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Por uma zoofilia ontológica

2010, Toda dor do mundo: Uma introdução a ontologias não especistas

Este texto resignifica a palavra zoofilia, para retomar seu sentido etimológico (amizade com/por animais) e pensar, desde algumas reflexões filosóficas, a amizade entre animais humanos e não-humanos. Dialogando com o instigante livro "Toda dor do mundo", de Pedro Arcanjo Matos, o texto discute a proposta de criação de ontologias não especistas, a partir de discussões na história da filosofia (em seu silêncio e eloquências), buscando caminhos para uma defesa de uma amizade possível entre o animal que somos e os animais não-humanos.

- livro_final.indd 3 - 03/11/12 17:59 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) (CIP) Matos, Pedro Arcanjo Toda dor do mundo : uma introdução a ontologias não-especistas / Pedro Arcanjo Matos. -- 1. ed. -Brasília, DF : Ed. do Autor, 2010. Bibliografia ISBN 978-85-910969-0-9 1. Filosofia 2. Ontologia 3. Pensamentos 4. Singularidades (Filosofia) I. Título. 10-12543 CDD-111 Índices para catálogo sistemático: 1. Ontologia : Filosofia 111 Capa, diagramação e projeto gráfico: Flávio Bá Ilustração da contra-capa: Mario de Alencar Ilustrações de início de capítulo: Laerte EDITORA QUINTA MÃO: quintamao@gmail.com livro_final.indd 4 03/11/12 17:59 Sumário Apresentação ..................................................................................... 09 Prefácio – Hilan Bensusan Um futuro selvagem para a filosofia .................................................. 11 1 - Sobre o massacre de quem não sente o mundo da mesma forma ........................................................ 15 2 - Definição como oposição ............................................................. 25 3 - O jardim da natureza passiva habitada por soberanos sujeitos autônomos ..................................................... 35 Sobre Sujeitos ..................................................................... 37 Muito Além do Jardim ........................................................ 41 4 - Sobre galinhas e soberanos. A epistemologia do reconhecimento .................................................. 45 Aparatos da experiência ....................................................... 47 Políticas de concessões ........................................................ 50 Jogos de Linguagem, jogos de exclusão .............................. 52 5 - Influências humanistas e liberais .................................................. 59 6 - Para confundir pronomes, para embaralhar o mundo ................... 69 Aparência e domesticação .................................................... 71 Vergonha da espécie ............................................................. 74 Animais políticos dentro da biopolítica ............................... 76 Em busca da inumanidade .................................................... 81 Referências Bibliográficas .................................................................. 87 Alice Gabriel - A outra metade ........................................................... 93 Frederico Santos Soares de Freitas - O impulso da automação ...... 111 Wanderson Flor do Nascimento - Por uma zoofilia ontológica ....... 123 Agradecimentos ................................................................................ 139 livro_final.indd 7 03/11/12 17:59 wanderson flor do nascimento1 Por uma zoofilia ontológica. Notas sobre “Toda dor do mundo” Muito do que aprendemos na história do pensamento, foi inverter o sentido das palavras. Qualquer incipiente estudioso da etimologia das palavras entenderia que a palavra zoofilia deveria determinar a amizade por animais, uma vez que em grego a palavra zoon significa animal e philen significa amizade. Mas a maneira tacanha como nossa sociedade lida com os animais faz com que esta, que deveria ser uma bonita palavra para uma bonita relação entre os animais humanos e não-humanos, se verta em uma prática sexual “doentia” e que explora os animais não-humanos uma vez mais. Os torna objeto de uma prática sexual onde animais não podem ser nunca sujeitos, sendo assim, uma prática sexual opressiva. Lendo o cuidadoso texto “Toda dor do mundo” de Pedro Arcanjo, fiquei pensando se não seria o caso de abandonar o sentido pejorativo e violento da palavra zoofilia para recuperar seu sentido etimológico, na tentativa de buscar uma relação não opressiva com os animais. E minha leitura partirá da possibilidade de uma zoofilia interessante não apenas para os animais humanos, mas para os outros animais. De agora em diante, a palavra zoofilia não aparecerá mais aqui com uma conotação opressiva, mas na tentativa de um abandono da opressão. 