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Dossiê: Tradução e Feminismos negros Cibele de Guadalupe Sousa Araújo Luciana de Mesquita Silva Dennys Silva-Reis (orgs.) v. 27, n. 1 (2019) Sumário __________________________________________________________________________ Dossiê: Tradução e Feminismos negros __________________________________________________________________________ Introdução Estudos da Tradução & Mulheres Negras à luz do feminismo Cibele de Guadalupe Sousa Araújo, Luciana de Mesquita Silva, Dennys Silva-Reis PDF 2-13 Translation Studies & Black women in the light of feminism Cibele de Guadalupe Sousa Araújo, Luciana de Mesquita Silva, Dennys Silva-Reis PDF (English) 14-24 __________________________________________________________________ Artigos Sobre tradução e ativismo intelectual Patricia Hill Collins PDF 25-32 Negofeminismo: Teorizar, Praticar e Abrir o Caminho da África Obioma G. Nnaemeka PDF 33-62 Revolução do feminismo negro! Elsa Dorlin PDF 63-88 Construindo pontes: diálogos a partir do/com o feminismo negro Mercedes Jabardo Velasco PDF 89-114 Translating Yvonne Mété-Nguemeu’s Femmes de Centrafrique: Âmes vaillantes au PDF cœur brisé from a Feminist Perspective (English) Ngozi O. Iloh 115-131 Translating Black Feminism: The Case of the East and West German Versions of Buchi Emecheta’s The Joys of Motherhood Omotayo I. Fakayode PDF (English) 132-143 A tradução de mulheres negras no conjunto de suas ações políticas PDF Israel Victor Melo 144-157 Frantz Fanon no Brasil: Uma releitura da sua recepção pelo Pensamento Negro Feminista Rosânia do Nascimento PDF 158181 Feminismo negro estadunidense e sua (in)visibilidade no cenário brasileiro: questões de tradução Luciana de Mesquita Silva PDF 182205 _________________________________________________________________________ Entrevistas A linha da cor: entrevista com Rane Souza Luciana Carvalho Fonseca PDF 206-221 Black Feminist Thought and Translation Studies: interview with Patrícia Hill Collins Patrícia Hill Collins, Dennys Silva-Reis PDF (English) 222-228 Pensamento feminista negro e estudos da tradução: Entrevista com Patrícia Hill PDF 229Collins 235 Patrícia Hill Collins, Dennys Silva-Reis Pensar la Traducción y el Feminismo Negro: Entrevista con Ochy Curiel Ochy Curiel, Dennys Silva-Reis PDF (Español (España)) 236-240 Pensar a tradução e o feminismo negro: entrevista com Ochy Curiel Ochy Curiel, Dennys Silva-Reis PDF 241-245 Thinking Negofeminism in Translation: Interview with Tomi Adeaga Tomi Adeaga, Dennys Silva-Reis PDF (English) 246-250 Pensar o Nego-Feminismo na Tradução: Entrevista com Tomi Adeaga Tomi Adeaga, Dennys Silva-Reis PDF 251-255 Estudos da Tradução & Mulheres Negras à luz do feminismo 2 O feminismo negro teve sua ascensão nos anos de 1970 e 1980, a partir de uma revisão da crítica feminista como um todo e, consequentemente, a conclusão de que na categoria “mulher” a representação do grupo em questão era predominantemente branca. A situação de invisibilidade da mulher negra era gritante, em particular, no mundo universitário, no qual o feminismo acadêmico ignorava as reflexões do feminismo negro. O feminismo hegemônico – branco e cisgênero1 – de alguma forma excluía os outros feminismos. Mesmo após ser identificada a existência de outros feminismos, como o feminismo negro, é preciso ressaltar que a categoria “mulher negra” não é unívoca e universal. Essa categoria é heterogênea e tem diferenças e contradições no tempo e no espaço em que esses corpos femininos de cor existem ou existiram. Thomas Bonnici (2007), ao analisar as obras de Zora Neale Hurston, Alice Walker e Toni Morrison, afirma que a mulher negra é sempre apresentada como uma depositária de memória coletiva (ancestralidade e escravidão), munida de habilidades específicas (parteira, conhecedora de ervas medicinais, entre outras) e duplamente abusada por homens (pai e marido). Susan Willis (1990), por sua vez, menciona que o que diferencia fortemente a mulher negra da mulher branca é a constante reconciliação que a primeira tenta continuamente fazer com o presente por meio de três aspectos: a comunidade (uma busca pela restauração da identidade de seu grupo étnico), a passagem (o reconhecimento de que há um caminho coletivo percorrido por todas as mulheres negras da África para o Novo Mundo) e a sexualidade (a distorção da experiência sexual da mulher negra devido aos padrões hetero-patriarcais e do feminismo hegemônico branco cisgênero). O reconhecimento analítico e reflexivo dos diversos tipos de feminismos negros, com a premissa das características apontadas por Susan Willis (1990), foi e ainda é motivo de tomada de posicionamento e também de imposição da voz da mulher negra. O ecoar da voz da mulher negra é, para além da demarcação de um lugar de fala, um modo de resistência – entendido por bell hooks (1989) como uma forma de oposição ao feminismo hegemônico branco cisgênero. O não-reconhecimento das diferenças dos corpos femininos de mulheres brancas e mulheres negras leva ao que Adrienne Rich (1976) nomeia como cegueira 1 Termo que se se refere à concordância de identidade sexual do indivíduo com sua genitália e configuração hormonal de nascença. Cibele de Guadalupe Sousa Araújo Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás e professora de Português e de Inglês do Instituto Federal de Goiás (campus Cidade de Goiás). E-mail: guadalupe.sousa@gmail.com Luciana de Mesquita Silva Doutora em Letras – Estudos da Linguagem (PUC-Rio) e professora de Português e Inglês no CEFET/ RJ (campus Petrópolis). E-mail: luciana.cefetrj@gmail.com Dennys Silva-Reis Doutor em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13 de cor, em que há a supressão da realidade individual para a construção de uma hegemonia total. Por isso, é urgente pensar nas questões de colorismo2, nas histórias das mulheres negras e suas representações discursivas, culturais, políticas e sociais – tudo o que representa a pluralidade da categoria “mulher negra”. E é nesse sentido que a tradução, em suas diversas modalidades, é empregada como micropolítica de poder (Foucault, 2003) feminista negro. Com os avanços da sociolinguística (Bagno, 2017), que comprovam a existência de uma diferença entre a escrita masculina e a escrita feminina, fica evidente igualmente que existe uma diferença na escrita (e também na tradução dos escritos) da mulher negra. As categorias de gênero e raça não são somente sociais, mas igualmente categorias de análises linguístico-culturais. Como nenhum uso da palavra é neutro e sempre implica uma espécie de performance (Carlson, 2010), a leitura de textos (e posteriormente suas traduções) é um momento de elocução e de manifestação de vozes. Os textos de mulheres negras são a encenação de suas falas, verdadeiras performances linguísticas de seus corpos e vivências. Por isso, traduzir não é somente uma transposição de material linguístico de uma língua para outra, mas sim uma transvivência3. A importância da tradução é fundamental na construção e circulação de pensamentos e epistemologias feministas, antirracistas e decoloniais, em um mundo no qual ainda prevalece, nos mais diversos campos de conhecimento, uma hegemonia branco-eurocêntrica, patriarcal, cisgênera e (neo)colonialista. Nesse cenário, especificamente no que diz respeito à América Latina, a miscigenação característica de seus povos é decorrente da violência colonial sobre mulheres negras e indígenas. Sueli Carneiro (2011: 1), intelectual e feminista negra brasileira, esclarece que tal miscigenação “está na origem de todas as construções de nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas consequências”. Acerca do mito da democracia racial brasileira, Lélia Gonzalez (1984: 224), referência fundamental do feminismo negro no país, assevera que ele afeta sobremaneira a mulher negra brasileira, a quem cabe enfrentar cotidianamente a dupla opressão constituída pela articulação do racismo e do sexismo, a qual “produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular”. Assim, desde a colonização, o lugar da mulher negra foi violentamente forjado no mais raso degrau da estrutura social, estando ela, quanto a sua raça, abaixo de homens e mulheres brancas e, em relação a seu gênero, abaixo de homens negros. Nesse contexto, a mulher negra torna-se o Outro do Outro, na medida em que ela está situada em um terceiro espaço: “um debate sobre racismo no qual o sujeito é o homem negro; um discurso de gênero no qual o sujeito é a mulher branca; e um discurso sobre classe no qual ‘raça’ não tem lugar algum” (Kilomba, 2012: 56, tradução 2 Conceito que abarca, grosso modo, as formas de discriminação relativas à pigmentação da pele de uma pessoa. Mesmo entre os grupos étnicos considerados negros ou afrodescendentes, a questão do colorismo refere-se à distinção de tratamento, vivências e oportunidades que depende do quão escura é a pele da pessoa. 3 O termo é baseado no vocábulo “escrevivência”, cunhado por Conceição Evaristo. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13 3 nossa)4. Esse lugar de subalternização estrutural, de raça e de gênero, orientou e continua a orientar, como novos e atualizados contornos e funções, a organização social vigente na América Latina, mesmo em âmbitos como o feminismo hegemônico, visto que nesse cenário as realidades vivenciadas por mulheres negras e indígenas têm sido historicamente deixadas à margem. É nesse ensejo que o movimento de mulheres negras brasileiras empreendeu o tão necessário projeto de enegrecer o movimento feminista no Brasil. Nas palavras de Carneiro (2003: 118): [e]negrecendo o feminismo é a expressão que vimos utilizando para designar a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro. Buscamos assinalar, com ela, a identidade branca e ocidental da formulação clássica feminista, de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e prática política para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais. Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda específica que combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero; afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre, delineamos, por fim, o papel que essa perspectiva tem na luta anti-racista no Brasil. 4 Além de Sueli Carneiro, Lelia Gonzalez alertou para a relevância da constituição de um feminismo afrolatinoamericano, pautado não só nas experiências de mulheres negras e indígenas relativas ao racismo, ao sexismo e ao colonialismo, como também nos processos de resistência por parte delas a sistemas sociais marcados pela supressão de suas vozes e reivindicações. Em suas obras, Gonzalez também ressaltou a importância do processo de subversão da linguagem padrão, mecanismo que se configura como uma forma de poder. Na visão da autora, faz parte do processo de ruptura de barreiras nos paradigmas sociais dominantes o reconhecimento de que o “pretuguês” é a língua que constitui a cultura brasileira: É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês. (Gonzalez, 1984: 238, grifos da autora) 4 “[...] a debate on racism where the subject is Black male; a gendered discourse where the subject is white female; and a discourse on class where ‘race’ has no place at all” (Kilomba, 2012: 56). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13 Atualmente, essa especificidade da língua ou consciência sobre a africanidade da língua portuguesa (Lucchesi, Baxter, Ribeiro, 2009; Bagno, 2019), para a qual Gonzalez chamou atenção já na década de 1980 sob a alcunha de pretuguês, ganha destaque nos estudos de educação linguística por meio do conceito ideologia racial linguística. Para Nelson Flores e Jonathan Rosa (2015, p. 150-151): [...] a construção ideológica e o valor das práticas linguísticas normatizadas se ancoram naquilo que denominamos ideologias racial-linguísticas, que vinculam certos corpos racializados a deficiências linguísticas sem nenhuma relação com práticas linguísticas objetivas. Ou seja, ideologias racial-linguísticas produzem sujeitos falantes racializados que são percebidos como linguisticamente desviantes mesmo quando empenhados em práticas linguísticas consideradas normativas ou inovadoras se produzidas por sujeitos brancos privilegiados. Esta perspectiva racial-linguística se baseia na crítica do olhar branco [white gaze] – um modo de ver que privilegia perspectivas dominantes brancas acerca das práticas linguísticas e culturais de comunidades racializadas –, crítica que é central para as reivindicações em prol de uma pedagogia culturalmente fortalecedora.5 (tradução nossa) 5 Uma vez reconhecendo que as práticas sociais linguísticas são racializadas e igualmente interseccionadas por gênero, geração e sexualidade, percebe-se que a tradução, enquanto prática linguístico-cultural, compõe igualmente esse bojo. Somado a isso, ao tratar especificamente das reverberações da atuação do movimento feminista negro brasileiro na mídia, Carneiro (2003) ressalta a predominância, não ocasional, da exclusão simbólica, da não-representação e das distorções da imagem da mulher negra nos veículos de comunicação em massa. Paralelamente, Conceição Evaristo (2009) denuncia a não-representação ou a representação negativizada das pessoas negras em geral, e em especial da mulher negra, no cânone literário brasileiro. Os efeitos da exclusão simbólica ou da representação negativizada da mulher negra tanto na mídia quanto na literatura são nefastos. Do ponto de vista da tradução, a situação não é diferente. As obras literárias e os diferentes produtos culturais estrangeiros (tais como músicas, filmes, seriados, novelas) traduzidos para o português brasileiro, principalmente por grandes 5 “[…] the ideological construction and value of standardized language practices are anchored in what we term raciolinguistic ideologies that conflate certain racialized bodies with linguistic deficiency unrelated to any objective linguistic practices. That is, raciolinguistic ideologies produce racialized speaking subjects who are constructed as linguistically deviant even when engaging in linguistic practices positioned as normative or innovative when produced by privileged white subjects. This raciolinguistic perspective builds on the critique of the white gaze—a perspective that privileges dominant white perspectives on the linguistic and cultural practices of racialized communities—that is central to calls for enacting culturally sustaining pedagogy” (Flores, Rosa, 2015: 150-151). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13 6 editoras, com vistas a serem recebidos pelo público nacional, assim como as obras literárias e os produtos culturais brasileiros traduzidos para línguas estrangeiras, a fim de serem recebidos em outras culturas, não apresentam, mormente, personagens femininas negras, para além daquelas secundárias, ocupando papéis sociais estereotipados. Nesse sentido, a escolha da obra a ser traduzida pode equilibrar o leque de representações femininas, restituindo à mulher negra o direito de se reconhecer positivamente na literatura e nos produtos culturais que consome, desde a infância. Como exemplos disso, no âmbito de traduções de obras estrangeiras no Brasil, podemos citar as publicações, pela Editora Companhia das Letras, de obras da escritora afro-americana Toni Morrison, tais como Compaixão (2009), Amada (2007/2011/2018), entre outros, e da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, entre as quais encontram-se Americanah (2014) e No seu pescoço (2017), para citar apenas duas. Para além da representação simbólica da mulher negra, suas contribuições epistêmicas também são alvo de um processo de silenciamento tradutório que dificulta o diálogo, o compartilhamento de experiências e a articulação solidária entre grupos de mulheres de minorias étnicas ao redor do mundo, enfrentando, localizadamente, conflitos interseccionais similares. Nesse sentido, podemos ecoar o questionamento de Spivak (2010), acerca do sujeito subalternizado, perguntando: pode a mulher negra ser traduzida? Na tentativa de responder positivamente a essa pergunta, tem ocorrido um movimento político-ideológico de editoras e periódicos acadêmicos para a tradução de textos de escritoras e feministas negras. No Brasil, por exemplo, a editora Boitempo tem publicado obras traduzidas da intelectual feminista afro-americana Angela Davis e periódicos acadêmicos como Estudos Feministas e Cadernos Pagu têm disponibilizado traduções de textos não só de Davis como também de bell hooks, Patricia Hill Collins e Grada Kilomba. Já no exterior, no que diz respeito à circulação de obras de feministas negras brasileiras, podem ser citados, como exemplos, os livros de Djamila Ribeiro Chroniques sur le féminisme noir e La place de la parole noire, lançados recentemente na França, pela editora Anacaona. É importante ressaltar que embora haja um trânsito dos feminismos negros via tradução na contemporaneidade, ele ainda é pequeno e restrito a espaços específicos. Diante desse quadro, assim como tem ocorrido no campo da reversão da lógica da representação feminina nos meios de comunicação em massa, tem surgido uma nova gama de frentes de atuação pelas quais mulheres negras tradutoras têm se engajado. Entre esses movimentos de resistência, que visam a romper barreiras editoriais, está o chamado ciberfeminismo6. Um dos propósitos de tal movimento é fazer circular, por meio da Internet, a produção intelectual de mulheres negras, tanto das estrangeiras no Brasil quanto das brasileiras no exterior. Entre alguns casos em que a resposta ao questionamento supracitado foi sim – a mulher negra pôde 6 Conceito que diz respeito à utilização feminista do ciberespaço e que tenta libertar a internet das amarras da construção de gênero, bem como uma forma de unir o corpo e a máquina no mundo contemporâneo. É uma das formas de uso da tecnologia que lida com as questões de discriminação, sexualidade e gênero racializadas ou não (Nakamura, 2013). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13 ser traduzida pelo posicionamento e a ação politicamente engajada de tradutoras conscientemente atuando como mediadoras culturais – podem ser mencionadas as traduções de textos da feminista afro-americana Audre Lorde como “As ferramentas do sinhô nunca vão derrubar a casa-grande”, traduzido por Tatiana Nascimento e divulgado no site “Traduzidas”7. Embora as questões tradutórias de ciberferminismo venham se apresentando cada vez mais no Brasil, e na América Latina como um todo, é urgente refletir que ele é apenas um elo do modo tradutório da nova geração de traduções de textos negros e de tradutoras negras. Isso significa dizer que a reflexão sobre tradução e feminismos negros está relacionada igualmente a questões racializadas de geração, sexualidade, geografia e simbolismo, conforme abordaremos a seguir. Ao mencionarmos a questão da geração (descendência e ascendência) de mulheres negras, estamos lidando tanto com a história quanto com os comportamentos dessa categoria do feminismo. De fato, os novos estudos históricos sobre mulheres negras têm trazido à tona nomes de mulheres negras importantes para a história mundial e local. No que tange à história da tradução no Brasil, por exemplo, sabe-se que Maria Firmina do Reis, Lelia Gonzalez e Ruth Guimarães foram tradutoras. Entretanto, o ofício dessas mulheres negras até pouco tempo ainda era invisibilizado. É a partir dessa nova história – para não dizer lacuna – da tradução que as novas gerações de pesquisadores negros e pesquisadoras negras, mas também de pesquisadores racializados, propõem um novo olhar para a história dos tradutores negros e das tradutoras negras. A partir dessa consciência histórica é que novos comportamentos tanto acadêmicos quanto não-acadêmicos surgem sob a forma ativista de feminismo negro. Por exemplo, atualmente no Brasil está em andamento na ABRATES (Associação Brasileira de Tradutores) o projeto Abrates Afro, desenvolvido pela intérprete de conferência Rane Souza, que tem por objetivo “estimular a entrada, permanência e representatividade de profissionais negros nos mercados de tradução e interpretação simultânea no Brasil” (Souza, 2018: 22). No que tange à sexualidade, é preciso não qualificar o conceito “mulher negra” apenas dentro do âmbito cisgênero. A sexualidade das mulheres negras é diversa, assim como a das mulheres não-negras. E isso também está ligado à tradução, uma vez que discursos de diferentes mulheres negras viajam para as diferentes localidades e são, de alguma forma, reapropriados. Por exemplo, recentemente, no Brasil, foi lançada uma coletânea de Estudos Queer africanos intitulada Traduzindo a África Queer (Editora Devires, 2018). O livro foi organizado por Caterina Rea, Clarissa Goulart Paradis e Izzie Madalena Santos Amancio, todas professoras e pesquisadoras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). A coletânea foi originalmente escrita em língua inglesa, publicada em 2013, em Dakar, no Senegal, e organizada pelas feministas africanas Sokari Ekine e Hakima Abbas. Ela foi traduzida parcialmente no Brasil justamente por ser um livro que apresenta “textos escritos por autorxs africanxs que se declaram abertamente como queer ou que se solidarizam 7 Disponível em: https://traduzidas.wordpress.com/about/. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13 7 com a pauta da dissidência sexual” (Rea, Paradis, Amancio, 2018: 7). Além disso, as organizadoras da coletânea em português mencionam na introdução do volume que o objetivo da tradução desses textos é cooperar para acabar com o mito de que na África não há homossexualidade (masculina e feminina). E acrescentam: Acreditamos, assim, que com estas traduções do Queer African Reader seja possível fortalecer o diálogo Sul-Sul a partir da perspectiva dos Estudos de Gênero, Feministas e Estudos sobre Sexualidades, permitindo uma releitura descolonizada deste campo. Muitas questões, contudo, ainda permanecem em aberto e precisam de um ulterior aprofundamento, entre elas, a da escolha dxs autorxs do Reader de utilizarem termos como ‘gay’, lésbica’, ‘bissexual’ ou ‘trans’, que remetem à história ocidental das identidades sexuais e de gênero. Como soaria a chamada ‘sopa de letrinhas’, se ao invés das categorias ocidentais, fossem colocadas as expressões africanas que marcam a dissidência sexual e de gênero, nos diferentes contextos deste continente? (Rea, Paradis, Amancio, 2018: 22). 8 Com efeito, a tradução é uma micropolítica de exposição, reflexão e difusão sobre o pensamento antipatriarcal cisgênero e colonialista da sexualidade da mulher negra. Projetos de tradução como o acima referido começam a ganhar cada vez mais visibilidade. O Grupo Latinoamericano de Formación y Acción Feminista (GLEFAS) traduziu para o espanhol, em 2017, a obra The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses, da socióloga nigeriana Oyèrónkẹ ́ Oyěwùmí. Essa obra é de grande importância para desmistificar o pensamento africano ocidental colonizador de hierarquização do gênero e, em particular, da mulher negra. Esses tipos de tradução têm uma relação profunda com a geografia ou a localização de onde são realizados. Para a América Latina e para o Brasil, textos como os apresentados anteriormente têm sentido em serem traduzidos devido à estreita relação histórica e étnica que as mulheres negras brasileiras e latino-americanas possuem com a mulheres negras africanas. Mesmo que as situações geográficas sejam culturalmente circunscritas e localizadas, a sororidade entre as mulheres negras difundida via tradução soa como letramento, testemunho e política cultural feminista negra – uma espécie de política da relação entre mulheres negras. E é por conta dessa política da relação, ou dessa abertura para a outra mulher negra, que surge a questão do simbolismo. Se de uma parte o corpo da mulher negra já é, por si só, símbolo concreto de antirracismo, de resistência feminista e representatividade, analogicamente, a linguagem e as práticas de linguagens são capitais simbólicos da relação entre os feminismos negros e a tradução. Percebe-se isso, claramente, quando: 1) se discute e se reflete a respeito de determinado texto ou determinada produção negra de uma autora, artista, pensadora (Como traduzir? O que ela queria dizer? Que solução dar?); 2) se tenta chegar a uma solução tradutória satisfatória que respeite dado conceito de uma comunidade de ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13 mulheres negras8 (como no caso do womanism / mulherismo); 3) se realiza um projeto tradutório visando ao intercâmbio de comunidades de mulheres negras. A tradução, enquanto ferramenta decolonizadora do feminismo hegemônico e enquanto movimento regulador dos feminismos negros, pode ser concebida, nos termos dos Estudos Pós-coloniais (Ashcroft, Griffiths, Tiffin, 2013), como: cartografia, limiar, sinergia e transculturação. A cartografia é uma representação gráfica fruto da observação da terra. A tradução na qualidade de cartografia é uma forma de descoberta do outro, de reforço de sua existência, de maestria simbólica e letramento, ou seja, uma tradução não é somente um processo de produção e de disponibilização de um dado pensamento em língua portuguesa. Ela significa também o domínio de determinado conhecimento, um capital simbólico de letramento para determinado público e a existência simbólica de discursos e vozes consoantes aos das mulheres negras locais, em língua vernácula. A tradução na qualidade de limiar serve tanto como ferramenta de transculturação de saberes como elemento de descoberta identitária e étnica. Se é fato que uma tradução contribui para a partilha de saberes entre mulheres negras das mais diversas culturas, também se constata que o conhecimento da outra auxilia no processo de autoconhecimento. Logo, uma vez conhecendo os pontos comuns das mulheres negras, também se conhecem os pontos de diferenciação e de individualidade entre elas. Isso porque os discursos, as formas de comunicação e os modos de ser das comunidades de mulheres negras de determinada zona geográfica não são os mesmos. E, por conta disso, ocorrem as transculturações de saberes e informações em que o contato com textos traduzidos referentes a todos os âmbitos – políticos, sociais e culturais – são uma maneira de auxiliar, ratificar e ampliar o posicionamento, o pensamento e as atitudes feministas negras de dada localidade. Na forma de dispositivo de forças, a tradução é vista como sinergia por ser capaz de reunir no seu ato e em seu produto a união de vozes e a copresença de discursos. Uma vez que a tradução seja realizada por tradutoras negras ou para mulheres negras, as escolhas tradutórias e o planejamento do projeto tradutório são fortes indícios de polifonia e de sinergia de vozes e, consequentemente, da existência material em língua vernácula de uma enunciação feminista negra – uma vez que o ato de ler é um evento que põe em presença do leitor a voz e as ideias do autor do texto (Marcuschi, 2008). Mesmo que a tradução feita por e para mulheres negras tenha significativos respaldos e positivas recepções, parece ser necessário alertar que o uso de uma mesma fonte de discurso traduzido em um dado lugar pode conduzir a uma tentação de homogeneização do pensamento feminista negro. E, como se sabe, cada feminismo negro é único, singular e localizado. Se de um lado, as traduções ajudam na construção de uma emancipação do pensamento feminista local, por outro lado, o excesso da mesma fonte pode induzir ao abandono do diálogo com outras mulheres 8 Patrícia Hill Collins (2017), em seu texto “Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória”, chama a atenção para esse aspecto ao dissertar sobre como conceitos “estritamente” norte-americanos seriam úteis ou serviriam de espelho para outras mulheres negras em outros países e continentes. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13 9 negras feministas locais ou vizinhas. Daí as perguntas: Até que ponto a tradução de somente uma língua/uma mesma autora contribui para a emancipação do pensamento feminista das mulheres negras? Por que pouco se conhece do discurso das mulheres negras latino-americanas e caribenhas (as vizinhas do Brasil)? Que agendas tradutórias feministas seriam necessárias para uma pluralidade de conhecimentos e a formação de um pensamento feminista independente, emancipatório e identitário? As atuais traduções de mulheres negras realizadas na América latina e, em particular, no Brasil, corroboraram para a verdadeira emancipação das ações do pensamento feminista negro-brasileiro? Precisaríamos, certamente, de mais tempo para analisar o impacto dessas traduções e tentar responder com mais precisão aos questionamentos acima. Entretanto, parece-nos coerente a proposta de Obioma Nnaemeka (2004) sobre o negofeminismo. Na formulação da autora: Primeiro, o negofeminismo é o feminismo da negociação; segundo, negofeminismo significa feminismo do “não ego”. Na fundamentação de valores compartilhados em muitas culturas africanas estão os princípios da negociação, dar e receber, compromisso e equilíbrio. Aqui, negociação tem o duplo sentido de “dar e receber/troca” e de “lidar com sucesso/dar a volta”. O feminismo africano (ou o feminismo como o vi sendo praticado na África) desafia por meio de negociações e de acordos. 10 Ele sabe quando, onde e como detonar as minas terrestres patriarcais; também sabe quando, onde e como contornar as minas terrestres patriarcais. Em outras palavras, ele sabe quando, onde e como negociar com ou negociar em torno do patriarcado em contextos diferentes. Para as mulheres africanas, o feminismo é um ato que evoca o dinamismo e as mudanças de um processo oposto à estabilidade a à reificação de um constructo, uma estrutura. Meu uso de espaço – o terceiro espaço – propicia o terreno para o desdobramento do processo dinâmico. Além disso, o negofeminismo é estruturado por imperativos culturais e moldado por exigências globais e locais em constante mudança9 (Nnaemeka, 2004: 377-378 - tradução publicada no presente Dossiê) 9 “First, nego-feminism is the feminism of negotiation; second, nego-feminism stands for “no ego” feminism. In the foundation of shared values in many African cultures are the principles of negotiation, give and take, compromise, and balance. Here, negotiation has the double meaning of “give and take/ exchange” and “cope with successfully/go around.” African feminism (or feminism as I have seen it practiced in Africa) challenges through negotiations and compromise. It knows when, where, and how to detonate patriarchal land mines; it also knows when, where, and how to go around patriarchal landmines. In other words, it knows when, where, and how to negotiate with or negotiate around patriarchy in different contexts. For African women, feminism is an act that evokes the dynamism and shifts of a process as opposed to the stability and reification of a construct, a framework. My use of space—the third space— provides the terrain for the unfolding of the dynamic process. Furthermore, nego-feminism is structured by cultural imperatives and modulated by evershifting local and global exigencies” (Nnaemeka, 2004: 377-378). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13 O feminismo tanto na tradução quanto entre as mulheres negras precisa ser negociável e negociado. De um lado, não pode haver egos e, de outro, os feminismos negros precisam dialogar constantemente e traduzir-se um ao outro para uma melhor compreensão e recepção de cada um deles, considerados os imperativos culturais e as exigências globais e locais envolvidos. Ainda à semelhança do que propõe Nnaemeka (2004: 382), o cruzamento de fronteiras, possibilitado pela tradução, no contexto dos feminismos negros, deve se pautar pelo caminhar do camaleão, isto é, “orientado por seu objetivo, cauteloso, obsequioso, adaptável e aberto para visões diversas”10 (tradução nossa). À guisa de conclusão, a partir do exposto até aqui, ressaltamos que o dossiê “Tradução e Feminismos Negros”, composto por diferentes contribuições das mais variadas localidades e áreas de conhecimento, constitui uma primeira tentativa de unir algumas reflexões do campo interdisciplinar dos Estudos de Tradução à realidade palpável da existência dos feminismos negros. Cumpre-nos agradecer às editoras da Revista Ártemis, professoras Dra. Loreley Gomes Garcia e Dra. Liane Schneider, pela disponibilidade, atenção e compreensão ao longo do trabalho desenvolvido. Agradecemos também aos mais de trinta pareceristas que colaboraram com a qualidade deste Dossiê por meio de seu tempo, leitura atenta e valiosas sugestões. Somos gratos, ainda, às tradutoras e aos tradutores que se dedicaram à seleção e tradução de textos pertinentes que engrandecem sobremaneira a discussão proposta. E, por fim, nossos agradecimentos vão para os pesquisadores que ofereceram contribuições relevantes para o Dossiê por meio de seus textos originais e inéditos. Sem o comprometimento de cada um de vocês, editoras, pareceristas, tradutores e pesquisadores, essa publicação não seria possível. Aos nossos interlocutores, desejamos uma boa, proveitosa e provocativa leitura! Referências ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN, Helen. (orgs). (2013). Postcolonial Studies: The key concepts. Third edition. London/New York: Routledge. BAGNO, Marcos. (2017). Dicionário crítico de Sociolinguística. São Paulo: Parábola. BAGNO, Marcos (2019). Objeto Língua: inéditos e revisitados. São Paulo: Parábola. BONNICI, Thomas. (2007). Teoria e crítica literária feminista – conceitos e tendências. Maringá: Eduem. 10 “[…] goal-oriented, cautious, accommodating, adaptable, and open to diverse views” (Nnaemeka, 2004: 382). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 2-13 11 CARLSON, Marvin. (2010). Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG. CARNEIRO, Sueli. (2003). “Mulheres em movimento”. Estudos avançados, n. 49, 17: p. 117-132. CARNEIRO, Sueli. (2011). “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”. Disponível em: <https:// www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-americalatina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero/>. Acesso em 20 março 2019. COLLINS, Patricia Hill. (2017). “Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória”. Tradução de Bianca Santana. Parágrafo, n. 1, 5: p. 7-17, jan-jun. 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This category is heterogeneous and contains differences and contradictions in the time and space in which these female bodies of colour exist or have existed. Thomas Bonnici (2007), when analysing the works of Zora Neale Hurston, Alice Walker and Toni Morrison, affirms that black women are always presented as a depository of collective memory (ancestry and slavery), with specific skills (midwife, medicinal herbs, among others) and doubly abused by men (father and husband). Susan Willis (1990), in turn, mentions that what strongly differentiates black women from white women is the constant reconciliation that the former continually tries to make with the present in three aspects: community (a quest for the restoration of identity of her ethnic group); the passage (the recognition that there is a collective path travelled by all black women from Africa to the New World); and sexuality (the distortion of black women’s sexual experience due to hetero-patriarchal patterns and white hegemonic cisgender feminism). The analytical and reflexive recognition of the various types of black feminism, with the premise of the characteristics pointed out by Susan Willis (1990), was and still is a motive of positioning and also of imposition of the voice of black women. The echoing of the voice of black women, beyond the demarcation of a place of speech, is a mode of resistance – understood by bell hooks (1989) as a form of opposition to white hegemonic cisgender feminism. 1 This paper was originally written in Brazilian Portuguese as an introduction to the Dossier “Translation and Black Feminisms”. The text was translated into English by Dr. John Milton, professor at FFLCHUSP. 2 A term that refers to the sexual identity agreeing with the individual’s genitals and the hormonal configuration at birth. Cibele de Guadalupe Sousa Araújo PhD in Language, Literature and Linguistics from the Universidade Federal de Goiás and teacher of Portuguese and English at the Instituto Federal de Goiás (City of Goiás campus). E-mail: guadalupe. sousa@gmail.com Luciana de Mesquita Silva PhD in Language and Literatures —Language Studies, PUC-Rio, and teacher of Portuguese and English at CEFET/RJ (Petrópolis campus). E-mail: luciana.cefetrj@gmail.com Dennys Silva-Reis PhD in Literature from the Universidade de Brasília (UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 14-24 The non-recognition of the differences between the female bodies of white women and black women leads to what Adrienne Rich (1976) calls color blindness, in which there is the suppression of the individual reality for the construction of a total hegemony. Therefore, it is urgent to think about the issues of colourism in stories of black women and their discursive, cultural, political and social representations – all that represents the plurality of the category “black woman”. And it is in this sense that translation, in its various modalities, is employed as a micropolitics (Foucault, 2003) of black feminist power. With the advances in sociolinguistics (Bagno, 2017), which prove the existence of a difference between male writing and female writing, it is equally clear that there is a difference in the writing (and also in the translation of the writings) of black women. The categories of gender and race are not only social but also categories of linguistic-cultural analysis. As no use of a word is neutral, and a kind of performance is always implied (Carlson, 2010), the reading of texts (and later their translations) is a moment of utterance and voicing. The texts of black women are the staging of their speeches, actual linguistic performances of their bodies and experiences. Therefore, translating is not just a transposition of linguistic material from one language to another, but rather a transvivência3. The importance of translation is fundamental to the construction and circulation of feminist, antiracist and decolonial thinking and epistemologies in a world where a white-Eurocentric, patriarchal, cisgender and (neo)colonialist hegemony prevails in the most diverse fields of knowledge. In this scenario, specifically with regard to Latin America, the characteristic miscegenation of its peoples derives from colonial violence against black and indigenous women. Sueli Carneiro (2011: 1), Brazilian intellectual and black feminist, clarifies that such miscegenation “is at the origin of all constructions of our national identity, structuring the decanted myth of Latin American racial democracy, which in Brazil reached its final consequences”. On the myth of Brazilian racial democracy, Lélia Gonzalez (1984: 224), a fundamental reference for black feminism in Brazil, affirms that it affects black Brazilian women, who are daily faced by the double oppression constituted by the link between racism and sexism, which “produces violent effects on black women in particular”. Thus, since colonization, the place of black women has been violently forged on the lowest step of the social structure, and they are, in terms of their race, below white men and women, and, in relation to their gender, below black men. In this context, black women becomes the Other of the Other, insofar as they are situated in a third space: “a debate on racism in which the subject is the black man; a gender discourse in which the subject is the white woman; and a class discourse in which ‘race’ has no place at all” (Kilomba, 2012: 56). This place of structural, racial and gender subalternity has guided and continues to guide, as new and updated contours and functions, current social organization in Latin America, even in areas such as hegemonic feminism, since in this scenario the realities experienced by black 3 The term is based on “escrevivência”, coined by Conceição Evaristo. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 14-24 15 and indigenous women have historically been left in the margin. It is at this point that the Brazilian black women’s movement undertook the much-needed project of blackening the feminist movement in Brazil. In the words of Carneiro (2003: 118): [and] blackening feminism is the expression we have been using to designate the trajectory of black women within the Brazilian feminist movement. Thus we seek to emphasize the white and Western identity of the classical feminist formulation, on the one hand; and, on the other, reveal the theoretical and political insufficiency to integrate the different expressions of the feminine constructed in multiracial and multicultural societies. With these initiatives, a specific agenda could be created that simultaneously combated gender and intra-gender inequalities; we affirm and visualize a black feminist perspective that emerges from the specific condition of being a woman who is black, and, in general, poor. Finally, we outline the role that this perspective has in the anti-racist struggle in Brazil. 16 In addition to Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez has warned of the importance of forming an Afro-Latin American feminism, based not only on the experiences of black and indigenous women related to racism, sexism and colonialism, but also on their resistance to social systems marked by the suppression of their voices and claims. In her work, Gonzalez also emphasizes the importance of the process of subversion of the standard language, a mechanism that is configured as a form of power. In her view, the recognition that the “pretuguês”4 is the language that constitutes Brazilian culture is part of the process of breaking barriers in the dominant social paradigms: It’s funny how they make fun of us when we say it’s Framengo. They call us ignorant saying that we speak wrong. And suddenly they ignore that the presence of this r in the place of the l is nothing more than the linguistic mark of an African language, in which the l does not exist. So who is ignorant? They also laugh at Brazilian speech, which cuts the rs off the infinitives of verbs, which shortens você into cê, está into tá, and so on. They don’t understand that they are speaking pretuguês (Gonzalez, 1984: 238, author’s emphasis). Currently, this specificity of the language or awareness of the Portuguese language’s Africanness (Lucchesi, Baxter, Ribeiro, 2009; Bagno, 2019), to which Gonzalez drew attention already in the 1980s by using the term pretuguês, is highlighted in studies of language education through the concept of linguistic racial ideology. For Nelson Flores and Jonathan Rosa (2015: 150-151): 4 pretuguês: preto (black) + português (Portuguese). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 14-24 […] the ideological construction and value of standardized language practices are anchored in what we term raciolinguistic ideologies that conflate certain racialized bodies with linguistic deficiency unrelated to any objective linguistic practices. That is, raciolinguistic ideologies produce racialized speaking subjects who are constructed as linguistically deviant even when engaging in linguistic practices positioned as normative or innovative when produced by privileged white subjects. This raciolinguistic perspective builds on the critique of the white gaze – a perspective that privileges dominant white perspectives on the linguistic and cultural practices of racialized communities – that is central to calls for enacting culturally sustaining pedagogy (Flores, Rosa, 2015: 150-151). Once recognizing that social linguistic practices are racialized and also intersected by gender, generation and sexuality, it can be seen that translation, as a linguistic-cultural practice, is also an important part of this core. In addition, in dealing specifically with the reverberations of the performance of the Brazilian black feminist movement in the media, Carneiro (2003) highlights the frequent predominance of symbolic exclusion, non-representation and distortions of black women’s image in mass communication. Conceição Evaristo (2009) also denounces the non-representation or negative representation of black people in general, and especially black women, in the Brazilian literary canon. The effects of symbolic exclusion or negativized representation of black women in both the media and literature are nefarious. From the point of view of translation, the situation is no different. Literary works and different foreign cultural products (such as songs, films, serials, soap operas) translated into Brazilian Portuguese, mainly by large publishers, with a view to being received by the Brazilian public, as well as Brazilian literary works and cultural products translated into foreign languages, in order to be received in other cultures, do not present, in general, black female characters, except secondary ones, occupying stereotyped social roles. In this sense, the choice of the work to be translated can balance the range of female representations, restoring to the black woman the right to recognize herself positively in the literature and in the cultural products she consumes from childhood. As examples of this, in the area of translations of foreign works in Brazil, we can cite the publications by Companhia das Letras of works by the African American writer Toni Morrison, such as A Mercy (2009), Beloved (2007/2011/2018), among others, and the Nigerian writer Chimamanda Ngozi Adichie’s Americanah (2014) and The Thing Around Your Neck (2017), to mention only two. Beyond the symbolic representation of black women, their epistemic contributions are also the subject of a process of a translational silencing that hampers dialogue, the sharing of experiences, and solidarity between ethnic minority women’s ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 14-24 17 18 groups around the world, and they face similar local intersectional conflicts. In this sense, we can echo Spivak’s (2010) question about the subalternized subject, asking: can black women be translated? In an attempt to respond positively to this question, there has been a political-ideological movement of academic publishers and journals towards the translation of texts by black women writers and feminists. In Brazil, for example, Boitempo has published translated works by the African American feminist intellectual Angela Davis, and academic journals such as Estudos Feministas and Cadernos Pagu have published translations of texts not only by Davis but also by bell hooks, Patricia Hill Collins and Grada Kilomba. In terms of the circulation of works by Brazilian feminist black women outside Brazil, the examples of Chroniques sur le féminisme noir and La place de la parole noire, by Djamila Ribeiro, have recently been published in France by Anacaona. It is important to note that although there is a movement of black feminisms via translation in the contemporary world, it is still limited and restricted to specific spaces. In view of this situation, in a similar way to what has happened in the field of the reversal of the logic of female representation in mass media, a new range of fronts has emerged in which black female translators have been engaged. Among these movements of resistance, which are aimed at breaking editorial barriers, is the socalled cyberfeminism5. One of the purposes of such a movement is to circulate, through the Internet, the intellectual production of black women, both of non-Brazilians in Brazil, and Brazilian women abroad. Of a number of cases where the answer to the above question was yes – black women could be translated by the positioning and the politically engaged action of conscientious translators acting as cultural mediators – we can mention the translations of texts by the African-American feminist Audre Lorde such as “As ferramentas do sinhô nunca vão derrubar a casa-grande” (The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House), translated by Tatiana Nascimento and published on the site “Traduzidas” (“Translated”)6. Although the translating issues of cyberfeminism are increasingly appearing in Brazil, and in Latin America as a whole, it should be said that it is only a link in the translational mode of the new generation of translations of black texts and black female translators. This means that thinking on translation and black feminisms is also related to racialized issues of generation, sexuality, geography and symbolism, as we shall now discuss. When we mention the issue of generations (forefathers and ancestry) of black women, we are dealing with both the history and the behaviours of this category of feminism. In fact, new historical studies on black women have brought to the fore names of black women important to world and local history. In the history of translation in Brazil, for example, it is known that Maria Firmina do Reis, Lélia Gonzalez and Ruth Guimarães were translators. However, the work of these black 5 A concept that refers to the feminist use of cyberspace and tries to free the internet from the bonds of gender construction, as well as a way of uniting the body and the machine in the contemporary world. It is one of the ways of using technology that deals with issues of discrimination, sexuality and gender whether racialized or not (Nakamura, 2013). 6 Available at: https://traduzidas.wordpress.com/about/. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 14-24 women has been invisible until recently. It is from this new, not to say incomplete, history of translation that the new generations of black male and female researchers, but also of racialized researchers, propose a new look at the history of black male and female translators. And through this historical awareness new academic and non-academic behaviours arise in activist form of black feminism. For example, the Abrates Afro project, developed by conference interpreter Rane Souza, is currently underway at ABRATES (Brazilian Association of Translators), whose aim is to “encourage the entry, permanence and representation of black professionals in translation and conference interpretation in Brazil” (Souza, 2018: 22). With regard to sexuality, it is necessary not to qualify the concept “black woman” only within the cisgender scope. The sexuality of black women is diverse, as is that of non-black women. And this is also linked to translation, since discourses of different black women travel to the different localities and are, somehow, reappropriated. For example, in Brazil, a collection of African Queer Studies entitled Traduzindo a África Queer (Translating Africa Queer) (Devires, 2018) was recently launched. The book was organized by Caterina Rea, Clarissa Goulart Paradis and Izzie Madalena Santos Amancio, all professors and researchers at the Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). The collection was originally written in English, published in 2013 in Dakar, Senegal, and organized by African feminists Sokari Ekine and Hakima Abbas. It has been partially translated in Brazil precisely because it is a book that presents “texts written by African authors who openly declare themselves as queer or who are in solidarity with the pattern of sexual dissent” (Rea, Paradis, Amancio, 2018: 7). In addition, the organizers of the collection in Portuguese mention in the introduction to the volume that the purpose of the translation of these texts is to cooperate to end the myth that in Africa there is no (male and female) homosexuality. And they add: We believe that with these translations of the Queer African Reader it is possible to strengthen the South-South dialogue from the perspective of Gender Studies, Feminists Studies and Studies on Sexualities, allowing a decolonized re-reading of this field. Many questions, however, remain open and need further study, including the choice of the authors in the Reader to use terms such as ‘gay’, ‘lesbian’, ‘bisexual’ or ‘trans’, which refer to the Western history of sexual and gender identities. What would the so-called ‘alphabet soup’ sound like if, instead of Western categories, the African expressions that marked sexual and gender dissent were placed in the different contexts of this continent? (Rea, Paradis, Amancio, 2018: 22). Indeed, translation is a micropolitics of exposition, reflection, and diffusion on the cisgender, antipatriarchal, and colonialist thinking of the sexuality of black women. Translation projects like this have begun to gain more and more visibility. The Grupo Latinoamericano de Formación y Acción Feminista (Latin American Group ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 14-24 19 20 of Formation and Feminist Action – GLEFAS) translated into Spanish in 2017 the work The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses, by the Nigerian sociologist Oyèrónkẹ Oyěwùmí. This work is of great importance to demystify West African thought colonizing the hierarchy of gender and, in particular, black women. These kinds of translations have a deep relationship with the geography or the location where they were carried out. For Latin America and Brazil, texts such as those presented above have a meaning in being translated due to the close historical and ethnic relationship that black Brazilian and Latin American women have with black African women. Even though geographical situations are culturally circumscribed and localized, the sorority between black women diffused via translation sounds like literacy, testimony, and black feminist cultural politics – a sort of politics of the relation between black women. And it is because of this politics of the relationship, or of that openness to the other black women, that the question of symbolism arises. If on the one hand the bodies of black women are in themselves a concrete symbol of anti-racism, feminist resistance and representativeness, analogically, language and the practices of languages are symbolic capital of the relation between black feminisms and translation. This is clearly seen when: 1) this is discussed and reflected in a given text or a certain black production of an author, artist, thinker (How to translate? What did she mean?); 2) we try to reach a satisfactory translation solution that respects the concept of a community of black women (as in the case of womanism); 3) a translation project is carried out aiming at the exchange of communities of black women. Translation, as a decolonizing tool of hegemonic feminism and a regulating movement of black feminisms, can be conceived, in terms of Postcolonial Studies (Ashcroft, Griffiths, Tiffin, 2013), as: cartography, threshold, synergy and transculturation. Cartography is a graphic representation which is a result of the observation of the earth. Translation as a cartography is a way of discovering the other, reinforcing its existence, symbolic mastery and literacy, that is, a translation is not only a process of production and availability of a given thought in Portuguese. It also means the dominance of certain knowledge, a symbolic capital of literacy for a particular audience, and the symbolic existence of speech and voices consonant with those of local black women in the vernacular. Translation as a threshold serves as both a tool for transculturation of knowledge as an element of identity and ethnic discovery. If it is a fact that a translation contributes to the sharing of knowledge between black women of the most diverse cultures, it can also be verified that the knowledge of the other helps in the process of self-knowledge. Therefore, once knowing points black women have in common, the points of differentiation and individuality between them are also discovered. This is because the speech, the forms of communication, and the ways of being of the communities of black women of a certain geographical area are not the same. And because of this, there are transculturations of knowledge and information in which contact with translated texts referring to all spheres – political, social and ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 14-24 cultural – which are a way to help, ratify and broaden the feminist positioning, thinking and attitudes of a given locality. In the form of a device of forces, translation is seen as synergy by being able to bring together in its act and in its product the union of voices and the co-presence of discourses. Once the translation is made by black translators or for black women, the translation choices and the design of the translation project are strong indications of polyphony and synergy of voices and consequently of the vernacular material existence of a black feminist enunciation – since the act of reading is an event that puts in the presence of the reader the voice and ideas of the author of the text (Marcuschi, 2008). Even if the translation made by and for black women has significant backing and a positive reception, it seems to be necessary to warn that the use of the same source of discourse translated in a given place may lead to a temptation to homogenize black feminist thinking. And, as is known, every black feminism is unique, singular and localized. If, on the one hand, the translations help in the construction of an emancipation of local feminist thinking, on the other, the excess of the same source can induce the abandonment of the dialogue with other local or neighbouring black feminists. Hence the questions: To what extent does the translation of only one language/author contribute to the emancipation of feminist thinking of black women? Why is little known about the discourse of Latin American and Caribbean black women (the neighbours of Brazil)? What feminist translation agendas would be required for a plurality of knowledge and the formation of an independent, emancipatory, and identitary feminist thinking? Do the current translations of black women carried out in Latin America, and particularly in Brazil, corroborate for the true emancipation of black-Brazilian feminist thinking? We would certainly need more time to analyse the impact of these translations and try to respond more accurately to the above questions. However, Obioma Nnaemeka’s (2004) proposal on nego-feminism seems coherent. In the author’s formulation: First, nego-feminism is the feminism of negotiation; second, nego-feminism stands for “no ego” feminism. In the foundation of shared values in many African cultures are the principles of negotiation, give and take, compromise, and balance. Here, negotiation has the double meaning of “give and take/exchange” and “cope with successfully/go around.” African feminism (or feminism as I have seen it practiced in Africa) challenges through negotiations and compromise. It knows when, where, and how to detonate patriarchal land mines; it also knows when, where, and how to go around patriarchal landmines. In other words, it knows when, where, and how to negotiate with or negotiate around patriarchy in different contexts. For African women, feminism is an act that evokes the dynamism and shifts of a process as opposed to the ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 14-24 21 stability and reification of a construct, a framework. My use of space—the third space— provides the terrain for the unfolding of the dynamic process. Furthermore, nego-feminism is structured by cultural imperatives and modulated by evershifting local and global exigencies (Nnaemeka, 2004: 377-378). 22 Feminism in both translation and among black women needs to be negotiable and negotiated. On the one hand, there can be no egos, and, on the other, black feminisms need to constantly dialogue and translate one another for a better understanding and reception of each one, considering the cultural imperatives and the global and local demands involved. As Nnaemeka (2004) proposes, the crossing of frontiers, made possible by translation, in the context of black feminisms, must be guided by the walk of the chameleon, that is, “[…] goal-oriented, cautious, accommodating, adaptable, and open to diverse views” (Nnaemeka, 2004: 382). By way of a conclusion, from what has been said, we emphasize that the “Translation and Black Feminisms” Dossier, made up of different contributions from the most varied localities and areas of knowledge, constitutes an initial attempt to bring together some thoughts in the interdisciplinary field of Translation Studies with the palpable reality of the existence of black feminisms. We are grateful to the editors of the Revista Artemis, Dr. Loreley Gomes Garcia and Dr. Liane Schneider, for their availability, attention and understanding throughout the work developed. We are also grateful to the more than thirty referees who helped to ensure the quality of this Dossier through giving their time, and making careful readings and valuable suggestions. We are also grateful to the translators who have dedicated themselves to the selection and translation of pertinent texts that greatly enhance the proposed discussion. And, finally, our thanks go to the researchers who have made important contributions to the Dossier through their original and unpublished texts. Without the commitment of each one of you, publishers, referees, translators and researchers, this publication would not be possible. And we hope you, our interlocutors, will enjoy and be provoked by the reading of the Dossier! References ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN, Helen. (orgs). (2013). Postcolonial Studies: The key concepts. Third edition. London/New York: Routledge. BAGNO, Marcos. (2017). Dicionário crítico de Sociolinguística. São Paulo: Parábola. BAGNO, Marcos (2019). Objeto Língua: inéditos e revisitados. São Paulo: Parábola. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 14-24 BONNICI, Thomas. (2007). Teoria e crítica literária feminista – conceitos e tendências. Maringá: Eduem. CARLSON, Marvin. (2010). Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG. CARNEIRO, Sueli. 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NNAEMEKA, Obioma G. (2004). “Nego-feminism: Theorizing, Practicing, and Pruning Africa”. Signs: Journal of Women in Culture and Society, n. 2, 29: p. 357-386. REA, Caterina; PARADIS, Clarisse Goulart; AMANCIO, Izzie Madalena Santos. (orgs). (2018). Traduzindo a África Queer. Salvador: Editora Devires. RICH, Adrienne. (1976). Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution. New York: W. W. Norton & Company. SOUZA, Rane (2018). “Os bastidores da abertura do IX Congresso da Abrates”. Metáfrase [a revista da Abrates], ano II, 12: p. 17-21. SPIVAK, Gayatri. (2010). Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG. 24 WILLIS, Susan. (1990). Specifying: Black Women Writing the American Experience. London: Routledge. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 14-24 Sobre tradução e ativismo intelectual1 2 RESUMO Esta é uma tradução do prefácio escrito por Patricia Hill Collins para a obra Feminist Translation Studies: Local and Transnational Perspectives (2017). A partir de vivências pessoais e de sua trajetória acadêmica e intelectual, Collins expõe sua perspectiva sobre as relações entre tradução e feminismo. Desse modo sua argumentação é dividida em dois momentos: no primeiro, a pessoa da tradutora como uma mediadora entre línguas, pensamentos, culturas e pessoas é focalizada; e, no segundo, o foco recai sobre como a interpretação do pensamento de uma dada comunidade de mulheres pode ser entendida igualmente como um ato de tradução. Para a autora, a tradução dentro desses dois pontos de vista é uma prática ativista e uma ação de confiança naquela que traduz. Palavras-chave: ativismo, feminismo negro, tradução, mediadora, confiança. ABSTRACT This is a translation of the preface written by Patricia Hill Collins for the book Feminist Translation Studies: Local and Transnational Perspectives (2017). Both from personal experiences and from her academic and intellectual trajectory, Collins exposes her perspective on the relations between translation and feminism. Accordingly, her exposition is divided into two moments: firstly, the person of the translator as a broker for languages, thoughts, cultures and people is focused; and secondly, the focus lies on the interpretation as an act of translation. According to Collins, inside these two points of view, translation is perceived as an activist praxis and an action of trust in the person who translates. Key-words: activism, Black feminism, translation, broker, trust. 1 Texto originalmente publicado com o título de “On Translation and Intellectual Activism” em CASTRO, Olga; ERGUN, Emek (Orgs.). Feminist Translation Studies: Local and Transnational Perspectives. Nova York/Londres: Routledge, 2017, p. xii-xvi. Permissão de tradução adquiridos pelos tradutores da Routledge/Taylor and Francis Group LLC Books. Tradução de Cibele de Guadalupe Sousa Araújo, Dennys Silva-Reis e Luciana de Mesquita Silva. 2 Agradecemos à professora Patrícia Collins e à professora Olga Castro pela gentileza e presteza demonstrada na negociação dos direitos autorais da presente tradução brasileira, e também ao professor Marcos Bagno pelo auxílio na solução de alguns questionamentos. Patricia Hill Collins Socióloga negra, estadunidense e feminista. Leciona atualmente na Universidade de Maryland. É reconhecida internacionalmente por discutir questões relativas a raça, gênero, classe, representação e feminismo na comunidade afro-americana Algumas de suas principais obras publicadas são: Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment (2000), From Black Power to Hip Hop: Racism, Nationalism, and Feminism (2006) e On Intellectual Activism (2002). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 25-32 25 26 Os diálogos colaborativos que são necessários para a teoria e a práxis feministas raramente ocorrem entre iguais. Como eu gostaria de ser fluente em todas as línguas, estilos comunicacionais e culturas do mundo que me habilitassem a me comunicar com qualquer um/a. Como eu gostaria de ter as habilidades para falar com todo mundo e entendê-los/as da forma como gostariam de ser entendidos/as. Mas eu não sou. Nenhum/a de nós é, então, consequentemente, dependemos de outros/as para traduzirem para nós. Ainda assim, como nossos esforços para entender os/as outros/ as e para nos fazer entendidos/as ocorrem em um mundo caracterizado por relações hierárquicas de poder, por mais que desejássemos que fosse o contrário, há limites em relação ao que cada um/a de nós pode ver e dizer a partir de nossos lugares sociais específicos. Sinto-me honrada por escrever um prefácio para este livro, porque sua ênfase no feminismo, na tradução e no poder ressoa em duas linhas de meu trabalho. Primeiro, a tradução é central para a práxis feminista. Indivíduos que servem como tradutores/as não apenas interpretam os significados variantes através de cenários sociais, políticos e intelectuais diferentes: eles/as criam novo conhecimento em espaços fronteiriços. O ato da tradução é visível; por exemplo, a menina de nove anos de idade que traduz suas perguntas para a mãe e vice-versa, porque ela é o elo bilíngue entre o inglês falado na escola e o espanhol falado em casa3. Ainda assim, a menina de nove anos de idade faz mais do que traduções literais, palavra por palavra. Como ela pondera e antecipa as necessidades tanto de sua mãe quanto de sua professora, nos dois lados do intercâmbio, ela cria novos entendimentos e possibilidades políticas. Segundo, este livro tem uma importância especial no meu entendimento de ativismo intelectual. Possuir o poder de uma língua, de uma cultura, de um estilo de comunicação é a marca de poder por si só, tanto dentro de nossas comunidades intelectuais específicas quanto para além delas. Como eu vejo meu trabalho intelectual tanto falando a verdade para os poderosos quanto falando a verdade para o povo, a tradução tem sido importante para o meu ativismo intelectual. Ser capaz de me mover entre diversas comunidades interpretativas, que, por si sós, são situadas politicamente, tomar decisões estratégicas sobre o que se traduz, se se deve realmente traduzir e sobre como as coisas podem ser traduzidas tem sido essencial para o meu trabalho. Esse foco duplo nas políticas de tradução dentro de hierarquias sociais específicas e as políticas de interpretação que a tradução engendra na criação de um novo conhecimento recai no coração dos estudos de tradução feminista assim como daqueles de qualquer projeto progressista. Dentro das políticas de um mundo em processo de decolonização, a tradução é a ferramenta que catalisa o novo conhecimento que possivelmente fundamenta uma nova práxis política. Portanto, quando se trata 3 Nota dos tradutores: Nesse exemplo, Collins faz referência ao contexto estadunidense de mulheres hispânicas que imigraram para os Estados Unidos possuindo pouco, ou nenhum, domínio do idioma inglês. Já suas filhas e filhos, nascidos no país, são falantes bilíngues, tendo o inglês como língua materna, utilizada em contextos formais como a escola, e o espanhol como língua de herança, utilizada principalmente no contexto familiar. Tais crianças acabam atuando como intérpretes, mediadoras entre os dois contextos: o formal e o familiar. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 25-32 de ativismo intelectual, aperfeiçoar habilidades de tradução constitui-se tanto como um desafio intelectual importante quanto como uma necessidade política. Tradução e práxis feminista Em 1994, fui à Europa pela primeira vez para apresentar um trabalho intitulado “Is the Personal Political Enough? African American Women and Feminist Praxis” (1996) [“O pessoal é político o suficiente? Mulheres afro-americanas e práxis feminista”] na conferência “Racisms and Feminisms: An International Conference” [“Racismos e feminismos: uma conferência internacional”] realizada em Viena. Percebendo que os/as participantes da conferência não falavam uma língua em comum, os/as organizadores/as providenciaram traduções para os trabalhos preparados para e/ou apresentados na conferência que estava ocorrendo. Traduzir o texto escrito de uma comunidade interpretativa para o texto oral ou escrito de uma outra comunidade constituiu-se como um primeiro passo importante para possibilitar que as ideias viajassem. Como a conferência foi encarregada de desenvolver uma agenda feminista para levar à Conferência sobre Racismo das Nações Unidas, nós precisávamos ser capazes de falar um/a com o/a outro/a. Como essa era minha primeira conferência internacional, fiquei estarrecida com o número de pessoas que eu não entendia, ou que não conseguiam me entender. Nós falávamos tantas línguas diferentes que tínhamos dificuldade em falar diretamente uns/umas com os/as outros/as, em conversas abertas e relaxadas. Acima de tudo, eu vi bem claramente como os/as tradutores/as também serviam como mediadores/as de poder para o modo como as ideias formais da conferência se desdobrariam. Eles/as faziam traduções literais dos trabalhos assim como traduziam os estilos comunicacionais e critérios epistemológicos que os/ as participantes da conferência traziam consigo. Mais tarde, naquele mesmo dia, um jantarzinho informal perto do local da conferência com outros/as três participantes trouxe a importância da tradução para seu mais alto relevo. Um/a de meus/minhas companheiros/as de jantar era uma mulher muçulmana da Bósnia que pediu asilo em Viena para escapar da guerra na Iugoslávia. Ela falava bósnio e um pouco de alemão, mas como ninguém na mesa falava bósnio, ela se apoiava em seu alemão. Um/a segundo/a participante do jantar falava apenas alemão fluente. Como eu falava apenas inglês, não podia me comunicar com nenhum/a deles/as, nem eles/as comigo. Nossa última companheira de jantar falava tanto alemão quanto inglês, e três outras línguas que descobri depois, nenhuma das quais era bósnio. Consequentemente, ela se tornou uma tradutora não oficial para nós três porque ela era a única pessoa na mesa que conseguiu ter uma conversa com cada pessoa na mesa. Até hoje, eu permaneço grata e impressionada pela habilidade e autorreflexividade de nossa companheira de jantar multilíngue. Como ela podia falar com todo mundo na mesa, ela tinha o melhor acesso à conversa significativa. Mas como ela também servia como a tradutora não oficial para a mesa, ela não podia ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 25-32 27 28 simplesmente dizer a primeira coisa que vinha a sua cabeça e esperar para que outra pessoa traduzisse. Em vez disso, ela tinha que refletir sobre o que outras pessoas diziam, sobre seus próprios pensamentos e suas interpretações dos significados que todos/as nós queríamos transmitir. Que lições podem ser tiradas para o feminismo a partir da organização formal da conferência assim como dos trabalhos informais no jantar? Primeiro, tanto a conferência quanto o jantar destacaram a importância dos/as tradutores/as como mediadores/as de poder dentro das fronteiras linguísticas e culturais que organizam as relações de poder. Consequentemente, em uma situação de desigualdade social marcada por diferentes valorações atribuídas às línguas, tradutores/as sempre serão mediadores/as de poder. A pergunta é: de que tipo? Eu desconfio que presenciei muitas situações em que tradutores/as de outras línguas, por exemplo, aprendendo o jargão acadêmico que permanece sendo o preço de entrada nas disciplinas, possam ter compartilhado comigo apenas aquelas ideias que pensaram que pudessem me interessar, e/ou ser valiosas para mim, ou, mais frequentemente, servir aos seus interesses. Mais ameaçador do que isso é o fato de tais tradutores/as poderem ter omitido informações que poderiam ter me beneficiado. Nesses cenários, tradutores/ as servem como mediadores/as de poder tanto dos interesses de grupos dominantes ou oportunamente de seus próprios interesses – guardas de fronteira que decidem quais ideias merecem ser traduzidas nos dois lados do poder. Em contrapartida, experiências dialógicas em cenários feministas onde pessoas progressistas se esforçam para entender o ponto de vista umas das outras para além de diferenças de nacionalidade, idade, sexualidade, classe e/ou raça podem se assemelhar àquelas daquele jantar. Para mim, nossa colega multilíngue interpretou e exercitou seu papel como uma mediadora de poder dentro do contexto do ativismo intelectual. Ela viu a tradução como sendo essencial para o tipo de diálogos e colaborações intelectuais requisitados pelo conhecimento e pela práxis feministas. Segundo, tradutores/as com histórias diferentes de ativismo intelectual podem se deparar com o confronto de um/a com o/a outro/a no mesmo espaço interpretativo. Apesar de a tradução parecer ser uma simples reiteração de um conjunto de verdades na língua do/a outro/a, o processo é profundamente enredado em relações de poder desiguais. Não é uma simples transferência de uma língua para outra. Ao contrário, a natureza da tradução reflete o suposto valor das ideias nos diferentes lados de uma divisão cultural, na qual aqueles/as em cada um dos lados não têm outro modo de ter engajamento dialógico (eles/as poderiam se comunicar certamente, talvez violentamente e sem compreensão mútua) a não ser por meio de mediadores/as de língua. Tradutores/as experientes que estão comprometidos/as com o ativismo intelectual frequentemente se vêem confrontando mediadores/as de poder que trabalham para manter relações de poder e/ou seu próprio carreirismo. Para além de simples oposição à desigualdade, tradutores/as progressistas frequentemente usam seu lugar social como mediadores/as de poder para construir espaços subversivos e transgressivos entre pessoas que compartilham interesses e línguas diferentes. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 25-32 Tradutores/as que reconhecem as complexidades do poder e a importância de o processo de tradução atuar eticamente naquele espaço. Terceiro, a tradução tem implicações epistemológicas importantes para o tipo de conhecimento feminista que emerge da práxis feminista. O espaço da tradução não é um espaço vazio, uma função que pode ser ocupada por qualquer um/a, onde verdades são construídas pelo mapeamento linear de um conjunto de ideias dentro daquelas de uma outra. Em vez disso, porque a tradução facilita a comunicação, espaços de tradução possibilitam que as ideias ressaltem umas às outras. Ainda assim, compartilhar ideias via tradução requer confiança. No jantar, por exemplo, como eu não falava nem alemão nem bósnio, não tinha como saber se qualquer um/a na mesa estava falando a verdade, incluindo a tradutora da mesa. Por mais que eu confiasse na minha companheira de jantar, não havia outro modo de verificar os significados sociais compartilhados a não ser adicionar mais pessoas à conversa. E esse é exatamente o ponto de construção do conhecimento dialógico que é necessário a relações de decolonização e facilitado por tradutores/as que abraçam o ativismo intelectual. Nesse caso, como o jantar surgiu de um evento feminista mais amplo que era dedicado ao antirracismo, eu confiei em meus/minhas companheiros/as. Para mim, nossa mesa de jantar constituiu-se como uma efêmera zona de fronteira para a escuta ativa e não simplesmente falar para ou por cima um/a do/a outro/a. Havia um elemento de confiança entre pessoas desconhecidas, com um diálogo subsequente que felizmente energizou cada um/a de nós. Espaços de tradução são zonas de fronteira epistemológica, onde o conhecimento é construído via confiança. As políticas de interpretação: tradução e estudos acadêmicos feministas Eu estou atualmente envolvida em vários projetos que me demandam refletir retrospectivamente sobre Black Feminist Thought4 [Pensamento feminista negro], um esforço interessante que requer uma tradução temporal de outrora para agora. Mesmo que eu não tenha tido acesso aos estudos de tradução feminista quando escrevi Black Feminist Thought (1990), o que me impressiona é quão importante a tradução foi para aquele projeto. Eu enfrentei um desafio difícil ao elaborar esse livro – como eu poderia escrever um livro sobre a produção intelectual das mulheres afroamericanas que fosse aceito pelo público acadêmico que tinha excluído e depreciado as mulheres afro-americanas por um longo período de tempo? Por outro lado, como eu poderia escrever um livro que falasse diretamente às mulheres afro-americanas que elas achassem confiável, ainda assim evitando o risco de ser desconsiderado pelo público acadêmico (que controlava os recursos de publicação)? 4 Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment foi publicado originalmente em 1990, e ainda não conta com tradução completa e/ou oficial no Brasil. Sua publicação em língua portuguesa está prevista para o ano de 2019, pela editora Boitempo. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 25-32 29 30 Black Feminist Thought exigiu que eu aguçasse minhas habilidades de tradução, sobretudo porque eu estava escrevendo em uma zona de fronteira que percorria comunidades linguísticas, culturais e epistemológicas que não eram iguais. As mulheres afro-americanas tinham claramente sido usadas como dados para agendas acadêmicas, úteis apenas quando serviam aos tropos dominantes. Como análises por e sobre mulheres negras naquele tempo eram tão novas e eu era uma acadêmica desconhecida, eu sabia que meu livro tinha poucas chances de ser publicado a não ser que passasse pelo escrutínio acadêmico. Ainda assim, o escrutínio acadêmico era e continua sendo uma relação de poder que convida certos materiais a viajar para dentro das arenas acadêmicas enquanto considera outros materiais não merecedores de investigação. Eu também tinha que encontrar modos de ver se os argumentos que eu desenvolvia alinhavam-se com os significados que as mulheres afro-americanas expressariam sobre suas vidas. Eu enfrentei vários desafios ao escrever Black Feminist Thought, um de inteligibilidade, ou de construir ideias que pudessem viajar e fazer sentido nos dois âmbitos; e um de clareza, ou de garantir que eu nem compreendesse mal nem representasse mal as ideias em comunidades interpretativas que raramente comunicavam-se umas com as outras como iguais; e um de legitimação, mais precisamente, garantir que meus argumentos seriam convincentes dentro de diferentes padrões de avaliação. Compreendendo meu papel como uma mediadora de poder nesse contexto, tive que encontrar modos para me comunicar com diversas comunidades interpretativas sem reinstalar as hierarquias de poder que subordinavam uma à outra. Para solucionar esse dilema, eu me engajei em uma metodologia dialógica ou uma maneira de ler as ideias de diversas comunidades interpretativas. Eu via a escrita de meu livro como uma forma de falar diversas línguas, variações do inglês que eram usadas e validadas por diversas comunidades interpretativas. Quando olho para trás, vejo que me engajei em uma estratégia dupla de falar a verdade para os/as poderosos/as por meio da referência ateorias sociais reconhecidas e pesquisa empírica dentro de Black Feminist Thought, assim como de falar a verdade para o povo, que eram os sujeitos de meu manuscrito. Falar a verdade para os/as poderosos/as era muito perigoso. Como uma recém acadêmica, eu era bastante cuidadosa sobre como eu compartilhava meu trabalho, esperando até eu ganhar estabilidade antes de procurar um contrato editorial. Eu achei que estivesse preparada para a crítica de meus/minhas colegas acadêmicos, mas percebi com o tempo que muitos de meus/minhas colegas mais velhos/as possuíam a base de conhecimento e o conjunto de habilidades para compreender a complexidade de meu projeto. Por exemplo, após eu terminar uma apresentação de Black Feminist Thought em uma conferência acadêmica feminista, uma participante levantou a mão, recitou uma lista de obras de feministas brancas proeminentes e perguntou por que eu não as tinha citado. Ela parecia insinuar que meu livro melhoraria se eu incorporasse mais teoria feminista. Em resposta, assinalei que eu certamente estava familiarizada com as obras canonizadas, mas que tinha deliberadamente escolhido não citá-las. As teóricas feministas brancas que ela citou não precisavam de mais ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 25-32 valorização vinda de mim – elas já tinham pessoas como ela para traduzi-las e defender suas causas. Em vez disso, eu queria convidar para a conversa mais pessoas no espaço de fronteira, nesse caso, as mulheres afro-americanas que tinham sido excluídas pelas mesmas táticas que minha crítica usou naquele mesmo momento. Falar a verdade para o povo acabou sendo a parte mais jubilosa desse projeto. Minha maior preocupação era que as mulheres negras que eram os sujeitos de meu livro não se sentissem como objetos do conhecimento quando elas lessem Black Feminist Thought. Eu também usei minha docência para “traduzir” teorias antirracistas, feministas e outras teorias sociais progressistas para meus/minhas alunas, muitos/as dos/as quais estavam com sede de novas ideias. Eu coloquei as ideias de uma gama de intelectuais afro-americanos/as, artistas e críticos/as culturais em diálogo com as de meus/minhas alunos/as, “traduzindo”, assim, para eles/as e a partir deles/as as ideias mais robustas. Ao preparar o manuscrito final, compartilhei vários capítulos com graduandas afro-americanas e as questionei sobre suas reações ao manuscrito. As ideias em Black Feminist Thought “soavam verdadeiras” para elas? Elas conseguiam pensar em exemplos de suas próprias experiências que ilustrassem e/ou contradissessem as ideias principais do livro? Quão efetivamente as explicações e interpretações que eu ofereci, muitas das quais foram tiradas de teorias sociais acadêmicas, falavam sobre suas realidades vividas? O material que elas acharam irrelevante simplesmente não se traduzia para elas, não importando o quanto os círculos acadêmicos o retratassem como verdade. Paralelamente, minhas alunas questionavam-me rotineiramente sobre os temas que não apareciam no livro, pedindo-me para escrever mais sobre eles. Black Feminist Thought está escrito em diversos registros, um voltado para o público acadêmico e o outro visando à leitura geral, ainda que heterogênea, das mulheres afro-americanas. Meu trabalho como acadêmica recai no aperfeiçoamento da arte da tradução de perspectivas tão diversas no mundo para além dessas diferenças de cultura, de experiência, mas, sobretudo, de poder. *** O mundo não nos pertence para que o agarremos e o entendamos como transparente, terminado e pronto para levar. Dentro de uma conjuntura ocidental, o desejo por conhecer catalisou a crença de que a ciência pode revelar tudo que é conhecível se seguirmos as regras e que o desconhecido tipicamente não merece ser conhecido. Nesse contexto, é difícil aceitar um processo de tradução perpétua que revele camadas de significado que nós nunca poderemos conhecer enquanto indivíduos. Ainda assim, não há um modo de conhecer nosso mundo sem cruzar fronteiras linguísticas, culturais e epistemológicas, de assumir riscos tanto em conversas quanto dentro de nossa produção intelectual. Nós nunca podemos requerer ou vivenciar as experiências de outras pessoas, ou mesmo os sentidos que as pessoas fazem delas, sem violentar suas realidades. Nesse contexto, trabalhar dialogicamente e aperfeiçoar habilidades de tradução é um ato de confiança – em nossas próprias ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 25-32 31 habilidades e naquelas de outros em acertar, ou ao menos chegar o mais perto disso quanto puderem. Referências bibliográficas COLLINS, Patrícia, H. “Is the Personal Political Enough? African-American Women and Feminist Praxis.” Pp. 67-91 In: Rassismen & Feminismen. FUCHS, Brigitte; HABINGER, Gabriele (orgs.). Vienna: Promedia (in German), 1996. ______. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment. 2ed. New York/London: Routledge, 2000. 32 ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 25-32 Negofeminismo: Teorizar, Praticar e Abrir o Caminho da África1 RESUMO O presente artigo irá explorar, entre outras questões, o entrelaçamento do momento colonial, das políticas de trabalho de campo, e as políticas de representação nos estudos feministas e nos estudos de desenvolvimento, revisando os processos de elaboração teórica e a construção de conhecimento em um ambiente de relações de poder desiguais e a diferença cultural. Os diferentes aspectos e métodos de engajamento feminista na África serão utilizados para propor o que eu chamo de negofeminismo (o feminismo da negociação; não ego feminismo) como um termo que nomeia os feminismos africanos. Ciente de uma prática (feminismo na África) que é tão diversa quanto o continente mesmo, proponho negofeminismo não para ocluir a diversidade, mas para argumentar que um aspecto recorrente em muitas culturas africanas pode ser usado para nomear a prática. Para além disso, por meio de uma breve discussão do início de um programa de estudos femininos na África, irei abordar questões de fronteiras disciplinares, pedagogia, e construção institucional em uma atmosfera de intensas atividades de ONGs limitadas e estruturadas por interesses de doadores, condicionalidades e políticas. Ademais, irei advogar em favor do questionamento e do reposicionamento de duas questões cruciais nos estudos feministas – posicionalidade e interseccionalidade. Por fim, vislumbro também uma mudança modulada no foco da interseccionalidade de raça, gênero, classe, etnicidade, sexualidade, religião, cultura, origem nacional, e assim por diante, de considerações ontológicas (estando lá) para imperativos funcionais (fazendo o que lá) e pretendo endereçar questões importantes de igualdade e reciprocidade na intersecção e no cruzamento de fronteira. Palavras-chave: estudos interseccionalidade, África. feministas, negofeminismo, posicionalidade, 1 O artigo de Obioma G. Nnaemeka, “Nego-feminism: Theorizing, Practicing, and Pruning Africa’s Way,” foi publicado originalmente na revista Signs: Journal of Women in Culture and Society (2004), vol 29, no. 2, pp. 357-386. Tradução de Cibele de Guadalupe Sousa Araújo e Giovana Bleyer. Agradecemos à professora Obioma G. Nnaemeka pela gentileza e presteza demonstrada na concessão dos direitos autorais da presente tradução brasileira. Obioma G. Nnaemeka Acadêmica negra, nascida na Nigéria, e residente, atualmente, nos Estados Unidos da América. Nnaemeka é professora de Francês, Estudos Femininos e Estudos Africanos da Universidade de Indiana. Entre seus principais interesses de pesquisa estão: escritoras negras, teoria feminista, feminismos transnacionais, literaturas francesa e francófonas, literaturas orais e escritas de África ou da diáspora africana, gênero e desenvolvimento e direitos humanos. Entre suas principais publicações estão as obras: (editora) The Politics of (M)Othering: Womanhood, Identity and Resistance in African Literature (Routledge 1997) e Feminisms, Sisterhood and Power: From Africa to the Diaspora (Africa World Press 1998). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 33 ABSTRACT In this article I will explore, among other issues, the intertwining of the colonial moment, the politics of fieldwork, and the politics of representation in feminist scholarship and development studies by revisiting the processes of theory making and knowledge construction in an environment of unequal power relations and cultural difference. I will use the different features and methods of feminist engagement in Africa to propose what I call nego-feminism (the feminism of negotiation; no ego feminism) as a term that names African feminisms. Aware of a practice (feminism in Africa) that is as diverse as the continent itself, I propose nego-feminism not to occlude the diversity but to argue that a recurrent feature in many African cultures can be used to name the practice. Moreover, I will address issues of disciplinary boundaries, pedagogy, and institution building in an atmosphere of intense NGO activities bound and structured by donor interests, conditionalities, and politics. Ultimately, I will plead for the interrogation and repositioning of two crucial issues in feminist studies—positionality and intersectionality. Finally, this paper will also envisage a modulated shift in focus of the intersectionality of race, gender, class, ethnicity, sexuality, religion, culture, national origin, and so forth, from ontological considerations (being there) to functional imperatives (doing what there) and speak to the important issues of equality and reciprocity in the intersecting and border crossing. Keywords: feminist studies, nego-feminism, positionality, intersectionality, Africa. 34 Deslocar e desfazer aquela oposição mortal entre o texto estritamente concebido como texto verbal e o ativismo estritamente concebido com algum tipo de engajamento irracional. — Gayatri C. Spivak (1990: 120–21) Estudiosos africanos, e especialmente mulheres, devem trazer seu conhecimento para apresentar uma perspectiva africana sobre perspectivas e problemas para as mulheres em sociedades locais. Estudiosos e pessoas engajadas no planejamento e na implementação de pesquisa de desenvolvimento devem prestar atenção às prioridades de desenvolvimento como percebidas pelas comunidades locais. — Achola A. Pala (1977: 13) Em 1999, fui convidada para falar em uma conferência internacional organizada pelo “Projeto Mulheres empreendendo a Paz”, na Escola Kennedy, da universidade de Harvard, que atraiu participantes de algumas das zonas de conflito de nosso planeta conturbado – Irlanda do Norte, República Democrática do Congo, Sudão, Serra Leoa, Ruanda, Bósnia, Oriente Médio, Burundi, Angola, entre outros. Uma das convidadas para se apresentar para o público foi Martha Nussbaum, uma filósofa que tinha ganhado grande visibilidade e reconhecimento substancial desenvolvendo estudos pela articulação da “abordagem das capacidades humanas”, cunhada na área ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 da economia do desenvolvimento por Amartya Sen, ganhador do prêmio Nobel em economia2. Após uma breve apresentação da abordagem das capacidades humanas, Bussbaum mal havia se sentado quando foi verbalmente atacada. O ataque foi inesperado por sua rapidez, visceral em seu conteúdo e vociferante em sua articulação. A primeira a falar foi uma afro-americana que vive na vizinhança de Harvard. Em um discurso comovente, ela se queixou amargamente, primeiro, sobre não ter tido conhecimento de que um evento com alta representação de irmãs africanas residentes na África estava acontecendo em sua vizinhança e, segundo, sobre as dificuldades que ela teve para fazer seu caminho até a sala de conferência. Quando ela chegou ao Centro Kennedy, praticamente todas as portas de entrada estavam trancadas. Ao forçar uma das portas trancadas, ela foi abordada por um policial que a questionou sobre o que “[ela] estava fazendo lá”. A próxima “queixosa” foi uma participante africana residente na África que falou com uma “voz comunal”3, afirmando que ela preferiria que lhe dissessem/mostrassem o que tinha sido feito para amenizar a situação em sua parte do mundo do que ser bombardeada com discursos irrelevantes e teorização vazia. Obviamente, a teorização é “vazia” precisamente por causa de sua inabilidade para se conectar com ou referir-se às realidades em ambientes com os quais a queixosa se identificava. Em meio da argumentação acalorada, Nussbaum empoleirou-se silenciosamente em sua cadeira e não emitiu resposta. Eu me levantei não para defender Nussbaum (ela é suficientemente capaz para se defender), mas para emitir uma mensagem de advertência para as mulheres de cor (especialmente aquelas vivendo e trabalhando na África) enquanto lhes assegurava que eu entendia e me identificava com sua frustração e raiva por ter que sentar ouvindo “discursos” intermináveis, enquanto o imediatismo, a desordem, a brutalidade crua de suas pátrias cheias de conflito pesavam em suas mentes. Eu fiquei impressionada, no entanto, pela falta de engajamento com a essência da apresentação de Nussbaum. Ela foi desconsiderada por oferecer teorização irrelevante ao invés de um roteiro claro para ação. Apesar de ser simpática à centralidade da prática no trabalho de desenvolvimento, desconfio de uma postura que seja tão firmemente anti-teoria que não deixe espaço para qualquer engajamento com a teoria. A teoria tem um papel central em ajudar a escrutinar, decifrar, e nomear o cotidiano, mesmo que seja a prática do cotidiano que informe a elaboração da teoria. Pode-se argumentar sobre o uso/abuso e as políticas da teoria, como eu irei argumentar na próxima seção, mas dispensar a teoria como sendo sempre irrelevante não é útil. Pelo contrário, a maioria dos africanos com quem eu trabalhei 2 Dedicado a Françoise Lionnet por muitos anos de colegialidade e colaboração. De acordo com Nussbaum, a abordagem das capacidades humanas focaliza “o que as pessoas são de fato capazes de fazer e de ser… as capacidades em questão devem ser buscadas por cada e por toda pessoa, tratando cada uma como um fim e ninguém como uma mera ferramenta dos fins de outros; assim eu adoto um princípio da capacidade de cada pessoa, baseado em um princípio de cada pessoa como um fim” (Nussbaum, 2000: 5). 3 Muitas participantes africanas apoiaram com interjeições como “continue, minha irmã”, “eu concordo cem porcento com você”, “fale por nós, minha querida”, “diga a ela que não foi pra isso que viemos aqui” etc. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 35 36 dentro e fora do continente argumentam não pela morte da teoria, mas contra seu uso e abuso; particularmente, eles interrogam os caminhos pelos quais a teoria, como local de conflito político, suscita preocupações sobre “invenção”, adequação e aplicabilidade. Isso me leva a acreditar, então, que a objeção à apresentação de Nussbaum não foi, provavelmente, contra a teoria per se, mas contra a falha da palestrante em ancorar sua teorização na realidade de qualquer forma relevante ou significante para as “queixosas”. A fama e a posição social privilegiada de Nussbaum são epistemicamente salientes no sentido de autorizar suas visões e publicações, mas elas também podem ser discursivamente perigosas em termos do impacto que suas visões/publicações têm em moldar as vidas das mulheres em nome de quem ela intervém4. Eu adverti minhas irmãs de cor para não dispensarem Nussbaum pela simples razão de que os indivíduos e instituições estrangeiras/internacionais responsáveis por fazer políticas que afetam as vidas de mulheres de cor no chamado terceiro mundo leem Nussbaum e modelam algumas de suas políticas de acordo com suas visões, conclusões e publicações. A melhor forma de se envolver com Nussbaum é ler suas publicações sobre gênero e desenvolvimento, expor terrenos contestados (que são muitos) e oferecer argumentos e caminhos alternativos. O incidente acima, transcorrido em Harvard, expõe o dublo apartheid em evolução de exclusões sociais e epistemológicas que está no cerne da exposição de Arjun Appadurai sobre as disjunções purulentas entre diversos públicos dentro de e entre nações em um mundo globalizado. A globalização, com suas mudanças e voltas, produziu ansiedades não apenas na academia onde certezas disciplinares são rompidas, mas também fora da academia onde diferentes preocupações abundam: O que a globalização significa para os mercados de trabalho e salários justos? Como ela irá afetar chances de empregos reais e recompensas confiáveis? O que ela significa para a habilidade das nações em determinar os futuros econômicos de suas populações? Qual é o dote escondido da globalização? Cristianismo? Proletarização cibernética? Novas formas de ajustamento estrutural? Americanização disfarçada de direitos humanos ou de MTV?... Entre os pobres e seus defensores as ansiedades são ainda mais específicas: O que as grandes agências globais de ajuda e desenvolvimento irão fazer? O Banco mundial está realmente comprometido a incorporar valores sociais e culturais em sua agenda desenvolvimentista? A ajuda do Norte realmente permite às comunidades locais estabelecerem suas próprias agendas?... Poderá a mídia se voltar para os interesses dos pobres? Nas esferas públicas de muitas sociedades há preocupação quanto aos debates de políticas ocorrendo em torno do comércio mundial, direitos autorais, meio ambiente, ciência e tecnologia que preparam o palco para decisões de vida e morte para pequenos agricultores, vendedores, moradores de favelas, comerciantes e populações urbanas (Appadurai, 2000:1-2). 4 Para uma discussão sobre saliência epistêmica, conferir Alcoff (1995). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 O crescente divórcio entre os debates paroquiais “sobre tais assuntos como representação, reconhecimento, o ‘fim’ da história, os espectros do capital etc.” (Appadurai, 2000: 2) na academia por um lado e os discursos vernaculares e as realidades de públicos fora da academia por outro lado demandam novos e imaginativos modos de ver e conduzir a pesquisa, um dos quais consiste em globalizar a pesquisa de baixo5 com a força de um elemento usualmente identificado com a escrita criativa e as artes – a imaginação. Meu extenso trabalho na última década com organizações não-governamentais (ONGs) e públicos de base na África – variando de literatura, saúde e direitos humanos, na Nigéria, Senegal, Sudão e Madagascar até etnicidade, paz e resolução de conflito em Ruanda, Burundi, Serra Leoa e República Democrática do Congo – me levou a repensar o lugar e o papel da teoria, da pesquisa e do conhecimento acadêmico e a reconhecer a potência e a utilidade da força da imaginação, mencionada acima. Meu trabalho com públicos para além da academia ilumina e torna pertinente meu trabalho na academia. Esse artigo reflete o que eu aprendi com homens e mulheres com quem trabalhei no espaço robusto e dinâmico onde a academia encontra o que está além dela. Esta junção onde mundos se encontram é o que eu chamo de “terceiro espaço de engajamento” (engajamento, no sentido sartreano da palavra) O terceiro espaço não é o local de estabilidade do ultimato do um ou outro; é o espaço do ambos/e, onde o território sem fronteira e o movimento livre autorizam a capacidade para simultaneamente teorizar a prática, praticar a teoria e permite a mediação da política. O terceiro espaço, que permite a coexistência, a interconexão, e a interação de pensamento, o diálogo, o planejamento, e a ação, constitui a arena onde eu testemunhei o desdobramento dos feminismos na África. Neste artigo, irei explorar, entre outras questões, o entrelaçamento do momento colonial, das políticas de trabalho de campo, e as políticas de representação nos estudos feministas e nos estudos de desenvolvimento, revisando os processos de elaboração teórica e a construção de conhecimento em um ambiente de relações de poder desiguais e a diferença cultural. Utilizarei os diferentes aspectos e métodos de engajamento feminista na África para propor o que eu chamo de negofeminismo (o feminismo da negociação; não ego feminismo) como um termo que nomeia os feminismos africanos6. Ciente de uma prática (feminismo na África) que é tão diversa quanto o continente mesmo, proponho negofeminismo não para ocluir a diversidade, mas para argumentar, como faço na discussão de “construindo sobre os autóctones” 5 Essa não é uma estratégia exclusivista que muda poder e foco dos privilegiados para os subalternos. Ao invés disso, ela deve ser um engajamento no qual o privilégio é difundido para permitir um fluxo de vozes multilateral e interativo (de cima e de baixo simultaneamente). 6 Discutindo o feminismo na África em um trabalho anterior, notei que “seria mais preciso argumentar não no contexto de um monólito (feminismo africano), mas ao invés disso no contexto de um pluralismo (feminismos africanos) que captura a fluidez e o dinamismo dos diferentes imperativos culturais, forças históricas e realidades locais condicionando o ativismo feminino/movimentos na África... a inscrição de feminismos... sublinha a heterogeneidade do pensamento e o engajamento feminista africano como manifestados em estratégias e abordagens que são, às vezes, complementares e solidárias e, às vezes, concorrentes e adversárias” (Nnaemeka, 1998a: 5). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 37 na última seção deste artigo, que um aspecto recorrente em muitas culturas africanas pode ser usado para nomear a prática. Não obstante a diversidade do continente africano, há valores compartilhados que podem ser usados como princípios de organização nas discussões sobre a África, como Daniel Etounga-Manguelle (2000: 67) apropriadamente observa: A diversidade – o vasto número de subculturas [em África] – é inegável. Mas há uma fundação de valores compartilhados, atitudes, e instituições que liga as nações ao sul do Saara, e de muitas formas aquelas ao norte também. 38 Por meio de uma breve discussão do início de um programa de estudos femininos na África, irei abordar questões de fronteiras disciplinares, pedagogia, e construção institucional em uma atmosfera de intensas atividades de ONGs limitadas e estruturadas por interesses de doadores, condicionalidades e políticas. Por fim, irei advogar em favor do questionamento e do reposicionamento de duas questões cruciais nos estudos feministas – posicionalidade e interseccionalidade. Esse processo irá implicar um questionamento constante do posicionamento de alguém em todos os níveis – do social ao pessoal até o intelectual e político – como um local subjetivo ativo de reciprocidade inconstante onde o significado é construído e não um local essencializado onde o significado é descoberto. Finalmente, prevê-se também uma mudança modulada no foco da interseccionalidade de raça, gênero, classe, etnicidade, sexualidade, religião, cultura, origem nacional, e assim por diante de considerações ontológicas (estando lá) para imperativos funcionais (fazendo o que lá) e endereçar questões importantes de igualdade e reciprocidade na intersecção e no cruzamento de fronteira7. Eu defendo que se vá além da historicização da intersecção que nos limita a questões de origem, genealogia e ascendência para focarmos mais na história do agora, o momento de ação que captura tanto sendo quanto tornandose, tanto ontologia quanto evolução. A discussão procederá em três movimentos: a segunda seção abordará o uso/abuso da teoria e a marginalização das mulheres africanas no processo; a terceira examinará a importância da cultura e a diferença em debates sobre teoria e desenvolvimento; a quarta argumentará pela necessidade e pela prudência de “construir sobre os autóctones” na construção da teoria feminista africana. 7 Para uma boa discussão de interseccionalidade, conferir Crenshaw (1991). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 Habitando/duelando possibilidades: debater teoria, conhecimento e engajamento Nos estudos africanos, como em outros ramos da pesquisa social e humanística, a subordinação de problemas sociais e humanos a tendências disciplinares proclamou efeitos negativos que minam a integridade e a utilidade social do conhecimento acadêmico. — Richard Sklar (1995: 20) Teóricos e seus métodos e conceitos constituem uma comunidade de pessoas e significados compartilhados... Por que nos engajamos nessa atividade e qual efeito pensamos que deva ter? Como Helen Longino questionou: “‘Fazer teoria’ é apenas um ritual de união para acadêmicas ou mulheres feministas privilegiadas educacionalmente?” Novamente, a quem nossa elaboração de teoria serve? — María C. Lugones & Elizabeth V. Spelman (1986: 28) Uma aproximação entre teoria e engajamento requer abrir terreno para habitar/ duelar não apenas sobre o que a teoria é, mas, mais importante, sobre o que a teoria faz, pode ou não pode fazer, e deve ou não deve fazer. As disciplinas nas quais meu trabalho se situa – estudos africanos, estudos femininos, estudos literários, estudos culturais e estudos do desenvolvimento – são afetadas por ou implicadas nestes processos. Teorizar em um contexto transcultural é carregado de questões éticas, políticas e intelectuais: a questão da procedência (de onde vem a teoria?); a questão subjetividade (quem autoriza?); a questão da posicionalidade (que locais e posições [sociais, políticas e intelectuais] ela autoriza?). A natureza imperial da formação de teoria deve ser questionada para permitir um processo democrático que criará espaço para intervenção, legitimação e validação de teorias formuladas “alhures”. Em outras palavras, a elaboração de teoria não deveria ser permanentemente um empreendimento unidirecional – sempre emanando de um local específico e aplicável a qualquer local – com efeito, permitindo a um constructo localizado impor uma validade e aplicabilidade universais. Eu defendo, como alternativa, as possibilidades, a desejabilidade e a pertinência de uma abertura de espaço que permita uma multiplicidade de enquadramentos, diferentes mas relacionados, de locais diferentes para tocar, cruzar e alimentar-se um do outro de um modo que acomode realidades e histórias diferentes. A preocupação de Nussbaum (2000: 40) sobre a aplicabilidade de um enquadramento universal e único é igualmente pertinente aqui: “[e] precisamos também questionar se o enquadramento que propomos, se um único e universal, é suficientemente flexível para nos permitir fazer justiça à variedade humana que encontramos”. Acima de tudo, a teoria deveria ser usada para elucidar, não para obscurecer e intimidar. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 39 40 Como outros discursos, supostamente, marginais, o discurso feminista levanta questões cruciais sobre o conhecimento, não apenas como sendo, mas como se tornando, não apenas como um constructo, mas como uma construção, não apenas como um produto, mas como um processo. Em outras palavras, o conhecimento como um processo é uma parte crucial do conhecimento como um produto. Ao injetar as questões da subjetividade e do local nos debates epistemológicos, o conhecimento acadêmico feminista procura, por assim dizer, colocar um rosto humano no que é chamado de corpo de conhecimento e, no processo, desmascara esse corpo presumivelmente sem rosto. Ao focalizar na metodologia (e às vezes na intenção), o conhecimento acadêmico feminista traz à tona para escrutínio a agência humana implicada na formação do conhecimento e no gerenciamento de informação. Não podemos admitir pensamento crítico sem fazer perguntas cruciais sobre o que está sendo pensado criticamente e sobre quem o está pensando criticamente. Mas o feminismo ocidental também é alcançado em sua ambivalência: ao lutar pela inclusão, ele instala exclusões; ao advogar por mudança, ele resiste à mudança; ao reivindicar movimento, ele resiste a mover-se. Algumas décadas atrás, quando littérature engagée estava em voga (ao menos, na França), a escrita estava ligada ao engajamento social. Mas em contextos pósestruturalistas, escritores e intelectuais ergueram muros discursivos que os isolaram da ação social (engajamento) necessário para promover mudança social. O surgimento da teoria pós-estruturalista como “teoria” e o papel que ela veio a assumir em moldar não apenas a vida intelectual feminista, mas também os caminhos investigativos de críticos literários e culturais e de outros intelectuais da esquerda têm implicações para a ação/mudança social. O pós-estruturalismo é “um beco sem saída para o pensamento progressista”, como Barbara Epstein (1995: 85-86) argumenta em sua contenda com “pós-estruturalismo-como-radicalismo” e suas reivindicações teóricas que têm pouco a ver com políticas progressistas: [t]ambém estou consternada pela subcultura que se desenvolveu em torno do feminismo pós-estruturalista e o mundo intelectual com o qual se cruza. Nesta arena, a busca por status e a veneração à celebridade tornou-se penetrante, provavelmente muito mais do que em qualquer outro lugar na academia. O discurso intelectual veio a ser governado por modismos alteráveis rapidamente. O trabalho é julgado mais por sua sofisticação do que pela contribuição que possa fazer em direção à mudança social. Sofisticação é entendida como significando agilidade dentro de uma estrutura intelectual complexa, a capacidade para engajarse pirotecnia teórica, para intimidar os outros por meio de uma ostentação de erudição (EPSTEIN, 1995: 85-86). O “nominalismo” do pós-estruturalismo, a negação da habilidade do sujeito para refletir sobre o discurso social e desafiar sua determinação, a tese da indecidibilidade e a afirmação da “função negativa” dos conflitos políticos levaram ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 Linda Alcoff (1988) a colocar questões cruciais e pertinentes sobre a ameaça potencial do pós-estruturalismo ao feminino em si mesmo8: [a]dotar o nominalismo cria problemas significativos para o feminismo. Como podemos adotar o plano de Kristeva apenas para o conflito negativo? Como a esquerda já deveria ter aprendido, você não pode mobilizar um movimento que é apenas e sempre contra; você deve ter uma alternativa positiva, uma visão para um futuro melhor que possa motivar as pessoas a sacrificarem seu tempo e sua energia para sua realização. Como podemos fundamentar uma política feminista que descontrua a subjetividade feminina? O nominalismo ameaça aniquilar o feminismo em si mesmo (Alcoff, 1988: 418–419). O foco pós-estruturalista no discurso e estética ao invés da ação social encoraja o egocentrismo e o individualismo que minam a ação coletiva. A atomização da comunidade intelectual e o isolamento do trabalho intelectual permitem, na melhor das hipóteses, o surgimento de “estrelas”, mas produzem, na pior das hipóteses, uma família disfuncional e ineficaz que não é completamente equipada para ir ao encontro dos desafios da transformação societal. Os estudos africanos e os estudos femininos não são imunes a essas tendências disciplinares. O foco dos estudos africanos na ideia de África ao invés de na realidade da África imita o destaque dos estudos femininos sobre a noção da mulher africana ao invés de na humanidade das mulheres africanas. No conhecimento acadêmico feminista, teóricas de diferentes convicções estão atoladas na mirada centralizadora, intelectual e teorizante que as isola da ação social e enfraquece a relevância. As feministas africanas trazem à tona para escrutínio a relação com e a resistência às políticas e teorização feministas endêmicas que consagram a irrelevância social e inviabilizam o engajamento verdadeiro – das exclusões epistemológicas e sociais feministas para desconexão do conhecimento acadêmico feminista da utilidade social. De fato, com a redefinição e o realinhamento de minha trajetória intelectual e profissional nos últimos anos, tendo a ser menos enfeitiçada e intimidada e mais alienada e desdenhosa da ginástica intelectual e teorização vazia no conhecimento acadêmico feminista, como evidenciado por minha incessante gravação de “e daí?” como notas marginais em minhas releituras de textos feministas que me amedrontaram e rebaixaram como graduada e como recém professora universitária9. Mais importante, como professora, eu me preocupo com as implicações desse estado das coisas para as próximas gerações de professoras e pesquisadoras feministas – 8 Conferir Alcoff (1988) para uma discussão do que ela chama de “nominalismo” do pós-estruturalismo; e também a tese da indecidibilidade de Jacques Derrida (1978) e a “função negativa de Julia Kristeva (1981: 166). 9 Não estou sozinha nisso. Não faz muito tempo, uma estudiosa/ativista feminista de muito tempo me informou que ela tinha encerrado sua assinatura de um dos principais periódicos dos estudos femininos, por causa de “sua filosofia que perdera contato com a realidade”. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 41 nossas estudantes de pós-graduação – que sabem menos sobre a essência dos textos obrigatórios e mais sobre jargões da moda, como resultado disso elas produzem respostas pré-estruturadas para questões diferentes e não relacionadas. Mais especificamente, eu me preocupo com minha orientanda de pós-graduação e suas obsessões sazonais com os jargões “pós” (pós-estruturalista, pós-colonial, pósmodernista”). Em algum momento, era um “simulacro” que ela via em toda parte. Aquilo durou alguns meses. Então, chegou um que se recusou a partir – “clivagem”. Este monstro onipresente foi imbuído com significados que se metamorfoseavam perpetuamente – do sagrado ao profano. Frustrada com a celeridade com a qual a tese dela estava crescentemente “marcada” por este monstro, eu emiti um aviso severo: “Se eu vir essa ‘clivagem’ em outra página dessa tese, eu irei retirá-la da minha lista de orientandas”. A clivagem curvou-se à ameaça, a sanidade reinou e a tese avançou. Até mais pertinente para a situação das mulheres africanas com relação à elaboração de teoria é a necessidade urgente de abrir-se uma conversa não sobre o desafio à impossibilidade de uma teoria (una), mas sobre o benefício de explorar-se as possibilidades da teoria (múltipla). Como Judith Butler (1990: 5) apropriadamente observa: 42 pode ser a hora de cogitar uma crítica radical que busque libertar a teoria feminista da necessidade de ter que construir uma fundamentação única ou permanente que é invariavelmente contestada por aquelas posições identitárias ou posições antiidentitárias que ela invariavelmente exclui. Quando Barbara Christian (1995) manifestou-se uma década atrás contra a “disputa de teorias”, ela trouxe para escrutínio a ligação entre posições identitárias e teoria feminista ao insistir que pessoas de cor sempre teorizaram, mas de modo diferente: [e]stou inclinada a dizer que nossa teorização (e eu intencionalmente uso o verbo ao invés do substantivo) está frequentemente em formas de narrativa, nas histórias que criamos, nas advinhas e nos provérbios, no brincar com a língua, já que ideias dinâmicas, e não fixas, parecem ser mais do nosso gosto (Christian, 1995: 457). Em questão aqui está a personalização da formação de teoria no ocidente (cartesiana, por exemplo) como oposta ao anonimato de uma voz comunal que articula reivindicações de conhecimento em formas narrativas e provérbios africanos (que na terra Igbo são frequentemente precedidas por “ndi banyi si/nosso povo disse”). Como sujeitos coloniais, uma das dificuldades que encontramos em nossa absorção no mundo colonial de aquisição de conhecimento foi sermos requisitados nas escolas coloniais a memorizar e identificar corretamente as citações onipresentes e as seguintes perguntas de quatro partes que nos torturavam na hora das avaliações ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 – quem disse, para quem, quando e onde? (identifique a voz que autoriza, a passividade que a legitima, a temporalidade que a marca, e o local do tráfego de mão única de uma “transação”). Nós esquecemos tais inanidades no risco de nosso avanço educacional. Ninguém se dava ao trabalho de nos perguntar como nós víamos o conhecimento, sua formação e articulação; ninguém se dava ao trabalho de descobrir se desenhávamos molduras para o conhecimento (enquadramento); ninguém se importava com descobrir se nossa jornada com e para dentro do conhecimento é um caso de amor sem limites e em constante evolução que nos varre junto com nossos vizinhos, nossos ancestrais e aqueles que nós não conhecemos ou “lemos” (“ndi banyi si/nosso povo disse” não “ndi banyi delu/nosso povo escreveu”)10. O local das mulheres africanas (como produtoras de conhecimento e sujeitos/ objetos para a produção de conhecimento) em querelas epistemológicas feministas é tanto específica quanto complexa. A crítica das mulheres africanas de teorias feministas prevalentes vai além de questões de relevância, adequação e propriedade para incluir questões cruciais sobre representação e alocação/compartilhamento de tarefas. Em sua resenha de três obras editadas sobre gênero e direitos humanos internacionais, J. Oloka-Onyango e Sylvia Tamale (1995) louvam as tentativas das obras de incorporarem vozes diversas do, assim chamado, terceiro mundo em oposição a coletâneas internacionais anteriores que, na melhor das hipóteses, marginalizam e, na pior das hipóteses, silenciam as vozes do “terceiro mundo”11. Mas uma sondagem adicional dessas três obras louváveis revela sua cumplicidade (alguns são mais culpáveis do que os outros) no padrão endêmico de colocar em quarentena as vozes do “terceiro mundo” em seções específicas marcadas por noções predeterminadas das fronteiras intelectuais e epistemológicas de sujeitos conhecedores do “terceiro mundo”. As supostas obras internacionais usualmente excluem de sua “seção teórica” as vozes e a presença de mulheres do “terceiro mundo” (ausentes como produtoras de conhecimento como criadoras de teoria, mas, às vezes, presentes para “re-materializar”12 ou concretizar a abstração de posições teóricas). Essas publicações tendem a exilar mulheres do “terceiro mundo” para estudos de caso e seções de países específicos, insinuando, claro, que essas mulheres podem falar apenas sobre as questões pertencentes a países específicos de onde elas veem e não têm a capacidade de explorar complexidades da teoria como uma abstração como uma intelectual, abstração científica que requer poder cerebral para moldar e compreender. Escondidas no funcionamento interno dessa suposição ou raciocínio estão as questões não ditas de raça e localização social. Além disso, esta alocação de tarefas para sujeitos de pesquisa e seu posicionamento como objetos é colonial tanto na intenção quanto na execução. Do mesmo modo com a África produziu matérias primas que a metrópole transformou em produtos manufaturados, as 10 Aquelas cujas jornadas epistemológicas são guiadas pela oralidade (ndi banyi si) não pela escrita (ndi banyi delu) são levados a teorizar de modo diferente. 11 Os livros resenhados são Center for Women’s Global Leadership (1994); Cook (1994); e Peters; Wolper (1995). 12 Conferir Smith (1989: 44–46). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 43 44 mulheres africanas (como pesquisadoras/estudiosas e como pesquisadas) são instrumentalizadas: como pesquisadoras/estudiosas, elas são instrumentos para coletar dados não tratados com os quais estudiosas estrangeiras manufaturam o conhecimento; como as pesquisadas, elas são os instrumentos por meio dos quais o conhecimento acadêmico é produzido e carreiras são construídas. Frequentemente em trabalhos genuinamente colaborativos, as pesquisadoras ocidentais não incluem as africanas como colaboradoras ou coautoras (no máximo, elas são reconhecidas e agradecidas como “informantes”). As duas últimas décadas viram o aumento de ONGs africanas apoiadas e financiadas principalmente por ONGs estrangeiras e por instituições e fundações internacionais. Como Aili Mari Tripp observa em seu estudo sobre o novo ativismo político na África, o aumento da participação feminina na sociedade civil e governança deve-se à intervenção de “doadores [que] apoiam os esforços femininos para participar na educação cívica, na reforma legislativa e constitucional, no treinamento de liderança, e que fundaram programas para parlamentares femininas” (Tripp, 2001: 144). No entanto, as atividades de ONGs na África levantam questões sérias sobre a coleta de informações e a construção de conhecimento. Com o empobrecimento e colapso do sistema de educação superior em muitos países africanos e com a crescente prática de doadores e ONGs estrangeiros de financiar ONGs locais (não indivíduos) para projetos, há uma pressão aumentada sobre acadêmicas e estudiosas africanas para formar e juntar-se a ONGs a fim de receberem financiamento para projetos de pesquisa. Além da acusação usual (e legítima) de que o foco da pesquisa é frequentemente ditado pelo doador (testemunhe a explosão do número de ONGs africanas trabalhando na acalorada questão dos anos 90 – a chamada mutilação genital feminina), há questões mais preocupantes com relação à natureza, aos relatórios e ao arquivamento da “pesquisa” e a questão mais ampla da responsabilidade. A falta de reciprocidade entre ONGs do hemisfério norte e suas contrapartes do sul baseia-se em relações desiguais, em que os primeiros exigem transparência e responsabilidade dos últimos, mantendo sigilo e não se responsabilizando, em troca. Tal estado das coisas levou Tandon Yash (1991) a advertir os africanos sobre serem vigilantes e demandarem de seus parceiros do norte uma “aliança” (e não uma “solidariedade” unilateral): O fato de as ONGs ocidentais fornecerem dinheiro para o “desenvolvimento”... concede-lhes um acesso fácil às ONG africanas. Periodicamente, as ONGs ocidentais exigem que seus “parceiros” abram seus livros e seus corações para explicar o que andaram fazendo com “seu dinheiro”. Isso é chamado de “avaliação”... As ONGs africanas não têm um tal acesso privilegiado aos corações e às mentes (e às contas) das ONGs ocidentais das quais recebem dinheiro. Existe uma lei não escrita que diz que, onde o dinheiro é gasto, ele deve ser “contabilizado”, mas onde a informação é fornecida (como as ONGs africanas fazem às ONGs ocidentais), não é necessária nenhuma prestação de contas sobre como essa informação é usada. A doutrina da responsabilidade ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 financeira é legítima; a doutrina da responsabilidade informacional não é (Yash, 1991: 74). Este modelo desequilibrado de responsabilização tem enormes implicações nos níveis intelectual e epistemológico. Muitas vezes, as informações coletadas pelas ONGs do sul vêm na forma de dados brutos espremidos em relatórios cujo objetivo é mostrar os gastos e justificar o uso de fundos. Em tudo isso, pouco ou nenhum esforço é feito para encorajar as ONGs do sul a transformar suas descobertas e dados em um empreendimento intelectual. Reivindicando a propriedade total das descobertas e relatórios, as ONGs do norte (como financiadoras) exercem os direitos de propriedade de usar (até mesmo abusar) e descartar os materiais entregues, exigindo que as ONGs do sul (os produtores dos dados) busquem e obtenham sua permissão antes de usar as descobertas para outros fins. Mas como e por quem os dados são usados é de grande importância. Apesar dos parâmetros restritivos das ONGs, um pequeno número de acadêmicas e estudiosas africanas afiliadas a ONGs conseguiu produzir relatórios para satisfazer as condicionalidades de financiamento e, ao mesmo tempo, usar as descobertas de forma criativa para produzir conhecimento que é disseminado por meio de publicações acadêmicas – revistas, obras editadas, e assim por diante. Para participar plenamente na formação do conhecimento sobre a África, as ONGs africanas não deveriam hesitar em morder o dedo que as alimenta. Especificamente, elas deveriam estar preparadas para desafiar as instituições doadoras e exigir delas prestação de contas e responsabilidade, quando necessário, mesmo quando elas buscam seu apoio financeiro. As ONGs deveriam caminhar na linha tênue entre se beneficiarem das corporações e serem por elas incorporadas. Em seu ensaio sobre o imperialismo cultural e as exclusões da teoria feminista, María Lugones e Elizabeth Spelman (1986: 28) também levantam a questão da responsabilidade da parte de teóricas feministas: Quando nós falamos, escrevemos e publicamos nossas teorias, para quem pensamos que devemos responsabilidade? As preocupações que temos em sermos responsáveis para com “a profissão” em desacordo com as preocupações que temos em sermos responsáveis para com aquelas sobre quem teorizamos?... Por que e como pensamos que teorizar sobre as outras provê a compreensão delas? As preocupações de Spelman e Lugones sobre responsabilização e modos de ver/saber deveriam ser parte da teorização feminista? Um colega africano uma vez me disse que a literatura africana, por causa de sua natureza subversiva e desconstrutiva e de sua posição sobre subjetividade, voz e representação, pode apenas ser conceitualizada e teorizada no contexto do pós-modernismo: “Apenas a teoria pós-modernista pode domar e explicar esse gorila de mais de 200 quilos”, ele opinou com sua risada inimitável dispersada ao meu redor. Minha resposta foi, se esse gorila ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 45 46 é verdadeiramente africano, deve ter alguns contextos e formulações autóctones gorilísticas que possam nos guiar para uma conceitualização e teorização melhor e mais compreensível: “Que tal ‘teoria nmanwu’ ou ainda mais especificamente uma ‘teoria atakata’?”, eu respondi, apanhando e redirecionando a risada dispersa de meu colega de volta para ele. Na terra Igbo (no sudeste da Nigéria), nmanwu (mascarado) e iti nmanwu (mascarar-se) são tanto espirituais quanto mundanas. Nmanwu, em sua indeterminação (um espírito em forma humana), caminha como um pato, grasna como um pato, mas não é um pato. Nmanwu é um espírito que assume a forma humana por meio de uma expressão artística que embaça a fronteira entre arte “alta” e “baixa”. Por meio de sua complexa incorporação e tessitura de prosa, poesia e “barulho”, o nmanwu cruza fronteiras de gêneros com facilidade. Seu pastiche de uma narrativa vai de encontro com uma grande narrativa. Indeterminado e ambíguo em sua conceitualização (espírito em forma humana), brincalhão em sua atitude, simultâneo em sua promulgação de gêneros diferentes, desconstrutivo em seus movimentos, multi-perspectivista em seu funcionamento, essa bricolagem de uma forma de arte (nmanwu) arqueia em direção à formulação “pós-modernista” (mas não nos esqueçamos que mascarar-se na terra Igbo precede o surgimento do pósmodernismo no século passado). O akataka, com sua energia e agilidade, é o mais disruptivo, “fragmentador” e subversivo dos mascarados. Em sua conceitualização, construção, funcionamento interno/externo e aparição na cena, o akataka “desconstrói” e descentraliza tudo, enviando subjetividades, multivocalidade e representação voando em todas as direções possíveis. Os Igbo dizem “adiro akwu ofuebe enene nmawu/ não se pode ficar em um ponto para assistir a uma mascarada” – um provérbio que levanta significativamente questões de perspectiva e subjetividade. Enquanto meu colega defende o uso de reflexões teóricas e abstrações do pós-modernismo para re-materializar ou dar forma à literatura africana, eu advogo por “construir sobre o autóctone” (conferir a quarta seção) argumentando que, com efeito, as cosmovisões e pensamentos africanos são capazes de fornecer cabideiro teórico para pendurar a literatura africana. Pode a teoria akataka ser mais útil para os produtores de literatura africana (especificamente, Igbo) para entender e explicar a literatura para si mesmos e para o resto do mundo? Pode o pós-modernismo entender e explicar-se a si mesmo e ao resto do mundo por meio da teoria akataka? Os requisitos institucionais e disciplinares, as políticas de publicação e a sobrevivência profissional podem permitir a intrusão da teoria akataka na fertilização cruzada da elaboração de teorias? Em suma, por que uma mistura de vozes não se levanta para formular teoria no contexto da fertilização cruzada de ideias, conceitos e preocupações? A cultura (como uma força negativa) continua sendo uma questão central nos discursos feministas (ocidentais), desenvolvimentistas e coloniais sobre o “outro”. A “outra” cultura pode ser vista de outro modo? Seus conceitos são traduzíveis para a teorização convencional? ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 Cultura, desenvolvimento e feminismo (ocidental) O discurso do desenvolvimento é parte de um processo imperial por meio do qual outros povos são apropriados e transformados em objetos. É uma parte essencial do processo por meio do qual países “desenvolvidos” gerenciam, controlam e até mesmo criam o Terceiro Mundo economicamente, politicamente, sociologicamente e culturalmente. É um processo por meio do qual as vidas de alguns povos, seus planos, suas esperanças, suas imaginações são moldadas por outros que frequentemente não compartilham nem seus estilos de vida, nem suas esperanças, nem seus valores. —Vincent Tucker (1999: 1) O verdadeiro desenvolvimento dos seres humanos envolve muito mais do que crescimento econômico. Em seu cerne, deve haver um sentido de empoderamento e de realização interior. Por si só, isso garantirá que valores culturais e humanos permaneçam primordiais... Quando isso é atingido, a cultura e o desenvolvimento irão coalescer naturalmente para criar um ambiente em que todos são valorizados e todo tipo de potencial humano pode ser percebido. —Aung San Suu Kyi (1995: 18) 47 Como processos de relações de poder desiguais, o colonialismo, o desenvolvimentismo e até mesmo a chamada globalização em curso focalizam mais no material e menos no humano. O foco do colonialismo em recursos naturais, instituições e enquadramento é equiparado por foco do desenvolvimentismo em economia, instituições e processos. O mesmo vale para “o mundo em movimento” nessa era de globalização, em que recursos, capital e habilidades estão mais “em movimento” do que certas categorias de humanos – principalmente os pobres, os sem qualificação e pessoas de cor do chamado terceiro mundo (políticas de imigração de muitas nações ocidentais são designadas para regular e gerenciar o fluxo). Eu acho a palavra francesa para globalização (la mondialisation) mais pertinente para a questão que desejo levantar sobre humanidade e materialidade. La mondialisation, derivada de le monde com seu significado duplo de mundo físico (materialidade) e pessoas (humanidade), captura tanto a materialidade quanto a humanidade da globalização. A humanidade que é na melhor das hipóteses minimizada e na pior das hipóteses ignorada nos discursos e práticas da globalização em geral toma o centro do palco nos discursos e práticas que vejo evoluindo na África. Do colonialismo até o desenvolvimentismo e a globalização, o Ocidente armou persistentes (e algumas vezes equivocadas) insurgências contra os “regimes estranhos” que formam as culturas “inaceitáveis” em muitas partes do chamado terceiro mundo. Utilizando os “regimes estranhos” como justificativa para rebaixar ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 os praticantes das culturas abaixo do nível humano, o Ocidente defende que exorcizar estes sub-humanos de seus “regimes estranhos” os re-humanizará e guiará para os portões da civilização. Arrogando-se a responsabilidade moral para intervir para resgatar vítimas mulheres dos “regimes estranhos”, feministas ocidentais trouxeram à tona debates intensos sobre a concepção de bom, da justiça social e da responsabilidade moral, nos quais, infelizmente, a humanidade daquelas a serem resgatadas é relegada ao segundo plano. O ensaio de Susan Moller Okin (1999) sobre poligamia entre imigrantes africanos na França é instrutivo. O ensaio de Okin fala eloquentemente dos conflitos entre liberalismo, multiculturalismo e feminismo. Ela argumenta pela obrigação da democracia liberal de intervir na resolução desses conflitos, particularmente nas chamadas minorias culturais não responsivas quanto aos direitos das mulheres. No entanto, defendendo a intervenção universalista, o ensaio apoia-se principalmente na seguinte assertiva de Okin: 48 No final de 1980, por exemplo, uma controvérsia pública aguda irrompeu na França sobre se as garotas Magrébin podiam ir à escola usando os lenços de cabeça tradicionais mulçumanos resguardados como vestuário apropriado para jovens mulheres pós-pubescentes... Ao mesmíssimo tempo, no entanto, o público estava praticamente calado sobre um problema vastamente mais importante para muitas imigrantes mulheres africanas e árabe francesas: a poligamia (Okin, 1999: 9 – grifo meu). Mas aqueles de nós que fizeram trabalhos sobre/com as comunidades imigrantes na França sabem bem que para elas os problemas “vastamente mais importantes” são le racisme (o racismo) e le chômage (o desemprego). La polygamie (a poligamia) surge em uma distante terceira linha ou até mais abaixo. Okin culpa a poligamia pelos conflitos conjugais debilitando as famílias imigrantes africanas amontoadas em um espaço de habitação inadequado13. Não devemos esquecer de que numerosas famílias imigrantes africanas monogâmicas também enfrentam o mesmo problema da inadequação do espaço de habitação. Como as famílias sempre querem o melhor para si mesmas, pode-se argumentar que famílias imigrantes africanas (monogâmicas e poligâmicas) compartilham espaços habitacionais porque é isso que podem pagar. Parece-me que deveria se propor um argumento econômico nesta instância. Mas o ensaio de Okin salta de lenços mulçumanos para a poligamia (os chamados símbolos de opressão cultural e religiosa pelos quais o Ocidente não é responsável), passando por cima do racismo (no qual o Ocidente está implicado) para abrir terreno para debates sobre culturas mulçumanas e africanas, relativismo cultural, multiculturalismo, universalismo e responsabilidade moral, por um lado, e, por outro lado, para assertivas infinitas sobre “culturas minoritárias” (leia-se culturas não Ocidentais) e “culturas majoritárias” (leia-se culturas Ocidentais). Muitos 13 Se espaço habitacional é a chave para casamentos harmoniosos, a taxa de divórcios em Beverly Hills (com suas numerosas mansões) seria uma das mais baixas no mundo! ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 estudiosos proeminentes juntaram-se ao debate para produzir um livro do mesmo título sem qualquer tentativa séria de questionar a afirmativa fundamental em que o ensaio de Okin se apoia. Quando políticas e práticas de imigração equivocadas juntam forças com o racismo para produzir uma subclasse para as famílias imigrantes desempregas e pobres, nós culpamos sua cultura (poligamia) ao invés de culparmos sua situação socioeconômica14! O ultraje moral dos intervencionistas universalistas não deveria ser igualmente dirigido para o que aflige os imigrantes – o racismo e o desemprego? Mas quando certos atos se tornam “cultura”? Assassinatos de cônjuges (por armas de fogo, facadas, injeção letal, atropelamento com carro etc.) são excessivos nos Estados Unidos e são frequentemente descritos pelos americanos como “crimes passionais”. Mais mulheres são estupradas nos Estados Unidos do que na maioria dos países africanos, mas os americanos descrevem o problema como “violência contra as mulheres”, não como “cultura”. Em março de 2003, 171 países (cerca de 90 porcento dos membros das Nações Unidas) tomam parte na Convenção da Eliminação de Toda Discriminação contra as Mulheres, de 1979, e os Estados Unidos é um dos poucos países que não ratificaram a convenção. É de se pensar porque os participantes das conferências da ONU (de Nairóbi a Pequim) não se mobilizaram para ajudar as mulheres americanas endereçar a não ratificação da convecção pelos E.U.A. ao mesmo tempo em que se mobilizaram para discutir poligamia, casamento infantil, entre outros. As mulheres do “terceiro mundo” têm a responsabilidade moral para intervir em favor das mulheres oprimidas dos Estados Unidos? As mulheres “terceiromundistas” podem ser alistar ou obter permissão para se convidarem a exercitar essa obrigação moral? Mulheres em muitas partes do “terceiro mundo” contestam a ideia da intervenção unidirecional. Intervenções deveriam ter permissão para cruzar e recruzar fronteiras no espírito de um verdadeiro “feminismo global”. Frequentemente, as intervenções (morais e outras) não pretendem salvar as “vítimas”, mas ao invés disso transformá-las na imagem das intervencionistas, como a narrativa de Mark Beach acerca da “impossibilidade” de tirar uma fotografia “individual” em um vilarejo (Piela) em Burquina Faso demonstra. Beach, um fotógrafo americano da Pensilvânia, viajou para Burquina Faso para tirar fotos “individuais” para um projeto fotográfico intitulado Sonhos de Nossos Vizinhos, comissionado pelo Comitê Central Menonita (CCM), em 1995. No entanto, as coisas não deram muito certo quando chegou a hora de ele tirar fotos “individuais” de Sibdou Ouada, uma enfermeira pediátrica e esposa de um pastor local, que nunca foi questionada se ela gostava de posar para fotografias “individuais”: 14 A situação de imigrantes africanos na França é muito mais complexa do que a explicação cultural que é oferecida aqui. Utilizando o mantra “minha cultura me fez fazer isso” para contextualizar e explicar a situação dos povos do “terceiro mundo” não é mais aceitável. Não surpreendentemente, um dos ensaios nesta obra carrega esse mantra como título. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 49 50 Quando o momento de fotografar finalmente chegou, pedi a Sibdou para ficar onde a luz ambiente natural era particularmente atrativa. Sibdou concordou; então, prontamente chamou seus quatro filhos, os gêmeos e um filho e filha mais velhos, para rodearem-na. Como eu queria apenas Sibdou na foto, me vi confrontado por um problema. Como compromisso, fiz várias imagens da família e algumas com crianças ao fundo enquanto planejava a próxima locação onde eu poderia ter sucesso em fazer um retrato individual. Sibdou concordou em ficar no vão da porta de sua varanda para a próxima série de imagens. Pedi que apenas ela estivesse na foto. Ela sorriu e prontamente chamou seus filhos para rodearem-na. Em um esforço tolo para isolar Sibdou no enquadramento, movi minha câmera levemente, esperando que pudesse cortar os filhos fora quando imprimisse a fotografia na câmara escura. Ao mover da câmera, Sibdou e seus filhos todos moveram-se em conjunto. Primeiro de um jeito e então de volta ao anterior. Sibdou finalmente posicionou os gêmeos a sua frente. Fui vencido. Talvez tenha sido o calor seco de Burquina Faso ou os longos dias fazendo fotografias e entrevistas, mas eu finalmente entendi que uma fotografia de Sibdou significava uma fotografia de sua família. Não havia distinção. Sibdou sabia disso. Ela estava apenas esperando que eu também entendesse isso. Quando finalmente tirei duas fotografias de Sibdou sozinha, elas eram imagens solitárias. Sibdou permaneceu desconfortavelmente em frente da câmera (Beach, 1995: 1–2). Duas questões pertinentes surgem desse encontro entre Mark Beach (o centro) e uma mulher em um vilarejo distante e remoto na África, Sibdou Ouada (a margem). Primeiro, em colisão estão, por um lado, a noção de Sibdou sobre self, de identidade e de lugar no esquema de coisas e, por outro lado, o desejo de Beach de refazer Sibdou de acordo com sua percepção de ser – individual, de pé sozinha, tendo um espaço pessoal. Segundo, o relato do evento alega que Beach aprendeu sobre individualismo ao fotografar uma enfermeira na África Ocidental. Mas isso não é o que essa história ensinou a Beach. Era ele quem estava ensinando Sibdou sobre individualismo e Sibdou, em troca, o ensinou sobre comunidade, aliança e conexão. Dizer que Beach aprendeu sobre individualismo é conformar o que nós já sabemos – que imperialistas e colonialistas nunca aprendem com os colonizados: eles os ensinam. Eles não fazem perguntas; eles fabricam respostas em busca de perguntas. Cruzar fronteiras tem seus perigos, sua sedução, sua imprevisibilidade, seus momentos humildes, mas também tem suas recompensas enriquecedoras. Cruzar fronteiras propicia aprender sobre o “outro”, mas, mais importante, também deveria propiciar aprender com o outro. Aprender sobre é um gesto que é frequentemente tingido de arrogância e de um ar de superioridade; aprender com requer uma dose maior de humildade tingida com civilidade. Aprender sobre frequentemente produz interrogadores arrogantes; aprender com requer ouvintes humildes. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 A cultura, como uma arena de conflito ideológico e político, precisa de escrutínio rigoroso e constante para separar a realidade da invenção ou traçar a transformação da invenção em realidade. A cultura é dinâmica no sentido de que deriva seus significados, evolução e reformulação dos encontros com e das negociações das pessoas nela no contexto dos imperativos históricos. A validade de linhas claras traçadas entre as culturas é seriamente testada, particularmente nessa era de globalização. A observação de Christopher Miller (1993: 216) de que “culturas, nações, e esferas como ‘o Ocidente’ não existem em isolamento”, mas em constante contato com outras esferas por milênios é apoiada pela articulação eloquente de James Clifford (1986: 24) sobre como “poesis e políticas culturais” participam na “constante reconstituição dos eus e dos outros por meio de exclusões específicas, convenções e práticas discursivas”. Ao escrever sobre culturas, etnógrafos também escrevem culturas; ao revelar, explicar e associar significados a culturas, etnógrafos criam culturas: [c]omo discurso profissional que elabora sobre o significado de cultura para prestar contas, explicar e entender a diferença cultural, a antropologia acaba também construindo, produzindo e mantendo a diferença. O discurso antropológico ajuda a dar à diferença cultural (e à separação entre grupos de pessoas que ela implica) o ar de auto evidente (Abu-Lughod, 1993: 12). Lila Abu-Lughod propõe que uma reificação mitigada de cultura seja realizada através da “escrita contra cultura” que focaliza as interconexões entre a posicionalidade do pesquisador e pesquisado e um afastamento dos sujeitos coletivos para as “etnografias do particular”15 . O discurso e a prática do desenvolvimento têm a ganhar com o desenvolvimento do particular. Até que o desenvolvimento assuma uma face humana e individual, em vez do anonimato do coletivo (os pobres, os necessitados), ele permanecerá uma meta irrealizável no “terceiro mundo”. O objetivo será alcançado por meio de um esforço honesto para humanizar os processos de desenvolvimento e não assumindo que o crescimento econômico garante o desenvolvimento. A verdade da questão é que as pessoas necessitadas são seres complexos como a maioria das outras pessoas – comem, trabalham, amam, fazem compras, dançam, riem, choram, vão passear, abraçam os filhos e assim por diante. Despojá-los de sua complexidade é negar-lhes sua humanidade. Impulsionados por considerações humanistas, as organizações filantrópicas e as agências de desenvolvimento, bem-intencionadas em sua maioria, desumanizam sua tentativa de humanizar. Como argumentei em outro lugar (Nnaemeka, 1997), a cultura não deve ser descartada como um fator negativo ou neutro no desenvolvimento; em vez disso, devem ser feitas tentativas para descobrir de que maneiras a cultura é uma força positiva que pode servir bem ao desenvolvimento. Como Aung San Suu Kyi (1995) 15 Conferir Abu-Lughod (1991: 149–157). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 51 enfaticamente argumenta, o homem não deveria ser uma ferramenta econômica para o desenvolvimento: [q]uando a economia é considerada como a chave mais importante de todas as fechaduras de todas as portas, é apenas natural que o valor do homem venha a ser decidido em grande parte, até mesmo integralmente, pela sua eficácia como instrumento econômico. Isto está em desacordo com a visão de um mundo onde as instituições econômicas, políticas e sociais trabalham para servir ao homem em vez do contrário; onde a cultura e o desenvolvimento coalescem para criar um ambiente no qual o potencial humano possa ser plenamente realizado (Kyi, 1995: 13). Nas últimas décadas, o processo de desenvolvimento na África foi marcado pelos pontos cegos em sua conceituação e pelas deficiências em sua articulação e implementação. O processo de desenvolvimento, como é projetado de fora e “ de cima”, arrastou os africanos, deixando para trás os ideais africanos de humanidade, responsabilidade, compromisso e verdadeira parceria no coração dos valores democráticos que teriam suavizado as arestas do chamado desenvolvimento na teoria e na prática. É para a questão de construir sobre os autóctones nos processos de desenvolvimento que eu me volto agora. 52 Medi(A)ções africanas: Negofeminismo, construir sobre o autóctone e (re)clamar o terceiro espaço Quando algo se põe de pé, algo se põe a seu lado. —Provérbio Igbo Uma pessoa é uma pessoa por causa de outras pessoas! —Provérbio Sotho Uma cabeça não pode entrar em consenso. —Provérbio Ashanti O céu é vasto o bastante para todos os pássaros voarem sem colidir. —Provérbio Iorubá O espaço ocorre como o efeito produzido pelas operações que o orientam, o situam, o temporalizam e o fazem funcionar em uma unidade polivalente de programas conflitantes ou proximidades contratuais... Em oposição ao lugar, ele não tem, portanto, nada da univocidade ou da estabilidade de um “próprio”. —Michel de Certeau (1984: 117) ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 Ao documentar as características do feminismo africano, observei em outro lugar que: para explicar de forma significativa o fenômeno chamado feminismo africano, é preciso fazer referência não ao feminismo ocidental, mas sim ao ambiente africano. O feminismo africano não é reativo; é proativo. Tem uma vida própria que está enraizada no ambiente africano. Sua singularidade emana da especificidade filosófica e cultural de sua procedência (Nnaemeka, 1998ª: 9). Armada com o conhecimento da visão de mundo africana como inscrita nos provérbios (conferir acima) e enriquecida por muitos anos de colaboração com estudiosas e ativistas baseadas na África em processos de desenvolvimento e movimentos sociais, tentarei aqui usar as práticas de estudiosas/ativistas africanas para formular e nomear uma estrutura que descreva seu engajamento, uma vez que este está enraizado nos autóctones. Eu defendo que a teoria feminista africana deveria ser construída sobre os autóctones, da mesma forma que Claude Ake (1988) defende que para o desenvolvimento fazer algum progresso na África, maior atenção deve ser dada para “construir sobre o autóctone”: Não podemos avançar significativamente no desenvolvimento da África, a menos que levemos a sério as sociedades africanas como elas são, não como deveriam ser ou como poderiam ser; que o desenvolvimento sustentável não pode ocorrer a menos que construamos sobre os autóctones. Agora, o que é o autóctone e como podemos construí-lo? O autóctone não é o tradicional, não há existência fossilizada do passado africano disponível para a qual voltarmos, há apenas novas totalidades, ainda que híbridas, que mudam a cada dia que passa. O autóctone refere-se a o que quer que as pessoas considerem importante em suas vidas, o que quer que resguardem como uma expressão autêntica de si mesmas. Construímos sobre o autóctone, ao determinar a forma e o conteúdo da estratégia de desenvolvimento, ao garantir que a mudança desenvolvimentista se adapte a essas coisas, sejam elas valores, interesses, aspirações e/ou instituições sociais que são importantes na vida das pessoas (Ake, 1988: 19). A distinção que Ake faz entre o tradicional e o autóctone é importante, porque nos liberta da noção reificada de cultura ao ser evocada pela “tradição” para abrir espaço para o funcionamento do agora e do então, do aqui e do lá – um dinâmico híbrido em evolução de diferentes histórias e geografias. Construir sobre o autóctone cria o sentimento de propriedade que abre a porta para um processo democrático e participativo, onde a imaginação, os valores e as visões de mundo das ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 53 partes interessadas são levadas em consideração ao mitigar a alienação das partes interessadas, que poderia resultar na invalidação de seus valores e visões de mundo. Na minha opinião, o trabalho das mulheres na África localiza-se na fronteira onde a academia encontra o que está além de si, um terceiro espaço onde o imediatismo das experiências vividas dá forma à teoria, permite o gesto simultâneo de teorizar a prática e de praticar a teoria e antecipa a mediação da política, assim rompendo a noção de academia e de ativismo como lugares estáveis. Minha escolha por espaço e não por lugar ou local ao mapear o que chamo de terceiro espaço é informada pela distinção que Achille Mbembe (2000) faz entre lugar e território em seu ensaio sobre fronteiras, territorialidade e soberania na África. Ao mapear seus argumentos, Mbembe retoma o trabalho de Michel de Certeau sobre espacialidade, A invenção do quotidiano (A prática da vida cotiana): Um lugar, como aponta Michel de Certeau, é uma configuração instantânea de posições. Ele implica uma estabilidade. Já um território é fundamentalmente uma intersecção de corpos moventes. É definido essencialmente por um conjunto de movimentos que tomam lugar dentro dele. Visto dessa forma, é um conjunto de possibilidades a que atores historicamente situados resistem ou que realizam constantemente (Mbembe, 2000: 261). 54 Na minha opinião, o espaço apresenta uma noção expansiva de terreno que permite a interação de resistências e realizações no cerne da fronteira e do engajamento crítico que eu chamo de negofeminismo – o ramo do feminismo que eu vejo se desdobrar na África. Mas o que é o negofeminismo? Primeiro, o negofeminismo é o feminismo da negociação; segundo, negofeminismo significa feminismo do “não ego”. Na fundamentação de valores compartilhados em muitas culturas africanas estão os princípios da negociação, dar e receber, compromisso e equilíbrio. Aqui, negociação tem o dublo sentido de “dar e receber/troca” e de “lidar com sucesso/dar a volta”. O feminismo africano (ou o feminismo como o vi sendo praticado na África) desafia por meio de negociações e de acordos. Ele sabe quando, onde e como detonar as minas terrestres patriarcais; também sabe quando, onde e como contornar as minas terrestres patriarcais. Em outras palavras, ele sabe quando, onde e como negociar com ou negociar em torno do patriarcado em contextos diferentes. Para as mulheres africanas, o feminismo é um ato que evoca o dinamismo e as mudanças de um processo oposto à estabilidade a à reificação de um constructo, uma estrutura. Meu uso de espaço – o terceiro espaço – propicia o terreno para o desdobramento do processo dinâmico. Além disso, o negofeminismo é estruturado por imperativos culturais e moldado por exigências globais e locais em constante mudança. A teologia da proximidade fundada no autóctone instala o feminismo na África como uma performance e como um ato ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 altruísta16. As mulheres africanas fazem feminismo; feminismo é o que elas fazem para si mesmas e para os outros17. O restante desta seção examinará como as mulheres africanas negociaram espaços pedagógicos e disciplinares e ainda abordaram questões de gênero, língua e prática. A aula de estudos femininos no Ocidente (nos Estados Unidos, especificamente) funciona em um ambiente feminizado (todas/quase-todas-mulheres) em oposição ao contexto com gênero (uma mistura saudável entre mulheres e homens) em vigor nas aulas e conferências de estudos femininos na África 18. Uma sala de aula homogênea (em termos de sexo, ao menos) que é anestesiada pelo conforto do familiar/“lar” precisa da “estranheza” que desafia e promove a auto avaliação; ela precisa do diferente, do fora do comum, que desfamiliariza ao promover perspectivas múltiplas e desafios enraizados na heterogeneidade. Uma análise da diferença entre o desenvolvimento dos estudos femininos como uma disciplina na África e no Ocidente (nos Estados Unidos, por exemplo) é útil para abordar as questões de negociação e utilidade social do conhecimento acadêmico que levantei acima. Um exemplo será suficiente. A inauguração e o desenvolvimento do Departamento de Estudos Femininos na Universidade de Makerere, em Uganda, são devidos a uma combinação de forças internas e externas – por um lado, o movimento global de mulheres e a comunidade internacional de desenvolvimento, e, por outro lado, os esforços coletivos e individuais de estudiosas e ativistas ugandenses assim como as ONGs locais como a Action for Development/Ação para o Desenvolvimento (ACFODE) e a Ugandan Association of University Women/Associação Ugandense de Mulheres Universitárias (UAUW). Sensíveis a perspectivas diversas (nacional, regional e internacional) sobre as questões femininas, o comitê da Universidade de Makerere encarregado de elaborar o currículo do programa convidou para participação especialistas da Zâmbia, do Zimbábue e dos Estados Unidos. De seu início, nos anos 1990 – com cinco membros docentes e treze estudantes de mestrado – a 1995, o departamento matriculou em seu programa de mestrado cinquenta e quatro estudantes, seis dos quais eram homens. O programa de estudo inclui quatro semestres de disciplinas, seguidos por pesquisa de campo e submissão de dissertação (Mwaka, 1996). 16 Tome, como exemplo, o provérbio Igbo, ife kwulu, ife akwudebie/quando algo se põe de pé, algo se põe a seu lado. A atitude de Sibdou Ouda durante a “seção de fotos” (de acenar para seus filhos se porem ao lado dela) é uma encenação vívida desse provérbio. 17 Conferir Nnaemeka (1998a: 5) Conferir também nota 2, acima, em que uma das participantes africanas exclamaram “diga a ela [Nussbaum] que não foi para isso que viemos aqui”. Uma participante africana fez um comentário semelhante quando a luta por supremacia irrompeu entre feministas, mulheristas e mulheristas africanas na primeira conferência Mulheres na África e a Diáspora Africana (WAAD). Conferir Nnaemeka (1998a: 31, n. 3). 18 Na primeira conferência internacional WAAD que organizei em Nsukka, Nigéria, em 1992, cerca de 30 porcento dos participantes eram homens. Aproximadamente a mesma porcentagem participou da Terceira conferência WAAD, em Madagascar. A conferência Mundo das Mulheres acontecida em Kampala, Uganda, em 2002, também atraiu muitos participantes/palestrantes homens. Na primeira conferência WAAD, algumas participantes estrangeiras reclamaram da presença de homens (conferir Nnaemeka 1998b: 363–64). Ouvi a mesma reclamação do mesmo público na conferência de Kampala, em 2002. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 55 O programa em Makerere é iniciado e mantido por um sentido forte de utilidade social do conhecimento acadêmico e a necessidade de inclusão (particularmente em termos de gênero), e essas considerações são responsáveis pelas diferenças entre esse programa e programas nos Estados Unidos. Mais importante, os programas em estudos femininos nos Estados Unidos não se iniciam como programas de pós-graduação; normalmente, eles começam como programas interdisciplinares sem titulação antes de adquirirem o status de “departamento” que os permitem conceder o título de bacharelado e subsequentemente de os títulos de pós-graduação. O Departamento de Estudos Femininos em Makerere começou com um programa de mestrado devido a sua missão de conectar o trabalho acadêmico à política, à advocacia e a outros empreendimentos do desenvolvimento. Sensíveis à utilidade social do trabalho acadêmico, o programa procurou produzir pessoal que sensibilize a sociedade sobre questões de gênero, apoiar o trabalho de ONGs e prover pessoal para o Ministério de Gênero e Desenvolvimento Comunitário. Em tudo isso, a exclusão de gênero não foi lançada como uma barreira para obstruir a colaboração significativa entre mulheres e homens. Apesar de nem todos os programas em estudos femininos na África serem moldados com o exemplo ugandense, eles normalmente arqueiam em direção à inclusão de gênero e à relevância social. As negociações que são feitas em nível de gênero e língua também são enraizadas no autóctone: 56 [p]adrões africanos de feminismo podem ser vistos como tendo se desenvolvido dentro de um contexto que vê a vida humana de uma perspectiva total, ao invés de uma dicotômica e exclusiva. Para as mulheres, o homem não é ‘o outro’, mas parte do mesmo humano. Cada gênero constitui a metade crítica que faz a inteireza humana. Nem sexo é totalmente completo em si mesmo. Cada um tem e precisa de um complemento, apesar de possuir aspectos únicos próprios (Steady, 1987: 8). A disposição e a prontidão das mulheres africanas para negociar com e contornando os homens mesmo em circunstâncias difíceis é bastante penetrante. Como a escritora camaroniana, Calixthe Beyala (1995, p. 7), coloca no início de seu livro, Lettre d’ une Africaine à ses soeurs occidentales, “Soyons clairs: tous les hommes ne sont pas des salauds” (Vamos admitir, todos os homens não são cretinos). Vou interpretar que isso significa que alguns homens são cretinos! Mas vamos nos ater ao fraseamento mais benevolente da questão elaborado por Beyala. Um outro exemplo é também de uma escritora africana francófona, Mariama Bâ, do Senegal, que dedicou seu belo romance, Une si longue lettre (1980), a muitos públicos, incluindo “aux hommes de bonne volonté” (para os homens de boa vontade). Isso, é claro, exclui os cretinos entre eles! Ao não lançar uma mortalha sobre os homens como um monólito, as mulheres africanas são mais inclinadas a buscar e trabalhar com os homens alcançando objetivos estabelecidos. Políticas sexuais eram enormes no ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 feminismo ocidental cerca de duas décadas atrás, mas seria impreciso sugerir que as políticas não existem mais; elas não são passé. Na minha perspectiva, o feminismo ocidental abaixou o volume quanto às políticas sexuais, mas os resíduos são ainda uma força motriz. A resistência em instituições nos Estados Unidos (incluindo a minha) em mudar programas de estudos femininos para programas de estudos de gênero está enraizada principalmente no argumento de que as questões femininas serão relegadas ao banho-maria em programas de estudos de gênero19. Não vejo um argumento similar florescendo na África20. A língua do engajamento feminista na África (colaborar, negociar, comprometer) vai de encontro à língua do engajamento e do conhecimento acadêmico feminista ocidental (desafiar, romper, desconstruir, implodir etc.), como exemplificado no excelente livro de Amy Allen (1999) sobre a teoria feminista, na qual a autora afirma que as feministas estão interessadas em “criticar, desafiar, subverter e fundamentalmente em derrubar os eixos múltiplos de estratificação que afetam as mulheres” (Allen, 1999: 2). O feminismo africano desafia por meio da negociação, da acomodação e do compromisso. A negociação com espaços privados de Sibdou Ouada é indicativa das negociações das mulheres africanas com a prática cotidiana. As mulheres africanas estão trabalhando para a mudança social construída sobre o autóctone ao definir e moldar seus conflitos feministas com deferência para imperativos locais e culturais. Por exemplo, quando informadas de que alguns governos estaduais se recusaram a implementar a política governamental federal de dar subsídios habitacionais para servidoras públicas casadas, Ifeyinwa Nzeako, a Presidente do Nigerian National Council of Women’s Societies/Nacional do Conselho Nacional Nigeriano de Sociedades de Mulheres (NCWS), ao invés de brigar sobre a desigualdade de gênero na alocação dos benefícios adicionais, emitiu uma declaração apontando que políticas discriminatórias ferem as mulheres ao privá-las dos benefícios para sustentarem seus filhos. Sabendo como negociar espaços culturais, a liderança do Conselho deslocou o argumento da igualdade de gênero para o bem-estar familiar/das crianças e atingiu seus objetivos. Em Burquina Faso, a prática do “ je retiens/eu me contenho” ajudou as mulheres a levantar capital inicial para empreendimentos empresariais21. 19 Algumas instituições negociaram um acordo – um programa de estudos de gênero e femininos. 20 Um dos centros mais proeminentes na África (em Cape Town, África do Sul) para o estudo de mulheres assumiu o nome de Instituto Africano de Gênero, sem ambiguidades. 21 Essa é uma prática pela qual as mulheres retêm parte de sua economia doméstica para construir capital suficiente para investir em um empreendimento de negócios que beneficiará a elas e a suas famílias. Primeiro, elas negociam com/contornando o patriarcado para levantar capital, e, depois, elas negociam espaços privados e públicos ao colocarem o capital em uso. Muitas das mulheres investem dinheiro em um quiosque ou uma loja de frente a suas casas o que lhes permite serem donas de casa e mulheres de negócios simultaneamente. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 57 Conclusão: cruzar fronteiras e o caminhar do camaleão Desfiguraram o legado dos anos 1960… o que eu quero dizer com os legados dos anos 1960 em termos políticos tradicionais são ativismo político e engajamento em nome de igualdade, democracia e tolerância. —Wini Breines (1996: 114) 58 O negofeminismo na África está vivendo aqueles legados na teoria, na prática e nas questões de políticas. O engajamento das mulheres africanas ainda nutre o compromisso e a esperança necessários para construir uma sociedade harmoniosa. Quanto à teoria, Barbara Christian (1995) corretamente observou que pessoas de cor teorizam de modo diferente. Mas pode a teoria feminista criar o espaço para o desdobramento da teorização “diferente” não como um engajamento isolado fora da teoria feminista, mas como uma força que pode ter um poder desfamiliarizador sobre a teoria feminista? Em outras palavras, ver a teorização feminista por meio dos olhos da “outra”, do “outro” lugar, por meio da visão de mundo da “outra” tem a capacidade de desfamiliarizar a teoria feminista como a conhecemos e ajudá-la não apenas a interrogar, compreender e explicar o não-familiar, mas também a desfamiliarizar e refamiliarizar o familiar de maneiras mais enriquecedoras e produtivas. Assim, o foco será não no que a teoria feminista pode fazer em termos de explicar outras vidas e outros lugares, mas em como a teoria feminista é e pode ser construída. Nesta instância, os ocidentais são guiados através de fronteiras de modo que possam cruzar de volta enriquecidos e desfamiliarizados e prontos para fazer o familiar de uma nova maneira. Como lidamos com a teorização emanando de outros centros epistemológicos no chamado terceiro mundo? Como entramos em acordo com a multiplicidade de centros ligados por coerência e deciframento e não perpetuamente interrompidos por diferenças infinitas? Em minha percepção das questões levantadas neste artigo sobre intervenção, cruzamento de fronteiras, turfism, interseccionalidade, compromisso e acomodação, concluirei com um conselho de meu tio-avô. Na véspera de minha partida para cursar a pós-graduação em obodo oyibo (a terra dos brancos), meu tio-avô me chamou em seu obi (quarto privado) e entoou essa nota de cautela: “Minha filha”, ele disse, “quando você for para obodo oyibo, ande como o camaleão”22 . De acordo com meu tio-avô, o camaleão é um animal interessante para se observar. As it walks, it keeps its head straight but looks in different directions. Ele não se desvia de seu objetivo e fica mais sábio por meio do conhecimento recolhido das diferentes perspectivas que 22 É importante observar que ele não me aconselhou a ser como o camaleão, mas, ao invés disso, a caminhar como o camaleão. A indeterminação implicada em ser como um camaleão não está perdida para o meu povo (Igbo) que denuncia o comportamento de camaleão em humanos – ifu ocha icha, ifu oji ijie (quando você vê branco, você se torna branco; quando você vê preto, você se torna preto). Ao me aconselhar a caminhar como um camaleão, meu tio-avô leva a metáfora do camaleão a direções diferentes. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 absorve ao longo do caminho. Se vir uma presa, ele não salta sobre ela imediatamente. Primeiro, ele lança sua língua. Se nada acontecer com sua língua, ele avança e agarra sua presa. O camaleão é cauteloso. Quando chega a um novo ambiente, toma a cor do ambiente sem dominá-la. O camaleão se adapta sem se impor. Do que quer que escolhamos chamar nosso feminismo é prerrogativa nossa. No entanto, nessa jornada que é o engajamento feminista, precisamos caminhar como o camaleão – orientadas pelo objetivo, cautelosas, obsequiosas, adaptáveis e abertas para visões diversas. Negofeministas dariam atenção ao conselho de meu tio-avô. Estudos Femininos/Franceses Universidade de Indiana, Indianápolis Referências bibliográficas ABU-LUGHOD, Lila. (1991). “Writing against Culture.” In: Recapturing Anthropology: Working in the Present, ed. Richard G. Fox, pp. 137–62. Santa Fe, N.M.: School of American Research Press. ______.. (1993) Writing Women’s Worlds: Bedouin Stories. Berkeley: University of California Press. AKE, Claude. (1988). “Building on the Indigenous.” In: Recovery in Africa: A Challenge for Development Cooperation in the 1990s, ed. Pierre Frühling, pp. 19–22. Stockholm: Swedish Ministry of Foreign Affairs. ALCOFF, Linda Martín. 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XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 33-62 Revolução do feminismo negro!1 RESUMO Este texto, que serviu de introdução a uma coletânea de textos fundadores do feminismo negro estadunidense, faz um percurso historiográfico das diversas etapas desse movimento, as chamadas “ondas”, desde a primeira delas, surgida na década de 1850 e promovida pelos movimentos de abolição da escravatura nos Estados Unidos, passando pela segunda, representada pelas grandes correntes ativistas e teóricas da década de 1970, até a atual “terceira onda”, em que se faz um questionamento crítico da heteronormatividade ainda muito presente nas primeiras fases do feminismo que foram, essencialmente, feminismos brancos. A autora faz uma detalhada análise crítica da terminologia que, desde sempre, tem sido empregada para qualificar ou, antes, desqualificar a mulher negra na sociedade estadunidense, com a criação de pesados estereótipos a respeito da sexualidade supostamente exacerbada, não só do homem negro, mas principalmente da mulher negra. Elsa Dorlin passa em revista as importantes contribuições do coletivo Combahee e de autoras como Laura Alexandra Harris, Beverly Guy-Shefall, Patricia Hill Collins, Kimberly Springer, Michele Wallace, Barbara Smith, Audre Lorde, Hazel Carby, Angela Davis e bell hooks. Palavras chave: feminismo; feminismo negro; Estados Unidos. ABSTRACT This paper, which was an introduction to an anthology of seminal texts of the American Black feminism, draws a historiographical trajectory of the many phases of this movement, the so-called “waves”, since the first one, in the 1850’s, when women stuggled for the abolition of slavery in the US, through the second wave, in the 1970’s, with its great activist and theoretical currents, until the present day’s third wave, in which the heteronormativity still present in the precedent phases, essentially white women’s feminism, is questioned. The author presents a detailed critical analysis of the terminology that, since the beginning, has been used to qualify or, rather, disqualify the Black women in the American society, though heavy stereotypes about the supposedly abnormal sexuality of not only Black men but especially Black women. Elsa Dorlin reviews the important contributions of the Combahee River Collective and of authors such as Laura Alexandra Harris, Beverly Guy-Shefall, Patricia Hill Collins, Kimberly Springer, Michele Wallace, Barbara Smith, Audre Lorde, Hazel Carby, Angela Davis e bell hooks. Keywords: feminism; Black feminism; United States. 1 Texto introdutório da obra Black Feminism. Anthologie du féminisme africain-américain, 1975-2000 (2008), organizado por Elsa Dorlin. Agradecemos à autora por ceder os direitos de tradução do presente texto. Tradução brasileira de Dennys Silva-Reis e Marcos Bagno. Elsa Dorlin Filósofa francesa e professora Universitária. Dentre suas obras, pode-se citar: Sexe, genre et sexualités : introduction à la théorie féministe (2008), La matrice de la race : généalogie sexuelle et coloniale de la nation française (2006) e Se défendre : une philosophie de la violence (2017). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 63 *** Esta coletânea de textos do pensamento e do movimento feministas africanosamericanos (1975-2000) é a primeiro do gênero na França. Enquanto nos estudos e nos movimentos feministas franceses contemporâneos as referências ao Black feminism têm se tornado cada vez mais frequentes desde o início dos anos 2000 (Bessière, 2003; Dorlin, 2003/2004; Cahiers du Genre, 2005; Poiret, 2005; Benelli, Delphy, Falquet, Hamel, Hertz, Roux, 2006), a ausência de tradução dos textos fundamentais dessa corrente limitava seu acesso. Passagem agora obrigatória das problemáticas feministas, de gênero e de sexualidade na França, o corpus do feminismo africanoamericano, como o do feminismo chicana2 ou indiano (Haase-Dubosc, John, Marini, Melkote, 2003), constitui um recurso teórico e político indispensável, no momento em que a questão da articulação entre sexismo e racismo caracteriza, entre outras coisas, aquilo que convém chamar de terceira onda do feminismo francês (Bessin, Dorlin, 2005/2006). Se o feminismo negro norte-americano se tornou o hóspede incontornável de nossos textos universitários, e até de nossos panfletos, de nossos imaginários teóricos e políticos, em que pé está o feminismo negro “francês”? Assim, as referências ao feminismo africano-americano evidenciam ao mesmo tempo a ausência, a ignorância e a emergência de um feminismo negro na França3. 64 Do uso correto da tradução A expressão Black feminism, traduzida nos textos por “ féminisme Noir” [“feminismo negro”], recobre o pensamento e o movimento feministas africanoamericanos na medida em que diferem do feminismo estadunidense “em geral”, precisamente criticado e reconhecido por seu “solipsismo branco” (Rich, 1979), herdeiro a contragosto da famosa “linha de cor” produzida pelo sistema escravagista, e em seguida segregacionista ou discriminatório, ainda em vigor na sociedade americana contemporânea. Ao contrário dos textos, se o título deste volume conservou a expressão Black feminism tal e qual, como provisoriamente intraduzível, foi porque nos pareceu importante apresentar primeiramente o feminismo africanoamericano em sua especificidade da história política da qual ele emergiu, manter em sua língua sua força de interpelação, frente a uma sociedade anglo-saxã dividida pelo racismo: “White woman, listen!” – “Mulher branca, escute!” (Carby, 2000). O feminismo negro representou uma verdadeira revolução política e teórica para o conjunto dos feminismos norte-americanos e, em menor medida, europeus. 2 Ver os trabalhos de Sabine Masson ou de Jules Falquet, por exemplo. 3 O coletivo das Feministas Indígenas, por exemplo, abriu seu manifesto, lançado em janeiro de 2007, sob “o alto amadrinhado de Solitude, heroína da revolta dos escravos guadalupenses contra o restabelecimento da escravidão por Napoleão”: http://www.indigenes-republique.org/spip. php?article667 (acesso em dez. 2007). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 Em matéria de tradução, um precedente parece se impor de imediato ao olhar do pensamento feminista e de suas travessias transatlânticas: o termo genre [“gênero”]. No âmbito do feminismo francês, sabe-se o quanto o termo gender suscitou de resistências, de debates, de polêmicas para encontrar uma tradução (Varikas, 2003) – genre –, que numerosas intelectuais e militantes, e quase sempre com razão, consideravam há quinze anos ainda como uma eufemização de “sexo” ou “relações sociais de sexo”. Ora, o conceito de gênero, graças a um verdadeiro processo de aclimatação política e cultural, se tornou uma ferramenta crítica que, ao deslocar ou ao reformular as problemáticas e as agendas feministas (a distinção entre sexo e gênero, a questão das masculinidades, a relação entre os gêneros e as sexualidades, enfim, a articulação entre os estudos sobre o gênero e os estudos pós-coloniais), acompanhou tanto a institucionalização de um campo de estudos feministas na França – sem dúvida ainda demasiadamente precário – quanto uma renovação das práticas e engajamentos feministas. No meio universitário ou, mais amplamente, intelectual, hoje em dia é frequentemente em nome de uma pretensa “especificidade francesa” que o gênero permanece ainda, para algumas/alguns, como um termo intraduzível porque sem objeto no contexto político, histórico e social francês. O gênero seria um americanismo que importou para a França o “assédio sexual”, “a guerra do sexo” (prostituição, pornografia etc.), ou outros debates nocivos aos olhos do comércio refinado dos sexos “à francesa”. É que a chegada do gênero, longe de tomar o lugar das outras ferramentas críticas que permitem a análise e a contestação das lógicas de dominação heterossexistas, marca a historicidade de um pensamento e de um movimento feministas em suas necessárias renovações geracionais (não tanto no sentido de faixas etárias quanto daquilo que se poderia chamar de “gerações de combate”). Assim, ao dar conta da chegada das problemáticas do Black feminism na França, e ao propor alguns de seus textos fundamentais, esta obra marca a passagem do intraduzível ao traduzível, do impensado ao pensável. A tradução nunca é uma simples importação semântica, ela também permite colocar novas questões ou deslocar os próprios termos de questões antigas nas quais tropeçávamos. Na tradução “ féminisme Noir” existe, portanto, sem dúvida uma parte de deformação da história e da especificidade do Black feminism estadunidense, que participa do processo de aculturação de todo pensamento: o que tomamos, retiramos e reconstituímos dos questionamentos do feminismo africano-americano é sempre finalizado por um questionamento aqui e agora. Longe de “exoticizar” essa corrente do feminismo, longe de colocá-lo à distância, interpondo entre ele e o feminismo francês a estrangeiridade de uma língua, trata-se bem mais de marcar a ausência de um pensamento e de um movimento comparáveis na França. Não houve “feminismo negro” na França. Essa constatação não prejulga a atualidade do feminismo, muito pelo contrário. Como se tem colocado e se coloca a questão do sujeito político do movimento feminista francês? (Lépinard, 2005) Quem é este “Nós, as mulheres” do movimento? Ele é “branco”? É ignorante de sua própria “branquitude”? Em que termos emergem as questão da articulação do sexismo e do racismo na França? O que poderia significar ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 65 66 um “feminismo negro”: um feminismo africano? Um feminismo antilhano?... Raras contribuições têm pontuado essas três últimas décadas na matéria. Em 1978 se publica o livro de Awa Thiam, La Parole des négresses, pouco citado nos trabalhos de estudos feministas contemporâneos na França. Awa Thiam (1978) trata ali da poligamia, da clitoridectomia e da infibulação, da iniciação sexual ou do embranquecimento da pele. Num capítulo consagrado a “Feminismo e revolução”, ela lembra o quanto a analogia entre sexismo e racismo teve como consequência invisibilizar as mulheres negras, considerando que elas se encontram numa tripla exploração (sexismo, racismo e relação de classe). Pouco crítica em relação aos movimentos feministas europeus em geral, e francês em particular, ela lembra, entretanto, que a condição das mulheres africanas difere da das mulheres dos países industrializados. Nos anos 1970, a questão das mulheres negras (designando as “mulheres africanas”) permanece um problema longínquo, e raras são as referências às mulheres antilhanas (de ultramar ou da metrópole): a exceção notável é a carta do MLAC (Mouvement pour la liberté de l’avortement et de la contraception [Movimento pela Liberdade do Aborto e da Contracepção]) que, em meados da década de 1970, reivindica “a supressão das desigualdades de uma contracepção que é reprimida na metrópole, em particular para as menores, e favorecida por uma política racista e malthusiana nos departamentos e territórios ultramarinos” (Charte du MLAC). No que diz respeito às mulheres antilhanas, embora existam alguns trabalhos em estudos feministas sobre a história delas ou sua condição (Alibar, Lembey-Boy, 1981/82; Gautier, 1985; Nouvelles Questions Féministes, 1985), não existe pesquisa recente sobre os movimentos femininos ou feministas nas Antilhas, na Guiana ou na ilha da Reunião4. Redes caribenhas – de ação ou de pesquisa – feministas emergem, entretanto, nestes últimos anos, principalmente sob o impulso das ilhas anglófonas5. Se nos voltamos para a literatura antilhana, uma figura como Maryse Condé se recusa terminantemente a ser qualificada de feminista. No entanto, autoras como Maryse Condé, Simone Schwartz Bart, Lucie Julia, Gisèle Pineau trabalharam constantemente personagens de mulheres que participam de uma verdadeira consciência feminista antilhana que nos resta ainda tanto por descobrir – aqui na metrópole – quanto por (re)construir nos departamentos ultramarinos. Nas fontes do feminismo africano-americano A história do feminismo africano-americano está indissociavelmente marcada pela história da escravidão norte-americana, cuja especificidade é o desenvolvimento 4 A maioria dos movimentos de mulheres nos departamentos e territórios ultramarinos foram historicamente conduzidos pelo Partido Comunista. Podemos citar, por exemplo, Gerty Archimède, primeira advogada negra, deputada de Guadalupe em 1945, fundadora da União das Mulheres de Guadalupe. 5 Podemos citar o CAFRA (Association caribéenne pour la recherche et l’action féministes), http:// www.cafra.org/?lang=fr (acesso dez. 2007). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 de um sistema plantocrático de envergadura no solo mesmo dos Estados Unidos, diferentemente dos Estados escravagistas europeus modernos (França, Grã-Bretanha, Espanha, Dinamarca, Holanda). Essa diferença sozinha poderia explicar em parte por que o feminismo negro se desenvolveu principalmente nos Estados Unidos e não na Europa; salvo que, como veremos nesta coletânea com o texto de Hazel Carby (2000), o caso da Grã-Bretanha dá testemunho da emergência de um feminismo negro na Europa, comparavelmente herdeiro da experiência da escravidão. Contudo, a característica do feminismo negro dos Estados Unidos se deve à genealogia mesma das mobilizações feministas no século XIX: genealogia inextricavelmente ligada aos movimentos abolicionistas. A partir dos anos 1830, nos Estados Unidos, muitas associações femininas se mobilizaram ativamente em favor da abolição da escravidão6, entre as quais a Ladie’s New York Anti-Slavery Societies (fundada em 1835) e a Female Anti-Slavery Society (fundada em 1833). Essa importante sociedade – nascida da American AntiSlavery Society, com base em Boston e na Filadélfia – enuncia em seus estatutos que é composta de mulheres brancas e negras, membros de diversas igrejas (quacres, presbiterianas, batistas, unitaristas etc.) (Yellin, Horne, 1994; Bolt, 2004). Muitas de suas sócias participam do famoso Underground Railroad7, rede clandestina que organizava a fuga dos escravos dos estados sulistas para o Norte do país. As mulheres engajadas na luta abolicionista fazem, portanto, o aprendizado da ação política – reuniões públicas, tomadas de palavra, ações diretas, panfletos, cartazes – e elaboram progressivamente reivindicações feministas: é da mobilização abolicionista que nasceu o movimento sufragista estadunidense. Logo em seguida, muitas associações decidem conduzir uma única e mesma campanha pelo sufrágio dos negros e pelo sufrágio das mulheres. Durante o primeiro comício pelos direitos das mulheres após a Guerra de Secessão, em maio de 1866, os delegados da Convenção pelos Direitos das Mulheres decidem criar uma Associação pela Igualdade de Direitos que lutaria ao mesmo tempo pelo direito de voto dos negros e pelo direito de voto das mulheres. No entanto, essa estratégia é bem depressa contestada por uma parte dos militantes abolicionistas e feministas. Como aceitar que as esposas dos cidadãos “da raça anglo-saxã”, segundo os termos da feminista Elizabeth C. Stanton, fossem relegadas a mais baixo que os negros, ex-escravos, ou que os imigrantes irlandeses, recémdesembarcados? Algumas grandes associações feministas se fraturam e se dividem então sobre a questão perversa da preeminência “legítima” das mulheres e esposas “brancas” sobre os negros e por conseguinte sobre as mulheres “negras”. Desde o início dos anos 1860-1870, Susan B. Anthony [outra grande figura do feminismo] se apercebeu do potencial da causa do sufrágio feminino para atrair as mulheres do Sul. Por 6 Em 1807, os Estados Unidos proclamaram a abolição do tráfico negreiro e, em 1865, a da escravidão. 7 Uma das organizadoras mais importantes do Underground Railroad é Harriet Tubman (18201913). Nascida na escravidão, ela conseguiu fugir em 1849 e se tornou uma das figuras do movimento abolicionista (Clinton: 2004). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 67 oportunismo, menosprezando toda lealdade e justiça, ela pediu ao apoiador feminista de sempre, Frederik Douglas, que não comparecesse à convenção da Associação Nacional Americana para o Sufrágio das Mulheres [NAWSA], que se realizava em Atlanta (Hooks, 2000: 377).8 Em 1869, a Associação pela Igualdade dos Direitos realizava sua assembleia anual – de fato, será a última – e adotava finalmente a 14ª emenda estipulando que só os cidadãos masculinos tinham direito de votar. Mesmo tendo sempre defendido o sufrágio feminino, Frederik Douglas finalmente se aliou à posição de que o direito de voto dos negros era prioritário. Para ele, tratava-se de uma questão de vida ou de morte: Quando as mulheres forem arrancadas de suas casas, simplesmente porque são mulheres; quando forem penduradas em postes; quando seus filhos forem raptados para terem suas cabeças esmagadas na calçada; quando forem insultadas em todas as esquinas; quando correrem o risco a todo momento de ver suas casas incendiadas desabar sobre suas cabeças; quando se impedir que seus filhos entrem na escola, então será urgente outorgar-lhes o direito de voto (DAVIS, 1983: 103). 68 Exatamente do mesmo modo como, após a Guerra de Secessão, inúmeros republicanos que tinham defendido o sufrágio feminino voltam atrás em sua postura e afirmam que os negros são “prioritários”, já que estes representavam dois milhões de votos potencialmente a favor daquele partido. Por isso, os democratas do Sul, majoritariamente racistas, tenderam a apoiar as associações feministas como as de Susan B. Anthony para se contrapor ao apoio dos republicanos ao voto dos negros. Se Elizabeth Stanton e Susan B. Anthony tivessem analisado mais seriamente a situação política do pós-guerra, teriam talvez refletido antes de associar o célebre George Francis Train à sua campanha. ‘A mulher primeiro, o negro por último, eis meu programa’, este era o slogan daquele democrata racista e cínico. Quando Elizabeth Stanton e Susan B. Anthony encontraram Train durante a campanha de 1867 no Kansas, ele se ofereceu para cobrir todas as despesas de uma grande turnê de conferências comuns (DAVIS, 1983: 102).9 8 Frederik Douglas (1817-1895): nascido escravo, tornou-se jornalista e foi uma das maiores figuras do movimento de emancipação e do direito do voto dos negros, do qual foi o orador (Terborg-Penn, 1998). 9 Aqui se vê bem, na fala de Train, de que modo “mulheres” significa apenas as mulheres brancas e, igualmente, como as “negras” parecem não ter nenhuma identidade de gênero. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 A questão do racismo no interior dos grupos e associações feministas é complexa. Ela tem a ver simultaneamente com a extrema pregnância da ideologia segregacionista dos estados do Sul, e de sua difusão no conjunto da sociedade, mas também do jogo perigoso de algumas líderes do movimento que, na virada do século XIX para o XX, adotam uma estratégia política que consiste em reunir as mulheres do Sul em detrimento das mulheres descendentes de escravas, embora a maioria das representantes feministas dos clubes e grupos de mulheres africanas-americanas10 tivessem estado na origem do movimento. Excluídas ou proibidas nos clubes de mulheres “brancas”, figuras tão importantes quanto Mary Church Terrell, presidenta da Associação Nacional das Mulheres de Cor (fundada em 1896), ou Josephine Ruffin, vice-presidenta da mesma associação, representante da organização New Era Club e editora do primeiro jornal feito por e para mulheres africanas-americanas (Woman’s Era), são não somente alvo do racismo de certas militantes feministas, como também do sexismo destas. Numerosas mulheres pertencentes a associações sulistas pelo sufrágio das “mulheres” (entenda-se: só das mulheres “brancas”) se recusam efetivamente a se aliar às militantes negras, evocando a moralidade duvidosa destas e mobilizando, por conseguinte, um topos da ideologia sexista e racista moderna que tem autorizado algumas das práticas mais violentas dessa história. A fabricação de uma norma da feminidade se efetuou, portanto, em oposição às mulheres negras, consideradas lúbricas, violentas, toscas, “mães ruins” ou “matriarcas” abusadoras. Assim, diante de um jornalista do Chicago Tribune, a presidenta da Federação Geral dos Clubes de Mulheres, Mrs. Lowe, justifica a decisão de sua federação de não aceitar Josephine Ruffin entre seus membros, nestes termos: “Mrs. Ruffin pertence a seu próprio povo. Lá ela será uma líder e poderá fazer muito bem, mas entre nós só poderá criar problemas” (Hooks, 2000: 379). A categoria política “mulheres”, ou seja, a do sujeito político do feminismo, implode portanto literalmente sob o efeito do racismo de algumas militantes feministas. Ao considerar que as “mulheres” seriam prioritárias com relação aos negros, supõe-se que todas as mulheres são “brancas” e que todos os negros são “homens”: All the women are white, all the Blacks are men, but some of us are brave...11. No início do século XX, nos Estados Unidos, o discurso feminista dominante sustentado pelas principais dirigentes das grandes associações e federações pelo sufrágio feminino fez nitidamente a escolha pela exclusão das mulheres negras da categoria das ladies, negando-lhes assim os privilégios da feminidade, fazendo desta uma essência, uma norma racizada – todas as mulheres são “brancas”. Pois é justamente em nome dessa feminidade branca, ou melhor, dessa norma racizada da feminidade, que os defensores do sufrágio feminino vão combater pelos direitos civis. As esposas modelos da classe dirigente encarnam então o sujeito 10 Utilizo a expressão “africanas-americanas” e não “afro-americanas” segundo o uso contemporâneo. Há anos, de fato, “afro-americanas/os” tem sido amplamente criticado pelas/os intelectuais ou militantes negras/os, pois esta expressão tende a minimizar a herança e a identidade africanas em proveito da herança e da identidade americanas. 11 É o título de uma obra fundadora dos estudos feministas negros estadunidenses organizados por Gloria Hull, Patricia Bell Scott, Barbara Smith All the Women are White, all the Blacks are Men but Some of Us are Brave: Black Women’s Studies (1982). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 69 70 do feminismo, esta mulher considerada doce, de moral irrepreensível, pia, sensível, pudica e maternal. Ocultado por muito tempo, esse episódio da históriA [herstory]12 das mulheres e do feminismo estadunidense se revelou um ponto de tensão entre as feministas da segunda onda. Nos anos 1970, o princípio de sororidade que anima o Women’s Lib é posto em xeque pelas feministas africanas-americanas que denunciam a ignorância ou a indiferença do movimento para com a condição das mulheres de cor e sua experiência da opressão patriarcal, que é estreitamente condicionada por um racismo ligado, contudo, à história do movimento feminista. Em 1969 surge um dos textos fundadores do feminismo negro estadunidense, “An argument for Black women’s liberation as a revolutionary force”, redigido por Mary Ann Weathers. Ali estão enunciadas as duas grandes problemáticas que animaram o movimento durante os anos 1970 e 1980: a da relação entre o movimento negro e o movimento feminista branco – e a questão do separatismo feminista ou, ao contrário, do separatismo “racial”, da lealdade com os homens negros que dele deriva –; e a do mito do “matriarcado negro” e do que se poderia chamar de estereótipos da “feminidade negra indigente”13. As duas problemáticas, evidentemente, estão estreitamente ligadas já que o mito do “matriarcado negro” e os estereótipos da “feminidade negra indigente”, tal como foram fomentados e veiculados pela ideologia racista, mas também por um certo discurso feminista ou anti-racista, desde o período escravagista e segregacionista até hoje, têm permitido manter o sexismo e o racismo numa lógica comum de efetuação e de perpetuação. Esse texto fundador de Weathers (1969) é particularmente importante pois proclama claramente uma opressão comum das mulheres, brancas, “negras, índias, mexicanas, portorriquenhas, orientais”, ricas ou pobres... É em nome dessa opressão comum que as mulheres podem “construir e transformar a força revolucionária que começamos a acumular”14. A sororidade fundadora do feminismo é assim articulada à mobilização de todas as mulheres contra o sexismo. Ora, essa sororidade será amplamente questionada por muitos textos posteriores, principalmente pelo Black Women’s Manifesto ou pelos escritos de bell hooks. Uma das hipóteses para explicar essa evolução é a análise mesma da relação de dominação sofrida pelas mulheres negras. Ao passo que Weathers (1969) pensa em termos de “opressões múltiplas” (de sexo, de cor, de classe etc.), que se acrescentam uma à outra, o que lhe permite concluir que o sexismo é a relação de dominação comum a todas as mulheres, as análises posteriores criticarão essa abordagem aditiva, em prol de outros modelos explicativos: o Combahee River Collective falará, por exemplo, de 12 A tradução de herstory por históriA tenta dar conta do jogo de palavras sobre history e herstory, maneira irônica para as feministas anglófonas de “se apropriar” de sua história (Sochen, 1974). 13 Voltarei a essas duas temáticas mais demoradamente na última parte deste texto. 14 Mary Ann Weathers, “An argument for Black women’s liberation as a revolutionary force”, No More Fun and Games: A Journal of Female Liberation, v. 1, n. 2, 1969; disponível on-line no site da biblioteca universitária da Duke University, que reuniu numerosos arquivos do movimento de libertação das mulheres estadunidenses, entre os quais muitos documentos do movimento feminista negro: http:// www.scriptorium.lib.duke.edu/wlm/fun-games2/argument.html (acesso em dez. 2007, tradução minha). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 “opressões simultâneas” e pregará uma política de coalizão, em vez de uma sororidade de princípio, entre feministas negras e feministas brancas, entre mulheres negras e homens negros, etc. Em 1970 se publica o texto soco-no-estômago do coletivo Third World Women’s Alliance, Black Women’s Manifesto: “A mulher negra está exigindo um novo conjunto de definições de mulher e um reconhecimento dela mesma como cidadã, companheira e confidente, e não uma vilã matriarcal ou um instrumento de fazer bebês” (Third World Women’s Alliance, 1970). A partir daí, o feminismo negro se vincula à experiência vivida da dominação das mulheres negras e levanta a questão de sua autodeterminação: para uma parte das feministas negras, ficam tensas as relações com as feministas brancas assim como com os partidos e os movimentos negros, pois elas consideram que, num caso como no outro, as mulheres negras permanecem numa posição de heteronomia absoluta, perfeitamente descrita pelo relato de Michele Wallace (1982), traduzido neste volume: “Uma feminista negra em busca de sororidade”. Narrando sua infância, sua adolescência e seus anos de universidade, Wallace descreve as injunções contraditórias às quais estavam submetidas as meninas e as mulheres negras nos anos 1960 e 1970: as normas estéticas da feminidade (penteado afro ou cabelos alisados e desfrisados, e o temor da chuva) – e da masculindade –, os códigos sexuais patriarcais, os engajamentos políticos dilacerados entre os movimentos negro e feminista, o sexismo e o racismo brancos ou negros... Em 1973, em Nova York, feministas africanas-americanas julgam necessário formar um grupo separado, que se tornará a National Black Feminist Organization (NBFO), que desaparece já em 1975. Por Black feminism não se deve entender as feministas “negras”, mas uma corrente de pensamento político que, no âmbito do feminismo, tem definido a dominação de gênero sem jamais isolá-la das outras relações de poder, a começar pelo racismo ou pela relação de classe, e que podia compreender, nos anos 1970, feministas “chicanas”, “nativas americanas”, “sino-americanas” ou do “terceiro mundo”15. Esse ponto de vista dá lugar a lutas, a uma apreensão das relações de força e a uma construção da identidade política e feminista, diferentes das de outros grupos. Um dos exemplos entre os mais emblemáticos é provavelmente o do Combahee River Collective, cujo manifesto está traduzido neste volume16. Trata-se de um dos grupos mais ativos do feminismo negro dos anos 970. Foi fundado em Boston em 1974 principalmente por Barbara Smith, Cheryl Clarke e Gloria Akasha Hull, todas feministas e/ou militantes pelos direitos civis, pelo nacionalismo negro ou pelo Black Panther Party (Joseph, 2006). O texto se abre com uma referência às grandes figuras femininas do movimento abolicionista: Sojourner Truth, Harriet Tubman, Frances E. W. Harper, Ida B. Welles Barnett e Mary Church Terrell... inscrevendo nitidamente a gênese do feminismo negro na históriA das mulheres escravas, exescravas e descendentes de escravas (Collins, 1989). 15 Todas as mulheres sendo incluídas na categoria de “colored women”. 16 Podemos consultar também Falquet, Lada, Rabaud (2006) e Falquet (2006). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 71 72 Coletivo feminista lésbico radical (Smith, 1983), o Combahee River Collective abandona a NBFO por volta de 1974, considerando a organização “feminista-burguesa” demais (Wallace, 1982), mas também se distancia de outros grupos de lésbicas em razão de uma divergência de fundo sobre a questão do patriarcado e da chamada ao separatismo. Segundo o Combahee River Collective, o separatismo lésbico não é nem “uma análise, nem uma estratégia política viáveis” (Wallace, 1982), diante da situação das lésbicas africanas-americanas, precisamente em razão de sua experiência do racismo. Solidárias da comunidade negra à qual pertencem e cuja experiência das discriminações racistas diárias compartilham, elas não negam o sexismo dos homens negros, mas consideram que a história da escravidão e da segregação teve efeitos sobre a construção normativa da feminidade e da virilidade, em particular sobre a dos homens negros, e portanto sobre a própria relação de gênero. Para o Collective, o separatismo lésbico define a opressão das mulheres como essencialmente de gênero, negando por isso mesmo os fatores de classe e a estrutura racista da sociedade que modelam e moldam a discriminação sexista (Wallace, 1982). Dizer que um escravo, vivendo no início do século XIX, ou que um negro do Mississippi nos anos 1940, é ativo, que detém o poder, que é autônomo e que a sociedade é feita à sua imagem, é algo que parece eminentemente problemático (Spelman, 1988). Para o Combahee River Collective, proclamar que as mulheres são discriminadas porque são “mulheres” é algo que tem a ver com um privilégio de mulheres “brancas”, já que historicamente as mulheres “negras” não foram, propriamente falando, consideradas como “verdadeiras” mulheres e sim, bem mais, como “babás”, “matriarcas”, “Sapphires”17a, “putas”, “sapatonas caminhoneiras”. O texto do Combahee rejeita, portanto, qualquer essencialização, qualquer biologização (do sexo, da cor) das “políticas de identidade”, em prol de uma análise antes de tudo político-econômica dos/das dominados/ dominadas. A política de identidade feminista africana-americana do Combahee exemplifica, neste sentido, aquilo que Patricia Hill Collins chamará alguns anos mais tarde de “ponto de vista das mulheres negras”. Referindo-se à corrente das “epistemologias do ponto de vista” ou do “posicionamento”, tal como desenvolvido pelas feministas marxistas Hilary Rose ou Nancy Hartstock, Collins propõe em 1989 uma contribuição, que permanece como um dos textos principais das “epistemologias do ponto de vista”: Este ponto de vista é caracterizado por duas problemáticas estreitamente ligadas. Primeiramente, o status econômico e político das mulheres negras as confronta a uma série de experiências que as leva a perceber a realidade material segundo uma perspectiva diferente da dos outros grupos. O trabalho, remunerado ou não, que elas efetuam, os tipos de comunidades em que vivem, os diferentes modelos de relações que elas mantêm com outrem constituem particularidades que sugerem que as africanas-americanas vivem uma outra realidade que não a 17a Sapphire (literalmente, “safira”): estereótipo muito presente na sociedade estadunidense para representar as mulheres negras como “naturalmente” atrevidas, grosseiras e mal-humoradas (NT). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 daquelas e daqueles que não são negras/negros nem mulheres. Em segundo lugar, essas experiências particulares estimulam uma tomada de consciência feminista negra específica. Em outros termos, não somente um grupo subordinado faz a experiência de outra realidade que não a do grupo dominante, como também pode interpretar essa realidade de outra maneira (Collins, 1989: s/p). As grandes problemáticas Os dez anos que separam a publicação do manifesto do Combahee River Collective (1979) da do texto de Patricia Hill Collins (1989) constituem um momentochave no desenvolvimento do feminismo negro, no sentido de que ele passou de uma lógica de grupo de consciência à lógica de grupo de reflexão, de estudo e de ação (segundo uma lógica de coalizão, principalmente sobre a questão da violência feita às mulheres negras (Falquet, 2006)). “Grupo de consciência” ou de fala, o Combahee permitiu, por exemplo, que as feministas negras engajadas se reapropriassem de sua própria identidade na solidariedade, pela autodeterminação, pela autoestima e pelo amor de si e de sua própria força de agir. Todavia, longe de se limitar a um grupo de consciência, o feminismo negro se transformou em grupo de reflexão e de estudo: tratava-se então de ressituar sua própria experiência vivida, numa históriA das mulheres negras. Isso consiste não somente em reconhecer seu destino pessoal como uma condição comum de dominação das mulheres negras nos Estados Unidos, mas também como uma posição, um ponto de vista pertinente, permitindo iluminar de outra maneira a históriA das mulheres “em geral”, principalmente aquela quase exclusivamente escrita pelas mulheres e pelas feministas universitárias brancas. Assim, ao se engajar numa verdadeira política de publicação, o Combahee, e sobretudo uma de suas principais animadoras, Barbara Smith (1982), abriu um dos campos mais importantes do feminismo negro: a revisão da historiografia feminista, mas também da teoria feminista em geral, assim como de suas metodologias, tal como estas começavam a ser ensinadas nos departamentos de Women’s Studies nos Estados Unidos. Assim, o texto de Barbara Smith (1982), nascido de uma comunicação feita durante um colóquio de estudos feministas e sobre as mulheres, tem o aspecto de uma verdadeira injunção dirigida aos estudos feministas: o pensamento feminista deve assumir suas responsabilidades com relação ao racismo e a seu próprio racismo. O racismo não é só “problema” das mulheres ou das feministas negras, e não deve ser apenas evocado e discutido nos seminários dedicados à teoria feminista negra: ele diz respeito a todas as feministas. A problemática do racismo tanto no pensamento como no movimento feministas não se limita a trabalhar sobre ou com as mulheres de cor, mas a reconsiderar seu próprio racismo. Isso supõe ao menos três temáticas principais: primeira, que os estudos feministas façam a história dos vínculos do feminismo com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 73 74 o racismo (a escravidão, a segregação ou a discriminação) – ainda que as feministas brancas não tenham tirado “materialmente” as mesmas vantagens do racismo que os homens brancos; segunda, que os estudos feministas não limitem a questão do racismo às “mulheres negras” ou às mulheres do “terceiro mundo”, mas que se empenhem em articular juntamente sexismo, racismo e relação de classe, inclusive no que diz respeito à condição das mulheres brancas (sendo o “branco” uma cor que é socialmente construída como uma marca dos/das dominadores/dominadoras, assim como o “negro” é uma cor socialmente construída como uma marca das/dos dominadas/dos); enfim, terceira, que os estudos feministas não se refugiem por trás de uma metodologia pretensamente “objetiva”, por trás de um academicismo que historicamente tem permitido invisibilizar a história dos grupos mais dominados, qualificando suas experiências, suas resistências ou seus pensamentos e culturas como inexistentes, insignificantes ou excessivamente militantes. O texto de Barbara Smith (1982) identifica, além disso, dois pontos cegos dos estudos feministas que constituem verdadeiros obstáculos à emergência de um campo feminista realmente anti-racista – coisa que ele deveria ser: a questão do pretenso antifeminismo das mulheres do “terceiro mundo”, que deve ser analisado como uma reação ao racismo de uma parte das feministas brancas; e a questão da lesbofobia, que agrupa feministas brancas e feministas do “terceiro mundo” numa aliança, numa coalizão nefasta. Sobre esse último ponto, é mais amplamente a questão do “sujeito do feminismo” que está em causa e, portanto, a da “sororidade”. Sujeito político do feminismo – quem é este “Nós” de “Nós, as mulheres”? –, que o feminismo negro contribuiu amplamente para interrogar e (re)problematizar, anunciando sem contestação a terceira onda do feminismo estadunidense nos anos 1990. A análise clássica da dominação de gênero define o sexismo como a única relação de poder transversal para todas as mulheres, seja qual for sua classe, sua sexualidade, sua cor, sua religião etc., fazendo da luta contra o sexismo uma luta prioritária relativamente às outras relações de dominação. É portanto essa experiência comum do sexismo que permite a constituição e a coesão do próprio sujeito político do feminismo – “Nós, as mulheres”–, ameaçado de desintegração se viéssemos a diferenciar radicalmente as mulheres segundo as múltiplas relações de poder que elas sofrem. Ora, embora todas as mulheres tenham, sim, a experiência do sexismo, apesar dessa comensurabilidade da experiência não existe, porém, experiência “idêntica” do sexismo, de tal modo as outras relações de poder que informam o sexismo modificam suas modalidades concretas de efetuação e, portanto, as vivências das mulheres. Nos Estados Unidos, por exemplo, as mulheres africanas-americanas têm sido historicamente vítimas de esterilizações forçadas ou abusivas, enquanto as mulheres “brancas” eram submetidas a gravidezes sucessivas não desejadas e eram empurradas para os abortos clandestinos (Davis, 1983: 255-278). Recordando as experimentações forçadas de que foram vítimas as mulheres caribenhas por ocasião da comercialização dos contraceptivos orais, ou os casos de esterilizações impostas às mulheres negras, a historiadora feminista inglesa Hazel Carby (2000) analisa as modalidades diferentes do sexismo, estreitamente ligadas às políticas ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 eugenistas racistas conduzidas nos séculos XIX e XX. Essas modalidades diferentes de uma mesma dominação geraram assim experiências diferenciadas que tiveram consequências sobre a própria agenda dos movimentos feministas americanos e europeus (Carby, 2000). A análise de Carby é particularmente útil para compreender a contribuição do feminismo negro estadunidense ao feminismo europeu, inclusive contemporâneo, apesar de uma história escravagista diferente, já que os impérios coloniais europeus desenvolveram sistemas escravagistas fora de seus territórios metropolitanos e frequentemente paralelos a uma ideologia republicana igualitária (como é o caso na França): Não eram somente as senhoras das plantações de chá, de algodão ou de açúcar as favorecidas pelos benefícios da pela branca; todas as mulheres na Grã-Bretanha tiraram proveito – em graus variáveis – da exploração econômica dos colonizados. A atitude pró-imperialista de muitas feministas e sufragistas, do século XIX e início do XX, ainda não foi reconhecida em suas implicações racistas. Ora, deixando de lado essa tarefa históricA, a pesquisa sobre o racismo contemporâneo no movimento das feministas brancas ainda não começou. A teoria feminista na Grã-Bretanha é quase inteiramente eurocêntrica e, embora não ignore a experiência das mulheres negras ‘em casa’, ela traz para a frente do palco e faz estardalhaço das ‘mulheres do terceiro mundo’ como vítimas das práticas ‘bárbaras’ e ‘primitivas’ de sociedades ‘bárbaras’ e ‘primitivas’. É preciso ressaltar que muitos trabalhos feministas sofrem da presunção de que é somente através do desenvolvimento de um estilo ocidental do capitalismo industrial e da entrada das mulheres no mercado de trabalho assalariado resultante dele que o potencial de liberação das mulheres pode aumentar (Carby, 2000: s/p). O feminismo negro, portanto, critica essa tendência do feminismo – e de suas teorizações – a se restringir implicitamente a uma compreensão da dominação que toma a situação de algumas mulheres como a situação de todas as mulheres enquanto modalidade universal de seu assujeitamento. Essa tendência pode ser resumida na expressão tornada célebre de Adrienne Rich: o “solipsismo branco” (Rich, 1979) do feminismo. Esse modo de pensamento reforça uma compreensão simplista da historicidade da dominação ao reduzi-la a um modelo de oposições binárias (homem/ mulher, masculino/feminino, força/fraqueza, produção/reprodução, público/ privado, razão/sentimento etc.), por um lado, e ao pensar as dominações de maneira cumulativa, “aditiva” (sexismo + racismo + classe etc.), por outro. A política feminista remete desde logo a um sujeito autocentrado sobre uma experiência particular que ele tende a absolutizar e, portanto, ela renaturaliza a relação de gênero ao universalizar uma de suas modalidades históricas (Dorlin, 2005). Segundo bell hooks (1986), o fato de isolar o sexismo das outras relações de poder que o informam impõe, além ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 75 disso, uma representação das mulheres como “vítimas”. Em outras palavras, isso gera uma consciência de si deformada que tem dificuldade em pensar posições de poder em que ninguém se representa exclusivamente como alvo do poder, mas sempre também como retransmissor deste. É então o conceito mesmo de sororidade que se torna problemático. A partir do momento em que se definiam como uma associação de ‘vítimas’, as feministas não se viam obrigadas a enfrentar a complexidade de sua própria experiência” (Hooks, 1986). Assim, a solidariedade entre todas as mulheres carrega o peso histórico da participação mais ou menos ativa de algumas mulheres nos racismos e nos colonialismos. Essa categoria de vítima produz, além disso, um problema importante. Retomar uma categoria ideológica da “natureza feminina”, que pensa as mulheres como “vítimas” passivas de sua condição é negar a elas todo poder de ação, inclusive na história de sua própria liberação (Hooks, 1986: s/p). 76 O feminismo negro produziu um eletrochoque no pensamento feminista ao longo de toda a década de 1980: assim, muitas intelectuais brancas foram não somente forçadas a repensar o que até então parecia evidente (aquele “Nós” de “Nós, as mulheres”) mas também, e mais fundamentalmente, a se descentrar de sua posição dominante, e portanto de sua posição de referência por definição “neutra”, elucidando a posição desde a qual elas tomaram ou tomam a palavra, em nome de quem elas tomaram ou tomam a palavra, assim como os silêncios que suas palavras têm recoberto. Conforme escreve Linda Alcoff (1988), se o pensamento e o movimento feministas conseguiram desconstruir ou transcender de forma crítica a categoria essencialista “A Mulher”, a posição desde a qual os movimentos feministas históricos lutavam, “Nós, as mulheres”, também encontrou seus limites: “Hoje, o dilema que as teóricas feministas enfrentam é que nossa própria autodefinição se baseia num conceito [‘as mulheres’] que devemos desconstruir e desessencializar em todos os seus aspectos” (Alcoff, 1988: 406). Em outras palavras, não basta apenas enunciar de onde eu falo para que, como que por encanto, as relações de poder no interior do feminismo se evaporem: isso significaria confundir nossas “diferenças” e nossas “posições de poder”. Quando feministas afirmam, num prelúdio intimista a suas contribuições, a suas intervenções universitárias ou militantes, que elas são “brancas”, “oriundas de um ambiente burguês” etc. e iniciam suas análises, é possível duvidar da eficácia de semelhante atitude: “Eu não tenho nenhum uso criativo da culpabilidade, a sua ou a minha [...]. A culpabilidade é só outra maneira de nos tratarmos como objeto” (Lorde, 2003: 144-146), escreve Audre Lorde. A questão é bem menos a elucidação solidária de seus privilégios – inclusive dos privilégios que a minoria (de gênero, de sexualidade, de cor, de religião, de classe etc.) conferiria – do que a reflexividade necessária sobre seus próprios valores e instrumentos cognitivos ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 (por exemplo, a relação entre sujeito e objeto de conhecimento ou de discurso, ou a hierarquia implícita dos tipos de discurso) e políticas. Quanto a este último ponto, trata-se certamente de reconhecer, de exprimir e de admitir os conflitos, as tensões e as cóleras no interior do feminismo, na medida em que não prejudicam a unidade do sujeito político do feminismo, mas nos obrigam a não encerrá-lo dentro de uma identidade “mulheres” declinada segundo o gênero, a sexualidade, a cor, a religião, a classe... ao sabor de nossas lutas, de nossas reflexões ou de nossos interesses pessoais ou coletivos. A obra magistral de Audre Lorde é, quanto a isso, exemplar. E quando as palavras das mulheres gritam para serem ouvidas, nós devemos, cada uma, assumir a responsabilidade de buscar essas palavras, de lê-las, de compartilhá-las e de apreender sua pertinência para nossas vidas. Não devemos nos esconder por trás dos simulacros de divisões que nos foram impostas, e que com tanta frequência tornamos nossas. Do tipo: ‘Não posso realmente ensinar a literatura das mulheres negras, a experiência delas é tão distante da minha’. No entanto, há quantos anos você ensina Platão, Shakespeare ou Proust? Ou então: ‘É uma mulher branca, o que realmente ela pode ter a dizer?’ (Lorde, 2003: s/p). Audre Lorde trabalhou longamente sobre o uso da cólera contra o ódio racista, cólera que ela não só exprimiu, mas também dirigiu às mulheres brancas, e que ela articula não como uma força destrutiva da unidade do feminismo, mas para o desdobramento desta, naquilo que ela chama de metamorfose das “diferenças de potência” (Lorde, 2003: 145). Lorde mostra de que modo o racismo no interior do feminismo constrangeu as mulheres ao silêncio e que esses silêncios, de ambos os lados, nos matam: os silêncios das mulheres negras historicamente obrigadas sob ameaça a se manter fora dos discursos dizíveis e audíveis, silêncios que elas se extenuam por romper (Harris, 1996), os silêncios das mulheres brancas que são prisioneiras das estruturas mesmas da dominação que elas interiorizaram e que permanecem numa mudez culpada quando só o amo se exprime nelas. Enquanto mulheres, devemos extirpar os esquemas opressivos ancorados no mais fundo de nós se quisermos ir para além de uma mudança social superficial. Devemos desde já aceitar as diferenças entre as mulheres – que são nossas iguais, nem inferiores nem superiores – e imaginar novas maneiras de nos apropriarmos dessas diferenças a fim de enriquecer nossas visões do futuro e nossas lutas comuns (Lorde, 2003: 135). Essa questão da unidade do feminismo – e não de sua homogeneização, segundo os termos da própria Lorde – será amplamente retomada por Teresa de Lauretis, Judith Butler ou Gayatri C. Spivak, durante os anos 1990, numa reflexão de envergadura sobre a crítica da essencialização das identidades políticas – sexuadas, ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 77 78 racializadas ou sexuais – operada pelos movimentos feministas, gays ou lésbicos. Em referência ao feminismo negro ou chicana, o feminismo universitário da terceira onda, assim como os movimentos queer ou trans, têm optado amplamente por uma política não fundacionalista da identidade política, no sentido de que a identidade política não deve, e não pode, constituir um pré-requisito à ação política, mas deve se constituir – inclusive na conflitualidade inerente a toda coalizão – no devir dos movimentos. De igual modo, “Nós, as mulheres” está em constante redefinição, articulando a ação, não com a questão “quem somos nós?”, mas com a questão “por/ contra quê/quem combatemos?”, isto é, sobre nossa vontade ou, melhor, nosso poder de ação (Butler, 1992). Audre Lorde, lésbica, feminista, poeta caribenha-estadunidense, também foi uma das figuras da escrita das mulheres negras nos Estados Unidos. Gênero literário maior, ao qual pertencem escritoras antilhanas francófonas – admiradas “lá” e frequentemente ignoradas “aqui” –, a escrita das mulheres negras dá testemunho desta posição fora do discurso dominante e de seus cânones, herdeira do racismo institucionalizado das sociedades outrora escravagistas. Escrita poética, crioulizada (Moraga, Anzaldúa, 1980) ou barroca – penso aqui na obra de Toni Morrison, por exemplo –, marcada pela experiência da escravidão, este gênero literário e político marcou a teoria feminista ao renovar a prática do discurso na primeira pessoa, por um lado, e a importância do erotismo, por outro. Sendo as duas estreitamente ligadas no sentido de que o erotismo, e mais amplamente a questão das sexualidades, nos impõe sempre um discurso no “eu”, uma reflexividade sensual sobre a história de seus próprios desejos e prazeres – inclusive sobre a longa história dos desejos e dos prazeres de nossas avós, mães, tias e irmãs. É conhecido o uso que Lorde faz do erotismo em seu pensamento, uso magnificamente renovado pelo texto de Laura Alexandra Harris (1996: s/p): Este ‘eu’ não representa sem dúvida um caso único de passagem pelos feminismos. Não é uma especificidade de meu ser fem18b de pele clara. A passagem, com efeito, tem a ver com níveis muito diversos, tanto o do gênero quanto o da classe social, da origem étnica, da situação econômica, da instrução, e é tomada dentro de uma estrutura que, frequentemente, contém e sufoca a diferença que ela, a estrutura, parece exprimir. Harris mostra a convergência entre o feminismo negro e aquilo que se chama comumente de Teoria Queer. Ela vai mesmo mais longe, e no meu entender com razão, mostrando de que modo foram as feministas negras que criaram o feminismo queer. Ela mostra que a essencialização do gênero, contra o qual a cultura queer tem se levantado amplamente, eludiu a política sexual, ao mesmo tempo que a “raça” e a classe. Para Laura Alexandra Harris, feminista, queer, negra, fem, o fato de se considerar 18b Fem (ou femme) é termo empregado para designar a lésbica com aparência mais “feminina”, ao contrário da butch, considerada mais “masculina” (NT). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 comumente que uma lésbica negra só pode ser butch – o que é testemunhado pelas representações estereotipadas das lésbicas negras – é duplamente característico de uma concepção essencialista do gênero que funciona de modo binário (masculino/ feminino, ativo/passivo...), em concordância com uma política racial e sexual, que exclui as mulheres negras das normas da feminidade e atribui às identidades de gênero posições fixas e heterossexistas. “Tornou-se flagrante no feminismo lésbico, quando o desejo butchfem, desejo de polaridade de gênero entre lésbicas, foi decretado inaceitável pois modelado na dinâmica de poder heterossexual. Não somente isso equivalia mais uma vez a requalificar o gênero em dado anatômico inato, mas era também fazer pouco caso das clivagens de classe e de raça, particularmente pronunciadas lá onde essa cultura podia se exprimir” (Harris, 1996: s/p). Ser fem, quando se tem a pele muito clara como Laura A. Harris, é sempre ser “negra” demais, e, portanto, necessariamente butch, ou “branca” demais, e, portanto, necessariamente heterossexual. Como as mulheres negras têm sido historicamente racializadas por sua exclusão das normas binárias de gênero, a força crítica desencadeada pelas teóricas feministas lésbicas negras constitui a base teórica e política das práticas do queer. O feminismo negro-queer de Laura Alexandra Harris constitui a “terceira onda” da politização radical do erotismo, apregoada por Audre Lorde. A terceira onda do feminismo negro A genealogia negra do queer redigida por Harris (1996) recoloca em novos termos a questão da “terceira onda” do feminismo africano-americano. Os dois últimos textos do presente volume que a debatem (Springer, 2002; Guy-Sheftall, 2002) retornam aos últimos ensaios, romances, manifestos amplamente autobiográficos publicados por mulheres africanas-americanas, herdeiras dos combates, das lutas e dos instrumentos teóricos do feminismo negro, mas que não se filiam necessariamente a ele. A questão dos estereótipos da feminidade negra e a da sexualidade das mulheres negras permanecem como dois dos percalços dessa escrita negra contemporânea. É sintomático que seja Kimberly Springer, especialista da história do feminismo negro dito da “segunda onda”, a interrogar a renovação geracional atual apoiandose em três jovens autoras africanas-americanas (Joan Morgan, Lisa Jones e Veronica Chambers). Springer (2002) começa por criticar o modelo historiográfico das “ondas” do feminismo, crítica que ela toma emprestada justamente de Beverly Guy-Sheftall (2002), que discutirá seu texto. Springer mostra, portanto, como a repartição em três ondas está centrada na história das mulheres e feministas brancas. Embora se admita normalmente que a primeira onda do feminismo estadunidense começou ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 79 80 pela mobilização abolicionista dos anos 1850, muitas mulheres negras já estavam mobilizadas anteriormente àquela data enquanto negras e mulheres. Springer (2002) concorda, porém, que a expressão “ondas do feminismo” constitui um desafio político em torno das redefinições voluntaristas das palavras de ordem e da agenda do feminismo, e permanece “útil como instrumento de crítica interna” (Springer, 2002) ao movimento. Springer se interessa assim por aquilo que “a geração hiphop, pós-direitos civis, pós-feminista, pós-soul, com outros ritmos”, como escreve Joan Morgan, faz ao feminismo. Por “pós-feminista” não se deve entender uma rejeição do feminismo, já que essas autoras prestam homenagens mais ou menos entusiastas à geração precedente, cujos escritos elas descobriram na universidade. Segundo Springer (2002), o que fica marcado dessas leituras é que, embora todas examinem com olhar crítico e revoltado a renovação dos estereótipos da feminidade negra, veiculados seja pelo establishment branco, seja pela cultura negra, nenhuma delas desenvolve uma análise dos pressupostos heterossexistas de tais estereótipos. Em outras palavras, todas permanecem particularmente silenciosas acerca da sexualidade, e mais particularmente acerca da sexualidade das mulheres negras em geral e de sua própria sexualidade em particular – diferentemente de Michele Wallace, Barbara Smith, Alice Walker ou Audre Lorde, que tinham desenvolvido toda uma reflexão sobre o silêncio imposto às mulheres negras em matéria de política sexual e racial, desconstruindo os estereótipos racistas que circulam sobre a sexualidade das mulheres negras, proibindo-as de se reapropriar de seu próprio corpo, de sua própria fala assim como de seus próprios desejos e prazeres. A “geração hip-hop” parece recomeçar do zero, como se aquela estética erótica revolucionária do feminismo negro tivesse escapado do legado político. Uma das hipóteses, a meu ver a mais pertinente, é não tanto um antagonismo geracional próprio do feminismo, porém bem mais uma reconfiguração dos mais eficazes dentre os dispositivos sexistas e racistas. Todavia, em seu comentário de Springer, Guy-Sheftall (2002) não deixa de lamentar o esquecimento, pela pretensa terceira onda, de certos fundamentos feministas defendidos por suas antecessoras; e, sobretudo, uma certa complacência para com o heterossexismo. Tal como evoquei no início desta introdução, nos Estados Unidos, durante o período escravagista e segregacionista, se desenvolveu uma concepção do “matriarcado negro”, que se encontra hoje ao mesmo tempo nos discursos neoconservadores da direita estadunidense, e também em certas pesquisas antropológicas sobre a matrifocalidade pretensamente característica das sociedades antilhanas ou africanas. Desde o período escravista se construiu esse mito do “matriarcado negro”: uma forma de organização social literalmente monstruosa, na qual a ordem “natural” dos sexos é invertida. Uma organização social em que as mulheres negras são apresentadas como mães “ruins”, mulheres abusadoras e castradoras. Na literatura racista, a figura da mulher negra de poder castrador funciona então como a exteriorização de uma modalidade paradigmática do poder colonial, pois uma das práticas características dos sistemas plantocráticos ou escravagistas assim como dos governos coloniais era a emasculação – simbólica e efetiva – do escravo e do colonizado (Paris, ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 Dorlin, 2006)19. Em sua versão contemporânea, o mito do “matriarcado negro” foi amplamente difundido pelo relatório The Negro Family redigido por Moynihan em 196520, para quem o matriarcado que reina na família negra constitui um “nó de patologias” morais, sociais e políticas: “ciclo da pobreza” e da delinquência e, por causa da dependência com relação ao Estado social, ruína deste (Robinson, 2003). O matriarcado negro se articula em torno de uma figura emblemática: a da welfare mother ou welfare Queen21c. Essa figura é eminentemente sexual, ao mesmo tempo supererotizada e supervirilizada – o que permite assegurar a perenidade de seu efeito castrador sobre os homens negros, a quem ela proíbe que se tornem “verdadeiros” patriarcas, isto é, “verdadeiros” dominantes. Sua sexualidade é também vinculada a sua fertilidade: “a welfare mother representa uma mulher que não tem moral, de sexualidade desenfreada, fatores identificados como a causa de sua condição precária [...]” (Collins: 2000, p. 84)22. O que torna esse matriarcado ainda mais monstruoso é o fato de sintetizar as duas faces antinômicas de uma feminidade normativa: a mamãe e a puta. Como sublinha perfeitamente Patricia Hill Collins, a BBM (Bad Black Mother) é ainda hoje uma representação onipresente dos discursos racistas e sexistas, amplamente difundida por figuras emblemáticas da cultura africana-americana contemporânea. Bitch (ou ho) designa uma jovem mulher sexualmente insaciável e predadora. Aqui também, essa pretensa imoralidade das mulheres negras é uma concepção remanescente das ideologias racistas escravagistas e segregacionistas. Nas plantações do Sul dos Estados Unidos, assim como nas habitações das colônias francesas de ultramar, ela permitiu amplamente desculpar, limpar os brancos dos estupros sistemáticos perpetrados sobre as mulheres negras, em nome da lubricidade e da imoralidade delas. Ora, o termo bitch [“cadela”] tal como é promovido sobretudo pelo gangsta rap23 ou mesmo pelo rap “bling bling”24 também faz referência à animalidade e compara as mulheres negras a cadelas, e seus filhos a uma ninhada. Essa representação infamante ora BBM ora bitch é extremamente perniciosa na medida 19 Esse procedimento de efeminação vai paradoxalmente conjugado com o “mito do negro violento” (Davis, 1983). 20 Daniel Patrick Moynihan, professor em Harvard, intelectual liberal que trabalhou para os governos de Kennedy e Johnson, autor em 1965 do relatório The Negro Family: The Case for National Action, que se tornou em seguida um dos representantes mais influentes dos neoconservadores e o braço direito de Nixon sobre as questões raciais. 21c Welfare se refere ao “bem-estar” em “Estado do bem-estar”, isto é, os dispositivos sociais que o Estado destina aos cidadãos para que possam viver dignamente (auxílios de diferentes tipos, saláriodesemprego, vale-alimentação, subsídios etc.). A welfare mother ou welfare Queen seria a suposta matriarca negra que vive às custas desses dispositivos estatais (NT). 22 Há outros estereótipos: a “mammy”, a “jezabel”, a adolescente depravada, a “hoochie” (a “gostosona” dos clips de gangsta rap). 23 Ver a polêmica em torno dos textos do grupo 2 Live Crew nos Estados Unidos e a resposta de Queen Latifah nos anos 1990. Na França, muitos grupos de rap são os mais complacentes em matéria de representações, de posições ou de discursos sexistas, como atestam as chamadas à ordem de algumas rappers como Bams. 24 É o rap “brega”, despolitizado, até mesmo complacente com a sociedade de consumo ou os ideais neoconservadores, que tem somente as aparências do gangsta sem a radicalidade e a raiva deste. Na França, é representado pelo rapper Booba. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 81 82 em que faz desaparecer o estereótipo enquanto estereótipo. Em outras palavras, para ser reconhecida em sua feminidade “negra” – feminidade racializada que responde à feminidade dominante, igualmente racializada, das brancas e das burguesas –, é preciso encarná-lo totalmente. O mito do “matriarcado negro” funciona enfim como uma ideologia incapacitante, pois neutraliza, deformando-a, tudo o que se parece com uma afirmação das mulheres negras: uma vez que a autonomia e o poder são privilégio dos homens, apoderar-se desses atributos tipicamente “masculinos” implica necessariamente a efeminação dos homens negros e a virilização das mulheres negras. Em outras palavras, os estereótipos que pesam sobre as mulheres negras são estereótipos que põem em cena mutações de gênero (mulheres que se tornam homens, homens que se tornam mulheres). Os estereótipos racializados de gênero obrigam as mulheres a desempenhar traços tipicamente masculinos (o poder econômico, a autoridade sobre os filhos, a independência, mas também a iniciativa sexual), enquanto os homens são efeminados (dependentes, passivos, inativos). Conforme lembra Michele Wallace (1978), sempre em nome do matriarcado negro, alguns/algumas alegaram assim que as mulheres africanas-americanas não precisavam do feminismo, pois elas se beneficiavam de alguns privilégios de gênero negados às mulheres WASP25 (Wallace, 1978). Por causa dessa desvalorização sistemática da maternidade negra (matriarcado monstruoso, lúbrico, castrador, parasita), da exclusão dos benefícios sociais e simbólicos da feminidade, a feminidade/maternidade se torna um desafio: para ter acesso ao reconhecimento, é preciso parar de desempenhar esse estereótipo e desempenhar a norma dominante, norma generizada e racista. Trata-se de imitar a identidade sexual branca para ter acesso a seus privilégios. É preciso, portanto, recolocar o patriarcado em seu lugar. Foi assim que nos anos 1960 e 1970 os líderes negros reivindicaram claramente uma certa identidade virilista fazendo a promoção de seu papel de dominante no interior do patriarcado, já que a virilidade sexista – nos moldes da sociedade estadunidense – era o sinal inegável de seu acesso à igualdade (igualdade dos homens entre si). Michele Wallace (1978) recorda em seu texto esta injunção do líder dos Black Panthers, Carmichael Stokely: o lugar das mulheres no movimento é “de bruços” (prone). Imensas figuras femininas do movimento pelos direitos civis aceitaram assim submeter-se a uma divisão sexual extremamente tradicional e conservadora dos papéis, conforme testemunham as palavras desta militante: Penso que a mulher deve se manter por trás do homem. O homem deve estar na frente da mulher, pois a mulher negra tem estado historicamente acima do homem negro neste país. Ainda que não seja por culpa delas, as mulheres negras conquistaram melhores empregos e melhor status. Elas não ficaram iguais aos homens brancos nem sequer às mulheres brancas, mas estiveram acima dos homens negros. E agora que a revolução está socialmente em marcha, creio que as mulheres negras não devem ser postas à 25 WASP: White Anglo-Saxon Protestant [branco, anglo-saxão, protestante]. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 frente na vida. Creio que deveriam ser os homens negros, porque os homens representam o símbolo das raças (apud Hooks, 1981: 182). De modo mais geral, mulheres negras, jovens, educadas, oriundas da classe média idealizaram essa norma vitoriana da feminidade e consentiram em não combater em pé de igualdade ao lado dos homens negros. Em 1970, Mary Ann Weathers (1969: s/p) escreveu: “É de fato enojante ouvir mulheres negras falar de devolver aos homens negros sua masculinidade, ou de deixá-los retomá-la. É não somente degradante para as outras mulheres negras como também insultante para os homens negros (em todo caso, deveria ser)”. Todavia, a situação das feministas negras é inextricável. Num artigo de referência para o movimento feminista africano-americano, Frances Beal analisa perfeitamente aquilo que, alguns anos mais tarde, será conceitualizado por Kimberle William Crenshaw sob o termo “interseccionalidade” (Beal, 1970). Ela mostra como as mulheres negras são instrumentalizadas pelo racismo: bodes expiatórios, são forçadas a ficar um passo atrás de “seus” homens (maridos, pais, irmãos, filhos). Confinadas à esfera doméstica, essa posição constitui também, para numerosas mulheres negras, o reconhecimento de seu papel de esposa e de mãe, por tanto tempo negado. No entanto, como escreve Beal (1970), trata-se, para os homens negros tanto quanto para as mulheres negras, de uma “posição contrarrevolucionária” (Beal, 1970), que os sustentadores do racismo têm todo o interesse de apresentar como “a” solução para o racismo, quando de fato ela assegura, pelo contrário, a perenidade deste. A lógica é implacável: pensar o patriarcado como uma das condições da supremacia branca faz dele um instrumento de igualização das condições entre brancos e negros, mantendo a divisão das mulheres negras e dos homens negros, tanto quanto das mulheres negras e brancas, estas últimas apoiando-se no sexismo “visceral” dos negros. Conforme escreve bell hooks em 1981: “As mulheres negras de hoje que sustentam a dominação patriarcal mantiveram o status quo sobre a questão de sua submissão por causa do contexto da política racial e sustentaram que estavam prontas a aceitar um papel subordinado em suas relações com os homens negros para o bem da raça” (Hooks, 1981: 183-184). O compromisso é historicamente custoso. Para bell hooks (1981), como para muitas feministas africanas-americanas, tal configuração das relações de dominação é uma verdadeira armadilha política. Entre a solidariedade das mulheres negras como as feministas brancas – contra o sexismo dos homens negros – e a lealdade das mulheres negras a “seus” homens negros – contra o racismo das mulheres brancas –, o feminismo negro desenvolveu uma terceira via, aberta pela reflexão sobre as sexualidades das mulheres negras. Compreende-se, desde logo, a força revolucionária desse erotismo feminista negro. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 83 84 Em 1988, o jornalista Salim Muwakkil publicou um artigo que pergunta: “Are Black males an endangered species?” (Charlery, 2007) [“Os homens negros são uma espécie ameaçada?”], ao qual faz referência Kimberle Springer em seu artigo. Na esteira de Muwakki (1988), o tema do desaparecimento progressivo dos homens negros nos Estados Unidos é complacentemente retomado pelas autoridades oficiais, inclusive no nível federal: assim, em 1991, a Comissão do Senado dos Bancos, da Habitação e das Questões Urbanas organiza um encontro em torno da situação dos homens negros no ambiente urbano. Em 1992 e 1993, os estados da Califórnia e de Indiana instalam comissões permanentes sobre o status social do homem negro. Todas essas iniciativas se concentram sobre o lugar e o papel do homem negro na família africana-americana, não sobre os problemas socioeconômicos da população negra e as discriminações racistas de que ela sempre foi objeto, e obrigam ao silêncio as líderes femininas do movimento negro. Algumas figuras intelectuais africanasamericanas, como o filósofo africano-americano Cornell West, intervêm no debate para denunciar a manipulação das autoridades – brancas ou negras – que alimentam esse novo mito do “patriarcado negro” como a única solução para o racismo. O ponto culminante é atingido em 1995, por ocasião da One Million Man March, organizada em Washington D.C. pela Nation of Islam. Marcha do orgulho masculino negro, as mulheres e os homossexuais foram excluídos ou proibidos no palanque. Aqui novamente, o patriarcado não é bem menos uma questão da Nation of Islam do que da própria sociedade estadunidense. Com efeito, a adesão zelosa de uma parte do movimento negro a um ideal heterossexista confirma a pregnância e a validade desse ideal para a sociedade estadunidense em geral, em que os privilégios brancos são percebidos como indissociavelmente ligados a uma “ordem sexual”. A lógica racista incita os grupos a uma paródia grotesca. Se o sexismo e a homofobia são abandonados no caminho das lutas de liberação negra, há razão para desconfiança. A “ordem racial” assegura duplamente as condições de sua reprodução: manter o “patriarcado branco” como norma dominante, da qual se desvia o olhar agarrando-se à violência do “patriarcado negro” que o parodia – desqualificando assim eficazmente as reivindicações de igualdade dos homens negros, estigmatizados como “sexistas”. A “geração hip-hop” do feminismo negro da década 1990-2000, tal como desenhada por Springer (2002), certamente não é representativa do conjunto dos engajamentos feministas negros destes últimos anos – conforme demonstra o texto de Laura A. Harris (1996), sobretudo, que apregoa um feminismo negro-queer, um novo erotismo feminista negro. Todavia, é a esta geração que cabe lutar dia a dia numa situação perigosamente cheia de armadilhas; dilacerada entre raiva e silêncio. Mais uma vez, essa responsabilidade cabe igualmente ao movimento feminista por inteiro, o que é demonstrado pelos incontáveis trabalhos universitários, bem como pelos múltiplos movimentos sociais contemporâneos, que constroem além-Atlântico um feminismo realmente hétero-descentrado e decolonizado. Pois as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa do senhor. Elas podem nos permitir temporariamente vencê-lo em ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 63-88 seu próprio jogo, mas nunca nos habilitarão a promover a mudança genuína. E esse fato só é ameaçador para aquelas mulheres que ainda definem a casa do senhor como seu único ponto de apoio (Lorde, 2003: 121). Referências bibliográficas ALCOFF, L. (1988). “Cultural feminism versus post-structuralism – the identity crisis in feminist theory”. In: Signs. Vol. 13. No 3. p. 406. ALIBAR, F.; LAMBEYE-BOY, P. (1981/82). Le couteau seul – Sé kouto sèl – La condition féminine aux Antilles. 2 Vol. Paris : Éditions Caribéennes. BEAL, F. (1970). “Double jeopardy: to be Black and female”. In: THIRD WORLD WOMEN’S ALLIANCE. Black Women’s Manifesto. New York: n.d.. BENELLI, N.; DELPHY, D.; FALQUET, J.; HAMEL, C.; ROUX, P. (2006). “Les approches postcoloniales: apports pour un féminisme antiraciste”. In: Nouvelles Questions Féministes. Vol 25. No 3. BESSIERE, C. (2003). « Race/classe/genre. 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Discute-se desde a origem da vertente, a partir do questionamento de Truth (1852) de “E eu não sou uma mulher?”, passando pelas suas bases conceituais com Collins (2000a), até as contribuições mais recentes do feminismo negro britânico e sua relação com o pós-colonialismo, com Carby (1982) e Pramar (1990). Evidencia-se, desse modo, a multiplicidade de ideias dentro do feminismo negro, demonstrando sua complexidade em diferentes contextos socioculturais. Palavras-chave: Feminismo Negro. Gênero e raça. Lutas sociais. RESUMEN Este artículo revisa el pensamiento de diversas teóricas del feminismo negro, en especial las estadunidenses, consideradas centrales en esta vertiente del feminismo, como Sojourner Truth (1852), Angela Davis (2016), Audre Lorde (1984) e bell hooks (1981). Se discute desde el origen de la vertiente, partiendo del cuestionamiento de Truth (1852) de “¿Acaso no soy mujer?”, pasando por sus bases conceptuales con Collins (2000a), hasta las contribuciones más recientes del feminismo negro británico y su relación con el post colonialismo, con Carby (1982) y Pramar (1990). Se evidencia, de este modo, la multiplicidad de ideas dentro del feminismo negro, demostrando su complejidad en diferentes contextos socio-culturales. Palabras-clave: Feminismo Negro. Género y raza. Luchas sociales. Nós acreditamos que a política da sexualidade sob este sistema patriarcal se assenhora das vidas das mulheres negras tanto como a política de classe e raça. Também encontramos difícil separar a opressão racial da classista e da sexual porque em nossas vidas as três são uma experiência simultânea. (The Combahee River Collective, 2012) 1 Este texto, originalmente publicado em espanhol sob o título “Indroducción. Construyendo puentes: em diálogo desde/con el feminismo negro”, faz parte da Antologia de textos Feminismos negros: una antologia, organizada por Mercedes Jabardo em 2012. Agradecemos à autora pela concessão de direitos autorais deste texto. Tradução em língua portuguesa de Liliam Ramos da Silva e Adriana Kerchner da Silva (UFRGS). Mercedes Jabardo Velasco Professora de Antropologia Social, Universidade Miguel Hernández de Elche (Alicante, Espanha). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 89 90 O feminismo negro possui as características dos movimentos que estão em processo de construção de seu programa de luta e de emancipação a partir de diversas e superpostas estruturas de dominação. Inclusive conflitivas, por vezes. Falar de gênero e de “raça”2 como elementos de desigualdade é, em certo sentido, reducionista se não estiver demarcado nas condições em que ambos os critérios emergiram como veículos de opressão. O movimento feminista negro surgiu na confluência (e tensão) entre dois movimentos: o abolicionismo e o sufragismo, em uma difícil intersecção. Mesmo tendo uma presença relevante em ambos, a combinação de racismo e sexismo terminou excluindo as mulheres negras dos dois. Tal fato não paralisou seu impulso emancipador, muito pelo contrário. As feministas negras foram, desde o princípio, extraordinariamente lúcidas na hora de se posicionarem e fortes na hora de estabelecerem alianças: com os homens de sua própria “raça” nas antigas comunidades de escravizados, com as mulheres brancas na luta pelo sufrágio feminino e, sobretudo, com todas as mulheres negras quando o racismo contaminou o movimento sufragista estadunidense e quando a emancipação incorporou as diferenças de gênero nas comunidades negras. Aquilo que desde o feminismo pós-moderno tem sido traduzido por teoria da interseccionalidade está na base genealógica do feminismo negro afroestadunidense.3 Remontamos ao discurso “E não sou eu uma mulher?” de Sojourner Truth na Convenção dos Direitos da Mulher em Akron de 1852 e à explosão de escritas de mulheres negras na década de 1890 na qual, além dos textos de Ida Wells, foram produzidas obras como A voice from the South by a Black Women from the South de Anna Julia Couper (1982) e, posteriormente, A Coloured Women in a White World de Mary Church Terrel (1940) (Ritzer, 2003). Pioneiras do feminismo negro Destacar duas entre centenas de vozes resgatadas nesse período não é uma tarefa fácil. No entanto, Ida Wells e Sojourner Truth são sem dúvida duas das mais significativas. E o são tanto por suas posições teóricas (no caso de Wells) quanto pela coragem e lucidez de uma mulher iletrada (como Sojourner Truth). Elas assentaram as bases do que seria o pensamento feminista negro (a clara ligação da reflexão teórica às estratégias de mobilização) e também são o reflexo da forma coletiva de produção do conhecimento do feminismo negro. Diferentemente do feminismo branco, que tem seu momento fundacional no Iluminismo e reproduz a racionalidade do 2 No Brasil, há discussões sobre a utilização dos termos “raça” e “etnia”. Enquanto “raça” se referiria ao fenótipo, “etnia” contemplaria características socioculturais. No texto-fonte, a autora emprega a palavra raza (raça) sempre entre aspas. Para preservar a ideia controversa que o conceito apresenta, optamos por manter o termo “raça” entre aspas. (Nota das tradutoras) 3 Como latino-americanistas e pesquisadoras de literatura afro-americana que contempla a produção de autoria negra na América enquanto continente, traduzimos afro-americano (e suas variáveis de gênero e número) por afro-estadunidense na intenção de marcar a nacionalidade em questão. (Nota das tradutoras) ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 pensamento ilustrado, o feminismo negro surge em um contexto escravista. Nesta reflexão, pretendemos romper com a construção individual do pensamento filosófico ilustrado, apostando na inclusão de distintos saberes, lógicas e atrizes sociais. Se tivéssemos que fazer referência a um “texto” fundacional do feminismo negro, seria o discurso “E não sou eu uma mulher?” de Sojourner Truth na Convenção dos Direitos da Mulher em Akron em 1852. Encontramos nele algumas das características que permitem compreender o caráter contra-hegemônico desse movimento. Em primeiro lugar, a oralidade do relato frente à racionalidade da escrita dos textos fundacionais do feminismo branco. A oralidade, como também a oratória aprendida e praticada nos púlpitos das igrejas. Ambas foram ferramentas de resistência dos grupos subalternos. Em segundo lugar, o próprio caráter da oradora: Sojourner Truth foi a primeira de uma importante leva de intelectuais negras que, sem o apoio de uma obra escrita, conectaram os interesses e as lutas das mulheres negras (COLLINS, 2000a). Em terceiro lugar, por ser um texto produzido em situação de colonialidade. Nesse contexto, com uma linguagem própria que não se vê refletida no espelho imposto, Sojourner Truth desconstrói a categoria (hegemônica) de mulher – uma categoria negada a ela – reivindicando sua própria identidade enquanto mulher. A intersecção da “raça” com o gênero, que fez com que o sistema hegemônico construísse a ideia de mulheres negras como não mulheres, reaparece no discurso de Sojourner de forma inclusiva. Por trás do seu “E não sou eu uma mulher?”, por trás das lutas de outras ex-escravizadas como Harriet Jacobs, aparece um desejo que luta por ressignificar o termo mulher. Sua aspiração era serem livres, não somente da opressão racista, mas também da dominação sexista. As contribuições de Sojourner Truth ao movimento sufragista (invisibilizadas pelo feminismo branco) e ao pensamento feminista negro (resgatadas nos anos 80 do século XX) têm sido amplamente difundidas (inclusive em língua espanhola) nas últimas décadas. Estamos orgulhosas de que esse texto fundacional abra a presente antologia. Na década de 1890, quando aparecem obras de referência das primeiras acadêmicas negras, a distância entre mulheres negras e mulheres brancas, que se tornara visível dentro do movimento sufragista, era ainda mais profunda. A abolição da escravidão, que a comunidade negra recebeu com esperança, somente transformou a superfície da sociedade de castas que dividia as pessoas entre amos e escravizados. Logo, a discriminação racista substituiu a escravidão como “moderno” critério de desigualdade. Em 1894, já haviam sido estabelecidos a privação do voto das pessoas negras do Sul, o sistema jurídico segregacionista e a vigência da lei Lynch (Wells, 2012). Inclusive, algumas sufragistas assumiram proposições eugenistas e a ideologia da domesticidade.4 As palavras de Belle Kerney, retomadas por Angela Davis, são um fiel reflexo do clima em que se respirava: 4 Angela Davis resgata as palavras de Elizabeth Cady Station, uma das pioneiras do sufragismo estadunidense: “Quando o sr. Downing me faz a pergunta: você está disposta a ver o homem de cor obter o direito ao voto antes das mulheres? eu digo que não; eu não confiaria a ele meus direitos; desvalorizado, oprimido, ele poderia ser mais despótico do que nossos governantes anglo-saxões já são. Se as mulheres ainda devem ser representadas pelos homens, então eu digo: deixemos apenas o tipo mais elevado de masculinidade assumir o leme do Estado” (Davis, 2016, p. 100). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 91 A concessão do direito de voto às mulheres garantiria a imediata e duradoura supremacia branca, alcançada de modo honesto; pois, como indicam dados oficiais inquestionáveis, “em todos os estados do Sul, com exceção de um, há mais mulheres instruídas do que todos os eleitores analfabetos, brancos e negros, nativos e estrangeiros, somados” (Davis, 2016, p. 139). 92 Assim se apresentava o sufrágio feminino branco como o meio mais adequado para alcançar a supremacia racial. Deixando de lado aspectos tais como a solidariedade, a luta pelos direitos das mulheres ou a igualdade política, o incipiente movimento feminista se converteu em um mero baluarte da superioridade racial das pessoas brancas. O movimento sufragista ficou fatalmente impregnado de racismo, o que não somente abriria uma brecha irreparável no feminismo estadunidense (feminismo branco versus feminismo negro), mas também se transformaria em um instrumento (a mais) no processo de objetificação da mulher negra. Ao assumirem para si mesmas o papel de “guardiãs e protetoras naturais do lar”, ao reivindicar o voto feminino a partir de seu papel de mães dos futuros cidadãos, as mulheres brancas excluíam as mulheres negras do voto, da categoria de mãe e, portanto, de mulher. O primeiro clube de mulheres negras foi organizado em resposta à desenfreada onda de linchamentos e ao abuso sexual indiscriminado que elas sofriam. Ida B. Wells foi uma de suas fundadoras; ambas as questões eram ao mesmo tempo objeto de suas pesquisas e motor de suas reivindicações. Tanto Wells quanto Anna Julia Cooper, outra socióloga afro-estadunidense, em posições sociais diferentes, se inspiraram conscientemente em suas experiências de vida como mulheres afro-estadunidenses para desenvolver uma consciência sistemática da sociedade e das relações sociais.5 Não são, nesse sentido, muito diferentes de outros pensadores que surgiram entre os subalternos. Ida Wells, célebre intelectual, jornalista e ativista negra, canalizou suas energias na luta contra os linchamentos sistemáticos que sofria a população negra depois de constatar que as vítimas não eram culpadas pelos crimes dos quais eram acusadas (na maioria das vezes, pelo ato de estupro). Ela chegou a essa conclusão de forma dramaticamente fortuita, quando três de seus amigos mais íntimos foram linchados, acusados desse delito. Essa circunstância a levou a investigar de forma sistemática todos os atos de linchamento cometidos no Sul, utilizando uma metodologia que só recentemente teve reconhecimento científico. Utilizou as únicas fontes que existiam – as do opressor – para, a partir delas, descobrir questões subjacentes à dominação. Partindo dos relatos dos linchamentos, escritos em jornais de pessoas brancas, analisou as fontes secundárias do Chicago Tribune e fez trabalho de campo logo após os atos arbitrários. Elaborou e publicou estatísticas arrasadoras: mostrou que entre 1880 e 1891 em torno de 100 negros foram linchados; que no ano de 1892, quando mataram seus amigos, outros 160 homens também foram linchados, a maioria por 5 Assim destacava o eminente sociólogo Ritzer (2005) em sua mais recente recuperação das sociólogas afro-estadunidenses. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 assassinato (58) e por estupro (46). Denunciou que os atos eram utilizados para conter a possível ascensão social da população negra no Sul. Apontando as lógicas a partir das quais se denunciava como estupro qualquer contato (às vezes, meramente verbal) entre um homem negro e uma mulher branca, Wells introduziu um dos temas que seria central no feminismo negro: a forma como a interseccionalidade entre “raça” e gênero constrói de maneira desigual a sexualidade da população branca e da população negra. Fez isso destacando os mecanismos através dos quais são demonizadas as relações raciais entre homens negros e mulheres brancas – usando o termo estupro para qualquer tipo de contato ou aproximação entre eles – e a maneira como é naturalizada qualquer forma de agressão sexual (estupro) de homens brancos a mulheres negras. Angela Davis retoma esse assunto: O nó histórico que ata as mulheres negras (sistematicamente abusadas e violadas por homens brancos) aos homens negros (mutilados e assassinados devido à manipulação racista das acusações de estupro) apenas começou a ser reconhecido de modo significativo. Sempre que as mulheres negras desafiaram o estupro, elas expuseram simultaneamente o uso das acusações falsas de estupro enquanto arma mortal do racismo contra seus companheiros (Davis, 2016, p. 189). A aliança racial entre homens e mulheres negras crescia paralelamente à grande brecha que se abriu no movimento sufragista. Os clubes de mulheres negras foram extintos e até mesmo nas grandes passeatas pelo sufrágio feminino as líderes (brancas) do movimento assumiram a política segregacionista obrigando as mulheres negras a caminharem separadamente. Essa convivência constante com o racismo, incluindo a das intelectuais negras dos grupos abastados, serviu, desde o princípio, como nexo de união com as mulheres negras da classe trabalhadora, criando assim um vínculo interclassista que vem diferenciando o feminismo negro do feminismo branco de origem burguesa e que, além disso, está na base da sororidade [sisterhood] que reclamam para si as teóricas do feminismo negro. Bases conceituais do feminismo negro Enquanto o feminismo moderno/ilustrado se desenvolveu a partir de Simone de Beauvoir e sua afirmação “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, os discursos de gênero no feminismo negro partem de uma negação, de uma exclusão, de uma interrogação, o que bell hooks (1981) retoma de Sojourner Truth em um dos primeiros textos do pensamento feminista negro: “E não sou eu uma mulher?” Não é um título escolhido ao acaso. A interrogação resgatada por bell hooks é a expressão de um sentimento coletivo que responde de forma irônica às teorias feministas de gênero surgidas da tese de Simone de Beauvoir, teorias que serviram ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 93 para compreender que a identidade coletiva e pessoal é reconstruída socialmente de maneira precária e constante (Haraway, 1995). A partir do feminismo negro, a identidade da mulher é simultaneamente reclamada e reconstruída. Frente aos exercícios “construtivistas” do feminismo branco, o feminismo negro parte de uma não categoria (não mulher). A única estratégia possível na negação é um exercício de desconstrução. Destruir a negação na qual as mulheres negras foram excluídas da categoria de mulheres para assim avançarem, repensarem-se e reconstruíremse em outras categorias; re-conhecerem as imagens de não mulher como estratégia de hegemonia e dotarem-se das ferramentas adequadas para sua revelação e sua superação. Ferramentas que, nas palavras de Audre Lorde (1984), não poderão ser as ferramentas do amo: “As ferramentas do amo nunca vão desmantelar a casa-grande. Talvez nos permitam obter uma vitória passageira seguindo as regras do jogo, porém nunca nos valerão para efetuar uma autêntica mudança”6. Para deixarem de ser constituídas como objetos e pensarem-se enquanto sujeitos, tiveram que tomar a palavra, recuperar a voz e gerar um novo discurso. Definitivamente, criar uma nova epistemologia. O discurso duplo dos grupos dominados. Patricia Hill Collins 94 Os primeiros textos de teoria feminista negra foram publicados nos Estados Unidos na década de 80 do século XX quando se forjava o que seria denominado a segunda onda do feminismo. Desde diferentes enfoques teórico-práticos – que tiveram uma leitura em termos de feminismo liberal, feminismo radical e feminismo socialista –, foram se ramificando os eixos teórico-políticos do que foi o movimento feminista da segunda metade do século XX, cujas sequelas seguem presentes nos discursos do feminismo hegemônico. Sánchez, em uma interessante revisão do(s) feminismo(s) na Espanha, faz uma articulação em torno de dois grandes temas: o primeiro, representado no lema “o pessoal é político”, queria chamar a atenção para os conflitos e problemas que as mulheres enfrentam no âmbito privado; o segundo estruturaria a análise das causas da opressão, na qual o conceito de patriarcado desempenharia um papel fundamental, reformulado por algumas autoras segundo o sistema de sexo-gênero (Álvarez, 2001; Sánchez, 2001). Foi precisamente o sistema de sexo-gênero o que as feministas negras primeiro puseram em questão. Uma das premissas centrais desse sistema, tal e qual o formulou Rubin em um profícuo artigo em 1975, explica a complementaridade dos sexos e a opressão das mulheres pelos homens através do intercâmbio das mulheres dentro do sistema de parentesco. 6 No texto de partida: “Las herramientas del amo nunca desmontan la casa del amo. Quizá nos permitan obtener una victoria pasajera siguiendo sus reglas del juego, pero nunca nos valdrán para efectuar un auténtico cambio” (tradução nossa). É possível acessar à tradução completa do texto no par de línguas inglês-português realizada por Tatiana Nascimento em <https://www.academia.edu/11277332/ LORDE_Audre_-_As_ferramentas_do_mestre_nunca_v%C3%A3o_desmantelar_a_casa-grande>, acessado em 10.mar.2019 ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 Hazel Carby (1987), Aída Hurtado (1989) e Hortense J. Spillers (1987), entre outras, questionaram a universalidade desse princípio. Elas se perguntaram: o que ocorre quando as mulheres não se encontram nas mesmas posições com relação à instituição do parentesco? O que ocorre com a ideia de gênero se grupos inteiros de homens e mulheres estão situados juntos, fora da instituição de parentesco, mas relacionados com a instituição de parentesco de um grupo dominante? E as três voltaram ao período da escravidão de onde, através de uma análise de corte historicista, mostraram como as mulheres negras não foram inseridas na sociedade estadunidense da mesma maneira que as mulheres brancas. Não foram as únicas. Os eixos teórico-práticos foram amplamente contestados por parte das feministas negras (Davis, 2016; Hull, Bell Scott, Smith, 1982; hooks, 1981, 1984). O que elas denunciavam era o próprio conceito de gênero, na medida em que fazia parte do sistema de relações hierárquicas de “raça”. Com a denúncia, começaram a escutar a sua própria voz, uma voz que havia estado obscurecida em um sistema de dominação que havia sido construído com as ferramentas dos grupos hegemônicos. Assim grita bell hooks: Meu desejo de encontrar fontes que pudessem explicar a experiência negra (especialmente minha presunção de que os livros escritos por brancos poderiam conter tal explicação) é precisamente um reflexo da socialização dos grupos oprimidos e explorados em uma cultura de dominação. Nós aprendemos que não temos poder para definir nossa própria realidade ou para transformar as estruturas opressivas. Nós aprendemos a buscar naquelas capacitadas pelos sistemas de dominação, que nos ferem e nos são daninhas; procuramos ser liberadas e nunca conseguimos isso. Para nós, é necessário fazer o trabalho por nós mesmas se quisermos conhecer mais sobre nossa experiência, se quisermos ver essa experiência desde perspectivas inconformadas com a dominação (hooks, 1984, tradução nossa). É preciso sair, portanto, das lógicas do discurso da dominação, afastar-se das formas que já foram pensadas. Para o feminismo negro, a geração de pensamento passava por um exercício de desconstrução e reconstrução. Nessa tarefa, a obra de Patricia Hill Collins tem um grande protagonismo. Em primeiro lugar, por seus aportes no campo da epistemologia, naquilo que ela estabelece como terceira via (entre as ideologias científicas da objetividade e os relativismos) e que faz referência a uma epistemologia alternativa que se sustenta na conexão entre conhecimento, consciência e políticas de empoderamento: 1. Na medida em que se constrói a partir da experiência vivida e não de uma posição teoricamente “objetiva”, o conhecimento se desenvolve dialogicamente. Diante da linguagem objetiva e distante de outras formas de aproximação do conhecimento, nas epistemologias alternativas a autora é central e está ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 95 presente no texto. Na epistemologia feminista negra, a história é contada e preservada em forma de narrativa e não de uma posição analítica. 2. A questão ética é colocada no centro da produção de conhecimento com o reconhecimento de que todo o pensamento está carregado de valor. Não cabe, portanto, uma distância objetiva com relação à realidade investigada, nem a ruptura binária entre intelecto e emoção que rege a perspectiva eurocêntrica. Pelo contrário, o conhecimento deverá ser testado pela presença de empatia e emoções. 3. A epistemologia feminista negra requer um acerto de contas pessoal. O pesquisador e a pesquisadora não estão separados, distanciados da verdade. A forma de produzir conhecimento dos grupos subjugados se dá em um sistema de conhecimento preexistente onde toda informação encontra sua existência e “verdade”, e onde sua própria forma de produzir conhecimento “gera” verdade. Por isso tem uma maior carga de responsabilidade moral sobre ele. 96 Em segundo lugar, por suas contribuições ao pensamento feminista negro em particular e ao feminismo no geral. Todo o essencial está sistematizado em um livro escrito em 1990 e que se transformou em um clássico do pensamento feminista negro: Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment. O capítulo que retiramos desse livro para a presente antologia sintetiza as características-chave. Com respeito à epistemologia alternativa, Collins defendia que epistemologia e conhecimento não são separáveis, tampouco alheios aos valores políticos nem às crenças individuais. A forma como nos aproximamos do conhecimento e o próprio conhecimento têm um significado em termos de empoderamento. Conhecimento, (auto)consciência e empoderamento são termos que aparecem constantemente interrelacionados em seu pensamento. “Escrevi Black Feminist Thought com o fim de ajudar no empoderamento das mulheres afroestadunidenses”, escreveu Collins (2000b) no prefácio da segunda edição de seu livro. “Eu sabia que uma mulher negra, ao experimentar uma mudança de consciência com relação à sua própria vida, pode se empoderar”. Hill Collins interrelacionava pensamento feminista negro e empoderamento em torno de três eixos. No plano teórico, ela redefine o conceito de opressão em termos de interseccionalidade incorporando o que denomina “matriz de dominação”7 e adota a “teoria do ponto de vista” para caracterizar as bases do pensamento feminista negro, 7 A matriz de dominação faz referência à organização total de poder em uma sociedade. Há duas características em qualquer matriz: 1) cada matriz de dominação tem uma particular disposição dos sistemas de intersecção da opressão; e 2) a intersecção dos sistemas de opressão está especificamente organizada através de quatro domínios de poder interrelacionados: estrutural/disciplinário/ hegemônico/interpessoal. A intersecção de vetores de opressão e de privilégio cria variações tanto nas formas quanto na intensidade na qual as pessoas experimentam a opressão (Collins, 2000b, p. 299, tradução nossa). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 enfatizando a perspectiva das mulheres negras sobre sua própria opressão. Tudo isso gera uma tensão entre as mudanças coletivas e as experiências individuais que Collins resolve a partir de um duplo posicionamento: negando a possibilidade de um ponto de vista homogêneo e estabelecendo a formação de um ponto de vista coletivo. Da mesma forma, mostra a articulação entre conhecimento e empoderamento. Como acontecia no movimento de mulheres brancas, no feminismo negro a crescente sensibilidade da diversidade no que é comum se conecta com a diversidade nas formas de ativismo que, no caso das mulheres negras, reverbera na criação de espaços sociais onde as mulheres falam por muito tempo. Collins identifica no texto três desses espaços sociais: a) o das relações das mulheres negras entre si; b) a tradição das cantoras de blues e c) as teóricas afro-estadunidenses. Enquanto que o primeiro espaço está fixado no dia a dia das mulheres negras, os dois últimos são os que historicamente deram voz às mulheres que não tinham voz. A importância desses espaços se estabelece na medida em que proporcionam oportunidades para a autoidentificação, que é o primeiro passo para o empoderamento. Se um grupo não se define a si mesmo, então será definido por e em benefício de outros. Collins também situa a luta pela autoidentificação das mulheres negras enquanto coletivo de luta em um diálogo entre ação e pensamento. “Mudanças no pensamento” – afirma – “podem alterar condutas e as condutas alteradas podem produzir mudanças no pensamento”. Ela vê essa mudança como um processo de rearticulação, mais que de criação de consciência, entendendo a rearticulação como um veículo para re-expressar uma tomada de consciência que já aparece nas ruas com uma certa frequência. É difícil apontar brevemente as contribuições de Patricia Hill Collins não somente com relação à epistemologia feminista negra ou a dos grupos subjugados como também à teoria social geral. Apresentar a teoria e a prática de Collins como um solilóquio afrocentrado obscureceria a implicação teórica de seus aportes. De fato, Collins trata de colocar as mulheres negras estadunidenses no centro de suas análises. No entanto, ela faz isso sem privilegiar essas experiências. Para concluir com suas próprias palavras: Apesar do enorme potencial das mulheres afro-estadunidenses para iluminar a matriz de dominação, o ponto de vista delas é somente um ângulo de visão. O pensamento feminista negro representa uma perspectiva parcial. A matriz de dominação geral acolhe múltiplos grupos, cada um com variadas experiências de provações e de privilégios que geram perspectivas correspondentes parciais, conhecimentos situados e, para grupos subordinados claramente identificáveis, conhecimentos subjugados [...] Esse enfoque feminista afrocêntrico permite às mulheres afroestadunidenses levar o ponto de vista das mulheres negras a diálogos epistemológicos mais amplos relativos à matriz de dominação. Eventualmente, tais diálogos podem levar a um ponto ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 97 no qual todas as pessoas apreendam o core em outra experiência. (Collins, 2000b, p. 229, tradução nossa) Os rostos da resistência. As mulheres negras do blues de Angela Davis Sob a máscara, no gueto da comunidade das mulheres negras, na sua família, e mais importante, na sua psique, há e sempre houve outro mundo, um mundo no qual ela opera – às vezes com vergonha, mas frequentemente com verdadeiro deleite – fazendo o que fazem as mulheres negras “normais”. (O’Neale, 1986, p. 139) Estamos enraizadas na linguagem, casadas, nosso ser são as palavras. A linguagem é também um lugar de combate. O combate dos oprimidos em relação à linguagem para nos recuperarmos a nós mesmas – para reescrever, reconciliar, renovar. Nossas palavras não carecem de importância. São um ato – de resistência. A linguagem também é um lugar de combate. (hooks, 1989, p. 28) 98 James C. Scott afirma, no livro que fez com que nos aproximássemos de forma diferente das lógicas ocultas dos grupos subalternos: Primeiro, o discurso oculto é um produto social e, portanto, resultado das relações de poder entre subordinados. Segundo: como a cultura popular, o discurso oculto não existe na forma de pensamento puro; existe somente na medida em que é praticado, articulado, manifestado e disseminado dentro dos espaços sociais marginais. Terceiro: os espaços sociais nos quais cresce o discurso oculto são por si mesmos uma conquista da resistência, que se ganha e se defende nas entranhas do poder. (Scott, 2003, p. 175, tradução nossa) O que Angela Davis nos apresenta nesse texto é um dos espaços sociais onde crescia o discurso oculto das mulheres negras, aquele de onde respondiam, resistiam às construções ideológicas que, no poder, moldavam sua sexualidade como primitiva e exótica. Esse espaço, que Patricia Hills Collins incluiu em uma categoria mais ampla como espaço social e cultural, é o das cantoras negras de blues da primeira parte do século XX. Angela Davis não é a primeira nem a única entre as feministas negras que explorou esse espaço. As cantoras de blues exerceram um forte fascínio nas feministas negras, sobretudo estadunidenses, já desde os primeiros textos literários.8 No entanto, 8 Ver, entre outras, Toni Code Bambara, Gayl Jones, Sherley Anne Williams, Alice Walker, Mary Helen Washington, Toni Morrison, Alexis De Veaux e Jessica Hagedorn. Nos anos 80 do século XX iniciam as explorações feministas do blues com os trabalhos de Rosseta Reitz, Sandra Leib e Daphne Duval Harrison. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 foi outra feminista da diáspora negra, Hazel Carby, quem introduziu as cantoras de blues nos primeiros vinte anos do século XX como as autênticas representantes da cultura popular. Fez isso em um texto no qual enfrentou as diferentes visões da sexualidade das mulheres negras que se espelhavam nas escritas das intelectuais e escritoras da classe média negra e as que apareciam nas letras, nas vidas e nos movimentos das cantoras de blues. Nelas aparecem as contradições nas quais são confrontadas as imagens estereotipadas que o discurso hegemônico concebe sobre as mulheres negras. Entretanto, cada grupo o enfrenta de uma maneira diferente. Enquanto nos textos literários são assumidas as categorias do discurso hegemônico que definem a sexualidade feminina negra como primitiva e exótica e são buscadas vias de redenção na negação do desejo e na repressão da sexualidade,9 as mulheres do blues, como as grandes “Ma” Rainey ou Bessie Smith, desafiam o patriarcado com maior liberdade. Criam um “discurso” que articula luta cultural e política sobre as relações sexuais; uma luta que se posiciona diretamente contra a objetificação da sexualidade das mulheres em uma ordem patriarcal, mas que ao mesmo tempo reclama os corpos das mulheres como sujeitos sensuais e sexuais. Carby outorga a essas mulheres o papel de intelectuais orgânicas, no sentido gramsciano do termo. Não somente faziam parte da comunidade sujeito de sua música, como também eram produto do movimento rural-urbano. Carby analisa a partir desse contexto social as migrações rurais-urbanas (sul-norte), a forma como as atuações e os discos refletiram e marcaram as relações sexuais dentro da comunidade negra, assim como o terreno cultural no qual as diferenças sexuais eram disputadas e redefinidas (Carby, 1986). Angela Davis parte do trabalho de Carby e de sua obra anterior Mulheres, raça e classe para buscar no blues feminino dos anos 1920 os rastros e rostos de uma tradição secreta de um feminismo de classe trabalhadora, que coexiste junto a uma tradição de classe média negra, mas cujos códigos e formas de expressão eram completamente distintos. Frente à obra (escrita) das intelectuais do feminismo negro, referentes tradicionais do movimento feminista negro, os textos (não escritos) do blues feminino aparecem como o veículo de expressão das ideias produzidas nas e pelas mulheres pobres de classe trabalhadora, aquelas que nunca poderiam acessar os textos escritos e aquelas que não se reconhecem – salvo nas categorias de exclusão – em suas imagens que são projetadas tanto pelo sistema hegemônico (branco) quanto pela classe média negra. Nesse sentido, o blues é o herdeiro das canções de trabalho e dos rituais na época da escravidão. Músicas que conseguiam traduzir os desejos e os lamentos da população negra em uma expressão de caráter coletivo, em um discurso que, na medida em que era inacessível para os grupos dominantes, funcionava como uma expressão comunitária da experiência de ser negro. No entanto, enquanto a música da escravidão – ambas, a secular e a religiosa – era a quintessência da música coletiva no sentido de que era coletivamente criada e refletia o desejo da comunidade pela liberdade, o blues – a forma musical afroestadunidense predominante no período pós-escravidão – articulou um novo valor 9 Hazel Carby analisa as obras de Zora Neale Hurston, Jessie Fauset e Nella Larsen. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 99 das diferentes aspirações e necessidades emocionais. O nascimento do blues era uma prova estética de novas realidades psicossociais entre a população negra. Diante dos referentes coletivos do período anterior, foram incorporadas duas características do sistema hegemônico: a individualidade e a diferenciação sexual. Angela Davis já havia argumentado em trabalhos anteriores que a população negra havia conseguido durante a escravidão a façanha prodigiosa de transformar a igualdade negativa que emanava do fato de sofrer a mesma opressão como escravizados10 de forma positiva: a igualdade nas relações sociais (Davis, 2016). Nesse texto, ela introduz dois dos aspectos que, com a emancipação, transformaram radicalmente a vida da população afro-estadunidense: a viagem e a exploração livre da sexualidade. E demonstra como esse duplo exercício da liberdade individual está presente em todas as composições de blues da época, tanto nas dos homens quanto nas das mulheres. Embora apareça de distintas formas, isso ocorre de tal maneira que essas duplas vivências apontavam trajetórias genericamente diferenciadas na população negra. Os homens e as mulheres do blues compartilhavam a linguagem e a experiência do trem e da sexualidade. No entanto, havia significados diferentes para cada um. O discurso hegemônico – que estava também representado nas vozes masculinas – diferenciava entre quem viajava (os homens) e quem sentia o desamparo do abandono (as mulheres), como expressava uma das canções de Peetie Wheststraw trazida por Angela Davis no texto que apresentamos: 100 When a woman gets the blues, she hangs her head and cries. When a man gets the blues, he flags a freight train and rides. 11 As cantoras negras de blues resistiram em exprimir em suas letras trajetórias femininas marcadas pela resignação e pela impotência. Pelo contrário, suas letras estavam cheias de referências sobre a independência feminina, o controle dos seus desejos e o exercício livre de sua própria sexualidade. Não eram somente as letras. Suas trajetórias de vida estavam matizadas por esses cenários construídos à margem da moral dominante; cenários que se transformaram, finalmente, em referentes para as mulheres pobres ou de classe operária que o discurso hegemônico colocava no papel de vítimas ou no estereótipo de jezzabel, mulheres dominadas por seu apetite sexual e vítimas de seus excessos. Porque era assim que se traduzia, na percepção da moral dominante, a recém-adquirida (e praticada) liberdade sexual das mulheres negras. O que Angela Davis propõe nesse sugestivo texto é que cantoras de blues como “Ma” Rainer ou Bessie Smith, em cujas letras ela desentranha as 10 O patriarcado branco havia anulado a possibilidade da existência de um patriarcado negro entre os escravizados: “Assim como as mulheres negras dificilmente eram ‘mulheres’ no sentido corrente do termo, o sistema escravista desencorajava a supremacia masculina dos homens negros.” (Davis, 2016, p. 26). 11 “Quando uma mulher fica deprimida, inclina a cabeça e chora/Quando um homem fica deprimido, toma um trem de mercadorias e vai embora” (Tradução nossa). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 origens do pensamento feminista negro, desempenharam nos anos 1920 o papel de intelectuais no sentido que Collins confere às feministas negras: aquelas mulheres que são capazes de traduzir as necessidades de outras mulheres em um discurso que permite e/ou possibilita seu empoderamento. As cantoras de blues tinham essa capacidade porque, como dizia Carby, elas mesmas faziam parte desse grupo, por isso eram capazes de entender as lógicas a partir do lugar de atuação, sentimento e sofrimento das mulheres negras de classe operária. A partir daí, com um código que compartilhavam e que, com o tempo, as distanciava dos grupos dominantes, elas eram capazes de estabelecer uma espécie de comunhão através das letras de suas canções como também por sua maneira de estar, de se deslocar, de chegar até elas. Aquilo que na perspectiva hegemônica da sociedade era visto como excesso, no blues era compreendido pela capacidade de agência. As mulheres negras não estavam dominadas por seu apetite sexual; escolhiam praticar sua sexualidade livremente, à margem do imaginário do amor romântico ligado ao matrimônio imposto pela sociedade branca. O blues feminino funcionava, nesse sentido, como linguagem de resistência, capaz de articular em um discurso comum os interesses coletivos de um grupo subjugado. Redefinir o conceito de família: o valor do parentesco. Um diálogo com Carol Stack Confesso que quando li pela primeira vez All our Kin, a maravilhosa monografia na qual se baseia o texto que apresentamos nesta antologia, pensei que Carol Stack era negra. Depois soube que ela mesma se sentiu e se percebeu assim nos três anos que morou no gueto (Stack, 1972). Já existiam pesquisas pioneiras nas comunidades negras como a que Du Bois (1899) realizou no começo do século, mas desde os anos 1930 as aproximações haviam sido realizadas a partir de dados quantitativos. Algumas, inclusive, foram especialmente tóxicas para a imagem da comunidade negra nos Estados Unidos. Carol Stack faz referência àquela que foi, sem dúvidas, a mais influente política e socialmente: o Informe Moynihan (1965). Trata-se de um texto de assessoramento político, redatado pelo sociólogo que lhe dá nome, no qual é descrita e diagnosticada a “família negra” a partir de critérios elaborados sobre a base de um modelo de família nuclear que universaliza o modelo de família de classe média branca estadunidense. Tomando como referente de normalidade o matrimônio heterossexual, aponta como anomalias as práticas da família negra: “Um quarto dos casamentos estão desfeitos, aproximadamente um quarto dos nascimentos são ilegítimos; pelo menos um quarto das famílias tinha como chefe uma mulher”, características essas que, segundo o autor, permitem falar da “desintegração da família negra” e derivar como consequências de tal ruptura “a crescente dependência das políticas assistenciais públicas” e o empobrecimento da comunidade negra. O Informe Moynihan ia mais além. Destacava que a causa ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 101 102 para essa situação tinha raízes históricas, localizadas na prática escravista e nos posteriores deslocamentos massivos em direção às cidades. O diagnóstico? Uma espécie de patologia da família negra que tinha, inclusive, um nome: matriarcado. O efeito desse relatório na comunidade negra foi muito daninho. As imagens estereotipadas das mulheres negras as distanciavam do ideal de feminilidade que acompanhava tradicionalmente a família “ideal” e que se apoiava na imagem de uma determinada mulher que possuía as quatro virtudes cardinais: piedade, pureza, submissão e domesticidade (Collins, 2000b, p. 72). Através desses estereótipos femininos, demonstrava-se a desestruturação das famílias negras e se explicava, a partir dela, os índices de pobreza, de marginalidade e inclusive de violência entre as comunidades negras. Pensadores, políticos e também cientistas sociais se apoiaram no Informe para caracterizar uma “subclasse” [underclass] e formular, tomando-o como base empírica, discursos, programas e medidas políticas. Uma das ideias de maior ressonância dentro da política de “ajuda assistencial” é a que tende a identificar as mulheres negras, chefes de família monoparentais, como as principais preceptoras do salário social. Isso gerou um novo estereótipo, que Collins (2000b) define como “a mãe dos serviços sociais” [Welfare Mother], uma imagem que define a mulher como alguém com pouco interesse em ascender e manter um emprego e que, em troca, engravida com frequência com o fim de conseguir mais dinheiro dos cofres do Estado. Ao mesmo tempo, é retratada como uma mãe incapaz de socializar seus filhos nos valores cívicos e de impor a eles padrões normativos para que valorizem e aceitem a ética do trabalho, o que acaba perpetuando a situação de pobreza que parece envolver toda a família. Quer dizer, são responsabilizados pela situação crônica de pobreza nas margens internas do gueto negro os indivíduos que sofrem tudo isso, além das próprias mulheres. O trabalho de Carol Stack foi um dos primeiros em romper com essa imagem. Anos antes, outro antropólogo, Elliot Liebow, havia indagado as lógicas internas do gueto através dos olhos, olhares e vozes dos homens negros. Seu estudo, Tally’s Corner (1967), foi uma das primeiras respostas da antropologia ao Informe Moynihan. No entanto, esse olhar penetrante, na medida em que se centrava quase que exclusivamente nos homens e considerava de forma periférica as famílias, não atingiu o coração da comunidade. Carol Stack, por outro lado, ao situar as mulheres no centro e dar relevância ao seu ponto de vista, pôs o foco nos lares – que se formavam ao redor das mulheres – e nas redes que elas articulavam. A partir desse emaranhado que ela desembaraça, passam a ser visíveis as lógicas comunitárias que sustentam as redes. Atendendo às vozes das mulheres negras lutando para criar seus filhos no gueto, Stack mostrou que as condutas que a sociedade dominante condenava como patológicas eram realmente estratégias das próprias mulheres para manter a coesão e satisfazer suas necessidades econômicas. O trabalho de Carol Stack teve um rápido e amplo reconhecimento no campo disciplinar da antropologia social como exemplo de estudo etnográfico sobre a pobreza e a desigualdade social. Por sua vez, o feminismo negro havia retomado seus ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 aportes etnográficos como base para a reconceitualização da família e da comunidade. “Colocando as mulheres afro-estadunidenses no centro da análise” – afirma Hill Collins (2000b) –, “Stack não somente revela que são necessárias mais informações sobre as experiências das mulheres como também questiona as perspectivas eurocêntricas e masculinas sobre a família”. Ao estudar o papel das mulheres negras na luta e na sobrevivência do grupo, revela-se um modelo (afrocêntrico) de comunidade que, em contraste com a definição de comunidade implícita no modelo de mercado, estruturada fundamentalmente pela competição e pela dominação, é construída sobre as conexões, o cuidado e a responsabilidade pessoal (hooks, 1989). Entendo que esta colaboração justificaria a inclusão de Carol Stack em qualquer antologia de feminismo negro. No entanto, esta compilação é uma das primeiras a fazer isso. Talvez seja porque, como ela mesma afirmou, apesar de, nos anos em que viveu no gueto, ter esquecido em muitas ocasiões a cor da sua pele, nunca teve a ilusão de ser uma habitante daquele lugar (Duneier, 2007). Teve a suficiente capacidade para entender as outras mulheres com seus códigos e, ao mesmo tempo, ser consciente da diferença entre ela e seus sujeitos. O trabalho de Carol Stack é um trabalho comprometido que se encaixaria bem na trilogia com a qual Hill Collins sintetizava o papel das intelectuais negras (conhecimento/consciência/ empoderamento). Poucos trabalhos teóricos atingiram o nível de penetração nas lógicas da comunidade negra como a aproximação etnográfica de Carol Stack; a tal ponto que Gilroy e hooks demandavam um trabalho com essa capacidade de introspecção para descobrir e mostrar como funciona atualmente a comunidade negra em contextos marginais (Gilroy, 1993). A única coisa que diferencia Carol Stack de outras autoras que apresentamos nesta antologia é a sua desvinculação com o movimento político; efetivamente, não se pode dizer que Carol Stack seja uma feminista negra. No entanto, sua obra contribuiu de forma substancial para a criação do pensamento negro e isso também merece um reconhecimento. Segunda Onda do pensamento feminista negro. Diáspora e estudos culturais. Ao colocar o racismo no epicentro da desigualdade das mulheres negras, o feminismo negro estadunidense abriu a porta para outros feminismos. No contexto europeu, o feminismo negro britânico tomou a dianteira. Frente à vivência da escravidão, vital no discurso afro-americano, as britânicas negras incorporaram situações e/ou vivências do pós-colonialismo, as migrações e os deslocamentos. Fizeram-no partindo de outra categoria de “negro”. Avtar Brah o explica da seguinte forma: Na medida em que mulheres negras compreendiam uma categoria altamente diferenciada em termos de classe, etnia e ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 103 religião, e incluíam mulheres que tinham migrado da África, do subcontinente asiático e do Caribe, tanto como aquelas nascidas na Grã-Bretanha, o negro do “feminismo negro” inscrevia uma multiplicidade de experiências, ainda que articulasse uma posição particular de sujeito feminista. Além disso, ao trazer para o primeiro plano uma ampla gama de experiências diaspóricas em sua especificidade tanto local quanto global, o feminismo negro representava a vida negra em toda sua plenitude, criatividade e complexidade (Brah, 2006, p. 357). 104 Ligadas ao movimento intelectual britânico da New Left [Nova Esquerda] e com vínculos teóricos com a diáspora negra, as feministas negras britânicas construíram um discurso identitário frente às posições da esquerda e do feminismo branco. As autoras que apresentamos nesta antologia, Hazel Carby e Pratibha Parmar são, nesse sentido, representativas de um movimento que teve seu centro de operações no grupo Raça e Política do Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) da Universidade de Birmingham. O CCCS foi criado em 1964 dentro do que foi o movimento da New Left. Esse movimento aglutinou membros relevantes da intelectualidade pós-colonial e anticolonialistas sem espaço nem acolhimento dentro das instituições dominantes da esquerda britânica. Um deles, talvez hoje o mais canonizado de seus pais fundadores, é o sociólogo e crítico Stuart Hall (Morley; Chen, 1996), talvez porque se encontre entre a primeira geração, mais centrada nas tradições e resistências do proletariado britânico (representada nas obras de Hoggart, Williams ou E. P. Thomson), e a segunda, que incorpora como questões centrais a “raça” e o feminismo. De fato, quando Hazel V. Carby e Pratibha Parmar, junto com Valerie Amos ou Paul Gilroy, se incorporaram à Universidade de Birmingham, o CCCS era liderado por Stuart Hall e já havia iniciado o que o próprio Hall qualificaria como a virada da classe para a “raça” e o gênero, para o que, sem dúvida nenhuma, contribuíram os e as integrantes do grupo Raça e Política. Tanto é assim que o texto de Carby que selecionamos, White Women Listen! Black Feminism and the Boundaries of Sisterhood, na ocasião um dos referenciais teóricos do feminismo negro, foi publicado pela primeira vez em um dos livros de referência dos Estudos Culturais, The Empire Strikes Back (1981); neste volume também participou Pratibha Parmar com o capítulo Gender, Race and Class. Asian Women in Resistence. Com o trabalho de ambas, ao qual se deveria somar também o texto que Pratibha Pramar escreveu junto com Valerie Amos (1984), o gênero foi incorporado ao CCCS partindo da/na intersecção com a “raça”, distinguindo-se e diferenciando-se da primeira onda feminista, completamente alheia à questão racial (Brundson, 1996). Segundo aponta Grossberg, o projeto dos Estudos Culturais era construir uma história política do presente e fazer isso de uma forma particular, de uma maneira contextualista. Ele pretende evitar reproduzir os universalismos que contribuíram – como prática dominante de produção de conhecimento – para forjar certas relações ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 de dominação, desigualdade e sofrimento; e busca práticas capazes de abranger a complexidade e a contingência, assim como evitar qualquer espécie de reducionismo (Grossberg, 2006). O trabalho de Carby e de Parmar se desenvolve dentro dessas tendências. No caso de Hazel Carby, ademais, deve-se apontar a estreita relação que estabelece intelectualmente com Paul Gilroy, o outro grande teórico da diáspora negra no CCCS. Como ele, Carby move-se entre dois pilares teóricos: a tradição póscolonial dos Estudos Culturais britânicos, personificada na figura de Stuart Hall, e os pensadores e intelectuais afro-estadunidenses que tentaram recuperar a tradição histórica e literária da comunidade negra, oculta pelo véu do racismo na sociedade estadunidenses. Gilroy incorpora, além disso, o conceito de Atlântico Negro dos afrocaribenhos, britânicos e americanos. Em seu livro The Black Atlantic12 ele apresenta uma cultura diaspórica negra diversa que transcende os limites das identidades nacionais e/ou étnicas. Este mapa/narrativa coloca em primeiro lugar as histórias de cruzamento, migração, interconexão e viagem. Partindo desse ponto, dessas zonas de contato, reescreve a história do Atlântico Negro e a de algumas de suas figuras mais emblemáticas. A produção teórica de Hazel V. Carby discorre também nesse território amplo, de cruzamentos, interconexões e viagens, que é o Atlântico Negro, e contribuiu substancialmente para a geração do pensamento negro.13 O texto apresentado nesta antologia, White Women Listen! Black Feminism and the Boundaries of Sisterhood (1982), se enquadra nesse tipo de produção gerada no CCCS nos anos 1980, trabalho intelectual de alto nível, mas com evidente vocação de transformação política. Carby também queria contribuir para a transformação política do feminismo. Em primeiro lugar, denunciou os vazios, as lacunas existentes, que apareciam no movimento hegemônico desde os anos 1970. Posicionou-se junto às feministas negras que, em ambos os lados do Atlântico, partindo de diferentes posições, e por meio de distintas estratégias, exigiam que se reconhecesse a existência do racismo como um traço estrutural de suas relações com as feministas brancas. Em segundo lugar, criticou e questionou supostos conceitos universais centrais na teoria feminista, que demonstrou problemáticos ao serem aplicados nas vidas das mulheres negras, como “família”, “patriarcado” e “reprodução”. Carby assentava, assim, as bases para uma sistematização do conhecimento construído pelas feministas negras em contextos afro-estadunidenses, asiáticos e africanos. Em terceiro lugar, ela abriu uma via para uma possível interpretação do feminismo por diferentes grupos de mulheres a partir de posições igualitárias. Para isso, são necessários conceitos que permitam especificidade e, ao mesmo tempo, provenham de pontos de referência transcultural. Carby aposta no conceito de “sistemas sexo-gênero” de Gayle Rubin (1975), que, por um lado, oferece a oportunidade de ser histórica e culturalmente específico e, por outro, indica a posição de autonomia relativa da esfera sexual, possibilitando que a subordinação das mulheres seja vista como um “produto das relações que organizam 12 No Brasil: GILROY, P. O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34, 2001. 13 Ver, por exemplo, Carby (1987, 1998, 1999). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 105 106 e produzem o sexo e o gênero”. Partindo desse marco teórico, qualquer relação familiar deve ser entendida e explicada pela lógica própria de um sistema sexogênero específico, e qualquer padrão de subordinação deve ser historicizado, em vez de depreciado como um produto de uma estrutura familiar patológica. A publicação de White Woman Listen! alimentou um corpus teórico crítico com o feminismo branco por parte de feministas negras britânicas – incluindo o volume que a revista Feminist Review dedicou ao tema em 1984, Many Voices, One Chant: Black Feminist Perspectives – que sublinha as teorias e práticas etnocêntricas do feminismo branco.14 Isso gerou, entre as feministas socialistas, um questionamento de seus pressupostos teóricos. O artigo Ethnocentrism and SocialistFeminist Theory de Barret e McIntosh (1985) sintetiza essa resposta, reflexo, por sua vez, das contradições do próprio movimento feminista na Inglaterra. De um lado, os autores reconheciam as limitações do conceito de patriarcado como uma dominação masculina invariável, independente da classe e do racismo; mas, de outro, não foram capazes de ver que as estruturas de classe, racismo, gênero e sexualidade não podem ser tratadas como “variáveis independentes” porque a opressão de cada uma está inscrita dentro da outra – é constituída por e constitutiva das outras. O problema, que também se percebe no artigo, é – como apontaria Avtar Brah (2011) – a tendência a tratar as questões de desigualdade centrando-se nas vítimas: “Os debates sobre o feminismo e o racismo frequentemente se centram na opressão das mulheres negras ao invés de explorarem como o gênero tanto de mulheres brancas como de mulheres negras se constrói por meio da classe e do racismo”. Kum-kum Bhavnani e Margaret Coulson também reagiram àquele texto: O racismo atua de uma maneira que situa as diferentes mulheres em diferentes relações com as estruturas de poder e de autoridade na sociedade [...]. Não é que apenas haja diferenças entre os distintos grupos de mulheres, mas sim que essas diferenças são, frequentemente, cenário de um conflito de interesses (Bhavnani, Coulson, 2004). O texto de Pratibha Parmar, Black Feminism: The Politics of Articulation (1990), escrito posteriormente a esta efervescência teórica e política do feminismo negro britânico, situa-se já em outro momento, quando começa a tornar-se visível sua “desintegração”. O trabalho que apresentamos abarca, com extraordinária lucidez, este momento de incerteza para o próprio movimento. Mas não se limita a isso. Partindo da análise e do diagnóstico da situação – a dissolução de um pensamento (e ação) coletivo na luta pelo reconhecimento de (diversas e sobrepostas) identidades oprimidas –, inicia um novo itinerário para, a partir desse espaço, dar outro salto em direção à busca de um novo caminho, de um “novo tipo de sonhos”. 14 Ver, entre outras, Amos, Parmar (1984), Parmar, Miza (1981), Brah, Minhas (1985), Lewis, Parmar (1983), Bryan, Dadzie, Scafe (1985), Visram (1989), Bhachu (1988), Phoenis (1988), Parmar (1990), Brah (2011). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 Pratibha Pramar incorpora neste texto diferentes formas expressivas. Começa em um formato mais acadêmico, formulando o que sem dúvida é a força e a fraqueza do feminismo negro britânico, isto é, a articulação de múltiplas autoidentidades (as mulheres britânicas negras são parte de muitas diásporas) com uma consciência coletiva que fortaleça mulheres que, como negras, como feministas, como lésbicas, habitam posições de marginalidade e resistência. O feminismo negro conseguiu realizar isso na década de 1980, mas as políticas identitárias diluíram esta potência ao falar de “experiências subjetivas autênticas”. O problema que Pramar indica para o feminismo negro britânico, mas que não se limita a este movimento, é que a releitura em termos de identidade de subjetividades compartilhadas em contextos de opressão acaba sendo colocada como uma hierarquia de opressões e que, portanto, enfatiza a acumulação de uma coleção de identidades oprimidas. Dessa maneira, desvia-se o olhar de metas que contribuam realmente para a mudança social. Pramar se propõe a reorientar esse olhar. E é aqui que incorpora e ensaia novas formas estilísticas. Primeiro, agregando novas vozes a seu discurso e, depois, por meio de imagens. É muito sugestivo o uso que ela faz do texto dialogado. Como referente intelectual inclui a poeta, artista e pensadora June Jordan. Com ela pensa, constrói pensamento, alinhava estratégias de ação. Mostra, com as imagens, como se pode gerar um novo discurso, um discurso visual que explore a complexidade e harmonize as diferenças. Abre caminho para que, a partir da fotografia, as políticas de representação convivam com as estratégias de desconstrução e decodificação e gerem movimentos de reconstrução e recodificação. Novas narrativas. Discurso pós-colonial e identidades diaspóricas O debate que Pratibha Pramar deixou aberto em Black Feminism: The Politics of Articulation está no centro das novas contribuições que as experiências pós-coloniais e diaspóricas dão ao feminismo negro. As categorias raciais fechadas e binárias sobre as quais se construiu o pensamento feminista negro são problemáticas em tempos pós-modernos. A questão da identidade – dizia Pramar – adquiriu um peso colossal para aquelas de nós que somos migrantes pós-coloniais habitando histórias de diáspora. Mas, como se define hoje a identidade? Stuart Hall (2000), o “intelectual da diáspora”, como foi denominado por Kuan-Hsing Chen (2011), discute o tópico nos seguintes termos: Não estou sugerindo que todas essas conotações devam ser importadas em bloco e sem tradução para o nosso pensamento sobre a “identidade”; elas são citadas aqui para indicar os novos significados que o termo está agora recebendo. O conceito de identidade aqui desenvolvido não é, portanto, um conceito essencialista, mas um conceito estratégico e posicional. Isto é, de forma diretamente contrária àquilo que parece ser sua carreira ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 107 108 semântica oficial, esta concepção de identidade não assinala aquele núcleo estável do eu que passa, do início ao fim, sem qualquer mudança, por todas as vicissitudes da história. Esta concepção não tem como referência aquele segmento do eu que permanece, sempre e já, “o mesmo”, idêntico a si mesmo ao longo do tempo. Ela tampouco se refere, se pensarmos agora na questão da identidade cultural, àquele “eu coletivo ou verdadeiro que se esconde dentro de muitos outros eus – mais superficiais ou mais artificialmente impostos – que um povo, com uma história e uma ancestralidade partilhadas, mantém em comum” (Hall, 1990). [...] Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação. [...] Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos nos representar a nós próprios” (Hall, 2000, p. 107-109). No feminismo negro, quem colocou em questão as identidades essencializadoras foram mulheres que, partindo de posições diaspóricas e pós-coloniais, sentiram o vazio da não representação. Foram também elas que, demandando um reconhecimento à margem das categorias de representação impostas – dos grupos dominantes e daqueles que o sistema hegemônico reconhece (e se reconhecem) como dominados –, se autorrepresentaram, criando seu próprio não espaço, como diria Ifekwunigwe, ou seus espaços de (des)localização, como diria Magdalene Ang-Lygate; territórios in-explorados onde residem os significados variáveis da diáspora. Trinh T. Minh-ha (1986) utiliza este intangível espaço intermediário e desenvolve sua teoria do “outro inapropriado / inapropriável” como uma imagem da mulher pós-colonial, aquela que resiste às definições da outridade impostas e insiste em definir a diferença partindo de sua própria perspectiva. Posição que faz dela uma pessoa incômoda, duplamente problemática. Em When the Mirror Speaks: The Poetics and Problematics of Identity Construction for Métisse Women in Bristol, Jayne Ifekwunigwe (1999) evidencia a dureza do território no qual habitam as mulheres mestiças, começando pelo uso de uma categoria, métisse, que não tem fácil acomodação na língua inglesa. Ifekwunigwe apresenta seis relatos de mulheres que se enfrentam com a tensão de serem mestiças e se transformarem em negras. E o faz por meio de suas narrativas, que se transformam, ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 simultaneamente, em recurso metodológico e espaço identitário. No texto, a identidade aparece como relato, ao mesmo tempo real e fictício, vivido e construído. As identidades se constroem nas representações e não fora delas, dizia Stuart Hall. E Ifekwunigwe entra em cheio no espaço – teatral, dramático – das representações. Suas seis narradoras (às quais ela dá o nome de griottes – griôs –, relacionandoas às tradições africanas) representam um papel, representam-se através desse jogo que a linguagem oferece em um cenário duplo, no domínio privado (onde elas se constroem identitariamente em um jogo complexo de identidades poliétnicas) e no público, onde lhes é devolvida a imagem de uma identidade essencializada. Através do narrativo, emerge a construção que as mestiças fazem de si mesmas e as contradições do discurso racializado; assumindo a visibilidade em seu papel como griottes, essas mestiças narram o que é “real” (como vivido) e o que é “ficção” (como construído) no discurso racial (Mirza, 1997). Magdalene Ang-Lygate em Charting the spaces of (un)location. On theorizing diaspora (1997) também se situa nesse espaço problemático no qual se evidenciam as contradições dos sujeitos pós-coloniais. A vivência da pós-colonialidade de AngLygate não é a de uma mestiça, mas de uma mulher que construiu sua identidade com os referentes do colonizador. Seu nome, seu idioma, sua cultura são inglesas; mas nenhum desses pontos faz dela uma cidadã britânica. Migrante não é uma categoria transitória na Inglaterra: não há uma categoria british-born immigrant na qual possam se reconhecer as migrantes pós-coloniais que vivem no país. Existe a categoria “negra”, na qual a sociedade britânica insere todas as mulheres que não são brancas. Mas nem Ang-Lygate nem as mulheres que aparecem como sujeitos em suas pesquisas – migrantes que como ela vêm da China, Malásia, Filipinas – se encaixam nesta categoria. Talvez por essa difícil fixação em uma identidade racial que não compartilha (e da qual é excluída), ela percebe com maior agudeza as limitações dessa categorização na qual, por outro lado, sentem-se tão cômodos aqueles grupos – entre os quais Ang-Lygate inclui o feminismo negro – que usam o critério racial como estratégia política. Como ela expõe no texto que apresentamos: “O que realmente me preocupa é que, quando se joga esse tipo de jogo, somos cúmplices de uma estrutura que se construiu desde o princípio sobre um dualismo binário que inevitavelmente desfaz a possibilidade de diferença” (Ang-Lygate, 2012, p. 297-298, tradução nossa). Como ocorria com a mestiça, a mulher pós-colonial que é Ang-Lygate questiona essas formas de outridade reconhecidas como apropriadas e toleradas, e reivindica outras formas de outridade que, ao sair dos confins entre os quais foram definidos os limites identitários dominantes, são percebidas como subversivas e, como tais, rechaçadas ou reprimidas. Como fazia Ifekwunigwe, Ang-Lygate também explora, dessa posição, o conceito de identidade diaspórica, sobre a qual Stuart Hall teorizou de forma tão acertada, em relação às migrantes chinesas, que são sujeitos de sua pesquisa. Desde esse conceito – que entende as identidades “fragmentadas e fraturadas; [...] multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas” (Hall, 2000, p. 108) – ela entende e explica esses “espaços de silêncio”, onde se situam essas outras formas de outridade não ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 109 reconhecidas pelos discursos hegemônicos, experiências de diáspora. Lendo-as como tal, conseguimos visibilizá-las, “para reconhecer finalmente que nossa própria invisibilidade não é estado natural de ninguém” (Ang-Lygate, 2012, p. 311, tradução nossa). E para terminar Até aqui vai meu diálogo pessoal com as autoras selecionadas nesta antologia. A partir de agora, apenas suas vozes. São seus textos que realmente convidam para um diálogo. Pessoalmente, sinto-me feliz de estar em tão grata companhia. Referências ÁLVAREZ, Silvia. “Diferencia y teoría femenista”. In: BELTRÁN, María Elena., MAQUEIRA, Virginia (Orgs.) Feminismos. Debates teóricos contemporáneos. Madrid: Alianza Editorial, 2001. 110 AMOS, Valerie; PARMAR, Pratibha. “Many Voices, One Chant: Black Feminist Perspectives”. Feminist Review, n. 17, 1984. ANG-LYGATE, Magdalene. “Charting the spaces of (un)location. On theorizing diaspora”. In: MIRZA, Heidi Safia. Black British Feminism. A Reader. London, New York: Routledge, 1997. ANG-LYGATE, Magdalene. “Trazar los espacios de la deslocalización. De la teorización de la diáspora”. In: JABARDO, Mercedes (Org.). Feminismos negros. Una antología. Madrid: Traficantes de sueños, 2012. Traducción de Esperanza Mojica. BARRET, Michèle; MCINTOSH, Mary. “Ethnocentrism and Socialist-Feminist Theory”. 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XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 89-114 Translating Yvonne Mété-Nguemeu’s Femmes de Centrafrique: Âmes vaillantes au cœur brisé from a Feminist Perspective ABSTRACT This article discusses some practical challenges encountered in the course of translating Yvonne Mété-Nguemeu’s novel, Femmes de Centrafrique, âmes vaillantes au coeur brisé (2008) into English from a feminist perspective. To effectively tackle these challenges, the approach taken is that of a feminist translation because Mété-Nguemeu is a feminist writer. The grammatical differences between the two languages are major sources of challenge in translating Mété-Nguemeu’s feminist discourse. The peculiarity of the African women’s experiences is easily understood and immediately translated from, not only, an empathized perspective as a woman, but also as an African feminist translator in particular. A feminist translator translates better a feminist novel or a feminist author. Keywords: Central African Republic. Challenges. Feminist Translation. Translator. Women. RÉSUMÉ Cet article aborde quelques défis pratiques rencontrés lors de la traduction anglaise du roman d’Yvonne Mété-Nguemeu, Femmes de Centrafrique, âmes vaillantes au cœur brisé (2008) d’un point de vue féministe. Pour relever efficacement ces défis, l’approche adoptée est celle d’une traduction féministe parce que Mété-Nguemeu est une écrivaine féministe. Les différences grammaticales entre les deux langues sont des sources majeures de défis dans la traduction du discours féministe de Mété-Nguemeu. La particularité des expériences vécues par les femmes africaines est facilement comprise et immédiatement traduite non seulement d’un point de vue empathique en tant que femme, mais aussi en tant que traductrice féministe africaine en particulier. Une traductrice féministe traduit mieux un roman féministe ou une auteure féministe. Mots-clés: République centrafricaine. Défis. Traduction féministe. Traductrice. Femmes. Introduction This article deals with the practical experience of translating Yvonne MétéNguemeu’s novel, Femmes de Centrafrique, âmes vaillantes au coeur brisé (2008), which is still currently being translated into English. The feminist affinity and the Ngozi O. Iloh Department of Foreign Languages. Faculty of Arts. University of Benin, Benin City, Nigeria. Email: ngozi.iloh@uniben.edu, iloh214@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 115 116 conditions of women narrated in the novel are feminist dispositions that drew my attention in translating the novel. The peculiarity of the African women’s experiences is easily understood and immediately translated from, not only, an empathized perspective as a woman, but also as an African feminist translator in particular. A feminist translator translates better a feminist novel or a feminist author. African writers writing in ‘inherited languages’ write from a multi-linguistic context which must be taken into consideration in translation. As an African, the mother tongue and other African languages cannot be wished away easily as transliteration becomes an integral part of African creative work, which has to be equally displayed in translation. As an African translator with an African language as a mother tongue, and English as the official language and means of translation, there is also a dual or multi-linguistic context, which is also the point of departure of the author. Africanisms are better understood and adequately interpreted by an African translator. The translator’s audience includes not only the international audience, but must carry along the local audience, especially the African. The English translation, will keep the African and international audience in view by ensuring the local color is maintained, while broadening this knowledge and also exposing the plights of women faced with military violence and rape that is threatening to wipe out the female generation through HIV/AIDS. The African female translator is in a better position to transmit the cultural traits and loan words from the original version of a fellow female writer into the target language without necessarily losing the pragmatic essence of the source language. Mété-Nguemeu, in this first book, narrates in an autobiographical manner the analysis of violence experienced by young girls and women in Central African Republic (CAR). Through a retrospective narration, and a feminist analysis, she writes about three generations of Central African women. The writer traces her radical feminism to her childhood and to her father. The author shows the bravery and courage of the women in the novel despite the sinister conditions they find themselves in. Being a core feminist novel, based on her discourse, a feminist perspective is taken in the translation of the author’s feminist disposition. The main aim of this article is to transmit and to popularize Central African women literature in the English translation by ensuring to retain the feminine discourse of the author through her linguistic and stylistic innovations in the book. Secondly, the translator seeks to ensure that the innovations found in the book are not only retained and reflected, but that the pragmatic feeling is equally attained if not retained in the translation. Majority of the characters in the book are of the feminine gender, as a result, their discourses are filled with feminist linguistic innovations. The translation of this work is strictly from a feminist perspective and perception. The perspective of the feminist discourse recognizes and reveals the feminist commitment of the writer in her use of feminization of common nouns, professions, titles, grades and functions. No known critic has actually worked on the book, apart from the author of this article, who has been doing some research on Mété-Nguemeu (Iloh 2013, 2015a, 2015b, ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 2016, 2018). Touati (2010) is the only one who had carried out an earlier interview with Mété-Nguemeu in French. Who then is this feminist writer or author? The author in question here is Yvonne Mété-Nguemeu, a dual national from Central African Republic (CAR) and France. The author is not only from Africa but she is also ‘black’; this distinguishes her from ‘white Africans’. She was born on the 10th of December, 1956 in Sibut, which is about 185km from the capital territory of Bangui. Having schooled in Catholic Primary School and College in Lycée Pie XII in Bangui, the capital of CAR, she obtained her baccalauréat B (Advance Level) in 1979 and a scholarship to study in France where she obtained her first degree in Food and Nutrition. She shuttles between Besançon, where she lives in France and Central African Republic (CAR), her country of origin. She has two surviving children out of three due to the civil war in CAR in 2014. She is the Founder and President of the Non-Governmental Organization Centrafrique Sans Frontières with headquarters in Besançon, France. She is a radical feminist, philanthropist and writer. The current novel is her only published book. Others are in the offing according to her. Mété-Nguemeu was encouraged to write by penning some of her numerous experiences in the course of her humanitarian work in CAR. She knows very little or nothing about the Central African literature. This notwithstanding, the literature of her African country, CAR is not well known to the world. Usually, there is always confusion in both English and French when the country is mentioned. There is always that confusion distinguishing the country CAR or République Centafricaine (RCA), its equivalence in French, from the Central Region of Africa! Central Africa as a region that should not be misunderstood as Central African Republic, which is a country located in Central Africa. The same goes for the region and the country in French. This must have contributed to the poor knowledge of the country. If the country is hardly known, the writers are also hardly known. The country, which was formerly known as Ubangui-Chari, was situated in the former French Equatorial Africa and obtained its independence in 1960. It is a country that has passed through innumerable political and socio-economic turbulence especially civil wars since independence. The first and only female president was Catherine SambaPanza (2014-2016). Today, the current president is Faustin-Archange Touadéra who came into power in March 2016. The country is still struggling to stand on its feet. This constitutes the first and primary audience of the writer. One can understand the author’s concentration on the conditions of the women in the country that is bedeviled with socio-economic and political crises. Author’s audience/target The author of the book in question is first an African and secondly a Francophone; it is expected that her primary audience will also be Francophone and African. By virtue of her dual nationality, her audience equally extends to France ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 117 118 and may not necessarily be the entire Francophone world, which should have been the case. Living in a global village which the world has turned out to be, from the interview carried out with her, she equally targets the international audience; not just the Francophone International world, but meeting her through internet facilities established her desire to get across to the Anglophone world. A writer, despite the current trend of events world-wide, targets a local, national, regional and continental audience, thus attaining an international and multinational audience. As part and parcel of a society, her representations from that same environment must consciously or unconsciously portray the society. This is not far from what Mété-Nguemeu has done in her book. One can say that her audience is limited or restricted because of her language, but the French language is a major international language. This limitation has necessitated the translation of the book in order to access a wider audience. The African female writer is a translator in her own right by her multiple linguistic disposition and context. Following this, writing in an “inherited colonial language” is a double-bind, for the writer, as well as the translator. Reaching out completely to the readership or audience involves getting to the level of understanding as Africans and secondly as women. Communicating the native plight of the characters to an international audience is a commitment on both author and translator. By multiple audiences, one implies both the metropolitan (colonial masters) of both Anglophone and Francophone and the new world represented by America. It also opens the channel for future translations into other languages. Translator’s audience/target Much as the author wishes to reach out to the world, as the translator of her book, I maintain a similar goal as well. The affinity between author and translator usually most often merge mission and goal. The choice of translating this author, for me, is borne out of the admiration of the feminist strategy and style of the author. Apart from just broadening people’s knowledge of the situation in CAR, this translation of local women issues will also serve to situate the existence of feminist tendencies among the uneducated as portrayed by the author, which contradicts the opinion that feminism is only a modern issue. The main target of the translation being done is an international audience, but the choice of the English variety depends not only on the translator but on the publishers as well. However, my choice of the variety of English is determined by the mission of attaining a wider coverage. My primary concern is the activity or the intervention of the translation since my disposition is equally multi-linguistic in context, given the colonial experiences of assimilation and association, despite the existence of the African languages, which form the basic mother tongues for both author and I as the translator. The similarities of historical experiences make the ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 African feminist translator better equipped historically, linguistically and culturally. The difference between the writer and the translator is the linguistic differences of the languages of expression. The writer may not be able to read her work in translation, but she would have acquired a wider coverage in the dissemination of her literary commitment. It is important at this juncture to state that the translation of the book is still on-going. I started translating in 2013 but health challenges slowed down the work. I have resumed the translation of the book but the theme of the call for paper from this journal made it imperative to share some practical experiences acquired in the cause of the translation. Just like the British Dorothy Blair, as a university scholar combining teaching and research, so am I combining to produce an English translation of Mété-Nguemeu’s novel. The translation is being carried out in Nigeria, in Africa. I cannot talk of its publication until after the complete translation. Representation of Black African female voices in the translation field It is worthy of note that the works of African female writers have come to stay, even though despite being late in entering the literary world. Before the entrance of African female writers on the scene, which had been pre-dominated by the men whose numerous works were read in translations without the readers having any strange feelings because they were good translations, there were very few female translators. It is however worthy of note that, among these male authors, their works were majorly translated by the male folks. One really got fascinated coming across two female translators among them that were equally outstanding. They are Dorothy Blair and Katherine Wood. Dorothy Sara Blair (née Greene), a British, is a renowned female translator who had earlier caught my attention since I have read translated works of African authors either from French to English or vice-versa. Among her numerous translations are the Senegalese Birago Diop’s Tales of Amadou Koumba, translated in 1966, the Guinean Alioum Fantouré’s Tropical Circle (1981), and the Beninese Olympe Bhely-Quenum’s Snares without End (1981). But of paramount interest to me are her translations of the African female authors of which are notably three from Senegal: Aminata Sow Fall’s The Beggars’ Strike (1981), Nafissatou Diallo’s A Dakar Childhood (1982) and Mariama BÂ’s Scarlet Song (1995). I have restricted myself to only African authors. The Scottish, Katherine Wood (née Kostenuk) translated the Senegalese Cheikh Hamidou Kane’s Aventure ambigu as Ambiguous Adventure (1963) and could be said to be Blair’s contemporary. Despite not being Africans, these two female translators must be commended on their translations. Of paramount interest in this article are African female translators of African female writers. African female translators are on the rise. However, the likes of Irène A. D’Almeida (Beninese) and Olga Mahougbé Simpson’s (Beninese) translation of the ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 119 120 Nigerian Chinua Achebe’s Arrow of God as La Flèche de Dieu is worthy of mention. Interestingly too is Modupe Bode-Thomas’ (Nigerian) translation of Mariama Bâ’s So Long a Letter (1980). Of all the female translators’ works, I had searched for an African feminist translator, but have not found one yet in Africa. It is pertinent to note that feminist translation is a new discovery that is yet to be explored fully in Africa. It is amazing that feminist translation studies have advanced in other parts of the world. The Australian female translator Alison Anderson’s question in 2013 had been a great challenge when she asked, “Where are the women in Translation?” And I ask, “Where are the African women in Translation? And where, specifically, are the African feminist translators?” The female translators so far mentioned above did not necessarily set out to translate because of feminist inclinations, but were out to do justice to their knowledge intellectually. However, two African female writers had attracted my attention with their feminist discourses: the late Ivorian Fatou Fanny-Cissé and the Central African, Yvonne Mété-Nguemeu, whose’ book is being translated into English. As a trained translator and a passionate feminist, my empathy for Mété-Nguemeu’s book was borne out of the desire to ensure her feminist discourse, which was one of the attractions, is reflected in the translation. Without necessarily trying to search for documentation on feminist translation, I had written an article on Mété-Nguemeu’s feminist discourse (Discours féministe dans Femmes de Centrafrique: ฀mes vaillantes au cœur brisé de Mété-Nguemeu), which is my primary attraction to justify the choice for translating the book. This article is therefore hinged on literary translation and specifically on prosaic translation of an autobiographical narration of the author’s childhood and humanitarian service to her country, Central African Republic. The said country is on the brink of extinction as a result of socio-economic, political exploitation and oppression. Eugene Nida’s definition of translation (1964:10) is retained here that translation “consists in producing in the receptor language (also called the target language) the closest natural equivalent of the message of the source language, first in meaning and secondly in style”. The three main types of translation, which are intra-lingual (has to do with reformulation); inter-lingual (translation from one language to another) and inter-semiotic (the use of signs and symbols in communication), have been classified by Jakobson (1959:233), Kelly (1978:19) and Nida (1964: 3-4). Of interest to us is inter-lingual translation or what some other translation specialists classify as inter-linguistic translation. In Newmark’s (1988:5) definition, translation is “rendering the meaning of a text into another language in the way that the author intended the text”. Much as the African Canadian, Bandia (2006: 8), in his paper, “African European-Language Literature and Writing as Translation: Some Ethical Issues”, while explaining the translation between “colonial” European languages and theorizing African translation practice, is of the opinion that, “the theorizing of African translation practice is still quite undeveloped, probably due to the fact that a ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 comprehensive history of translation in Africa is yet to be written”. This shows that many critics still look at African writers as translators due to their multiple linguistic backgrounds. The Nigerian, Timothy-Asobele’s Translation Studies in Africa is handy but not comprehensive enough as it does not really cover the whole of Africa as it appears in the title and, also, it lacks historical grounding. Perhaps, the practical experiences of African translators would have gone a long way in distinguishing between African writers as translators and the literary translators. Our emphasis is from a translator’s view-point. African feminism and feminist translation Yvonne Mété-Nguemeu is a feminist and does not hide it. In the interview1 we had, she affirms that she is a feminist whose wings were clipped too early and as a result, got frightened and did not know how to take off in order to write about the happenings in her country; she believes that the courage will come from the women folks. She believes that women from her country are great feminists on their own, especially given their fighting spirit in trying to combat the ills of their society, and especially fighting to get them liberated from the jaws of masculine chauvinism characterized by exploitation and oppression. Themes explored by Mété-Nguemeu include: female genital cutting-otherwise known as female circumcision, everyday domestic lives of the average Central African woman and girl-child marriage, bride price syndrome, repudiation, widowhood practices, rape as a weapon of war, which all make up the practical experiential narration of Yvonne (narrator) and the Central African girl-child and women. What type of feminism is Mété-Nguemeu talking about? Much as I will not like to prolong this write-up, it will however be pertinent to expound a little on feminism here since there exist varieties or variants of feminism. Davies (2007) recognizes the existence of African feminism that examines the societies and various institutions of importance to the African women. This is the feminism that will be explored and the variant of radical feminism that insists that women should not be hidden and the feminine social gender should not be subsumed in masculine or neutral genders. This is because notable African female authors have in the past denied being feminists. In this group fall writers like Ken Bugul (Senegalese), Aminata Sow Fall (Senegalese), Flora Nwapa (Nigerian) and Buchi Emecheta (Nigerian) (see Umeh, 1996). I recognize Werewere Liking (Cameroonian) and D’Almeida’s (1993: 49) ‘misovire’, Clénora Hudson-Weems, Alice Walker and Chikwendu Okonjo-Ogunyemi’s ’Africana Womanism’ (see Hudson1 Interview with Mété-Nguemeu in Mété-Nguemeu & Iloh (2013: 15), Je suis une féministe dont les ailes ont été brulées trop tôt et qui a eu peur de prendre son envol afin d’écrire un pan de l’histoire de son pays. […]. Mais je continue à croire en la force des femmes…. (I am a feminist whose wings were clipped too early and as a result got frightened from writing a little of my country’s history. […]. But I still believe in the power of women…). (The English translation is mine). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 121 122 Weems, 1993), Komguem et Samin’s (2005) French Senegalese’s ‘famillisme’, which is an equivalence of ‘African womanism’ propagated by the likes of Kolawole (1997) or Ogundipe-Leslie’s (1994) Stiwanism. Luise Von Flotow, a Canadian specialist on Translation and Gender (cited by McRae, 2006), attests to the fact that feminist translation is characterized by “the practice of prefacing and footnoting, among other approaches that increase the visibility of the translator”. Flotow (1991) highlighted four major trends in feminist translation as supplementation, prefacing, footnoting and hijacking. I actually supplement but to an extent the African audience can tolerate. Prefacing for me is a welcoming idea, as I plan to write a preface in the translation and possibly maintain a repertory of glossary with explanations. A glossary takes the place of footnoting, because I don’t believe in distorting an original work to suit my taste. Hijacking is therefore completely out of the way. Much as I believe in the translator’s visibility, it does not call for hijacking of an author’s creativity. Just like Gentzler (1998), I believe in the documentation of the translation process. Mété-Nguemeu is not just a female writer but a feminist writer who displays her feminist tendencies in her discourse. Due to this affinity, it is not enough to be a female translator but one who also believes in feminist discourse. I believe that women should be heard and seen as indicated in the article published in 2011 on the need for the feminization of the French grammar, which previously did not have words for certain female gender like, ‘écrivain’, ‘médecin’, ‘auteur’, ‘professeur’, etc. (see Iloh, 2011). Today, a female writer can be addressed to as ‘une écrivaine’, author as ‘auteure’, professeur as ‘professeure’ but médecin as ‘femme médecin’. The translator of a feminist writer must have the same affinity for the feminist discourse, and hence should also be a feminist, not simply a female translator. Translation experience The translation activity is interesting but full of challenges, which form part of this study. I will highlight the major challenges which cut across the book in question. What English? If one may ask. Meanwhile, the work is currently being translated into British English which could subsequently be adapted or rendered into American English for a wider coverage. Mété-Nguemeu is a radical feminist, who chooses not only to fight for the liberation of the women in Central African Republic, but practically displays it in the choice of her vocabulary. This will be examined in this paper. We shall take a look at the feminist vocabulary and the author’s linguistic innovation through the use of proverbs and metaphors as well as specific feminist discourse. Most African female writers are blunt and go straight to the points without mincing words. As a female African translator, I will maintain the same strategy of bluntness. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 Feminization of vocabulary To be able to translate Mété-Nguemeu, one must take time to read and understand her selective choice of vocabulary, which displays her feminist position. The feminist vocabulary is filled with an abundance of feminist lexis, especially what I call feminist creation or feminist neologisms. Thus, Mété-Nguemeu’s choice of vocabulary is what I call a collection or selection of researched repertoire or inventory or vocabulary. Thus, the novel displays influence from current feminist trends, especially the use of feminized grammatical gender seen in the author’s choice of profession/vocation, titles, proverbs, metaphors, etc. It should be noted that the writer most often puts her neological creations or the neologisms in inverted commas. These creations will be cited in italics. Let us begin from the title of the book. Translation of the title of the novel The title of Mété-Nguemeu’s novel reveals to a great extent her feminist posture. The title, Femmes de Centrafrique, âmes vaillantes au cœur brisé borders on the courage of women of Central African Republic and exposes the feminist discourse of the author. Mété-Nguemeu believes that her mother and grandmother and other Central African women are feminists in their own merit. “Women of Central African Republic: Valiant Souls with Broken Hearts”. This translation is not the final as one is exploring the word valiant, which could also be translated as ‘Brave’, Bold’, ‘Fearless’, ‘Gallant’, and the word brisé is such that they cannot gather their pieces again – this results in ‘Shattered lives or broken hearts’. The title speaks about the women and must be retained. In the translation of a literary work, it is always better to translate the title last. Much as I have temporarily penned it as ‘Women of Central African Republic, Valiant Souls with Broken Hearts”, this is not the final translation, especially given Peter Newmark’s (1988: 57) classification of titles, which are either ‘descriptive’ or ‘allusive’. The title is descriptive and must be so in the target language. In contemporary literary translation, the title of a work is an essential part of the translation. The original version of the title of a work must be considered in correspondence with the principles of empirical analysis of the translation so as not to encounter shifts, alterations or changes. This is so because the title of a text gives the readers clues to the contents of the work. There could be a shift in the meaning of the title of a literary work that could necessitate a renovation of the translation, especially as translations get out dated after a period of time and as language continues to develop. At the moment, Mété-Nguemeu shows her feminist inclination, which must also be displayed in the target language. A noun is either masculine or feminine in French. The gender sensitivity is higher in French. This enriched the work of Mété- ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 123 Nguemeu that it is such that her linguistic exploitation of feminism is extraordinary. The challenges are such that I have to keep up with the pace of feminist creation in the translation by compensation as the English language has no such grammatical gender at all. Only personal pronouns show gender like he/she/it. This is where the main challenge is in translating feminization of common nouns from French into English. • La défenseuse des causes perdues (23) – The defender of lost human rights 124 It can be seen that the defender in French has a feminine gender, which is lost in the translation. I equally jotted down “human right activist” and also ‘women human right activist’ to reflect the French feminine gender. The entire narration will definitely show the feminization of the characters. Female circumcision is a theme of paramount interest to most African writers, especially the female writers. Gordon (1997) traces its origin to over 2,500 years. Mété-Nguemeu can be compared with many writers like Kourouma in Les Soleils des indépendances (The Suns of Independence), who narrates Salimata’s harrowing experience, but Mété-Nguemeu succeeds in explaining to her audience without giving any specific case. According to Gordon (1997), female circumcision is practiced in most African countries and some other countries of the world. Below are some examples of the author’s innovations of the feminist language or discourse, which became major challenges to me in the course of the translation. • Quelques jours avant l’opération, les exciseuses professionnelles, femmes mûres du village, passaient régulièrement de maison en maison pour sélectionner les fillettes prêtes à subir l’ablation (27). • Some days before the operation, the professional female circumcision practitioners, matured women from the village, were moving from house to house selecting young girls ripe to undergo ablation (mutilation, amputation). • Les exciseuses (27) • Female circumcision practitioners Is it necessary to insert the qualifying adjective ‘female’ since the context of the narration already shows that the female circumcision requires female practitioners, as the circumcision of the males is carried out by only the male folk? But, in order to feel the presence of the women, I had to insert ‘female’ • Avant d’arriver à notre maison, il y avait deux familles avec des filles, et mes sœurs et moi, la mort dans l’âme, suivions la progression de ces recruteuses du mal (28). • Before we got home, there were already two families with their daughters, then my sisters and I, holding our hearts in our hands, we followed the advancement of these recruiters of evil/bad omen. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 Although the context already shows that it’s about female practitioners of circumcision, the African audience will not accept the superfluity. I will settle for the most conventional. Recruteuses and visiteuses both refer to exciseuses. The absence of grammatical gender in English makes it hard to see the beauty of what Mété-Nguemeu portrays. The author’s play on feminization of noun is evident here but may be superfluous in English. My major challenge is the pre-mature existence of a feminist translation in Africa. Supplementation in feminist translation is necessary but must not be seen to be superfluous. • Pendant qu’elle tentait de convaincre mon père, je me mis à genoux dans un coin de la maison, cachée de nos visiteuses, … (30) • While she was making effort to convince my father, I knelt down at one corner of the house, hidden from our visitors, … • Visitors is applicable to both the masculine and female genders. • La coresponsable (30) • Co-team leader (It is all about female group, no need to specify) • La maîtresse du culte (31) • The Matron of Operation • Ses coéquipières (32) • Her team mates • Le malheureux (ou la malheureuse) (67) • The unfortunate boy or girl • Le petit livreur (ou de la petite livreuse) (67) • the bearer/(S)he The literary commitment of the author, which must be kept in view, is to see that female circumcision is discouraged. She made a lot of jest out of her deliberate use and choice of feminized vocabulary, which gives the book a feminist outlook. Much as in French, gender is mandatory because of the language grammar. It is impossible in French to talk about women without feminine words but where I commend the author in her choice of words is where she goes beyond the generic use of some nouns and ‘creates’ a non-existent feminine gender. She also capitalized on that by her deliberate choice of aggressive words that portray and show the pains, agony and suffering girls undergo in the process of circumcision such as: Ablation (27), opération (27), douleur (30), acte d’amputation (30), souffrance (32), épreuve (32). These, I translated respectively as: Ablation, operation, pain, act of amputation, suffering, test. Similarly, the following words all end with the suffix euse: Exciseuses (27) Circumcision pratitioners Recruteuses (28) Recruiters Visiteuses (30) Female visitors Réveilleuse (35) Alarm (waker) Voleuses (41) Thieves ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 125 126 Livreuse (67) Messenger Preneuse, lépreuse (102) Taker, Leper Meneuse (111, 112) Undertaker Menteuse (143) Liar Mangeuse Eater Prétencieuses (51) Pretenders, hypocrites Agresseuses (57) Aggressors, Assailants, Provokers, Invaders, Attackers, Trouble makers Guerisseuse (81) Healer, Priestess “Provoqueuse” (54), Provocatrice (54) - Ringleader in the instigation, lead initiator of trouble The author’s juxtaposition of provoqueuse (54) and ‘provocatrice’ (54) shows her linguistic exploration and exploitation in her play on words and feminization of words. There is no equivalence for ‘provoqueuse’ in my translation for now because it’s simply a mockery of the inconsistency of French feminization of words: the speaker as well as the learner could be confused with the suffix ‘euse’ or ‘trice’. This is what I consider as a feminist writing or discourse where the author selectively plays on the gender formation in French. It is a bit difficult attaining the same equivalent play on words and getting the same pragmatic effect. This is one of the major challenges in the course of the translation. The musical rendering and the beauty of –euse in the formation of the feminine gender, which the author uses as a play on words, could not be maintained in the English translation for now because that beauty is a major challenge in the English translation. The context of the narration may not require the gender visibility, as it is also implied with the following examples: • Une responsable (35) - Leader • gardienne des chaussures (40) – Shoe keeper • The composition of words could be ambiguous in the choice of words in the translation of: • Jeune mère-célibataire (129) - Young single/unmarried mother The use of proverbs The author was also creative in her choice of proverbs which she builds around the feminine gender. For instance: • Une bonne calebasse ne traîne jamais sur l’eau ou une bonne calebasse ne dérive pas longtemps sur la rivière sans trouver preneuse (74) • A good calabash never stays long in the river or a good calabash is never neglected in the river without attracting attention. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 The French ends with preneuse, which is implicit in the English version. It is believed in the African culture that it is women or girls who need calabashes for fetching water or for keeping their jewelries. This is well taken in the French, but it’s hidden in English which seems to be more generic and patriarchal. The author took pains to narrate in the novel. The example below confirms that: • Aucune femme censée ne songerait à se débarrasser d’une calebasse encore utile (75) • No sensible woman would think of getting rid of a useful calabash. Metaphors The author’s use of metaphors is worth noting too. • Elles étaient devenues des « mères courage », se battant pour la survie de leurs enfants (94). • They became “Mother Courage”, battling for the survival of their children • Lionnes en fureur (112) • Furious lionesses • « Fille prodigue » (130) • “Prodigal daughter” • Femmes vaillantes (177) • Brave/Gallant/Bold/Courageous/Valiant women (only one will be selected) Conclusion Translating a feminist writer is challenging but very interesting, as the writer’s feminist creativity is better admired when exposed to translation. The emergence of women literature does not necessarily make it a feminist literature. There are traits in a feminist write-up that one can look out for. Translating a feminist text is another ball game. It is as challenging as translating poetry because it is an innovation yet to be appreciated. Feminism is a commitment. African Feminist translation is a mirage for now given the historical development, and as such, is still being operated under post-colonialism. Being a feminist translator is not acquired by reading but by one’s disposition and revolutionary challenges that go on in one’s mind. It was not until recently that I discovered that there is truly feminist translation. I have often challenged the absence of the feminine gender in some French nouns like chauffeur (driver), now chauffeure or chauffeuse or can be modeled after un professeur/ une professeur; un chauffeur/une chauffeur. The conventional use of the generic is still in vogue especially in French France. The major challenge comes from the fact that most writings in Francophone Africa are modeled after the French in France, so also the French in Anglophone Africa. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 127 128 I have always wished that translators of the 60s, 70s, 80s and 90s of African literature, either from English to French or vice-versa, took cognizance of the feminization of language. African radical feminist translations like that of Calixthe Beyala’s should be studied to ascertain the level of feminist rendition they portray. Yvonne Mété-Nguemeu is not only a writer; she is feminist writer with a specific mission. Her novel is not just autobiographical in nature; it is a novel that displays feminist discourse reinforced with feminist vocabulary, enriched and embellished with innovations in her choice of metaphors, comparisons and proverbs. From the title to the epilogue, the narratives and descriptions are all feminist discourse. The author displays a linguistic and stylistic creativity. Translating a feminist author requires empathy and feminist activism. As a feminist translator, more space should be given to translators. Their names should appear on the cover page of the translated work in a conspicuous corner, but not necessarily hijacking the work of the author. The idea of searching for the translator’s name in the title page is demeaning. Feminist translation should not be mixed up with feminist interpretation. There should be a clear-cut distinction between translation and interpretation. African feminism will come of age but should be given time. Africa has always been 50 years behind in many developments. As African feminism is taking shape and translation is fast developing, languages are being challenged with current trends in globalization, as feminist writings improve and increase in Africa so will feminist translation begin to take shape and take its rightful place. With the emergence of African feminism, I wonder what future holds for African feminist translation. References ARNDT, Susan. (2002). 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XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 115-131 Translating Black Feminism: The Case of the East and West German Versions of Buchi Emecheta’s The Joys of Motherhood ABSTRACT Feminism in Translation Studies has received a considerable amount of attention in the West, most especially in Canada from where it emanated. Also, studies in translation and Black Feminism have been carried out by scholars such as Silva-Reis and Araujo (2018) and Amissine (2015). There has, however been few studies focusing on the translation of literary texts by African feminist writers into German. This study therefore examined how Womanism in Buchi Emecheta’s The Joys of Motherhood was transferred into German. Against this backdrop, the two translations published during the division of Germany into two states by different political ideologies were analyzed. In doing this, Postcolonial Theory of translation as conceived by Spivak (2004) was employed. The study aimed at determining how translation mechanisms have influenced the manner in which black feminist activism is represented in a distinct socio-cultural environment. This is with the focus to indicate how Womanism is represented differently in the two German translations of the African novel. Keywords: Feminism. Womanism. Translation. Ideology. East and West Germany. RESUMO 132 Os estudos sobre feminismo em tradução têm recebido considerável atenção no Ocidente, especialmente no Canadá, de onde ele se irradiou. De igual modo, estudos sobre tradução e feminismo negro têm sido empreendidos por pesquisadores como Silva-Reis e Sousa de Araujo (2015) e Amissine (2015). Há, no entanto, poucos estudos centrados na tradução de textos literários de autoras feministas africanas em alemão. Este artigo portanto examina como o mulherismo de The Joys of Motherhood, de Buchi Emecheta, foi translado para o alemão. Contra esse pano de fundo, analisaramse as duas traduções publicadas, sob diferentes ideologias políticas, durante a divisão da Alemanha em dois Estados. Visou-se determinar de que modo os mecanismos de tradução influenciaram a maneira como o ativismo feminista negro é representado num ambiente sociocultural específico. O objetivo é mostrar como o mulherismo está representado de maneiras diferentes nas duas traduções alemãs deste romance africano. Palavras-chave: feminismo, mulherismo, tradução, ideologia, Alemanha ocidental e oriental. Omotayo I. Fakayode Department of Linguistics and Language Practice. University of Free State, Bloemfontein, South Africa. Email: omotayo2004@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 132-143 Introduction One of the most popular Nigerian female writers, Buchi Emecheta, who lives in Britain empathizes with women in her works and is highly “respected for her imaginative and documentary writing about African women’s experiences” (Olawoyin 2017). She has been described as one of the most important female authors to emerge from postcolonial Africa and is distinguished for her vivid description of female subordination and conflicting cultural values in modern Africa (Sougou 2002). In addition, Emecheta is “highly regarded for introducing an authentic female perspective to contemporary African literature” (Essay 2018). In her novels, she engages the injustice of traditional male-oriented African social customs that relegate women to a life of child-bearing, servitude and victimization. Due to her preoccupation with feminine issues, amongst others women/girls as protagonists, motherhood and marriage (an important cultural tradition for African women), Emecheta has been classified as a feminist writer. However, in an essay on contemporary literary criticism, it was noted that: Emecheta differentiates her own Afrocentric perspective from that of her Western counterparts by describing herself as ‘an African feminist with a small f’ (Essay 2018). Whatever she opines with her own type of feminism with the small “f ” could probably be deduced from her writings. This could be based on the fact that she still recognizes African culture and traditions in her works. She eulogizes the female character and is preoccupied with the injustice and inequalities girls and women suffer in the African society. She sees marriage as perpetuating a woman’s powerlessness and motherhood compounding her disability. This in a way aligns with the notion of Western feminism but departs from the radical feminism of Western culture. Emecheta has published several works and the most published of them is The Joys of Motherhood. This work portrays a tale of a conventional African lady Nnu Ego – a personality who knows her character and its completion in having numerous kids particularly the male. In spite of poverty, she defines herself as rich for she has three sons. In terms of Ibuza tradition, she thought she would experience an agreeable seniority because of the assistance of her children. Having described Nnu Ego’s excruciating life in Lagos, a colonized city, the novel concludes with her shocking death. A desolate passing on without a child to hold her hand and no companion to converse with her. She had never truly made numerous companions as she was occupied with delights of motherhood. Describing the novel, Marie Umeh states: In Buchi Emecheta’s novel, The Joys of Motherhood, one witnesses the collapse of these glorifying images of the African mother. As a literary artist preoccupied with promoting change, ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 132-143 133 author Emecheta, an iconoclast, breaks away from the prevalent portraitures in African writing in which motherhood is honorific… The title of the book, which is taken from Flora Nwapa’s novel, Efuru is then significant and bitterly ironic… Here Emecheta constructs a completely different set of economic socio-political and cultural imperatives which diverge from the existing literary models. (Umeh 1982: 40) From the above, it can be deduced that although the title of the novel seems to romanticize motherhood, the theme of the novel contradicts the essence of the title. The title of the novel is appealing, especially to an African feminist, since it encapsulates motherhood and “appears to be part of the significant body of feminist literature concerned with women’s experience of motherhood in patriarchal cultures” (Maclean 2003: 1). The irony of the title, The Joys of Motherhood does not however imply that the feminist writer, Emecheta, jettisons the need to be a mother in the African society. She, as a matter of fact, does not align herself to the notions of radical feminism, but rather to the need for African women to reject traditional stereotypes and to opt for a radical change of their situation in society. In view of the above, the following section reviews the relevant concept of black feminism, namely Womanism. 134 Womanism and Emecheta’s The Joys of Motherhood African feminist theorists, observing that Western feminism excludes the experience of the black woman informed the development of black feminist theories, such as Stiwanism, motherism and womanism, which account for black women’s experiences. In the 1980s, Chikwenye Okonjo Ogunyemi and the African-American Alice Walker proposed the first version of African feminism, namely Womanism. The philosophy of Womanism differed from Western feminism as it appeals to unity rather than separateness. Furthermore, it celebrates the ideals of black life and incorporates racial, cultural, national, economic and political considerations in the plight to defend women. According to Ogunyemi (1988), Womanism is Black centred; … unlike radical feminism, it wants meaningful union between black women and black men and black children and will see to it that men begin to change from their sexist stand (Ogunyemi 1988 cited in: Alkali et al. 2013: 240). Womanism is a reasoning that praises African roots, the beliefs of African life, while giving a clear presentation of the African woman liberation. Its ultimate aim is black solidarity where each African individual has some form of power (Adesanmi 2004 cited in: Alkali 2013: 241). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 132-143 The womanist consciousness cannot be excluded from Emecheta’s The Joys of Motherhood in view of the fact that the author conceives her own type of feminism to be Womanism (Barfi & Alaei 2015: 12). The author’s womanist position can be investigated through Ogunyemi’s womanist theory, which extends beyond sexism to incorporate national, political, social and economic considerations. According to Collins Amartey (2013: 76), this is a project to demand an holistic change in the lives of African women. In view of this, Emecheta’s novel could be considered as a womanist novel by scrutinizing the title and chapter titles. Although the titles eulogize the feminine personality, they include references to the male counterpart and children as well. Chapters 2, 3 and 18, for example, focus on the mother (women): The Mother’s Mother, The Mother’s Early Life and A Canonised Mother. As a womanist, the author includes men and children in her chapter titles. Chapters 13, 16 and 17 refer to children, A Good Daughter, A Mother of Clever Children and A Daughter’s Honour, while chapters 6, 7 and 12 includes the role of men, A Man is Never Ugly, The Duty of a Father and Men at War. Apart from the social aspect stated above, the national, political and economic aspects visible in the chapter titles of the womanist novel are The Rich and the Poor (chapter 8), A Mother’s Investment (chapter 9), Men at War (chapter 12) and The Soldier Father (chapter 15). From the foregoing, since black feminism has been evident through the title of the novel and its chapter titles it is pertinent to examine the role different ideologies play in their transfer into German. In order to achieve this, there is the need to consider the different ideologies of the former East and West Germany, which led to the publication of two different German translations of Emecheta’s The Joys of Motherhood. Ideology in the former East and West Germany For years, Germany was dominated by different political and economic systems and two worldviews with different ideologies emerged, namely liberal democracy or capitalism in West Germany and socialist democracy or communism in East Germany. The difference between these ideologies lies in the fact that West Germany favored the ideology of liberalism or private property, which lead to a philosophical, economic and political current that aspired individual freedom or individualism as a normative basis of the social and economic order. East Germany saw the development of an ideology of socialism, which referred to a communist model of private property. The aim of the East Germany ideology was to change the existing social relations to ensure social equality and justice, as well as a social order organized according to these principles. During this period of division, relations between the two German states were reserved and sometimes hostile. A socialist dictatorship was put into place in East Germany, the press was censored and the economy was owned and ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 132-143 135 controlled by the state. In East Germany, the state also controlled the publishing of literary works and the translation of novels from other languages into German. The state owned two publishing houses, Verlag Neues Leben and Verlag Volk und Welt, which were to publish translations of African literature. As such, the translation of literary works in West Germany was not permitted in the East. The hegemony the two German states imposed on African literature resulted in the production of different German translations of many African literary works, particularly those by Ngugi wa Thiong’o and Chinua Achebe. Emecheta’s The Joys of Motherhood is the only Anglophone feminist novel, which was translated in both East and West Germany (Kolb 2010: 282). The East German translation was published by Verlag Neues Leben, while the West German translation was published by a publishing house for women writers, namely Frauenbuchverlag. The following analysis considers the way in which the different ideologies, capitalism, liberalism, individualism, socialism and communism crystalized in the two German translations of the novel. Against this backdrop, it would be exigent to gain insight into how the different ideologies affected the lives of women in the two German states which existed at that time and how this issue influenced the representation of black feminism in the German translations of Emecheta’s The Joys of Motherhood. 136 Women’s Lifestyles in the former East and West Germany According to Haug (2018), socialist feminism insists that in the modern world, the oppression of women is inextricably linked to the history of capitalism and that feminist demands for change must therefore address the structural links between patriarchy and capitalism. In East Germany where socialism existed, Marxist terms were adopted and corollary to this, women were encouraged to reproduce. Women in the German Democratic Republic (GDR) were also actively involved in the work force. There were kindergartens and crèches to take care of their children and their husbands typically took part in the house chores. In contrast to this, women in Federal Republic of Germany (FRG) were typically housewives. They looked after children and did the house chores while their husbands went to work and therefore, were the breadwinners. This is a major point of critique of the mode of production of capitalism, which involves women’s oppression in the form of the acquisition of unpaid labour and the use of women in gender-typical division of labour needs. In view of this, there were more laws in the GDR that favoured reproduction rights for women than in the FRG. One of this was the “Muttipolitik” (Myra 1992). On the other hand, the FRG was far less generous in its social policy for working mothers than the GDR. FRG laws were equally based on gender-specific requirements and the availability of the mother after lengthy school hours and so forth. These laws were less based on the compatibility of professional life ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 132-143 activities and motherhood. It was required that the mother be available throughout the day to offer unpaid work for the maintenance of her family. Having considered the effect of political ideologies on the lives of women in both states, it is pertinent to highlight the relevant theory in analyzing the German translations of Emecheta’s feminist novel considered in this study. The choice of this theory is informed by the objective of this article. This is not to compare how ideological differences resulted into two translations but to examine how different versions influenced by ideologies have represented black feminism in translation. Spivak’s Postcolonial Theory of Translation Munday (2010) opines that the central intersection of Translation Studies and Postcolonial theory is that of power relations. Postcolonial theory aims to account for the ideological consequences of the translation of “Third World” literature into European languages and the distortion it entails. Spivak (2004), for example, spoke out against Western feminists who expect feminist writings from outside Europe to be translated into the language of power, English. According to Munday (2010), such translation in Spivak’s view, is often expressed in “translatese”, which eliminates the identity of the politically less powerful individuals and cultures. Postcolonial Translation Theory, linking colonization and translation, “is accompanied by the argument that translation has played an active role in the colonization process and in disseminating an ideologically motivated image of colonized peoples” (ibid: 132). Spivak goes further to describe a kind of “politics of translation” whereby translation gives prominence to “hegemonic” languages (of ex-colonizers). In this vein, she admonishes Western feminism by saying that feminists from hegemonic countries should show real solidarity with women in postcolonial contexts by learning the language in which those women speak and write. The assertion of Spivak on Postcolonial theory and her critique of feminism in the postcolonial context is vital to this study. Her idea of politics of translation is used to evaluate to what extent German translators have been able to assimilate African feminism in the target texts. In the following, an analysis of the two German translations of the selected novel shall be carried out. The East and West German Translations of Emecheta’s The Joys of Motherhood In this section, I first analyze the respective translations of the novel’s title and thereafter the analysis of the translations of the chapter titles in the book. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 132-143 137 The Title(s) 138 It is worthy to note that the author emphasizes a crucial aspect of Igbo culture through the title of the novel. Marriage is very important in the lives of Igbo women, so also is motherhood (Akujobi 2011). In fact, motherhood crowns a woman’s marriage in Igbo culture and it is symbolic to the essence of marriage. Therefore, the author depicts this cultural belief as “Joys” and thus, “Joys of Motherhood”. The GDR translator transferred the title into German as closely as possible. Even though the word “motherhood” was translated as “Mutter” and not “Mutterschaft” in this translation, the source text author’s concept of “Motherhood” is still communicated to a large extent. The GDR version of the title reads Die Freuden einer Mutter. On the other hand, the individualistic nature, which is corollary to liberalism in a capitalist society can be deduced from the West German translation of the title as Nnu Ego. Zwanzig Säcke Muschelgeld (Nnu Ego. Twenty Bags of Cowries). In this title, the translators emphasize the heroine of the novel, Nnu Ego. This is individualistic and not part of the intention of the author. The translators also further state the meaning of the name Nnu Ego as “Zwanzig Säcke Muschelgeld” [Twenty bags of cowries]. Being a capitalist society interested in economic profits, the meaning of the heroine’s name is quite important for the West German translators. More specifically, they attempt to present the theme of the novel as only focused on the individual and in so doing emphasize her economic value. Thus, the communal life of an African woman in relation to her family, husband and children, is overlooked. Besides, reframing the title in this case underestimates African feminism, which emphasizes motherhood as a joyous experience. The Chapter Titles The novel has 18 chapters, of which seven refer to “the mother”, six focus on men, two on girls, one on children and two on economy. Of the 18 chapters, the East and West translators translated nine of them the same way and nine of them differently. Ideological undertones can however be deduced from the different translations. In the similar translations, the translators maintained a close equivalent to the source text, for example: Chapter 1 – The Mother (JOM p. 1) Die Mutter (GDR p. 5; FRG p. 5) Chapter 2 – The Mother’s Mother (JOM p. 5) Die Mutter der Mutter (GDR p. 9; FRG p. 9) Chapter 5 – A Failed woman (JOM p. 58) Eine gescheiterte Frau (GDR p. 67; FRG p. 62) ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 132-143 Chapter 6 – A Man is Never Ugly (JOM p. 66) Ein Mann ist niemals häßlich (GDR p. 75; FRG p. 70) Chapter 8 – The Rich and the Poor (JOM p. 89) Die Reichen und die Armen (GDR p. 97; FRG p. 91) Chapter 12 – Men at War (JOM p. 157) Männer im Krieg (GDR p. 168; FRG p. 159) Chapter 14 – Women alone (JOM p. 174) Frauen allein (GDR p. 186; FRG p. 176) It is worthy to note that the two translators translated some chapter titles not exactly, probably due to differences between English and German. For example: Chapter 9 – A Mother’s investment (JOM p. 112) Die Investition einer Mutter (GDR p. 120; FRG p. 113) Chapter 17 – A Daughter’s Honour (JOM p. 223) Die Ehre einer Tochter (GDR p. 239; FRG p. 227) There are however two examples of such a case from which ideological undertones could be inferred. In these cases, an indefinite article was replaced by a definite one. The ideological implication of the replacement of an indefinite with a definite article can be understood in the context of communality versus individualism. The use of “a/an” could be communal referring to anyone while “the” is more particular. The communal or socialist ideology versus liberal or individualistic one can be deduced from the differences between the East and West translations of the following titles: Chapter 4 – First Shocks of Motherhood (JOM p. 40) Erste Schrecken einer Mutter (GDR p. 47) Erste Erschütterungen für die Mutter (FRG p. 44) Chapter 7 – The Duty of a father (JOM p. 77) Die Pflicht eines Vaters (GDR p. 85) Vaterpflicht (FRG p. 80) Chapter 18 which is titled “A Canonised Mother” (JOM p. 239) is translated as “Die heiliggesprochene Mutter” in GDR (p. 256) translation. This is a more general view of women and also more communal than the FRG version, namely “Die Mutter wird heiliggesprochen” [The mother is canonized] (p. 244). The FRG version is more individualistic focusing on the exaltation of a personality. Also in chapter 15, “The Soldier Father” (JOM p. 190), the GDR version reads “Vater, der Soldat” [Father, the soldier] (p. 203), while the FRG version reads “Der Vater als Soldat” [The father as soldier] (p. 193). The East German translation refers to a figure who defends his country and the West German translation depicts it as being the choice of the individual. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 132-143 139 Furthermore, the choice of the word “Jugendzeit” [early life] in GDR’s version of the title of chapter 3 inculcates a life involving others and other things, whereas FRG’s translated the word as “Mädchen” [girl] focuses on the individual. The source and target texts read: The Mother’s Early Life (JOM p. 27) Die Jugendzeit der Mutter (GDR p. 33) Vom Mädchen zur Mutter (FRG p. 31) 140 In a few cases, there are inferences to socialist ideology in the West German translation and liberalism in the East German translation. For example, the title of chapter 11 which reads “Sharing a Husband” (JOM p. 140) is translated as “Ein Mann für zwei Frauen” [A man for two women] (p. 149) in GDR’s version and as “Zwei Frauen teilen sich einen Mann” [Two women share a man] (p. 141) in FRG’s translation. Despite the fact that the notion of sharing is more paramount in a social economy like that which existed in East German at the time, the East German translator completely reframed the title in a capitalist way. He omitted the word “share” whereas in contrast to this, in the West German translation, the word “share” (teilen) is emphasized as the translator chose to be more explicit than the author herself. A similar scenario played out in chapter 16 where the East German translator omitted the indefinite article in his translation, making the translation more individualistic. The West German translators translated as close as possible to the original and by doing so (adding “eine”), the idea presented in the title is less specific. The title of the chapter and its translations read: A Mother of Clever Children (JOM p. 211) Mutter von tüchtigen Kindern (GDR p.226 ) Eine Mutter von klugen Kindern (FRG p. 215) Conclusion From the foregoing, it has been shown that there are considerable differences between the East and West German translations of Emecheta’s The Joys of Motherhood title and chapter titles, which have resulted in variations in the representation of Black African Feminism to the target reader. It has also been discussed that the author’s own feminism, which is Womanism, is different from the radical feminism from the West. In line with Postcolonial Theory, which describes how Western ideologies tend to colour translations from third world countries, Spivak criticizes the Western feminist and postulates the need to show solidarity with women in postcolonial contexts by learning what is theirs and representing it accordingly. The ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 132-143 solidarity advocated by Spivak can be minimally inferred from the analysis of the East and West German translations of the title and chapter titles of Emecheta’s The Joys of Motherhood carried out above. Nonetheless the different ideologies of the then East and West German states, which conditioned the situation of women in the respective areas have serious implications for the translation of black feminism as indicated in the target texts used for the study. For instance, the situation of women in FRG looked more like that of the African woman because in both cases, women stayed at home to care for their children and to take responsibility of house chores, while the man was the breadwinner. However, the individualism and capitalist system in FRG is projected in the translation and it is at variance with the kind of black feminism presented in the source text. The kind of feminism in the source text is more communal, involving the society – men and children – and this makes the socialist system, the communal life which operated in East Germany and is evident in the GDR translation more appropriate in representing black feminism i.e. the experience of the black woman. References ADESANMI, Pius. (2004): “Of Postcolonial Entanglement and Duree: Reflections on the Francophone Novel”. Comparative Literature, n. 3, 56: p. 228-242. AKUJOBI, Remi. (2011). “Motherhood in African Literature and Culture”. 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XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 132-143 A tradução de mulheres negras no conjunto de suas ações políticas The translation of black women in the set of their political actions RESUMO Se avaliarmos o contexto de produção de conhecimento no âmbito de epistemologias feministas negras, chegaríamos à enumeração de determinadas configurações sociais que dificultam a interação entre movimentos políticos de mulheres negras em um âmbito global. Em princípio, a primeira configuração social que dificulta chegar a esse objetivo concentra-se na realidade multilinguística. Assim, perde-se no contexto nacional brasileiro em não se falar as línguas espanhola, francesa, inglesa, indígenas e autóctones, pois, o que mulheres negras produzem em língua estrangeira ganham menor projeção no âmbito de suas ações políticas em larga escala e, igualmente, o que se produz fora do Brasil. Torna-se indispensável a tradução de suas epistemologias, tanto no âmbito teórico-acadêmico quanto no âmbito literário-ficcional, uma vez que, parafraseando Sonia E. Alvarez (2009, 2014), a tradução é teórica e politicamente essencial para construir alianças políticas feministas. O intuito é de, nesse ensaio, apresentar uma breve avaliação dos contornos de tradução, publicação e edição de textos produzidos por mulheres negras, em especial, no Brasil. 144 Palavras-chave: Mulheres negras. Tradução. Epistemologias negras. Movimentos político-intelectuais. ABSTRACT If we evaluate the context of knowledge production within the framework of black feminist epistemologies, we would come to a list of certain social configurations that hinder the interaction between political movements of black women in a global scope. In principle, the first social configuration that makes it difficult to reach this goal is focused on the multilingual reality. Thus, it is lost in the Brazilian national context in which the Spanish, French, English, Indigenous and Native languages are not spoken, since what black women produce in a foreign language attains less prominence in their large-scale political actions and also what is produced outside of Brazil. It becomes indispensable the translation of the epistemologies produced by black women, both in the theoretical-academic scope as in the literary, since, paraphrasing Sonia E. Alvarez (2009, 2014), translation is theoretically and politically essential to construct feminist political alliances. The purpose of this essay is to present a brief evaluation of the contours of translation, publication and editing of texts produced by black women, especially in Brazil. Keywords: Black women. Translation. Black epistemologies. Political-intellectual movements. Israel V. de Melo Universidade de Brasília (UnB), Brasil. E-mail: israelvictor398@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 Alguns fatos circundam as ações de escrita, leitura e produção intelectual de mulheres negras no Brasil e geram obstáculos para acessarmos amplamente suas produções epistemológicas. Gostaria de avaliar esses fatos utilizando como critério, inicialmente, a demonstração dos contornos sociais inerentes à produção intelectual de mulheres para procurar entender as causas dos empecilhos e o impacto da tradução de mulheres negras nas formações de movimentos políticos insurgentes. De imediato, é possível vislumbrar o modo pelo qual uma elite intelectual branca age em negação às produções epistemológicas de mulheres tendo por objeto os campos do jornalismo e das instituições culturais e científicas, no Brasil, como apresenta Rita Terezinha Schmidt em seu ensaio “Refutações ao feminismo: (des) compassos da cultura letrada brasileira”, publicado em 2006 na Revista de Estudos Feministas (UFSC), e cujo resultado é aquilo que Sueli Carneiro (2005) qualifica como epistemicídio1, ou a invalidação, depreciação e deslegitimação sumária de produções epistemológicas de determinados grupos, em especial, a das populações negras. Schmidt propõe em seu estudo o exame da força do discurso antifeminista no Brasil, levando em conta a problematização da negação do feminismo, que, em suas palavras, “como práxis transformadora parece tão fora dos hábitos do país” (Schmidt, 2006: 765). Para isso, ela avalia o discurso de descrédito ao feminismo nos âmbitos do jornalismo cultural e dos estudos literários. Seu ensaio é minucioso e essencial para os estudos feministas no país, no entanto, faço destaque ao apontamento elencado pela autora que nos possibilita articular sua teoria à nossa proposição. Ela julga que, para desempenhar um papel fundamental à produção, empreende-se à crítica feminista uma condição sine qua non: a compreensão da história cultural de dominação e de poder no Brasil articulada nos planos de classe, gênero e raça: A compreensão interdisciplinar da história brasileira e uma consciência histórica dos processos sociais no contexto político de privilégios e de relações de dominação parecem-me ser uma condição sine qua non para que a crítica feminista possa desempenhar um papel importante na produção de uma forma nova de pensar a cultura e a literatura à luz das intersecções de classe social, gênero e raça. Todavia, muitos dos estudos de textos de autoria de mulheres contemplam análises em um quadro interclasse dominante em que gênero aparece como categoria isolada de outras determinações de pertencimento que, embora presentes de forma subjacente, não são investigadas e integradas ao foco das análises. Nesse contexto, a reivindicação de uma política de inclusão condicionada, na base, por um pertencimento de classe pode ser mais uma atualização do conceito de política liberal-burguesa, que coloca a igualdade de certas mulheres perante a lei, ou perante a ordem simbólica, como limite para o projeto feminista, o que colide frontalmente com o sentido do 1 Segundo a própria autora, o conceito de epistemicídio aparece anteriormente em Boaventura Sousa Santos (1997), para quem ela faz referência em seu trabalho de tese de doutoramento e cujo título é “A construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser” (Universidade de São Paulo, 2005). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 145 político construído no feminismo e que está radicado em uma crítica radical dos discursos dominantes. Embora constitua uma atividade de corte acadêmico, a crítica feminista não deixa de ser um tipo de movimento social, pois pode contribuir para a desestabilização de categorias ou de paradigmas tradicionais, segundo definição de Sandra Harding (1986). Para nós, da literatura, que trabalhamos com sistemas estéticos/cognitivos/ simbólicos/textuais – pois é desse lugar que posso falar – o exercício da crítica literária através de uma política interpretativa sustentada por estratégias textuais que possam decodificar os regimes de verdade incrustados nos textos da cultura, deslocar suas hierarquias e abrir espaços para as diferenças é a forma mais importante de construir novos conhecimentos sobre quem somos nós. Não se trata de produzir conhecimentos sobre determinados sujeitos, mas de articular um projeto epistemológico através de uma prática discursiva intervencionista que produza reflexões sobre os sentidos da dominação e as práticas domésticas de colonização, inclusive a intelectual. Esta é, no meu entender, a maior contribuição que a crítica feminista pode oferecer: produzir um deslocamento em relação ao modelo de democracia instalada no país e que levou Sérgio Buarque de Holanda a afirmar que a democracia entre nós é “um lamentável mal-entendido”. (Schmidt, 2006: 795) 146 Seria significativo elencar as contribuições de uma teoria articulada nos planos de raça, classe e gênero aos estudos feministas e não feministas, contudo, o que parece ser mais imprescindível é destacar o ostracismo da Academia e das instituições culturais frente à intelectualidade feminista no país. A partir disso e em razão da demonstração desse ostracismo e de outros, a intelectual paulista Sueli Carneiro defende a teoria do epistemicídio – lexema formado a partir dos radicais de episteme (επιστήμη), referente a “conhecimento”, e do sufixo cídio, associado a “morte” ou “extermínio”. Segundo sua teoria, um modo eficaz de subjugar uma população é negar os seus conhecimentos e práticas científicas, assim como impedir o seu acesso pleno: (...) O epistemicídio se constituiu e se constitui num dos instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/ racial, pela negação que empreende da legitimidade das formas de conhecimento, do conhecimento produzido pelos grupos dominados e, consequentemente, de seus membros enquanto sujeitos de conhecimento. (Carneiro, 2006: 96) No Brasil, por exemplo, há alguns fatos que nos possibilitam perceber o fenômeno do epistemicídio. O décimo terceiro capítulo do código penal de 1890, promulgado em 11 de outubro, trazia como crime a capoeira – importante expressão ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 cultural de luta trazida pelos negros africanos escravizados no país – praticada em sua maioria por negras e negros brasileiros. A pena para quem fosse pego praticando a capoeira seria de “prisão cellular por quinze a trinta dias” e, caso fosse estrangeiro, seria deportado para seu país de origem. Apenas em 1935 a capoeira deixa de ser crime no Brasil. Outro exemplo ainda frequente diz respeito à violência contra os terreiros e espaços religiosos de matriz africana, sobre os quais o julgamento é ainda mais violento e para os quais ainda não se direcionou uma política de fortalecimento dos conhecimentos de matriz africana – em especial os iorubanos2 – nos estabelecimentos de ensino formal – nos quais constam a disciplina de ensino religioso. Ao longo do percurso histórico brasileiro, as expressões culturais e os conhecimentos compartilhados pelas comunidades negras e africanas pouco ou quase nunca foram difundidos nos estabelecimentos de ensino e na historiografia oficial brasileira, embora haja a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura AfroBrasileira nos estabelecimentos de Educação Básica, possível por meio da lei número 10.639, promulgada pelo então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em 09 de janeiro de 2003. Se ampliássemos o nosso campo de avaliação, poderíamos perceber como a ação de epistemicídio se realiza no âmbito das Instituições de Ensino Superior, atribuindo-o como elemento das relações nesses espaços a partir do racismo estrutural3, cuja realização da violência racial é exercida pelos instrumentos de negação de uma determinada estrutura social que, no plano de nossa análise, faz referência à Academia. A despeito da recente entrada de estudantes negras e negros nas universidades públicas e da lei de acesso aos cursos de Graduação nas universidades por ações afirmativas, ainda temos a dificuldade de inclusão de autoras e autores negros nos programas de cursos de Graduação e Pós-Graduação fora do eixo dos estudos étnico-raciais. Demonstrados os processos dos fenômenos de negação e depreciação de epistemologias feministas e negras no Brasil, gostaria de associar subsequentemente o impacto da tradução como guinada ao epistemicídio e como elemento de interação política entre os movimentos políticos empreendidos em um plano global. 2 As contribuições das culturas africanas no contexto brasileiro não se restrigem unicamente à dinâmica iorubana. Ainda que seja possível elencar a formação das religiões de matriz africana tendo por base o conjunto de elementos culturais iorubanos, outros conjuntos de grupos culturais influenciaram fortemente as relações socioculturais brasileiras. A saber, grupos proveninentes, em maior escala, da África Ocidental: em registro, os povos Bantus, os Mandingas, os “Malês”, que, embora não constituissem uma etnia, agrupavam os muçulmanos escravizados. Nei Lopes, em Dicionário escolar afro-brasileiro (2006), Enciclopédia da Diáspora africana (2004) e Bantus, Malês e identidade negra (1988) apresenta dados consubstanciais a respeito da formação das identidades afro-brasileiras a partir de uma dinâmica de orientação africana. É igualmente pertinente o trabalho da historiadora estadunidense Gwendolyn Midlo Hall, notadamente, Escravidão e etnias africamas nas Américas (2005). 3 Ver ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural?. São Paulo: Letramento, 2018. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 147 Contextos tradutórios 148 Considerando os fatos de o Brasil ser o único país lusófono da América Latina e de ele abrigar o maior número de pessoas negras diaspóricas – processo decorrente do tráfico da população estimada em três milhões de africanas e africanos durante quase quatrocentos anos –, concebemos a tradução como etapa indubitável dos processos políticos empreendidos pelas populações negras no país. Um obstáculo de interação entre os movimentos negros de origem e destino brasileiros são as muitas línguas faladas pelas diferentes populações negras globais. Essas circunstâncias evidenciam a dificuldade de se estabelecer diálogos entre grupos políticos e linguísticos dissemelhantes – incluo e enfatizo a interação a partir de línguas nãoeuropeias, sobretudo, as indígenas ameríndias e africanas. O fato não é que não haja interação entre esses grupos dissemelhantes, e sim, que há um obstáculo linguístico para esse fim. Um caminho que propiciaria uma mudança no paradigma político-linguístico do país seria o ensino amplo e gratuito de línguas estrangeiras nos estabelecimentos de ensino, contudo, a difusão das Línguas Estrangeiras Modernas (LEM) avança a passos lentos no Brasil. Segundo Vilson Leffa (1999), durante o Brasil imperial, o ensino de Línguas Estrangeiras existia e se limitava às línguas clássicas europeias – o grego e o latim – à medida que, a partir da reforma de 1855, “o currículo da escola secundária começou a evoluir para dar ao ensino das línguas modernas um status pelo menos semelhante ao das línguas clássicas” (Leffa, 1999: 14). Para o autor, é a partir das Leis de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB) de 1961, 1971 e 1996 que o ensino de LEM passa a tomar novas dimensões, ainda que a resposta seja sutil naquilo que diz respeito à aprendizagem eficaz de línguas estrangeiras e aos comportamentos linguísticos da população brasileira. Ainda que o ensino de LEM não tenha obtido resultados satisfatórios em uma amplitude de mudança de paradigmas sociolinguísticos, os comportamentos de leitura em línguas estrangeiras no país poderiam reorganizar esse padrão linguísticopolítico-social. Avaliando o contexto de subdesenvolvimento social brasileiro e latino-americano naquilo que se refere aos comportamentos de leitura e ao consumo de produções culturais, o crítico, sociólogo e professor Antonio Candido (1918-2017) conclui que a ausência de algumas condições tidas como fundamentais impede comportamentos de leitura diferenciados e em maior escala no nosso contexto nacional. Para o autor: Com efeito, ligam-se ao analfabetismo as manifestações de debilidade cultural: falta de meios de comunicação e difusão (editoras, bibliotecas, revistas, jornais); inexistência, dispersão e fraqueza dos públicos disponíveis para a literatura, devido ao pequeno número de leitores reais (muito menor que o número já reduzido de alfabetizados); impossibilidade de especialização dos escritores em suas tarefas literárias, geralmente realizadas como ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 tarefas marginais ou mesmo amadorísticas; falta de resistência ou discriminação em face de influências e pressões externas. (Candido, 2000: 143) As duras críticas de Candido nos levam a refletir sobre a necessidade de mudança dos paradigmas de leitura e de alfabetização no Brasil – não apenas no tocante ao processo final de leitura, mas ainda naquilo que se conjura à aquisição e à difusão de livros no país. Tomando por base a difusão de livros (literários e não literários) produzidos por mulheres negras (brasileiras e não brasileiras), a necessidade é maior ainda. Dito isto, nos questionamos: por que traduzir, se as circunstâncias ainda são insatisfatórias? A resposta vem do modo como encaramos o impacto da tradução para um público leitor que, socialmente, se distancia do texto. Mulheres e homens negros e distanciam socialmente de determinados textos não por incapacidade, mas por não terem os instrumentos político-sociais que lhes possibilitem esse objetivo, os quais existem a partir das unidades do racismo estrutural – vale lembrar de igual modo o contexto de epistemicídio a que estão sujeitos e sujeitas. Ademais, a tradução deve ser visualizada não apenas como a limitação do exercício de tradução da palavra, mas também a tradução do conceito, da ideia em torno de determinada cosmogonia ontológica, o que aproxima realidades ontológicas afro-brasileiras às africanas, por exemplo. Traduzir produções intelectuais e artístico-literárias de mulheres negras implica alguns fatores de reconstituição social. Quer dizer, em primeiro plano, naquilo que corresponde, no Brasil e no contexto das Américas, à privação de acesso a espaços formais de educação das populações negras – compreendendo, assim, as mulheres e homens negros que tiveram suas experiências políticas desde então negadas em detrimento da defasagem racializada de escolarização. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), enquanto a média nacional de anos de estudos da população negra era, em 2015, de 7,4 – sendo 7,2 a média da população negra masculina e de 7,7 a média da população negra feminina – a da população branca era de 9. Em segundo plano, a tradução da produção feminina negra toca os fatores de reconhecimento e inter-relação entre mulheres negras existentes em diferentes contextos sociolinguísticos. No prefácio à tradução livre de 2013 do livro Mulheres, raça e classe (1982), da intelectual e ativista negra Angela Davis, o grupo de tradutoras assim define os parâmetros e objetivos da ação, coordenada pela organização antirracista portuguesa Plataforma Gueto: Porque buscamos a nossa história para que possamos conhecer o papel das mulheres negras e assim destruir a colonização da nossa mente e construirmos de forma autodeterminada os nossos pensamentos e comportamentos, começamos por definir como nos reconhecemos como mulheres negras. (s/n, 2013: 3) ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 149 Para reconhecer-se negra, é preciso, ao menos, o conhecimento do papel desempenhado pelas mulheres negras – em sua pluralidade – e, assim, destruir a colonização mental, historicamente forjada às populações negras, para construir de forma autodeterminada – autônoma – suas ações e comportamentos. Estreitar as relações entre o que mulheres negras produzem a respeito das condições de mulheres negras a partir do continente e fora dele é estabelecer mecanismos de reconhecimento e de interação autodeterminada entre si. Isto é, a tradução se realiza como uma das etapas de construção de mecanismos de interação entre movimentos de mulheres negras distintos, no país e fora dele. Ora, a tradução nos parece até aqui desempenhar pelo menos dois papeis: o de reorganizar os contornos sociais da educação no Brasil e o de contribuir para a agência política autônoma das populações negras. A agência política de mulheres negras 150 Não somente às mulheres negras e aos homens negros interessam as epistemologias e as ações políticas de mulheres negras, uma vez que a autonomia de suas ações políticas não impede o fortalecimento e a mudança de outras estruturas sociais. Em conferência na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2017, Angela Davis afirmou: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo”. As contribuições de mulheres negras para os debates de emancipação social de mulheres não-negras parecem, recentemente, ter tomado outro espaço nas lutas feministas. Historicamente, o feminismo teve uma feição que eliminava mulheres negras. Parafraseando bell hooks (1952-), em Feminism is for everybody (2000), há um problema constante ao definirmos uma historiografia do movimento feminista no mundo, sobre a qual a determinação é de que o feminismo parece ser propriedade (ownership) de mulheres brancas. Hooks (2000) não hesita em dar ênfase ao fato de que mulheres negras sempre contribuíram e agiram em movimentos feministas. No âmbito histórico, os projetos feministas liderados por mulheres negras se diferenciaram daqueles liderados por mulheres brancas. A pesquisadora Luciana de Mesquita Silva, em seu ensaio “Diáspora negra em contexto de tradução: discutindo a publicação de Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, no Brasil” (2018), exemplifica a partir da teoria de Davis determinada mudança de paradigma do diálogo entre os movimentos de mulheres negras e de mulheres brancas no processo de luta abolicionista no século XIX: Angela Davis demonstra que a união de mulheres brancas e negras no século XIX em prol da abolição da escravidão e do direito dos afro-americanos à educação aos poucos foi sendo substituída pelo distanciamento entre elas em contextos como a luta pelo ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 direito ao voto, que privilegiaria apenas mulheres brancas e das classes média e alta. (Silva, 2018: 207). De um lado, o movimento abolicionista aproximou um projeto feminista negro ao projeto feminista branco, mas naquilo que faz referência aos direitos ao voto, o projeto feminista branco se distanciou do projeto feminista negro. Poderia reinterpretar a teoria de Angela Davis (1982) naquilo que concerne às contribuições do feminismo branco durante o século XIX para a abolição do regime escravocrata e seu declínio de participação nas lutas raciais posteriores e dizer que a partir do final da segunda metade do século XX, os movimentos feministas (brancos) contribuíram mais ou menos com lutas antirracistas no país. Se pudesse determinar alguns fatores que determinaram esses novos espaços ocupados pelos movimentos políticos de mulheres negras, destacaria, para além de sua evidente e constante participação nos movimentos feministas, a compreensão da teoria interseccional (Crenshaw, 1978), com a qual o diálogo em torno dos mecanismos de interação política feminista se torna mais consistente: A interseccionalidade conecta dois lados de produção de conhecimento, a saber, a produção intelectual de indivíduos com menos poder, que estão fora do ensino superior, da mídia de instituições similares de produção de conhecimento, e o conhecimento que emana primariamente de instituições cujo propósito é criar saber legitimado. (Collins, 2017: 7). Por outro lado, embora possamos avaliar os movimentos feministas diferentemente em determinados períodos histórico-sociais, ainda não teremos respostas satisfatórias às necessidades de interação entre mulheres de movimentos políticos emancipatórios distintos. A questão que se põe à frente são os contextos de autodeterminação dos movimentos políticos de mulheres negras e, assim, o distanciamento de um paradigma político eurocêntrico – lembremos a colonização mental recentemente apresentada. A autodeterminação de movimentos políticos de mulheres negras surge como consequência dos contornos de um feminismo eurocêntrico que procura responder aos enfrentamentos específicos de mulheres nãoeuro-estadunidenses atribuindo-lhes uma ótica universalista euro-estadunidense: Pesquisadoras feministas usam gênero como o modelo explicativo para compreender a subordinação e opressão das mulheres em todo o mundo. De uma só vez, elas assumem tanto a categoria “mulher” e sua subordinação como universais. Mas gênero é antes de tudo uma construção sociocultural. Como ponto de partida da investigação, não podemos tomar como dado o que de fato precisamos investigar. Se o gênero predomina tão largamente na vida das mulheres brancas com a exclusão de outros fatores, temos que perguntar: por que gênero? Por que não alguma outra ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 151 categoria, como raça, por exemplo, que é vista como fundamental por afro-americanas? Porque gênero é socialmente construído, a categoria social “mulher” não é universal, e outras formas de opressão e igualdade estão presentes na sociedade, questões adicionais devem ser feitas: Por que gênero? Em que medida uma análise de gênero revela ou oculta outras formas de opressão? As situações de quais mulheres são bem teorizadas pelos estudos feministas? E de que grupos de mulheres em particular? Até que ponto isso facilita os desejos das mulheres, e seu desejo de entender-se mais claramente? (Oyěwùmí, 2004: 3-4). 152 Os questionamentos apresentados pela intelectual iorubana Oyèrónké Oyèwùmí (1957-) podem ser recuperados a partir da dinâmica de autodeterminação dos movimentos de mulheres negras. No campo do embate de autonomia epistemológica e política, testemunhamos a formação do mulherismo africana, cujo resultado é o subsídio para debates além-gênero, numa compreensão da dinâmica de interação entre homens e mulheres negras, uma vez que, para estabelecer relações de equidade das populações negras, a ação político-social negra masculina não pode ser descartada. Trazendo para o contexto brasileiro, seria difícil avaliar o modo como o epistemicídio se realizou nas populações negras se levássemos em conta apenas as realidades de mulheres negras. De igual modo, seria complexo eliminar os homens negros quando avaliássemos a não-inserção nas universidades públicas e os contextos de trabalho e subemprego aos quais os homens negros também estão sujeitos. No âmbito da produção artístico-literária, as formas de compreensão do mundo e o estabelecimento de interação social ficcionalizadas por mulheres negras podem fornecer elementos consubstanciais para um rearranjo político. Isso significa que passar a conhecer ontologias e epistemologias políticas a partir da ficção abre campo para discussões tangentes à dinâmica não-ficcional. Se, por exemplo, mulheres negras de língua francesa tivessem acesso ao projeto político-estético de Carolina Maria de Jesus, certamente elas teriam acesso a outros modos de compreensão da dinâmica social e racial do Brasil. A autora foi publicada em língua francesa, no entanto, há contradições em sua tradução. Em 1962, Quarto de despejo aparece na França sob o título Le dépotoir e, mais tarde, os manuscritos de Um Brasil para os brasileiros, publicado na França sob o título de Le journal de Bitita, em 1982, será publicado no Brasil como Diário de Bitita. Há entre as edições brasileiras de Quarto de despejo e Diário de Bitita uma mudança de paradigma estético, provocado pela disparidade do descuido editorial à primeira edição do segundo título, que é francesa. Germana Henriques Pereira de Sousa (2011) avalia a perda de conteúdos estéticos fundamentais da obra de Carolina nas edições em língua francesa, pois, segundo a autora: A singularidade da obra não reside na espetacularização da miséria, como a mídia insiste e também alguns críticos (Sousa, 2004); ao contrário, está em seu valor estético, que consiste na visão interna e de baixo, nas repetições, no caráter imitativo da ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 linguagem literária acadêmica, e, finalmente, na língua oral. O que a autora chama de português clássico é a imitação de modelos e de obras que não mais correspondiam ao gosto em voga. O testemunho de Carolina é contundente e incomum em nossas letras, mas o valor estético de sua obra está além de seu conteúdo. O valor estético está na forma. A contradição que essa linguagem compósita representa é constitutiva da obra e, consequentemente, produz seu valor e seu efeito estético particular. (Sousa, 2011: 125) Reconhecer o projeto estético de Carolina Maria de Jesus é reconhecer a precarização de alfabetização e educação submetida à população negra no Brasil. Ler Carolina é, de um modo ou de outro, ler o Brasil a partir de uma mãe preta semianalfabeta testemunhando seu desespero diante da fome das filhas e filhos da miséria de um povo. Não obstante, a tradução de romances escritos por mulheres africanas continentais ainda é tímida. O romance Une si longue lettre, da senegalesa Mariama Bâ (1929-1981), foi publicado na França em 1979, e é considerado um dos primeiros textos literários que toma como foco as realidades de mulheres negras senegalesas. Esse importante documento feminista contribuiria, no Brasil e em outros países de diáspora africana, para as lutas de emancipação e equidade de gênero. No Brasil, o romance somente começou a ser traduzido em 2017, por um grupo de pesquisadoras da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Se de um lado temos as epistemologias de mulheres negras de língua não brasileira difusas de modo tímido, temos ainda as epistemologias de mulheres negras brasileiras pouco difusas no exterior. As contribuições de ambos os lados são axiomáticas. Posto que os contextos não estão favoráveis à difusão da produção intelectual negra nas academias e nas demais instituições de conhecimento, há ao menos movimentos e experiências de agência política que fortalecem a transmutação do cenário intelectual. Patrícia Hill Collins, em seu ensaio recentemente traduzido sob o título “Epistemologia feminista negra”, classifica os movimentos sociais dos anos de 1950 a 1970 como fatores de mudança de paradigma intelectual: Os movimentos sociais dos anos 1950, 1960 e 1970 impulsionaram mudanças no clima intelectual e político dos Estados Unidos. Em comparação com o passado, muitas mulheres negras estadunidenses tornaram-se agentes legítimas do conhecimento. Deixando de ser objetos passivos manipulados pelos processos dominantes de validação do conhecimento, nós, mulheres afroamericanas, passamos a reivindicar nossa própria voz. (Colllins, 2018: 160-1) A autora ainda classifica a geração de mulheres e homens negros intelectuais como unidade de formação para outro dispositivo epistemológico. No Brasil, instituições e movimentos sociais negros do século XX (Frente Negra Brasileira, ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 153 Movimento Negro Unificado, Geledés, dentre outros) estimularam a consolidação de um projeto negro intelectual autônomo, à medida que as gerações pós- ações afirmativas constituem um rearranjo das produções intelectuais negras no país – possíveis em boa medida graças aos esforços dos movimentos sociais negros para a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, promulgado em 20 de julho de 2010, o qual consolidaram como entrave as políticas de ações afirmativas no Legislativo. Conclusão 154 A negação do conhecimento e da contribuição das populações negras para a História e a cultura nacionais constitui o apagamento sumário do povo negro no Brasil. O epistemicídio daquilo que produziu o povo negro elimina intelectuais negras e negros de um eixo fundamental aos dispositivos de poder e impossibilita o encerramento dos ciclos de dominação, como demonstra Sueli Carneiro (2005). Desconhecer na mesma medida aquilo que se produz fora do país e em línguas não acessíveis às populações-alvo de determinadas ações políticas é também parte do processo de epistemicídio. A tradução firma assim uma possibilidade de saída ao fenômeno de negação intelectual. Se pensarmos nos desafios de ensino e aprendizagem de mecanismos políticolinguísticos, reconheceremos o modus operandi de dominação racial no Brasil, ao perceber que a limitação linguística é também uma limitação política. Não ter acesso à leitura não se define nos moldes da habilidade de leitura, e sim, nos contornos sociais que possibilitam a aquisição, a difusão, a compreensão e a aplicação do conteúdo lido. Todos esses processos são intrínsecos aos caminhos da educação brasileira – que, racializada, eliminou uma parcela da população, em especial, a negra e periférica. Rediscutir a tradução é rediscutir o acesso aos mecanismos de poder, possibilitando, contudo, a realização de um projeto racial autodeterminado. Do mesmo modo que as epistemologias de mulheres negras não interessam apenas às mulheres negras, a interseccionalidade não é exclusividade dos movimentos feministas: Apesar da centralidade dos estudos de mulheres para a interseccionalidade, seria um erro considerar a interseccionalidade como um projeto exclusivamente feminista ou como uma variante da teoria feminista. A interseccionalidade é muito mais ampla que isso. Na academia norte-americana, os ganhos dos estudos de raça / classe / gênero e interseccionalidade têm sido substanciais. Apesar do significado da pesquisa, o verdadeiro trabalho de estabelecer um campo reside na construção de uma base de estudantes de graduação e pós-graduação, garantindo assim que a próxima geração de profissionais irá emergir. (Collins, 2017: 13) ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 Assim, a agência política de mulheres negras contribui à formação de outras gerações e provoca a alteração dos elementos estruturantes das opressões sociais. Ampliar a interação entre os movimentos de mulheres negras em acordo às suas diferentes realidades sociais e linguísticas é um fim a que os estudos de tradução, tradutoras e tradutores poderiam recorrer, pois, a partir disso, também se beneficiariam. Por fim, vale ressaltar que compreendo epistemologias de mulheres negras não apenas aquilo que envolve uma teoria feminista negra, mas também aquilo que mulheres negras produzem estético-artisticamente sobre suas realidades e sobre seus projetos de ação política. Logo, traduzir literaturas negras produzidas por mulheres negras não perde espaço frente às suas produções teórico-intelectuais. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Silvio (2018). O que é racismo estrutural? 1ª edição. São Paulo: Letramento. ALVAREZ, Sonia E. 