico), bem como nos crimes de heresia, apostasia e cisma.
(PAIVA, 2011, p. 20).
A fundação do Santo Ofício português em 1536 introduziu o inquisidor como um novo agente eclesiástico, que gozava de competências
delegadas pela própria cúria romana e apoio direto da coroa portuguesa, culminando numa distinção simbólica frente aos agentes clericais de
então. Consequentemente, a inquisição não apenas “[...] alterou substancialmente o campo religioso, forçando um reordenamento e reequilíbrio dos poderes, jurisdições e agentes que o integravam” (idem, p. 15),
mas também provocou remodelações nas relações de poder eclesiásticas de então.
No entanto, o Santo Ofício em meio a definição desta nova conjuntura, não anulou a jurisdição episcopal em torno das heresias, e sim “[...]
introduziu ao seu flanco um novo órgão, igualmente competente, em
função da delegação de poderes pontifícios especiais que recebera” (ibd,
p. 33). O processo de delineação das jurisdições entre as instâncias se
dá num posicionamento de fluidez das divisas, sobretudo com o Santo
Ofício se apropriando de questões até então concernentes ao bispado
e legitimando seu espaço hegemônico inquisitorial. Entretanto, este
cenário de negociações e conflitos não culmina numa cisma profunda
entre os poderes.
[...] Uma análise global das relações entre estas duas instâncias do
campo religioso revela que, regra geral, elas foram de grande harmonia, estreita colaboração e profunda complementaridade. Pode
dizer-se que, por norma, houve uma convergência tácita de interesses entre as duas instâncias, assente numa comunhão ideológica
de fundo, decorrente de uma visão global do mundo, da sociedade,
da religião e do tempo, na qual a preservação da ortodoxia da fé
católica, tal como definida pela autoridade da Igreja, era um pilar
essencial. (ibd, p. 140)
Esta união de interesses em torno da preservação da ortodoxia
católica é exposta principalmente na disciplinarização da população,
ao passo que reafirma a autoridade e o poder da igreja, conectando as
558
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
instâncias através de uma sintonia ideológica. Um ponto chave para
expressar esta sintonia é o fato de que nos primórdios, as cadeiras da
inquisição eram compostas por bispos titulares que se tornaram inquisidores, nomeados na bula de fundação da instituição, embora não fosse a regra e os bispos se envolvessem de diferentes formas, como no
concelho geral, na elaboração dos regimentos, enfim: “desde a fundação
do Santo Ofício que a colaboração e o aproveitamento das relações que
mantinha com o episcopado foram fundamentais para que pudesse ter
tido a imensa capacidade que alcançou” (ibd, p. 188).
No entanto, um aspecto em específico impregnava o âmago da
conexão ideológica entre ambas as instâncias: “A generalidade dos bispos compartilhava e defendia a função e os métodos do Tribunal da Fé,
sobretudo aquilo que era o cerne da política inquisitorial: a perseguição
dos cristãos-novos [...] (ibd, p. 199)”.
Consequentemente, e nisso também os antístites se sintonizavam
com a Inquisição, era necessária uma instituição forte, vigilante,
com meios especiais para poder erradicar este problema, cuja solução passava, aos olhos da maioria esmagadora dos bispos e inquisidores, pela punição pública e a aplicação de castigos violentos – que
no limite podiam significar a morte – aos judaizantes portadores
do “sangue infecto”, para usar a força segregadora e intolerante da
expressão coeva. (ibd, p. 198).
Era momento de conflito no âmago da sociedade portuguesa
pós-reconquista, com pessoas não pertencentes à fé ocupando posições que a sociedade caucasiana e católica almejava, posterior às expulsões muçulmanas. O Estatuto de Toledo de 1449, introduziu oficialmente o impedimento daqueles de sangue impuro, judeu ou mouro, de
assumir cargos municipais. Progressivamente, o famoso édito de 1492
levou a comunidade judaica espanhola à conversão forçada ou à saída
do reino, criando-se assim o fenômeno cristão-novo: o judeu convertido
ou, em relação de sinonímia, o cristão que, devido às conversões peninsulares, apresentava ascendência judaica.
Este cenário propicia a expulsão dos judeus portugueses em 1497
e, aqueles que ficaram no território, foram forçados ao batismo, levando o reino a se tornar terra de um sem-número de conversos sem
559
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
instrução na fé católica e pressionados a agirem como tal, perpetuando e confundindo costumes e vivências judaicas aprendidas hereditariamente. Houveram aqueles que de fato se converteram. Outros, que
conservaram um criptojudaísmo, ou seja, professavam sua fé no campo
privado enquanto se mostravam cristãos em público. Muitos confundiam preceitos mosaicos com os cristãos e assim por diante. Em suma,
com problemas identitários e falta de catequese, os casos de heresias
por equívocos e afins, não eram incomuns.
Para além das punições: imprensa & investidas
intelectuais
A igreja como todo sofria ablações. O problema dos cristãos-novos
era eminentemente ibérico. Sob lente mais ampla, o catolicismo revia
seus próprios conceitos em meio a uma contrarreforma como reação
ao recente protestantismo e as angústias advindas de frontes diversas;
internas e externas. Precisava-se sistematizar as ameaças, perpetuando um viés medieval de luta contra inimigos da fé motivados por um
império do mal, no qual encontrava em Satanás o soberano.
Evidentemente, é Satã que conduz com fúria seu derradeiro grande
combate antes do fim do mundo. Nesse supremo ataque, ele utiliza
todos os meios e todas as camuflagens. É ele que faz os turcos avançarem; é ele que inspira os cultos pagãos da América; é ele que habita
o coração dos judeus; é ele que perverte os heréticos [...] Não há por
que surpreender-se se esses ataques se produzem ao mesmo tempo. Soou a hora da ofensiva demoníaca generalizada, sendo evidente
que o inimigo não está apenas nas fronteiras, mas na praça, e que é
preciso ser ainda mais vigilante. (DELUMEAU, 2009, p. 586).
Tornava-se indispensável encontrar formas de desestabilizar
estes “sequazes do mal” e nisso se uniam os Bispos e o Santo Ofício,
estendendo a luta para além das punições do tribunal. Dentre tantos
pormenores que compunham a conjuntura, era o momento perfeito
para uma investida intelectual por parte da igreja, com a ascensão das
560
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
correntes renascentistas e humanistas no reino. O florescimento cultural proporcionado por estas correntes estava submetido à censura.
Cabia ao Santo Ofício a vigilância sobre a posse e publicação de livros
não apenas por parte dos leigos, mas também do próprio clero. Esta
censura literária abriu caminho para que o novo bispado pastoral encontrasse seu lugar na imprensa, ainda no início, num sentimento de
contra-humanismo.
Fazia sentido que o episcopado representasse o grosso intelectual
da igreja nos quinhentos. Possuíam comumente formações teológicas
em Castela3 e utilizavam dos prelos – as impressões pioneiras – como
um veículo de disseminação teológica e legitimidade política.
Aproveitaram-nos para colocar em letra de forma a doutrina que
criaram, para expandir de um modo mais célere e espacialmente
mais abrangente as determinações do seu governo, para normalizar os ritos e as liturgias nos seus territórios, para melhorar a preparação do clero e doutrinar os fiéis e até para embelezar e enriquecer o património das catedrais. Não esquecendo a sua função
de consumidores, pois houve-os proprietários de valiosas e quantitativamente bem apetrechadas bibliotecas. E tendo em conta que
a produção do livro podia ser sinónimo do elevado nível intelectual
e de preparação do seu autor, para alguns, a publicação feita ainda
antes de terem a mitra episcopal, pode ter sido um precioso contributo para que o monarca tivesse decidido pela sua selecção para a
restrita elite episcopal. (PAIVA, 2007, p. 689).
As áreas de publicações episcopais eram variadas, perpassando
por missais, breviários e afins. Obras doutrinais também encontraram
seu espaço através de tratados de teologia, catecismos e espiritualidade num geral. Este inventário diverso concebe fonte abundante de pesquisa e, como aponta José Pedro Paiva (2011), não apenas os sermões
de auto-de-fé, mas também publicações autorais e patrocínio dos livros
pelo episcopado, mostram-se caminhos possíveis para a investigação
da sintonia ideológica entre os bispos e a inquisição, especialmente no
principal ponto em comum: o antijudaísmo ibérico (op cit, 2011 p. 203).
3
MARCOCCI, 2012, p. 130 – 131.
561
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Esse pensamento fomentou esta pesquisa, e assim, foram traçadas as seguintes delineações metodológicas: as obras analisadas deveriam, primeiramente, ter sido aprovadas pela censura inquisitorial. Em
segundo lugar, serem trabalhos autorais de bispos portugueses, em detrimento do patrocínio, para um melhor escopo do local social de produção do discurso. Em adição, constituírem um corte-histórico próximo e
com foco no século XVI, por ser o momento de fundação do tribunal em
Portugal, almejando assim investigar a disseminação ainda nos primórdios. E, como condição sine qua non, carregar um forte teor antijudaico.
Por meio deste crivo, selecionou-se duas obras para levantamento qualitativo de enxertos textuais selecionados: a edição de 1543
do Libro d la verdade d la fe, de D. Frei João Soares e Diálogos (1589) do
D. Frei Amador Arrais.
Bispos & Obras: resultados e discussões
O libro d la verdad d la fe salta aos olhos por ser um tratado teológico escrito inteiramente por um bispo legitimado no status quo e que
trás forte sintonia com a ideologia por trás do tribunal inquisitorial ainda
com pouco tempo de desenvolvimento. Contudo, a obra e o bispo foram
pouco analisados até então. D. Frei João Soares assinou a autoria do
livro e, em crítica externa da fonte, frente ao cenário de patrocínio das
obras, acredita-se que ele tenha sido de fato o autor, sobretudo por ser
um Bispo dominante no que tange às publicações da época.
Como 38º bispo de Coimbra, atendia de forma secular pelo nome
de João Soares de Urrô e religiosamente, como João Soares de Albergaria.
Natural da freguesia de S. Miguel de Urrô, nascido em 1507, é filho de
Diogo Dias de Urrô e Luciana de Alcântara, ambos de famílias nobres. Aos
dezesseis anos, em 1523, recebeu o hábito de eremita de Santo Agostinho em Salamanca, doutorando-se em Teologia no ano de 1529. Em
sua trajetória, adquiriu um status para além de muitos outros bispos do
império, pois por volta de 1537, sentou-se à Mesa da Consciência como
presidente e, posteriormente, foi nomeado por D. João III como confessor
régio e pregador, além de mestre dos seus filhos D. Filipe e D. João.
562
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Em 1539, foi nomeado Deputado da Inquisição, por D. Henrique I
e, apesar do desgosto de Roma4, foi eleito Bispo de Coimbra em 1545,
cargo que manteve até seu falecimento em 1572, sendo um dos Bispos
a representarem Portugal em Trento.
José Pedro Paiva levanta que ao longo do Séc. XVI, dentre 64 Bispos que governaram Dioceses no Reino, 33 foram vinculados à imprensa tipográfica, totalizando 51% e D. João Soares estava na vanguarda
destas publicações5. Dentre elas, o Libro d la verdade d la fe é reconhecido
por autores como Paiva e Bruno Feitler (2005) como uma das primeiras
obras de intolerância judaica a percorrer a península, sendo publicada
com privilégio real por D. João III, na casa de Luiz Rodriguez, “livreiro del
Rey”, e aprovada pela censura inquisitorial, no qual também demonstra
apoio ainda em sua dedicatória.
Ainda agora ho mandey estampar sendo primeiro visto por letrados pera isso deputados pelo sãcto officio da inquisição espertado e movido por pessoas que ho viram/ parecendo lhes que seria
bom escudo pera defensão dos catholicos contra as heresias que
por nossos pecados tanto molestam a ygreja de deos neste tempo.
(Libro de la verdad d la fe, dedicatoria, p. 9).
Pareceome que era razão pedir a V. M que ho recebesse debaixo de
sua proteiçã e favor: assim que polla qualidade do que nelle se trata:
como pollo fervente zelo com q V. M prossegue todas as cousas da
nossa sancta fe catholica: e ho bem da christandade e da repubrica.
(Como se mostra polla sãcta inquisição do santo Padre pera todos
seus reynos e senhorios”. (idem, p. 9).
Ainda no prólogo – prohemio – oferece a fundamentação base
para o decorrer de seu discurso e a finalidade da obra: “El fundamento
Fr. João Soares –– diz-se ahi –– é um frade de poucas letras, mas de grande audácia e em
extremo ambicioso. As suas opiniões são péssimas, e ele publico inimigo da sé apostólica,
do que não duvida gabar-se, como refinado hereje que é. Todos o conhecem por tal, menos o
rei, por cujo temor, e porque, com pretexto da confissão, obtem dele a solução de muitos negócios, todos o acatam. É homem perigoso e de vida dissoluta. (HERCULANO, 1859, p. 215).
5
D. frei João Soares (bispo de Coimbra) foi responsável por 13 títulos; D. Henrique (arcebispo de Braga, Évora e Lisboa) por 12; D. Frei Bartolomeu dos Mártires (arcebispo de
Braga) por 8, D. Jerónimo Osório (bispo do Algarve) por 6 [...] (op, cit, 2007, p. 691).
4
563
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de escrevir este libro fue, considerar la muchedumbre de errores que
cada dia por nuestros pecados se levantan cõtra la infalible verdade de
la sancta fe catholica” (Libro de la verdad, prohemio, p. 11). Com base na
escolástica de São Tomás de Aquino, Soares trabalha a ideia de “razão
natural” como a razão atrelada à teologia, ou fé, católica, e “quan contra
la razon es toda heresia/ pues la verdade catholica es tan allegada a
razon” (idem, p.11). Indo para além das heresias, afirma o mesmo para
a figura do outro;
Ansi que declaran las razones naturales la conformidad de la fe con
la razon: y quan contra razon son todas las sectas delos judios/
morros/ydolatras/y los errores delos hereges/pues la sancta fe
catholica tiene toda la razon buena por si” (ibid, p. 12).
Ao fim das fundamentações do prólogo, o autor busca explicar em
seu livro questões teológicas da fé católica tais como a Santa Trindade,
o Pecado Original e como Jesus Cristo é o Messias, buscando trazer ao
leitor uma instrução básica em torno dos quesitos da fé.
Dentre os capítulos, dois em específico são voltados aos inimigos
do catolicismo: O “Capítulo IX – en el qual se declara porq los Judios
no creyeron a Christo/ teniendo tantas y tan claras prophecias del” e
o “Capítulo XXV – de quan erradas y falsas sõ las sectas gentílicas y la
porfiada infidelidade judayca”.
No cap. IX, é direto ao afirmar que os Judeus não acreditaram em
Cristo porque não quiseram, com base na ideia de livre arbítrio agostiniana. No decorrer do argumento, afirma que um homem pode dizer
que uma parede branca é negra e mesmo que todos o contradigam, o
indivíduo pode continuar a acreditar que o branco é negro, indo contra
a razão estipulada e óbvia da parede sendo branca. A verdade em torno de Cristo no argumento é “mas clara q la luz del sol” (op cit, Cap. IX,
Col. 1. p. 83), consequentemente, aqueles que permanecem na fé judaica, apegam-se a uma corrente, ou saber, contrária à dominante. Assim,
evoca para os judeus a ideia de “conversão”, atribuindo-lhes a ideia de
“porfiados” e detentores de “incredulidad”;
Y ansi la yglesia sãcta catholica les pone este ditado de porfiados en
el viernes santo/ quãdo com ardentíssima charidad ruega al señor q
564
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
los cõvierta diziendo. Roguemos por los porfiados Judios/ por q Dios
y nustro señor Jesu xpo les quite la cobertura de su coraçõ/ para q
ellos conoscã a Jesu xpo nuestro señor. (idem, Col. 2, p.83).
Para embasamento, ou melhor didática ao leitor, faz um retorno
histórico-teológico aos tempos bíblicos e delega aos Sacerdotes Fariseus corrupção, avareza, hipocrisia e falsos profetas, sendo a base para
a relutância em crer inicialmente na figura de Cristo.
Quanto ao cap. XXV, inicia: “Agora en este capitulo brevemente
declaramos quan erradas y falsas son las sectas que no tiene la sancta
fe catholica” (op cit, Cap. XXV, Col. 1, p. 227), afirmando a “falsedad delos
errores gentílicos e Judaycos” (idem,. Cap. XXV, Col. 2, p. 227). Monta assim um modelo de contra-argumento às ideias do outro: “Mas esto sera
brevemente: porque tan ajenas sõ las porfias de los gentiles e judios de
razon/ que a ningun buen entendimento para conoscer la falsedad delas
es necessário largo discurso de razones” (ibid, Col. 2, p. 227).
Principia seus contra-argumentos destrinchando os idolatras;
adoradores de pau e pedra, corpos mudos de prata e ouro e que atribuem a estes objetos inanimados divindades politeístas. Segue posteriormente para “la vanidad e error dela secta Maomethica que los morros siguen” (ibid, Col. 2, p. 231) e o quão contraditório é o Alcorão. Por
fim, “resta agora declarar la porfiada supersticion Judayca quan contra
toda razones” (ibid, Col. 1, p. 234). Contudo, ao tecer seu discurso neste
capítulo, volta seu argumento contra aqueles que “[...] no son Judios/
mas llaman se Judios” (ibid, Col. 1, p. 234). Supõe-se que João Soares
aqui, refira-se à figura do cristão-novo6.
Faz referência ainda ao fenômeno da diáspora judaica, embora não
especifique o contexto diaspórico ibérico em si. Sobre isto, comenta:
Las cerimonias que por Moysen les fueron dadas cõforme aquel
tempo/ ni las tienen: ni las guardan. Bivê de su cabeça/ciegos/ porfiados/ y malditos entre todas las nasciones [...] captivos em todas
“porque ellos ni son ydolatras: ni morros: no Judios/ como guardan la ley mandada por
Moysen: ni Christianos/ porque no creen em Jesu Christo nuestro señor” (ibid, Cap. XXV,
Col. 1, p. 234). Seus costumes se diferenciam dos judeus tradicionais e “por una parte
confessar/ niegan por outra” (ibid, Cap. XXV, Col. 1, p. 234).
6
565
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
las nasciones/ injuriados de todos/ desamparados de Dios y de las
consolaciones celestiales (ibid, Cap. XXV, Col. 2, p.234).
Logo, seu discurso se volta às razões histórico-teológicas abordadas no cap. IX, expandindo os debates para os episódios na Babilônia
e Jerusalém, retornando a afirmar Jesus como o messias e a tamanha
falta de razão que seria contrariar este pensamento. Os judeus não são
mais o povo de Deus, pois este não lhe estende mais suas bênçãos devido à negação de seu filho.
A obra de D. João Soares chama a atenção por apresentar características que iriam permear a teologia em torno dos inimigos da fé e,
sobretudo, a ascendência judaica, por décadas a fio. Destaca-se não
apenas a investida intelectual de diminuição da razão de outrem em
prol da cristandade, mas também recorrer constantemente a termos
que iriam pulular o discurso antijudaico. Destaca-se aqui principalmente
a “cegueira”, “porfia”, “incredulidade” e “errores” – equívocos – para se
referir a uma contrarrazão judaica em não aceitar cristo como messias.
Narrativa similar é encontrada nos Diálogos de D. Frei Amador Arrais, quarenta e seis anos depois. Diferente do primeiro, os Diálogos começaram a ser escritos pelo irmão do Bispo, Hieronimo Arrais, médico.
No entanto, com o falecimento deste, assumiu o Frei. Carmelita, nasceu
em Beja, filho de Simão Arraes, por volta do primeiro quarto do séc. XVI.
Formado em teologia pela universidade de Coimbra, assumiu o hábito
apenas em 1545. Tornou-se pregador régio de D. Sebastião, esmoler-mor do cardeal-rei D. Henrique – enquanto Bispo de Tripoli – e, por fim,
Bispo de Portalegre em 1581, eleito por D. Felipe II, falecendo em 1600.
D. Amador Arrais não apenas se tornou mais popular que João soares na historiografia, como também seus Diálogos se tornaram uma das
principais obras do contra-humanismo português. O período é marcado
pelo triunfo do tridentismo e a inserção desta mentalidade nas políticas
seculares. Os Diálogos estão imersos num sentimento de desengano
barroco e à perda da ampla autonomia portuguesa frente a união das
coroas ibéricas.
O contra-humanismo doutrinário teve um expoente maior em Frei
Amador Arrais. Os seus Diálogos, de 1589 [...] compartilham o
566
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
estilo de associar inumeráveis autores e lugares selectos do classicismo ao discurso apologético da causa católica, mas esta causa é
assumida em um tónus “político” e militante, que cerceia qualquer
margem de tolerância. O frade carmelita e bispo de Portalegre não
faz concessões ao inimigo – seja ele o judeu [...], seja o cristão humanista. (MENDES, 1997, p. 359).
Devido a obra ser um diálogo e não um tratado, Arrais não oferece embasamento inicial ou comentários extensos no prólogo, apenas
afirma a opção pela língua portuguesa. No entanto, em sessão anterior,
carrega as aprovações da censura, enfatizando a não ameaça à fé católica e ao mesmo tempo a erudição do conteúdo. Os diálogos se dão
entre Antiocho, um enfermo, e um outro indivíduo que o visita. A enfermidade de Antiocho abre espaço para expressar o trágico do momento
e a desilusão em seus pensamentos em torno da morte e afins, sendo
uma personificação da aura barroca.
O foco aqui será dado ao Diálogo Segundo, denominado “Da gente
judaica”. Os interlocutores são Antiocho e Herculano; um fidalgo que o
visita. A premissa é a cura do primeiro pelas mãos de “inimigos”, como
aponta Herculano:
– Hum homem quomo vos de honra, e letras, e autoridade, que
saúde espera de imigos? [...] Pondes vos nas mãos de gente, que
pôs o filho de Deos na cruz, e o enxapou com fel, e vinagre? Curaes
vos com gente sospeita, e fias dela a vida, quomo vos não dâ nada
per dela? (Diálogos, Cap. I, p. 42).
Este extrato aponta três importantes informações: Primeiro, os
judeus como inimigos devido a crucificação de Jesus. Segundo: uma observação social da inserção do judeu nos ofícios liberais da medicina.
Terceiro: A revelação do local social de Antiocho, estando numa posição
de vantagem na estratificação do Antigo Regime, para além dos ofícios
mecânicos e afins.
Em perpetuação da narrativa vista em João Soares, o capítulo VI
“Donde os Hebreos tomaram o apelido de judeus, e da sua incredulidade”,
não apenas a incredulidade, mas também a cegueira em relação a figura
de cristo retorna, como visto na fala de Antiocho:
567
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
– Isaac, com sua cegueira, designou a deste povo: qua assi quomo
estando cego, e não vêdo o filho, que estava presente, prognosticou
muitas cousas, que lhe aviam de sobrevier em o futuro: Assi o povo
judaico, sendo cego, per spiritu prophetico profetizou do Messias
vindouro [...] (idem, Cap. VI, p. 50).
[…]
–En fin cegou os judeus sua malicia, e foi sua cegueira tam excessiva, que quomo diz Sam Paulo, foi sua increduliadade incredible [...]
Finalmente não crêram ao Senhor, porque não crêram a Moises,
quanto ao verdadeiro entendimento do que avia de vir. (ibd, p. 50).
No capítulo seguinte, “Porque permitio Deos a cegueira, e obstinação dos judeus”, Antiocho abre, afirmando que “– Bem sabeis, que a
causa, desta miserable cegueira, forão seus corações duros, e encravados” (ibd, p. 51). Reitera a forte posição ao longo do capítulo: “– [...] mas
não ouve no mundo gente, que tanto cuidado tevesse de preservar suas
leis de corrupção, e vicio, quomo a judaica” (ibd, p. 52).
Um elemento principal chama a atenção nos diálogos, que não
aparece com tamanha ênfase no libro d la verdade e é perceptível no cap.
XVII: “Que a avareza he casa da obstinação dos judeus e de suas vans esperanças”. Amador Arrais, por meio de Antiocho, vai adiante e disserta em
torno da conversão judaica, destacando a figura de Cain, sua cobiça e
falta de entendimento.
– Parece que não errará quem dixer, que hua das causas principaes,
porque hoje se não convertem os judeus, he sua cubiça. Filhos são
de Cain, tam cubiçoso, que segundo Iosepho diz, por cubiça se moveo a cultivar a terra: esta acabou co ele, que offerecesse a Deos os
piores frutos de sua colheita; esta lhe eclipsou o entendimento. (ibd,
Cap. XVII, p. 73).
Afirma ainda que “não hâ, nem ouve nação tam inclinada a usura,
quomo a judaica” (ibd, p. 73) e, por isso, “[...] por serem avaríssimos, lhe
não agradou o nosso Messias” (ibd, p. 73). Posicionamento este interessante frente ao momento histórico, no qual, por mais que o mercador já
não possuísse o mesmo estigma de antes – estando este na vanguarda
no monopólio ibérico comercial – havia-se ainda uma delineação entre
o bom e o mal mercador; sendo o primeiro “[...] aquele que limita seus
568
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
horizontes, evita as ocasiões de pecado ao circunscrever seu raio de
ação” (LE GOFF, 1991, p. 100). Já o segundo recairia mais comumente à
figura do judeu, em detrimento do cristão obediente aos parâmetros de
mentalidade que a igreja estipulava às trocas.
Era ainda política inquisitorial o confisco de bens, bastante aplicado aos cristãos-novos mercadores, conectados ao abastecimento do
erário régio e do próprio tribunal, ainda que por intermédio da coroa7.
Por fim, os temas abordados não se limitam ao XVI. A retórica passa adiante e chega à população iletrada por meio dos púlpitos de autos-de-fé, aos quais os Bispos subiam para proferir os sermões antes das
punições serem aplicadas. Percebe-se, por exemplo, ideias trabalhadas
pelo Libro de la verdade d la fe e nos Diálogos reaparecendo direta ou
indiretamente em em 1629, por meio de D. João Mendes Távora, Bispo
de Coimbra, ao tratar dos judeus num auto-de-fé em Lisboa:
Se a cegueira deste Povo obstinado, naõ fora tão pertinaz, bastante era certo este seu castigo, pera verem seu erro, & acabarem de
achar seu desengano: mas está tão afferrado a esta sua ignorancia, que não soo não entendem as Escripturas, ainda explicadas por
seus Rabbinos, mas totalmente, fechão a porta à toda a rezão por
mais forçosa que seja [...] Sua pertinacia será tão ferós, que serão
semelhantes a Aspide surda, com as orelhas tapadas. (TÁVORA,
1629, fl. 3, prg. 1).
Tais ideias percorrem também um dos sermões de D. Afonso de
Castelo Branco – assim como os outros dois, Bispo de Coimbra – traduzido para latim em 1589. Novamente, retratando a “cegueira” e “perfídia” dos cristãos-novos e reafirmando Cristo como salvador (PAIVA,
2011, 204-205).
Considerações finais
Acredita-se que averiguar a sintonia ideológica entre o Santo Ofício e o Episcopado como diferentes sínodos clericais unidos em prol de
7
SIQUEIRA, 1970, 336-340.
569
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
um inimigo em comum, oferece elementos para aprofundamento dos
estudos inquisitoriais ao pensar não apenas a relação tribunal-réu e
sim, um elemento jurídico imerso numa constelação de poderes clericais e seculares, fazendo-se necessária a investigação para além dos
processos.
As publicações do bispado carregam teor não apenas teológico,
mas também de disseminação ideológica e social frente aos grupos
perseguidos pelo império, sendo a fé institucionalizada uma ferramenta
si ne qua non deste monopólio.
No que tange ao posicionamento antijudaico no XVI por parte do
núcleo episcopal, percebe-se ainda uma sistematização inicial, considerando que a imprensa antijudaica se desenvolve fortemente nos séculos
seguintes. Contudo, é visto uma tentativa de legitimação teológica das
perseguições, ao passo que deslegitima outrem, oferecendo ao tribunal
a construção de um discurso pautado na (des)razão atrelada a cegueira
ou teimosia em crer na verdade católica e, consequentemente, na mentalidade hegemônica que fundamentava o império português.
570
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BETHENCOURT, Francisco. Os
equilíbrios sociais do poder. In:
MATTOSO, José; MAGALHÃES,
Joaquim Romero (coord.). História
de Portugal: No alvorecer da
modernidade. [S. l.]: Estampa, 1997.
v. 3, cap. O poder.
CHAGAS, Manoel Pinheiro. Diccionario
popular: histórico, geográfico,
mythologico, biográfico, artístico,
bibliográfico e litterario. 1º vol,
lallemant fréres, typ. Lisboa, 1876.
Collecçam dos documentos, e
memorias da Academia Real da
História Portugueza, que neste
anno de 1724 se compuzeraõ, e
se imprimiraõ por ondem de seus
Censores, dedicada a El Rey Nosso
Senhor, seu augustíssimo protector,
e ordenada pelo Marquez de Alegrete
Manoel Telles da Sylva, secretario da
mesma academia. Lisboa occidental:
officina de Pascoal de Sylva,
impressor de sua majestade, e da
Academia Real. 1724.
DELUMEAU, Jean. HISTÓRIA DO
MEDO NO OCIDENTE 1300 – 1800:
UMA CIDADE SITIADA. São Paulo:
Companhia das letras, 2009.
Dialogos de Dom Frei Amador
Arraiz Bispo de Portalegre. Em
Coimbra. Em casa de Antonio de
Mariz, Impressor. Anno de 1589.
Com licença do Sancto Officio, e do
Ordinario. Com Privilegio Real.
DOMINGUES, Gabriel de Paiva.
Oração de André Resende
571
pronunciada no colégio das artes
em 1551. Reprodução fac-similada,
leitura moderna, tradução e notas.
Coimbra: Biblioteca Geral da
Universidade, 1982
FEITLER, Bruno. The imaginary
synagogue: Anti-Jewish Literature
in the Portuguese Early Modern
World (16th-18th Centuries). Leiden:
Koninklijke Brill, 2015.
______. O catolicismo como ideal:
produção literária antijudaica no
mundo português da Idade Moderna.
Novos estud. – CEBRAP, São Paulo ,
n. 72, p. 137-158, July 2005
HERCULANO, Alexandre. História
da origem e estabelecimento da
inquisição em portugal: Tomo 2. 9 ed.
Lisboa: Portugal-Brasil, 1859
LE GOFF, Jacques. Mercadores e
Banqueiros da idade média. São
paulo: Martins Fontes, 1991
Libro dela verdad d [sic] la fe sin
el qual no due [sic] estar ningu[m]
xpiano. Cõ privilegio real. Digitalização
a partir de exemplar da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa.
Lisboa: Luís Rodruigues, 1543.
MARCOCCI, GIUSEPPE. A consciência
de um império: Portugal e o seu
mundo (sécs. xv-xvii). Coimbra:
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE
COIMBRA, 2012
MARCOCCI, GIUSEPPE; PAIVA,
José Pedro. História da inquisição
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
portuguesa: (1536 – 1821). Lisboa:
Esfera dos livros, 2013
MENDES, António Rosa. A vida
cultural. In: MATTOSO, José;
MAGALHÃES, Joaquim Romero
(coord.). História de Portugal: No
alvorecer da modernidade. [S. l.]:
Estampa, 1997. v. 3, cap. Sociedade
e cultura.
PAIVA, José Pedro. Baluartes da
fé e da disciplina: o enlace entre a
inquisição e os bispos em Portugal
(1536-1750). Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2011.
______. Bispos, imprensa, livro e
censura no Portugal de Quinhentos.
Revista de História das Ideias,
Coimbra, v. 28, 2007.
______. Os Bispos de Portugal e
do Império: 1495 – 1777. Coimbra:
Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2006.
Sermam que pregou Joanne Mendes
de Tavora, doutor na Sagrada
Theologia, conego magistral na Santa
Sé de Lisboa, deputado ordinario
do Santo Officio da Inquisição da
mesmacidade e sumilher de cortina
de Sua Magestade, no auto da fe
que se celebrou em Lisboa, em 2
de Setembro de 1629. Lisboa, por
Antonio Aluare, 1629.
SIMÕES, Maria Alzira Proença,
Catálogo dos impressos de tipografia
portuguesa do século XVI, Lisboa:
Biblioteca Nacional, 1990.
SIQUEIRA, Sônia A. A Inquisição
Portuguesa e os confiscos. Revista de
História, São Paulo, ano 1970, v. 40,
n. 82, p. 323 – 340, 29 jun. 1970. DOI
https://doi.org/10.11606/issn.23169141.rh.1970.128993. Disponível
em: http://www.revistas.usp.br/
revhistoria/article/view/128993.
Acesso em: 14 maio 2019.
[ Volta ao Sumário ]
572
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
peRsistênCia da
Religiosidade populaR
atRavés das CeRimônias
de CoRoação de maRia
Anamélia Soares Nóbrega
Como referenciar este capítulo:
NÓBREGA, Anamélia Soares. Persistência da religiosidade popular através
das cerimônias de Coroação de Maria. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg
de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião,
Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades.
João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 566-575.
Anamélia Soares Nóbrega1
Introdução
Na religiosidade popular, no encerramento do mês de maio de cada
ano, principalmente no último dia, os católicos realizam a cerimônia de
coroação das representações iconográficas marianas. Nesse contexto,
destacamos que várias paróquias nordestinas são dedicadas a Maria,
através dos numerosos títulos de Nossa Senhora que lhe foram atribuídos. Por isso, essa comemoração enfatiza a religiosidade popular que
alicerça as tradições católicas.
Com a ajuda dos cânticos, do cenário e do laicato católico, as cerimônias de coroação destacam a figura de Maria de Nazaré. Por isso, no
título, optamos por sintetizar todas as denominações de Nossa Senhora
em uma única expressão, que é Maria. O núcleo das imagens iconográficas é a representação de uma mulher que se tornou a Mãe de Jesus.
Por conseguinte, várias pinturas e esculturas possuem Jesus Menino
em seus braços ou no seu colo maternal. No entanto, ressaltamos que
culturas diferentes possuem projeções artísticas diferenciadas na elaboração da imagem mariana com aparências específicas.
A persistência da cerimônia de coroação nas paróquias ocasiona
questionamentos acerca dos motivos que ainda continuam a impulsionar a sua realização. Nesse aspecto, as obras lidas ajudam a compreender a multiplicidade dos significados culturalmente atribuídos ao simbolismo da coroação, evocando a maternidade divina, os sentimentos
religiosos, os aspectos artísticos e os fatos históricos.
Percebemos que essa cerimônia acompanha simultaneamente o
culto a Maria e o imaginário católico, pois diante da imagem da coroa,
que representa um dos ornamentos da realeza, a sociedade idealiza
Doutoranda em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da
Religião da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/4658739448203146. E-mail: anameliasn@gmail.com.
1
574
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
várias representações do título de rainha para Maria no campo religioso.
Nessa perspectiva, a hermenêutica apresenta-se como um método de
interpretação do simbolismo da cerimônia de coroação.
Tanto no Nordeste quanto em outras regiões brasileiras, a religiosidade popular é o ponto alto das comemorações, envolvendo os fiéis
católicos de todas as faixas etárias. Das crianças vestidas de anjinhos
até os adultos entoando os cânticos, a participação popular é fundamental para que essa cerimônia resista no calendário comemorativo
das paróquias.
Se depender dos católicos, o símbolo da coroa será lembrado desde as capelas até os santuários, pois a força simbólica e ritual dessa
cerimônia buscou frear o avanço de uma mentalidade iconoclasta. Por
conseguinte, essa cerimônia fortalece a piedade mariana, herança recebida das tradições católicas e assimilada, muitas vezes, por meio dos
eventos populares.
A crença na intercessão mariana nas necessidades espirituais e
temporais também é importante para embasar essa comemoração. Por
isso, os católicos não consideram presunção, mas antes um sinal de
confiança, a realização dessa cerimônia. Assim, ela propõe uma renovação coletiva da fé do povo em suas dimensões interiores, servindo para
reforçar o catolicismo popular.
Observamos que as coroações das representações iconográficas
de Maria ainda possuem receptividade nas paróquias católicas. É um dia
especial, sendo uma comemoração da religiosidade popular, contendo
orações, atividades cênicas e cânticos. De fato, o comparecimento dos
fiéis nessa cerimônia reflete uma forma de expressar sua religiosidade,
uma vez que o simbolismo da coroação marca a iconografia do catolicismo popular e o discurso mariológico.
A coroação de maria no âmbito religioso, artístico e
histórico
A coroação das imagens que representam Maria é uma cerimônia
bastante antiga no catolicismo. Nessa perspectiva, explica Cabral (2017,
575
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
p. 174): “Iniciadas na Europa, no século XII, as cerimônias de Coroação
de Nossa Senhora chegaram ao Brasil através dos portugueses e ainda
são vivenciadas na contemporaneidade”.
Desse modo, analisamos que as cerimônias de coroação estão inseridas no catolicismo popular. A maioria dos católicos, sejam eles da
zona rural ou urbana, costuma realizar comemorações no âmbito religioso. Por isso, a espontaneidade dessa cerimônia torna sua realização
diferente da liturgia institucionalizada, havendo o predomínio dos hábitos da religiosidade popular.
As paróquias concentram muitas atividades em torno da imagem
de Maria no mês de maio, principalmente após as aparições de Nossa
Senhora de Fátima, em maio de 1917. Assim, as comunidades católicas
fazem suas celebrações marianas. Nesse aspecto, Murad (2012, p. 211)
mostra que: “No correr do ano litúrgico, há três tipos de celebrações marianas: as solenidades, as festas e as memórias. [...]. A principal festa
mariana é a da Visitação (31 de maio).”
Por isso, refletimos que o fato da cerimônia de coroação ser comemorado no encerramento do mês de maio e, muitas vezes, coincidir com
a festa mariana da Visitação é importante para consolidar a participação
do laicato católico nessa cerimônia. Assim, a Igreja católica encerra o
mês de maio com a festa da Visitação de Nossa Senhora. Simultaneamente, os fiéis católicos encerram o mês de maio coroando as várias
imagens que representam a Mãe de Jesus. Em ambas as comemorações, ressalta-se o exemplo de Maria na vida cristã, tanto no contexto
da solidariedade missionária quanto da maternidade divina, aproximando a espiritualidade mariana do fundamento cristocêntrico.
Destacamos que a piedade popular possui uma identidade religiosa, como esclareceu Boff (2006, p. 565): “O povo católico em geral sente
em relação a Maria uma identificação profunda [...]. A razão disso é a
sorte comum que aproxima o povo da Virgem: uma vida simples, anônima e sofrida [...]”. E nessa linha de pensamento, destacamos a reflexão
de Murad (2012, p. 199): “Os católicos demonstram amor a e confiança
na Mãe de Jesus de muitas maneiras: o terço, a coroação no mês de
maio, as romarias aos santuários marianos [...]”.
O Dicionário de Mariologia (De Fiores; Meo, 1995, p. 1104) registra, no verbete rainha, que: “O título de rainha é atribuído a Maria pela
576
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
tradição cristã pelo menos a partir do séc. IV”. Ainda segundo o mesmo
verbete, podemos encontrar a explicação que Pio XII, no ano de 1954,
publicou a encíclica Ad coeli Reginam, um importante documento do Magistério da Igreja sobre a realeza mariana.
A dimensão simbólica da coroa colocada nas esculturas e pinturas marianas permite sua interpretação em aspectos visuais, materiais
e psicológicos. Nessa abordagem, destacamos a observação de Higuet
(2015, p. 25): “No simbólico, o simbolizante imagético remete a um simbolizado que, por sua vez, remete a uma rede de ideias, uma arborescência de pensamentos, segundo níveis hierárquicos”.
Várias ladainhas marianas foram propagadas e ajudaram a manter a invocação do título de rainha. Temos na memória algumas recordações dos títulos de realeza: rainha dos anjos, rainha dos apóstolos
e rainha da paz. O uso das ladainhas contribuiu para aproximá-las das
práticas religiosas populares.
Decifrar a imagem simbólica, especialmente nas crenças religiosas, necessita de uma interpretação dos conteúdos inseridos no pensamento humano. Assim, a hermenêutica torna-se um recurso importante. Nesse aspecto, Higuet (2015, p. 60) propõe: “É que as imagens,
por serem polissêmicas, dependem, antes de tudo, de uma abordagem
interpretativa, suscetível de desvendar, além do sentido imediato, o
sentido indireto e oculto”.
A linguagem metafórica da realeza de Maria está ligada à maternidade de Jesus. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II, através da Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium destacou: “Finalmente,
a Virgem Imaculada [...] foi levada à glória celeste em corpo e alma, e
exaltada pelo Senhor como Rainha do universo, para que se conformasse mais plenamente com o seu Filho [...]” (LG, n. 59).
Maria esteve sempre ao lado de Jesus, conforme os relatos bíblicos. Maria ao lado do filho na manjedoura. Maria aos pés da cruz de Cristo. Maria coroada na glória celeste pelos méritos de Jesus. As funções
messiânicas da salvação da humanidade possuem implicações teológicas que envolvem Maria de Nazaré.
Maria é homenageada pelos numerosos títulos de Nossa Senhora.
Nesse sentido, Murad (2012, p. 206) reflete que: “Quando os católicos
chamam Maria de ‘Nossa Senhora’ ou usam outro título, fazem isso
com delicadeza e afeto, reconhecimento e gratidão”.
577
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Nessa discussão, verificamos que um dos motivos que sustenta a
coroação das representações iconográficas de Maria seria o desejo de antecipar o triunfo do reinado de Deus. Um sinal da esperança popular baseado nas promessas contidas no cântico do Magnificat, tal como o hino
mariano proclama no Evangelho de Lucas. Seria uma antecipação de um
reino repleto de mudanças. sociais. Assim, Boff analisa (2006, p. 367): “as
reviravoltas sociais e políticas deste mundo não estão fora do horizonte
do Magnificat. É verdade que essas reviravoltas são vistas de cima, do
ponto de vista da fé, e penetram mais fundo, até o espírito do homem”.
A oração Salve-Rainha, rezada e cantada pelos fiéis católicos, teve
sua origem comentada na obra de Kurten; Santos (2017, p. 9): “A autoria
da oração é atribuída a Hermano Contracto, monge beneditino que teria
escrito por volta de 1050, no mosteiro de Reichenau, no Sacro Império
Romano-Germânico”.
Nas raízes religiosas populares, observamos que a contemplação
da coroação de Maria no plano celestial está presente no quinto mistério glorioso rezado pelos fiéis católicos através da recitação do rosário.
Além disso, diante dos ícones marianos, os fiéis rezam orações, acendem velas e fazem súplicas. Nesse sentido, Boff (2006, p. 542) considera que: “Maria, na glória, brilha como sinal de esperança e de verdadeira
reconciliação. Ela desautoriza tanto o otimismo ingênuo como o pessimismo resignado”.
A cerimônia de coroação reflete o costume das comunidades paroquiais. Uma descrição da cerimônia de coroação pode ser encontrada
no artigo de Cabral (2017, p. 176) que “reporta ao segundo lustro da
década de 1970, na cidade de Monte Alegre (RN), quando ela, junto com
mais outras duas (Vera Cruz e Lagoa Salgada), compunham a Paróquia
de São Joaquim e Sant’Ana [...]”.
Na contemporaneidade, constatamos que, na parte artística, alguns elementos continuam perenes na cerimônia de coroação e outros
foram substituídos. Para minimizar o desgaste do tempo, as renovações ocorrem conforme as transformações culturais. A cerimônia cresce
paralelamente ao apoio promovido pelo laicato católico.
O cenário, a coreografia dos anjinhos e os cânticos são pontos
que embelezam os elementos artísticos da coroação. As imagens que
representam Maria são colocadas de forma especial nos altares das
578
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
paróquias. Desse modo, a religiosidade é estimulada pela sensibilidade
artística, fazendo a comunidade celebrar com mais entusiasmo.
Em contrapartida, desvios da religiosidade tradicional podem acontecer, uma vez que as cerimônias abrangem aspectos sociológicos e culturais. Por conseguinte, algumas comemorações já não existem mais
como no passado, pois há o predomínio da cultura vigente em cada época.
Podemos verificar que ao longo da história muitos eventos, públicos e oficiais, relacionados à coroação da imagem que representa Maria
ocorreram no Brasil e no mundo. A Princesa Isabel, no regime imperial brasileiro, participou de um momento simbólico ao doar uma coroa
de ouro para ser colocada na imagem de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida. Com relação à descrição dessa coroa, verificamos na obra de
Brustoloni (1998, p. 44): “É de ouro 24 quilates, pesa 300 gramas e tem
24 diamantes maiores e 16 menores”.
Os gestos simbólicos expressam tanto sua relação com o sagrado quanto sua interferência no campo sociopolítico. Por isso, em alguns
momentos históricos, a hierarquia eclesiástica brasileira se apoderou do
simbolismo da coroação, através de fatos públicos e oficiais, pois houve a
coroação oficial da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida em
8 de setembro de 1904. Esse fato marcou a história religiosa brasileira.
A coroa de Nossa Senhora de Fátima, exposta no santuário localizado em Portugal, mostra o protagonismo do símbolo religioso nos episódios mundiais que marcaram a hierarquia eclesiástica. Desse modo,
explica Alvarez (2015, p. 201): “A bala que quase matou um dos líderes
religiosos mais queridos de todos os tempos foi retirada de seu corpo e
incorporada à coroa de ouro da imagem de Maria [...]”.
Esclarecemos que esse ato violento ocorreu contra o Papa João
Paulo II. Essa bala não tirou a vida do papa, o qual continuou a conduzir os rumos da Igreja católica no mundo, durante o período do seu
pontificado.
A coroação da imagem mariana é um símbolo que oferece recursos mobilizadores para o povo. Saber aproveitar positivamente tais
recursos foi um exemplo dado por muitos eventos históricos, em solo
brasileiro e mundial, principalmente estimulando as peregrinações dos
romeiros aos grandes santuários marianos.
579
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Considerações finais
Embora existam sinais de desgaste, a cerimônia de coroação ainda
permanece entre as comemorações realizadas nas paróquias. O fato de
ser repetida, em cada ano, promove a consolidação da imagem coroada
no simbolismo religioso católico.
O simbolismo da coroação representa a possibilidade de um reinado celestial, fonte de esperança para os fiéis católicos. O triunfo celeste,
já cantado no hino do Magnificat, enfatiza um mundo no qual o poder
político e os bens econômicos serão distribuídos com mais justiça.
