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ANPOF - Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia Diretoria 2017-2018 Adriano Correia Silva (UFG) Antônio Edmilson Paschoal (UFPR) Suzana de Castro (UFRJ) Agnaldo Portugal (UNB) Noéli Ramme (UERJ) Luiz Felipe Sahd (UFC) Cintia Vieira da Silva (UFOP) Monica Layola Stival (UFSCAR) Jorge Viesenteiner (UFES) Eder Soares Santos (UEL) Diretoria 2015-2016 Marcelo Carvalho (UNIFESP) Adriano N. Brito (UNISINOS) Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros (USP) Antônio Carlos dos Santos (UFS) André da Silva Porto (UFG) Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) Maria Isabel de Magalhães Papaterra Limongi (UPFR) Marcelo Pimenta Marques (UFMG) Edgar da Rocha Marques (UERJ) Lia Levy (UFRGS) Produção Samarone Oliveira Editor da coleção ANPOF XVII Encontro Adriano Correia Diagramação e produção gráfica Maria Zélia Firmino de Sá Capa Philippe Albuquerque COLEÇÃO ANPOF XVII ENCONTRO Comitê Científico da Coleção: Coordenadores de GT da ANPOF André Leclerc (UnB) Antônio Carlos dos Santos (UFS) Antonio Glaudenir Brasil Maia (UECE/UVA) Arthur Araujo (UFES) Carlos Tourinho (UFF) Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo (UNIFESP) César Augusto Battisti (UNIOESTE) Christian Hamm (UFSM) Claudemir Roque Tossato (UNIFESP) Cláudia Drucker (UFSC) Cláudio R. C. Leivas (UFPel) Daniel Lins (UFC/UECE) Daniel Omar Perez (UNICAMP) Daniel Pansarelli (UFABC) Dennys Garcia Xavier (UFU) Dirce Eleonora Nigro Solis (UERJ) Dirk Greimann (UFF) Emanuel Angelo da Rocha Fragoso (UECE) Fátima Regina Rodrigues Évora (UNICAMP) Felipe de Matos Müller (PUCRS) Flávia Roberta Benevenuto de Souza (UFAL) Flavio Williges (UFSM) Francisco Valdério (UEMA) Gisele Amaral (UFRN) Guilherme Castelo Branco (UFRJ) Jacira de Freitas (UNIFESP) Jairo Dias Carvalho (UFU) Jelson Oliveira (PUCPR) João Carlos Salles Pires da Silva (UFBA) Juvenal Savian Filho (UNIFESP) Leonardo Alves Vieira (UFMG) Lívia Mara Guimarães (UFMG) Lucas Angioni (UNICAMP) Luciano Carlos Utteich (UNIOESTE) Luís César Guimarães Oliva (USP) Luiz Antonio Alves Eva (UFPR) Luiz Henrique Lopes dos Santos (USP) Luiz Rohden (UNISINOS) Marcelo Esteban Coniglio (UNICAMP) Marco Antonio Azevedo (UNISINOS) Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) Maria Aparecida Montenegro (UFC) Maria Cristina de Távora Sparano (UFPI) Maria Cristina Müller (UEL) Mariana de Toledo Barbosa Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA) Milton Meira do Nascimento (USP) Nilo Ribeiro Junior (FAJE) Noeli Dutra Rossatto (UFSM) Paulo Ghiraldelli Jr (UFRRJ) Pedro Duarte de Andrade (PUC-Rio) Rafael Haddock-Lobo (PPGF-UFRJ) Ricardo Pereira de Melo (UFMS) Ricardo Tassinari (UNESP) Roberto Hofmeister Pich (PUCRS) Rodrigo Guimarães Nunes (PUC-Rio) Samuel Simon (UnB) Silene Torres Marques (UFSCar) Silvio Ricardo Gomes Carneiro (UFABC) Sofia Inês Albornoz Stein (UNISINOS) Sônia Campaner Miguel Ferrari (PUC-SP) Susana de Castro (UFRJ) Thadeu Weber (PUCRS) Vilmar Debona (UFSM) Wilson Antonio Frezzatti Jr. (UNIOESTE) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C338 Ceticismo, dialética e filosofia contemporânea / Organizadores Adriano Correia .... [et al.]. São Paulo : ANPOF, 2017. 430 p. – (Coleção XVII Encontro ANPOF) Bibliografia ISBN 978-85-88072-65-7 1. Ceticismo - Filosofia 2. Dialética 3. Filosofia moderna I. Correia, Adriano (Org.) II. Nunes, Rodrigo Guimarães (Org.) III. Utteich, Luciano Carlos (Org.) IV. Valdério, Francisco (Org.) V. Williges, Flavio (Org.) VI. Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia VII. Série CDD 100 APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO XVII ENCONTRO NACIONAL DE FILOSOFIA DA ANPOF O XVII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF, ocorrido em Aracaju, na Universidade Federal de Sergipe, de 17 a 21 de outubro, reuniu parte significativa da comunidade acadêmica brasileira da área de filosofia, como já é tradição nos encontros promovidos pela ANPOF desde 1984, em Diamantina/MG. Tivemos mais de 2 mil apresentações e a participação massiva de docentes e discentes de todas as partes do país. O evento, que se amplia a cada edição, refletindo a expansão e a consolidação nacional da nossa área, é oportunidade única para a divulgação e a discussão de nossas pesquisas, mas também para o debate e o intercâmbio de opiniões sobre temas relevantes para nossa comunidade acadêmica e a consolidação de redes de pesquisa. Desde 2013 a ANPOF vem publicando parte dos textos apresentados no evento, nos Grupos de Trabalho e nas Sessões Temáticas visando registrar as atividades do evento, dar visibilidade a nossa produção e fomentar o diálogo entre as pesquisas na área. Nesta edição do evento contamos com pouco mais de seiscentos textos aprovados dentre os efetivamente apresentados e submetidos para avaliação dos Grupos de Trabalho e das Coordenações dos Programas de Pós-graduação. Após o processo de avaliação dos trabalhos submetidos foi concedido aos autores um prazo de um mês para que revisassem seus próprios textos, uma vez que os autores respondem pela versão final do seu texto. Foi feita uma revisão geral nos livros, mas com foco antes de tudo na diagramação e na padronização da apresentação dos textos, de modo que apenas ocasionalmente foram corrigidos erros evidentes, principalmente de digitação. O processo de edição dos livros durou o tempo compatível com a magnitude do material e a estrutura da ANPOF. Os 22 volumes resultantes foram agrupados por afinidade temática, tanto quando possível, e sempre com a anuência dos coordenadores de GTs. A edição deste material não teria sido possível sem a colaboração dos Coordenadores de Programas de Pós-graduação e Coordenadores de GTs, aos quais agradecemos profundamente. A reunião dos textos e a solução dos vá- rios problemas ao longo do processo não seriam possíveis sem a contribuição competente e inestimável de Samarone Oliveira, da secretaria da ANPOF. A comunidade da filosofia no Brasil se reunirá novamente em 2018 em Vitória, por ocasião do XVIII Encontro Nacional de Filosofia. Uma boa leitura e até lá. Diretoria da ANPOF Títulos da Coleção ANPOF XVII Encontro Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea Deleuze, Desconstrução e Alteridade Estética Ética, Política, Religião Fenomenologia e Hermenêutica Filosofar e Ensinar a Filosofar Filosofia Antiga Filosofia da Linguagem e da Lógica Filosofia da Natureza, da Ciência, da Tecnologia e da Técnica Filosofia do Século XVII Filosofia do Século XVIII Filosofia Francesa Contemporânea Filosofia Medieval Filosofia Política Contemporânea Hegel e Schopenhauer Heidegger, Jonas, Levinas Justiça e Direito Kant Marxismo e Teoria Crítica Nietzsche Pragmatismo, Filosofia da Mente e Filosofia da Neurociência Psicanálise e Gênero Sumário O problema do assentimento do juízo e da evidência da representação na teoria estoica do conhecimento e a crítica cética ao dogmatismo 11 João Carlos Pereira da Silva (UFRRJ) Três Dúvidas Danilo Marcondes (PUC-Rio/UFF) 29 Pascal no Brasil – espiritualismo e ceticismo Alex Lara Martins (IFMG/UFMG) 39 Os limites do cognoscível: um estudo das afinidades entre Max Weber e o ceticismo grego Marcelo da Costa Maciel (UFRRJ) 50 Juízo e Ser: o debate de Hölderlin com o Idealismo alemão nascente Tamara Havana dos Reis Pasqualatto (UNIOESTE) 60 Notas sobre dialética em Aristóteles Marcio Soares (UFFS) 75 A historicidade da música em Hegel diante do dodecafonismo de Schoenberg Adriano Bueno Kurle (PUCRS) 92 Excrever a multiplicidade: a “filosofia primeira” de Jean-Luc Nancy Carlos Cardozo Coelho (PUC-Rio) 108 O conceito de afeto como critério filosófico Rafael Mófreita Saldanha (UFRJ) 116 Esboço de uma nova definição para propriedades naturais Renato Mendes Rocha (UFSC/UFCA) 132 Desaxiomatizar a natureza, tarefa da ecologia política Alyne de Castro Costa (PUC-Rio) 143 O Social e o Metafísico: Tarde e Simodon Ádamo Bouças Escossia da Veiga (PUC-Rio) 160 8 O mundo como rede de forças: contribuições para uma ontologia da relação Diogo Bogéa (UERJ) 174 Ontologia do limite Raquel de Azevedo (PUC-Rio) 187 O caminho da eficácia: discurso e organização política Maikel da Silveira (PUC-RJ) 195 Consciência, plasticidade neural e o estado ilusório da matéria Charles Borges (PUCRS) 208 Grafemática e Plasticidade: diálogos entre Derrida e Malabou Moysés Pinto Neto (ULBRA) 218 Michel Foucault e Pierre Hadot: um diálogo contemporâneo sobre a concepção estoica do si mesmo Cassiana Lopes Stephan (UFPR) 231 “Palácio de Cristal”: globalização e capitalismo na perspectiva de Peter Sloterdijk Edilene Maria de Carvalho Leal (UFS) 246 Educação e instrução do homem agente Adaleuton de Queiroz Soares (UECE) Marly Carvalho Soares (UECE) 264 Educação e instrução na filosofia de Éric Weil Aparecido de Assis (UNEMAT) 279 O que torna o mundo da ação tão vulnerável? Luís Manuel A. V. Bernardo (FCSH/NOVA-UAc) 288 Os impasses da linguagem: sistema ou existência em Kierkegaard Franklin Roosevelt Martins de Castro (UNICAMP/UEA) 305 O conceito de essência humana em Feuerbach Jéfferson Luiz Schafranski da Silva (UEL) 314 Para além da dialética: da contemplação ao perigo da experiência estética Renan Pavini (PUCPR/UEM) 337 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor Rogerio Foschiera (IFRS) 351 O Risco do Relativismo Moral no Liberalismo Radical de Robert Nozick Rafael Müller (UCS) 371 John Rawls: imparcialidade e não neutralidade na justiça como equidade Elnora Gondim (UFPI) 376 Aprimoramento biotecnológico: Um prelúdio a era pós-humana? Keoma Ferreira Antonio (UFRN) 386 Sentidos da transformação do humano na contemporaneidade: entre o transumanismo e o bioludismo Rafael Nogueira Furtado (PUC-SP) 393 O mais além da essência: a radicalidade presente no outramente que ser Valéria dos Santos Silva (UECE) 408 O sopro demoníaco: do daímon grego ao lugar da ética na arte contemporânea Juliana de Moraes Monteiro (PUC-Rio) 418 10 O problema do assentimento do juízo e da evidência da representação na teoria estoica do conhecimento e a crítica cética ao dogmatismo João Carlos Pereira da Silva (UFRRJ) “A impressão de certeza é um testemunho certo de loucura e incerteza extrema” (cf. Montaigne, 1962, p. 522). Quando nos referimos a Platão, temos a impressão que existe uma leitura bastante precisa acerca de suas obras, a saber, a mais tradicional e sistemática, segundo a qual, toda sua filosofia se resume a elaboração e defesa da Teoria das Formas fundamentada na Ideia de Bem – leitura essa já um tanto viciada e carregada de dogmatismo. No entanto, é possível, com um olhar mais atento, perceber que sua filosofia possibilita distintas leituras e perspectivas, algumas dessas bastante controversas se tomada como referência a perspectiva tradicional mencionada anteriormente. Uma dessas leituras alternativas que buscaremos desenvolver ao longo deste trabalho é a leitura ciceroniana segundo a obra Acadêmicas, na qual Cícero nos apresenta uma perspectiva cética ou antidogmática das obras de Platão. A princípio tal perspectiva causa certo desconforto ou até mesmo espanto para qualquer leitor que consiga identificar em algumas obras de Platão o posicionamento do filósofo nas falas de um ou outro personagem dos diálogos – e geralmente esse personagem é Sócrates. Todavia, ainda que seja Sócrates de fato o porta-voz de Platão, não parece ser o caso de esse personagem manifestar sempre a mesma perspectiva ao longo de todas as obras. Ao contrario, quantas não são as obras em que tal personagem manifesta uma postura bastante destrutiva em relação às teses que ali são discutidas com o objetivo evidente de desconstrui-las sem que seja proposta, em contrapartida, uma tese alternativa em substituição, levando o diálogo a um desfecho aporético e, aparentemente, não acidental. Basicamente esse é o Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 11-28, 2017. 11 João Carlos Pereira da silva retrato de Platão apresentado por Cícero1 em sua justificativa pela adoção da Nova Academia2 em detrimento da Antiga: Sócrates Platão fora discípulo de Sócrates, filósofo tão reconhecidamente notável quanto enigmático, pois se sabe mais acerca de sua condenação à morte em decorrência de seu modo de vida incomum em consonância com sua filosofia do que sua filosofia propriamente dita (ele nada escreveu), e é fato amplamente reconhecido que é graças à influência do mestre, ou de sua morte através de uma condenação injusta, que o discípulo se põe a escrever e fazer filosofia. O que estava em questão para ele era um novo modelo pedagógico da época que encontrava na democracia um ambiente fértil que prosperou a tal ponto que suas implicações geraram processos como o que condenou Sócrates à morte, a saber, o relativismo sofístico por meio da retórica e a redução da verdade ao modo como as coisas nos aparecem segundo os sentidos que as percebem, como diz Cordero3: “Qual é seu problema?”. Sem dúvidas, Platão teria respondido: “A morte de Sócrates”. Não se trata apenas do feito em si, que pode ter causado dor ao amigo, mas do cataclismo cósmico que significa, para um jovem aprendiz de filósofo, que os cidadãos “da pólis mais importante, reconhecida por sua sabedoria e por seu poder” (Apologia, 29d), seres supostamente racionais, cultos, informados, não terem a menor ideia do que é justiça, bem, desinteresse, e “susterem contra ele a acusação mais ímpia e a que menos correspondia a Sócrates” (Carta VII, 325b). Se a sociedade julga mal é porque está mal educada, porque não tem ideia da existência real de valores, 1 2 3 12 Acadêmicas – I 46. Na obra Acadêmicas há uma disputa pela Academia fundada por Platão por duas distintas correntes filosóficas: o estoicismo e o ceticismo. De acordo com as palavras de Bolzani, tal disputa se apresenta da seguinte maneira: “É preciso compreender também o contexto filosófico em que Cícero elabora esse escrito. Trata-se de uma defesa dessa direção [cética da Academia] – que em nenhum momento é denominada “cética” – contra uma outra, uma inflexão, que pretenderia propor, como correto desenvolvimento da antiga doutrina acadêmica de Sócrates, Platão e Aristóteles, justamente aquela filosofia que dominara o universo filosófico helenístico e que, com o tempo, se havia transformado no principal alvo da crítica cética, acadêmica ou pirrônica: o estoicismo (BOLZANI, p. 35). CORDERO, 2011: p. 160. O problema do assentimento do juízo e da evidência da representação na teoria estoica do conhecimento e a crítica cética ao dogmatismo princípios, normas. A magnificência dos atenienses é uma aparência, uma ilusão, e os cânones da sofística penetram mais do que se costuma crer no inconsciente coletivo. Para Platão, era inadmissível que um homem justo como Sócrates pudesse ser condenado e morto injustamente se a sociedade fosse ela mesma uma sociedade justa. Daí a constatação da injustiça da cidade, da deturpação de seus valores éticos e de como era necessário pensar meios com os quais a cidade não fosse mais tão injusta como era, e sim tão justa quanto possível: Toda uma reforma se impõe, da sociedade, do ser humano, dos valores aparentes; em uma palavra, da realidade. E o empreendimento platônico se põe em marcha para recriar a filosofia, o que, para todo filósofo autêntico, supõe recriar a realidade, já que a filosofia sempre foi um reflexo da realidade.4 Com isso em vista e sempre através de diálogos, Platão faz de Sócrates personagem principal de 27 de 29 dos seus diálogos, tornando sempre imprecisa a captação de um Sócrates histórico ao longo de sua obra. Entretanto, seja nos diálogos de juventude ou de maturidade e velhice, salta aos olhos na obra platônica um dos sistemas filosóficos mais dogmáticos já formulados e, portanto, de imediato, objeto de combate por parte da filosofia cética. Então que ligação poderia haver entre a filosofia socrático-platônica com o ceticismo, já que essa última se põe justamente a combater o dogmatismo? Ou, nas palavras de Victor Brochard5, Se o pensamento de Sócrates tinha algo em comum com o ceticismo, como compreender que seus discípulos mais ilustres, Platão e Aristóteles, inspirando-se em seu espírito e continuando sua obra, tenham chegado a construir os sistemas mais dogmáticos que jamais existiram? A resposta para tal questão, segundo cremos, pode ser encontrada na obra Acadêmicas, de Cícero, na qual o autor testemunha acerca daquela que seria a filosofia originalmente estudada na Academia de Platão e sua detur4 5 Idem. BROCHARD, 2009: p. 37. 13 João Carlos Pereira da silva pação ao longo do tempo por seus sucessores na direção da escola e, para responder em que teria se baseado ou o que teria levado Cícero a crer que seria o ceticismo a perspectiva filosófica que melhor representaria ou estaria em consonância com a filosofia estudada e desenvolvida na Academia nos tempos de Platão, desenvolveremos a questão a partir de três pontos: I) Se por um lado, como dito anteriormente, aqueles que partem da leitura tradicionalmente atribuída à filosofia platônica – isto é, sistemática e dogmática – identificam na personagem Sócrates o expoente da perspectiva platônica acerca das teses discutidas nos diálogos, os céticos acadêmicos também compreendem como correspondente a Sócrates a perspectiva cética que estão atribuindo a Platão e que se propõem a defender. Isso porque, segundo Cícero, Sócrates teria sido o primeiro a perceber o caráter dúbio e obscuro da natureza, o que impossibilitaria a precisão necessária em qualquer pretensa explicação e justificação de conhecimento de seus fenômenos – perspectiva essa que Platão teria herdado do mestre. II) Em seu testemunho acerca Pirro – a quem Sexto atribui a fundação do pirronismo – em seu Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, Diógenes Laércio também coloca Sócrates e Platão entre aqueles que teriam sido os precursores do que viria a ser conhecido posteriormente como ceticismo. III) Alguns dos argumentos céticos utilizados e desenvolvidos no Acadêmicas em favor da dúvida – e que levariam a suspensão do juízo em detrimento da certeza do conhecimento, de acordo com a tese estóica da representação – são os mesmos utilizados por Platão no Teeteto em favor da tese relativista do Homem-Medida atribuída a Protágoras, e é esse o ponto fundamental deste trabalho. Sobre i), segundo o testemunho de Cícero, no reconhecimento de Sócrates da própria ignorância e em sua busca pelo conhecimento que, segundo o deus de Delfos – ou sua própria interpretação do vaticínio do oráculo de acordo com o relato platônico da Apologia6 -, ele possuía enquanto os outros não, já haveria uma constatação do obscurantismo da natureza e da incapacidade da compreensão de seus fenômenos, restando ao homem apenas tentar conhecer o que seria próprio dele, ou seja, um modo de vida adequado e o mais justo possível. Diz Cícero através de Varrão7: 6 7 14 Cf. PLATãO, Apol. 21a-d. Acadêmicas I – 15, 16. O problema do assentimento do juízo e da evidência da representação na teoria estoica do conhecimento e a crítica cética ao dogmatismo Sócrates me parece, o que consta entre todos, o primeiro a ter desviado das coisas ocultas e envoltas pela própria natureza, nas quais todos os filósofos antes dele estiveram ocupados, a filosofia e a tê-la conduzido para a vida comum, visto que inquerisse sobre as virtudes e sobre os vícios e em geral sobre os bens e os males; as coisas celestes porém, ou ele as considerasse estarem longe de nossa cognição ou, se fossem extremamente conhecidas, nada todavia acrescentarem para o bem viver. Este em quase todas as conversações que foram registradas copiosa e abundantemente por aqueles que o ouviram, disputa de tal maneira que ele próprio nada afirme, refute a outros, diga nada saber a não ser isto mesmo, e ultrapassar aos demais pelo fato de que aqueles as coisas que não saibam julguem saber, enquanto ele próprio saiba unicamente que nada sabe, e que por isso julga que por Apolo foi chamado o mais sábio de todos, porque esta fosse a única sabedoria do homem: não julgar saber o que não saiba. Conquanto dissesse isso e nessa opinião permanecesse, todo seu discurso se consumia simplesmente em louvar a virtude e em exortar nos homens a aplicação da virtude, como a partir dos livros socráticos e, sobretudo dos de Platão pode ser entendido. Embora o testemunho de Cícero não possa ser, por razões óbvias, a última palavra acerca da filosofia socrática, é possível encontrarmos eco de seu relato tanto em Xenofonte8, junto a quem o próprio Brochard9 que embora negue que Sócrates seja um cético acaba reconhecendo em seu testemunho elementos característicos do ceticismo, como também no próprio Platão – embora em algumas passagens a admissão de ignorância por parte de Sócrates seja vista como ironia10 por seus interlocutores, já que ele ocultaria dos mesmos o próprio conhecimento a fim de evitar ser refutado por estes. 