1 Como alice gabriel, o autor prefere que seu nome seja escrito em minúsculas. Segundo ele: A grafia do nome próprio em letras minúsculas deve-se ao fato o autor vincular-se as ideias da ativista negra bell hooks que adota as letra minúsculas para afirmar a posição identitária de recusa de autoria exclusivamente individual das idéias e afirmação do lugar de vozes excluídas que muitas vezes é vilipendiado, ao mesmo tempo em que afirma que as idéias são pensadas no coletivo, no diálogo com quem se lê. - 123 - livro_final.indd 123 03/11/12 17:59 Acolhendo a perspectiva de Pedro, este texto apresentará algumas notas que discutirão alguns lugares de silenciamentos e falas na história da filosofia sobre projetos opressivos, frisando aspectos políticos do pensamento vinculados com a subjetividade, explicitando as impressões que “Toda dor do mundo” causou em minhas reflexões. A ideia da produção de ontologias não-especistas O texto de Pedro levanta uma série de questões zoófilas muito importantes, não apenas para os animais não-humanos, mas para toda a rede de relações possíveis também para humanos. E a proposta de uma ontologia não-especista apareceria não apenas como um benefício para os animais não humanos, mas para todos os animais, incluso os que nós mesmos somos. Se a produção de ontologias é algo que, do ponto de vista conceitual, é uma atividade humana, as consequências desta produção são sentidas por todo o planeta. As ontologias são diretrizes que nos dizem não apenas o que os seres são, mas também como podemos agir com esses seres a partir da descrição que fazemos deles. O especismo não é, por isso, apenas uma descrição das “espécies” como sendo diferentes entre si e valorando essas diferenças. Mas um guia de relações opressivas entre as espécies. Neste sentido, uma ontologia não-especista tem, como bem marcou Pedro, a característica de ser um guia para outras relações, para relações não opressivas. A opressão é um determinante do modo como estamos no mundo. É impossível pensar com precisão nosso mundo atual sem a presença da opressão. Se o mundo, com todas as suas benesses, é o que é, é em função da presença da opressão neste mesmo mundo. Por isso, uma ontologia não-especista, um mundo não-especista seria um novo mundo. Um mundo outro, um mundo que não sabemos ainda - 124 - livro_final.indd 124 03/11/12 17:59 qual é, mas certamente um mundo muito diverso deste. Desta maneira, a tentativa de uma ontologia não-especista, para a realização de um mundo não-especista, implica em uma revisão dos pilares fundamentais das maneiras como enxergamos a nós mesmos, os outros, o mundo e nossa relação com tudo isso. A mudança das imagens que temos dos animais (e das funções que a eles determinamos) significaria a mudança na nossa própria imagem, e na imagem que temos do mundo como um todo e das relações éticas e políticas que estabelecemos com todo o mundo. Quem sabe a proposta de uma zoofilia ontológica, ou de um mundo zoofilicamente descrito, não pudesse fazer da amizade um marco mais forte nas relações éticas e políticas que estabelecemos com o mundo. É uma aposta; que me parece valer muito a pena. O que a história da filosofia cala: uma teologia contra-antropocêntrica dos franciscanos primeiros Apesar da novidade no contexto moderno da proposta zoofílica de Pedro, ela não é a primeira. Entretanto, no contexto da produção da história da filosofia, temos um processo curioso de esconder, de silenciar aquilo que não nos interessa por algum motivo. E não estou trazendo este elemento para desmerecer seu trabalho, mas para agregar mais vozes a essa difícil tentativa de construir ontologias não opressivas. Tampouco estou afirmando que Pedro seja o responsável por esse silenciamento. Apenas a história padrão da filosofia que até a ele chegou é já comprometida por esse processo de silenciamento. Penso que denunciar a dinâmica silenciadora da história da filosofia possa servir para dar um pouco mais de proteção para esse projeto audacioso e necessário apresentado pelo autor. Quem sabe esta denúncia possa fazer com que se tenha mais cuidado ao tentar silenciar uma proposta como a de Pedro, que deveria ser uma proposta de qualquer movimento que se pretenda anti-opressivo. - 125 - livro_final.indd 125 03/11/12 17:59 A figura de Francisco de Assis, o santo, pode parecer trazer um elemento polêmico na medida em que é um elemento