A maternidade divina seria uma das principais justificativas para
a realeza de Maria. Isso facilitaria a sua compreensão, caracterizando o
seu valor bíblico. Desse modo, a cerimônia da coroação possui seu efeito
na religiosidade popular, pois alimenta dentro das paróquias a energia
mobilizadora das manifestações religiosas.
A estrutura artística dessa comemoração provoca entusiasmo nos
católicos, principalmente naqueles mais engajados na sua organização.
Além disso, as razões para a coroação oficial das imagens ultrapassam
o campo estritamente religioso, contendo motivações sociopolíticas.
Tradição religiosa, atividades artísticas e fatos históricos envolvem
essa comemoração realizada pelos católicos no mês de maio. Portanto,
concluímos que a cerimônia de coroação, por meio do seu simbolismo,
está interligada à persistência da religiosidade popular na sociedade
contemporânea.
580
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALVAREZ, Rodrigo. maria: a biografia
da mulher que gerou o homem
mais importante da história, viveu
um inferno, dividiu os cristãos,
conquistou meio mundo e é chamada
de Mãe de Deus. São Paulo: Globo,
2015.
BOFF, Clodovis. mariologia Social:
O significado da Virgem para a
sociedade. São Paulo: Paulus, 2006.
BRUSTOLONI, Júlio. História de Nossa
Senhora Aparecida: sua imagem e
seu santuário. Aparecida, SP: Editora
Santuário, 1998.
CABRAL, Newton Darwin de Andrade.
As Cerimônias de Coroação de Nossa
Senhora: memórias e análise de
uma prática devocional mariana. In:
Paralellus, Recife, v. 8, n. 17, p. 173190, 2017.
CONSTITUIÇÃO Dogmática Lumen
Gentium. In: COSTA, Lourenço (Org.).
Documentos do Concílio Ecumênico
vaticano II (1962-1965). São Paulo:
Paulus, 1997, p. 101-197.
DE FIORES, Stefano; MEO, Salvatore
(Dir.). Dicionário de mariologia. São
Paulo: Paulus, 1995.
HIGUET, Etienne Alfred. Imagens
e imaginário: subsídios teóricometodológicos para a interpretação
das imagens simbólicas e
religiosas. In: NOGUEIRA, Paulo
Augusto de Souza (Org.). Religião
e linguagem: abordagens teóricas
interdisciplinares. São Paulo: Paulus,
2015, p. 15-62.
KURTEN, Ivonete; SANTOS, Francisco
Eduardo de Souza. Um mês com a
rainha do céu: refletindo a SalveRainha. São Paulo: Paulinas, 2017.
MURAD, Afonso Tadeu. maria, toda
de Deus e tão humana: Compêndio
de mariologia. São Paulo: Paulinas;
Santuário, 2012.
[ Volta ao Sumário ]
581
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
pRátiCas, falas
e expeRiênCias
WiCCanianas: a
espiritualidade da deusa
frente aos desafios
contemporâneos
Isabel Cristine machado de Carvalho
Ana Laudelina Ferreira Gomes
Como referenciar este capítulo:
CARVALHO, Isabel Cristine Machado de; GOMES, Ana Laudelina Ferreira. Práticas, falas e experiências wiccanianas: a espiritualidade da Deusa frente aos
desafios contemporâneos. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos
Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 575-592.
Isabel Cristine Machado de Carvalho1
Ana Laudelina Ferreira Gomes2
Introdução
Este artigo é resultado de uma pesquisa de doutorado, ora em andamento, que se propõe a investigar nos espaços de atuação da Wicca
no Brasil, práticas, falas e experiências, que uma religião alternativa, de
raiz ocidental, centrada na espiritualidade da Deusa, orientam e estimulam seus praticantes e adeptos em relação as possibilidades, os caminhos e os respiros para lidar com os desafios atuais.
Além da observação de campo em São Paulo (SP) e Brasília (DF)3,
realizamos uma análise documental da literatura produzida por autores
wiccanianos, representada pela fonte bibliografia de autores brasileiros,
europeus e norte-americanos. Buscamos o diálogo com aportes teóricos elaborados pelos autores do campo da sociologia, antropologia, história e filosofia. Pretendemos ainda entrevistar representantes, adeptos e praticantes da Wicca, pertencentes à Tradição Diânica Nemorensis e
à Tradição Diânica do Brasil. Justificamos a escolha desses grupos, uma
vez que possuem produção e representatividade mais expressiva. Seus
representantes são fundadores e responsáveis pelos dois maiores
eventos que correspondem ao campo observado.
Dessa tecitura concatenada entre a observação, a entrevista,
os conteúdos produzidos e disponibilizados na internet pelos grupos
1
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista CNPq. Membro do Grupo de Pesquisa Mythos-Logos: religião, ciência e espiritualidade. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/8381013278219249.
E-mail: isabelcristinemc@gmail.com.
2
Doutora em Ciências Sociais (PUC-SP). Professora titular da UFRN. Líder do Grupo de
Pesquisa Mythos-Logos: religião, ciência e espiritualidade. Curriculum Lattes: http://lattes.
cnpq.br/7178264870931102. E-mail: analaudare@gmail.com.
3
Elencamos como campo de observação em São Paulo, a Conferência Anual de Wicca &
Espiritualidade da Deusa no Brasil e o Encontro Anual de Bruxos (EAB). Em Brasília, o evento
Bruxos Brasileiros em Brasília (BBB).
583
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
wiccanianos e a leitura da bibliografia nativa e de aporte teórico-metodológico vai-se tecendo e configurando os elementos da investigação.
Contudo, para este momento, lançamos mão de uma produção
textual em que abordaremos os seguintes aspectos da pesquisa: o surgimento da bruxaria moderna, a crise dos paradigmas vigentes e em
curso, cenário e dilemas do contemporâneo e a espiritualidade da Deusa
para um novo paradigma civilizatório.
Bruxaria moderna
A raiz da bruxaria moderna4 advém do ressurgimento do movimento romântico do século XIX. O Iluminismo e o racionalismo do final
do século XVIII haviam excluído a bruxaria e também outras crendices
ou superstições da esfera da realidade. Não se compreendia tais práticas como sendo dotadas de credibilidade. No entanto, o caminho da racionalidade, do progresso e do materialismo não extirpou movimentos
voltados para a magia e para os mistérios. As sombras haviam sumido;
a luz do dia era comum e tornava tudo concreto e claro, porém o homem
do século XIX percebeu-se abandonado em um mundo materialista e
monótono.
Na Idade Média, os diabos eram uma realidade que todos aceitavam
sem questionar. E os românticos olharam para trás nostalgicamente: a era dos demônios e dos íncubos, muito mais estimulante para
a imaginação do que as estradas de ferro e os navios a vapor. (RUSSEL; ALEXANDER, 2008. p. 151).
É preciso considerar que a bruxaria moderna aparece nas pesquisas de historiadores,
antropólogos, cientistas da religião e na bibliografia produzidas pelos seus praticantes
também como bruxaria neopagã, Wicca, antiga religião ou religião da Deusa. A denominação religião da Deusa é a mais difundida aqui no Brasil. Inclusive, Claudiney Prieto, um
dos maiores divulgadores da Wicca no país, publicou o livro cujo título é: Wicca, a religião
da Deusa. A obra está na sua 53ª edição, como mais de 200 mil exemplares vendidos,
segundo informações da editora Alfabeto (https://editoraalfabeto.com.br/shop/wicca-a-religiao-da-deusa/).
4
584
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Russel e Alexander (2008) reforçam que o racionalismo era hostil
ao significado profundo da humanidade e às preocupações humanas.
Em resposta as mudanças profundas preconizadas pelo impacto de dois
grandes acontecimentos no Ocidente, que foram a Revolução Francesa
e a Revolução Industrial, exaltaram o não racional e o antirracional, o
básico, o intuitivo e o extático. “Tal ênfase despertou o interesse renovado pela magia e por outras artes ocultas – um entusiasmo que também ajudou a reabrir a discussão sobre a bruxaria e a loucura da caça às
bruxas, cuja memória ainda estava fresca o bastante para assombrar as
mentes europeias” (RUSSEL; ALEXANDER, 2008. p. 151).
É nesse cenário que emerge um dos principais conceitos
associados à bruxaria moderna ou Wicca: que a bruxaria medieval era,
de fato, uma sobrevivência do paganismo pré-cristão. Portanto, a bruxaria moderna não está historicamente ligada ao fenômeno medieval,
mas sim às especulações sobre a bruxaria, que começaram a surgir
posteriormente ao declínio do próprio fenômeno. Entende-se, então,
por essa vertente religiosa, um sistema de práticas e crenças relativas
ao fenômeno da bruxaria tradicional retomado por meio das investigações da egiptóloga e antropóloga inglesa, Margaret Murray (2003),
na década de 1920, pelo antropólogo James Frazer (1982) e pelo historiador Jules Michelet (2003).
A Wicca5 foi fundada por Gerald Brousseau Gardner na década de
1950 na Inglaterra. Foi ele quem agrupou elementos da magia cerimonial, com o folclore das ilhas britânicas e as teorias preconizadas a respeito da existência de um culto religioso pré-cristão e fundou a religião
da bruxaria moderna. Ele desencadeou a evolução/invenção e disseminação da Wicca Gardneriana. Gardner era funcionário público, antropólogo e folclorista amador. Apresentou o que afirmava serem as crenças e
rituais de uma religião ancestral em vias de extinção. A origem do moviWica foi a grafia original apresentada por Gerald Gardner e usada por ele no final da
década de 1940 e início da década seguinte, e abandonada depois disso, sendo usada a
atual, Wicca. Em inglês antigo, a palavra wicce (forma feminina) ou wicca (forma masculina)
indicava pessoa capaz de fazer adivinhações ou lançar feitiços. “De acordo com a etimologia popular introduzida pelo fundador ou descobridor da Wicca, Gerald Gardner, e aceita
por muitos pagãos modernos, wicce deriva de uma antiga raiz indo-europeia que significa
‘sábio’, e por isso witchcraft (‘bruxaria”) significa ‘a arte do sábio”(GREER, 2012, p. 667).
5
585
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mento Wicca Garderiana tem laços estreitos com o despertar do oculto6
no século XIX.
A filosofia oriental fundiu-se com o ocultismo ocidental, modificando muitos dos antigos conceitos fundamentais para os sistemas mágicos ocidentais. Elas foram as bases dos ensinamentos
secretos do sistema mágico de Gardner. O acréscimo às tradicionais crenças pagãs celtas vieram de tais fontes. (TERZETTI FILHO,
2012, p. 29).
As tradições mágicas folclóricas de Gardner foram sendo engendradas no final da década de 1930, quando ele é iniciado, segundo sua
biografia, pelo Coven de New Forest. O coven professava uma religião
pré-cristã muito antiga. A senhora Old Dorothy o teria levado ao coven e
o iniciado na bruxaria. “Estava quase iniciado quando a palavra Wicca foi
mencionada pela primeira vez: foi então que ele soube que aquilo que
pensava ter desaparecido nas fogueiras, anos atrás, ainda sobrevivia”
(TERZETTI FILHO, 2012, p. 27-28)7.
Segundo Terzetti Filho (2016), Gardner, no primeiro momento de
sua formação, apresenta a Wicca como uma religião ancestral que, em
sua visão, provavelmente encontra origens no período pré-histórico
das ilhas britânicas e são transmitidas em segredo ao longo de séculos.
Suas concepções foram baseadas principalmente a partir de uma reeleitura dos autores que defendem a ideia de uma sobrevivência folclórica
e foram repetidas, ampliadas e reformuladas por outros membros da
Wicca desde sua época.
Gardner ainda localizou nas ideias de Robert Graves a abordagem
literária em relação à noção de uma Deusa tríplice. Ou seja: donzela,
A pesquisa de Terzetti Filho (2012) explica que a Wicca Gardneriana foi fortemente influenciada pela Golden Dawn, também conhecida como Hermética Ordem da Aurora Dourada. Fundada por Liddel McGregor Mathers e William Westcott, segundo o pesquisador,
“ela teve um papel importante no desenvolvimento da história da magia ocidental e, até
hoje, muitos de seus princípios e elementos são encontrados em correntes da Nova Era,
assim como entre os grupos neopagãos” (TERZETTI FILHO, p. 48).
7
A biografia de Gardner foi escrita por Jack Bracelin (Gerald Gardner: Witch. London: Octagon Press, 1960). Não tive acesso à obra original. Trago os fragmentos disponíveis na
dissertação de Terzetti Filho.
6
586
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mãe e anciã. Graves foi um poeta, ensaísta e romancista inglês. Seu
impacto sobre a formação da bruxaria moderna deriva de seu livro de
1948, The white goddess, publicado no Brasil com o título A deusa branca:
uma gramática histórica do mito poético.
Em 1951, na Inglaterra, a última das leis contra Bruxaria foi revogada pelo Parlamento; pouco depois, Gardner, sentindo-se mais seguro, promove um despertar da Bruxaria. Em 1954 e 1959, publicou seus
livros Witchcraft Today, no Brasil, a obra recebeu o título A bruxaria hoje
(2003) e The Meaning of Witchcraft, O significado da bruxaria (2018), título
registrado no Brasil. “A estrutura da Wicca baseava-se numa quantidade indeterminada de elementos de magia cerimonial e teorias folclóricas que exerciam grande fascínio no meio ocultista” (TERZETTI FILHO,
2012, p. 30).
Quer Gerald Gardner tenha descoberto a religião da bruxaria, quer
ele a tenha inventado, não pode haver dúvida de que foi ele que a tornou
pública e a promoveu na contemporaneidade.
Na década de 1960 e 1970, a Wicca deslocou-se para os Estados
Unidos e encontrou terreno fértil para germinar. Ela se percebeu encaixada e em sintonia com o contexto do movimento da Nova Era que
emergia naquele país. A Nova Era é formada por um conjunto de práticas, valores e comportamentos que remontam ao movimento beat e à
contracultura dos anos 1950 e 1960, uma espécie de filosofia de vida,
que acredita que o mundo passa agora por uma Nova Era que é a Era de
Aquário, antecedida pela Era de Peixes, que foi a Era Cristã. Técnicas espirituais e metafísicas do Oriente e de culturas antigas são valorizados
(OSÓRIO, 2001; BEZERRA, 2012).
Disseminou-se mais firmemente a partir do movimento hippie, assumindo novas dimensões. No bojo do cenário surge o Neopaganismo
que abrange uma ampla variedade de crenças e tradições que incluem
recriações do antigo druidismo celta, Wicca, magia cerimonial e neoxamanismo. É um fenômeno relativamente novo do ressurgimento na sociedade contemporânea de uma espiritualidade centrada na percepção
da Terra como sagrada e que tomou impulso a partir dos movimentos
da contracultura dos anos 1960 e se auto-define como um sucessivo
das tradições religiosas dos antigos povos pré-cristãos europeus, particularmente os celtas, gregos, germânicos e nórdicos (OLIVEIRA, 2009).
587
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Para Terzetti Filho (2016), novas espiritualidades e religiosidades
alternativas vinham ao encontro a motivação de se construir sociedades
mais justas. Comunidades independentes e autossustentáveis, manifestações contra as guerras, enfim, a mensagem anunciada pelo movimento da Nova Era tinha interesse pacificador, de experiência pessoal
interior, de sacralização da natureza e do anti-autoritarismo representado pelo patriarcalismo. É nesse período que a Wicca foi apropriada de
modo significativo pelo feminismo e, nos Estados Unidos, passou por
significativas mudanças. O cenário da contracultura americana revelou-se uma opção aos jovens da geração baby boom no tocante a um estabelecimento cristão patriarcal.
Com autoras como Zsuzsanna Budapeste, fundadora da Wicca
Diânica, e Starhawk (Miriam Simos), idealizadora da Tradição Reclaiming
(Reclaiming Tradition), a Wicca tornava-se, agora, a face espiritualizada
do feminismo contracultural (TERZETTI FILHO, 2016). Adota uma postura intensamente política, combinando práticas religiosas e mágicas
neopagãs com ativismo político de esquerda, especialmente nas áreas
ambientais e do feminismo.
A Wicca chega ao Brasil, no final da década de 1990, trazendo o
contexto da Nova Era e suas espiritualidades alternativas. Foi a Wicca
com contornos de valorização do feminino e da natureza que foi disseminada no Brasil. Herança histórica da Wicca reinventada no contexto dos Estados Unidos, essa forma de bruxaria, de acordo com Terzetti
Filho (2016), irá se ramificar em práticas mais voltadas para o culto à
Deusa na forma como é conhecido no neopaganismo como Goddess
Orientation [orientação da deusa]. “Estamos considerando como referência a produção de autores wiccanianos brasileiros considerados entre os adeptos os bruxos e bruxas pioneiros no país” (TERZETTI FILHO,
2016, p. 22).
Com aproximadamente 70 anos de existência, a Wicca nasce, então, em um território específico, a Inglaterra, como a ideia de projeto
nacional e enfatiza em suas obras introdutórias a Wicca como uma
religião ancestral que encontra suas origens no período pré-histórico.
Com sua ampliação e a iniciação de mais pessoas, a Wicca Gardneriana
não tardou em cruzar o Atlântico e ser introduzida nos Estados Unidos
e, posteriormente, chega ao Brasil. Embora ela tenha influenciado em
588
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
termos de prática (Terzetti Filho, 2016) todas as formas de Wicca posteriores e outras vertentes neopagãs, a Wicca que nasce com Gerald
Gardner sofre atualizações, adaptações e ressignificações. A bruxaria
neopagã é uma expressão religiosa de muito movimento e transição.
Os bruxos de hoje, segundo Russel e Alexander (2008), podem rememorar mais de meio século de evolução e inovação; tendo aceito o
princípio da invenção criativa como parte da sua religião, acreditam que
sua habilidade de improvisar à medida que avança é uma das principais
forças de sua comunidade. Eles chamam a atenção, ainda, para a possibilidade do pensamento sincrético, intuitivo e mítico, característica desse Saber Mágico, ser tão valioso quanto o pensamento analítico e que
o panteísmo possa ajudar a entender concepções que o monoteísmo
perdeu ao longo de anos na sociedade.
Para Lévi-Strauss (1989), as narrativas míticas e a experiência estética cumprem a importante função de manter, alimentar e expandir
reservas antropológicas complexas. A ruptura entre natureza e cultura
transformou o homem em um ser domesticado, racional, desconectado com os operadores totalizantes das sensibilidades, do pensamento
selvagem. A magia é uma forma de pensar e fazer no mundo que se
aproxima de uma lógica do sensível (LÉVI-STRAUSS, 1989). Estamos
aqui, portanto, nos referindo a uma possibilidade de reabilitação de uma
ciência primeira, como afirma Almeida (2012), próxima de uma lógica do
sensível. Numa concepção cartesiana não se reconhece geralmente que
possa existir um conhecimento (ou consciência) intuitivo, o qual é tão
válido e seguro quanto o outro.
Não nos faltam mais operadores técnicos e tecnológicos para explicar os grandes esquemas do mundo, explica Almeida (2012), nos faltam o sentir, o imaginar, o contemplar, o enxergar e o ouvir. Falta aos
homens resgatar os operadores pela lógica do sensível, da prática social
e de outros saberes, sobre o mundo, como a arte e a espiritualidade.
Cenários do contemporâneo e espiritualidade da Deusa
A espiritualidade da Deusa dos dias atuais não está tentando recriar as condições exatamente como eram na Idade da Pedra ou em
589
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
qualquer outra época ou lugar. Ao contrário, busca-se aprender com
essas pessoas (ancestralidade) como dar vida à Deusa de uma maneira
que corresponda a sua própria experiência (POLLACK, 1998). Esse (re)
despertar da Deusa pressupõe numa retomada de um saber mágico que
só faz sentido, explica Morin (2015), se conectado às noções de símbolo,
mito e magia que estão subentendidas umas nas outras:
O símbolo que pode, certo, emitir de modo relativamente autônomo, alimenta o pensamento mitológico, e a magia alimenta-se do
pensamento simbólico-mitológico-mágico; deve-se unir essas três
noções num macroconceito para que cada um atinja a sua plena
realização; em contrário, o símbolo permanece um estado de espírito; o mito, uma narrativa legendária; a magia, um abracadabra.
(MORIN, 2015, p. 183).
Na Wicca é possível perceber o estímulo contínuo ao pensamento
simbólico-mitológico-mágico.
A bruxaria sempre foi uma religião de poesia [...] Os mitos, as lendas
e os ensinamentos são compreendidos como metáforas ‘daquilo-que-não-pode-ser’ dito, a realidade absoluta que as nossas mentes limitadas jamais conseguem apreender completamente. [...]
Atos simbólicos, rituais são utilizados para revelar insights que vão
além das palavras. (STARHAWK, 1999, p. 35).
Entendemos ser possível aproximar os argumentos de Lévi-Strauss, Morin e Starhawk. Para Lévi-Strauss e Morin, o uso do simbólico, da imaginação foi sufocado pelo homem da ciência moderna.
Starhawk nos fala de mentes limitadas. Carvalho (2017) afirma que
a relação nos conduz a reflexão sobre a hegemonia do quadrinômio
ciência-técnica-indústria-capitalismo em que não há espaço para o livre curso da imaginação, da energia da contemplação, da epifania da
meditação.
Estamos ressacados pela herança de valores que estiveram associados a várias correntes da cultura ocidental, entre elas a revolução
científica, o Iluminismo e a Revolução Industrial. De acordo com Capra
(1985), a maneira como encaramos o mundo, imputamos sentidos às
590
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
coisas, defendemos nossas ideias e nos relacionamos socialmente é a
parte visível do iceberg de um padrão psíquico internalizado e nem sempre consciente. Porém correspondente a uma dinâmica construída a
partir de um ethos8, enraizada a tempos e que confere um olhar peculiar
de formação da sociedade ocidental. Capra (1985) denomina de força
yang. Evocando valores da cultura chinesa, o físico, expõe o que parecem
existir duas espécies de atividades:
Uma em harmonia com a natureza e outra, contrária ao fluxo natural
das coisas. [...] Em vista das imagens originais associadas aos dois
polos arquetípicos, diríamos que yin pode ser interpretado como
correspondente à atividade receptiva, conciliadora, cooperativa;
o yang, à atividade agressiva, expansiva e competitiva. Em
terminologia moderna, poderíamos chamar à primeira ‘eco-ação’ e
à segunda, ‘ego-ação’. (CAPRA, 1985, p. 35).
O físico apresenta o argumento que o projeto de sociedade ocidental baseou-se sistematicamente e preferencialmente em valores, atitudes e padrões de comportamento yang9. Ou seja: o conhecimento racional
prevalece sobre a sabedoria intuitiva, a competição sobre a cooperação,
a exploração de recursos naturais em vez da conservação, e assim por
diante. Essa ênfase, sustentada pelo sistema patriarcal acarretou um
profundo desequilíbrio cultural – um desequilíbrio nos pensamentos e
sentimentos, nos valores e atitudes e nas estruturas sociais e políticas.
Teria chegado o tempo de refletir sobre os avanços e (des)caminhos tomados. Bauman (2009; 2003) nos convida a exercitar aquela
qualidade de espírito que combina pensamento, sentimento, imaginação e sensibilidade. Boff (2014) lembra que o sintoma mais doloroso, já
Boff (2014) destaca que ethos em seu sentido originário grego significa a toca do animal
ou casa humana, sendo assim aquela porção do mundo que reservamos para organizar,
cuidar e fazer nosso habitat. Esse ethos (modelação da casa humana) abriga um espírito,
“um corpo em morais concretas (valores, atitudes e comportamentos práticos) em consoante às várias tradições culturais e espirituais” (BOFF, 2014, p. 32). A noção de ethos,
portanto, que adotamos parte de um conceito que evoca hábitos, modos e costumes.
9
Capra (1985) apresenta ainda um quadro associativo do yin e yang em relação a valores
e atitudes culturais. “Yin: feminino, contrátil, conservador, receptivo, cooperativo, intuitivo
e sintético. Yang: masculino, expansivo, exigente, agressivo, competitivo, racional e analítico” (CAPRA, 1985, p. 36).
8
591
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
constatado há décadas por analistas e pensadores contemporâneos, é
um difuso mal-estar da civilização. Aparece sob o fenômeno do descuido, do descaso e do abandono, numa palavra, da falta de cuidado. “Há
um descuido e um abandono dos sonhos de generosidade, agravados
pela hegemonia do neoliberalismo com o individualismo e a exaltação
da propriedade privada que comporta. Menospreza-se a tradição da solidariedade” (BOFF, 2014, p. 18-19).
A solidariedade, complementa Carvalho (2012, p. 65), “tem a ver
com a nossa responsabilidade ético-política diante da violência do capitalismo global”. Valores, atitudes e padrões de comportamento yang
se distanciam de valores como intuição, solidariedade, cooperação, manutenção e nutrição da vida. “O mundo precisa ser mais feminino, slogan muito repetido em reuniões de ecologistas, não é palavra de ordem
inútil, panfletária, mas algo apropriado para fundamentar a ideia de um
mundo sustentável” (CARVALHO, 2012, p. 67).
O fato de criar máquinas que permitam reduzir os efeitos da natureza sobre a vida cotidiana dá ao homem moderno a sensação de que
sua razão é suficiente para se opor também à natureza interna. Tem-se,
portanto, a sensação de que a sociedade industrial permitiu o desenvolvimento da potencialidade humana porque se opôs aos limites da natureza. Não há respeito aos ritmos dos ciclos naturais.
Sem respeito aos ciclos, o sujeito de desempenho (Han, 2017),
por exemplo, desenvolve quadros de ansiedade, depressão e transtornos de déficit de atenção. No extremo, ele busca a tentação contemporânea de desaparecer de si, conforme afirma Le Breton (2018,
p. 9): “às vezes nossa existência nos pesa. Em uma sociedade onde
se impõe a urgência, a agilidade, a concorrência, a eficácia etc., ser si
mesmo já não é algo evidente”.
A exploração da natureza tem andado de mãos dadas com a exploração das mulheres. A relação de igualar a natureza às mulheres tem
sido identificada ao longo dos tempos. Desde as mais remotas épocas, a
natureza – e, especialmente a terra – tem sido vista como uma nutriente e benévola mãe, mas também uma fêmea selvagem e incontrolável.
Essa hostilidade emocional, considera Campbell (1997), tem raízes profundas na formação judaico-cristã da imagem normativa do ego
masculino transcendente é a conquista da natureza, imaginada como
592
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
conquista e transcendência da Mãe. A noção do homem como dominador da natureza e da mulher e a crença no papel superior da mente
racional foram apoiadas e encorajadas pela tradição judaico-cristã, que
adere à imagem de um deus masculino, personificação da razão suprema e fonte de poder último.
As leis da natureza investigadas pelos cientistas, de acordo com
Capra (1985, p. 38), “eram vistas como reflexos dessa lei divina, originada pelo espírito de Deus”. No ocidente, não é apenas a ciência, a economia e a política que estão impregnadas como o paradigma centrado
no masculino; Campbell (1997, p. 15) afirma que “a sociedade mantém
a crença promulgada pelas religiões judaico-cristãs de que Deus sempre
foi masculino”.
Se a Terra está sob a regência do que alguns chamam de Deus, na
visão de Prieto (2018, p. 11), “ele tem se mostrado extremamente ineficiente e incapaz de governar o mundo”. Sintomas de um mundo que tem
crescido durante milhares de anos sem sua mãe, a Deusa.
A Deusa com seus ciclos de uma progressão em espiral, deslocando-se para frente e para trás, num movimento espiralado, volta e se
abre para novas experiências. A Wicca reacende esse movimento espiralado e traz como divino sagrado a Deusa:
Ela é a fonte de toda vida. A força vital provém e flui por meio dela. A
Deusa é a deidade primordial, sobrenatural, a força criativa de toda
a vida. Se existe um Deus, ele é filho, o consorte ou uma manifestação da Grande Deusa. Qualquer outra divindade que possa existir emana dela. Na realidade, as múltiplas divindades reconhecidas
e invocadas podem ser vistas com diferentes aspectos e faces da
Deusa. Pensemos em um imenso corpo (Deusa) que possui e é formado por vários órgãos e membros (Deuses). Nenhum dos órgãos
e membros (Deuses) vive e atua à parte do corpo (Deusa). (PRIETO,
2018, p. 208-209).
Essa espiritualidade é pautada na adoração de uma Grande Deusa
que pode ter muitos nomes e imagens, mas sempre representa a divindade como uma presença feminina: “doadora da vida, protetora, às
vezes apavorante, mas sempre liga à natureza e à verdade dos nossos
corpos” (POLLACK, 1998, p. 15).
593
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A Deusa cultuada na Wicca, não sofre uma abstração, passando
para algum outro mundo além desta terra, mas é a fonte abrangente
de nova vida que rodeia o mundo presente e assegura sua continuação.
Segundo Faur (2011), enquanto Deus é uma força espiritual e
transcendente, a Deusa é imanente e permanente, presente em todas
as formas, energias, seres e ciclos naturais. Ela é, portanto, a própria
Terra e seu conjunto que inclui plantas, rochas e homens.
A bruxaria neopagã, então, emerge do mundo. Vem da terra, das
pessoas, das plantas, dos animais, de toda a teia da vida. “Está aqui, no
tempo presente. Há transformação e há revolução. Está é uma verdade feminina, esta é a Deusa que percorreu a história para estar conosco agora” (GREY, 2017, p. 10). Isso sugere que a Deusa10 não é um foco
de pessoalidade, mas, primeiro, uma imagem impessoal dos poderes
misteriosos da fecundidade. A humanidade de outrora não se enxerga
como se estivesse controlando os processos vitais, mas, antes, como
cooperadora deles.
Considerações finais
Diante do que expomos, percebemos que é necessária uma mudança de paradigma que só se faz emergente porque nos perdemos no
meio do caminho. “O amor é a guerra para acabar com todas as guerras,
e a guerra se abate sobre nós. Enquanto a nossa cultura se lamenta, o
que fizemos de errado? É simples: a humanidade quebrou a aliança com
a natureza” (GREY, 2017, p. 11).
“Cada época possuiu suas enfermidades fundamentais”, lembra-nos Han (2017). No século XXI, a sociedade do cansaço, enquanto
sociedade ativa e do desempenho, nos põe em um cansaço solitário
que tem individualizado e isolado. Ela impede o ver, o agir, o regenerar. Contudo, não basta esperar apenas o que virá. Regeneração é a
10
Campbell (1997) afirma que existem fortes evidências de que, embora tanto as divindades femininas quanto masculinas fossem reverenciadas nessas sociedades arcaicas, o
poder mais elevado do universo era visto como o poder feminino de dar e manter a vida, o
poder encarnado no corpo da mulher.
594
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
palavra-chave dos desafios a serem enfrentados. A urgente reforma da
sociedade, da vida, da alma e do corpo incide na regeneração de Eros
(HAN, 2017; CARVALHO, 2017). Uma alma possuída de Eros, religa, integra e promove o retorno às fontes cósmicas (MORIN, 2005).
São os dilemas do humano e os cenários sociais dos dias atuais
que nos impulsionam a refletir quanto à necessidade de reconsiderarmos paradigmas vigentes e em curso. Concordamos com Almeida
(2012) que afirma não se tratar de defender nenhuma apologia demissionária diante do desenvolvimento do processo civilizatório, da ciência
e da tecnologia. No entanto, esse projeto de sociedade tem levado à
degradação ambiental, ao estímulo à competição agressiva, ao consumo desmedido e aos excessos, porque é preciso ter, pois o sentimento
de ser esvaziou-se.
Vivemos tempos estranhos, um pouco como se estivéssemos em
suspenso entre duas histórias, que falam ambas de um mundo que
se tornou ‘global’. Uma é conhecida de todos. Seu ritmo é marcado
pelas notícias do fronte da grande competição mundial, e seu crescimento segue a flecha do tempo. Ela tem a clareza da evidência
quanto ao que exige e promove, mas é marcada por uma notável
confusão em relação às suas consequências. A outra, em compensação, pode ser pensada como nítida quanto ao que está acontecendo, mas obscura no que exige, na resposta àquilo que está acontecendo. (STENGERS, 2017, p. 9).
Longe de empreender uma solução para o problema, Morin (2005)
alerta que não se trata de forma alguma de alcançar uma sociedade de
harmonia na qual tudo seria paz. Para ele, a ‘boa sociedade’ só pode ser
uma sociedade complexa que abraçaria a diversidade, não eliminaria as
contradições e as dificuldades de viver, e que comportaria mais religação, compreensão, consciência, solidariedade e responsabilidade.
Boff (2014) defende que a religião por si só não consegue corrigir
os desvios, dilemas e enfermidades da sociedade. “O decisivo não são
as religiões, mas a espiritualidade subjacente a elas. É a espiritualidade que une, liga, re-liga e integra. Ela e não a religião ajuda a compor
as alternativas de um novo paradigma civilizatório” (BOFF, 2014, p. 23).
Partindo dessa ideia, argumentamos que a Wicca se apresenta como
595
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
uma espiritualidade alternativa de enfrentamento aos desafios e cenários dos dias atuais, uma vez que adota outro ethos a partir de um outro
paradigma.
Essa outra ótica, portanto, celebra, em que pese o estudo até o
momento, uma divindade feminina como Criadora de toda a vida, de
cosmovisão que permite articulação com o ambiental e com o feminino,
além de uma prática e pensamento orientado pela magia e pelo mito.
Nesse sentido, existe uma tentativa de construir outras subjetividades
cotidianas, criadoras de outras formas de viver, quiçá pelas vias regeneradoras, pela reforma da vida, do ser e retorno às fontes cósmicas
(MORIN, 2005). Ou ainda, segundo Boff (2014), num notável esforço de
superação do patriarcalismo e pelo fortalecimento da anima no homem
e na mulher pelo apoio às mulheres.
596
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALMEIDA, Maria da Conceição de.
Tecnociência e globalização. In:
ALMEIDA, Maria da Conceição de;
CARVALHO, Edgard de Assis. Cultura
e pensamento complexo. Porto
Alegre: Sulina, 2012. p. 27-63.
BAUMAN, Zygmunt. vida líquida.
Tradução Carlos Alberto Medeiros.
2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
______. A sociedade líquida. Folha
de São Paulo, São Paulo, 19 out., de
2003, p. 8.( Entrevista concedida a
Maria Lúcia G. Pallares-Burke)
BEZERRA, Karina Oliveira. A Wicca
no Brasil: adesão e permanência dos
adeptos na Região Metropolitana do
Recife. Dissertação (Mestrado em
Ciências da Religião) – Programa
de Pós Graduação em Ciências da
Religião, Universidade Católica
de Pernambuco, Recife, 2012.
Orientação de Gilbraz de Souza
Aragão.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar. ética
do humano, compaixão pela terra. 20.
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
CAMPBELL, Joseph. Todos os nomes
da deusa. Tradução Beatriz Pena. Rio
de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos,
1997.
CARVALHO, Edgard de Assis.
Sociedade do cansaço: agonia e
regeneração em Eros. Um drama
em três atos. In: Centro de Estudos
Universais. Encontro das culturas do
597
mundo. Disponível em: <http://www.
ceuaum.org.br/artigo/46/sociedadedo-cansaco-agonia-e-regeneracaode-eros-um-drama-em-tres-atos>.
Acesso em: 14 jun. 2019.
______. Natureza recuperada. In:
ALMEIDA, Maria da Conceição de;
CARVALHO, Edgard de Assis. Cultura
e pensamento complexo. Porto
Alegre: Sulina, 2012. p. 65-84.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação.
A ciência, a sociedade e a cultura
emergente. Tradução Álvaro Cabral.
25. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.
FAUR, Mirella. Círculos sagrados
para mulheres contemporâneas. São
Paulo: Pensamento, 2011.
FRAZER, Sir James George. O ramo de
ouro. Edição do texto Mary Douglas.
Tradução Waltensir Dutra. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.
GARDNER, Gerald B. A bruxaria hoje.
São Paulo: Madras, 2003.
GARDNER, Gerald B. O significado da
bruxaria. Uma introdução ao universo
da magia. Tradução Lya Valéria Grizzo
V. Serignolli. 2. ed. São Paulo: Madras,
2018.
GRAVES, Robert. A deusa branca.
Uma gramática histórica do mito
poético. Tradução Bento de Lima. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
GREER, John Michel. Dicionário
enciclopédico do pensamento
esotérico ocidental. Tradução
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de Marcello Borges. São Paulo:
Pensamento, 2012.
GREY, Peter. Bruxaria apocalíptica.
São Paulo: Penumbra, 2017.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do
cansaço. 2. ed. Tradução Enio Paulo
Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
LE BRETON, David. Desaparecer de
si. Uma tentação contemporânea.
Tradução Francisco Morás. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2018.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O
pensamento selvagem. Tradução
Tânia Pellegrini. Campinas, SP:
Papirus, 1989.
MICHELET, Jules. A feiticeira.
Tradução Ana Moura. São Paulo:
Aquariana, 2003 (Coleção B).
MORIN, Edgar. O método 3. O
conhecimento do conhecimento.
Tradução Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre, RS: Sulina, 2015.
______. O método 6. Ética. Tradução
Juremir Machado da Silva. Porto
Alegre, RS: Sulina, 2005.
MURRAY, Margaret. O culto das
bruxas na Europa ocidental. São
Paulo: Madras, 2003.
OLIVEIRA, Rosalira. Ouvindo uma
Terra que fala: o renascimento do
paganismo e a ecologia. In: Revista
Nures. Núcleo de Estudos Religião e
Sociedade (PUC-SP), n. 11, jan/abr,
São Paulo, p. 1-9, 2009.
598
OSÓRIO, Andréa B. mulheres e
deusas: um estudo antropológico
sobre a bruxaria wicca e identidade
feminina. 2001. Dissertação
(Mestrado em Sociologia e
Antropologia). Programa de PósGraduação e Antropologia (PPGSA),
Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais – IFCS, Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de
Janeiro, 2001, 302 p. Orientação de
Mirian Goldenberg.
POLLACK, Rachel. O corpo da Deusa.
No mito, na cultura e nas artes.
Tradução Magda Lopes. Rio de
Janeiro: Record: Rosa dos Tentos,
1998.
PRIETO, Claudiney. Wicca. A religião
da Deusa. 53. ed. São Paulo: Editora
Alfabeto, 2017.
______. Wicca para todos. Um guia
completo para a prática da bruxaria
moderna. 3. ed. São Paulo: Editora
Alfabeto, 2018.
RUSSEL, Jeffrey B.; ALEXANDER,
Brooks. História da bruxaria.
Tradução Álvaro Cabral e William
Lagos. São Paulo: Aleph, 2008.
STARHAWK. A dança cósmica das
feiticeiras. Guia de rituais à grande
Deusa. 3. ed. Rio de Janeiro: Record
Nova Era, 1999.
STENGERS, Isabelle. Reativar o
animismo. In: Caderno de Leituras.
Tradução Jamille Pinheiro Dias. n. 62,
Belo Horizonte, p. 1-15, 2017.
TERZETTI FILHO, Celso Luiz. Um
bruxo e seu tempo: as obras de
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Gerald Gardner com expressões
contraculturais. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião)
– Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), São Paulo, 2012, 178 p.
Orientação de Frank Usarski.
um estudo sobre a religião Wicca
nos Estados Unidos e no Brasil. Tese
(Doutorado em Ciências da Religião)
– Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), São Paulo, 2016, 191 p.
Orientação de Frank Usarski.
______. A deusa não conhece
fronteiras e fala todas as línguas:
[ Volta ao Sumário ]
599
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
pRoBlematizando a
utilização de dRogas
líCitas e ilíCitas: práticas
educativas e experiências
vivenciadas numa
organização da sociedade civil
do agreste pernambucano
Elisângela maria dos Santos Silva
Adriel Rodrigues do Nascimento
Como referenciar este capítulo:
SILVA, Elisângela Maria dos Santos; NASCIMENTO, Adriel Rodrigues do.
Problematizando a utilização de drogas lícitas e ilícitas: práticas educativas
e experiências vivenciadas numa organização da sociedade civil do agreste
pernambucano. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.).
Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e
Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR /
Fogo Editorial, 2020, p. 593-610.
Elisângela Maria dos Santos Silva1
Adriel Rodrigues do Nascimento2
Introdução
O consumo de substâncias psicoativas no mundo é um fenômeno
que sempre acompanhou a formação das civilizações e seus contextos
socioculturais. Fosse para cura de doenças, experiências religiosas e
transcedentais, prazer individual e coletivo, raramente era vista como
ameaçadora para o indivíduo e a sociedade. Isso porque para cada cultura, o uso de substâncias psicoativas estava intrisecamente relacionado aos princípios, leis e regras de conduta que determinavam quem,
como e qual a finalidade do uso, de acordo com sua forma de organização e compreensão do sujeito e do mundo.
A história sobre uso de drogas apresenta profundas transformações pois suas características foram se modificando com o tempo, a
partir dos controles sociais formais e informais de agentes políticos, repressores, religiosos, familiares, comunitários, de saúde, dentre outros.
Poderiamos retormar a uma descrição retrospectiva ancestral do
uso do ópio originário da Asia Menor e Europa há 5.000 anos, da Cannabis encontrada no continente asiátio há 4.000 a.C, da bebida alcoolica
utilizada em vários fins pelos egípcios, mas vamos particularizar recortes de alguns momentos específicos que trarão todo sentido para as
discussões atuais sobre sujeitos, contextos e uso de drogas, que estão
intimamente relacionadas ao relato das vivências que apresentaremos.
Possui graduação em Psicologia pela Faculdade do Vale do Ipojuca- FAVIP, atua como
psicóloga social no Centro de Educação Popular Assunção – CEPA, na cidade de Caruaru-PE. E-mail: silva.elisangelamaria@gmail.com.
2
Pedagogo e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea – PPGEduc da Universidade Federal de Pernambuco – Campus Acadêmico do Agreste, atua no acompanhamento de projetos pedagógicos no Centro de Educação Popular
Assunção – CEPA, na cidade de Caruaru – PE. E-mail: adrielrodrigues.89@outlook.com
1
601
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
No século IV, a cristianização do Império Romano levou, todavia, ao
colapso as antigas noções pagãs sobre o uso de drogas, as quais
passaram a ser estigmatizadas não só por sua associação a cultos
mágicos e religiosos, mas também por seus usos terapêuticos para
aliviar o sofrimento [...] Assim, no século X, o emprego de drogas
para fins terapêuticos tornara-se sinônimo de bruxaria ou heresia a
ser punida, tanto por católicos como por protestantes, com torturas
e morte. As acusações serviam, evidentemente, a fins políticos e econômicos. Ajudavam, também, a estigmatizar grupos, como o das mulheres,
dos camponeses e dos pensadores que punham em questão os dogmas
eclesiásticos [grifo nosso] (MACRAE, 2014, p. 33).
Esse elemento da padronização hegemônica sociocultural de movimentos eurocentricos e fundamentalistas, originou a classificação
econômica e organização social feudal, que passou a perseguir qualquer dissidente e a punir usuários de alcool e cannabis. Concomitante,
a nobreza enchia os olhos com a exploração dos novos horizontes encontrados no comércio das principais drogas como ópio, alcool, tabaco,
cannabis e coca, se instituindo os primeiros sinais da prática do narcotráfico. Vemos assim nascer a política proibicionista que perdura até os
dias atuais.
Para os proibicionistas, a cultura milenar sobre uso de subtâncias
psicoativas, as crenças, valores, estilos de vida, religiosidade, contexto
social se tornam irrelevantes diante das novas concepções de que o uso
de drogas apenas degrada o sujeito, a sociedade e cria um perigoso comércio ilícito mundial.
Em 1930 os Estados Unidos, não muito diferente de hoje, era um
país extremamente xenofóbico e, encontrando uma estratégia higienista de tentar dizimar as comunidades imigrantes africanas e mexicanas,
dentre outras menores, criaram uma ideia de condenação de um comércio maligno e prejudicial de narcóticos instaurando uma guerra implacável contra a maconha. Na verdade, o problema não estava em usar a
maconha, os cientistas provaram isso. A questão é que negros usavam
maconha. Pessoas negras representavam 78% das prisões por uso de
maconha só em Nova Iorque. Essa disparidade social continua até hoje
e esse elemento é representativo à discussões. Atualmente, após um
paulatino processo de liberação nos estados americanos, a pergunta
602
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que se fazem é: Porque naquele período a maconha foi proibida e agora
está sendo liberada?
Na mesma época, no Brasil, o governo de Getúlio Vargas também
adere a guerra contra as drogas, atingindo principalmente a população
negra, indígena e mestiça da região Norte e Nordeste. Concidência?
Essa proposta, nitidamente fortaleceu processos discriminatórios, preconceituosos e segregadores. As campanhas antidrogas, muitas com
um cunho moralista, racista e religioso- tendo instauraram a política do
terror. Os usuários, eram vistos como pessoas de alta periculosidade,
violentas, incapazes de se responsabilizarem por suas vidas.
Em 21 de outubro de 1976 é instituida a Lei de Drogas n° 6.3683,
que trazia em si um caráter mais penalista, criminal do que social. Na
prática, a lei foi amplamente usada para legitimizar uma verdadeira higienização, abarrotando os presídios e unidades socioeducativas- Fundação do Bem Estar do Menor (FUNABEM) e Fundaçação Estadual para
o Bem Estar do Menor (FEBEM)- com pobres, jovens e adolescentes negros, intitulados traficantes, enquanto que, os verdadeiros agenciadores
do tráfico permaneciam livres, em sociedade, agindo na obscuridade.
Vale salientar que, de acordo com os principais documentos legais
internacionais, o Estado não poderia adotar tão somente medidas repressivas e proibicionistas pois, os instrumentos de garantia de direitos
já previam ampla proteção aos usuários/ dependentes de drogas, de
acordo com os princípios do respeito a dignidade da pessoa humana.
A Lei 6.368/76 foi definida sob as principais Convenções da Organização das Nações Unidas (ONU) das quais o Brasil era signatário: Convenção Única sobre Entorpecentes (1961)
e Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (1971). Ambas definem quais substâncias
ficam sob controle das comunidades internacionais, estabelecem os critérios para a disponibilização destas para uso médico e cientifico e combatem a prática do comércio ilegal.