8 9 10 Cf. XENOFONTE, Mem., I, I, 12 e 13; e IV, VII, 2, 8. “Se Sócrates é o contrário de um cético, deve-se reconhecer, contudo, que há no seu dogmatismo elementos de ceticismo. Quando rejeita a ciência da natureza e declara que tais assuntos ultrapassam o entendimento humano, que a divindade os oculta a nossos olhos, fala como os sofistas e como os céticos de todos os tempos (...). Quando recomenda estudar aritmética e geometria somente na medida em que forem úteis na prática, emprega exatamente a mesma linguagem que Sexto Empírico empregará mais tarde: é verdadeiramente uma espécie de ceticismo” (BROCHARD, 2009: p. 38, 39.) É o caso da acusação de Trasímaco feita a Sócrates na passagem 337c da República. Sobre essa questão, conferir os excelentes artigos Ignorância Socrática, de Richard Bett e Reconsiderando a Ironia Socrática, de Melissa Lane, ambos constam em Sócrates Companion – Cambridge University Press, Donald R. Morrisson (org.) 15 João Carlos Pereira da silva Sobre ii), em sua biografia acerca de Pirro11, Diógenes aponta para aqueles que, de alguma maneira, contribuíram para o que mais tarde viria a ser o ceticismo como o conhecemos. São pensadores que se posicionam, de certo modo, em favor da dúvida e/ou reconhecem na natureza algo incognoscível, dada a instabilidade dos fenômenos e seu caráter obscuro, velado, não-evidente. Nessa lista constam Homero, Arquíloco, Eurípides, Xenófanes, Zenão, Demócrito, Heráclito e Platão12. Portanto, a ideia de uma leitura de Platão não propriamente cética, mas com muitas ressalvas ao dogmatismo tradicionalmente a ele atribuído, não é exclusividade de Cícero e nem parece tão distante de comentadores mais ou menos próximos ao próprio Platão. Sobre iii), No diálogo Teeteto, cuja discussão se dá sobre o que seria o conhecimento (epistéme), ao reconhecer que quem conhece algo percebe aquilo que conhece, Teeteto conclui que conhecimento não parece distinto de percepção13, ao que Sócrates identifica com a célebre tese atribuída ao sofista Protágoras, segundo a qual, o “o homem é a medida de todas as coisas, das que são que elas são, e das que não são que elas não são”14, o que implica dizer que as coisas são de acordo com as percepções que temos delas. Um exemplo que ilustra essa perspectiva é o caso do vento, que ao mesmo tempo pode parecer frio para uns e quente para outros, não sendo ele mesmo nem frio nem quente, já que parece insustentável a ideia segundo a qual o vento pudesse ser frio e quente ao mesmo tempo, mas sim frio ou quente de acordo com a percepção que se tem dele (152c4). Toda percepção, de acordo com essa tese, é verdadeira, e não cabe dizer que uma percepção seja falsa porque não há deliberação que compreenda o vento que se percebe quente como frio e vice-versa. A sensação é como que automática. Voltaremos a esse ponto e a outros argumentos semelhantes mais a frente, na comparação da objeção cética ao critério de verdade estóico e os argumentos antidogmáticos nas obras de Platão que permitem a identificação com o ceticismo proposta por Cícero. 11 12 13 14 16 Pirro, de acordo com o testemunho de Sexto Empírico, fundador do pirronismo, perspectiva cética que ele se esforça em distanciar da perspectiva acadêmica – que ele considera tão dogmática quanto qualquer outra, com a diferença que estes seriam negadores da possibilidade da verdade, ao invés de afirmadores como a maioria, ao passo que eles, os pirrônicos, nem negariam nem afirmariam, mas suspenderiam o juízo e seguiram investigando. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Teeteto – 151e 2-3 Ibidem – 152a 2-4. O problema do assentimento do juízo e da evidência da representação na teoria estoica do conhecimento e a crítica cética ao dogmatismo Acadêmicas, primeira parte: a filosofia da Academia de Platão Platão fundou em 387 a.C. uma escola de toda sorte de estudos em diferentes tipos de conhecimento15 que serviria de inspiração para outras da mesma natureza e se tornaria alvo de muitas disputas16 após sua morte. A Academia, fundada na região de Academos nos arredores de Atenas, sobreviveu por quase um milênio até ser extinta por um decreto do imperador Justiniano de 529 d.C. em oposição ao paganismo17. Contudo, nem todos os filósofos que sucederam Platão na direção da Academia deram continuidade à sua filosofia, e quanto a isso há consenso. O dissenso, por sua vez, se faz presente quando a questão versa sobre qual ou que tipo de filosofia seria genuinamente platônica. O primeiro livro de Acadêmicas, de Cícero, tem por objetivo se contrapor às pretensões estoicas de Antíoco de Ascalão no que tange à sua continuidade da Academia, estabelecendo a posição filosófica cética iniciada com Arcesilau e continuada por Carnéades, Clitômaco e Filo como a filosofia original de Sócrates e Platão. Na obra de Cícero, Varrão faz então às vezes de Antíoco, ao defender o estoicismo enquanto a filosofia original da Academia e a resposta de Cícero a Varrão descreveria então a posição de Arcesilau18: 15 16 17 18 Com Zenão, como ouvimos dizer, Arcésilas estabeleceu toda sua disputa, não por pertinácia ou intenção de vencer como ao menos me O caráter universal dos estudos localizados na Academia (na qual havia cursos de matemática, geometria, geologia e etc.) não pode dissimular seu verdadeiro caráter “político”. De acordo com a proposta da República, para Platão o filósofo deve estar preparado para governar, e para isso deve seguir uma sólida formação científica; assim, vários foram os membros da Academia, a começar por seu diretor, que tentaram orientar a política de governantes amigos (CORDEIRO, 2011: p. 162). “Tudo isso dirigido por aquilo que constituiria a contribuição original de Filo: a tese da unidade da Academia, de Sócrates até o próprio Filo, passando por Platão, Aristóteles, Arcesislau e Carnéades, tese que, provavelmente, se associa à defesa de sua doutrina própria sobre a apreensão. Contra tal pretensão, Antíoco de Ascalão, ex-discípulo de Filo, profundamente influenciado pelo estoicismo, proporá, contra seu antigo mestre, cuja nova tese o enfurecera (Acad. II, 11), que a Academia só pode encontrar sua unificação se devidamente corrigida e aperfeiçoada pela doutrina estoica” (BOLZANI, 2013: p. 38). CORDEIRO, 2011: p. 161. Acadêmicas I – 44,45. 17 João Carlos Pereira da silva parece, mas pela obscuridade desses assuntos que haviam levado Sócrates à confissão de ignorância, e já, antes de Sócrates, Demócrito, Anaxágoras, Empédocles, quase todos os antigos, que disseram nada poder ser conhecido, nada ser percebido, nada ser sabido; disseram estreitos serem os sentidos, fracos os ânimos, breves os espaços da vida e, como Demócrito, em profundo a verdade ter sido mergulhada, mantidas em opiniões e princípios estabelecidos todas as coisas, nada ser deixado para a verdade, daí enfim envolvidas em trevas todas as coisas. E assim Arcésilas negava haver algo que se pudesse saber, nem sequer aquilo mesmo em que Sócrates se teria mantido – que soubesse que nada sabia -; pensava assim estarem profundamente ocultas as coisas todas e não haver algo que se pudesse discernir ou entender; por essas causas, nada convinha professar nem afirmar seja o que for, nem aprovar com assentimento, e convinha reter sempre e guardar de todo lapso a precipitação, que então seria considerável quando o objeto se provasse ou falso ou incógnito, nem haver algo mais torpe que o assentimento e a aprovação preceder ao conhecimento e à percepção. Observa-se então que, diferentemente de Sócrates que admite nada saber , Arcesilau20, ainda mais original diante da constatação da obscuridade das coisas, parece antecipar o que mais tarde será compreendido como o conceito de suspensão de juízo (epokhé) acerca desse obscurantismo que caracteriza aquilo que dogmaticamente se admitirá como cognoscível: 19 Ele fazia o que era consentâneo com esse raciocínio, de modo que, dissertando contra as sentenças de todos, conduzisse a ela muitíssimos, a fim de que quando em uma mesma questão fossem encontradas, a favor e contra, importâncias iguais de razões, mais facilmente em um e outro sentido o assentimento ficasse em suspenso. 19 20 18 Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós nada saiba de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei (PLATãO, Apologia, 21d). Ibidem I – 45. O problema do assentimento do juízo e da evidência da representação na teoria estoica do conhecimento e a crítica cética ao dogmatismo Acadêmicas, segunda parte: a apresentação e refutação do estoicismo Dada essa breve contextualização, é possível imaginarmos o primeiro livro de Acadêmicas como ambientação para o segundo21, no qual, supostamente em continuidade à filosofia genuinamenteplatônica, Cícero apresenta a contraposição de Arcesilau a Zenão e ao ideal estoico de sábio. Isso porque, segundo a perspectiva de Zenão, o sábio nunca emite opinião, já que é na opinião que consta o erro, mas concede assentimento à representação ou phantasía, isto é, àquela cujo assentimento cabe ser dado, identificada pelos estoicos como representação apreensiva ou phantasía kataleptiké (I, 41-2). Contudo, como Bolzani faz questão de ressaltar, é necessário termos claro que “a representação apreensiva é apenas uma espécie de representação”, e que “toda representação apreensiva é verdadeira, embora nem toda representação verdadeira seja apreensiva” (BOLZANI, 2013, p. 126). Aqui cabe uma distinção entre a representação ou phantasía e a aparição ou phántasma. A phantasía é sempre verdadeira, nunca podendo ser falsa já que sempre advém do real, do existente. Já o phántasma é uma aparição que não advém do real, do existente, como no caso dos sonhos, por exemplo. Entretanto, existem entre as representações a representação apreensiva ou phantasía kataleptiké e a representação não-apreensiva ou phantasía akataleptiké, pois, não é porque uma representação não é apreensiva que ela é necessariamente um phántasma. Fazendo menção a Sexto Empírico e a Diógenes Laércio, Bolzani22 esclarece a distinção entre phantasía (kataleptiké e akataleptiké) e phántasma: Verdadeira [acerca da phantasía], porque se originou do real, em contraste com aquilo que o estoico distingue como “aparição” (phántasma), uma “aparência do intelecto tal como surge nos sonhos” (Vidas, VII, 50), “um deslocamento vazio” (AM VII, 241, 246), fruto de afecções em nós (AM VII, 241) e não dos objetos externos. 21 22 Todavia, cabe salientar que a obra não possui o texto de Cícero na integra. Segundo Bolzani, Cícero havia escrito uma segunda versão da mesma obra por estar insatisfeito com a primeira: “restam-nos o segundo livro da primeira edição e uma parte apenas do primeiro livro da segunda: aproximadamente três quartos do material completo” (2013: p. 37). BOLZANI: p. 127. 19 João Carlos Pereira da silva A representação propriamente dita, assim distinguida da aparição, deve sempre se originar do real. Mas isso não a torna uma representação apreensiva, pois uma representação pode surgir do real mas não estar em conformidade com o ele (Vidas, VII, 46), sendo, então, não-apreensiva (akataleptiké). A representação apreensiva é aquela “que surge do real, sendo impressa e estampada em conformidade com o próprio real” (Ibid) “tal que não poderia surgir de um inexistente” (HP II, 4; AM VII, 248, 402, 426). Para ser apreensiva, uma representação deve, portanto, satisfazer duas exigências: “primeiro, surgir a partir de um existente; pois muitas dentre as representações ocorrem a partir de um não-existente, como no caso dos loucos, e essas não seriam apreensivas. Segundo, que seja a partir de um existente e de acordo com o próprio existente; pois, novamente, algumas são a partir de um existente, mas não se mostram como o próprio existente” (AM VII, 249). Deve, assim, além de se originar do real, ser “inteiramente perceptiva dos objetos, também modelando todas as suas características artisticamente” (AM VII, 248). “Deve também ser impressa e estampada, a fim de que todas as características dos objetos representados sejam artisticamente modeladas” (AM VII, 250). Desse modo, a phantasía kataleptiké é apresentada como “uma representação impressa, assinalada e marcada a partir de um objeto real, em conformidade com sua realidade” (II, 77). A representação seria então como uma afecção (páthos) no entendimento (diánoia) das percepções que ocorrem nos sentidos. Quando uma afecção semelhante ocorre no entendimento, porém internamente, sem conexão com a percepção sensível, como no caso dos sonhos, por exemplo, se trataria então de um phántasma. O phántasma, portanto, jamais poderia ser uma representação já que não advém do real. A representação apreensiva deve necessariamente advir de um objeto externo (e não ser unicamente interna como no caso do phántasma), e deve ser de tal modo que possa ser reproduzida internamente com todas as características do objeto externo que lhe originou. Contudo, de acordo com a perspectiva cética de Arcesilau23, o sábio não só não deveria opinar como nem mesmo dar o assentimento à phantasia e sim, suspender o juízo (epokhé), pois: 23 20 Acadêmicas – II, 67. O problema do assentimento do juízo e da evidência da representação na teoria estoica do conhecimento e a crítica cética ao dogmatismo I) “Se a alguma coisa o sábio assentir um dia, alguma vez também opinará; ii) nunca porém ele opinará, ____________________ iii) logo nunca assentirá a coisa alguma.” Entretanto, o estoico nega a primeira premissa, pois não concede que porque o sábio confere assentimento ele necessariamente opinará. Nas palavras de Bolzani24: Nessa disputa, não caberá ao estoico senão insistir na falsidade da primeira proposição daquele argumento, pois afirma, como vimos em Sexto Empírico (AM VII, 151-2), que o sábio tem meios de distinguir ciência e conhecimento de ignorância e opinião – em termos técnicos, possui um critério de verdade que, com auxílio do lógos, lhe proporciona conhecimento imutável, o meio para dar assentimento sem opinar. A negação do estoico da admissão da primeira premissa se deve ao caráter da phantasía kataleptiké, que não permite que o assentimento lhe seja negado, pois a representação apreensiva (que observa os critérios: i) surgir a partir de um existente; e ii) ser de acordo com o próprio existente) é, nas palavras de Bolzani, “ evidente (AM VII, 257), portadora de uma incontestável evidência (enárgeia), pois reproduz fielmente seu objeto de origem” e “possui certa característica própria em relação a outras representações (AM VII, 252)” (BOLZANI, 2014, p. 128). Portanto, para o estoico, embora o assentimento seja um ato voluntário, diante da enárgeia de uma representação apreensiva não é possível negá-lo, ou como diz Bolzani25, 24 25 O assentimento do intelecto se rende forçosamente: a representação apreensiva “pega-nos pelos cabelos, arrastando-nos ao assentimento, e nada necessitando para ocorrer como tal ou para indicar sua distinção em relação às outras” (AM VII, 258) e “como o prato de uma balança deve necessariamente inclinar-se quando são postos nele pesos, assim a mente deve necessariamente assentir a representações evidentes” (Acad. II, 38). Aquilo que cabe voluntariamen- BOLZANI, 2013: p. 121. BOLZANI: 2014, p. 128. 21 João Carlos Pereira da silva te ao intelecto, seu ato de assentimento a representações, se torne necessário e inevitável em face de uma representação apreensiva. Daí, o “assentimento a uma representação apreensiva” será denominado “apreensão” katalepsis (AM VIII, 397; AM VII, 153). Como os acadêmicos minam o estoicismo? De acordo com Cícero26: Quatro são os princípios que concluam nada haver que possa ser conhecido, percebido, apreendido, sobre o qual versa essa questão toda. Desses, o primeiro 1) é haver alguma representação falsa; o segundo, 2) não poder ela ser percebida; o terceiro, 3) das representações entre as quais não há diferença alguma, não pode acontecer que delas umas possam ser percebidas e outras não possam; o quarto, 4) não haver nenhuma representação verdadeira proveniente de um sentido à qual não tenha sido oposta outra representação que dela em nada difira e que não possa ser percebida; A conclusão é que se 4) for aceita, não há representação que possa ser apreendida com base nas proposições 2), 3) e 4) e, por isso, o estoico nega que 4) seja verdadeira. A estratégia do acadêmico passa a ser então tentar demonstrar que 4) pode ser aceita pelo estoico, pois a admissão de 4) terá como consequência admitir o argumento do sábio como aquele que não dá assentimento à representação27: Procurou saber de Zenão talvez [o] que haveria de ser se o sábio nem perceber algo pudesse e, se opinar não fosse próprio do sábio. Este, creio, teria dito, o sábio em nada poder opinar, porquanto houvesse algo que pudesse ser percebido. – Que, pois, seria isso? 26 27 22 Acadêmicas – II, 83. Acadêmicas – II, 76. O problema do assentimento do juízo e da evidência da representação na teoria estoica do conhecimento e a crítica cética ao dogmatismo – “A representação”, creio. – “Qual representação, portanto?”