religioso (ainda mais quando sabemos que um dos mais fortes elementos de hierarquização ontológica entre animais humanos e não-humanos vem de ontologias religiosas). Entretanto, me parece que a teologia iniciada por Francisco de Assis tinha por base uma ontologia radicalmente anti-opressiva e que via na natureza uma espécie de continuum entre humanos e não humanos, de modo que irmanados, o homem não deveria agredir à natureza (e, sobretudo os animais, a quem Francisco chamava de irmãos – da mesma maneira que chamava os outros frades de sua ordem, que ficou conhecida como Ordem dos Irmãos Menores). Juntamente com essa teologia, que pensava num deus presente em toda a natureza (e, por isso, presente nos animais), Francisco pensava em um outro modo de vida. Um modo de vida mendicante. Essa mendicância consistia em uma outra relação com a cidade, que não a de exploração dos recursos naturais e da riqueza (seja de outros homens, seja da natureza). A ideia da mendicância nos orienta a viver com o que a natureza nos “cede” e não com o que retiramos dela. Por isso, por muitos anos Francisco e os franciscanos primeiros viveram de pão e vinho que eram dados por outras pessoas e por frutas encontradas nos bosques. É famosa a defesa que Francisco faz de um feroz Lobo que, ao ser ameaçado de morte por camponeses de Agóbio, uma pequena cidade da Itália, é amansado (e o amansamento aqui é uma conversa que lembra que da fome do lobo e da sua necessidade de defesa contra o ódio das pessoas de Agóbio ele atacava também os humanos). E, este amansamento foi também um amansamento do povo que se comprometia a não atacar o lobo, sendo que a casa do lobo, a floresta, fora já invadida pelos humanos da cidade, em busca de lenha e outras coisas. - 126 - livro_final.indd 126 03/11/12 17:59 Este gesto de Francisco nos releva que a própria estrutura da cidade fora responsável pela ira do lobo, que é visto como vilão da cidade que não vê que é ela mesma responsável pela fúria do lobo. Selar a harmonia entre homens e lobo significaria pensar em uma outra relação entre a cidade e a floresta onde o lobo vivia. Este exemplo nos mostra que na base da visão de mundo sustentada por Francisco já havia a ideia de que os humanos, em sua saga de ampliar seus domínios e suas cidades, findavam por invadir lares que funcionavam bem e que ainda vilanizava quem nunca havia antes atacado os humanos, que não notavam que eles mesmos eram responsáveis pelo ataque e transferiam a responsabilidade para o animal que atacava numa dinâmica de resistência às investidas urbanas. É fácil compreender que a história da filosofia tenha tornado essa filosofia e teologia – que retirava o opressor humano do centro das discussões exatamente no momento em que o antropocentrismo humanista se constituía – uma narrativa apenas folclórica e mítica, sem conteúdo sério. Como pensar com seriedade um pensamento que irmana homem e natureza sob a filiação de um deus que não é opressor e nem hierarquizador? É muito mais fácil relegar ao ostracismo este tipo de pensamento do que lê-lo com seriedade e absorver as contribuições dele a um projeto de um mundo não opressivo, quando não há um compromisso com tal projeto. Não estou propondo aqui que o argumento de Pedro deva ter uma base teológica, mas apenas mostrar que tipo de receptividade pensamentos anti-opressivos que historicamente se expressaram tiveram por parte da história da filosofia e também indicar que há outras vozes com quem dialogar, mas estas vozes não são, nunca, hegemônicas. - 127 - livro_final.indd 127 03/11/12 17:59 O que a história da filosofia fala: a subjetividade moderna e a produção de alteridades Ao mesmo tempo em que a história da filosofia silencia alguns posicionamentos estruturalmente anti-opressivos, nos conta algumas outras narrativas que nos permitem entender os modos como nos tornamos estruturalmente opressivos, muito embora não seja este o objetivo dessas narrativas. Pedro nos conta, em uma interessante incursão pelo cânone filosófico moderno, acerca de algumas posturas que legitimam um certo tipo de constituição de subjetividade que se estrutura com base na opressão. Esta incursão introduz o “Toda dor do mundo” no bojo das críticas mais mordazes e interessantes à Modernidade. E o específico da crítica feita pelo texto de Pedro, desde uma perspectiva que se reivindica antes política do que ética, traz muitos elementos importantes para a elaboração de uma perspectiva zoofílica para a ontologia. Na contraposição de uma subjetividade baseada em uma ontologia zoofílica, a