Enquanto dávamos os primeiros passos para o controle de substâncias e repressão
ao tráfico ilícito de drogas, na década de 70, alguns países europeus já caminhavam às
discussões sobre novos paradigmas que apresentavam o uso e dependência de drogas
como um fenômeno complexo, multifatorial, indiciando assim os primeiros experimentos
em Redução de Danos como alternativa às estratégias proibicionista estabelecidas pela
“Guerra as Drogas”.
As respectivas leis encontram se disponíveis em: http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/multilaterais/emenda-a-convencao-sobre-entorpecentes-de-1961-como-emendada-pelo-protocolo--de-25-03-1972/. Acesso em 09 de junho de 2019.
http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/documentos/Legislacao/
ONU/329618.pdf. Acesso em 09 de junho de 2019.
3
603
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A partir disso, podemos considerar que em nosso país, a preocupação com os aspectos gerais sobre drogas lícitas e ilícitas- reconhecimento da fatores subjetivos, sociais, familiares, políticos, econômicos,
assistenciais e criminológicos- aconteceu de fato com a promulgação da
nova Lei de Drogas n° 11.343 (BRASIL, 2006).
A implantação desta lei trouxe grandes impactos no aumento do
número de presos por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias- INFOPEN(BRASIL, 2017) num período de 16 anos, entre 2000 e 2016 a população
prisional aumentou 157%, sendo composta por 64% de negros, 55% de
jovens entre 18 a 29 anos e 28% condenados e/ou aguardando julgamento por crimes relacionados ao tráfico de drogas.
Nesse sentido, percebemos que ao longo da trajetória, os principais aspectos das discussões produzidas, necessitam seguir ao campo
de visão das complexidades existentes nesses fenômenos, que implicam diretamente nos contextos, sujeitos e drogas.
Para a compreensão dos contextos, entendemos que se faz necessário dimensionar as características econômicas e políticas presentes nos diversos cenários sobre a comercialização de drogas, os aspectos socioculturais, as conjunturas sociais, a importância da identidade
comunitária sob seus valores, crenças, história e a participação do sujeito na construção destas.
O sujeito, em suas diversas possibilidades de SER, constitue sua
subjetividade nas relações consigo mesmo, com o corpo, com o outro e
o coletivo. Compreende-lo em suas múltiplas características biopsicossociais nos empodera de uma visão histórica dialética de nós mesmos e
nossa relação com o mundo.
O Centro de Educação Popular Assunção- CEPA, uma organização
da sociedade civil localizada em Caruaru, município do agreste pernambucano, tem se firmado como um espaço socioeducativo que alia as
perspectivas freireanas da Educação Popular a um novo modelo de gestão social, que estimula a institucionalização dos movimentos sociais
a partir da participação social e popular, instrumentalizando-os para o
constante diálogo entre Estado e sociedade.
Nas oficinas (dança, teatro, capoeira, maracatu, informática, audiovisual), na educação infantil, no acompanhamento familiar, no
604
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
envolvimento de educadores/as, educandos/as, pais e/ou responsáveis, membros da comunidade, do sistema de garantia de direitos, é
onde desenvolvemos a prática dialógica a partir das rodas de conversa,
oficinas educativas, aulas passeios e ações culturais, que nos permitem
refletir sobre a construção histórica dos elementos estigmatizadores da
população negra, empobrecida, vítima de violências físicas, psicológicas
e simbólicas, por vezes condicionadas nas desigualdades socioeconômicass em favor a manutenção da supremacia hegemonica que ainda
sustentam concepções pseudocientíficas sobre o uso de substâncias
psicoativas lícitas e ilícitas que deram espaço a leis antidrogas e práticas de higienização social através da criminalização e da segregação do
usuário/dependente.
Com o objetivo de problematizar junto aos/às educadores/as, educando/as, família e comunidade questões biopsicosociais relacionadas
ao uso de drogas lícitas e ilícitas; promover ações de cunho preventivo
e protetivo acerca dos mecanismos sutis e avassaladores de aliciamentos, dependências e multiplos fenômenos gerados pela dependência e
comercialização das drogas; problematizar o imaginário social4 predominante sobre as drogas, o Centro de Educação Popular Assunção-CEPA
vem desenvolvendo um projeto de práticas preventivas sobre o uso de
drogas, o qual nos propomos a socializar nossas vivências em algumas
atividades (rodas de diálogo e aulas passeio) norteadoras de importantes considerações sobre a temática.
Cartografia dos saberes
Trazemos em nossa atuação a intervenção psicossocial (NEIVA, 2010), por compreender que na esfera individual e coletiva se faz
Sobre Imaginário Social e Hegemonia Cultural, revisitar: Bronislaw Baczko. “Imaginação
social”. In Enciclopédia Einaudi, s. 1. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Editora Portuguesa, 1985, p. 403.
Carlos Nelson Coutinho. A dualidade de poderes: introdução à teoria marxista do Estado e da
revolução. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 61.
Maria-Antonietta Macciocchi. A favor de Gramsci. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977,
p. 183.
4
605
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
necessário olhar para a construção das relações sociais, suas conjunturas e para a ação dos sujeitos no espaço individual e compartilhado.
A intervenção psicossocial tem com característica o caráter científico usado desde a construção e planejamento de uma atividade até
ao ato de provocar e gerar mudanças em grupos, instituições e comunidades. Essas mudanças são atemporais sem que seja necessário ser
sentida e percebida pelo grupo. As ações acontecem na imersão das
demandas trazidas pelos envolvidos. Demandas essas que podem estar relacionadas a problemas atuais ou antigos do sujeito, podem estar
relacionadas com o assunto trabalho e/ou circular em questões sociais
como acesso a moradia, alimentação, educação, trabalho, etc. Assim
sendo, constantemente estaremos trabalhando com grupos complexos,
homogêneos, heterogêneos, participantes ativos ou passivos, entre outros. O papel do interventor, portanto, é assumir dois lugares distintos:
prático/facilitador e pesquisador. Conforme Neiva (2010, p. 49) “Sua capacidade de observação, escuta e análise deverá estar em constante
uso, durante todas as etapas da intervenção”.
Na proximidade com o outro se faz a construção de sentidos.
Na psicologia, autores como Kenneth Gergen (apud SPINK, 1999) discutiam sobre a ideia de um movimento que adota a construção do conhecimento no coletivo, por meio da socialização de saberes e práticas.
Na perspectiva construcionista, a produção de sentidos se dá pela compreensão da relação que as ciências tem com a realidade, pela constante procura de desconstruir a retórica da verdade e pelo empoderamento
de grupos e sujeitos socialmente marginalizados.
A Fenomenologia Existencial apresenta o sujeito nos seus vários
modos de ser, buscando não uma única verdade, mas procurando novas
perspectivas para olhar as verdades como sendo relativas ou diferentes
umas das outras.
Segundo Critelli (2007), a fenomenologia rompe com a idéia da
metafísica que traz a verdade como única e absoluta. Mostra que a
perspectiva e a verdade são relativas e provisórias. Além de preconizar
a existência de verdades a fenomenologia também fala dos infindáveis
modos de ser no mundo. “[...] um modo de habitar o mundo, de
instalar-se nele, de conduzir sua vida e a dos outros homens com
quem convive de forma próxima ou distante” (p.16). Segundo Pokladek
606
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
(2004) os caminhos da fenomenologia permitem ao ser humano uma
compreensão do seu cotidiano e de suas formas de existir. E o que
significa esse existir? Para Heidegger (apud JOSGRILBERG, 2002,
p. 32-33), a existência é uma característica do ser humano que lhe
permite uma abertura para o mundo e que sua existência, só existe de
fato, quando ele se permite à essa abertura.
O diário de campo, é uma importante ferramenta que tanto nos
orienta para construção de novas vivências como para análise dos fenômenos emergidos em intervenções anteriores (LAGE, 2013), aliado ao
conhecimento das práticas discursivas (SPINK, 1999) que nos conduz a
compreender as interfaces dos dircussos subjetivos e sociais em suas
liguagens e formas de produção.
Nas práticas, visão e valores do CEPA temos como base as concepções da Educação Popular (FREIRE, NOGUEIRA, 1993) que tem como
sentido de existir no esforço para mobilizar, organizar e capacitar científica e tecnicamente as classes populares através do estímulo à participação, construção do empoderamento, autonomia e ação-transformação.
É no diálogo constante que surgem as provocativas, as reflexões
e as mudanças. Esse diálogo se inicia no campo da prática educativa/
pedagógica que intencionalmente busca problematizar discursos
hegemonistas e excludentes, e se multiplica nas rodas de conversa, nos
encontros de formação continuada de educadores/as, nas oficinas educativas e aulas passeios.
Caminhando nos territórios do vivido
No Cepa temos oficinas educativas de dança, teatro, maracatu,
capoeira, e audiovisual, além de um curso técnico de informática. Esses
espaços acolhem educandos/as entre 08 anos a 18 anos de idade, bem
como suas familias. Nas oficinas educativas nos uilizamos da oficina de
criatividade para a discussão das temática.
As oficinas de criatividade são espaços de construção de experiências tanto pessoal como coletiva. Ocorrem seguindo etapas: aquecimento, desenvolvimento fechamento. Ao se pensar em uma oficina
607
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de criatividade podemos estimar um tempo para seu desenvolvimento,
mas temos que considerar os tempos subjetivos, que nos são apresentados através da observação e interação. Além disso, nas oficinas o foco
está direcionado à construção de potencialidades, criatividade e espontaneidade entre as pessoas do grupo. Vale ressaltar que esta intervenção pode atingir também quem está fora do grupo. Pois um sujeito que
se encontra apenas como observador da ação pode se implicar com
esta. Os recursos utilizados podem ser: música, teatro, artes plásticas
(desenho, pintura, mosaico, etc.). O local utilizado para esta intervenção
não precisa ser necessariamente fixo. Ele vai se apresentando de acordo
com as disponibilidades e os modos de apropriação do espaço para cada
proposta, provocando assim, um novo modo de agir sobre este espaço
e criando uma nova forma de relação interpessoal (JORDÃO, 1999;MORATO, 1999).
A oficina temática “Isto é droga?” foi realizada com dois grupos
(dança e capoeira) e em dois momentos distintos. Traremos sua proposição, em comum, seguida pelos sentidos e representações que emergiram em cada vivência.
Expomos dois cartazes com as palavras lícito e ilícito e suas definições. Apresentamos rótulos de diferentes produtos e algumas imagens impressas (cerveja, remédios, chocolate, açúcar, maconha, cigarro,
guaraná em pó, ervas medicinais, refrigerantes, café, chá, dentre outros) que foram distribuídos aleatoriamente para cada educando/a e
educador/a. Solicitamos que escrevessem seus nomes atrás das imagens. Em seguida, perguntamos para cada educando/a com relação a
sua ilustração: ISTO É DROGA?, ISTO NÃO É DROGA?, ISTO É LÍCITO?,
ISTO É ILÍCITO?, segundo os seus conhecimentos prévios. Após os educandos/as interagirem, socializamos as respostas, construindo um
diálogo com as seguintes provocações; Porque jovens e adolescentes
usam drogas? O que para você são drogas e quais as que conhece? No
seu entender quais os efeitos das drogas para o sujeito, família e sociedade? Porque existem drogas ilícitas/proibidas? Qual droga consideram
ser a mais prejudicial? Onde encontramos as bebidas alcoólicas? Porque
o álcool e o tabaco é aceito em nossa sociedade enquanto que a maconha não é aceita? As crianças têm fácil acesso às bebidas alcoólicas? E
outras Drogas? Como?
608
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Para a realização da atividade os grupos naturalmente se posicionaram em círculo, o que em muito contribuiu pois, a cada pergunta que
fazíamos aos educandos/as nos foi possível aproximar deles, olhar no
olho, trazer visibilidade ao sujeito e escuta a sua fala. Todos os educandos/as estavam participativos, fosse na inquietação, no silêncio, nos
questionamentos ou relatos de vivência. No entanto, percebemos maior
engajamento do coletivo da oficina de capoeira. Em análise, consideramos que os fatores faixa etária e gênero -na oficina de capoeira temos
participação expressiva de meninos entre 10 a 16 anos- e os processos
de constantes discussões que realizamos sobre interculturalidade5 estão gerando empoderamento dos educandos no que se refere a aceitação de suas raízes ancestrais e a formação crítica sobre os posicionamentos racistas tão evidentes contra o negro e sua cultura africana em
nossa sociedade.
Ainda sobre a oficina de capoeira, os educandos adolescentes,
inicialmente se mostraram resistentes quando sinalizamos que a temática em discussão seria drogas por considerarem que os discursos
trazidos em vários contextos sociais caminham para o repressionismo.
A partir do diálogo estes, trouxeram significativas contribuições sobre
suas concepções e relatos de vivências no/do contexto comunitário ao
qual estão inseridos.
De modo geral a compreensão sobre o uso de drogas segue ao
entendimento do proibicionismo, associado a estereótipos disseminados por uma sociedade segregadora, tendo na figura do negro, jovem
e pobre o protagonista dos problemas relacionados as drogas. Falas
como “maconheiro”, “traficante”, “aviãozinho”, “morreu ou matou porque
estava usando droga”, sinalizam a compreensão social sobre o sujeito
usuário/dependente de drogas. Sobre o uso, emergiram as seguintes
compreensões: “maconha mata”, “droga vicia no primeiro uso”, “maconha é a pior de todas”, o que nos remete a conjecturas formadas entre as
décadas de 70 a 90, onde fortemente se faziam presentes os processos
de segregação social.
5
No CEPA desenvolvemos uma projeto de práticas educativas de sensibilidade à conscientização da diversidade cultural
609
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O fechamento se deu a partir da escuta e reflexão da música Legalize
it de Bob Marley. Ao final da atividade, fizemos uma avaliação grupal, onde
os educandos/as sinalizaram o desconhecimento sobre algumas questões
biológicas, sociais e culturais relacionadas ao uso de drogas, apontadas no
momento de diálogo. Os educandos/as concordaram em dar continuidade
ao diálogo, em outras vivências, a partir de propostas que se correlacionam
com sua realidades, visão de mundo e modos de Ser.
Figura 1. Oficina Isto é droga?
Educandos e educadora
da oficina de dança.
Figura 2. Oficina Isto é droga?
Educandos e educador da
oficina de capoeira.
Foto: Cepa.
Foto: Cepa
A droga do Ser Humano, foi uma proposta de teatro espontâneo6,
realizada com educandos/as e educadores da oficina de teatro, que teve
como objetivo provocar a construção de quadros de imagens, a partir de
uma narrativa, preservando os traços subjetivos, mas colocando o sujeito
no espaço do outro através da espontaneidade que o teatro possibilita.
A experiência psicodramática se iniciou com todos andando pelos
espaços como um movimento urbano cotidiano, em seguida se colocaram como pessoas em situação de rua, perpassando pelos processos de
invisibilidade, segregação e vulnerabilidades (frio, fome, adoecimento,
desproteção). Deitados no tapete, de olhos fechados, os participantes
foram absorvendo os personagens enquanto um cenário era construído
ao seu redor (papelão, lixo e outros objetos espalhados). No centro da
cena montamos a frase A droga do Ser Humano. Ao abrirem os olhos,
6
Ver Aguiar, M. Teatro espontâneo e psicodrama. São Paulo: Ágora, 1998.
610
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
projetamos no cenário e nos personagens o debate sobre a vivência.
Sobre o que se emergiu surgiram os seguintes sentidos: O humano, enquanto sujeito, ser caracterizado como uma droga; a pessoa em situação de rua ser rotulada como usuário de drogas; a pessoa em situação
de rua ser excluída por sua condição social e subjetiva; as expressões
de sentimentos, emoções e medos relacionados ao sujeito morador de
rua e usuário de drogas. Seguindo sob os sentidos trazidos solicitamos
que um integrante do grupo trouxesse um relato de uma história real e
convidamos integrantes do grupo para representarem a história relatada. O protagonista relatou a história de um vizinho que ao ser descoberto se tratar de um usuário de drogas, foi expulso de casa e passou
a morar nas ruas. O protagonista foi questionado pela diretora de cena
sobre como processaria a sequencia dos pensamentos. Após o diálogo,
em que diversas possibilidades foram pensadas, foi recriada a cena a
partir de uma interlocução (como podemos montar a cena?) a diretora retirou-se do cenário, deixando o desenvolvimento das cenas aos
egos-auxiliares e educandos, com liberdade de modificá-las a partir do
papel que lhes foi encomendado.
Na interação com os outros participantes e com a emergência
de novas questões e alternativas, o grupo foi construindo uma representação cênica, atribuindo os papéis de um usuário de drogas, um
amigo conselheiro, uma pessoa preconceituosa, tendo a dramatização
uma participação coletiva entre atores e platéia que iam se revezando
na cena. Na proposta psicodramática, a importância e a ênfase na expressão de sentimentos e emoções durante a dramatização localiza-se na possibilidade de ampliar a compreensão integrando-a à experiência vivenciada.
Pensar sobre as contribuições e possibilidades do teatro espontâneo como estratégia no processo ensino aprendizagem em educação
popular abre um fecundo caminho para se viver práticas inovadoras e
ressignificantes. Ressignificar constitui o aprender, pois implica articular
diferentes níveis de análise: individual – a partir dos diferentes personagens, seus contextos e histórias de vida –, grupal e social.
611
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Figura 3. Oficina A droga do Ser
Humano Educandos e educadores
da oficina de teatro.
Figura 4. Oficina A droga do Ser
Humano Educandos e educador
da oficina de teatro.
Foto: Cepa.
Foto: Cepa.
As aulas passeio possibilitam uma conexão do sujeito, sua identidade com diferentes contextos educativos/culturais. Nesta proposta os
educandos/as vivênciam experiências de forma autônoma, a partir da sua
curiosidade natural, enquanto que o educador realiza conexões entre a
história do educando/a e as informações que vai absorvendo e assim, ele
pode assimilar novas experiências com seu modo de ser no mundo.
Inspirados na cultura africana e afro-brasileira, tendo por objetivo dialogar sobre as diversas manifestações e contextos psicossociais
que permeiam a história dos caminhos africanos até chegar a conjuntura sociohistórica afro-brasileira, realizamos uma visita a um terreiro de
candomblé da comunidade.
A atividade teve como intuito incentivar educadores/as e educandos/as à discussão sobre o tema, apontando percursos que relacionam
história, poesia, teatro, dança, capoeira, cinema, música, como produtores de conhecimento e ferramenta de diálogos sobre a luta dos antigos quilombos e mocambos, escravização do negro, marginalização pós
abolição e identidade cultural (religião, arte, costumes, relações sociais,
entre outros).
A partir de um movimento de participação e vivência comunitária coletiva poderíamos discutir sobre preconceitos, violências, empoderamento, autonomia, o papel do corpo nos movimentos de luta, na
dança, a construção da cidadania, dilemas contemporâneos, relações de
gênero e étnicos-raciais, identidades nas religiões de matriz africana, o
612
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
sentido do uso de bebidas alcoólicas e ervas em celebrações/rituais, relação com a natureza e comunidade, entre outras demandas que viessem a emergir.
A atividade se iniciou com uma visita na Academia de Letras de Caruaru, onde puderam conhecer os resquícios históricos de uma senzala
e da participação dos negros escravizados na construção do município,
culminando com a visita ao terreiro de candomblé do Pai Marivaldo, localizado no bairro Vila Kenedy, próximo ao CEPA.
Tivemos como resultado o estimulo à reflexão crítica sobre os assuntos abordados dando maior permeabilidade à discussão e criação
de novos sentidos sobre interculturalidade, preconceitos, estereótipos
e processos de segregação social de sujeitos pertencentes a culturas de
matriz africana. Os educandos/as trouxeram questões discursivas sobre o tema tratado a partir das concepções apreendidas e novos olhares alcançados durante a vivência. Alguns educandos, durante a visita,
manifestaram ter a participação familiar em grupos religiosos de matriz
africana, gerando assim um sentimento de visibilidade e pertença social. Trabalhamos também o sentimento de resistência, por estar no lugar de incômodo pela não aceitação, inicialmente, de visitar um terreiro
de candomblé. Construímos um novo diálogo acerca das religiões, histórias, costumes, uso de substâncias e ervas psicoativas num contexto
sócio histórico e cultural.
Figura 5. Visita ao terreiro
de Candomblé.
Figura 6. Visita ao terreiro
de Candomblé.
Foto: Cepa.
Foto: Cepa.
613
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O sentimento de identidade ligado ao território de nascença ou de
pertencimento é um dos mais fortes na composição da subjetividade
humana. Tivemos a oportunidade de vivenciar essa experiência de conexão profunda com a cultura a partir de uma visita à comunidade indígena Xucuru de Orubá, localizada no município de Pesqueira-PE.
Para os indígenas, a relação com a terra denota sobrevivência,
luta, resistência – algo pelo qual se vive e se morre. Na oportunidade
podemos acompanhar a 18° Assembléia Xucuru, um espaço onde representantes religiosos e movimentos sociais discutiam diretrizes que
norteiam a organização do seu povo, realizando um chamamento para
a retomada das tradições, da relação com a terra, da importância da juventude para a disseminação da cultura às próximas gerações.
Durante o evento tivemos oportunidade de visitar stands -instrumentos musicais, ervas e produtos medicinais, vestimentas, adornos, ferramentas de caça e pesca-, dialogar com indígenas e presenciar
apresentações- Ritual de Celebração- tendo um contato mais próximo
com a cultura e seus costumes.
Para educandos/as e educadores/as, essa experiência proporcionou a possibilidade de estar em um novo lugar. Alguns adolescentes
ficaram surpresos com a naturalidade em que grupos se reuniam para
fazer uso de ervas diversas nos mais diversificados cachimbos. Esse impacto trouxe uma reflexão sobre a diferentes formas de socialização e
uso de drogas lícitas e ilícitas em nossa sociedade.
Enquanto que nas comunidades urbanas a socialização ilícita da
cannabis, por exemplo, é tida como algo prejudicial ao ser humano e
sociedade, o uso desta na cultura indígena sempre existiu e sempre
esteve precedido de valores religiosos. A natureza concede as folhas, as
plantas. O humano utiliza-a como medicamento pra cura, cura pela reza
e reza que fortalece o corpo e a relação do ser com a terra, o sagrado.
614
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Figura 7 e 8. Visita a comunidade Xucuru de Orubá, Pesquera- PE.
Fotos: Cepa.
(IN) Continuum
Poderíamos nos utilizar de conclusões sobre os relatos destas vivências, todavia, o projeto de práticas preventivas tem sua continuidade até o final do ano corrente. Durante esse período, temos a visão e
certeza que estaremos mais próximos dos sujeitos, comunidade e dos
representantes políticos, levando os resultados deste trabalho a partir
das vozes dos até então silenciados. Aos educandos/as e educadores/
as lançamos o desafio de utilizarem da ferramenta de poder trazido
pelo conhecimento para, através da dança, teatro, capoeira, música,
documentários, curta metragens, exposições, seminários, conferências,
entre outros, mostrarem o vivido e apreendido, lutando contra a despolitização da transformação social, rompendo com a aceitação de uma
política neocolonialista e hegemônica.
O processo de compreensão sobre a presença de drogas lícitas e
ilícitas na sociedade deve perpassar uma aprendizagem política dos direitos do indivíduo potencializando a ser um problematizador em suas
realidades mas, não menos importante, implica também na transformação da subjetividade. Ampliar a capacidade do sujeito pensar e agir
diferente converje com a necessidade do sujeito ser diferente. Desta
forma, a mudança e evolução de uma sociedade não haverá de se findar.
615
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
AFONSO, M. L. (Org.). Oficinas em
dinâmica de grupo: um método de
intervenção psicossocial; São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2010.
BRASIL. Presidência da República.
Casa Civil. Subchefia para Assuntos
Jurídicos. Ministério da Justiça. Lei
Ordinária nº 6.368, de 21 de outubro
de 1976. Dispõe sobre medidas de
prevenção e repressão ao tráfico
ilícito e uso indevido de substâncias
entorpecentes ou que determinem
dependência física ou psíquica, e dá
outras providências. Diário Oficial,
Brasília (DF), p.14839, 22 de out.
1976. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6368.
htm. Acesso em 10 de junho de 2019.
______. Lei nº 11.343, de 23 de
agosto de 2006. Institui o Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre
Drogas (Sisnad); prescreve medidas
para a prevenção e uso indevido,
atenção e reinserção social de
usuários e de dependentes de drogas;
estabelece normas para repressão
à produção não autorizada e ao
tráfico ilícito de drogas; define crimes
e dá outras providências. Diário
Oficial, Brasília (DF), p. 2, 24 de ago.
2006. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2006/Lei/L11343.htm. Acesso
em 10 de junho de 2019.
______. Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas. Prevenção
dos problemas relacionados
616
ao uso de drogas: Capacitação
para conselheiros e lideranças
comunitárias/ Ministério da Justiça.
6.ed. Brasília, DF: SENAD-MJ/NUTEUFSC, 2014.
______. Caderno de Educação
Popular e Direitos Humanos. Porto
Alegre: CAMP, 2013.
______. Secretaria Nacional
de Políticas sobre Drogas.
SUPERA: Sistema para detecção
do Uso abusivo e dependência
de substâncias Psicoativas:
Encaminhamento, intervenção breve,
Reinserção social e Acompanhamento
/ Organizadoras: Paulina do Carmo
Arruda Vieira Duarte, Maria Lucia
Oliveira de Souza Formigoni/ 11.
ed. – Brasília: Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas, 2017.
______. Ministério da Justiça.
Departamento Penitenciário
Nacional. Levantamento Nacional
de Informações Penitenciárias –
INFOPEN, 2ª edição. Brasília:MJ,
2017. Disponível em: http://depen.
gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/
infopen-levantamento-nacional-deinformacoes-penitenciarias-2016/
relatorio_2016_22111.pdf Acesso
em 15 de junho de 2019.
CRITELLI, M. D. Analítica do sentido:
uma aproximação e interpretação
de orientação fenomenológica. São
Paulo: EDUC/Brasiliense, 2007.
FREIRE, Paulo. NOGUEIRA,
Adriano. Que fazer? Teoria e
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
prática em educação popular. 4. Ed.
Petrópolis:Rio de Janeiro: Vozes,
1993.
GEORGE Moraes de Luiz, Rayany
Mayara Dal Prá e Renata Closs
Azevedo. Intervenção psicossocial
por meio de oficina de dinâmica de
grupo em uma instituição: relato de
experiência. Psic. Rev. São Paulo,
volume 23, n.2, 245-260, 2014.
HART, Carl. Um preço muito alto: a
jornada de um neurocientista que
desafia nossa visão sobre drogas.
Tradução Clóvis Marques. – 1.ed. Rio
de Janeiro: ZAhar, 2014.
JOSGRILBERG, R. S. A fenomenologia
como novo paradigma de uma ciência
do existir. In: POKLADEK, D. D. A
fenomenologia do cuidar: prática
dos horizontes vividos nas áreas da
saúde, educacional e organizacional.
São Paulo: Vetor, 2004. p. 31-56.
LANE, S.T. O processo grupal. In: Lane,
S. T. e Godo, W. (Orgs.) Psicologia
social: O homem em movimento (pp.
78-98). São Paulo: Brasiliense, 1994.
MACRAE, Edward. A história e os
contextos socioculturais do uso
de drogas. In: BRASIL. Ministério
da Justiça. Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas. Prevenção
dos problemas relacionados
ao uso de drogas: Capacitação
para conselheiros e lideranças
comunitárias. 6. ed. (p. 28-42)
Brasília: Senad, 2014.
NEIVA, M. K. Intervenção
Psicossocial: aspectos teóricos,
metodológicos e experiências
práticas. São Paulo: Vetor, 2010.
SPINK, M. J. (Org.) Práticas
discursivas e produção de sentido no
cotidiano. São Paulo: Cortez, 1999.
SPINK, M. J. A ética na pesquisa
social: Da perspectiva prescritiva à
interanimação dialógica. Psico, 31,
(1), 7 – 22, 2000.
SPINK, MJ. Linguagem e produção
de sentidos no cotidiano [online].
Rio de Janeiro: Centro Edelstein
de Pesquisas Sociais, 2010. 72
p. ISBN: 978-85-7982-046-5.
AvailablefromSciELOBooks.
[ Volta ao Sumário ]
617
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Raimundo nonato
de queiRoz: a teologia
da enxada e seus
desdobramentos na
cidade de tacaimbó-pe
entre 1969 e 1984
Adauto Guedes Neto
Como referenciar este capítulo:
NETO, Adauto Guedes. Raimundo Nonato de Queiroz: a Teologia da Enxada e
seus desdobramentos na cidade de Tacaimbó-PE entre 1969 e 1984. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio
Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências,
Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020,
p. 611-627.
Adauto Guedes Neto1
Introdução
Buscamos analisar a experiência da Teologia da Enxada, a partir
da vivência e atuação do seminarista Raimundo Nonato de Queiroz2.
O método de formação denominado Teologia da Enxada, que se deu sob
a coordenação do padre José Comblin e cobertura do II SERENE, ocorreu entre 1969-1971 nas cidades de Tacaimbó-PE e Salgado de São
Félix-PB. Nosso objetivo, no entanto, é compreender tal processo e seus
desdobramentos, em meio à conjuntura católica e política de então, impactada sobretudo pelas transformações ocorridas na América Latina, a
partir do Concílio Vaticano II (1962-1965).
Para tanto, trabalharemos com fontes oriundas do DOPS-PE, pertencente ao acervo do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano –
APEJE e documentos pessoais do próprio Raimundo Nonato.
Do ponto de vista metodológico, a História Oral será utilizada na
coleta de entrevistas, bem como análise de conteúdo da documentação
citada. Por isso, a história oral que muitas vezes se torna um mergulho
na cotidianidade é utilizada na nossa pesquisa como uma possibilidade a
mais de entender o passado, mas tendo a noção também que a mesma
“não é, portanto, um compartimento da história vivida, mas sim o registro
de depoimentos sobre essa história vivida” (DELGADO, 2010, p. 15-16).
Mestre e Doutorando em História pela UFPE. Professor Efetivo da Rede Estadual de
Pernambuco, atualmente exercendo a função de Assistente de Gestão e Professor contratado da Faculdade do Belo Jardim – FBJ. Pertence ao Grupo de Estudos José Comblin –
Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP. Endereço do Currículo Lattes: http://lattes.
cnpq.br/0015352555852293. Endereço eletrônico: adautogn1917@gmail.com.
2
Natural de Limoeiro, Raimundo Nonato de Queiroz , destaca-se como um dos mais atuantes seminaristas na cidade de Tacaimbó entre 1969 e 1982. Formado em Teologia e
Filosofia, assume a cadeira de Cultura Religiosa na FAFICA entre 1977 e 1980. Publica em
1996 o livro: Como ser eficaz em grupo pela Ed. Paulus e atualmente, acumula as funções
de Conselheiro Tutelar na cidade de Serra Redonda-PB e Membro do Conselho Administrativo da Fundação Dom José Maria Pires na mesma cidade.
1
619
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Essa perspectiva metodológica, não nos serve apenas para tentar preencher algumas lacunas deixadas pela impossibilidade de uma
quantidade maior de registros escritos, mas também por ser um método que nos remete à oportunidade de problematizar sobre a memória
do referido período através dos depoimentos dos entrevistados, muito
embora ressaltamos que:
a memória, principal fonte dos depoimentos orais, é um cabedal
infinito, onde múltiplas variáveis – temporais, topográficas, individuais, coletivas – dialogam entre si, muitas vezes revelando lembranças, algumas vezes, de forma explícita, outras vezes de forma
velada, chegando em alguns casos a ocultá-las pela camada protetora que o próprio ser humano cria ao supor, inconscientemente,
que assim está se protegendo das dores, dos traumas e das emoções que marcaram sua vida. (DELGADO, 2010, p. 16).
O que afirma acima Lucilia de Almeida Neves Delgado pudemos
perceber em alguns momentos em nossa pesquisa, especialmente nas
entrevistas quando algumas questões que pensávamos serem descritas pelos entrevistados não eram relatadas, como uma espécie de vazio
na memória que fora excluído intencionalmente ou inconscientemente.
Por isso, a importância de outras fontes documentais como as que utilizamos para confrontarmos as informações adquiridas.
Nossa intenção não é um estudo biográfico, mas a partir da atuação de um dos seminaristas que vivenciaram a Teologia da Enxada,
compreender as características e o contexto em que a mesma se desenvolveu, bem como, percebê-la na prática tendo como referencial a
atuação de Raimundo Nonato de Queiroz, que como toda trajetória por
continuidades ou rupturas e que não segue necessariamente uma ordem cronológica ou fio condutor linear da vida aqui, como nos explica
Bourdieu (2002, p. 184):
A noção sartriana de ‘projeto individual’ somente coloca de modo
explícito nos ‘já’, ‘desde então’, ‘desde pequeno’ etc. das biografias
comuns ou nos ‘sempre’ (sempre gostei de música) das histórias de
vidas. Essa vida organizada como uma história transcorre, segundo uma ordem cronológica que também é uma ordem lógica, desde
um começo, uma origem, no duplo sentido do ponto de partida, de
620
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
início, mas também de princípio, e razão de ser, de causa primeira,
até seu término, que também é um objetivo.
Ou seja, não seguimos a perspectiva exposta na citação, por defender que nenhuma trajetória de vida tem caráter organizado na linearidade, mas que é cheia de imbricações, contextos diversos que
nem sempre estão conectados com as diferentes fases da vida, e
claro, por aqui não se tratar também de uma biografia, como já afirmamos. Sendo assim, destacaremos o que foi a Teologia da Enxada e
seus desdobramentos na cidade de Tacaimbó, através da atuação do
Seminarista Nonato.
Contexto e Conjuntura da Teologia da Enxada
Os fatores que contribuíram para o surgimento da Teologia da Enxada são diversos e dialoga com momentos distintos do catolicismo e
sua relação com o mundo, seu envolvimento com as questões sociais,
econômicas, culturais e políticas, como por exemplo as atividades desenvolvidas pelos Padres operários na França e a Ação Popular no Brasil,
bem como o processo de modernização e abertura promovidos por João
XXIII3 e continuado por Paulo VI. Analisamos anteriormente o contexto
interno da Igreja Católica, as mudanças que ocorreram em sua maneira de lidar com as questões de seu tempo, e como isso acentuaram os
conflitos entre conservadores e progressistas. A partir de então, percebemos parte da Igreja Católica, especialmente os grupos mais afeitos às
mudanças aproximarem-se das camadas populares e distanciar-se da
elite provocando fissuras no relacionamento entre ambos,
“O pontificado de João XXIII (1958-1963) é a expressão mais visível das mudanças introduzidas na igreja. Durante sua curta passagem na direção da Igreja, com seus gestos
surpreendentes e seus pronunciamentos inovadores, João XXIII inaugura uma grande sensibilidade em relação aos problemas contemporâneos, ao diálogo com outras ideologias
e à preocupação pastoral com a situação de miséria das populações subdesenvolvidas”.
(SEMERARO, 1994, p. 35).
3
621
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
As classes dominantes e o Estado não conseguiam aceitar a nova
mensagem da Igreja que foi por eles percebida como excessivamente política no melhor dos casos, quando não subversiva. Nada
demonstra esse fato com tanta clareza como os muitos casos de
prisão, tortura, destruição de propriedade da Igreja e outros exemplos de repressão privada e estatal procedida contra líderes eclesiásticos. (MAINWARING, 2004, p. 190).
O desenvolvimento de estudos da Teologia da Enxada no agreste pernambucano, especialmente na cidade de Tacaimbó ocorreu entre
1969-1971, período envolto a uma efervescência de acontecimentos
que influenciou a formação dos seminaristas do ITER – Instituto de Teologia do Recife.
A ideia de formação dos seminaristas numa perspectiva diferente
da que comumente acontecia – estudos pautados, sobretudo na fundamentação teórica – entre as paredes do seminário e sem contato muitas vezes com o mundo externo, para a formação que partisse a partir
do conhecimento da realidade do outro, mergulhado em suas dificuldades políticas e sociais cotidianas, na perspectiva dos temas geradores
como vai se dar o método da Teologia da Enxada, não é uma experiência
do ITER, mas surgem dos próprios seminaristas, conta com o apoio do
seu professor e que foi o coordenador do método, o padre belga, José
Comblin, e tem a cobertura do Seminário Regional do Nordeste II.
Ainda sobre o contexto de surgimento da Teologia da Enxda, outros
movimentos contribuíram para a atuação progressista católica que vão
desde o catolicismo de esquerda desenvolvido pela AP – Ação Popular
e passando pelo Concílio Vaticano II, anteriores ao período referido (19691971) e a Teologia da Libertação, que tem como um dos aspectos de seu
nascimento a publicação da obra Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez em 19714, justamente o período em que estava se desenvolvendo o estudo coordenado por Comblin em Tacaimbó. Tais acontecimentos
confluíam e se imbricavam, assim como a atuação dos dominicanos contra a Ditadura Militar no Brasil e a nova linha de pensamento da Igreja
“Depois de sua criação em 1961, a Ação Católica Popular (AP) representou um dos principais canais católicos para a atividade política de esquerda”. MAINWARING, Scott. Igreja
Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo. Editora Brasiliense, 2004, p. 85.
4
622
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
para a América Latina, presente nas decisões da II Conferência do Episcopado Latino-Americano de Medellín, ocorrido em 1968.
Sobre o II CELAM ocorrido em Medellín – Colômbia no ano de
1968, além de percebermos os ventos do Concílio Vaticano II chegando
à América Latina, o mesmo foi influenciado pelo progressismo católico
brasileiro, ao passo que suas decisões também o fortaleceu.
Vários movimentos progressistas surgiram atravessados com
o contexto de transformação da Igreja Católica apresentado até aqui.
A Ação Católica Rural, a Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base, e especialmente a Teologia da Enxada, objeto de análise do
referido capítulo, são as pontas do iceberg de tal momento histórico em
passou a Igreja na década de 1960. Todos estão relacionados de alguma
forma no seguinte trecho de conclusão do II CELAM: “queremos sentir
os problemas, perceber as exigências, compartilhar as angústias, descobrir os caminhos e colaborar nas soluções”. (FERREIRA, 2003, p. 114).
O mencionado trecho do texto de conclusão de Medellín foi encarnado
como prática da atuação pastoral do Padre José Comblin, que a partir de
diferentes momentos de reflexão junto com seus alunos-seminaristas
do ITER, resolvem experimentar uma formação inovadora, percebendo,
compartilhando e solucionando. Surgia a Teologia da Enxada, a partir de
diferentes movimentos internos e externos ao catolicismo, movimentos
que no dizer de Löwy (2000, p. 71), sobre o cristianismo da libertação
não surgiam de cima para baixo ou de baixo para cima, mas da periferia
para o centro:
[...] o processo de radicalização da cultura católica latino-americana que iria levar à formação do cristianismo da libertação não
começou, de cima para baixo, dos níveis superiores da Igreja, como
a análise funcionalista que aponta para a busca de influência por
parte da hierarquia sugeriria, e nem de baixo para cima, como argumentam certas interpretações de orientação popular e, sim, da
periferia para o centro.
Löwy utiliza o termo cristianismo da libertação se referindo à
Teologia da Libertação por considerar que tal movimento não foi feito
apenas por teólogos, e sim por cristãos, sejam eles católicos ou protestantes. Consideramos, que a Teologia da Enxada foi um desses passos
623
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
dados da periferia para o centro no sentido de ter contribuído para uma
nova prática de atuação da Igreja Católica no agreste pernambucano,
nesse caso por católicos, mas não apenas por teólogos, mais além deles
por seminaristas e leigos que se engajaram no processo.
Raimundo Nonato: um seminarista da Teologia da
Enxada e a experiência do catolicismo progressista
no agreste pernambucano
Todo esse processo de transformações que a Igreja Católica vivia na década de 1960 pode ser percebido no agreste pernambucano,
especialmente na cidade de Tacaimbó, quando da chegada dos seminaristas do ITER na referida cidade, que se instalaram em tal região e
desenvolveu uma etapa complementar de sua formação no Seminário
Maior, coordenada pelo Teólogo e Professor belga Padre José Comblin, e
tendo como demais Professores e apoiadores da experiência os Padres:
René Guérre e Joseph Servat (franceses), Humberto Plummen (holandês) e Eduardo Hoonaert (belga), ou seja, todos estrangeiros, pois nenhum Padre brasileiro à princípio deu apoio a ideia desse novo processo
de formação.
Assim descreve Comblin (1977, p. 09), como se deu o surgimento
da formação dos seminaristas do ITER entre 1969 e 1971:
No início de 1969, o Seminário Regional do Nordeste resolveu correr o risco de dar cobertura e orientação a uma experiência de tipo
novo. Nove seminaristas de diversas dioceses, autorizados pelos
seus respectivos bispos, projetaram viver alguns anos numa região
rural. [...] Repartiram-se em dois grupos, um de quatro pessoas e
outro de cinco. O primeiro instalou-se em Tacaimbó, município do
Agreste pernambucano, situado a 170 km do Recife. O segundo foi
viver em Salgado, município do Agreste paraibano, situado perto de
Itabaiana a 80 km de João Pessoa e a 130 km do Recife.
Os dois grupos constituíram um programa de vida em que a parte
da manhã era reservada aos trabalhos de agricultura, a parte da tarde ao estudo e a noite aos trabalhos apostólicos.
624
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Dentre os seminaristas que foram para Tacaimbó, ali estava Nonato, e junto com ele: João Firmino, Francisco das Chagas e João Moura.
Depois, com a saída de Francisco das Chagas no primeiro ano da formação, chegou para substituí-lo o seminarista Enoque Salvador.
Estes seminaristas solicitam ao Bispo da Diocese de Caruaru
Dom Augusto Carvalho, a ida de Pedro Aguiar para Tacaimbó e o mesmo concedeu, numa demonstração à priori de apoio às perspectivas de
trabalho pastoral que seria realizado pelos seminaristas e por entender
as afinidades existentes entre o Padre e os seminaristas, uma delas,
a ligação com o campo, com os agricultores; Pedro, por ser de origem
camponesa e os seminaristas por terem uma atuação pastoral muito
ligada ao homem do campo. Dom Augusto (Bispo da Diocese de Caruaru, da qual a cidade de Tacaimbó faz parte), muito embora sempre tenha
demonstrado posições conservadoras, é um dos Bispos a apoiaram a
experiência da Teologia da Enxada no agreste pernambucano e participa da 4ª sessão do Concílio Vaticano II, conforme pudemos constatar
no Jornal A Defesa, Jornal de orientação católica da Diocese de Caruaru,
Nº 42 de 24 de outubro de 1965.
Ambos, Padre e seminaristas, tinham a mesma formação teórica, ligada às ideias do Concílio Vaticano II, à experiência de Medellín, ou seja à efervescência progressista que o catolicismo vivenciava.
A partir da escolha do local ordenação de Padre Pedro Aguiar, podemos fazer uma reflexão sobre o seu alinhamento com o Concílio Vaticano II (1962-1965), a partir da sua justificativa sobre o local da sua
ordenação (bairro do Salgado, Caruaru-PE), “é porque os pobres também são Igreja”. O pobre, sobretudo na América Latina, será a partir
do Concílio, forte objeto de atuação da Igreja Católica, principalmente
no que concerne às reflexões necessárias para o mesmo se perceber
enquanto sujeito e provocar sua libertação.
O trabalho realizado foi inovador e um dos seminaristas nos explica melhor a ideia inicial da Teologia da Enxada e suas influências:
“A ideia de ir para o interior do Estado, saindo da capital, era a ideia
de buscar um diálogo novo com a população, sobretudo com os
camponeses, com os agricultores [...]. A formação que a gente tinha em Recife, era uma formação sacerdotal influenciada positivamente pelo Concílio Vaticano II que se iniciou em 1962, e até 1969
quando fomos para Tacaimbó, houve realmente muita energia,
625
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
muita vontade de mudança... O Seminário Regional do Nordeste,
onde estávamos estudando, a ideia era de evangelização popular,
era de formar Comunidades Eclesiais de Base, no meio popular,
quer urbano, quer rural.5
Esta iniciativa de trabalho que relaciona as atividades pastorais às
atividades do campo, teoria e prática, na intenção de sentir de perto as
dificuldades do agricultor, o sofrimento da população, no dizer de Nonato: “com o mesmo calor do sol, com o mesmo peso da enxada”, é entender
melhor a sociedade; pensar alternativas para as dificuldades existentes
e elaborar os estudos teológicos; Nascia assim, a Teologia da Enxada.
Tacaimbó foi a primeira cidade no agreste pernambucano a conhecer esta nova experiência. Sendo o trabalho com o homem e a mulher
do campo realizado numa perspectiva de troca de experiências, os seminaristas ao mesmo tempo que, discutiam e apresentavam seus conhecimento a cerca do evangelho, também aprendia a pegar na enxada,
um dos fatores que contribuíram para o surgimento do referido trabalho
pastoral, Teologia da Enxada, marca presente na ordenação dos seminaristas, conforme podemos observar na fotografia abaixo que registrou a ordenação de Frei Enoque em Tacaimbó:
Ordenação de Frei Enoque em Tacaimbó. Percebe-se entre o
ordenado, duas enxadas, símbolo do trabalhador(a) do campo.
Foto pertencente ao autor.
Entrevista concedida ao autor em 07 de março de 2009, no Centro de Formação Missionária, na sede da Fundação D. José Maria Pires. Serra Redonda – PB.
5
626
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
No ritual de ordenação ocorrida na Igreja Matriz de Santo Antônio
em Tacaimbó, deitado de bruços, está Frei Enoque Salvador e ao seu
lado direito e esquerdo uma enxada de cada lado, símbolo então dessa nova perspectiva de trabalho pastoral. O momento segue todos os
rituais de ordenação estabelecidos por Roma, porém não deixa der em
parte rompimento com as mesmas, ao estabelecer símbolos que não
compõem as dinâmicas do rito das ordenações de maneira geral.
Do grupo que viveu a experiência de formação em Tacaimbó, além
de Enoque Salvador, João Firmino e João Moura ordenaram-se Padre.
Nonato não se ordenou, escolheu a vida de missionário e continuou em
Tacaimbó, animando, organizando, articulando, a comunidade local e
contribuindo para uma participação do pobre de maneira mais efetiva
na vida política e sindical da cidade, além das contribuições com dinâmica religiosa de então.