. Então aquele assim ter definido: – a impressa e gravada e modelada a partir do que existisse, tal como existisse. Ter-se-lhe depois perguntado se acaso a representação verdadeira também fosse da mesma natureza que, inclusive, a falsa. Aqui Zenão ter observado com agudez nenhuma representação haver que pudesse ser percebida, se a que procede do que existe fosse tal qual pudesse ser a que procede do que não existe. Corretamente Arcésilas consentiu com o adicionado à definição, pois que nem a representação falsa pode ser percebida, nem a verdadeira, se fosse da mesma natureza que a falsa; aplicou-se, porém, a essas disputas, para que ensinasse nenhuma representação procedente do verdadeiro ser tal que não possa ser também da mesma natureza procedente do falso. Portanto, se Zenão admite que nenhuma phantasía possa ser percebida se a representação que procede do que existe fosse igual à que procede do que não existe, então o acadêmico, para fazê-lo admitir “4) não haver nenhuma representação verdadeira proveniente de um sentido à qual não tenha sido oposta outra representação que dela em nada difira e que não possa ser percebida”, argumenta que no estado de phántasma damos o assentimento que só caberia dar à phantasía kataleptiké. Logo, isso que seria a enárgeia da phantasia kataleptiké, que força nosso intelecto a dar assentimento, não é necessariamente evidente, ou seja, a enárgeia pode ocorrer também ante ao phántasma. Desse modo, se é verdade que a phantasía kataleptiké é evidente, também é verdade que pode haver enárgeia fora da phantasía kataleptiké, já que damos assentimento involuntário também ao phántasma, o que não deveria ser possível, já que o phántasma não é apreensível. Portanto, se o critério estoico de apreensibilidade está na enárgeia, o cético demonstra como tal critério é falho, uma vez que a evidência, que deveria estar exclusivamente nos apreensíveis, pode ocorrer em não-apreensíveis, no momento em que eles acontecem. O cético conclui então que toda representação dita apreensível por provir de um existente é tal qual uma aparição que provém de um não-existente, pois, aquilo que caracteriza a representação apreensiva, isto é, a evidência, também pode ocorrer em aparições, que não são phantasíai, logo, necessariamente falsas, o que causa dúvida sobre a verdade das representações. E se dentre as representações não há diferença entre 23 João Carlos Pereira da silva o verdadeiro e o falso, pois também é possível haver evidência no que é falso, logo, nenhuma representação pode ser dita apreensiva, já que não há mais um critério seguro que diferencie as representações apreensivas das não-apreensivas ou ainda de simples aparições. Daí a conclusão do argumento cético “iii) logo nunca assentirá a coisa alguma”, ter que ser admitida pelo estoico independentemente da enárgeia da phantasía. Sócrates, Platão e os Acadêmicos Argumentos semelhantes no que tange à dúvida acerca do critério de verdade das percepções podem ser encontrados em algumas obras de Platão, como é o caso do Teeteto e do Protágoras. Outra fonte que não poderia ser negligenciada é a obra Hipotipósis Pirrônicas de Sexto Empírico, na qual constam os dez modos pirrônicos28 de suspensão do juízo. Em todos esses casos, esses argumentos cumprem a mesma função, que é demonstrar como a percepção não pode ser um meio adequado para se conhecer de modo preciso o que quer que seja, já que falta critério para tal. No Teeteto, enquanto explica o fenômeno da percepção da cor segundo a interpretação de Protágoras, após usar o exemplo do branco, Sócrates diz: “ou afirmarias que cada cor que aparece a ti aparece tal qual ao cão ou a qualquer outro animal?” (152a2-4). Argumento semelhante é utilizado por Cícero29 quando diz: 28 29 24 Dizes: Se um deus te interroga se, saudáveis estando ao menos e íntegros teus sentidos, desejarias algo mais – que é que responderias? – Certas aves veem mais longe. A esse vosso deus eu responderia, portanto, audazmente que não estou plenamente contente Grosso modo, os dez modos de suspensão do juízo são: i) Diferentes representações se originam do mesmo objeto; ii) Os mesmos objetos são percebidos de modo diferente entre os homens e os animais porque os animais estão em condições diferentes das nossas; iii) Os mesmos objetos são percebidos de modo diferente entre os próprios homens, pelo mesmo motivo; iv) Qualquer homem, ainda que um sábio se isso o elegesse como critério, percebe o mesmo objeto de maneiras diferentes de acordo com sua disposição momentânea; v) Diferentes posições e condições produzem diferentes representações; vi) Diferentes composições e misturas dos objetos afetam nossas percepções; vii) Diferentes quantidades do mesmo objeto (como no caso dos remédios, por exemplo); viii) Relação (tudo é relativo, ausência de univocidade); ix) Frequência ou validade dos eventos que afetam nossas percepções; x) Costumes, leis, tradições que afetam e alteram nossas percepções (relativo à ética). Acadêmicas – II,80 e 81. O problema do assentimento do juízo e da evidência da representação na teoria estoica do conhecimento e a crítica cética ao dogmatismo com estes olhos. Ele dirá que eu vejo mais agudamente talvez que aqueles peixes que nem são vistos por nós (e agora decerto estão sob nossos olhos), nem eles mesmos podem suspeitar-nos; logo, como a eles a agua, assim a nós um ar nos envolve. Outro exemplo é o quarto modo de Sexto que trata das diferentes circunstâncias que modificam as percepções que se possa ter sobre o mesmo objeto. Casos como saúde e doença, sono e vigília, juventude e velhice, coragem e medo, sanidade e loucura cabem ali. No Teeteto30, argumento semelhante aparece do seguinte modo: Quem sabe se estamos agora dormindo ou acordados se, quando sonhamos, não admitimos que estamos sonhando? Passamos metade do dia dormindo e metade acordados, e nossa alma luta em cada um desses estados pelas presentes convicções como se fossem o que há de mais verdadeiro. O mesmo argumento é apresentado da seguinte maneira por Cícero31: 30 31 Dos dormentes e dos embriagantes e dos delirantes dizias as representações serem mais fracas do que as dos vigilantes, dos sóbrios, dos sãos. De que modo? Porque, quando houvesse despertado, Ênio não diria que viu Homero, mas que lhe pareceu tê-lo visto; (referencia a obra desconhecida de Ênio). Coisas semelhantes disseste a respeito dos embriagantes. Como se alguém negue que aquele, que despertou, esteve sonhando; e negue que aquele, cujo delírio se acalmou, pensou não terem sido verdadeiras as coisas que tivessem sido vistas no delírio. Mas não se trata disso, investiga-se este ponto: de que modo parecessem essas coisas precisamente quando eram vistas. A não ser que em verdade não pensemos Ênio ter ouvido assim tudo aquilo – se é que sonhou isso – como ouviria se desperto. Desperto pois, pôde considerar também sonhos aquelas representações, como eram; mas em verdade, enquanto dormia, eram aceitas por ele como se estivesse desperto. Que? Ilíona naquele sono “mãe, chamo-te” por ventura não acreditou ter o filho falado de tal maneira que, desperta, também o creria? Com efeito, donde provêm aquele “eia! espera, aguarda, ouve; repete-me isso mesmo”? acaso parece ter em suas representações menor fidelidade que os que estão despertos? (...) Teeteto – 158d. Acadêmicas – II, 88, 90. 25 João Carlos Pereira da silva Não se investiga, pois, de que sorte de recordação costume ser a daqueles que tenham despertado ou daqueles que tenham deixado de delirar, mas de que sorte de visão tenha sido ou a dos delirantes ou sonhantes quando então eram impressionados. Com relação aos sétimo e oitavo modos de Sexto, o mesmo objeto pode causar sensação benéfica e recomendável a um animal e o efeito contrário a outro animal, ou bem a um animal e mal a uma planta, ou ainda mal às plantas e aos animais e bem ao homem, bem como o mesmo objeto pode causar mal ou bem ao mesmo homem ou animal ou planta de acordo com a quantidade que lhes são experimentadas. A esse respeito, diz Platão através de Sócrates no Protágoras32: Mas eu sei de muitas coisas prejudiciais aos homens, como alimentos, bebidas, remédios, e inúmeras outras, bem como de coisas úteis. Há aquelas que são indiferentes aos homens, mas não aos cavalos. As uteis somente aos bois, as uteis aos cães; aquelas que não são uteis a nenhum destes, mas às arvores; (...) assim também, o óleo é totalmente mau para todas as plantas e o maior dos perigos para as peles dos animais, exceto para as do homem, já que a protege tanto quanto ao resto do corpo. Conclusão É possível encontrarmos muitos outros exemplos, mas nos contentaremos com estes. Todavia, cabe salientar, apesar das semelhanças, as diferenças entre o relativismo e o ceticismo33. Se por um lado tanto Protágoras – e filósofos antecessores já mencionados bem como sofistas contemporâneos – quanto os céticos compartilhavam da ideia segundo a qual a natureza não parece manifestar um caráter unívoco e cognoscível, daí a razão de comentadores como Guthrie associarem ao ceticismo a perspectiva relativista34, por outro, os céticos, por não admitirem o relativismo enquanto única verdade possível, privilegiando a epokhé, esca32 33 34 26 Protágoras, 334a3-b6. Ver nota 5. Havia, como vimos, uma arte que todos os sofistas ensinavam, a saber, a retórica, e uma posição epistemológica de que todos partilhavam, a saber, um ceticismo segundo o qual o conhecimento só pode ser relativo ao sujeito que percebe (p. 51). O problema do assentimento do juízo e da evidência da representação na teoria estoica do conhecimento e a crítica cética ao dogmatismo pam do paradoxo em que os relativistas se veem envoltos. Nas palavras de Keferd: Se, para Protágoras, há sempre, de fato, dois lógos opostos concernentes a todas as coisas, e todos os lógos são verdadeiros, o que aconteceu com a doutrina segundo a qual é impossível contradizer? (...) Se há forte indício de que Protágoras sustentava que a contradição é impossível, parece que temos conflito direto com a doutrina dos dois logói (p. 156). Tendo em vista que, segundo Cícero, toda argumentação cética de Arcesilau não tem outro objetivo além da refutação da certeza de apreensão do real ou assentimento ante a representação por parte dos estoicos e sua pretensa continuidade da filosofia genuinamente platônica, esse estudo, ainda em desenvolvimento, pretende investigar com todo esmero possível a relação entre a filosofia socrático-platônica e o ceticismo, sobretudo acadêmico, e a possibilidade de uma leitura antidogmática da filosofia de Platão enquanto estratégia de oposição ao dogmatismo do relativismo sofístico que, de alguma maneira, promoveu a condenação de Sócrates a morte. Além do testemunho de Cícero, que chega a afirmar que não só Sócrates35 como também Platão36 seriam como os céticos acadêmicos, são muitas as razões que nos levam a crer que Platão, com sua genialidade ímpar, ainda pode nos surpreender mesmo nos dias de hoje, tendo muitas coisas a nos revelar. Bibliografia BLACKBURN, B. Dicionário Oxford de Filosofia. Consultoria de edição brasileira: Danilo Marcondes; tradução: Desidério Murcho et al. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. BOLZANI FILHO, Roberto. Acadêmicos versus Pirrônicos. São Paulo: Alameda, 2013. BROCHARD, V. Os Céticos Gregos. Tradução de Jaimir Conte. São Paulo: Odysseus, 2009. 35 36 Acadêmicos, I – 135. Idem, 137. 27 João Carlos Pereira da silva CÍCERO, Marco Túlio. Acadêmicas. Edição bilíngue, introdução, tradução e notas: José R. Seabra. Belo Horizonte: Nova Acrópole, 2012. CORDERO, Néstor Luis. A Invenção da Filosofia: Uma Introdução à Filosofia Antiga. Tradução: Eduardo Wolf. São Paulo: Odysseus, 2011. GUTHRIE, W. K. C. Os Sofistas. Tradução: João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1995. INWOOD, Brad (Org.). Os Estóicos. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Odysseus Editora, 2006. KERFERD, G. B. O Movimento Sofista. Tradução: Margarida Oliva. São Paulo: Edições Loyola, 2003. MONTAIGNE, M. “Apologie de Raimond Sébond”. In: Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1962. (Bibliothèque de la Plêiade). MORRISON, Donald R (Org.). Sócrates. Tradução: André Oídes. São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2016. PLATãO. Apologia. In: José Américo Motta Pessanha. Sócrates. Tradução direta do grego de Jaime Bruna. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores). 28 Três Dúvidas Danilo Marcondes (PUC-Rio/UFF) De omnibus dubitandum est Soren Kierkegaard Ceticismo é um desses termos filosóficos que foi incorporado à linguagem comum e tornou-se inevitavelmente identificado com a dúvida. O cético é aquele que duvida; estou sendo cético, quando duvido de algo. A origem dessa identificação na modernidade pode ser atribuída à influência da formulação por Descartes do papel da dúvida em seu sistema e ao impacto provocado pela discussão contra ou a favor de sua teoria desde o século XVII, apesar de usos anteriores desse termo. Um bom exemplo disso é o famoso argumento sobre a existência do mundo externo, que retomaremos mais adiante e que os historiadores da filosofia e os especialistas em Descartes consideram não ser encontrado no ceticismo antigo. Contudo, já se chegou até mesmo a argumentar que a dúvida cartesiana não é uma dúvida cética1. A ênfase na influência do ceticismo na formação do pensamento moderno e o destaque ao papel de Descartes podem ser atribuídos a Richard Popkin, cuja História do Ceticismo de Erasmo a Descartes é de 1960 (1ª edição). Se examinarmos os grandes especialistas franceses em Descartes no século XX como Etienne Gilson, Martial Guerout, Ferdinand Alquié e Henri Gouhier2, praticamente não encontramos nenhum destaque ao ceticismo em suas análises da obra deste filósofo. Mas, quando discutimos a centralidade da dúvida no pensamento filosófico – não só no cético – algumas distinções e precisões devem ser feitas. O dogmático também duvida, mas há uma diferença entre o tratamento da dúvida pelo dogmático e pelo cético. 1 2 Silvya GIOCANTI. Penser l’irrésolution: Montaigne, Pascal, La Mothe Le Vayer, Paris, Honoré Champion, 2002. Refiro-me aos clássicos comentários, Etienne GILSON, Etudes sur le role de la pensée médievale dans la formation du système cartésien, Paris, Vrin, 1930; Martial GUEROULT, Descartes selon l’order des raisons, Paris, Aubier, 1953; Ferdinand ALQUIER, Descartes, l’homme et l’ouevre, Paris, Hatier, 1956, Henri GOUHIER, La pensée métaphysique de Descartes, Paris, Vrin, 1962. Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 29-38, 2017. 29 danilo MarCondes Nosso foco será o pensamento de Descartes em sua formulação da dúvida, voltando depois nosso olhar para a filosofia cética antiga. Examinaremos a hipótese mencionada acima de que não localizamos nessa tradição filosófica nada, nenhum termo ou expressão, equivalente à dúvida, mas apenas projetamos a dúvida cartesiana no contexto do pensamento antigo. Proponho considerarmos alguns aspectos desse contexto para discutir se isso realmente ocorre ou não. Pretendo mostrar que independentemente de se há ou não um termo ou expressão equivalente a dúvida, a problemática cartesiana não se encontra no pensamento cético antigo. Voltaremos em seguida o olhar para a filosofia contemporânea onde aí sim encontramos uma versão da dúvida cartesiana, seja retomando o argumento de Descartes, seja pretendendo refutá-lo. O grande exemplo disso seria o argumento sobre a existência do mundo externo, ou seja, a dúvida radical lançada sobre as nossas representações do mundo externo em consequência da formulação encontrada na Primeira e na Segunda Meditações, tornando-se central na querela sobre o realismo e o idealismo (ou anti-realismo como quer Michael Dummett)3 e o externalismo e o internalismo na filosofia contemporânea. A dúvida cética quanto ao mundo externo consistiria em questionar se nossas representações mentais podem ser um correlato fiel dos objetos no mundo externo, o que poderia no limite a levar-nos a duvidar sobre a própria existência do mundo externo. Para a discussão do ceticismo em Descartes e da dúvida em especial tomo como ponto de partida o projeto cartesiano de defesa da ciência moderna e da necessidade de fundamenta-la através da refutação do ceticismo. Descartes quer, de certa forma, defender a ciência moderna, mas mantém ainda critérios de cientificidade, um saber universal e necessário, baseados na concepção aristotélica encontrada por exemplo na Metafísica (I,1) e nos Segundos Analíticos. É obscuro a quem Descartes se refere quando se dirige contra os céticos. Muitos intérpretes indicam que na obra desse filósofo o cético é uma figura a-histórica, não identificada, um adversário puramente construído4. Contudo, nos Princípios da Filosofia (Carta Prefácio à edição fran3 4 30 Em M. DUMMETT, Truth and other enigmas, London, Duckworth, 1982. Incluindo Silvya GIOCANTI, op. cit, ver também T. LENNON, The plain truth: Descartes, Huet and skepticism. Leiden-Boston, Brill, 2008, Três Dúvidas cesa) ele se refere explicitamente nada mais nada menos do que a Platão. Diz Descartes, após discutir os vários tipos de sabedoria: Houve desde há muito tempo grandes homens que se dedicaram a encontrar um grau mais elevado de sabedoria...consistindo em buscar as causas primeiras e os verdadeiros princípios a partir dos quais se poderia deduzir as razões de tudo de que somos capazes de saber e são particularmente esses que se dedicaram a isso que chamamos de “filósofos”. Contudo, não sei quem teria até o momento conseguido isso. Os primeiros e os principais dos quais temos os escritos são Platão e Aristóteles, entre os quais há apenas uma diferença que consiste em que Platão seguindo os passos de seu mestre Sócrates ingenuamente (ingénument) confessou jamais ter encontrado nada de certo e se contentou em escrever sobre as coisas que pareciam verossímeis. Descartes levanta inicialmente uma questão cética ao dizer que não sabe quem teria conseguido determinar “as causas primeiras e os verdadeiros princípios”. Portanto, esse objetivo permaneceria inalcançado. Em seguida afirma que Platão com base em seu mestre Sócrates “confessou jamais ter encontrado nada de certo”, o que parece uma alusão ao “Só sei que nada sei” socrático, interpretado como uma postura cética, mas conclui afirmando que Platão se contentou com o verossímil, o que parece mais próximo do ceticismo acadêmico e de sua adoção de um sucedâneo da verdade e não da pura e simples afirmação de uma aporia ou impasse. A referência a Platão pode parecer surpreendente, mas há também outros nomes possíveis para ocupar o lugar do cético a quem Descartes se refere. Popkin considera bastante direta a influência de Pierre Charron, herdeiro intelectual de Montaigne5 sobre Descartes. Mostra que encontramos já em Charron a dúvida sistemática, isto é, a dúvida como instrumento da filosofia para se chegar à verdade, embora em seu caso se trate de uma verdade religiosa. Outro possível alvo de Descartes em seu ataque contra o “cético” pode ser seu quase contemporâneo François de la Mothe le Vayer (1588-1672). La Mothe le Vayer foi também sob muitos aspectos herdeiro de Montaigne e era ligado a sua herdeira intelectual Mlle. De Gournay. Personagem extremamente influente na corte, La Mothe le 5 Em “Charron e Descartes: os frutos da dúvida sistemática”, em Richard POPKIN, Ceticismo, org. E.Eigenheer, EDUFF, Niterói, 1996. 