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A Guerra das Guerras, a Revolução das Revoluções,
1917
The war of wars, the revolution of revolutions, 1917
Raquel Varela
IHC-Universidade
Nova
de
Raquel_cardeira_varela@yahoo.co.uk.
Lisboa,
Lisboa,
Portugal.
Artigo recebido 7/08/2017 e aceito em 31/08/2017.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
Raquel Varela
DOI: 10.1590/2179-8966/2017/29905| ISSN: 2179-8966
E-mail:
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Resumo
A revolução russa sucumbiu ao Termidor Estalinista, mas não se pode misturar
a revolução – até 1927 – com a contra-revolução, daí então. Este artigo
procura inserir a revolução russa no seu contexto histórico, no quadro do
desenvolvimento desigual e combinado, entre o avanço do atraso russo em
1917 e a consolidação da social democracia alemã nos anos 20. O artigo iniciase debatendo o impacto da I Guerra e da resistência a esta e seguidamente
dialoga com a produção historiográfica realizada nas últimas duas décadas,
com a abertura dos arquivos soviéticos. Argumentaremos aqui que estava tudo
em aberto nos anos 20 da Europa do século XX, os germes da ditadura que se
consolidou, a restauração do capitalismo que lhe seguiu, mas também a
semente de uma sociedade igual e livre – e permanece hoje em aberto, ou
seja, histórico.
Palavras-chave: I Guerra mundial; Revolução russa; Socialismo; Movimento
operário.
Abstract
The Russian revolution succumbed to the Stalinist Termidor, but the revolution
can not be mixed-until 1927-with the counter-revolution thereafter. This
article attempts to insert the Russian revolution in its historical context in the
context of the unequal and combined development between the advance of
the Russian backwardness in 1917 and the consolidation of German social
democracy in the 1920s. The article begins by debating the impact of World
War I and resistance to it, and then dialogues with the historiographical
production of the last two decades, with the opening of the Soviet archives.
We will argue here that everything was open in the twenties of twentiethcentury Europe, the germs of the dictatorship that was consolidated, the
restoration of capitalism that followed it, but also the seed of an equal and
free society - and it remains open today, or Historical.
Keywords: First world war; Russian revolution; Socialism; Labor movement.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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A Guerra das Guerras
Em 1870 é apresentado no parlamento inglês, por ordem de sua Majestade, o
Relatório sobre as Condições das Classes Trabalhadoras dos países
estrangeiros1. Um grupo de agentes consulares e diplomáticos envia de várias
partes do mundo um relatório detalhado sobre que condições laborais iriam os
capitalistas ingleses encontrar em cada país, desde Portugal ao Império
Otomano, dos EUA à Grécia.Nele podem ler-se o número de almas disponíveis
para trabalhar, a sua formação média, tamanho da família, hábitos
alimentares, habitação, higiene, quais os trabalhos que podem ser ocupados
por mulheres, ou crianças. No Império otomano há uma descrição detalhada
das organizações de artesãos, quanto ganham por categoria; o de Valência,
região espanhola, explica, além do número, que ganham mais no verão do que
no inverno, provavelmente por escassez de força de trabalho disponível, já que
estão a trabalhar nas próprias colheitas. O de Portugal recomenda os
trabalhadores portugueses porque não bebem muito ao Domingo e por isso
trabalham à segunda-feira, e porque “se contentam com pouco”. Aquilo que
hoje seria um moderno sistema de gestão de recursos humanos, realizado
provavelmente por um estudo de uma consultora internacional, era já
profundamente detalhado na Europa industrializada oitocentista - é a visão do
continente como um simples mercado de trabalho. Quantos são, quanto
ganham, o que sabem fazer, como é que vivem, quanto se pode pagar? E,
quanto não se pode pagar?
Este movimento - de deslocalização de empresas onde o valor do
salário directo e indirecto é mais baixo -, tem sido a história da expansão da
Europa, dentro dos seus países e entre as suas nações, com excepção dos anos
de «ouro» do pós 1945 até 1967: «Quando a rainha Vitória morreu, mesmo no
começo do século XX, uma pessoa em cada cinco esperava chegar ao fim desta
maneira: um enterro solitário, saído do asilo, ou do hospício da assistência
pública ou do hospital dos alienados (…) Cerca de um quarto de toda a
1
Condition of the Industrial Classes of Foreign Countries, Reports from her majesty’s Diplomatic
and consular agents abroad, Houses of the Parliament, 1870; London, Harrison and Sons, 1870
(International Institute for Social History, Archives).
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população vivia na miséria (…)»2. Só em Londres, 30 % da população estava na
miséria ou seja, sem meios para obter a sua manutenção, o salário de
reprodução biológica. Em 1900 na Europa balcânica e espanhola a esperança
média de vida era de 35 anos.3
As classes sociais não eram exactamente castas na Europa, mas a
sociedade dividia-se claramente em classes: laboriosas, pobres, camponeses,
uma minoritária classe média e a aristocracia, e a classe alta, financeiraindustrial: «a maioria dos europeus podia esperar acabar a vida exactamente
na mesma posição social em que começou».4
Em 1914 a Inglaterra tinha um império 114 vezes o seu tamanho; a
Bélgica 80 vezes, a Holanda 60 e a França 20. Entre 1950 e 1911 virtualmente o
mundo todo foi conquistado pelos impérios europeus. Em Africa só a Libéria e
a Etiópia ficaram de fora da divisão a regra e esquadro das potências centrais –
se os leitores olharem o mapa de África encontrarão fronteiras com longas
linhas direitas, que cruzam assim rios, cortam montanhas, e suprimem o
sustento a povos pastores ou agricultores, que ficaram sem acesso aos meios
de produção por esta divisão realizada pela potências no congresso de Berlim
de 1895. Na Indochina e na China começava a disputa em esferas de influência,
num regime de protectorado e/ou de conquista5. Nestes anos a “história de
toda a humanidade fluiu por um estreito canal desenhado por poucos países
europeus»6.
A Europa central e balcânica estava sob as botas do expansionismo, a
Europa ocidental na luta pelas colónias e mercados. O cenário europeu era,
portanto, explosivo7. O Império Austro-Húngaro disputava à Sérvia o espaço e
pelo caminho esmagava as nacionalidades oprimidas: sérvios, croatas,
eslovenos, tchecos, eslovacos, búlgaros; a França tinha em 25 anos perdido a
supremacia populacional para a Alemanha e exigia os territórios férteis da
2
Peter Laslett, O Mundo que nós Perdemos, Lisboa, Edições Cosmos, 1975, p. 223.
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 14.
4
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 19.
5
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 4
6
Chris Harman, A Peoples’s History of the World, London and Sidney, Bookmarks, 1999, p. 449.
(tradução nossa)
7
Osvaldo
Coggiola,
História
do
Capitalismo
(para
publicação)
https://raquelcardeiravarela.files.wordpress.com/2014/11/ocogg-histe280a1ria-docapitalismo1.pdf acesso em 12 de Maio de 2017.
3
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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Alsácia e a Lorena, perdidos na guerra de 1871, a guerra franco-prussiana, cujo
desfecho tinha impulsionado então o primeiro governo operário da história, a
Comuna de Paris8. O capitalismo inglês não podia sobreviver com uma
Alemanha forte que derrotasse no continente a França; a Rússia disputava ao
Império Austro-húngaro o oeste dos seus territórios, os mais industrializados e
fonte de impostos para o império cujo Palácio do Hermitage concentrará
simbolicamente o espaço da guerra e revolução – nele estão as salas de pedras
semipreciosas, ouro, parquês de madeiras nobres trabalhados de madeira,
lustros, erguidos em 400 anos de servidão que colocavam, ainda em 1914, 40%
dos camponeses sem meios de sobrevivência. Ao lado, liderados pelos
bolcheviques, os operários russos tomam em Outubro de 1917 o poder, cujas
escadarias da subida do Palácio de Inverno serão imortalizadas pelo cineasta
Einsenstein. Era na Polónia, Ucrânia, Estados do Báltico e Finlândia que estava
o grosso da riqueza da disputa à Áustria-Hungria para o Império Russo. Mas
para a Alemanha, uma Rússia forte era uma ameaça.