Nonato: a luta e as perseguições sofridas por um
ministro dos pobres
Como já destacamos aqui, o contexto político do período analisado é marcado pela ditadura militar (1964-1985), é claro que a perspectiva inovadora da Teologia da Enxada e atuação dos de tal grupo,
logo encontrou em nível local a resistência dos grupos políticos conservadores que estavam alinhados através da ARENA ao poder político estadual e federal.
De tal forma os Governos Militares garantiam apoio nos municípios que se caracterizavam de certa forma como seus representantes
nas cidades do interior brasileiro. Sobre a presença do ambiente vivido
no Brasil durante a Ditadura e de que forma tal ambiente gerou impactos na cidade tacaimboense, uma das pessoas que viveram de perto tal
momento, comentou:
A ditadura militar manteve uma linha de informações, de deduragem. Qualquer mal entendido, a vingança era denunciar. Aí, houve
quem fizesse isso, dizendo que os seminaristas tinham rádio que se
comunicava com Cuba, Havana e outros países comunistas. Ouvia
627
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a BBC de Londres. Ela está em sintonia com outros sistemas políticos.6
Perseguições ou invenções como estas foram frequentes, e serem
chamados de comunistas e subversivos era uma constante. Ou seja, a
cidade estava em sintonia inclusive com os mesmos tipos de discursos
e rótulos direcionados a todos que se posicionavam contra o Regime.
Em cidades pequenas do interior, como Tacaimbó, basta ouvir a BBC ou
ter uma prática pastoral de atenção aos pobres para ter tal tratamento.
Outro entrevistado descreve outro tipo de situação, mas ainda se
referindo às perseguições sofridas:
Fomos visitados pela Polícia Federal. Eles nunca se apresentavam
como policiais federais. A gente percebia, naturalmente, mas eles
não se apresentavam como Polícia Federal. Era uma verificação,
porque muitos vereadores na Câmara falavam de comunistas, subversivos. Para ser subversivo não precisa muita coisa não.7
A Igreja Católica em Tacaimbó, depois da chegada dos seminaristas do Padre Pedro Aguiar, ambos sob a orientação teológica do Concílio
Vaticano II que, mais tarde seria teorizado pela Teologia da Libertação8,
assumem uma postura de contraposição à teatralização9 da política local e a seus dispositivos de assujeitamento das camadas populares.
Um desses momentos se deu o mandato do Prefeito Francisco
Quirino (1979-1982), eleito com o apoio do ex-prefeito Carlos Leite,
que havia se destacado por obras conseguidas para a cidade devido seu
Entrevista concedida ao autor na cidade de Caruaru-PE, em 2003.
Entrevista concedida ao autor em 07 de março de 2009. Serra Redonda – PB.
8
A Teologia da Libertação se autodefine como um “novo modo” de fazer Teologia. Esse
“novo modo” se caracteriza por uma palavra: práxis. Práxis é aqui entendida sobretudo
como prática política, a saber, como ação de intervenção sobre as estruturas sociais. BOFF,
Clodovis. Comunidade Eclesial, comunidade Política: Ensaios de Eclesiologia Política. Ed.
Vozes, Petrópolis, 1978, p. 191.
9
A esfera teatral do exercício do poder político busca conformar os governados, manter
seu consentimento, ativo ou passivo; perpetuar o respeito às normas, valores e símbolos;
fixar os limites do politicamente possível e tolerável. Constitui parte fundamental da hegemonia, domínio não baseado diretamente na coerção material. Thompson, E. P. (1982a,
p. 8-11) a seção “O ‘Teatro do Apocalipse’”, de seu ensaio “Notas sobre o Exterminismo”.
6
7
628
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
bom trânsito com os ditadores militares que governavam o país. O caso
se deu entre o ex-prefeito e Nonato, quando da visita do Secretário de
agricultura do Estado em 1981. O mesmo visitou Tacaimbó para promover as ações do Governo Estadual (Marco Maciel), eleito indiretamente
e filiado à ARENA, além de vir incentivar o agricultor à produção em prol
do desenvolvimento do país.
No sentido de criticar a atuação do Governo Estadual e local por
falta de políticas públicas voltadas para os agricultores, a Igreja produziu
uma faixa com o seguinte dizer: “plantar sem terra e colher com fome?10.
Esta atitude provocou a ira de Carlos Leite, que repudiou tal atitude chamando os membros da Igreja de subversivos. Dona Maria, assim chamada aqui para não tornarmos pública a sua identidade, uma das leigas
do movimento católico de então, descreve o que teria acontecido em tal
ocasião:
Lembro de uma vez em que Igreja colocou uma faixa sobre o comportamento dos políticos de Tacaimbó. Não lembro o que estava
escrito. Um político na época, rebatendo começou a ofender pessoas das comunidades, e a alguns se dirigia como medrosos, isto
em cima de um caminhão, feito um palanque, pois ninguém sabia
quem havia colocado a faixa. Nonato deixou o político terminar de
falar, subiu no caminhão e rebateu as críticas. Eu lembro quando
Nonato disse: eu estou tremendo, mas não é de medo.11
No mesmo ano (1981), a Igreja registrou o acontecimento num caderno distribuído nas missas sobre a Festa de Santo Antônio, que refletia sobre a atuação da mesma em Tacaimbó:
No dia 07 de abril passado, levantando a voz em defesa da vida estragada e ameaçada dos irmãos necessitados, a comunidade cristã,
a Igreja local, fez uma faixa e colocou na frente da Igreja, lembrando
ao Secretário de Agricultura do Estado, a situação de fome de nosso
povo. Desafiados pelos políticos em praça pública, dois membros
da comunidade testemunharam, na praça, a dor e as injustiças que
Documento: O Rolo do Tempo 1969 – 1989: 20 anos de caminhada das Comunidades
Eclesiais de Base CEBs de Tacaimbó, p. 01.
11
Entrevista concedida ao autor em Tacaimbó-PE, no ano de 2003.
10
629
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
sofre nossa gente. Irritado com isso o Sr. Carlos Leite, chefe do grupo político no poder, acusou na mesma praça, a Igreja de Tacaimbó,
de pregar a agitação, a subversão e o comunismo. Unidas ao seu vigário Padre Pedro e ao Bispo de toda Igreja de Caruaru, as comunidades dos sítios e da cidade de Tacaimbó, enviam uma carta a todo
povo do município. E no sábado santo, ao meio dia, o nosso Bispo
D. Augusto fala pela rádio difusora de Caruaru, afirmando publicamente que tudo o que fazemos de evangelização aqui em Tacaimbó,
fazemos com o seu incentivo, seu apoio e aprovação.12
O presente documento, além de nos servir para destacar a veracidade do acontecimento e os termos pejorativos utilizados pelos
políticos da cidade para com a Igreja no sentido de atingir Raimundo
Nnato, serve-nos para analisar a articulação da mesma com a comunidade, o apoio e confiança que tiveram do Bispo neste episódio diferente dos momentos de conflito sobre a Festa de Santo Antônio em
outro momento.
O poder político local, quando não consegue vencer com ideias a
atuação política e pastoral articulada por Nonato em Tacaimbó, tenta
desestabilizar os seus membros através de atitudes que visam atacar
a moral destas pessoas, pondo em dúvida para a população o caráter e
a honestidade dos mesmos. Numa destas tentativas com a intenção de
atacar moralmente Nonato, um dos vereadores da cidade falsifica um
pedido por escrito do mesmo, no qual solicitara do vereador um bujão
de gás. A falsificação do bilhete é facilmente identificada, pois o falsificador assina Nonato Farias, porém o nome correto é: Raimundo Nonato
Queiroz. Nonato responde ao vereador da seguinte maneira:
Sr. Sizenando, Causou-me muito espanto e repúdio a sua atitude
desonesta de usar o meu nome num bilhete falso para conseguir
um bujão de D. Júlia. O senhor deve saber que isso é um crime muito
grave, principalmente para quem é uma autoridade. Comportamento tão desonesto e baixo, só faz estragar a sua própria pessoa e
colocá-la numa situação de descrédito muito elevado. Saiba o Sr.
12
Caderno comemorativo referente à Festa de Santo Antônio - Igreja Católica de Tacaimbó. 1981, p. 24-25.
630
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que isso foi uma profunda ofensa a minha pessoa. Pois eu nunca lhe
autorizei a fazer nada em meu nome. O Sr. me obriga a esclarecer
publicamente o seu comportamento desonesto, pois do contrário
eu seria cúmplice de uma traficiência que aí em Riacho Fechado já
se tornou pública. [...].13
O documento acima citado foi enviado ao referido Vereador e distribuído entre os populares como forma de esclarecer o ocorrido.
As tentativas de desqualificar a atuação da Igreja em Tacaimbó,
que se inicia com a chegada dos seminaristas na referida em cidade
em 1969 e continua com as atividades realizadas por Nonato e Pedro
Aguiar nas décadas de 1970, 1980 e início da década de 1990, foram
constantes. Entre os anos 1960, 1970 e início dos anos 1980, a maneira
que o poder político local encontrou para colocar a população contra as
atividades realizadas por Pedro Aguiar a frente da Igreja de Tacaimbó é
a de associar a Igreja a grupos de vândalos contrários ao Governo, isto é,
subversivos, comunistas, palavras utilizadas em tom depreciativo.
Este pensamento transformado em atitudes se confrontou com os
agentes de tais práticas. Em nível nacional, a partir de meados da década
de 1970 a Igreja Católica posiciona-se de maneira mais direta14 contra a
Ditadura Militar, contrária às torturas, à falta de democracia e ajudando
na resistência contra tal Regime. Aliás, no momento em que os espaços
democráticos do país são tolhidos pela Ditadura, são as Comunidades
Eclesiais de Base – CEBs15, durante este período um espaço de resistência, mas sobretudo de articulação contra o poder militar. Em Tacaimbó,
Nonato foi a principal liderança de organização das comunidades.
A articulação da comunidade de Tacaimbó, feita por movimentos
de leigos16, coordenados por Nonato e pelo padre Pedro Aguiar, chegou
Trecho do documento redigido por Raimundo Nonato em 13 de maio de 1975.
Ver: ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a Política no Brasil. São Paulo, Editora Brasiliense.
1979. p. 201.
15
“Quando o Estado reprimia os sindicatos e as associações de bairro, as CEBs tornavamse quase as únicas organizações populares onde as pessoas se organizavam para discutir
suas vidas cotidianas, seus valores e suas necessidades políticas”. MAINWARING, Scott.
Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo. Editora Brasiliense. 2004. p. 200.
16
“Os cristãos leigos, nos diz o Vaticano II, são fiéis cristãos que, tendo sido incorporados
em Cristo pelo batismo e constituídos Povo de Deus e, no modo a eles próprio, tornados
13
14
631
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
na zona rural através da Teologia da Enxada, como já fora citado, através
da fundação do Sindicato de Trabalhadores Rurais em 1973, fundação da
Cooperativa Agrícola Mista dos Pequenos Agricultores de Tacaimbó Ltda –
CAMPEATA, em 1983, e construção de salões comunitários nos sítios, que
serviam para a realização de missas, festas e articulação da comunidade.
Tais realizações, destacam a importância do trabalho desenvolvido
por Nonato no Agreste pernambucano, que no início dos anos 1980 foi
para outra missão, desta feita em Serra Redonda-PB, contribuir com a
criação do Centro de Formação Missionária, que reeditou a formação da
Teologia da Enxada, sob a coordenação de José Comblin que voltava para
o Brasil, depois de ter sido expulso pela ditadura brasileira em 1972.
Considerações finais
Buscamos alocar a partir de Raimundo Nonato, sua liderança e
atuação, o entendimento sobre o progressismo católico, a partir de dois
lugares – a Teologia da Enxada e o agreste pernambucano. O primeiro,
trata-se do lugar da construção de uma nova formação teológica que
apontava para uma nova prática pastoral; o segundo seria o lugar enquanto espaço de atuação. Preferirmos optar em deixar claro o lugar
social originário de nossa produção histórica, pois conforme aponta De
Certeau (2007, p. 77):
Levar a sério o seu lugar não é ainda explicar a história. Mas é a
condição para que alguma coisa possa ser dita sem ser nem legendária (ou edificante), nem a-tópica (sem pertinência). [...] instalando
o discurso em um não-lugar, proíbe a história de falar da sociedade
e da morte, quer dizer, proíbe-a de ser a história.
Pois bem, perceber a atuação de Nonato a partir do desenvolvimento da Teologia da Enxada, dentro de um determinado universo, nos
participantes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, cumprem da sua parte, na
Igreja e no Mundo, a missão própria de todo o povo cristão”. LORSCHEIDER, Aloísio Cardeal. Os Ministérios na Igreja. IN: A Esperança dos Pobres Vive: coletânia em homenagem
aos 80 anos de José Comblin. São Paulo, Editora Paulus, 2003, p. 553.
632
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
permite a realização de um trabalho que tem pertinência sem necessariamente ser apologética, já que tentamos destacar as continuidades e
rupturas de um lugar que sofre alterações e recebe influências do contexto sócio-político, daí porque a variação de discursos e práticas.
A Teologia da Enxada foi uma experiência realizada na busca de
novos métodos de formação pastoral, rompendo com as práticas tradicionais e que resultou em conflitos internos e externos ao catolicismo, mas que sobre a mesma não temos a pretensão de cristalizar uma
verdade absoluta, posto que “toda interpretação histórica depende de
um sistema de referência; que este sistema permanece uma ‘filosofia’
implícita particular; que infiltrando-se no trabalho de análise, organizando-a à sua revelia, remete à ‘subjetividade’ do autor” (CERTEAU,
2007, p. 67). Porém, mesmo que nossa análise seja fruto de um olhar
particular, promovemos uma análise que trouxe a oportunidade de reflexão sobre espaços pouco ou nunca antes estudados na perspectiva
que propusemos discutir.
As conclusões a que chegamos permite-nos destacar resultados da
ação prática de um sujeito que se notabiliza pela simplincidade de viver
e conviver o sofrimento e as dores dos mais pobres, já que a sua atitude
de fé e crença de um Deus presente nos insjustiçados, foi indispensável
na organização da classe trabalhadora na cidade de Tacaimbó, tanto os
trabalhadores da cidade – através de cursos para o trabalho com teares
(este voltado para artesãos da cidade ou pessoas que queriam aprender a
tecer) e até mesmo a construção civil, quanto os trabalhadores rurais que
tiveram na prática dos mutirões a formação da solidariedade e coletividade, e a fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.
Pudemos constatar que Raimundo Nonato e a Teologia da Enxada são frutos do seu período, de sua época, ou seja, de uma série de
movimentos que confluem em sua formação. Desde os primeiros movimentos dos padres operários franceses, passando pelos movimentos
de Juventude Católica, o Concílio Vaticano II e a experiência política de
então, especialmente o contexto de ditaduras que impregnou na América do Sul, sobretudo no Brasil. A mesma se insere numa formação
cultural político-religiosa especialmente brasileira, independentemente
das influências dos movimentos franceses, pois “o que os brasileiros fizeram não foi ‘aplicar’ um corpo de ideias francesas, e sim usá-las como
um ponto de partida para criar novas ideias, para inventar uma cultura
político-religiosa”. (LOWY, 2000, p. 138). Nonato e a sua atuação, fram
indispensáveis em tal processo.
633
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
DELGADO, Lucilia de Almeida
Neves. História Oral: memória,
tempo, identidades. Belo Horizonte:
Autêntica. 2010.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da
História. Trad. Maria de Lourdes
Menezes; Revisão técnica de Arno
Vogel. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária. 2007.
COMBLIN, José. Teologia da Enxada:
uma experiência da Igreja no
Nordeste. Ed. Vozes, Rio de Janeiro,
1977.
634
LÖWY, Michael. A Guerra dos Deuses:
religião e política na América Latina.
Rio de Janeiro. Editora Vozes. 2000.
MAINWARING, Scott. Igreja Católica
e Política no Brasil (1916-1985). São
Paulo. Editora Brasiliense, 2004.
SEMERARO, Giovanni. A Primavera
dos Anos 60: a geração de Betinho.
São Paulo. Edições Loyola, 1994.
[ Volta ao Sumário ]
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Reflexões soBRe a
indumentáRia no Culto
da juRema na paRaíBa
Larissa Lira
Como referenciar este capítulo:
LIRA, Larissa. Reflexões sobre a indumentária no culto da Jurema na Paraíba.
In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020,
p. 628-644.
Larissa Lira1
Introdução
Nossa reflexão versa sobre os materiais elaborados que constituem um acervo de significados, um patrimônio de símbolos expresso
na estética corporal que constitui o universo mágico-religioso da Jurema. Pretende-se analisar elementos da indumentária que possibilitem
melhor compreender e caracterizar o culto, o valor e usos que se faz
do acervo visual construído pelos diferentes grupos e para uma multiplicidade de entidades. A expressão estética se apresenta aqui como
extremamente importante na preservação da memória religiosa, o corpo se traduz como um espaço portador de informações, mensagens e
sensações vivas, as performances das entidades trazem a memória de
“um outro” que já foi corpo um dia, a dança, os objetos que carregam, a
indumentária, são aspectos que ativam uma comunicação mnemônica
entre passado e presente.
Reflexões sobre o estudo proposto
A planta de nome científico Mimosa Tenuiflora popularmente conhecida como Jurema, floresce no agreste e na caatinga nordestina, é
nessa região, mais especificamente no estado da Paraíba, o campo empírico de observação que se pretende essa pesquisa. Na Paraíba, a Jurema é tida como “tradição da terra”, o seu uso é típico entre os indígenas
do sertão ao litoral. A cidade de Alhandra, município localizado no sul do
Graduada em Filosofia (UEPB), Pós-graduada em Design de Moda (SENAI Cetiqt-Rj),
mestre e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões – PPGCR
(UFPB). Integrante do Raízes: grupo de pesquisa sobre religiões mediúnicas e suas interlocuções, vinculado ao PPGCR. Orientado por Dra. Dilaine Soares Sampaio. http://lattes.
cnpq.br/6302744951679133 (larissalira1306@gmail.com).
1
636
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
estado a 44 quilômetros da capital João Pessoa é considerada como o
“berço da Jurema”, também reconhecida como um dos espaços sagrados desta religião. Tem essa importância, dentre outras, por ser o berço de uma linhagem de catimbozeiros importantes, dentre eles Maria do
Acais2. As primeiras formas de manifestação das religiões afro-brasileiras
na Paraíba e a compreensão da Jurema passa pelo entendimento da sua
matriz indígena, o Catimbó. Roger Bastide (2011, p.149) vai destacar a
contribuição do negro, sua adesão e influências ao Catimbó que, como
aponta, era o que mais se aproximava das suas práticas, pois o negro encontrou no Catimbó a mesma estrutura mística existente em sua religião,
a mesma resposta às mesmas tendências. Num esforço de recuperação
e análise dos autores pioneiros dos estudos do Catimbó/Jurema, Dilaine
Sampaio (2016) traça um mapeamento/estado da arte para o entendimento dos estudos dedicados ao tema. Segundo a autora:
A Jurema e o Catimbó, inicialmente presentes no norte e nordeste brasileiro, embora já tenham ganhado outras regiões no Brasil
e no mundo, estando, portanto, trasnacionalizadas, não receberam a mesma atenção dos autores pioneiros do campo de estudos
afro-brasileiros, pois devido à concentração dos estudos na tradição jeje-nagô, o interesse pelo Catimbó/Jurema se mostrou ainda
mais tardio se comparado às demais religiões afro-brasileiras, pois
estudos mais detidos apareceram somente nos anos 30 (SAMPAIO,
2016, p. 152-153).
Antes de pensar essa expansão do Catimbó/Jurema vale destacar a forma hostil, desqualificadora quando no uso de tons pejorativos
essas manifestações foram sempre niveladas por “baixo espiritismo” e
classificadas homogeneamente como magia ou feitiçaria e não como
religião. Desse modo, foram tomadas como manifestações indignas de
Maria do Acais é um nome central e fundamental para a memória afro-brasileira na
Paraíba, especialmente do Catimbó e da Jurema, conhecida matriarca de linhagem de
juremeiros, hoje uma mestra de jurema. Por tudo que já foi coletado, sabe-se que não
existe uma única Maria do Acais, de modo que entre os juremeiros, até hoje, se menciona
“a primeira”, a “segunda” e até uma terceira. Sua fama ultrapassava a Paraíba, como se
tem notícias nos registros “involuntários” de Artur Ramos, passando por Gonçalves Fernandes, dentre outros autores que remetem a ela (SAMPAIO, 2016, p. 164).
2
637
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
existirem e, por consequência, de serem até mesmo registradas. Todavia, persistiram enquanto espaço de resistência das populações marginalizadas do Nordeste. O interesse nos estudos do Catimbó/Jurema
passa despercebido ou foram mesmo ignorados pela linhagem denominada de “africanistas”. São os chamados “folcloristas”, estudiosos interessados no folclore, na cultura popular e, particularmente, na cultura
nordestina (SAMPAIO, 2016, p. 185) os que se dedicarão aos primeiros registros. Fazendo um levantamento dos trabalhos mais recentes
no campo percebe-se que ainda não existem trabalhos específicos (do
gênero de dissertações e teses) sobre as indumentárias litúrgicas e as
multiplicidades estéticas nos ritos de Jurema que, em nossa apreciação,
abordem satisfatoriamente o assunto, tecendo esclarecimentos e considerações acerca do uso das vestes e adereços sagrados nessa tradição religiosa. Raul Lody destaca:
Louva-se o pioneiro trabalho de Mário de Andrade, Câmara Cascudo, Renato Almeida, entre outros etnógrafos/folcloristas, que se
dedicaram às coisas populares, porém sem ênfase na cultura material (LODY, 2010, p. 29).
Compreendemos que a cultura material não era o foco dos seus
trabalhos, o retardamento de pesquisas sobre o Catimbó/Jurema acabam por contribuir com algumas lacunas. Os estudos dedicados à indumentária nas religiões afro-brasileiras seguem a lógica das pesquisas com ênfase no Candomblé, que se destaca por um ritual em que
a beleza, o esmero e investimentos no vestuário e outros paramentos
são fundamentais no culto aos orixás. Pretendemos entender as trocas,
influências e reinvenções de um quadro atual que já se apresenta bem
diverso do que foi registrado pelos estudos pioneiros.
Os trajes litúrgicos são de extrema importância na constituição
dos rituais, preservam costumes e são fortes mediadores na construção de identidades religiosas, são linguagens visuais que expressam
discursos. A espacialidade, local onde se realiza o culto veste-se a caráter a cada ritual, a estética elaborada na construção dos pejis3, tem por
Altares onde são colocados os assentamentos e os apetrechos dos diversos espíritos.
É onde também se energizam os objetos e as pessoas, onde se deixam os pedidos, as
comidas, etc. (GONÇALVES, 2012, p. 7).
3
638
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
objetivo fazer a conexão entre a natureza e o mundo dos encantados,
a multiplicidade de símbolos e objetos que constituem esses espaços
sinalizam o gosto e a personalidade das entidades que estarão em terra no momento determinado pelo ritual. Esses espaços servem como
depositários, dos altares, alguns objetos são levados para o corpo, que
vai dar vida às expressões dos “senhores do outro mundo”. A indumentária ritual supera a dimensão estética, sendo utilitária e necessária,
os adereços que compõem uma indumentária servem de instrumento
para uso ritual. Por exemplo, a chianca4 que um mestre recebe, além de
caracterizá-lo, é parte dos instrumentos que ele precisa para realizar
seus trabalhos estando em terra, os movimentos com ele tem ação e
sentidos precisos, exerce funções.
A preservação, a valorização, os investimentos feitos nas vestes
assim como os demais detalhes da ornamentação pessoal e espacial
nas religiões afro-brasileiras movimentam um grande mercado de oferta e demanda que dinamiza a economia de cidades e estados5, somando-se ainda ao mercado virtual e a infinidade de lojas que movimentam
as redes com enorme oferta de objetos litúrgicos. O terreno da economia, dos signos, dos ritos, da religião esclarecem comportamentos
vestimentários, aprofundam a dimensão social do vestuário, apontando a importância e o valor que essas religiões depositam nas roupas e
demais acessórios que trajam as entidades que “baixam” em terreiros
dos mais simples aos mais sofisticados. Nas religiões afro-brasileiras as
coisas deste mundo são elementos fundamentais para a manifestação
do sagrado, no dizer de Vagner Gonçalves da Silva prefaciando a obra
Joias de Axé de Raul Lody (2009).
A estética compreendida nesta análise se distancia do sentido
clássico dado à estética no campo filosófico6, como doutrina da sensibilidade, filosofia da arte e na busca por conclusões teóricas universais,
Espécie de chicote.
Destaque ao mercado São José em Recife -PE que favorece o abastecimento do mercado paraibano e que possibilita conhecimento sobre produção, circulação e consumo em
âmbito afro-brasileiro.
6
Para uma introdução a estética no sentido filosófico, ver PAREYSON, Luigi. Os problemas
da Estética (1997), onde o autor deixa claro o papel do filósofo e o valor do olhar filosófico
nas especulações sobre a teoria do belo.
4
5
639
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
indispensáveis à reflexão filosófica. É louvável o papel do filósofo nas
especulações sobre a estética, mas aqui destacamos que a reflexão
não se limita a esse campo do saber e é para além dele que pretendemos caminhar. Na sociologia, Durkheim ao discutir os ritos positivos
no livro terceiro, capítulo II de As Formas Elementares da vida religiosa
(2008) destaca a importância do elemento estético como necessário e
parte constituinte da representação ritual, ainda que o culto não vise
esse único aspecto, o autor destaca que praticamente não há ritos que
não apresentem o elemento estético em algum grau. Os efeitos físicos
reproduzidos pelos símbolos religiosos não são imagens vazias que a
nada correspondem na realidade, nem puramente uma obra de arte, expressam sentido, têm a função de manter, afirmar e são necessários ao
sustento da crença do grupo. O ato de o/a juremeiro(a) vestir a entidade
é parte da sua crença e cumprimentos dos seus deveres rituais, traduzem a confiança e disposição do/da fiel à religião. Esta é uma questão
central e em torno dela gravitarão outras que, espero, possam ser equacionadas e satisfatoriamente respondidas ao longo do desenvolvimento
da pesquisa aqui proposta.
A partir dessas premissas, o enfoque dado ao tema nos parece
bastante significativo: analisar elementos que possibilitem melhor
compreender e caracterizar o complexo mágico-religioso do culto da
Jurema, o valor e usos que se faz do acervo visual construído pelos diferentes grupos e para uma multiplicidade de entidades7. O sistema de
produção que envolve o valor sagrado e mercadológico, estratégias de
criação – processos de produção, distribuição e abastecimento – não
apenas do vestuário, mas da cultura da aparência para além das roupas,
expressas na materialidade construída nos espaços sagrados são aspectos também relevantes.
Para análise empírica, nos propomos a desenvolver a pesquisa em
três cidades do estado da Paraíba: João Pessoa, Alhandra e Campina
Grande, e em três terreiros, a saber: um que opere com rito de Jurema
e Candomblé (casa mista, onde há o Orixá e a Jurema, como se diz popularmente na Paraíba); um terreiro de Jurema (onde não se encontra
Caboclos, pretos-velhos, baianos, boiadeiros, ciganos, zé pelintras, cangaceiros, pombagiras, que se constituem em linhas e se desdobram em falanges.
7
640
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
tão fortemente a presença de traços de origem africana na doutrina e
no ritual) e um terreiro de Candomblé Ketu, para entender a presença
do Catimbó/Jurema em rituais de Candomblé de Caboclo. Registrado
por Mário de Andrade (2006, p.30), a presença de caboclos nos rituais
de Candomblé marca a insistência da Jurema nos Candomblés, remetendo também a ligação do Candomblé com o Catimbó. Alguns desses
espaços já foram visitados e contatos já foram feitos em ocasiões da
pesquisa realizada no Mestrado, o que me faz pisar em universo um
pouco familiar. Familiar também é a minha proximidade ao universo da
produção de indumentária, como designer de moda tenho me dedicado aos estudos e divulgação da indumentária afro-brasileira, fator que
me influenciou na escolha do tema do plano preliminar, serve de eco a
minha experiência. Consideramos que o tema em questão não só está
circunscrito ao espaço religioso dos terreiros, o espaço midiático8 e público9 nos faz ampliar o raio de análise. Detalharemos melhor o campo
de pesquisa a seguir.
Do tema ao campo
Muitos são os processos de reelaboração do culto da Jurema,
num fluxo contínuo de transformações os cultos praticados no espaço
urbano vão se distanciando das práticas dos grupos indígenas. Devido ao desenvolvimento e expansão da Umbanda e do Candomblé, na
Jurema, foram sendo repensadas as práticas, rituais e indumentárias
entrando em sintonia com os acontecimentos do mundo afro-brasileiro. Segundo Gonçalves:
Foram assimilados os exus e pombagiras, pretos velhos, baianos,
processos de recolhimento, sacrifício, assentamentos e festas de
apresentação dos iniciados, além da roda de santo (gira), os tambores (elus), os cânticos, pontos riscados, os trabalhos mágicos (linhas
de direita e esquerda), jogo de búzios (cauris escuros e maiores que
os usados no candomblé) etc. (GONÇALVES, 2012, p. 6-7).
8
9
Internet.
Encontros de juremeiros/as realizados em Alhandra (PB) e o Kipupa Malunguinho (PE).
641
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Estas mudanças, contudo, não ocorreram de modo passivo, mas
dentro de um processo dinâmico e dialético (SALLES, 2004, p. 99). A glamorização, ou espetacularização como alguns autores vêm denominando
os processos de maiores investimentos e elaboração dos rituais no culto de Jurema nasce nesse processo. O abandono da rusticidade que dá
lugar ao esmero na forma de vestir e de caracterizar os espaços de culto
é uma marca de destaque em um grande número de terreiros de Jurema. Há um claro requinte que marca a preocupação na adoção de roupas
e materiais industrializados que se distinguem da rusticidade de tecidos
de baixo valor, acessórios simples e pés no chão batido. Essa realidade
se destaca e evidencia um tempo distinto do que foi registrado pelos
primeiros estudos referentes ao Catimbó/Jurema.
Nosso objeto de reflexão são os materiais elaborados que constituem um acervo de significados e representações, um patrimônio de
símbolos expresso na estética espacial e corporal que constitui o universo mágico-religioso da Jurema. Pretendemos classificar as indumentárias e acessórios como forma de aprofundar os conhecimentos sobre
os importantes significados desse sistema de comunicação, obtidos diretamente a partir do valor e uso que deles se faz.
Dentre os diferentes grupos religiosos que poderiam ser selecionados, fazemos a opção metodológica de dividi-los por modalidades
distintas de culto, assim sendo tomamos: (1) Um terreiro de Umbanda/Candomblé em João Pessoa; (2) Um terreiro de Jurema na cidade de
Alhandra e (3) Um terreiro de Candomblé Ketu, em Campina Grande.
O espaço de análise pode ser ampliado como também maior diversificado, saberemos definir melhor numa fase de progressão da pesquisa.
Pensar o tema em nível de Paraíba é uma tentativa de delimitar esse
espaço de pesquisa, tendo consciência que poderão ser feita conexões
com os estados vizinhos, Pernambuco e Rio Grande do Norte, regiões
históricas de forte expressões juremeiras.
As discussões que envolvem a experiência antropológica do estar
em campo variam de modo a nos fornecer diversas formas de pensar
a inserção e contato com o objeto de pesquisa. Minayo (2016, p. 57)
entende o campo na pesquisa qualitativa, como o recorte espacial que
diz respeito à abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico
correspondente ao objeto de investigação. Para o antropólogo Vagner
Gonçalves da Silva:
642
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O “campo” não é somente a nossa experiência concreta (mesmo se
esta fosse mensurável de forma tão objetiva) que se realiza entre o
projeto e a escrita etnográfica. Junto a essa experiência, o “campo”
(no sentido amplo do termo) se forma através dos livros que lemos
sobre o tema, dos relatos de outras experiências que nos chegam
por diversas vias, além dos dados que obtemos em “primeira-mão”
(SILVA, 2015, p. 27).
As possibilidades teóricas contemplam o rigor metodológico e analítico da pesquisa e somam à experiência. Para a realização, contaremos
com um aporte de blocos teóricos de naturezas complementares. Nessa
trama, a literatura de estudos sobre o Catimbó nos fornece a base para
as primeiras reflexões acerca da religião de destaque na pesquisa. Na
obra Música de Feitiçaria no Brasil (1933) Mário de Andrade, interessado
em conhecer a musicalidade da região em viagens pelo Nordeste faz
registros importantes sobre o Catimbó paraibano e nordestino. O folclore mágico do Nordeste: usos, costumes, crenças e ofícios mágicos das
populações nordestinas (1938), de Gonçalves Fernandes é mais uma
importante obra, Meleagro (1978) considerado o primeiro estudo mais
completo acerca do Catimbó, Câmara Cascudo assinalou a influência da
bruxaria europeia na religiosidade popular brasileira, tendo aqui encontrado canais de assimilação principalmente junto às populações negras
e índias que também possuíam seus rituais mágicos. O sociólogo francês Roger Bastide (1945) em viagens pelo nordeste e estada em João
Pessoa, faz registros sobre o Catimbó paraibano, é um dos autores que
mantém a visão do Catimbó tendo em vista o Candomblé. René Vandezande foi o primeiro a se dedicar aos estudos dos espaços sagrados da
Jurema, registrando a presença das cidades da Jurema em Alhandra em
sua dissertação intitulada de Catimbó (1975). Um bloco teórico de uma
literatura clássica contempla a primeira parte deste trabalho.
A temática da corporeidade e os significados que o corpo assume
ganha relevância para pensarmos a importância dele como cerne comunicacional, repleto de mensagens, sentidos, símbolos, signos e significados. Esses temas nos aproxima da antropologia da performance para
pensar o Catimbó/Jurema, religião onde o corpo ritualmente preparado,
passa por etapas de aprendizagem, recebe fundamentos e é portador
de uma tradição religiosa. Essa abordagem nos possibilita estabelecer
643
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
um diálogo fecundo com Marcel Mauss (2003). Segundo Gilmar Rocha
(2008):
(...) a partir da etnologia religiosa de Marcel Mauss sobre a magia, e
na sequência, as técnicas corporais nos ajudam a compreender melhor o sentido das performances verbais e corporais no âmbito das
religiões mágicas (principalmente, afro-brasileiras, carismáticas e
neopetencostais, sem excluir expressões do kardecismo, catolicismo popular e seitas esotéricas) no cenário brasileiro contemporâneo (ROCHA, 2008, p. 142).
Outra obra de destaque é Antropologia do corpo e modernidade
(2011) onde Le Breton analisa os significados que o corpo assume na
modernidade e suas implicações antropológicas. O autor menciona os
terreiros de candomblé no Brasil como local onde as pessoas buscam
a parte de símbolo que falta a sua vida cotidiana (LE BRETON, 2011,
p. 305), já que o homem é um ser de relação e de símbolo (LE BRETON,
2011, p. 290), um animal symbolicum no dizer de Ernst Cassirer na sua
introdução a uma filosofia da cultura humana (2012). Pensar a dimensão simbólica que permeiam os corpos imagéticos e o sentido que ele
assume nos cultos da Jurema é parte da reflexão que abarca a discussão
entre a relação do juremeiro(a) e as entidades espirituais. Temos aí um
campo antropológico fértil a explorar.
Um terceiro bloco que se faz importante são as produções contemporâneas que diagnosticam as reelaborações do antigo culto indígena, com destaque aos escritos sobre os cultos da Jurema na Umbanda nordestina e paraibana de Sandro Guimarães Salles (2004) e Luiz
Assunção (2006; 2011).
Um quarto bloco que denomino de literatura local, é constituído
de autores que estão produzindo e refletindo o contexto paraibano com
pesquisas dedicadas aos cultos da Jurema, são eles: Idalina Santiago
(2008), Rodrigo Grunewald (2009), Giovanni Boaes Gonçalves (2012) e
Dilaine Soares Sampaio (2016).
Um quinto bloco diz respeito a produções sobre a Umbanda e o
Candomblé para entender a Jurema no contexto em que nos interessa: Lima (1979), Magnani (1986), Concone (1987; 2011), Prandi (1991;
2011) para citar alguns. O livro de Dilson Lima, Malungo decodificação
644
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
da Umbanda, é um dos poucos trabalhos que se dedicam a um maior
número de linhas para a indumentária de uso ritual na Umbanda. Ao
destacar a presença dos quatro elementos nos rituais (fogo, água, ar e
terra), a terra é tomada como limite espacial representada na vestimenta. Identifica roupas utilizadas pelas pretas-velhas, pombagiras, uso dos
colares (guias), do ojá (pano da costa) na Umbanda-Catimbó identificando a influência do Candomblé nos ritos de Umbanda.
Num sexto bloco, autores que exploraram o campo da estética
afro-brasileira traçam linhas marcantes e nos inspiram refletir a cerca
da importância desta dimensão no universo afro-nordestino. Na tese
Axós e Ilequês (2007) de Patrícia Ricardo de Souza, a estética, a beleza,
a indumentária e os adereços litúrgicos descritos de forma minuciosa
são reveladoras de uma dimensão de sentidos que se apresentam como
aspectos centrais no entendimento do Candomblé. A tese de Eufrazia
Cristina Menezes Santos: Religião e espetáculo (2005) situa a festa na
estrutura ritual do Candomblé, a autora defende que a sua dimensão
espetacular que envolve a estética, o simbolismo das cores, o aparato,
a linguagem visual e gestual constitui um dos fatores responsáveis pelo
aumento da visibilidade social alcançada pela religião no espaço público.
O livro, Joias de Axé de Raul Lody (2010) apresenta estudo detalhado sobre a joalheria religiosa africana e afro-brasileira, com destaque aos fios
de contas que na religião dos terreiros desempenham inúmeros papéis,
o estudo aprofunda conhecimentos sobre os importantes significados
dos elementos materiais no desenvolvimento das religiões de origem
africana. É do mesmo autor o livro Moda e História: as indumentárias das
mulheres de fé (2015) que destaca o papel das mulheres como mantenedoras de uma experiência patrimonial verdadeira, que mantêm, na
criação de suas indumentárias, sua própria história. Dentre os vários
estudos de Vagner Gonçalves da Silva, um de interesse para esse bloco:
Arte Religiosa Afro-brasileira (2008), sobre as múltiplas estéticas de devoção brasileira com enfoque no Candomblé e Umbanda.
Vale destacar que nenhum dos autores citados se deteram ao
tema das expressões estéticas no culto de Jurema, a indumentária é
sempre mencionada como importante na constituição dos rituais, porém nenhum estudo foi dedicado a essa religião. O sétimo e último bloco
constitui-se da literatura que nos permitirá pensar o percurso metodológico da pesquisa, é sobre ele que nos detemos adiante.
645
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Nos rumos de um percurso etnográfico
Tendo em vista os objetivos a que se propõem essa pesquisa
optamos como recurso metodológico a etnografia. Aqui vale destacar
que a etnografia não se resume ao trabalho de campo, nem tão pouco
a observação participante, não se limita somente ao método utilizado,
como nos orienta Mariza Peirano (2014, p. 383), para quem a etnografia transcende o método, são formulações teórico-metodológicas, a etnografia não se opõe a teoria, nem dela se distingue, nega-se assim a
arbitrariedade do corte entre empiria e teoria. A favor da concepção e
inspirada na antropóloga é que, para Gilmar Rocha (2006, p. 106) a etnografia deixa de ser vista como uma estratégia metodológica e passa a
significar um empreendimento textual situado em contextos históricos
e culturais específicos.
Considerando a pesquisa de campo como empreendimento,
desde o estágio inicial ao seu desenvolvimento e conclusão, planejamentos, produções e negociações se fazem necessários para que o/a
pesquisador/a consiga realizar o que se propõe. Esse plano preliminar
visa atravessar o obstáculo burocrático de submissão de análise ao Comitê de Ética, tendo em vista as licenças necessárias para contatos, entrevistas e uso de imagens, tornando documentalmente possível a sua
realização. Pensar no objeto de estudo exige identificar a importância
dele, tendo em vista seu impacto presente e futuro.
A participação observante nos rituais tem em vista as condições
de produzir os dados de pesquisa, o acompanhamento aos rituais, feitura e processos de sacralização desse acervo material possibilitará uma
posterior classificação e melhor entendimento sobre a materialidade
construída, cientes das dificuldades, implicações e respeitando regras e
proibições da religião em questão. Para obter o detalhamento, descrição
acurada do nosso objeto de pesquisa, pretendemos realizar entrevistas
semi-estruturadas que serão gravadas e transcritas, falas que se somarão à escrita. Os sujeitos da pesquisa serão: dirigentes e filhos (as)
dos terreiros, em diferentes idades e tempos de permanência na religião. O estudo que intersecciona relações entre produção, consumo e
mercado pretende ouvir também profissionais, tendo estes vínculos ou
646
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
não com a religião, como: costureiras (os) e comerciantes, como forma
de entender a rede de trabalho e comércio que se constrói ao redor dos
terreiros e que colabora com a manutenção dos rituais. A vitrine virtual é
também um espaço de análise, home pages de terreiros, de sacerdotes/
sacerdotisas, sites informativos, lojas virtuais de objetos religiosos, nos
auxiliam na compreensão do mercado e análise desta rede de contatos que se intercomunicam e expressam sua fé nas “redes”. Os encontros de juremeiros/as a nível regional e nacional também são espaços
de socialização férteis a nossa observação. Acompanho há dois anos
alguns desses encontros de juremeiros/as. No Kipupa Malunguinho
(2018) tivemos a oportunidade de fazer registros fotográficos que se
transformaram posteriormente em exposição fotográfica, também nos
rendeu a participação em concurso e foto premiada em evento acadêmico. Aqui destaco que a etnografia me despertou/incitou a arte da
fotografia. A câmera fotográfica será um dos equipamentos utilizados,
além do gravador de voz. Os objetos visuais que dão forma a etnografia
é uma experiência heterogênea e rica:
Para a antropologia, o cinema e a fotografia se apresentam seja
como instrumentos de pesquisa, linguagens com potencial de expressão de conhecimento ou mesmo veículos de representações,
valores, ideias, ethos, códigos, dentre outras coisas que investigamos quando olhamos para o mundo (BARBOSA, 2016, p. 12).
A imagem, segundo Bittencourt (1998, p. 198) pode contribuir
para a captura de aspectos visuais que transcendem a capacidade de
representação da escrita. E ainda: “Na realidade, a imagem e os meios
visuais, quando utilizados como instrumentos etnográficos, ampliam as
condições para o estabelecimento de um diálogo fecundo com outros
universos culturais” (1998, p. 200). A pretensão é trabalhar o material
imagético em consonância com a produção teórica, esse é uma questão que pretendemos amadurecer e que teremos dimensão no progredir da pesquisa. Serão acrescidos aos blocos teóricos bibliografias
sobre a dimensão dos estudos de uso de imagem (filme e fotografia)
na etnografia, destacamos autores como; Gregory Bateson e Margareth
Mead (1942), Roland Barthes (1984), Elisabeth Edwards (2011), Chris
647
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Morton (2005), Sylvia Caiuby Novaes (2006;2008), Francirosy C. B. Ferreira (2016), dentre outros.
A literatura disponível sobre o tema será objeto de consulta e espera-se que a etnografia realizada venha a ser esclarecedora e de fato
traga à tona resultados que dialoguem com trabalhos anteriores, confronte dúvidas, incitem a despertar novas questões, seja fecunda, ampliando o leque de possibilidades interpretativas e desempenhe o papel
dela que é de ser também uma boa teoria.
Breves e iniciais considerações
Nossa hipótese de trabalho é que a análise da indumentária, adereços e objetos litúrgicos são peças-chaves no entendimento de um
complexo religioso. Tendo em vista a introdução de uma pluralidade de
elementos das variadas tradições religiosas nos cultos de Jurema na
Paraíba, pressupomos que há um acervo material múltiplo e diverso a
ser investigado, compreendido de modo mais atento e acurado. Descrever a evolução das maneiras de vestir, analisar o vestuário a partir da
produção, do consumo, do mercado, inovações aceleradas e espetaculares que mudam obedecendo aos frêmitos do ar do tempo, é uma tentativa de diagnosticar uma gama de costumes presentes nas estéticas
juremeiras. É o estudo da linguagem, as interseccionalidades produzidas por esse texto visual, origens e transformações na configuração dos
cultos de Jurema e o registro dessas expressões, que nos interessam
como objeto de estudo. No trilhar deste percurso, a etnografia aparece como abordagem de pesquisa eficaz aos resultados a que se propõe
esse plano preliminar, refletir e amadurecer os rumos iniciais é o objetivo do presente escrito.
648
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ANDRADE, Mário de. música de
feitiçaria no Brasil, 2ª ed. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia, 2006.
ASSUNÇÃO, Luiz. O reino dos
mestres: a tradição da jurema na
umbanda nordestina. Rio de Janeiro:
Pallas, 2006.
CASCUDO, Luís da Câmara [1898].
meleagro: pesquisa do Catimbó e
notas da magia branca no Brasil, 2ª
ed.Rio de Janeiro: Agir, 1978.
______. Dicionário do Folclore
Brasileiro, 12ª Ed. São Paulo: Global,
2012.
______. Os mestres da jurema. In:
PRANDI, Reginaldo (Org.). Encantaria
brasileira: o livro dos mestres,
caboclos e encantados. Rio de Janeiro:
Pallas, 2011.p.182-215.
CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o
homem: introdução a uma filosofia
da cultura humana / Ernest Cassirer.
– 2ª.ed. – São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2012.
BARBOSA, Andréia... [et al.]. A
experiência da imagem na etnografia.
São Paulo: Terceiro Nome, 2016.
CAIUBY NOVAES, Sylvia. Etnografia
e Imagem. Tese de Livre Docência,
FFLCH-USP, 2006.
BARTHES, Roland. Câmera lucida.
Londres: Fontana, 1984.
______. “Imagem, magia e
imaginação: desafios ao texto
antropológico”. Revista Mana, v.14,
n.2, pp.455-75, 2008.
BASTIDE, Roger [1945]. Catimbó. In:
PRANDI, Reginaldo (Org.). Encantaria
brasileira: o livro dos mestres,
caboclos e encantados. Rio de Janeiro:
Pallas, 2011.p.146-159.
BATESON, Gregory & MEAD, Margareth.
Balinese Character: A Photographic
Analyses. Nova York: Academia de
Ciências de Nova York, 1942.
