ERNESTO MARECOS
Juca, a matumbola
e outros textos angolenses
Introdução e edição por Francisco Topa
Porto
Design gráfico da capa: Helena Gaspar
Depósito legal
XXXXXX
ISBN
978-989-20-9035-1
Porto • 2018
Índice
Nota de apresentação
5
I. Ernesto Marecos e a literatura angolana
1. Um autor esquecido
2. Elementos biográficos
2.1. A passagem por Angola
3. Angola na obra de Ernesto Marecos
7
9
10
12
15
II. A edição
41
III. Juca, a matumbola e outros textos angolenses
1. Juca, a matumbola: lenda africana
2. Outros poemas
1. «Não — nunca mais se queixará um povo»
2. Flor da África
3. Um conselho
4. A Luanda
3. Folhetins no Commercio de Lisboa
1. De 5 de março de 1864
2. De 12 de março de 1864
3. De 19 de julho de 1864
4. Episódios da África
45
47
85
87
89
91
93
97
99
106
114
125
IV. Apêndice: as duas versões de Juca da autoria de Alfredo de
Sarmento
1. Juca, a matumbola. (Lenda africana.) (1859)
2. A embaixada. – Uma lenda gentílica (1880)
141
143
148
Nota de apresentação
Os mortos não dormem são quissanges
de profundos teclados em repouso
José Luís Mendonça
O objetivo do presente volume é o de ler e dar a ler um conjunto de textos de
Ernesto Marecos relacionados com Angola. Trata-se de um autor português
que aí viveu e trabalhou pelo menos entre maio de 1856 e setembro de 1857
e que voltaria ao território em datas posteriores, no âmbito de viagens para
outros pontos do império onde também residiu, exerceu funções profissionais
e escreveu, designadamente Moçambique e Nova Goa. Conhecido mas desprezado pelos estudiosos do romantismo português e desprezado mas pouco
conhecido pelos ensaístas que se dedicam à literatura angolana e às literaturas dos outros espaços em causa, este autor constitui, na sua época, um caso
pouco comum de diversidade temática e de atenção a espaços e culturas ainda pouco presentes na literatura portuguesa, em concreto África e o Oriente.
Acontece porém que certos traços ultrarromânticos que caracterizam a sua
obra e a perspetiva eurocêntrica que a domina não facilitam a sua valorização
em nenhum dos dois lados.
Apesar disso, o facto de Marecos ser autor do primeiro poema narrativo
sobre matéria angolana tem impedido o seu silenciamento total e justificado
o trabalho de investigadores como Francisco Soares, que mostrou a importância da presença do poeta no meio literário local que estava em formação e
discutiu a possibilidade da inclusão do texto no cânone angolano. É um modesto contributo para o esclarecimento deste tema da historiografia literária
luso-angolana que também eu procuro aqui apresentar.
Os elementos de maior novidade dizem respeito, por um lado, à reconstituição da vivência de Marecos em Angola, que fica agora situada de modo
-5-
preciso no tempo, sendo acompanhada de informações sobre a sua atuação
profissional e cívico-cultural. Por outro lado, mostra-se como o tema de Juca, a matumbola não terá sido colhido diretamente no folclore angolano, mas
antes num texto de outro funcionário colonial, Alfredo de Sarmento. Além
disso e de um breve estudo crítico do poema, são editados e comentados
outros poemas de Marecos relacionados com Angola e ainda alguns textos
em prosa, concretamente três folhetins publicados em 1864, dois dos quais o
autor viria a refundir num capítulo do livro Contos e recordações, de 1867.
Embora não restem dúvidas de que Ernesto Marecos é um autor da literatura portuguesa, creio que o conhecimento dos seus textos relativos a Angola
tem grande interesse para a historiografia da literatura angolana e para a
problematização do seu cânone. Creio também que, a par dele, há muitos
outros autores e textos, em Angola e noutros espaços do antigo império português, à espera de serem (re)lidos e estudados. É provável que, em numerosos casos, o resultado de tais esforços de investigação venha a ser o (re)esquecimento desses escritores e dessas obras, por um conjunto de razões nem
sempre coerente. Mesmo que isso aconteça, o esforço de preencher as lacunas sobre a atividade literária nesses espaços de colonização continua a fazer
sentido e pode representar uma das tarefas daqueles que, como eu, consideram o passado literário a partir da antiga metrópole.
-6-
I. Ernesto Marecos e a literatura angolana
1. Um autor esquecido
Apesar de uma obra extensa e diversificada, Ernesto Marecos é de há muito
uma figura desprezada e esquecida, sendo apenas mencionado de passagem
entre os representantes do segundo romantismo português. No verbete que
sobre ele elaborou para a Biblos, escreve Maria Aparecida Ribeiro que «A
maior parte da produção dessa fase [estudantil] gira em torno do tema amor =
dor e recorre insistentemente ao cliché»1, acrescentando que as obras posteriores também são marcadas pela falta de fluência e pelo uso do lugar-comum. Reconhece ainda que
A temática, no entanto, vai crescendo no tom espectral que marca o segundo
romantismo português: se Juca é uma espécie de «noivado do sepulcro» de
cenário tropical, «Pallida Mors» (O Panorama, 1866), A Morta (1867), O Tesouro de Fafnir (1866) e «Debaixo do Olmeiro» (Folhas sem Flores, 1878)
contêm o erotismo mórbido, a paixão do macabro, as tempestades de vento,
enfim, todos os outros ingredientes ultra-românticos.2
A despeito destas restrições, há uma faceta da obra de Marecos que continua a ser referida com frequência, embora quase nunca acompanhada de
estudo: refiro-me aos textos relacionados com Angola, em particular a Juca,
a matumbola. Destaca-se habitualmente, como explica Francisco Soares3, o
facto de se tratar do «primeiro poema que teve inspiração mitológica nas
tradições banto de Angola», ao mesmo tempo que se sublinha a participação
do autor no «primeiro jornal privado e de cariz literário que se fez no território»4. No entanto, e apesar dos dois trabalhos que Francisco Soares dedicou
ao tema, a verdade é que a ligação de Marecos à literatura angolana ainda
1
«Ernesto Marecos». In BERNARDES, José Augusto Cardoso, dir. Biblos: enciclopédia
Verbo das literaturas de língua portuguesa. Vol. 3. Lisboa / São Paulo: Verbo, 1999, col.
458.
2
Ibid.
23
Ibid.
«Retrato de grupos». In Notícia da literatura angolana. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
3
da«Retrato
Moeda, de
2001.
grupos». In Notícia da literatura angolana. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
4
p. 101.
daIbid.,
Moeda,
2001.
45
Ibid.,
Diccionario
p. 101. Bibliographico Portuguez. Tomo IX. Lisboa: Imprensa Nacional, 1870,
-9-
Francisco Topa
não suscitou uma investigação exaustiva que permitisse extrair conclusões
razoavelmente fundamentadas. É um pequeno contributo nesse sentido que
as próximas páginas tentarão fornecer.
2. Elementos biográficos
Comecemos pela vertente biográfica. Segundo Inocêncio Francisco da
Silva5, Ernesto Frederico Pereira Marecos nasceu em Lisboa a 16 de junho de
1836, sendo «filho do distincto poeta e benemerito funccionario publico, já
falecido José Frederico Pereira Marecos». Quanto à sua formação escolar,
escreve o bibliógrafo:
Habilitado com os estudos preparatorios indispensaveis, matriculou-se no
curso de direito da universidade de Coimbra, obtendo plenas aprovações no
1.º e 2.º annnos; ainda chegou a frequentar o 3.º anno do mesmo curso, o qual
contudo não concluiu por motivos que me são desconhecidos.
A consulta do Arquivo da Universidade de Coimbra confirma estes dados: o futuro poeta foi admitido à matrícula no 1.º ano de Direito a 13 de
outubro de 18526, prosseguindo o curso até ao 3.º ano7, correspondente ao
ano letivo de 1854/55, que porém não concluiu8. Maria Aparecida Ribeiro,
que destaca o facto de Marecos ter sido contemporâneo de Tomás Ribeiro,
sugere que na base da interrupção terão estado «motivos políticos, como se
depreende das palavras de Vieira de Castro na abertura do 1.º número de O
Ateneu (1859).»9 Vejamos então as palavras do articulista, que foi colega de
Marecos em Coimbra:
Recordemos agora um poeta de menção honrosissima; poeta inculto, sim, mas
já, nos embriões do seu genio, promettedor de um grande futuro na historia
das letras patrias.
Era Ernesto Marecos.
5
Diccionario Bibliographico Portuguez. Tomo IX. Lisboa: Imprensa Nacional, 1870,
p. 177.
6
Livro de Matrículas, IV- 1.ª D-2-5-14, fl. 42r.
7
Livro de Matrículas, IV-1.ª D-2-5-16, fl. 85v.
8
Não há registo do seu exame no Livro de Actos e Graus (IV-1.ª D-3-4-35).
9
«Ernesto Marecos», cit., col. 457.
-10-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
Que miseros fados lhe malsinavam já então a triste vida que elle hoje vive!
A lyra de E. Marecos tinha mais do que uma corda da lyra de Chénier.
Como o desgraçado poeta da França, E. Marecos era egualmente sublime nos
arrojos do seu estro illimitado, insinuante e atrahente nas bravezas da sua ignorancia sympathica.
Como o gyrondino infeliz, Marecos teve um patibulo e um carrasco, mercê de ingratos aos opulentos thesouros do seu formoso e atrevido imaginar.
Aos vinte annos, na antemanhã de um futuro estrellado de risonhas imagens,
quando aquelle coração, feito á feição de virgem, sonhava as mil graças de
um amor adivinhado, e aquella alma, livre, orgulhosa e soberana, se inebriava
já com o antegosto de gloria, uma nuvem, negra como os desenganos, cerrou-lhe os largos e vastos horisontes da sua esperança, rapida, impetuosa e altaneira como o vôo atiradiço da aguia.
Nas trevas da sua desventura E. Marecos teve ainda para a patria, que lhe
fôra madrasta, uma lagrima e um hymno de dolorosa despedida. Entalhou-os
a ambos na amurada da galé que o arrastava ao exílio, quando os braços, em
vão estendidos para a praia d’onde partira, rebaixavam na desesperança de
chegarem aonde o pensamento lhe ficava.
Resemos-lhe por alma, nós, os que o praticávamos. Está irremediavelmente perdida aquela grande intelligencia.10
10
Introdução. O Atheneo: periodico mensal, sicentifico e litterario. Coimbra. 1 (1859),
p. 7.
-11-
Francisco Topa
Arquivo da Universidade de Coimbra,
Livro de Matrículas, IV- 1.ª D-2-5-14, fl. 42r
Não é fácil retirar desta evocação, a um tempo favorável e restritiva na
avaliação dos méritos literários de Marecos, a causa concreta da sua saída de
Coimbra e posterior partida para Angola. A comparação com Chénier, guilhotinado em 1794, no chamado período do terror da Revolução Francesa,
sugere efetivamente uma causa política, mas não permite a sua identificação
precisa.
Um outro dado sobre a saída de Marecos de Coimbra é-nos fornecido pelo volume Poesias recitadas na noite de 14 de Junho de 1855 no Theatro
Academico na despedida dos Senhores T. A. Ribeiro, J. G. Arouca, L. A.
Nogueira e F. Soares Franco Junior11. O último poema do opúsculo, «Despedida: Aos meus amigos» (pp. 21-4), é de Ernesto Marecos, o que comprova que o autor estava ainda na cidade no final desse ano letivo ou que aí se
deslocou expressamente para a despedida dos amigos.
2.1. A passagem por Angola
Quanto à fase seguinte da vida do autor, escreve Inocêncio: «Nomeado
Official da secretaria do Governo geral da provincia de Angola, partiu para
Loanda, exercendo ali o emprego referido por espaço de alguns mezes.»12
Maria Aparecida Ribeiro situa o desempenho do cargo em 1856, ao passo
que Francisco Soares admite que Marecos se tenha estabelecido em Angola
em 1854 ou 1855, acrescentando: «Só temos a certeza de que tenha vivido
em Angola até ao ano de 1857.»13
Embora não responda a todas as dúvidas, a leitura sistemática do Boletim
official do Governo Geral da Provincia d’Angola fornece um conjunto de
elementos sobre a vivência do autor de Juca, a matumbola no território africano.
A primeira informação surge no n.º 554, de 10 de maio de 1856, do Boletim, sob a forma de um anúncio, através do qual Ernesto Marecos oferece ao
11
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1855.
Diccionario Bibliographico Portuguez, IX, p. 177.
13
«Retrato de grupos», cit., p. 103.
12
-12-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
público os seus serviços como advogado (p. 10). Este dado parece mostrar
que a chegada do nosso autor ao território deve ter acontecido pouco antes e
que terá havido portanto um intervalo de alguns meses entre a saída de Coimbra e a instalação em Angola. Ainda no plano profissional, fica a saber-se
pelo Boletim que Marecos foi nomeado interinamente, por portaria de 16 de
junho, como oficial ordinário da secretaria do Governo-Geral14, o que parece
desmentir a informação de Inocêncio Francisco da Silva segundo a qual a
nomeação precedera a partida para Luanda. No n.º 585, de 13 de dezembro,
surge a informação de que foi exonerado do cargo, a seu pedido, sendo nomeado curador dos presos pobres e dos escravos e libertos15 (p. 3). No
n.º 608 do Boletim, de 23 de maio do ano seguinte, vem a informação sobre a
suspensão de Ernesto Marecos por seis meses dessas funções, por acórdão da
Relação (pp. 1-6)16. No n.º 614 da mesma publicação, com data de 4 de julho,
figura uma portaria do governador-geral que exonera o nosso autor do referido cargo, «Attendendo á representação do vigario capitular desta diocese,
presidente da junta protectora dos escravos e libertos» (p. 3), o que, não sendo explícito, parece sugerir falta de zelo no exercício das funções.
A par destes dados, o Boletim apresenta outros indicadores que dão conta
de uma atuação cultural relativamente intensa por parte de Marecos. O primeiro deles diz respeito ao aparecimento do jornal A aurora, que foi o primeiro periódico não governamental da África lusófona: no n.º 558, de 7 de
junho de 1856, vem um anúncio a que outros investigadores já têm feito
14
Boletim official do Governo Geral da Provincia d’Angola, n.º 560, 21/06/1856, p. 4. A
nomeação é justificada pela necessidade de substituir Alfredo de Sarmento, de quem
falarei mais adiante, que, sendo o proprietário do cargo, passara a exercer as funções de
oficial maior da mesma secretaria-geral.
15
Sucedendo no cargo a Alexandre Balduíno Severo de Mendonça, outro dos fundadores
do jornal A aurora.
16
O acórdão é seguido da transcrição de uma troca de ofícios entre diversas entidades
administrativas acerca da legalidade da decisão do Tribunal da Relação. O Procurador da
Coroa, Carlos Botelho de Vasconcelos, entende que «O acordam da Relação suspendendo
um advogado, não póde obrigar o Governo a que o suspenda tambem do emprego publico,
que tiver do Estado; porque os actos do Poder Judicial, sempre restrictos ás pessoas que
estão em Juizo, nada podem ter com a acção do Governo. Se o Poder Judicial podesse
determinar a suspensão de qualquer empregado administrativo, teriamos transtornado o
principio constitucional da independencia dos Poderes.» (p. 1) Esta posição vai ao encontro do entendimento do governador-geral, que sustenta, perante o presidente da Relação,
que Marecos deve continuar a exercer o cargo de curador, apesar da suspensão como
advogado do auditório. A causa da sanção foi a falta injustificada, por três vezes, ao julgamento de um preso pobre (p. 5).
-13-
Francisco Topa
referência dando conta do aparecimento do periódico (p. 5). Neste empreendimento participaram, para além de Ernesto Marecos, Alfredo de Sarmento,
funcionário da Junta da Fazenda Pública; Francisco Teixeira da Silva, 2.°
tenente da armada real e capitão do porto de Luanda; e Alexandre Severo de
Mendonça, bacharel formado em direito e que advogava em Luanda17. Deste
jornal – e este ponto raramente é referido pelos comentadores – não chegou
até nós nenhum exemplar. O próprio Júlio de Castro Lopo, historiador do
jornalismo de Angola que escreveu há meio século, não conseguiu ter acesso
a nenhum número do periódico.
O segundo indicador da atuação cultural do futuro autor de Juca, a matumbola tem a ver com o teatro. No n.º 584 do Boletim, de 6 de dezembro do
mesmo ano, há um artigo intitulado «Theatro em Luanda» (pp. 5-6) que noticia a récita de Os dois renegados18, a 29 de novembro, acrescentando:
Aos louvaveis esforços dos Srs. Ernesto Marecos, Joaquim Leandro de Bulhões Maldonado, e alguns outros Cavalheiros, inteligentemente amadores do
Theatro, devemos o despertar-se o gosto por elle, não obstante as mil deficiencias que tiveram que vencer, capazes de desanimar os mais corajosos.
Ainda sobre a atividade teatral, informa o n.º 596 do Boletim, de 28 de
fevereiro de 1857, num artigo intitulado «O Carnaval» (p. 5), que a Sociedade Dramática tinha representado no dia 21 três peças19, lamentando o autor a
ausência de Marecos no elenco: «Sentimos sinceramente que o Sr. Marecos
não apparecesse na scena, e fazemos votos para o ver representar na proxima
recita.»
A última referência a Ernesto Marecos no Boletim official ocorre no
n.º 625, de 19 de setembro de 1857, no âmbito de um artigo em que se fala
das solenidades da comemoração do 20.º aniversário de D. Pedro V. Saudando «o genio poetico do Sr. Marecos», o redator informa que o autor recitou
no Teatro de Luanda, na noite de 16 de setembro, duas composições da sua
17
Cf. LOPO, Júlio de Castro. Jornalismo de Angola: subsídios para a sua história. Luanda: Centro de Informação e Turismo de Angola, 1964, p. 46.
18
Certamente o drama em cinco atos de José da Silva Mendes Leal, publicado em 1839.
19
O bigode, Por causa de um algarismo e A parteira anatómica. Não tendo conseguido
identificar a primeira, suponho que a segunda será a comédia homónima de Luís de Araújo Júnior (*1833 †1904), publicada em 1854, ao passo que a última será provavelmente
uma farsa de António Xavier Ferreira de Azevedo (*1784 †1814), dada ao prelo postumamente, em 1841.
-14-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
autoria: um elogio ao monarca começado pelo verso «Não – nunca mais se
queixará um povo», que é transcrito no periódico, e um poema intitulado
«Loanda», cuja publicação se promete para o número seguinte, mas que acabará por não se concretizar.
Que podemos concluir destes dados? Em primeiro lugar, que Marecos esteve em Angola pelo menos entre maio de 1856 e setembro de 1857, o que é
mais que os “alguns meses” referidos por Inocêncio e articulistas posteriores.
Por outro lado, que parece ter ido para Angola sem garantia de emprego,
embora não tenha tido dificuldade em encontrar colocação, trabalhando tanto
por conta própria, como advogado, como na qualidade de funcionário público. Em terceiro lugar, que deu provas inequívocas daquilo a que poderíamos
chamar um espírito cívico, participando na fundação de um jornal e integrando uma sociedade dramática, em que terá colaborado também como ator. Por
último, como veremos melhor mais à frente, continuou o seu trabalho literário e terá talvez viajado pelo território, recolhendo experiências que usará em
publicações ulteriores.
Antes de vermos esses textos, terminemos a breve síntese biográfica sobre Marecos. De acordo com Inocêncio, o nosso poeta, uma vez regressado a
Lisboa, passou a servir como amanuense na direção-geral da contabilidade
do Ministério da Fazenda. Acrescenta o bibliógrafo que o autor de Juca foi
nomeado, em junho de 1869, diretor da alfândega do Ibo, em Cabo Delgado,
Moçambique. Maria Aparecida Ribeiro, por seu turno, informa que foi transferido para a alfândega de Pangim (Nova Goa) em 1875, vindo a morrer em
Moçambique, em 1879.
3. Angola na obra de Ernesto Marecos
Feita a apresentação do autor, vejamos agora os seus textos angolenses,
isto é, aqueles que estão relacionados com Angola, seja pelo tema, seja pelas
circunstâncias que rodearam a sua produção. O primeiro deles, não pela data
de publicação mas pela importância, é Juca, a matumbola: lenda africana,
apresentado amiúde nos manuais de literatura angolana como o primeiro
poema narrativo sobre matéria local. Como explica Francisco Soares,
-15-
Francisco Topa
O facto de em certa época, valorizar a crítica a referência local enquanto carimbo de angolanidade, e a angolanidade enquanto critério principal para organizar as crónicas da literatura angolana, levou a que se considerasse muitas
vezes que Juca, a Matumbolla pertencia à literatura angolana.20
Consideremos rapidamente o poema, que, ao contrário do que escreveram
Gerald Moser e Manuel Ferreira21, teve a sua primeira e, até agora, única
edição em 186522, em livro, não tendo pois saído antes em O Panorama, cuja
IV série tinha aliás terminado em 1858, só voltando o periódico a ser retomado em 1866.
A composição está dividida em dez partes e utiliza diferentes esquemas
estróficos (quadras, sétimas, oitavas, décimas, estrofes de 12 e de 14 versos
ou ainda irregulares), métricos (redondilha maior, que é a solução mais frequente, mas também tetrassílabo e decassílabo) e rimáticos (do verso branco
da parte inicial ao modelo ABBC||DEEC das oitavas, passando por vários
outras soluções). Começando por um elogio dos esplendores, naturais, de
África. De seguida, o narrador situa a história no sertão da Lunda, no sítio de
Quimbaxi, apresentando Juca, a protagonista, e dando conta da harmonia que
pauta a vida que ela leva com seu pai. Na terceira parte, o tema do amor é
introduzido a partir da representação da natureza, notando contudo o narrador que
Juca, a formosa,
Indiferente,
Não vê, não sente
O que é amor (vv. 238-241)23
Apesar disso, a protagonista suscita paixões em todos que a veem, particularmente em Giolo, «(…) o moço valente, / O caçador de leões.» (vv. 292-3), que, tremendo diante dela, acaba por confessar-lhe o seu amor. Perante a
resposta da jovem, que declara querer-lhe como irmã (v. 337), o guerreiro
concebe uma vingança em que já surge o motivo do cemitério:
20
«Retrato de grupos», cit., p. 102.
Bibliografia das literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s.d., p. 98.
22
Lisboa: Typographia do Panorama.
23
Todas as citações de textos de Ernesto Marecos serão feitas a partir da edição que apresento mais à frente, na III parte deste livro.
21
-16-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
Mais um ano, hora por hora,
Serás de mim uma parte;
Hei de a tudo disputar-te,
E em meus braços te hei de ver!
Um ano, – um século! Embora
Te vá, no instante aprazado,
A coroa do noivado
No cemitério colher! (vv. 390-397)
Desesperado, Giolo recorre ao feiticeiro Quipumo, a quem no passado
salvara a vida por três vezes. O filtro que este prepara deverá causar, dentro
de um ano, a morte aparente de Juca, sendo depois necessária uma ida ao
cemitério, pela noite, e a récita de certas orações para trazer a amada de volta
à vida. A partir desse momento, ela passará a obedecer em tudo a Giolo, mas
com a particularidade de o seu corpo se apresentar sempre gelado.
Após alguma hesitação, Giolo acaba por dar a Juca a bebida fatal, pensando depois suicidar-se. Enquanto se vai produzindo o efeito na jovem, a
natureza acompanha o seu declínio:
Emurchecera o cercado,
Em torno crescia o mato;
A natureza despira,
Com saudades do passado,
O verde manto de festa,
E de luto se vestira;
Nem um som pela floresta,
Ave, flor ou harmonia
A doce antiga alegria
Lembravam ao coração;
Nem da tarde a viração
A fina rede embalava,
E como que soluçava
Nas secas folhas do chão! (vv. 680-693)
Entretanto, também o seu pai morre. Cumprido o prazo de um ano, Giolo
e Quipumo, à noite, no cemitério, ressuscitam Juca. Esta invoca o pai, surgindo de imediato um raio que mata o feiticeiro, morrendo igualmente Juca.
Giolo, por seu turno, arrepende-se do seu comportamento, deixando-se perecer no combate com um leão, que mostra respeitá-lo como adversário. O
poema termina com a referência à lenda do reencontro dos dois amantes em
certas noites no cemitério e com uma espécie de moral:
-17-
Francisco Topa
A história contada de Juca, a formosa,
Às outras formosas que seja lição.
Mais val às carícias do vento uma rosa
Rendida prender-se que ver desdenhosa,
Que as folhas mais tarde lhe arranca o tufão! (vv. 1100-4)
Exposto o argumento, e antes ainda da análise de alguns aspetos do poema e da discussão sobre a sua eventual inclusão na literatura angolana, impõe-se uma observação sobre a fonte utilizada por Ernesto Marecos: segundo
suponho, ela não terá sido o folclore local, pelo menos de forma direta, mas
antes um companheiro do autor dos tempos de Luanda, Alfredo de Sarmento.
Trata-se do funcionário que Marecos foi substituir na secretaria-geral do
governo de Angola em junho de 1856 e ao lado do qual participaria, nesse
mesmo período, na fundação do periódico A aurora. De facto, Alfredo de
Sarmento apresenta uma narração muito semelhante da lenda em Os sertões
d’África24, um livro que, tendo embora sido publicado em 1880, quinze anos
depois do poema em análise, reúne folhetins anteriormente vindos a público
no Diario da manhã e que tiveram por base uma viagem iniciada a 27 de
julho de 185625. Além disso, um relato idêntico ao do volume de 1880 viera a
lume em 1859, no número de 28 de maio do Boletim official26, sob o título
que Marecos também usará: Juca, a Matumbolla. (Lenda africana).
Os elementos mais importantes do poema estão contidos na narrativa de
1859, que é mais detalhada (e também mais neutra, na medida em que evita o
comentário das crenças em causa) que a versão acolhida no livro de 1880. Na
24
Os sertões d’África (Apontamentos de viagem). Com um prologo de Manuel Pinheiro
Chagas. Lisboa: Editor Proprietario – Francisco Arthur da Silva, 1880. O relato em causa
vem no capítulo VI, «A embaixada. – Uma lenda gentilica», pp. 42-6.
25
Sarmento, segundo escreve, participava da «expedição que no reino do Congo ia tomar
posse das minas de malachite, situadas nas serras do Bembe» (p. 15). De acordo com
Frederico Antonio Ferreira, a exploração dessas minas tinha sido entregue à Western
Africa Malachite Cooper Mines Company Limited, que pertencia ao ex-traficante de
escravos luso-brasileiro Francisco António Flores. (Cf. Investimentos privados de brasileiros na África Portuguesa: o caso da Western Africa Malachite Copper Mines Company. Comunicação apresentada ao XI Congresso Brasileiro de História Econômica / 12.ª
Conferência Internacional de História de Empresas. Vitória, Espírito Santo, 14-16 de
setembro de 2015. [Em linha]. Disponível em WWW: <http://www.abphe.org.br/ arquivos/2015_frederico_antonio_ferreira_investimentos-privados-de-brasileiros-na-africa-portuguesa-o-caso-da-western-africa-malachite-copper-mines-company.pdf>.[Consult. 04/02/
2018].
26
N.º 713, pp. 5-7.
-18-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
versão do Boletim, num espaço e tempo definidos, numa roda de viajantes
formada ao início da noite em torno de uma fogueira, o narrador cede a palavra a um capitão cujo nome não revela, apresentando-o como ―filho do país‖.
Este conta aos seus companheiros, que tinham estado a falar de «coisas extraordinárias – de ladrões e assassinatos, de bruxas e feiticerias» (p. 144),
uma história de matumbolas, definidos de forma idêntica em ambas as versões:
Matumbolas são pessoas a quem os feiticeiros tiram a vida, pelo poder diabólico dos seus feitiços, para satisfação de ódios próprios, ou alheios, quando
lhes pagam, e que pelos mesmos meios ressuscitam, a fim de fazer delas o
que bem lhes parece. Depois de ressuscitados andam, falam, sentem, como os
verdadeiros vivos; somente conservam sempre o frio próprio do cadáver.