Numa palavra, o imperialismo, isto é, a fase do modo de acumulação
capitalista em que um capitalismo não podia sobreviver sem destruir o outro.9
A 2 de Janeiro de 1916 a revolucionária Rosa Luxemburgo10 escreve:
«Os negócios prosperam sobre ruínas. Cidades transformaram-se em montes
de escombros, aldeias, em cemitérios, regiões inteiras, em desertos,
populações, em montes de mendigos, igrejas, em estábulos; o direito dos
povos, os tratados, as alianças, as palavras mais sagradas, as autoridades
supremas, tudo é feito em farrapos, qualquer soberano pela graça de Deus
trata o primo, no campo adversário, de cretino e velhaco desleal, qualquer
diplomata trata o colega do outro partido de canalha espertalhão, qualquer
governo, vendo no outro uma fatalidade para o próprio povo, abandona-o ao
8
A França perde os territórios da Alsácia e Lorena em 1871 na sequência da derrota face à
Alemanha na guerra franco-prussiana.
9
Chris Harman, A Peoples’s History of the World, London and Sidney, Bookmarks, 1999, p. 409.
10
Rosa Luxemburgo (1871-1919) nasceu na Polónia e morreu assassinada em Berlim. Líder da
social-democracia alemã e polaca, fiel ao Internacionalismo dos finais do século XIX, Rosa
notabilizou-se pela sua tese sobre o militarismo, os estudos de O Capital, e pela liderança contra
a guerra, quando o seu partido apoiou-a. Em 1915 fundou com Karl Liebknecht a Liga
Spatarquista e em 1919 o Partido Comunista Alemão. Embora contra o levantamento de Janeiro
de 1919, que se iniciou sem o seu conhecimento, Rosa vai assumir a liderança. Será por isso
assassinada com a complacência dos sociais-democratas pelos Freikorps, milícias nacionalistas.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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desprezo público; a fome provoca tumultos em Veneza, Lisboa, Moscovo,
Singapura; há peste na Rússia, miséria e desespero por toda a parte»11.
A I Guerra Mundial começa a 28 de Julho de 1914. Todos falavam
nesse mês de 1914 de uma guerra rápida: «vai acabar no Natal!»12, dizia-se.
Foi a mais «popular» das guerras nacionalistas, imperiais. Victor Serge,
intelectual socialista, preso então em França, no início da guerra, escreve:
«Chegavam à prisão veementes MARSELHESAS cantadas por multidões que
acompanhavam os mobilizados de comboio. Ouvíamos também: «Para Berlim!
Para Berlim!». Este delírio, incompreensível para nós era a consumação do
apogeu da catástrofe social permanente.»13.
São porém necessárias “aspas” na popularidade da guerra. Pesquisas
recentes mostraram que os sons de entusiasmo ouvidos por Serge ampliavamse na prisão, como um eco que se multiplica. Os socialistas franceses chegaram
a colocar a hipótese de uma greve geral contra uma guerra europeia, em julho
de 191414; na Alemanha os grevistas das fábricas eram enviados para a frente
de guerra como castigo; fontes históricas demonstram que a classe
trabalhadora da poderosa região do Ruhr - ainda hoje a região mais forte e
sindicalizada da classe trabalhadora industrial europeia - ficou de fora das
manifestações patrióticas15; do outro lado do Atlântico – nos EUA - o governo
apela ao recrutamento voluntário de 1 milhão de soldados – mas nas primeiras
seis semanas depois da declaração de guerra só 70 mil se alistam16.
A I Guerra Mundial teve, contudo, um recrutamento mais fácil, porque
os camponeses viviam isolados em aldeias e porque a experiência de uma
guerra total era até aí desconhecida. Há um isolamento social geográfico no
mundo rural, mesmo nas industrializadas Inglaterra, Alemanha e França, o que
torna a resistência organizada muito difícil de se concretizar. Aliás, eles tornarse-ão camponeses resistentes, desertores, só depois de incorporados numa
organização coletiva – o exército, e em guerra.
11
Rosa Luxemburgo, Textos Escolhidos, Volume II (1914-1919), São Paulo, Editora UNESP, 2011,
p. 17.
12
Chris Harman, A Peoples’s History of the World, London and Sidney, Bookmarks, 1999, p. 405.
13
Victor Serge, O Ofício de Revolucionário, Lisboa, Moraes Editora, p. 62.
14
William Pelz, História do Povo na Europa Moderna, Lisboa, Objectiva, 2016, p. 189.
15
Chris Harman, A Peoples’s History of the World, London and Sidney, Bookmarks, 1999, p. 406.
Ver também William Pelz, História do Povo da Europa Moderna, Lisboa, Objectiva, 2016.
16
Howard Zinn, The Peoples History of United States, New York, HarperCollins, 2003, p. 364.
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O nacionalismo prospera rapidamente como ideologia, escritores
como HG Wells clamavam o “apoio à guerra para pôr fim à guerra”, Anatole
France discursou para os soldados17. Mas o apoio principal veio do seio do
movimento operário organizado. A guerra foi apoiada pela social-democracia
alemã, austríaca, pelo Partido Trabalhista Inglês, pelos socialistas franceses,
pelos grandes sindicatos, pelo anarquista Kropotkin e pelo pacifista indiano
Gandhi. A “unidade da nação”, a união sagrada, o apelo das burguesias
nacionais aos líderes das camadas populares, foi magnético. E catastrófico. 9
milhões de mortos, outros dados falam hoje em 20 milhões de mortos18.
Contra estiveram poucos: os bolcheviques e os socialistas sérvios. E muitos
heróis individuais. Jean Jaurès, opositor à guerra, líder socialista da França, foi
assassinado por um nacionalista francês a 31 de Julho de 1914.
A guerra revolveu as entranhas da sociedade: as mulheres entraram
em massa no mercado de trabalho. Foi essa passagem do trabalho doméstico,
isolado, ao trabalho fabril, concentrado; do trabalho doméstico não pago ao
trabalho assalariado, e a revolução russa – conquistas de direitos sociais
amplos - que permitiu o primeiro sopro de igualdade de género na história
contemporânea. Embora o sufrágio feminino estivesse na agenda desse o
início do século XX, conquistado na Austrália em 1902 e na Finlândia em 1906,
por exemplo, só a I Guerra vai derrubar a primeira grande barreira à igualdade
de género na Inglaterra e Alemanha19, e no caso da Itália e França, só a
Segunda Guerra. Nos países do Sul, urbanizados na década de 60 do século XX,
a grande alteração nas relações de género dá-se só a revolução portuguesa de
1974 e 1975. Um cataclisma económico - a guerra; e uma revolução social - a
russa, são os factores que impulsionaram uma das mais importantes mudanças
sociais do século XX – a crescente igualdade de género e o caminho paulatino
para a união livre20.
A classe média entra na trincheira do descontentamento com os
Governos; há fome, privação, escassez de abastecimento, porque as baterias
17
Chris Harman, A Peoples’s History of the World, London and Sidney, Bookmarks, 1999, p. 406407.
18
Chris Harman, A Peoples’s History of the World, London and Sidney, Bookmarks, 1999.
19
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 22.