31 danilo MarCondes Vayer foi dos mais importantes “libertins érudits” e defensor do ceticismo em sua época. Contudo sua principal obra sobre essas questões, Doutes sceptiques, são de 1667, posterior à morte de Descartes. Mas, é provavelmente a ele que Descartes se refere quando reage a um livro que Mersenne havia lhe enviado como “ce méchant livre” (Carta a Mersenne de 6 de maio de 1630). Minha hipótese interpretativa é bem mais simples. Que Descartes foi um grande leitor de Montaigne é bem conhecido. Sugiro que Descartes parte de uma passagem da Apologia de Raimond Sebond em que Montaigne comenta o que posteriormente será conhecido como “Revolução Científica Moderna”, o confronto entre os sistemas geocêntrico e heliocêntrico: Que concluir, senão que não temos que nos preocupar com saber qual dos dois sistemas é verdadeiro? Quem sabe se daqui a mil anos outro sistema não os destruirá a ambos? Temos, portanto, quando se apresenta uma nova doutrina razões de sobra para desconfiar e lembrar que antes prevalecia a doutrina oposta. Este o “desafio de Montaigne”. O que consideramos ciência desde a Antiguidade – conhecimento verdadeiro, universal e necessário, explicação causal – depende do contexto histórico, do que se considera verossímil em uma determinada época. Consequência disso é que no futuro nossa ciência será ela própria considerada errônea, como era então tida como errônea a ciência dos antigos. Montaigne vê os dois sistemas há uma diafonia e consequentemente uma aporia. Quase podemos considerar Montaigne um “precursor de Thomas Kuhn”. Montaigne não formula propriamente uma dúvida, ao contrário, faz uma afirmação historicizante e relativizante, mas coloca em questão (e este pode ser um dos sentidos de dúvida) quanto à possibilidade da ciência tal como se concebia na época (e na tradição), ou seja, conhecimento universal e necessário com a pretensão de explicar a realidade através da determinação das causas dos fenômenos até a definição de leis gerais. Sua posição aponta para a necessidade de uma reformulação do que entendemos por “ciência”. Faz sentido nos referirmos a uma ciência errônea? Se formulou teses erradas, então não era ciência. A verdadeira ciência ainda está por se construir e o caminho de sua construção talvez consista em abrir mão da pretensão a um saber universal e necessário, à busca “de 32 Três Dúvidas causas primeiras e verdadeiros princípios”, aceitando que as teorias são tão boas quanto possível em determinado momento. O ceticismo nesse sentido consistiria em questionar a possibilidade da ciência na acepção tradicional dado o conflito (diaphonia) provocado pela Revolução Científica Moderna, que pode ser visto como uma forma mais radical dos conflitos discutidos por Sexto Empírico em Contra os professores (nesse caso especificamente em Contra os físicos). Mas, Montaigne vai mais além ao tirar como consequência disso a provisoriedade e a incompletude do conhecimento científico em sua pretensão à verdade. Descartes é um defensor da Ciência Moderna e, portanto, não pode aceitar a consequência relativizante e historicizante que Montaigne extrai desse conflito. Para Descartes é inaceitável que a ciência seja um saber provisório. Procura estabelecer então uma ciência bem fundamentada que não esteja sujeita à dúvida quanto a suas bases ou à sua pretensão, desta forma podendo-se distinguir claramente entre a ciência nova, de Copérnico a Galileu, seu contemporâneo, e a ciência dos antigos, agora desacreditada. Proponho assim identificarmos três acepções da dúvida no pensamento de Descartes. O primeiro no Discurso do Método, o segundo nas Meditações Metafísicas e o terceiro nos Princípios da Filosofia. São essas diferenças que levam a afirmações que vão desde a que mantém que a dúvida cartesiana não é cética (GIOCANTI, op. cit.) até a que considera que Descartes formula uma dúvida cética “não-natural” radicalmente distinta da antiga (Williams)6. Considero apenas que não há uma única formulação da dúvida em Descartes, mas que esta exerce diferentes papéis em um dos casos pelo menos, como veremos, próximo a um dos possíveis sentidos de dúvida no ceticismo antigo em que também se poderiam identificar vários. Proponho uma leitura do Discurso do Método (1637, parte II) como defesa de um modelo de ciência imune a esse tipo de crítica e proponho sobretudo uma leitura da primeira regra (ou princípio) do método que possa fornecer os elementos básicos para isso. Temos nesse texto dois pontos importantes para essa discussão: 1) o papel que Descartes atribui à dúvida e; 2) a necessidade de estabelecimento de um critério de verdade, o que remete diretamente ao problema cético do critério. 6 M. WILLIAMS, Unnatural doubts, Princeton, NJ, Princeton Univ. Press, 1996. 33 danilo MarCondes O primeiro era o de jamais aceitar qualquer coisa como verdadeira que eu não a conhecesse evidentemente como tal, quer dizer evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção e não incluir nada em meus juízos a não ser aquilo que se apresenta tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tenha ocasião de colocá-lo em dúvida. A regra do método é conhecida como “regra da evidência” e apresenta uma série de questões herdadas da tradição cética. Descartes rejeita a verossimilhança, recorre a duas noções encontráveis em Sexto Empírico (precipitação e prevenção, respectivamente oiesis e propéteia)7 que teriam levado ao erro dos antigos, emprega a noção de evidência (se auton, enargeia) central no ceticismo antigo e a define em termos de clareza e distinção como critérios de certeza (aquilo que não pode ser colocado em dúvida). A concepção de Descartes é dicotômica e rejeita qualquer possibilidade de grau de certeza, de probabilidade ou de verossimilhança. Segundo a interpretação que proponho, a dúvida corresponde nesse texto a um exercício de pensamento em um sentido que podemos aproximar de uma passagem do Teeteto de Platão (189e-190a). Nessa passagem, Teeteto pergunta a Sócrates o que este entende por pensamento (dianoia) e Sócrates, sempre avesso a definições percebe que precisa responder, caso o contrário a discussão entre ambos simplesmente estaria arriscada a não prosseguir. Diz então que o pensamento é: Um discurso (logos) que a alma (psyché) mantém consigo mesma (autén), acerca do que quer examinar. Como ignorante que sou lhe dou essa explicação. Mas, é assim que imagino a alma no ato de pensar: formula uma espécie de diálogo consigo mesma com perguntas (erotosa) e respostas, ora para afirmar, ora para negar. Quando emite algum juízo, seja avançando mais devagar seja um pouco mais depressa e nele se fixa sem hesitação (mè distáze): eis o que denominamos crença (doxa). Digo, pois, que formar uma opinião é discursar, um discurso enunciado, não evidentemente, de viva voz para outrem, porém em silêncio, consigo mesmo (pròs autón)8. 7 8 34 Em SEXTO EMPÍRICO, Pyrrhoninan Hipotiposes III, 280, col. Loeb, Harvard Univ. Press, 1985. Expressão equivalente à reflexão e autorreferência encontradas em Descartes. Três Dúvidas Proponho relacionarmos essa passagem à primeira regra do método de. Platão afirma aí que formar um juízo que é então enunciado com uma pretensão a conhecimento ocorre quando a alma, ou mente, se fixa em algo sem hesitação e é esse “sem hesitação” que podemos então aproximar do “não tenha ocasião de colocar em dúvida”. A dúvida cartesiana segundo essa passagem é uma forma de examinar uma pretensão a uma crença e é superada quando a mente pode então se fixar em algo “sem hesitação”. Duvidar seria então equivalente a hesitar quanto a aceitação ou não de algo como verdadeiro, mas essa é apenas uma etapa de nosso pensamento, que pode dar lugar em seguida à certeza, ou seja à enunciação do juízo com pretensão à verdade, após o exame em que formula questões para si mesma. Esse seria o critério cuja possibilidade os céticos questionam. Porém, os céticos, sejam eles quem forem exatamente nesse contexto moderno – Gassendi, La Mothe Le Vayer, libertins érudits – reagem a isso questionando se é possível haver “algo que não se tenha ocasião de colocar em dúvida”, algo evidente nesse sentido. A exigência é muito forte, sempre haverá motivos para se pôr em dúvida qualquer pretensão à verdade. A alma jamais chegaria a uma posição em que não caberia mais dúvida ou hesitação e deveria, portanto, permanecer em suspensão do juízo. Minha proposta é que a 1ª. e a 2ª Meditações sejam vistas como respostas a esse questionamento, como estabelecendo por meio do argumento do cogito essa certeza que não pode ser posta em dúvida, buscando desse modo enquanto resposta ao cético um critério de verdade. Não vou reconstruir aqui o argumento do cogito em que parte dos tropos de Enesidemo são retomados, mas quero apenas propor que se aceitamos a conclusão do argumento, a existência do ser pensante não pode ser posta em dúvida sem contradição, porque duvidar já é pensar. Descartes recorre à dúvida para formular um argumento de circularidade (tropo de Agripa) segundo o qual a dúvida se auto-refuta. Mas, talvez Descartes pretenda mostrar mais propriamente que a dúvida leva a uma aporia, a um impasse a um ponto além do qual ela própria não pode ir – isto é, ao pensamento, evocando Wittgenstein, à rocha dura onde a pá do cético entorta (Investigações Filosóficas, par.217). Mesmo assim, o cético poderá levantar a questão de que a certeza sobre a existência do ser pensante não constitui ainda conhecimento sobre o mundo – ou seja, ciência natural, seu objetivo final. Assim sendo, 35 danilo MarCondes Descartes não responde ao problema que ele próprio formula. Resta, portanto, encontrar o caminho desde a subjetividade até a realidade externa, o que não poderá ocorrer sem o recurso à existência de Deus estabelecida por meio de um argumento ontológico. Essa a origem do problema da existência do mundo externo – retomado por Berkeley, discutido por Hume e Kant, chegando ao período contemporâneo em filósofos como G.E.Moore que pretende refuta-lo em “Prova do Mundo Externo” por sua vez discutida por Wittgenstein em Sobre a certeza. Além disso, recebe formulações originais como em “Brains in a Vat” de Hilary Putnam, que pretende retoma-lo. Filósofos cinéfilos vêem em The Matrix uma versão disso9. Este o problema que não se encontra nem no ceticismo antigo, nem no pensamento antigo em geral. Não encontrável porque o argumento que leva a ele não é encontrável e não é encontrável porque a noção de dúvida tal como formulada por Descartes não é encontrável. Porque não? Proponho aqui uma distinção a propósito da dúvida para fins dessa discussão, uma distinção dentre vários sentidos possíveis: • A dúvida como pergunta, indagação, questão, questionamento, correspondente ao verbo grego eromai. Trata-se do duvidar. Como exemplos temos o questionamento, “Duvido que você possa chegar em tempo”, ou a simples pergunta ou pedido de esclarecimento, “Professor, tenho uma dúvida”. • A dúvida como indeterminação, irresolução, hesitação, correspondente a époche, mas também sobretudo ao verbo distazo, encontrado na passagem do Teeteto examinada anteriormente. Trata-se do estar em dúvida, hesitar, não ser capaz de decidir conclusivamente. Expressões efetivamente empregadas por Montaigne na Apologia. Pode ser esclarecedor retomar a passagem de Descartes no prefácio dos Princípios da Filosofia quando se refere a Platão: “Platão seguindo os passos de seu mestre Sócrates ingenuamente (ingénument) confessou jamais ter encontrado nada de certo e se contentou em escrever sobre as coisas que pareciam verossímeis.” 9 36 G. E. MOORE, “Prova do mundo externo”, 1939 (em Os Pensadores, São Paulo, ed. Abril, 1975); L. WITTGENSTEIN, Sobre a certeza, Oxford, Blackwell, 1969; H. PUTNAM, “Brains in a vat”, em Reason, truth and history, Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1981; The Matrix, 1999 (Wachowskis). Três Dúvidas O diálogo “cético” platônico por excelência é o Teeteto, de grande influência na Academia de Arcesilau a Carnéades, podendo ser considerado um dos textos inaugurais do ceticismo antigo. Mas, o Teeteto é um diálogo aporético e não encontramos nele a posição que Descartes atribui a Platão nesse diálogo. Minha sugestão é que devemos considerar o Fédon como mais próximo da posição que Descartes nessa passagem. Não encontramos aí a formulação de uma dúvida propriamente, mas de uma posição filosófica que aceita a verossimilhança como critério e que será a da Academia de Arcesilau a Carnéades. A passagem a que me refiro é conhecida como “segunda navegação” (deuteros plous)10: Penso assim como você Sócrates que embora seja muito difícil, se não impossível nessa vida chegarmos à certeza sobre essas questões...é nosso dever fazer uma de duas coisas: verificar os fatos seja buscando instruções ou por descoberta pessoal; ou, se isso for impossível, escolher a melhor e mais confiável teoria que a inteligência humana possa encontrar e usá-la como uma jangada para navegar os mares da vida, isto é assumindo que não podemos empreender nossa jornada com maior confiança e segurança através de meios mais certos como um logos divino. (85a-b) Não encontramos aí a formulação de uma dúvida ou questionamento, mas de uma posição filosófica que será a da Academia no período mencionado e que trabalha com o verossímil, com um sucedâneo da verdade e cuja única alternativa, fora de nosso alcance, seria o recurso a Deus. Contudo, nos Principes de la Philosophie (1647) encontramos na Première Partie, AT IX, ii, 25, intitulada Des principes de la connaissance humaine: uma posição menos radical e uma formulação puramente metodológica da dúvida, como um crivo para a ceerteza e como um exercício do pensamento próximo da passagem de Sócrates acima. • • 10 Que pour examiner la vérité il est besoin, une fois en sa vie, de mettre toutes les choses en doute autant qu’il se peut. Qu’il est utile aussi de considérer comme fausses tout les choses don’t on peut douter. Syilvain DECOMMINETTE, “A segunda navegação e a dialética de Sócrates”, Archai, 16, jan.-abril 2016, pp. 183-197. 37 danilo MarCondes • Que nous ne devons point user de ce doute pour la conduite de nos actions. A dúvida cartesiana não se inspira diretamente em Platão nem em nenhum pensamento cético antigo. Mas, seu uso estratégico visa a recusa do verossímil já encontrado em Platão e do “desafio de Montaigne”. Enquanto recurso estratégico argumentativo seu resultado é no mínimo ambíguo. Descartes ele próprio é ambíguo na medida em que começa idealista e termina realista, visa refutar o ceticismo e formula uma versão do ceticismo que permanece até hoje. Foi interpretado em sua época como um cético apesar de declarar pretender refutar o ceticismo. Devemos para isso é claro distinguir o pensamento do filósofo de sua recepção em sua época e posteriormente. Com base em Popkin podemos então distinguir três hipóteses interpretativas (não necessariamente excludentes): • • • Descartes visa refutar o ceticismo (mais radical, talvez de Montaigne e La Mothe Le Vayer). Descartes é um cético disfarçado (como o consideraram os que condenaram sua obra) que formula deliberadamente um ceticismo radical e uma refutação fraca deste ceticismo. Descartes formula um ceticismo não superado, talvez não superável (como parte da tradição o viu, consistindo no problema da existência do mundo externo e de sua argumentação insuficiente contra isso). Portanto, a rigor, não há três dúvidas: O que interpretamos como dúvida no ceticismo antigo é resultado da projeção da dúvida moderna sobre o pensamento cético antigo. Quando pensamos em dúvida pensamos na dúvida cartesiana que superou seu autor e ganhou vida própria (como todos os bons argumentos filosóficos). A dúvida na filosofia contemporânea é uma versão da dúvida cartesiana e teve como efeito (perverso) reduzir o ceticismo a uma filosofia da dúvida, fazendo com que perdesse seu sentido moral e terapêutico encontrado no pensamento antigo. Minha proposta consiste em recuperá-lo. 38 Pascal no Brasil – espiritualismo e ceticismo Alex Lara Martins (IFMG/UFMG)1 A formação de um corpus literário e filosófico no Brasil dependeu da recepção e da influência de obras e autores estrangeiros. Aqui a formação do cânone ocorreu por meio de dependência, identidade, autonomia e diferenciação em relação às fontes metropolitanas europeias. Ao redor das questões da filosofia nacional, discutiremos, na primeira seção desse artigo, quando e como os textos de Pascal foram recebidos no Brasil. A hipótese geral é que o contato efetivo com a filosofia pascaliana ocorreu sob a influência da interpretação romântica do espiritualista François de Chateaubriand (1768-1848) e da interpretação cética do ecletista Victor Cousin (1792-1867). Pascal foi considerado um moralista especial. Apesar de sua austeridade religiosa, vinculada à vertente cristã agostiniana, a diferença de escopo dessa antropologia ultrapassava a pretensão de entretenimento dos demais moralistas, que tipificavam e ridicularizavam apenas uma classe de homens numa sociedade particular. Nesse caso, A influência de Pascal pode ter servido para a resolução de dois problemas recorrentes e interligados à vida social do século XIX: se o artista estava em condições de agir politicamente e se era possível adotar uma moral cristã ao sul do equador. Essas questões são reelaboradas ficcionalmente por Machado de Assis, leitor confesso de Pascal. Quando Pascal foi recebido no Brasil? Do ponto de vista puramente cronológico e comparativo, cujos critérios são a precedência temporal e a semelhança temática, pode-se identificar, ainda no século XVIII, algum vestígio da influência de Pascal no Brasil. Um estudo comparativo pouco exigente pode relacionar a apologia cristã de Pascal ao Peregrino nas Américas (1728), 1 Bolsista PBQS-IFNMG. Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 39-49, 2017. 39 alex lara Martins obra de Nuno Marques Pereira (1652-1728). Esse livro descreve uma viagem fictícia como forma de exortação da fé católica. O protagonista busca pela salvação contra as tentações do mundo. Segundo José Veríssimo, trata-se de “uma ficção de fim e caráter religioso, obra de devoção e edificação” (VERÍSSIMO, 1969, p. 76), estando mais alinhado ao pensamento barroco-tomístico do que ao que usualmente chamamos de filosofia moderna. Um pouco menos imprecisa é a relação entre o pascalianismo e a filosofia de Matias Aires. Amoroso Lima (1993) já percebera em Reflexões sobre a vaidade dos homens a presença do moralismo francês do seiscentos. Apesar da percepção genérica, Aires referenda em seu texto, quase exclusivamente, pensadores e historiadores clássicos. É verdade que Aires conhecia o debate filosófico-teológico da época, e que algumas bibliotecas locais continham obras como as de Fénelon, La Rochefoucauld e Voltaire. Portanto, nessa época, Pascal poderia ser conhecido indiretamente. Contudo, as consequências da antropologia de Aires soam pelagianas para um jansenista, pois ele sugere que o homem seja capaz (apesar de exigir dele um imenso esforço) de superar sua própria natureza corruptível e encontrar, por si mesmo, num ambiente de permissividade e luxúria, a salvação em Deus. Essa filosofia também está mais alinhada ao catolicismo barroco do que ao iluminismo francês (MARGUTTI PINTO, 2013, p. 299). Além disso, se adotarmos o critério histórico-comparatista, defendido por Veríssimo e Romero, nem Nuno Marques Pereira nem Matias Aires podem ser considerados como filósofos brasileiros, pois não expressam o caráter nacional da literatura, tampouco as vicissitudes desse povo. Quando Pascal foi relevantemente recebido no Brasil? Os critérios de relevância são os seguintes: a possibilidade de importação ou impressão, o quanto a obra circulava, o número de citações diretas e indiretas, um público leitor interessado e com formação adequada, a capacidade de redescrição da obra numa visão de mundo própria e compartilhada. De acordo com Antônio Cândido (1997), as condições que suprissem esses critérios só foram arranjadas com a independência em relação à matriz europeia, entre o final do século XVIII (com o Arcadismo) 40 Pascal no Brasil – espiritualismo e ceticismo e o final do século XIX (com Machado de Assis), quando se substituiu o modelo da dependência a uma metrópole pelo modelo francês romântico da originalidade. Dadas essas condições extra-filosóficas, o ecletismo surgiu como a primeira corrente filosófica estruturada por aqui, sob os auspícios do principal intérprete de Pascal no período, Victor Cousin. O contato com a filosofia francesa, especialmente através da obra do ecletista Victor Cousin, a influência exercida por jornais como a Revista de Dois Mundos, bem como o crescimento da imprensa e de leitores locais impulsionaram o debate em torno do projeto civilizatório para o país. A adoção do sistema ecletista serviu de amparo para a solução de questões estéticas e políticas mais profundas. Isso não ocorre nos casos de Matias Aires e Nuno Marques Pereira, cujas reminiscências temáticas com Pascal são apenas superficiais. Nenhum deles cita diretamente Pascal ou coloca em questão as lutas teológicas e filosóficas ocasionadas pelo movimento da Reforma, evento crucial para a retomada de argumentos céticos antigos e de grande impacto no mundo intelectual francês da época, mas de menor relevância no mundo ibérico (POPKIN, 2000, pp. 25-47). Vale notar que os primeiros românticos brasileiros pagavam tributo ao também pascaliano Chateaubriand. Uma pesquisa simples na hemeroteca da Fundação Biblioteca Nacional retorna mais de 600 ocorrências para esse nome em periódicos da década de 1850.2 Isso mostra que o Gênio do cristianismo era bastante difundido nos círculos de leitura do Rio de Janeiro. Ainda de acordo com o acervo de periódicos dessa hemeroteca, as ocorrências do nome “Pascal” crescem em curva exponencial durante a primeira metade do século XIX. Não se registra, durante a primeira década, ocorrência do jansenista nos três jornais disponíveis. A segunda década revela a presença de Pascal em 4 dos 15 jornais disponíveis. Descontados os casos de homonímia e os sentidos conotativos dos signos cristãos “pascaliano”, “pascalino” e “pascal”, computamos cerca de 10 ocorrências. Na década da independência política, a proporção relativa se mantém com 22 ocorrências em 14 dentre os 122 periódicos. Contudo, durante a década de 1830, quando o ecletismo começa a se tornar a filosofia oficial do Império, se contabilizam 116 ocorrências espalhadas em 35 dentre os 350 jornais disponíveis. 