(p. 144)
O narrador de 1.º grau apresenta a fala do narrador intradiegético como
tendo um «tom que denotava a mais inteira e robusta fé» (p. 144). Aqui reside uma das mais importantes diferenças entre esta versão de 1859 e a de
1880: nesta última, o narrador de 2.º grau – que é identificado de modo preciso como sendo o major André Pinheiro da Cunha, natural de São José de
Encoge – é objeto de uma desqualificação prévia por parte do narrador extradiegético, que diz tratar-se de alguém «supersticioso como são todos os filhos do país» (p. 148). Além disso, a narrativa secundária é agora apresentada como «uma lenda gentílica» (p. 148), enquanto o seu narrador passa a ser
referido como «crédulo major» (p. 149), em vez do mais isento «nosso bom
capitão» (p. 144). No texto de 1880, há ainda um pormenor que antecede a
narração da história e que, podendo não ser intencional, não deixa de contribuir para aumentar o descrédito do narrador de 2.º grau: «E o major, depois
de levar à boca o frasco com aguardente que segurava na mão direita, e beber
um bom trago, começou a seguinte narrativa» (p. 149). Por último, a segunda
publicação diz no final, num registo humorístico, que «o narrador desta lenda
gentílica, ficou sendo conhecido pelo major Matumbola.» (p. 151) Esta mudança na representação do narrador é certamente sinal da distância entretanto
criada entre o autor e o espaço sobre que fala, mas estará também relacionada
com o público a que se dirige, que é agora o da metrópole e não o dos funcionários coloniais e da pequena elite local que consumiria o Boletim.
-19-
Francisco Topa
A par destas diferenças na avaliação do narrador da história de matumbolas, os dois relatos convergem quanto à caracterização da sua visão dos africanos, marcada por um padrão que já tem muito de europeu. De facto, embora, como já vimos, o narrador de 2.º grau não seja considerado um dos nossos, é europeia a avaliação que ele faz dos habitantes de Quimbaxi ao dizer
que «conservam quase todos os hábitos gentílicos do comum das raças africanas, não tendo tido ocasião de os modificar sensivelmente pelo trato aturado com os europeus.» (pp. 144 e 149)
Idêntica postura subjaz à apresentação do pai de Juca como um ―preto‖
―selvagem‖. O mesmo tipo de olhar europeu se nota ainda na descrição da
beleza da protagonista. Veja-se esta passagem da edição do Boletim:
Juca era um dos mais notáveis tipos de formosura africana, que se realça
principalmente pela regularidade das formas. A cor negra retinta do seu rosto
insinuante, a alvura de seus belos dentes, a viveza de seus rasgados olhos, que
se fixavam penetrantes como se uma viva chama os iluminara, e sobretudo os
admiráveis contornos do seu corpo airoso e flexível, apenas coberto com um
amplo pano, a tornavam digna de inspirar o cinzel de um grande artista.
(p. 144)
-20-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
Na versão de 1880, a apreciação fica limitada basicamente à primeira frase: «Juca, era um dos mais notáveis tipos da beleza africana, que se realça
principalmente pela regularidade e pureza das formas.» (p. 149) Mais explícita do olhar europeu é a condenação da sensualidade atribuída à mulher
africana no seguinte trecho do Boletim: «Por uma rara exceção nas mulheres
da sua raça, Juca queria conservar-se pura.» (p. 145) O texto de 1880 omite
esta consideração, dizendo apenas que Giolo vira «rejeitado o seu afeto»
(p. 148) por parte de Juca. Um último aspeto que corrobora a condição cultural dupla do narrador de 2.º grau, e que consta de ambas as versões, tem a ver
com a circunstância de ele, conquanto ―filho do país‖, comprar escravos.
-21-
Francisco Topa
Página inicial do relato de Alfredo de Sarmento
no Boletim official de 28/05/1859
No poema de Ernesto Marecos a história de Juca não é apresentada em
segundo nível e o seu narrador, embora manifeste de vários modos posicionamentos afetivos e ideológicos face ao que narra, não se distancia do universo de crenças que sustenta a narrativa. Quanto aos elementos narrativos, a
comparação do poema com as versões de Sarmento mostra que a localização
espacial é a mesma, como são os mesmos o nome, a situação familiar e a
descrição da protagonista. São visíveis contudo, nestes e noutros aspetos,
algumas diferenças, resultantes da expansão do quadro de base e da introdução de novos elementos ou da modificação de alguns pormenores. Um dos
casos diz respeito ao pai de Juca: nas versões de Sarmento, ele está entrevado, devido à idade, ao passo que no poema é cego; por outro lado, aquelas
não indicam o seu nome, ao passo que no texto de Marecos a personagem é
referida como Tope.
O caçador que se apaixona por Juca também se chama Giolo em ambas as
versões de Sarmento e recorre igualmente a um feiticeiro, cujo nome não é
-22-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
explicitado, para converter Juca em matumbola. Na publicação de 1859,
Giolo hesita na tomada de decisão, sendo dominado por sentimentos contraditórios que o narrador interpreta à luz de uma moral europeia:
Longo tempo vacilou em tomar esta suprema resolução. A compaixão lhe
abafava por vezes o sentimento do crime, quando via Juca tão inocente, tão
desprecatada do mal que a ameaçava. Então ele a venerava como à estrela da
sua vida, como ao génio bom que lhe presidira ao nascimento e o guiava na
senda do mundo. Mas logo tornava a reparar quanto ela era bela, e o aguilhão
dos desejos brutais o incitava mais do que nunca. Giolo era um selvagem; na
sociedade em que existia não tinha aprendido a moderar-se. (p. 145)
Esta representação menos maniqueísta de Giolo será depois aproveitada e
desenvolvida por Marecos, estando quase ausente da versão de 1880.
O resto da intriga é semelhante, inclusive a cena do cemitério e do raio
que fulmina o feiticeiro. Há diferença contudo no destino de Giolo, que desaparece depois de ter sido visto «a embrenhar-se nas mais fundas espessuras.» (pp. 147 e 151) O narrador também nada diz sobre a lenda do reencontro dos dois amantes em certas noites no cemitério.
Perante isto, creio que fica provado o ponto de partida de Ernesto Marecos: em lugar de ter colhido diretamente o material no folclore angolano, o
nosso autor encontrou-o já pronto numa fonte escrita da responsabilidade de
alguém com quem até privou durante algum tempo. Mas isso não retira mérito nem significado ao poema, que se afirma como um texto inaugural, por
vários motivos: por ser, tanto quanto se sabe, o primeiro poema narrativo de
temática angolana; por aproveitar matéria tradicional da cultura local; por
representar Angola e os seus habitantes de um modo favorável, apesar da
cedência à visão romântica e ao exotismo. Além disso, e apesar do que fica
dito, a versão de Marecos difere da de Sarmento numa questão essencial: o
foco do poema não é o fenómeno dos matumbolas mas antes o amor, representado como estando inscrito na ordem da natureza e na ordem divina e
como algo a que não se pode/deve resistir. Note-se aliás que o desfecho é
outro: o reencontro feliz do casal numa vida post mortem. Por outro lado, e
apesar do título, o protagonista é menos Juca que Giolo.
Antes da discussão sobre a sua eventual inclusão na literatura angolana,
façamos um breve estudo do texto, começando por notar a falta de bibliografia sobre o fenómeno do matumbola (registado como maiombola nos dicio-23-
Francisco Topa
nários de Cordeiro da Matta e de Assis Júnior)27, que, a avaliar pelas versões
de Sarmento e de Marecos, apresenta contornos semelhantes aos do zombie,
característico do folclore haitiano e de algumas regiões de África.
Outro aspeto a observar tem que ver com a representação convencional de
África – de resto semelhante à que se observa na obra de José da Silva Maia
Ferreira28 –, acompanhada de algum menosprezo do seu habitante:
Oh! mente a Europa! Da criação a seiva
Grandiosa, cheia de vigor e graça
Aos olhos destes povos não pulula,
Não vem ao solo estéril que retalham
As construções dos homens! (…) (vv. 15-19)
(…) Lá sim que é vida!
De dia, que fulgor no astro dos astros!
Que céu, de noute, que brilhar d’estrelas!
E dia e noute, que harmonia ignota
No ciciar da brisa entre as ramagens
Da floresta opulenta! Que mistérios
De amor sem causa, de prazer sem termo,
Ali o peito e a mente sobressaltam! (vv. 23-30)
Acentuando essa linha, surge a espaços a crítica a certos hábitos africanos: veja-se a nota ao v. 59, em que Marecos apresenta a cubata como uma
habitação «ordinariamente incómoda, triste, imunda e desgraciosa». Mas, a
par disso, nota-se também um certo conhecimento sobre alguns aspetos do
espaço (visíveis na referência a acidentes geográficos como o rio Loge ou a
uma árvore como a incendeira (v. 555)) e sobre alguns elementos tradicionais. Atente-se na nota ao v. 327, sobre os pregos que os caçadores de animais ferozes cravam na coronha da espingarda, que não dispensa contudo o
comentário humorístico no fim da explicação, revelando assim a incapacidade de Marecos para perceber o significado da prática: «É de crer que nem
sempre corresponda o luxo dos pregos ao número das proezas.» Quase um
27
Com a exceção de uma referência de passagem num livro de Óscar Ribas (Sunguilando:
contos tradicionais angolanos. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1967), não encontrei
nenhuma obra sobre o tema, tendo sido também infrutíferas as consultas que fiz a alguns
antropólogos que trabalham sobre Angola e outros espaços africanos.
28
Espontaneidades da minha alma: às senhoras africanas, publicado em 1849 e considerado o primeiro livro de poemas impresso no território.
-24-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
século depois, em 1949, Castro Soromenho, em Terra morta, faz observação
idêntica, abstendo-se contudo de comentar ou de interpretar:
Eram todas de carregar pela boca e muito velhas, do tempo das ―guerras negras‖, apreendidas aos indígenas, que durante anos as esconderam. Por fim,
escolheu uma de cano comprido, com a coronha cheia de pregos de cabeça
amarela, dispostos em desenhos, e foi à varanda para a examinar melhor à luz
do Sol.29
A explicação científica pode hoje ser encontrada em obras de outra natureza, em autores como Isabel Castro Henriques, que escreve o seguinte a
propósito dos quiocos:
Por estas razões, as armas de fogo são decoradas com os sinais religiosos indispensáveis, tal como devem informar a respeito do número e da qualidade
dos animais abatidos. Nestas decorações estão, por isso, misturados os ―medicamentos‖, fornecidos pelos adivinhos ou pelos especialistas, e os elementos
provindos dos animais abatidos, que servem para evidenciar a dexteridade do
caçador, ao mesmo tempo que indicam a protecção recebida dos espíritos,
sem a qual não podia haver êxito, e de ―aviso‖ para os próprios animais. 30
Outros sinais da familiaridade de Marecos com aspetos da cultura de Angola estão, por exemplo, na referência às «cuias primorosamente lavradas»
(v. 636), na nota ao v. 464, a propósito da hostilidade das populações contra
alguns feiticeiros, ou na utilização de algumas palavras do kimbundu, geralmente acompanhadas de nota, como libata, cubata, zumbi ou milongo.
Apesar disso, e como seria de esperar, o substrato estético-ideológico do
poema é europeu, o que compromete a representação do espaço e das personagens. Repare-se, por exemplo, na descrição da cubata de Juca:
Em torno verdes alfombras,
E por dentro do cercado
Um tapete aveludado
De plantas tecido enfim.
Como a rosa na alcatifa
Do prado apenas vestido,
Era um diamante perdido
29
Terra morta. Lisboa: Edições Cotovia, 2008, p. 199.
Percursos da modernidade em Angola: dinâmicas comerciais e transformações sociais
no século XIX. Pref. de Jean Devisse. Trad. de Alfredo Margarido. Lisboa: Instituto de
Investigação Científica Tropical / Instituto da Cooperação Portuguesa, 1997, p. 618.
30
-25-
Francisco Topa
Entre o musgo de um jardim! (vv. 70-77)
Ou na caracterização da protagonista:
Voltava depois ligeira,
Que nem gazela a alcançara,
Qual visão que se librara
Nos vapores da manhã. (vv. 146-9)
Ou ainda na moralidade cristã do arrependimento de Giolo:
Amei-te muito: – perdi-me;
Quis haver-te por um crime,
E o Deus do céu, que o não quis,
A ti deu glórias sem termo,
E a mim deixou-me neste ermo
Mais só e mais infeliz. (vv. 926-931)
Além disso, segundo os poucos comentadores que atentaram no poema de
Marecos, temos os elementos da estética sepulcral, característica do chamado
ultrarromantismo, que o autor teria ido buscar a Soares de Passos e ao seu
célebre O noivado do sepulcro, cuja primeira versão fora publicada em 1856.
Maria Aparecida Ribeiro, numa passagem já citada de um artigo seu, considerou mesmo que Juca «é uma espécie de ―noivado do sepulcro‖ de cenário
tropical», posição idêntica à de Francisco Soares, para quem Marecos «misturou a lenda com traços nitidamente extraídos ao famoso poema de Soares
de Passos»31. Nenhum dos dois ensaístas documenta porém a alegada evidência, que me parece de resto ser contrariada pela pequena relevância estrutural
da cena e pela sua baixa densidade patética, concentrada em escassos versos.
Seja como for, o poema tem particularidades interessantes, como é o caso
do símile que Marecos utiliza para dar conta da perturbação que involuntariamente Juca inspirava naqueles que a viam:
Como um astro que despede
Uma luz que doutro é filha,
Como um astro que mais brilha
31
«Tradição, ruptura, hibridismo e identidade na narrativa Angolana». In MENDES,
Marília, ed. A língua portuguesa em viagem: actas do colóquio comemorativo do leitorado de português da Universidade de Zurique, 20 a 22 de Junho de 1996. Frankfurt am
Main: Verlag Teo Ferrer de Mesquita, 2003, p. 156.
-26-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
E que menos calor tem;
Assim Juca se não pede
Ilusões de amor à vida,
Mais de uma paixão sentida
Inspirou ela também. (vv. 246-253)
Como o sol que as nuvens cria,
E mais tarde não atenta
Se nelas brame a tormenta,
Se as vai um raio cortar;
Juca passava e não via
Que ao pé dela tumultuava
Cada afeto que gerava
O encanto do seu olhar. (vv. 278-285)
Quanto ao interesse de Juca, a matumbola para a literatura angolana, não
é fácil chegar a uma conclusão consensual e definitiva. Francisco Soares, que
abordou o tema com demora, entende que a obra «não se integra tecnicamente na literatura angolana»32:
Dizemos que ele não pertence à literatura angolana, principalmente, por dois
motivos: em primeiro lugar, não deixou traços nas líricas e narrativas que se
viriam a publicar posteriormente; em segundo lugar, foi publicado muito depois de ele ter estado no país e insere-se num projecto estético pessoal acordado a um dos traços do romantismo europeu da época (a recuperação de tradições populares), iniciando uma curta série bibliográfica de exótica aproximação às tradições, que se continua em O Tesouro de Tapir (sic): Legenda
Extraída das Tradições Germânicas acerca da Morte de Átila (Lisboa, 1866),
e Savitri: Lenda Indiana (Lisboa, 1867). A referência do poema é, pois, lunda, pela ―exofilia‖ de uma série típica de um funcionário colonial europeu e
não por angolanidade, nem por angolanização. (…) a curta estadia no país lhe
coarctou as hipóteses de uma integração efectiva e profunda.33
São vários os argumentos, todos eles passíveis de discussão que acabará
por requerer que se explicite o conceito de literatura angolana. Quanto ao
primeiro, o de o poema não ter deixado «traços nas líricas e narrativas que se
viriam a publicar posteriormente», poderá objetar-se que pelo menos em
duas obras de José Eduardo Agualusa34 há personagens a quem são atribuí32
«Retrato de grupos», cit., p. 102.
Ibid., pp. 102-3.
34
Veja-se o capítulo «A longa insónia do padre» de A feira dos assombrados e outras
estórias verdadeiras e inverosímeis ou a seguinte passagem de As mulheres do meu pai:
«(…) o Faustino inventou toda uma história segundo a qual o meu contrabaixo, o Walker,
33
-27-
Francisco Topa
das características de matumbola. A fonte poderá ser outra, mas é provável
que a sugestão tenha sido colhida em Marecos. Tratar-se-á contudo de um
traço recente, que não invalida a suposição de o poema de Marecos ter tido
uma muito escassa (ou até quase nula) circulação na Angola da época. De
qualquer modo, o que parece estar em causa neste ponto da argumentação de
Soares é uma questão ligeiramente diferente: a inclusão do poema numa
tradição literária angolana. Ora, do meu ponto de vista, o problema não pode
ser colocado assim, na medida em que, à época, essa tradição estaria ainda,
na melhor das hipóteses, a começar a formar-se. É por isso que a falha que
Francisco Soares aponta ao poema de Marecos também pode ser apontada à
generalidade dos textos produzidos até ao aparecimento da chamada geração
de Mensagem em meados do século passado.
Vejamos agora o segundo argumento do investigador, o facto de a obra
ter sido publicada muito depois da estada de Marecos em Angola e de se
inserir «num projecto estético pessoal acordado a um dos traços do romantismo europeu da época (a recuperação de tradições populares)». Quanto ao
desfasamento na data da publicação, não vejo que relevância possa ter para a
questão: é certo que sugere que o leitor visado por Ernesto Marecos seria o
metropolitano, mas a verdade é que dificilmente poderia ser de outro modo,
se pensarmos nas condições históricas de Luanda e de Angola. Relativamente ao outro ponto, aceita-se sem dificuldade a afirmação de Soares, embora
fosse conveniente fazer um verdadeiro estudo comparativo dos três poemas,
Juca, O Thesouro de Fafnir e Savitri, publicados em anos consecutivos.
Apesar disso, não creio que a integração numa série maior – do autor e de
uma estética – impeça a inclusão do texto na literatura angolana. A verdadeira questão é a que Soares levanta em seguida: a alegada exofilia do texto,
incompatível, segundo diz, com uma verdadeira angolanidade. Esta tem sido
de facto a tendência da crítica e da historiografia, tanto angolanas como estrangeiras: submeter os textos e os autores a uma análise que permita decidir
se o seu ponto de vista quanto a Angola e aos angolanos é exótico ou endótico, isto é, como escreveu Margarida Calafate Ribeiro, «determinar a partir de
que espaço social e geocultural a literatura em análise fala, ou seja, qual é o
estava assombrado pelo espírito do Sylvester Page e que quem quer que o tocasse se
transformava numa espécie de matumbola, num corpo vazio, de que o espírito de Page se
apropriava para voltar a tocar o instrumento.» (5.ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 2007,
p. 339).
-28-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
seu lugar de enunciação»35. Uma tal prática, que mistura razões de tipo literário com razões de outro tipo e abre um grande espaço para a subjetividade, é
compreensível se tivermos em conta que, como observou Rita Chaves, a
literatura angolana (e as dos outros PALOP) «nasce sob o signo da reivindicação, trazendo para si a função de participar no esforço de construir um
espaço de discussão sobre a condição colonial»36, definindo-se «como um
instrumento relevante de transformação social», a quem cabe também «costurar uma unidade algo fugidia»37. De acordo com essa conceção, a literatura
angolana teria «mais ou menos um século, o tempo em que se começa a esboçar uma identidade literária, de matriz europeia e africana, conectável com
um desejo de autonomia proto-nacionalista e depois nacionalista, retrospectivamente percepcionado»38. Por outro lado, seria possível incluir (ou admitir a
inclusão, agora ou um dia) textos e autores mais ligados a Portugal e à colonização, como elementos, aparentemente isolados e descontínuos, de uma
atividade cultural e literária que acompanha a história da futura nação. Creio
que é esse o caso de Juca, a matumbola de Ernesto Marecos, embora a resposta definitiva só possa ser dada pela sua comunidade de leitores e pelo
tempo.
Mas, para além de Juca, Ernesto Marecos deixou outros poemas ligados a
Angola, a começar por um que já foi referido atrás: o elogio a D. Pedro V
recitado no Teatro de Luanda a 16 de setembro de 1857 e que começa pelo
verso «Não – nunca mais se queixará um povo»39. Usando o decassílabo
branco, a composição apresenta o reinado do monarca, que começara dois
anos antes, como o início de um novo ciclo de liberdade e de esperança:
Não – nunca mais se queixará um povo
Em ignóbeis grilhões acorrentado;
Na face do universo um pensamento
De Deus se gravou já – grande como ele,
35
«Um desafio a partir do Sul: uma história de literatura outra». In PADILHA, Laura
Cavalcante & RIBEIRO, Margarida Calafate, org. Lendo Angola. Porto: Afrontamento,
2008, p. 180.
36
«Vida literária e projeto colonial: tradição e contradição no Império português». In
Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. Cotia: Ateliê Editorial, 2005, p. 289.
37
Ibid.
38
RIBEIRO, Margarida Calafate, op. cit., p. 180.
39
Boletim official do Governo Geral da Provincia de Angola. 19/09/1857, p. 9.
-29-
Francisco Topa
Como ele nobre e puro – a liberdade!
O povo é hoje uma família imensa,
Cujo pai chamam Rei; não é a turba
De vis escravos d’algemados pulsos,
Que o pé esmaga de um senhor despótico.
O povo é livre – livre ri e chora,
Blasfema e canta, não lhe força o medo
As convicções, já sente e pensa e fala
Por si, desassombrado, em pleno dia! (vv. 1-13)
Não são visíveis marcas angolenses, a não ser quando, já quase no final, o
sujeito poético sinaliza a distância – física, mas não só física – que o separa
do destinatário, contraponto o ―eco‖ de ―aqui‖ aos ―brados‖ de ―lá‖:
E pois é hoje o dia – aqui um eco
Responda aos brados que festivos soam
Por lá a esta hora. – Dê-se ao Rei um hino; (vv. 44-46)
O segundo poema intitula-se «A Luanda» e, como fica dito, foi recitado
na mesma data e local, vindo depois a ser incluído no livro Primeiras inspirações, de 1865. Formado por estrofes de 12 versos de redondilha maior, o
texto homenageia a «Luanda gentil» (v. 2), «casta e modesta» (v. 5). Depois
de uma comparação com Lisboa que resulta desfavorável a Luanda, o sujeito
poético sublinha a condição portuguesa da cidade africana: «Pois teus filhos
são seus filhos / E todos eles irmãos!» (vv. 35-6). Um pouco mais à frente,
vale a pena destacar a seguinte passagem dada a similaridade – evidentemente só formal – do último verso com um trecho («Um só Povo, uma só Nação!») do atual hino de Angola:
Cá e lá a mesma terra,
Terras da mesma nação,
Na paz, nas lides da guerra,
Um só povo, o mesmo pão. (vv. 38-40)
-30-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
Depois de passar em revista alguns aspetos da história do território, o poema termina num registo eufórico, com uma profissão de fé no futuro grandioso e, se bem leio, independente de Angola:
Então os dias felizes!
Serás tu grande também;
E filhos doutros países
Hão de querer-te por mãe! (vv- 85-8)
Os dois últimos poemas são dirigidos a duas irmãs e também vieram a
lume na obra Primeiras inspirações: um intitula-se «Flor da África», data de
1856 e é dedicado «À Ex.ma Sr.a D. Cândida M. Gamboa», ao passo que o
outro apresenta o título «Um conselho» e é dirigido «À Ex.ma Sr.a D. Adelaide Gamboa». Sinalizando os laços que o autor estabeleceu em pouco tempo
na sociedade local, os textos apresentam escasso interesse estético, dominados que estão pela representação convencional da jovem cuja pureza se dese-31-
Francisco Topa
ja que continue a ser preservada. Assinale-se contudo, no primeiro, a referência contrastiva à dureza do clima africano:
Como desponta no mato
Uma rosa, sem cultor,
Neste solo adusto e ingrato
Tu brotaste, meiga flor;
Como nas trevas da vida
De mágoas a mais transida
De uma luz se vê querida
No horizonte o arrebol;
Tu, formosa, em terra alheia,
Floriste, d’encantos cheia,
Nestes desertos de areia,
Aos ardores deste sol! (vv. 1-12)
No livro Primeiras inspirações há ainda um poema, intitulado «Paixão
rápida» (pp. 176-7) com a indicação de que foi escrito em Luanda. Não apresenta contudo nenhuma outra indicação textual ou paratextual que o relacione com Angola, pelo que não se justifica que seja contemplado no corpus
angolense de Marecos.
Para além da poesia, a experiência angolana do nosso autor refletiu-se
também na prosa, concretamente em três dos folhetins que publicou em 1864
no Commercio de Lisboa, dois dos quais viriam a ser recuperados num capítulo do livro Contos e recordações, de 1867. Não sendo propriamente antipática, a visão de Angola que tais escritos revelam é marcada por uma certa
sobranceria, pontuada de um humor algo satírico.
No primeiro deles, publicado a 5 de março de 1864, conta-se um episódio
que o autor diz ter vivido dois anos antes (portanto numa segunda passagem
por Angola) no decurso de uma viagem a Quilengues, na Huíla. A propósito
da chuva que se fazia sentir no presente da escrita, Ernesto Marecos narra a
história de Chico Coelho, um homem que os seus conterrâneos acreditavam
ter a capacidade de fazer chover. De modo mais nítido do que se verifica em
Juca, a matumbola, a representação do espaço africano e dos seus habitantes
é dominada pelo cliché desfavorável, que contempla uma série de aspetos, a
começar pela alegada indolência:
-32-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
O gentio de Quilengues – que é aliás o mais sossegado e inofensivo de todos
os gentios existentes – pouco propenso a deixar-se incomodar por qualquer
calamidade cujos resultados perniciosos se não revelem em ato imediato, porque indolente, até à exageração, tolera tudo com preferência ao trabalho, e
sóbrio, até à privação, (nas comidas: entenda-se bem) contenta-se com pouco,
e vive resignadamente ainda que lhe não falte, não o pão, mas a mandioca
quotidiana (...). (p. 100)
A língua e o comportamento verbal são objecto de valoração semelhante,
neste caso apoiada numa imagem hiperbólica:
(...) caímos de chofre no seio da maior algazarra de negraria de que nem
mesmo obterá uma longínqua ideia, nos seus devaneios, o enfermeiro de doudos ou o pedagogo de rapazes. (p. 101)
Também a crença na capacidade do fazedor de chuva é ridicularizada:
Não havia seriedade possível que obstasse ao riso em presença de um destempero de semelhante jaez; e eu mordia visivelmente os beiços enquanto o
chefe tentava inutilmente, com o auxílio do língua, fazer perceber àqueles
homens o absurdo monstruoso em que laboravam. (p. 102)
Outro folhetim, publicado a 19 de julho do mesmo ano, apresenta uma visão mais equilibrada da realidade angolana, na medida em que agora o humor cáustico de Marecos incide também sobre as falhas da administração
portuguesa. O ponto de partida é um motivo a que poucos folhetinistas de
ontem ou cronistas de hoje conseguem fugir, a falta de assunto:
Assim, espraiando eu hoje a vista esmorecida por tudo quanto calculei me
pudesse dar em resultado um folhetim, e colhendo, a cada tentativa, um desengano; (...) ocorreu-me naturalmente a lembrança das reflexões extravagantes que, acerca de jornais e folhetins, fizéramos eu e um meu amigo, em ocasião em que mal me podia preocupar o logro de que hoje sou vítima na posição em que tantos embaraços me salteiam. (p. 115)
O cenário continua a ser os «sertões do sul da nossa África ocidental»,
concretamente Quilengues. A primeira crítica está relacionada com a escassez das forças militares portuguesas no território:
Aqui não pude deixar de interromper o discurso do orador com um sorriso
malicioso. É que o aparato militar invocado a propósito do destacamento de
Quilengues, fizera-me lembrar a arrogância enfática com que num ato das Fo-33-
Francisco Topa
lies dramatiques, o mesmo só comparsa sensaborão simula alternativamente
as forças numerosas de Geta e o exército poderoso de Caracala. (p. 116)
No mesmo registo humorístico, nota depois Marecos o absurdo de certos
rituais militares:
Verdade seja que dois cornetas lhe aumentavam sensivelmente a importância,
pois é singular como na África[,] por mais diminuta que seja a força que se
encontre em qualquer sítio, se depara sempre aí com um corneta a esfalfar-se
desde pela manhã até à noite, tocando a revistas e exercícios, que não só não
há, mas que mesmo fora impossível haver. O gentio, no entanto, contenta-se
com aquele inocente apelo à sua submissão, e passa, saudando a bandeira, por
detrás da qual não há talvez, às vezes, um defensor, mas ao pé da qual há
sempre e infalivelmente um corneta em pleno e perpétuo exercício das suas
funções. (p. 116)
O ponto principal do folhetim é a observação sobre uma espécie de jornal
falado que o soba local promovia, como forma de se manter a par do que
acontecia na comunidade e fora dela:
Era, nem mais nem menos do que um jornal a cuja colaboração o bom do soba obrigava os seus súbditos, e em que cada um era editor responsável da parte que redigia.