20
Wendy Goldman, Mulher, Estado e Revolução, São Paulo, Boitempo, 2014.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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de produção estavam voltadas para servir a guerra e a produção relacionada
com esta. E porque muitos trabalhadores vão deixar as fábricas e ingressar nos
exércitos beligerantes. Na Alemanha só 2/3 das calorias necessárias para viver
eram garantidas, 750 mil terão morrido de fome21. Viena foi a mais atingida «um quarto de milhão de pessoas permanecia diariamente numa das 800 filas
alimentares dispersas pela cidade»22. Expande-se o mercado negro, a cavalo da
inflação. Esta foi a lógica, irracional, mas previsível, da primeira guerra total da
história. A guerra não acabou por isso no Natal. E foi devastadora. Alastrou à
Mesopotâmia, Grécia/Turquia com o desmembramento do Império Otomano,
norte de África.
Apesar do número de cidades com mais de 100 mil habitantes ter
passado na Europa do norte e ocidente de 22 para 120 entre 1800 e 190023, a
massificação da vida urbana no século XX, o crescimento da população
exponencial, é um fenómeno que modifica a Europa. É o século do aumento da
população. A Europa passou de 279 milhões de pessoas em 1850 para 408 em
1900 e 740 em 2012. Essa vai ser uma das características mais importantes dos
últimos 100 anos, a consolidação, mesmo nos países do sul, da passagem de
sociedades rurais a urbanas. Esse parto muda radicalmente a vida em
sociedade.
A
unidade
família
foi
definitivamente
arrastada
pela
industrialização e pela guerra (mas não deixou de ter um lugar cimeiro até
hoje, embora diferente). Nascem ao lado dela outras duas unidades que vão
ter um papel central no século XX europeu – o colectivo político, e a massa24.
Os camponeses, ao saírem das suas aldeias – e na altura escasso era o
contacto com a aldeia do lado, que por via da ausência de estradas,
transportes e comunicações podia levar horas a ser alcançada, mais longínquo
era o contacto com o poder central (a quem só encontravam na forma do
cobrador de impostos) ou a “nação” – os camponeses vivem na tormenta da
guerra o primeiro sentido de massa coletiva das suas vidas. Mas ao mesmo
tempo vão ser estes camponeses a desertar em massa em 1917 em grande
parte dos exércitos beligerantes, e, na URSS, a apoiar determinadamente a
21
Chris Harman, A Peoples’s History of the World, London and Sidney, Bookmarks, 1999, p. 408.
William Pelz, História do Povo na Europa Moderna, Lisboa, Objectiva, 2016, p. 206.
23
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 8.
24
Peter Laslett, O Mundo que nós Perdemos, Lisboa, Edições Cosmos, 1975.
22
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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revolução. Porque queriam volta à terra, cujas famílias não subsistiam sem os
seus braços para trabalhar.
A massa e a fábrica. O século XX vai ser o século do fordismo. O que se
assiste é uma extraordinária ampliação da empresa/fábrica ao longo destes
120 anos – incluindo ao sector dos serviços depois da privatização das funções
sociais do Estado a partir da década de 80 do século XX, em que se cria a
“indústria de serviços” e se transfere para os hospitais, escolas e serviços
públicos os métodos de trabalho, controlo de tempos, salário à peça, etc. da
grande fábrica25.
E do outro lado da “massa” a sociedade anónima26 – cujas origens
remontam ao século XVII - não por acaso é nome por excelência da sociedade
comercial contemporânea. Mas o nome não é a coisa. Anónimos, os mercados
têm um bilhete de identidade de propriedade, uma conta bancária. Valor
supremo – a propriedade - das sociedades capitalistas pós revolução francesa,
sempre limitado porém (não há direito de propriedade ilimitado), ele mantémse como o direito mais importante dos sistemas jurídicos ocidentais, superior à
vida, na medida em que o direito a ver os capitais remunerados se sobrepõe,
em vários momentos do século XX, ao direito ao emprego27. Foi o acesso à
propriedade – terras, comunicações, alimentos, fábricas, maquinaria, matériasprimas - que esteve no centro dos mais importantes conflitos europeus, desde
sempre. Homens mediados por títulos de ações que ocultam a sua relação
social, que não aparece como uma relação de disputa do que é produzido de
essencial e de excedentário que permite ampliar o acumulado, mas como uma
relação mediada por abstractos títulos, em longínquas bolsas de valores, desde
a idade moderna.
O trabalho aparece (mas não é) a muitos como uma abstracção. Algo
impossível nas sociedades camponesas, onde o sentido de produção colectiva
é concreto – “a comida não cai na mesa de ninguém”, vinda de longe. É
produzida ali, em frente a casa. Na vida em aldeia, é impossível não
25
Stewart Player, Colin Leys, “A mercantilização dos cuidados de saúde: o NHS do Reino Unido e
o Programa de Centros de Tratamento do Sector Independente”, in Raquel Varela, Renato
Guedes, coord, História do Serviço Nacionla de Saúde em Portugal: A saúde e a Força de
Trabalho, do Estado Novo aos nossos dias, Ordem dos Médicos/UNL, Lisboa, 2016, pp. 204-223.
26
Peter Laslett, O Mundo que nós Perdemos, Lisboa, Edições Cosmos, 1975, p. 223.
27
Manuel Couret Branco, Economia Política dos Direitos Humanos, Lisboa, Sílabo, 2012.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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compreender que a manutenção da sociedade depende do trabalho e que se
este não for realizado necessidades vitais não serão asseguradas. O mesmo
não se passa na cidade onde a noção de centralidade do trabalho é ofuscada
por uma complexificação de relações sociais em que várias formas de nãotrabalho como rendas, lucros, assistencialismo familiar e estatal (ajuda das
família ou do Estado via impostos) jogam nas sociedades europeias um papel
central. Desvalorizado assim, o trabalho só ganha centralidade quando por
força das suas organizações políticas e sindicais se disputa no campo da
consciência política esse condição de que nada é tão importante para
assegurar a existência da humanidade como o trabalho. A partir do qual tudo é
central, tudo nasce e perece do trabalho enquanto actividade de domínio do
homem sobre a natureza, de criação. E do trabalho enquanto relação social,
mutável necessariamente.
Esta consciência - de que os trabalhadores têm um papel determinante
na história - aconteceu na Europa entre o final do XIX e as primeiras três
décadas do século XX com uma dimensão inusitada. Porém, nem todo o
movimento operário era socialista. Se as revoluções de 1848 tinham já
colocado em marcha o operariado da França, Alemanha; se a Comuna de Paris
tinha mostrado o caminho da possibilidade de uma classe não proprietária
tomar o poder; na aurora do século XX os «trabalhadores (e em menos
proporção) as trabalhadoras fizeram sentir a sua presença na arena pública da
maior parte dos países europeus»28: na primeira revolução russa de 1905; na
revolta anarquista espanhola esmagada em Barcelona em 1909 – que ficou
conhecida como a “semana trágica”; na “semana vermelha” de Itália em Junho
de 1914; na generalização de greves na França, Alemanha e na Inglaterra;
estão registados 500 conflitos no sector industrial na França entre 1900 e
1915; na Inglaterra dá-se uma onda de greves sem precedentes em 1911 e a
na Alemanha 1 milhão de trabalhadores participaram em greves em 1912. Em
1914 os sindicatos ingleses e alemães têm mais de 2 milhões de trabalhadores,
o que corresponderia então a 30% da força de trabalho masculina29. O Partido
28
Dick Geary, European Labour. Politics From 1900 to the Depression, New Jersey, Atlantic
Highlands, 1991, p. 1.
29
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 27.