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XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 144-157 Frantz Fanon no Brasil: Uma releitura da sua recepção pelo Pensamento Negro Feminista Frantz Fanon in Brazil: A re-reading of his reception by Feminist Black Thought RESUMO 158 Este artigo propõe uma releitura da recepção de Franz Fanon no Brasil em dois períodos específicos entre 1960-1970 e 1980-1990. Em suma, os aportes metodológicos deste escrito se baseiam em buscas no Google Scholar, os resultados obtidos foram organizados em dois quadros, por um lado, novas abordagens foram introduzidas ao longo das últimas cinco décadas desde a recepção de Frantz Fanon no cenário brasileiro, por outro lado, Lélia González e Neusa Santos Souza, por exemplo, não foram identificadas como autoras citadas pelos principais comentadores de Fanon. A ideia de tradução aqui é utilizada em chave ampliada, no entanto, não limita a nossa compreensão de que trata-se de um campo hegemonicamente masculino e sexista, e ao assumi-la como uma prática política buscamos refletir sobre os dividendos patriarcais e racistas do campo editorial e acadêmico. Na análise deste artigo, fundamentada no pensamento negro feminista e/ou das intelectuais negras, confirmamos que há uma genealogia masculinista em disputa pelos fanonismos que invisibiliza as intelectuais negras. Afinal, se Lélia González e Neusa Santos Souza dialogam com o pensamento fanoniano desde a tradução dos livros Peau Noire, Masques Blancs (Pele Negra, Máscaras Brancas) e Les Damnés de la Terre (Os Condenados da Terra), quais são as razões para não associá-las às teorias políticas em voga nos movimentos sociais negros e/ou nos discursos acadêmicos? Palavra-chaves: Frantz Fanon. Tradução. Pensamento Negro Feminista. Mulheres Negras. ABSTRACT This article proposes a re-reading of the reception of Franz Fanon in Brazil in two specific periods between 1960-1970 and 1980-1990. In short, the methodological contributions of this paper are based on searches in Google Scholar, the results obtained were organized in two frames, on the one hand, new approaches were introduced over the last five decades since the reception of Frantz Fanon in the Brazilian scenario, for On the other hand, Lélia González and Neusa Santos Souza, for example, were not identified as authors cited by Fanon’s main commentators. The idea of translation here is used in an enlarged key, however, it does not limit our understanding that it is a hegemonically male and sexist field, and in assuming it as a political practice, we seek to reflect on the patriarchal and racist dividends of the editorial and academic field. In the analysis of this article, based on Black Rosânia do Nascimento Bacharela em Antropologia pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (DAN/ ICS/UnB) e Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/DAN/UnB). E-mail: rosaniaoliveira01@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 Feminist Thought and/or Black intellectuals, we confirm that there is a masculinist genealogy in dispute for the fanonisms that invisible Black intellectuals. After all, if Lélia González and Neusa Santos Souza talk with Fanonian thinking since the translation of the books Peau Noire, Masques Blancs (Black Skin, White Masks) and Les Damnés de la Terre (The Damned of the Earth), what are the reasons for not associate them with the political theories in vogue in Black Social Movements and/ or academic discourses? Keywords: Frantz Fanon. Translation. Female Black Thought. Black Women. Neste artigo propomos uma releitura da recepção da tradução do martinicano Frantz Fanon no Brasil em dois momentos específicos entre 1960 a 1970 e 1980 a 1990 a fim de afirmar a sua influência no pensamento crítico da filósofa Lélia González e da psicanalista Neusa Santos Souza. Ao perceber que há uma genealogia masculinista em disputa pelos fanonismos no Brasil, demonstramos que essas duas intelectuais negras estiveram em diálogo com Fanon, pois havia versões para o português brasileiro e espanhol dos livros de Frantz Fanon em circulação entre os movimentos sociais negros e o movimento de mulheres negras. Assim, a ausência destas intelectuais brasileiras nesses debates entre as décadas de 1980 a 1990 confirmam o racismo e o sexismo operante nas disputas pelos Estudos Pós-coloniais e Decoloniais. Desde a década de 1990, diversas autoras têm desvelado o processo do silenciamento das vozes femininas negras no Movimento Négritude, em especial, Tanella Boni (2014) em Femmes en Négritude: Paulette Nardal et Suzanne Césaire, afirma que erroneamente tal movimento é associado a ideia dos “pais” como se fosse um acaso o encontro, em Paris, do martinicano Aimé Césaire, do senegalês Léopold Sédar Senghor e do guianense Léon-Gontran Damas. Assim, ao alinhar também nossas análises com a estadunidense Tracy Denean Sharpley-Whiting autora de Femme Négritude: Jane Nardal, La Dépêche Africaine, and the francophone New Negro, buscamos evidenciar o sexismo dos comentadores e interlocutores fanonianos no Brasil. Esta análise pauta-se pelo diálogo com o pensamento negro feminista e/ou das intelectuais negras, pois “só reivindica comida quem tem fome, e, dificilmente essa problematização seria levada a cabo por um homem, o qual muitas vezes não percebe a ausência de mulheres por estar ocupando a posição de privilégio” (ROCHA, 2018: 33). Esta releitura da recepção de Frantz Fanon no Brasil propõe desvelar as lacunas em relação a associação masculinista dos comentadores e acadêmicos brasileiros na recepção do pensamento africano ou diaspórico. Dito desta forma, nosso estudo não está alinhado aos Estudos da Tradução e Estudos de Gênero, campo interdisciplinar construído por tradutoras feministas e demais estudiosas. Como advertido por Monique Pfau (2012), a tradução feminista tem sido uma estratégia profícua para dialogar de imediato com intelectuais brasileiras e estrangeiras, afinal, a internacionalização da tradução feminista deve ser “representada através da ‘língua franca’; ou seja, o discurso deve conseguir ser publicado em uma língua de amplo ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 159 160 acesso, conseguindo assim conquistar seu ‘visto’ para ser universalmente lido por diversas culturas diferentes além do lugar onde nasceu” (PFAU, 2012: 56). Neste artigo o sentido de tradução segue em chave ampliada, no entanto, não limita a nossa compreensão de que trata-se de um campo hegemonicamente masculino e sexista, e ao assumi-la como uma prática política buscamos refletir sobre os dividendos sexistas do campo editorial e acadêmico. Em contrapartida, quando se refere ao pensamento de mulheres africanas ou diaspóricas observa-se um silenciamento agudo, muitas vezes, o movimento destas mulheres ou a participação de algumas delas em círculos e movimentos artísticosculturais e filosóficos não é mencionada ou lembrada. Em diálogo com Tanella Boni (2014: 63) algumas indagações ressoam, afinal, “o que aconteceu? Elas escrevem, elas pensam, mas elas não são ouvidas?”1. Já faz algum tempo que intelectuais negras têm refletido sobre o enigma sexista nos movimentos sociais negros e acadêmico em âmbito internacional e nacional. Algumas reflexões são emergentes nesse campo, afinal, quais são os sentidos ou lógicas nas falhas na comunicação e transmissão da tradução de autoria feminina negra no Brasil? É curioso que o leitor fanoniano tome o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2008) como a principal referência e não perceba a reprodução de uma genealogia masculina. Aliás, o próprio Guimarães (2008) cita uma coletânea organizada por Tracy Denean Sharpley-Whiting em coautoria com Lewis Gordon e Renée White, mas ao que nos parece até o momento é que as intelectuais têm sido negligenciadas no “mapa panorâmico dos fanonismos”, expressão usada pelo sociólogo Deivison Faustino (2015: 22). Ao mesmo tempo, se o leitor se atentar às notas de rodapé de Guimarães (2008) notar-se-á que tal produção se insere nas reflexões do Colloque Penser aujourd’hui à partir de Frantz Fanon, acontecido em 2007, na França. O evento reuniu entre outras convidadas, por exemplo, a antropóloga argelina Tassadit Yacine-Titouh e Mireille Fanon-Mendès-France, jurista e filha de Frantz Fanon, o não conhecimento dessas intelectuais confirma, mais uma vez, a reprodução da transmissão do pensamento fanoniano e da tradução dos seus clássicos pelo crivo sexista. Por outro lado identificar em que contexto político os autores considerados “especialistas” em Frantz Fanon se inserem nos possibilita melhores compreensões investigativas e analíticas para afirmar os seus dividendos patriarcais. Ao sistematizar nossas reflexões, observamos que realizar uma revisão teórica não seria o suficiente para atingir nosso objetivo principal, pois não faltam textos produzidos em português sobre a intersecção do pensamento e práxis revolucionária de Frantz Fanon com os demais pensadores, políticos, intelectuais, como, por exemplo, Jean-Paul Sartre, Paulo Freire, Clóvis Moura, Amílcar Cabral, e agora mais recentemente, aos nomes masculinos dos Estudos Decoloniais e ao filósofo camaronês Achille Mbembe (Cf. BERNARDINO-COSTA et. al., 2018). Os aportes metodológicos adotados compreendem dois momentos a fim de subsidiar a revisão teórica proposta; o primeiro, foram feitas pesquisas avançadas no sistema eletrônico Google Acadêmico 1 No original, “Que s’est-il donc passé? Elles écrivent, elles pensent, mais sont-elles entendues?” (BONI, 2014: 63). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 classificadas pelo idioma (português brasileiro), relevância (número de vezes em que os resultados aparecem citados em artigos relacionados) e períodos específicos (entre 1960-1970 e 1980-1990). O critério destes dois períodos específicos, em especial, converge com a data da primeira tradução do livro de Frantz Fanon, em 1968, e com o desenvolvimento dos movimentos sociais negros e movimentos de mulheres negras no decorrer dos anos 1970 e 1980, ou seja, mesmo lapso temporal da atividade intelectual de Lélia González e Neusa Santos Souza. No segundo momento, a organização dos dados obtidos ilustra o corpo deste artigo estão agrupados em dois quadros segmentados em três colunas, respectivamente, referentes às abordagens conceituais, aos dados das publicações, e a última coluna demarca as áreas de interesses a fim de entender como Frantz Fanon foi apropriado ao longo dos últimos cinco decênios por estudos interdisciplinares. Assim como a revisão teórica, o sistema de pesquisas Google Acadêmico não foi pensado como um filtro imparcial ou com total acuidade, estamos cientes das limitações dessa metodologia como a restrição ao lastro acadêmico que exclui, na maioria das vezes, a produção militante ou ativista de Lélia González e a produção técnica (clínica) de Neusa Santos Souza, a segunda limitação é que muitas obras publicadas no decorrer dos períodos analisados não estão disponíveis online ou são edições esgotadas, mimeografadas ou digitalizadas. A nossa intencionalidade política reflete a “lupa” adotada no processo de buscas no referido sistema eletrônico, os dados levantados e organizados se encerram em nomes masculinos ou em acadêmicos brancos. Assim, compreendemos que a produção dessas autoras negras passa duplamente despercebida pelos recortes adotados; primeiro, por não ser facilmente localizada no sistema supracitado; e segundo, por não ser mencionada pela literatura sistematizada a partir dos resultados obtidos. Para suplementar essas ausências ou lacunas, a revisão teórica apoia-se em discussões advindas das estudiosas e ativistas negras, como, por exemplo, Luiza Bairros (2000) Raquel Andrade Barreto (2005), Elisabeth Viana (2006), Alex Ratts e Flávia Rios (2010), tributárias (os) e/ou contemporâneas (os) de Lélia González e Neusa Santos Souza. Os fanonismos no Brasil têm se destacado como um campo profícuo nas ciências sociais conforme o mapeamento2 contemporâneo realizado pelo sociólogo Deivison Faustino (2015), mas ainda sim, essa recepção tem sido marcada pela literatura de língua inglesa e, no Brasil, por expoentes masculinos das ciências sociais como Guimarães (2008) e Ortiz (2014). Frantz Fanon tem retornado à cena acadêmica, no entanto, quais são as outras figuras que estão por detrás da figura deste intelectual que projetamos somente um portrait vestido de terno escuro, em geral, em uma única imagem em preto e branco? As intelectuais negras brasileiras 2 Esse importante mapeamento também foi realizado “em buscas nos bancos virtuais de trabalhos acadêmicos, a saber: a biblioteca de periódicos da Capes e do Scielo” (FAUSTINO, 2015: 24) durante o seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia na UFSCar, orientado pelo professor Valter Silvério, intelectual negro e militante histórico. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 161 dialogam com este martinicano? As intelectuais negras brasileiras estão em diálogo com outras pesquisadoras fanonianas? Ao final, confirmamos que a disseminação dos discursos das intelectuais negras sofre um embargo duplo; o primeiro, a produção de teorias sociais no seu país de origem (nos países africanos, na Diáspora ou na Europa), haja vista depreende-se que os movimentos políticos, artísticos e intelectuais são associados diretamente aos chamados “pais fundadores” que, por sua vez, negam ou silenciam tais intelectuais conforme nos alerta Tanella Boni (2014: 63), e quando essas obras chegam ao Brasil são marcadas “por uma política (colonial) de tradução que insiste em não incentivar amplas traduções de trabalhos de pessoas negras” (ROCHA, 2018: 50). Os anos de 1960 a 1970: Fanon sob vistas grossas da ditadura civilmilitar? 162 Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2008) e Deivison Faustino (2015) têm tecido reflexões salutares sobre a recepção de Fanon no Brasil. Conforme os autores, o primeiro momento da recepção de Frantz Fanon se deu pela via terceiromundista com enfoque político no clássico Os Condenados da Terra traduzido, em 1968. Atualmente, Frantz Fanon é associado às tradições dos Estudos Culturais, Póscoloniais, Decoloniais e African Studies desenvolvidos nos Estados Unidos, Europa e África que, segundo Faustino (2015), corresponde em âmbito internacional a quarta tendência dos estudos fanonianos vigentes desde os anos 1980. Assim, os chamados estudos fanonianos ou fanonismos têm repercutido nas discussões acadêmicas, em movimentos sociais negros e nos programas das esquerdas brasileiras, além disso, muitos eventos e publicações internacionais e nacionais na perspectiva decolonial são tributários do pensamento de Frantz Fanon (Cf. MACÊDO, 2016; BERNARDINOCOSTA; GROSFOGUEL, 2016; BERNARDINO-COSTA et al., 2018). Em razão duas observações são levantadas por Faustino (2014), o curto lapso de vida do psicanalista martinicano não corresponde ou limita a complexidade do seu pensamento, é possível constatar diferenças notáveis entre o pensamento fanoniano, sua práxis revolucionária e os chamados fanonismos. Dessa forma, esse campo deve ser cartografado no plural a fim de aproximar as contribuições de Frantz Fanon às emergências desses novos estudos. Para compreender a recepção do martinicano e a capilaridade da sua influência nos estudos brasileiros, passaremos a análise do Quadro 1 a seguir que reúne os primeiros resultados encontrados no sistema Google Acadêmico entre 1960 a 1970. Esse primeiro lapso compreende-se como a “primeira fase da embocadura terceiro-mundista que vigorou do final dos anos 1950 até os anos 1970, abrigando autores liberais como Hannah Arendt” (FAUSTINO, 2015: 91). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 Quadro 1. Frantz Fanon entre 1960 a 1970 no Brasil Abordagens Publicações • Áreas de Interesses FANON, Frantz. L’An V de la Révolution Algérienne. Tradução e Ed. François Maspero. Paris, 1959. Resenha Crítica comentários das por Fernando Albuquerque Mourão (1962). Revista primeiras obras de Frantz Fanon no Ciências Sociais de História (USP). • Brasil FANON, Frantz. (1968). Os Condenados da Terra. Trad. José Laurêncio de Melo. Rio de Janeiro-RJ: Civilização Brasileira. • ZOLBERG, Aristides R (1968). “A estrutura do conflito político nos novos estados da África Discussões sobre Tropical”. Revista de Ciência Política, FGV, abril/ as independências africanas; crítica ao colonialismo, junho, pp. 56-98. • Africanistas”, 27 Revista Brasileira de Estudos tendências Políticos 71. pós-coloniais e anticolonial. BELTRAN, Luis. (1969) “A Problemática dos Estudos • RICHERS, Raimar. (1970). Ciência Política (Estudos Políticos), Ciências Sociais e Administração. “Desenvolvimento: um desafio social”. Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, 10 (2): 41-69 abr./jun. Discussão filosófica sobre a violência e crítica a Sartre, Sorel e Fanon. • ARENDT, Hannah. (1970). Da Violência. Tradução de Maria Cláudia Drummond Trindade. Brasília- Filosofia DF: Editora UnB. Fonte: Do Nascimento, 2018. O destaque do quadro acima é para as traduções do livro Os Condenados da Terra do martinicano Frantz Fanon, e para a tradução do livro Da Violência da filósofa Hannah Arendt (1970). Os primeiros direitos autorais para o português brasileiro do clássico fanoniano Os Condenados da Terra foram adquiridos pela editora Civilização Brasileira (FANON, 1968). A capa, assinada por Marius Laurltzen Bern, reflete o forte apelo ideológico desde a gradação das cores (vermelha e preta) até a projeção das personagens que ilustram metaforicamente a condição política dos condenados à terra. Como afirma Carina Naufel (2012), a editora foi fundada em 1925 por Monteiro Lobato e Octalees Marcondes Ferreira, mas passou a ser presidida em 1948 pelo editor Ênio Silveira. Depois da entrada deste editor, o catálogo editorial foi modificado e, pela primeira vez, editava-se autores marxistas. Como corroborado por Sandra Reimão (2014), Ênio Silveira foi alvo predileto de apreensões, coações e censuras do Ministério da Justiça (MJ) por meio do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) e do setor do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP). No entanto, parece-nos que ainda não foi explorado quais foram os interesses que motivaram a recepção de um escritor negro como Frantz Fanon para além da ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 163 164 sua possível associação ao marxismo. Em contrapartida, as parcas citações de Frantz Fanon no Brasil durante o lapso de 1960 a 1970, em certa medida, põe em relevo a negligência das suas contribuições para a agenda política das esquerdas latinoamericanas. Segundo Guimarães (2008) e Ortiz (2014), Fanon seguiu como autor desconhecido pelos ativistas e intelectuais negros e no mundo acadêmico branco até a década de 1970. Nos dados organizados neste escrito, notamos que Fanon aparece citado entre 1960 a 1970 a partir da chave-conceitual do anti-colonialismo que fundamentou a emergência das novas identidades nacionais africanas, é importante ressaltar a participação do martinicano no Movimento Pela Libertação da Argélia (MPLA), a produção dessa época foi organizada no livro intitulado Pour la Révolution Africaine (FANON, 2006). Mas há aqui uma questão sobre as entrelinhas editoriais brasileiras, de fato, Fanon passou despercebido diante da conjuntura política da ditadura civil-militar, ou apenas foi ignorado por ser um intelectual negro, um revolucionário desde a Argélia? O prefácio escrito pelo filósofo Jean-Paul Sartre jamais foi esquecido entre a comunidade acadêmica brasileira, por outro lado, Faustino (2015) nota que Fanon teve um crescente reconhecimento na medida em que foi apropriado pelos movimentos sociais e intelectuais negros. Guimarães (2008) argumenta que o desconhecimento deste grande teórico no interior das esquerdas brasileiras relaciona-se às condições políticas da tradução realizada no auge ditadura civil-militar, ou seja, época de profunda repressão à contraviolência de líderes, guerrilheiros, pensadores, ativistas perseguidos ou condenados à clandestinidade3. Os sociólogos Guimarães (2008) e Ortiz (2014) concordam que as idéias de Fanon entram no Brasil depois da visita dos filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir em razão da ampla circulação da filosofia existencialista nos círculos acadêmicos e militantes do pós-guerra, momento em que se estreitou os laços intelectuais entre este filósofo francês e os pensadores afrodiaspóricos e africanos. Na visita ao Brasil, Sartre não se encontrou com nenhum pensador negro ou pensadora negra, por outro lado, Guimarães (2008) afirma que o texto sartreano Orfeu Negro já havia sido publicado no jornal Quilombo ligado ao Teatro Experimental do Negro (TEN)4. 3 Como discutido com profundidade por Karin Sant’Anna Kössling (2005), o complexo repressivo acionado pela polícia política da ditadura civil-militar dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro também perseguiu os movimentos sociais negros, inclusive, Frantz Fanon, W.E.B Du Bois e Marcus Garvey eram autores do corpo político-teórico negro, o que chamou a atenção dos órgãos repressivos da época. 4 Há referências importantes sobre a formação dos movimentos sociais negros Cf. CUTI, (Luiz Silva). (1992). E assim disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo: Noovba e PEREIRA, Amauri Mendes; SILVA, Joselina da. (2009). O Movimento Negro brasileiro: escritos sobre os sentidos de democracia e justiça social no Brasil. Belo Horizonte-MG: Editora Nandyala. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 Há uma disputa acadêmica que põe em relevo se Jean-Paul Sartre5 exerceu tanta influência no pensamento de Frantz Fanon ou não. No Brasil, Renato Ortiz (2014: 427) afirma que o editor da revista L’Esprit, Jean Marie Domenach, considera o pensador martinicano um discípulo sartreano, em suas palavras, “o existencialismo de Fanon carrega um elemento de radicalização do marxismo”. Ao nosso ver, essa associação deve ser compreendida a partir da análise do próprio pensamento de Frantz Fanon que, segundo o sociólogo Deivison Faustino (2015), pode ser considerado como um conjunto de premissas políticas e filosóficas que inaugura um novo campo denominado fanonismos. Esse peso atribuído ao Sartre evidencia a existência de uma cartografia hegemônica do conhecimento que privilegia o circuito francês e, por seu turno, compromete o diálogo ou correspondência deste referido pensador com outros autores dos circuitos árabes e latino-americanos, há que se lembrar que Fanon era caribenho e construiu o seu arcabouço político-teórico sobre/na Argélia. O espectro sartreano apontado por Guimarães (2008) está sublinhado no escopo de Da Violência da filósofa Hannah Arendt que se detém ao prefácio de JeanPaul Sartre e não propriamente as teses do martinicano Frantz Fanon. Para o pensador martinicano, Orfeu Negro até pode ser considerado um marco no intelectualismo do existir negro, no entanto, a participação dos intelectuais brancos na agenda política, literária e filosófica anticolonialista perpassa por críticas precisas. E que não nos acusem de anafilaxia afetiva; o que queremos dizer é que não há razão para que André Breton diga que Césaire: “É um negro que maneja a língua francesa como nenhum branco a maneja nos dias de hoje”. E mesmo que Breton exprimisse a verdade, não vejo onde residiria o paradoxo, ou algo a salientar, pois, afinal de contas, Aimé Césaire é martinicano e professor da universidade. Mas, retrucarão os negros, é uma honra para nós que um branco como Breton escreva coisas como essas. Continuemos... (FANON, 2008: 50-51). Os circuitos acadêmicos e políticos seja francês ou inglês são responsáveis por eclipsar diversas mulheres do escopo da vida e obra de Frantz Fanon, muitas vezes, para minimizar a influência ou a participação na sua atividade militante e intelectual, como, por exemplo, Josie Fanon, jornalista francesa e sua esposa, recuperada tardiamente pelo estadunidense Christian Filostrat (2017), organizador da coletânea intitulada Le Dernier Jour de Frantz Fanon. A difusão de Fanon pela chamada epidemia sartreana produziu outros efeitos, em grande medida, considerando a hegemonia do pensamento ocidental nota-se que diversos autores negros passaram a reconhecer 5 Para Katleen Gyssels (2005), poetas e escritores negros sejam guianenses, martinicanos, haitianos e africanos foram tributários do existencialismo sartreano. O francês foi autor de prefácios como Orphée Noir, de 1948, para a Anthologie de la poésie nègre et malgache, organizada pelo senegalês Léopold Sédar Senghor; o ensaio introdutório, escrito em 1956, para a primeira edição de Les Damnés de la terre, do martinicano Frantz Fanon e, por conseguinte, outro ensaio escrito, em 1957, para a obra Portrait du colonisé… do tunisiano Albert Memmi. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 165 Jean-Paul Sartre como o prefaciador-mor de todos os principais textos inaugurais da Négritude ou dos panafricanismos. Ademais, o reconhecimento deste movimento por filósofos e artistas brancos implicou na formação de uma genealogia masculina que, por sua vez, tem no seu cerne o silenciamento da produção artística, intelectual e acadêmica de Paulette Nardal, a pensadora da “consciência da raça”, Suzanne RoussiCésaire, a defensora do Surrealismo caribenho, Jane Nardal, a editora do jornal La Dépêche Africaine, martinicanas pouco lembradas pelos autores das literaturas negro-africanas (SHARPLEY-WHITING, 2000; BONI, 2014). Voltando para a análise do Quadro 1, neste período de 1960 a 1970, foi possível localizar a resenha crítica do livro L’ An V de la Révolution Algérienne6 do martinicano Frantz Fanon escrita por Fernando Albuquerque Mourão para a Revista de História da Universidade de São Paulo (USP) anterior, inclusive, a tradução de Os Condenados da Terra. No preâmbulo, há uma breve apresentação biográfica e política do autor, o curioso é que a resenha crítica de Fernando Albuquerque Mourão (1962) não foi identificada no escopo do artigo de Guimarães (2008). 166 A morte de Frantz Fanon, recentemente ocorrida numa clínica nos Estados Unidos, vítima de câncer, ocorreu posteriormente à leitura deste trabalho na Sociedade de Estudos Históricos. Frantz Fanon nasceu na Martinica, tendo seguido seus estudos superiores na Faculdade de Medicina de Paris, onde foi assistente de psiquiatria, e nos hospitais civis, trabalhando depois nos hospitais da Argélia, onde, em contato direto com as realidades e chocado com a brutalidade da luta, ingressa no FNL. Reparte o seu tempo entre as missões ao estrangeiro, procurando obter auxílio para os refugiados argelinos em Marrocos e na Tunísia, e na assistência médica aos combatentes, quer no front, quer nas suas bases na Tunísia (MOURÃO, 1962: 270). Interessante notar também que Fernando Albuquerque Mourão (1962) faz referências substanciais aos desdobramentos sociais e psicanalíticos do povo argelino, atualmente, analisados pelas chaves-conceituais do mapeamento contemporâneo organizado por Deivison Faustino (2015), porém, o referido livro segue sem tradução para o português brasileiro. As restrições e perseguições das editoras de esquerda, assim como aos intelectuais, guerrilheiros e políticos foi um traço dos regimes autoritários ressaltado com veemência por Sandra Reimão (2014), mas se os livros de Che Guevara e José Martí, por exemplo, aparecem nas listas dos livros mais censurados, por outro lado, o desconhecimento do martinicano Frantz Fanon confirma-se dado o racismo operado pelas próprias revoluções latino-americanas e pelo mercado editorial nacional. Da mesma forma, podemos aplicar tal raciocínio 6 Atualmente, Heitor Loureiro e Raphaël Maureau (2014) publicaram a tradução do terceiro capítulo deste livro intitulado La Famille Algérienne. Curiosamente, as três versões apresentam diferenças no título. Originalmente, em francês, intitula-se L’an V de la révolution algérienne, em inglês, A Dying Colonialism, em espanhol, Sociologie de una Revolución. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 a rarefeita divulgação do pensamento das várias mulheres racializadas na América Latina e Caribe, líderes, ativistas, guerrilheiras, políticas ou intelectuais deste período, por outro lado, tal gesto corrobora a misoginia dos circuitos revolucionários e da tradição dos estudos negros. Os anos 1980 e 1990: Lélia González e Neusa Santos Souza leitoras de Frantz Fanon? No primeiro lapso entre 1960 a 1970 constatamos a vigência da tradição masculina na recepção da produção fanoniana como ilustrado no corpo da seção anterior. A discussão ou menção ao martinicano Frantz Fanon realizada por uma mulher deu-se no escopo da obra da filósofa Hannah Arendt (1970). As observações realizadas a partir dos resultados do Google Acadêmico e sistematizados no Quadro 2 a seguir confirmam a introdução de novas abordagens fanonianas entre 1980 a 1990, período este correspondente à atividade intelectual e ativista de Lélia González e Neusa Santos Souza. Em âmbito internacional anglófono, os anos 1980 corresponde a quarta fase dos estudos fanonianos conforme o mapeamento organizado pelo sociólogo Deivison Faustino (2015). A crítica que se faz aos chamados estudos fanonianos ou fanonismos é a ausência ou presença rarefeita de mulheres na biografia de Frantz Fanon, sua mãe Eléonore Félicia Médélice e a esposa dele, a jornalista francesa Marie-Joséphe Dublé Fanon, das críticas negras, feministas, escritoras contemporâneas a Fanon, como, por exemplo, a escritora martinicana Mayotte Capécia presa às notas de rodapé ou sublinhada com depreciação por este martinicano (Cf. DO NASCIMENTO, 2017). No Brasil, vários comentadores se interessam pela personagem Jean Veneuse7 do romancista guianense René Maran, ao mesmo tempo, as discussões do mundo acadêmico brasileiro baseiam-se em premissas psicanalíticas e filosóficas que buscam solucionar a questão retórica proposta por Fanon: “que quer o homem negro?” (FANON, 2008: 26). A interlocução com as demais autoras para além das ondas ou fases sobre o pensamento de Frantz Fanon não nos parece ser somente uma questão de tradução, aliás, como defendido pela filósofa brasileira Aline Matos Rocha (2008: 50), perpassa os critérios de quem merece tradução nos debates acadêmicos 7 Personagem do livro Batouala do antilhano René Maran, considerada a primeira obra escrita por um autor negro ganhadora do Prix Goncourt, em 1921. Frantz Fanon (2008) afirma que trata-se de um gênero autobiográfico que denuncia pela perspectiva de um antilhano negro como o racismo afeta as subjetividades do homem negro. Por outro lado, os leitores (grafados no masculino para afirmar as suas benesses patriarcais) têm verdadeiro desinteresse pela personagem Nini, da também antilhana Mayotte Capécia, o livro que enquadra-se no gênero autobiográfico é intitulado Je suis Martiniquaise, e trata do enlace de uma mulher negra com um homem branco (francês), porém, pareceu pouco interessante aos olhos masculinistas. No Brasil, essa discussão é bastante conhecida tanto no rol das ciências sociais e pelos movimentos sociais das mulheres negras que, por sua vez, afirmam como o mito da democracia racial e a ideologia do embranquecimento provocaram desvantagens afetivas e econômicas para este grupo. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 167 168 brasileiros, o que “contribui para que a maioria dessas produções [das demais autoras diaspóricas e africanas] permaneçam disponíveis apenas em francês ou inglês”. Antes de adentrar a análise do quadro propriamente dito é importante uma ponderação metodológica e analítica, relacionar Lélia González, Neusa Santos Souza e Frantz Fanon não implica, necessariamente, assumir a posição corrente nos circuitos negros anglófonos e francófonos, pois o que se percebe, muita vezes, é uma hierarquia que privilegia Frantz Fanon como uma das principais referências dos Estudos Póscoloniais e os intelectuais negros (as) brasileiros (as) como seus intérpretes terceiromundistas. Da mesma forma, este artigo poderia ser uma interlocução direta entre essas duas intelectuais e Virgínia Bicudo, haja vista as três são intelectuais negras e brasileiras. Além disso, ambas têm suas trajetórias acadêmicas marcadas pela dedicação, em menor ou maior grau, à psicanálise. Virgínia Bicudo foi uma socióloga e psicanalista com profunda atividade intelectual nas ciências sociais na mesma fase marcada pelos nomes de Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Roger Bastide. No mapeamento dos fanonismos, o sociólogo Deivison Faustino (2015) cita a psicanalista Virgínia Bicudo dada a sua proximidade teórico-conceitual8 com o sociólogo Guerreiro Ramos e com o psiquiatra Frantz Fanon, mas a intelectual é lembrada como um “destaque destoante do grupo” crítico da branquidade (FAUSTINO, 2015: 208). As trajetórias de Lélia González e Neusa Santos Souza são percorridas por fios esparsos, rarefeitos ou organizados a partir das memórias dos militantes e ativistas mais velhos. A literatura mais recente tem demonstrado a dedicação teórico-conceitual dos mais novos em disputar a incorporação dessas autoras no cânone acadêmico, ou seja, são educadores (as) e intelectuais tributários (as) das gerações militantes anteriores que têm chegado desde os últimos dois decênios aos programas de pósgraduação e às cadeiras da docência universitária. Em especial, a biografia de Lélia corresponde a própria memória política e afetiva dos militantes, artistas e ativistas, a sua vida e obra confunde-se com o histórico da luta política dos Movimentos Sociais Negros e do Movimento de Mulheres Negras em âmbito nacional e latino-americano e caribenho como acordado por Luiza Bairros (2000), Alex Ratts e Flávia Rios (2010) e Catalina González Zambrano (2017). Sobre Neusa Santos Souza há muito pouco escrito sobre a sua história de vida ou sobre o alcance da sua atuação como psicanalista, não que ela não seja mencionada por outras autoras, apenas não tem sido o foco central como Frantz Fanon para Deivison Faustino (2015) e Virgínia Bicudo para Damaceno Gomes (2013). Era uma mulher negra, baiana radicada no Rio de Janeiro, que estudou medicina com ênfase em psiquiatria e dedicou-se à psicanálise lacaniana, além desses fios biográficos coletados em veículos negros9, diante disso, não conseguimos reunir outras 8 O período de atividade intelectual da psicanalista Virgínia Leone Bicudo analisado por Janaina Damaceno Gomes (2013) compreende os anos de 1945 a 1955, ou seja, antecede o primeiro período da recepção de Frantz Fanon no Brasil. O foco deste trabalho são Lélia González e Neusa Santos Souza, por uma razão muito clara, ambas foram influenciadas diretamente pela versão espanhola e português brasileiro das obras Pele Negra, Máscaras Brancas e Os Condenados da Terra. 9 “Morre Neusa Santos Souza”, no Portal da Fundação Cultural Palmares. Disponível em: <http://www. palmares.gov.br/?p=3166> Acessado em 28 de dezembro de 2018. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 informações. Notamos apenas alguns ruídos da sua solidão afetiva e intelectual, em alguns excertos ela é descrita como uma mulher que não deixava filhos, que não era casada,10 e que aos 60 anos despedia-se como mais uma vítima do racismo. Para não cair na dicotomia entre Lélia González, a militante, e Neusa Santos Souza, a psicanalista de consultório, é importante sinalizar que esta última também é descrita pela geração das ativistas da década de 1990 como uma das “guardiãs” do Movimento Negro e do Movimento de Mulheres Negras e, por sua vez, Lélia González também era multidiplomada (em História e Filosofia) como ressaltado por Raquel de Andrade Barreto (2005). Houve um lapso temporal de quase uma década após a morte de Lélia González, ocorrida em 1994, até que as primeiras produções surgissem em âmbito acadêmico, em geral, foram desenvolvidas por pesquisadoras do ativismo antirracista da década de 1990 como Raquel de Andrade Barreto (2005) e Elisabeth Viana (2006). Atualmente, a organização da coletânea Primavera para as Rosas Negras (GONZALEZ, 2018), iniciativa das organizações pan-africanistas de São Paulo, abre precedentes para novos olhares sobre a produção leliana, muitas vezes, seus textos sequer são conhecidos por um público mais amplo ou mais jovem, talvez, seja esse o tributo que falta para Neusa Santos Souza. Sobre a produção de Neusa Santos Souza foram localizados textos raros referentes a sua atividade profissional; capítulos de livros sobre psicanálise e coorganização no Seminário X de Lacan, tais produções encontram-se esgotadas no mercado editorial. As demais obras de caráter clínico-profissional já são analisadas há algum tempo pela psicóloga Maria Aparecido Bento (2002), ou seja, o pensamento de Neusa Santos Souza (1983) pode ser apreendido pela sua autonomia de possuir um discurso sobre si mesma, ou por uma prática política e profissional coerente com a sua condição racial e de gênero como corroborado na abertura do seu livro Tornar-se Negro: vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Este livro representa o meu anseio e tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso sobre o negro, no que tange à sua emocionalidade. Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de ser-se negro numa sociedade branca. De classe e ideologia dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas (SOUZA, 1983: 17). Depois dessas breves digressões biográficas, faz-se necessário a análise teórica da produção de Lélia González e Neusa Santos Souza à luz das abordagens conceituais identificadas e organizadas no Quadro 2 abaixo em três grupos (i) literatura negra diaspórica e africana e panafricanismos; (ii) estudos sobre racismo à brasileira; 10 “Neusa Santos Souza”, as poucas notícias sobre sua morte, escritas por amigos, colegas e por um coletivo negro da UERJ, foram organizadas pelo Memorial Lélia González. Disponível em: <http:// leliagonzalez-informa.blogspot.com/p/neusa-santos-souza.html> Acessado em 29 de dezembro de 2018. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 169 identidade negra; formação dos movimentos sociais negros e críticas ao mito da democracia racial e (iii) críticas ao capitalismo, ao imperialismo e ao colonialismo no contexto das independências asiáticas e africanas. Dessa forma, se a leitora observar atentamente o Quadro 2 a seguir notar-se-á que os textos das brasileiras Lélia González e Neusa Santos Souza estão identificadas com ícones diferentes em relação aos demais autores, em linhas gerais, mantemos tais autoras incorporadas às abordagens conceituais para não cometer novamente um duplo apagamento ou deixá-las à parte dos demais autores (as) ou em seções menos prestigiosas. Quadro 2. Frantz Fanon entre os anos de 1980 a 1990 no Brasil Abordagens: Publicações • Áreas de interesse BROOKSHAW, David. (1983) Raça & Cor na Literatura Brasileira. Vol. 7. Mercado Aberto. • FANON, Frantz. (1983). Pele Negra, Máscaras Negras. Tradução Adriano Caldas. Rio de Janeiro: Fator. Literatura negra diaspórica • BERND, Zilá. (1988). Introdução à Literatura Negra. Editora Brasiliense. • SANTILLI, Maria Aparecida. (1987). “Literaturas de língua portuguesa: com “as” da África entre nós”. Boletim Bibliográfico, 48: 29. e africana; panafricanismos Letras • LIMA REIS, Eliana Lourenço. (1988). “Descentrando a crítica: a literatura das minorias”. Estudos Germânicos, vol. 9: 22-29. 170 • CARNEIRO, João. (1981). “Négritude e América Latina”. Revista de Antropologia. Vol. 24 (1981), pp. 75-84 • JACKSON, K. David. (1990). “Bibliografia Oswald de Andrade”. Revista de Letras: 53-81. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 Ciências Sociais Abordagens: Publicações • Áreas de interesse MOURA, Clóvis. (1983). Brasil: Raízes do Protesto Negro. Vol. 28. Global Editora. • uma Discussão sobre Movimentos Sociais Urbanos”. Cadernos 13, 79-95. Estudos sobre racismo à MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio; ZICCARDI, Alícia. (1980). “Notas para • CALDEIRA, Maria Isabel. (1980). “All Colored People Sing: do estereótipo à identidade”. Revista Crítica de Ciências Sociais. 4/5, pp. 157-18. brasileira; BALTHAZAR, Paula Renata; RODRIGUES, Carlos Benedito. (1988). “O Ciências negra; formação Negro no Maranhão: sob as regras da democracia racial”. Caderno Pesquisa Sociais dos movimentos São Luís 4.1, pp. 110-119. sociais negros e • i. GONZÁLEZ, Lélia. 1983 [2018]. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. críticas ao mito In: SILVA, Luiz Antônio Machado et alii. Movimentos Sociais Urbanos, da democracia minorias étnicas e outros estudos. Brasília-DF, ANPOCS, pp. 223-244. identidade racial • • Psicanálise ii. GONZÁLEZ, Lélia. 1988 [2018]. “A categoria político-cultural da amefricanidade”. In: Tempo Brasileiro, 92/93, jan./jun, pp. 69-82. • iii. GONZÁLEZ, Lélia. 1991 [2018]. “Uma viagem à Martinica”. In: MNU Jornal, 20, out./nov./dez., p. 5. • iv. SANTOS, Neusa Souza. (1983). Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal. • 171 NEVES, Marcelo. (1989). “Da Necessidade de uma Nova Ordem Internacional”. Revista Brasileira Estudos Políticos, v. 69, p. 7. • ALMEIDA DINIZ, Arthur José. (1984). “Hoje Vivemos o Medo”. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, vol. 29.26-27, pp.: 80-93. Críticas ao capitalismo, • Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, 9.16: 116-123. imperialismo e colonialismo • LIMA BASTOS, HERZILA Maria. (1987). “Aspectos culturais de povos desenvolvidos e subdesenvolvidos como caracterizadores dos seus contatos no contexto das com línguas estrangeiras: uma correlação possível”. Estudos Germânicos, v. independências 8, n. 2, p. 40-44. asiáticas e africanas LIMA, Bertúlio, LÚCIA, Dora. (1988). “Apartheid: racismo e/ou capitalismo?”. • Direito Ciências Sociais Política STUDER, Caren Elisabeth. (1989). Escola, estrangeiro e violência cultural: uma contribuição para o entendimento de neocolonialismo cultural. Dissertação (Mestrado em Metodologia de Ensino). Programa de PósGraduação em Educação, Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, mimeo. Fonte: Do Nascimento, 2018. Para Luiza Bairros (2000), Racismo e sexismo na cultura brasileira é o texto mais emblemático do pensamento leliano. Ainda conforme a socióloga, o que atribui peso nas reflexões de Lélia González é “o uso de categorias propostas por Freud e ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 Lacan que também aparecem em seus trabalhos posteriores, e resulta da tentativa de desvendar o que fica sem explicação no racismo à brasileira” (BAIRROS, 2000: 353). Em contrapartida, A categoria político-cultural da amefricanidade e Uma viagem à Martinica são produções advindas da agenda latino-americana e caribenha entre 1980 a 1990 como assinalado por Alex Ratts e Flávia Rios (2010), pois interrelacionam as lutas dos negros das Américas às ideologias vivificadas durante as libertações africanas e afro-diaspóricas. Dessa forma, ao disputar a presença nesses espaços, Lélia González demonstra se situar politicamente em dois movimentos quais sejam, a busca pela inserção das intelectuais brasileiras nas agendas transnacionais, historicamente, inauguradas pelos encontros de negros diaspóricos e africanos, e por outro lado a filósofa compreende a importância de alinhar a escala regional (América Latina e Caribe) a nacional (Brasil) para concretizar os interesses dos Movimentos Sociais Negros e do Movimento de Mulheres Negras (ZAMBRANO, 2017). A necessidade de afirmar as contribuições de Lélia González e Neusa Santos Souza ou pensá-las como leitoras de Frantz Fanon (1968 e 2008), é propor uma reflexão sobre a importância da circulação das traduções deste martinicano no país, e afirmar que trata-se de uma agenda política protagonizada por mulheres negras que desenvolveram teoricamente os debates raciais no Brasil no período de 1980 a 1990. 172 A referência a Frantz Fanon foi constante nos movimentos negros de Brasil e Estados Unidos e revelam a consciência global do racismo. A importância do autor, entre outras coisas, esteve em criticar uma sociedade centrada no branco e na obsessão pela brancura, ao mesmo tempo, destacar os dois pólos de uma relação colonial: o colonizador e o colonizado. Fanon buscou compreender os mecanismos de dominação na formação da consciência do povo colonizado (BARRETO, 2005: 86). Deivison Faustino (2015) afirma que as versões de Pele Negra, Máscaras Brancas circulava desde 1970 em duas versões português e castelhano, esta última curiosamente intitulada !Escucha, Blanco. Conforme Elisabeth Viana (2006), Lélia González participava desde a década de 1960 do mundo acadêmico como tradutora e, mais tarde, como professora universitária. Desse modo, é importante salientar que a filósofa ambientou-se com as discussões psicanalíticas antes mesmo da tradução dos clássicos fanonianos para o Brasil, ao seu currículo soma-se cerca de quatro traduções de compêndios da área como Freud e a Psicanálise do francês Octave Mannoni, fato que confirma o seu know-how na formação teórico-conceitual dos movimentos sociais negros, além, é claro, dos cargos ocupados durante a sua vida como professora e coordenadora do curso de Ciências Sociais. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 Segundo um importante manual11 da área da Psicanálise, Pele Negra, Máscaras Brancas (FANON, 2008): Era uma resposta à Psicologia da Colonização, obra do psicanalista francês Octave Mannoni, publicada em 1950. Mesmo julgando “sincero” o procedimento de seu adversário, Fanon o acusava de psicologizar a situação colonial e reduzir os conflitos entre o homem branco e o homem negro a um jogo sofisticado, que levava a manter o colonizado na dependência do colonizador. (ROUDINESCO E PLON, 1998: 222). Desse modo, conforme Monique Pfau (2012: 61) a tradução implica na transcodificação, ou seja, “os [as] tradutores [as] devem ter em mente e claramente compreendido os discursos dos autores dos textos originais”, e no caso de Lélia González além da sua fluência em francês trata-se também de uma das mais importantes intelectuais negras. Dessa forma, a sua aproximação com autores negros da francofonia como Cheik Anta Diop e Frantz Fanon, deve-se a sua excelência acadêmica notada nas suas análises grandiloquentes, sua atividade profissional como tradutora e sua aproximação crítica nos chamados estudos das relações raciais. Outro ponto diferencial desta filósofa foi a sua consciência multiescalar (transnacional, regional e nacional) em relação a Diáspora e o continente africano, afinal, a experiência colonial entremeou-os historicamente, no entanto, havia a emergência anticolonial da identidade negra representada por trocas políticas e culturais. Em contrapartida, a atividade profissional Lélia González não se encerra no campo da psicanálise, a filósofa também se interessou por autores canônicos ocidentais, bem como autores africanos e diaspóricos. Lélia González foi leitora de Marx, Cheik Anta Diop, George C. M. James, Ivan Van Sertima, Walter Rodney e Simone de Beauvoir, esta última partilhada pelas mesmas leituras da psicanalista Neusa Santos Souza. Entretanto, ao amadurecer os seus pressupostos filosóficos e, principalmente, após suas atuações como ativistas em organizações negras ou de mulheres negras, ambas perceberam que a agenda feminista hegemônica (classe média branca) diferencia-se da realidade vivenciada pelas mulheres negras (RATTS E RIOS, 2010). Os quadros apresentados no decorrer deste artigo são importantes para refletir sobre a (não) inserção do pensamento de Lélia González e Neusa Santos Souza no escopo das abordagens conceituais em voga nos chamados estudos fanonianos. Dessa forma, o pensamento das intelectuais negras brasileiras não têm sido sistematizado em “fases” como notado em relação ao martinicano Frantz Fanon, este detalhe não atende aqui o antagonismo que se faz entre o ativismo antirracista/feminista e a produção acadêmica, mas desvela a lógica sexista que busca homogeneizar os 11 Com a colaboração dos estudos desenvolvidos por Françoise Vergès sobre o movimento antipsiquiátrico inaugurado por Fanon, Roudinesco e Plon (1998) identifica que o psiquiatra utilizava os conhecimentos da psicanálise para rejeitar o freudismo em nome de uma política anticolonial, ou seja, o seu legado até hoje tem sido desenvolvido naquilo que se denomina de etnopsicanálise ou antropologia psicanalítica. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 173 174 processos intelectuais individuais e coletivos das mulheres negras ou reduzi-los em seções menos prestigiosas no rol dos “Estudos Raciais” ou dos “Estudos de Gênero”. Frantz Fanon também produziu a sua obra a partir da sua práxis revolucionária (como Lélia González) e da sua experiência profissional como psiquiatra (Neusa Santos Souza também o era), mas, atualmente, não é visto como militante ou simplesmente revolucionário. Frantz Fanon é o Autor ou o próprio marco conceitual de um campo, o que se percebe é a complexificação das suas contribuições na medida em que é recuperado e partilhado por diversos autores/gerações (inclusive brancos/ acadêmicos) no escopo de novos estudos do Norte e Sul Global que, mormente, ainda excluem o Brasil dessa nova (ou velha?) cartografia do conhecimento. A marfinense Tanella Boni (2014) questiona o consenso que há no circuito internacional negro e no mundo acadêmico, pois ambos associam o marco temporal do Movimento Négritude às obras inaugurais dos homens negros. Ao transpor tal crítica para nossa proposta, é possível demonstrar a vigência da genealogia masculinista também no Brasil que, por seu turno, tem previsto a participação das mulheres negras nas demandas das agendas políticas ou nas produções acadêmicas a partir das categorias de “gênero” ou “feminismos”. Negar que a práxis política destas mulheres não têm fundamento teórico-conceitual ou limitá-las em certos debates implica, mais uma vez, em hierarquizá-las na cartografia hegemônica do conhecimento da qual situam-se sempre na “periferia” em relação à produção masculina ou branca (sinônimo de centro/cânone). Ou seja, as mulheres negras têm a sua atuação em movimentos sociais transformada em estratégias pedagógicas para ensinar o (a) branco (a) ou o homem sobre os seus privilégios na sociedade, enquanto os homens operam a produção do pensamento social e político que, por conseguinte, institucionaliza-se como teoria social. Nesse simulacro, a lógica sexista reproduz a origem das teorias canônicas ou ditas de vanguarda à imagem e semelhança dos autores masculinos, neste caso, associados sempre a figura do “pai” da teoria x ou y. Notamos que são os autores que gozam do mérito de ser reconhecidos com os “pais” deste ou daquele movimento ou teoria, inclusive, eles só aceitam dividir esse poder com outros homens. Como afirmado por Tracy D. Sharpley-Whiting (2000) artistas, escritoras e pensadoras negras são eclipsadas mesmo que elas estejam na vanguarda filosófica, cultural e artística do mesmo movimento. Se se inverter a lógica algo parece fugir a fluidez deste texto, afirmamos que Suzanne Roussi-Césaire, Jeanne Nardal e Paulette Nardal são as “mães” do Movimento Négritude, e que Lélia González e Neusa Santos Souza são as “mães” dos fanonismos no Brasil, algo soa estranho? O contrário em relação aos homens é tomado como verdadeiro, os leitores (assinado em masculino e no plural para evidenciar os seus grupos) sequer desconfiam que nessa relação bilateral os “pais fundadores” jamais atribuem a devida importância às “mães”. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 Considerações Finais Ao longo deste artigo, buscamos trazer à tona a importância das novas abordagens sobre a produção da filósofa Lélia González e da psicanalista Neusa Santos Souza a partir da interface com os fanonismos no Brasil. Duas questões centrais incitaram o nosso debate; a primeira, as intelectuais negras brasileiras estão em diálogo com o martinicano Frantz Fanon? Essa questão é positiva para as leitoras e interlocutoras que se atenta às discussões filosóficas e psicanalíticas dessas duas intelectuais brasileiras. Podemos afirmar também que o pensamento do martinicano teve ressonância porque tratou-se de uma leitura partilhada por diversas ativistas (individualmente ou coletivamente) que privilegiaram a práxis revolucionária nos programas das organizações negras entre 1970 a 1990. Em razão, a “excepcionalidade” para Frantz Fanon aqui marca o seu crescente interesse nas discussões acadêmicas anglófonas e francófonas, ao final, são introduzidas no Brasil pela via da genealogia masculinista. Repensar o silenciamento das pensadoras negras em âmbito internacional, regional e nacional é se comprometer, de fato, com o processo de descolonização do conhecimento, e não cristalizar esse círculo vicioso que recupera somente nomes masculinos. Se nos atentarmos para o trânsito dessas teorias políticas em âmbito internacional podemos esboçar um modelo que não obedece uma lógica linear, mas que evidencia as regras da cartografia do conhecimento operada pelos marcadores da língua, nacionalidade ou grupo de pessoas (mulheres negras brasileiras, por exemplo): Frantz Fanon (francês) - Comentadores/Teóricos (inglês e francês) - Teorias tributárias (inglês e espanhol). Agora se invertermos o modelo pela lógica territorial ou identitária temos o seguinte: Frantz Fanon (Martinica-Antilhas/Argélia-África) Comentadores/Teóricos (África, Ásia, Estados Unidos e Europa)- Teorias Tributárias (América Latina, África e Ásia). Logo, em termos de escala regional, Lélia González e Neusa Santos Souza não se encontram tão distantes do martinicano por questões históricas, raciais, culturais e políticas, afinal, são duas latino-americanas e um caribenho, mas se distanciam em razão do gênero (mulheres negras e homem negro), além de outros marcadores. Essa digressão não busca reivindicar benesses ou culpas ao martinicano Frantz Fanon, não buscamos individualizar sujeitos oprimidos pela mesma estrutura colonial-imperialista. O intuito é instigar o exercício crítico que confirma como o racismo e o sexismo afetam grupos heterogêneos do mesmo espectro de maneiras diversas. A segunda questão inicial deste artigo, as intelectuais negras brasileiras estão em diálogo com outras pensadoras fanonianas (ou suas críticas)? Pelo mapeamento contemporâneo organizado por Faustino (2015) percebemos que muito pouco tem refletido nos debates brasileiros, em geral, os artigos mais citados no Google Acadêmico são assinados por uma autoria masculina ou agrupadas a partir de temas específicos como os Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais. A predominância dessas referências contribui para que os fanonismos seja uma prerrogativa exclusiva para pesquisadores ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 175 que alcançam os doutorados sanduíches no exterior ou em intercâmbios intelectuais em estágios pós-doutorais em universidades estrangeiras, por exemplo. Ao retornar ao Brasil, esses pesquisadores têm ampla abertura em periódicos nacionais, mas raramente citam as autoras negras do circuito internacional, ademais, os estudos comparativos também excluem as referência negras brasileiras. À guisa das considerações finais, pontuamos a questão da tradução/recepção da produção diaspórica e africana. A nova tradução espanhola de Pele Negra, Máscaras Brancas (FANON, 2009), por exemplo, é realizada na íntegra e coletivamente por mulheres12. No Brasil, a segunda versão desta mesma tradução têm os seus direitos reservados para a editora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que, de certa forma, minimiza a hegemonia acadêmica e editorial centrada no eixo Centro-Sul Ao desvelar a genealogia masculinista em disputa pelos fanonismos no Brasil, esperase que haja reflexões pertinentes sobre uma possível inserção dos debates propostos por Tracy Denean Sharpley-Whiting, afinal, essa intelectual também tem produções críticas sobre Frantz Fanon desde os anos 1990 em parceria com outras acadêmicas. Não é para duvidar que ainda não haja o reconhecimento desta pensadora e das intelectuais brasileiras ou das tradutoras negras? Agradecimentos: Sou grata as cientistas sociais Hellen Rodrigues e Maysa Camelo e a filósofa Ana Carolina Magalhães Gonzaga pelas primeiras sugestões e críticas, em especial, agradeço pelo incentivo em tornar este texto público. 176 Referências bibliográficas ALMEIDA DINIZ, Arthur José. (1984). “Hoje Vivemos o Medo”. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, vol. 29.26-27, pp.: 80-93. AMAURI MENDES; SILVA, Joselina da. (2009). O Movimento Negro brasileiro: escritos sobre os sentidos de democracia e justiça social no Brasil. Belo Horizonte-MG: Editora Nandyala. ARENDT, Hannah. (1970). Da Violência. Tradução Maria Cláudia Drummond Trindade, Brasília-DF: Editora UnB. BALTHAZAR, Paula Renata; RODRIGUES, Carlos Benedito. (1988). “O Negro no Maranhão: sob as regras da democracia racial”. Caderno Pesquisa São Luís 4.1, pp. 110119. 12 Respectivamente a listagem das tradutoras da última edição espanhola, Iría Álvarez Moreno pelos textos da filósofa Judith Butler e Sylvia Wynter; Paloma Monleón Alonso pelos textos de Lewis R. Gordon e Nelson Maldonado-Torres e, por fim, Ana Useros Martín pelos textos de Frantz Fanon, Samir Amin e Immanuel Wallerstein. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 158-181 BARRETO, Raquel Andrade. (2005). Enegrecendo o Feminismo ou Feminizando a Raça: Narrativas de Libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez. Dissertação de Mestrado (História Social da Cultura), Departamento de História da PUC - Rio, Rio de Janeiro. BAIRROS, Luiza. (2000). “Lembrando Lélia Gonzalez”. nº 23, Afro-Ásia, pp. 2-22. BELTRAN, Luis. (1969) “A Problemática dos Estudos Africanistas”, Revista Brasileira de Estudos Políticos 71. BERND, Zilá. (1988). Introdução à Literatura Negra. Editora Brasiliense. BENTO, Maria Aparecida. 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Primeiramente, apresenta-se uma discussão sobre feminismo negro no âmbito dos Estados Unidos, a partir do trabalho de pensadoras como Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins. Em seguida, é proposto um breve panorama sobre o que tem sido traduzido no Brasil em relação à escrita das autoras em questão, com informações como títulos das obras e textos traduzidos, anos de publicação, nomes dos/as tradutores/as, editoras e periódicos envolvidos e títulos e anos das obras e textos no contexto de partida. Posteriormente, são feitas reflexões sobre esse cenário, no qual ainda prevalece pouca visibilidade da produção das autoras citadas, especialmente em relação ao grande mercado editorial brasileiro. Como arcabouço teórico, são utilizados os trabalhos de Lefevere (1992), Toury (1995), Collins (2000), entre outros. 182 Palavras-chave: Feminismo negro estadunidense. Tradução. Textos não-ficcionais. ABSTRACT This article aims to address the translation, in the Brazilian context, of nonfiction works and texts by African-American women intellectuals who discuss gender and race issues. Firstly, there is a discussion of Black feminism in the United States, considering the work of scholars such as Angela Davis, bell hooks and Patricia Hill Collins. Secondly, a brief overview on what has been translated in Brazil regarding the writings of the authors in question is presented. This overview includes information such as the titles of translated works and texts, the years of publication, the names of translators, the publishers and journals involved and the titles and years of works and texts in the source context. Subsequently, reflections on that scenario, in which there is still little visibility of the production of the referred authors, especially in relation to the mainstream Brazilian publishers, are proposed. As theoretical framework, the works of Lefevere (1992), Toury (1995), Collins (2000), among others, are used. Keywords: Black American feminism. Translation. Nonfiction texts. Luciana de Mesquita Silva Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), Brasil. E-mail: luciana. cefetrj@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 Primeiras palavras A proposta deste artigo é um desdobramento de minha comunicação na mesa redonda “Perspectivas sobre tradução e gênero: um olhar sobre os trabalhos de mulheres tradutoras no contexto brasileiro”, ocorrida no âmbito do IV Colóquio Internacional de Literatura e Gênero, realizado de 5 a 7 de setembro de 2018, na Universidade Estadual do Piauí, em Teresina-PI. Nessa mesa redonda, composta por mim e pelos pesquisadores Dennys Silva-Reis (UnB) e Fabíola do Socorro Figueiredo Reis (UNIFAP), utilizamos como referência os contextos literário e cultural brasileiros para discutir possíveis articulações entre os Estudos da Tradução e os Estudos de Gênero, por meio de questões como o papel de mulheres tradutoras, os diferentes gêneros traduzidos por elas, as estratégias tradutórias adotadas e as contribuições que elas têm trazido para os/as leitores/as através de suas traduções. Para tanto, tomamos como base as ideias de Lefevere (1992), segundo o qual a tradução é uma reescrita que exerce grande poder sobre a construção das imagens de um/a autor/a, de uma obra e de uma cultura, e de Bassnett (1992), que propõe o seguinte pensamento: Se nós aceitamos que o/a tradutor/a não é, e nunca poderia ser, um filtro transparente pelo qual o texto passa, mas sim uma fonte muito poderosa de energia criativa transitória (e essa é a premissa fundamental dos intelectuais vinculados aos Estudos da Tradução), então, pensando em termos de gênero, o/a tradutor/a serve para aumentar a conscientização das complexidades textuais tanto no papel do/a escritor/a, quanto no do/a leitor/a. (Bassnett, 1992: 70, tradução minha)1 Na minha comunicação, especificamente, procurei aliar os Estudos da Tradução não só a questões de gênero, como também de raça, já que as ligações entre esses distintos campos de estudo fazem parte da minha trajetória acadêmica, incluindo projetos de pesquisa, apresentação de trabalhos em congressos e publicação de artigos em periódicos científicos, e profissional, já que atuo como docente em um programa de pós-graduação interdisciplinar, o Mestrado em Relações Étnico-Raciais do CEFET/RJ. Nesse contexto, desde 2016, tenho ministrado a disciplina “Literaturas afro-americana e afro-brasileira em contextos de tradução”, cujo objetivo é fazer uma introdução aos Estudos da Tradução, abordando aspectos linguísticos, culturais e ideológicos, bem como levantar reflexões sobre a tradução de literaturas da diáspora negra, especialmente a literatura afro-brasileira em tradução nos Estados Unidos e a literatura afro-americana em tradução no Brasil. 1 “If we accept that the translator is not, and never could be, a transparent filter through which a text passes, but is rather a very powerful source of creative transitional energy (and this is the fundamental premise of Translation Studies scholars), then thinking in terms of gender serves to heighten awareness of textual complexities in the roles of both writer and reader.” ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 183 184 Com relação à literatura afro-americana traduzida no Brasil, que dialoga com a proposta do presente artigo, de acordo com Álvaro Hattnher em “Presença de autores afro-americanos no Brasil: as traduções” (1998), o primeiro texto afro-americano traduzido para o português brasileiro foi a autobiografia de Booker T. Washington Up from Slavery (1901), lançado no Brasil em 1940. Com o título de Memórias de um negro, esse livro de Washington foi traduzido por Graciliano Ramos e publicado pela Companhia Editora Nacional. No campo da poesia, há um pequeno número de autores representados, e seus poemas costumam ser encontrados de forma dispersa, em diferentes antologias. Entre eles estão Langston Hughes, LeRoi Jones e Claude McKay, sendo que Hughes é o mais traduzido. Quanto aos romances, esse é o gênero que predomina nas traduções, e fatores comerciais exercem um papel preponderante nesse aspecto. Segundo Hattnher (1998:30), “a prosa tem, inegavelmente, maior penetração e aceitação entre o público leitor brasileiro”. A primeira tradução de um romance afro-americano no Brasil foi a de Native Son (1940), de Richard Wright, realizada por Monteiro Lobato e publicada em 1941 com o título de Filho nativo: tragédia de um negro americano. Outros autores como Chester Himes, James Baldwin e Alex Haley, além das escritoras Alice Walker, Maya Angelou e Toni Morrison, também têm tido obras de sua autoria publicadas no Brasil. É o caso, por exemplo, dos livros A cor púrpura (2009), tradução de The Color Purple (1982), de Alice Walker, realizada por Betulia Machado, Peg Bodelson e Maria José Silveira e publicada pela editora José Olympio e, mais recentemente, Mamãe & eu & mamãe (2018), tradução de Mom & Me & Mom (2013), de Maya Angelou, feita por Ana Carolina Mesquita e lançada pela editora Rosa dos Tempos. Quanto à literatura de Toni Morrison, foram publicados no Brasil, até o momento, dez de seus onze romances: O olho mais azul (2003), A canção de Solomon (1977), Pérola negra (1987), Amada (1989/1993 e 2007/2011/2018), Jazz (1992/2009), Paraíso (1998), Amor (2005), Compaixão (2009), Voltar para casa (2016) e Deus ajude essa criança (2018). Ou seja, apenas Sula (1973) não foi traduzido. Por outro lado, Beloved e Jazz receberam diferentes traduções e edições. Segundo Lauro Maia Amorim, a tradução da literatura afro-americana no Brasil se configura de forma peculiar, visto que “não representa necessariamente a veiculação de uma literatura estritamente marginal, nem propaladamente hegemônica” (Amorim, 2012: 113). Dessa forma, em nosso país, a literatura afroamericana poderá ser vista sob diferentes perspectivas: como representativa da literatura estadunidense em geral ou como produto de um campo literário focado em questões raciais, principalmente levando-se em consideração a origem étnica dos/ as seus/suas autores/as. No caso de Alice Walker e Toni Morrison, por exemplo, é importante ressaltar pontos como estes: o livro The Color Purple inspirou um filme com um mesmo título dirigido por Steven Spielberg, que acabou sendo conhecido pelo público em geral no Brasil na década de 80 do século XX, e a tradução brasileira do livro tem escrito em sua capa “vencedor do prêmio Pulitzer”. Isso também ocorre, de certa forma, em traduções de livros de Toni Morrison no Brasil como Amada (2007), que apresenta em sua capa a frase “o melhor livro de ficção norte-americano dos ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 últimos 25 anos” e faz parte da coleção Prêmio Nobel, da Companhia das Letras, a qual reúne obras de autores que ganharam o Prêmio Nobel de Literatura. Toni Morrison, nesse caso, foi agraciada com o Nobel em 1993, tendo sido a primeira mulher negra – e até os dias de hoje a única – a conquistar essa importante premiação no campo literário. Além disso, no que diz respeito a Mom & Me & Mom, uma autobiografia que retrata a relação entre Maya Angelou e sua mãe Vivian Baxter, sua tradução no Brasil foi publicada pela Rosa dos Tempos, que se define como a primeira editora feminista brasileira. Diante desse cenário, surge a seguinte reflexão: Será que se Alice Walker e Toni Morrison não fossem autoras de sucesso no contexto estadunidense e em âmbito mundial, elas teriam seus romances selecionados por grandes editoras para serem traduzidos no Brasil? E, no caso específico de The Color Purple, se o romance não tivesse inspirado um filme dirigido por Spielberg, ele teria sua tradução cogitada para ser feita e lançada no contexto brasileiro? Se a Rosa dos Tempos não tivesse como propósito a divulgação de obras feministas, Mom & Me & Mom teria sido escolhido para ser publicado? E quanto aos gêneros a que esses livros pertencem: o fato de serem narrativas em prosa pode ter sido determinante na decisão de traduzi-los? Como base para tais questionamentos estão alguns pressupostos teóricos como a teoria dos polissistemas e os Estudos Descritivos da Tradução. A teoria dos polissistemas foi desenvolvida por Itamar Even-Zohar na década de 1970 e aprimorada nos anos de 1990. Segundo o autor, o acréscimo do prefixo “poli” à palavra “sistema” teve como objetivo enfatizar a multiplicidade de relações entre diferentes sistemas literários e extraliterários, demonstrando, com isso, que uma obra literária não deve ser estudada de forma isolada. Sendo assim, um polissistema “[...] é um sistema múltiplo, um sistema com vários sistemas que se cruzam e se sobrepõem parcialmente, utilizando opções diferentes simultaneamente, mas funcionando como um conjunto estruturado, cujos membros são interdependentes” (Even-Zohar, 2005: 3, tradução minha)2. Nessa concepção, fenômenos como cultura, língua e literatura são vistos como sistemas heterogêneos e dinâmicos que se interconectam e são organizados hierarquicamente. Uma das características da teoria dos polissistemas é a análise das relações entre os diversos sistemas, permitindo uma compreensão mais abrangente de suas configurações. Por exemplo, no estudo da imagem considerada “oficial” de uma cultura também são levadas em conta as culturas “não-oficiais” e, no estudo da variante culta, são abordadas outras variedades linguísticas. Essas estratégias se vinculam à hipótese polissistêmica de que julgamentos de valor – a partir dos quais o que se propõe como “oficial” ou “culto” geralmente é visto como superior em comparação a outras formas de língua ou cultura – não são usados como critérios para uma seleção apriorística dos objetos de estudo. Outro ponto que merece ser destacado tem a ver com a escolha dos objetos de estudo: ao se tomar como referência a teoria dos polissistemas, há 2 “[…] a multiple system, a system of various systems which intersect with each other and partly overlap, using concurrently different options, yet functioning as one structured whole, whose members are interdependent”. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 185 186 a possibilidade de dar visibilidade a sistemas frequentemente desconsiderados ou relegados a uma condição de marginalidade em relação àqueles vistos notadamente como canonizados e, por esse motivo, geralmente mais valorizados. No contexto de suas teorias, Even-Zohar levantou discussões em torno do papel da tradução na literatura, tópico frequentemente ignorado pelos demais teóricos literários à sua época. Com isso, ele ampliou as formas de se pensar a seleção de textos para serem traduzidos, bem como a função da literatura traduzida dentro de um polissistema específico. De acordo com Mark Shuttleworth, em “Polysystem Theory” (1998), em tal abordagem não-prescritiva, os textos traduzidos deixam de ser associados a fenômenos isolados e passam a ser considerados produtos modelados conforme o polissistema literário de chegada (Shuttleworth, 1998: 178). Dessa forma, lançando luz sobre as características inerentes a cada cultura, Even-Zohar apresentou uma visão de tradução não como uma atividade meramente linguística e realizada em um vácuo, mas sim como uma prática histórica e culturalmente contextualizada. Maria Tymoczko, no livro Enlarging Translation, Empowering Translators (2007), reitera esse pensamento ao afirmar que Even-Zohar trouxe à tona “[...] a noção de tradução como parte de um sistema literário, que, por sua vez, está inserido em outros sistemas culturais [...] colocando a tradução em contextos culturais mais amplos do que aquilo que havia sido proposto anteriormente” (Tymoczko, 2007: 40, tradução minha)3. Ideias como as de Even-Zohar contribuíram para fundamentar a teorização de Gideon Toury no âmbito da abordagem descritivista dos Estudos da Tradução. Conforme o autor, no livro Descriptive Translation Studies and Beyond (1995), a tradução é um fato característico da cultura que recebe a tradução (cultura de chegada ou cultura-meta), que engloba desde a seleção de determinados textos a serem traduzidos (ou vistos como traduções), os procedimentos seguidos pelo/a tradutor/a e a posição que as traduções ocupam em determinada conjuntura cultural. Além disso, existem regularidades nas relações entre o lugar sistêmico ocupado pela tradução no polo de chegada (função), o seu formato final (produto) e as estratégias tradutórias adotadas (processo). Na medida em que a função de uma tradução na cultura-meta é determinante em todas as etapas do processo tradutório, visto que objetiva atender a demandas ou preencher lacunas em um contexto literário e cultural específico, determinadas características do texto-fonte são conservadas na tradução não porque são intrinsecamente importantes, mas sim devido à sua relevância na cultura receptora (Toury, 1995: 12). Somam-se ao pensamento de Toury as visões de Susan Bassnett e André Lefevere de que a tradução é uma forma de reescrita e “[...] como todas as (re)escritas nunca é inocente. Há sempre um contexto em que a tradução ocorre, sempre uma história da qual um texto emerge e para a qual um texto é transposto” (Bassnett & Lefevere, 1990: 11, tradução minha4). Sendo assim, 3 “[…] the notion of translation as part of a literary system, with the literary system in turn embedded in other cultural systems [...] thus setting translation in much broader cultural contexts than had been done earlier”. 4 “[…] like all (re)writings [translation] is never innocent. There is always a context in which the translation takes place, always a history from which a text emerges and to which a text is transposed.” ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 para Bassnett e Lefevere, a tradução é um processo que ultrapassa a transposição de sentidos de uma língua para outra, visto que nele estão envolvidos aspectos históricos, culturais, sociais, ideológicos e econômicos. Além disso, Lefevere (1992) aponta para o fato de a tradução ser realizada a serviço do poder, na medida em que está submetida a mecanismos de controle internos ou externos que atuam no sistema literário e desempenham um papel essencial na construção do produto final. No que diz respeito aos mecanismos de controle internos, eles são representados por reescritores/as – tradutores/as, críticos/ as, professores/as de literatura e revisores/as – os/as quais tendem a manipular as obras literárias de acordo com a poética e a ideologia dominantes em dada cultura, em dado momento histórico. Os mecanismos de controle externos, por sua vez, estão ligados à patronagem. Trata-se de indivíduos ou instituições com autoridade para regular a produção, a divulgação, a leitura e a reescrita da literatura. Entre eles se encontram partidos políticos, associações religiosas, editoras e veículos midiáticos. Além disso, a patronagem é constituída por um componente ideológico, que atua restringindo a escolha e o desenvolvimento tanto da forma quanto do conteúdo; um componente econômico, por meio do financiamento dos trabalhos de escritores/as e reescritores/as e um componente de status, a partir do qual submeter-se à patronagem significa integrar-se a um grupo e a um estilo de vida. Retornando à literatura afro-americana traduzida no Brasil, com relação aos ensaios – gêneros não-ficcionais – eles têm pouca representatividade em nosso país pela via da tradução. Nas palavras de Hattnher, esse tipo de produção “parece não despertar o interesse dos editores brasileiros” (Hattnher, 1998: 305). Mais de vinte anos se passaram após a publicação do artigo em questão, mas pouco parece ter mudado em relação ao quadro abordado por Hattnher. Entre alguns exemplos existentes no Brasil podem ser mencionados Os negros na América Latina (2014), do professor de Harvard e intelectual Henry Louis Gates Jr., traduzido por Donaldson M. Garschagen e publicado pela Companhia das Letras e Entre o mundo e eu (2016), do jornalista Ta-Nehisi Coates, traduzido por Paulo Geiger e também publicado pela mesma editora. E com relação às obras de intelectuais afro-americanas que tratam de questões de gênero e raça? O que tem sido traduzido e publicado no polissistema literário brasileiro? Considerando-se o cenário apresentado, o presente artigo tem como foco a abordagem da tradução de textos não-ficcionais de pensadoras afro-americanas, tais como June Jordan, Audre Lorde, Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins. Para tal, primeiramente, será realizada uma breve discussão sobre feminismo negro estadunidense. Em seguida, será elaborado um breve panorama de obras completas e textos, em seus mais diversos gêneros não-ficcionais, escritos por essas intelectuais, que têm sido traduzidos e publicados no Brasil. Nesse sentido, serão disponibilizados dados como nomes das autoras, anos de publicação das obras e dos textos traduzidos, títulos, nomes dos/as tradutores/as, locais de publicação, editoras e periódicos acadêmicos, bem como títulos e anos de publicação da primeira edição dos livros ou textos no contexto de partida. Posteriormente, nessa mesma seção, será apresentada ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 187 uma reflexão sobre as informações encontradas, com o objetivo de compreender o cenário relativo à tradução de escritas das autoras em questão. “Não sou eu uma mulher?” Algumas considerações sobre feminismo negro no contexto estadunidense 188 A pergunta que abre o título desta seção é uma tradução de parte do discurso de Sojourner Truth (“Peregrina da verdade”), proferido em 1851, em uma convenção de mulheres em Akron, Ohio, nos Estados Unidos. Nascida na condição de escravizada em Swartekill, Nova York, no ano de 1797, ela fugiu em busca de sua liberdade em 1826 e chegou à cidade de Nova York em 1829. Em 1843, Truth decidiu sair de Nova York e, um ano depois, associou-se à organização abolicionista Northampton Association of Education and Industry, em Massachusetts. Alguns anos mais tarde, começou a se aproximar do movimento de direitos das mulheres. Quanto à convenção mencionada, nela estavam sendo discutidas questões como o sufrágio feminino. Depois da fala de um homem que defendeu a ideia de que as mulheres eram fisicamente inferiores e, por esse motivo, fracas para desempenhar trabalhos braçais, além de totalmente dependentes dos homens para realizarem atividades cotidianas como pular uma poça d’água ou entrar em uma carruagem, Truth, a única mulher negra e ex-escravizada presente na convenção, surpreendeu a todos ao levantar a sua voz. Isso ocorreu mesmo após as próprias mulheres ligadas à convenção tentarem impedi-la de falar, temendo que ela deslocasse o foco das reivindicações de direito ao voto. Tal fato por si só ilustra a predominância do racismo dentro do movimento sufragista feminino. Um trecho das palavras de Truth, nesse contexto, encontra-se em Mulheres, raça e classe (2016), de Angela Davis: Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim! Não sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem – quando eu conseguia comida – e aguentava o chicote da mesma forma! Não sou eu uma mulher? Dei à luz treze crianças e via maioria ser vendida como escrava e, quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher? (Truth apud Davis, 2016: 71) O discurso de Truth trouxe uma lição para os homens, que defendiam a supremacia masculina, bem como para as mulheres do movimento feminista, uma vez que lançou luz ao fato de nem todas as mulheres serem brancas e terem os privilégios de pertencerem a uma camada social favorecida. Ao relatar sua própria experiência de vida, Truth desconstruiu ideias como as de fragilidade e de submissão, geralmente vinculadas às mulheres, e demonstrou que ser negra e pobre, diferentemente das demais mulheres naquela convenção, não excluía sua condição ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 de mulher e, do mesmo modo, não tornava suas reivindicações menos legítimas. Segundo Ribeiro (2017), “esse discurso de Truth, ainda no século XIX, já evidencia um grande dilema que o feminismo hegemônico viria a enfrentar: a universalização da categoria mulher” (Ribeiro, 2017: 21). Em Sister Outsider, a escritora Audre Lorde já apontava para essa observação feita por Ribeiro, destacando o fato de que ignorar as diferenças entre as mulheres constitui-se como uma grave ameaça ao movimento feminista coletivo: Como as mulheres brancas ignoram seu privilégio inerente de branquitude e definem mulher exclusivamente com base em suas próprias experiências, então as mulheres de cor5 são transformadas em “outras”, as estranhas cuja experiência e tradição é muito “alheia” para ser compreendida. [...] Negar o reconhecimento das diferenças torna impossível enxergar os diversos problemas e perigos que nós enfrentamos como mulheres. (Lorde, 2007: 115116, tradução minha)6 Nesse caso, pode-se observar que há uma tendência por parte das feministas brancas em insistir nas opressões relativas a gênero, deixando de lado outros tipos de opressão, tais como a de raça. É importante ressaltar que, na década de 1980, muitas mulheres de cor estadunidenses ligadas a movimentos sociais passaram a ingressar na academia seja como estudantes de pós-graduação, seja como docentes. No caso de mulheres negras, elas acabaram levando ideias do feminismo negro para a universidade e contribuíram para os estudos de raça, gênero e classe. Segundo a cientista social e professora universitária Patricia Hill Collins, nesse cenário surgiram importantes publicações: As principais obras de mulheres negras afro-americanas, que estabeleceram as bases para o que veio a ser conhecido como interseccionalidade, incluem Civil Wars, de June Jordan (Jordan, 1981); o clássico Sister Outsider (Lorde, 1984) de Audre Lorde; e o inovador Mulheres, Raça e Classe de Angela Davis (Davis, 1981). (Collins, 2017: 9) 5 “Mulheres de cor” está sendo utilizado como tradução de women of color que, no contexto dos Estados Unidos, refere-se a mulheres de ascendência asiática, latino-americana, indígena e africana. Mesmo que no Brasil possam ser encontrados termos como “mulheres não-brancas”, “mulheres de minorias étnicas” e “mulheres racializadas” como traduções de women of color, neste artigo optou-se pelo uso de “mulheres de cor” com o objetivo de ressignificar positivamente um termo historicamente considerado ofensivo, assim como fez o movimento negro brasileiro nos anos 40 e 50 do século XX. Para mais informações sobre esse assunto, ver o artigo “Quem nomeou essas mulheres “de cor”? Políticas feministas de tradução que mal dão conta das sujeitas negras traduzidas”, de Tatiana Nascimento, publicado na revista Translatio (2017), n. 13, p. 127-142. 6 “As white women ignore their built-in privilege of whiteness and define woman in terms of their own experience alone, then women of Color become “other,” the outsider whose experience and tradition is too “alien” to comprehend. […] Refusing to recognize difference makes it impossible to see the different problems and pitfalls facing us as women.” ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 189 190 Com relação às autoras citadas por Collins, June Jordan (1936-2002) foi poeta, professora, ativista no movimento feminista e pelos direitos civis. Entre suas publicações encontram-se Who Look at Me (1969), New Days: Poems of Exile and Return (1974), On Call: Political Essays (1985), Affirmative Acts: Political Essays (1998) e Some of Us Did Not Die: New and Selected Essays (2002). Quanto a Civil Wars (1981), trata-se de uma coletânea de ensaios na qual Jordan discute temas como direitos das crianças, Estudos Afro-Americanos, sexualidade, linguagem e poder. Sobre esse último tópico, ela afirma: “Como poeta e escritora negra, eu odeio palavras que cancelam o meu nome e a minha história e a liberdade sobre o meu futuro: eu odeio as palavras que condenam e recusam a língua do meu povo nos Estados Unidos” (Jordan, 1981: 68, tradução minha7). Segundo Collins (2017), Jordan se engajou na luta pela liberdade não só para os afro-americanos, como também para outros grupos de pessoas submetidas a sistemas de opressão, uma vez que, para ela, as mulheres negras nunca seriam totalmente livres se apenas lutassem pelos seus próprios interesses. No que diz respeito a Audre Lorde (1934-1992), ela costumava se identificar como “negra, lésbica, mãe, guerreira e poeta”8 e abordar temas como raça, gênero e sexualidade em suas obras. Ao mesmo tempo em que contribuiu para os campos de Estudos Feministas, Estudos Críticos de Raça e teoria queer, ela tratava de assuntos pessoais e políticos em sua escrita, buscando celebrar as diferenças entre as pessoas. Estas são algumas de suas coletâneas de poemas: The First Cities (1968), Cables to Rage (1970) e From a Land Where Other People Live (1972). Além disso, ela escreveu a obra The Cancer Journals (1980), em que discorre sobre questões feministas ao relatar sua luta contra um câncer de mama; o romance Zami: A New Spelling of My Name (1982); a já citada compilação de artigos e discursos Sister Outsider, publicada pela primeira vez em 1984, entre outros. É relevante destacar que, em 1980, Lorde e a escritora Barbara Smith fundaram a editora Kitchen: Women of Color Press, com o objetivo de ampliar a publicação de obras de mulheres de cor. Entre os livros lançados pela editora podem ser mencionados This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color (1984), de Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa, Home Girls: A Black Feminist Anthology (1984), de Barbara Smith, e I Am Your Sister: Black Women Organizing Across Sexualities (1986), de Audre Lorde. Sobre Angela Yvonne Davis, nascida em 1944, ela é ativista, escritora, professora aposentada e palestrante e tem contribuído amplamente para o debate acerca de temas como feminismo, racismo, luta anticapitalista e sistema prisional estadunidense ao longo dos anos. Suas publicações englobam obras de diferentes gêneros, entre as quais estão Angela Davis: An Autobiography (1974), Violence Against Women and the Ongoing Challenge to Racism (1985), Women, Culture & Politics (1990), Are Prisons Obsolete? (2003) e The Meaning of Freedom: And Other Difficult Dialogues (2012). Especificamente em relação a Women, Race & Class (1981), Davis faz um panorama dos movimentos feministas nos Estados Unidos desde o século 7 “As a Black poet and writer, I hate words that cancel my name and my history and the freedom of my future: I hate the words that condemn and refuse the language of my people in America.” 