O primeiro personagem, pausado e monótono, personificava admiravelmente o artigo de fundo sobre que o soba, através das controvérsias oposicionistas, proferia, sem recurso, a opinião a que ele chamava modestamente a do
país.
Ao principal interlocutor de entre os recém-chegados de distantes paragens cabia[,] sem dúvida alguma, a secção de notícias estrangeiras. O folhetim representava-o, por uma forma natural e apropriada, o chefe da coorte juvenil que espairecia pelas festas, e nelas apreciava os ridículos e as belezas e
fazia ampla colheita de bons ditos e saborosos epigramas. (…)
Tínhamos pois, entre os selvagens, devidamente estabelecido o jornal, não
como o compreendem na Europa culta, mas, – e nada perdia com isso, – na
sua máxima simplicidade, ainda que já adornado com todos os seus brilhantes
acessórios: sem falsos programas, nem verrinas descompostas, mas conscienciosamente elaborado, cheio de verdade e de singeleza, e escutado, sobretudo,
com uma atenção que os nossos estão longe de poder conciliar por cá.
(pp. 120-1)
O folhetim inclui também uma série de observações sobre os costumes do
povo local, em que às vezes se nota alguma capacidade de compreensão (a
propósito das danças, por exemplo). Domina contudo a postura etnocêntrica,
visível nos comentários sobre as práticas medicinais:
-34-
Ernesto Marecos e a literatura angolana
Adoece um negro: – (dos que têm alguma coisa de seu, já se vê, porque aos
que são pobres como Job ninguém contesta o direito de adoecer e morrer em
completa liberdade). – Cerca-o, na pocilga em que jaz deitado, a família lacrimosa, e chama-se, em ato continuo, quimbanda de sólida reputação.
(Quimbanda é o que exerce a arte de curar, seja homem ou mulher, donde o
leitor infere necessariamente que a emancipação do sexo frágil caminha por lá
em muito melhor esteira do que entre as nações civilizadas). O quimbanda
não tacteia o pulso nem examina a língua do enfermo, mas esfalfa-se em perguntas que o levem a um seguro diagnóstico, e acaba receitando uma tolice,
que é o mesmo que tem sucedido a todos os quimbandas desde Esculápio até
ao primeiro médico dos nossos dias. O pobre negro não melhora. (p. 122)
O folhetim de 12 de março, que começa também com o tópico da falta de
assunto, é talvez o mais revelador da visão do autor sobre Luanda e Angola.
A primeira referência à cidade é feita em tom convencional, muito próximo
do que Marecos utilizara no poema «A Luanda» atrás referido: a cidade é «a
princesa das cidades africanas», «a capital de uma possessão grandiosa, a que
se não quis render ao culto ardente do holandês que a estremecia, e preferiu
arrastar uma existência de miséria, por ser leal ao que primeiro lhe conquistou o afeto ainda virgem.» (p. 111) Mas vem depois uma crítica contundente
ao descaso e à exploração a que o território estava exposto:
Ali vive de esperanças se é que o desengano lhe não travou já do coração;
percebe no seio os elementos vigorosos de tudo que é grande, e chora porque
lhos desconhecem, ou lhos não aproveitam; olha em roda e se vê que lhe bordam o manto com mais uma ou outra flor de efémera beleza, não distingue
uma sólida promessa de real prosperidade futura; encara com tristeza seus filhos que a vêm saudar lá dos extremos confins do sertão e lamenta que os impulsos do sangue generoso que lhes gira nas veias hajam de inutilizar-se ainda
como os das gerações que os precederam; sente que lhe falam ao ouvido em
palavras sonoras, e sorri-se ironicamente porque bem sabe que lhe pretendem
abusar da boa-fé, porque bem conhece que é debalde que os filantropos asseguram a liberdade ao negro, enquanto o deixam sujeito à mais odiosa, à mais
repugnante de todas as escravidões: a que imprime a ignorância. (pp. 111-2)
Outro aspeto interessante deste folhetim é a sugestão do aproveitamento
do espaço como motivo literário, naquilo que parece constituir uma justificação para o poema Juca, a matumbola, que viria a lume no ano seguinte:
Alguém virá porém um dia de Portugal que percorra estes desertos, que ame
sinceramente tudo o que é destas regiões, e que, narrando o que viu, lhes faça
e aos seus um serviço de subido valor: – se for poeta, que olhe para este horizonte mais opulento em estrelas, mais farto de luz que nenhum que beba a
-35-
Francisco Topa
inspiração no seio desta natureza única, e que nos dê uma das páginas formosas da poesia moderna! (p. 113)
Terminado este breve comentário sobre os textos angolenses de Ernesto
Marecos, é o momento de arriscar uma conclusão, que não pode deixar de ser
provisória. Se ficou bem demonstrado que a ligação de Marecos a Angola
não foi tão superficial quanto se pensava, não é ainda evidente como pode
um caso deste tipo ser enquadrado no conjunto das manifestações literárias
de Angola ou sobre Angola que se foram desenvolvendo desde o início da
colonização. Embora vá ficando claro e reunindo algum consenso o conceito
de literatura angolana que diversos ensaístas vêm formulando nas últimas
décadas, os critérios para a periodização dessa literatura e para a inclusão e
exclusão de textos e de autores suscitam ainda dúvidas, hesitações, perplexidades. Marecos é, naturalmente, um autor da literatura portuguesa, mas os
seus textos que aqui estiveram em discussão têm, do meu ponto de vista,
tanto interesse para a literatura angolana quanto, por exemplo, os poemas de
Espontaneidades da minha alma de Maia Ferreira. E, no entanto, este último,
apesar das restrições que todos os críticos colocam à qualidade estética da
obra, parece estar integrado no cânone angolano, devido a uma particularidade biográfica de significado muito discutível: o ter nascido em Luanda e o ter
sido o primeiro natural de Angola a publicar um livro de versos. A resolução
destas e de outras incongruências e a elaboração de um quadro teórico coerente requerem ainda um amplo trabalho de base que está apenas começado.
-36-
II. A edição
1. Orientação global
Do ponto de vista da transmissão, os textos recolhidos neste volume não
colocam dificuldades, na medida em que há sempre um único testemunho, do
tipo impresso. Além disso, todas as obras aqui reunidas foram publicadas em
vida dos seus criadores e, na sua maioria, tiveram uma edição em livro, sendo assim de supor que reflitam com a fidelidade possível a vontade autoral.
Nestas condições, optei por editar da forma mais próxima possível o testemunho que transmite cada texto, interferindo apenas em casos evidentes de
erros mecânicos (do autor ou, mais provavelmente, do editor). Esse princípio
orientador não me impediu contudo de atualizar a ortografia sempre que daí
não resultassem repercussões fonéticas ou de outro tipo.
2. Normas de transcrição dos textos
Como é sabido, a ortografia do período em que estes textos foram compostos e publicados – sensivelmente o terceiro quartel de oitocentos – ainda
não está completamente estabilizada: antes da Reforma Ortográfica de 1911,
adotada em Portugal (e nas então províncias ultramarinas) a partir de 1916,
não há uma verdadeira norma nacional. Em vez disso, cada escritor e cada
casa editorial definem o seu sistema, que tende a seguir – com incoerências e
falhas notórias – a linha francesa de base etimológica. Perante isto, creio que
se justifica a atualização ortográfica, desde que não se ponha em causa a
integridade fonética dos vocábulos e do texto. Com esta opção, fica certamente mais legível a parte da obra de Ernesto Marecos (e de Alfredo de Sarmento) que está em causa, facilitando-se a sua circulação no âmbito da literatura (luso)angolana.
Vejamos então as normas de atualização que adotei:
I. Vogais
1. Normalizei de acordo com o uso moderno a representação da vogal
oral fechada posterior em posição átona, grafando lugar e pudesse em vez de
logar e podesse;
2. Normalizei a grafia das vogais nasais, escrevendo enfim e não emfim;
-40-
A edição
3. Substituí o y por i, em palavras como mysterioso ou enygmático;
4. Modernizei a grafia dos ditongos orais, representando com i ou u a semivogal, em casos como paes > pais, heroe > herói ou conclue > conclui.
Quanto a guela, representei a semivogal segundo a norma atual, escrevendo
pois goela;
5. Normalizei a representação dos ditongos nasais, de acordo com a norma atual, escrevendo tão-pouco, em lugar de tampouco;
6. Representei de acordo com o uso atual a alternância da vogal anterior
fechada [i] ou da semivogal [j] com a vogal central fechada [ǝ]. Assim, substituí o e pelo i, em palavras como creança, creatura, réstea ou ceremonial
(que alterna com cerimonial); da mesma forma, passei i a e, em casos como
espriguiçar, intender, imbeber, involver, quasi, similhante ou siquer; substituí ainda ei por e em ocorrências do tipo de ceiámos ou escasseiar, e e por ei
em casos como bejo (que, fora da posição de rima, já aparecia como beijo40).
Apesar disso, conservei Zambezi, admitindo que a grafia correspondesse a
uma realização da época.
7. Normalizei também a representação da vogal posterior semifechada
[o], escrevendo pôde em lugar de poude.
8. Conservei certas formas arcaicas, na medida em que correspondem a
realizações alternantes, algumas das quais se mantiveram: cousa, dous e
noute (que alternam com coisa, dois e noite), dezesseis, prerromper (que
surge uma só vez, sendo mais frequente prorromper), redomoinhar ou alâmpada (que concorre com lâmpada);
II. Consoantes
9. Dado tratar-se de um mero diacrítico sem valor fonético, regularizei o
emprego do h de acordo com a norma atual, eliminando-o em casos como
herva, ahi ou thuribulo;
10. Por não serem reflexo da pronúncia, simplifiquei formas ortográficas
latinizantes, como as consoantes dobradas, exceptuando r e s em posição
intervocálica e com valor, respetivamente, de vibrante múltipla e sibilante
40
Com esta atualização, surgem três casos de rima com aparente variação metafónica,
todos no poema Juca, a matumbola e todos idênticos (sugerindo uma pobreza de rimas
que a análise do conjunto desmente): desejos / beijos (vv. 371-2), deseja / beija (604-5) e
desejo / beijo (887-8). Note-se porém que a variação será mais gráfica do que fonética.
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Francisco Topa
surda. Assim, por exemplo, sobba > soba; occidental > ocidental; difficultar > dificultar; aquelle > aquele; commandante > comandante; anno > ano;
apparecimento > aparecimento; macotta > macota;
11. Por se tratar também de um mero latinismo gráfico que nunca chegou
a refletir-se na pronúncia do português, eliminei o s do grupo inicial sc-,
passando scena a cena;
12. Pelo mesmo motivo, simplifiquei de acordo com a norma moderna
grupos em posição medial como -ct- (distincto > distinto e, de acordo com a
nova ortografia, acto > ato); -gm- (augmentar > aumentar); -mn- (solemne >
solene); -pt- (assumpto > assunto);
13. Representei as oclusivas velares segundo o uso moderno, passando
por conseguinte Archimedes > Arquimedes;
14. Regularizei também a representação das fricativas. Assim:
– a fricativa labiodental surda virá transcrita como f, o que implica a substituição do dígrafo helenizante ph em palavras como emphatico;
– as fricativas alveolares virão grafadas segundo as normas atuais, pelo
que socegado > sossegado, proseguir > prosseguir ou horisonte > horizonte;
– a fricativa palatal surda será representada como ch, s, x ou z, segundo o
uso moderno, pelo que explendido > esplêndido ou mecher > mexer. Mantive contudo chinguilador e chinguilamento – apesar de hoje serem habitualmente escritas com x –, dado que, a propósito da primeira forma, o autor
escreve: «(…) não respondo pela exatidão ortográfica nem desta nem de
nenhuma outra das palavras de linguagem bunda de que me sirvo (…)»
(p. 137);
– a fricativa palatal sonora virá transcrita como g ou j, de acordo com as
regras de hoje, pelo que bregeirote > brejeirote;
15. Mantive uma forma culta como spécimen e grafias que caíram em desuso em Portugal como registrar. Admitindo que não se tratava de gralha do
testemunho, conservei também corrolário, que está documentada para épocas anteriores;
III. Aspetos morfológicos
16. Separei e uni as palavras de acordo com o uso moderno, escrevendo a
fim (com valor de locução final) em lugar de afim;
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A edição
17. Respeitei todas as formas que evidenciam processos de redução silábica, como val (forma verbal) ou inda;
18. Acreditando que a grafia não tinha repercussão fonética dada a antiguidade da assimilação em causa, suprimi o s final da desinência de 1.ª pessoa do plural no pretérito perfeito de verbos pronominais da 1.ª conjugação,
escrevendo assim levantámo-nos e não levantámos-nos;
IV. Diacríticos
19. Regularizei o uso dos acentos;
20. Eliminei o apóstrofo em contrações do tipo de n’aquele, mas mantive-o nos casos em que indica a supressão de um grafema, como em
s’estampou, flor’s ou ar’s;
21. Regularizei a utilização do hífen, designadamente para separar, de
acordo com a convenção atual, os pronomes enclíticos, escrevendo pois confundi-lo, em lugar de confundil-o, mas mantendo faziam-a, em vez de atualizar para faziam-na;
22. Representei os numerais fracionais segundo o uso moderno, escrevendo um quarto em vez de 1 ¼;
V. Maiúsculas e pontuação
23. Respeitei o uso da maiúscula, mesmo nos casos que se afastam do uso
atual. Mantive-a também em início de verso e não a introduzi nas circunstâncias em que, pela norma atual, ela seria obrigatória;
24. Ciente de que a pontuação influi na configuração rítmica e entonacional do discurso e tem reflexos sobre a sintaxe e a semântica, respeitei escrupulosamente o original, mesmo quando este se afasta da norma contemporânea;
25. Mantive também sem alterações o uso do itálico, apesar de em muitos
casos ele se afastar da norma dos nossos dias;
3. Apresentação do texto e das notas
Em lugar de dispor os textos angolenses de Ernesto Marecos apenas de
acordo com a ordem da sua publicação, entendi que fazia mais sentido abrir a
-43-
Francisco Topa
recolha com a composição mais conhecida, Juca, a matumbola, de 1865.
Seguir-se-ão os outros poemas do autor relacionados com Angola, vindo
depois os textos em prosa: em primeiro lugar, os três folhetins publicados em
1864 no Commercio de Lisboa; em segundo, o capítulo «Episódios da África» do livro Contos e recordações, de 1867. O volume encerra com um
apêndice, reservado à transcrição das duas versões da lenda publicadas por
Alfredo de Sarmento: a que saiu em 1859 no Boletim official do Governo
Geral da Provincia de Angola (e que, segundo creio, está na base do poema
de Marecos); e a que foi incluída no livro Os sertões d’África (Apontamentos
de viagem), de 1880.
Antes de cada peça virá, em corpo menor, a indicação do testemunho que
a transmite. No caso dos poemas, os versos estarão numerados de 5 em 5,
para facilitar a citação. Como fica dito, limitei ao mínimo a intervenção sobre
os textos: corrigi, sem o assinalar, as gralhas óbvias e que não suscitam
quaisquer dúvidas; as que podem levantar alguma reserva, mesmo que mínima, virão indicadas no próprio texto (usarei os colchetes para sinalizar as
adições e as chavetas para marcar as supressões). As notas do próprio autor
serão apresentadas em rodapé, sendo a chamada feita através de algarismos
árabes. As notas da minha responsabilidade, que são aliás muito poucas,
virão no final de cada texto e servirão para esclarecer referências ou vocábulos menos comuns.
-44-
III. Juca, a matumbola
e outros textos angolenses
1. Juca, a matumbola: lenda africana
Testemunho: Juca, a matumbolla: lenda africana. Lisboa: Typographia do Panorama,
1865.
JUCA, A MATUMBOLA1
LENDA AFRICANA
I
5
10
15
Oh! mente a Europa que nos diz que vive
No âmbito estreito dos salões faustosos!
Oh! mente a Europa que nos diz que existem
O sol, a lua, o ar, que a natureza
Percebe, sente, aspira, reconhece
Por entre o lodo que enodoa as vestes,
De ouro franjadas mas de alvor sinistro,
Que arrasta a pobre que se crê tão rica!
Uma nesga de céu, de luz um raio,
De flor um só perfume, um hausto apenas
Da aragem, uma só nota longínqua
Do canto universal, são por ventura
O céu, a luz, o ar, a flor, o canto
Quais saíram do sopro omnipotente?!
Oh! mente a Europa! Da criação a seiva
Grandiosa, cheia de vigor e graça
Aos olhos destes povos não pulula,
Não vem ao solo estéril que retalham
As construções dos homens! Brota enérgica
____________________
1
Matumbola, segundo a crença de algum gentio da África, quer, pouco mais ou
menos, significar o que morto em virtude de certos feitiços, é por meio de outros
ressuscitado, ficando em dependência absoluta da vontade de quem lhe foi causa da
morte e da ressurreição, depois da qual assume todas as aparências da vida, conservando apenas da morte o gelo cadavérico.
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Ernesto Marecos
20
25
30
35
40
45
Lá onde é bênção expandir-se toda
Na terra em frutos pelo espaço em hinos,
Tal se contempla nos sertões imensos
Do africano torrão! Lá sim que é vida!
De dia, que fulgor no astro dos astros!
Que céu, de noute, que brilhar d’estrelas!
E dia e noute, que harmonia ignota
No ciciar da brisa entre as ramagens
Da floresta opulenta! Que mistérios
De amor sem causa, de prazer sem termo,
Ali o peito e a mente sobressaltam!
Que aroma virgem na espessura extensa!
Que lúcidas visões por entre as folhas
Das árvores gigantes! que doçura
Na voz do sabiá! que sons d’estranha
Sentida melodia exalam ecos
No doce segredar que só perturba
O rugir do leão! Lá, sim, que é vida!
Lá sim que s’estampou de Deus a ideia!
Lá sim que podem cânticos da terra
Tender ao infinito que os inspira!
Paragens, em que tudo é grande e ama,
Formosas regiões, que o amor povoa,
Daquele que do céu desce nas gotas
Do orvalho da manhã, ou sobre as asas
Da viração da tarde, eu vos saúdo!
II
50
-50-
Da África no seio adusto,
No vasto sertão da Lunda
Que atravessa, que fecunda
O Zambezi colossal;
Onde a natureza esplêndida
Se desata em maravilhas
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
Que são assombrosas filhas
De um prodígio vegetal;
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70
75
Junto ao sítio de Quimbaxi,
Uma povoação modesta
Perto de espessa floresta
Se abrigava do calor;
De entre as libatas 2 extensas
Destacava uma cubata 3
Como um fio de alva prata
Destaca da negra cor.
Viçoso, fresco, ridente,
Cingia-a toda, amoroso,
O cercado mais formoso
Que nos matos se viu já;
Era risonha a aparência.
Tudo ali era risonho
Como as imagens de um sonho
Que o zumbi 4 não turve lá;
Em torno verdes alfombras,
E por dentro do cercado
Um tapete aveludado
De I plantas tecido enfim.
Como a rosa na alcatifa
Do prado apenas vestido,
Era um diamante perdido
____________________
2
Libata é o conjunto de habitações, umas ao pé das outras, que pertencem ao mesmo
proprietário, régulo, chefe de família, etc.
3
Cubata, corresponde, em geral, na língua bunda, a qualquer casa de morada, opulenta ou pobre que seja. Cubata, no sertão, é a habitação de uma pessoa ou pequena
família, ordinariamente incómoda, triste, imunda e desgraciosa. Não ê muito, portanto, que maravilhe o asseio, a elegância, a fresquidão primorosa da cubata da nossa
lenda.
4
Ê a nossa alma do outro mundo.
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Ernesto Marecos
Entre o musgo de um jardim!
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95
100
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Naquela nítida estância,
Sob um aspeto celeste
Por que tudo se reveste
De encantos de tal condão?
Era asilo misterioso
Que ali tinha oculto e aberto
Para o génio do deserto
A fada da solidão?!
Era a mansão encantada,
Imersa em subtil perfume,
Habitação de algum nume,
De algum duende gentil?
Ou de um dos anjos divinos
Era acaso a doce gruta,
Longe da mundana luta,
Nas flores de eterno abril?!
Era. Dos anjos que em volta
De Deus se agrupam, recrescem,
Alguns há que à terra descem,
E é anjo a virgem também;
E ali morava uma virgem
Dessa pureza serena
Que nenhum mal envenena,
Que inda não manchou ninguém.
Chamava-se Juca. Nunca
Formosura tão completa
Deu em sonhos o poeta
A deidade que o seduz:
No rosto a beleza casta,
No corpo esbelto elegância,
Nos lábios suave fragrância,
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
Nos olhos um céu de luz!
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Mal o albor da madrugada,
Da serra a crista tingia,
Ela do sono surgia,
Despertava ao arrebol;
Mais tarde à porta assomava:
Tudo a festejava perto,
Auras, aves, num concerto
A que presidia o sol.
Arfava-lhe brando o peito
Num respirar cadenciado
Que nunca fora cortado
Sequer d’amor por um ai;
E, sob o dossel de flores
Desta inocente rainha,
Se ela não era sozinha
É qu’inda tinha seu pai.
Dos olhos do corpo o velho
Perdera a vista; mas dentro,
Dos seios d’alma no centro
Que doce luz a luzir!
Luz da suprema ventura
De que o cercara a donzela,
E se não podia vê-la
Podia-a, ditoso, ouvir!
Sobressaltos de ternura
Quantos quando de repente
Triste, harmónica, indolente
Lhe escutava a meiga voz;
Como que os céus se lhe abriam
Ao perceber-lhe o sorriso,
E formara um paraíso
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Ernesto Marecos
Da vida com ela a sós!
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Cedo, Juca na floresta
Escolhia os doces frutos;
Rica dos mil atributos
Que dão à Diana pagã,
Voltava depois ligeira,
Que nem gazela a alcançara,
Qual visão que se librara
Nos vapores da manhã.
Ao esmorecer da tarde,
Ia a pomba daquele ermo
Dar o braço ao pai enfermo,
Seus frouxos passos guiar;
Cantava-lhe, à noute, os cantos
De selvática harmonia
Que do deserto a poesia
Sabe, robusta, inspirar.
Estas duas existências
Ligava-as um santo abraço,
E em nenhuma havia espaço
Para alentos de outra fé.
Entre as sombras do crepúsculo,
Crera ver quem os dous visse
Junto à estátua da velhice
A da inocência de pé!
O velho à beira da cova,
Na sua aurora a criança,
Era sublime a aliança
Que cobriam esses céus;
Ele sem mais esperanças
Como ela sem mais desejos,
Ao ruído de seus beijos
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
Devia sorrir-se Deus!
III
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180
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190
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200
Murmura a brisa
Aos arvoredos
Doces segredos
Do seu amor,
Lúbrica esvoaça
Entre as palmeiras,
E as bananeiras
Abraça em flor;
Descendo o rio
Florida encosta
Como que gosta
De s’escutar,
Semelha a vaga,
Que desenrola,
Da terna rola
O suspirar,
Fulgem estrelas
No firmamento,
São cento e cento
Do espaço à flor,
E quando límpidas
Mais resplandecem,
É que estremecem
De casto amor;
Perfumes, sonhos,
Que ó Deus, tu casas,
Brincam nas asas
Da viração,
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Ernesto Marecos
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215
220
225
230
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De amor eflúvios
Que exala e cria,
De noute e dia,
A solidão;
Tímidas notas
De sons aéreos,
Que são mistérios
De puro amor,
Brotam da terra
Que borda a selva,
Ou de entre a relva,
Ou de uma flor;
Céus de safira
Percorre a lua,
E a face nua
Inunda a luz,
Desata os raios,
Vibra fulgores,
Fala de amores,
De amor seduz;
De ramo em ramo,
Na veiga ou prado,
Desde o sol nado,
De flor em flor,
Descantam aves
Nos seus gorjeios
Poemas cheios
De ardente amor.
Longa harmonia
Que passa, e é nada,
Perante a fada
Que habita ali;
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
235
240
245
Que um eco aos hinos
Que o rio entoa,
Que a ave pregoa,
Não acha em si!
Juca, a formosa,
Indiferente,
Não vê, não sente
O que é amor
Na luz d’estrelas,
Na voz da aragem,
Nem na linguagem
Da lua ou flor!
IV
250
255
260
Como um astro que despede
Uma luz que doutro é filha,
Como um astro que mais brilha
E que menos calor tem;
Assim Juca se não pede
Ilusões de amor à vida,
Mais de uma paixão sentida
Inspirou ela também.
Quantos ricos sertanejos,
Que em lá passar acertaram,
Seduzi-la não tentaram,
De ouro com promessas mil!
Foram baldados desejos,
Que o velho sublime de ira,
A todos os despedira
E a cada um chamara – vil! –
E Juca sorria ainda!
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Ernesto Marecos
265
270
275
280
285
290
Inda bem que o sol partia
Dos seus olhos, se sorria!
Era mais bela talvez
Se destacava, mais linda,
Nos seus risos inocentes
O marfim dos curtos dentes
Do ébano da lisa tez.
E os dias passam.
Juca, a formosa,
A misteriosa,
A casta flor,
Se amor inspira;
Indiferente,
Não vê, não sente
O que é amor!
Como o sol que as nuvens cria,
E mais tarde não atenta
Se nelas brame a tormenta,
Se as vai um raio cortar;
Juca passava e não via
Que ao pé dela tumultuava
Cada afeto que gerava
O encanto do seu olhar.
Paixão que em peito robusto
Se repele, e sobe, e desce,
Lavra enfim, e cresce, e cresce…
É a maior das paixões:
Tal a que invadira a custo,
Por ver Juca o seio ardente
De Giolo, o moço valente,
O caçador de leões.
Tentou afastar a imagem,
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Juca, a matumbola e outros textos angolenses
295
300
305
310
315
320
325
Tentou vencer-se – mentira! –
Quanto mais lhe resistira
Mais lhe era o fogo fatal!
Juca, o anjo da miragem
Que sonhara! – a formosura! –
Juca, o delírio! a loucura!
Juca, um amor infernal!
Mas foge o tempo.
Juca, a formosa,
A misteriosa,
A casta flor,
Se amor inspira;
Indiferente,
Não vê, não sente
O que é amor!
Um dia, à hora da sesta,
Vagava Giolo sozinho;
Eis que para no caminho,
Eis chega Juca depois.
Falam-se, e pela floresta,
Ela cheia de confiança,
Ele atrás de uma esperança,
A par seguiram os dois.
De repente o negro exclama:
– «Juca; o leão é possante,
E sempre o feri por diante,
E nunca dele tremi;
Da feroz pupila à chama
Nunca hesitei deslumbrado,
Mas hoje tudo é mudado
E tremo junto de ti!
«Na minha boa espingarda
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Cravei cem pregos, 5 – cem mortes, –
Onças, leões, dos mais fortes
Que hão passado no sertão;
Mas que faz que já não arda
Em mim da luta o desejo?