BITTENCOURT, L. A. (1998). “Algumas
considerações sobre o uso da
imagem fotográfica na pesquisa
antropológica”. In: Feldman-Bianco,
B. e Leite, M. (orgs.). Desafios da
imagem: fotografia, iconografia e
vídeo nas ciências sociais. Campinas,
Papirus.
649
CONCONE, Maria Helena Vilas Boas.
Umbanda uma religião brasileira. São
Paulo: USP/FFLCH/CER, vol. 4, 1987.
______. Caboclos e pretos-belhos
da umbanda. In: PRANDI, Reginaldo
(Org.). Encantaria brasileira: o livro
dos mestres, caboclos e encantados.
Rio de Janeiro: Pallas, 2011. p. 281303.
DURKHEIM, Émille. As formas
elementares da vida religiosa. São
Paulo: Paullus, 2008.
EDWARDS, Elizabeth. [2011]
Rastreando a fotografia. Tradução
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de Bruna Triana e Lucas Amaral de
Oliveira. In: A experiência da imagem
na etnografia / Andréa Barbosa...
[et al.]. – São Paulo: Terceiro Nome,
2016.
FERNANDES, Gonçalves. O folclore
mágico do Nordeste. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1938.
FERREIRA, Francirosy, C.B. Somos
Afetados: experiências mágicas e
imagéticas no campo religioso. In: A
experiência da imagem na etnografia
/ Andréa Barbosa...[et al.]. – São
Paulo: Terceiro Nome, 2016.
GONÇALVES, Antonio Giovanni Boaes;
FERREIRA, Hermana C. O. Catimbó,
Umbanda e Candomblé: o campo
religioso afro-brasileiro em João
Pessoa. In: XIII Simpósio Nacional da
ABHR, Anais do Simpósio da ABHR,
São Luís: ABHR, 2012. V.13. p. 01-14.
GRUNEWALD. Rodrigo. A. Jurema e as
novas religiosidades metropolitanas.
Núcleo de estudos Interdisciplinares
sobre psicoativos (NEIP), 2009.
GONÇALVES, Antonio Giovanni Boaes;
FERREIRA, Hermana C. O. Catimbó,
Umbanda e Candomblé: o campo
religioso afro-brasileiro em João
Pessoa. In: XIII Simpósio Nacional da
ABHR, Anais do Simpósio da ABHR,
São Luís: ABHR, 2012. v.13. p. 01-14.
Contribuição à história das religiões.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
LODY, Raul. Joias de axé: fios-decontas e outros adornos do corpo: a
joalheria afro-brasileira, 2ª ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
______. moda e História: as
indumentárias das mulheres de fé.
Fotografias de Pierre Fatumbi Verger.
São Paulo: Editora Senac São Paulo,
2015.
MAGNANI, José G. C. Umbanda. São
Paulo: Ática, 1986.
MAUSS, Marcel. Sociologia e
Antropologia. São Paulo: Cosac Naify,
2003.
MINAYO, Maria Cecília de Souza.
Pesquisa Social: teoria, método e
criatividade. Petrópolis – RJ: Vozes,
2016.
MORTON, Chris. “The Anthropologist
as Photographer: Reading the
Monograph and Reading the Archive.
visual Antropology, v.18, n.18,
pp.389-405, 2005.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da
estética. Tradução Maria Helena Nery
Garcez, 3ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
LE BRETON, David. Antropologia do
corpo e modernidade. Petrópolis:
Vozes, 2011.
PEIRANO, Mariza. Etnografia não é
método. Horizontes Antropológicos.
Porto Alegre, ano 20, n. 42, p. 377391, jul/dez, 2014.
LIMA, Dilson Bento de Faria Ferreira.
malungo: Decodificação da Umbanda.
PEREIRA, Hanayrá Negreiros
de Oliveira. O Axé nas roupas:
650
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Indumentária e memórias negras
no candomblé angola de Redandá.
[Dissertação de Mestrado]. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), 2017.
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés
de São Paulo. São Paulo: EDUSP/
HUCITEC, 1991.
______. (org). Encantaria brasileira:
o livro dos mestres, caboclos e
encantados. Rio de Janeiro: Pallas,
2011.
Qualitas Revista Eletrônica. ISSN
1677-4280 V7.n1. Ano 2008.
Disponível em: <http://revista.uepb.
edu.br/index.php/qualitas/artocle/
viewFile/122/98>. Acesso em 06 de
maio de 2018.
SANTOS, Eufrazia C. Menezes.
Religião e Espetáculo: análise da
dimensão espetacular das festas
públicas do candomblé. – São
Paulo: USP. [Tese de Doutorado em
Antropologia]. 2005.
ROCHA, Gilmar. A etnografia como
categoria de pensamento na
Antropologia Moderna. Cadernos de
Campo, USP, vol.14-15, 2006.
SILVA, Vagner Gonçalves. Arte
religiosa afro-brasileira: as múltiplas
estéticas da devoção brasileira.
Debates do NER. Porto Alegre, Ano 9,
n. 13, p. 97-113 – Jan/Jun. 2008.
______. Marcel Mauss e o
significado do corpo nas religiões
brasileiras. Interações – Cultura e
Comunidade / v. 3, n. 4/ p.133-150
/ 2008.
______. O antropólogo e sua
magia: Trabalho de campo e
texto etnográfico nas pesquisas
antropológicas sobre religiões afrobrasileiras. São Paulo:Ed, USP, 2015.
SALLES, Sandro Guimarães. À sombra
da Jurema: a tradição dos mestres
juremeiros de Alhandra. In: Revista
Antropológicas, ano 8, v. 15, 2004, p.
99-122.
SOUZA, Patrícia Ricardo de. Axós
e Ilequês: rito, mito e a estética do
candomblé. – São Paulo: USP. [Tese
de Doutorado em Sociologia]. 2007.
SAMPAIO, Dilaine Soares. Catimbó
e Jurema: uma recuperação e uma
análise dos olhares pioneiros. In:
Debates do NER, Porto Alegre, Ano
17, n. 30, p. 151-194, Jul./Dez. 2016.
SANTIAGO, Idalina Maria Freitas
Lima. A jurema sagrada da Paraíba.
651
VANDEZANDE, René. Catimbó:
pesquisa exploratória sobre uma
forma nordestina de religião
mediúnica. Recife: UFPE. Dissertação
de Mestrado em Sociologia, 1975.
[ Volta ao Sumário ]
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Religiosidade populaR
e festa, do Campo à
Cidade: contribuições
antropológicas para a
valorização de uma identidade
cultural do município de
itatuba – paraíba/Brasil
Givanilton de Araújo Barbosa
Como referenciar este capítulo:
BARBOSA, Givanilton de Araújo. Religiosidade popular e festa, do campo à
cidade: contribuições antropológicas para a valorização de uma identidade
cultural do Município de Itatuba – Paraíba/Brasil. In: MARANHÃO Fº, Eduardo
Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR
- Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 645-656.
Givanilton de Araújo Barbosa1
Introdução
Os Fenômenos Sociais requerem pesquisa empírica e acadêmica
para a sua compreensão. Centrado na área dos estudos de Antropologia
da Religião, está situado no que diz respeito a formação da identidade
cultural brasileira, contudo, a que remete este estudo, se dá nas manifestações imbricadas na religiosidade popular, isto é, caracterizam-se
nos princípios da pessoalidade, fé e devoção a imagem sacra e espiritualidade. Além do mais, há a criatividade persuasiva com base na crença
religiosa de mobilização comunitária, fazendo com que haja significativo
reconhecimento desta crença, aceitação e integração da comunidade.
O artigo visa apresentar resultados primeiros da etnografia sobre
uma expressiva celebração imbricada na religiosidade popular denominada de “Festa de Maria Machado”. De acordo com os interlocutores, a
festa sagrada tendo o próprio nome da idealizadora se inicia por volta
de 1970 devido à devoção de Maria Machado ao “São Sebastião”. Os
primeiros preparativos iniciaram em sua própria residência localizada na
zona rural do Município de Itatuba – região agreste, próximo de Campina Grande e em média 120 KM da capital João Pessoa, Estado da Paraíba, anos depois, Maria Machado passa a morar em um bairro da zona
urbana da mesma cidade. Maria Machado não é mais viva, mas deixou
seu legado singular e sobretudo sua devoção entre o sagrado e profano,
tornando um passado vivo.
O estudo etnográfico objetiva identificar a “Festa de Maria Machado” sendo de caráter à uma manifestação popular na constituição da
identidade cultural e religiosa do município e região, do campo para a cidade, reconhecer e valorizar a festa como potencial de desenvolvimento
Mestrando em Antropologia Social (PPGA), membro do grupo Interdisciplinar de Pesquisa
em Cultura, Sociedade e Ambiente todos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/7215509323122028, givaniltonbarbosa10@gmail.com.
1
653
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
do patrimônio cultural local. Ao aprofundar o estudo vinculado ao tema,
espera incentivar o contato dialógico com essa realidade sociocultural, introduzindo os métodos e técnicas de abordagem à pesquisa antropológica.
O percurso metodológico segue a continuidade de breves apontamentos de trabalho de campo seguindo do exercício dialógico coordenado para exercitar métodos e técnicas de pesquisa antropológica
(MALINOWSKI, 1986, p. 156-157; DURKHEIM, 1996, p. 166; VELSEN,
1987, p. 355; NADEL, 1987, p. 56 e 62), elaboração de dados empíricos,
registros fotográficos e sistematização dos dados coletados, sobretudo,
relacionar o objeto de estudo com perspectivas epistemológicas para
pensar, refletir e compreender à luz de conceitos na qual abordam a religião como sistema cultural (GEERTZ, 1989, p. 101).
A “Festa de Maria Machado” possui especificidade própria caracterizada na devoção ao São Sebastião, Rural/Urbano, Sagrado/Profano
e consequentemente possuidora de uma dualidade. É uma etnografia.
Olhar investigativo numa religiosidade popular na qual direcionada para
seu modo de fazer, está vinculada a uma sabedoria individual atrelado
ao sentimento de coletividade de indivíduos.
As contribuições antropológicas se dão no reconhecimento empírico e na produção desse saber relacionando-o com a ciência antropológica de modo geral, um estudo antropológico, tendo em vista que não
há um estudo minucioso e nem se quer registros e documentos sobre a
festa popular de cunho católico.
Quanto ao objeto de estudo do antropólogo ou o objeto da Antropologia Social quer historicamente quer quanto a orientação total de
seu enfoque relaciona-se à compreensão dos povos nativos, das culturas que criaram e dos sistemas sociais nos quais vivem e agem (NADEL,
1987, p. 49). Nadel afirma também que o antropólogo será diferenciado
pelo papel ocupacional que tem de desempenhar por ser um observador científico, sempre curioso e fazendo perguntas. “penso que esta é
a condição do trabalho antropológico e é esta condição que devemos
justificar e explicar para as pessoas as quais estamos trabalhando, o
antropólogo deve tentar se aceito enquanto desempenha o papel de antropólogo (1987, p. 56).
Todavia, está relacionada intrinsecamente ao sincretismo católico em devoção a são Sebastião, isto é, um fenômeno de religiosidade
654
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
popular está caracterizado sobretudo na ideia de catolicismo plural, dos
movimentos do catolicismo voltado para o que algo que se renova, tendo vista a tradição para algo pulsante que se renova, tornando-se tradição viva no processo de espetacularização desta cultura.
Além do mais, é um patrimônio imaterial, como elemento nordestino que está previsto no artigo 216 da constituição de 1988 que caracteriza dentro da imaterialidade as festas populares. Outro marco institucional se dá com o Decreto 3551/2000 que prevê a preservação do
modo de fazer, neste sentido, é importante que os agentes reconheçam
esse pertencimento.
Ao estudar esta manifestação popular religiosa de fé católica,
espera-se o fortalecimento, reconhecimento e valorização de uma expressiva força de representatividade cultural e simbólica e em outras
instituições, assim, forma pela qual de manutenção da sociabilidade
festiva e da religiosidade popular local fazendo com que novas gerações
possam ter acesso e conhecimento da trajetória de Maria Machado e
seu legado. Maria Machado saia de casa em casa pedindo mantimentos
e auxílio financeiro aos amigos da cidade e região em cidades vizinhas
para fazer a homenagem ao “São Sebastião”. A festa continua sendo
cultuada na zona urbana, foi construída uma capela que era o sonho de
Maria Machado para a continuidade da homenagem ao “São Sebastião”.
Atualmente continuam os mesmos rituais comemorativos, a solicitação da colaboração de setores públicos e apoio da comunidade.
A festa como um todo, há a parte lúdica com parque infantil, barracas de
comidas típicas e as comemorações religiosas ao santo, agora em nome
de “Maria Machado”. De acordo com os recursos financeiros disponibilizados pode possibilitar a contratação de grupos atrações musicais, há a
permanência anualmente da participação de uma banda de pífaros para
os cortejos e oferendas com apoio popular.
Por fim, a etnografia tendo o princípio norteador a alteridade busca a oportunidade de formação e qualificação por meio desta etnografia
coadunando com a reflexão acadêmica, patrimônio cultural imaterial e
o contato com a cultura da religiosidade popular do interior da Paraíba. Maria Machado não é mais viva, mas deixou o seu legado de honra,
respeito, protagonismo, singularidade e sobretudo sua devoção ao São
Sebastião, tornando um passado vivo.
655
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A Gênese da Celebração
O estudo interpretativo da cultura representa um esforço para
aceitar a diversidade entre várias maneiras que seres humanos tem
de construir suas vidas no processo de vive-las (GEERTZ, 1997, p. 29).
Diante disso, ao indagar duas interlocutoras em roda de conversa sobre a origem da festa e da devoção que Maria Machado as iniciaram,
relatam que os primeiros preparativos se dão por volta do ano de 1970
quando morava na zona rural do município.
Em destarte, relataram que o fazer da festa era algo significativo
e enriquecedor para a vida de Maria Machado como também seu gosto
e apreço em organizar os festejos e oferendas ao santo em sua própria
residência, na frente de sua moradia ainda na zona rural instalava-se
um parque infantil, que ali, as crianças presente pudessem ser agraciadas, os adultos localizavam-se na “seresta”, um espaço destinado para
músicos apresentarem seu trabalho, de forma geral, o divertimento e
lazer para os visitantes.
Os primeiros preparativos sagrados em devoção ao “São Sebastião” iniciavam-se dentro de sua residência com as imagens do santo,
rezas, agradecimentos, ramalhetes de flores junto a imagem sacra.
A celebração realiza-se anualmente no mês de janeiro, os preparativos
iniciam no mês de agosto como o pedido de colaboração nas comunidades circunvizinhas como também ao setor público municipal. A festa
religiosa conta com a colaboração dos familiares, mas, sobretudo da
comunidade e vizinhança, amigos e amigas de longas datas que teve e
mantiveram o respeito a Maria Machado e sua devoção. Atualmente, a
celebração conta com apoio dos filhos e filhas dos que já colaboravam
desde a gênese da festa.
A “Festa de Maria Machado” não faz parte do calendário de festividades e datas comemorativas do município, não ocorrendo o reconhecimento da municipalização da tal celebração. Em vias de fato, por mais
que diversas gestões do município colaboravam com as comemorações
desde o início da festa, porém não ocorreu de forma efetiva aderência
significativa quanto ao repasse anual de recurso financeiro. Por mais
que a festa possui valor simbólico no local e região não houve uma espécie de apropriação absoluta de toda a população para com a representatividade religiosa popular, permanecendo uma festa da comunidade.
656
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
É uma festa da comunidade que tomou grandes proporções no
município e região. Possui força maior pelo respeito a religiosidade e
devoção ao santo, outra característica se dá em sua dualidade, antes,
Maria Machado fazia uma grande mobilização cultural com teor
fortemente religioso de forma pessoal em nome do São Sebastião.
No final dos anos 90, Maria Machado se mudara para a zona urbana,
uma localidade caracterizada como periférica na época, assim, dando
continuidade à celebração em sua residência conforme fazia anualmente.
Seu sonho era ter as devidas condições econômicas para construir
uma capela em nome de sua devoção ao São Sebastião, mobilizou toda
a comunidade e colaboradores para aderirem a oferta de material de
construção para a construção da capela, assim que conseguiu o material
de construção, construiu o templo no final do quintal de sua casa, anos
depois, a capela foi realocada para um terreno na mesma rua e bairro
que residia. Após o falecimento da coordenadora, a festa passa a ter
um duplo significado de honra e respeito à dedicação de Maria Machado
como também à sua devoção ao santo.
Na capela, passou a realizar-se missas, a igreja católica matriz da
cidade passou a dá suas contribuições dando essa legitimidade. No mês
de maio, ocorrem no turno da noite reuniões de rezas ao “terço” na qual
cada família convidada pode fazer doações a capela. Há missas ou pequenas comemorações em todo o curso do ano, não há um calendário
de comemorações da capela, quando há um voluntário a requerer tal
comemoração, ocorre a mobilização em toda comunidade.
A Festa de Maria Machado quando passou a ser realizada na zona
urbana, sem dúvida, tomou maior proporção, ficou mais repercutida na
cidade e região. Seu caráter simbólico com vista ao fortalecimento da
sua legitimidade na crença em uma religiosidade popular tanto na sagrada quanto profana. Quanto a profanidade, acontece a sociabilidade
através do consumo de bebidas, barracas de comidas típicas, atrações
musicais quando a gestão municipal colabora neste quesito. Há uma
banda de pífaros na qual está para seguir os pequenos cortejos da celebração como uma anunciação de uma representatividade imaginária e
simbólica como forma de homenagem.
Maria Machado com sua criatividade e mobilização através da
crença popular, fé e devoção ao São Sebastião desenvolveu no tempo
657
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e no espaço uma maneira de integração socia, na qual pode contemplar diversas gerações no âmbito do sagrado e do profano. O parque
infantil possibilita as crianças serem socializadas no cerne da celebração, adolescentes, adultos, homens e mulheres e sobretudo os idosos
a contemplarem a cultuar sua religiosidade festividade profana possibilitando a construção de novos laços socioculturais para celebrações do
presente e futuras.
A cultura não é meramente um sistema de convicções e práticas
formais. É essencialmente formada por reações individuais a um
padrão tradicionalmente determinado e por variações deste padrão; e, realmente, nenhuma cultura jamais poderá ser entendida
se atenção especial não for dedicada a esta variação de manifestações individuais (VELSEN, 1987, p. 355).
Antropologia da Religião
Ao levar em conta tipos de crenças que foram classificados buscando expressar suas afinidades e distinções naturais, Malinowski,
(1986, pp. 156-157), caracteriza em ideias sociais ou dogmas que são
as crenças incorporadas nas instituições, nos costumes, nas fórmulas
mágico-religiosas, nos rituais e nos mitos. Estão essencialmente relacionadas com e caracterizadas pelos elementos emocionais expressos
no comportamento.
Teologia ou interpretação dos dogmas: explicações ortodoxas consistindo nas explicações de especialistas; opiniões populares e gerais
formuladas pela maioria dos membros de uma comunidade e especulações individuais. De acordo com Malinowski (1986, p. 157) busca-se
demonstrar a dimensão bem como a profundidade social em termos
quantitativos e qualitativos em cada item de uma crença.
DURKHEIM (1996) em “As Formas Elementares da Vida Religiosa”
quanto ao totemismo, destaca que há a predominância existência da
crença no totem quando se leva em conta que há um ancestral em que
o indivíduo deposita sua fé e devoção. As crenças são de natureza manifestamente religiosa, já que implicam uma classificação das coisas
658
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
em sagradas e profanas, é inseparável da organização social (p. 165).
Durkheim infere que para Tylor e Wilken, o totemismo seria uma forma
particular do culto dos antepassados; a doutrina da transmigração das
almas, certamente muito difundida, é que teria servido de transição entre esses dois sistemas religiosos. (p.166).
“A Religião como um Sistema Cultural”
Ao estudar a religião como um sistema cultural, e além do mais
imbricada numa religiosidade popular para além do indivíduo e que está
intrinsecamente imbricada em dois contextos sociais distintos entre espaço rural e o urbano como se define a “festa de Maria Machado”, esta
etnografia é caracterizada sobretudo como um estudo antropológico na
qual tem está designando a presença da religião, fé e devoção atreladas
a um sistema cultural. Com base nos pressupostos epistemológicos que
busca definir a religião como sistema cultural Clifford Geertz (1989, p.
101), é tomado como ponto de partida para analisar, descrever densamente o fenômeno que apresenta o objeto de estudo para compreender
essa dimensão cultural religiosa.
De acordo com Geertz (1989, p. 103), os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo, o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos e sua visão
de mundo. Outra que, o autor aborda na crença e prática religiosa de um
grupo torna-se intelectualmente razoável porque demonstra representar um tipo de vida idealmente adaptado ao estado de coisas atual que
a visão de mundo descreve, enquanto essa visão de mundo torna-se
emocionalmente convincente por ser apresentada como bem arrumado
parra acomodar tal tipo de vida (p. 104).
O problema do significado em cada um dos seus aspectos de transição, de como os aspectos se fundem gradativamente, de fato, em
cada caso particular, que espécie de influência recíproca existe entre os
sentidos do analítico, do emocional e da impotência moral [...]. Por outro
lado, é justamente em termos de um simbolismo religioso, um simbolismo que relaciona a esfera de existência do homem a uma esfera mais
ampla dentro da qual se concebe que ele repouse, que tanto a afirmação
como a negação são feias (GEERTZ, 1989, p. 124).
659
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
No ponto de vista do autor, o mundo da vida cotidiana, sem dúvida
em si mesmo é um produto cultural, uma vez que é enquadrado em termos das concepções simbólicas do fato obstinado passado de geração a
geração, é a cena estabelecida e o objeto dado de nossas ações (p. 127).
Ao analisar o evento, sobretudo, na ótica da crença religiosa tem sido
apresentada, habitualmente, como uma característica homogênea de
um indivíduo, como seu local de residência, seu papel ocupacional, sua
posição de parentesco e assim por diante.
Por outro lado, Geertz (1989), trata a crença religiosa no meio do
ritual, situando a pessoa em sua totalidade e transportando-a no que lhe
concerne, para outro modo de existência e a crença religiosa é como um
pálido e relembrado reflexo dessa experiência na vida cotidiana não são
precisamente a mesma coisa, a falha na compreensão disso levou a alguma confusão, principalmente em relação ao problema da chamada mentalidade primitiva de uma “natureza do pensamento primitivo” (p. 136).
Ao situar a religião como estudo investigativo antropológico,
Geertz (1989, p. 140) destaca a importância da religião que está na capacidade de servir, tanto para um indivíduo como para um grupo, de um
lado, como fonte de concepções gerais, embora diferentes, do mundo,
de si próprio e das relações entre elas – seu modelo da atitude – e de
outro, das disposições mentais enraizadas, mas nem por isso menos
distintas – seu modelo para a atitude. A partir dessas funções culturais
fluem, por sua vez, as suas funções social e psicológica.
Para Geertz (1989, p. 144), a religião nunca é apenas metafísica.
Em todos os povos as formas, os veículos e os objetos de culto são rodeados por uma aura de profunda seriedade moral. Em todo lugar, o sagrado contém em si mesmo um sentido de obrigação intrínseca: ele não
apenas encoraja a devoção como exige; não apenas induz a aceitação
intelectual como reforça o compromisso emocional.
Considerações primeiras
O presente estudo buscou apresentar os resultados parciais de uma
etnografia em andamento, nesta visando evidenciar uma festa imbricada na religiosidade popular denominada de “Festa de Maria Machado”,
660
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
porventura, uma celebração religiosa intrínseca ao sagrado e profano
de oferendas e devoção a “São Sebastião”. Nesta etnografia, de modo
geral como resultados primeiros, ocupou-se em tratar a denominação
da festa vinculada a religiosidade popular do Nordeste, modo pela qual,
caracteriza-se em uma manifestação popular regional e de cultura local.
Neste primeiro momento, não obstante, ateve-se ao esforço para
selecionar referencial bibliográfico antropológico que pudesse dialogar
intrinsecamente com o objeto da etnografia, sobretudo, com a finalidade para com a reflexão acadêmica caracterizando-a como um patrimônio cultural imaterial pertencente ao Município de Itatuba, de modo
que, concomitantemente situa o contato com a cultura da religiosidade
popular do agreste da Paraíba.
Por fim, almeja-se a continuidade desta etnografia para além do
saber local, isto é, que os nativos possam externalizar sua identidade
local, ou seja, externalizar a identidade da festa. Como já foi dito, Maria
Machado não é mais viva, mas deixou o seu legado de honra, respeito,
protagonismo, singularidade e sobretudo sua devoção ao São Sebastião,
tornando um passado vivo imaterializado no saber local de um povo.
661
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BRASIL, Constituição Federal (Texto
promulgado em 05/10/1988). Art. 216.
______. Decreto Nº 3.551 de 04 de
agosto de 2000. Institui o registro de
Bens Culturais de natureza Imaterial
que constituem o Patrimônio Cultural
brasileiro, cria o Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial.
BASTOS, M. J. M. A Religiosidade
Camponesa na Alta Idade média
Ocidental. In: Oliveira, Terezinha.
(Org.). Antiguidade e Medievo: Olhares
Histórico-Filosóficos da Educação.
Maringá: Editora da Universidade
Estadual de Maringá, 2008, v. 1,
p. 121-149.
BARBOSA, G. A. Educação ambiental
crítica: experiência em escola de um
reassentamento de atingidos por
barragem na Paraíba. – João Pessoa,
2017. Monografia (Graduação em
Ciências Sociais) – Universidade
Federal da Paraíba – Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes.
BARTH, Fredrik. “A análise da cultura
nas sociedades complexas.” In, Barth,
Fredrik. O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas. Rio de
Janeiro. Contracapa Livraria. 2000.
Pp. 107-140.
CLIFFFORD, James. A experiência
etnográfica: antropologia e literatura
no século XX.
DURKHEIM, Émile. As formas
elementares da vida religiosa: o
662
sistema totêmico na a Austrália.
Tradução Paulo Neves. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
FRANCO, Mariana Ciavatta Pantoja.
Os milton: Cem anos de História
nos Seringais. Tese de doutorado.
Unicamp. Campinas, 2001.
GLUCKMAN, Max. “Análise de
uma Situação Social na Zululândia
moderna. 1987.
GEERTZ, C. A interpretação das
culturas. Rio de Janeiro. Editora LTC,
1989.
______. A Religião como
sistema cultural. In: GEERTZ, C. A
interpretação das culturas. Rio de
Janeiro. Editora LTC, 1989. (p. 101162).
______. “Ethos”, visão de mundo
e a análise de símbolos sagrados.
In: GEERTZ, C. A interpretação das
culturas. Rio de Janeiro. Editora LTC,
1989. (p. 101-162).
______. O saber local. Novos
ensaios em Antropologia
interpretativa. Tradução de vera
Mello Joscelyne. 9ª ed. Petrópolis, RJ,
Vozes, 1997.
MALINOWSKI, Bronislaw Kasper.
Argonautas do pacífico ocidental:
um relato do empreendimento
e da aventura dos nativos nos
arquipélagos da Nova Guinémelanésia. Prefácio de Sir james
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
George Frazer; Traduções Anton
P. Carr e Lígia Aparecida Cardieri
Mendonça; Revisão de Eunice Ribeiro
Durham. 2ª edição; São paulo: Abril
Cultural, 1978.
______. 1986 [1954]. “A coleta e a
interpretação dos dados empíricos”.
[de: Baloma, os espíritos dos mortos
nas Ilhas Trobriand). In E. R. DUHRAN
(comp.), Malinowski, Coleção grandes
Cientistas Sociais, SP., Ed. Ática,
pp. 143-158.
MARCUS, George. “Etnografía en/del
sistema mundo. El surgimiento de la
etnografía multilocal.” ALTERIDADES,
2001.
Patrimônio imaterial: disposições
constitucionais: normas correlatas:
bens imateriais registrados
/ Organização: Flávia Lima e
Alves. – Brasília: Senado Federal,
Subsecretaria de Edições
Técnicas, 2012. https://www2.
senado.leg.br/bdsf/bitstream/
handle/id/496320/000934175.
pdf?sequence=1
PEIRANO, Mariza. “Etnografia não é
método”. Horizontes antropológicos,
Porto Alegre, ano 20, nº 42, 2014.
377-391.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História.
Zahar, 1987. Cia das Letras, 1996.
Capítulos 4 e 5. 140- 194. (A inserção
dos europeus e suas tecnologias
modifica as estruturas dos nativos).
VELSEN, J. Van. A análise situacional
e o método de estudo de caso
detalhado. In Antropologia das
sociedades contemporâneas, São
Paulo: Global, 1987. (p. 345-373).
[ Volta ao Sumário ]
663
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
sexualidades não
noRmativas em Conflito
com a fé adventista –
disputas e peRmanênCias
na identidade
adventista lgBt:
um estudo de caso
Rafael Rodrigues Leite
Christina Gladys de mingareli Nogueira
Como referenciar este capítulo:
LEITE, Rafael Rodrigues; NOGUEIRA, Christina Gladys de Mingareli. Sexualidades não normativas em conflito com a fé adventista – disputas e permanências na identidade adventista LGBT: um estudo de caso. In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 657-673.
Rafael Rodrigues Leite1
Christina Gladys de Mingareli Nogueira2
1. Introdução
É lugar comum reconhecermos a relevância que a religião tem em
nossas sociedades. Durkheim, por exemplo, concebe a religião como um
fato social total, o motor da sociedade, o que faz a sociedade se agregar,
efervescer e, inclusive, passar por mudanças (DURKHEIM, 1996). Mais
contemporaneamente, o debate sobre sexualidade vem sendo exposto e trabalhado de maneira muito profunda. O movimento feminista e
a emergência da chamada Teoria Queer (MISKOLCI, 2007), é exemplo
disso. Os estudos queer ainda hoje são referência para dialogar com políticas da diversidade. (PEREIRA, 2012).
Colocando-se na observação e descrição do Habitus Clivado
(BOURDIEU, 2009) de sujeitos que estão em ambos os pontos do campo em disputa: é religioso, nesse caso é cristão Adventista, e é LGBT;
qual seria o espaço de uma subjetividade tão marcada pela sexualidade
a ponto de se desviar do ideal de sagrado do cristianismo (CAVALCANTI,
2017), e tão religioso a ponto de se desviar, talvez, do ideal de empoderamento (TAQUES, 2006) da militância LGBT? Qual o lugar do Adventista
LGBT? Como se colocar enquanto LGBT e ter sua sexualidade respeitada
dentro da igreja? Como se colocar enquanto Adventista e ter sua fé respeitada dentro de círculos LGBTs?
O presente trabalho consistiu em procurar compreender as motivações, aspirações, significações, cotidiano, ansiedades, etc, dessas
pessoas, na procura em analisar qual o espaço, ou o não-lugar, desses
sujeitos no mundo. Nesse sentido, compreender como o adventista lgbt
se relaciona com as questões de sexualidade e de fé.
Graduando em Ciências Sociais pela UFPE. Membro do OCRE, pesquisador associado do IEASIA e membro editorial da Revista Idealogando. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/7466953166954643.
2
Mestra em Antropologia e professora substituta da UFPE. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/1278375635746927.
1
665
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
A Igreja Adventista do Sétimo Dia é uma denominação cristã protestante, restauracionista, trinitariana, sabatista, não-cessacionista,
mortalista e aniquilacionista, que se distingue pela observância do sábado como dia do Senhor, o sétimo dia da semana judaico-cristã (sabbath) e por sua ênfase na iminente segunda vinda de Jesus Cristo. Também é conhecida por sua ênfase na alimentação salutar e na mensagem
de saúde, por sua compreensão indivisível entre corpo, mente e alma,
pela promoção dos princípios morais e pelo estilo de vida conservador4.
Em maio de 2007, os adventistas eram o décimo segundo maior
corpo religioso do mundo e o sexto maior movimento religioso internacional. Também é a oitava maior organização internacional de cristãos do planeta. No mundo, são regidos por uma Conferência Geral, com
pequenas regiões administradas por divisões, uniões, associações e
missões locais. Possui atualmente mais de 21 milhões de membros, no
Brasil existem cerca de 1,6 milhões de membros4.
As doutrinas da IASD são divididas em 28, segundo o site oficial
da igreja5. A posição oficial da Igreja Adventista do Sétimo dia quanto à
homossexualidade6, está ancorada em sua 23º doutrina, sobre o “Matrimônio e família”, como mostra o fragmento:
[...] ”Os Adventistas do Sétimo Dia acreditam que a intimidade sexual é apropriada unicamente no relacionamento conjugal entre um
homem e uma mulher. Este foi o desígnio estabelecido por Deus na
Criação. As Escrituras declaram: “Por essa razão, o homem deixará
pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne”
(Gn 2:24, NVI). Por todas as Escrituras, este padrão heterossexual é
afirmado. Atos sexuais fora do círculo do casamento heterossexual
são proibidos (Lv 18:5-23, 26; Lv 20:7-21; Rm 1:24-27; 1Co 6:911). Jesus Cristo reafirmou a intenção da criação divina: “Vocês não
leram que, no princípio, o Criador ‘os fez homem e mulher’ e disse:
‘Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher,
e os dois se tornarão uma só carne?’ Assim, eles já não são dois,
mas sim uma só carne” (Mt 19:4-6, NVI). Por essas razões, os Adventistas do Sétimo Dia são opostos às práticas e relacionamentos
homossexuais”6.
Os Pequenos Grupos são visto como a célula central da IASD, resultado do evangelismo e motor da igreja. No site oficial da IASD7, diz que
666
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
“O Pequeno Grupo é um grupo de pessoas que se reúne semanalmente sob a coordenação de um líder visando o crescimento espiritual, relacional e evangelístico, objetivando sua multiplicação. [...]
Sugerimos a formação e desenvolvimento do Pequeno Grupo como
a estrutura que proporcionará: atendimento pastoral, comunidade
relacional e mobilização dos membros para o cumprimento da missão em todo o território da DSA” 7.
Fundada em 1991, A SDA Kinship (Seventh-day Adventist Kinship
International) é uma organização de apoio que fornece uma comunidade
espiritual e social aos atuais e ex-adventistas do sétimo dia que são
lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, assexuais e / ou intersexuais
(LGBTI), e se sentiram/sentem feridos ou rejeitados por causa de sua
orientação sexual e/ou identidade de gênero. A SDA Kinship oferece-lhes
a compaixão e o apoio que se percebe não estarem disponíveis dentro
da Igreja Adventista organizada 8.
No site oficial em inglês da SDA Kinship8, diz que a missão da organização é “fornecer uma comunidade e defender os direitos das pessoas
LGBTIQ com uma conexão Adventista do Sétimo Dia, incluindo suas famílias e aqueles que as apoiam”.9
2. Percurso metodológico
Trata-se de um estudo exploratório baseado em uma pesquisa
de campo de um estudo de caso etnográfico de abordagem qualitativa.
Para tal, utilizamos técnicas de observação participante e de entrevista
semiestruturada.
A pesquisa qualitativa, segundo MINAYO (2008) “trabalha com o
universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos
valores e das atitudes” (p. 21). O método etnográfico foi desenvolvido
nos moldes científicos na década de 1920, por Bronislaw Malinowski, um dos fundadores da antropologia moderna (LAPLATINE, 2003).
Baseamo-nos no conceito de GEERTZ (1989), nesse caso, a “descrição
densa” de Geertz, que nos ajuda a pensar a etnografia antropológica derivada da observação de campo na igreja e no PG do nosso informante,
667
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
mediante a observação participante (BEAUD & WEBER, 2014), a etnografia (ANBROSINO, 2009) e a entrevista semiestruturada (BAUER &
GASKELL, 2002).
Os dados foram analisados mediante Análise de Conteúdo (aliada
à algumas técnicas de Análise de Discurso), por meio da Triangulação,
que compreende três aspectos: o primeiro aspecto se refere às informações concretas levantadas com a pesquisa, quais sejam, os dados empíricos, as narrativas dos entrevistados; o segundo aspecto compreende
o diálogo com os autores que estudam a temática em questão; e o terceiro aspecto se refere à análise de conjuntura, entendendo conjuntura
como o contexto mais amplo e mais abstrato da realidade, articulando
os três aspectos da triangulação.(MARCONDES & BRISOLA, 2014).
A pesquisa foi realizada na cidade do Recife-PE, onde as observações foram feitas em IASDs no entorno. É importante ressaltar aqui que
a pesquisa foi feita em meio ao turbulento ano de 2018, entre a eleição
de Jair Messias Bolsonaro (PSL). Para a pesquisa, fiz uma entrevista presencial com meu informante privilegiado, Gustavo (com quem realizei
observações participantes no PG que ele coordena e fui a um batismo
de sua amiga).
3. Resultados e discussão
3.1 Caminhada religiosa
Gustavo nasceu em um lar laico e aos 11 anos começa a se interessar por questões derivadas da religião. Nessas andanças, se batizou
na IASD aos 16 anos e teve embates de sexualidade e fé mais acentuados aos 19 anos, o que fez com que ele saísse da IASD por um ano.
Nesse meio tempo, mergulhou nos movimentos sociais, mas o excesso
de imposição e a falta de pedagogia o fizeram retornar para a IASD:
“foi um ano em que eu ((Incomp)), eu vivia pra militar (risos). E aí,
é, eu percebi como era engraçado que as pessoas que mais diziam buscar assim, melhorias sociais e tudo o mais, são mais bem
egoístas do que o discurso, sabe?! [...] Acho que a gente tem que
caminhar, tem que ter um norte, pra saber pra onde caminhar. Mas
eu não ouso pensar que aquilo vai ser plenamente plausível, que
668
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
a gente vai ter um mundo de mãos dadas, e todos vão ser felizes,
sabe?! E aí, tipo, a noção de eu precisar de salvação, de redenção, se
tornou muito evidente sabe... O ser humano e muito ruim, a gente
é muito ruim... Enfim, isso tudo. [...] Me fizeram sentir necessidade
de um salvador e ver ((Incomp)) um salvador” (Informação verbal) 3
Um traço muito presente na vida de Gustavo são suas questões
existenciais e sua busca pela religião. Na entrevista semiestruturada, do
dia 14 de novembro de 2018, Gustavo disse:
“Fui passando de igreja em igreja, estudando cada uma, inclusive entendendo como eles usavam a bíblia ou o livro sagrado que
acreditassem para defender suas doutrinas e com base em quê os
que não eram daquela religião, é, o que utilizavam, especialmente a bíblia, para discordar daquelas doutrinas. Nesse processo eu
passei por alguns lugares, muitas igrejas, muitas religiões” (Informação verbal) 3
É visível o quanto que Gustavo tem um espírito espiritualista questionador quanto à religião. Algo que está muito ligado com o advento
da chamada “pós-modernidade”. BRANDÃO (2016) nos diz que: “Com o
advento da pós-modernidade, a religião sofre significativas transformações, os indivíduos pós-modernos se relacionam com a religião e exercem sua religiosidade de forma renovada” (p. 58).
Com a pós-modernidade e seu processo de secularização, a religião não se encerra, todavia, ganha novas formas e contornos, novos
sabores, numa dinâmica que, ao mesmo tempo que se esgota, se dilui,
renasce, ressurge e se difunde (HERVIEU LÉGER, 1993, p. 36) (BRANDÃO, 2016, p. 67). Deste modo, podemos observar que essa ânsia do
nosso interlocutor Gustavo se assemelha, em algum grau, com a condição pós-moderna da qual os autores nos falam. Sua vida está imersa
nessa visão de religião mais como “um instrumento de descoberta da
vida e de Deus” que um “fim”, fazendo com que ocorram trânsitos religiosos e que ele não mais se sinta obrigado a frequentar igrejas para ter
contato com Deus.
EP: “Quando eu era mais novo, tipo uma criança de 12 anos, saia por
aí pegando ônibus e indo pra tudo o que é igreja, em qualquer lugar.
669
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Aí eles (os pais) ficavam com medo, primeiro por eu ser uma criança
na época, segundo porque eles não acham normal essa insaciedade, sabe? Só que eis a questão: eu não busco uma religião, assim, eu
não busco um clero” [...]
E: “Você não acata o pacote da religião em tudo...”
EP: “É. Eu acho que a religião é muito um instrumento de descoberta da vida e de Deus. E não um ‘fim’, sabe?! O ‘fim’ da minha busca
teológica não é seguir uma religião e achar que ela é plenamente
verdadeira. Eu acho que ninguém consegue abranger totalmente a
plena verdade” [...] (Informação verbal) 3
As verdades absolutas existem, porém não são tangíveis por nós
humanos. Essa visão traz uma “decorrência ética” em Gustavo, aliada à
um “propósito”:
“É muito mais uma decorrência (abc) ética comigo mesmo, sabe, porque eu acredito que esse é meu propósito aqui. Então eu tenho muito
medo de assumir posturas erradas que machuquem as pessoas...
Então isso sempre me leva a repensar as posições que eu tomo...
Filosoficamente, teologicamente... Pra poder, a partir dessas posições, conseguir cumprir o que acredito que é um papel que eu deveria
exercer. E aí por isso que eu gosto muito dessa pluralidade da teologia, da filosofia Eu acho que, se permitir encontrar essa pluralidade é
uma maneira muito boa tanto de conhecer mais de Deus como de se
tornar um ser humano melhor. Porque por mais que eu acredite que
existe uma verdade absoluta, eu não acredito que essa verdade absoluta é totalmente tangível por nós humanos”. (Informação verbal) 3
Mediante um agregado de capital cultural (BOURDIEU, 2009), sem
dúvidas sua relação com a religião se torna mais holística e menos rígida. Apesar desse caminhar fluido por igrejas, Gustavo se identifica muito mais com o cristianismo de base protestante e diz que “o cristianismo
pra mim ele responde plenamente tudo o que, todos os anseios, sabe, e
eu não me vejo fora disso”.
3.2 Pequeno Grupo e Movimento Social
Outro aspecto importante para Gustavo é a arena política. Gustavo participa do movimento estudantil de seu curso, o que levantou
670
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
questionamentos meus quanto à efetiva consequência desse fato para
sua visão de religião:
“Ah, com certeza. Eu acho que todo empoderamento, essa tomada
de consciência política, faz a gente enxergar muito claramente algumas coisas. [...] eu tenho essa consciência de que ninguém parte
para ler a bíblia de maneira neutra. [...] A gente tem uma construção,
sabe?! A gente identifica muito mais o que é opressão e essas coisas que a bíblia fala que a gente tem que se engajar. Então eu acho
que tudo, esse processo todo, ajuda sim”. (Informação verbal) 3
O Pequeno Grupo (PG) em sua casa começou em 2013. No total,
com os três anos da primeira vez e um ano agora, foram quatro anos
coordenando esse PG em sua casa. Analisamos o modo com que ele
fala sobre o PG e o liga com os movimentos sociais em que participa na
universidade, falando, inclusive, sobre a saudade que irá ter do PG agora
que pretende sair da IASD: “Enfim é muito massa, eu vou sentir muita
falta sabe...” (Informação verbal) 3.
No primeiro ponto desta análise, falamos sobre como que o “conceito de redenção” e o “conceito de queda” foram vistos por Gustavo
no ano em que passou fora da IASD e ‘mergulhado’ nos movimentos
sociais. Gustavo volta para a igreja, sem se desvincular totalmente dos
movimentos sociais, por ele ter vivido uma experiência em que viu a necessidade de Deus na humanidade, pelo ‘egoísmo’ de alguns militantes.
Dentro da IASD novamente, ele volta a coordenar o PG em sua casa e se
esforça para fazer algo dentro do mesmo de modo ativo:
“E eu me esforço para fazer algo de qualidade pras pessoas puderem abrir, ver (abc) outras perspectivas, ver o que é o cristianismo
e não seguir as coisas somente no automático. E pra elas não é um
problema, sabe. Tipo, elas podem ter ((Imcomp)) de pecado e tudo o
mais, mas isso em momento algum faz elas me verem como menos
cristão ou algo do tipo. As pessoas geralmente da igreja, todas as
((Incomp)) que eu tenho de pessoas lgbts são ((Incomp)) que saíram
da igreja. Se distanciaram. E eu sou a pessoa que fica lá... ((Incomp))
E eu era a pessoa que dava aula... Então as pessoas ficam assim:
“po, como é que o menino dá aula, sabe tanto, e diz que não é errado?”, sabe... “O que é que... Será que existe essa possibilidade?”.
671
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Eu acho que eles não chegam nem a estudar, mas eu acho que fica
aquela pulga atrás da orelha sabe... E tipo, eu acho que é bom esse
incômodo que se causam neles, sabe...” (Informação verbal) 3
Quando pergunto se ele vê o PG como um espaço de abertura para
novas questões e de mudanças, a longo prazo, da própria estrutura da
IASD, ele diz que também acha, porém o seu PG escolheu não seguir o
‘caderninho de estudos’ dos PGs que a igreja oferece, porque ele acha
que “a igreja não dá o alimento sólido para as pessoas refletirem teologia”. (Informação verbal) 3. Além disso, Gustavo é cauteloso com essa
perspectiva “revolucionária” dos PGs quanto à IASD e individualiza a experiência do seu PG, se atentando para as condições sociais, e de capital
cultural (BOURDIEU, 2009) de favorecimento das pessoas participantes:
“É um grupo de jovens, de classe média, que teve estudo, então é
muito mais fácil trabalhar esses assuntos, sabe? Por isso que eu
acho que é um ambiente muito selecionado, elitizado, no sentido em
que são pessoas que têm maior oportunidade de atingir esse... de
ter acesso à isso, de ter essa crítica. Não sei se é algo que é fácil de
se conseguir em outros lugares, sabe? E acho que isso é... um ponto
bem...uma dificuldade desse trabalho todo”. (Informação verbal) 3
O caráter ‘revolucionário’ dos PGs da IASD deve ser questionado,
portanto. A visão que tive tem mais que ver com a configuração do PG
de Gustavo do que com uma generalização dos PGs da Igreja Adventista
do Sétimo dia.
Acredito que é preciso mais estudos sobre o caráter que os PG
realizam dentro da IASD, para que essa questão seja melhor analisada.
Visto não se configurar como objetivo para esse estudo, paramos por
esse indicador aqui.
Questionado, em outro momento, sobre a frase de alguns grupos
de movimentos lgbts de que “ser gay e cristão é como ser judeu e nazista”, Gustavo discorda e argumenta que o problema não é o instrumento
em si, mas o uso que se faz das coisas, desessencializando a religião de
uma perspectiva conservadora, por exemplo:
“Assim como o fundamentalismo religioso pode ser bem ruim, acho
que todo extremismo e toda generalização tende a ser bem doentia.