8 Disponível em: <https://www.poetryfoundation.org/poets/audre-lorde>. Acesso em: 01 fev. 2019. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 XIX até a década de 80 do século XX, mostrando o quanto as mulheres brancas e das classes média e alta envolvidas nesses movimentos, com foco no direito pelo sufrágio feminino, privilegiavam seus próprios interesses em detrimento das demandas de outras mulheres. Segundo Davis, “na condição de mulheres que sofriam com a combinação das restrições de sexo, raça e classe, elas [mulheres negras] tinham um poderoso argumento pelo direito ao voto. Mas o racismo operava de forma tão profunda no interior do movimento sufragista feminino que as portas nunca se abriram de fato às mulheres negras” (Davis, 2016: 149). Para além desse contexto, mesmo que não estivessem oficialmente submetidas ao sistema de escravidão após 1863, as mulheres negras continuaram a ser oprimidas em outras situações tais como as pouquíssimas oportunidades de trabalho, em geral no âmbito doméstico, e os abusos sexuais cometidos por seus patrões. Women, Race & Class, como o próprio título sugere, é uma importante contribuição para as discussões relativas ao feminismo e à interseccionalidade de raça, gênero e classe, tópico que será tratado adiante. Além das autoras e obras mencionadas por Collins (2017), outra importante ativista, feminista e professora que merece ser destacada é bell hooks. Nascida em 1952, hooks adotou esse pseudônimo em homenagem à bisavó materna, grafando-o em letras minúsculas com o objetivo de chamar atenção para as suas ideias e não para a sua subjetividade. Uma de suas principais publicações é Ain’t I a Woman? Black Women and Feminism, cujo título foi inspirado no discurso de Sojourner Truth anteriormente citado. Lançado em 1981, mas tendo seu primeiro rascunho escrito nos anos de 1970, o livro trata de questões como o impacto do racismo e do sexismo nas mulheres negras, a marginalização e inferiorização das mulheres negras, o sistema patriarcal e supremacista branco e o apagamento das reflexões sobre raça e classe no movimento feminista. Em uma de suas passagens, hooks ressalta que “nenhum outro grupo nos Estados Unidos tem tido a sua identidade tão socializada fora da existência quanto as mulheres negras...Quando se fala de pessoas negras, o foco tende a ser em homens negros; e quando se fala de mulheres, o foco tende a ser em mulheres brancas” (hooks, 2014: 7, tradução minha9). No conjunto de mais de 30 livros publicados até os dias de hoje, incluindo diferentes gêneros, encontramse Feminist Theory: From Margin to Center (1984), Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black (1989), Yearning: Race, Gender, and Cultural Politics (1990), Black Looks: Race and Representation (1992), Teaching to Transgress: Education as the Practice of Freedom (1994), Feminism is For Everybody: Passionate Politics (2000) e Writing Beyond Race: Living Theory and Practice (2013). Após os estudos feministas negros ganharem reconhecimento acadêmico na década de 80 do século XX – e mais uma vez é importante enfatizar o trabalho de autoras como June Jordan, Audre Lorde, Angela Davis e bell hooks nesse sentido – nos anos de 1990, Kimberlé Crenshaw, advogada e professora universitária na área de 9 “No other group in America has so had their identity socialized out of existence as have black women... When black people are talked about the focus tends to be on black men; and when women are talked about the focus tends to be on white women.” ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 191 192 Estudos Raciais, publicou o texto “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color” (1991), no qual defende a ideia de que as experiências das mulheres negras não podem ser consideradas de forma isolada nas categorias de raça e gênero, mas sim de modo interseccional. Collins, no livro Black Feminism Thought (2000), também trata dessa questão no capítulo “Towards a Politics of Empowerment”. Em seu ponto de vista, a interseccionalidade é uma “[...] análise que afirma que os sistemas de raça, classe social, gênero, sexualidade, etnia, nação e idade formam-se mutuamente, construindo características de organização social que moldam as experiências das mulheres negras e, por sua vez, são moldados por mulheres negras” (Collins, 2000: 299, tradução minha10). Nesse caso, conforme Collins, os diferentes mecanismos de opressão operam simultaneamente na produção de injustiças sociais. Além da interseccionalidade, a autora traz a concepção de matriz de dominação, segundo a qual, independentemente dos tipos específicos de opressão referentes a determinada situação, eles estão envolvidos em domínios de poder estruturais, disciplinares, hegemônicos e interpessoais. No domínio de poder estrutural, está implícita a ideia de que o modo pelo qual instituições sociais como educação, governo e mídia são organizadas tem um papel atuante na subordinação das mulheres negras ao longo dos tempos. Já o domínio de poder disciplinar se relaciona com a maneira como as instituições desenvolvem mecanismos de controle, supervisão e vigilância que visam a mascarar o racismo e o sexismo. Quanto ao domínio de poder hegemônico, ele visa a justificar as práticas dos outros domínios de poder: “ao manipular ideologia e cultura, o domínio hegemônico atua como uma ligação entre instituições sociais (domínio estrutural), suas práticas organizacionais (domínio disciplinar) e o nível de interação social diária (domínio interpessoal)” (Collins, 2000: 284, tradução minha11). O domínio de poder interpessoal funciona por meio de práticas rotineiras sobre como as pessoas tratam umas às outras. Ao mesmo tempo em que as experiências de vida de mulheres negras estadunidenses ilustram como esses quatro domínios de poder moldam a matriz de dominação, elas demonstram como esses domínios podem ser usados como motivação para ações de resistência e empoderamento. Com esse pensamento, Collins aponta para o fato de que, uma vez que a matriz de dominação está estruturada em categorias como raça, gênero, sexualidade e nação e atua através de domínios de poder que estão interconectados, a relação entre opressão e ativismo passa a se mostrar dotada de uma complexidade. Ainda em Black Feminism Thought, no capítulo “Epistemologia feminista 12 negra” , Collins aborda o pensamento feminista negro nos Estados Unidos. De acordo 10 “[…] analysis claiming that systems of race, social class, gender, sexuality, ethnicity, nation, and age form mutually constructing features of social organization, which shape Black women’s experiences and, in turn, are shaped by Black women.” 11 “By manipulating ideology and culture, the hegemonic domain acts as a link between social institutions (structural domain), their organizational practices (disciplinary domain), and the level of everyday social interaction (interpersonal domain).” 12 Nesse caso, será utilizado o capítulo traduzido por Ana Claudia Jaquetto Pereira e publicado no livro Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico (2018), organizado por Joaze Bernardino-Costa, Nelson Maldonado-Torres e Ramón Grosfoguel. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 com a autora, diante da supressão das mulheres negras no âmbito de instituições sociais coordenadas majoritariamente por homens brancos, elas procuraram outros meios como a música e a literatura para que suas vozes pudessem ser ouvidas e, posteriormente, passaram a utilizar os espaços da universidade para a divulgação e validação de ideias feministas. No entanto, essas mulheres têm que encarar o desafio de lidar com uma estrutura de conhecimentos considerados predominantes e ligados a um sistema branco e patriarcal. Além disso, “acadêmicas negras que persistem na tentativa de rearticular um ponto de vista de mulheres negras também se deparam com a potencial rejeição, em termos epistemológicos, daquilo que afirmam ser conhecimento” (Collins, 2018: 145). Ainda assim, as experiências de vida e visões de mundo das mulheres afro-americanas servem de base para a proposição do que Collins denomina de epistemologia feminista negra, composta por quatro dimensões. A primeira dimensão é a valorização da sabedoria, uma vez que ela é necessária para a própria sobrevivência das mulheres negras nos Estados Unidos; a segunda é o diálogo com outros membros da comunidade, vistos como importantes para a construção de novos conhecimentos; a terceira é a ética do cuidado, na qual fatores como a expressividade pessoal, as emoções e a empatia são fundamentais no processo de validação do conhecimento; a quarta é a ética da responsabilidade pessoal, a partir da qual espera-se que o indivíduo tenha relação direta com suas próprias ideias e se responsabilize pelas suas afirmações. Com isso, “a existência do ponto de vista das mulheres negras que utilizam a epistemologia feminista negra desafia o que é normalmente tomado como verdade e, ao mesmo tempo, questiona o processo através do qual tal verdade é produzida” (Collins, 2018: 167). Levando-se em consideração a relevância do pensamento de intelectuais afro-americanas como June Jordan, Audre Lorde, Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins, para além do contexto estadunidense, em um mundo globalizado na contemporaneidade, surgem os seguintes questionamentos sobre a divulgação de suas vozes por meio da tradução: Que obras e textos têm sido traduzidos e publicados no Brasil? Quem são os/as tradutores/as? Quais são as editoras e periódicos acadêmicos envolvidos? Quais são os contextos de publicação? Nesse sentido, na seção seguinte, serão apresentados um breve panorama da produção não-ficcional das referidas autoras que se encontra disponível e, após isso, uma discussão sobre esse quadro no âmbito do polissistema literário brasileiro. Breve panorama da produção de feministas afro-americanas traduzida no Brasil Nesta seção, serão fornecidos dados das traduções brasileiras de obras e textos não-ficcionais de pensadoras afro-americanas, contendo os nomes das autoras em ordem alfabética, os anos de publicação (em ordem cronológica), os títulos das obras traduzidas, os nomes dos/as tradutores/as, os locais de publicação, as editoras e os ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 193 periódicos, além dos títulos e anos da primeira edição dos livros e textos no contexto de partida. Por fim, será proposta uma análise do panorama em questão. Obras completas: COLLINS, Patricia Hill. (2019 – a ser lançado13). Pensamento feminista negro. Sem nome do/a tradutor/a. São Paulo: Boitempo. (Tradução de Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics, 1990) DAVIS, Angela. (2009). A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. Tradução de Artur Neves Teixeira. Rio de Janeiro: Difel. (Tradução de Abolition Democracy: Beyond Empire, Prisons, and Torture, 2006) DAVIS, Angela. (2016). Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. (Tradução de Women, Race & Class, 1981)14 DAVIS, Angela. (2017). Mulheres, cultura e política. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. (Tradução de Women, Culture & Politics, 1989) 194 DAVIS, Angela. (2018). A liberdade é uma luta constante. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. (Tradução de Freedom is a Constant Struggle: Ferguson, Palestine, and the Foundations of a Movement, 2015) DAVIS, Angela. (2018). Estarão as prisões obsoletas? Tradução de Mariana Vargas. Rio de Janeiro: Difel. (Tradução de Are Prisons Obsolete? 2003) DAVIS, Angela. (2019). Uma autobiografia. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. (Tradução de An autobiography, 1974) hooks, bell. (2013). Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipola. São Paulo: WMF Martins Fontes. (Tradução de Teaching to Transgress: Education as the Practice of Freedom, 1994) hooks, bell. (2018). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução de Ana Luiza Libânio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. (Tradução de Feminism is for Everybody: Passionate Politics, 2000) 13 Esse livro será lançado ainda no ano de 2019. Não foi divulgado, até o momento, o nome do/da tradutor/a. 14 Para informações sobre essa tradução, ver o artigo de minha autoria “Diáspora negra em contexto de tradução: discutindo a publicação de Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, no Brasil” na revista Trabalhos em Linguística Aplicada (2018), v. 57, n. 1, p. 205-228. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 hooks, bell. (2019). Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante. (Tradução de Black Looks: Race and Representation, 1992) hooks, bell. (2019). Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução de Catia Maringolo. São Paulo: Elefante. (Tradução de Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black, 1989) Textos publicados em/como livros: COLLINS, Patricia Hill. (2015). “Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão”. Tradução de Júlia Clímaco. In: MORENO, Renata (Org.). Reflexões e práticas de transformação feminista. São Paulo: SOF, 2015. p. 13-42. Disponível em: <https://br.boell.org/sites/default/files/ reflexoesepraticasdetransformacaofeminista-1.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução da palestra “Toward A New Vision: Race, Class and Gender as Categories of Analysis and Connection”, 1989, realizada no Center for Research on Women, Memphis State University) COLLINS, Patricia Hill. (2017). “Epistemologia feminista negra”. Tradução de Ana Claudia Jaquetto Pereira. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADOTORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.). Decolonialidade e pensamento afro-diaspórico. Belo Horizonte: Autêntica. p. 139-170. (Tradução do capítulo “Black Feminist Epistemology”, do livro Black Feminist Thought, 2000, p. 251-271) DAVIS, Angela. (2018). Educação e libertação: a perspectiva das mulheres negras. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. E-book Kindle. (Tradução do capítulo “Education and Liberation: Black Women’s Perspective”, do livro Women, Race & Class, 1981, p. 99-109) DAVIS, Angela. (2018). Estupro, racismo e o mito do estuprador negro. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. E-book Kindle. (Tradução do capítulo “Rape, Racism and the Myth of the Black Rapist”, do livro Women, Race & Class, 1981, p. 172-201) DAVIS, Angela. (2018). Racismo no movimento sufragista feminino. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo. E-book Kindle. (Tradução do capítulo “Racism in the Woman Suffrage Movement”, do livro Women, Race & Class, 1981, p. 70-86) ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 195 hooks, bell. (2017). “O olhar oposicional: espectadoras negras”. Tradução de Raquel D’Elboux Couto Nunes. In: BRANDÃO, Izabel; CAVALCANTI, Ildney; COSTA; Claudia de Lima; LIMA, Ana Cecília Acioli. (Orgs.). Traduções da Cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: EDUFAL; Editora da UFSC. p. 484-509. (Tradução do capítulo “The Oppositional Gaze: Black Female Spectators”, do livro Black Looks: Race and Representation, 1992, p. 115-131) Textos publicados em periódicos acadêmicos: COLLINS, Patricia Hill. (2016). “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro”. Tradução de Juliana de Castro Galvão e revisão de Joaze Bernardino Costa. Sociedade e Estado, n. 1: 31, p. 99-127, jan.-abr. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00099.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução do artigo “Learning From the Outsider Within: The Sociological Significance of Black Feminist Thought”, publicado em Social Problems, 1986, n. 6: 33, p. 14-32, Oct.-Dec.) 196 COLLINS, Patricia Hill. (2017). “O que é um nome? Mulherismo, feminismo negro e além disso”. Tradução de Angela Figueiredo e Jesse Ferrell. Cadernos Pagu, n. 51, s.n.p., dez. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n51/1809-4449cpa-18094449201700510018.pdf> . Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução do ensaio “What’s in a Name? Womanism, Black Feminism, and Beyond”, publicado em The Black Scholar, 1996, n. 26: 1, p. 9-17) COLLINS, Patricia Hill. (2017). “Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória”. Tradução de Bianca Santana. Parágrafo, São Paulo, n. 1: 5, p. 7-17, jan.-jun. Disponível em: <http://revistaseletronicas.fiamfaam. br/index.php/recicofi/article/view/559/506>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução da palestra “Lost in Translation? Black Feminism, Social Justice and Intersectionality”, 2012, realizada no Plenary Address, Collegium of Black Women Philosophers, Pennsylvania State University) DAVIS, Angela; DENT, Gina. (2003). “A prisão como fronteira: uma conversa sobre gênero, globalização e punição”. Tradução de Pedro Diniz Bennaton e revisão de Susana Bornéo Funck e José Renato de Faria. Estudos Feministas, n. 11:2, p. 523-531, jul.-dez. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v11n2/19136.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução do diálogo “Prison as a Border: A Conversation on Gender, Globalization, and Punishment”, publicado em Signs: Journal of Women in Culture and Society, 2001, n. 4: 26, p. 1235-1241) ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 hooks, bell; STEINEM, Gloria; WOLF, Naomi. (1994). “Vamos falar a verdade sobre o feminismo”. Tradução de Marcos Santarrita. Estudos Feministas, n. 1, p. 162-176, jan-jun. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16295/14836>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução do debate “Let’s Get Real About Feminism: The Backlash, the Myths, the Movement”, da revista Ms, 1993, p. 34-43, set.-oct.) hooks, bell. (1995). “Intelectuais negras”. Tradução de Marcos Santarrita. Estudos Feministas, n. 2, p. 464-478, jul.-dez. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/ index.php/ref/article/view/16465/15035>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução do capítulo “Black Women Intellectuals”, do livro Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual Life, 1991, p. 147-165) hooks, bell. (2008). “Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens”. Tradução de Carlianne Paiva Gonçalves, Joana Plaza Pinto e Paula de Almeida Silva. Estudos Feministas, n. 3: 16, p. 857-864, dez. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/ v16n3/07.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução do capítulo “Language. Teaching New Worlds, New Words”, do livro Teaching to Transgress: Education as Practice of Freedom, 1994, p. 167-175) hooks, bell. (2015). “Escolarizando homens negros”. Tradução de Alan Augusto Ribeiro e Keisha-Khan Y. Perry. Estudos Feministas, n. 3: 26, p. 677-689, dez. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v23n3/0104-026X-ref-23-03-00677.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução do capítulo “Schooling Black Males”, do livro We Real Cool: Black Men and Masculinity, 2004, p. 33-45) hooks, bell. (2015). “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Tradução de Roberto Cataldo Costa e revisão de Flávia Biroli. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 16, p.193-210, abr. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n16/0103-3352rbcpol-16-00193.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2019. (Tradução do capítulo “Black Women: Shaping Feminist Theory”, do livro Feminist Theory: From Margin To Center, 2000, p. 1-15) O panorama apresentado conduz a algumas reflexões sobre a tradução de obras e textos não-ficcionais de intelectuais afro-americanas no Brasil. No que tange à publicação de livros completos, foram encontrados seis de Angela Davis e quatro de bell hooks, sendo que nem todos tratam especificamente de questões de raça e gênero. Além disso, está previsto o lançamento de um dos livros de Patricia Hill Collins. Quanto a June Jordan e Audre Lorde, verificou-se uma ausência de obras na íntegra traduzidas no contexto brasileiro. Sobre as editoras, a Difel tem em seu catálogo livros de referência e ensaios na área das ciências humanas, bem como biografias de grandes personalidades, tendo sido fundada em 1999 após pedidos de leitores/as, ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 197 198 sobretudo do meio acadêmico. A Boitempo, por sua vez, estabeleceu-se no mercado editorial em 1995 e tem como foco a publicação de livros no âmbito das ciências humanas, abordando temáticas como indústria cultural, capitalismo, comunismo, marxismo e questões de gênero. A WMF Martins Fontes iniciou seus trabalhos na década de 1970, com o objetivo de divulgar obras nos campos de filosofia, sociologia, psicologia e literatura. Já a Rosa dos Tempos, como foi mencionado anteriormente, vem se dedicando à propagação de escritas sob a ótica feminista desde 1990, quando foi inaugurada. Quanto à Elefante, fundada em 2011, seu propósito é publicar livros que tenham relevância social, política e cultural. Com relação às autoras Angela Davis e bell hooks, pode-se notar que, mesmo que elas tenham tido seus primeiros livros publicados no contexto estadunidense durante os anos de 1970, no Brasil, isso só começou a ser feito recentemente. Tal fato pode estar relacionado ao reconhecimento, por parte de editoras como a Boitempo, de que existe um público leitor, no polissistema literário brasileiro, que se interessa por escritas afrodiaspóricas que abordem questões de gênero e raça. Para ilustrar essa ideia, Maurício Meireles traz a seguinte afirmação sobre o livro Mulheres, raça e classe, no texto “Do comercial ao ‘cabeça’, editoras do país exploram livros feministas” (2017), publicado no jornal Folha de São Paulo: De todo modo, a expansão dos estudos de gênero no meio universitário – ainda que tímida – favorece livros com outro perfil. A editora de esquerda Boitempo, que publica obras do segmento, viu “Mulher, raça e classe”, da ativista negra Angela Davis, vender mais que o esperado, 14 mil até agora. A tiragem inicial apostava modestos 6.000. (Meireles, 2017) A respeito dos/as tradutores/as, destaca-se a sua variabilidade nas publicações, sendo que a maior parte é formada por mulheres. Especificamente no caso das obras de Angela Davis lançadas pela editora Boitempo, tem-se mantido o trabalho da mesma tradutora, Heci Regina Candiani, que é jornalista, cientista social e doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Quanto aos textos publicados como livros, é interessante notar que a Boitempo lançou três capítulos de Mulheres, raça e classe como e-books. Nesse caso, o/a leitor/a pode ter acesso a partes da obra em questão, pagando um preço mais baixo e utilizando o meio virtual. Sobre os textos publicados em livros, foram encontrados dois de Patricia Hill Collins e um de bell hooks. Enquanto um dos textos de Collins se situa no contexto de uma publicação voltada para o pensamento decolonial e afrodiaspórico, o outro está presente em uma obra, disponível online, sobre feminismos em geral. O texto de hooks, por sua vez, encontra-se em uma coletânea de escritas traduzidas, vinculadas a uma conjuntura feminista ampla e diversa. Sendo assim, nenhum dos textos em questão está inserido em um livro dedicado especificamente à interseccionalidade de raça e gênero. Além disso, todos eles foram publicados há poucos anos. Ainda nesse contexto, estão ausentes obras e textos de June Jordan e Audre Lorde. Sobre as editoras, a SOF – Sempreviva Organização Feminista – é uma organização não-governamental que faz parte do movimento de mulheres no Brasil e em âmbito internacional, com atuação desde os ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 anos de 1980. A Autêntica foi fundada em 1997, para atender ao público acadêmico. Com esse mesmo objetivo, a EDUFAL e a editora da UFSC têm publicado obras em diferentes áreas do conhecimento. Quanto às tradutoras, todas elas têm no mínimo a titulação de mestre, sendo que, no caso de Ana Claudia Jaquetto Pereira, doutora em Ciência Política pela UERJ, ela desenvolve pesquisas com temáticas relacionadas a raça e gênero. As traduções de textos publicados em periódicos acadêmicos proporcionam uma disponibilidade maior das escritas de Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins no Brasil. Ao mesmo tempo, reforça-se a invisibilidade das vozes de June Jordan e Audre Lorde, cujas escritas não foram observadas no presente contexto. Nesse cenário, destacam-se aspectos como: os textos de hooks têm sido traduzidos em maior número e por um maior período de tempo; o texto de Davis, em conjunto com Gina Dent, foi o único a ser traduzido; os textos de Collins têm sido traduzidos de uns anos para cá; a maior parte dos textos traduzidos dessas autoras aborda questões feministas. Quanto aos periódicos envolvidos, Sociedade e Estado (UnB) é dirigido a publicações na área de Ciências Sociais; Revista Brasileira de Ciência Política (UnB), como o próprio título sugere, divulga textos na área de ciência política; Parágrafo (FIAM-FAAM) tem como foco artigos pertinentes ao campo do jornalismo. Já Cadernos Pagu (Unicamp) e Estudos Feministas (UFSC) são periódicos interdisciplinares voltados aos estudos de gênero. Sendo assim, percebe-se o quanto periódicos como os citados têm contribuído para a divulgação do pensamento de intelectuais afro-americanas no Brasil a partir da tradução. Acerca dos/as tradutores/ as, eles/as são variados/as e, em sua maioria, tiveram suas traduções feitas e/ou revisadas em conjunto com outras pessoas. Em geral, percebe-se que está havendo um crescimento de publicações de textos traduzidos de Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins por editoras como a Boitempo, que tem publicado traduções de livros de Davis e lançará a tradução de uma das obras de Collins ainda em 2019. Além disso, os periódicos acadêmicos têm exercido um papel importante na divulgação do trabalho das intelectuais em questão. Mesmo diante desse cenário que vem se ampliando ao longo dos anos, ainda há pouco material de pensadoras afro-americanas traduzido no Brasil. E quais poderiam ser os motivos para isso? Os pensamentos de Toury (1995) de que a tradução é um fenômeno próprio da cultura-meta, que determina sua função, seu processo e seu produto, e de Bassnett & Lefevere (1990), para quem a tradução é uma reescrita submetida a questões culturais, sócio-históricas, ideológicas e de patronagem, ajudam em uma reflexão sobre o cenário apontado. Soma-se a isso esta declaração de Sonia E. Alvarez e Claudia de Lima Costa, no texto “A circulação das teorias feministas e os desafios da tradução” (2013): É bem sabido que os textos não viajam através de contextos linguísticos sem um ‘visto’. Seu deslocamento pode acontecer somente se também houver um aparato material organizando sua tradução, publicação e circulação. Este aparato – que, ao mesmo tempo que é constituído pelos contextos de recepção, também os constitui ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 199 200 – influencia de maneira significativa quais teorias/textos são traduzidos e (re) significados para ajustar-se melhor às agendas intelectuais locais. (Alvarez; Costa, 2013: 581) Sendo assim, a escassa visibilidade das escritas não-ficcionais de intelectuais afro-americanas no Brasil pode estar ligada a fatores como a suposição de que há um número reduzido de leitores/as com demanda para textos vinculados ao feminismo negro, à necessidade de concessão de direitos autorais, à matriz de dominação proeminente em determinadas instituições, marcadas pelo racismo estrutural, entre outros. Percebendo essa falta de abertura do mercado editorial brasileiro para a tradução de textos de autoras negras, estadunidenses e de outras nacionalidades, e enxergando a possibilidade de utilizar espaços alternativos que resistam a esse mecanismo de poder, alguns sites como “Despatriarcalize”15, “Traduzidas”16 e “Preta, nerd & Burning Hell”17 têm contribuído para a ampliação dessas vozes por meio da tradução. Quanto aos referidos sites, o “Despatriarcalize” se propõe como um espaço para a divulgação de traduções de textos feministas, definindo-se da seguinte forma: “Somos as mulheres que os homens nos alertaram”. Os textos traduzidos disponíveis, englobando o período de fevereiro de 2014 a abril de 2015, são trechos e capítulos de livros, artigos e ensaios. Entre eles encontram-se dois textos de Audre Lorde: o discurso “As ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a casa-grande”, realizado em uma conferência feminista na universidade de Nova York em 1984 e o ensaio “Não há hierarquias de opressão”, parte de um capítulo do livro Eu sou sua irmã: escritos coletados e não-publicados de Audre Lorde, lançado em 2009. Enquanto o primeiro texto é uma crítica de Lorde ao fato de ela ter sido uma negra lésbica feminista convidada a falar no único painel em que a perspectiva das negras feministas lésbicas esteve representada, no contexto de um país onde racismo, sexismo e homofobia são inseparáveis, o segundo texto reflete o que se encontra em seu próprio título. Nesse caso, os textos traduzidos de Lorde apontam para a interseccionalidade de raça e gênero no conjunto de múltiplas opressões. Eles foram publicados no site “Despatriarcalize” por Fabiana Serra e não há informação sobre quem os traduziu. Já o site “Traduzidas” apresenta “traduções feministas clandestinas: feminismos de cor, lesbianos, piratarias, feministas lésbicas negras, pessoas cuír/queer de cor (queer of color people – QCP) y más!”, feitas por Tatiana Nascimento. Nascimento é tradutora, poeta, editora e fundadora da Padê editorial, que produz artesanalmente livros de escritoras negras e LGBT, além de doutora em Estudos da Tradução pela UFSC. Sua tese de doutorado, intitulada “Letramento e tradução no espelho de Oxum: teoria lésbica negra em auto/re/conhecimentos” e defendida em 2014, traz importantes contribuições para os estudos que relacionam questões de tradução, 15 Disponível em: <https://catsfordestroypatriarchy.wordpress.com/>. Acesso em: 04 fev. 2019. 16 Disponível em: <https://traduzidas.wordpress.com/about/>. Acesso em: 04 fev. 2019. 17 Disponível em: <http://www.pretaenerd.com.br/p/blog-page.html>. Acesso em 04 fev. 2019. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 raça e gênero, visto que apresenta propostas de traduções de textos das feministas negras lésbicas estadunidenses Audre Lorde, Cheryl Clarke e Doris Davenport. O site “Traduzidas” contém textos publicados entre janeiro de 2011 e março de 2018, os quais abrangem artigos, ensaios, poemas e entrevistas. Entre eles podem ser citados alguns de autoras afro-americanas: o poema “Mulher de duas cabeças”, de Doris Davenport, o ensaio “Mas algumas de nós somos lésbicas corajosas: a ausência da literatura negra lésbica” (2005), de Jewelle Gomez e um trecho da entrevista em vídeo de Toni Morrison em que ela trata de questões de raça em sua escrita. O site também apresenta textos traduzidos de Audre Lorde, sendo eles o poema “Mulher”, os ensaios “Poesia não é um luxo” (1977), “Usos do erótico: o erótico como poder” (1984) e “Autodefinição e minha poesia” (2009), além do discurso “As ferramentas do sinhô nunca vão derrubar a casa-grande”, o mesmo que foi traduzido e disponibilizado no site “Despatriarcalize”, como mencionado anteriormente. É interessante observar que, nesse caso, a tradutora optou por não traduzir o termo “master” por “mestre”. Ao fazer isso, ela silenciou a ideia de poder contida nesse termo, optando por substituí-lo pelo vocábulo “sinhô”, forma de tratamento que as pessoas escravizadas utilizavam para se referir aos donos das terras nas quais eram obrigados a trabalhar durante o período colonial brasileiro. Ao fazer isso, Nascimento demonstra ter realizado uma “tradução ativista”. Segundo Maria Tymoczko, professora de Estudos da Tradução na universidade de Massachussetts, “[...] as traduções ativistas são performativas – elas são atos dentro de campos mais amplos de programas de ação ideológicos e políticos específicos e sua eficácia é uma função de sua natureza performativa” (Tymoczko, 2010: 252, tradução minha)18. Diferentemente dos sites “Despatriarcalize” e “Traduzidas”, o site “Preta, Nerd & Burning Hell” não é um site específico de traduções, mas sim “um espaço virtual onde é possível discutir um modo de consumo (nerdiandade) tendo em vista a simultaneidade dos recortes de raça, gênero, classe”, bem como “explorar os caminhos que têm sido negados historicamente à população negra, em especial, às mulheres Negras”. Entre as traduções disponibilizadas no site, entre janeiro de 2015 a fevereiro de 2017, encontra-se “Idade, raça, classe e sexo: mulheres redefinindo a diferença”, de Audre Lorde, que havia sido publicado no contexto estadunidense como um capítulo do livro Sister Outsider (1984). O nome de quem fez essa tradução está ausente. Portanto, diante desse breve panorama de obras e textos não-ficcionais de intelectuais afro-americanas, observa-se que, embora a publicação de traduções desse material ainda seja pequena, existe um movimento de resistência, a partir da produção de traduções que se autointitulam “clandestinas”. E é por causa de movimentos como esse que vozes como as de Audre Lorde ultrapassam as barreiras do silenciamento que ainda imperam no polisistema literário brasileiro, marcado pela matriz de dominação, especialmente no que diz respeito ao grande mercado editorial. 18 “[...] activist translations are performatives – they are acts within broader fields of specific political and ideological programs of action and their effectiveness is a function of their performative nature.” ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 201 Considerações finais 202 Segundo Even-Zohar (2005), Bassnett & Lefevere (1990) e Toury (1995), a tradução é muito mais do que um processo de transferência de material linguístico de uma língua para outra, na medida em que nela estão envolvidos aspectos culturais, sociais, históricos e econômicos. Além disso, o sistema de chegada tem um papel atuante na seleção dos textos que serão traduzidos, na definição dos/as tradutores/as que serão responsáveis por esse processo e na configuração do produto final. Tendo em vista todo esse mecanismo de poder, este artigo buscou verificar que obras e textos não-ficcionais de intelectuais afro-americanas estão disponíveis no polissistema literário brasileiro. Para tanto, foram feitas discussões acerca do feminismo negro estadunidense e sua luta contra o racismo e o sexismo, mesmo dentro do movimento feminista, liderado por mulheres brancas das classes média e alta. Nesse sentido, o discurso de Sojourner Truth, proferido em 1851, foi extremamente importante para o reconhecimento de demandas específicas das mulheres negras, inspirando o trabalho de outras pensadoras e ativistas afro-americanas como June Jordan, Audre Lorde, Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins nos séculos XX e XXI. Na produção dessas autoras, é reforçada a ideia de que o feminismo negro tem suas especificidades em comparação a outros tipos de feminismo. Isso porque as mulheres negras sofrem uma dupla opressão – a de raça e a de gênero – que se interrelacionam. Além disso, Collins, especificamente, enfatiza a atuação de uma matriz de dominação sobre a vida de mulheres afro-americanas. Essas, por sua vez, ao estarem submetidas aos diferentes domínios desse sistema hegemônico, têm demonstrado um movimento de resistência e empoderamento. Em seguida, foi apresentado um breve panorama de obras e textos nãoficcionais das autoras mencionadas que foram traduzidos no Brasil e publicados por editoras e periódicos acadêmicos. A partir das observações realizadas, levando-se em conta os diferentes dados coletados, percebeu-se que ainda há pouco material traduzido. Por um lado, foram encontrados alguns livros e textos de Angela Davis, bell hooks e Patricia Hill Collins. Por outro lado, no que se refere a June Jordan e Audre Lorde, não foi localizada nenhuma tradução de livros e textos de suas autorias publicados por editoras ou periódicos acadêmicos. Tendo em vista essa ausência, sites como “Despatriarcalize”, “Traduzidas” e “Preta, nerd & Burning Hell” vem disponibilizando textos de intelectuais feministas negras por meio da tradução. Mesmo que se tratem de “traduções clandestinas”, elas têm exercido uma função ativista no que diz respeito à promoção de vozes como as de Lorde, hooks e Davis e, com isso, contribuído de forma muito importante para a divulgação de obras de feministas afro-americanas no Brasil. Mas até quando será preciso quebrar barreiras editoriais, até mesmo burlando leis como a de direitos autorais, para que sejam visibilizadas as produções de autoras negras? Diante desse cenário, espera-se que o espaço da tradução possa ser utilizado cada vez mais, em diferentes meios, ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 182-205 para fazer com que epistemologias feministas negras, historicamente suprimidas e marginalizadas, sejam amplamente divulgadas. E, para além disso, que elas contribuam para uma ruptura de paradigmas racistas e sexistas, a partir de uma perspectiva anti-patriarcalista e antirracista. Referências Bibliográficas ALVAREZ, Sonia E.; COSTA, Claudia de Lima. (2013). “A circulação das teorias feministas e os desafios da tradução”. Estudos feministas, n. 2, 21: p. 579-586, mai-ago. AMORIM, Lauro Maia. (2012). “O papel da tradução na construção da identidade da literatura afro-americana no Brasil”. Revista do GEL, n. 1, 9: p. 107-134. BASSNETT, Susan & LEFEVERE, André. (1990). “Introduction: Proust’s Grandmother and the Thousand and One Nights: The ‘Cultural Turn’ in Translation Studies”. In: BASSNETT, Susan & LEFEVERE, André (eds.). Translation, History and Culture. London: Pinter Publishers. p. 1-13. BASSNETT, Susan. 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Idealizadora e coordenadora do Programa Abrates Afro da Associação Brasileira de Tradutores, Rane visa promover não apenas a reflexão, mas também uma maior presença negra na profissão de tradutor e intérprete. Por meio da Abrates Afro, Rane cria possibilidades para que outros intérpretes atravessem a linha da cor e nomeia uma realidade que até pouco tempo seguia invisível na profissão de intérpretes de conferência, cujo perfil ‘tradicional’ é o de pessoas brancas que não só frequentaram os melhores cursos particulares de línguas estrangeiras, mas também tiveram oportunidades de morar no exterior. Quantos intérpretes de conferências há cujas famílias não tiveram condições de arcar com um curso de inglês? Até conhecer Rane, eu não havia conhecido nenhum. Palavras-chave: Interpretação de conferências. Intérprete. Mulher negra. Racismo 206 estrutural. ABSTRACT In this interview, the third in a series with black interpreters (Carvalho Fonseca, 2017, 2018), Rane Souza, a black woman conference interpreter, patiently guides readers through structural racism in Brazil, while thinking-aloud about her existence, resistance and activism. Rane aims to promote not only awareness, but also a greater black presence in the translation and interpreting profession. By creating and organizing Abrates Afro, Rane opens doors for potential black interpreters to cross the color line and attaches a name to a reality that until recently remained invisible in conference interpreting, a profession whose “traditional” profile is that of whites who not only benefitted from private language courses, but also had opportunities to live in the geographeis of their working languages. How many conference interpreters are there in Brazil whose families could not afford an English language course? Until I met Rane, I knew none. Keywords: Conference Interpreting. Interpreter. Black women. Structural racism. Luciana Carvalho Fonseca Universidade de São Paulo (USP). Professora doutora do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: lucianacarvalhof@usp.br ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 Introdução “Aqui, uma mulher negra não vale nada”. A frase ficou ecoando na cabeça da premiada escritora ruandesa Scholastique Mukasonga após recente visita ao Brasil. Mukasonga ressalta o número de vezes em que fora alertada sobre a falta de segurança no Brasil e como ser mulher negra implica ser alvo de racismos e racistas em todo lugar (Mukasonga, 2019). No país com índice de representatividade de mulheres (todas) no parlamento comparável ao do Oriente Médio – 9,5% contra 22,5% da média mundial (Chade, 2015) e onde a igualdade de gênero no executivo só deve ser atingida no ano de 2038 para o cargo de prefeita e só em 2068 para o cargo de governadora (Ranking de presença feminina no poder executivo - PMI 2018, 2018: 3), em termos de representatividade, as mulheres negras são a minoria da minoria. O racismo estrutural faz com que mulheres pretas e pardas sejam mantidas na base da pirâmide política, social e econômica brasileira. Politicamente, apenas 0,18% dos prefeitos eleitos são mulheres negras, apesar de as mulheres negras representarem 21% dos votos válidos na última eleição presidencial (idem :3). Socialmente, em relação a taxa de homicídio, enquanto a de mulheres brancas recuou 10% entre 2003 e 2013, a de mulheres não-brancas aumentou mais de 50% (Silveira & Sito, 2018). As mulheres pretas e pardas são também as que mais são vítimas de violência e morte no parto: 60% das vítimas de mortalidade materna são pretas e pardas (Laura, 2018). No âmbito econômico, as mulheres não-brancas, apesar de serem as primeiras a ingressar no mercado de trabalho – na condição de empregadas domésticas –, são as últimas a se aposentar e as que recebem o menor salário. Com um bolo tributário composto por impostos sobre o consumo (ao contrário do dos países com menores inídices de desigualdade social, onde se tributa a renda em oposição ao consumo), a mulher negra é a que proporcionalmente mais paga imposto no Brasil, já que é obrigada dispor de praticamente toda sua renda para sobreviver – comprar alimentos e gêneros de subsistência. Rane Paula Morais Souza, conhece muito bem a realidade brasileira: “Sou perseguida por agentes de segurança – policiais e seguranças particulares – todos os di-as em lojas e estabelecimentos comerciais.”, disse durante o IX Congresso Internacional da Associação Brasileira de Tradutores (Abrates) realizado em junho de 2018 no Rio de Janeiro. Única intérprete mulher negra associada à Abrates (Dorali, 2018), Rane Souza foi convidada a falar sobre representatividade. Para ela, falar na Abrates representou uma oportunidade de “propor uma reflexão coletiva sobre o impacto do racismo institucional na nossa profissão” (Rissatti & Souza, 2018: 20). Rane compartilhou o palco com outro tradutor negro, Petê Rissatti. Cientes da dimensão de sua missão, no seio de um grupo de profissionais majoritariamente ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 207 208 brancos no contexto de um país com mais de 500 anos de história racista. Diante dos dados apresentados sobre a população negra no Brasil, na plateia, “o silêncio se instalou” (Rissatti & Souza, 2018: 20). O perfil “tradicional” dos intérpretes de conferência no Brasil é o de pessoas que não só frequentaram os melhores cursos particulares de línguas estrangeiras, mas também tiveram oportunidades de realizar intercâmbio e/ou morar no exterior com a família por períodos significativos. Quantos intérpretes de conferências há cujas famílias não tiveram condições de arcar com um curso de inglês? Até conhecer Rane, não tinha conhecido nenhum. Rane Paula Morais Souza, nascida em abril de 1983, teve que estudar inglês por conta própria valendo-se de sua criatividade durante o ensino fundamental. Mais tarde, formou-se em Letras pela PUC Minas em 2006. O primeiro curso de tradução que fez foi o Daniel Brilhante de Brito no Rio de Janeiro (20082009). A formação em interpretação veio um pouco depois, em 2011, no Brasilis. Desde a graduação, é professora de inglês e de português para estrangeiros e continua investindo na carreira de intérprete para “fazer a transição definitiva para tradução e interpretação”. Esta entrevista ocorreu no início de julho de 2016 na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, na Av. Paulista, em São Paulo, no intervalo do EPIC English, curso de prática de cabine e língua para intérpretes oferecido por David Coles e Ulisses Carvalho, com organização da Lingua Franca, comandada por Marília Aranha e Renato Geraldes. Faz cinco anos que Rane começou a trabalhar de forma mais consistente com tradução e interpretação, em inglês e português. Para todos os intérpretes iniciantes, a progressão pela demanda de serviços de interpretação não costuma ocorrer da noite para o dia. Rane já passou pelo crivo dos primeiros cinco anos e agora está trilhando o caminho do próximo quinquênio para se tornar uma intérprete experiente. Além dos dois cursos de interpretação mencionados, Rane também fez o HIIT em Curitiba, ministrado por Raquel Schaitza e pretende fazer o i2b de Marcelle Castro no Rio. Segundo Rane, a formação continuada é necessária pois representa profissionalização: “Negro precisa ser mais qualificado para ‘evitar’ questionamentos. É uma estratégia de sobrevivência”. Outra estratégia de sobrevivência é o Programa Abrates Afro, idealizado e coordenado por Rane Souza, com o objetivo criar possibilidades para que outros intérpretes atravessem a “linha da cor’” (Du Bois, 1903; Franklin, 1993) ao menos profissionalmente, promovendo maior presença negra na profissão de intérprete, pois “se não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível” (Ribeiro, 2017) Este impulso de Rane ecoa a célebre frase de Angela Davis: “Eu não estou mais aceitando aquilo que eu não posso mudar. Estou mudando aquilo que não posso aceitar”. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 Nesta entrevista, a terceira de uma série com intérpretes negros (Carvalho Fonseca, 2017, 2018), Rane nos conduz pelo racismo estrutural compartilhando e elaborando as complexidades de sua existência e resistência e ativismo. LCF: Como você aprendeu inglês? RS: Quando eu era criança, eu tinha muita curiosidade em aprender inglês. Eu falava com a minha mãe que queria aprender e ela respondia: “Filha, não tem como pagar o curso de inglês”. Então, respondi: “Ah, mãe, vou dar um jeito e vou aprender”. Como eu estudava em uma escola onde meus amigos frequentavam cursos de inglês mas não gostavam muito, eu pegava os livros deles, com as fitas cassettes e fazia o dever de casa. Uma amiga fazia aulas às terças e quintas, me entregava o livro dela na segunda, eu estudava, fazia o dever e devolvia. Ela levava pra aula na terça, na quarta me entregava de novo. Foi assim até a oitava série. LCF: E durante o ensino médio? RS: No ensino médio, continuei a estudar por conta própria, mas eu já estava em uma escola que tinha uma biblioteca fantástica: o Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET). Hoje o CEFET é um Instituto Federal. Fiz o ensino médio e o curso técnico de edificações. Gostei muito do técnico, mas acabei não me firmando na área. Como eu tinha demanda por trabalho dando aulas de inglês, acabei fazendo Letras um ano depois de concluído o ensino médio, porque fui fazer o estágio técnico. Gostava muito da área, mas o estágio foi em 2001, um ano muito difícil na economia brasileira. Não tinha demanda de trabalho para técnico de edificações, na área da construção civil. Em 2003, eu já estava fazendo Letras e feliz com a escolha. A construção civil voltou a se movimentar em 2008, foi o auge. Eu me senti tentada a talvez voltar, mas acabou que eu foquei mesmo em continuar trabalhando com idiomas. LCF: Qual foi a sua primeira experiência como intérprete simultânea? Como foi? RS: Foi na Rio +20 e eu estava começando. Minha companheira de cabine e eu fomos contratadas por uma empresa que venceu a concorrência por menor preço. Eu tinha acabado de me formar no curso de interpretação da Brasilis e ela estava no início da formação. Éramos duas intérpretes inexperientes. LCF: Esta entrevista faz parte de uma série com intérpretes negros e parte da metodologia empregada é pedir indicações de outros intérpretes para as próximas. Você conhece outros intérpretes que se identificam como negros? ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 209 RS: Sim. Henrique Cotrim, daqui de São Paulo, Petê Rissati também. Gabriela Nunes de Brasília. No caso do Petê Rissati, ele é tradutor e trabalha com inglês, português, espanhol e alemão. Ele foi adotado por uma família branca e começou a se reconhecer como negro por volta dos 20 anos. Diferentemente de mim, ele é um negro de pele clara e isso pode fazer com que a pessoa não se identifique como negra. LCF: Como é ser mulher negra no Brasil? RS: Em uma conversa com um colega sobre racismo nos vários estados, falamos das nossas impressões no meio. O Rio sendo pior que São Paulo, no sentido de acharem que você necessariamente está fazendo um trabalho que sempre foi negado aos negros, um trabalho que demanda menos formação. Eu não conheço tão bem São Paulo, mas comparado a Minas Gerais, Belo Horizonte, onde fiz ensino médio e faculdade o Rio é muito mais tranquilo. Eu passei por situações de cuspirem em mim na rua, em Minas. No Rio não, ali o racismo aparece de outras formas. Principalmente em estabelecimentos comerciais. Sempre que vou a uma loja, ao supermercado, há um segurança te observando. Isso é diário. 210 Quando preciso ler um rótulo na farmácia, por exemplo, às vezes vem um fiscal me observar. Atualmente, eu vou e entrego o produto pra ele e peço pra ele ler pra mim os ingredientes. Eu até falo, “Então, vamos aproveitar que o senhor está me seguindo pra fazer alguma coisa para ajudar, né? O senhor poderia ler o rótulo pra mim?”. É muito cansativo mas, faz parte. Em Minas, como eu já disse, acontecem coisas piores como em alguns supermercados, onde você precisa deixar suas coisas num guarda volumes se for entrar. Eu tenho ainda outro problema: me encaixo no estereótipo de ‘mulata tipo exportação’. Em Copacabana, já aconteceu de eu estar pagando uma conta nas lojas Americanas e um gringo atrás de mim me oferecer um programa. Ir a praia sozinha no Rio é um problema também. O racismo se manifesta de muitas formas. Outra vez em Copacabana, eu estava dando uma entrevista pra um jornalista dinamarquês sobre racismo e alguns funcionários do restaurante acharam que eu tava usando o restaurante como ponto de programa. Quando o entrevistador foi ao banheiro, um garçom veio me chamar atenção, falou: “Olha, isso aqui não é pra isso não.” Respondi, “Moço do que você está falando?” e ele “Ó, vai rodar a bolsinha em outro canto”. Em seguida eu falei, “Eu estou dando uma entrevista”. LCF: Ninguém mais fez nada? RS: Metade dos funcionários do restaurante eram negros. Além disso, todo mundo em volta já estava olhando a interação na minha mesa. Contei ao jornalista que me entrevistava e ele disse “É difícil de acreditar”. Na mesa ao lado, havia outro rapaz dinamarquês que tava com a esposa brasileira, e a família da esposa. Este dinarmaquês puxou assunto com o jornalista porque o viu falando ao telefone em dinamarquês. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 O jornalista então perguntou ao dinamarquês na outra mesa: “Eu percebi que vocês todos estavam olhando muito pra cá. Por quê?”. A resposta foi: “Minha esposa e a mãe dela estavam achando que você tinha contratado uma prostituta”. Portanto, a cena foi percebida da mesma forma não só pelos funcionários negros mas pelos próprios clientes. LCF: Você mencionou Minas Gerais algumas vezes. Quanto tempo você morou lá? RS: Eu cresci em Coronel Feliciano, Vale do Aço, em Minas Gerais, onde morei até os 15 anos. Dos 15 aos 25, morei em Belo Horizonte para onde me mudei com meu irmão para estudar no CEFET. Depois que me formei pela PUC-MG, fiquei ainda mais dois anos na cidade. Eu já tinha vontade de trabalhar como tradutora só que me faltavam as ferramentas e eu trabalhava em uma escola de inglês lá, onde só me deixavam dar aula para alunos de nível básico. Nunca me ofereciam as aulas de nível intermediário. Quando me formei, já estava trabalhando com professora de inglês há dois anos e meio e percebi que enquanto eu estivesse naquela escola e em Belo Horizonte eu ia ser a eterna professora de criancinha. Pensei, já que eu quero ver coisas diferentes, fazer coisas diferentes, eu preciso sair de Belo Horizonte. Lá eu ainda fiz o processo seletivo da Cultura Inglesa várias vezes. Eu passava na prova, passava na entrevista, mas na hora de conseguir turma, não me davam retorno. 211 LCF: Você foi aprovada em mais de um processo seletivo? RS: Sim. Passava todo o processo, todas as vezes: foram três vezes. LCF: Você atribui isso ao racismo? RS: É uma possibilidade, mas eu não tenho provas materiais para apontar que foi racismo. Uma vez chegaram a me convidar para o treinamento, o qual eu fiz, mas depois nunca entraram em contato. Por outro lado, quando cheguei ao Rio, fui aprovada no primeiro processo seletivo da Cultura Inglesa e comecei a trabalhar na sequência. Depois de um tempo, acabei saindo para trabalhar em uma escola de Business English que pagava um pouquinho melhor e eu conseguia conciliar com o curso de tradução. Depois, passei a dar aula particular e a investir na área da tradução mesmo. LCF: Em uma conversa prévia, você mencionou um colega de profissão que passou a se identificar como negro após os vinte anos de idade. E você? Quando você se descobriu negra? RS: Houve um breve momento que eu tentei negar a minha identidade. Foi aos seis anos. Viajamos à praia. Foi a primeira vez que fui à praia e lá ficava sentada na areia, ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 tomando sol o dia inteiro. Sem sol, meu tom de pele é amarelado assim. Mas depois que eu voltei do Espírito Santo, eu estava naturalmente muito mais escura. Estava uns cinco tons mais escura que esse tom agora. Ao me ver, uma amiguinha me disse: “Nossa, você está tão preta!”. Eu respondi: “Não sou preta, estou queimadinha de sol”. Cheguei em casa e comentei com a minha mãe. Na hora, ela me disse: “Filha, você é preta, sim”. Como minha mãe é uma mulher de pele muito escura e por mais que eu tenha a pele um pouco mais clara, tenho todas as características de negro muito marcadas: o cabelo, o nariz, os lábios, portanto, eu nunca, mesmo quando eu queria fugir dessa identidade não me foi possível. LCF: E como era na escola? RS: Minha mãe fazia questão de pagar uma escola particular para a gente. A escola que eu e meu irmão estudamos era particular e de 300 crianças, 4 eram negras. No CEFET havia cerca de 10 alunos negros na turma de 40. Lá era um pouco melhor, mas mesmo quando eu queria fugir dessa identidade, na escola, havia todo tipo de apelido: “macaca”, na adolescência por causa da acne, os apelidos eram “anticristo”, “choquito”. Havia também as músicas. Todo dia alguém cantava para mim uma música do Chiclete com Banana que fala em “meu cabelo duro”. LCF: Como você lidava com a situação? 212 RS: Eu era muito brava quando pequena, então eu batia em todo mundo. Minha mãe falava, “É, fez muito bem.”. Por conta disso, quando pequena, não desenvolvi estratégia inteligente para lidar com o racismo. Foi na adolescência e na juventude que passei a desenvolver estratégias melhores. O que eu fazia principalmente na adolescência e no início da faculdade era ler muito a respeito do racismo. Percebia que alguns dos colegas negros com quem eu convivia em sala tinham consciência racial zero. Eu sempre corri atrás de leituras e através delas me firmei. LCF: Essas leituras tiveram a participação de sua mãe também? RS: Nem tanto. Apesar de minha mãe sempre ter tido uma postura muito forte de combate ao racismo, foi mesmo na faculdade que desenvolvi pesquisa sobre literatura afro-brasileira e literatura africana. Durante a pesquisa, lidamos com vários textos dissecando o racismo, as peles negras, as máscaras brancas. Em 2003, comecei a fazer essas leituras. Uma marcante foi O Atlântico Negro de Paul Gilroy (2001) que analisa o mundo pós-colonial. Essas leituras estavam vinculadas a meu projeto de pesquisa de Iniciação Científica em literatura afro-brasileira e literatura africana. LCF: O que você pesquisou na Iniciação Científica? ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 RS: Minha pesquisa foi sobre a representação no negro na literatura do século 19. Verifiquei que a representação da época era completamente estereotipada e que pouco difere da representação que hoje assistimos na tv. Ou seja, mudou a mídia que naquela época eram os jornais, folhetins e romances, mas não mudou a representação da pessoa negra. LCF: Quais livros você indicaria a um(a) jovem intérprete negro(a)? RS: “Um defeito de cor” (2006), da Ana Maria Gonçalves, um romance de mais de 900 páginas. É um livro muito bom principalmente para aqueles que se consideram mestiços, pardos, e para aquela pessoa que pensa “É, eu não sou tão negro assim” ou ainda “Eu não preciso lidar com essa questão.” No Brasil, a gente tem a tendência de achar que o racismo é uma questão com a qual apenas os negros têm que lidar, mas se trata de uma questão com a qual todos nós, como sociedade, temos que lidar. A situação do racismo é tão grave, e eu digo que é grave porque já se passaram 130 anos do fim da escravidão e, em termos de estrutura social, a mudança foi muito pequena. Há uma pesquisa da Oxfam que prevê que negros e brancos vão ter equiparação de renda em 2089 se nada mudar. Ou seja, diante da gravidade todos nós precisamos de iniciativas, políticas públicas e iniciativas institucionais também, da sociedade civil, das associações... LCF: Você foi recentemente convidada pela direção da Associação Brasileira de Tradutores (Abrates) para falar do racismo no Brasil no XI Congresso Internacional, ocorrido no Rio em 2018. Como foi a experiência? O que você considerou importante destacar? RS: O convite partiu do Ricardo Sousa, atual presidente da Abrates, e do Willian Casemiro, presidente anterior. Ricardo Sousa em uma ocasião se aproximou de mim e disse: “Eu reparo que nas redes sociais você tem uma postura muito militante com relação ao combate ao racismo. Você não gostaria de falar sobre o assunto no próximo congresso da Abrates?”. Respondi que adoraria. O convite oficial foi feito juntamente com o Willian e fui convidada para falar sobre a interface do racismo com o nosso mercado e sobre a situação em que o intérprete – ou tradutor – é contratado por ser negro ou porque vai trabalhar com um público negro. Fiquei sabendo que eu falaria juntamente com outro tradutor negro, Petê Rissati, com o qual me reuni para alinharmos nossos recortes. Petê estruturou sua fala em três pilares básicos: intolerância religiosa, discriminação a LGBTs e racismo institucional. Ele falou muito de empatia e que para sermos capazes de superar o racismo a empatia é chave, empatia na profissão como um todo, empatia com os novatos. Na minha fala optei por abordar o racismo institucional, porque eu teria a possibilidade de usar dados de várias instituições pra dar suporte ao meu argumento. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 213 214 Comecei falando que o racismo estrutural está em todos os cantos, na padaria a que você vai todo dia, nas aulas de capoeira que você faz, na sua família. Procurei demonstrar que precisamos combater o racismo que está nas estruturas do governo, operando para que o negro não atinja uma inserção saudável na sociedade. Me vali de minha experiência pessoal e relatei que quando eu era pequena sempre pensava, por que o problema continua se a escravidão “acabou”. Quanto mais fui estudando sobre a persistência do racismo tanto estrutural quanto institucional, passei a perceber que o Estado e a sociedade como um todo trabalham para que as estruturas não mudem. Na sequência, mencionei que a abolição foi feita em 13 de maio de 1888, mas em 1890 quando foi lançado o código civil, a prática da capoeira era crime, assim como a prática das religiões afro-brasileiras. A capoeira foi criminalizada até 1937, ou seja, expressões da cultura afro-brasileira eram utilizadas como estratégia para prender e criminalizar negros após o “fim” da escravidão. Abordei também a eugenia como política de estado usando um trecho de uma das constituições brasileiras. Citei o caso dos meus pais, pois sou filha de pessoas que, na escola, por serem crianças negras, tinham que sentar atrás das crianças brancas. Minha mãe frequentou escola pública no interior de Minas, em Mesquita. Já o meu pai morava muito longe da escola e ia a pé para a escola. Meu pai tem 68 anos e é analfabeto funcional. Ele assina o nome dele mas lê com muita dificuldade. Recentemente, visitei meus pais em maio e fiz uma lista de compras para o meu pai. Com a letra cursiva, escrevi alho e ele trouxe milho. Quando ele era mais novo, tenho a impressão de que ele memorizava, nem lia a lista, trazia tudo certinho. LCF: Quais as outras histórias seus pais relatam da escola que frequentaram? RS: Meu pai conta que as professoras davam as respostas paras crianças brancas e não davam para as crianças negras. O mais grave aconteceu com a minha mãe que quando ela chegou ao final da quarta série, ela queria continuar estudando, mas a diretora da escola falou que só podia matricular no quinto ano filho de fazendeiro. Ela parou de estudar e só voltou a estudar aos 24 anos. Minha mãe teve filhos mais tarde, porque se ela tivesse tido filhos mais cedo ela não teria voltado a estudar, não teria mesmo. LCF: Que outros dados que você considera importantes em relação ao racismo estrutural no Brasil? RS: Como a imigração europeia foi estimulado em detrimento da presença dos africanos que já estavam no Brasil. As políticas de branqueamento durante a ditadura militar. As políticas de assimilação refletidas em, por exemplo, uma música do Martinho da Vila que diz “Ah, se você é preto casa com uma branca, se você é branca casa com um negro’. Os dados sobre a disparidade de renda: a renda dos negros é 57% da renda dos brancos, que 63,7% das pessoas desempregadas são ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 negras, pretas ou pardas e dentro desse universo a grande maioria são mulheres negras. E são essas mulheres que muitas vezes são responsáveis pelo sustento da família. Tudo isso é resultado das questões estruturais. Há reflexos do racismo até nos índices de transplante de pâncreas: 93% das pessoas que recebem transplante de pâncreas no Brasil são brancas e se você considera que a população brasileira é composta por 54% de pretos e pardos, percebe-se que há algo de muito errado. Na saúde, as consultas de mulheres negras no pré-natal são mais curtas que a de mulheres brancas, as mulheres negras recebem menos anestesia, a violência obstétrica é maior, a mortalidade materna é maior. No quesito violência: 77% das pessoas assassinadas são homens negros entre 15 e 24 anos, a chance de uma pessoa negra ter uma morte violenta é 158% maior que de uma pessoa branca. Há dados mais positivos. Hoje, 34% das pessoas ingressando em uma faculdade, esse número é de 2016, se consideram negras. Nos últimos anos, o governo do Partido dos Trabalhadores tem tomado iniciativas para tentar possibilitar acesso da população negra à educação superior. A lei das cotas é um exemplo exitoso. O estatuto da equidade racial, aprovado em 2010, também é exemplo. A lei da obrigatoriedade do ensino da história afro, africana e afro-brasileira é outro. Há várias iniciativas positivas também, mas é necessário adesão da sociedade e das instituições como um todo1. LCF: E o que uma instituição como a Abrates poderia fazer? 215 RS: Tenho um projeto que ainda está em estágio embrionário. Abrates Afro é uma iniciativa que contribuirá para divulgar a profissão de intérprete que ainda é muito desconhecida do grande público. A ideia seria divulgar a profissão para estudantes de ensino médio e estudantes de graduação em Letras. É muito comum as pessoas associarem a faculdade de Letras exclusivamente à formação de professores. Assim, divulgar a profissão por meio de palestras, oficinas, workshops para o público negro que tenha interesse em se tornar tradutor ou intérprete, de modo a fomentar que esses profissionais possam no futuro ser os tradutores dos conteúdos que lhes interessa. Por exemplo, a Netflix tem algumas séries que trabalham muito a questão negra. Não conheço a equipe de legendadores envolvida, mas será que há legendadores negros envolvidos? E os demais autores negros que chegam ao Brasil? Quem traduz? Por exemplo, a Chimamanda Ngozi Adichie é traduzida por uma tradutora do Rio, eu não a conheço pessoalmente mas ela é uma tradutora branca. Não estou julgando a qualidade da tradução dela, mas apenas questionando a falta de representatividade de tradutores negros em trabalhos de autores negros, decorrente do racismo estrutural que não permite – ou dificulta ao extremo – que negros se formem tradutores ou intérpretes. 1 Vale ressaltar que esta entrevista ocorreu no início de julho de 2018, portanto, antes do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. No contexto atual, o governo federal comandado por Jair Bolsonaro, acaba de assinar decreto liberando a posse de armas para a população brasileira. Especialistas apontam para a probabilidade de aumento de mortes violentas no país que contabiliza 30,3 mortes por 100 mil habitantes, número trinta vezes mais alto que o europeu (Atlas da Violência, 2018). ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 LCF: Essas ações que você menciona são todas voltadas para fora da Abrates, como se a associação já tivesse uma consciência de que há racismo, há preconceito. Você acha que essa consciência já existe por partes dos colegas? RS: Acho que os membros da diretoria com quem eu conversei possuem a abertura necessária para pautar a inclusão racial, mas não podemos ser ingênuos a ponto de considerar que todos os associados vão aplaudir a iniciativa. Por outro lado, há colegas fora da associação que podem ser parceiros em potencial e podem contribuir para a formação de intérpretes negros. A iniciativa irá precisar de recursos. Este curso que estou fazendo hoje, EPIC da Lingua Franca, sou mais uma vez a única intérprete negra de cerca de 15 inscritos. Seria interessante se no futuro próximo a Abrates Afro pudesse oferecer uma bolsa de 50% pra que um intérprete negro pudesse fazer o curso. LCF: Talvez seja interessante entrar em contato com aqueles que oferecem o curso para ver se há a possibilidade de doar ou disponibilizar uma gratuidade2 para um intérprete negro indicado pela Abrates Afro, por exemplo. RS: Sim, isso seria também uma possibilidade, mas considerando que haja resistência, que a iniciativa também possa arcar. 216 LCF: Você espera resistência? RS: Vai haver resistência certamente. Uma pessoa que eu conheço, um tempo após minha fala da Abrates, me falou por WhatsApp que considerou minha atitude vitimista. Perguntei em que parte. Pensei que tivesse sido quando eu me emocionei ao comentar que nunca tinha feito intercâmbio. Em uma situação normal eu jamais teria chorado ao falar sobre isso, mas a oportunidade de falar a meus colegas de profissão mexeu muito comigo. Mas, não, ela disse eu fui vitimista quando mostrei os dados e a história. Respondi que os fatos, as estatísticas e a história são comprovados e que se ela não foi capaz de perceber como as pessoas negras são afetadas por eles até hoje é melhor nem continuarmos a conversa. Em seguida, ela me acusou de ser oportunista, que eu estava querendo me promover e entrar no mercado por causa da minha fala. Felizmente sei que me estabelecer é uma questão de tempo e que tenho condições de continuar a desenvolver minhas habilidades. Agora, para as outras pessoas negras como eu que ainda consideram a tradução e a interpretação um sonho, são essas as pessoas que precisam de ajuda. Pessoalmente, estou encaminhada. Em outra situação, o nome Abrates Afro foi criticado por uma colega negra. Ela mesma relata sofrer preconceito de colegas brancos, afirmando que os colegas a tratam como se fosse “empregada doméstica”. Na opinião dela, o nome Afro geraria mais divisão e seria melhor algo como Abrates Diversidade. Infelizmente, penso que um nome desses apenas tapa o 2 Interessados em apoiar o Programa Abrates Afro, entrar em contato com a entrevistada pelo email ranemoraissouza@hotmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 sol com a peneira. Pois, o termo afro reconhece a validade histórico-social do termo raça – diferentemente de reconhecer a existência de raças humanas – e valoriza nossa ancestralidade. LCF: Apesar desse relato de resistência, soube que sua fala foi muito bem recebida. Quais foram os pontos positivos? RS: De fato, conversei com outras pessoas que assistiram que me disseram que gostaram muito. Uma colega de BH disse: “Mesmo para uma pessoa branca que se tenta ter uma atitude progressista não foi fácil ouvir aquilo”. Para mim, também não foi fácil falar. LCF: Ainda em relação à Abrates Afro, quando você fala que nunca fez intercâmbio eu percebo sua dor, mesmo porque praticamente todos nossos colegas intérpretes tiveram alguma experiência no exterior, em muitos casos quando jovens. Essa oportunidade está muito distante da população negra. Assim, como atrair negros para a profissão se não tiverem a oportunidade de estudar uma língua estrangeira? RS: Uma das barreiras que os negros enfrentam é de fato a falta de acesso. Falta de acesso às coisas básicas em muitos casos. Para evidenciar as barreiras, na minha fala na Abrates fiz o jogo do privilégio antes de apresentar os números, pois os números são frios. Como eu sabia que a plateia que ia me ouvir seria 90% branca, adaptei o jogo do privilégio e pedi que dessem um passo a frente ou um passo atrás a cada comando. O jogo completo aborda questões de gênero, econômicas, raciais e mais. Fiz apenas o recorte racial com dez voluntários e apenas 20 comandos em vez dos 50 originais. Dos 20 comandos, 10 seriam para dar um passo a frente e 10 um passo atrás. Antes de começar, dentre os voluntários, pedi que pelo menos dois fossem pessoas negras. Durante o jogo, uma colega do rio, neta de político, dos 10 comandos de um passo a frente, deu 10 e dos 10 comandos de um passo atrás, não deu nenhum. Entre os comandos estavam: se você cresceu numa casa com uma biblioteca com mais de 50 livros, dê um passo a frente; se você cresceu em uma casa de um cômodo, dê um passo atrás; se você ganhou viagens ou intercâmbios de presente da sua família, dê um passo a frente. Neste último, todos os voluntários brancos deram um passo a frente. LCF: Nenhum dos negros deu passo a frente? RS: Um deles deu, o outro não. Outros comandos foram: se você pode contar com a ajuda da sua família no caso de dificuldade financeira, dê um passo a frente; se você já ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 217 passou por uma situação de discriminação no trabalho em que fizeram piada do seu cabelo ou da sua pele, dê um passo atrás. Neste último comando, só os negros deram um passo atrás. No meio do jogo, Maria Paula estava emocionada. LCF: Havia negros na plateia? RS: Cheguei a brincar com este assunto. Falei que iríamos fazer o teste do pescoço. Coloquei a foto do congresso da Abrates de 2013 que foi em Belo Horizonte. A única negra na plateia era eu. Em seguida, convidei todos a olhar para a plateia de 2018 e perguntei quem se considerava negro. Cerca de três pessoas levantaram a mão. Foram os intérpretes de LIBRAS. Entre os intérpretes de LIBRAS, os negros são maioria segundo um pequisador da Universidade Federal de Pelotas. LCF: Imagino que por se tratar de um congresso de uma associação profissional não houvesse tantos acadêmicos na plateia. Havia? 218 RS: Havia alguns, mas não eram maioria. Interessantemente, um pesquisador do Mato Grosso mencionou comigo que sentiu falta de teoria crítica na minha fala. Como eu conhecia bem o perfil do público, respondi que precisava criar uma estratégia pra atingir o púbico que estava lá e que não seria adequado usar termos como feminismo marxista ou feminismo interseccional, por exemplo. Ou ainda falar algo como “a luta contra o racismo é estratégia da luta contra o capitalismo”. As pessoas não iriam me ouvir e iriam desligar na hora. Já o jogo do privilégio toca todos em sua experiência e a partir dela cada um consegue perceber a diferença, ou seja, o racismo que não sofrem. LCF: Uma última pergunta em relação à Abrates Afro. Trata-se de uma iniciativa só para intérpretes negros ou intérpretes brancos que apoiam a causa podem fazer parte? RS. No momento, a maioria das pessoas que demonstraram interesse em apoiar a iniciativa são pessoas brancas e agradeço todas. Porém, é importante que o protagonismo seja e permaneça com os negros. LCF: Fica então o convite às pessoas que leram esta entrevista e que tenham condições de apoiar a iniciativa e/ou se identificam com ela entrarem em contato com você. RS: Reitero o convite. É um caminho bom porque, a identificação identitária é algo muito pessoal. Não são todas as pessoas de pele parda ou preta que se identificam como negros, portanto em relação aos colegas a Abrates Afro não irá atrás de colegas negros, mas estará de portas abertas a recebê-los. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 LCF: Rane, preciso te agradecer pela disponibilidade. Esta entrevista está acontecendo no intervalo de um curso que você veio fazer em São Paulo. Portanto, para irmos encerrando a entrevista, pergunto com que intuito você busca fazer cursos na área da interpretação? RS: Na área da tradução e da interpretação há muitas pessoas que se tornam profissionais por acaso, sem formação na área e passam a carreira sem ter feito nenhum curso formal. Entretanto, quando você é negro as pessoas duvidam que você é capaz de fazer um bom trabalho. Isso vale para qualquer área. É preciso estar muito bem qualificado para fazer aquilo a que você se propõe. Só neste ano de 2018, fiz o HIIT no início do ano e o EPIC agora. No ano que vem, pretendo fazer o HIIT novamente e explorar outros cursos também. LCF: A profissionalização e a formação continuada seriam ‘estratégias de sobrevivência’? RS: Sim. Quer na área acadêmica ou não. São importantíssimas porque um profissional negro em qualquer área é mais questionado e precisa demonstrar todos os dias que é competente. A formação vai além da questão da inserção no mercado. Trata-se de uma estratégia de sobrevivência sim, pois todos os dias da sua vida profissional vão duvidar de você por você ser negro. 219 Palavras finais É preciso trazer à tona algo que a versão escrita desta entrevista não capta. Não foram recuperadas as sutilezas racistas do contexto da entrevista, feita no café da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, São Paulo. Os olhares vindos das demais mesas, os olhares das pessoas na fila do café e sobretudo os olhares lancinantes projetados sobre Rane pelos transeuntes na Avenida Paulista enquanto andávamos até a Rua Pamplona. Todos os olhares acusavam que ela não pertencia àquela geografia. Todos os olhares declaravam o apartheid que existe no Brasil. Se há limitações territoriais, se há espaços em que determinados grupos não frequentam ou não são bem-vindos, – pouco importa se se trata de uma política oficial explícita ou implícita –, há segregação, há racismo, há apartheid. Não é mais possível “tapar o sol com a peneira”. Referências Atlas da Violência. (2018). Rio de Janeiro. Recuperao de http://www.ipea.gov.br/portal/ images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 206-221 Carvalho Fonseca, L. (2017). Ser intérprete e negro no Brasil e na Venezuela: entrevista com Amaury Williams de Castro. Translatio, 1(13), 348–369. Recuperado de https:// seer.ufrgs.br/translatio/article/view/73309/42053 Carvalho Fonseca, L. (2018). Being a black woman conference interpreter in Brazil: an interview with Shanta Walker. Tradução Em Revista, 24(1), 1–16. Recuperado de https://doi.org/10.17771/PUCRio.TradRev.34550 Chade, J. (2015, March 6). Brasil tem menos mulheres no Legislativo que Oriente Médio. Estadão. Recuperado de https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,brasiltem-menos-mulheres-no-legislativo-que-oriente-medio,1645699 Dorali, I. (2018). 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While I am less familiar than I would like to be with Translation Studies a field of formal study, I have thought a great deal about issues of translation within my own work. So, my answers reflect my sense of how issues of translation play out in my intellectual production. [D.S-R.]: What are the dynamics of sexism and racism through language? 