2 Consulta disponível em: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/ Acesso em 27 de abril de 2016. 41 alex lara Martins Nesse período, a distribuição das citações entre os jornais se ajusta a uma linha de tendência linear, que aumenta a uma taxa fixa, paralelamente ao número total de jornais. Entre 1840 e 1849, o nome “Pascal” é citado em mais de um quinto dos 364 periódicos, e a quantidade de ocorrências ultrapassa a quantidade total de jornais, totalizando 571 casos. Na década seguinte, vemos ultrapassada a marca de 1360 referências, cada vez mais distribuídas entre os periódicos. Entre uma década e outra, a quantidade de jornais indexados é aumentado em apenas 17%, saltando de 364 a 422, ao passo que a quantidade de citações ao nome do jansenista francês (e seus cognatos) cresce 127%. Como referencial, outros moralistas importantes como La Bruyère e La Rochefoucauld são referenciados, respectivamente, 100 e 42 vezes. E o nome “Descartes” figura em 246 registros durante a década de 1840, e em apenas 360, na década seguinte. Quase sempre tomado como uma autoridade moral, religiosa, filosófica ou científica, Pascal aparece nos jornais de duas maneiras distintas, mas complementares: por um lado, ele é tido como um propagandista da ciência, na medida em que adquirira fama por desenvolver diversos teoremas, inventos e por ter realizado alguns famosos experimentos científicos. Nesse caso, ele poderia servir de modelo progressista e inspirar o desenvolvimento científico dessa jovem nação. Por outro lado, Pascal aparece como um herói espiritualista, na medida em que não se deixou vencer pelo materialismo cientificista. Ao contrário, seus argumentos indicam a necessidade de outra ordem de demonstração, independente do esforço analítico racional, esforço no mais das vezes fantasioso, sintoma da precariedade da condição humana. É a história desse Pascal espiritualista e cético, homem da ciência e das letras, que narra Cousin. As ideias de Pascal não estavam apenas como ventoinhas que giram sem muito efeito prático. Com Pascal se discutiam questões da ordem do dia. As referências variavam da necessidade de fundamentação teórica para a análise de algum acontecimento político até a crítica da própria moral que prevalecia na ex-colônia, passando pelo elogio ao estilo e ao modo de escrita apropriados a um escritor ou sermonista, por exemplo, a autoridade dos legisladores após a independência. Pascal foi recebido de maneira relevante no Brasil a partir da segunda década do século XIX. A importância desse filósofo cresce na medida em que o ecletismo se torna a ideologia dominante. Nesse caso, de- 42 Pascal no Brasil – espiritualismo e ceticismo vemos considerar a figura de Pascal como um modelo para os próprios ecletistas. A flexibilidade ideológica do ecletismo foi importante para a superação da crise política pós-Independência, pois naturalizava as contradições institucionais e sociais. Em relação ao dilema da moral religiosa, a influência da interpretação cética de Pascal efetuada por Victor Cousin, a partir da década de 1840, pode ter contribuído para a atuação política de artistas, críticos literários e afins – aqui se faz notar a presença do que Pascal denominava “espírito de fineza”. Além disso, as ideias pascalianas podem ter contribuído para uma solução de compromisso que conciliasse a defesa de uma sociedade laica e democrática num país cujas condições materiais eram insuficientes para sustentar qualquer mudança abrupta – o que podemos relacionar com a atitude do fideísta cético. Victor Cousin intérprete de Pascal Victor Cousin (1843) redigiu um famoso relatório à Academia Francesa sobre a necessidade de uma nova edição dos Pensamentos de Pascal. Pareciam-lhe incompletas e inautênticas as versões anteriores do texto pascaliano, das edições clássicas de Port-Royal (1669, 1670 e 1671) e de Bossut (1779) até as edições severas de Voltaire.3 Coube a Cousin escarafunchar a mitologia em torno do jansenista e investigar a origem e a fonte das diferentes versões do texto pascaliano. O relatório é dividido em três partes: uma defesa do ecletismo espiritualista no que se refere ao ensino universitário, um estudo biográfico sobre Pascal e uma análise científica dos Pensées que o recolocasse na trilha (eclética – metafísica, sensualismo, ceticismo e espiritualismo) do pensamento ocidental. O relatório gerou algum debate e renovou os estudos autorais sobre Pascal. Nesse ínterim, Cousin apresenta importantes artigos sobre Pascal para a Revue des deux Mondes, a revista oficial do ecletismo brasileiro: “Discurso sobre as paixões do amor” (1843), um fragmento inédito atribuído a Pascal, e “Do ceticismo de Pascal” (1844-45). Segundo Cantillon (2002), Cousin pretende descobrir o “traço distinto e dominante” da obra, que deve ser encontrado entre a leitura dos ma3 Sobre a história das diversas edições dos Pensamentos, consultamos LOUANDRE, Charles. “Les éditions des Pensées” (Édition Variorum), Paris: Charpentier, 1854, pp. 1-20. 43 alex lara Martins nuscritos autógrafos, comparados às edições deturpadas, e os seus próprios artigos dedicados a Pascal. Feito esse esforço, Cousin adquire a convicção, apesar da polêmica iminente, de se tratar de uma filosofia fundamentalmente cética. A interpretação de Cousin possui outra implicação histórica. Port-Royal não mais existia. Tampouco havia heróis como Pascal e Bossuet. Por um lado, o ceticismo desse Pascal é estranho aos homens do século XIX, crentes do humanismo mecanicista, otimistas quanto aos resultados da ciência. Eles julgam desnecessário esperar e assumir uma moral cristã quando a verdade lhes salta aos olhos em seus experimentos. Por outro lado, o novo Pascal, subversivo e rigorista, não é bem acolhido no meio religioso. No fundo, o trabalho filológico de Cousin resumia um projeto romântico de reconduzir a França aos louros do Grande Século através da releitura dos clássicos e do estudo de seu vocabulário. De acordo com Saint-Beuve (1844), era necessário reler Pascal como um modo de ajustar os rumos da própria humanidade. Contrário aos argumentos deístas de Voltaire, Chateaubriand já descrevera e consagrara a superioridade da estética e do pensamento cristãos sobre as civilizações pagãs antigas e modernas. A música, as artes plásticas e a arquitetura, a matemática, a física e a astronomia, até a filosofia elevam-se ao firmamento quando imbuídos do espírito cristão. Pascal é visto por Chateaubriand como o gênio modelo ou a “suite dos moralistas”, sobretudo nos capítulos sobre o homem e quando ele percebe a grandeza do homem com Deus. Outros como La Bruyère e La Rochefoucauld o imitam, sem igual sucesso, no estilo e na descrição dos caracteres e dos costumes. A geração romântica enxergava em Pascal o espírito forte do cristianismo e do progresso, senhor das belas artes e da ciência, com todas as vantagens, ademais, de um devoto incondicional (CHATEAUBRIAND, 1952, v. II, p. 45). Todo o debate suscitado pelo “trabalho” de Cousin, considerado então como o marco inicial da filologia francesa, deve ter sido acompanhado e lido por leitores brasileiros. Era como se o público brasileiro estivesse tendo aulas de filosofia moderna através do debate filosófico em torno de Pascal: o embate entre a nova e a velha ciência, entre a graça e a liberdade, entre a ortodoxia cristã e movimentos 44 Pascal no Brasil – espiritualismo e ceticismo religiosos heterodoxos sobre o critério da fé e sobre a retomada do pirronismo na modernidade. Importante notar que a finalidade do relatório de Cousin era buscar em Pascal a origem e o modelo de uma cultura civilizada. As cartografias filosóficas de Cousin e dos românticos ecléticos se sobrepõem em diversos eixos e sentidos. Guardadas as diferenças, os brasileiros, influenciados pelo pensamento de Cousin, tal como expresso na Revue, também se movimentam em busca de certos traços de uma cultura particular. Esse movimento devia se efetivar numa expressão literária universal, o que garantia o caráter civilizatório de todo o projeto romântico. Cousin propõe um “retorno a Pascal”, pois o jansenista representa o triunfo de uma espiritualidade sincera, livre da indiferença libertina que assolou o século XVIII. Ele reclama outras faculdades e descobre um outro modo de demonstrar suas verdades. Exige-se do escritor e do orador certo espírito de fineza, certa conformidade de expressão, que atinja em cheio o instinto, o coração, a natureza primeira do leitor ou do ouvinte. Machado de Assis, leitor de Pascal No Brasil, as revistas de cultura geral assumiram importante papel na difusão do projeto político de busca de uma identidade nacional, ao ponto de manter similaridades com o projeto cousiniano da “redescoberta de Pascal”. A Revista de Dois Mundos teve grande repercussão durante o Segundo Reinado. Disponível em bibliotecas públicas e particulares, essa revista adquiriu a função de transmitir uma autovisão dos brasileiros a partir das imagens que de nós outros os estrangeiros pintavam. Conhecer e ler a Revista, mesmo que superficialmente, fazia parte dos rituais de consagração da própria nacionalidade, teoricamente próxima do progresso, da liberdade e da espiritualidade. Significava alinhar-se com a cultura ocidental. E se os arautos do progresso, da liberdade e da espiritualidade ali escreviam e difundiam ideias, era de mister adotar o ecletismo como a doutrina filosófica oficial do Império, mesmo que isso pudesse significar a aceitação de um cristianismo “pirronizado”. Pascal foi o grande herói dessa geração romântica e ecletista, de Chateaubriand, de Biran, de 45 alex lara Martins Cousin, de Saint-Beuve e de Renan. Ato contínuo, Pascal seria também o herói das gerações de românticos espiritualistas brasileiros. Machado de Assis (2015, t. V, 1310), por exemplo, confessou que leu Pascal desde cedo, e o levou a sério, sem distração. Para a ficção machadiana, a filosofia de Pascal não é instrumental, não serve de fórmula para ornar personagem e ambiente. Até o final da década de 50, Machado se acomoda ao ecletismo espiritualista, conferindo ao artista a condição transcendental da aquisição de verdades. Embora Machado possuísse uma edição dos Pensamentos da década de 1860, questões como a liberdade, a justiça e a força da eloquência possuem inspiração pascaliana. A superioridade da fé se manifesta mediante a conjunção entre valores cristãos e aquilo que Pascal denominava esprit de finesse, uma atitude consciente de reter na forma de expressão um tipo de conteúdo totalmente permeável. Ao perceber que a ética cristã e a vivência liberal são inconciliáveis, Machado abandona, pouco a pouco, a primeira em favor de valores progressistas e burgueses estranhos ao âmbito do sagrado. Em sua maior parte, os contos são estruturados em triângulos amorosos cujos vértices têm suas personalidades contrastadas (MAIA NETO, 2008, p. 25). O narrador costuma empreender um estudo crítico de caracteres a partir de um dilema moral, estratégia literária comum aos chamados moralistas. A solução a esses dilemas passa de uma avaliação positiva da realidade social e da possibilidade de atitudes éticas e da consciência de uma vida justa, na primeira fase, para uma perspectiva cada vez mais suspensiva e negativa da vida social, como se os próprios dilemas vencessem suas possíveis soluções. A viravolta da ficção machadiana, a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas, não acontece apenas com a modificação do ponto de vista da narrativa, mas quando esta mudança confere ao narrador o privilégio epistemológico da posição cética. Nessa posição privilegiada, o novo memorialista pode suspender a prerrogativa de objetividade da narrativa, implicando o próprio leitor no processo de constituição de uma narrativa cética (MARTINS, 2010). Machado de Assis promove, a partir de meados da década de 1860 até o final da década seguinte, a descristianização do ceticismo pascaliano, entendido como a retomada de argumentos céticos no contexto da Refor- 46 Pascal no Brasil – espiritualismo e ceticismo ma. Entre a perspectiva cristã da possibilidade de redenção para personagens eticamente transparentes e a adoção de um ponto de vista narrativo reflexivo e cético, há um período de amadurecimento literário, nos quais prevalecem diversas tentativas, principalmente nos contos, de compreender e solucionar os dilemas estéticos e políticos. Atesta a modificação da perspectiva, a discussão que Machado promove contra o jornal “A Cruz”, em favor das liberdades de pensamento e de culto. Além disso, ocorre a mudança de perspectiva dos próprios personagens religiosos, por exemplo, a diferença entre a crença forte do padre Melchior de Helena (1876) e a descrença em valores éticos do padre-narrador da novela Casa Velha (18851886). Entre uma coisa e outra, Machado mantém com Pascal, até o final da década de 1870, nas crônicas, nos contos, nos romances e na poesia. Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, romance em que Pascal aparece inteiro, mas também despedaçado pela ironia, oculto nos detalhes embora manifesto sarcasticamente no texto e no subtexto. Através de estratégias argumentativas com desenvoltura autorreflexiva e aporética, percebemos que está em jogo na ficção a desconstrução de uma antropologia tipicamente pascaliana. A contextualização da recepção relevante das fontes filosóficas, especialmente da filosofia pascaliana no Brasil, permite-nos inserir outro elemento na relação entre o local e o universal, entendendo como mediador o modo pelo qual o ceticismo pascaliano é recebido e modificado por aqui. Na verdade, são muitos os Pascais de Machado. Há o Pascal romantizado por Chateaubriand possuidor da combinação de eloquência e finesse, combinação necessária para a metafísica de artista. Há o Pascal originalmente cético redescoberto por Cousin, cuja moral cristã supera o modo de vida decadente dos contemporâneos. E há o moralista sutil, árbitro implacável de uma sociedade viciada e que, apesar disso, possui uma antropologia consistente e universalista. Bibliografia BARBOSA, João Alexandre. “O cânone na história da literatura brasileira”. Organon. Rio Grande do Sul. vol. 15, nº. 30-31, 2001. 47 alex lara Martins CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 7. ed. 2 vol. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia, 1993. CANTILLON, Alain. «Nous n›avions entrepris qu›un travail littéraire» Victor Cousin et Pascal. Les Cahiers du Centre de Recherches Historiques, 28-29 – 2002. Disponível em: <http://ccrh.revues.org/922>. Acesso 19/01/2015. CHATEAUBRIAND, François de. O gênio do cristianismo. Tradução de Camilo Castelo Branco. 2 vol. Rio de Janeiro : W. M. Jackson, 1952. COUSIN, Victor. 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Texto acessado em: 12 junho de 2016. 49 Os limites do cognoscível: um estudo das afinidades entre Max Weber e o ceticismo grego Marcelo da Costa Maciel (UFRRJ) I. A Relatividade do Conhecimento De um forma geral, a epistemologia sobre a qual se baseiam os sistemas filosóficos dogmáticos pode ser considerada “otimista” porque parte da premissa de que o conhecimento (tomado como correlato da verdade) é, em princípio, possível. A pergunta fundamental que se segue ao estabelecimento dessa premissa é, por conseguinte: Como conhecer? Apesar das diferentes modalidades de resposta a essa questão, os sistemas dogmáticos caracterizam-se por determinados procedimentos cognitivos, os quais foram considerados inaceitáveis pelos céticos antigos. Estes, por seu turno,levantam as seguintes questões fundamentais: É possível haver conhecimento? Em que condições uma proposição a respeito do mundo pode ser considerada válida? Os céticos, portanto, interrogam-se sobre o problema do critério de aceitação das proposições sobre o real. De acordo com os escritos de Sexto Empírico, a crítica cética à atividade cognitiva dogmática incide sobre as estratégias que estão implícitas e que orientam tal atividade. A primeira delas consiste na referência a domínios não-evidentes para a explicação dos fenômenos. A insustentabilidade desse procedimento foi demonstrada, sobretudo, nos Oito Modos de Enesidemo sobre a causalidade (HP I.180-186) e nos Cinco Modos de Agripa sobre a cognição dogmática (HP I.164-177), nos quais se denuncia um mergulho no domínio do indeterminado, lançando mão de hipóteses e critérios de comprovação cada vez menos evidentes e configurando seja uma espécie de regressão ao infinito, seja um raciocínio de tipo circular. Outra característica dos filósofos dogmáticos poderia ser designada como a sua solidão cognitiva. Com isso, os céticos querem denunciar o caráter idiossincrático das proposições dogmáticas. Ao contrário do que ocorre com os homens ordinários, os filósofos dogmáticos não estabele- 50 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 50-59, 2017. Os limites do cognoscível: um estudo das afinidades entre Max Weber e o ceticismo grego cem entre si qualquer acordo tácito quanto a critérios comuns que devam ser considerados pela cognição, sendo esta concebida como uma atividade solitária de um sujeito que, partindo de hipóteses e critérios particulares, acredita estar de posse da verdade objetiva sobre o mundo. As proposições de caráter idiossincrático (ou idiótico) são aquelas contra as quais os céticos se dirigem de forma mais radical. Isto porque, tomando os fenômenos como critérios de ação, eles são levados a seguirem as “certezas” ordinárias, ou seja, a adotarem tudo o que é objeto de consenso entre os homens comuns, tudo o que possui um caráter público. Assim sendo, proposições em si mesmas não evidentes, mas tomadas como verdadeiras no âmbito da vida social, podem receber o assentimento dos céticos. Isso faz com que a dicotomia crítica para o entendimento da perspectiva cética seja muito mais aquela entre enunciados públicos e idióticos do que entre enunciados evidentes e não evidentes. O