672
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
[...] Primeiro, quando eles fazem isso, eles não estão sendo o porto
seguro que eles se propõem ser para os lgbts, eles estão apenas
fazendo a fogueira dos lgbts que são religiosos. Eles mesmo estão
sendo contraditórios no que eles se propõem... E eu acho que a gente tem que abrir os olhos pra própria realidade... o modo com que
a sociedade se configura. Primeiro que muitas coisas são usadas
para o mal, e nem por isso a gente culpabiliza isso, por exemplo, o
comunismo matou MUITO mais que o nazismo, e a galera usa muito
isso pra criticar o comunismo. A gente, na história do cristianismo,
tiveram pessoas que usaram a religião pra libertar e pra dominar, e
é uma disputa”. (Informação verbal) 3
Essa visão do não-lugar do cristão lgbt dentro dos círculos militante é muito trabalhada por Murilo Araújo (2014), militante católico
e lgbt que combate tanto a discriminação LGBT dentro dos círculos
cristãos, quanto a discriminação cristã dentro dos círculos LGBTs. Essa
entrevista nos mostra que essa questão é muito urgente e real: é preciso mais pesquisas sobre essa dupla discriminação na academia: não
só da discriminação religiosa com referência à cristãos LGBTs, mas
também da discriminação cristã com referência à cristãos LGBTs dentro dos círculos ativistas.
3.3 SDA Kinship e a relação sexualidade e fé dentro da IASD
Visto o caráter muito esclarecido de Gustavo sobre assuntos teológicos, é interessante ver como que a discriminação LGBT dentro da
IASD o fez saltar para os estudos teológicos e filosóficos ainda mais
do que o interesse que tinha por ‘natureza’. A relativa acolhida familiar
(laica, onde a mãe não questiona, o pai ainda não sabe e a irmã católica é homofóbica afeita ao celibato) – digo relativa pois Gustavo nos
confidenciou que não sabe como será se aparecer com um namorado
em casa –, e o possível ambiente científico de uma família com ensino superior, mobilizou um capital cultural (BOURDIEU, 2009) que talvez
tenha ajudado Gustavo nessa busca por alternativas à visão tradicional
conservadora da perspectiva teológica do adventismo e do cristianismo,
consequentemente. Hoje,
“faço uma reflexão não só sobre esse assunto de sexualidade, mas no
modo com que as pessoas realizam missão dentro do cristianismo,
673
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
no modo como as pessoas veem a organização social, justiça social,
essas coisas todas”. (Informação verbal) 3
Podemos analisar essa questão sobre o ponto de vista do conceito de Habitus Clivado de BOURDIEU (2009). Utilizo aqui esse conceito
para qualificar essa tensão entre a identidade LGBT e a identidade Cristã
Adventista. Para o autor, “O habitus funcionaria como uma espécie de
gramática cultural para a ação, profundamente estruturada” (MANGI,
2012, p. 5), através de práticas e noções de ser, estar, sentir e fazer.
Quando este se apresenta incoerente ou complexo, é o que Bourdieu
chama de “clivado”: “Pode se apresentar ‘clivado’, ostentando a ‘marca
das contradições que o produziram’ (Bourdieu, 2001)” (MANGI, 2012,
p. 10). Nesse sentido, concebemos a identidade adventista e lgbt como
um Habitus Clivado.
É interessante observar essa questão subjacente ao discurso à luz
da Teologia Queer. Essa sensação de angústia que Gustavo sente é resultado de uma construção histórica própria da Teologia cristã ocidental,
que historicamente tem assimetria com questões LGBTs e invisibiliza a
espiritualidade para estas pessoas. Segundo CAVALCANTI (2017),
“A construção cultural-histórica-religiosa foi fundamental ao desenvolvimento da sacralização dos corpos e à institucionalização
do modelo de família advindo das tradições judaico-cristã heteronormativas, eurocêntricas e androcêntricas. Esse formato binário
representado pela masculinidade atribuída a Deus como “pai” é a
metáfora que está intimamente ligada com o desenvolvimento de
uma estrutura eclesiástica centrada no homem, neste caso no pater
famílias, seguindo, desta forma a estrutura social, política e econômica do oikos (casa) greco-romano dos primeiros séculos da Era
Cristã e é de posse dessa projeção que a não heterossexualidade
pós-moderna se torna o pecado (mal) principal do homem e fruto de
perseguição religiosa em pleno século XXI”. (p. 743-4).
Podemos ver que a perspectiva da Teologia Queer se coloca como
uma nova forma de olhar a relação sexualidade e religiosidade numa
perspectiva cristã. Gustavo chegou a essa noção através de andanças
permeadas de angústias e estudos teológicos depois de seu percurso
de angústias e náuseas.
674
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Gustavo se denomina Bissexual. Em sua família, só seu pai ainda
não sabe. Na minha observação participante na cerimônia de batismo
(28/09) da amiga de Gustavo, soube que ela tinha recebido estudo bíblico dele e que ele lhe contou, e para sua mãe, que também se batizou no
dia, sobre sua bissexualidade.
É muito visível aqui o quanto que o protestantismo faz o coração
de Gustavo palpitar. Quando perguntado sobre a SDA Kinship, Gustavo
não parece muito entusiasmado. Ele não se sente parte do movimento
e ainda não reconhece a organização como um espaço de acolhimento
aqui no Brasil (diz que pode funcionar bem nos EUA e promover reflexões nas lideranças da igreja de lá) por não se configurar um ambiente
rigidamente LGBT e Adventista, mas sim mais LGBT que adventista:
“Eu não acho que o Kinship tem um potencial muito bom de trabalho dentro da igreja. Porque a maior parte das pessoas não são
da igreja. E as pessoas lgbts adventistas vivem numa dualidade e
elas querem manter isso muito coeso, sabe... E quando a alternativa seria uma instituição adventista e lgbt é muito mais lgbt que
adventista, eles já têm um pouco receio com lgbts, mesmo que eles
mesmos sejam, por tudo que eles passam... Acho que tem pouca
perspectiva de trabalho. Eu acho que teria que... ou então... Eu acho
que, é, pelo menos aqui no Brasil, teria que assumir uma postura,
pelo menos que tenha uma ramificação, não uma ramificação, mas
alguma uma área de trabalho dentro da instituição que conseguisse
conciliar, sabe, isso. Muitas das pessoas tenham contato para que
elas mantenham a vida delas, e não que elas achem que por serem
lgbts, elas terem que deixar de ser adventistas do local do Kinship”.
(Informação verbal) 3
Quando perguntado se ele acha que a IASD aqui no Brasil estaria
aberta para essa articulação, Gustavo diz que não: “Acho que teria (que
ser) algo marginal mesmo, sabe. E de resistência”. (Informação verbal)3.
Mais uma vez é interessante o quanto que a noção de “disputa” e de
“resistência” perpassa toda a fala de Gustavo. Para ele, o adventista lgbt
tem um espaço, necessariamente, marginal.
675
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
4. Considerações finais
O presente trabalho consistiu em compreender como o adventista
lgbt se relaciona com as questões de sexualidade e de fé, mediante, 1º,
a compreensão do ethos do adventista lgbt, 2º, a observação da relevância da relação entre ser lgbt, ser militante lgbt e adventista. Consideramos, assim, estar contribuindo para os debates acerca da relação
entre sexualidade e fé. A pesquisa se realizou a partir de um estudo de
caso de um adventista Bissexual na cidade do Recife (PE). É importante
destacar os limites da referente pesquisa, por se tratar de um estudo
de caso e nosso informante ser branco, de classe média/alta e homem
bissexual. Além do presente pesquisador também possuir marcadores
sociais que informam e guiam o olhar. Nossas conclusões são localizadas e referem-se a um lugar de fala, portanto.
Foi possível analisar o quanto que as condições familiares e de
acesso à informação e à capital cultural (BOURDIEU, 2009) podem ter
atenuado as experiências traumáticas na vida de Gustavo quanto a
esse embate sexualidade/religião. Aspectos da relação da religião na
pós-modernidade (BRANDÃO, 2016), também puderam ser acionados
para análise dessa relação tão flácida e rica que Gustavo tem com o fenômeno religioso, muito embora o caráter protestante de nosso informante se mantenha fiel em todo projeto futuro que ele planeje. A experiência da amiga batizada do nosso interlocutor também tem que ver
com essa questão: embora batizada na IASD, ela não gosta de frequentar a igreja de Gustavo por não se sentir confortável com os sermões e
comentários lgbtfóbicos da mesma – uma vez que tem opinião diversa
da IASD sobre questões relacionadas às sexualidades não normativas.
O aspecto do acesso à capital cultural (BOURDIEU, 2009) talvez, neste
caso, tenha impacto direto sobre a experiência “pós-modernizante” que
ela tem com a religião neste aspecto: embora discordando deste ponto,
ela aceita ser membro da denominação religiosa.
É importante deixar aqui indícios para posteriores pesquisas. Um
indício que gostaríamos de colocar aqui seria o de analisar o quanto que
as variáveis ‘vivência pós-moderna da religião’ e ‘ter acesso à capital
cultural’ são dependentes entre si. As duas variáveis apareceram nesta
676
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
pesquisa, porém não ficou muito claro se são necessariamente correlatas, funcionando como causa e efeito em algum grau, ou se são circunstanciais. Deixo esta questão em aberto para futuras pesquisas.
Outra questão não trabalhada por essa pesquisa, por não ser do
escopo da mesma, foi a dimensão das significações do ritual de iniciação da IASD, materializadas no momento Batismal (que observei com
referência à amiga de Gustavo). Apesar de ser algo importante, e que
poderia nos trazer algumas chaves de interpretação, não tratamos a
respeito, pois não era este o objetivo da presente pesquisa. Em outro
momento, em futuras pesquisas, é interessante tratar este aspecto.
A experiência que nosso interlocutor tem com a esquerda e os movimentos sociais, claro, também fazem parte e são articuladas nessa
experiência religiosa do mesmo. Segundo nossas análises, é possível
dizer que para além dos PGs serem vistos como o motor da enfervescência religiosa (DURKHEIM, 1996), eles também são vividos por Gustavo como um espaço político, onde a tentativa de política ‘sem egoísmo’
se faz presente, já que a religião é esse espaço de constantes disputas
se concebermos a mesma como um “Campo” no sentido Bourdiesiano
(BOURDIEU, 2003). É interessante observar que Gustavo parece estar
sempre se diferenciando da visão ‘egoísta’ que sua fase mergulhada
nos movimentos sociais o fizeram experimentar, fazendo com que ele
procure efetivar no PG uma espécie de política que não reproduza estes
percalços e relações.
Apesar da SDA Kinship existir, ainda não se mostra eficaz no Brasil
por uma série de questões levantadas nesse estudo: o seu caráter mais
LGBT que adventista, é um ponto. Nosso informante, no ápice do seu
Habitus Clivado (MANGI 2012), não se sente parte desta organização.
É só através dos seus estudos que consegue articular sexualidade e religião de uma maneira muito próxima à Teologia Queer (CAVALCANTI,
2017), só que sob outros caminhos. Se nosso informante não tivesse
acesso à capital cultural (BOURDIEU, 2009), o que seria de sua vivência
Adventista LGBT?
Acreditamos que a pesquisa se mostrou algo inicial para dialogar
e poder perguntar: afinal, quem ora pelo Adventista LGBT? Quem luta
pelo LGBT Adventista?
677
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Notas
ENTREVISTA concedida por Gustavo. Entrevista I. [nov. 2018]. Entrevistador: Rafael Rodrigues Leite. Recife, 2018. 1 arquivo .mp3 (65 min.).
3
WIKIPÉDIA. Igreja Adventista do Sétimo Dia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/
Igreja_Adventista_do_S%C3%A9timo_Dia. Acessado em: 01 de dezembro de 2018.
4
ADVENTISTAS. Crenças. Disponível em: https://www.adventistas.org/pt/institucional/
crencas/. Acessado em: 01 de dezembro de 2018.
5
ADVENTISTAS. Os adventistas e a homossexualidade. Disponível em: https://www.adventistas.org/pt/institucional/organizacao/declaracoes-e-documentos-oficiais/a-igreja-adventista-e-o-homossexualidade/. Acessado em: 01 de dezembro de 2018.
6
ADVENTISTAS. Pequenos Grupos. Disponível em: https://www.adventistas.org/pt/ministeriopessoal/projeto/pequenos-grupos/. Acessado em: 01 de dezembro de 2018.
7
WIKIPÉDIA. Seventh Day Adventist Kinshup International. Disponível em: https://
en.wikipedia.org/wiki/Seventh-day_Adventist_Kinship_International. Acessado em: -1
de dezembro de 2018.
8
SDA KINSHIP. Nossa missão. Disponível em: https://www.sdakinship.org/pt/mission.
Acessado em: 01 de dezembro de 2018.
9
678
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ANGROSINO, Michael. Etnografia e
observação participante. (Coleção
Pesquisa Qualitativa). Porto Alegre:
Artmed, 2009.
ARAÚJO, Murilo, S. “O amor de cristo
nos uniu”: Construções identitárias e
mudança social em narrativas de vida
de gays cristãos do grupo diversidade
católica. Dissertação apresentada
à Universidade Federal de Viçosa.
Orientação de Maria Carmen Aires
Gomes. Minas Gerais, 2014.
BAUER, Martin W. & GASKELL,
George (org.). Pesquisa qualitativa
com texto, imagem e som. 3ª edição.
Petrópolis: Vozes, 2002.
BEAUD, Stéphane & WEBER,
Florence. Guia para a pesquisa de
campo: produzir e analisar dados
etnográficos. Petrópolis: Vozes, 2014.
BOURDIEU, Pierre. Algumas
propriedades dos campos in:
Questões de sociologia. Lisboa, Fim
de século, 2003.
BOURDIEU, Pierre. “O capital
simbólico” in: O senso prático.
Petrópolis: Vozes, 2009.
BRAH, Avtar. Diferença, diversidade,
diferenciação in: Cadernos Pagu (28),
janeiro-junho de 2006: pp.329-376.
BRANDÃO, Sebastião, H. Religião na
pós-modernidade. Revista: Ciências
da Religião: história e sociedade,
São Paulo, v. 14, n.1, p. 56-72, jan./
jun.2016.
BRASIL, Luciana, L. michel Pêcheux
e a teoria da Análise de Discurso:
679
desdobramentos importantes para
a compreensão de uma tipologia
discursiva. LING. Est. e Pesq.,
Catalão-GO, vol. 15, n. 1, p. 171-182
jan./jun. 2011.
CAVALCANTI, Marcela, F, M, M. A
Teologia Queer e o direito a Deus à
fé e à crença: uma nova perspectiva
do direito humano à orientação
sexual e identidade de gênero. Anais
do Congresso Latino-Americano de
Gênero e Religião. São Leopoldo: EST,
v. 5, 2017. | p.730-745, in Congresso
Latino-Americano de Gênero e
Religião, 5., 2017, São Leopoldo.
COREGNATO, Rita, C, A & MUTTI,
Regina. Pesquisa qualitativa: análise
de discurso versus análise de
conteúdo. Texto Contexto Enferm,
Florianópolis, 2006 Out-Dez; 15(4):
679-84.
CLIFFORD, James. Sobre a autoridade
etnográfica in: A experiência
etnográfica: antropologia e literatura
no século XX. 4ª edição. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ., 2011.
DURKHEIM, E. Conclusão in: As
formas elementares da vida religiosa.
São Paulo: Martins Fontes, 1996
(Texto originalmente publicado em
1912).
FILHO, Josué, C. SDA Kinship e a
resposta à marginalização LGBT na
Igreja Adventista do Sétimo Dia:
uma etnografia das masculinidades
rejeitadas. Dissertação apresentada
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
ao programa de pós-graduação em
Saúde Pública da Faculdade de Saúde
Pública da Universidade de São Paulo.
Orientação de Adorno, Rubens de
Camargo Ferreira. São Paulo, 2016.
MINAYO, M.C. S. O desafio do
conhecimento: pesquisa qualitativa
em saúde. 12. ed. Editora Hucitec.
São Paulo. 2010.
FLICK, Uwe. 2009. Introdução à
pesquisa qualitativa. Cap 8. 3ª edição.
Porto Alegre: Artmed.
MISKOLCI, R. A Teoria Queer e a
Questão das Diferenças: por uma
analítica da normalização. Anais do
16º Congresso de Leitura do Brasil.
Unicamp, Campinas – SP: 2007.
GEERTZ, C. Uma descrição densa: por
uma teoria interpretativa da cultura
in: A interpretação das culturas. Rio
de Janeiro: LTC, 1989.
MUSSKOPF, A. S. A. A Teologia que
sai do Armário: um depoimento
Teológico. Revista Impulso,
Piracicaba, 14(34): 129-146, 2003.
GOMES, R. et al. Organização,
processamento, análise e
interpretação de dados: o desafio
da triangulação in: MINAYO, M. C.
S.; ASSIS, S. G.; SOUZA, E. R. (Org.).
Avaliação por triangulação de
métodos: Abordagem de Programas
Sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.
PEREIRA. P. P.G. Queer nos trópicos.
Contemporânea: Dossiê Saberes
Subalternos. v. 2, n. 2 p. 371-394.
Jul.–Dez. 2012
LAPLANTINE, F. Aprender
antropologia. São Paulo, 2003.
MANGI, Luis, C. M. Durável e/ou
modificável? Reflexões Acerca
da Noção de Habitus em Pierre
Bourdieu. XXXVI Encontro da ANPAD.
Rido de Janeiro – RJ, 22 à 26 de
setembro de 2012.
MARCONDES, N. A. V. & BRISOLA,
E. M. A. Análise por triangulação
de métodos: um referencial para
pesquisas qualitativas. Revista
Univap, , v. 20, n. 35, jul.2014. São
José dos Campos – SP, 2014.
MINAYO, M. C. S. et al. Pesquisa
social: teoria, método e criatividade.
27. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. 108p.
ROCHA, D & DEUSDARÁ, B. Análise
de Conteúdo e Análise do Discurso:
aproximações e afastamentos na (re)
construção de uma trajetória. Alea
volume 7 número 2 julho – Dezembro
2005 p. 305-322.
ROCHA, Gilmar. A etnografia como
categoria de pensamento na
antropologia moderna. Cadernos de
campo, São Paulo, n. 14/15, p. 99114, 2006
SANTOS, Camila & BIANCALANA
Gisela. Autoetnografia: um aminho
metodológico para a pesquisa em
artes performantivas. Revista Aspas |
PPGAC – USP | São Paulo| Vol. 7 | n. 2
| p. 83-93 | 2017.
TAQUES, Fernando. O
empoderamento mitigado. Revista
Eletrônica dos Pós-Graduandos
em Sociologia Política da UFSC:
Em Tese, Vol. 3 n. 1 (1), agostodezembro/2006, p. 67-85.
[ Volta ao Sumário ]
680
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
soB as Bênçãos
do RosáRio
Eliane Cruz de Lima
Como referenciar este capítulo:
LIMA, Eliane Cruz de. Sob as bênçãos do rosário. In: MARANHÃO Fº, Eduardo
Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR
- Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 674-692.
Eliane Cruz de Lima1
Introdução
O presente trabalho tem como objeto central de estudo a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da cidade de Mamanguape/PB, no século XIX, onde procuraremos discorrer sobre a formação
desta instituição, suas características, bem como sua importância como
espaço social, cultural e religioso na vida daqueles que a integram.
Objetiva-se tal estudo por entendermos que o objeto em questão é pouco conhecido, sendo portanto, algo contributivo para a história
regional possibilitando a geração atual e futura, a oportunidade de entender o que foi a irmandade, a partir de um contexto histórico, cultural,
social e religioso da época.
Entendemos que a história da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos de Mamanguape/PB, trata-se de um espaço histórico importante, que favoreceu aos interesses dos negros escravos ou
libertos, inseridos em uma sociedade escravocrata, permitindo a estes
manifestar-se religiosamente e até mesmo socialmente dentro do âmbito da irmandade.
Sabe-se que essas instituições foram espaços de adoração e
devoção católica, utilizadas como meio de conversão ao catolicismo,
quando das irmandades negras. Todavia, esses espaços se firmaram
também como espaços assistenciais aos quais possibilitavam aos seus
irmãos vários tipos de assistência, como médica, jurídica, financeira,
além de fúnebre para com seus membros e familiares, contando ainda
com compras de alforrias. Trata-se de um espaço de ajuda mútua, de
solidariedade entre aqueles que ali se inseriam. Salientando ainda que
eram locais que promoviam atividades festivas, religiosas e profanas
nas festas do orago.
Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (2003). Licenciatura em Ciências Naturais pela Universidade Federal da Paraíba (2014). Licenciatura em
História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Pós-graduação/Especialização em
Pedagogia Sexual pela Universidade Federal da Paraíba (2007). Supervisão e Orientação
Educacional, pela Faculdade Integrada de Patos (2010). Coordenação Pedagógica pela
Universidade Federal da Paraíba (2015). E-mail: eliannedlima@hotmail.com.
1
682
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
O culto a Nossa Senhora do Rosário não se origina no Brasil, mas
que se faz presente a séculos. De acordo com a tradição católica a devoção branca teria surgido no medievo, mais precisamente século XIII,
através da ordem dos Dominicanos. Pacheco (apud TOMASSI, 2002,
p. 2) escreve que: “(...) São Domingos, da ordem dos pregadores, sofreu
muito para conciliar o ataque aos heréticos com o cristianismo. Nessa
ocasião, Nossa Senhora lhe apareceu na Igreja de Notre Dame de la Dreche, para consolá-lo dessa tristeza, dando-lhe a oração do rosário como
antídoto que o povo deveria usar contra a heresia.” Após esse acontecimento, Santa Maria recebe o título de N. S. do Rosário, passando a ser
um símbolo da luta contra os considerados hereges, a exemplo dos cátaros. Porém, a propagação da devoção do Santo Rosário, atribui-se aos
frades dominicanos, sendo estes autores de muitos escritos publicados
visando a propagação da devoção do rosário.
Delfrate (2011) nos diz que “Em 1478 surgiu, em Lisboa, a primeira Irmandade do Rosário dos Brancos de Portugal.” Partimos, portanto, da
compreensão que é no meio dos brancos que emerge a primeira irmandade em terras portuguesas de devoção ao Rosário. Todavia, não possuímos documentação necessárias que comprovem tal afirmação. Mais
adiante dentro do contexto da escravidão da população africana em terras portuguesas a figura negra encontra espaço para a devoção, dando
início as irmandades de cor. Silva (2016) cita o Termo de Compromisso
de 1575 como uma das bases, para compreender o desenvolvimento
da Irmandade do Rosário dos Pretos ligada em Lisboa ao processo de
transição entre o medievo e a era moderna:
No tocante a devoção negra ao Santo Rosário, muitas histórias
surgem, permeando o universo imaginário. Desde o achado da imagem
da santa no mar da Costa Africana por brancos, a qual não emergiu das
águas pelas mãos brancas, mas pelas mãos negras ao tocarem e dançarem, o que fez com que a Santa viessem ao encontro destes. Outra
lenda, é a de um negro cativo, que ao observar as águas do mar em
um momento de tristeza por sua vida escrava, chorando, rogou a santa,
que transformou suas lágrimas em sementes, que depois serviram para
confecção de rosários.
Percebe-se que a devoção a Nossa Senhora do Rosário atravessa
séculos e apesar de existirem as mais diversas histórias em torno da
683
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
iniciação da devoção ao Santo Rosário, sejam estas cristãs ou não, brancas ou negras, o que se constata é que a adoração ganhou proporções
enormes, atraindo milhares de adeptos, independentes da raça, etnia a
que pertença. Para Neves (2007), “o Rosário é uma oração cuja origem se
perde nos tempos”.
Nesse contexto, nosso objeto de estudo permeia sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na cidade de Mamanguape/PB, mais especificamente no século XIX, onde procuraremos
discorrer sobre a formação desta instituição, suas características, bem
como sua importância como espaço social e cultural na vida daqueles
que a integram.
Para compreendermos melhor a dinâmica do nosso objeto de estudo partimos dos seguintes questionamentos: Em que ano se deu a
sua fundação? Como se organizava? Que importância teve dentro do
contexto da época? A partir destes questionamentos, utilizou-se de diversas fontes como: jornais da época, dissertações e teses, livros, documentos oficiais como o Compromisso da Irmandade pesquisada, arquivos diocesanos da Arquidiocese da Paraíba, além de visitações a Igreja
de Nossa Senhora do Rosário, a qual iremos fazer um breve estudo.
As informações encontradas possibilitaram fazer um resgate histórico sobre a instituição ora pesquisada a qual é desconhecida, ou não
mencionada na história da cidade, sendo, portanto, uma pesquisa relevante não só para a pesquisadora, mas para enriquecer ainda mais a
história de Mamanguape-PB.
mamanguape: de vila a cidade, um breve relato
Mamanguape, nome de origem indígena, que se traduz em “BEBEDOURO”, possui alicerces em um aldeamento indígena, Monte Mor,
transformando-se no decorrer do tempo em povoamento, evoluindo
depois para vila e por fim, cidade. Sua área territorial foi inicialmente
explorada pelos franceses, expulsos pelos portugueses. Tempos depois,
holandeses e portugueses passaram a disputar o território, que resultou na vitória lusitana.
684
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Foi no século XVII, de acordo com Costa e Lins (1992, p.71) que se
deu início ao processo de implantação dos engenhos, através da lavoura da cana de açúcar, do algodão, e no trabalho com o couro. É dentro
dessa dinâmica que Mamanguape, configurou-se como um dos centros
econômicos e populacionais da Paraíba, atraindo famílias oriundas de
estados vizinhos como o de Pernambuco. Sua ascensão como vila ocorre em meados do século XIX, através da Lei provincial de 23 de janeiro
de 1839, apresentando-se como um local próspero, contando já com
uma agência dos correios desde o ano de 1829. “A assembleia geral por
decreto de 20 de julho de 1831, criou uma escola de primeiras letras.”
(DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1854, p. 2)
“(...) em pleno século 19, no Brasil-Império, Mamanguape atingira a
sua ascensão econômica, a plenitude política e social, o que surtiu
na sua elevação como Sede do Povoado, posição administrativa que
pertencia a Montemor até 1839. Estava legalmente criada a Vila de
Mamanguape de São Pedro e São Paulo, nome que conservou até
sua emancipação.” (COSTA E LINS,1992, p. 39)
Notícias em vários jornais da Paraíba, bem como de Pernambuco
eram comuns sobre Mamanguape. O jornal DIÁRIO DE PERNAMBUCO
(1854, p. 2) por exemplo, traz informações que nos possibilitam ter uma
visão da representatividade social, política, econômica e religiosa da então vila, através de um correspondente que se intitula “O ordeiro”,
“(...) a nossa terra faz bulha na nossa bela provincia. Não falaremos
nos seus trinta seis engenhos de assucar, nos seus vinte e oito negociantes, quase todos com loja e venda;(...) tem ella em seu seio
oito bachareis formados em direito, nove padres, um hábil cirurgião,
dous pharmacêuticos e dous advogados licenciados: possue um senador e um deputado a assembleia geral, os quatro primeiros vice-presidentes e cinco deputados provinciaes:dous comendadores
da ordem de Christo, um oficial da ordem da Rosa, oito cavallleiros
de deversas ordens, e uma legião imensa de oficiais superiores da
guarda nacional:etc.etc,(...)”
Percebe-se, que, Mamanguape vivenciava momentos promissores, no ano de 1853, pela Lei nº 5 de 17 de setembro, é destinada verba
685
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
para a construção da cadeia pública, prédio que existe até os dias atuais.
Mamanguape, estava imerso ao seu desenvolvimento, sendo uma das
principais causas possuir um porto, o Porto de Salema, considerado por
Costa (1986, p. 66), “a porta aberta para o desenvolvimento de Mamanguape”. A comercialização de produtos se dava por intermédio de barcaças para o mar, e via animais de cargas, para as áreas rurais. O progresso evidenciava-se cada vez mais, fazendo com que Mamanguape, se
tornasse um grande polo de comercialização da época. De acordo com
Costa e Lins (1992, p. 36),
“Além de alimentar vantajoso comércio, Mamanguape era o centro polarizador de todos os negócios da região, comercializando e
exportando através do Porto de Salema, no Rio Mamanguape: – o
açúcar, o algodão; e vendendo o bacalhau, o azeite, o vinho e tecidos
recebidos da Europa.”
Tal afirmação, também é alicerçada no DIÁRIO DE PERNAMBUCO
(1854, p. 4), a qual traz uma matéria contendo dentre outros, as exportações do então Porto de Salema, as quais eram destinadas ao Porto
de Recife e a partir deste, para a metrópole. Ressalta-se que o referido
porto foi a porta de entrada de muitos escravos oriundos da África, principalmente angolanos.
“As exportações de Mamanguape no anno próximo passado consistiram em 112,255 arrobas de assucar, 1.972 sacas de lãa, 6,098
couros salgados, 9450 couros cortidos, 9,810 saccas de faarinha,
3,976 saccas de milho, 100 paos de angico, 56 saccas de arroz, 19
cascos d’aguardente, feijão, azeite de mamona, carnaúba, fora outros gêneros, excedendo o valor da exportação a 350,000,000.”
Na marcha do progresso, de acordo com Costa (1986, p. 64) foi
também no ano de 1854 que Mamanguape passou a ser incorporada a
capital, provocando certo descontentamento dos habitantes da capital
da província, fato este que influenciou diretamente na sua emancipação,
sendo elevada à categoria de cidade, pela Lei nº 1 de 25 de outubro de
1855, sancionada pelo Presidente Flávio Clementino Freire, que futuramente se tornaria Barão de Mamanguape. Tal ascensão oportunizou a
686
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Mamanguape em 1863, ter sua comarca. Ainda de acordo com o autor,
Mamanguape possuía a única Agência Consular do Reino. Ressalta-se a
relevância da cidade por suas ruas calçadas e iluminadas a lampiões de
azeite, além de teatro, escola de latim, jornais, lojas maçônicas e bandas de músicas. Mamanguape, era sem dúvida alguma um local onde a
cultura emergia em grau elevado, ofuscando até mesmo a capital. Outro
avanço da cidade foi a chegada do telegrafo, em 1877, (BRADO CONSERVADOR,1877, p. 2)
Todo esse desenvolvimento possui suas raízes econômicas em
um processo agrário escravocrata. A cidade, envolta a agricultura canavieira, dentre outras, utilizou-se da força motriz negra, Segundo Lima
(2010, p. 68), Mamanguape, na metade do século XIX chegou a ter uma
população escrava de 2.395 almas. Verifica-se, portanto, uma população numerosa, o que nos leva a compreender a dinâmica econômica a
qual a cidade possuía, resultado do trabalho negro escravo.
mãos que se entrelaçam: fé e desenvolvimento
Sabemos que o processo de colonização no Brasil ocorre simultaneamente a catequização dos povos aqui encontrados, os indígenas.
A Igreja Católica possui raízes profundas na sociedade brasileira, sendo
responsável pela fundação de muitas cidades. Assim, o território que
compreende a formação do que hoje é a cidade de Mamanguape não
ocorreria diferente, a presença da igreja católica é notória e contribuiu
para o seu desenvolvimento. “Desde os primeiros momentos que se
tem notícia da fundação de Mamanguape, como se deu em todas as
regiões, a igreja católica foi marcante e eficiente na formação da cidade”
(ALBUQUERQUE, 2010, p. 98)
Neste contexto, iremos nos debruçar sobre questões que envolvem o alimento da alma: a fé, a religião. Nesta esfera de desenvolvimento, de construção de sociedade, não poderemos deixar de nos remeter
a Igreja, instituição tradicional, que condicionava, e até mesmo regia o
modo de vida das pessoas, através das leis divinas. Os casamentos,
nascimentos e obituários, além dos cemitérios, eram religiosos, ou seja,
de domínio da igreja.
687
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Foram os padres jesuítas, os primeiros evangelizadores e catequistas, encarregados por difundir a fé, sendo o catolicismo, religião oficial na época, “[...] em Mamanguape, além da catequese dos índios, os
jesuítas contribuíram com a educação e com a formação moral e religiosa do povo [...]” (Albuquerque, 2010, p.98). Sabe-se também que, foram
os padres jesuítas que edificaram a primeira igreja de Mamanguape, a
Matriz de São Pedro e São Paulo. Em relação a Mamanguape e a Igreja
Matriz, O DIÁRIO DE PERNAMBUCO, (1854, p. 2) nos diz,
“[...}Do seu histórico, sabemos todos, que elle já existia em 1634
formando uma aldeia de índios Potygares, como atestam os testemunhos hollandezes, os quaes naquela epoca apossaram-se desta província, e sendo expelidos, os jesuítas nelle estabeleceram-se
para doutrinarem os índios, e edificaram a igreja dos apóstolos São
Pedro e São Paulo, que hoje serve de Matriz:[...]”
De acordo com Albuquerque (2010, p. 99), “Conforme o Anuário da
Mitra Arquidiocesana da Paraíba, a Paroquia de São Pedro e São Paulo
de Mamanguape, é a segunda mais antiga da Paraíba, criada em 1630.”
Partimos do entendimento que a edificação da matriz se deu através
de mãos indígenas, estes já catequizados, servindo de mão-de-obra
aos brancos, aqui especificamente a igreja. Não descartamos também,
a presença do negro escravo na construção, visto que a igreja passou
por modificações ao longo do tempo. Em visitação a igreja, foi possível observar na sacristia, resquícios do piso original em tijolos de barro, observamos ainda que, várias pessoas foram sepultadas na igreja,
principalmente em altares, o que era comum, aos mais abastados e padres, porém, o que nos chama atenção são argolas em uma altura considerável nas paredes laterais da parte do altar, segundo informações,
ali estão sepultados pessoas muito importantes de séculos passados.
Entendemos que se trata de ossuários. Mas, a quem pertenciam? Não
temos respostas, pois não há nada que possa identificar. Mas, com certeza, deveriam ser pessoas de alto poder aquisitivo, tendo em vista toda
a conjuntura da época.
Além da Igreja Matriz, foram erguidas as Igrejas de Nossa Senhora
do Rosário e a do Santíssimo Coração de Jesus. No tocante a primeira, encontramos informações que apontam o ano de 1781, como o de
688
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
sua fundação, sendo construídas por negros escravos, que ali podiam
professar sua fé. A construção da igreja do Rosário, por negros, dar-se
pelo fato de que estes não podiam frequentar o espaço da fé branca, em
Mamanguape, a igreja matriz de São Pedro e São Paulo. Em relação a
Igreja do Santíssimo Coração de Jesus, é considerada a mais nova entre
as três, teve sua construção iniciada no ano de 1810,
“[...] ao lado direito da matriz, na distancia de 50 braças, está colocada a igreja de Nossa Senhora do Rosario, sendo eregida pelos
pretos em 1781. No centro da villa existe a igreja do Santissimo Coração de Jesus, principiada em 1810 e não está acabada; espera-se
que o Sr. Pedro José Filippe da Cunha, por ser zeloso do que he concernente ao culto divino, promova a continuação da obra da mesma
igreja, [...]”(DIÁRIO DE PERNAMBUCO,1854, p. 2)
Já a igreja localizada no cemitério local, sua construção é datada de
1856, assim como o próprio cemitério (DIARIO DE PERNAMBUCO,1857,
p. 2). Tal ato é atribuído ao frei Serafim da Catania, de origem italiana,
missionário da ordem dos Capuchinhos1.
“Acha-se aqui promto o cemitério da cidade de Mamanguape, tendo ele dispensado os cofres da provinciaes, apenas a quantia de
800$000, que mandei pôr a disposição do Exm. Senador Antonio da
Cunha Vasconcellos.
O restante foi dado pelos habitantes daquele município, a esforço
do digo missionário frei Serafim da Catania, que fez com que contribuíssem com materiaes, cujo valor excedeu 6:000$000.
Levantou-se ainda pelo zelo do mesmo missionário uma capella
dentro do cemitério para as encomendações e mais cerimonias religiosas.” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO,1857, p. 2)
A história envolta a edificação do cemitério e sua capela é imersa
ao universo de religiosidade, de purificação local, que envolveu toda a
população da cidade. Ricos e pobres, homens, mulheres e crianças, se
uniram em prol da construção, liderados pelas palavras de fé, nos sermões proferidos pelo frei em frente ao largo da igreja matriz.
Mamanguape passava por um momento delicado, cerca de quase
três mil pessoas foram vítimas de uma peste avassaladora, era 1856.
689
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Centenas de cadáveres foram sepultados em torno das igrejas. Pessoas
moribundas e gemidos de dor se via e ouvia por todos os cantos. Tal enfermidade era vista como castigo divino. Penitências, procissões e vigílias incessantes eram realizadas para que as bênçãos do Senhor viesse
a expelir o mau que hora acometera a cidade. É nesse universo devastador que o frei Serafim da Catania, exaltando a Deus, para a expiação dos
pecados cometidos, dá início às obras do cemitério e da capela, convocando o povo para a construção, de acordo com o que ele determinara.
O terreno tratava-se de um local para pasto, mas no decorrer de vinte
dias, fora limpo e edificada a obra, ao canto de hinos e salmos. A cruz,
símbolo de remissão e salvação, construída pelos fieis, de acordo com
o desenho traçado pelo frei, foi levada em procissão pelos irmãos da
irmandade do Santíssimo Sacramento, acompanhada de uma multidão,
além de padres e o próprio frei, sendo colocada no centro do cemitério,
após benzida. (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 1857, págs. 1,2)
Neste contexto percebe-se o quanto a fé, a doutrinação, conduzia
a vida das pessoas. A proteção ou o castigo, eram divino, e podiam manifestar-se de diversas maneiras. Acontecimentos como mencionados
acima, nos permite perceber a dinâmica da religiosidade que conduzia a
sociedade, acontecimentos bons ou ruins, e no caso destes, eram tidos
como punição, que só seriam sanados pelas penitencias, orações, missas e procissões, dependendo das orientações, pregações conduzidas
por padres ou missionários, verdadeiros representantes de Deus, que
se faziam presentes em meio ao povo.
Assim, Igreja e desenvolvimento se entrelaçam, sendo fios condutores do progresso e da vida cotidiana das pessoas. A formação das
cidades sempre tiveram entrelaçadas a presença da Igreja Católica.
É comum, cidades terem como ponto central igrejas. Em Mamanguape,
ou no território que compreendia a cidade na época, várias igrejas foram edificadas, principalmente nos engenhos, algumas hoje em ruínas.
Por aqui passaram várias ordens religiosas, a exemplo, o frei Serafim da
Catania, dos capuchinos, o que nos faz compreender dentro do contexto da época que a igreja foi contributiva na estruturação da cidade de
Mamanguape.
690
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Andar com fé ou vou, que a fé não costuma falhar: A
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
A Fé, considerada por muitos, sem distinção de cor, o alimento da
alma, conduzia os passos daqueles que sofriam na carne os mais diversos castigos e privações no âmbito de uma sociedade escravocrata.
Negros, escravos ou libertos eram constantemente submetidos a humilhações, trabalhos forçados, alimentação e moradias precárias. Vida
sofrida, ao som de seus batuques, mas na maioria das vezes das vozes
de feitores e seus chicotes. Mamanguape, de economia agrícola escravocrata, não fugia a regra dos rigores ao tratamento de seus escravos.
É nessa esfera de amparo e religiosidade, que os negros encontram
em espaços como as irmandades, a liberdade da alma, do pensamento
e o alimento para suas necessidades espirituais. As irmandades negras,
configuram-se como locais onde o negro proferia sua religiosidade, além
de encontrarem em seus irmãos a força da resistência, da assistência,
negada na sociedade vigente da época.
Registros nos mostra que, Mamanguape, possuía três irmandades, a do Santíssimo Sacramento (1872), desconhecemos sua formação; a de São José dos Artistas (1867), formada por pessoas livres, aceitava homens de cor. Ambas tinham como sede a matriz de São Pedro
e São Paulo, e a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, com sede na
igreja do mesmo nome, objeto do nosso estudo.
Os registros inicialmente encontrados sobre a Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, da então Parahyba do
Norte, data de 1711, constante na renovação de seu compromisso em
1867, nos artigos 77 e 87,
Art. 77 “A adoração do presente Compromisso não prejudica o direito de antiguidade, que esta irmandade tem e conta desde 4 de setembro de 1711 quando pelo Breve Pontificado de Clemente Undecimo foi aprovado o Compromisso, porque ella até agora se regeo”.
[...]
Art. 87 “A irmandade solicitará do prelado Diocesano a precisa graça
para que lhe sejão concedidas como remédio espiritual todas aquellas graças, e privilégios, de que gozava; e que forão concedidas pelo
691
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
compromisso porque se regia, aprovado pelo Pappa Clemente Undecimo aos quatro de setembro de 1711”.
No livro Datas e notas para a história da Paraíba, Irineu Ferreira
Pinto, também faz referência a aprovação do referido compromisso em
4 de setembro de 1711, “pelo Papa Clemente XI, é aprovado o compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos da cidade
da Parahyba” (1977, p. 106).
No tocante a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
de Mamanguape, objeto do nosso estudo, tinha como sede a igreja de
mesmo nome, com data provável de sua construção o ano de 1781, de
acordo com nossas pesquisas, sendo edificada pelas mãos dos negros.
Tivemos acesso ao Compromisso da Irmandade (1852), documento
normativo, também sendo intitulado de estatuto, contendo 26 capítulos, o qual trabalhamos. Não descartamos a possibilidade que o referido
compromisso possa ser uma renovação, afinal, as irmandade poderiam
renovar seus então compromissos, como mencionado na Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da cidade da Parahyba
do Norte. Sendo assim, nos questionamos: Em que ano teria dado a edificação da igreja? Quando realmente teria sido o ano exato da criação da
irmandade? Poderia ser a irmandade fundada a partir de outra já existente? a respeito dessa indagação temos como exemplo, a irmandade
de Taquara, na Paraíba, que estava ligada a de Goiana, em Pernambuco.
Em conversas in loco com o professor Cristiano Amarante da Silva, pesquisador sobre as irmandades negras, nos foi relatado tal constatação.
Infelizmente, não encontramos documentos diocesanos que nos possibilite afirmações precisas sobre a fundação da igreja e o compromisso
da irmandade. Porém, não há dúvidas sobre a mão negra na sua edificação. Pessoas mais velhas da cidade, contam que ouviam dos mais
antigos da proibição dos negros de entrarem na igreja matriz, e por isso,
teriam construído sua igreja. De acordo com o jornal O ARAUTO, (1900,
p.1), “na igreja também era celebrada a festa de São Benedito, no dia
nove de setembro, com procissão, ladainha e sermão”. Em visitação a
igreja, constatamos a presença da imagem do referido santo, que segundo informações estaria lá desde a fundação.
No jornal O LIBERAL PARAIBANO, 1883, encontramos uma publicação sobre o suicídio de um escravo/irmão do Rosário de Mamanguape,
692
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
de nome Honorato, que por descumprir a ordem do seu senhor quanto
ao horário do retorno das festividades do orago, é duramente castigado.
Triste e revoltado, comete suicídio,
“[...] Honorato vivia na cidade, era escravo do portuguez Antonio
Cuique, que o tractava com toda liberdade, deixando-o pagar semana, gozar ser irmão do Rosario, em cujas festas fazia sempre figura,
desfructando uma vez no anno os prazeres d’um homem livre, os
gozos d’uma festa christã.
O senhor do Honorato, porem, o vendeu ao capitão José Félix, que
o conduziu para para o seu engenho, entregou-o aos rigores da enchada e do azorrague d’um feitor.
Chegando a festa do Rosario Honorato alcança licença para vir a cidade preencher as funcções de irmão que era, e cumprir com seus
deveres de christão, mas teve a infelicidade não chegar ao serviço
na manhã seguinte á hora propria.
Isso era impossivel para uma creatura humana, que passara um dia
de festa, seis legoas distante de casa, e assistia n’um engenho, não
ha humanidade, nem coração: o escravo foi surrado ...
- No dia seguinte foi visto Honorato assustado, e compassos, incertos errar nas ruas d’esta cidade: deu a sua velha mai cinco mil reis,
dizendo-lhe que era o ultimo mimo que lhe fazia; entrou em casa
do vigario deu-lhe cinco mil reis apressadamente, dizendo-lhe que
dissesse missas por sua alma.
Foi visto ainda parado em frente a porta da matriz, que se achava
feixada e ... no dia seguinte era encontrado, sem alma, suicida, á
sombra d’um cajueiro. [...]”
Sabe-se que o ato suicida provocado por escravos, era uma forma
de libertação. Durante nossas pesquisas, constatamos que Honorato
era escravo do Engenho Camaratuba, o qual era de propriedade do Capitão José Félix do Rego Barros, na época. Ficava distante quase trinta
quilômetros da cidade. Atualmente, o referido engenho não mais existe, Camaratuba, hoje, é Distrito de Mamanguape. Em relação ao vigário,
trabalhamos com a possibilidade de ser o padre Antonio Ayres de Mello,
que de acordo com Albuquerque (2010, p. 68) foi vigário da paróquia de
São Pedro e São Paulo, nos anos de 1880 a 1898. A partir do ano do
Compromisso que trabalhamos ao do suicídio de Honorato, constata-se
que a irmandade já existia há três décadas, e com festividades todos
693
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
os anos, o que nos faz dimensionar, o poder aquisitivo a qual possuía,
visto que realizar tais festividades requeria muita pompa, ou seja, um
alto custo.
Outro ponto a ser destacado, é a importância da irmandade para
os negros/irmãos, como Honorato, que participou de toda a festividade,
mesmo sabendo, acreditamos, que não chegaria a tempo na casa de seu
senhor, e que poderia ser castigado. Esperaria ele tamanha crueldade?
Acreditamos que não, prova disso se encontra no seu ato, tirar a própria
vida, mesmo diante da fé que o conduzia.
A formação da irmandade era de homens de cor, cativos ou libertos, além de pessoas que quisessem servir ao orago, o capitulo 1º,
afirma “[...] se admitirão para irmãos todas as pessôas, que quiserem
servir á dita Senhora, e as que forem captivas trarão licença de seus
senhores [...]”. Na ocupação dos cargos da mesa regedora determina,
no capítulo 20º “Havendo irmãos brancos na nossa irmandade não terão voto, como também não servirão cargo algum [...]”. Comparando ao
compromisso de Taquara, Lima (2010, p. 92), nos diz que “A Irmandade
do Rosário da povoação de Taquara, município da Cidade da Parahyba,
era de pretos e pardos, porém estes não podiam aspirar aos cargos de
Rei e de Rainha porque tais cargos estavam reservados aos pretos pelo
critério da antiguidade.”