É que desde que te vejo
Perdi de todo a razão.
«Juca, se vence quem teima
Hás de render-te ao afeto
Violento, imenso, completo,
Que por ti brotou em mim.
O sol queima; – inda mais queima
O fogo em que me devoro!
Percebe pois que te adoro,
Consente em ser minha – sim?» –
Descanso d’alma!
Juca, a formosa,
A misteriosa,
A casta flor,
Se amor inspira;
Indiferente,
Não vê, não sente
O que é amor!
– «Nem te compreendo o brinquedo,
Nem mais ouvir-te pudera,
Que meu pai, Giolo, me espera,
Deixei-o inda era manhã;
Mas se te pesa um segredo,
_______________________
5
O negro caçador de animais ferozes, por cada vítima que derruba em combate leal,
crava na coronha da espingarda um pequeno prego de cobre. É de crer que nem sempre corresponda o luxo dos pregos ao número das proezas.
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Mas se sofres, meu amigo,
Vem desabafar comigo,
Que te quero como irmã!» –
Depois, um adeus risonho,
E Juca entrou no cercado.
Ele partiu desvairado,
Na alma a dor, no peito o fel;
Soltando um grito medonho,
Como a voz de fera brava,
Curta a mão se lhe crispava
Sobre a espingarda fiel:
– «Amor d’irmã, zombaria,
Zomba, Juca, é tempo agora,
Que não queres ser senhora,
E que aos pés me cairás!
Num ano, dia por dia,
Escrava dos meus desejos,
Hei de coar-te em meus beijos
Todo este incêndio voraz.
«Na terra, do céu a imagem
Na vida, comigo, enjeitas?
Mais tarde verás que aceitas
O que um gracejo te foi!
O amor, Juca, do selvagem
Cospe nas leis do destino,
E faz hoje um assassino
Do que ontem fora um herói!
«Eu nas ânsias me debato,
Vai-me a febre consumindo,
Eu na agonia, tu rindo!
E o pranto nos olhos meus!
Não! Deste amor insensato,
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Ernesto Marecos
O teu desprezo vencendo,
Há de ser o fim tremendo
Que II o queiram ou não os céus!
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«Mais um ano, hora por hora,
Serás de mim uma parte;
Hei de a tudo disputar-te,
E em meus braços te hei de ver!
Um ano, – um século! Embora
Te vá, no instante aprazado,
A coroa do noivado
No cemitério colher!
«Mãe e três irmãs donzelas
Que morreram, lá em cima,
Sabem que energia anima
As minhas juras: – pois bem,
Juca, juro-te por elas
Que minha serás; – qu’importa
Que o sejas ou viva ou morta,
Morto eu ou vivo também?!» –
Tudo debalde!
Juca, a formosa,
A misteriosa,
A casta flor,
Se amor inspira;
Indiferente,
Não vê, não sente
O que é amor!
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Como o leão malferido
Que a vingança vê distante,
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Volve no seio arquejante
Toda a sua raiva hostil,
Solta um lúgubre gemido
Que lhe parte das entranhas,
E se arremessa às montanhas,
Voa em saltos ao covil,
E corre a aguçar as presas;
Assim Giolo ora as devesas
Ora os montes a galgar
Da carreira não rendido,
Qual fantasma despedido
De entre as sombras do palmar!
Chega enfim: – a noute escura
Já do céu toldara a face;
Quem nesse momento olhasse
Do moço o aspeto feroz
Sentira medo: – a figura
Altiva curvada um pouco,
E no olhar o olhar do louco,
E na voz do tigre a voz!
De uma cubata soturna
Ou antro isolado, ou furna
Que algum demónio escondeu,
Bate à porta, insiste e a abala,
E mais ruge do que fala:
– «Velho, abre a porta; sou eu!» –
Eis se franqueia a morada:
Tudo em torno é triste e imundo,
Sobe um cheiro nauseabundo
Das cavidades do chão,
Bate a luz avermelhada
Pelo teto, e nele cria
As larvas que a fantasia
Do enfermo debuxa em vão;
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No lar a chama crepita;
Giolo, revolve, medita
Consigo um plano fatal;
E por entre ondas de fumo,
Ergue-se o velho Quipumo
Como um espectro infernal!
– «Velho nas águas do Loge 6
Vi-te um dia, imóvel, frio,
Atirei-me logo ao rio
Porque era um bom nadador;
Um leão, faz anos hoje,
Te gelou o sangue e a fala,
Varei-o com uma bala
Porque era um bom caçador;
Mais tarde, por feiticeiro, 7
Quis matar-te um povo inteiro
E eu fiz o povo fugir;
Salde-se a conta esquecida:
Três vezes me deves vida,
Venho-te vida pedir.
«Conheces Juca, a formosa,
Dos sertões a maravilha?»
– «Conheço – bem sei – é filha
Do velho Tope; bem sei.» –
– «Amo-a, porém desdenhosa,
Quando lho disse, sorria!
Num ano, dia por dia,
Que minha fosse jurei!
Na paixão que me desvaira,
____________________
6
Rio da África ocidental que demora a pequena distância do Ambriz, infelizmente
muito célebre para nós na história dos últimos tempos.
7
Não é raro que o gentio supersticioso faça perecer, em horríveis tormentos, os que a
ignorância e a malevolência da opinião pública denunciam como feiticeiro.
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Como a águia que exulta e paira
Sobre a presa que vai ter,
Quero espreitá-la de perto,
Mas do futuro já certo
O fio na mão haver!
«Quipumo, um dos teus milongos, 8
Infalível, calculado,
Porque no dia marcado
Lhe possa – ―minha‖ – chamar;
E nos dias longos, longos…
Que vão ao dia ditoso
Do triunfo o antegozo
Eu quero poder gozar.
Velho, vamos, eu o ordeno:
Compõe um filtro, um veneno
Doce ao lábio, amargo em si;
Nem m’iludas, ou do seio
Te embebo esta faca em meio,
E rasgo-te a cova aqui!» –
– «Sossega, Giolo, que a aurora
Há de encontrar-te a meu lado
Satisfeito, sossegado,
E o teu filtro pronto já;
Mas escuta, ouve-me agora:
As três gotas que, em seguida,
Te darei de áurea bebida
Todas Juca as beberá.
Não tremas, não haja engano,
Porque quando expire um ano
____________________
8
Dá-se o nome de milongo tanto ao específico que se emprega na cura de doenças,
como ao que se destina a qualquer obra de sortilégio. Neste sentido, é sinónimo de
feitiço, palavra que o negro toma sempre à má parte.
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Expirado ela já tem!
Morta, de morte aparente,
Que, se a mato, de repente
A ressuscito também!
«Eu e tu ao cemitério
Iremos ambos de noite,
Por hora em que lá se acoite
O deus das evocações:
Quando saibas que ao mistério
Nenhum esconjuro falta,
Dirás comigo em voz alta
As precisas orações.
Então Juca surgir há de,
Por ti, por tua vontade,
Escrava em vez de mulher;
Dá-te prantos se os pedires,
Sorri-te quando o exigires,
O que tu queres só quer.
«Suspiros de terna rola,
Enleios de doce amante;
Mas tudo se, nesse instante,
Te não colhe o susto enfim!
Apenas da matumbola,
Que tal fica, não desvio
O cadavérico frio
Que tanto não cabe em mim.» –
– «Velho, obrigado, qu’importa
Que fria seja qual morta
Se há em mim tanto calor?
Possa eu nos braços levá-la,
Que por fim hei de abrasá-la
Nos raios do meu amor!» –
Mal a aurora despontara,
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
Deixa o funesto casebre
O moço, e como que a febre
Lhe vem o fresco abrandar.
Vai a custo, hesita, para,
Ora segue num esforço,
E parece que o remorso
Em torno sente adejar;
Mas quando à hora da sesta,
Voltou de novo à floresta,
Juca, ao longe, conheceu,
Eis lhe redobra o martírio,
Eis lhe renova o delírio,
E tudo o mais lhe esqueceu!
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VI
Sobre uma rede alva e flácida
Presa a duas incendeiras 9
Que eram do bosque as primeiras
De mais viçoso florir,
Como indolente sultana,
Se balouçava a africana
Num doce meio dormir.
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Do vento as lufadas tépidas
Que a beijavam na passagem,
Por entre a fina roupagem
Solta, da rede, a pender,
Iam, voltavam teimosas
E em mil dobras caprichosas
Faziam-a estremecer.
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9
Grande e frondosa árvore da África. III
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Por cima as copadas árvores
Nos troncos que se abraçavam
Passar apenas deixavam
Reflexos de tíbia luz;
Vinham da opulenta coma
Vapores do suave aroma
Que os sentidos mais seduz.
Em sombras de tal crepúsculo,
A rede da cor da neve
No cadenciado, no leve
Brando movimento seu,
Semelha o berço prateado,
Pelas nuvens embalado,
De algum arcanjo do céu.
Aquela postura lânguida
De Juca a donzela casta,
Com a inocência contrasta
Que ela tem no coração;
Mais parecera estudada
Por lasciva namorada
Que sabe o que é sedução!
A passo sereno e rápido,
Mal pousando os pés no solo,
Para ali seguia Giolo:
Chega, estaca, abafa um ai!
Ai de paixão mal represa,
Grito de amor, de surpresa,
Que tudo n’alma lhe vai!
Juca ali! a virgem tímida,
O fanal da sua vida,
Recostada, adormecida
Nos braços da candidez!
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Nunca a vira tão formosa!
E uma ideia generosa
À mente lhe vem talvez!
De amor um porvir esplêndido,
Sem crime, talvez deseja!
Chega-se mais; quase a beija.
No olhar que à virgem lançou
Ternura põe infinita,
E mansamente lhe agita
A rede que enfim parou.
Desperta Juca. Ao estático
Mancebo um carinho envia
Como quem lhe agradecia
De o sono assim lhe velar;
Permanece ele calado,
Sente-se ao céu arroubado,
Treme de o encanto quebrar.
Num suspiro melancólico
Por fim a Juca pergunta
«Amas-me?» – e ao suspiro junta
Quanta meiguice há em si,
Quanto amor n’alma s’esconde;
– «Por que não? – Juca responde,
«Sou tua irmã.» – e sorri.
O mesmo sorriso gélido!
Condenou-a esse sorriso,
Que ao sonhado paraíso
Cria Giolo ser fatal;
Dilata-se-lhe a pupila
Luminosa; não vacila,
Dita a sentença infernal.
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– «Juca, à palmeira odorífera
Tirei o licor primeiro;
Eu mesmo subi ligeiro,
Que outrem lá fosse não quis;
Vê que é doce, bebe, prova;
Esta cuia 10 é limpa, é nova,
Foi para ti que eu a fiz.» –
Juca bate as mãos finíssimas
De pueril contentamento,
Leva aos lábios num momento
O apetecido licor;
Perturba-se Giolo; hesita…
Mas novo sorriso fita,
Novo ultraje ao seu amor,
E deixa que Juca sôfrega
Beba no licor a morte!
Estava lançada a sorte,
Toda a luta fora vã;
E quando Juca o abraça,
Lhe entrega a tremenda taça,
Giolo a trata por – irmã! –
E num sorriso diabólico,
Convulsivo, se despede;
Do crime a extensão já mede,
Anela por se ver só!
Vai, fraqueja, cambaleia,
E à dor que o punge, que o anseia,
O peito rasga sem dó!
_____________________
10
Espécie de cabaça, às vezes primorosamente lavrada, que os negros fabricam e por
que bebem.
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Cobra de vigor um ímpeto,
Mas lá lhe vai a consciência;
Num espasmo de demência
Intenta matar-se ali;
Foge, em seguida, furioso,
Num correr vertiginoso,
Como quem foge de si!
Exausto, no chão de súbito
Rola, por mais que s’esforce
Não se levanta, e s’estorce,
E em soluços diz: – «cansei!» –
Depois um gemido, um grito:
– «Maldito eu seja, maldito,
Que, por a amar, a matei!» –
VII
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Eram passados seis meses,
Depois deles mais um mês.
Por que funestos revezes,
Por que golpe inopinado,
Por que infortúnio talvez,
Tudo era triste e mudado
De Juca no asilo grato?
Emurchecera o cercado,
Em torno crescia o mato;
A natureza despira,
Com saudades do passado,
O verde manto de festa,
E de luto se vestira;
Nem um som pela floresta,
Ave, flor ou harmonia
A doce antiga alegria
Lembravam ao coração;
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Nem da tarde a viração
A fina rede embalava,
E como que soluçava
Nas secas folhas do chão!
O pai de Juca morrera
Havia tempo. No termo
Da existência o pobre enfermo
Chamara Juca e dissera:
– «Filha, a voz que mais impera
Falou já; e o moribundo,
Ao acabar da viagem,
Se despede deste mundo!
Não lhe escasseia coragem
Para a tremenda partida
Que só o perverso aterra;
Mas uma parte de si,
Uma vida que lhe é vida,
Ainda deixa na terra,
E isso ainda o prende aí,
Que, ao sair deste deserto,
Ele subirá no espaço,
E tu ficas, filha, aqui!
Filha, mais perto, mais perto
Que a voz me tolhe o cansaço!
Dá-me a tua mão, criança!
Tu sofres. Eu hei seguido,
Passo a passo, a atroz mudança
Que tão outra te há tornado;
Tenho-a sempre percebido
No teu dormir agitado,
Dos ais no som dolorido,
Na ausência do teu sorriso.
Pois bem: – lá, no paraíso
Que à virtude se destina,
Os teus passos, pomba cara,
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Inda através da neblina
Que os nossos mundos separa,
Dia e noute velarei!
E quando tu, inocente
Como te largo, contente,
Como aqui te abençoarei,
Vires que a desgraça toca
Teus dias, meu nome invoca
Porque contigo serei.» –
Um adeus entrecortado,
Um suspiro contrafeito,
E tudo estava acabado!
Um cadáver sobre o leito,
E um anjo no chão prostrado!
Desde esse amargo momento
A virgem se definhava,
Rosa que pérfido vento
Vinha crestar ao rosal!
Ia crescendo, crescendo,
Hora a hora se aumentava
A febre do oculto mal;
Ninguém a causa sabendo,
Ninguém na cura atinava!
De dia, uma sede ardente,
De noute, a insónia, a maldita,
Que em mil fantasmas se agita,
De terrores se povoa;
E mais era a dor latente,
Mais em ânsias infinita!
Ora o frio de repente
Os débeis membros lhe gela,
Ora às IV faces da donzela
Súbito calor assoma;
Ora crê tornar-lhe a vida,
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Ora é mais grave um sintoma;
E marchando assim pendida
Para o sepulcro deserto
Nem via uma sombra perto
Que, de há muito, a acompanhara,
Que, ou no seu curto passeio,
Ou dentro do seu tugúrio,
De avistá-la não cessara;
Que o gemer do casto seio,
Da voz flébil o murmúrio,
As nuvens do seu olhar
Espreitava, palpitante,
Num silêncio desvairado
Que era o mudo delirar
Do remorso agonizante!
Oh! não, a pobre não via
Que andava Giolo a seu lado!
Só cuidava, a cada instante
Da prolongada agonia,
Em que, algum tempo passado,
Um sono mais sossegado
E mais longo dormiria!
Passara um ano, passara
Desde o fatal juramento
Que ao martírio enorme e lento
A vítima condenara.
E já dela a terra avara
A sua parte pedia!
Um ano, dia por dia.
Ao fim chegava o tormento,
Lutava no extremo impulso,
E já nem Juca sabia,
Num leve tremor convulso,
Se morrera, se vivia.
Mas de noute o sangue férvido
Pouco a pouco serenou;
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
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E cerraram-se-lhe as pálpebras,
E nunca mais acordou!
E passou. Ao mundo estranha
Devia de ter passado
Joia de tanto valor,
De formosura tamanha.
Que podia dar-lhe o mundo?
No lodo a houvera lançado
Com um cinismo profundo!
Como que um misto sagrado
Era aquele ente adorável
De anjo, de virgem, de flor;
Era um sorriso animado,
Era um perfume palpável
Da natureza e do amor!
VIII
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Que noute! que céu! que encanto!
Belo hemisfério do sul!
Que luz! que fúlgido manto
De estrelas no espaço azul!
Que luz! que festa! que incenso!
Que harmonias ao Imenso!
Que vida na criação!
Nos perfumes, no concerto,
É turíbulo o deserto,
É a lira a solidão!
Que aspirar indefinido
Às ignotas regiões!
Que poema traduzido
Do universo nas canções!
Mas há quem a fronte vela
Numa noute como aquela,
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E recusa olhar os céus;
Que se entrega às paixões sevas
E mergulhar-se nas trevas
Antes quer do que ver Deus!
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Embora infinito o templo,
Há quem não deseje entrar;
E disto um funesto exemplo
Nos vai à vista passar.
Giolo, Quipumo perdidos,
Cerrados da alma os ouvidos,
Da poesia à doce voz,
Seguiam de torvo aspeto;
Era-lhes força completo
Ver de ambos o crime atroz!
Braço no braço enlaçado,
Eram a junção fatal
De um demónio que a seu lado
Levasse o génio do mal.
Giolo, o esbelto, o atleta airoso,
O protótipo formoso
Do vigor, da robustez,
Era o espectro da magreza!
No velho, a mesma tristeza,
Mesma feroz placidez!
A Juca no cemitério
Iam-se a acordar sem dó.
Que sacrílego mistério
O que dos mortos no pó
A tal hora se cumpria!
Eis o velho principia:
Ocultas ervas que traz
Deita sobre a sepultura,
Mal as revolve e mistura,
Rompe uma chama vivaz!
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Queima-as, requeima-as Quipumo,
Não deixa o fogo extinguir,
Repara atento no fumo
E logo de proferir
Palavras de má virtude;
Tange no agreste alaúde
Roucas notas de tremer;
Depois, os saltos de fera,
Os uivos que mal pudera
Humana voz desprender.
Enquanto pula e s’exalta
Num diabólico fervor,
E a morta evoca em voz alta;
Era a imagem do pavor
Giolo, de braços pendidos!
Com os lábios contraídos
Repetia as orações
Que não seguia a consciência;
Mal lhe batia a existência
Do sangue nas pulsações,
Que terrores o consomem!
Como quisera morrer!
– «Giolo, estás pronto?» – «Sou homem.» –
– «Vai-te Juca aparecer!» –
Juca surgia, no entanto,
Compondo o funéreo manto.
Giolo, ao vê-la junto a si,
Desperta inda num desejo:
– «Eu amo-te, Juca, um beijo!» –
Ela inclina a face, e ri!
– «Beijo de morte! que frio
Às veias todas me vem!
Gelo, de gelo! senti-o!
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Há de me gelar também!» –
Giolo de pé queda a custo,
E quando o valor, ao susto
Que no espírito lhe vai,
Se neutraliza e soçobra,
Juca a vontade recobra
E pode exclamar: – «meu pai!» –
Esconde-se a claridade
Dos milhões de astros do céu;
Nasce, aponta a tempestade,
Ruge, engrossa, apareceu.
Debate-se em fúria o vento,
Cada rajada um lamento,
E um tufão de cada vez:
Das nuvens se parte um raio,
Lasca um tronco de soslaio
Vem cair ao pé dos três.
Do velho que assim primava
Na arte da maldade só,
Só pela manhã restava
Alguma cinza, algum pó!
Giolo um alento sentira,
Fugira logo, fugira!
Juca em sono angelical
Parecia adormecida,
Mimosa estátua caída
De soberbo pedestal.
IX
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– «Eu fiz mal; – Juca, perdoa;
Bem vês que à tua coroa
Nenhum brilho se perdeu;
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Por esse amor malfadado
Houve só um condenado,
Um só perdido, fui eu!
«Amei-te muito: – perdi-me;
Quis haver-te por um crime,
E o Deus do céu, que o não quis,
A ti deu glórias sem termo,
E a mim deixou-me neste ermo
Mais só e mais infeliz.
«Lá desse espaço infinito
Olha-me triste e contrito,
Que a culpa enorme pesei;
Vê como logo o castigo
Resolvi mesmo comigo,
E eu mesmo me condenei!
Amo-te ainda. Oh! se eu te amo!
Mas deste afeto ao reclamo
Não pode o mal germinar:
Amo-te agora a pureza,
E do outro amor a torpeza
Vou no meu sangue lavar!» –
Giolo, que a razão cobrara
Via já distinta e clara
Do sacrilégio a hediondez V;
De amor o pobre culpado
Fora à loucura arrancado
Pelo mesmo amor talvez!
Se o fogo com que o perdesse
Lhe dera, ensinou-lhe a prece
Com que o perdão implorou!
Giolo ergueu o rosto enxuto,
Firme, altivo, resoluto
Ao seu destino marchou.
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Para o lado do poente
Já tombara o sol ardente,
Já se afundira por lá;
E da noute a gentil fada,
Em argêntea luz banhada,
No horizonte vinha já.
Giolo aguardara o momento
De vê-la no firmamento
Para o seu voto cumprir.
Partiu, chegou. Olha em roda,
Para onde a planície toda
Pode e os montes descobrir.
Traz o eco nesse instante
Um som confuso, arquejante,
Que a distância apura mal;
Mas depois o atento ouvido
Um rugido, outro rugido
Vai distinguindo afinal;
Outro, enfim, mas esse perto,
A voz do rei do deserto
Anuncia à solidão;
E à voz que gela de susto
Eis sucede o vulto augusto
De um majestoso leão.
Vê-se da serra no cume,
E o olhar que dardeja lume
Da serra mergulha ao fim;
Desce em seguida a montanha,
Saltando de penha em penha,
À planura assoma enfim;
E enquanto, grave, passeia,
Ou escarva a fina areia,
Ou a fronte agita só,
O monarca dos palmares
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Com a juba açoita os ares,
Com a cauda varre o pó.
Giolo, direito, sereno,
Calcula o extenso terreno
Que inda medeia entre os dois;
Como lhe lembra um instante
O seu passado brilhante
De vitórias!… mas depois:
– «Não» – murmura – «não há luta,
Já nada aqui se disputa,
Que um crime se expia aqui!» –
E, em vez de se pôr em guarda,
Atira longe a espingarda,
E a faca arroja de si!
No entanto a coroada fera
O passo não acelera,
Na solidão se compraz;
Em voluptuosas delícias
Sôfrego VI aceita as carícias
Que a doce aragem lhe traz.
Mas quando se lhe apresenta
Perto um homem, nele atenta,
Deixa um grito desprender
Não de cólera, de espanto
Por ver alguém ousar tanto
E de medo não morrer!
De ambos as vistas, em suma,
Se cruzam, mas cada uma
Um sentimento traduz:
A de um temerosa, horrível,
A do outro fria, impassível,
Qualquer d’infinita luz.
Avançam, chegam-se, param,
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Em silêncio se comparam,
Nenhum estorva o terror;
Mais um passo, inda outro passo,
E se estreitam num abraço
De frenético furor!
Ambos ao contacto fremem
De ódio velho, de ira gemem
Ao rolarem pelo pó;
E sobre a areia em que passam
Os dois corpos que se abraçam
Parecem um corpo só.
Um ao contrário a garganta
Aperta com fúria tanta
Que quase a morte lhe deu,
Porém este a garra adunca
No seio lhe embebe, e nunca
Debalde assim a embebeu!
Levantou-se um só. Ao homem
Já mais dores não consomem,
Tudo para ele findou.
O leão cala a vitória,
Como que lhe pesa a glória,
Nem sequer a proclamou.
No triunfo não exulta,
O cadáver não insulta
Que era de um bravo de lei;
E o instinto feroz tempera
O preito ao valor na fera
Que das feras é o rei!
A Giolo da vida a taça
Fora em prazeres escassa:
Dor e crime, absinto e fel.
Pedira à vida um presente
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
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Mas esse mesmo, inclemente,
Lho foi negar a cruel.
Tentou vencer o impossível,
E, num delírio terrível,
Quis a morte escravizar,
Quis tirar-lhe amor do seio;
Mas da louca empresa em meio
Veio-o um raio fulminar.
Creu que, solvendo a loucura,
Seria a sua alma pura
Mais digna do seu amor,
E buscou perdão na morte
Qual cumpria ao moço forte,
Ao leonino caçador.
Morto, quem sabe se, avara,
O que a terra lhe negara,
Lho não deu depois o céu?!
Quem sabe se noutra vida
Não fulge a visão querida
Que no mundo se perdeu?!
X
Contam os velhos da terra
Que hão visto mais de uma vez
Por desoras de alta noute,
Do silencio na mudez,
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Junto ao triste cemitério
Que a bela Juca escondeu,
Como fantasmas aéreos
Que se baixassem do céu,
Duas sombras que vagueiam
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Ernesto Marecos
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Muito de manso a falar,
Que enlaçadas se contemplam
À meiga luz do luar;
Que trocam beijos ferventes,
Que suspiram de paixão,
Mas em breve s’esvaecem
Da noute na viração.
Dizem ser Giolo mais Juca:
Que esta a aquele perdoou,
E o amou lá nos céus por muito
Que ele cá na terra a amou!
Não sei se aos contos dos velhos
Se deve grande valor;
Mas registre-se aqui sempre
Este milagre de amor!
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A história contada de Juca, a formosa,
Às outras formosas que seja lição.
Mais val às carícias do vento uma rosa
Rendida prender-se que ver desdenhosa,
Que as folhas mais tarde lhe arranca o tufão!
Fim
I
No original, por gralha, vem Da plantas […].
É provável que haja uma gralha no início do verso, sendo a forma correta Quer […].
III
incendeira – o mesmo que figueira-do-paraíso (ficus leonensis), nativa da África ocidental.
IV
Também certamente por lapso, o original regista Ora as faces […].
V
Qualquer que seja a leitura que façamos, o verso é hipermétrico.
VI
É possível que haja falha no original e que Sôfrego devesse estar no feminino, concordando com fera.
II
-84-
2. Outros poemas
1.
Testemunho: Boletim official do Governo Geral da Provincia de Angola. 19-09-1857, p. 9.
Elogio recitado pelo Sr. Ernesto Marecos, no teatro de Luanda, em
a noite de 16 de setembro.
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Não – nunca mais se queixará um povo
Em ignóbeis grilhões acorrentado;
Na face do universo um pensamento
De Deus se gravou já – grande como ele,
Como ele nobre e puro – a liberdade!
O povo é hoje uma família imensa,
Cujo pai chamam Rei; não é a turba
De vis escravos d’algemados pulsos,
Que o pé esmaga de um senhor despótico.
O povo é livre – livre ri e chora,
Blasfema e canta, não lhe força o medo
As convicções, já sente e pensa e fala
Por si, desassombrado, em pleno dia!
É pois a luz do sol vivificante
Que a humanidade, esclarecendo-a, guia.
É insuspeito o canto, é grande o hino
De amor, de gratidão ou de confiança,
Que em notas sobe de cadência íntima
Do seio da nação aos pés do trono;
É a mais bela palma, a mais radiante,
A que hoje o povo português consagra
Ao moço Rei que, nos tão verdes anos,
Em peitos d’homens fez brotar a esp’rança
Risonha de um futuro mais propício
Ao velho Portugal – a pátria deles!
O povo é justo se o Monarca é digno!
O Rei[,] o nosso Rei ao sólio augusto
Subiu com passo firme, pois da ciência,
De virtudes reais da prematura
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Experiência, buscara os dons sublimes;
E o povo não ficou inerte e mudo,
Em vivas prerrompeu ardentes, férvidos!
Sentiu o anjo da fé prestar-lhe alento,
Olhou a tenra idade do Monarca
E creu-a a maior dádiva do Eterno,
Pois que ela lhe augurava mais ventura
No longo espaço de um feliz reinado.
Não se calou o povo, e entusiasta ainda,
Inda hoje comemora o grande dia
Em que o prazer lhe revoou ao lado,
Mostrando-lhe o porvir entre sorrisos,
Em que chamara pela vez primeira
Ao novo Soberano – O ESPERANÇOSO.