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Socialista
Francês,
constituído
primeiro
como
Secção
Francesa
da
Internacional, destacando o espírito internacionalista do partido, teve, em
1914, 1 milhão e meio de votos. Nas vésperas da guerra havia uma batalha na
Europa entre uma saída reformista, assente nas instituições parlamentares, e a
via revolucionária, impulsionada por partidos fortemente influenciados pelo
marxismo30.
A Resistência à Guerra
A partir de 1915, na pequena vila de Zimmerwald, na Suíça, reúne-se um grupo
de dirigentes que opõe-se à guerra e tenta fazer do comunismo um
movimento internacional. Entre 5 e 8 de Setembro de 1915, 36 delegados de
19 países estavam dispostos a lutar pela forma de revolução social contra a
guerra, pela derrota das suas próprias nações, contra o pacifismo. Cabiam em
4 carros. O manifesto é redigido por Leon Trotsky, e coloca a base da luta
contra toda a «união sagrada» . Outro dirigente destacado, Christian Rakovsky,
discursa no fim a favor de uma III Internacional, morta que estava a II
Internacional ao ter levado os partidos o seus países irmãos a pegarem em
armas uns contra os outros.
A ideia de uma nova internacional foi ao início mal recebida. Rakovsky
vai ser caluniado como agente alemão. Mas 2 anos depois as frentes de guerra
internacionalizam-se com o levantamento de motins em massa nos exércitos.
Do outro lado do Atlântico Eugene Debs, um dos fundadores do mais
igualitário sindicato norte-americano, os Industrial Workers of the World,
conhecidos carinhosamente por Wobblies, mineiros, assalariados agrícolas,
estivadores, marinheiros que fundaram em 1905, no dia 27 de Junho, um
sindicato internacionalista, discursa no julgamento contra a guerra. É deles a
origem da música “Solidarity Forever”31, a mais conhecida música operária
30
31
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 28.
Escrito em 1915 para os Wobblies. Tornou-se famosa na voz de Pete Seeger.
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depois da Internacional32. Preso, acusado de ter violado o Espionage Act, que
proibia qualquer manifestação pública contra a guerra, Debs recusa defenderse ou ter testemunhas no julgamento: «Fui acusado de obstrução à guerra.
Admito-o. Cavalheiros, eu abomino a guerra. Seria contra ela mesmo estivesse
sozinho…Tenho simpatia pelos que sofrem e lutam em toda a parte. Não me
interessa sob que bandeira eles nasceram, ou onde vivem…»33.
O historiador William Pelz argumenta que mesmo recorrendo à
tecnologia a I Guerra pode não ter sido a mais mortífera mas o que «poderá
não ter tido par foi o nível de oposição bélica colectiva a ela».34 No Natal de
1914 as tropas francesas e alemães confraternizam nas trincheiras, e são
penalizadas. Mas é só em Abril de 1917 que se dá o primeiro «Adeus às
Armas»35 de massas da I Guerra Mundial – 68 divisões, nada mais nada menos
do que metade do exército francês recusam-se a voltar à frente: morte,
agonia, piolhos, tuberculose, os trabalhadores, camponeses, agora soldados,
estavam a enterrar-se vivos na lama e no sangue das trincheiras. A resposta do
Estado foi esmagadora: 500 sentenças de morte e 49 execuções. Algumas
unidades ergueram-se com a bandeira vermelha a cantar a internacional,
queriam marchar sobre Paris, gritavam «Viva a Revolução», «Viva os Russos!».
Cantaram a canção de Craonne: «É em Craonne sobre o planalto, que devemos
deixar nossa pele (…), mas acabou, pois os praças Vão todos fazer greve»36.
Perto de Bolonha, em Étaples, uma rebelião de 100 mil soldados ingleses dura
5 dias – os oficiais britânicos usaram da política do «pau e da cenoura»:
fizeram concessões e executaram os líderes, para pôr fim à rebelião. Depois do
desastre militar de Caporetto, a 24 de Outubro de 1917, há uma «greve
militar», soldados italianos amotinaram-se em massa. A Espanha era neutra
mas vive uma greve geral de 15 a 18 de Agosto de 1917, em que o dirigente
histórico do PSOE, Francisco Largo Caballero, será condenado a prisão
perpétua. Na Rússia estava em marcha um «armistício estabelecido de facto
32
A letra foi escrita em 1871 por Eugène Pottier, membro da Comuna de Paris e musicada em
1888 por Pierre De Geyter.
33
Howard Zinn, The Peoples History of United States, New York, HarperCollins, 2003, p. 367-368.
34
William Pelz, História do Povo na Europa Moderna, Lisboa, Objectiva, 2016, p. 207.
35
Referência ao romance em parte auto biográfico do escritor norte-americano Ernest
Hemingway, que deserta na I Guerra Mundial, em Itália.
36
Pierre Broué, História da Internacional Comunista 1919-1943, Ascenção e Queda, São Paulo,
Sundermann, 2007, p. 37.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
Raquel Varela
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no front»37. A revolução russa – filha directa da guerra – tinha começado em
Fevereiro de 1917, pela mão das operárias têxteis de São Petersburgo exigindo
«pão». Se é verdade que este foi sobretudo um tempo protagonizado pelo
movimento operário masculino e industrial, que eram a maioria, não deixa de
ser simbólico que a maior revolução social da história, e a primeira vitoriosa,
tenha começado no operariado feminino.
A equação “nação é igual a Estado e Estado é igual a Povo”, que para o
historiador Eric Hobsbwam foi o centro da constituição do nacionalismo
burguês depois da revolução francesa38, vai ruir aqui. Na luta contra a guerra
das guerras ergue-se a revolução das revoluções.
A Rússia tinha cerca de 170 milhões de habitantes, uma aristocracia
rural e igreja em declínio e quase ausência de sectores médios, o que tornava
o Estado com menos capacidade – elasticidade – de resolver os conflitos
sociais. Essa ausência de sectores médios provocava uma separação – sem um
colchão social amortecedor – entre os grandes proprietários e os operários e
camponeses. A indústria, muito concentrada, tinha cerca de três milhões de
operários e só 5% dos camponeses eram proprietários da sua terra; 12% eram
considerados abastados (os kulak), mas 40% não tinha meios para sobreviver.
Este caldo de contradições transformará uma revolta de massas camponesas
em luta pelo fim da guerra e pelo acesso à terra na primeira insurreição
proletária da história a tomar o poder num país39.
As deserções em massa nos exércitos em 1916 começavam a minar a
base nacionalista das direções do movimento operário, forçado por isso a
evoluir para posições pacifistas, e nalguns casos revolucionárias. Os povos
estavam exaustos da guerra – no quadriénio da guerra multiplicam-se as
aparições, a charlatanice, a superstição, a «religião emerge poderosamente
como um instrumento de consolação»40. O culto de Maria vai fazer surgir em
numerosas regiões da Europa aparições em toda a Europa, a mais famosa
Fátima, em Portugal.
37
Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Tomo II, Parte I e III\, São Paulo, Sundermann,
2007, p. 1083.
38
Eric Hobsbawm, Nações e Nacionalismos desde 1870, São Paulo, Paz e Terra, 2º edição, 1998,
p. 32.
39
A Comuna de Paris ficou circunscrita a uma cidade.