tipo de enunciado terminantemente rejeitado pelos céticos é o enunciado idiótico e não evidente, ao passo que o enunciado não evidente, porém compartilhado, pode ser considerado por eles como parte do domínio fenomênico e, desta forma, exigir o seu reconhecimento, sem consideração à verdade sobre sua natureza. Nesse sentido, um cético não estará dogmatizando se fizer uso de enunciados aceitos por todos os homens, pois o possível caráter não evidente de tais enunciados é neutralizado pela dimensão pública de sua aceitação. A “comunalidade” é, portanto, a dimensão básica para o assentimento do cético a quaisquer enunciados e para a orientação da sua vida prática (LESSA, 1993: 21). Existem ainda outras “patologias” dogmáticas (para citar uma expressão médica utilizada por Sexto Empírico em sua visão terapêutica do ceticismo) que, ao serem combatidas pelos céticos, contribuem para delinear a ideia da relatividade de todo conhecimento. Uma dessas “patologias” é designada pela palavra oíesis, que quer dizer presunção, amor pela própria opinião. O dogmático, de fato, imagina que sua reflexão esteja resguardada da interferência de qualquer circunstância e não seja contaminada por estados subjetivos, pois admitir o contrário seria anular o caráter objetivo e absoluto do conhecimento por ele produzido. Por isso, ele não atribui às suas proposições o estatuto de mera opinião, mas as considera revelações da verdade. O dogmático crê formular suas proposições numa situação cognitiva privilegiada, a partir da utilização 51 MarCelo da Costa MaCiel de métodos particulares e da rejeição das premissas assumidas pelo senso comum. Justamente por acreditar que tem um acesso privilegiado à verdade, o dogmático julga não ser necessário continuar suas pesquisas em busca de mais argumentos para fundamentar suas proposições. Isso o faz sofrer, então, de outra “patologia”: a precipitação (propéteia), ou seja, a não hesitação em proferir sentenças sobre o mundo, derivada da certeza quanto à própria opinião (HP III.280). O ceticismo, em contraposição a essas “patologias” dogmáticas, enfatiza a relatividade do conhecimento. Os Dez Modos de Enesidemo (HP I.36-163), além de conduzirem à suspensão do juízo acerca da disputa dogmática, contribuem para evidenciar tal relatividade, ao demonstrarem que todo conhecimento repousa sobre o “primado das circunstâncias” (LESSA, 1992: 253). Em primeiro lugar, o conhecimento é sempre relativo ao próprio sujeito que conhece: os seres humanos percebem as coisas diferentemente dos animais; homens diferentes percebem diferentemente as mesmas coisas; cada sentido humano, devido à sua constituição própria, propicia ao homem uma percepção diferente dos mesmos objetos; e, finalmente, as circunstâncias em que se encontram os sujeitos (saúde, doença, vigília, sono, etc.), bem como fatores emocionais ou irracionais (amor, ódio, medo, coragem, alegria, tristeza, etc.), interferem em qualquer processo cognitivo, impondo-se a todos os sujeitos de conhecimento, sejam filósofos, sejam homens ordinários. Desta forma, seria uma falácia alguém pretender definir o real, acreditando-se isento da interferência dessas circunstâncias. Além disso, os Dez Modos demonstram que os próprios objetos da cognição são percebidos sempre em relação às circunstâncias em que estão inseridos. Quando tais circunstâncias se alteram, as impressões humanas sobre esses objetos também se alteram. Assim sendo, os objetos só se tornam perceptíveis mediante a consideração de diversos fatores variáveis, tais como posição, combinação com outros objetos, quantidade e frequência, além do fato de que cada cultura cria suas próprias crenças e leis para representar o mundo. A argumentação cética torna, então, evidentes a relatividade do conhecimento e a impossibilidade de realizá-lo fora do domínio de circuns- 52 Os limites do cognoscível: um estudo das afinidades entre Max Weber e o ceticismo grego tâncias, as quais são retratadas como condições inevitáveis e necessárias a qualquer tentativa de cognição. No início do século passado, a célebre discussão de Max Weber a respeito da “objetividade” do conhecimento no campo das ciências sociais também ressaltou a atuação de circunstâncias que afetam o processo cognitivo, dotando-o de um caráter relativo. O cientista realiza escolhas pessoais e, ao debruçar-se sobre os fenômenos, é influenciado por pontos de vista de culturais. Weber retrata a realidade como uma luta permanente entre valores, os quais atuam como orientações da conduta. Diante dessa realidade, o sujeito do conhecimento científico realiza uma ordenação, uma concatenação lógica entre os fenômenos considerados, procurando evidenciar empiricamente suas relações causais. Todavia, como o próprio sujeito está também imerso nessa realidade valorativamente constituída, ele precisa de perspectivas e parâmetros para realizar a ordenação científica. Isso lhe é fornecido pelas definições culturais do que é relevante conhecer. Desta forma, para efeitos de conhecimento, a realidade passa a ser concebida de acordo com o que é valorizado pela cultura, a qual condiciona a eleição de tudo o que importa conhecer. Se as definições da realidade são sempre formuladas por intermédio do irremovível véu da cultura (constituído basicamente por orientações valorativas), conclui-se que todo conhecimento é previamente relativo a definições culturalmente produzidas. Além de fornecer as orientações valorativas sobre o que há para ser investigado, a dimensão cultural indica também o ponto de vista adotado pela ciência social. Segundo Weber, devido às múltiplas possibilidades de conexão entre os fenômenos de uma realidade infinita, são quase inesgotáveis as possibilidades de construção de problemas intelectuais pertinentes. Isso faz com que a ciência encarregada de investigar os fenômenos histórico-sociais tenha de adotar um ponto de vista específico, que privilegie determinados aspectos desses fenômenos. Assim, a Sociologia adotou historicamente um ponto de vista econômico-social para a problematização dos fenômenos considerados relevantes (WEBER, 1993: 118-119). Tal ponto de vista nada mais é do que um predicado cultural. Em momento algum, Weber pretende que a perspectiva a partir da qual o cientista investiga o mundo seja algo parecido com aquela espécie de 53 MarCelo da Costa MaCiel “espaço extramundano” construído pelos filósofos dogmáticos, nem crê que tal perspectiva possa assentar-se na visão da essência da realidade. A relatividade do conhecimento, em Weber, é ressaltada ainda pelo fato de que o cientista efetua escolhas pessoais ao longo de sua atividade. O objeto específico de sua pesquisa é escolhido, em grande medida, por meio de uma decisão particular, envolvendo a identificação, a empatia ou a curiosidade que ele possa ter com relação a esse objeto. Tem-se, portanto, uma dimensão subjetiva a partir da qual se realiza a investigação científica. Por outro lado, devido à extrema complexidade dos fenômenos sociais e à impossibilidade da visão da totalidade, cada cientista tem de optar por uma determinada forma de abordagem dos fenômenos por ele selecionados, fazendo uso de determinados instrumentos analíticos e não de outros. É o cientista quem escolhe que orientações teóricas conduzirão a análise por ele efetuada, e essa escolha implica sempre a exclusão de outras possibilidades, uma vez que os mesmos fenômenos poderiam ser submetidos a um tratamento analítico diferenciado. Tudo isso relaciona os resultados obtidos às decisões subjetivas que orientaram a pesquisa. Podemos concluir que a teoria weberiana da ciência abriga uma concepção de relatividade do conhecimento e, por essa via, contém afinidades com a discussão epistemológica cética. Não é inverídico dizer que Weber reconhece a atuação de circunstâncias indissociáveis ao objeto do conhecimento, já que o mesmo é sempre constituído culturalmente por meio de interesses valorativos mutáveis. Além disso, Weber também reconhece um conjunto de circunstâncias que envolvem o sujeito cognitivo, representadas pelas escolhas que este tem de fazer ao conduzir sua investigação. Poderíamos dizer, em linguagem moderna, que os céticos e Weber convergem na maneira como concebem as relações entre o sujeito e o objeto do conhecimento, bem como as consequências dessas relações para o estatuto do conhecimento produzido. II. As Finalidades do Conhecimento De acordo com Sexto Empírico, a postura tipicamente pirrônica seria caracterizada não só pela atitude de suspensão do juízo com relação a um domínio cuja existência não pode ser comumente atestada (o domínio do adelon, isto é, daquilo que não é evidente), como também pela incansável 54 Os limites do cognoscível: um estudo das afinidades entre Max Weber e o ceticismo grego determinação de perscrutar não dogmaticamente a dimensão aparente das coisas, tendo como objetivo atingir um saber prático cada vez mais amplo e apurado sobre o mundo em que se vive. Não se deve esquecer que a palavra ceticismo tem como origem o substantivo grego sképsis que, em sentido denotativo, significa “observação”, “consideração”, possuindo também os sentidos figurados de “exame”, “investigação”, “reflexão”. Assim, ao derrubarem as tentativas filosóficas de revelar a “verdade”, os céticos não intencionam interditar a contínua ampliação do estoque de saberes humanos sobre coisas evidentes, desde que tal propósito não seja motivado por pretensões dogmáticas. Com efeito, Sexto Empírico destaca o ensinamento das artes como um dos meios de orientação da conduta dos céticos, juntamente com a orientação da natureza, os ditames das paixões e a tradição das leis e costumes (HP I.23). As artes que eles adotam como critérios para a condução da vida correspondem ao que, no mundo grego, compunha o domínio da techné, ou seja, um saber fenomênico com nítida utilidade prática. Incluem-se nessa categoria, por exemplo, a navegação, a agricultura, a medicina empírica (que se atém aos sintomas manifestos das doenças, sem a preocupação de vinculá-los a causas não-evidentes, tais como humores ou poros imperceptíveis) e a gramática (como o estudo dos elementos e combinações da linguagem oral e escrita, e não como a especulação sobre a natureza de tais elementos). Os céticos aceitam esses saberes devido, sobretudo, ao seu caráter útil, e nunca por causa da crença numa adequação à natureza das coisas. Como afirma Jonathan Barnes: Utility is the key: the skeptics will attack arts and sciences, but only those useless – and pretentions – skills on which the Believers plume themselves: the Arts of Life they defend (BARNES, 1983: 156). Desse modo, a atividade investigativa cética, à parte o seu efeito demolidor sobre as edificações filosóficas dos dogmáticos, tem como consequência a ampliação do universo do discurso humano acerca do mundo fenomênico. Se quiséssemos criar a imagem de um possível processo cognitivo cético por meio de uma figura geométrica, esta não seria a de uma reta em direção àquilo que a realidade guarda em sua essência, mas a de um plano que se estende por entre os fenômenos, apreendendo-os e relacionando-os, sem, contudo, transcendê-los. 55 MarCelo da Costa MaCiel Max Weber, por sua vez, afirma que aquele que julga que o sentido da atividade científica consistiria em responder às indagações mais fundamentais do homem (“Que devemos fazer? Como devemos viver?”) será levado a reconhecer que a ciência, desse ponto de vista, não tem sentido, pois ela não desvenda os fundamentos últimos do mundo e da existência humana, não podendo, portanto, formular, coercitivamente, o dever ser (WEBER, 1972: 35-36). Conceber a ciência como fonte para o estabelecimento dos ideais últimos do dever significa atribuir a ela tarefas próprias da religião e da moral, distorcendo, assim, as atribuições legítimas da análise científica, a qual é vista por Weber como o ordenamento conceptual da realidade empírica, e não como o caminho que conduz ao “ser verdadeiro”, à “verdadeira arte”, à “verdadeira natureza”, ao “verdadeiro Deus” ou à “verdadeira felicidade” (ibidem). Por outro lado, Weber opõe-se a todas as tentativas de revestir posições valorativas de um pretenso caráter científico, isto é, de racionalizar a posteriori os fundamentos valorativos das nossas decisões. Para ele, é cientificamente impossível provar ou refutar a força coercitiva de um dever instituído normativamente. À ciência é possível, simplesmente, tomar os valores como objetos de investigação relevantes e evidenciar sua importância na conduta dos homens em um dado contexto sociocultural. Todavia, ao fazer tais advertências, Weber não está propondo que se interrompa a atividade científica e, com ela, a busca humana pelo conhecimento, da mesma forma que a ataraxia cética não corresponde a um elogio da ignorância. O que se altera, tanto num caso como noutro, são as expectativas com relação ao conhecimento. Segundo Weber, não cabe à ciência decretar o que deve existir, mas sim investigar de maneira metódica, isto é, por procedimentos previamente definidos, o inesgotável mundo dos fenômenos naturais e sociais. Assim, da mesma forma que um médico deve tratar a doença sem se preocupar com a questão dos fundamentos últimos da vida, um cientista social deve estudar diferentes configurações sociais sem almejar que esse estudo estabeleça definitivamente a melhor forma de organização social. Como uma verdadeira techné, a ciência social auxiliaria o homem a compreender melhor (leia-se: com mais rigor e detalhamento) o que quer e o que pode fazer, mas não poderia indicar-lhe o que deve querer fazer. A ciência social pode iluminar os homens de ação à medida que torna 56 Os limites do cognoscível: um estudo das afinidades entre Max Weber e o ceticismo grego conscientes os fins por eles buscados e avalia diligentemente os meios que lhes são disponíveis, mas não pode querer apontar quais os fins que eles deveriam perseguir. A utilidade deste tipo de conhecimento consiste, portanto, em fornecer um esclarecimento sobre as alternativas que se apresentam à ação humana em determinado contexto histórico e sobre as consequências que provavelmente derivariam da escolha de cada uma delas. O progresso do conhecimento científico faz-se, então, por meio da ampliação e aprimoramento da pesquisa acerca das condições sob as quais vivemos. Essa pesquisa (tal qual a investigação do mundo fenomênico por parte dos céticos) é, a um só tempo, infinita e limitada. É infinita porque a experiência humana, sendo inesgotável, suscita permanentemente novas questões, e é limitada porque não se pronuncia sobre o que ultrapassa o cognoscível. Como observou Karl Jaspers (1977: 135): À ciência weberiana vincula-se a consciência daquilo que não é conhecido. A consciência de seus próprios limites não implica, contudo, a indiferença do conhecimento científico diante dos problemas práticos. Pelo contrário, estes constituem-se em núcleos canalizadores das preocupações científicas. A ênfase de Weber na questão da neutralidade axiológica revela o seu esforço de discernir qual seria a postura propriamente científica com relação ao mundo dos valores. A rigorosa distinção entre pesquisa científica e julgamento de valor não significa a existência de um abismo entre as esferas do conhecimento e da ação prática, mas sim a afirmação de que a ciência, enquanto tal, estabelece uma relação com os valores por meio da qual determinados fenômenos culturais são convertidos em objetos de uma investigação metódica, sem que esta se confunda, todavia, com a defesa apaixonada de posições valorativas. Isso revela que a verdade científica é, por um lado, buscada a partir de um desejo de conhecer animado por pontos de vista provenientes de ideias de valor e, por outro lado, é comprovada por regras de verificação que nada mais são do que convenções estabelecidas pela própria ciência e, portanto, relativas a esse modo de ver o mundo, pois, como observou Weber, só é uma verdade científica aquilo que pretende ser válido para aqueles que querem tal verdade (WEBER, 1993: 133). Com base nessas considerações, é possível sugerir uma afinidade entre a concepção weberiana da ciência e a postura do ceticismo grego. 57 MarCelo da Costa MaCiel A ênfase cética no conhecimento vinculado ao mundo fenomênico mantém semelhança com uma proposta de ciência enquanto investigação empírica dissociada de pressupostos metafísicos. Rejeitando as pretensões dogmáticas da episteme, o ceticismo adotou a techné como um paradigma aceitável para o conhecimento. Isto porque, como foi dito, as technai voltam-se para os fatos observáveis, explorando-os dentro dos limites cognitivos humanos. Assim, os céticos percebem as semelhanças, diferenças e regularidades manifestas pelos fenômenos e reconhecem que, em geral, os homens se baseiam nas evidências de sua experiência comum para formularem sentenças sobre o mundo em que vivem. Esse reconhecimento suscita a adesão cética a um tipo de saber cujas características básicas são semelhantes aos atributos da ciência, tais como definidos por Weber. Desta forma, pode-se dizer que: (1) a noção de techné é abraçada pelo ceticismo (sobretudo de Sexto Empírico) por apresentar um discurso aceitável sobre um domínio acessível à experiência e (2) esta noção é compatível com a concepção weberiana da ciência. Tal compatibilidade é realçada a partir do que nos diz Oswaldo Porchat: quando as conjunções constantes entre fenômenos se tornam o objeto de uma consideração atenta e de uma observação deliberada, quando o uso de hipóteses construídas sobre a experiência passada se torna instrumento habitual de predição, estamos então no domínio da techné, que a humanidade desenvolveu para submeter o mundo de sua experiência a seu benefício e comodidade (PORCHAT, 1993: 485). A ciência, uma vez praticada como techné e, assim, desprovida de qualquer fundamentação ontológica extrafenomênica, caracteriza-se, então, como um instrumento humano de exploração sistemática de “um mundo fenomênico aberto a possibilidades ilimitadas de investigação” (idem: 487). É somente neste sentido que tanto Weber quanto os céticos incentivariam o seu contínuo aperfeiçoamento. Podemos concluir que a busca pela máxima proximidade das experiências concretas e compartilhadas desacredita a busca pela substância das coisas ou pelo fundamento último da realidade. Por isso, da mesma forma que o ceticismo refuta as pretensões da ciência de alcançar a verdade absoluta, mas incentiva a ampliação de um saber técnico a respeito 58 Os limites do cognoscível: um estudo das afinidades entre Max Weber e o ceticismo grego dos fenômenos, Max Weber recusa ao empreendimento científico a meta de instituir um saber definitivo sobre o sentido essencial do mundo, concebendo-o, por outro lado, como um saber sempre provisório sobre um mundo em permanente transformação. Referências BARNES, Jonathan (1983), Ancient Skepticism and Causation, in: M. Burnyeat (ed.), The Skeptical Tradition, Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press. JASPERS, Karl (1977), Método e Visão de Mundo em Weber, in: G. Cohn (org.), Sociologia: Para Ler os Clássicos, Rio de Janeiro/São Paulo, Livros Técnicos e Científicos. LESSA, Renato (1992), Vox Sextus: Pluralidade dos Mundos, Estratégias Cognitivas e Conhecimento Ordinário na Reflexão Política dos Modernos. 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Tradução de Augustin Wernet. 2ª edição, São Paulo/Campinas, Cortez/Editora da Universidade de Campinas. 