……………………………………………
E pois é hoje o dia – aqui um eco
Responda aos brados que festivos soam
Por lá a esta hora. – Dê-se ao Rei um hino;
Nem nos peje cantá-lo. O hino é justo,
É nobre o canto que a verdade entoa,
E em notas sobe de cadência íntima
Do seio da nação aos pés do trono!
Luanda, 16 de se setembro de 1857.
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Juca, a matumbola e outros textos angolenses
2.
Testemunho: Primeiras inspirações. Lisboa: Typographia do Panorama, 1865, pp. 45-46.
Flor da África
À Ex.ma Sr.a D. Cândida M. Gamboa
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Como desponta no mato
Uma rosa, sem cultor,
Neste solo adusto e ingrato
Tu brotaste, meiga flor;
Como nas trevas da vida
De mágoas a mais transida
De uma luz se vê querida
No horizonte o arrebol;
Tu, formosa, em terra alheia,
Floriste, d’encantos cheia,
Nestes desertos de areia,
Aos ardores deste sol!
Flor, que um anjo nos céus tinha,
Que um anjo deixou cair;
Já que, perdida, florinha,
Quiseste aqui entreabrir;
Se é divina a tua essência,
Se é de pura rescendência
O perfume da inocência
Que tu bebeste, que é teu;
Do impuro tacto te afasta
De um mundo que o lodo arrasta
Que, flor, tu deves-te casta
Ao anjo que te perdeu!
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Toda a flor tem o seu vaso
Como o seu aroma e cor,
Não deixes pois ao acaso
A escolha do vaso, flor;
Se cá na terra é mentida
A afeição sempre; guarida
Pede e vida a outra vida,
Outro amor a outro Deus!
Cá dos prazeres a taça
É breve, e turva-a a desgraça,
Flor, com a aragem que passa
Manda o teu incenso aos céus!
1856
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Juca, a matumbola e outros textos angolenses
3.
Testemunho: Primeiras inspirações. Lisboa: Typographia do Panorama, 1865, pp. 79-81.
Um conselho
À Ex.ma Sr.a D. Adelaide Gamboa
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Minha Adelaide, eu sou moço,
Sou muito novo; mas ai,
Que à minha custa já posso
Dar-te um conselho, – e lá vai,
Talvez, formosa, teu pai
Com conselhos de valia,
Que lhe inspire a simpatia,
Te vá formando a razão;
Mas há conselhos que falam
Tão-somente ao coração,
Que um pai cala, que outros calam
Por estranhos, que um amigo
É o que os diz, como eu digo;
Minha Adelaide, atenção!
Engano de mil enganos
É o mundo, tenra flor,
Porém os teus catorze anos
Não to deixam ver, amor.
És na idade em que se goza,
Sem que turbe o gozo a dor,
És a linda mariposa
Aos raios do sol, brilhante,
És o sonho cor de rosa,
És um anjo; – mas, instante,
Mais um ano perto vem,
E são quinze. O sentimento
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Aos quinze chega, e por bem
Nunca chega. Perde o brilho
A mariposa que tinha,
A desgraça tolda o sonho
Com as nuvens que trouxer,
E fique embora rainha,
De outra senda em novo trilho,
Já não é o anjo risonho
É a mulher só mulher!
Apesar de não ser velho,
Minha Adelaide, o conselho
Sempre, enfim to darei eu:
É que não faças mais anos:
Que os catorze são do céu,
E os quinze já são profanos.
Deixa-te ser inocente;
Quem não sabe e quem não sente,
Quem só vive da inocência,
Esse tem a grande ciência,
Porque é só esse o feliz.
Passar deixa o tempo – embora!
Não contes hora por ora,
Um amigo é quem to diz!
Um ano a outro sucede,
O que importa a quem não mede
O tempo? – e não, não o meças,
Deixa-te ser inocente,
Não lhe implores, não lhe peças
A agra ciência do que sente!
Se o conselho não tomares[,]
Se, em troca, o tempo contares
Em anelos de paixão;
Adelaide, tu um dia
Me dirás se o que eu dizia
Era assim, meu anjo, ou não?!
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
4.
Testemunho: Primeiras inspirações. Lisboa: Typographia do Panorama, 1865, pp. 115-118.
A LUANDA
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Sou português e poeta:
Amo-te, Luanda gentil,
Como quem sonhou a meta
De um afeto que val mil.
Amo-te casta e modesta.
Sou poeta e na floresta
Amo a rosa quando atesta
Ser aí, qual Deus a fez
Erma flor da natureza;
Amo-te ainda, princesa,
Que és heroína portuguesa
E eu também sou português!
No mesmo berço repousas
Co’o génio da glória; e mais
Quem quiser pergunte-o às lousas
Que aqui são de nossos pais.
Se te disserem: «Lisboa
Cinge, vaidosa, a coroa
De mil galas se povoa
Por te ver pobre a seus pés…»
És singela[,] não és pobre! –
Mostra que és rica, que és nobre,
Rasga esse véu que te encobre,
Dize-lhe, ó virgem, quem és!
Ser feliz se te não cabe,
Que não t’insulte ninguém! –
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Dize-lhe que ela bem sabe
Que tens um trono também;
Dize-lhe que da existência
Se já depurou a essência
Que pela estrada da ciência
Ela e tu dêm as mãos;
Que segues os mesmos trilhos,
Que compartes dos seus brilhos;
Pois teus filhos são seus filhos
E todos eles irmãos!
Cá e lá a mesma terra,
Terras da mesma nação,
Na paz, nas lides da guerra,
Um só povo, o mesmo pão.
Se cá, neste solo adusto,
Jaz mais de um herói augusto;
Do universo o pasmo e o susto
Mil heróis jazem ali:
Cá, de um Salvador Correia
Parece que inda na areia
Escorrega, passa, ondeia
A sombra imortal aqui!
Perdido de amor, ó fada,
Quis-te o soberbo holandês,
Tentou deixar-te roubada
Para si, mais de uma vez;
Mas tu, formosura esquiva,
Pisaste-lhe a fronte altiva
Preferiste ser cativa
Dos amores do teu rei,
Do teu amante-soldado,
Portugal enamorado
Que já te havia fadado
Rainha da sua grei.
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Se lá no seu ocidente
Ao teu belo amante, enfim,
O céu lhe deu em presente,
Por império, almo jardim
Em que a linfa que murmura
Um poema de ternura
Se espreguiça na verdura
Que matiza o prado e o val;
Tu, em partilha, tiveste,
Num virgem torrão agreste,
Este sol que te reveste
Do teu aspeto ideal!
Lê da história na verdade,
Vai ler nela o teu porvir,
Vê aí que um reino há de
Nascer, ser grande, cair.
Tu nasceste só, e ainda
Te não banha a face linda
Essa luz de luz infinda,
Que alumia outras nações,
Mas a fé e o alento cria
A par da soberania
Hão de vir-te ao seio um dia
As mais nobres ambições!
Então os dias felizes!
Serás tu grande também;
E filhos doutros países
Hão de querer-te por mãe!
Então, ó tímida fada,
Opulenta, coroada
No teu sólio, festejada,
Ir-te-á bem nobre altivez!
Nas galas, porém, da festa
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Lembra então que um canto atesta
Que te amou pobre e modesta
Neste canto um português!
Luanda – 1857
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3. Folhetins no Commercio de Lisboa
1.
Testemunho: Commercio de Lisboa. 05/03/1864, pp. 1-2.
Folhetim
4 de março
Aos amadores do inverno. – Uma história a propósito. – O soba de
Locundi, em Quilengues, e o homem de que dependem os destinos da
chuva. – Novo modo de cortar uma questão muito mais original do
que o empregado por Alexandre Magno em relação ao nó górdio. –
Argumenta-se para a situação de Lisboa com o caso do sertão da
África. – Impossibilidade de furtar. – A realidade, a imaginação e o
teatro de D. Maria II. – Constipação única.
Regozijai-vos, dançai, entoai hinos clamorosos, ó vós todos que almejáveis
pela chegada da chuva. A quadra corria seca e temperada; os povos tremeram
pelos seus futuros meios de subsistência: ergueram preces fervorosas, porém
tão imprudentes no receio como descomedidos no desejo, não pediram que as
águas do céu viessem de longe em longe a prestar alento aos frutos da terra,
mas que este pobre cantinho do mundo fosse literalmente alagado, mas que
chovesse impertinentemente, desapiedadamente como se tem visto; as nuvens corresponderam por uma forma de todo o ponto cavalheirosa ao fervor
de tantas súplicas: – desfizeram-se em torrentes, desataram-se em catadupas;
e esta exígua parte da humanidade, que habita em Lisboa, aí assiste, tiritando
pelos cantos e ensopada até aos ossos, ao radiar da esperança que se divisa
em cada rosto de uma colheita suscetível de ser farta até à saciedade.
Gloriai-vos, fanáticos admiradores do inverno, que nunca para convosco
este abundou em prodígios de húmida e ventosa amabilidade como neste
ano; e quando suceda a pequena bagatela de vir uma inundação, que devaste
os campos e vos deixe muito pior do que estáveis, folgai ainda porque, na
vossa inqualificável admiração pela época das enxurradas, sorvereis a largos
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Ernesto Marecos
tragos o prazer delicioso de não achar um fogo que vos aqueça o corpo, nem
uma réstia de sol que vos enxugue o fato!
É numa ocasião destas que eu lamento com sinceridade a deficiência da
minha organização, e que mais me convenço de que a compreensão do sublime só coube em partilha a raros entes privilegiados, pois que mesquinho que
eu sou, ainda não pude compenetrar-me da dulcíssima alegria que deve de
ser a de se andar suspenso entre um catarral e uma pneumonia, escutando
gostosamente as rajadas do vento que nos atordoa a cabeça ou o som estrídulo do granizo que, de manifesto acordo com os vidraceiros, nos fustiga as
janelas, e limito-me apenas a olhar com tristeza para as gotas que descem de
cima, sucessivas, monótonas e tétricas como o fio da areia que se escoa da
ampulheta, e a perguntar então seriamente a mim mesmo se acaso isto terá de
continuar assim até ao dia de juízo, que Deus reserve para longe.
Há dois anos, pouco menos, achando-me eu internado pelo sertão de
Benguela, na África, umas boas cinquenta léguas de distância do litoral, e
residindo provisoriamente em Quilengues, vasto e formoso distrito em que os
portugueses têm um posto militar, e de que era chefe um particular amigo
meu, teve aí lugar um caso cuja novidade me surpreendeu a ponto de não
saber resistir agora à tentação de o relatar aqui.
Foi assim. A estação impropriamente dita das chuvas, que naqueles climas é de curtíssima duração, acabara de passar sob a influência de um sol
mui ardente cuja impressão não modificara sequer a benéfica assistência do
mais ligeiro orvalho. O horizonte apresentava-se afogueado; o solo sulcava-se naturalmente em gretas profundas; a aragem quente e abafadiça dificultava-se à respiração e crestava as plantas do vale; o rio secava no seu leito de
areias abrasadas e pairava sobre ele um reflexo avermelhado que vos levaria
a confundi-lo com um vulcão que rebentasse, e prorrompesse em chamas ao
aparecimento do rei dos astros. O gentio de Quilengues – que é aliás o mais
sossegado e inofensivo de todos os gentios existentes – pouco propenso a
deixar-se incomodar por qualquer calamidade cujos resultados perniciosos se
não revelem em ato imediato, porque indolente, até à exageração, tolera tudo
com preferência ao trabalho, e sóbrio, até à privação, (nas comidas: entenda-se bem) contenta-se com pouco, e vive resignadamente ainda que lhe não
falte, não o pão, mas a mandioca quotidiana; chegou desta vez a assustar-se
deveras, e começou de pôr em prática todos os sortilégios e feitiços, que as
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Juca, a matumbola e outros textos angolenses
suas crenças lhe aconselhavam, a fim de esconjurar a prorrogação da seca espantosa que o trazia desalentado. Tudo era baldado. À invocação misteriosa,
ao responso enigmático, ao queimar das ervas santas da véspera respondiam
no dia, o céu de um azul mais esplêndido e o calor de uma tenacidade mais
intensa do que nunca.
Os desanimados habitantes daquelas paragens reúnem-se enfim num último e solene congresso, e aí tratam de atinar com a solução do problema, tão
avidamente procurada; – disserta-se largamente até que um, de entre eles,
ergue-se de súbito ao estremecimento que lhe imprime o contacto da inspiração que o iluminara, traduz aos companheiros, num grito da linguagem bunda, o célebre – “eureka” – de Arquimedes, comunica-lhes o seu pensamento,
e corre com eles, entre aplausos e saudações, até à regência em que estava o
chefe. E este e eu concluíamos nessa ocasião, ao almoço[,] os derradeiros
processos anatómicos sobre o arcabouço de uma galinha, que fora respeitável
pela sua idade, e que se não deixou muito que se dissesse de si a respeito da
carne, era dotada ao menos das mais notáveis proporções ósseas.
Anunciou-se ao meu amigo que o soba (régulo, maioral) das terras de Locundi, com muitos dos seus macotas (próceres, magnates), e uma grande
parte do seu povo, vinha solicitar-lhe a concessão de uma audiência.
Levantámo-nos ambos da mesa; e, eu com a indiferença curiosa que caracteriza os que viajam ao acaso, ele revestido do seu uniforme de tenente
por fora e da sua paciência de mártir por dentro, caímos de chofre no seio da
maior algazarra de negraria de que nem mesmo obterá uma longínqua ideia,
nos seus devaneios, o enfermeiro de doudos ou o pedagogo de rapazes.
Chegado que foi o intérprete, e apenas se acalmou a vozeria para que ele
pudesse entrar no desempenho do seu cargo, começaram dois – provavelmente os mais distintos – daqueles oradores da turba indígena, a expor alternadamente, em discursos igualmente estirados e interpolados pelos – apartes – dos circunstantes, o objeto da missão complicada que ali os trazia.
Achava-se preso na cadeia da regência, por delito cujas últimas consequências restava ainda averiguar, um morador preto do sítio, por nome Chico
Coelho, brejeirote de antiga data, mas a quem a natureza, sem que nenhum
de nós o suspeitasse, havia cedido um dos seus mais valiosos atributos.
Na família daquele homem, segundo afirmavam o soba e os seus cortesãos, transmitira-se, desde tempos imemoriais, de pais a filhos, na longa série
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Ernesto Marecos
genealógica dos Coelhos de Quilengues até ao seu atual representante, o
poder de, a um simples gesto, a qualquer manifestação da sua vontade, fazer
aparecer ou cessar a chuva, conforme ela era desejada ou nociva. Visto que
Chico Coelho estava em custódia, e que com grave prejuízo de tanta gente, o
tempo se obstinava em continuar a permanecer inalteravelmente sereno, era
evidente e palpável ou a impossibilidade em que jazia o bom do Coelho de
soltar a chuva, encontrando-se ele mesmo preso, ou a pirraça que ele fazia,
mui de seu propósito à população, ordenando à chuva que não caísse, enquanto mãos piedosas lhe não abrissem de par em par as portas do calabouço.
Por isso aquele povo angustiado pedia humildemente ao chefe que se dignasse pôr em liberdade temporária o desditoso soberano da atmosfera, que o
próprio soba se responsabilizava por depois de dez ou doze valentes pancadas de água, o vir restituir à prisão.
Não havia seriedade possível que obstasse ao riso em presença de um
destempero de semelhante jaez; e eu mordia visivelmente os beiços enquanto
o chefe tentava inutilmente, com o auxílio do língua, fazer perceber àqueles
homens o absurdo monstruoso em que laboravam.
A horda seminua e semisselvagem insistia contudo, e não havia demovê-la das primeiras intenções reveladas.
O chefe torcia, com impaciência, as guias do opulento bigode negro, e hesitava no partido que tinha a tomar, se bem que sentia recrescerem-lhe os
desejos de mandar ao diabo todos os ruidosos perturbadores do epílogo do
nosso almoço.
«É melindroso me parece, lhe observei eu, o acederes ao que de ti se reclama. Se o homem impera, como afiançam, despoticamente na chuva, é de
presumir que esteja em ótimas relações com os quatro ventos principais, e é
capaz, quando mal se precatem, {e} de se librar nas asas de qualquer tufão e
tirar consigo para onde não mais dele se saiba.»
O chefe sorriu finalmente, não pelo que eu dissera porque me não tinha
ouvido, mas pela ideia luminosa que acabava de lhe assomar ao espírito.
Mandou que, em seu nome, se asseverasse ao soba que ficava cometido ao
seu especial cuidado o andamento do negócio transcendente cuja última decisão importava não dar de leve, e rematou a questão com o mais poderoso argumento a empregar para com gentio de todos os tempos e de todos os lugares, isto é[,] com uma ancoreta de aguardente que lhe mandou distribuir.
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Juca, a matumbola e outros textos angolenses
Como para o gentio a questão era de líquido, esqueceu facilmente pelo que
vinha da adega o que esperava do ar, e sem mais lhe lembrar a maneira de
conseguir fecundar as suas terras, entregou-se, sem repugnância, às suaves irrigações que lhe mitigavam o ardor das goelas sequiosas.
Pouco tempo depois, soltaram Chico Coelho, que não era, desta vez, tão
culpado como parecera; e, se bem me recordo, choveu copiosamente nesse
dia.
Termina aqui esta singela recordação africana, com que receio haver enfadado a leitora graciosa, não podendo, por último, abster-me de dizer que se
me não dava de apostar, em virtude do temporal desfeito que por aí tem ido,
que, sem dúvida, a alguma intervenção funesta se deveu o abrirem-se no mês
passado as grades do Limoeiro para dar passagem a qualquer Chico Coelho
europeu que assim nos tem mimoseado com o mais ríspido e o mais molhado
de todos os invernos, depois do dilúvio.
Fácil fora colher aqui o fio que atasse o que fica dito à narração das novidades da semana, e esse encontrar-se-ia no assunto mais frio com que por
ventura deparássemos.
Impossível manifesto, porém.
Há duas coisas, sobre todas, que impedem o folhetinista de falar, com a
discrição exigível, sobre o objeto que momentaneamente ocupa a atenção do
mundo que vive em Lisboa; é uma, ver mal; – a outra de muito mais peso
ainda, não ver.
Que da primeira eu tenha sido vítima por vezes, é o que nem nego, nem
afirmo; e que o julgue quem quiser como melhor entenda, mas que estou hoje
positivamente apanhado na segunda é o do que, com o mais profundo pesar,
não posso esquivar-me a fazer a triste confissão.
Isto posto, corrolário infalível: – não sei o que hei de dizer.
Eu podia, é verdade, não desvendar o mistério; guardar cautelosamente o
segredo – que fica agora denunciado, – e abalançar-me à descrição de qualquer espetáculo, que não tivesse viso, como se a ele houvesse assistido de
começo ao fim, partindo do princípio de que os espetáculos se assemelham, e
pela maior parte, fatal e necessariamente uns aos outros; mas depois? Quando eu me dirigisse ao carnaval, numa apóstrofe veemente, e lhe perguntasse
por que nos tinha cá vindo incomodar, em plena quaresma, quando, mesmo
sem a sua intervenção, nos aborrecíamos já todos muito sofrivelmente; quan-103-
Ernesto Marecos
do me lembrasse de trazer a terreno o Profeta I de S. Carlos e de dizer, pelo
que me contaram, que o êxito da peça não correspondeu ao que se esperava
dos cantores; não era fácil, aqui ou ali, nesta ou na outra apreciação, faltar
desairosamente à verdade, e ou deixar de fazer justiça ao baile de máscaras
do Café-Concerto, ou malquistar-me, sem remédio, com o meu colega do
noticiário que com tão decidido entusiasmo falou do benefício de mad.
Tedesco?!
Nada; – o expediente era perigoso e tanto mais quanto eu ignoro até que
ponto se inclina a leitora para desculpar, em virtude das digressões coloridas
da fantasia, o que falta, infidelidade escrupulosa, ao simples contar dos factos.
E contudo, na vida como no folhetim, a imaginação é bem mais atraente
do que a realidade. Esta, matrona severa e augusta, de formas castas e corretas, olha sobranceira para as futilidades que são os únicos prazeres que esmaltam a vida, impõe o respeito e não conquista a simpatia. A outra, a imaginação, é a sílfide voluptuosa que se touca de rosas nos jardins da existência, é a borboleta variegada que espaneja as asas lustrosas ao calor vivificante do sol da poesia, é o prisma omnipotente através do qual se criam as grandes paixões e as grandes epopeias do sentimento.
A imaginação é o anjo de sorriso cândido que nos afasta a vista das urzes
do caminho e nos aponta para a estrela que cintila no futuro. A realidade é o
demónio implacável da economia que entra, sem piedade, no teatro de D. Maria II, vê que os representantes da imprensa aí abundam na plateia a ponto de
prejudicarem a receita, e atira com eles para duas frisas, onde os quer oferecer, em exposição permanente, aos olhos admirados dos espectadores.
Cumpre notar nesta ocasião: não há censura possível a irrogar ao sr. comissário régio por zelar os interesses do teatro, e se efetivamente o número
dos jornais tinha crescido a ponto de a entrada de seus redatores fazer um
desfalque sensível no cofre, nada mais natural do que fazer cessar essa entrada; o que, porém, é inadmissível é o meio de que se lançou mão para obviar a
tal dificuldade; é o tratar esses redatores como se fossem crianças permitindo-lhes, porque não chorem, poderem, por virtude de uma escala, à razão de
seis por cada frisa, com todos os inconvenientes de uma aproximação tão
disparatada, ir, de vez em quando, gozar dos efeitos da munificência com que
pretendem brindá-los.
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Juca, a matumbola e outros textos angolenses
A intenção foi boa, decerto, nem podia deixar de o ser partindo do sr. comissário régio que é um cavalheiro e um distinto homem de letras; o alvitre
tomado, contudo, é que parece não só absurdo mas até certo ponto aviltante
para os jornalistas que, se o aceitassem, correriam o risco de ser confundidos
com esses parasitas a quem o dono da casa afasta da mesa em que se banqueteia para um canto da sala, onde os vão servir brutalmente os criados que se
lhes consideram talvez superiores.
Pesa-me profundamente ter de terminar por objeto tão pouco agradável,
mas eu prometo uma larga indemnização para a semana, ou para quando me
dê tréguas esta constipação que me devora, e que é filha legítima da fénix da
fábula; que me renasce sempre do último ataque de tosse, e que só finge
extinguir-se, por vezes, para surgir do extremo xarope, mais insuportável e
mais incómoda que nunca.
I
Provável alusão à ópera em cinco atos Le prophète, do compositor alemão Giacomo
Meyerbeer (*1791 †1864). O libreto é de Eugène Scribe, tendo a estreia ocorrido em
Paris, em 1849.
-105-
Ernesto Marecos
2.
Testemunho: Commercio de Lisboa. 12/03/1864, pp. 1-2.
Folhetim
11 de março
Extensão duvidosa da semana. – Revista dos espetáculos. – Viagem
aérea à procura de um assunto. – Paris e os livros. – Obra exclusivamente dedicada aos folhetinistas. – A África e os viajantes. – História
de um livro original. – Triste regresso para casa.
Cada vez tenho mais por certo e assentado que é temeridade imperdoável
sobre qualquer cousa, por insignificante que pareça, arriscar opinião decisiva.
Assim: tenho eu dito por vezes que cada um dos dias desta semana me pareceu triste, lúgubre e interminável como os todos os que s’escoam para quem
não tem saúde ou liberdade, e eis que, quando me convenço de que o dia que
me entra pela janela é o de sexta-feira, me julgo capaz de jurar de boa-fé que
ainda há cinco minutos estava em sexta-feira passada, ou que pelo menos se
sucedem para mim com uma rapidez incrível estas vésperas do sábado – isto
é, do folhetim. Aqui tinha pois um belo capítulo agora a propósito das contradições das cousas humanas, e tanto mais a pelo viria ele quanto é fora de
dúvida que em demanda de assunto caminho eu, se, mesmo por uma contradição, não preferisse ir buscar para longe e a lugar incerto o que de tão boa
vontade se me oferece sem o incómodo de sair de casa.
Seja como for, porém, a tarefa há de cumprir-se, e o assunto há de encontrar-se. O tempo faz-nos recordar ainda, sem muito esforço, dos requintes de
desabrimento com que se ostentou nesses dias em que as nuvens, cansadas de
deixar atestada a sua imensa fecundidade pluviosa, começaram de lapidar
positivamente o género humano. No mundo dos espetáculos, como no mundo
físico, a temperatura está frigidíssima. Em S. Carlos canta-se mal o Profeta e
os anabatistas por mais que rouquejem, não conseguem na plateia um só
novo prosélito. No circo Price assiste-se ao divertimento, impropriamente
-106-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
tal, como a uma visita de pêsames: – no rosto estirado de cada um dos espectadores, no soluçar mal comprimido dos da companhia, no andar dolorido
dos cavalos das habilidades, lê-se a fatal, a aterradora notícia de que falta ali
o principal elemento de vida e de alegria, a gargalhada cómica e estridente de
Whythone ou de Secchi, que nos desampararam por uma vez. Em D. Maria II,
apenas, cintilou numa noite de festa a estrela do entusiasmo, e é negócio
decidido ir até lá na semana que vem, visto que a mais bárbara das reclusões
me vedou essa faculdade até hoje. Dos teatros de segunda ordem não falemos. Nas Variedades dá-se invariavelmente – a filha da noite; – no Ginásio
aguardam-se com ansiedade as melhoras da excelente atriz a sr.ª Ana Cardoso para surpreender o público com a representação de uma peça espetaculosa,
que se intitula – a gata borralheira; no mesmo teatro da rua dos Condes não
sei mesmo o que se faz. Não há remédio senão fugir para sítio aonde nem
chegue a alçada da medicina, nem um eco desconsolado da sociedade que se
aborrece. Ceda-se a um capricho da fantasia, e empreenda-se um longo passeio pelo espaço incomensurável que aí se estende diante dos olhos. Convido
a leitora condescendente a assentar-se no melhor lugar do meu aeróstato, e
que Deus nos dê boa viagem.
Pairamos nas alturas. É aqui o ponto que só ou o devassa o voo pressuroso da águia, ou atravessa a luz criadora de qualquer dessas lâmpadas sacrossantas que se suspendem na abóbada celeste; e é contudo por aqui que, segundo Eugénio Pelletan I, nós temos de transitar um dia quando nos chegue a
hora de ir procurar outro mundo melhor: – quem sabe até quantos caminhantes, invisíveis para nós, passarão agora a nosso lado, e romperão, já para esse
fim, as mesmas camadas de ar, dirigindo-se em prosseguimento da sua peregrinação a algum dos astros inumeráveis que aí nos esplendem por cima! –
façamos, à cautela, um cumprimento reverencioso para todos os lados: – é
uma precaução de delicadeza, que não prejudica decerto, e que pode confirmar-nos proveitosamente a cortesia. Como, no entanto, não é nestas paragens
que usa vaguear a inspiração folhetinística, eu ouviria com reconhecimento o
conselho da leitora, sobre o rumo que devemos tentar. É mister que o sopro
inconsiderado da imaginação se regule pelos ditames refletidos da vontade.