40
Angelo D’Orsi, 1917. O Ano que Mudou o Mundo, Lisboa, Bertrand, 2017, p. 103.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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Mas o que se revelou central e pôs fim à guerra foi uma revolução e um
Partido, o Bolchevique: «Diferentemente da Europa ocidental, existia na Rússia
um partido revolucionário organizado, o POSDR “bolchevique”, contrário à
“revolução por etapas” limitada à democracia parlamentar; era também o
único partido russo que enfrentara à “união sagrada” de 1914. No império dos
czares, se o efeito da guerra fora desastroso para a tendência combativa e
revolucionária do operariado revelada nos anos que a precederam, a partir do
final de 1916 a própria guerra passou a se constituir em factor de radicalização
e aceleração do ritmo das greves. Os industriais se recusavam cada vez mais a
fazer concessões aos trabalhadores, e o governo continuava a responder a
cada greve com uma forte repressão, o que fazia renascer no proletariado a
ideia de uma greve geral para dar cabo de uma situação social cada dia mais
insuportável. O processo de radicalização política das massas trabalhadoras se
exprimia de maneira convincente pela estatística crescente das greves, e pela
sua natureza: nos primeiros dois meses de 1917, as greves políticas
compreendiam seis vezes mais operários do que as greves económicas. Rússia
voltava a ser o maior centro europeu e mundial da luta e do activismo
operário, da luta de classes. A maior tormenta revolucionária da era do
capitalismo se anunciava no horizonte da Ásia, da Europa, do mundo.»41 – a
revolução russa, sem a qual não é possível compreender o século XX mundial.
A Revolução das Revoluções
Em Janeiro de 1917 Lenine declarou «Nós, os mais velhos, talvez não
cheguemos a ver as batalhas decisivas da futura revolução»42. No dia 18 de
Fevereiro, 2 meses depois, os operários da mais importante metalúrgica de
Petrogrado – a cidade de Pedro o Grande – entram em greve, que uma semana
41
Osvaldo
Coggiola,
História
do
Capitalismo
(para
publicação)
https://raquelcardeiravarela.files.wordpress.com/2014/11/ocogg-histe280a1ria-docapitalismo1.pdf acesso em 12 de Maio de 2017, p. 836.
42
Vladimir Lenine, «Informe sobre a revolução de 1905», em Obras Completas, Vol. XXIV, p. 274,
cit in Arthur Rosenberg, História do Bolchevismo, Belo Horizonte, Oficina dos Livros, 1989, p.
121.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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depois já se transformou numa greve geral. Como no Domingo Sangrento da
revolução de 1905 – o «ensaio geral» - o czar dá ordens para atirar sobre os
manifestantes mas as tropas recusam-se, pelo contrário, juntam-se aos
manifestantes. A «Rússia vê-se numa situação de dualidade de poderes: o
Governo provisório, saído da Duma do Império, e os Comités de operários e
soldados (Sovietes) que se formaram durante as greves e a abortada
repressão»43.
Um processo revolucionário tem como característica essencial a
entrada das massas na cena histórica; e esta entrada não se faz por um «plano
preestabelecido de transformação social, mas com o amargo sentimento de
não lhes ser mais possível tolerar o antigo regime».44 As classes entram em
luta e a explicação da dinâmica revolucionária está na forma como muda a
consciência das massas, «as rápidas e intensas e apaixonadas mudanças
psicológicas das classes constituídas antes da revolução»45.
O atraso é o traço essencial da história da Rússia. Ao contrário dos
povos ocidentais, que quando se viram bloqueados nas fronteiras naturais
criaram as cidades, pólos dinâmicos económica e culturalmente, os povos das
estepes, quando se viram bloqueados emigraram, conquistaram florestas e
estepes. Em vez de comerciantes prósperos, com iniciativa, tornaram-se
sobretudo guardas-fronteiras ou colonos. A dependência económica e militar
da Rússia do Ocidente fortaleceu o czarismo, que por seu turno foi um travão
ao desenvolvimento do país. O facto deste Estado absorver uma quantidade de
riqueza pública maior do que no Ocidente condenou as massas populares a
uma miséria maior e retirou pujança às classes privilegiadas, fortemente
burocratizadas46.
43
Roger Garaudy, Lembra-te! Breve História da URSS, Porto, campo das Letras, 1995, p. 15.
Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Tomo I, Parte I, São Paulo, Sundermann, 2007, p.
10. É assim que o futuro líder do exército vermelho define uma revolução. A obra mais
importante da historiografia da revolução russa é sem dúvida a do seu dirigente, Leon Trotsky, a
História da Revolução Russa. Banida de tantas universidades por ser considerada «política», ela
figura como central ainda hoje nos grandes cursos de História das mais importantes faculdades
dos países centrais, a começar pelos EUA onde está na bibliografia do MIT, por exemplo.
45
Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Tomo I, Parte I, São Paulo, Sundermann, 2007, p.
10.
46
Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Tomo I, Parte I, São Paulo, Sundermann, 2007.
44
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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Leon Trotsky expõe a sua Teoria do Desenvolvimento Desigual e Combinado47,
central em toda a sua obra e que vai ser uma das mais importantes influências
na Teoria do Sistema Mundo de Immanuel Wallestein48, tentando responder a
esta questão: Como é que o proletariado chegou ao poder num país atrasado?
Os países atrasados «assimilam as conquistas materiais e ideológicas dos
países adiantados» e “saltam” etapas. O capitalismo que «realizou a
universalidade do desenvolvimento da humanidade» exclui a repetição das
formas de desenvolvimento nos países atrasados – esta teoria permite
compreender porque é na Rússia atrasada que se forma o primeiro Estado
operário da humanidade, saltando a etapa democrática, dirigida pela
burguesia: «o privilégio de uma situação historicamente atrasada – e este
privilégio existe – autoriza um povo, ou mais exactamente, força-o a assimilar
todo o realizado, antes do prazo previsto, passando por cima de uma série de
etapas intermediárias. Renunciam os selvagens ao arco e à flecha e tomam
imediatamente o fuzil (…)»49. Mas este privilégio, assinala Trotsky, é limitado
pelas condições económicas e culturais do país. O Historiador norte-americano
George Novack, numa sistematização sobre a teoria do desenvolvimento
desigual e combinado de Trotsky, afirma que o «grande atraso que havia
fortalecido a revolução e impulsionado as massas russas para a cabeça do
resto do mundo, transformou-se então no ponto de arranque da reacção
política e da contra-revolução burocrática»50. Ou seja, na ascensão do
estalinismo. Apesar do esforço da historiografia liberal de igualar Lenine a
Estaline, ele não passa a prova dos factos – Lenine tem como último combate
da sua vida uma luta política de um ano para tentar afastar Estaline do poder51.
Mas é um facto hoje que o atraso da Rússia – sem a concomitante revolução
alemã – a fez sucumbir nos anos 30 a um Termidor – uma contra revolução 47
Sobre esta Teoria ver Álvaro Bianchi, «O Primado da Política: Revolução Permanente e
Transição» in Outubro, nº. 5, pp. 101-115; e George Novack, O Marxismo e o Desenvolvimento
na Natureza e na Sociedade, Porto, Ediciones Pluma, 1974.
48
Para além da teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trostky, a teoria do sistema
mundo de Wallerstein vai ser determinada pela teoria da dependência (por exemplo A.
Gunterfrank) e Braudell.
49
Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Tomo I, Parte I, São Paulo, Sundermann, 2007, p.
19-22.
50
George Novack, O Marxismo e o Desenvolvimento na Natureza e na Sociedade, Porto,
Ediciones Pluma, 1974, p. 37.
51 Moshe Lewin, Le Dernier Combat De Lénine, Paris, Syllepse, 2015.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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que tem o seu ápice nos processos de Moscovo e na impossibilidade da URSS
ter contribuído para impedir a II Guerra Mundial pela expansão da revolução à
Alemanha, Espanha e França nos anos 20 e 30 do século XX.
Mas retornemos ao «salto da flecha para o fuzil»: em 1914 as
empresas com mais de mil operários ocupavam 17,8% da totalidade dos
operários nos EUA e 41,4% na Rússia (44,4% em Petrogrado e 57,3% em
Moscovo). Este operariado, altamente concentrado, vem do campo de forma
brusca, rompendo violentamente com o que existia antes, sem passar uma
fase de paulatinas transformações como na Inglaterra ou na França – os dois
países a inaugurarem as revoluções burguesas e iniciar a modernização
económica capitalista, pari passu com a paulatina democratização do Estado.