59 Juízo e Ser: o debate de Hölderlin com o Idealismo alemão nascente Tamara Havana dos Reis Pasqualato (UNIOESTE) De modo breve, o idealismo alemão pode ser caracterizado como a tentativa de pôr termo ao projeto kantiano – e de ao mesmo de tempo ultrapassá-lo e radicalizá-lo – abrindo assim para a filosofia o caminho seguro de uma ciência1. O estímulo para empreender tal projeto foi dado pelo próprio Kant, ao afirmar que “[...] pertence à crítica da razão pura tudo o que constitui a filosofia transcendental; [que ela] é a ideia perfeita da filosofia transcendental, mas não é ainda essa mesma ciência” (KANT, 1989, p. 55; B 28). Assim, o pensamento pós-kantiano impôs-se a tarefa de dar um acabamento à filosofia. Evidências da adesão à esse projeto podem ser encontradas, por exemplo, na carta enviada a Stephani por Fichte em dezembro de 1793, na qual ele declara que Kant “[...] sem dúvida possui a verdadeira filosofia, mas apenas em seus resultados, não em seus fundamentos” (FICHTE, 1925, p. 319 apud COURTINE, 2006, p. 37) e também numa nota dos Fundamentos da Doutrina da Ciência completa, na qual seu autor afirma que: “[...] Kant, na sua crítica, não queria estabelecer a ciência, mas tão-somente a propedêutica para a mesma [...]”(FICHTE, 1996, p. 98). Sendo assim, o pensamento de Fichte declaradamente ocupa-se de descobrir “[...] o caminho pelo qual a filosofia se tem de elevar ao nível de uma ciência evidente”, afirma (Idem, p. 21). Schelling, por sua vez, partilha inteiramente dessa interpretação que Fichte faz da empreitada kantiana. No prefácio de Sobre o eu afirma: “tentei apresentar os resultados da filosofia crítica, reconduzindo-os aos princípios últimos de todo saber” (SCHELLING, 2004, p. 60)2 e em uma 1 2 Diz Kant (1989, p. 18; B XIV): “O destino não foi até hoje tão favorável que permitisse trilhar o caminho seguro da ciência à metafísica”. Todas as referências de Schelling (2004) são de nossa tradução. 60 A., Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 60-74, 2017. Juízo e Ser: o debate de Hölderlin com o Idealismo alemão nascente carta enviada à Hegel em janeiro de 1795, diz: “a filosofia não chegou ao seu fim; Kant deu os resultados, ainda faltam as premissas” (SCHELLING, 1998, p. 53). Esse esforço de levar a cabo o projeto kantiano tem como ponto de partida a questão de fornecer a forma sistemática e científica da filosofia. Desse modo, tanto Fichte quanto Schelling procuraram estabelecer uma reflexão formal sobre as condições de possibilidade deste acabamento, passando a filosofia a ser entendida como um saber sistemático, que parte de um princípio evidente de unificação e organização interna. Essa investigação estabelece o primado de uma proposição de fundo (Grundsatz) que “permita realizar até o fim o empreendimento de fundação (Grundlegung) capaz de garantir enfim uma base inabalável à totalidade do saber” (COURTINE, 2006, p. 38). Fichte no Einladungsschrift não deixa dúvida de que o principal objetivo que ele atribuiu a si mesmo é o acabamento sistemático da razão transcendental de Kant quando afirma: “[...] em uma ciência só pode haver uma proposição que seja certa [e que] uma tal proposição, certa anteriormente à vinculação e independentemente dela, chama-se proposição fundamental ou princípio. Toda ciência tem de ter um princípio” (1972, pp. 12, 13). Para ele, a partir da investigação do princípio do fundamento sistemático a filosofia, desde que se tivesse tornado ciência, deixaria de lado, não sem razão, um nome que até agora trazia por uma modéstia nada exagerada – o nome de um amadorismo, de um virtuosismo, de um diletantismo. [...]. ela poderia então chamar-se simplesmente die Wissenschaft (a Ciência) ou die Wissenschaftlehre (A Doutrina-da-ciência). A até agora assim chamada filsosofia seria, porntanto, a ciência de uma ciência em geral (FICHTE, 1972, p. 14). Quanto à Schelling, encontra-se num esforço muito similar no sentido de encontrar um fundamento que unifique toda a realidade. No escrito Sobre o eu (2004, p. 71) afirma: Deve existir algo, no e através do qual o que está aí consiga alcançar a existência, tudo o que é pensado, realidade, e o pensamento mesmo, a forma da unidade e inalterabilidade. Este algo (como podemos no momento denominá-lo provisoriamente) deveria ser 61 taMara Havana dos reis Pasqualatto o perfeito no sistema inteiro do saber humano, deveria estar presente até onde nosso pensar e conhecer últimos alcancem, todavia, no kosmos inteiro de nosso saber, e, ao mesmo tempo, reinar como fundamento originário de toda realidade. Vê-se que a tarefa de dar um fundamento ao sistema transcendental através de um primeiro princípio unificador tornou-se, portanto, um dos principais incentivos dos desenvolvimentos teóricos desses autores do idealismo alemão. Diante desse panorama intelectual e objetivos teóricos aqui rapidamente esboçados, notar-se-á que a postura de Hölderlin, se não é de exterioridade, podemos dizer, é de crescente estranheza. A pesquisa a respeito do tema “Hölderlin e o Idealismo alemão” levou muitos anos até reconhecer a verdadeira importância do poeta para o desenvolvimento dessa filosofia3. Para Courtine (2006), a questão “Hölderlin e a filosofia” veio para o primeiro plano após 1917, com a publicação por Fraz Rosenzweig, do texto copiado pela mão de Hegel e conhecido sob o título de O mais antigo programa sistemático do idealismo alemão. No entanto, os primeiros trabalhos publicados a esse repeito não conseguiram identificar com justiça a força filosófica das ideias de Hölderlin, ou compreender a distância que separa meditação poética e pensamento filosófico, fixando-se à uma representação ingênua da relação entre pensamento e poesia4. Talvez por esse motivo é que Serrano Marín (1993), só considera que a produção de uma literatura específica sobre essa questão só se desenvolveu após a publicaçao do fragmento hölderliniano Juízo e Ser. Este breve ensaio, relata Beckenkamp (2004), apareceu em um leilão em 1930 e foi para a biblioteca de Jerusalém5, porém sua primeira 3 4 5 62 Serrano Marín (1993, p. 173) relata que em algumas obras clássicas do século XIX encontram-se afirmações a respeito da “relativa antecipação por parte de Hölderlin de motivos filosóficos que aparecerão mais tarde em Schelling e Hegel, como por exemplo a obra de Rudolf HAYM: Die Romantische Schule. Ein Beitrag zur Geschichte des deutschen Geistes, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, reimpressão da primeira edição de 1870, pp. 301-306. E no mesmo sentido cabe citar a biografia de Hegel de Karl ROSENKRANZ: Georg Wilhelm Friedrich Hegels Leben, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1988, reimpressão da edição de 1844, pp. 25 e 26”. Todas as citações de Serrano Marín (1993) são de nossa tradução. Para uma exposição mais detalhada dos primeiros trabalhos produzidos sobre o tema “Hölderlin e a filosofia”: COURTINE, Jean-François. Tragédia e tempo da história. Trad. Heloisa Rocha. São Paulo: Ed, 34, 2006, pp. 39-42. Trata-se da biblioteca Schocken de Jerusalém. Atualmente o fragmento encontra-se na biblioteca estatal de Württemberg. Juízo e Ser: o debate de Hölderlin com o Idealismo alemão nascente edição foi publicada apenas em 1961 por F. Beiβner6, que a intitulou Urteil und Sein. Essa publicação ficou sem maiores ressonâncias até 1965, quando D. Henrich em um artigo intitulado Hölderlin über Urteil und Sein: Eine Studie zur Entstehungsgeschichte des Idealismus7 chamou a atenção para sua importancia no contexto do idealismo alemão. De acordo com a datação sugerida por Beiβner, o texto teria sido escrito nos primeiros meses de 1795, justamente quando o poeta estava em Jena e assistia às aulas de Fichte a respeito de sua obra capital Fundamentos de toda a doutrina da ciência (1794). Sabemos, através de suas correspondências, que o Hölderlin de Juízo e Ser já era o autor do Fragmento de Hipérion e de poemas como Sobre o Destino e Grecia, publicado na Thalia de Schiller no final de 1794. E também que era um assíduo leitor de Kant8 e dos gregos, bem como admirador de Schiller9, em especial do escrito Sobre graça e dignidade. A título de observação é importante assinalar que a relação de Hölderlin com a supracitada obra de Schiller dá origem ao projeto de um estudo consagrado às Ideias estéticas10, para onde viriam convergir as reflexões de Höldelrin sobre Kant e sobre o Fedro de Platão. É desse encontro que ele acredita poder esperar a possibilidade a audácia de transpor, diferentemente de Schiller, o “limite kantiano”. 6 7 8 9 10 O texto foi publicado pela primeira vez no quarto volume da grande edição de Stuttgart de Hölderlin. Stuttgarter Ausgabe: (Friedrich Hölderlin, Sämtlich Werke, Friedrich Beissner e Adolf Beck, Stuttgart, 1943). D. HENRICH. Hölderlin über Uteil und Sein: Eine Studie zur Entstehungsgeschichte des Idealismus, in: Hölderlin-Jahrbuch XIV (1965/1966). Desde a primeira referência à elaboração de Hipérion (maio de 1793) até sua chegada à Jena (primeira carta desde Jena é de novembro de 1794), Hölderlin relata pelo menos seis vezes estar na “escola do senhor Kant” (HÖLDERLIN, 1990, p. 146). Em carta à Neuffer afirma: “Minha última leitura foi o tratado de Schiller Sobre graça e dignidade. Não recordo haver lido nada em que o mais seleto do reino dos pensamentos e do campo dos sentimentos e a fantasia estiveram fundidos de tal maneira em uno” (HÖLDERLIN, 1990, p. 1983). Todas as referências de Hölderlin (1990) são de nossa tradução. Em uma carta de outubro de 1794 dirigida a Neuffer, Hölderlin diz: “Talvez possa enviar a você um artigo sobre as ideias estéticas que talvez possa ser útil a Conz posto que pode passar como um comentário do Fedro de Platão (...). Na realidade pretende conter uma análise do belo e do sublime a partir da qual resulte mais simples a de Kant e ofereça mais variedade de perspectivas, com fez Schiller em parte em seu escrito Sobre graça e dignidade, ainda que atrevendo-se a ultrapassar o limite de Kant, coisa que, em minha opinião, deveria ter se atrevido” (HÖLDERLIN, 1990, p. 211). 63 taMara Havana dos reis Pasqualatto A partir de novembro de 1794 Hölderlin está em Jena. Esta estada, relativamente curta (sua partida se dá no início do verão de 1795), é marcada pela proximidade com Schiller e pela amizade de Sinclair. Nesse período Hölderlin apropria-se cada vez mais profundamente do pensamento de Fichte, relatando grande entusiamo pelo seu pensamento11, mas ao mesmo tempo elaborando uma crítica cada vez mais profunda e radical da Doutrina da ciência e seu modo de proceder. Por isso é possível afirmar, junto com Courtine (2006, p. 48) que “Hölderlin foi o primeiro dos três companheiros de estudo de Tübingen a penetrar fundo em toda a amplitude do projeto fichtiano”. Uma das primeiras evidências da crítica elaborada por Hölderlin à maneira fichtiana de proceder encontra-se em uma carta enviada à Hegel em janeiro de 1795. Antes mesmo de começar a frequentar as aulas de Fichte, o poeta já havia lido em Walterhausen os primeiros cadernos da Doutrina da ciência, logo após ter lido Spinoza. Desse modo, o escrito contido na carta refere-se às anotações feitas dessa leitura prévia, bemcomo do contato com as Preleções sobre a destinação do sábio que Fichte passou a proferir desde a sua chegada em Jena12 e que Hölderlin em parte acompanhou. Ele escreve então a Hegel: 11 12 64 A princípio tinha bastantes suspeitas de que pecasse [Fichte] de dogmatismo, e me parece, se é que posso fazer conjecturas, que deve haver estado verdadeiramente numa encruzilhada ou pode ser que de fato ainda esteja nela; aspira a passar por cima do fato da consciência na teoria, como provam muitas de suas asserções, e isso é tão certo e ainda mais impressionantemente transcendente que a aspiração dos metafísicos de ultrapassar a existência do mundo; seu Eu absoluto (= a substancia de Spinoza) contém toda a realidade; ele é tudo e fora não há nada; não há, portanto, nenhum objeto para este Eu absoluto, pois do contrário não conteria toda a realidade; mas uma consciência sem objeto não é concebível, e Em carta à Neuffer de novembro de 1794 Hölderlin (1990, p. 214) afirma: “Fichte é agora a alma de Jena. E por Deus que o é verdadeiramente. Não conheço outro homem de tamanha profundidade e energia espiritual. Ir às mais remotas regiões do saber humano para buscar e determinar os princípios de tal saber [...] e ao mesmo tempo e com igual força espiritual, extrair as consequências mais distantes e audaciosas a partir desses princípios”. Courtine (2006, p. 49) nos conta que “Fichte deu início as sua Conferências em maio de 1794, imediatamente após sua chegada a Jena; elas foram reunidas e publicadas em setembro do mesmo ano”. Juízo e Ser: o debate de Hölderlin com o Idealismo alemão nascente se resulta que sou eu mesmo esse objeto, estou como tal necessariamente limitado, ainda que somente seja no tempo, logo não sou absoluto; portanto não é pensável nenhum tipo de consciência no Eu absoluto; como Eu absoluto não tenho nenhuma consciência, e na medida em que não tenho nenhuma consciência, não sou nada (para mim), e portanto o Eu absoluto não é nada (para si) (HÖLDERLIN, 1990, p. 233). Ao pôr o acento na finitude radical da consciência de si, Hölderlin denuncia precisamente essa absolutização de um Eu centrado em si, perfeitamente independente e auto suficiente, e interpretado como atividade originária em vista unicamente de si mesma. Na opinião de Courtine (2006, p. 52), “pode-se, sem dúvida, pensar que a reserva de Hölderlin aqui responde, antes de mais nada, a uma preocupação de fidelidade kantiana ou simplesmente de uma atitude de prudência frente às primeira tentativas que visam ultrapassar o procedimento crítico”. Porém, além desse movimento de recuo, a carta demonstra os indícios de uma crítica muito mais penetrante, pois, ao tomar contato com os supracitados textos fichtianos, Hölderlin põe de imediato a ênfase no ponto decisivo: a contradição que há em pôr um Eu em sua absolutez, ou ainda em pensar o absoluto de acordo com a estrutura da egoidade, isto é, da reflexividade13. O fragmento Juízo e Ser é, portanto, fruto da estada de Hölderlin em Jena, de suas leituras prévias e das aulas Fichte. A crítica contida nesse pequeno ensaio possui uma continuidade àquela contida na carta. Com a diferença de que no ensaio, Hölderlin confronta diretamente os elementos da oposição que se ocultava na expressão “Seu Eu absoluto (= a substância de Spinoza)”. A fórmula do hen kai pan – o um e o todo – 13 Courtine (2006, p. 53) ao comentar essa carta afirma que o Eu, em sua absolutez “não poderia ser consciência de si, visto que a consciência está fundamentalmente ligada à presença de um ob-jeto, à oposição e à limitação no seio de um horizonte que o define. Na posição de si por si, na posição de si mesmo como se pondo, o Eu já abandonou sua pretensa absolutez, ainda que apenas para poder surgir e aparecer para si mesmo como objeto de uma reflexão sobre si. Em sua absolutez, o Eu deveria ser totalmente estranho a essa o-posição reflexiva, a essa determinação essencialmente relacional; mas, nesse sentido, ele não seria nada ‘para si’, da mesma forma que não sou nada ‘para mim’ se não tenho consciência, isto é, onde não encontro nenhum objeto diante de mim no horizonte da finitude. Dito de outro modo, é a pretensão do Eu de ser doravante a única garantia de toda realidade, de ser, não apenas isso, mas também pura e simplesmente identificado à omnitudo realitatis ou à base fundamental de toda realidade e de toda positividade, que parece de antemão ruinosa aos olhos de Hölderlin”. 65 taMara Havana dos reis Pasqualatto fórmula que para Hölderlin expressa a posição de Spinoza, parece surgir como o princípio originário que fará frente ao Eu de Fichte. Assim, no mencionado fragmento, Hölderlin define seu princípio – ao que dá o nome de ser – em termos de unidade; enquanto que a separação originária, que é incompatível com o ser é definida em termos de juízo e será vinculada à consciencia. A oposição entre o princípio considerado como unidade, o ser, e o princípio considerado como separação, que será a consciência ou o juízo exprime a lógica na qual se organiza o ensaio: oposição esta que se expressa o Eu absoluto de Fichte, que Hölderlin havia lido em termos de consciência na carta à Hegel, e a substância de Spinoza traduzida agora em termos de ser. Juízo e Ser é um dos mais antigos documentos do idealismo alemão, e atesta o inegável envolvimento filosófico de Hölderlin com a metafísica e a filosofia pós-kantiana. O texto, que originalmente ocupa uma única página frente e verso, está subdividido claramente em tres partes: uma página trata do “juízo” e a outra do “ser”; porém a página do juízo contém um segundo item que possui um tema próprio: as três categorias da modalidade em sua atribuição às três faculdades cognitivas. Como as páginas não estão numeradas, esse fator levantou a questão de como deveria ser lido: se na sequência: juízo e ser, seguindo a ordem estabelecida por Beiβner; ou na sequência ser e juízo, como sugerido por M. Franz14. Dieter Henrich (1992 apud IBER 2014, p. 15) entende que “é mais provável que o fragmento comece com o ‘juízo’ [posição esta que vamos adotar] mas o texto inteiro tem o caráter de diptychon15; portanto tem o caráter de um duplo texto se completando”16. 14 15 16 66 Cf: M. FRANZ. Hölderlins Logik: zum Grundriβ von ‘Seyn Urtheil Möglichkeit’, in: Hölderlin-Jahrbuch XXV (1986-7), p. 93-124. Sobre o debate acerca da oposição Beiβner – Franz: IBER, Christian; BARBOSA, Nicole. Hölderlin, o fragmento Juízo e Ser e alguns poemas. Porto Alegre: Editora Fi, 2014, p. 15. Diptychon (grego antigo) significa quadro bilateral para escrita. Para Iber (2014, p. 15) concordando com Henrich (1992), “o arranjo de Franz privilegia sua interpretação do fragmento como lógica, já que uma composição lógica requereria proceder cronologicamente, quer dizer, iniciar no ‘ser’ e apenas então chegar à ‘separação original’ ou à ‘divisão-primitiva’, que pressupõe logicamente o ser mais unido do que dividido. Essa interpretação, com efeito, consistente em si, deixa-se opor com a de Henrich a seguinte consideração: não obstante, na concepção filosófica de Hölderlin, o ‘ser’ antecede logicamente ao ‘juízo’, para a fundamentação epistemológica dessa concepção, deixa-se dizer que a ‘separação originária’’ ou a ‘divisão primitiva’ no juízo é o fundamento, a partir do qual o pensamento da união mais íntima do ser aepnas pode ser revelado. Henrich diz: “A sequência ontológico-metafísica dentro Juízo e Ser: o debate de Hölderlin com o Idealismo alemão nascente Lemos, na primeira parte do referido texto acerca do juízo: No sentido supremo e mais estrito o juízo [Urteil] é a separação original do objeto e do sujeito, unidos mais intimamente na intuição intelectual, aquela separação pela qual primeiramente o sujeito e o objeto se tornam possíveis, a divisão primitiva [die Ur-Teilung]. No conceito de separação já reside o conceito de relação recíproca do objeto e do sujeito um sobre o outro, e a pressuposição necessária de um todo, do qual o objeto e o sujeito são as partes. “Eu sou Eu” é o exemplo mais adequado para este conceito de divisão primitiva, como divisão originária teórica, já que na divisão originária prática o Eu se opõe ao Não-Eu, não a si mesmo17. Hölderlin interpreta o termo alemão Urteil como separação, partindo da suposição de que tal conceito etimologicamente tenha esse significado18. Nesse sentido, ele decompõe o termo em Ur (original, primitivo) e Teil (parte), chegando assim ao conceito – derivado na verdade de uma interpretação genuinamente metafísica – de uma divisão originária (Ur-teilung). A intenção de Hölderlin é demonstrar que “julgar” implica de modo inevitável separar, dividir, e é portanto, totalmente oposto à qualquer unidade. Mais precisamente, o texto indica que “julgar” supõe o ato mediante o qual a unidade se rompe, ou seja, o ato da ruptura originária entre o sujeito e o objeto e que disso se pressupõe que, se julgar é separar sujeito e objeto, antes dessa separação eles estavam unidos, ou seja, havia uma unidade prévia que o juízo rompe. Essa unidade prévia, diz Hölderlin, ocorre na intuição intelectual [intellektualen Anschauung]. Aqui há outra oposição: unidade originária e divisão originária, cujo exemplo mais adequado, de acordo com Hölderlin, é a expressão Ich bin Ich19. 