Ali está o mundo dos impossíveis; – a cidade maravilhosa por excelência,
aquela onde brotam as sublimidades em todos os géneros, ou onde se aperfeiçoa tudo o que é grande, e nasceu em outros países; aquela em que os
tesouros do génio, sempre novos, sempre variados, são profusos e inexaurí-107-
Ernesto Marecos
veis como os de pedras preciosas que ao contacto da mágica varinha de condão despontavam no seio dessas regiões encantadas dos contos arábicos das
mil e uma noites; é a rainha do bom gosto; é a pátria do folhetim; é Paris
finalmente. Como que estou resolvido a descer por um momento. Quando
dali me não viesse uma ideia que me salvasse da presente situação embaraçosa, ajoelharia ao menos sobre aquele solo abençoado em que, sob a falsa
aparência de uma indiferença descuidosa, se resolvem os problemas mais
graves, ao passo que pela nossa terra, debaixo do manto da mais afetada
seriedade, se não discutem geralmente senão frioleiras; em que há tempo
para tudo, para os escândalos ruidosos, para os prazeres delirantes, e para o
irradiar majestoso das grandes verdades sociais que dali parte a iluminar os
demais horizontes; em que as ciências e as artes quase deixam, no último
aperfeiçoamento adquirido, tolhida a compreensão da possibilidade do aperfeiçoamento que tem de se lhe seguir fatal e necessário; em que se investigam até às últimas consequências dos contrastes da vida, e em que, por conseguinte, os folhetinistas têm sempre que dizer. Assim como lá se deu o primeiro impulso veemente a esse movimento a que se chamou – ―renascença‖; – assim como lá se quebrou o culto idólatra pelo passado, definindo por
uma vez as aspirações do presente, e estabelecendo como princípio inconcusso que as gerações modernas são suscetíveis de tanto ou mais árduos cometimentos que as antigas, porque estas não representaram senão a infância da
humanidade; assim de lá hão de surgir ainda todas as reformas imagináveis,
de que alguma é possível que, não obstante a minha suma pequenez relativa,
me venha interessar diretamente no meu obscuro rez-de-chaussée II do jornal,
por isso que há direito a tudo esperar de onde, por cada uma de milhares de
imprensas, saem tantos milhares de livros por ano.
Vejo neste instante com sentimento que a leitora indulgente não partilha
deveras da minha profunda admiração, e que parece respeitar mais em Paris a
infalibilidade em objetos de modas, do que a proficiência em matéria de
livros, e isto devido com certeza a três ou quatro que dali recebeu há pouco, e
que achou altamente maçadores. A objeção é ponderosa; mas não exclui a
réplica, ainda assim. Em primeiro lugar, é coisa sabida que argumentando
com exceções nada se prova até à evidência. Em segundo lugar, convém não
confundir um livro maçador com um livro mau, e importa determinar o que
se entende por um livro mau. Eu sou dos que acreditam piamente que assim
como não existe obra perfeita que não tenha senão, assim não há livro possí-108-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
vel em que tudo seja para desprezar. Perdida entre banalidades estafadas,
escondida no emaranhado de um estilo confuso, encontra-se às vezes uma
teoria que só espera a mão inteligente do lapidário que, dando-lhe a feição e
o esmalte convenientes, a apresente como sua. Depois, é preciso que se indague para cada livro o motivo do seu aparecimento: – circunstâncias especiais
podem fazer diversificar a apreciação: – um mau livro de versos, por exemplo, em época de decadência poética, se pode ser tomado, por um lado, como
a expressão da adulteração do gosto literário, pode, por outro, significar um
progresso, quando se atente em que protesta contra a inanição da poesia, e
marca assim a transição para um livro bom.
Sucede com os livros o que acontece com os factos. Quem se atreva a
avaliar qualquer isoladamente, sem buscar que lugar lhe compete no universal encadeamento das coisas, corre o risco de o julgar bem diferentemente do
que devera. Se fosse lícito a alguém, por um poderoso esforço da imaginação, desenrolar aos olhos do espírito o quadro da história que passou, como
se não enganaria com frequência sobre o modo de aquilatar as cenas, que se
lhe tornassem patentes, se a crítica lhe não amparasse o raciocínio!
Na coisa de alcance mais palpável, e perfeitamente discriminado hoje, aí
se levantariam as trevas a empanar-lhe a lucidez da razão. Ao ver, despreocupadamente, passar o vulto venerando e imponente da revolução de 1789,
ao desfilar das peripécias sangrentas daquele drama incomparável, afastaria
talvez a vista com horror, e não contemplaria aí senão um amálgama informe
e monstruoso de crimes e de cadáveres; mas ao calar-lhe na alma a convicção
da necessidade daquele abalo espantoso; ao chegar-lhe inegável e indestrutível a certeza de que a ideia proclamada por aquele sucesso único nos fastos
das nações carecera, para frutificar em resultados magníficos, tanto da palavra dos seus apóstolos como do sangue dos seus mártires; ao assomarem-lhe,
em toda a sua altura, as conclusões rigorosas que se continham naquelas
premissas omnipotentes, inclinar-se-ia religiosamente, e bradaria a si mesmo,
ou a quem por ventura o acompanhasse durante as fases daquela evocação
gigantesca: – «descobre-te, que é o progresso que passa!» – É desta forma
que eu suponho imprudente pronunciar sentença condenatória sobre a ruindade de um livro, antes de estudar os elementos que lhe explicam a existência.
Mas a que viria semelhante digressão? – ah! a propósito das reformas e
dos livros franceses sobre que a leitora tem uma opinião radicada de que,
-109-
Ernesto Marecos
segundo vejo, não a demoveriam nem as subtilezas a que ousasse abalançar-me, nem as distinções que por acaso pretendesse criar; e a esse respeito
cumpre que observe duas coisas.
A primeira é que a multiplicidade das publicações que atribuí a Paris tem,
quando mais se não considere, a vantagem incontestável de levar consigo aos
outros países o incentivo que delibera a escrever, donde resulta que escrevendo-se em toda a parte, escreve-se forçosamente em Portugal, e que quando seja aqui menos espaçoso o intervalo que medeie entre um e outro livro,
embora se acabem os bailes, se vede a entrada dos circos, ou se fechem as
portas dos teatros, há de haver sempre com que se encha um folhetim.
A segunda, que motiva talvez todo este aranzel, é que eu alimento intimamente a crença de que está próxima a confeção de uma obra monumental
e inimitável, qual só podia provir de índole parisiense; obra de que só há de
distribuir-se um exemplar a cada um dos folhetinistas que ali vão iniciar-se
nos mistérios, que lhes competem, com o ritual e as cerimónias atraentes que
eram de uso para os antigos adeptos dos mistérios de Elêusis; obra, finalmente, em que todos esses afortunados neófitos acharão, sempre que o implorem,
o pronto remédio aso males inerentes à profissão, e com o qual, pouco mais
ou menos, se deparará pelo processo seguinte: – vê-se no índice: – caso de
bronquite, – impossibilidade de arrostar com as intempéries da estação, –
incomunicabilidade com os amigos, – tédio exagerado pela leitura dos jornais, – soma total: – ignorância absoluta do que se passa pelo mundo; – récipe pág. 114; – e encontrar-se-á o assunto completo para um folhetim de doze
colunas.
Enquanto, porém, não chega a realização desse supremo desideratum, e já
que, sem a menor utilidade gastei com um arrazoado estéril um tempo precioso, é indispensável medir circunspectamente o abismo de que estou à beira,
e ver se há ainda uma tábua de salvação para esta posição desesperada.
As horas adiantam-se com uma velocidade pasmosa, e torna-se de urgência manifesta dirigir a carreira para onde mais e melhor aproveite do que até
aqui.
Por que há de ser esta revista hebdomadária sujeita a um género invariável, apesar mesmo da área extensíssima que por aí lhe assinam? por que lhe
não assistiria o direito de invadir as esferas dos outros, uma vez que, sem se
lhe pedir a devida vénia, lhe invadem quotidianamente a sua? por que não
poderei eu agora trazer para aqui a terreno, em frase campanuda, uma dessas
-110-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
questões momentosas que fazem as delícias da raça dos filósofos e dos eminentes homens de letras gordas? e, sobretudo, por que não atinarei eu sem
dificuldade com o meio decente de cortar este nó górdio, solvendo o compromisso a que estou ligado?
É que me sinto num estranho estado de displicência moral, que nem a
amável presença da leitora é suficiente para dissipar, e que eu atribuo, sem
dúvida, à loucura de ter passado junto de Londres, e respirado por um instante os vapores da cerveja e do carvão de pedra que ali constituem a atmosfera
se, com preferência, não é devido à humidade que se me coa e infiltra pelos
membros, porque só agora reparo que a frágil máquina, que nos impele, se
balouça indolentemente sobre as águas do oceano atlântico.
E o pior da passagem é que estou de todo desnorteado, e que tão pouco
sei a direção a dar a este ligeiro meio locomotivo para ir a qualquer parte,
como o que fora conveniente aplicar-lhe para voltar para casa. É a ocasião
propícia de imitar a resignação heroica daqueles que se confiam cegamente
ao acaso quando não podem fazer outra coisa.
Mas não me engano, e tanto pode a influência dos costumes inveterados,
é a princesa das cidades africanas, é Luanda que ali vejo banhar preguiçosamente os pés no mar, e esconder a fronte sobranceira nas nuvens, como que
pedindo à brisa da noite o refrigério que lhe mitigue o ardor em que a escalda
o sol abrasado do dia. Está aí, a capital de uma possessão grandiosa, a que se
não quis render ao culto ardente do holandês que a estremecia, e preferiu
arrastar uma existência de miséria, por ser leal ao que primeiro lhe conquistou o afeto ainda virgem. Ali vive de esperanças se é que o desengano lhe
não travou já do coração; percebe no seio os elementos vigorosos de tudo
que é grande, e chora porque lhos desconhecem, ou lhos não aproveitam;
olha em roda e se vê que lhe bordam o manto com mais uma ou outra flor de
efémera beleza, não distingue uma sólida promessa de real prosperidade
futura; encara com tristeza seus filhos que a vêm saudar lá dos extremos
confins do sertão e lamenta que os impulsos do sangue generoso que lhes
gira nas veias hajam de inutilizar-se ainda como os das gerações que os precederam; sente que lhe falam ao ouvido em palavras sonoras, e sorri-se ironicamente porque bem sabe que lhe pretendem abusar da boa-fé, porque bem
conhece que é debalde que os filantropos asseguram a liberdade ao negro,
enquanto o deixam sujeito à mais odiosa, à mais repugnante de todas as escravidões: a que imprime a ignorância.
-111-
Ernesto Marecos
Aí está a que te reduzem os especuladores mal-intencionados que vêm
pedir-te riqueza, e que, apenas satisfeitos, se despedem de ti cuspindo-te nas
faces, e ou mais lhes não lembra o teu nome, ou, se o recordam, é, pela maior
parte, para enganarem a teu respeito os utopistas da metrópole que não sabem por ora o que tu és, nem o que tu vales.
E como não havia de ser assim se nem ao menos os viajantes desapaixonados te hão feito plena e inteira justiça? os viajantes! e eu a tomá-los a sério,
esquecendo-me de que para esta qualidade de gente a questão é de escrever
um livro, e nada mais.
Eu conheci um moço, dotado de todas as qualidades que dão a alguém o
jus incontestável de se apelidar excelente pessoa, e que no seu gabinete, aliás
mui confortável e povoado de todas as bugiarias luxuosas que distraem a
vista, não podia resistir à tentação sedutora de ver o seu nome no frontispício
de uma obra de viagens. A ideia afagara-o nas suas noites de insónia e nos
seus dias de ambição literária; – não havia resistir-lhe. Dito e feito: – livro
daqui, livro dacolá, mais um capítulo que parece talhado para o caso, mais
um parágrafo que se transcreve textualmente, em menos de três meses estavam concluídas trezentas páginas de impressões de uma viagem a Paris.
Publicar o trabalho sem sair de Lisboa não era o cerzidor de alheios farrapos
homem que caísse em semelhante necedade. Dispôs de tantas libras quantas
eram necessárias e partiu no paquete Vale de Malaya. Nesse mesmo dia em
atenção às suas insinuações preventivas, lia-se nos jornais: «Saiu para França
o sr. F…; em breve lhe deverão as letras pátrias um belo volume em que
tenciona relatar-nos as inspirações que colher durante a sua viagem…» –
Esteve por fora mês e meio em que andou atordoado de divertimento em
divertimento e regressou ao ninho paterno. Daí a outro mês e meio diziam
ainda os jornais: «Recebemos as impressões de uma viagem a Paris do sr.
F… – além da forma elegante que caracteriza o autor, há aí a admirar a verdade escrupulosa e minuciosa das descrições, etc…»
É assim que se tem falado da África e avaliado o que lhe é relativo. E,
contudo, longe dos montes escalvados do litoral, para o interior onde a vegetação espontânea alastra de um manto de verdura os terrenos cuja aridez só
existe para os pessimistas de profissão que nunca lá foram; lá onde a palmeira não consegue esgotar a seiva com a superabudância dos frutos; onde o
leão ruge temeroso e vem de noite aspirar a fragrância da aragem, e fixar
-112-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
melancolicamente o luar, porque Deus, segundo a feliz expressão da mimosa
imitadora de Victor Hugo:
Criou para ele a lua
Como para a águia o sol;
onde os indígenas se agrupam ao clarão avermelhado da fogueira e aí se
entretêm ou na lúbrica desenvoltura das suas danças fantásticas, ou na toada
monótona e plangente dos seus cantares selváticos; onde a árvore, o rio, o
leão e o homem são poderosos de força e de vida, que fundo manancial de
riqueza inesgotável!
Alguém virá porém um dia de Portugal que percorra estes desertos, que
ame sinceramente tudo o que é destas regiões, e que, narrando o que viu, lhes
faça e aos seus um serviço de subido valor: – se for poeta, que olhe para este
horizonte mais opulento em estrelas, mais farto de luz que nenhum[,] que
beba a inspiração no seio desta natureza única, e que nos dê uma das páginas
formosas da poesia moderna!
Enquanto isso é incerto o que eu desejo é que a leitora, em paga da sua
condescendência, não possa acusar-me de a ter feito sofrer um acesso de
febre intermitente. Ponho pois termo a esta eterna digressão em que só lucrei
a sua doce companhia, e, desanimado, me dirijo para casa porque a respeito
de folhetim, apenas fiquei com estes apontamentos que, nem sei como, preencheram o espaço que lhe era destinado.
I
Pierre Clément Eugène Pelletan (*1813 †1884) foi um escritor, jornalista e político
francês.
II
rez-de-chaussée – rés-do-chão, numa referência à posição que o folhetim ocupava na
página do jornal (o terço inferior).
-113-
Ernesto Marecos
3.
Testemunho: Commercio de Lisboa. 19/07/1864, pp. 1-2.
Folhetim
18 de julho
A vida. – Passado e presente. – De como eu estaria em Quilengues. –
O aparato militar do distrito. – Os cornetas. – Partida para as terras
do soba grande. – Caedangongo. – O jornalismo entre os selvagens. –
Noticiaristas e folhetinistas. – Tenho a honra de lhes apresentar o sr.
Chico Tereca. – Os chinguiladores. – Em que consiste o chinguilamento, ou ato de chinguilar. – Acaba-se o folhetim que tem de ficar
para a semana.
A vida é o oceano. Quando as ondas tumultuam e negrejam, se confundem e
repelem, se elevam, doidas, em frenéticos abraços, se precipitam, desencadeadas, em lutosos [sic] gemidos, e que os abraços semelham as convulsões em
que estremece a agonia, e os gemidos constituem um só grito que é prelúdio
do hino da destruição: o abismo aparece, irresistível e medonho, em toda a
extensão da sua horrorosa nudez. Depois, se o sol, essa alâmpada maravilhosa do espaço, vem doirar-lhe a superfície; ou a lua, esse gracioso sorriso do
firmamento, vem banhar-lhe{s} a face de luz prateada; o abismo, existam
embora latentes todas as suas ameaças, ganhou em serena majestade o que
perdeu em fúria temerosa, e convida a que sobre o seu seio se balouce, descuidoso e confiado, o ligeiro barco que se destina a longínquas paragens.
Para a vida também há lampejos, que segundo a intensidade e o brilho da luz
de que procedem, significam a risonha alegria do presente, ou a saudade
contemplativa do passado.
E quando o presente é árido e nele se agrupam, em redor de nós, as cenas
em que dantes não fôramos atores, e de que, como espectadores, zombámos;
através de que prisma de encantadora melancolia se não olha para essa época
distante da vida em que ríramos daquilo mesmo que, sendo então um simples
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Juca, a matumbola e outros textos angolenses
objeto de gracejo como qualquer outro, pelo correr dos tempos e variar de
circunstâncias, para castigo da própria imprudência e escarmento a futuras
indiscrições, se transformou na dificuldade imperiosa que ora nos aperta e
subjuga!
Assim, espraiando eu hoje a vista esmorecida por tudo quanto calculei me
pudesse dar em resultado um folhetim, e colhendo, a cada tentativa, um desengano; literalmente encolhido na minha modesta habitação; sentindo os
vizinhos dos andares superiores a conversarem, sem interrupção, no tom
variado e altissonante, qual só compete a quem conta com a abundância dos
seus recursos, incapaz do arrojo de bater para cima na linha divisória a ponderar timidamente que a expansão do festivo rumor, que por lá ia, agravava,
de um modo espantoso, os martírios da minha absoluta pobreza; dando tratos
à imaginação por atinar com o meio de vencer o impossível; ocorreu-me
naturalmente a lembrança das reflexões extravagantes que, acerca de jornais
e folhetins, fizéramos eu e um meu amigo, em ocasião em que mal me podia
preocupar o logro de que hoje sou vítima na posição em que tantos embaraços me salteiam.
Uma vez suscitada a recordação do facto a que aludo, não posso subtrair-me ao vivo desejo de o contar. Prometo fazê-lo em quatro palavras: – abstrair dos episódios, evitar as digressões, e volver, num instante, com toda a
seriedade, à matéria sobre cuja apreciação tenho de assentar o trabalho desta
semana.
Há pouco menos de três anos, internado pelos sertões do sul da nossa
África ocidental, achava-me eu em Quilengues, aonde fora voluntariamente
acompanhar, por algum tempo, o chefe do distrito que para o mundo era
conhecido pelo nome de tenente F. de B. e para mim pelo de um bom e dedicado amigo.
Ele, eu, e um soldado quinquagenário, sem juízo e sem dentes, indiferentemente apto para todos os misteres que se imaginem entre intérprete do
gentio do mais arrevesado aranzel e cozinheiro de bom paladar e excelente
mão de tempero, éramos as três únicas criaturas brancas da povoação. Supõe
qualquer facilmente que os dias deveriam de escoar-se-nos pouco variados, e
as noites pouco divertidas.
Uma tarde, chegaram ofícios do governo de Benguela. Terminada que foi
a leitura deles, disse-me o chefe:
-115-
Ernesto Marecos
«Tenho de ir, com toda a brevidade, às terras do ―Socoval‖ entender-me
com o soba grande por causa da expedição que se projeta contra os salteadores da Munda que infestam a estrada, roubam as cargas dos passageiros e
assolam as libatas (pequenas povoações) circunvizinhas. Não creio na eficácia do meio, mas cumpre-me menos discutir do que executar as ordens superiores. Como é a primeira vez que me apresento num ponto importante do
meu distrito, levo comigo a força disponível, pois importa que a autoridade
apareça cercada de um certo aparato militar…»
Aqui não pude deixar de interromper o discurso do orador com um sorriso malicioso. É que o aparato militar invocado a propósito do destacamento
de Quilengues, fizera-me lembrar a arrogância enfática com que num ato das
Folies dramatiques, o mesmo só comparsa sensaborão simula alternativamente as forças numerosas de Geta e o exército poderoso de Caracala.
Na quimpaca (lugar forte, sede da regência) estacionavam quinze ou dezesseis praças que, juntas não davam, com certeza, um quarto dos nossos
soldados. Verdade seja que dois cornetas lhe aumentavam sensivelmente a
importância, pois é singular como na África[,] por mais diminuta que seja a
força que se encontre em qualquer sítio, se depara sempre aí com um corneta
a esfalfar-se desde pela manhã até à noite, tocando a revistas e exercícios,
que não só não há, mas que mesmo fora impossível haver. O gentio, no entanto, contenta-se com aquele inocente apelo à sua submissão, e passa, saudando a bandeira, por detrás da qual não há talvez, às vezes, um defensor,
mas ao pé da qual há sempre e infalivelmente um corneta em pleno e perpétuo exercício das suas funções.
O chefe que teve sempre o bom senso e a coragem de expor, em termos
enérgicos, ao governo o estado lastimoso dos nossos postos militares do
sertão, e que melhor do que eu, conhecia a insuficiência em que eles se achavam para preencherem os fins para que lá os colocaram; sorriu-se também
com significativa tristeza e prosseguiu:
– «É provável que me demore alguns dias, porque terei talvez de convocar os sobas (régulos, maiorais) que dispõem de mais gente e de mais influência. Queres acompanhar-me?»
– «Boa pergunta! respondi eu. Desde que me deu na cabeça andar a visitar os amigos que tenho espalhados pelo deserto, ainda se me não proporcionou melhor ocasião de observar os costumes dos indígenas de quem, de di-116-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
reito, é a terra que pisamos. E pois que demos cabo do último leitão suscetível de inspirar a perícia do 245 (creio que era o número do camarada); e visto
que o teu derradeiro baralho de cartas, recusando-se obstinadamente, ontem à
noite, [a] deixar-nos distinguir os naipes através das sebáceas camadas que o
envolvem, nos privou do prazer de, ainda uma vez, nos recordarmos da bisca
da infância; não vejo senão motivos que me levem a aceitar com entusiasmo
a diversão que propões a esta existência altamente ociosa em que enlanguesço.»
Mandaram-se vir carregadores, arranjou-se um excelente farnel de ocasião, e a marcha efetuou-se dois dias depois.
Descemos a encosta, sobre que assenta a residência, ao pôr-do-sol, e os
raios deste resvalando ainda na superfície do rio que ali s’espreguiça, com
suavidade, entre as tortuosidades do seu leito, davam-lhe a aparência de uma
serpente de ígneas escamas que coleasse graciosamente por entre os arbustos
da estrada. Os carregadores da minha tipoia galgavam o caminho com presteza, e quando sentiam por momentos, enfraquecer-se-lhes o vigor, retemperavam a elasticidade nervosa que distingue aqueles homens, e que os leva a
atravessarem, no mesmo passo seguro e cadenciado, as maiores distâncias,
nas harmonias extravagantes das suas estranhas canções. Quando estes se
calavam, o silêncio era apenas interrompido pelo som do monótono caminhar
da soberba mula que o chefe cavalgava, e que timbrou em ir, até ao fim, em
completa desinteligência com a vontade do seu cavaleiro; ou pelo rápido
perpassar de pássaro notívago librado no seu voo impetuoso; ou ainda, de
longe em longe, pelas notas perdidas das endeixas do sabiá que nos chegavam aos ouvidos, mal distintas, como requebros de sentida toada de um misterioso cantar de fadas.
Acampámos à meia-noite. Depois de o tenente B… ter provado até à saciedade, numa elegante tirada, que, em viagens, nada há mais incómodo do
que a falta de comodidades, depois de eu ter totalmente despertado do agradável entorpecimento que em mim produziu sempre o doce embalar da tipoia, ceámos e dormimos, tendo por luz de festim e de alcova a das estrelas
que abundam no céu da África, por mesa de banquete e leito de repouso a
terra ainda não arrefecida de todo dos ardores do sol.
Ao romper da manhã fizemos a nossa entrada triunfante no sítio ―Socoval‖. Adiante ia o chefe, escrupulosamente uniformizado, montado com gar-117-
Ernesto Marecos
bo no animalejo de que já se fez menção honrosa, e que começava a compreender os seus deveres; – ao seu lado esquerdo via-se minha insignificante
pessoa, ainda modestamente encaixada na tipoia; – à direita despregava-se ao
vento a bandeira; – em torno e atrás dela seguiam doze soldados cheios de
gravidade e de cansaço, no mais perfeito asseio e melhor ordem que ali se
poderia exigir; – na frente de todos adiantava-se o corneta tocando não sei
que marcha guerreira da sua fantasia. (Note-se que o outro corneta ficou,
como era de razão, na quimpaca, onde tocaria a unir talvez para os passarinhos, visto que os quatro inválidos que o acompanhavam na guarnição dos
baluartes, os tínhamos nós deixado juntos, e homens não eram eles que se
separassem porque, desajudados de estranho auxílio, positivamente se não
podiam mexer).
O soba cercado pelos seus macotas (próceres, fidalgos etc.) veio ao nosso
encontro. Chamava-se ele Caendangongo. (Ó Caendangongo, flor dos sobas
do teu país, que lá me chamavas ―escrivão do chefe‖, mal imaginas tu agora
que estou contigo a contas!) Era um belo negro, muito moço ainda, de rosto
inteligente e agradável figura, quando, vestido à moda da terra, deixava ondular em dobras caprichosas as suas vestes roçagantes (panos), e quando,
como naquela ocasião, não envergava a farda descorada de não sei que ignaro zabumba do regimento de linha, e lhe não pesava sobre os olhos a hiperbólica barretina de vetusto miliciano, que, em vez de lhe emprestar majestade, tão acachapado e tão ridículo o tornavam, a ele a quem a natureza criara
tão esbelto e airoso.
Concluídos os cumprimentos do cerimonial, e despojado o soba do traje
desgracioso que o incomodava, passámos a viver na mais íntima camaradagem. Apresentou-nos suas principais mulheres e sua filha mais velha que era
de uma formosura deslumbrante, e de uma perfeição de formas superior a
tudo que a inspiração de artista haja sabido arrancar ao cinzel. Jantou connosco, comeu e bebeu como um franco e jovial conviva, tomando parte na
conversação, e adubando-a aqui ou ali com um ou outro dito que, não obstante perder na transmissão do intérprete da sua graça primitiva, era sempre ou
chistoso ou sensato.
À noite, quis-nos dar um spécimen das suas festas. Nunca me há de esquecer a impressão que me causou o que ali presenciei.
-118-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
No largo espaçoso, em que nos achávamos, assombreado por magníficas
e corpulentas árvores, dispuseram-se simetricamente inumeráveis fogueiras.
Junto delas agrupavam-se os pares. Defronte do soba, dois exímios professores de música, ao que eles diziam, acompanhavam nas marimbas do sertão a
poesia dos seus cantos melancolicamente selvagens; e força é confessá-lo,
tanto das vozes como dos instrumentos partiam[,] por vezes, notas de suavíssima e delicada melodia. Começaram as danças. A princípio lentas e pausadas, adquiriram progressivamente calor, e tornaram-se, por graduações impercetíveis, apaixonadas, voluptuosas, desenvoltas, febricitantes. Por fim era
um turbilhão rumoroso em que, apenas de espaço a espaço, se percebia um
ou outro trecho da música que então vibrava, até ao íntimo da alma. Era um
delírio que se não concebe, nem se descreve; uma fúria incessante que não
esmorecia nem afrouxava, que redobrava nos ímpetos, que recrescia na rapidez, que bebia alentos na própria fadiga; era uma vertigem, uma loucura; um
dançar de gnomos ou de duendes, frenético, diabólico. Homens e mulheres
enlaçavam-se, confundiam-se, arrastavam-se, doidejavam por entre as sombras ou ao reflexo avermelhado das fogueiras. Que confusão suprema! Os
troncos das árvores como que se desprendiam da sua imobilidade e volteavam também no meio dos grupos anelantes; a terra desaparecia debaixo dos
pés; tudo tremia, tudo dançava, tudo redomoinhava. Eu segurei-me, para não
cair, à pedra em que estava sentado. Olhei maquinalmente para o rosto do
chefe: ordinariamente pálido pareceu-me à tíbia claridade que o iluminava,
lívido como o de um cadáver. Acreditei seriamente que estava no inferno.
Terminados os festejos da receção, passou o soba aos hábitos da sua existência normal. Se de dia conversava com o chefe sobre os negócios que os
aproximaram, ocupava, ao menos, as noites, no que lhe era de antiga prática.
Chegámos neste momento à parte interessante do caso.
Caendangongo, à hora em que o crepúsculo começa a degenerar em trevas, tinha por uso sentar-se debaixo da sua árvore predileta, e aí se acercavam dele os principais da sua corte. Depois de todos haverem tomado lugar,
ele proferia três ou quatro palavras que nós entendemos depois deverem
dizer pouco mais ou menos: ―vamos a isto‖. – Então, um dos de ar mais circunspecto da comitiva começava em tom lento e vagaroso, a desenrolar uma
extensa tirada que era acolhida no meio de um religioso silêncio, apenas
quebrado pelos impertinentes bocejos de alguns, ou pelas observações ou
-119-
Ernesto Marecos
comentários de poucos; e só quando era evidente o ter-se posto ponto final à
oração é que, não raro, se elevava aqui ou ali uma ligeira altercação a que o
soba punha termo decidindo, provavelmente em última instância, do merecimento do alegado. – A este tempo tinham já chegado, ou estavam chegando
os filhos da libata, que andavam por fora ocupados no tráfego do comércio
próprio ou alheio, e que recolhiam de algum ponto do litoral ou do sertão.