Modernidade filosófica nos lega uma ontologia zoofóbica. Isto se dá por um específico modo de subjetivação, que é marcado pela constituição de sujeitos que acontece de maneira que quem se torna sujeito deve se relacionar com o mundo, no contexto moderno, de um modo específico. A Modernidade criou um modo de sujeito que se estrutura como constituidor dos objetos, sendo por isso uma espécie de autoridade frente a estes objetos. A relação sujeito e objeto (S – O) pode ser equacionada da seguinte maneira: S > O. E o sujeito só se legitima e é reconhecido, como bem nota Pedro, quando faz objetos, quando institui alteridades, quando o outro se torna um objeto através das ações deste sujeito. A produção de alteridades inferiorizadas é a marca da constituição do sujeito. O sujeito é sempre senhor de um escravo, e só se torna - 128 - livro_final.indd 128 03/11/12 17:59 sujeito quando essa relação se institui. E esta relação de escravidão é sempre violenta. E, ao contrário do escravo da dialética Senhor/Escravo de Hegel, não há a possibilidade, no contexto moderno quando referente aos animais, de que estes se rebelem contra seus senhores, tornem seus senhores dependentes, pois algo curioso na constituição dessa subjetividade zoofóbica é que devemos produzir muitas vidas animais matáveis. A constituição de um bestia saccer – em uma paráfrase a Agamben – é parte essencial da subjetivação dos sujeitos ocidentais modernos. E quanto mais vidas animais matáveis, menor é a possibilidade de uma sublevação animal. A vida desse bestia saccer é produzida em escala industrial para o consumo. E isso se dá pela coincidência da subjetivação moderna com a subjetivação capitalista. Se é verdade que sem a opressão animal o sujeito moderno não existiria, também é verdade que sem o processo de mercantilização da vida (sobretudo a vida animal) tal sujeito não existiria como é. Todos esses processos são atravessados por uma profunda marca violenta, vinculados a um processo de colonização da vida. O especismo como dinâmica colonial moderna: o animal como subalterno. Em minha leitura de “Toda dor do mundo” não pude deixar de ver um paralelo entre o diagnóstico feito por Pedro e o modo como os estudos sobre a colonialidade interpretam a Modernidade e que dão elementos para entender melhor o processo de colonização da vida. Os estudos sobre a colonialidade surgem como uma proposta política de crítica à Modernidade feita a partir da América Latina. O suposto básico destes estudos é que a Modernidade é constituída por um processo colonizador. A colonialidade é o sistema estrutural de - 129 - livro_final.indd 129 03/11/12 17:59 poder da Modernidade. A colonialidade seria este modo específico de exercer o poder que funciona a partir da hierarquização entre alguém que coloniza e alguém que é colonizado e sem esse exercício de poder os processos de modernização e desenvolvimento não se dariam. Esse exercício de poder supõe (e constrói) modos de conhecimentos e imagens da vida que o legitimam. Para Aníbal Quijano, elaborador do conceito de colonialidade, a categoria fundamental de articulação do modelo colonial de poder é a raça. A raça seria não apenas um conceito descritivo das diferenças entre os seres humanos entre eles, mas um marcador hierárquico das relações entre as diferentes raças. A Modernidade não cria as raças apenas para classificar as pessoas, mas principalmente para estabelecer um regime de dominação entre as diferentes figuras classificadas pelas raças, tendo uma imagem de natureza que sustenta tal dominação. O racismo seria, então, o sustentáculo fundamental da constituição da Modernidade. Sem menosprezar os sofrimentos que o racismo tenha provocado aos seres humanos, podemos seguir a intuição de Pedro e pensar que a dinâmica do racismo e a do especismo funcionam de modos semelhantes e tem alguns supostos comuns, sobretudo no que diz respeito a uma dinâmica da subjetividade. Neste sentido, poderíamos pensar que o especismo está constituído no mesmo solo colonial moderno. Só que em vez de colonizarmos apenas as outras vidas humanas, colonizamos também a vida animal. E esta colonização se sustenta por toda uma série de saberes e de imagens de vida que a legitima. O imperialismo subjetivo típico da Modernidade não apenas hierarquiza alguns seres humanos sobre outros, mas também algumas espécies (pensadas como raças) sobre outras. E isto faz bastante sentido, quando pensamos que nunca antes da Modernidade tantas vidas animais foram desperdiçadas para - 130 - livro_final.indd 130 03/11/12 17:59 o exercício