A Rússia tinha o mais atrasado dos regimes políticos. Nas vésperas da sua
queda, oráculos, mágicos, místicos e santos rodeavam o cazr e czarina, o mais
famoso deles Rasputine, um charlatão que vai ganhar estatuto de conselheiro
de Estado até ser assassinado em 1916. Na turbulência da guerra e da
revolução que o derrubou, Nicolau II toma chá, passeia a pé, anda de cavalo,
rema o barco no lago... No diário de Nicolau II, nas vésperas da abertura da
Duma, pode ler-se: «Passeei. Vestindo blusa fina. Recomecei a remar. Tomei
chá na varanda». Meses depois, quando da dissolução do mesmo órgão, os
comentários não diferem: «9 de Julho. Domingo. O negócio está liquidado! A
Duma foi hoje dissolvida. Ao almoço, após a missa, notavam-se várias
fisionomias abatidas. Belo tempo. Durante o passeio encontrámos o tio Misha
(…) Trabalhei tranquilamente toda a tarde até à hora de jantar. Passeei de
bote»52. Do lado da czarina, a política parece ser menos festiva: são dela frases
como «A Rússia gosta de ser acariciada com chicote – está na natureza desta
gente!»53.
A guerra teve inicialmente um papel de retardar a revolução, mas num
momento seguinte ela fortaleceu os elementos revolucionários. Entre 1903 e
1917 o número de grevistas políticos variava entre 4000 em 1910 e 600 000
52
Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Tomo I, Parte I, São Paulo, Sundermann, 2007, p.
68.
53
Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Tomo I, Parte I, São Paulo, Sundermann, 2007, p.
72.
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em 1906 mas com dois grandes picos de 1 843 000 em 1905 (ano da revolução)
e 1 059 000 em 1914.
Os operários se lançaram na greve, entre estes e os soldados começou
a existir confiança mútua no meio das lutas, a direcção bolchevique andava
ainda a “reboque” dos acontecimentos – e assim se manterá até Abril de 1917.
Na primeira semana de Abril, da frente norte e oeste, desertaram 8000
soldados, na sua maioria mujiques que queriam terra…para viver nela antes de
perecerem na frente de guerra. A força propulsora do processo são os
sovietes. De facto o czar abdica e forma-se um Governo provisório chefiado
pelo Príncipe Levov. Mas…uma coisa é formar Governo, outra é que este seja
respeitado. Na Rússia havia a memória, o saber, da organização de comités ou
conselhos (os sovietes) de 1905. O Soviete de Petrogrado tinha sido
particularmente importante porque os seus líderes tinham participado no
Comité de Indústrias de Guerra. O Soviete de Petrogrado, depois da revolução
democrática de Fevereiro, torna-se um Parlamento real, de base, onde se
debate política toda a noite e recebe-se delegações sem, parar, de toda a
Rússia. Quando se reúne o congresso dos Sovietes de toda a Rússia em Abril de
1917 havia delegados de 138 sovietes locais, 7 do exército, e 26 das unidades
de guerra do front.54
Neste período multiplicam-se os sovietes (as bases são mais radicais
que os próprios bolcheviques, exigindo, a partir do bairro de Vyborg, a saída da
burguesia liberal do Governo Provisório). Vive-se uma situação de dualidade de
poderes. A Dualidade de Poderes é «uma situação na qual a classe destinada a
implantar um novo sistema social (…) concentra (…) uma parte importante do
poder do Estado, ao passo que o aparelho oficial permanece nas mãos dos
antigos possuidores»55. Este fraccionamento do poder tem um limite temporal
que pronuncia a guerra civil ou a derrota revolucionária.
Charles Tilly, relembrando a dificuldade que todos os processos
revolucionários levantam à teorização de uma definição comum a estes
momentos de transformação social e a variabilidade de factores que
54
William Henry Chamberlein, The Russian Revolution, vol 1, New York, 1935, p. 112, cit in
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 131.
55
Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Tomo I, Parte I, São Paulo, Sundermann, 2007, p.
204.
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caracterizam uma situação revolucionária, optou por utilizar como elemento
central definidor das revoluções a existência de duplo poder56. Trotsky, no seu
estudo sobre a revolução russa, destacou três elementos que caracterizam
uma situação como revolucionária: a entrada em cena de milhões de
trabalhadores mobilizados, atracção dos sectores intermédios da sociedade
pelas organizações e métodos de luta das classes trabalhadoras e uma crise
nacional (mais tarde, Trotsky acrescentará a esta definição a existência de um
partido revolucionário). Em suma, uma situação revolucionária seria um
processo político caracterizado pela entrada em cena de vastos sectores da
população (trabalhadores e classes médias) que altera a relação de forças
entre classes sociais, num quadro de crise (decadência) nacional. Valério
Arcary, na sua investigação sobre as revoluções do século XX, propõe a
distinção de dois tipos de revoluções, as revoluções políticas e as revoluções
sociais. Nas primeiras, muda o poder político; nas segundas, o poder
económico muda de mãos, ou seja, coloca-se em questão a propriedade
privada. Por analogia com a revolução russa, classifica estas revoluções
políticas de «revoluções de Fevereiro»; e as sociais de «revoluções de
Outubro». De acordo com este critério, na sua maioria as revoluções do século
XX, o século da história da humanidade em que houve mais revoluções, são
revoluções políticas, objectivamente anticapitalistas mas subjectivamente não,
que estacionaram na fase de «Fevereiro», ou seja, não puserem em causa a
propriedade privada dos meios de produção, pela fragilidade de suas direcções
políticas.57
Lenine volta à Rússia no início de Abril de 1917. Contra a vontade das
bases do partido, mais jovens e operárias, os dirigentes, sobretudo Kamenev e
Estaline, continuavam a não pôr em causa o Governo Provisório. Lenine
apresenta o documento que ficou conhecido como as Teses de Abril, que se
opunha ao Governo e à guerra. Mas as Teses iam mais longe. A revolução não
se resumia às tarefas democráticas. A 4 de Abril Lenine dirigiu-se ao Congresso
do Partido Bolchevique. Na sequência das Teses de Abril Lenine é tratado pelos
56
Charles Tilly, Las Revoluciones Europeas, 1492-1992, Barcelona, Crítica, 1995, pp. 26-27.
Valério Arcary, As Esquinas Perigosas da História. Situações Revolucionárias em Perspectiva
Marxista, São Paulo, Xamã, 2004, p. 98.
57
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dirigentes bolcheviques, pelo Governo Provisório e pelo Pravda como um
dirigente «desorientado», que estava há muito fora da Rússia e que não
compreendia que não era possível ir mais além da revolução democrática. Mas
Lenine acaba por, apoiado sobretudo no sector mais jovem, ganhar o partido
para a sua política no fim de Abril, na Conferência realizada em Petrogrado
entre 24 e 29 de Abril. De Abril a Julho o Partido Bolchevique cresce com a
radicalização da revolução: em Petrogrado, em Junho, tem 15 000 membros.
No dia 2 de Julho de 1917 começam várias manifestações espontâneas
em Petrogrado que nos dias 3 e 4 de Julho chegam a reunir mais de 500 mil
soldados e operários. O Partido Bolchevique defendia que era cedo demais
para uma insurreição. O problema não era tanto o de tomar o poder, mas o de
ter foça social para o conservar. As manifestações daqueles primeiros dias de
Julho foram derrotadas; a elas seguiram-se uma série de medidas repressivas
sobre os operários e soldados e sobre o Partido Bolchevique, que embora
inicialmente contra as manifestações, quando elas se deram, encabeçou-as. A
redacção do Pravda foi destruída; Lenine, caluniado como agente alemão,
obrigado à clandestinidade, e o próprio Trotsky, que formalmente ainda não
era do Partido Bolchevique, preso. Apesar da derrota, o partido não perdeu
quadros e acabou por fortalecer-se.