Depois de respeitosamente cumprimentarem o soba, qualquer de entre eles
expunha, com uma certa gravidade concisa, aquilo de que tinha a informar os
circunstantes, e apenas acabado o curto murmúrio de indiferença ou admiração que a sua exposição provocara, cedia a palavra, – e já era tempo, – ao
bando dos rapazes que, tumultuosamente, tinham vindo engrossar as fileiras,
e dos quais o mais estouvado ou, pelo menos, o mais falador, principiava a
discursar sobre assunto, que, visivelmente, era do geral agrado, e que muitos
saudavam entre acessos de hilaridade, se bem que para contraste, a maior
parte dormia então já a sono solto! – Passado este incidente, todos contribuíram com o seu óbolo de loquacidade e a conversação tornava-se, por momentos, animada. Depois, um instante de algazarra, e por fim o mais completo silêncio. Cada um tinha ido tratar da sua vida.
Tendo nós, F. de B. e eu, observado, por uns poucos de dias, a repetição
inalterável destas mesmas cenas, tratámos de delas indagar a explicação cabal.
Valeu-nos para isso um preto ali residente e proprietário, perfeitamente
civilizado e que eu já vira em Benguela, por nome Chico Tereca e a quem
protesto daqui uma afetuosa saudade, que nos disse que Caendangongo,
ávido de saber como se tomavam os seus atos governativos, curioso de estar
ao facto do que se passava em toda a parte, exigia que todas as noites, se lhe
fizesse a narração minuciosa do que ocorria na libata e fora dela, nos divertimentos dos arredores, nas cubatas (habitações) finalmente de cada um.
Era, nem mais nem menos do que um jornal a cuja colaboração o bom do
soba obrigava os seus súbditos, e em que cada um era editor responsável da
parte que redigia.
O primeiro personagem, pausado e monótono, personificava admiravelmente o artigo de fundo sobre que o soba, através das controvérsias oposicionistas, proferia, sem recurso, a opinião a que ele chamava modestamente a
do país.
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Juca, a matumbola e outros textos angolenses
Ao principal interlocutor de entre os recém-chegados de distantes paragens cabia[,] sem dúvida alguma, a secção de notícias estrangeiras. O folhetim representava-o, por uma forma natural e apropriada, o chefe da coorte
juvenil que espairecia pelas festas, e nelas apreciava os ridículos e as belezas
e fazia ampla colheita de bons ditos e saborosos epigramas. (Calculei isto
pela expressão graciosamente sarcástica da cara do folhetinista). Enquanto ao
noticiário, já sabemos que todos para ele concorriam com o seu contingente,
e não é esse, às vezes, o modo menos conducente a torná-lo interessante.
Tínhamos pois, entre os selvagens, devidamente estabelecido o jornal,
não como o compreendem na Europa culta, mas, – e nada perdia com isso, –
na sua máxima simplicidade, ainda que já adornado com todos os seus brilhantes acessórios: sem falsos programas, nem verrinas descompostas, mas
conscienciosamente elaborado, cheio de verdade e de singeleza, e escutado,
sobretudo, com uma atenção que os nossos estão longe de poder conciliar por
cá.
Daquele dia em diante sempre que eu e o tenente B… recolhíamos, ao
pôr-do-sol, das nossas divagações bucólicas, dizíamos infalivelmente um
para o outro: «vamos ao periódico do soba.»
Numa dessas ocasiões, em que cada um de nós se espraiava, como melhor
lhe parecia, sobre a matéria, suscitou-se-me a ideia de patentear a minha
admiração pela pasmosa fecundidade do folhetinista. (Já nessa época me
davam que entender os espinhos da missão.) Para a política interna, para a
externa, e para o noticiário, evidente era que o assunto superabundava sempre. Todos os dias o soba dava ordens, todos os dias lhe chegava gente de
fora, todos os dias sucediam, aqui ou além, desses pequenos casos de que se
fazem as pequenas anedotas; – mas o folhetim! numa existência tão pouco
acidentada! isso é que deveras me custava a compreender.
– «Não s’espante, acudiu de pronto, o nosso estimável Chico Tereca: festas e batuques é que não faltam por todas essas libatas, nem tão-pouco os
chinguiladores as deixam escassear.»
Sobre os chinguiladores (não respondo pela exatidão da ortografia nem
desta nem de nenhuma outra das palavras de linguagem bunda de que me
sirvo) e sobre os chinguilamentos ouvira eu já dissertar largamente, mas não
possuía exato conhecimento.
-121-
Ernesto Marecos
Sabia que os chinguiladores passavam por entes extraordinários, educados desde a infância para a difícil profissão de adivinhar; que evocavam, a
seu bel-prazer[,] os espíritos superiores; que privavam em íntimo comércio
com as almas do outro mundo; e que seria sacrílega a dúvida que versasse
sobre a genuidade de qualquer sentença proferida por um destes oráculos de
tostada fronte e singular existência. Sabia também que não se julgando incompetentes para devassarem todos os arcanos do passado e do futuro, se
lhes aproveitava particularmente a proficiência para os casos de graves enfermidades.
Sobre esta última especialidade, pelo que me contou Chico Tereca, e eu
observei depois, colhi, com extrema dificuldade, o que se segue.
Adoece um negro: – (dos que têm alguma coisa de seu, já se vê, porque
aos que são pobres como Job ninguém contesta o direito de adoecer e morrer
em completa liberdade). – Cerca-o, na pocilga em que jaz deitado, a família
lacrimosa, e chama-se, em ato continuo, quimbanda de sólida reputação.
(Quimbanda é o que exerce a arte de curar, seja homem ou mulher, donde o
leitor infere necessariamente que a emancipação do sexo frágil caminha por
lá em muito melhor esteira do que entre as nações civilizadas). O quimbanda
não tacteia o pulso nem examina a língua do enfermo, mas esfalfa-se em
perguntas que o levem a um seguro diagnóstico, e acaba receitando uma
tolice, que é o mesmo que tem sucedido a todos os quimbandas desde Esculápio até ao primeiro médico dos nossos dias. O pobre negro não melhora.
Atenta a fama do facultativo, conclui-se logicamente que a doença só pode
ser atribuída a influências sobrenaturais. Pede-se portanto a assistência do
chinguilador para elucidar a questão.
O chinguilador aparece revestido de todo o seu apanágio charlatânico.
Sarapintado de tacula, penas de galo preto na cabeça, comprida pele de onça
a pender-lhe da cintura, instala-se, sem cerimónia, à cabeceira do doente.
Principia a comédia. O silêncio que reina no aposento é profundo e absoluto,
– sentir-se-ia zumbir o milímetro de um inseto. – O chinguilador começa de
cair em mórbido abatimento; rápidos estremecimentos lhe agitam apenas o
corpo convulsivamente; de vez em quando toma com ansiedade a respiração
que parece fugir-lhe.
De repente, revolvem-se-lhe os olhos nas órbitas, sons inarticulados lhe
cortam os lábios, estrebucha angustiosamente, e levanta-se por último, de um
salto, pulando e gritando como um verdadeiro possesso: «cá o tenho, está
-122-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
comigo, veio agora…» Tudo se prostra então; homens e mulheres rojam as
faces no pó. O espírito luminoso acabara de visitar o seu filho predileto.
O chinguilador continua: – «bem-vindo seja ele! reconheço-me inspirado!… sinto que me transportam a regiões desconhecidas!…» e enquanto isto
ruge, balbucia talvez in mente: – «em boa alhada me meti eu? – ainda não
achei um fio com que me safe de semelhante entalação.» – Prorrompe de
novo em estridentes brados, que acompanham sempre as mais descompostas
evoluções ginásticas: – «o desditoso doente está em perigo! mas eu já conheço… já percebo o motivo… houve um parente deste homem que faleceu…,
há anos… pelo cacimbo…»
– «O velho Ngamba» murmura, à parte, uma das mulheres.
– «O velho Ngamba, prossegue o velhaco fingindo nada ter ouvido, cuja
alma se encaixou no corpo deste pobre estafermo… é mister aplacar o zumbi
(alma do outro mundo)… é preciso que se digam as missas… ou no caso
contrário, perecerá o doente.»
É de notar que ele também não afiança que as missas o salvarão.
Dita aquela última palavra da sua inspiração, o chinguilador, que noutra
ocasião se socorrerá a outro qualquer meio de natureza idêntica para conseguir o mesmo fim; volve pouco a pouco ao seu estado normal, e retira-se
com os ares da mais grave importância, depois de festejado e bem remunerado por toda a família do negro.
É inútil dizer que este venderia os filhos e seria capaz de vender os pais,
se pudesse, para não faltar ao dever sagrado de mandar dizer esplendidamente as missas exigidas; missas, em que a maior parte das vezes não há missa,
mas um lauto banquete em que se matam muitos bois, se bebe muita aguardente, e se faz tudo o que caracteriza a orgia mais furiosa.
Escusado creio acrescentar que os chinguiladores são da folia. Para que a
todo o tempo me não venham acusar de ter com eles epigramatizado aqueles
dos nossos deputados que aconselham muita festança, em que tomam parte, à
custa do orçamento; declaro aqui muito positivamente que só os trouxe a
terreno para explicar como no sertão de Quilengues se sucedem, sem interrupção[,] as festas que, por lá, dão assunto aos folhetins.
Do que restara a dizer, e do meu regresso à regência, trataremos outra
vez.
-123-
Ernesto Marecos
Se porventura os chinguiladores são deveras embusteiros na sua terra,
consumaram, ao menos para mim, o verdadeiro milagre de me fazerem acabar um folhetim que, segundo penso[,] não cheguei a começar.
Fica para a semana.
-124-
4. Episódios da África
Testemunho: Contos e Recordações. Lisboa: Typ. do Panorama, 1867, pp. 129-142.
EPISÓDIOS DA ÁFRICA
I
Há quatro anos, pouco mais ou menos, internado pelos sertões do sul da nossa África ocidental, achava-me eu em Quilengues, vasto e formoso distrito
em que os portugueses têm um posto militar.
Era comandante, ou chefe, do distrito o tenente F. de B., particular amigo
meu a quem, então, eu fora espontaneamente prestar naquele ermo o bálsamo
quase estéril da minha companhia, e a quem, agora, mando daqui um longo e
saudosíssimo abraço.
Durante a minha permanência naquele ponto, deu-se aí um caso cuja novidade me surpreendeu a termos de não saber resistir à tentação de o relatar
aqui.
Foi assim.
A estação impropriamente dita das chuvas, que naqueles climas é de curtíssima duração, acabara de passar sob a influência de um sol ardente cuja
impressão não modificara sequer a benéfica assistência do mais ligeiro orvalho.
O horizonte apresentava-se afogueado; o solo sulcava-se naturalmente em
gretas profundas; a aragem quente e abafadiça dificultava-se à respiração, e
crestava as plantas do vale; o rio secava no seu leito de areias abrasadas, e
pairava sobre ele um reflexo avermelhado que vos levaria a confundi-lo com
um vulcão que rebentasse, e prorrompesse em chamas ao aparecimento do rei
dos astros.
O gentio de Quilengues, – que é, aliás, o mais sossegado e inofensivo de
todos os gentios existentes, – pouco propenso a deixar-se incomodar por
qualquer calamidade cujos resultados perniciosos se não revelem em ato
imediato, porque, indolente até à exageração, tolera tudo com preferência ao
trabalho, e, sóbrio até à privação, (nas comidas: entenda-se bem) contenta-se
-127-
Ernesto Marecos
com pouco, e vive resignadamente ainda que uma vez ou outra lhe falte, não
o pão, mas a mandioca quotidiana; o gentio de Quilengues chegou desta vez
a assustar-se deveras, e começou de pôr em prática todos os sortilégios e
feitiços, que as suas crenças lhe aconselhavam, a fim de esconjurar a prorrogação da seca espantosa que o trazia desalentado.
Tudo era baldado.
À invocação misteriosa, ao responso enigmático, ao queimar das ervas
santas da véspera, respondiam no dia o céu de um azul mais esplêndido, e o
calor de uma tenacidade mais intensa do que nunca.
Os desanimados habitantes daquelas paragens reúnem-se enfim num último e solene congresso, e aí tratam de atinar com a solução do problema, tão
avidamente procurada.
Disserta-se largamente até que um, de entre a multidão, ergue-se de súbito ao estremecimento que lhe imprime o contacto da inspiração que o iluminara, traduz aos companheiros, num grito de linguagem bunda, o célebre – “eureka” – de Arquimedes, comunica-lhes o seu pensamento, e corre com eles,
entre aplausos e saudações, até à regência em que estava o chefe F. de B.
Este e eu concluíamos nessa ocasião, ao almoço, os derradeiros processos
anatómicos sobre o arcabouço de uma galinha que fora respeitável pela sua
idade, e que se não deixou muito que se dissesse de si a respeito da carne, era
dotada, ao menos, das mais notáveis proporções enquanto aos ossos.
Anunciou-se ao meu amigo que o soba (régulo, maioral) das mui vizinhas
terras de Locundi, com muitos dos seus macotas (próceres, magnates) e uma
grande parte do seu povo, vinha solicitar-lhe a concessão de uma audiência.
Levantámo-nos ambos da mesa; e, eu com a indiferença curiosa que caracteriza os que viajam ao acaso, ele revestido do seu uniforme de tenente
por fora e da paciência de mártir por dentro, caímos de chofre no seio de uma
algazarra de negraria de que nem mesmo, nos seus devaneios, obterá uma
longínqua ideia o enfermeiro de doudos ou o pedagogo de rapazes.
Chegado que foi o intérprete, e apenas se acalmou a vozeria para que ele
pudesse entrar no desempenho do seu cargo, começaram dous, provavelmente os mais distintos daqueles oradores da turba indígena, a expor alternadamente, em discursos igualmente estirados e interpolados pelos apartes dos
circunstantes, o objeto da missão complicada que ali os trazia.
-128-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
Achava-se preso na cadeia da regência, por delito cujas últimas consequências restava ainda averiguar, um morador preto do sítio, por nome Chico
Coelho, brejeirote de antiga data, mas a quem a natureza, sem que nenhum
de nós o suspeitasse, havia cedido um dos seus mais valiosos atributos.
Chico Coelho era nem mais nem menos do que o superintendente da chuva!
E que tal?!
Na família daquele homem, segundo afirmavam o soba e os seus cortesãos, transmitira-se, desde tempos imemoriais, de pais a filhos, na longa série
genealógica dos Coelhos de Quilengues, até ao seu atual representante, o
poder de, a um simples gesto, a qualquer manifestação de vontade, fazer
aparecer ou cessar a chuva conforme ela era desejada ou nociva.
Ora, visto que Chico Coelho estava em custódia, e que, com grave prejuízo de tanta gente, o tempo se obstinava em continuar inalteravelmente sereno, transparecia, evidente e palpável, ou a impossibilidade em que jazia o
bom do Coelho de soltar a chuva, encontrando-se ele mesmo preso; ou a
pirraça que ele fazia, mui de seu propósito, à população, ordenando à chuva
que não caísse, enquanto mãos piedosas lhe não abrissem de par em par as
portas negregadas do calabouço.
Por isso, aquele povo angustiado pedia humildemente ao chefe que se
dignasse pôr em liberdade temporária o desditoso soberano da atmosfera, e o
próprio soba se responsabilizava por, depois de dez ou doze valentes pancadas de água, o vir restituir à prisão.
Não havia propósito possível de seriedade que obstasse ao riso em presença de um destempero de semelhante jaez; e eu mordia visivelmente os
beiços enquanto o chefe tentava debalde, com o auxílio do língua, fazer perceber àqueles homens o absurdo monstruoso em que laboravam.
A horda seminua e semisselvagem insistia contudo, e não havia demovê-la das primeiras intenções reveladas.
O chefe retorcia com impaciência as guias do opulento bigode negro, e
hesitava no partido que tinha a tomar, se bem que sentia recrescerem-lhe os
desejos de mandar ao diabo todos os ruidosos perturbadores do epílogo do
nosso almoço.
– É melindroso, me parece – lhe observei eu – o acederes ao que de ti se
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Ernesto Marecos
reclama. Se o homem impera, como afiançam, despoticamente na chuva, é de
presumir que esteja em ótimas relações com os quatro ventos principais, e,
uma vez solto, é capaz quando mal o soba se precate, de se librar nas asas de
qualquer tufão para onde não mais dele se saiba.
O chefe sorriu finalmente, não por virtude do que eu dissera, porque me
não tinha ouvido, mas pela ideia luminosa que acabava de lhe assomar ao
espírito.
Mandou que, em seu nome, se asseverasse ao soba que ficava cometido
ao seu especial cuidado o andamento do negócio transcendente cuja última
decisão importava não dar de leve, e rematou a questão com o mais poderoso
argumento a empregar para com o gentio de todos os tempos e de todos os
lugares, isto é, com uma ancoreta de aguardente que lhe mandou distribuir.
Como para o gentio a questão era de líquido, esqueceu facilmente pelo
que vinha da adega o que esperava do ar, e, sem mais lhe lembrar a maneira
de conseguir fecundar as suas terras, entregou-se, sem repugnância, às suaves
irrigações que lhe mitigavam o ardor das goelas sequiosas.
Pouco tempo depois, soltaram Chico Coelho, que não era desta vez, tão
culpado como os seus precedentes haviam dado lugar a acreditar-se.
Se bem me recordo, choveu copiosamente nesse dia.
II
Prosseguia a minha estada em Quilengues. O tenente F. de B., eu, e um
soldado quinquagenário, sem juízo e sem dentes, indiferentemente apto para
todos os misteres que se imaginem desde intérprete do gentio de mais arrevesado aranzel até cozinheiro de bom paladar e excelente mão de tempero,
éramos as três únicas criaturas brancas da povoação.
Supõe qualquer facilmente que os dias deveriam de escoar-se-nos pouco
variados, e as noites pouco divertidas.
Uma tarde chegaram ofícios do governo de Benguela.
Terminada que foi a leitura deles, disse-me o chefe:
– Tenho de ir, com toda a brevidade, às terras de Socoval entender-me
com o soba grande por causa da expedição que se projeta contra os salteado-130-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
res da Munda que infestam a estrada, roubam as cargas dos passageiros, e
assolam as libatas (pequenas povoações) circunvizinhas. Não creio na eficácia do meio, mas cumpre-me menos discutir do que executar as ordens superiores. Como é a primeira vez que me apresento num ponto importante do
meu distrito, levo comigo a força disponível, pois importa que a autoridade
apareça cercada de um certo aparato militar…
Aqui não pude deixar de interromper o discurso do orador com um sorriso malicioso. É que o aparato militar invocado a propósito do destacamento
de Quilengues, fizera-me lembrar a arrogância enfática com que num ato das
Folies dramatiques o mesmo só comparsa sensaborão simula alternativamente as forças numerosas de Geta e o exército poderoso de Caracala.
Na quimpaca (lugar forte, sede da regência) estacionavam quinze ou dezesseis praças que juntas, não davam, com certeza um quarto dos nossos
soldados. Verdade seja que dous cornetas lhe aumentavam sensivelmente a
importância.
É singular como na África, por mais diminuta que seja a força que se encontre em qualquer sítio, se depara aí sempre com um corneta a esfalfar-se
desde pela manhã até à noite, tocando a revistas e exercícios, que não só não
há, mas que mesmo fora impossível haver.
O gentio, no entanto, contenta-se com aquele inocente apelo à sua submissão, e passa saudando a bandeira por detrás da qual não há talvez, às
vezes, um defensor, mas ao pé da qual há sempre e infalivelmente um corneta em pleno e perpétuo exercício das suas funções.
O chefe que teve sempre o bom senso e a coragem de expor, em termos
enérgicos, ao governo o estado lastimoso dos nossos postos militares do
sertão, e que, melhor do que eu, conhecia a insuficiência em que eles se
achavam para preencherem os fins para que lá os colocaram; sorriu-se também com significativa tristeza, e prosseguiu:
– É provável que me demore alguns dias, porque terei de convocar os sobas vizinhos que dispõem de mais gente e de mais influência. Queres acompanhar-me?
– Boa pergunta! respondi eu. Desde que me deu na cabeça andar a visitar
os amigos que tenho espalhados pelo deserto, ainda se me não proporcionou
melhor ocasião de observar os costumes dos indígenas de quem, de direito, é
a terra que pisamos. E pois que demos cabo do último leitão suscetível de
-131-
Ernesto Marecos
inspirar a perícia do 245 (creio que era o número do camarada); e visto que o
teu derradeiro baralho de cartas, recusando-se obstinadamente ontem à noite
a deixar-nos distinguir os naipes através das sebáceas camadas que o envolvem, nos privou do prazer de, ainda uma vez, nos recordarmos da bisca da
infância; não vejo senão motivos que me levem a aceitar com entusiasmo a
diversão que propões à existência altamente ociosa em que enlanguesço.
O chefe mandou vir carregadores, arranjou-se um excelente farnel de ocasião, e a marcha efetuou-se dous dias depois.
Descemos a encosta, sobre que assenta a residência, ao pôr-do-sol, e os
raios deste resvalando ainda na superfície do rio, que ali se espreguiça com
suavidade entre as tortuosidades do seu leito, davam-lhe a aparência de uma
serpente de ígneas escamas que coleasse graciosamente por entre os arbustos
da estrada.
Os carregadores da minha tipoia (rede de condução) galgavam o caminho
com presteza, e quando sentiam, por momentos, enfraquecer-se-lhes o vigor,
retemperavam nas harmonias extravagantes das suas estranhas canções a
elasticidade nervosa que distingue aqueles homens, e que os leva a atravessarem, no mesmo passo seguro e cadenciado, as maiores distâncias.
Quando os carregadores se calavam, o silêncio era apenas interrompido
pelo som do monótono caminhar da soberba mula que o chefe cavalgava, e
que timbrou em ir, até ao fim, em completa desinteligência com a vontade do
seu cavaleiro; ou pelo rápido perpassar do pássaro notívago librado no seu
voo impetuoso; ou ainda, de longe em longe, pelas notas perdidas das endeixas do sabiá que nos chegavam aos ouvidos, mal distintas como requebros de
sentida toada de um misterioso cantar de fadas.
Acampámos à meia-noite.
Depois de o tenente F. de B. ter provado até à saciedade, numa elegante
tirada, que nada há mais incómodo nas viagens do que a falta de comodidades; depois de eu ter totalmente despertado do agradável entorpecimento que
em mim produziu sempre o doce embalar da tipoia; ceámos e dormimos,
tendo por luz de festim e de alcova a das estrelas que abundam no céu da
África, por mesa de banquete e leito de repouso a terra ainda não arrefecida
de todo dos ardores do sol.
Ao romper da manhã, fizemos a nossa entrada triunfante no sítio Socoval.
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Juca, a matumbola e outros textos angolenses
Adiante ia o chefe, escrupulosamente uniformizado, montado com garbo
no animalejo de que já se fez menção honrosa, e que principiava a compreender os seus deveres; – ao seu lado esquerdo, via-se a minha insignificante
pessoa, ainda modestamente encaixada na tipoia; – à direita, despregava-se
ao vento a bandeira; – em torno e atrás dela seguiam doze soldados cheios de
gravidade e de cansaço, no mais perfeito asseio e melhor ordem que ali se
poderia exigir; – na frente de todos adiantava-se o corneta, tocando não sei
que marcha guerreira de sua fantasia.
(Note-se que o outro corneta ficara, como era de razão, na quimpaca, onde tocaria a unir talvez para os passarinhos, visto que os quatro inválidos que
o acompanhavam na guarnição dos baluartes, os tínhamos nós deixado juntos, e homens não eram eles que se separassem porque, desajudados de estranho auxílio, positivamente se não podiam mexer).
O soba, cercado pelos seus macotas, veio ao nosso encontro.
Chamava-se ele Caendangongo.
Ó Caendangongo, flor dos sobas do teu país, que, lá, me alcunhavas de
―escrivão do chefe‖, e te informavas ingenuamente sobre o que havia de
genuíno ou de postiço nas minhas barbas, mal imaginas tu agora que estou
contigo a contas!
Era um belo negro, muito moço ainda, de rosto inteligente e agradável figura, quando, vestido à moda da terra, deixava ondular em dobras caprichosas as suas vestes roçagantes (panos). Naquela primeira ocasião, porém, envergava a farda descorada de não sei que ignaro zabumba do regimento de
linha, e pesava-lhe sobre os olhos a hiperbólica barretina de vetusto miliciano, o que tudo, em vez de lhe emprestar majestade, tão acaçapado e ridículo
o tornava, a ele a quem a natureza criara tão esbelto e airoso.
Concluídos os cumprimentos do cerimonial, e despojado o soba do traje
desgracioso que o incomodava, passámos a viver na mais íntima camaradagem. Apresentou-nos suas principais mulheres e sua filha mais velha que era
de uma formosura deslumbrante, e de uma perfeição de formas superior a
tudo o que a inspiração do artista haja sabido arrancar ao cinzel. Jantou connosco, comeu e bebeu como um franco e jovial conviva, tomando parte na
conversação, e adubando-a aqui ou ali com um ou outro dito que, não obstante perder na transmissão do intérprete da sua graça primitiva, era sempre ou
chistoso ou sensato.
-133-
Ernesto Marecos
À noute, quis-nos dar um spécimen das suas festas.
Nunca me há de esquecer a impressão que me causou o que ali presenciei.
No largo espaçoso em que nos achávamos, assombreado por magníficas e
corpulentas árvores, dispuseram-se simetricamente inumeráveis fogueiras.
Junto delas agrupavam-se os pares. Defronte do soba, dous exímios professores de música, ao que eles diziam, acompanhavam nas marimbas do sertão a
poesia dos seus cantos melancolicamente selvagens; e, força é confessá-lo,
tanto das vozes como dos instrumentos partiam por vezes notas de suavíssima e delicada melodia.
Começaram as danças. A princípio lentas e pausadas, adquiriram progressivamente calor e tornaram-se, por impercetíveis gradações, apaixonadas,
voluptuosas, desenvoltas, febricitantes. Por fim era um turbilhão rumoroso
que apenas de espaço a espaço deixava perceber um ou outro trecho da música, que então vibrava até ao íntimo da alma. Era um delírio que se não concebe, nem se descreve; uma fúria incessante que não esmorecia nem afrouxava, que redobrava nos ímpetos, que recrescia na rapidez, que bebia alentos
na própria fadiga; era uma vertigem, uma loucura; um dançar de gnomos ou
de duendes; frenético, diabólico. Homens e mulheres enlaçavam-se, confundiam-se, arrastavam-se, despediam-se, doudejavam por entre as sombras ou
ao reflexo avermelhado das fogueiras. Que confusão suprema! Os troncos
das árvores como que se desprendiam da sua imobilidade e volteavam também no meio dos grupos anelantes; a terra desaparecia debaixo dos pés; tudo
tremia, tudo dançava, tudo redomoinhava. Eu segurei-me, para não cair, à
pedra em que estava sentado. Olhei maquinalmente para o rosto do chefe:
ordinariamente pálido, pareceu-me, à tíbia claridade que o iluminava, lívido
como o de um cadáver. Acreditei seriamente que estava no inferno.
Terminados os festejos da receção, passou o soba aos hábitos da sua existência normal. Se de dia conversava com o chefe sobre os negócios que os
aproximaram; ocupava, ao menos, as noites no que lhe era de antiga prática.
Chegámos neste momento à parte interessante do caso.