de um poder de manutenção de algumas outras vidas. E parte da dinâmica da colonialidade é a aplicação da violência de uma minoria quantitativa sobre uma maioria quantitativa. Os números que Pedro traz logo no início do livro tomam, diante deste registro, uma inteligibilidade ainda mais perniciosa. Não começou agora a mortandade animal em função do consumo humano, mas o regime moderno de extermínio de vida animal alcança níveis numericamente impossíveis de ser reproduzidos antes do período moderno. E a sofisticação dos métodos modernos de extermínios faz parecer que eles sejam menos cruéis, mais aceitáveis, mais desenvolvidos (aliás, o desenvolvimento é uma das marcas mais fortes da dinâmica moderna da colonialidade). Entretanto, junto com esse processo se desenvolve numericamente a escala de mortandade. Desenvolve-se a insensibilidade frente à quantidade absurda de vidas mortas desnecessariamente, a insensibilidade frente ao desperdício de vidas (e desperdício dos subprodutos das mortes – ver, por exemplo, o fato de que quando se joga fora carne não consumida nos abatedouros, açougues ou nos lares, lastima-se apenas o dinheiro investido que fora perdido e não as vidas que se perderam...). As consequências dessa colonialidade da vida e, especificamente, da vida animal parece, entretanto muito pouco problematizada por um modo de pensar filosófico que elegeu o ser humano como foco de suas reflexões. E mesmo as reflexões ambientalistas ocupam-se muito pouco dessa tecnologia de produção, cada vez crescente, de bestias saccer. É como se esse fato não fosse um problema, como se essa dinâmica de opressão ou não fosse problema ou que o caso da mortandade animal não fosse um problema importante para os humanos. Neste cenário, a insensibilidade afetiva cada vez se amplia. E não apenas a insensibilidade ao fato de se provocar a dor, o sofrimento e a morte a animais, mas a insensibilidade à dor em geral. - 131 - livro_final.indd 131 03/11/12 17:59 A dinâmica das amizades entre as espécies. Em busca de uma zoofilia filosófica, política e experiencial. No fim do “Toda dor do mundo”, Pedro traz a discussão sobre a amizade entre as espécies. Para alguém que tem o meu percurso filosófico, a temática da amizade é fundamental não apenas para a filosofia, mas para a ética, a política e a experiência cotidiana. Tudo o que, danosamente, os humanos fizeram em relação aos animais se fez, normalmente, em função de decisões humanas. Penso que, em um primeiro momento, também deva ser uma decisão humana que deva reverter essa crítica situação opressiva. Não se deve esperar do oprimido todas as condições para o fim da opressão, como se o opressor não tivesse alguma responsabilidade e um dever de esforço para desconstruir a prática que ele mesmo instituiu. E me parece que a decisão do estabelecimento de relações amistosas com os animais deverá ser humana, não com o objetivo primeiro de restabelecer a dignidade da vida dos animais, mas para desconstruir a dinâmica opressiva que se constituiu nas relações de dominação entre humanos e animais, dinâmica esta que foi uma decisão humana. A ideia de amizade elaborada por Foucault me parece interessante aqui para acompanhar esta discussão. No final de sua vida, Foucault pensava sobre os modos como opressão e subjetividade se relacionavam. Para ele, o modo como as relações de dominação se seguiam de um modo de subjetivação que se dava em um regime de poder onde as relações ficavam com os lugares marcados, onde as relações se cristalizavam, onde alguém exerce poder sobre outro que não tem o espaço de resistência. É aqui que ele distingue as relações de poder dos estados de dominação, sendo estes marcados pela opressão. Nas relações de poder, necessariamente, há o espaço de resistência; nos estados de dominação, não. - 132 - livro_final.indd 132 03/11/12 17:59 A questão é que os processos de subjetivação se dão tanto nas relações de poder quanto nos estados de dominação. E na busca de modos de vida, de modos de subjetivação um pouco mais livres da opressão, Foucault pensa que a amizade pode ser um destes processos de resistência. Ela seria uma relação que deveria toda ser inventada, como diz Foucault “de A a Z”. Mas não uma relação inventada do nada, mas inventada a partir da certeza da opressão que se quer combater. É o saber da opressão que deve estar, a cada passo, marcando a construção desta nova relação. Uma relação que funda um novo modo de vida, que recusa os lugares dados, os lugares prontos de opressor e oprimido. Não para fingir que tudo é fácil e que a