Das Jornadas de Julho à Insurreição de Outubro decorrem quase 4
meses. Muito pouco tempo na história se não estivéssemos a falar de uma
revolução. Porque num processo revolucionário 4 meses é muito. É o tempo
de a burguesia preparar a sua última tentativa de suster o processo
revolucionário dirigindo um golpe que tem à frente o general Kornilov, mas
que é derrotado pelos operários e soldados. Novamente, o Partido
Bolchevique sai reforçado desta luta. Os socialistas revolucionários e os
mencheviques vão perdendo terreno. Tentam canalizar a revolução para um
Pré-parlamento. O partido Bolchevique chega a aprovar participar neste Préparlamento mas sob pressão de Trotsky, Lenine, Sverdlov e o próprio Estaline,
recuam e recusam-se a participar. O Partido Bolchevique tinha mais de 170
000 membros; só em Petrogrado havia mais de 40 000 militantes.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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A guerra camponesa contra os proprietários, em Setembro e Outubro,
radicaliza-se. As condições para a insurreição estavam reunidas: os
camponeses tinham perdido a confiança nos socialistas revolucionários – que
no momento da confiscação de terras aos nobres tinham recuado, tentando
restringir o movimento camponês –; e os bolcheviques eram maioritários nos
sovietes. Há diferenças políticas dentro do próprio Partido Bolchevique
(Kamenev e Zinoviev opõem-se à insurreição); Lenine apela para que a
insurreição seja “agora”; dão-se os preparativos militares da insurreição.
Poucos dias depois dá-se a tomada de poder liderada pelos bolcheviques.
A tomada de poder ficou simbolizada na tomada do Palácio de Inverno,
um lugar central, junto ao Rio Neva em Petrogrado. Do outro lado do Rio está
a fortaleza Pedro e Paulo. No semi círculo que hoje serve de entrada a milhões
de turistas para visitar o Museu Hermitage, alojado nesse sumptuoso Palácio,
morreram em 1905 mais de 50 trabalhadores metralhados pelas tropa do czar
no Domingo Sangrento. Uma bomba tinha aí explodido, desta vez num
atentado levado a cabo por um marceneiro em 1881. Em 1879 o estudante
Soloviev atirou aqui sobre o czar Alvendre II. Estava aí, em Outubro de 1917,
Kerensky quando na madrugada do dia 25 de Outubro foi derrubado.
A fábula da teoria do golpe de Estado num processo determinado
pelas massas, o mais determinado pelas massas que a história conheceu,58 não
se sustenta. Poucos dias antes da tomada de poder Kerensky reconhecerá «O
povo russo – disse com amargura - sofre de esgotamento e também de
desilusão no que diz respeito aos Aliados. O Mundo pensa que a revolução
atingiu o seu fim. Não acreditem nisso: a Revolução Russa mal começou…»59.
«Assim como a guerra, ninguém faz uma revolução de boa vontade. A
diferença consiste em que, numa guerra, o papel decisivo é o da coacção;
numa revolução não há coacção. A não ser a das circunstâncias»60.
58
Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Tomo I, Parte I, São Paulo, Sundermann, 2007, p.
931.
59
John Reed, Dez Dias que Abalaram o Mundo, Lisboa, Europa-América, 1976, p. 48.
60
p. 842 Vol III.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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2248
A revolução russa “deu tudo de si”
A revolução russa “deu tudo de si”: «Durante pouco mais de cinco anos,
emergiram na França revolucionária figuras políticas de projecção histórica e
alcance mundial que, em outras épocas, o mundo todo teria demorado um
século ou mais para produzir. Só a Revolução Russa, entre 1917 e 1923,
conseguiu um feito semelhante (mas sem igualá-lo). A Revolução deu tudo de
si, nas condições históricas em que aconteceu.61». Paz, Pão, Terra – o decreto
da paz, mesmo perdendo a Rússia vastas áreas do território; a terra para os
camponeses,
o
decreto
sobre
o
controlo
operário
a
expropriação/nacionalização da banca e sector financeiro. Pela acção directa
os trabalhadores conquistaram 8 horas de trabalho, demitiram gestores
ligados ao czarismo, persecutórios, durante a férrea ditadura chefiada na
polícia (Okrana), subiram os salários, várias vezes, e controlaram a produção62.
Nenhum dos trabalhos que utilizou os arquivos abertos da URSS, depois da
queda do muro em 1989/1990, sustenta a visão liberal que iguala o período da
revolução com o estalinismo: «foi a confiança dos trabalhadores e o seu
envolvimento nos locais de trabalho que deu ao regime de fábrica um grau
essencial de legitimidade»63 e o fez em massa aderir ao Partido Bolchevique, os
mesmos trabalhadores que depois de 1928 desertaram do partido. O Código
da Terra e da Família, embora face à pobreza extrema, ampliava como nunca
os direitos das mulheres; união livre, fim da perseguição aos homossexuais,
cuidado das crianças socializado com creches, lavandarias públicas, protecção
às mãe solteiras, direito ao aborto64.
Ao talento de Leon Trotsky como general – que a bordo de um
comboio blindado chefiou um exército exaurido da I Grande Guerra e derrotou
14 exércitos invasores, as «tropas brancas» - juntavam-se factores objectivos:
os brancos não realizaram a reforma agrária nos territórios sob a sua alçada e
61
Osvaldo
Coggiola,
História
do
Capitalismo
(para
publicação)
https://raquelcardeiravarela.files.wordpress.com/2014/11/ocogg-histe280a1ria-docapitalismo1.pdf acesso em 12 de Maio de 2017, pp. 295-296.
62
Kevin Murphy, Revolution and Counterrevolution, New York/Oxford, Berghahn Books, 2007, p.
225.
63
Kevin Murphy, Revolution and Counterrevolution, New York/Oxford, Berghahn Books, 2007, p.
226.
64
Wendy Goldman, Mulher, Estado e Revolução, São Paulo, Boitempo, 2014.
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não colocaram em causa a hierarquia do clero e dos velhos generais – tinham
portanto escasso apoio entre os camponeses, que amparam os bolcheviques.
Por que a revolução social mais importante da história da humanidade,
que mais direitos conquistou, dentro e fora da Rússia, terminou no sangrento
banho de sangue da colectivização forçada dos anos 30, dos processos de
Moscovo e da aniquilação física do comité central do Partido Bolchevique e da
emergência à escala de centenas de milhar do trabalho forçado na URSS?
Os estudos de Charles Tilly deram muita importância à relação entre as
revoluções e os factores macroestruturais - este autor defende que a
compreensão das causas e do desfecho das revoluções não deve ser isolado
«da posição (do país) no sistema de relações entre Estados»65. O isolamento da
revolução russa, a solidariedade dos países capitalistas ao coordenarem uma
invasão comum à Rússia e, sobretudo, a derrota da revolução alemã levaram à
criação de um monstro - o burocratismo, encarnado na figura de Estaline.