Observa-se portanto, o quanto o negro submergia do universo
preconceituoso a qual vivia na medida que no espaço da irmandade, estes se fazem condutores únicos, não admitindo serem administrados de
porta a dentro da igreja seja por brancos ou pardos, apesar de admiti-los
como irmãos pela devoção, o que para nós fica explicito a supremacia
negra, levando-nos a entender a importância da irmandade para eles, já
que oportunizava certo status social e religioso, o que não tinham porta
a fora da igreja.
Silva (2016, p. 89), “Ingressar nas irmandades abria a possibilidade de se organizar e lutar de forma coletiva pelos direitos que as vezes
eram garantidos pelo Estado, bem como pela Igreja, diversas ignorados
por seus senhores”. A coletividade presente na irmandade, dava aos irmãos o suporte necessário para que estes pudessem através da religiosidade, externar seus pensamentos, expressar sua cultura, lutar pela
liberdade de seus irmãos, quando da compra de alforrias, sendo assim,
694
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
vistos, notados, principalmente nas festas do orago, regadas a batuques, cantos e alegrias nas ruas da cidade.
A festa do Rosário, em Mamanguape, era no dia vinte e sete de
dezembro, no compromisso, capítulo 7, diz “Serão obrigados a ter sua
Igreja com todo o acceio, limpeza, e decência possível, na qual celebrarão sua festa no dia 27 de Dezembro com sermão, missa cantada, conforme a possibilidade da Irmandade, e accordão da Meza [...]”. Todas as
decisões referentes a Irmandade eram de conformidade com a mesa
regedora, formada por doze irmãos de cor, de ambos os sexos. Ocorria
nessa mesma data a eleição e posse da mesa. Já na Irmandade de N.
S. do Rosário dos Homens Preto da Capital (1867), a eleição da mesa
regedora ocorria no dia 21 de dezembro, a festa do orago no dia 28 do
mesmo mês e a posse da nova mesa, no dia primeiro de janeiro.
Na irmandade não eram admitidos irmãos que praticassem ou
viessem a praticar atos que iam contra as regras contidas no compromisso, como: feitiçarias, bebedeiras, orgias, entre outras. Estes deveriam ser fieis aos princípios da boa conduta e da fé, sendo zelosos aos
serviços da igreja. Quando um irmão não fizesse jus a sua condição poderia ser expulso da irmandade.
O sepultamento dos irmãos e seus filhos legítimos, era uma das
obrigações da irmandade, o que para negros escravos ou libertos era
uma garantia que seu corpo teria um sepultamento decente. Ao defunto seria dado além de um enterro decente, acompanhado pelo irmãos,
missas por sua alma. Aqueles que ocupavam cargos na irmandade, ao
falecerem teriam um sepultamento mais pomposo, capitulo 18 “[...]
sendo que morra algum irmão Rei, Juiz, ou outro qual quer official de
dignidade será enterrado com alguma pompa, dando-lhes sepultura no
lugar mais decente das grades para dentro [...]”
Os irmãos brancos também eram acompanhados pela irmandade
quando do seu sepultamento, mesmo que estes não fossem sepultados
na igreja, quando o eram, podiam ser no corpo da igreja. Porém, caso
queira um lugar privilegiado teriam que pagar certa quantia, assim também aqueles que não fossem irmãos, capítulo 18, “[...] querendo alguma
pessoa, que não for irmão, enterrar-se das grades para cima, ao para
dentro, dará pela sepultura de esmolas quatro mil reis; e o mesmo se
entenderá nas meias covas.” Quanto aos irmãos pobres com débitos na
695
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
irmandade, ao falecerem, seriam sepultado, porém, se este, tivesse alguém que pagasse sua dívida, a irmandade não custearia o sepultamento.
Não foram encontrados registros sobre irmãos suicidas como Honorato, mencionado acima. Assim, acreditamos não haver na irmandade
assistência aos defuntos, mediante o suicídio, tendo em vista ser esse
ato para os cristãos, considerado um pecado grave.
Considerações finais
Ao final deste trabalho, compreendemos que a cidade de Mamanguape/PB, foi um grande centro econômico, cultura e populacional,
construído sobre alicerces religiosos e escravocrata. Essa estrutura não
se difere de outros povoados, vilas e cidades da época. Mamanguape,
por ter um porto, alcançou patamares de segunda melhor cidade, perdendo apenas para a sede da capitania, mas que ao mesmo tempo não
deixava a desejar, já que possuía elementos urbanos, culturais e econômicos que ofuscando a então Parahyba do Norte, causando por vezes
alguns entraves entre as mesmas. Andrade e Vasconcelos (2005), afirmam que, “Mamanguape, por desfrutar de grande prestígio e beleza foi
cognimada a Atenas Paraibana”.
Neste contexto, verificou-se que a irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos, que possuía sua sede própria, tendo a igreja do
mesmo nome, surge como referência de um poderio econômico da referida instituição, imersa ao desenvolvimento de Mamanguape. Verificou-se ainda que trata-se de uma irmandade que existia há mais de três
décadas, constatado a partir da notícia suicida do irmão Honorato.
De certo que não temos uma data precisa de sua fundação, nem
tão pouco da sua sede, trabalhamos com levantamentos que apontam
as datas já mencionadas, mas não podemos bater o martelo da exatidão, até porque, não há nenhum livro de atas, compromissos mais antigos ao que trabalhamos, que apontem datas anteriores ao mesmo, assim como a igreja, que não foram encontrados documentos diocesanos.
Diferentemente, o compromisso da irmandade dos Homens Pretos da
capital, que faz menção de compromisso anterior.
696
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Contudo, verificou-se a relevância da irmandade para os negros
escravos ou libertos, o respeito e a devoção de seus irmãos a esta,
como vimos na postura do irmão Honorato, que foi duramente surrado,
e mesmo assim, não deixou de cumprir sua função de irmão, participando dos festejos em comemoração ao dia de Nossa Senhora do Rosário.
A distância entre o local que era cativo até a igreja, não existia na sua
alma, na sua fé, a “dita senhora”, estava no coração livre de Honorato.
Nessa esfera religiosa e social a irmandade cumpria seu papel,
oportunizando aqueles discriminados, excluídos de porta a fora da igreja, a serem verdadeiramente vistos, respeitados e ouvidos. Das festas
religiosas aos ritos fúnebres, a irmandade exercia um papel essencial,
inserindo os irmãos em uma esfera de segurança e acolhimento.
Não podemos deixar de ressaltar a conduta que os irmãos tinham
de ter mediante a sociedade e aos seus irmãos de fé. Para isso, a irmandade era firme na moral e nos bons costumes, não admitindo em
seu espaço irmãos que não seguissem as normas estabelecidas em seu
compromisso. A mesa regedora, local de decisão, só era permitido irmãos negros, algo que nos chama atenção, pois, mesmo admitindo-se
pessoas brancas na irmandade, estas, não poderiam tornar-se irmão de
mesa, ocupar cargos, demonstrando assim, que, aquele local era espaço
de domínio de cor, diferentemente da sociedade a qual se inseriam.
Nesse universo do poderio negro, a irmandade, oportunizava aos
seus irmãos um local onde estes poderiam sentir-se como verdadeiramente humanos, com deveres, mas com direitos, viver e morrer como
irmão era um privilégio.
Nossa pesquisa, continuará, pois entendemos que a irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Preto de Mamanguape, ainda tem muito
a nos dizer sobre a fé, o negro, o irmão e toda a dinâmica escravocrata
da sociedade da época, e libertária, social, cultural e religiosa da irmandade, até porque a fé, o rosário, não tem cor, nem a dita Senhora, como
assim é chamada Nossa Senhora do Rosário, pelos irmãos, que sob as
bênçãos do rosário, edificaram além da igreja, a irmandade e a tão sonhada liberdade.
697
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALBUQUERQUE, Marcos Cavalcanti
de. História da Freguesia de
Mamanguape. João Pessoa: A União,
2010.
ALMEIDA, Maurílio Augusto de.
Presença de D. Pedro II na Paraíba. 2ª
ed. João Pessoa: Vozes,1982.
ANDRADE, Ana Isabel de S. Leão
e VASCONCELOS, Severina Maria
Oliveira de. Mamanguape, 150 anos:
uma cidade histórica. João Pessoa.
UNIGRAF. 2005.
BIBLIOTECA DIGITAL NACIONAL;
Estatutos da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário. – Lisboa
1768. Disponível em: http://purl.
pt/16430/1/index.html#/65/html
– Acesso: 10 de dezembro de 2016 –
às 23h00min
COSTA. Adailton Coelho.
Mamanguape, a Fênix Paraibana.
Campina Grande. GRAFSET
LTDA.1986
COSTA. Adailton Coelho; LINS,
Sebastião Alves. Mamanguape,
minha terra. João Pessoa. Gráfica J.B,
ltda.1992
DELFRATE. João Henrique. Lavação
da Igreja Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos de São
Benedito – Parte 1 – Disponível em:
lavagemdaigrejadorosario.blogspot.
com.br – Acesso em: 14 de dezembro
de 2016 – às 14h35min
698
LIMA, Eliane Cruz de. A COR DO
ROSÁRIO: sob as bênçãos do rosário,
eis que surge a Irmandade dos Pretos
– Mamanguape/Pb. Graduação em
História. Universidade Vale do Acaraú
– UNAVIDA. João Pessoa, 2017
LIMA, Maria da Vitória Barbosa.
Liberdade interditada, liberdade
reavida: escravos e libertos na
Paraíba escravista (século XIX).
2010. Tese (Doutorado/Programa
de Pós-graduação em História) –
Universidade Federal de Pernambuco,
Recife,2010. Acesso em 10 de
dezembro – às 20h37min
NEVES. João César das, Uma breve
história do Rosário da Virgem
Maria. Disponível em: http://
movimentomensagemfatima.
blogspot.com/2007/ – Acesso em 12
de dezembro de 2016 às 13h28min
PACHECO. Henrique Silva. A
origem branca da devoção
negra do rosário; disponível em:
evistatempodeconquista.com.br/
documents/RTC3/ – Acesso em 05
de dezembro de 2016 às 13h45min
PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas
para a história da Paraíba. João
Pessoa. Editora Universitária/UFPB,
1977.
RAMOS. José Oliveira. Pedaços da
História de Mamanguape. Prefeitura
Municipal de Mamanguape.
Mamanguape.1993.
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
SILVA, Cristiano Amarante; A Cor da
fé: Vivências e institucionalidades nas
Irmandades de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito na Província
da Paraíba – Estudo Comparativo.
Disponível em: http://tede.biblioteca.
ufpb.br/handle/tede/8787 – Acesso
24 de fevereiro de 2017 às 22h00min
DIARIO DE PERNAMBUCO. Recife,
1860/1869
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Recife, ed.
00039(1) – 1860; ed. 00039 – 1860
JORNAL O PUBLICADOR. nº 1530 /
23.10.1867
O LYBERAL PARAHYBANO. Parahyba
do Norte. 1879 a 1889. ed. 00156/
27.02.1883
Jornais
BRADO CONSERVADOR: Folha
Política, Moral e Noticiosa (RN), Rio
Grande do Norte, 1876 a 1882. Ed.
00047
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Recife,
1850/1859. ed. 00293 – 1854 / ed.
00015 – 1854 – / ed. 00025 – 1857/
O GOVERNISTA PARAHYBANO:
FOLHA OFICIAL, POLITICA E
LITTERARIA (PB). Parahyba do Norte,
(1850 a 1851) – ocorrência 8/31. ed.
nº00015 p.4 / 1850
[ Volta ao Sumário ]
699
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
taBu numinoso:
reflexões acerca do uso
curativo da Cannabis
Clordana H. Lima de Aquino Oliveira
Como referenciar este capítulo:
OLIVEIRA, Clordana H. Lima de Aquino. Tabu numinoso: reflexões acerca do
uso curativo da Cannabis. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades. João Pessoa:
ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 693-701.
Clordana H. Lima de Aquino Oliveira1
Introdução
A relação do homem com as plantas foi estabelecida desde os
tempos primórdios, manifestando-se em contextos sociais, culturais
e até mesmo espirituais ao longo de toda história, suas mais variadas
utilizações e contribuições até os dias atuais pautam novas descobertas
e possibilidades. Data-se que a relação do homem com a Cannabis2, se
dá há 2 mil anos a.C, um relacionamento tão sério que mesmo diante
fatores proibitivos, a história do homem com a maconha que nunca foi
interrompida.
Devido suas propriedades psicoativas, e valores unilaterais difundidos ao longo da sua formação e compreensão histórica, a cannabis,
ou maconha como é popularmente conhecida, carrega consigo a fama
de contribuir com problemas sociais, gerando em torno desta problematização críticas severas e segregações sociais com relação a seus
adeptos, reconhecidos e julgados como desviantes dos bons modos e
costumes no qual estrutura-se uma sociedade sadia.
A cannabis, pertence à família botânica Cannabaceae, sua gênese
é narrada entre historiadores, antropólogos e até cientistas com divergências de onde realmente se estabeleceu sua origem, nos fazendo
Graduada em Comunicação Social – Jornalismo (UEPB), Mestranda no Programa de Pós
Graduação em Antropologia – PPGA (UFPB). Orientada por Dra Márcia Reis Longhi. http://
lattes.cnpq.br/5961576414978725 (clordanaquino@gmail.com)
2
A planta possuí três diferentes variedades, sendo elas: sativa, indica e rudelaris. Contém
cerca de 460 compostos e mais de 60 canabinoides, dentre eles se destacam o tetrahidrocanabinol (THC) principal substância psicoativa, e o cannabidiol (CBD) substância
que constituí mais de 40% da planta, este por sua vez possuí efeitos contrários ao THC e
interagem com receptores específicos das células do cérebro, qual surtem efeitos terapêuticos. Realçamos aqui optar por esta terminologia ao longo do projeto, o termo cannabis/canabis é considerado preferível em diversos segmentos especialmente entre os
praticantes de diferentes usos ritualísticos/religiosos. A fim de consolidar sua nomenclatura legitima, não dispensando a popularidade e utilização dos vocábulos: maconha,
diamba, ganja, erva.
1
701
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
refletir diante deste ponto a ligação milenar que o homem já possuía
com esta plantas e suas propriedades. Contudo, com base em amplas
pesquisas subscrevemos a partir de autores idôneos à área de etnobotânica e demais especialistas, a reprodução histórica em que se reconhece a origem da cannabis a partir da Ásia Central, em uma região próxima à China, de onde parece ter se expandido para Ásia Menor, África e,
posteriormente para a Europa (GUIMARÃES, 2010).
A utilização da maconha, nomenclatura popular utilizada no Brasil,
remonta-se a períodos muito antigos, e seus indícios são percebidos ao
longo da história:
Na China, existem registros do uso da maconha pelo imperador
Shen-Nung, no compêndio de ervas medicinais denominado PenTsao Ching, que data de 2737 a.C. Em um tratado médico chamado
Nei-Ching, de 2698-2599 a.C, e atribuído ao imperador Kwang-Ti
também existem evidências do uso da maconha, bem como no tratado médico chinês denominado Rh-Va, de 1500 a.C. (GUIMARÃES,
2010; ABANADES, 2005; CAVALCANTI, 2005)
A cannabis também é mencionada em textos religiosos do hinduísmo, considerados como as escrituras mais antigas do mundo, os textos
védicos datam 2000 a.C. destacando a planta com finalidades sagradas,
no qual deveriam ser cultivadas e usadas com respeito, atribuindo-a
sinônimos de: alegria, prosperidade, felicidade, libertação, boa sorte, coragem até mesmo aumento da libido (VIDAL, 2010; GODLASKI, 2012;
MACRAE, 2005; ROBINSON, 1999). No hinduísmo cannabis é considerada um néctar divino, sendo consagrada ao deus Shiva até os dias atuais,
onde se espalha ramagens de suas folhas sobre altares e se faz consagração. Também é conhecida por ser a bebida favorita do deus Indra, e
ainda hoje se constata o seu consumo na cultura indiana.
Alguns grupos de sadhus, homens santos que vivem uma vida dedicada à espiritualidade, muitas vezes vivendo em cavernas ou selvas, fumam a resina da maconha em seus chillums, uma espécie
de cachimbo. Bhang é um dos termos mais comuns para se referir
à maconha na Índia, e se refere a uma bebida à base de maconha,
leite e ingredientes como noz moscada, pimenta, canela e mel.
O bhang é amplamente consumido durante grandes festivais
702
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
religiosos na Índia. (GUIMARÃES, 2010; GODLASKI, 2012; MACRAE,
2005; ROBINSON, 1999).
Destarte, de períodos remotos até os dias atuais a maconha segue
sento utilizada pelos indivíduos, seja para finalidades recreativas, espirituais, culturais ou medicinais, essa planta ao longo da história tem nos
acompanhado e levantado grandes questionamentos quanto ao seu
reconhecimento utilitário, ao mesmo tempo em que enfrenta opiniões
parciais construídas ao longo de todo esse processo histórico. Embora
conte com a forte guarida midiática, de autoridades públicas, respaldados no próprio processo de sua construção histórica dada proibição e
estigmatização propagada, responsável por reforçar e fortalecer estereótipos, maior parte destes usuários lidos como: desviantes sociais,
nos põe a refletir sobre um problema notavelmente diagnosticado: o
problema de classes. Tornando perceptível a aplicação desses estigmas
sobre os mais vulneráveis.
Contudo como bem observamos apesar da proibição que se deu
a esta e outras substâncias influentes no estado de alteração da consciência, suas práticas de consumo nunca foram totalmente ignoradas, a
exemplo do próprio álcool. Nos dias atuais percebemos com mais destaque a movimentação de um cenário que busque encarar e construir
debates políticos e sociais, onde finalmente se possa debater e encarar
questões como a guerra as drogas, legalização, descriminalização e diversas outras estruturas que necessitam maior compreensão nesta área.
Espaço sacro
Hoje é possível termos acesso a várias pesquisas comprobatórias
sobre o uso dos psicoativos na antiguidade, ligação esta fortemente
realçada por fatores ancestrais, nativos, responsáveis por viabilizar os
acessos da consciência não só terrena, mas ao mundo espiritual. Terence Mckenna (1995) famoso etnobotânico por seu escrito “Alimento
dos Deuses” defendia a hipótese que através da ingestão dos psicotrópicos os primatas deram inicio ao “despertar da consciência humana”.
703
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Para o autor que é referência nos estudos sobre os efeitos das plantas
psicotrópicas, como propulsora dos estados numinosos como agentes
de mudanças e comportamentos de estado, até mesmo de conversões,
McKenna defende a hipótese de que estas experiências psicotrópicas
são motrizes básicos das grandes religiões ancestrais.
Fato é, que a presença da cannabis há mais de 10 mil anos
permanece em interação com nosso meio social, não sendo nenhuma
novidade o seu uso em diversos segmentos como bem podemos
perceber. Até os dias atuais, muitas religiões ainda são adeptas e
consideram com grande devoção o poder desta planta. Em algumas
tribos brasileiras por exemplo, o uso da cannabis é fortemente presente,
como expõe Ubirajara Ferreira, escritor da dissertação Representações
sociais da planta cannabis na religião do Santo Daime: entre a sagrada Santa
Maria e a proibida maconha, o autor explana acerca do estudo e adesão
da cannabis dentro da doutrina brasileira caracterizada pelo uso da bebida ayahuasca3, enteógeno assim classificado, responsável por propiciar
fortes alterações do estado de consciência.
Sabe-se que a Cannabis faz parte da cosmologia dos índios Mura do
Amazonas, sendo lembrada como “degua89” ou “dirijo”. No documentário curta-metragem“Dirijo” (MURA; VALLE, 2010), os índios
Mura relatam de seus diversos usos nas tribos, como uma pratica
sistematizada, controlada, absolutamente adaptada aos seus hábitos, que se encontravam não só incluída em suas pajelanças de cura
e contato com os espíritos, mas também fazia parte dos demais
hábitos cotidianos, do trabalho ao lazer. Suas plantações foram
proibidas e destruídas pela chegada da Policia Federal na década de
1960. (FERREIRA, 2017, p. 120)
Os povos Guajajaras do Maranhão, os Filniô de Pernambuco,
Sateré-Mawé, no Amazonas; Kraho, no Tocantins entre outros povos
indígenas do Brasil nos mostram como a prevalência ao uso da cannabis pode ser compreendida em ato de resistência às praticas de sua
Costuma-se utilizar pejorativamente o termo “alucinógeno” para classificar essa substância. O termo “enteógeno” (a realização de Deus no interior). Disponível em: <www.
mestreirineu.org/livro_juarez.pdf>. Acesso em 20/04/2019.
3
704
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
espiritualidade. Revelando-nos que entre indígenas, os populares rastafáris, a doutrina do Santo Daime, os Sufis do Islão, as freiras ativistas
“Irmãs do Vale”4, e tantos outros segmentos religiosos/espiritualistas
o uso da maconha ainda parece permanecer religado aos fatores históricos que se fazem presentes até hoje na forma de cultuar, devotar,
consagrar, vivenciar a divindade manifesta por meio dos efeitos provocados pela planta, onde esta viabiliza a seus credores experiências
como a cura.
A maconha medicinal
Coincidência ou não, hoje a maconha retoma os debates discursivos por meio de sua atuação no campo medicinal. Tal portaria tem se
destacado frente a eficácia comprobatória de diversas patologias severas que encontraram na planta a remediação eficaz para seus sintomas.
Doenças como Mal de Parkinson, Esclerose Múltipla, Epilepsia, Alzheimer, Autismo, dores crônicas e diversas outras, buscam hoje meios de
conseguir os benefícios que assegurem legalmente a possibilidade de
manterem qualidade de saúde através do tratamento com a cannabis.
Devido a estrutura da política nacional brasileira, que implica na
dificuldade de acesso a estes medicamentos e de outras demandas, que
preveem a necessidade de uma regulamentação alinhada com a legislação, muitas famílias hoje se submetem a ilegalidade para poder salvar a vida daqueles que tiveram consideráveis melhoras ao tratamento
com a cannabis. A própria ciência hoje parece correr atrás de recuperar
o tempo de desatenção aos diagnósticos que comprovam a eficácia no
tratamento terapêutico com a maconha. Atualmente só uma associação5 no Brasil conseguiu judicialmente o direito para cultivar, manipular
Localizadas em Merced, cidade da Califórnia- Estados Unidos, as freiras do vale possuem
uma missão de curar e emponderar mulheres a partir dos seus produtos feitos a base de
cannabis. EL, Pais As “freiras” da maconha Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/20/album/1492705960_507322.html#foto_gal_9> Acesso em: 20/04/2019.
5 A Associação Brasileira de Apoio a Cannabis Esperança (Abrace) em 2017 tornou-se a
pioneira no país a ter autorização concedida pela Justiça Federal da Paraíba.
4
705
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
e distribuir a medicação a base de maconha para os pacientes do país,
estes estando devidamente resguardados sob registros médicos que
afirmem a patologia e autorizem o tratamento.
Enfrenta-se ainda o fator da disseminação de termos que tolhem
as compreensões necessárias para o próprio esclarecimento legislativo,
por exemplo: drogas, tóxicos, entorpecentes, problematiza-se a utilização e classificação destas nomenclaturas imprecisas na própria legislação, indicando dissensão ou desconhecimento das reais implicações
que designam cada substância. Pois se em termos médicos/farmacológicos droga significa remédio, e ao se reconhecer drogarias como fonte
de referência na distribuição de medicamentos, torna-se contestável
estas significações assim atribuídas.
Estás más aplicações, que reúnem as drogas ilícitas sob
nomenclaturas imprecisas, devem parte de sua existência a práticas
e atos classificatórios que se reproduzem, mas que também, da
perspectiva política, acabam cumprindo uma função importante,
que consiste em condensar em um único bloco substâncias que são
alvo de perseguição governamental. Assim, o inimigo fica agrupado,
fato que torna mais simples a declaração de guerra às drogas.
(RODRIGUES, 2003, p. 18)
Outro fator é observado frente a inflexibilidade da medicina no
que tange as autorizações exigidas para se ter acesso ao tratamento,
tal fator é relatado por pacientes e familiares, logo sendo verificados e
analisados diante a quantidade mínima de médicos que acreditam no
potencial da maconha como método terapêutico. A maior parte destes
casos, nos revela que os médicos interessados no assunto hoje são os
responsáveis por recorrem a experiência empírica dessas famílias que
se submetem ao tratamento com a cannabis, bem como ao trabalho
desenvolvido pelas associações, para assim poderem compreender a
aplicabilidade medicinal dos efeitos da planta nos casos diagnosticados,
reconfigurando por tanto alternativas que a própria medicina se absteve
em acessar.
Tal contradição diante a agência da cannabis se faz notar na produção deste tabu numinoso. Como entender o clamor de uma nação
que sente dor, tendo em foco a problemática que esta planta dispõe?
706
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Seja pela ausência de saúde, ou pela ausência dos que se vão na mira
de uma guerra declarada, precisamos recorrer a antigas compreensões,
evidências, as análises minuciosas da história, que nos possa clarear os
sub julgamentos pré concedidos e adquiridos ao longo do tempo. O momento por tanto, mostra-se oportuno diante as urgências que se estabelecem e reivindicam atenção à vida.
Se as sociedades antigas buscavam através desta planta a cura
para o corpo e pro espirito, a história certamente torna a repetir-se e
nos propicia melhor debruçar-se sobre o entender deste campo. Retoma-se os debates sobre uma planta social, histórica e politicamente
demonizada e silenciada, mas que tem ganhado volume e voz diante as
necessidades do seu valor curativo. A isto nos cabe hoje prosseguir com
os registros que religam a história de um passado aparentemente ou
propositalmente sem memórias.
707
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
BECKER, Howard Saul. Outsiders:
estudos de sociologia do desvio.
1928.
FERREIRA Junior, Ubirajara.
Representações sociais da planta
Cannabis na religião do Santo
Daime: entre a sagrada Santa maria
e a proibida maconha. Disponível
em <https://www.academia.
edu/34055229/FERREIRA_
JUNIOR_Ubirajara._2017._
Representac_%C3%B5es_
sociais_da_planta_Cannabis_
na_religi%C3%A3o_do_
Santo_Daime_entre_a_
sagrada_Santa_Maria_e_a_
proibida_maconha_._2017._
Disserta%C3%A7%C3%A3o_de_
Mestrado_em_Psicologia_Social._
Rio_de_Janeiro_Universidade_
do_Estado_do_Rio_de_
Janeiro_UERJ_202p> Acesso em:
20/04/2019.
GROOPMAN, Jerome. maconha:
para um debate sem preconceito.
Disponível em <https://
outraspalavras.net/posts/
maconha-para-um-debatesem-preconceito/>Acesso em:
20/04/2019.
G1 PB. Paraíba: G1 Globo, 2017. Juíza
autoriza cultivo e maconha para
tratamento medicinal na Paraíba.
Disponível em < https://g1.globo.
com/pb/paraiba/noticia/juizaautoriza-cultivo-da-maconha-paratratamento-medicinal-na-paraiba.
ghtml> Acesso em: 20/04/2019.
LABATE, Beatriz; POLICARPO,
Frederico; GOULART, Sandra Lúcia;
ROSA, Pablo. Drogas, políticas
públicas e consumidores. –
Campinas, SP: Mercado de Letras;
São Paulo, SP : Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre Psicoativos
(NEIP), 2016.
MACRAE, Edward; COUTINHO,
Wagner Alves. Fumo de Angola:
canabis, racismo, resistência e
espiritualidade. Salvador: EDUFBA,
2016.
RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico:
uma guerra na guerra. São Paulo:
Desatino, 2003, p.18.
VIDAL, Sérgio M.S. Cannabis
medicinal: Introdução ao Cultivo
Indoor. Salvador – BA: Edição do
autor, 2010.
[ Volta ao Sumário ]
708
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
uma voz que eCoou
pRofetismo em
limoeiRo-pe: reflexões
sobre o catolicismo a partir de
um recorte da história de vida
de padre luis Cecchin
marcos Lucena da Fonseca
Sergio Sezino Douets vasconcelo
Como referenciar este capítulo:
FONSECA, Marcos Lucena da; VASCONCELO, Sergio Sezino Douets. Uma voz
que ecoou profetismo em Limoeiro-PE: reflexões sobre o catolicismo a partir
de um recorte da história de vida de Padre Luis Cecchin. In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 702-719.
Marcos Lucena da Fonseca1
Sergio Sezino Douets Vasconcelo2
Introdução
Este texto está pautado a partir das reflexões do Grupo de estudo
Religiões, Identidades e Diálogos, do PPGCR da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP), alicerçado na linha de pesquisa – Campo Religioso Brasileiro, Cultura e Sociedade – a qual se baseia no pressuposto epistemológico de que a prática da religião e/ou religiosidades constitui-se
em um fenômeno social cujo estudo crítico e sistemático, com o aporte
transdisciplinar das diversas ciências (como antropologia, sociologia,
psicologia e teologia), é essencial para a compreensão da cultura brasileira. Ele está em consonância com tema central do Simpósio Nordeste
da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR): Religião, Direitos
Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades, 2019.
Tal tema teve por objetivo estimular diálogos que valorizassem
o respeito a todas as diversidades como elementos centrais dos processos de formação educacional e humana, numa perpspectiva de, em
tempos de polarização e intolerância, de censura e perseguições político-ideológicas, pudesse, o tema, ser de suma importância, já que o
evento intentou ser um posicionamento a favor da liberdade de pesPossui graduação em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia -INSAF (2010),
graduação em Pedagogia pela Faculdade de Ciências de Wenceslau Braz-FACIBRA (2015),
graduação em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP (2016), graduação em Psicologia pela Faculdade Frassinetti do Recife-FAFIRE (2019) e mestrado em
Mestrado em Educação pela Universidade de Pernambuco-UPE (2017). Atualmente é
doutorando da Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP (2019).
2
Doutorando pelo PPGCR da UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco). Endereço
para acessar o CV: http://lattes.cnpq.br/8857252261158471. Endereço eletrônico:
fonsecalucena@hotmail.com Grupo de pesquisa Religiões, Identidades e Diálogos.
Orientadores: Luiz Alencar Libório – Endereço para acessar o CV: http://lattes.cnpq.
br/2889916979419619. Endereço eletrônico: laliborio@terra.com.br e Sergio Sezino Douets Vasconcelo – Endereço para acessar o CV: http://lattes.cnpq.br/4339279132579440
Endereço eletrônico: douets@uol.com.br.
1
710
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
quisa, docência e extensão, e da análise crítica e sensível da sociedade.
Este textou esá voltado, também, para o GT do Simpósio – Profetismo
e lideranças católicas no Brasil: histórias e memórias que movimentam
este campo religioso – que possibilitou comunicações e debates que
apresentaram, profetas e lideranças que dispunham de características
distintas, porém num sistema religioso que adquiriram importâncias
semelhantes, que ajudam e podem contribuir na compreensão da dinâmica e do funcionamento da religião.
Este texto, fruto da nossa pesquisa de mestrado, endoçada e enriquecida, pelo doutoramento, o qual se propõe a ser uma reflexão acerca
do catolicismo a partir de um recorte da história de vida do Padre Luis
Cecchin, pois tal sacerdote católico é consederado em Limoeiro-PE, um
“homem de Deus” que fez muito pelos desvaforecidos, sobretudo, por
famílias e crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, disprovidos de dignidade e cidadania.
A metodologia utilizada foi qualitativa de cunho explorário, norteada pela ferramenta histórias de vida, onde se tem destaque o tempo, o processo e a interlocução construída no recolhimento da história
de vida, de modo a aprofundar reflexões, trabalhos com a memória e,
ainda, sobre como é importante ponderar sobre os lugares de onde se
fala. Nas histórias de vida, além da história individual, conta-se sobre a
história de uma época, grupo ou povo (PAULILO, 2019).
Padre Luis Cecchin e os impactos dos mundos
eclesial e civil
Tem gente que tem cheiro das estrelas que Deus acendeu no céu e
daquelas que conseguimos acender na Terra. Ao lado delas, a gente
não acha que o amor é possível, a gente tem certeza. (Almas Perfumadas – Carlos Drummond Andrade)
Diante do que expõe Drummond, destacamos, aqui, o Pe. Luis,
não só no aspecto religioso, de sacerdote, mas, como educador e agente transformador social da cidade de Limoeiro-PE. O que trago é o que
vislumbra e atesta em sua pesquisa de cunho científico, o autor Franco
Marton, em sua obra: Quem fostes ver no sertão? Perfil do Pe. Luis Cecchin,
missionário “fideidonum” no Brasil, coleção testemunhas 11, 2014.
711
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Já na apresentação do livro, Giofranco Agostino Gardin, ressalta
uma das afirmações de Pe. Luis: “Os pobres, os oprimidos, os sofredores
de tantas formas, me ajudaram a conhecer melhor e a seguir Jesus pobre, desprezado, sofredor por nosso amor e sempre misericordioso’”.
“Os pobres e Jesus. (...) Precisamos, redescobrir a ligação inseparável
dessas palavras. A vida do Pe. Luis nos ajudará a compreendê-la”. (Marton, 2014, p. 8). A vida de Pe. Luis para Merton, foi, concomitantemente,
como o predecessor de Jesus, João Batista, que conclamava: “Eu não
sou o Cordeiro de Deus, o Salvador. É alguém que é maior que eu. Jesus, o Filho de Deus”. Dizia constantemente o que se devia fazer: “quem
tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; quem tiver comida, faça o
mesmo a quem tem fome”. Aos mais “fortes”, com condições biológica,
psíquica, cultural, social, econômica, dizia-lhes: “não maltrateis a ninguém, nem tomeis dinheiro a força; contentai-vos com os vossos salários; amai os necessitados”. (BIBLÍA JERUSALÉM, 2016, Lucas 3, 10-14).
Quando se ordenou, vivenciou época de mudanças na Igreja Católica e no Mundo. Na primeira, vieram metamorfoses trazidas pelo Concílio Vaticano II, pois as mudanças sociais, culturais, políticas e religiosas
ocorridas nos séculos XIX e XX foram alguns dos principais motivos para
a convocação do Concílio, já que João XXIII, ao convocar o Concílio Vaticano II, dizia como queria a Igreja: “uma Igreja pobre para os pobres” e
como apontam Almeida, Maçaneiro e Manzini (2013), no livro As janelas
do vaticano II, eram necessárias uma renovação e adaptação da Igreja Católica às chamadas questões modernas, já em pleno ebulição nos
anos 1950 cinquenta. Imbuído do espírito de “aggiornamento” do Vaticano II, bem como dos influxos das universidades americanas na Itália,
que trouxeram temas de contestação juvenil, desarmamento nuclear,
étnica, justiça internacional, crise da cultura acadêmica das universidades e didática, questionamento aos exames, pedia-se voto político,
contestava-se as aulas catedráticas, movimento estudantil, junto com o
sindical, desconfiança em relação aos políticos, a petição de democracia
já, revolução cultural, o assassinato de Che Guevara, de Martin Luter
King, influenciando muitos jovens, etc., conduziram o jovem Pe. Luis,
considerado coerente em sua vida sacerdotal, bondoso de ânimo, crítico
e equilibrado, sobretudo, voltado aos problemas dramáticos, sociais e
eclesiais, a ter mais tarde atitudes, como a que teve no que concerne
a famílias, mas, sobretudo a crianças e adolescentes em situação de
vulnerabilidade social (CASVS).
712
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Vale salientar que o Pe. Luis Cecchin, quando chega ao Brasil, na
década de 60, veio certamente, entremeado das ideias que já circulavam na Europa, como as do Vaticano II, com seu “aggiornamento”, seu
“abramos a Igreja e deixemos sair a poeira para que ar novo possa entrar”. Tal aggiornamento significa “atualização” e foi a orientação chave dada como objetivo para o Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa
João XXIII em 1962, que buscava adaptação e nova apresentação dos
princípios católicos ao mundo atual e moderno, sendo por isso um dos
objetivos fundamentais do Concílio Vaticano II: “fomentar a vida cristã
entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à
união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir
para chamar a todos ao seio da Igreja”. (SC, n.1). Certamente, o Pe. Luis
realizou suas ações missionárias em Limoeiro-PE embebido naquilo
que o Vaticano II trouxe para a Igreja Católica segundo Brighenti (2015),
quando aponta que o Vaticano II é uma combinação de “continuidade”
e “descontinuidade”, de fidelidade à Tradição, mas também de profunda reforma, na perspectiva cunhada por Calvino, oriunda dos santos
Padres e que o Concílio também fez sua: Ecclesia semper reformanda.
O Vaticano II foi um passo ousado no resgate das fontes bíblicas e patrísticas, relidas e assumidas no contexto do mundo moderno, contra o
qual a Igreja se opunha há cinco séculos.
Por um lado, a renovação conciliar é “continuidade”, uma vez que
o Vaticano II, por mais inovador que seja, não rompeu com a Tradição
da Igreja e, consequentemente, é continuidade de muito do que foi recebido, de geração em geração, através dos séculos. Por outro lado, se
tudo é continuidade, então não haveria novidade ou mudança, quando,
na realidade, o Vaticano II fez uma profunda reforma da Igreja em todos
os campos, ad intra e ad extra, seja no âmbito das práticas pastorais,
seja nas estruturas eclesiais. Desta maneira, nos quinze capítulos que
compõem a obra, Brighenti (2015) mostra como o Vaticano II superou
tanto o eclesiocentrismo do Catolicismo medieval como o clericalismo
e a romanização do Catolicismo tridentino e elaborou uma nova autocompreensão da Igreja, em diálogo com o mundo moderno, em espirito de serviço, especialmente aos mais pobres. Entretanto, além de
novos princípios provindos da reforma do Vaticano II, com certeza um
713
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
dos documentos que mais deram impulso de ação ao jovem Pe. Luis foi
Declaração Gravissimum Educationis – Sobre a Educação Cristã, onde
encontramos uma defesa eminente acerca da Educação como direito de
todos, sobretudo, das crianças e jovens e àqueles que não têm acesso à
Educação, como declara o citado documento: “O sagrado Concílio Ecuménico considerou atentamente a gravíssima importância da educação
na vida do homem e a sua influência cada vez maior no progresso social
do nosso tempo. (GE, n. 1 e 3).
As mudanças do Vaticano II foram mais incisivas na vida do Pe.
Luis, mormente, com o grande fomento da Doutrina Social da Igreja,
pois o documento da Igreja acima propõe que os sacerdotes tratassem a
Educação como um ato de evangelização como era um ato benéfico tanto para conservar como para aumentar a presença da Igreja no mundo,
desenvolvendo nos alunos o espírito de Cristo, que não custa lembrar,
era um espírito humano, libertador, generoso, preocupado com a causa
dos necessitados e desfavorecidos tinham como escopo a vida em sua
forma mais plena possível. A Doutrina Social da Igreja pretende agir a
partir da realidade das próprias coisas. Em outras palavras, o escopo
da doutrina social da Igreja (DSI) é “levar os homens a corresponderem,
com o auxílio também da reflexão racional e das ciências humanas, à
sua vocação de construtores responsáveis da sociedade terrena”. (SRS,
n. 41). Joao Paulo II, ainda, saliente:
A atividade econômica, sobretudo a da economia de mercado, não
pode desenvolver-se num vazio institucional, jurídico e político. Ela
supõe que sejam asseguradas as garantias das liberdades individuais e da propriedade, sem esquecer uma moeda estável e serviços públicos eficazes. O dever essencial do Estado, no entanto, é assegurar essas garantias, para que aqueles que trabalham possam
gozar do fruto de seu trabalho e portanto sentir-se estimulados a
realizá-lo com eficácia e honestidade… O Estado tem o dever de
vigiar e conduzir a aplicação dos direitos humanos no setor econômico; nessa esfera, porém, a primeira responsabilidade não cabe ao
Estado mas às instituições e aos diversos grupos e associações que
compõem a sociedade. (CA 48).
Outro ponto a se destacar, além da Doutrina Social da Igreja, é o da
Teologia da Libertação, que, corrente teológica cristã nascida na América
714
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Latina, depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, que
parte da premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos
pobres e especifica que a Teologia, para concretar essa opção, deve usar
também as ciências humanas e sociais. Tal corrente interpreta os ensinamentos de Jesus Cristo em termos de uma libertação de injustas condições econômicas, políticas ou sociais. Ela foi descrita, pelos seus proponentes como reinterpretação analítica e antropológica da fé cristã, em
vista dos problemas sociais, embora, seus oponentes a descrevem como
um marxismo, relativismo e materialismo cristianizado. (DUSSEL, 1999).
O método destas teologias é indutivo: não parte da Revelação e da
Tradição eclesial para fazer interpretações teológicas e aplicá-las à realidade, mas partem da interpretação da realidade da pobreza e exclusão
e do compromisso com a libertação para fazer a reflexão teológica e
convidar à ação transformadora desta mesma realidade. Ocorre também uma crítica à teologia moderna e sua pretensão de universalidade.
Consideram esta teologia eurocêntrica e desconectada da realidade dos
países periféricos. (BOFF, 2003).
Início da trajetória do Padre Luis Cecchin: missão e
educação libertadoras
Em 28 de fevereiro, desembarca no Brasil, para começar sua trajetória de profetismo, abnegação e luta para amar Jesus nos pobres, embebido por documentos do vaticano II, dos da Igreja na América Latina,
como Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida e influenciado por
Dom Helder Câmara, por teólogo como José Comblin e Gustavo Gutiérrez. Pe. Luis chega a Limoeiro-PE, com as citadas influências e com a
realidade de Limoeiro-PE clamando por justiça social, como aponta alguns motivos, Marton ao dizer:
Em Limoeiro ‘a miséria e a injustiça que grita ao céu’ estavam sob
os olhos de todos e pesavam sobre as costas dos pobres, oprimidos
e humilhados. O evangelho, anúncio de libertação para os afadigados e os oprimidos, bem como Medellín, pediam com força à Igreja
latino-americana que se empenhasse corajosamente na libertação
dos pobres de toda opressão. (2014, p. 27).
715
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Seguindo o profeto bíblico Amós, gritou altissonante contra os que
“vendiam o justo por dinheiro e o pobre por uma par de sandálias” e
“pisavam a cabeça dos pobres como se pisam o pó da terra” (BÍBLIA DE
JERUSALÉM, 2016, Amós 2, 6-7); derramavam sangue dos pobres, as
matanças a mando dos coronéis e donos de terras limoeirenses; contra as desigualdades e injustiças. O foco era sempre lutar a favor dos
pobres, oprimidos e injustiçados. Usando o nome de Jesus, clamava: os
pobres são os mais amados de Deus, portanto, devem o ser da Igreja e
de todo aquele que se diz cristão. Amar o pobre não é aprisioná-lo, mas
liberta-lo por meio da promoção humana. A pedagoga Maria do Carmo,
que trabalhou com o Pe. Luis e hoje, também é uma das que da continuidade ao Instituto Padre Luis Cecchin (IPLC)3, guardou escritas algumas
assertivas de Pe. Luis que podemos ler nas frases anotadas por ela e
fornecida do seu arquivo pessoal:
Se as crianças não reconhecem que são amadas, não serão felizes.
Como é visível a presença de Deus no olhar de cada criança. O amor
de Deus nos chama para amar. O rumo todo da nossa vida é o amor.
Somos chamados a semear a boa semente. Cedo ou mais tarde ela
vai germinar. Deus nos chamou ao fundamental que é a vida. Ele
nos colocou a fé que nos compromete a servir aos outros. Ninguém
é feliz vivendo para si mesmo. Quem ama a Deus- fonte da vidaama a vida. Nossa vida é o reflexo de nossas ações. Somos chamados a ser instrumento de vida e libertação neste mundo. Prove o
seu amor a Deus, amando o seu irmão. Nossa tarefa de cristãos é
colocar no coração da humanidade o amor. Eu sou justo, se respeito
à vida. Faça crescer a sua pessoa, aprendendo uma profissão. Vai
ganhar na sua qualidade de vida, vai facilitar seu futuro econômico!
Deus está conosco neste esforço de nos aprimorar, nesta nossa atividade de educadora junto com ele. A nossa ajuda aos pobres tem
estas finalidades: desenvolver a sua pessoa; como homem de bem,
sadio no corpo e no coração; como trabalhador competente; como
bom cristão alegre; como cidadão responsável pelo bem comum.
O IPLC continua a dar a mão amiga aos pobres, para que alcancem
uma vida digna como Deus quer para todos os seus filhas e filhas.
Devemos ajudar os filhos a usar a liberdade para o bem. O jovem
Para saber sobre o Instituto Padre Luis Cecchin acessar: https://iplclimoeiro.wixsite.
com/iplclimoeiro.
3
716
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
não é só do futuro, é do presente também. Devemos ajudar o povo
de Limoeiro a ser amado, a ser valorizado, sentir-se respeitado.
Despertar na criança e no adolescente a amar a si mesmo. (Texto
escrito por Maria do Carmo, livreto que se encontra no arquivo da
sede do IPLC).
As palavras de Pe. Luis tiveram registros, ecos e são valorizadas,
porque junto com elas, vinham aquilo que podemos encontrar na seguinte máxima: “o exemplo não é a melhor formar de educar, é a única”.
Embora, o exemplo, também, não seja a única, mais é uma das mais
eficazes que conhecemos, na modalidade missionária e educativa, com
público que Pe. Luis teve como foco. Ele falava e praticava.
O conceito de missão e educação que possuía e realizava na prática era o da Educação libertadoras. Num breve comentário, vale dizer que
quando o Pe. Luis chegou a Limoeiro-PE não sabendo falar português e
até as crianças o ensinava, mas, depois foi ele que fez por muitas delas. De fato, vale ressaltar que No dia 6 de janeiro de 1969, na igreja de
Galliera Veneta, o Bispo Mons. Antonio Mistrorigo presidiu a cerimônia
de “envio” do Padre Luis como missionário “fidei donum” para a Diocese de Nazaré, Estado de Pernambuco, Brasil. Um mês depois, em 6 de
fevereiro, desembarcou no Brasil, no Rio de Janeiro e, em 26 de maio,
chegou de ônibus a Limoeiro-PE, perto de Recife-PE, diocese de Nazaré.