opressão não é mais um risco, mas para assumir que, uma vez que somos feitos, em parte, de opressão, que devemos lutar constantemente contra essa parte de nós que tem ganas de oprimir. A amizade seria a criação de um espaço de encontros para a produção mútua de prazer, sem a aniquilação da possibilidade de prazer do outro para a afirmação de meu próprio prazer. Obviamente, que se formos pensar em uma relação zoófila, não podemos prescrever o campo de prazer do animal, mas não podemos retirar dele a condição fundamental para ter prazer, que é estar vivo. Criar as condições para minimamente reparar os males opressores que os animais humanos criaram para os outros animais implica em estabelecer as bases para que suas vidas não sejam retiradas para a nossa própria manutenção, seja alimentar, vestuária, de saúde ou qualquer outra. A invenção desta amizade para com os animais, mais do que a prescrição de uma relação animal com os animais, como indica Deleuze – o que dá margens para interpretações do tipo “na natureza, animais comem animais” que pode ser tão facilmente e nietzscheanamente afirmada –, é uma decisão humana de estabelecer um espaço livre das - 133 - livro_final.indd 133 03/11/12 17:59 opressões humanamente criadas. Como a amizade é uma relação por ser inventada, não podemos ainda dizer como ela se dará. Teremos que pensar, conjuntamente (aqueles e aquelas que estão certos/as de que as atuais relações entre animais humanos e outros animais é opressiva) nas diretrizes desta relação que terá sempre a marca autocrítica que evite o restabelecimento de espaços opressivos. Antes que se resolva concluir: Entre ontologias não-especistas e novas ontologias urbanas. Como crítica da Modernidade, “Toda a dor do mundo”, traz uma denúncia urgente. Devemos, na medida em que nos incomodamos com um modo de ser opressivo, repensar as relações com esses outros colonizados que são os animais não humanos. Como já notamos, uma ontologia não-especista com repercussões políticas não deixaria o mundo sendo como é, mudando apenas a relações com os outros animais. Todo o mundo seria diferente. Uma de minhas maiores inquietações frente a nossa modernidade é a relação com a cidade. A cisão entre campo e espaço urbano, sendo toda a cidade sustentada por um esquema de violenta exploração do campo é uma das características da cidade moderna. Toda a vida moderna funciona em torno de um modo específico de alimentar as super-povoadas cidades. E é neste circuito que o extermínio animal ganha fôlego. Por outro lado, uma cidade como São Paulo, ou mesmo Brasília, como poderia se manter se todas as pessoas destas cidades não vivessem alimentarmente do extermínio dos animais? Eu não penso que um êxodo urbano seja a solução, pois disto não se segue que a relação com os outros animais seja modificada. Uma outra ontologia urbana se faz urgente. Sequer consigo imaginar como seria a cidade atual sem a presença de abatedouros, açougues, sem o consumo de vidas. Eu arriscaria dizer que um dos - 134 - livro_final.indd 134 03/11/12 17:59 combustíveis da cidade é o sangue animal (humano e não humano). A estrutura urbana moderna, como toda a Modernidade, é zoófoba. Como seria uma nova cidade, uma cidade zoófila? Que modos de vida seriam necessários para que um outro tipo de relação urbana se estabelecesse? Como se organizariam as pessoas em uma cidade? Como comeriam, já que o modo de alimentação padrão da modernidade é onívoro ou ultraconsumista e esgotador de recursos naturais? Essas perguntas seguem abertas, mas, de todo modo, a tentativa de respondê-las é um esforço que me parece essencial para que uma ontologia zoófila se estabeleça e ofereça uma alternativa efetiva para o modo de vida zoófobo que vivemos. E assim como o projeto de amizade zoófila é conjunto, penso que também conjunto deva ser o esforço por pensar em uma ontologia urbana zoófila, que acolha a crítica de “Toda dor do mundo”. wanderson flor é professor de filosofia, onde junta esforços pra desmoronar cânones. - 135 - livro_final.indd 135 03/11/12 17:59 Referências Bibliográficas DUSSEL, Enrique. 1492. O encobrimento do outro. A origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993. ESCOBAR, Arturo. “Mundos y conocimientos de otro modo”: el programa de investigación de modernidad/colonialidad Latinoamericano. Tabula Rasa (1), 2003. FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, vol. IV, 1994. FRANCISCO, São. I fioretti de São Francisco. Rio de Janeiro: Ediouro, 1984. MIGNOLO, Walter. 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