Caendangongo, à hora em que o crepúsculo começa a degenerar em trevas, tinha por uso sentar-se debaixo da sua árvore predileta, e aí se acercavam dele os principais da sua corte. Depois de todos haverem tomado lugar,
ele proferia três ou quatro palavras, que nós entendemos depois deverem
dizer pouco mais ou menos: ―vamos a isto!‖
-134-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
Então, um dos de ar mais circunspecto da comitiva, começava, em tom
lento e vagaroso, a desenrolar uma extensa tirada que era acolhida no meio
de um religioso silêncio, apenas quebrado pelos impertinentes bocejos de
alguns, ou pelas observações ou comentários de poucos; e só quando era
evidente o ter-se posto ponto final à oração é que, não raro, se elevava aqui
ou ali uma ligeira altercação a que o soba punha termo decidindo, provavelmente em última instância, do merecimento do alegado. – A este tempo,
tinham já chegado, ou estavam chegando os filhos da libata que andavam por
fora ocupados no tráfego do comércio próprio ou alheio, e que recolhiam de
algum ponto do litoral ou do sertão. Depois de respeitosamente cumprimentarem o soba, qualquer de entre eles expunha, com uma certa gravidade concisa, aquilo de que tinha a informar os circunstantes; e, apenas acabado o
curto murmúrio de indiferença ou admiração que a sua narrativa provocara,
cedia a palavra – e já era tempo – ao bando dos rapazes que, tumultuosamente, tinham vindo engrossar as fileiras, e dos quais o mais estouvado ou,
pelo menos, o mais falador principiava a discursar sobre assunto que, visivelmente, era do geral agrado, e que muitos saudavam entre acessos de hilaridade, se bem que, para contraste, a maior parte dormisse então já a sono
solto! – Passado este incidente, todos contribuíam (menos os dormentes) com
o seu óbolo de loquacidade, e a conversação tornava-se por momentos animada. Depois, um instante de algazarra, e, por fim, o mais completo silêncio.
Cada um tinha ido tratar da sua vida.
Tendo nós, F. de B. e eu, observado, por uns poucos de dias, a repetição
inalterável destas mesmas cenas, curámos de delas indagar a explicação cabal.
Valeu-nos para isso um preto ali residente e proprietário, perfeitamente
civilizado e que eu já vira em Benguela por nome Chico Tereca, e a quem
protesto daqui uma afetuosa saudade, que nos disse que Caendangongo,
ávido de saber como se tomavam os seus atos governativos, curioso de estar
ao facto do que se passava em toda a parte, exigia que todas as noites se lhe
fizesse a narração minuciosa do que ocorria na libata e fora dela, nos divertimentos dos arredores, nas cubatas (habitações) finalmente de cada um.
Era nem mais nem menos do que um jornal a cuja colaboração o bom do
soba obrigava os seus súbditos, e em que cada um era editor responsável de
[sic] parte que redigia.
-135-
Ernesto Marecos
O primeiro personagem, maçudo e monótono, representava admiravelmente o artigo de fundo sobre que o soba, através das controvérsias oposicionistas, proferia, sem recurso, a opinião a que ele chamava modestamente a
do país.
Ao principal interlocutor de entre os recém-chegados de distantes paragens cabia, sem dúvida alguma, a secção de notícias estrangeiras. O folhetim
personificava-o, por uma forma natural e apropriada, o chefe da coorte juvenil que espairecia pelas festas, nelas apreciava os ridículos e as belezas, e
fazia ampla colheita de bons ditos e saborosos epigramas. (Calculei isto pela
expressão graciosamente sarcástica da cara do folhetinista). Enquanto ao
noticiário, já sabemos que todos para ele concorriam com o seu contingente,
e não é esse, às vezes, o modo menos conducente a torná-lo interessante.
Tínhamos pois entre os selvagens, devidamente estabelecido, o jornal,
não como o compreendem na Europa culta mas, – e nada perdia com isso, –
na sua máxima simplicidade de enunciação, se bem que já adornado com
todos os seus brilhantes acessórios; sem falsos programas, nem verrinas descompostas, mas conscienciosamente elaborado, cheio de verdade e de singeleza, e escutado, sobretudo, com uma atenção que os nossos estão longe de
poder conciliar por cá.
Daquele dia em diante, sempre que eu e o tenente. F. de B. recolhíamos,
ao pôr-do-sol, das nossas divagações bucólicas, dizíamos infalivelmente um
para o outro:
– Vamos ao periódico do soba!
Numa dessas ocasiões em que cada um de nós se espraiava, como melhor
lhe parecia, sobre a matéria; suscitou-se-me a ideia de patentear a minha
admiração pela pasmosa fecundidade do folhetinista. Para a política interna,
para a externa, e para o noticiário, evidente era que o assunto superabundava
sempre. Todos os dias o soba dava ordens, todos os dias lhe chegava gente
de fora, todos os dias sucediam, aqui ou além, desses pequenos casos de que
se fazem as pequenas anedotas. Mas o folhetim! numa existência tão pouco
acidentada! isso é o que deveras me custava a compreender.
– Não se espante, acudiu de pronto o nosso estimável Chico Tereca: festas e batuques não faltam por todas essas libatas, nem tão-pouco os chinguiladores as deixam escassear.
-136-
Juca, a matumbola e outros textos angolenses
Sobre os chinguiladores, (não respondo pela exatidão ortográfica nem
desta nem de nenhuma outra das palavras de linguagem bunda de que me
sirvo) e sobre os chinguilamentos ouvira eu já dissertar largamente, mas não
possuía completo conhecimento.
Sabia que os chinguiladores passavam por entes extraordinários, educados desde a infância para a difícil profissão de adivinhar (!); que evocavam,
a seu bel-prazer, os espíritos superiores; que privavam em íntimo comércio
com as almas do outro mundo; e que seria sacrílega a dúvida que versasse
sobre a genuidade de qualquer sentença pronunciada por um destes oráculos
de tostada fronte e singular existência. Sabia também que, não se julgando
incompetentes para devassarem todos os arcanos do passado e do futuro, se
lhes aproveitava particularmente a proficiência para os casos de graves enfermidades.
Com relação a esta última especialidade, pelo que me contou Chico Tereca e eu observei depois, colhi, com extrema dificuldade, o que se segue.
Adoece um negro: – (dos que têm alguma cousa de seu, já se vê; porque
aos que são pobres como Job ninguém contesta o direito de adoecer e morrer
em perfeita liberdade) – Adoece um negro, cerca-o, na pocilga em que jaz
deitado, a família lacrimosa; e chama-se, em ato continuo, quimbanda de
sólida reputação. (Quimbanda é o que exerce a arte de curar, seja homem ou
mulher, donde o leitor infere sem esforço que a emancipação do sexo frágil
caminha por lá em muito melhor esteira do que entre as nações civilizadas).
O quimbanda não tacteia o pulso nem examina a língua do enfermo, mas
esfalfa-se em perguntas que o levem a um seguro diagnóstico, e acaba receitando uma tolice, que é o mesmo que tem sucedido a todos os quimbandas
desde Esculápio até qualquer médico dos nossos dias. O pobre negro não melhora. Atenta a fama do facultativo, conclui-se logicamente que a doença só
pode ser atribuída a influências sobrenaturais. Pede-se portanto a assistência
do chinguilador para elucidar a questão. O chinguilador aparece revestido de
todo o seu apanágio charlatânico. Sarapintado de tacula, penas de galo preto
na cabeça, comprida pele de onça a pender-lhe da cintura, instala-se, sem
cerimónia, à cabeceira do doente. Principia a comédia. O silêncio que reina
no aposento é profundo e absoluto – sentir-se-ia zumbir o milímetro de um
inseto. – O chinguilador começa de cair em mórbido abatimento; rápidos
-137-
Ernesto Marecos
estremecimentos lhe agitam o corpo convulsivamente; de vez em quando
toma com ansiedade a respiração que parece fugir-lhe.
De repente, revolvem-se-lhe os olhos nas órbitas, sons inarticulados lhe
cortam os lábios, estrebucha angustiosamente, e levanta-se por último de um
salto, pulando e gritando como um verdadeiro possesso: «cá o temos, está
comigo!… veio agora!…» – Tudo se prostra então: homens e mulheres rojam as faces no pó. O espírito luminoso acabara de visitar o seu filho estremecido.
O chinguilador continua: – «bem-vindo seja ele! reconheço-me inspirado!… sinto que me transportam a regiões desconhecidas!…» e enquanto isto
ruge, balbucia talvez in mente: – «em boa alhada me meti eu!… ainda não
achei um fio com que me safe de semelhante entalação!…» – Prorrompe de
novo em estridentes brados, que acompanham sempre as mais descompostas
evoluções ginásticas: – «o desditoso doente está em perigo! mas eu já conheço… já percebo o motivo… houve um parente deste homem que faleceu…
há tempos… há anos… pelo cacimbo…»
– «O velho Ngamba»; murmura à parte uma das mulheres.
– «O velho Ngamba, prossegue o velhaco fingindo nada ter ouvido, cuja
alma se encaixou no corpo deste pobre estafermo… e é mister aplacar o
Zumbi (alma do outro mundo)… é preciso que se digam as missas que estão
em dívida… ou, no caso contrário, perecerá o doente…»
É de notar que ele também não afiança que as missas o salvarão.
Acentuada aquela última palavra da sua inspiração, o chinguilador, que
noutra ocasião se socorrerá a outro qualquer meio de natureza idêntica para
conseguir o mesmo fim, volve pouco a pouco ao seu estado normal, finge de
nada recordar-se, e retira-se com os ares da mais grave importância, depois
de festejado e bem remunerado por toda a família do negro.
É inútil dizer que este venderia os filhos, e seria capaz de vender os pais,
se pudesse, para não faltar ao dever sagrado de mandar dizer esplendidamente as missas exigidas; missas em que a maior parte das vezes não há missa,
mas um lauto banquete para que se matam muitos bois, em que se bebe muita
aguardente, e se faz tudo o que caracteriza a orgia mais desenfreada.
Escusado creio também acrescentar que os chinguiladores são da folia.
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Juca, a matumbola e outros textos angolenses
O mais engraçado é que tais marotos passam lá como semideuses para a
multidão.
Não admira. Ainda hoje existe muito impostorzinho cá pela Europa, nocivo ou nulo, em cuja honra se fundem estátuas e se inventam turíbulos.
Que lhes preste!
Casos assim, originais e curiosíssimos para nós, há-os sem conto por
aquele opulento sertão.
Conservo alguns apontados. Hei de contá-los de outra vez.
-139-
IV. Apêndice: as duas versões de Juca
da autoria de Alfredo de Sarmento
1.
Testemunho: Boletim official do Governo Geral da Provincia de Angola. N.º 713,
28/05/1859, pp. 5-7.
Variedades
Juca, a matumbola.
(Lenda africana.)
Era no dia 1.º de agosto de 1856. Saíramos de Libongo, em marcha para o
Ambriz, e a noite surpreendeu-nos num sítio denominado Quiembe, onde
acampámos.
Estávamos num alto, cercado de um lado por mato espesso, e dos outros
por essas abóbadas de caçoneiras I, que os pretos arranjam para defensa das
suas povoações.
Ao longe, no pé da extensa planura que ocupávamos, quebravam-se as
ondas do majestoso oceano, fazendo chegar até nós o ruído da sua incessante
luta contra a praia.
A noite estava húmida, porque o cacimbo caía em abundância, a ponto de
traspassar os capotes com que nos cobríamos.
Tratámos de fazer fogueiras, e em torno delas, uns assentados e outros
deitados, se acomodaram cerca de dois mil homens.
Schiller II, se houvera presenciado a cena, tê-la-ia sem dúvida aproveitado
para um sublime quadro de salteadores, como alguns que a sua pena há traçado, com tanta energia como exatidão.
A chama avermelhada, que se desprendia das fogueiras, ia refletir-se em
rostos bronzeados pelo ardente sol da África, tornando-os de mais feia catadura. A diversidade dos trajos, das armas, das raças e da linguagem, o pitoresco do local, tudo concorria para dar um singular aspeto àquela reunião de
gente.
-143-
Alfredo de Sarmento
No círculo em que eu estava faziam-se estas observações. Naturalmente
se passou a falar de coisas extraordinárias – de ladrões e assassinatos, de
bruxas e feiticerias.
O capitão ***, filho do país, após uma história de lobisomens, que algum
de nós contou, exclamou, num tom que denotava a mais inteira e robusta fé:
«Não me admiro dos vossos lobisomens. Entre nós, além de muitas outras
coisas, temos os matumbolas!»
E o que são os matumbolas? – perguntámos todos com a maior curiosidade.
«Os matumbolas são os ressuscitados por artes de feiticeria» – nos replicou ele.
Uma gargalhada geral acolheu a explicação do nosso bom capitão.
«Riam, riam – continuou –, mas ouçam se querem.»
Desde logo todos prestámos ouvidos.
«Matumbolas são pessoas a quem os feiticeiros tiram a vida, pelo poder
diabólico dos seus feitiços, para satisfação de ódios próprios, ou alheios,
quando lhes pagam, e que pelos mesmos meios ressuscitam, a fim de fazer
delas o que bem lhes parece. Depois de ressuscitados andam, falam, sentem,
como os verdadeiros vivos; somente conservam sempre o frio próprio do
cadáver. Aí vai a história de uma matumbola, que eu afirmo ser muito verídica. – Querem-na?»
Venha, venha – respondemos nós em coro.
E o capitão começou desta sorte:
«Entre os rios Lurua e Zambezi, que correm nos vastos serões da Lunda,
havia em 18** uma povoação denominada Quimbaxi. Os habitantes daquele
internado sertão conservam quase todos os hábitos gentílicos do comum das
raças africanas, não tendo tido ocasião de os modificar sensivelmente pelo
trato aturado com os europeus. Vivia, pois, ali um preto, a quem a avançada
idade privara totalmente do uso das pernas. Entrevado desde muito tempo,
todos os carinhos, todas as afeições daquela alma selvagem se haviam concentrado em Juca, sua filha, único amparo da sua velhice. Juca era um dos
mais notáveis tipos de formosura africana, que se realça principalmente pela
regularidade das formas. A cor negra retinta do seu rosto insinuante, a alvura
de seus belos dentes, a viveza de seus rasgados olhos, que se fixavam pene-144-
Juca, a matumbola
trantes como se uma viva chama os iluminara, e sobretudo os admiráveis
contornos do seu corpo airoso e flexível, apenas coberto com um amplo pano, a tornavam digna de inspirar o cinzel de um grande artista.»
«Juca era na verdade uma linda negra. Não se apercebia ela disso; mas
sim os negros mancebos da povoação, que à porfia pretendiam agradar-lhe.
Entre estes distinguia-se Giolo, o mais famoso caçador do lugar, alma de
fogo, natureza arrebatada, que experimentava o amor por Juca pelo desejo
violento de a possuir, que o dominava. Bastava ouvir-lhe o som da voz para
tremer… ele que afrontava a sanha do leão! Se a via falar com outro negro,
uma vertigem lhe ofuscava a luz dos olhos; involuntariamente a sua mão ia
empunhar a faca de mato, que sempre lhe pendia ao lado.»
«Por uma rara exceção nas mulheres da sua raça, Juca queria conservar-se pura. Muitas propostas de casamento lhe haviam sido feitas, que todas
ela desprezara. Giolo não tinha sido mais feliz nas suas; e ralado, consumido
pela febre que lhe escaldava o coração, jurara que aquela mulher lhe pertenceria. Lembrou-se de a fazer matumbola, recorrendo para isso a um afamado
feiticeiro daqueles lugares. Longo tempo vacilou em tomar esta suprema
resolução. A compaixão lhe abafava por vezes o sentimento do crime, quando via Juca tão inocente, tão desprecatada do mal que a ameaçava. Então ele
a venerava como à estrela da sua vida, como ao génio bom que lhe presidira
ao nascimento e o guiava na senda do mundo. Mas logo tornava a reparar
quanto ela era bela, e o aguilhão dos desejos brutais o incitava mais do que
nunca. Giolo era um selvagem; na sociedade em que existia não tinha aprendido a moderar-se. A piedade foi suplantada, e a pobre e incauta Juca bebeu
certa poção, que o feiticeiro havia dado, assegurando a sua eficácia!»
«Não devia de ser rápido o efeito, pois que a vida em Juca se ia consumindo pouco a pouco, como se consome a luz de alâmpada esquecida: uma
prostração geral lhe quebrara os membros; os olhos, tão brilhantes, tinham-se
tornado lânguidos; uma tristeza profunda, que a dominava, lhe fazia pressentir o seu fim próximo. E contudo, Juca era sempre bela!»
«Seu velho pai, vendo definhar-se aquela criatura, em quem tinha depositado todas as afeições da sua alma, que era o seu amparo, o fio único que o
prendia ainda à vida, não pôde mais resistir, e, chamando-a junto de si, lhe
disse: – minha querida Juca, sinto que vou morrer; o pesar que levo é o de te
deixar tão diferente do que tu havias sido até há pouco. Uma voz íntima me
-145-
Alfredo de Sarmento
diz que tu corres algum grande perigo. Se isto se realizar, chama-me em teu
auxílio, que Deus há de permitir que eu te valha!»
«Pouco tempo depois expirou nos braços de sua filha. Um mês apenas era
decorrido quando Juca, que continuara a experimentar os funestos efeitos da
diabólica bebida, exalou também o último suspiro, não levando saudade
nenhuma deste mundo, porque nele não ficava ente algum que lhe fosse caro.
Giolo tinha logrado o primeiro resultado da sua criminosa paixão!»
«Fora o corpo enterrado. O cemitério era situado à borda do caminho, fora da povoação. A noite ia alta, e estava escura e temerosa; grossas cordas de
água se desprendiam das nuvens, ao medonho som de uma forte trovoada.
Giolo, com o feiticeiro, se encaminhava para o lugar em que jazia Juca. Ali
chegados, este último, vendando os olhos a Giolo, recomendou-lhe que não
procurasse ver o que se ia passar, antes de lho permitir, sob pena de cair redondamente morto.»
«Ao cabo de algum tempo, ouviu-se o som rouquenho de certo instrumento que o feiticeiro tocava, e logo este ordenou a Giolo que desvendasse
os olhos. Juca estava em pé diante dele, tão viva e animada como se nunca
tivera deixado de existir!»
«Que me querem? – perguntou ela em voz sumida. Para que vêm perturbar o meu sono eterno?»
«Giolo, que ficara um momento aterrado, sentindo agora, ao som daquelas maviosas palavras, despertar todo o fogo dos desejos que o devoravam,
bradou: – o que te eu quero?!… quero levar-te, para que sejas minha, para
possuir os teus encantos, para te guardar com furor, como a leoa destes matos
guarda a sua prole, para te acariciar, como a corça dos prados o faz aos seus
filhinhos! E de um salto a tomou em seus robustos braços, para a transportar
para a sua cabana.»
«Juca quis resistir, mas as suas débeis forças não eram para lutar com as
de Giolo. Lembrou-se então da recomendação de seu moribundo pai, e num
arranco de suprema aflição o chamou em seu auxílio.»
«Viu-se então um verdadeiro prodígio. A tempestade continuava em toda
a sua horrível majestade. Um raio desceu das nuvens e passou entre o grupo
dos três, que estavam junto da sepultura de Juca. Quando amanheceu, os
habitantes do lugar encontraram os cadáveres de Juca e do feiticeiro sobre a
-146-
Juca, a matumbola
terra fria e encharcada. O deste parecia que tinha sido queimado. De Juca
dir-se-ia que ali tinha simplesmente adormecido. Alguns pretos que saíram
ao mato, para as suas ocupações ordinárias, contaram, quando recolheram,
que tinham visto Giolo, correndo como um furioso, a embrenhar-se nas mais
fundas espessuras. Depois não houve nunca notícia dele.»
Calou-se o capitão ***, e após alguns instantes de silêncio, um dos circunstantes lhe perguntou:
«E o capitão acredita nessas histórias de matumbolas?
«Pudera não acreditar… se eu já estive quase a comprar um escravo matumbola, e o que me valeu foi ser advertido por alguém que conhecia a pecha
do desgraçado preto! Disse-me que o apalpasse, o que eu fiz… estava frio,
como fria está esta noite!»
Cedemos à força deste argumento, e já nos dispunha-mos para dormir alguns momentos, quando ouvimos bradar – Levantar cargas.
Em breve ia despontar o dia, que assim mesmo já nos achou continuando
a nossa marcha para o Ambriz.
Alfredo de Sarmento
I
O mesmo que coroa-de-cristo (Euphorbia tirucalli).
Referência ao escritor alemão Johann Friedrich Schiller (*1759 †1805) e ao seu drama
Os salteadores (Die Räuber), escrito em 1780 e representado com largo sucesso.
II
-147-
Alfredo de Sarmento
2.
Testemunho: «A embaixada. – Uma lenda gentilica». In Os sertões d’África (Apontamentos de viagem). Com um prologo de Manuel Pinheiro Chagas. Lisboa: Editor Proprietario
– Francisco Arthur da Silva, 1880, pp. 42-6.
VI
A embaixada. – Uma lenda gentílica
Organizado definitivamente o novo distrito de D. Pedro VI; estabelecidas as
relações de amizade com os povos daquele sertão, convencidos pela experiência da grande utilidade que resultava para eles da ocupação portuguesa
daquele território, por isso que vendiam os seus géneros, sem terem de os
levar a grandes distâncias, e de serem vítimas dos roubos e exigências dos
pretos linguesteresII, tratou-se de enviar uma embaixada ao rei do Congo,
encarregada de lhe participar a ascensão do senhor D. Pedro V ao trono dos
seus maiores, e levar-lhe os presentes que o mesmo augusto senhor lhe mandava como demonstração de boa e leal amizade.
Compunha-se a embaixada de um oficial superior, o major André Pinheiro da Cunha, do reverendo cónego Moura, e do comissário da expedição,
autor destes modestos apontamentos de viagem.
O major André Pinheiro da Cunha, era natural de S. José d’Encoge, e supersticioso como são todos os filhos do país.
Abrirei, pois, aqui um parêntesis para narrar aos leitores uma lenda gentílica que o bom do major nos contou com a mais robusta fé e profundíssima
convicção:
Estávamos acampados, era noite e o cacimbo caía com abundância.
Em roda das fogueiras do acampamento, tinham-se formado vários grupos; as conversações corriam animadas, sem que nenhum de nós deixasse,
contudo, de fazer as honras devidas à ceia frugal que nos era servida pelos
nossos moleques de serviço.
No círculo em que eu estava faziam-se diversas observações, e, arrastados
pela situação em que nos achávamos, passámos a falar de cousas extraordinárias, de ladrões, de bruxas e de feitiçarias.
-148-
Juca, a matumbola
O major Cunha escutava com a mais escrupulosa atenção, e, após uma
história de lobisomens contada pelo jovial e folgazão capitão Gamboa, exclamou num tom que denunciava a mais inteira e robusta fé:
– Meus senhores, não me admiram os vossos lobisomens. Entre nós, além
de muitas outras cousas, há os Matumbolas.
– E que são os Matumbolas? perguntámos todos com a maior curiosidade.
– Matumbolas são os ressuscitados por artes de feitiçaria, respondeu ele.
Uma gargalhada geral acolheu a explicação do crédulo major.
– Riam, riam, que me não ofendo com isso, e uma vez que encetei este
assunto, peço a palavra para mais uma explicação.
– Tem a palavra o major Cunha, disse com ar grave e solene o doutor
S.***, que, assentado em um tambor, saboreava com indizíveis delícias uma
asa de galinha assada.
– Pois então lá vai. Os Matumbolas são pessoas a quem os feiticeiros tiram a vida, pelo poder diabólico dos seus feitiços, para satisfação de ódios
próprios ou alheios, quando lhes pagam, e que, pelos mesmos meios ressuscitam, a fim de fazerem deles o que bem lhes parece. Depois de ressuscitados,
andam, falam, sentem, como os verdadeiros vivos, e somente conservam
sempre o frio do cadáver. Vem a pelo a história de uma Matumbola, que eu
afirmo ser verdadeira. Querem-na?
– Venha! venha! rompemos todos em coro.
E o major, depois de levar à boca o frasco com aguardente que segurava
na mão direita, e beber um bom trago, começou a seguinte narrativa:
– Entre os rios Lurua e Zambezi que correm nos vastos serões de Lunda,
havia em 18*** uma povoação denominada Quimbaxi. Os habitantes daquele
internado sertão, conservam quase todos os hábitos gentílicos do comum das
raças africanas, não tendo tido ocasião de os modificar sensivelmente pelo
trato aturado com os europeus. Vivia, pois, ali um preto a quem a avançada
idade privara totalmente do uso das pernas. Entrevado havia muito tempo,
todos os carinhos, todas as afeições daquela alma selvagem, se tinham concentrado em Juca, sua filha, único amparo e consolação da sua velhice.
«Juca, era um dos mais notáveis tipos da beleza africana, que se realça
principalmente pela regularidade e pureza das formas.
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Alfredo de Sarmento
«Entre os mancebos que pretendiam agradar-lhe, distinguia-se Giolo, o
mais famoso caçador da Sanzala, alma de fogo, natureza arrebatada, que
media o amor que Juca lhe inspirava, pelo desejo violento de a possuir, que o
dominava. Vendo rejeitado o seu afeto, e tendo jurado que lhe pertenceria
aquela mulher, lembrou-se de a fazer Matumbola, recorrendo para isso a um
afamado feiticeiro daqueles lugares.
«Juca bebeu pois uma certa poção que devia produzir nela uma morte
temporária, e um mês depois exalava o último suspiro.
«Giolo tinha logrado o primeiro resultado do seu funesto desígnio.
«Fora o corpo enterrado. O cemitério era situado à borda do caminho, fora da povoação, na clareira de uma floresta de árvores gigantescas e ricas de
vegetação. A noite ia alta, e estava escura e tormentosa.
«Grossas cordas de água se desprendiam das nuvens ao ribombar medonho de uma horrível trovoada: Giolo e o feiticeiro encaminharam-se para o
lugar onde jazia o corpo de Juca. Chegados ali, aquele último, vendando os
olhos a Giolo, recomendou-lhe que não procurasse ver o que se ia passar, sob
pena de cair redondamente morto.
«Ao cabo de algum tempo, ouviu-se o som rouquenho de um instrumento
que o feiticeiro tocava, e logo este ordenou a Giolo que desvendasse os
olhos. Juca estava de pé, diante dele, tão viva e animada como se nunca tivesse deixado de existir.
«Giolo, que ao princípio ficara aterrado com aquela aparição inesperada,
sentiu de novo atacá-lo a febre dos desejos, e, louco, desvairado, semelhante
ao tigre que se lança sobre a presa, deu um salto e tomou nos braços a ressuscitada.
«Viu-se então um verdadeiro prodígio.
«A tempestade continuava em toda a sua horrível majestade. Subitamente, um tremor pavoroso abalou os seios da terra; o solo abriu-se vomitando
labaredas de um fogo sinistro, e, um raio desprendido das nuvens, passou
entre os três que estavam junto{s} da sepultura de Juca.
«Quando amanheceu, os habitantes do lugar encontraram os cadáveres de
Juca e do feiticeiro, estendidos sobre a terra fria e encharcada. O deste parecia que tinha sido queimado; Juca, dir-se-ia que ali tinha simplesmente
adormecido.
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Juca, a matumbola
«Alguns pretos que saíram para as suas ocupações ordinárias, contaram,
quando recolheram, que tinham visto Giolo, correndo como um furioso, a
embrenhar-se nas mais profundas espessuras.»
Calou-se o major, e, passados alguns momentos de silêncio, perguntou-lhe um dos circunstantes:
– E o major acredita na existência dos Matumbolas?
– Se acredito! Estive já a ponto de comprar um escravo Matumbola, e o
que me valeu foi ser advertido por alguém que sabia da pecha do desgraçado
preto. Disse-me que o apalpasse, o que eu fiz… Estava frio como fria está
esta noite!
Dali em diante, o narrador desta lenda gentílica, ficou sendo conhecido
pelo major Matumbola.
I
II
Bembe, no Uíge.
Intérpretes.
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