Naquela terra, por 40 anos esteve a serviço dos pobres, dos “Últimos”,
e, para ser como eles, viveu na simplicidade. Portador de uma doença
grave, não aceitou privilégios para tratar-se, porque os pobres, dizia ele,
não tem privilégios. Voltou à Itália em 28 de fevereiro de 2010, para
tratar-se. Isto fez somente por obediência ao seu Bispo. Morreu em
Mussolente – Diocese de Treviso – em 26 de março de 2010, assistido
por seu Bispo Diocesano do Brasil, Dom Severino Batista de França e o
Vigário Geral da diocese, na época, Pe. Antônio Inácio Pereira da Silva,
que propositadamente, vieram à Itália para acompanhá-lo em sua “última viagem”. Foi sepultado, na segunda feira de Páscoa de 2010, na sua
igreja paroquial de São Sebastião em Limoeiro-PE, acompanhado de
uma multidão, de seus “Pobres” que sempre viram nele a manifestação
do amor de Deus. (MARTON, 2014).
717
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Falas que reverberam Padre Luis Cecchin e suas
ações proféticas
Do testamento espiritual (09 de junho de 2008) do Pe. Luis:
Eu, Luís Cecchin, agradeço com todo o coração a Deus meu Criador
pelo dom da vida. A história da minha vida é um constante ato de
amor de Deus Pai, de Deus Filho, de Deus Espírito Santo, no qual
creio firmemente por meio do dom da fé cristã, na qual fui batizado
(…). Chegando o momento da minha passagem desta vida terrena a
vida eterna, pedindo humildemente perdão dos meus muitos pecados, confiante no amor misericordioso de Deus que quer me salvar
por meio da paixão e morte amorosa de Jesus seu Filho, meu Redentor, me entrego a Ti, meu Deus, Pai amoroso, como um filho, assim como sou; entrego-me a Ti, Jesus, Filho de Deus, feito homem
no seio da Virgem Maria, que me amaste até mesmo sacrificando
a tua vida humana. (…) Me entrego a Ti, Deus Espírito Santo, que
desde o batismo me santificaste e me acompanhaste com infinita
paciência para ser e viver como filho de Deus, que é Santo, e a todos oferece por teu meio o dom para ser santos. Entrego-me a Ti,
Maria, Mãe Santíssima de Jesus e da Igreja e minha amada Mãe de
misericórdia. Estiveste sempre presente com teu amor materno na
minha vida e, nesta hora da minha morte, acompanha-me ao teu
amado Filho. (…) Sou muito agradecido a Deus que me quis missionário no Brasil. Conheci momentos de alegria espiritual, experimentei minha fragilidade de pecador, provei a presença de Jesus… Os
pobres, os oprimidos, os sofredores em tantas maneiras, me ajudaram a conhecer melhor e a seguir Jesus pobre, desprezado, sofredor
por nosso amor e sempre misericordioso. O trabalho com crianças,
rapazes e jovens pobres materialmente, moralmente e espiritualmente, me colocaram mais perto de Jesus, que, sem descuidar de
nenhuma pessoa, dá um amor predileto a eles (…). Maria, mãe santa
de Jesus e minha amorosa mãe, acompanham-me ao teu bendito
Filho Jesus. Assim seja.
O testamento para o seu povo (24 de janeiro de 2010)
No fim da Santa Missa da festa do padroeiro São Sebastião, para
as pessoas da sua paróquia em Limoeiro-PE, deixou uma mensagem de vida, que somente por um homem santo, apaixonado por
718
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Deus, podia surgir. Eis algumas frases: “Eu estou no fim da minha
vida, e pouco tempo me resta; mas, gostaria de deixar para vocês
esta lembrança. Nós hoje, eu por primeiro, vocês pais de família, nos
perguntamos: estamos transmitindo aos nossos filhos, aos nossos
jovens, a riqueza da fé dos nossos pais? Se nós não transmitimos a
fé, os nossos filhos ficam vazios. Nós cristãos devemos começar a
assumir o compromisso de ensinar aos nossos filhos o amor à vida.
Eu gostaria, saindo desta igreja, que todos nós, eu por primeiro,
mais velho, pelo tempinho que o Senhor me dá ainda, pudéssemos
dizer: “Quero ser cristão no mundo de hoje. Quero ser cristão hoje.
Em todas as atividades, em toda parte, quero ser cristão!“.
Última mensagem do Pe. Luis Cecchin no leito do hospital, em 09
de março de 2010, poucos dias antes de morrer, disse:
Estou aqui nas mãos do Senhor, confiante. Aquilo que Ele dispõe é a
coisa mais bela. Deus nos quer bem em todos os momentos da vida.
Continuem a serem unidos na oração, no amor e na solidariedade.
Este meu sofrimento é um dom de Deus. Agora olho a Ressurreição! A nossa família não deve dissolver-se nem preocupar-se em
nenhum momento da vida…”.
No prefácio do livro de venerando, o último bispo de Pe. Luis Dom
Severino Batista, diz acerca de Pe. Luis:
Ouvimos dizer que não se avalia uma pessoa pelo que ela faz, mas
pelo que ela é. Contudo, quero afirmar que nestas páginas, não
somente encontramos o ser, mas, também, a ação de um sacerdote que, nas terras do Nordeste brasileiro, viveu sua identidade
de consagração expressa no seu fazer, no agir e na missão... por
mais de quarenta anos viveu entre nós como missionário, principalmente na cidade de Limoeiro. Foi às margens do rio Capibaribe
que este homem de Deus dedicou sua vida aos pobres com ardor
e zelo missionário. (...) Para padre Cecchin não bastava anunciar as
boas novas, mas sim concretizar sua mensagem à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, pois Jesus veio como o “ungido
do Espírito do Senhor para evangelizar os pobres” (Lc 4,18). Esta foi
sua grande preocupação ao chegar como missionário às terras do
Agreste pernambucano, e encontrar tantos necessitados vivendo
em total abandono nas periferias de nossas cidades. A partir desta
719
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
realidade, com contraste com que viveu na relicária Itália, seu berço
natal, impulsionado pelo Espírito do Senhor, é que assumiu a missão evangélica com os pobres, dedicando-se às crianças e adolescentes da cidade de Limoeiro. A opção preferencial pelos menos
favorecidos nas famílias constituídas de crianças e adolescentes
jogadas ao relento da vida, tornou-se a meta de Pe. Luis Cecchin,
sendo a principal pastoral missionária e profética. Nos necessitados, ele via a pessoa humana transformada em trapo. A sua visão
de homem aberto aos sinais dos tempos, era de preparar e formar
as pessoas. É sobre o ser humano reerguido e liberto das injustiças
sociais, que a pessoa se lança à fé tornando-se verdadeiro cristão,
para em seguida ser um homem novo, transfigurado na pessoa de
Cristo. Assim, a primeira preocupação do Pe. Luis Cecchin foi formar
o homem, e, depois, o cristão. (VENERANDO, 2012, prefácio).
Fica claro nessas falas que a sua motivação era evangélica de libertar aos pobres como o fez Jesus e por motivo cristão de amor ao
próximo, que o levou a retalhar as injustiças sociais, exclusão social, desigualdades, mormente, com um gesto concreto em prol das CASVS da
cidade de Limoeiro-PE durante e depois daquele período do engendramento do IPLC, como, também, atestam alguns testemunhos apresentados por Venerando (2012): seu irmão Angelo Cecchin:
Em cada cidade que passou, deixou um exemplo. Em todos as paróquias tomava boas iniciativas. Vivia para os pobres. Era muito preocupado com os jovens” (p.15). Tereza Toniolo, Cunhada: “o Pe. Luis
deixou-nos um grande exemplo pois ele sabia, como ninguém, amar
a todos de maneira igual. Renunciou tudo que poderia ter para si.
Não queria nada. Ao contrário disso, estimulou pessoas para que,
a cada ano, procurassem doar para os outros alguma coisa de que
não precisassem, de maneira que sempre dividissem o que tinham
com os que precisassem mais. (...) Desde a infância percebe-se que
ele verdadeiramente percorreu um caminho diverso das outras
pessoas. Ele dizia que somos todos irmãos perante Deus. Ensinava
a formar uma consciência de amor e afeto”. (p. 9). Pe. Jorge Barbieri, amigo: “convivi quarenta anos com o Pe. Luis. Era amadurecido,
tinha uma experiência profunda, atenção especial para as crianças
abandonadas, idosos e desempregados. Ele tinha uma grande espiritualidade. Amava Jesus Cristo. A missa e o terço ministrados por
ele eram de uma piedade extraordinária. Ele tinha grande capacidade de unir o espiritual com o material, sempre em espírito cristão,
720
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
que o ajudava a levar uma vida dedicada. Viveu sempre de forma
humilde. Ele dizia: ‘o essencial é de Deus’. Era de uma simplicidade grande. Vivia uma vocação voltada à pobreza, de forma concreta”. (pp. 22-23). Pe. José Nivaldo, ex-pároco de Nossa Senhora da
Apresentação em Limoeiro-PE: “o Pe. Luis deixou grandes marcas
no sentido da caridade, fé cristã e serviço aos pobres. Teve o heroísmo de ser a presença de Cristo em meio às pessoas. Foi fiel à
fé ao evangelho até o extremo, ao qual demonstrava um amor verdadeiro; qualquer um percebia isso. Ele deixou a semente do amor,
da escuta. Por isso continua vivo pelo grande bem que fez”. (p.26).
Adalto Duarte, amigo: “o Pe. Luis fez muita coisa boa pelo povo de
Limoeiro; protegeu as crianças, e foi um amigo. Vai ser difícil aparecer outro aqui em Limoeiro para fazer o que ele fez. Foi um grande exemplo de vida cristã. Exemplo de dedicação à Igreja e ao povo
pobre com integridade”. (p. 39). Jaime Lima, amigo: “a virtude maior
do Pe. Luis, foi saber amar. As crianças adoravam estar perto dele.
Tinha muito jeito com os pequeninos e foi um grande missionário
querido por todos até hoje”. (p. 59).
Seu pensamento, já naquela época, norteado pelas ideias vigentes no seu contexto religioso, sociohistoricocultural e do documento de
Medellín, que tratou de uma “Educação Libertadora”, “que transforma
o educando em sujeito do próprio desenvolvimento. A Educação é, de
fato, o instrumento-chave para libertar os povos e cada um dos indivíduos de toada escravidão e para fazê-los ascender de ‘condições menos
humanas para condições mais humanas’”. (IDEM, pp. 38-39). A pergunta
que norteava e angustiava Medellín, Puebla e Pe. Luis era: como pode
países de confissão católica, na América Latina, como o Brasil, existir
tanta injustiça? Não era fácil chegar a uma resposta, mas para Pe. Luis,
uma das respostas era: ausência de E, mas, não qualquer uma, tinha
que ser libertadora. Para que a E libertadora entrasse em ação, pensou não em uma obra grande, mas, numa “Grande Obra”, que a chamou
assim, por causa dos seus princípios. Criou um “Centro de Formação”,
que depois transformou em “Centro de Formação de Menores” (CFM).
“Grande obra”, porque quis primeiro formar as famílias para que estas
formassem as crianças. Mas, como a demanda era grande, criou o CFM,
com os seguintes princípios: a família deve estar envolvida no processo
de E dos “menores”, o povo de Limoeiro, pobres e ricos, quem deveria
prover as necessidades do CFM, como expressão da comunidade; o foco
721
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
da formação era promover o homem e o cristão, sem partidarismo, isto
é, qualquer pessoa poderia contribuir com o CFM, seja cristão ou não
cristão, só precisava ter o vento evangélico (homem de boa vontade),
sensibilidade para humanizar e libertar os pobres da sua condição desumana, pois no CFM, não se tinha o ar clerical e sim vento humanizante
e libertador. Diz Marton:
Em limoeiro já existia uma atividade de assistência às crianças
pobres. Mas na linguagem atual diríamos que se tratava de uma
atividade “assistencialista”, com todas as vantagens e limites que
o assistencialismo comporta. Um episódio narrado recentemente
pelo proprietário de uma Olaria em Limoeiro ilustra bem a visão do
Pe. Luis a este respeito. Este tinha ido comprar as telhas para as
capelas qua as comunidades estavam construindo no interior. Logo
passaram também duas crianças pedindo dinheiro. O dono da olaria, talvez até pensando que na frente do padre não seria o caso de
negar uma esmola aos pequenos, lhes deu logo. A reação do Pe.
Luis ainda continuava viva na lembrança do senhor Duarte: “jamais
se deve dar dinheiro às crianças!” no começo parecia um conselho,
mas depois acabou se tornando uma recomendação argumentada e
no final praticamente virou uma ordem: “nunca dê dinheiro a crianças! Pode dar a quem quiser: um doente, a portador de necessidades, a um adulto... mas jamais a uma criança!” Pe. Luis repetia frequentemente o provérbio chinês do livrinho de Mao: “não dê o peixe,
ensine a pescar!” e completava evangelicamente: “na fraternidade!”
As crianças e os jovens tinham necessidades não de esmolas, mas
de Educação. Essa foi uma de suas batalhas, que levou em 1970 ao
surgimento do Centro de Formação de Menores, a obra que tornou
o Pe. Luis conhecido também fora de Limoeiro, mas que nunca pode
ser compreendida se for separada da pastoral social que estamos
descrevendo. (2014, pp. 37-38).
Daí, o CFM foi construído fora dos âmbitos da Igreja Matriz da cidade e afastado da cidade, para que não tivesse nem promoção midiática, nem política, nem empresarial, nem assistencialista, nem paroquial,
nem a ideia de ser católica, mas do humano e do cristão. Incentivou
amigos italianos a serem padrinhos dos chamados “menores”. Todavia,
a administração do dinheiro e CFM era dele, com rigor e singeleza, simultâneas, sobre três fundamentos: sobre a opção preferencial pelos
722
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
pobres, uso evangélico do dinheiro e a pessoa de Jesus educador. Era
sóbrio no vestir, quase esquivo no andar, falar interiorizado, e, apesar
da “cruzinha”, que sempre usava, quem se aproximava, não importava a
postura religiosa, ficava à vontade, ao ponto de dizermos, quanto mais
religioso mais “leigo”. Também, era relevante seu olhar, ao ponto de podermos dizer como disse o comunista Ignazio Silone sobre um padre:
“aquilo que dele, na minha lembrança ficou mais marcado, a pacata ternura do olhar. A luz dos seus olhos tinha bondade e a clarividência que
às vezes se encontra em certas velhinhas camponesas, em certas avós,
que na vida pacientemente sofreram todo tipo de tribulações e por isso
mesmo sabem ou advinham as penas mais secretas”. (Idem, p. 49).
Pe. Luis não queria nem uma educação tradicional, nem clerical, e
por isso, não era impositivo nas suas formações, mas, dialogada,
capturando a realidade social e aberta a críticas. Também Pe. Luis
dialogou com adultos sobre “formação marxistas”, não raro naqueles anos, os quais ainda hoje lembram as longas conversações muito respeitosas (ele nunca buscava “capturá-los” os “convertê-los”
à sua ideia). Aceitava até mesmo as críticas mais duras, sempre
desejando conhecer melhor a situação social, inclusive com a ajuda de quem viesse de outro horizonte cultural. Isso tudo não havia
sido dito pelo Concílio? Por conseguinte, diante de tanta coerência
de vida, os não crentes ficavam admirados. (MARTON, 2014, p. 42)
Essa abertura para outros conhecimentos e outras formas de
pensar e agir, provinham do seu respeito ao ser humano, pois o próprio
sentiu na própria pele o que era ser rejeitado em suas ideias, ditas nas
homilias dominicais, quando foi considerado indesejado por suas ideias
ao ponto da Polícia Federal lutar para deportá-lo do Brasil em uma semana, como já foi acenado. Todavia, sem nenhuma prova específica de
ser um pecha, continua sua missão por uma libertação dos pobres e
oprimidos.
Alicerçado na Pedagogia dos Oprimidos de Freire, de quem era
leitor assíduo; na Teologia da Libertação da América Latina, de bispos
como Dom Aluísio Lorscheider, Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casadáliga, Dom José Maria Pires; e nos documentos da Igreja, Medellín
e Populorum Progressio, buscou aquilo que chamou de solução mais
723
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
adequada para os diversos problemas que atingiam os pobres na América Latina, se centrando em Limoeiro-PE, já que muitas respostas aos
novos desafios eram inadequadas. Criou as Comunidades Eclesiais de
Bases (CEBs), realizando, assim, o protagonismo do leigo, convocando
que eles se tornassem não vice-padre, mas a terem “maturidade espiritual” para assumirem “responsabilidades numa linha de autonomia”
diante dos compromissos enormes de “libertação, humanização e de
desenvolvimento”. Os leigos deveriam ser não clericais e nem prisioneiros das formas deterioradas da religiosidade popular, mas de espiritualidade encarnada, evangelho ligado à vida, ao ponto de serem autônomos em relação a tantas amarras, entre elas aos sacerdotes. Na
esteira de Medellín insuflava nos leigos que não deviam pensar que os
seus sacerdotes estão de tal modo preparados que tenha uma solução
pronta para qualquer questão, mesmo grave, que surja, ou que tal é
a sua missão. Antes, esclarecidos pela sabedoria cristã, e atendendo
a doutrina do magistério, tomem por si mesmos as próprias responsabilidades, pois compete aos leigos por suas livres iniciativas e sem
esperar passivamente ordens e diretrizes, introduzir espírito cristão,
na mentalidade e nos costumes, nas leis e nas estruturas das suas
comunidades de vida.
Por motivação evangélica, com uma pedagogia baseada no discernimento dos sinais dos tempos na trama dos acontecimentos, procurava não só ajudar aos pobres, mas, sobretudo, honrá-los, no sentido de
não os humilhar com o assistencialismo, pois dizia:
A ajuda material aos pobres não se deve se dá como benfeitor,
mas como se dá a um amigo”. Assim, “não aconteça que se ofereça com dom de caridade aquilo que já é devido como justiça;
suprimam-se as causas dos males, e não apenas os seus efeitos;
e de tal modo se preste a ajuda que os que a recebem se libertem
pouco a pouco da dependência alheia e se bastem a si mesmos”
(MARTON, 2014, p. 79).
Sendo assim, a cátedra que deveria existir no mundo, pelo menos
a que ele lutava, para que fosse a dos pobres, pois além de estarmos
lhes fazendo justiça, tinham muito a nos ensinar. Por isso, devem ser
os primeiros, sobretudo, a partir de uma ação colaborativa, partilhada e
724
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
não impositiva, como missionários de Cristo, batalhar por ela ser ocupada por eles, vaticinava Padre Luis Cecchin.
Para não concluir
Na tentativa de colocar um ponto “final” do presente texto, não
da proposta científica, nele, já que em ciência, ponto “final” está mais
para morte, espécie de suicídio científico, que o que tem sido, nos últimos tempos, o desafio da ciência: propor estabilidade sem deixar de ser
devir. Recorro ao Livro sobre nada de Manoel de Barros (2010, p. 350),
quando alerta: “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular
quantos cavalos de força existem no canto de um sabiá. Quem acumula muita informação, perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás
divinam”. Portanto, em outras palavras, já intento dizer que, por mais
que eu tentasse exaustivamente exaurir a história de vida de Padre Luis
Cecchin, seria um tentava em vão, símil a ciência pretender “calcular
quantos cavalos de força existem no canto de um sabiá”.
Entretanto, a partir do que, aqui, expomos e discutimos, inferimos
a eminente contribuição de Padre Luis deu a Limoeiro-PE. Ele lutou pelos menos favorecidos e desprovidos de direitos básicos do cidadão e
do ser humano, como o se alimentar e o direito de ir e vir. A sua história
é contada e recontada entre os limoeirenses como um grande profeta,
pois lutou contra o regime opressor dos coroneis existente no período
que chegou a Limoeiro-PE e erigiu o maior instituito de luta em favor de
crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social daquela
cidade e região: o Instituto Padre Luis Cecchi. A sua história de vida impacta e desafia a nós brasileiros a termos coragem de lutarmos contra
todo tipo de fascismo e totalitarismo. Eis, para mim, um pouco da história de vida de um profeta de nossos dias. Com o que, aqui, me prôpus,
não fiz e nem pretendi esgotar o tema, mas, apresentar a história de
vida de alguém que deu sua vida em favor dos menos favorecidos e que
ao seu lado, não achamos que o amor existe, “temos certeza”.
725
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ALMEIDA, Joãozinho; MAÇANEIRO,
Marcial; MANZINI, Rosana. As janelas
do vaticano II: a Igreja em diálogo
com o mundo. 3 ed. Aparecida-SP:
Santuário, 2013.
BARROS, M. Poesia completa. São
Paulo: Leya, 2010. [original 1998].
BíBLia JerusaLÉM. 17 impressão.
São Paulo: Paulos, 2016.
BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. 18a
edição. Petrópolis: Editora Vozes,
2003.
BRIGHENTI, Agenor. Em que o
vaticano II mudou a Igreja. Paulinas,
São Paulo, 2015.
Constituição Sacrosanctum
Concilium. In Documentos do Concílio
vaticano II: constituições, decretos,
declarações. Petrópolis: Vozes, 1966.
Declaração Gravissimum Educationis.
In: Documentos do Concílio
vaticano II: constituições, decretos,
declarações. Petrópolis: Vozes, 1966.
DUSSEL, E. Teologia da
Libertação – Um panorama do seu
desenvolvimento. Petrópolis: Editora
Vozes, 1999.
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica
Centesimus Annus. São Paulo:
Paulinas, 1991.
MARTON, Franco. Quem fostes ver
no sertão? Perfil do Pe. Luis Cecchin,
missionário “fideidonum” no Brasil,
coleção testemunhas 11, Itália\Brasil:
San Liberale, 2014.
PAULILO, M. A. S. A pesquisa
qualitativa e a história de vida.
Serviço Social em Revista,
Universidade Estadual de Londrina,
v. 2, n. 2, p.121-134, jul./dez. 1999.
Disponível em: Acesso em: Jan. 2019.
PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E
PAZ”. Compêndio da Doutrina Social
da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2005.
VENERANDO, Sivaldo. O guardião dos
pobres. Recife: Gráfica Salesiana Dom
Bosco, 2012.
[ Volta ao Sumário ]
726
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
tRadições e
lemBRanças da
Comunidade sefaRdita
de João Pessoa – PB
Renata Baltar Barros
Diógenes Faustino do Nascimento
Como referenciar este capítulo:
BARROS, Renta Baltar; NASCIMENTO, Diógenes Faustino do. Tradições e lembranças da Comunidade Sefardita de João Pessoa – PB. In: MARANHÃO Fº,
Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Anais do 3º Simpósio Nordeste da
ABHR - Religião, Direitos Humanos e Laicidade: Resistências, Diversidades e
Sensibilidades. João Pessoa: ABHR / Fogo Editorial, 2020, p. 720-731.
Renata Baltar Barros1
Diógenes Faustino do Nascimento2
Introdução
Intentamos destacar e dissertar sobre os desafios que esta comunidade enfrenta: comemorar suas datas festivas, obter alimentos
para o Kasher (Kosher), fomentar seus hábitos e costumes e como preservaram suas tradições. Trata-se do resgate da memória/lembranças
daquilo que foi passado e daquilo que pudesse ser identificado e resgatado nos resquícios do que se era praticado as escondidas. Objetivamos
trazer à tona a empatia e o conhecimento de uma visão de família, de
cultura, sociedade, saúde e espiritualidade, ajudando na fomentação integral do ser humano como indivíduo religioso sefardita e suas relações
com o povo paraibano (João Pessoa). Nosso fundamento principal traz a
presença histórica deste povo e como eles lidam com os desafios antissemitista e conservação das suas memórias e tradições.
Esta pesquisa teve como foco corroborar para a apresentação do
3º Simpósio Regional da ABHR Nordeste: Religião, Direitos Humanos
e Laicidade: Resistências, Diversidades e Sensibilidades, trazendo uma
visão da Religião, através de um olhar significativo no processo das praticas da educação Judaica Sefaradita. Encontrando traços nas práticas
da religião que perpetuam de geração a geração através da memória
na qual se definem como uma identidade. A comunidade busca seguir
as leis do livro sagrado a Torá, a alimentação kasher, entre outros costumes como a circuncisão (Brit Milá) dos meninos e o Bar Mitzvah, no
Graduada em História – Unavida/UVA-CE; Concluindo a especialização em Ciências das
Religiões, Diversidade e Ensino Religioso – IESP.
2
Mestre e doutorando em Ciências das Religiões\UFPB. Membro pesquisador do Grupo
Videlicet de Estudos em Religiões,Cultura e sistemas Simbólicos –UFPB/CE/PPGCR. Sócio
da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) – Nordeste. Coordenador Adjunto na Especialização em Ciências das Religiões, Diversidade e Ensino Religioso (IESP),
diogenesnascimento38@gmail.com.
1
728
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
qual representa sua iniciação na vida adulta e espiritual. Assim como
os homens utilizarem o Kippa em respeito a Deus no momento de suas
rezas. Sabemos que as religiões estão presentes no meio social, e que
podem se manifestar de diferentes formas e comportamentos em nossa cultura, levanto questões sobre as práticas educacionais judaicas
nas quais são relacionadas a códigos rígidos, como a respeito da comida
Kasher (dieta alimento judaico). São relatados também alguns conflitos
de questões religiosas similares a mesmas dando um enfoque sobre o
olhar dessas comunidades Judaicas. No qual alegam sua luta por sua
fiel identidade cultural e religiosa a um determinado povo. Este artigo
tenta construir significativas respostas a desafios existentes em nossa
época atual, retratando o cultural e religioso, mostradas pelo panorama
de uma comunidade referente ao Judeu Sefardita e sua representatividade milenar. Ao que parece a comunidade busca assim como qualquer
outra minoria, pela preservação de suas ideias religiosas tradicionais,
e integrar-se num corpo social, dentro de seus direitos e deveres. Com
respeito à diversidade religiosa, na busca pelo dialogo e reflexão.
Desenvolvimento
A religião Judaica está para sua cultura assim como sua cultura
para sua religião, para eles não há separação entre cultura e religião,
sendo assim pode dizer que ao longo da história da humanidade a maioria das culturas criou-se uma forma de preservação para suas tradições,
isto não seria diferente com os Judeus, uma das mais antigas religiões
monoteísta milenar, no qual se tem uma obediência a códigos morais
rigorosos, como o estudo da Torá (livro sagrado), frequência à sinagoga, comemorações festivas ao calendário Judaico, o consumo de comida kosher, vestimentas, o convívio social fora e dentro das diferentes
instituições e sua busca pela fidelidade ao passado e suas tradições e
uma obrigação de transmissão e educação feita de geração para geração. Sendo uma religião cultural monoteísta por 5.779 anos (calendário Judaico). Os judeus procuraram manterem-se firmes em suas leis
de acordo com a Torá, mesmo em meio a mudanças culturais estes
729
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
buscaram manter-se fieis, sendo talvez um dos povos que mais influenciaram outras religiões, hábitos, costumes, ritos, vestimentas, alimentação. O povo judeu não é um povo laico, portanto podemos afirmar que
sua religião estabelece suas regras e leis e assim seu modo de vida em
particular e obviamente, tendo seus limites estabelecidos pela Torá. Já
no cristianismo muitas das vezes respeitando um Estado Laico, baseia
se no seu livro sagrado a Bíblia na quais umas de suas regras construídas é a evangelização, ao contrário dos os Judeus que são proibidos de
praticar proselitismo, como afirma Borges, líder da comunidade judaica
Sefardita de João Pessoa;
Nós somos proibidos de fazer proselitismo, o judeu não pode fazer
com que ninguém queira se tornar Judeu, porque nós não somos os
únicos que estamos com a verdade, existem muitas verdades por
ai, a gente só pede o seguinte, você quer ser cristão? Seja o melhor
cristão, você quer ser budista seja o melhor budista, você quer ser
mulçumano seja o melhor mulçumano, a gente não quer que venha
pra se converter, ou seguir a gente, não. Então nós não fazemos
proselitismo. (...) Mas divergências sempre haverá, não é fácil, lidar
com pessoas com pensamentos diferentes discordantes, e entre
a diversidade religiosa a gente tende a encontrar, “o diferente”, é
como qualquer outro, seja dentro de uma Igreja Católica, dentro de
uma Igreja Protestante, Centro Espírita, um Terreiro de Umbanda,
desde as pessoas mais intelectualizadas aquelas menos abastadas,
então não é fácil lidar com o ser humano.
Segundo Borges, o Judaísmo messiânico não existe, ou se é Judeu
(Sefardita ou Asquenazi) ou se é cristão.
Existem algumas denominações que se dizem Judaicas, mas são
messiânicas, são cristãs com viés judaico, pegaram as simbologias,
as práticas, os costumes com a mesma roupagem que já tinha, e só
aflorou mais a simbologia deles, mas pra ratificar aquilo que eles já
acreditavam que é a ramificação do cristianismo, eu já digo a você
de antemão que judaísmo messiânico não é judaísmo, é cristianismo com outro viés.
Porém é um direito de cada um acreditar em sua ideologia, ainda
que essa vá contra a identidade de outra dentro de suas convicções, no
730
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
caso dos messiânicos assim são chamados por seguirem aquele que
eles consideram Jesus Cristo como Messias. Outra similaridade entre
os Judeus messiânicos e Judeus são as comemorações festivas, ambos
procuram guardar festividades da Torá, porém com diferentes correntes
de interpretações, mas os messiânicos são bem similares aos cristãos.
Já na questão da alimentação nota-se que a dieta Judaica é muito
rígida. Onde alguns historiadores identificaram em suas pesquisas inúmeros hábitos do povo Judeu, e através da memória foram buscando o
resgate de suas raízes, passando de geração a geração. Borges (2016)
também fala um pouco sobre alguns hábitos e tradições que buscam
manter ate os dias atuais através da resistência;
[...] é impossível à gente não vivificar o judaísmo em nossa vida,
ao acordar a gente já diz logo, uma prece, uma oração... [...] tanto
aquele que é mais religioso até aquele que não é tão religioso, se
faz uma pequena oração, na hora da alimentação, quando vai comer, quando vai tomar uma água, quando vai tomar um suco, um
refrigerante, você agradece, é costume nosso agradecer a Deus, por
ter se alimentando daquela forma, e pra trabalhar [...], então a gente está constantemente em agradecimento a Deus, com pequenas
Brachots (Benções) para cada ocasião, se é com a minha esposa, se
é com meus amigos, com tudo, por sermos um povo, contamos uns
com os outros é algo que vivemos em comunidade mesmo, isso é
ser judeu, entendeu?! É muito bom, muito bom mesmo. (...)
Os cristãos novos tentaram preservar essas memórias, como
afirma Pinto (2006): “Trazia o Sefardita à tradição das rezas e das adivinhações; dos provérbios, dos exorcismos, das alegorias e das parábolas.
Coisas que se encontram a cada momento em nosso cotidiano e expressões corriqueiras. Pequenos hábitos e gestos despercebidos.”. Uma
prática muito observada por pessoas de fora da religião é quando veem
um homem com kipá na cabeça. Este costume milenar e tradicional tem
sido passado de geração a geração representando como simbolismo
da religião judaica. Outra pratica muito comum no judaísmo passada
de geração a geração, é quando o jovem atinge seus 13 anos de idade,
no decimo terceiro aniversário do menino ele faz o que chamam de Bar
Mitzvá, onde o garoto passa a ser considerada a maioridade religiosa, e
responsável pelos seus próprios atos para com Deus, esta passagem é
731
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
celebrada na sinagoga com seus pais e familiares. Esta tradição é celebrada a mais de três mil anos. É quando se inicia a busca por um significado
maior na vida e uma conexão entre os seus diversos aspectos, em um
mundo complexo e conflitante, cumprindo sua missão de acordo com o
pacto assumido pelo “povo judeu” com seu D›us. São hábitos e costumes que são passados de geração a geração no qual dependem muito
da mulher que é considerada a Luz do lar. De acordo com Anita Novinsky;
“As mulheres eram consideradas pelos inquisidores uma ameaça à continuidade do catolicismo, pois sabiam que eram responsáveis pela transmissão da religião judaica. As práticas que atravessaram séculos eram de
domínio doméstico, a portas fechadas”. (NOVINSKY, 2015. p. 22)
Assim como a circuncisão que é feita ao oitavo dia de nascimento do menino, esta tradição também acontece a mais de três mil anos
segundo mandamento do livro sagrado Torá. Tem o sentido de um sinal
de aliança entre Deus e Abraão. Torna-se um requisito obrigatório na Lei
dada a Moisés (Levítico 12:2-3). “Mohel” é a pessoa credenciada para
essa prática. O “Mohel” deve ser um judeu observante da Torá (livro sagrado) e que tenha o conhecimento das leis judaicas. Na criação os hábitos e costumes são passados através das mães, no qual depende muito
da mulher que é considerada a Luz do lar, estas mulheres buscaram a
preservação religiosa e espiritual de suas famílias, tentando proteger
os costumes e simbolismos através de estratégias que ao longo dos
séculos, passaram a ser vistos como crendices populares, para tentar
encobrir a necessidade de suas práticas e afazeres religiosos. Muitos
cristãos novos fugiram para o nordeste, conseguintemente foram perseguidos, como afirma a historiadora Anita Novinsky;
Na primeira metade do século XVIII, foram presos cerca de cinquenta paraibanos. O estigma, a exclusão e a perseguição revitalizaram
o judaísmo na Paraíba. [...] Diversos paraibanos presos entre 1729
e 1735 tinham nascido em Pernambuco. Conta-se que, no engenho
de São Bento, os cristãos novos trabalhavam aos domingos e dias
santos e, com afrontas, tentavam ridicularizar o catolicismo chamando Jesus de “feiticeiro”. (NOVINSKY, 2015 p. 176)
Apesar do cristianismo ainda ser predominante em João Pessoa,
os Bnei Anussim, buscam manter sua alimentação Kasher ou Kosher
732
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
(alimento correto, justo). As palavras Bnei Anussim (Filho forçado), é
um termo utilizado para os descendentes de judeus ibéricos que foram
forçados a se converter ao cristianismo. Hoje após 500 anos eles ainda mantem viva a memória, e continuam praticando rituais judaicos, os
Bnei Anussim pedem para retornar ao judaísmo de maneira aberta e oficial. Em uma sociedade majoritariamente cristã, é notória a dificuldade
por parte de grupos de minorias manterem-se vivos numa identidade
específica, sem que caiam no isolamento. Ainda hoje apesar das dificuldades buscam manter por parte deles uma compreensão de cuidados
no processo saúde-doença, no qual envolve cuidados nos fatores que
podem estar relacionados com o processo da manutenção do preparo
do alimento, que são consideradas práticas relevantes para o processo
de sua natureza física e espiritual. No documentário a Estrela oculta do
Sertão pode observar hábitos mantidos ate os dias atuais, nos quais
se confundiram com as crendices populares chamando atenção para
uma questão delicada que é a situação dos “anussins”, os “marranos”,
convertidos que buscam o regresso, ou seja, os descendentes desses
fugitivos que escaparam da região litorânea e buscaram abrigo nos mais
longínquos para o sertão nordestino. De acordo com a autora do livro Os
cristãos Novos na Paraíba, Zilma, Pinto:
A filiação da Igreja com o Judaísmo e a familiaridade com os costumes portugueses facilitavam ao cristão novo judaizante vivenciar
a duplicidade religiosa que, se não resultou em outro sincretismo,
resultaria por certo em práticas peculiares da religiosidade brasileira. O calendário litúrgico católico do congênere hebraico, e as similitudes existentes entre as duas religiões, coincidindo datas, festas,
e cerimoniais que permitiram ao falso convertido à prática da lei de
Moisés. (PINTO, 2006 p. 70).
No Documentário a Estrela Oculta do Sertão3 pode encontrar sobrenomes comuns às famílias nordestinas de origem judia, pois quando da grande conversão forçada, no final do século XV, houve um pacto entre os judeus para adotarem nomes de plantas, árvores, animais,
lugar de origem, etc., objetivando se reconhecerem no futuro. Oliveira,
3
Conferir Referência bibliográfica
733
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Cardoso, Fernandes Pimenta, Gurgel, Carneiro, Alencar, Mangueira, Nogueira, Carvalho, Pereira, são exemplos. Já quando falamos da visão de
sua criação de mundo, a fé judaica acredita que a criação foi feita por um
único Deus, que havia criado o homem a sua própria imagem. Abraão
é considerado o pai do povo judeu, e estabeleceu um pacto com Deus,
Moises é considerado pelos judeus como um profeta superior a todos
os demais, no qual libertou seu povo da escravidão do Egito. Os cristãos
novos tentaram preservar em suas memórias, os vestígios de suas lembranças e costumes religiosos, como a forma na matança de aves, entre
outros hábitos.
Pinto, (2006) afirma que;
“Trazia o Sefardita à tradição das rezas e das adivinhações; dos provérbios, dos exorcismos, das alegorias e das parábolas”. Os contos
e cânticos... A numerologia e a astrologia nas formas e formulas
popularizada da Cabala. Coisas que se encontram a cada momento
em nosso cotidiano e expressões corriqueiras. Pequenos hábitos e
gestos despercebidos. A medicina caseira. Usanças e sabenças judaicas das quais algumas se fizeram vulgarmente conhecidas. (saga
dos Cristãos Novos na Paraíba, ano, p. 74)”.
Todavia, nada impede que todos estes costumes passem despercebidos ou desacreditados por termos consciência de vivermos em um
país repleto de sincretismos, assim como também não devemos desrespeitar aqueles que têm fé em sua busca pelo que acreditam serem
suas raízes. Vemos casos, de pessoas que por serem levadas desde
criança à igreja ou por influência familiar acabam permanecendo a vida
em igrejas ou religiões, sem se permitir questionar ou talvez por algo
que já virou rotina em suas vidas. A convivência em meio a outros indivíduos é muito complexa e muitas vezes se mescla na diversidade das
relações dos sujeitos que a constituem. Também podemos observar
que fatores como rituais, alimentação assim como e demais costumes
permanecem na convivência entre as culturas variadas, mesmo que
com o tempo as famílias sofram modificações, elas não deixam de passar alguns costumes relacionados às tradições de seus antepassados,
provocando assim às lembranças que veem de suas memórias, sejam
através da oralidade, no diálogo ou em simples atitudes que algumas
734
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
vezes despertam curiosidade as gerações mais novas. E mesmo com
a diversidade elas procuram se adequar às novas relações dentro de
suas necessidades, de certa forma há uma participação daquilo que é
passado e vai permanecendo os significados de uma identidade perdida.
A respeito da Cosmogonia Judaica, deixo aqui uma citação do Filósofo,
Rabino e médico judaico do século XV, mais conhecido entre os cristãos
como Maimônides:
“O tempo é um acidente da coisa movida. O tempo não existia antes
da criação do mundo, por Deus: o tempo “é uma coisa criada e nascida, como os outros acidentes e como as substâncias que levam a
esses acidentes”. “A criação do mundo por Deus não pode ter um
começo temporal, porque o tempo também é uma coisa criada” (por
Deus).”. Guia dos Perplexos, do Rabino espanhol Moshe ben Maimon, ou Rambam, mais conhecido como Maimônides. A obra busca
conciliares as doutrinas do judaísmo com a lógica Aristotélica e filosófica (2000 Omar F. Aly. As Cosmogonias de Platão, Aristóteles,
e Judaica, comentadas por Maimônides, no GUIA DOS PERPLEXOS).
Já segundo Eliade, toda hierofania espacial, ou consagração de um
espaço pode equivaler a uma criação de mundo Sagrado. Para o homem
tradicional seu corpo corresponde ao microcosmo e sua casa o Cosmos.
O templo ou sua casa seriam também assimilados ao corpo humano,
uma conexão na busca com o sagrado, buscando um modelo de criação
divina. Onde algumas vezes esta conexão pode entrar em caos.
[...] mediante o esgotamento do mundo cabe à Cosmogonia, num
ato simbólico de fundação por meio de qualquer construção, reproduzir a Criação do Mundo recriando mais uma vez a ordem cósmica
e, consequentemente, social e religiosa. Ou seja, “Toda construção e
toda inauguração de uma nova morada equivalem de certo modo a
um novo começo, a uma nova vida” (ELIADE, 2010, p. 54)
Em relação ao bem e ao mal, o judaísmo tem uma visão de que
todo indivíduo tem inclinações para o bem e para o mal, mas tem o
livre-arbítrio moral para escolher. A ética judaica traz a ideia de que os
seres humanos decidem por si mesmos como agir. Assim existe a possibilidade de evoluir moralmente e espiritualmente.
735
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
metodologia
Trata de uma pesquisa bibliográfica, havendo também uma pesquisa de campo baseada na História Oral para colher dados e dar voz aos
adeptos desta tradição, nos remetendo a área de conhecimento presente.
Para um melhor embasamento de campo para entrevista, foi necessário o conhecimento sobre História Oral, nas qual buscamos contextualizar o trabalho a partir do processo bibliográfico afim de melhor
embasar nossa pesquisa. Havendo também a necessidade da história
oral à construção no tema central. Nosso fundamento principal traz a
presença histórica deste povo e como eles lidam com os desafios antissemitas e conservação das suas memórias e tradições no dia a dia.
A entrevista é o aporte empírico para nossa produção textual. Os
materiais utilizados para configuração da História Oral foram; um gravador portátil da Sony, papel e caneta esferográfica. Os demais complementos bibliográficos foram necessários para um estudo sobre atuais pesquisas identitárias. O entrevistado Hugo de Alencar Borges, é o Líder da
comunidade Shomer Israel, é casado com Sheila Barreto Borges, graduado em administração de empresas, até o ano de 2018 cursava Ciências
das Religiões na UFPB, trabalha na prefeitura de João pessoa, administra
as encomendas de Carnes Kosher para as comunidades de João Pessoa
e PB. Neste trabalho também foi utilizado, para corroborar na pesquisa,
o documentário “A estrela oculta do sertão” por apresentar o dilema do
regresso dos convertidos e descendentes dos fugitivos que escaparam da
região litorânea e buscaram abrigo nos sertões. Já em As Cosmogonias de
Platão, Aristóteles, e Judaica, comentadas por Maimônides, no Guia dos
perplexos, é um artigo comentado onde acrescentamos uma das citações
sobre a explicação de Maimônides no contexto Cosmogônico, sendo este
primordial para o fenômeno religioso, na qual Maimônides relata em seu
discurso questões para uma elucidação da existência de Deus baseando
na filosofia e sua crença religiosa, o Judaísmo.
Considerações finais
Este trabalho teve o objetivo de trazer à tona a empatia e o conhecimento de uma visão de família, de cultura, sociedade, saúde e
736
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
espiritualidade, ajudando na fomentação integral do ser humano como
indivíduo religioso sefardita e suas relações com o povo paraibano (João
Pessoa). E sendo uma das características predominantes da nossa nação a diversidade étnica no que diz respeito às diferenças, seja cultural
ou religiosa, acreditamos que são necessárias incessantes informações
tanto no âmbito de contexto cultural quanto religioso de um povo, pois
a falta de informação leva a ignorância e esta ao preconceito. E através
desta visão que mostramos a necessidade do respeito às religiões e daquilo que as comunidades buscam em sua memória resgatando como
identidade, para preservar suas lembranças e tradições. E assim concluímos que trabalhar esta temática nos conduz a novos conhecimentos e ao reconhecimento das comunidades como identidade cultural e
religiosa de um povo.
“Ao se falar em memória, é fundamental definir de qual tipo de memória se trata. A primeira operação a ser feita é a definição de memória individual, diferenciada da grupal. Como para a história oral
a memória individual apenas serve para dar sentido às situações
sociais, convém supor atenção prevalente a memória grupal, que,
contudo, é sempre filtrada pelas narrativas pessoais. Uma depende
da outra e uma se explica pela outra. “(MEIHY, 2002, p. 61)
Buscamos construir uma pesquisa bibliográfica baseada dentro
do contexto histórico religioso macro para o micro. Acreditamos que foi
de fundamental importância para analisarmos, no sentido de perceber
a força do judaísmo na Paraíba. Assim como as demais pesquisas que
foram feitas para corroborar com este trabalho. Concluo ao dizer que
hoje em dia as comunidades judaicas sefarditas da Paraíba, assim como
qualquer outra minoria, busca preservar suas ideias, e integram-se num
corpo social, com seus direitos e deveres. Acrescento este trabalho de
pesquisa especialmente aos interessados no estudo dos Judeus Sefarditas, para podermos construir um acervo que sirva às novas consultas,
para uma continua produção de conhecimento.
737
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Referências
ELIADE, Mircea. O sagrado e o
profano: a essência das religiões. São
Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 54.
NOVINSKY, Anita. Os judeus que
construíram o Brasil. Ed: Planeta,
2015. p. 22-176.
BORGES, Hugo L. de A. W.,
representante da Comunidade
Sefardita de João Pessoa, no dia
19 de fevereiro, de 2016 na cidade
de João Pessoa Paraíba. Entrevista
concedida a Renata Baltar Barros.
OMAR, F. Aly. As Cosmogonias
de Platão, Aristóteles, e Judaica,
comentadas por maimônides, no
GUIA DOS PERPLEXOS. Artigo
revistas. FFLCH. In.: http://revistas.
fflch.usp.br/vertices/article/
view/2106/2345 Acessado EM:
07/05/2019. Revista Vértices, No.
17, 2014. Departamento de Letras
Orientais da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo.
MAGAL. A Estrela Oculta do Sertão.
– Disponível em http://www.
coisasjudaicas.com/2010/07/
estrela-oculta-do-sertao.html.
Acesso em 20/12/2018 – A Estrela
Oculta do Sertão, 2005, direção Elane
Eiger e Luize Valente.
MEIHY, J. C. S. B. manual de História
Oral. São Paulo: Edições Loyola, 4°
edição, 2002. p. 61.
738
PINTO, ZILMA F. In: A Saga dos
Cristãos-Novos na Paraíba. João
Pessoa: Ideia, 2006. p. 70-74.
[ Volta ao Sumário ]
A n ai s do 3º Simpósio Nordeste da ABHR - Religião, Dire it os Hu man os e Laic id ad e
Site da Fogo Editorial
Instagram da Fogo Editorial
Facebook da Fogo Editorial
Perfil de Facebook da Fogo Editorial