Todas as obras de história da revolução russa escritas antes de 1937 foram
retiradas de circulação e o simples facto de se lerem ou as ter em casa era
punível pela lei.66 Na URSS «Durante o XVII Congresso, Kaganovich oferecerá
uma prova inquestionável disso, ao indicar que a fábrica de vagões de
Moscovo tem 601 administradores, dos quais 367 se encontram divididos em
catorze serviços centrais e os 234 restantes trabalham nas diferentes oficinas,
tudo isso inerente a uma empresa que emprega 3.832 operários (…)».67
Lenine disse-o, em vários discursos, sobre a revolução russa de 1917,
que ele próprio liderou: «É um grande infortúnio que a honra de começar a
primeira revolução socialista tenha cabido ao povo mais atrasado da
Europa».68 Na viragem do século XIX para o século XX a Rússia camponesa
produzia quase 1/3 a menos que a agricultura alemã e quase ¼ a menos que a
agricultura inglesa.69 Escrevendo sobre a guerra civil, um dos dirigentes da
65
Charles Tilly, Las Revoluciones Europeas, 1492-1992, Barcelona, Crítica, 1995, pp. 26-23.
Victor Serge, Ano Um da Revolução Russa, Lisboa, Edições Delfoes, 1975, p. 15.
67
Pierre Broué, O Partido Bolchevique, São Paulo, Sundermann, 2014, p. 321.
68
Rosa Luxemburgo, Textos Escolhidos, Volume II (1914-1919), São Paulo, Editora Unesp, 2011,
p. 17.
69
Robert O. Paxton, Europe in the Twentieth Century, Orlando, Harcourt, 1997, p. 11.
66
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Internacional Comunista, Victor Serge, recorda que não eram os 14 exércitos
estrangeiros que mais os desmoralizavam, mas o «tifo e a fome».70
O capitalismo permitiu, ao derrubar as barreiras do sistema fechado
feudal ou semifeudal, introduzir a concorrência, o mercado interno, o trabalho
assalariado, impulsionando o maior salto de desenvolvimento das forças
produtivas de sempre da humanidade. Porém, nos finais do século XIX a
primeira grande depressão – 1870 – dava já sinais de um motor gripado: «Ao
deixar patente a existência de um excedente absoluto de capital sem
condições objectivas de realimentar o circuito de valorização, a queima de
riqueza tonar-se um imperativo do metabolismo do capital»71, ou seja, a
guerra e a barbárie, a produção para destruição vão ser a principal e mais
catastrófica facto do século XX – duas guerras mundiais mataram 70 a 80
milhões de pessoas, num processo político violento de «liquidação de valor», a
«destruição de riqueza impõe-se como o único meio de restaurar as condições
para a retomada do processo de acumulação»72. Como nos recorda o
historiador Chris Harman, o imperialismo não é só um estágio da história em
que há disputa das colónias, é «um sistema cuja lógica foi a total militarização
e a guerra total, apesar da devastação social que isso provocou»73. O século XX
será ainda marcado por três grandes depressões: 1929, quando o capitalismo
mundial sucumbiu e foi procurar salvação na II Guerra Mundial, e 2008,
quando a ampliação do Estado salvou os maiores bancos e industrias dos
principais países do mundo, incluindo EUA, Inglaterra, Alemanha e França74.
Esta característica económica do modo de acumulação no século XX
vai se dar a pari passu com as revoluções democráticas e sociais. O século XX
foi o século mais revolucionário de toda a história da humanidade: revolução
russa 1905, revolução republicana Portugal 1910, revolução Mexicana 1910,
revolução irlandesa 1916, revolução russa 1917, triénio bolchevique Espanha
1917-1920; biénio rosso Itália 1919-1920; revolução húngara 1919, alemã
1919, revolução alemã 1923, revolução austríaca 1934, revolução espanhola
70
Victor Serge, Ofício de Revolucionário, Rio de Janeiro, Moraes Editora, p. 108
Osvaldo Coggiola, As Grandes Depressões, São Paulo, Alameda, 2009, pp.10-11.
72
Osvaldo Coggiola, As Grandes Depressões, São Paulo, Alameda, 2009, pp.10-11.
73
Chris Harman, A People’s History of the World, London and Sidney, Bookmarks, 1999, p. 409.
74
Michael Roberts, The Long Depression, Chicago, Haymarket books, 2016.
71
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1934-36, Indonésia 1946-49, revolução chinesa 1949, revolução boliviana
1952, levantamento da DDR 1953, revolução húngara 1956, revolução cubana
1959, todas as revoluções anti coloniais, a mais importante, o Vietnam; Maio
de 68, Primavera de Praga 1968, Outono quente de 1969 Itália, revolução
portuguesa 1974, revolução na Nicarágua 1979, revolução iraniana 1979…
O século XX é o século da luta de classes, do maior número de
revoluções de toda a história da humanidade, tal como Karl Marx tinha
previsto no panfleto que escreveu com Friedrich Engels para a fundação da
Internacional, O Manifesto do Partido Comunista75 – nunca um século assistiu
a tantas revoluções, democráticas e sociais, como o século XX. O século XX
teve mais Fevereiros – revoluções que mudaram os regimes políticos, do que
Outubros, «revoluções que deslocaram o controlo do Estado burguês»76.
Houve muitas crises revolucionárias depois dos “Fevereiros” que tiveram uma
dimensão semelhante ao Outubro russo, com divisão no seio das forças
armadas, dualidade de poderes com criação de conselhos de trabalhadores,
ocupação de fábricas e expropriações – mas na maioria os trabalhadores não
tomaram o poder. E nos países que tomaram, a luta de classes retrocedeu e
deu lugar a novas formas de hierarquização, ou, em casos isolados, escassez
incompatível com o socialismo, como foi o exemplo de Cuba. Para o
historiador Valério Arcary ajuda-nos com as seguintes hipóteses: em primeiro
lugar, «os processos revolucionários que triunfaram e foram até à
expropriação (Jugoslávia, Albânia, China, Coreia, Vietname, Cuba) contrariaram
três prognósticos do marxismo clássico: 1) o proletariado não foi o sujeito
social
dirigente,
predominaram
as
revoluções
agrárias,
com
forte
protagonismo camponês; 2) a auto-organização plural ou a democracia directa
não existiram, predominou a forma de duplo poder territorial, através de
exércitos revolucionários ou guerrilhas militarmente centralizadas, e depois da
conquista do poder, uma evolução uniforme no sentido de regimes ditatoriais
de partido único; 3) a estratégia internacionalista não teve maior importância;
75
Karl Marx, Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, Coimbra, Nosso Tempo, 1974.
Valério Arcary, As Esquinas Perigosas da História. Situações Revolucionárias em Perspectiva
Marxista, São Paulo, Xamã, 2004, p. 104.
76
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ao contrário, predominou um intenso nacionalismo, com excepção da
revolução cubana nos seus primeiros anos»77.
Mas as revoluções, prossegue o autor, são determinantes para explicar
as reformas: «Somente quando estiveram ameaçadas seriamente pelo perigo
revolucionário – como pela Comuna de Paris e pelas duas vagas
revolucionárias que se seguiram à Revolução de Outubro na Rússia – os
capitalistas aceitaram fazer concessões (…) O projecto histórico de reforma do
capitalismo tem fracassado repetidas e incontáveis vezes»78. Esta afirmação é
particularmente brutal hoje quando 1% da população tem a mesma riqueza
dos restantes 99%.79A revolução russa sucumbiu ao Termidor Estalinista, mas
não se pode misturar revolução – até 1927 – com contra-revolução, daí então.
Estava tudo em aberto nos anos 20 da Europa do século XX, os germes da
ditadura que se consolidou, a restauração do capitalismo que lhe seguiu, mas
também a semente de uma sociedade igual e livre – permanece hoje em
aberto, ou seja, histórico.
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Sobre a autora
Raquel Varela
IHC-Universidade Nova de Lisboa; Professora visitante na Universidade Federal
Fluminense;
International
Institute
for
Social
History.
E-mail:
Raquel_cardeira_varela@yahoo.co.uk.
A autora é a única responsável pela redação do artigo.
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.3, 2017, p. 2227-2255.
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