222 [P. H. C.]: Sexism and racism are not just ideologies but also encompass tangible social practices. As systems of power, they organize unjust social institutions and practices. In my own work, I return to the idea of community as one important site that organizes the connections between unjust social institutions and the ideological discourses that reproduce them. Community can also serve as an important site for generating antiracist and feminist analyses of social injustice. In this sense, community is a specific site where language as a set of ideas and of communicative practices occurs. When it comes to communication and language, I further distinguish between a linguistic community and an interpretive community. A linguistic community is often seen a site of social equality where speaking a shared language ostensibly fosters similar values, ideas and a common worldview. This understanding of language itself as the bedrock linguistic communities underlies commonsense understandings of translation. Here one need only translate Portuguese into English or vice versa for Patrícia Hill Collins Distinguished University Professor of Sociology Emerita at the University of Maryland, College Park. Her award-winning books include Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment (1990, 2000) and Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the New Racism (2004). Her most recent book Intersectionality as Critical Social Theory is scheduled to be published in 2019. Dennys Silva-Reis PhD in Literature from the Universidade de Brasília (UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 222-228 the members of each linguistic community to access the worldview of the other. This perspective overlooks the political implications of the terms of belonging to a particular linguistic community. In this sense, linguistic communities are apolitical – the power dynamics that affect all aspects of communication fall from view. It is adequate to plug ideas into Google Translate and see what comes out of the other end. In contrast, my sense of an interpretive community makes power relations more central to the act of communication and translation. Power relations within an interpretive community regulate who gets to speak, who is listened to and what knowledge comes to represent that community to outsiders. Power relations shape who is silenced and who is heard. Racism and sexism work within particular linguistic communities, generating patterns of silencing and being heard that contribute to social relations of racism and sexism. Systems of power such as these turn apolitical linguistic communities into interpretive communities with differential degrees of power to speak on behalf of or represent a worldview. For example, in the United States, Black people, Latinos/as and indigenous peoples who oppose racism are routinely silenced. Similarly, when women speak out against sexual violence and sexual assault, they are disbelieved and often ridiculed. The large number of Englishspeakers in the U.S. context may constitute a linguistic community, but it is one where racism and sexism permeate values, ideas and worldview of what it means to belong to the American interpretive community. Globally, the dominance of English as the language of scholarship means that authors like me who speak, write and publish in English have access to being heard while equally if not more talented people whose work has not yet been translated into English remain relatively unknown. In this sense, power relations among interpretive communities, with linguistic communities as the public face of an interpretive community, map on to social relations of racism, sexism and the like. Within the U.S., for example, Black people, Latinos/as, and indigenous peoples constitute interpretive communities that have long advanced counter discourses to the dominant American ideology. Relationships among interpretive communities influence why certain knowledges are legitimated whereas others remain unknown. Whether academic disciplines or nation-states, power relations shape similar patterns of silencing and being heard. [D.S-R.]: Do you see the canonical texts of the human sciences as inherently sexist and racist? Or have they simply been used that way? [P. H. C.]: Canonical texts within the human sciences illustrate these patterns of varying interpretive communities exercising different degrees of power in shaping what counts as knowledge. In this case, the texts are artifacts of decisions that were made at the time they were initially created and accepted, as well as the history of varying interpretive communities using them in particular ways for particular purposes. If the original written texts are sexist and racist, either via their clearly identifiable assumptions concerning race and gender or via framing assumptions that simply don’t ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 222-228 223 see race and gender as important, subsequent interpretation of those texts reinforces these ideas. For example, the canonical texts of classical sociological theory, my own discipline, simply position race and gender outside the field itself, thereby seeing them as secondary concerns. Instead, when it comes to social inequality, class constitutes the central object of investigation. In this sense, canonical texts can be racist and sexist without appearing to be so at all. 224 Here the idea of interpretive communities becomes especially significant. Over time, if canonical knowledge becomes decontextualized and travels as a takenfor-granted truth within a field of study, it sets the boundaries for the field. In this sense, knowledge of and acceptance of canonical texts serve as gatekeepers for who can enter that field and who cannot. Often the work performed by canonical texts in reproducing racism and sexism within a field are invisible. Canonical texts often have a lifespan with an influence that stretches far beyond their initial intent. Such texts become canonical, not exclusively due to their content, but through the power of dedicated interpretive communities (disciplines) to legitimate them as canonical texts. When it comes to racism and sexism, in this context, the question is less whether we should read canonical texts in our respective fields but how we should read them. I find much of value in canonical texts, if I read them through the lens of a sociology of knowledge that is aware of their production and consumption. I can take what’s useful and leave the rest behind. Sometimes, it is useful to criticize canonical texts, identifying the negative effects they have had in how people have taken up their ideas. In other cases, it’s enough to question their utility for thinking through racism and sexism. It honors the intellectual labor of an author to take his/her ideas seriously. But doing so requires attending to the political economy of how a text is produced. The fundamental question for any author is this -- who is your audience? As a scholar of racism and sexism who also is an author, it has been important for me to know my audiences and to distinguish among them. I read the canonical texts in my field in light of their authors and intended audiences; it matters when such texts were written, by whom, and in what political contexts. Moreover, I always give other authors the benefit of the doubt to see how effectively their texts achieve their stated purposes. Obviously, if I disagree with an author’s expressed aim, e.g., a right-wing treatise on Black women’s inferiority, I don’t give that the benefit of the doubt. Instead, I analyze such texts to see how the author constructed his/her argument and the evidence that he/she used in support of it. This gives me insight into how to anticipate and counter such arguments, or better yet, write my own arguments in ways that already refute such work. But we also must read canonical texts that we like, critically. When it comes to canonical texts that were created under colonialism, I think we need to think outside the canonical boxes of tradition and become authors of new traditions. For example, what will be the canonical texts of Black feminism? This field is still so new, both in the United States and in a global context that its ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 222-228 contributions to anti-racist and anti-sexist inquiry and practice continue to unfold. Will such texts be texts in the traditional sense of the word? Will they be visual or oral? Can a You Tube video serve as a canonical text? The rapidly changing, networked communications framework of the web is a game changer for the ability of interpretive communities to police the boundaries of fields of study. In this sense, when it comes to racism and sexism, the days of celebrating canonical texts may be ending. [D.S-R.]: What is your sense of how sexism and racism are organized and operate in the translator/interpreter profession field? [P. H. C.]: I’m not sure I can speak directly to the specific issues in the field of Translation Studies. But I do think that issues that I face in doing intellectual work, especially theoretical work, illustrate how racism and sexism inform broader issues of interpretation. Because I move among so many different interpretive communities, I find myself constantly thinking about how best to say what I want to say within each community as well as what they might say to one another if direct lines of communication were available. In essence, for me, theoretical work involves constantly negotiating one set of ideas in terms of another, making sure that I am accountable to multiple communities for translations that make my work possible. For example, when it comes to Black feminist thought, since traveling to Brazil, I ask myself how I might understand and interpret the similarities and differences between Black feminism in Brazil, in the U.S., and throughout the African Diaspora? I see my scholarship itself as a dual act of translation and interpretation. Because I am an African American woman with a particular set of educational, professional and life experiences, my work on Black women reflects this perpetual moving among interpretive communities of academia, family, and living as a Black woman in U.S. society. I see my theoretical work in Black Feminist Thought and in Black Sexual Politics as one translating one form of language into another, from everyday speech into a specialized academic language and vice versa. My book On Intellectual Activism gathers together many of the same ideas that I examine in my academic publications, making not just the ideas themselves accessible outside specialized academic language, but also the backstage thinking about doing this kind of intellectual work. Thinking of my work as translation and interpretation among multiple interpretive communities has made two things clear. First, not all ideas translate. Some are actually untranslatable because they come from and are meaningful within particular interpretive communities. Efforts to “translate” indigenous worldviews into terms that are understandable within Western scholarship often produce caricatures of the holistic philosophies of indigenous peoples. Translating the terms of a nonWestern worldview into a Western one continues the epistemic violence that has been part of colonization. We must realize the limits of translation. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 222-228 225 Second, power relations influence what is seen as being worth translating and what simply doesn’t exist because it hasn’t been translated. Basically, some topics never come into public view because more powerful groups are simply uninterested in seeing such ideas translated. For years, there was little interest in the world view of African American women, primarily because Black women were assumed to have little of value worth saying. Fortunately, an on-going effort of Black women to speak the truth of Black women’s lives changed that situation. [D.S-R.]: How might translation contribute to the dissemination of nonhegemonic feminist and anti-racist theories? [P. H. C.]: I’m actually more interested in the mechanisms of how we develop nonhegemonic feminist and anti-racist theories than in how we might disseminate theories that emerge from traditional ways of doing theory or theorizing. Within Western cultures, theory is highly rationed, available to a select few who manage to acquire the literacy and credentials that enable them to get theory jobs. And once within those jobs, disciplinary conventions limit what one can say and do. This is a pragmatic description of theory, one that must be taken into account with any efforts to disseminate theory that is created under these social conditions. At the same time, academic gatekeeping is eroding, creating new possibilities for more democratic ways of theorizing whereby more ideas actually get to the theory table. 226 That’s a project that has been at the center of my attention for some time. In your questions, you quite rightly distinguish between racism and sexism. I think that we need that kind of analytical clarity, especially in analyzing how racism and sexism have been organized within different national settings. To me, they are not the same, and taking the time to learn about each is invaluable. Moving too quickly to an imagined alliance between racism and sexism under the banner of a bigger concept that erases these differences, e.g., social justice, not only is inaccurate but can be politically ineffective. Translation studies maintain the integrity of these distinctions by requiring that scholar-activists of racism and sexism do the work of translating their ideas for audiences that typically are not their primary concern. It’s different writing feminism for an assumed audience of white women than feminism for Black men. How differently anti-racist work sounds when it is written for Black audiences and white ones. Doing the work of translation sees racism and sexism as interconnected and independent, creating a pathway for seeing anti-racism and feminism as connected as well. My work on intersectionality is very much an act of translation. I see intersectionality as a critical social theory that is less about dissemination of what has already been decided – this is the aforementioned canonical knowledge that merits criticism – but a collaborative project of constructing knowledge across differences. Translation highlight similarities but it also identifies important differences. As ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 222-228 a knowledge project, intersectionality inherently rests on the foundation of good translations. I’ve just finished a book titled Intersectionality as Critical Social Theory (Duke University Press, 2019) that, while I do not make translation an explicit theme, my argument rests on translation as a process for doing such theory. I spend considerable time discussing dialogical engagement as essential for building such a critical social theory that is adequate for addressing racism, sexism and broader forms of oppression. And dialogical engagement is the bedrock of translation. [D.S-R.]: In what ways do you see the act of translation as feminist and antiracist activism? [P. H. C.]: Translation is never politically neutral. It’s one thing to translate the language and ideas of dominant groups into terms that subordinated groups can understand. This kind of translation is accepted as business as usual. It assumes that the ideas of dominant groups are inherently worthwhile, and that translating them into terms that all others can understand is fundamentally a good idea. Activism here consists of translating documents so that Black women and similarly subordinated groups can know their rights, for example, the legal protections that may be available to them in law. Teaching can be a terrain of activism, translating texts that may not be available to one’s students or helping students understand the specialized language of academia. Because so much of Western knowledge is inherently sexist and racist, working with the assumptions that underlie such knowledge and translating their canonical texts into a language that enable subordinated people to read and critically assess them can be an act of anti-racist and feminist activism. Yet what about translating from the other side of power, namely, the ideas, analyses and knowledge produced by subordinated groups? Here, translation and activism require a different set of translation skills that are attentive to the political costs and benefits of translation. Many of us who aim to speak to, for and with people who are subordinated within intersecting systems of power engage in a more sophisticated form of translation that is context specific. Translating the ideas of women, Black people and indigenous peoples into language that dominant groups can understand may help our individual careers in the academy. But at what cost to ourselves and to the people whose ideas that we translate? The risk we run is that making certain anti-racist and feminist knowledge public may make it easier for dominant groups to manage subordinated groups. What appears to be translation as activism to make subordinated people more respectable can be a form of selling out. I see much of my work as situated in this in-between space of translating dominant discourse into a form that is useful for social justice projects and translating the ideas of subordinate groups for one another so they can better communicate with one another. One of the more difficult tasks is to develop self-defined knowledge that enables Black women and people from similarly subordinated groups to speak with ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 222-228 227 one another. Just as there is no one essential Black women who is typical of all, there is no one message that reflects the diverse experiences of Black women. Creating these spaces of safe and free speech, spaces where translation need not labor across differences in power is hard. In writing Black Feminist Thought, I had to decide how much I could say about Black women’s lives in public, and what should be keep private. Sometimes secrecy is essential not just to feminist and anti-racist activism, but to the very survival of Black women. It makes no sense to publicize Black women’s oppositional knowledge if the increased visibility granted such knowledge increases Black women’s vulnerability. Such public translations may feel activist, but they can harm Black women. It is difficult to remove assumptions of whiteness, masculinity, wealth and compulsory heterosexuality that are so central to Western discourse from honest conversations among ourselves. But we must try, hoping that by honing sophisticated skills of translation, we can craft interpretive communities that empower us. 228 ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 222-228 Pensamento feminista negro e estudos da tradução – Entrevista com Patrícia Hill Collins1 Dennys Silva-Reis [DSR]: Sua contribuição seria muito importante para os estudos da tradução no Brasil e um estímulo para nosso trabalho sobre antirracismo na academia e no campo da tradução. Acredito que suas reflexões sobre esses temas seriam muito frutíferas em nossos debates sobre eles, visto que poucas mulheres negras acadêmicas falam desses assuntos. Patricia Hill Collins [PHC]: Obrigada por este convite para discutir de que modo aspectos do meu trabalho poderiam contribuir para os estudos da tradução. Embora eu esteja menos familiarizada do que gostaria com os estudos da tradução, tenho pensado muito sobre questões de tradução dentro do meu próprio trabalho. Assim, minhas respostas refletem minha percepção de como questões de tradução afetam minha produção intelectual. [DSR]: Quais são as dinâmicas do sexismo e do racismo por meio da linguagem? [PHC]: O sexismo e o racismo não são apenas ideologias, mas também abarcam práticas sociais tangíveis. Como sistemas de poder, eles organizam instituições e práticas sociais injustas. Em meu trabalho, volto à ideia de comunidade como um locus importante que organiza as conexões entre instituições sociais injustas e os discursos ideológicos que as reproduzem. A comunidade também pode servir de locus imporante para gerar análises antirracistas e feministas da injustiça social. Neste sentido, a comunidade é um locus específico onde ocorre a linguagem como um conjunto de ideias e de páticas comunicativas. Quando se trata de comunicação e linguagem, faço a distinção posterior entre uma comunidade linguística e uma comunidade interpretativa. Uma comunidade linguística é frequentemente vista como um lugar de igualdadee social onde falar uma língua compartilhada encoraja ostensivamente valores e ideias semelhantes e uma visão de mundo comum. Esse entendimento da língua mesma como o fundamento das comunidades linguísticas subjaz às ideias do senso comum sobre tradução. Aqui, basta traduzir do português para o inglês ou vice-versa para que os membros de cada comunidade linguística tenham acesso à visão de mundo dos outros. Essa perspectiva 1 Tradução de Marcos Bagno (UnB). E-mail: bagno.marcos@gmail.com Patrícia Hill Collins Professora Emérita da Universidade de Maryland, College Park. Entre seus livros premiados se incluem Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment (1990, 2000) e Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the New Racism (2004). Seu livro mais recente, Intersectionality as Critical Social Theory está programado para publicação em 2019. Dennys Silva-Reis Doutor em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 229-235 229 230 negligencia as implicações políticas do que significa pertencer a uma comunidade linguística particular. Nesse sentido, as comunidades linguísticas são apolíticas – as dinâmicas de poder que afetam todos os aspectos da comunicação desaparecem. Basta introduzir ideias no Google Translate e ver o que sai do outro lado. Em contrapartida, minha concepção de comunidade interpretativa torna as relações de poder mais centrais para o ato de comunicação e tradução. As relações de poder dentro de uma comunidade interpretativa regulam quem pode falar, quem é ouvido e que conhecimento passa a representar essa comunidade para os forasteiros. As relações de poder moldam quem é silenciado e quem é ouvido. O racismo e o sexismo operam dentro de comunidades linguísticas particulares, gerando padrões de silenciamento e de escuta que contribuem para as relações sociais de racismo e sexismo. Sistemas de poder como esses transformam comunidades linguísticas em comunidades interpretativas com graus diferenciados de poder falar em nome de uma visão de mundo ou representá-la. Por exemplo, nos Estados Unidos, as pessoas negras, latinas e indígenas que se opõem ao racismo são rotineiramente silenciadas. De igual modo, quando as mulheres falam contra a violência sexual e o assédio sexual, elas são desacreditadas e frequentemente ridicularizadas. O grande número de falantes de inglês no contexto dos Estados Unidos pode constituir uma comunidade linguística, mas é uma comunidade em que o racismo e o sexismo permeiam valores, ideias e visões de mundo sobre o que significa pertencer à comunidade interpretativa estadunidense. Globalmente, a dominância do inglês como a língua da academia significa que autores como eu que falam, escrevem e publicam em inglês podem ser ouvidos, ao passo que pessoas igualmente talentosas, senão mais, cujo trabalho ainda não foi traduzido em inglês permanecem relativamente desconhecidas. Nesse sentido, as relações de poder entre comunidades interpretativas, com comunidades linguísticas como a face pública de uma comunidade interpretativa, configuram as relações sociais de racismo, sexismo etc. Dentro dos Estados Unidos, por exemplo, pessoas negras, latinas e indígenas constituem comunidades interpretativas que há muito tempo formulam contradiscursos à ideologia estadunidense dominante. Os relacionamentos entre comunidades interpretativas influenciam por que certos conhecimentos são legitimados enquanto outros permanecem desconhecidos. Seja em disciplinas acadêmicas ou em Estados-nações, as relações de poder moldam padrões semelhantes de ser silenciado e de ser escutado. [DSR]: Você considera os textos canônicos das ciências humanas como inerentemente sexistas ou racistas? Ou eles simplesmente têm sido usados desse modo? [PHC]: Os textos canônicos dentro das ciências humanas ilustram esses padrões de diversas comunidades interpretativas exercendo diferentes graus de poder na formatação daquilo que conta como conhecimento. Nesse caso, os textos são artefatos de decisões que foram tomadas na época em que eles foram criados e aceitos, assim como a história das diversas comunidades interpretativas que os usam de modos ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 229-235 particulares para propósitos particulares. Se os textos escritos originais são sexistas e racistas, seja por seus pressupostos claramente identificáveis acerca de raça e gênero, seja ao configurar pressupostos que simplesmente não veem a raça e o gênero como importantes, a interpretação subsequente desses textos reforçam essas ideias. Por exemplo, os textos canônicos da teoria sociológica clássica, minha própria disciplina, simplesmente colocam raça e gênero fora do próprio campo, vendo-os assim como preocupações secundárias. Ora, quando se trata de desigualdade social, a classe constitui o objeto central de investigação. Nesse sentido, os textos canônicos podem ser racistas e sexistas sem aparentar sê-lo. Aqui a ideia de comunidades interpretativas se torna especialmente importante. Com o tempo, se o conhecimento canônico se torna descontextualizado e viaja como uma verdade tomada como ponto pacífico dentro de um campo de estudo, ele traça as fronteiras para o campo. Nesse sentido, o conhecimento e a aceitação dos textos canônicos servem de sentinelas cuidando de quem pode entrar no campo e quem não pode. Frequentemente, é invisível o trabalho desempenhado por textos canônicos na reprodução do racismo e do sexismo dentro de um campo. Textos canônicos muitas vezes têm um tempo de vida com uma influência que se desdobra para muito além de suas intenções iniciais. Esses textos se tornam canônicos, não exclusivamente devido a seu conteúdo, mas através do poder de comunidades interpretativas (disciplinas) dedicadas a legitimá-los como textos canônicos. Quando se trata de racismo e sexismo, neste contexto, a questão não é tanto se devemos ler os textos canônicos em nossos respectivos campos mas como devemos lê-los. Eu encontro muito valor em textos canônicos se os leio através de lentes de uma sociologia do conhecimento que é consciente da produção e do consumo desses textos. Posso tomar o que é útil e deixar o resto para trás. Às vezes, é útil criticar textos canônicos, identificar os efeitos negativos que têm tido no modo como as pessoas têm assumido suas ideias. Em outros casos, é suficiente questionar sua utilidade para a reflexão sobre o racismo e o sexismo. Honramos o trabalho intelectual de um autor/a levando suas ideias a sério. Mas fazer isso exige levar em conta a economia política de como um texto é produzido. A questão fundamental para qualquer autor/a é: quem é seu público? Como uma estudiosa do racismo e do sexismo que também é autora, tem sido importante para mim conhecer meus públicos e distinguir entre eles. Leio os textos canônicos do meu campo à luz de seus autores e de seus públicos visados; é importante saber quando tais textos foram escritos, por quem, e em que contextos políticos. Além disso, sempre concedo a outros autores o benefício da dúvida para ver como efetivamente seus textos alcançaram seus propósitos declarados. Obviamente, se discordo do objeto expresso de um autor, por exemplo, um tratado de direita sobre a inferioridade das mulheres negras, não lhe concedo o benefício da dúvida. Ao contrário, analiso esses textos para ver como o/a autor/a construiu seu argumento e as evidências que usou para apoiá-lo. Isso me dá insight sobre como antecipar e me contrapor a tais argumentos ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 229-235 231 ou, melhor ainda, escrever meus próprios argumentos de modo que já refutem tal obra. Mas também devemos ler os textos canônicos que apreciamos, criticamente. Quando se trata de textos canônicos que foram criados sob o colonialismo, penso que precisamos pensar fora das caixas coloniais da tradição e nos tornar autoras de novas tradições. Por exemplo, quais serão os textos canônicos do feminismo negro? Esse campo ainda é tão novo, tanto nos Estados Unidos quanto num contexto global, que suas contribuições à pesquisa e à prática antirracista e antissexista continuam a se desdobrar. Esses textos serão textos no sentido tradicional da palavra? A rapidez da mudança das comunicações em rede no quadro da web é um desafio para a capacidade das comunidades interpretativas de patrulhar as fronteiras dos campos de estudo. Nesse sentido, quando se trata de racismo e sexismo, os dias de celebração de textos canônicos podem estar acabando. [DSR]: Qual a sua percepção de como o sexismo e o racismo se organizam e operam no campo profissional da tradução/interpretação? 232 [PHC]: Não tenho certeza de poder falar diretamente das questões específicas no campo dos estudos da tradução. Mas penso que questões que enfrento ao fazer meu trabalho intelectual, especialmente o teórico, ilustram de que modo o racismo e o sexismo configuram questões mais amplas de interpretação. Pelo fato de me movimentar entre tantas comunidades interpretativas diferentes, frequentemente me vejo pensando sobre qual o melhor modo de dizer o que quero dizer dentro de cada comunidade, bem como o que elas poderiam dizer umas às outras se tivessem à sua disposição linhas diretas de comunicação. Essencialmente, para mim, o trabalho teórico envolve negociar constantemente um conjunto de ideias em termos de outro, garantindo que eu possa responder a múltiplas comunidades pelas traduções que tornam meu trabalho possível. Por exemplo, quando se trata de pensamento feminista negro, desde que viajei ao Brasil, me pegunto como eu poderia entender e interpretar as semelhanças e diferenças entre o feminismo negro no Brasil, nos Estados Unidos e através da diáspora africana. Vejo meu próprio trabalho acadêmico como um ato duplo de tradução e interpretação. Pelo fato de ser uma mulher afro-americana com um conjunto particular de experiências educacionais, profissionais e de vida, meu trabalho sobre mulheres negras reflete esse movimento perpétuo entre comunidades interpretativas da academia, da família e da vida como uma mulher negra na sociedade estadunidense. Vejo meu trabalho teórico em Black Feminist Thought e em Black Sexual Politics como uma tradução de uma forma de linguagem em outra, da fala cotidiana em uma linguagem acadêmica especializada e vice-versa. Meu livro On Intellectual Activism reúne várias das mesmas ideias que examino em minhas publicações acadêmicas, tornando acessíveis não só as próprias ideias para fora da linguagem acadêmica especializada, mas também os bastidores de como fazer esse tipo de trabalho intelectual. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 229-235 Pensar sobre meu trabalho como tradução e interpretação entre múltiplas comunidades interpretativas deixou claras duas coisas. Primeiro, nem todas as ideias se traduzem. Algumas são de fato intraduzíveis porque provêm de comunidades interpretativas particulares e são significativas dentro delas. Os esforços por “traduzir” visões de mundo indígenas em termos que são compreensíveis dentro do pensamento ocidental frequentemente produzem caricaturas das filosofias holísticas dos povos indígenas. Traduzir os termos de uma visão de mundo não-ocidental para uma visão de mundo ocidental faz prosseguir a violência epistêmica que tem sido parte da colonização. Precisamos nos dar conta dos limites da tradução. Em segundo lugar, as relações de poder influenciam o que é visto como digno de se traduzir e o que simplesmente não existe porque não foi traduzido. Basicamente, alguns tópicos nunca chegam aos olhos do público porque grupos mais poderosos simplesmente não têm interesse em ver tais ideias traduzidas. Durante anos, houve pouco interesse na visão de mundo das mulheres afro-americanas, principalmente porque as mulheres negras eram consideradas como tendo pouca coisa de valor a dizer. Felizmente, um esforço permanente das mulheres negras de falar a verdade sobre as vidas das mulheres negras mudou essa situação. [DSR]: De que modo a tradução poderia contribuir para a disseminação de teorias feministas e antirracistas não hegemônicas? [PHC]: Eu de fato estou mais interessada nos mecanismos do modo como desenvolvemos teorias feministas e antirracistas não hegemônicas do que em como poderíamos disseminar teorias que emergem de modos tradicionais de fazer teoria ou teorização. Dentro das culturais ocidentais, a teoria é altamente racionada, disponível para uns poucos seletos que conseguem adqurir o letramento e as credenciais que lhes permitem obter empregos de teóricos. E uma vez dentro desses empregos, as convenções disciplinares limitam o que alguém pode dizer e fazer. Essa é uma descrição pragmática da teoria, que precisa ser levada em conta junto com quaisquer esforços por disseminar teorias criadas sob tais condições sociais. Ao mesmo tempo, a vigilância acadêmica está se erodindo, criando novas possibilidades para modos mais democráticos de teorizar por meio dos quais mais ideias realmente chegam à mesa teórica. É um projeto que tem estado no centro da minha atenção há algum tempo. Nas suas perguntas, você distingue com razão racismo de sexismo. Creio que precisamos desse tipo de clareza analítica, especialmente ao analisar como o racismo e o sexismo têm sido organizados dentro de contextos nacionais diferentes. Para mim, eles não são a mesma coisa, e é importantíssimo dedicar tempo para aprender sobre cada um. Mover-se depressa demais rumo a uma aliança imaginária entre racismo e sexisto sob a bandeira de um conceito maior que apaga essas diferenças, por exemplo, a justiça social, não só é errado como pode ser politicamente ineficaz. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 229-235 233 234 Os estudos da tradução mantêm a integridade dessas distinções ao exigir que os atividades acadêmicos do racismo e do sexismo façam o trabalho de traduzir suas ideias para públicos que tipicamente não são seu alvo principal. É diferente escrever sobre feminismo para uma suposta plateia de mulheres brancas do que sobre feminismo para homens negros. Como soa diferente o trabalho antirracista quando escrito para públicos negros ou brancos. Fazer o trabalho de tradução é ver o racismo e o sexismo como interconectados e independentes, criando um caminho para ver o antirracismo e o feminismo como igualmente interconectados. Meu trabalho sobre interseccionalidade é em boa medida um ato de tradução. Vejo a interseccionalidade como uma teoria social crítica que tem menos a ver com disseminação do que já tem sido decidido – isto é, o conhecimento canônico mencionado antes, que merece crítica – do que com um projeto colaborativo de construção de conhecimento através das diferenças. A tradução enfatiza as semelhanças, mas também identifica diferenças importantes. Como projeto de conhecimento, a interseccionalidade se apoia inerentemente nas bases das boas traduções. Acabo de concluir um livro intitulado Intersectionality as Critical Social Theory (Duke University Press, 2019) no qual, embora não faça da tradução um tema explícito, meu argumento se fundamenta na tradução como um processo para fazer tal teoria. Dedico um tempo considerável à discussão do engajamento dialógico como essencial para construir essa teoria social crítica que é adequada para tratar do racismo, do sexismo e de formas mais amplas de opressão. E o engajamento dialógico é o alicerce da tradução. [DSR]: Em que medida vê o ato de tradução como ativismo feminista e antirracista? [PHC]: A tradução nunca é politicamente neutra. Uma coisa é traduzir a língua e as ideias de grupos dominantes em termos que os grupos subordinados possam entender. Esse tipo de tradução é aceito como uma prática habitual. Ela supõe que as ideias de grupos dominantes têm valor inerente e que traduzi-las em termos que outros possam compreender é fundamentalmente uma boa ideia. O ativismo aqui consiste em traduzir documentos de modo que mulheres negras e grupos igualmente subordinados possam conhecer seus direitos, por exemplo, as proteções legais que podem estar à sua disposição nas leis. O ensino pode ser um terreno para o ativismo, traduzindo-se textos que podem não estar disponíveis aos seus estudantes ou ajudando os estudantes a entender a linguagem especializada da academia. Dado que grande parte do conhecimento ocidental é inerentemente sexista e racista, trabalhar com os pressupostos que subjazem a esse conhecimento e traduzir seus textos canônicos numa linguagem que permita às pessoas subordinadas lê-los e avaliá-los criticamente pode ser um ato de ativismo antirracista e feminista. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 229-235 Mas como fica traduzir desde o outro lado do poder, ou seja, as ideias, análises e conhecimentos produzidos por grupos subordinados? Aqui, a tradução e o ativismo exigem um conjunto diferente de habilidades tradutórias que estejam atentas aos custos e benefícios políticos da tradução. Muitos de nós que objetivamos falar para, por e com pessoas que são subordinadas dentro de sistemas de poder interseccionados nos engajamos numa forma mais sofisticada de tradução que é específica ao contexto. Traduzir as ideias das mulheres, das pessoas negras e dos povos indígenas numa linguagem que os grupos dominantes compreendam pode nos ajudar em nossas carreiras acadêmicas. Mas a que custou para nós mesmos e para as pessoas cujas ideias traduzimos? O risco que corremos é o de que tornar público determinado conhecimento antirracista e feminista pode deixar mais fácil para grupos dominantes controlar grupos subordinados. O que parece ser a tradução como ativismo para tornar mais respeitáveis os grupos subodinados pode ser uma forma de entregar de bandeja. Vejo muito do meu trabalho como situado nesse espaço intermédio de traduzir o discurso dominante numa forma que seja útil para os projetos de justiça social e traduzir as ideias de grupos subordinados uns para os outros de modo que possam se comunicar melhor entre si. Uma das tarefas mais difíceis é desenvolver conhecimento autodefinido que permita às mulheres negras e a outras pessoas de grupos igualmente subordinados falar entre si. Assim como não existe nenhuma mulher negra essencial que seja típica de todas, não existe nenhuma mensaem que reflita as experiências diversas das mulheres negras. É difícil criar esses espaços de fala seguros e livres, espaços em que a tradução não precise batalhar através das diferenças de poder. Ao escrever Black Feminist Thought, tive de decidir o quanto poderia dizer em público sobre as vidas das mulheres negras, e o que deveria permanecer privado. Algumas vezes o sigilo é essencial, não só para o ativismo feminista e antirracista, mas para a sobrevivência mesma das mulheres negras. Não faz sentido publicizar o conhecimento contraditório das mulheres negras se a crescente visibilidade concedida a esse conhecimento aumentar a vulnerabilidade das mulheres negras. Se é difícil remover das conversas honestas entre nós mesmas os pressupostos de branquitude, masculinidade, riqueza e heterossexualidade compulsória que são tão centrais no discurso ocidental. Mas devemos tentar, esperando que, refinando técnicas sofisticadas de tradução, possamos moldar comunidades interpretativas que nos empoderem. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 229-235 235 Pensar la Traducción y el Feminismo Negro – Entrevista con Ochy Curiel Dennys Silva-Reis [D.S-R.] ¿Tiene usted alguna experiencia com la práctica de traducción feminista? Ochy Curiel [O.C.] Si. Con Jules Falquet tradujimos los aportes de las feministas materialistas francesas Colette Guillaumin, Paola Tabet y Nicole Claude Mathieu, condensada en el texto El Patriarcado al desnudo, tres feministas materialistas, que salió publicado en el año 2005 a través de la editorial independiente Brecha lésbica. Posteriormente el Grupo Latinoamericano de Formación y Acción Feminista (GLEFAS), colectivo del cual formo parte, tradujo el texto La invención de las mujeres. Una perspectiva africana sobre los discursos occidentales del género” de la nigeriana Oyèrónkẹ ́ Oyěwùmí en el año 2017, a través de nuestra editorial, también independiente, en la frontera. [D.S-R.] ¿Cree que la profesión de traductora e intérprete es sexualizada? ¿Cuales serían las causas y las consecuencias de ello? 236 [O.C.] Cómo sucede en toda la sociedad occidental, las relaciones sociales son generalmente sexistas, racistas y clasistas. Tiene que ver con las jerarquías que se han construido desde los inicios de la colonización que continua en la colonialidad contemporánea y la traducción no escapa de esto. Es parte del sistema modero/ colonial. Los conocimientos más validados son los que producen los hombres blancos con privilegios de clase, aunque también algunas mujeres con estos privilegios también. Eso significa que esos conocimientos son los que también se validan para que sean reconocidos en muchas partes del mundo a través de la traducción que se hace de sus obras. Ochy Curiel La profesora Ochy Curiel, Nació en República Dominicana, luego de vivir en México, Brasil y Argentina, actualmente vive en Colombia. Doctora en Antropología Social. Es docente-investigadora de la Universidad Nacional y de la Universidad Javeriana en Bogotá, Colombia y es también consultora independiente. Es activista del movimiento lésbico-feminista, antirracista, del feminismo autónomo y del feminismo decolonial y también cantautora. Es miembra del Grupo Latinoamericano de Estudios, Formación y Acción Feminista (GLEFAS), de la Tremenda Revoltosa, batucada feminista y del Colectivo Globale Bogotá, festival de documentales críticos. Tiene varias publicaciones en la que imbrica la raza, el sexo, la clase, la sexualidad y le geopolítica en la que se destaca su libro: La nación heterosexual, Análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación (2013). Dennys Silva-Reis Doctor en Literatura (Universidad de Brasília - UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 236-240 [D.S-R.] ¿En su opinión, hasta qué punto la noción de género de una dada cultura se puede traducir a otra cultura? [O.C.] Tal como los explicó la argentina Maria Lugones a través de su concepto colonialidad del género, el género es una categoría moderna colonial pues se reconoce el diformismo sexual entre hombres y mujeres, desde las experiencias de mujeres y hombres blancos/as y burgueses/as, por tanto, no es universal. En muchas otras culturas no existe el género, ni siquiera las categorías de hombres y mujeres. Un ejemplo de ello es lo que explica Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí en su texto La invención de las mujeres en torno la sociedad Yorùbá del suroeste de Nigeria. El género no existia en estas sociedades antes del contacto con occidente, fue impuesto a través de la colonización europea. [D.S-R.] ¿Le parece que haya una distinción entre traducción femenina y traducción feminista? [O.C.] Por supuesto. Lo femenino es una cualidad resultado de la diferenciación que trae consigo la heterosexualidad que se asume la tienen las mujeres, lo cual es un error, pues los hombres también pueden tener cualidades que se asumen como femeninas. Al final son construcciones sociales. Una traducción feminista implica una postura política, aunque esto también es problemático porque no existe solo un tipo de traducción feminista. Todo depende en cual corriente del feminismo se inscribe la traducción. [D.S-R.] ¿Cuál sería la importancia de la traducción de teorías feministas en el mundo contemporáneo? [O.C.] Creo que muchos feminismos han aportado a complejizar los análisis de las relaciones sociales. Hay feminismos, como el feminismo negro, el feminismo decolonial que permite contextualizar la situación de grupos a quienes no solo les afecta el género, sino también la raza, la clase, la sexualidad, la geopolítica de forma imbricada de acuerdo a contextos específicos. La traducción de estas teorías son importantes precisamente para no generalizar ni universalizar las experiencias, que ha sido el error del feminismo hegemónico que ha sido blanco en sus teorías y conceptos y que solo toma como centro del análisis el género desde las experiencias de las mujeres blancas, generalmente del Norte. [D.S-R.] ¿Cuál es su opinión acerca de traducción y activismo (intelectual o no)? [O.C.] Creo que es fundamental para poder fortalecer las coaliciones transnacionales. Los y las activistas debemos hacer traducción de obras y propuestas que nos ayuden a comprender mejor la complejidad de las relaciones sociales. Creo importante traducir no solo las obras con una visión crítica desde al Norte hacia Sur, sino del ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 236-240 237 Sur hacia el Norte. Por ejemplo, hemos conocido las producciones de las feministas afronorteamericanas porque han sido más traducidas que las que hemos producido las afrolatinas y afrocaribeñas, y eso se debe a que Estados Unidos sigue siendo un centro privilegiado del saber, lo cual responde a la geopolítica del conocimiento, aunque sea desde grupos subalternos. En el Norte deben conocer nuestras propuestas, como una forma de descolonizar el saber. [D.S-R.] ¿La circulación de ideas feministas por medio de traducción impulsiona la emancipación de otros grupos de mujeres? [O.C.] Por supuesto. Y no solo de mujeres, sino de otros grupos subalternizados. En la medida que conocemos las experiencias de otros grupos en muchas latitudes, eso ayuda a tener una mejor comprensión de las experiencias diversas, y también de las luchas y resistencias que se hacen en muchos lugares y eso aporta para la coalición transnacional, como dije antes. [D.S-R.] ¿Está de acuerdo com que solo mujeres blancas pueden traducir a mujeres blancas y solo mujeres negras pueden traducir a mujeres negras? 238 [O.C.] No. Considero que, aunque las mujeres negras debemos hacer mayor traducciones de otras mujeres negras, no se trata de esencializar este ejercicio. Existen pensamientos, teorías, conceptos tanto de mujeres negras y mujeres blancas que son críticos e interesantes para nuestros proyectos políticos y que son importantes traducir. Lo que creo es que las mujeres blancas tienen mayores accesos y privilegios y muchas veces toman las experiencias de las mujeres negras como meros testimonios o materias primas para sus créditos académicos, por eso es importante que las mujeres afrodescendientes e indígenas hagamos traducción de la producción de nuestras compañeras para evitar la utilización y la instrumentalización de nuestras experiencias y pensamientos. [D.S-R.] ¿Cree que hombres (feministas o no) son sensibles y aptos para traducir textos femeninos y feministas? Cuales serían los retos y las potencialidades involucradas en este caso? [O.C.] Mi respuesta a esta pregunta es similar a la pregunta anterior. Depende de cuáles hombres. Hay hombres que tienen privilegios de raza, clase, sexualidad, geopolítica, pero hay otros que no, como la mayoría de hombres afros e indígenas de nuestro continente y en ese sentido pueden ser nuestros aliados, sobre todo si tienen posiciones políticas parecidas a las nuestras. Lo importante es saber cuál es la intensión de la traducción que tienen. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 236-240 [D.S-R.] ¿Acaso existen, en su opinión, agendas feministas compatibles con estructuras de publicación editorial? Como se podría buscar una equidad de género en este campo? [O.C.] Creo que existen políticas editoriales feministas diversas. No hay una sola línea editorial y no creo que todas se limiten a buscar la equidad de género. Hay propuestas feministas que son antirracistas, descoloniales, como existen otras, diría que la mayoría, que no lo son. [D.S-R.] ¿En la historia de la traducción se conocen a pocas traductoras e intérpretes mujeres, sobre todo negras. ¿Conoce usted algunos nombres? ¿Nos podría hablar de ellas? [O.C.] Creo que hay muy pocas, sobre todo negras y afros. Quienes hemos hecho traducciones, lo hacemos desde el activismo, no como parte de un ejercicio profesional. [D.S-R.] ¿Acaso habría, en su opinión, una “culpa de la traducción” por haber más teoría feminista blanca difundida en el mundo? [O.C.] Considero que no se trata de “culpa de traducción”, sino de las posibilidades y el acceso. La mayoría de las mujeres negras, afros, indígenas de nuestro continente no tienen suficiente dinero, ni tiempo, para priorizar la traducción de textos. Tampoco existen muchas editoriales interesadas en traducir sus obras. Creo más bien que es una cuestión estructural que tiene que ver con al colonialidad del saber, aunque por suerte, cada vez más algunas entendemos la importancia de traducir textos de la gente negra e indígena para dar a conocer sus pensamientos y luchas. [D.S-R.] ¿Puede la traducción contribuir a la renovación de la literatura canónica feminista en las distintas áreas de las humanidades? [O.C.] Por supuesto, sobre todo si son traducciones de las obras de la gente subalternizada. Es lo que va a contribuir a descolonizar el saber feminista y de las ciencias humanas a nivel general. [D.S-R.] ¿Acaso conoce proyectos de traducción feminista no-hegemónicos? En caso positivo, nos podría decir cuales son y como funcionan? [O.C.] Pues uno de ellos es lo que estamos haciendo en el GLEFAS, desde nuestra editorial en la frontera, y lo que ha hecho Brecha Lésbica. Ambas son editoriales independientes. [D.S-R.] ¿Que consejos daría para un lenguaje (traductorio) menos sexista? ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 236-240 239 [O.C.] Pues buscar maneras de escritura que no reflejen la ideología de la diferencia sexual, el binarismo de género, pero igual hay que hacerlo desde una postura decolonial, eso significa evitar categorías, conceptos, palabras racistas, coloniales, heterosexuales y sobre todo que sea una traducción apegada a los significados que quien produce y no una sustitución de palabras y conceptos occidentales. El lenguaje también es político. [D.S-R.] ¿Cuál sería una buena metáfora para la traducción feminista (negra)? [O.C.] La amefricanidad de Leila González. [D.S-R.] ¿Es posible enseñar a traducir el feminismo o a hacer una traducción feminista? [O.C.] Sí, pero todo depende de qué tipo de feminismo. No todos son iguales y una traducción puede ser feminista, pero puede ser bastante racista. Creo que es posible desarrollar metodologías que permitan una traducción decolonial. 240 ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 236-240 Pensar a tradução e o feminismo negro – entrevista com Ochy Curiel1 Dennys Silva-Reis [DSR]: Tem alguma experiência com a prática de tradução feminista? Ochy Curiel [OC]: Sim. Com Jules Falquet traduzimos as contribuições das feministas materialistas francesas Colette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole Claude Mathieu, condensadas no texto El Patriarcado al desnudo, tres feministas materialistas, que saiu publicado no ano 2005 através da editora independente Brecha Lésbica. Posteriormente, o Grupo Latinoamericano de Formación y Acción Feminista (GLEFAS), coletivo de que faço parte, traduziu o texto “La invención de las mujeres. Una perspectiva africana sobre los discursos occidentales del género” da nigeriana Oyèróké Oyewùmí em 2017, através da nossa editora, também independente, en la frontera. [DSR]: Acredita que a profissão de tradutora e intérprete é sexualizada? Quais seriam as causas e as consequências disso? [OC]: Como se passa em toda a sociedade ocidental, as relações sociais são geralmente sexistas, racistas e classistas. Tem a ver com as hierarquias que se foram construindo desde os inícios da colonização e que continuam na colonialidade contemporânea, e a tradução não escapa disso. Faz parte do sistema moderno/colonial. Os conhecimentos mais valorizados são os produzidos por homens brancos com privilégios de classe, embora também por algumas mulheres com esses privilégios. Isso significa que esses conhecimentos também são os valorizados para que sejam reconhecidos em muitas partes do mundo através da tradução que se faz de suas obras. [DSR]: Em sua opinião, até que ponto a noção de gênero de uma dada cultura pode ser traduzido em outra cultura? 1 Tradução Marcos Bagno (Universidade de Brasília - UnB) Ochy Curiel A professora Ochy Curiel, Nasceu na República Dominicana e, depois de viver no México, no Brasil e na Argentina, vive atualmente na Colômbia. Doutora em Antropologia Social. É docente-pesquisadora da Universidad Javeriana em Bogotá e também consultora independente. É ativista do movimento lésbico-feminista, antirracista, do feminismo autônomo e do feminismo decolonial e também cantautora. É membra do Grupo Latino-americano de Estudos, Formação e Ação Feminista (GLEFAS), da Tremenda Revoltosa, batucada feminista e do Coletivo Globale Bogotá, festival de documentários críticos. Tem várias publicações nas quais mescla raça, sexo, classe, sexualidade e geopolítica. Em sua produção se destaca o livro La nación heterosexual. Análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación (2013). Dennys Silva-Reis Doutor em Literatura (Universidade de Brasília – UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 241-245 241 [OC]: Tal como explicou a argentina María Lugones por meio de seu conceito de colonialidade do gênero, o gênero é uma categoria moderna colonial, pois se reconhece o diformismo sexual entre homens e mulheres, desde as experiências de mulheres e homens brancos/as e burgueses/as, portanto, não é universal. Em muitas outras culturas não existe o gênero, nem sequer as categorias de homens e mulheres. Um exemplo disso é o que explica Oyeronke Oyewumi em seu texto “La invención de las mujeres” na sociedade iorubá do sudoeste da Nigéria. O gênero não existia nessas sociedades antes do contato com o Ocidente, foi imposto através da colonização europeia. [DSR]: Acredita que há uma diferença entre tradução feminina e tradução feminista? [OC]: Sem dúvida. O feminino é uma qualidade resultante da diferenciação que traz consigo a heterossexualidade que se assume que as mulheres têm, o que é um erro, pois os homens também podem ter qualidades que se assumem como femininas. Ao final, são cosntruções sociais. Uma tradução feminista implica uma postura política, embora isso também seja problemático porque não existe só um tipo de tradução feminista. Tudo depende de em que corrente do feminismo a tradução se inscreve. 242 [DRS]: Qual seria a importância da tradução de teorias feministas no mundo contemporâneo? [OC]: Creio que muitos feminismos têm contribuído para complexificar as análises das relações sociais. Há feminismos, como o feminismo negro, o feminismo decolonial que permitem contextualizar a situação de grupos que não são afetados somente pelo gênero, mas também pela raça, classe, sexualidade, geopolítica de forma imbricada segundo contextos específicos. A tradução dessas teorias é importante precisamente para não se generalizar nem universalizar as experiências, o que tem sido o erro do feminismo hegemônico, que tem sido branco em suas teorias e contextos e que só toma como centro de análise o gênero desde as experiências das mulheres brancas, geralmente do Norte. [DSR]: Qual a sua opinião sobre tradução e ativismo (intelectual ou não)? [OC]: Creio que é fundamental para poder fortalecer as coalizões transnacionais. Os e as ativistas devemos fazer tradução de obras e propostas que nos ajudem a compreender melhor a complexidade das relações sociais. Considero importante traduzir não só as obras com uma visão crítica do Norte para o Sul, mas do Sul para o Norte. Por exemplo, temos conhecido as produções das feministas afro-norte-americanas porque têm sido mais traduzidas que as que nós afrolatinas e afrocaribenhas temos produzido, e isso se deve ao fato de os Estados Unidos continuarem sendo um centro privilegiado do saber, o que corresponde à geopolítica do conhecimento, ainda que parta de grupos ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 241-245 subalternos. É preciso que conheçam nossas propostas no Norte, como uma forma de descolonizar o saber. [DSR]: A circulação de ideias feministas por meio de tradução incentiva a emancipação de outros grupos de mulheres? [OC]: Sem dúvida. E não só de mulheres, mas de outros grupos subalternizados. Na medida em que conhecemos as experiências de outros grupos em muitas latitudes, isso ajuda a ter uma compreensão melhor das experiências diversas, e também das lutas e resistências que se fazem em muitos lugares, o que contribui para a coalização transnacional, como disse antes. [DSR]: Concorda que só mulheres brancas podem traduzir mulheres brancas e só mulheres negras podem traduzir mulheres negras? [OC]: Não. Considero que, embora nós mulheres negras devamos fazer mais traduções de outras mulheres negras, não se trata de essencializar este exercício. Existem pensamentos, teorias, conceitos tanto de mulheres negras e mulheres brancas que são críticos e interessantes para nossos projetos políticos e que é importante traduzir. O que creio é que as mulheres brancas têm maior acesso e privilégio e muitas vezes tomam as experiências das mulheres negras como meros testemunhos ou matérias primas para seus créditos acadêmicos, por isso é importante que as mulheres afrodescendentes e indígenas façamos tradução da produção de nossa companheiras para evitar a utilização e a instrumentalização de nossas experiências e pensamentos. [DSR]: Acredita que homens (feministas ou não) são sensíveis e estão aptos para traduzir textos femininos e feministas? Quais seriam os desafios e as potencialidades envolvidas neste caso? [OC]: Minha resposta a esta pergunta é semelhante à da pergunta anterior. Depende de quais homens. Há homens que tem privilégios de raça, classe, sexualidade, geopolítico, mas há outros que não, como a maioria dos homens de origem africana e indígena de nosso continente, e nesse sentido podem ser nossos aliados, sobretudo se tiverem posições políticas parecidas às nossas. O importante é saber qual é a intensão da tradução que eles têm. [DSR]: Existiriam, em sua opinião, agendas feministas compatíveis com estruturas de publicação editorial? Como se poderia buscar uma igualdade de gênero neste campo? [OC]: Creio que existem políticas editoriais feministas diversas. Não há uma só linha editorial e não creio que todas se limitem a buscar a igualdade de gênero. Há propostas ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 241-245 243 feministas que são antirracistas, decoloniais, como existem outras, diria que a maioria, que não são. [DSR]: Na história da tradução são poucas as tradutoras e intérpretes mulheres conhecidas, sobretudo negras? Conhece alguns nomes? Poderia nos falar sobre elas? [OC]: Creio que há muito poucas, sobretudo negras e africanas. Aquelas que temos feito traduções, fazemos desde o ativismo, não como parte de um exercício profissional. [DSR]: Haveria por acaso, em sua opinião, uma “culpa da tradução” por haver mais teoria feminista branca difundida no mundo? [OC]: Creio que não se trata de “culpa da tradução”, mas das possibilidades e do acesso. A maioria das mulheres negras, afros, indígenas de nosso continente não têm suficiente dinheiro, nem tempo, para priorizar a tradução de textos. Também não existem muitas editoras interessadas em traduzir suas obras. Acredito, bem mais, que é uma questão estrutural que tem a ver com a colonialidade do saber, embora, felizmente, cada vez mais algumas de nós entendem a importância de traduzir textos das pessoas negras e indígenas para dar a conhecer seus pensamentos e lutas. 244 [DSR]: A tradução pode contribuir para a renovação da literatura canônica feminista nas diferentes áreas das ciências humanas? [OC]: Sem dúvida. Sobretudo se forem traduções das obras das pessoas subalternizadas. É o que vai contribuir para decolonizar o saber feminista e das ciências humanas em nível geral. [DSR]: Conhece projetos de tradução feminista não hegemônicos? Em caso afirmativo, poderia nos dizer quais e como funcionam? [OC]: Um deles é o que estamos fazendo no GLEFAS, a partir de nossa editora en la frontera, o que tem feito Brecha Lésbica. As duas são editoras independentes. [DSR]: Que conselhos daria para uma linguagem (tradutória) menos sexista? [OC]: Buscar maneiras de escrita que não reflitam a ideologia da diferença sexual, o binarismo de gênero, mas também é preciso fazer isso desde uma postura pós-colonial, o que significa evitar categorias, conceitos, palavras racistas, coloniais, heterossexuais e sobretudo que seja uma tradução apegada aos significados de quem produz e não uma substituição de palavras e conceitos ocidentais. A linguagem também é política. [DSR]: Qual seria uma boa metáfora para a tradução feminista (negra)? ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 241-245 [OC]: A amefricanidade de Lélia Gonzalez. [DSR]: É possível ensinar a traduzir o feminino ou a fazer uma tradução feminista? [OC]: Sim, mas tudo depende de que tipo de feminismo. Nem todos são iguais, e uma tradução pode ser feminista, mas pode ser bastante racista. Creio que é possível desenvolver metodologias que permitam uma tradução decolonial. 245 ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 241-245 Thinking Negofeminism in Translation - Interview with Tomi Adeaga Dennys Silva-Reis [D.S-R.] Do you have any experience with feminist translation practices? If you do, could you report? Tomi Adeaga [T. A.] Over the years, I have found out and have been quite critical of the way African feminine literature is being translated into German for example. African women are often portrayed in Western media including the German media as underdeveloped, helpless women suffering under patriarchal yoke. This perception along with the xenophobic approach to the African continent has also affected the way African and African diaspora feminist authors’ books are translated into German. [D.S-R.] Do you believe that the profession of translator and interpreter is sexualized? If you do, what could be in your opinion the causes and consequences of that? [T. A.] In a way I believe it is and this is irrespective of the translator and interpreter’s race. This is because most authors already feel that they are much more important than the translator/interpreter. They even become more aggressive when they see that they are dealing with feminist translators/interpreters. But the point they are missing is that the translator is the one that unlocks the doors of foreign languages and cultures to them. Also, they have a symbiotic relationship, which means that one cannot exist without the other. They therefore have to respect each other’s work. A third party in this is also the publisher. The publisher is often the one who looks for and engages the services of the translator. However, if there is lack of collaboration between them, which happens if the author is unable to work with the female translator and the book is nevertheless translated and published, it may have to be taken off the market. Tomi Adeaga Professor Tomi Adeaga teaches African literature at the Department of African Studies, Faculty of Philological and Cultural Studies of the University of Vienna, Austria. She is the author of Translating and Publishing African Language(s) and Literature(s): Examples from Nigeria, Ghana and Germany (2006). She has published an article called “Problems of Translating two Nigerian Novels into German” In: Acta Scientarum Journal of Language and Culture, Vol. 30, No. 1, (2008). She translated Olympe Bhêly – Quénum’s C’était à Tigony into As She Was Discovering Tigony (2017). Her areas of interest include African literature studies, African Diaspora and transnational studies, translation studies as well as Afro-European studies. She has gathered experiences as the founding secretary of the Translation Caucus of the African Literature Association (TRACALA), the African Literature Association Executive Council, and a host of others. Dennys Silva-Reis PhD in Literature from the Universidade de Brasília (UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 246-250 246 [D.S-R.] Do you believe there is a connection between translation (cultural and discursive) and gender? [T. A.] Yes, there is a connection between them, especially if the author is a feminine author who is trying to enunciate the dynamics of feminism in her culture and the foreign translator tries to diminish it because it does not conform with his and his society’s notion of the author’s society. [D.S-R.] In your opinion, to which extent (if any) the notion of gender of one given culture could be translated into another given culture? [T. A.] I have always strongly believed that translators do not just translate an author’s book, but they also translate her culture. If the translator does not take the time to inform himself on the culture from which the author’s work has been written, it may lead to false translations. This is the reason why some dedicated publishers send their translators not just to talk to the author but also to visit society that produced the author. It helps to reduce or minimize the possibilities of intercultural misunderstandings. [D.S-R.] Is there, in your opinion, a difference between feminine translation and feminist translation? 247 [T. A.] There is a difference between feminine translation and feminist translation. If I were to use the African example, I would say feminine translators, irrespective of their gender, are those who pay close attention to the source text during the translation process. Feminist translators, which have been, based on my own experience, mainly Western translators. They are those who believe that they know what the author is thinking and feel the need to change the contents of the source text. [D.S-R.] Which would be the importance of translating feminist theories in the contemporary world? [T. A.] There is a great importance of translating diverse feminist theories in the contemporary world because it allows the readers to see that there is no such thing as one size fits it all for feminist theories. What may be the norm in one feminist society may be a taboo in another society. [D.S-R.] What is your opinion about translation and activism (intellectual or other)? [T. A.] Translation and activism go hand in hand for several reasons. One of the key reasons is that translation has not been taken as seriously as it should be over the last few decades. Despite the fact that translation theories have been developed over the last few centuries, translated books are still not perceived in the same light as original ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 246-250 books. This is where activism comes in. A translator must play an active role in the promotion of the work he or she has translated so as to ensure that they do not collect dust on the bookstore shelves. [D.S-R.] Does the circulation of feminist ideas through translation impel the emancipation of other groups of women? [T. A.] I would not say so because it all depends on the kind of activities that these other women’s groups are engaged in. [D.S-R.] Do you agree that only white women can translate white women and only black women can translate black women? [T. A.] Definitely wrong. Everything depends on how good the translator is, irrespective of her race and even gender. [D.S-R.] Do you believe that men (feminist or not) have the sensibility and aptitude to translate feminine and feminist texts? What would be the challenges and the potentialities involved in this case? [T. A.] Yes, I do believe that men, irrespective of their race and feminist believes have the sensibility and aptitude to successfully translate feminine and feminist texts. The challenges involved in this are such that they have to be willing and ready to work with the texts and the author, if she is available. The potentialities of such collaborations are such that the finished production will be a reflection of both the author’s and the translator’s joint endeavor. [D.S-R.] Are there, in your opinion, feminist agendas compatible with editorial policies and structures? How to seek for some gender equity in this field? [T. A.] In my opinion, I believe they are because there are more feminist writers of African descent who are actively engaged in the field of translation and transnational studies these days that cannot be overlooked. Gender equity within this framework is thus easier to achieve today than it was in the 1960s as the field of African literature was dominated by male authors. [D.S-R.] In the history of translation few women translators and interpreters are known, let alone black women. Do you know any names? Could you talk about them? [T. A.] There are indeed fewer women translators and interpreters because women needed to catch up with their male counterparts. In terms of African women, which as you must know is not just about sub-Saharan African women, we also have female ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 246-250 248 translators and interpreters from the Maghreb countries: Tunisia, Morocco, and Algeria. There are also others from Egypt. One black translator stands out and her name is Wangui wa Goro, a veteran Kenyan translator who translated the Kenyan author, Ngugi wa Thiong’o’s Matigari from Kikuyu into English almost thirty years ago. She has been at the forefront of promoting African language translations both on the African continent and in the African diaspora. [D.S-R.] In your opinion, whose is the “guilt” (if any) for the existence of more translations of white feminist theory divulged around the world? [T. A.] I put the blame on colonialism in most parts of the African continent. The adoption of the former colonial languages in most parts of the former colonized African countries stunted the growth of translation in most parts of the African continent. Apart from East Africa where the first post-independent president of Tanzania, Mwalimu Julius Nyerere installed Kiswahili as the national language in Tanzania, which is also the mother tongue in Kenya, the lingua franca in Burundi, Uganda, the Eastern part of the Democratic Republic of Congo, and Rwanda; other parts of postcolonial Africa have not been that lucky. A large number of the local languages do not have written traditions and therefore, this has retarded the growth of translations done by African women. 249 [D.S-R.] Can translation contribute to the revival of canonical feminist literature in the fields of humanities? [T. A.] Yes, it can. If there are more African women and women of color translating books written by our foremothers in particular and the rest of the world in general, then it will contribute to the revival of feminist literature as a whole. [D.S-R.] Do you have knowledge about any projects of non-hegemonic feminist translation? If you do, could you please tell us which they are and how they function? [T. A.] No, I am not aware of any. This is due to the fact that given the very small pool of African women and women of color translators and interpreters, they mainly work with translators and interpreters from all over the world. [D.S-R.] In your opinion, could translation projects contribute to synergies involving nationalism and feminism simultaneously? [T. A.] Yes, it is possible, at least with female African translators and interpreters. This is in part because African feminists work with grassroots women and when it is time to come together for a female cause, it makes easier to work together and collaborate on various issues. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 246-250 [D.S-R.] What would you suggest to achieve a less sexist language in translation? [T. A.] Female translators tend to be quite sensitive to the usage of sexist language in the source language. It always helps to work with the author (if available) to minimize the use of sexist language in the target language. [D.S-R.] Do you believe it is possible to identify some textual typologies related to gender? If you do, in what way? If you don’t, why not? [T. A.] From my experience in reading narratives on the African people written by Western, or more specifically former colonists, there is a pattern in the way black gender is portrayed that is different from the way blacks portray themselves. [D.S-R.] What could be a good metaphor for (black) feminist translation? [T. A.] A good metaphor should be the one used by the African feminist theorist, Obioma Nnaemeka called: NEGOFEMINISM. That is No- Ego feminist translation. [D.S-R.] Is it possible to learn how to translate feminism or how to do a feminist translation? [T. A.] Apart from the fact that the source text dictates the way the translation is carried out, one can also translate feminism by being sensitive to the implications of the words chosen during the translation process. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 246-250 250 Pensar o Nego-Feminismo na Tradução – Entrevista com Tomi Adeaga1 Dennys Silva-Reis [DSR]: Tem alguma experiência com práticas tradutórias feministas? Se sim, poderia relatá-la? Tomi Adeaga [TA]: Ao longo dos anos, tenho percebido e criticado bastante o modo como a literatura feminina africana é traduzida, por exemplo, em alemão. As mulheres africanas são frequentemente retratadas na mídia ocidental, incluindo a alemã, como subdesenvolvidas, desamparadas, que sofrem o jugo do patriarcado. Essa percepção, junto com a abordagem xenófoba do continente africano, também tem afetado o modo como os livros de africanos e da diáspora feminista africana são traduzidos em alemão. [DSR]: Acredita que a profissão de tradutor e intérprete é sexualizada? Caso afirmativo, quais poderiam ser em sua opinião as causas e as consequências disso? [TA]: De certo modo acredito, e isso é indiferente à raça do tradutor ou intérprete. É porque a maioria dos autores já sente que são muito mais importantes do que o tradutor/intérprete. E se tornam ainda mais agressivos quando veem que estão lidando com tradutoras/intérpretes feministas. Mas o que deixam de ver é que o tradutor destrava as portas das línguas e culturas estrangeiras para eles. De igual modo, eles têm uma relação simbiótica, o que significa que um não existe sem o outro. É preciso portanto que um respeite o trabalho do outro. Uma terceira parte da situação é também o editor. O editor é com frequência aquele que busca e contrata os serviços do tradutor. No entanto, se houver uma falta de colaboração entre eles, o que ocorre se o autor for incapaz de trabalhar com uma tradutora mulher e o livro ainda assim for traduzido e publicado, pode ser necessário retirá-lo do mercado. 1 Tradução Marcos Bagno (Universidade de Brasília – UnB). Tomi Adeaga A Profa. Tomi Adeaga ensina literatura africana no Departamento de Estudos Africanos, na Faculdade de Estudos Filológicos e Culturais da Universidade de Viena, Áustria. É autora de Translating and Publishing African Language(s) and Literature(s): Examples from Nigeria, Ghana and Germany (2006). Publicou um artigo intitulado “Problems of Translating two Nigerian Novels into German” in Acta Scientarum Journal of Language and Culture, v. 30, n. 1 (2008). Traduziu a obra C’était à Tigony, de Olympe Bhêly-Quénum, como As She Was Discovering Tigony (2017). Suas áreas de interesse incluem estudos de literatura africana, diáspora africana e estudos transnacionais, estudos da tradução bem como estudos afro-europeus. Tem acumulado experiência como secretária fundadora do Translation Caucus of the African Literature Association (TRACALA), o African Literature Association Executive Concuil, e vários outros. Dennys Silva-Reis Doutor em Literatura (Universidade de Brasília – UnB). E-mail: reisdennys@gmail.com ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 251-255 251 [DSR]: Acredita haver uma conexão entre tradução (cultural e discursiva) e gênero? [TA]: Sim, existe uma conexão entre eles, especialmente se for uma autora que está tentando enunciar as dinâmicas do feminismo em sua cultura e se o tradutor estrangeiro tentar diminuir isso porque não se conforma com sua noção e a noção que sua sociedade tem da sociedade da autora. [DSR]: Em sua opinião, em que medida, se for o caso, a noção de gênero de uma dada cultura poderia ser traduzida em outra dada cultura? [TA]: Sempre acreditei firmemente que os tradutores não traduzem simplesmente o livro de um autor, mas também traduzem sua cultura. Se o tradutor não se dispuser a se informar sobre a cultura a partir da qual a obra do autor foi escrita, isso pode levar a traduções falseadas. Por isso é que alguns editores sensíveis enviam seus tradutores não só para conversar com o autor as também para visitar a sociedade que produziu o autor. Isso ajuda a reduzir ou minimizar as possibilidades de mal-entendidos interculturais. [DSR]: Existe, em sua opinião, uma diferença entre tradução feminina e tradução feminista? 252 [TA]: Existe uma diferença entre tradução feminina e tradução feminista. Para usar o exemplo africano, eu diria que os tradutores femininos, não importa seu gênero ???, são os que prestam mais atenção ao texto fonte durante o processo tradutório. Tradutores feministas, que têm sido, com base em minha própria experiência, sobretudo tradutores ocidentais. São os que acreditam que sabem o que o autor está pensando e sentem a necessidade de mudar os conteúdos do texto fonte. [DSR]: Qual seria a importância de traduzir teorias feministas no mundo contemporâneo? [TA]: É muito importante traduzir diversas teorias feministas no mundo contemporâneo porque isso permite aos leitores ver que não existe nada semelhante a um modelo único para todas as teorias feministas. O que pode ser a norma numa sociedade feminista pode ser tabu em outra sociedade. [DSR]: Qual a sua opinião sobre tradução e ativismo (intelectual ou outro)? [TA]: Tradução e ativismo vão de mãos dadas por diversas razões. Uma das razões principais é que a tradução não tem sido levada tão a sério quanto deveria nas últimas décadas. Embora as teorias da tradução tenham se desenvolvido nos últimos séculos, os livros traduzidos a inda não são avaliados sob a mesma luz que os originais. É aí que ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 251-255 entra o ativismo. Um/a tradutor/a desempenha um papel ativo na promoção da obra que traduziu para garantir que não fique juntando poeira nas prateleiras das livrarias. [DSR]: A circulação de ideias feministas por meio da tradução estimula a emancipação de outros grupos de mulheres? [TA]: Não diria isso, porque tudo depende do tipo de atividades em que esses outros grupos de mulheres estão engajados. [DSR]: Acredita que só mulheres brancas podem traduzir mulheres brancas e só mulheres negras podem traduzir mulheres negras? [TA]: Definitivamente não. Tudo depende da competência do/a tradutor/a, independentemente de sua raça e até do gênero. [DSR]: Acredita que há homens (feministas ou não) com sensibilidade e aptidão para traduzir textos femininos e feministas? Quais seriam os desafios e as potencialidades envolvidos neste caso? [TA]: Sim, acredito que há homens, independentemente de raça e de crenças feministas, com sensibilidade e aptidão necessárias para traduzir exitosamente textos femininos e feministas. Os desafios envolvidos são o de estarem dispostos e prontos para trabalhar com os textos e com a autora, se ela estiver disponível. As potencialidades dessas colaborações são tantas que a produção final poderá ser um reflexo do esforço conjunto do tradutor e da autora. [DSR]: Existem, na sua opinião, agendas feministas compatíveis com políticas e estruturas editoriais? Como buscar alguma igualdade de gênero no campo? [TA]: Minha opinião é a de que existem, porque há mais escritoras feministas de ascendência africana que estão ativamente comprometidas no campo da tradução e dos estudos transnacionais hoje em dia que não podem ser desconsideradas. A igualdade de gênero dentro desse contexto é portanto mais fácil de conquistar hoje do que nos anos 1960, quando o campo da literatura africana era dominado por autores homens. [DSR]: Na história da tradução, poucas mulheres tradutoras e intérpretes são conhecidas, muito menos mulheres negras. Conhece alguns nomes? Poderia falar delas? [TA]: Realmente, há menos mulheres tradutoras e intérpretes porque as mulheres precisam vencer a concorrência com seus concorrentes masculinos. Em termos de África que, como você sabe, inclui não apenas a África subsaariana, também temos ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 251-255 253 tradutoras e intérpretes dos países do Maghreb: Tunísia, Marrocos e Argélia. Também há outras do Egito. Uma tradutora negra se destaca e seu nome é Wangui wa Goro, uma veterana tradutora queniana que traduziu o autor queniano Ngugi wa Thiong’o’ do kikuyu para o inglês há cerca de trinta anos. Ela tem estado na linha de frente da promoção de traduções em línguas africanas no continente africano e na diáspora africana. [DSR]: Em sua opinião, de quem é a “culpa” (se existe alguma) pela existência de mais traduções da teoria feminista branca divulgada mundo afora? [TA]: Ponha a culpa no colonialismo na maior parte do continente africano. A adoção das línguas dos ex-colonizadores na maior parte dos países africanos colonizados impediu o crescimento da tradução na maior parte do continente. Com exceção da África oriental, onde o primeiro presidente pós-independência da Tanzânia, Mwalimu Julius Nyerere oficializou o suaíli como língua nacional do país, língua que também é materna no Quênia, língua franca em Burundi, Uganda, na parte oriental da República Democrática do Congo, e em Ruanda; outras partes da África pós-colonial não tiveram essa sorte. Um grande número de línguas locais não têm tradições escritas e, portanto, isso atrasou o crescimento de traduções feitas por mulheres africanas. 254 [DSR]: A tradução pode contribuir para a revivescência da literatura feminista canônica no campo das humanidades? [TA]: Sim, pode. Se houver mais mulheres africanas e mulheres negras traduzindo livros escritos por nossas predecessoras, e o resto do mundo em geral, isso contribuirá para a revivescência da literatura feminista como um todo. [DSR]: Sabe de algum projeto de tradução de feministas não hegemônicas? Em caso afirmativo, poderia nos dizer do que se trata e qual sua função? [TA]: Não tenho conhecimento de nenhum. Isso se deve ao fato de que, devido ao número reduzido de mulheres africanas e mulheres negras tradutoras e intérpretes, elas trabalham principalmente com tradutores e intérpretes de todas as partes do mundo. [DSR]: Em sua opinião, projetos de tradução poderiam contribuir para sinergias envolvendo nacionalismo e feminismo simultaneamente? [TA]: Sim, é possível, ao menos com tradutoras e intérpretes africanas. Em parte porque as feministas africanas trabalham com mulheres do povo e, quando se trata de se agrupar por uma causa feminina, isso torna mais fácil trabalhar juntas e colaborar em vários aspectos. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 251-255 [DSR]: O que sugeriria para alcançar uma língua menos sexista na tradução? [TA]: As tradutoras tendem a ser bastante sensíveis ao uso de linguagem sexista na língua fonte. Sempre ajuda trabalhar com o autor (quando possível) para minimizar o uso de linguagem sexista na língua alvo. [DSR]: Acredita ser possível identificar algumas tipologias textuais relacionadas a gênero? Em caso afirmativo, de que modo? Em caso negativo, por que não? [TA]: Pela minha experiência na leitura de narrativas do povo africano escritas por ocidentais, ou mais especificamente por ex-colonizadores, existe um padrão no modo como o gênero negro é retratado que é diferente do modo como os negros se retratam a si mesmos. [DSR]: Qual seria uma boa metáfora para a tradução feminista (negra)? [TA]: Uma boa metáfora seria a usada pela teórica feminista africana Obioma Nnaemeka: NEGOFEMINISMO, que é tradução NÃO-EGO feminista. [DSR]: É possível aprender a traduzir o feminismo ou a fazer uma tradução feminista? [TA]: Além do fato de que o texto fonte dita modo como a tradução é empreendida, também é possível traduzir o feminismo ficando sensível às implicações das palavras escolhidas durante o processo tradutório. ISSN: 1807 - 8214 Revista Ártemis, vol. XXVII nº 1; jan-jun, 2019. pp. 251-255 255