17 18 19 da concepção não coincide com a sequência da sua fundamentação epistemológica (HENRICH, 1992, p. 685). Hölderlin parece precisamente ter feito questão desta inversão. Portanto, o início com o ‘juízo’ parece ser o mais adequado. Tradução de Christian Iber e Nicole Barbosa, in: Hölderlin, o fragmento Juízo e Ser e alguns poemas. Porto Alegre: Editora Fi, 2014. Beckenkamp (2004, p. 108) esclarece que “é possível que esta etimologização do termo tenha sido sugerida por C. G. Bardili, repetidor no Instituto Teológico de Tübingen nos primeiros anos da estadia de Hölderlin [...]. Encontra-se a mesma análise etimológica na Lógica de Hegel, quando trata do juízo”. A palavra alemã Urteil deriva etimologicamente de “atribuir” (Zuerteilen) (IBER, 2014). Não há dúvidas de que esse termo para exemplificar a divisão primitiva está se refereindo ao primeiro princípio de Fichte, tal como este se apresenta no primeiro parágrafo da Doutrina da 67 taMara Havana dos reis Pasqualatto A crítica de Hölderlin se desenvolve frente à pretensão fichtiana de, mediante o seu princípio, ter estabelecido uma unidade capaz de superar a substância de Spinoza. Hölderlin pretende mostrar que o princípio de Fichte não somente não é capaz de ocupar o lugar da substância, mas que é o mais oposto a um princípio de unidade, pois representa a separação originária, e a representa precisamente porque está situada na consciência. Então, quando Fichte (1996, p. 32) afirma que o erro de Spinoza “está apenas em que ele acreditava ter concluído a partir de fundamentos racionais, lá onde foi, na verdade, meramente impelido por uma carência prática”, vemos a letra de Hölderlin (2014, p. 13) rebate afirmando que “‘Eu sou Eu’ é o exemplo mais adequado para este conceito de divisão primitiva, como divisão originária teórica, já que na divisão originária prática o Eu se opõe ao Não-Eu, não a si mesmo”20. Antes de passar à questão do Ser, Hölderlin dedica algumas linhas para as categorias da modalidade. Embora à primeira vista pareça um escrito alheio ao todo do texto, uma análise mais detida demonstra que esta reflexão constitui um importante argumento contra a pretensa superação prática por parte de Fichte da substância de Spinoza. Hölderlin (2014, p. 13) afirma o seguinte: A realidade efetiva e a possibilidade estão distinguidas como a consciência imediata e a mediata. Se eu penso um objeto como possível, assim repito seomente a consciência anterior, força pela qual ele é efetivo. Não há para nós nenhuma possibilidade concebível que não tenha sido antes realidade efetiva. Por causa disto o conceito de possibilidade não vale de modo algum para os assuntos da razão, porque eles nunca existem na consciência como o que eles deveriam ser, mas somente vale o conceito de necessidade. O conceito 20 68 ciência. Beckenkamp (2004, pp. 115-16) afirma: “o ‘eu sou eu’ de Fichte só é possível a partir da contraposição do eu como sujeito e do eu como objeto. Na terminologia de Hölderlin, deve ter se dado a partição original, já não se estando a falar do ser absoluto. Na verdade, também Fichte tem como alvo a unificação prática (ou seja, a ser realizada) do sujeito e do objeto no ser absoluto. Só que Fichte além de identificar o ser absoluto com o Eu absoluto, projeta esta unidade do ser absoluto na distância da conclusão de um progresso infinito”. Serrano Marín (1993, p. 186) afirma que “nesta breve afirmação segundo a qual o mais adequado exemplo de juízo é o Eu sou Eu, enquanto que o prático é somente oposição entre Eu e não Eu, Hölderlin está tratando de por em evidência as dificuldades desta unidade supostamente prática de Fichte. Ou dito de outro modo, sua crítica, na medida em que se dirige ao Princípio de Fichte, afeta também a essa dimensão prática”. Juízo e Ser: o debate de Hölderlin com o Idealismo alemão nascente de possibilidade vale apenas para os assuntos do entendimento; o da realidade efetiva, para os assuntos da percepção e da intuição. Se considerarmos que a unidade prática do Eu absoluto fichtiano passa pela ideia do Eu como possibilidade, fica evidente que o sentido deste parágrafo é dar o acabamento e explicar essa noção fichtiana de unidade à que não havia chegado supostamente a substância de Spinoza. Uma das noções mais importantes da parte prática dos Fundamentos da Doutrina da ciência é a do Eu como condição de possibilidade da consciência real21. O referido parágrafo do texto de Hölderlin parece ser dirigido ao centro do argumento de Fichte, sendo que para este, a possibilidade da consciência real é dada pelo Eu absoluto (enquanto absoluta possibilidade) como Ideia. O que Hölderlin nos diz é precisamente que a realidade não depende da possibilidade, mas sim que a possibilidade somente se torna pensável se previamente é dada na consciência real. No entender de Serrano Marín (1993, p. 188), Hölderlin inverte por completo a argumentação de Fichte, e o faz desde uma consideração spinozista, se bem que expressada em linguagem kantiana. Se para Fichte o “absoluto Eu como absoluta possibilidade é condição de possibilidade da consciência real, para Hölderlin ao invés disso, o possível tem sua condição no real”. Com isso Hölderlin explicita a crítica contida na carta à Hegel segundo a qual o dogmatismo de Fichte consistia principalmente em transcender a consciência, uma consciência que, ainda para Serrano Marín (ibidem) “desde a perspectiva kantiana que Hölderlin compatibilizava com seu espinozismo, não pode ser outra que a consciência dada”. Em sentido kantiano, transcendente é tudo aquilo que ultrapassa os limites da experiência possível22, e é bem provável que Hölderlin tenha 21 22 Diz Fichte (1996, p. 163): O eu exige que ele apreenda em si toda a realidade, e encha a infinitude. Esta exigência tem necessariamente por fundamento a ideia do eu infinito, simplesmente posto; e este é o eu absoluto do qual temos falado. (Só aqui se torna completamente claro o sentido da proposição: o eu põe-se simplesmente a si próprio. Nela não se fala, de todo, de um eu dado na consciência efetiva; pois este nunca é, simplesmente, mas o seu estado é sempre, mediata ou imediatamente fundado por algo fora do eu; mas fala-se de uma ideia do eu, que tem de estar no fundamento da sua exigência prática infinita, embora seja inalcançável para a nossa consciência, e que por isso nunca pode ocorrer imediatamente nela [mas sim mediatamente, na reflexão filosófica]). Diz Kant (1989, p. 296; B352): “daremos o nome de imanentes aos princípios cuja aplicação se mantém inteiramente dentro dos limites da experiência possível e o de transcendentes àqueles que transpõem essas fronteiras”. 69 taMara Havana dos reis Pasqualatto em mente essa caracterização kantiana visto que o poeta afirma no parágrafo comentado, que o conceito de possibilidade pertence ao entendimento e não à razão, e não pode ser, portanto,uma ideia, em que se funda a união prática defendida por Fichte, e que fundava a superação da unidade de Spinoza. Sendo assim, Hölderlin (2014, p. 13) conclui: “o conceito de possibilidade vale apenas para os assuntos do entendimento; o da realidade efetiva, para os assuntos da percepção e da intuição”23. Após mostrar que todo juízo é separação, e que tal pressupoe uma unidade prévia, Hölderlin passa então a tratar da sua concepção união, expressa pelo “ser”. Aqui reaparece o tema da consciência, que havia sido central na carta à Hegel: O ser – exprime a união do sujeito e do objeto. Onde o sujeito e o objeto estão unidos pura e simplesmente, não apenas em parte, mas unidos de tal modo que nenhuma divisão pode ser efetuada sem ferir a essência daquilo que deve ser separado, aí e em nenhum outro lugar pode haver um discurso de um ser por excelência, como é o caso na intuição intelectual. Mas esse ser não deve ser confundido com a identidade. Se eu digo: Eu sou Eu, o sujeito (Eu) e o objeto (Eu) não estão tão unidos de modo que nenhuma separação possa ser efetuada sem ferir a essência daquilo que deve ser separado; pelo contrário, o Eu só é possível por esta divisão do Eu com o Eu. Como possi dizer: Eu! sem estar consciente de mim? Mas como a consciência de si é possível? Por isso eu me oponho a mim mesmo, me separo de mim mesmo, mas, a despeito dessa separação, me conheço no oposto como sendo o mesmo. Mas até que ponto como o mesmo? Eu posso, eu preciso perguntar assim; já que num outro aspecto ele [o Eu] está oposto a si. Portanto, a identidade não é nenhuma união do objeto e do sujeito que se realizaria pura e simplesmente, portanto a identidade não é igual ao ser absoluto (HÖLDERLIN, 2014, p. 13). À diferenca de Fichte e Schelling, para Hölderlin o ser não é concebido como dado originalmente, seja no eu, no espírito ou no sujeito. O avanço 23 70 Serrano Marín (1993, p. 189) ainda sublinha que Hölderlin descarta qualquer “resquício de possibilidade da suposta unidade prática na qual Fichte repousa sua superação de Spinoza. Mas o interessante é que ele [Hölderlin] faz isso explicitando ainda mais sua crítica de dogmatismo na carta à Hegel, que agora aparece definitivamente esclarecida, precisamente a partir de Kant, que é justamente o outro elemento que, junto com Spinoza, constituía o solo desde o qual Hölderlin leu Fichte”. Juízo e Ser: o debate de Hölderlin com o Idealismo alemão nascente dessa posição consiste em compreender o ser como a unidade original do eu e do não-eu, do sujeito e do objeto, do espírito e da natureza, unidade esta que somente uma separação igualmente original pode fazer surgir um eu, um sujeito ou um espírito. Somente é possível um ser puro e simples onde não é possível separar sujeito e objeto sem destruir sua essência. Porém, a separação operada pelo juízo não pode ser tão radical que destrua completamente a ligação original entre sujeito e objeto, caso contrário não faria sentido propor uma restauração da unidade original. Isso quer dizer que em algumas experiências o ser deve continuar presente, “como é o caso na intuição intelectual”, como disse Hölderlin acima. Com a página dedicada ao ser Hölderlin busca mostrar que o princípio de Fichte não cumpre o que pretende, a saber, é incapaz de ser princípio e de ser unidade, pois o modelo da autoconsciência impede de considerar o Eu como princípio, pois longe de ser unidade ele é separação originária, no sentido definido logo no início do ensaio. Enquanto Fichte entende o ser absoluto como identidade do eu e do objeto, para Hölderlin tal identidade não alcança o ser, pelo contrário, ela resulta justamente da partição, da separação original do ser. Isso faz com que o princípio de identidade não seja suficiente para unir sujeito e objeto de maneira que não se possa proceder a uma partição – como exige o poeta, por definição, para o ser absoluto. Portanto, a identidade não deve ser tomada ou confundida com o ser absoluto. Assim para Serrano Marín (1993), Hölderlin constata que equiparar o Eu à substancia de Spinoza conduz ao absurdo de converter o Eu em nada e isso se dá precisamente por querer transferir as características da substância para a consciência; e adverte que o que impede de as características da substância serem atribuídas ao Eu de Fichte é justamente sua natureza prática: é isso que o parágrafo dedicado às categorias da modalidade procuram expressar – que essa natureza prática não deixa de ser transcendente e que depende definitivamente de uma estrutura teórica contida na fórmula da identidade, expressado na primeira metade do ensaio. Uma vez que para Fichte o que seu princípio mantém da substância de Spinoza é a característica da unidade, podemos dizer que Hölderlin, ao final do ensaio deixa demonstrada a impossibilidade de conceber a unidade em termos da consciência, concluindo a incapacidade de Fichte de superar o modelo de Spinoza. 71 taMara Havana dos reis Pasqualatto Além de perceber nas posições de Hölderlin uma concepção spinozista combinada com Kant, outros motivos também se unem a esses para a recusa do poeta do modelo fichtiano de filosofia. Se Fichte e Schelling defendiam que o ser original seria o Eu absoluto – que se põe como eu relativo a um não-eu e, para tanto, também põe o não-eu – Hölderlin ao contrário concebe o ser originalmente como ligação do sujeito e do objeto. Essa tendencia harmonizadora em Hölderlin podem ser ecos do seu grande estusiamo por Schiller e suas ideias apresentadas no ensaio Sobre graça e dignidade. O descontentamento de Hölderlin com as teses de Schelling e Fichte que se expressa conceitualmente nesse breve ensaio, reaparecerão no desenvolvimento do Hipérion, no âmbito de uma composição poética. O ensaio de Schiller, publicado em 1793 propõe um novo conceito de homem e humanidade, de acordo com o qual, somente aquele em que as exigência da natureza sensível estivessem em harmonia com as exigências de sua racionalidade seria verdadeiramente humano. Diz Schiller (2008, p. 41): “[...] a natureza humana é um todo mais unido na efetividade do que é permitido ao filósofo, que só é capaz de dissociar, deixá-la parecer”. O homem é – deve ser – uma totalidade em que a parte sensível esteja em plena harmonia com sua racionalidade. Nesse sentido, o ideal de harmonia schilleriano reaparece poetizado na voz do personagem Hiperion. Aqui a noção do Absoluto retorna em novo patamar: o ser é entendido como ligação entre sujeito e objeto, e a recuperação do absoluto não poderia se dar pela supressão das partes, senão desde a superação da separação original. Hipérion expressa essa noção quando diz a seu amigo Belarmino: Ser um com a vida do todo! Com essas palavras a virtude despe-se da armadura enraivecida, o espírito humano perde o cetro e todos os pensamentos desaparecem diante da imagem do mundo eterno e uno. É como desaparecem, diante de sua Urânia, os embates do artista pela regra, como o destino de bronze escapa ao domínio e a morte desprende-se da aliança dos seres, quando a união inviolável e a eterna juventude abençoam e embelezam o mundo (HÖLDERLIN, 1993, p. 28). Dando-se a unidade original do ser, em Hölderlin, como uma reconciliação (Vereiningung) entre o espírito e a natureza, como reinstauração da unidade original de ambos, em vez de operar-se por meio dela 72 Juízo e Ser: o debate de Hölderlin com o Idealismo alemão nascente um pleno retorno ao Eu Absoluto – como propuseram Fichte e Schelling – nisso entende-se mais claramente quão importante foi a participação de Hölderlin no debate do Idealismo alemão. Enquatno poeta-filósofo pode-se dizer mais: seu projeto filosófico-poético foi além, afirmando-se em sua autonomia e não se deixando reduzir às questões teóricas ventiladas pelos seus contemporâneos. Referências BECKENKAMP, Joãosinho. Entre Kant e Hegel. Porto Alegre: Edipucrs, 2004. COURTINE, J. F. A tragédia e o tempo da história. Trad. Heloisa B.S. Rocha. São Paulo: Ed. 34, 2006. FICHTE, Johann Gottlieb. Sobre o conceito da Doutrina-da-Ciência. São Paulo: Abril Cultural, 1972. FICHTE, Johann Gottlieb. Fundamentos da Doutrina da Ciência Completa. Lisboa: Edições Colibri, 1996. HÖLDERLIN, Friedrich. Correspondencia completa. Madri. Ediciones Hiperión, 1990. HÖLDERLIN, Friedrich. Hipérion ou o Eremita na Grécia. Trad. Márcia C. de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1993. HÖLDERLIN, Friedrich. Juízo e Ser (2014) IN: IBER, Christian; BARBOSA, Nicole. Hölderlin, o fragmento Juízo e Ser e alguns poemas. [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Editora Fi, 2014. IBER, Christian; BARBOSA, Nicole. Hölderlin, o fragmento Juízo e Ser e alguns poemas. [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Editora Fi, 2014. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Abril Editorial, 1989. SCHELLING, F. W. J. Correspondência a Hegel. IN: HEGEL, G. W. F. Escritos de Juventud. México: Fondo de Cultura Economica, 1998. 73 taMara Havana dos reis Pasqualatto SCHELLING, F.W.J. Del Yo como principio de la filosofía o sobre lo incondicionado en el saber humano. Madrid: Editorial Trotta, 2004. SCHILLER, Friedrich. Sobre graça e dignidade. Tradução: Ana Resende. Porto Alegre: Movimento, 2008. SERRANO MARÍN, Vicente. Sobre Hölderlin y los comienzos del Idealismo alemán. Anales del Seminário de História da Filosofia, 10, 173-194, Editorial Complutense, Madrid, 1993. 74 Notas sobre dialética em Aristóteles1 Marcio Soares (UFFS) Uma investigação que vise descortinar o que Aristóteles compreendeu por dialética, e como ele possivelmente a empregou na construção de sua própria filosofia, deve iniciar pelo tratado que o nosso Filósofo dedicou aos raciocínios e procedimentos dialéticos, a saber, os Tópicos. E já no primeiro parágrafo (100a18-24) desse livro encontramos uma descrição, de potencial promissor, sobre o que o Estagirita compreendeu por dialética, alcançada no que é dito sobre o silogismo dialético: trata-se de um método que permite raciocinar e defender um argumento sobre qualquer problema (ou assunto) proposto, sempre no intuito de evitar-se a contradição do que já fora previamente afirmado. Tal raciocínio é caracterizado por proceder a partir de proposições que Aristóteles denomina de éndoxa (Top. 100a20: ex endóxon). A tradução do mencionado termo aristotélico – éndoxon – especialmente nesse contexto, tem causado muita polêmica e está longe de ser óbvia. Por enquanto, tomemos éndoxa por opiniões reputadas ou geralmente aceites. Trata-se de opiniões de domínio comum e provável razoabilidade (sobre a veracidade de seu conteúdo), ou seja, aquelas opiniões que, bem conhecidas (por isso de domínio comum e reputadas), recorremos para amparar nossos juízos, nossas decisões e nossas ações na falta de proposições verdadeiras estabelecidas enquanto tal (pelo menos do ponto de vista de quem toma uma proposição na condição de um éndoxon) – potencialmente, proposições verdadeiras seriam mais seguras, mas não estão ao nosso alcance no momento preciso do embate dialético (ou de um simples diálogo). 1 O presente trabalho é resultado de pesquisa realizada em estágio de Pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte/MG, junto à Linha de pesquisa em Filosofia Antiga e Medieval, sob a supervisão do Prof. Dr. Fernando E. de B. Rey Puente, entre agosto de 2015 e julho de 2016, com apoio financeiro do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) através de concessão de Bolsa PDJ (Pós-doutorado júnior). Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 75-91, 2017. 75 MarCio soares Esse último aspecto não é de menor importância, isto é, o fato de que nós, na condição de debatedores ou dialogantes de uma conversa ou discussão dialética, não temos ao nosso alcance, no momento exato do embate dialético, senão tais éndoxa – como veremos adiante, de acordo com o texto dos Tópicos, Aristóteles parece entender que o exercício dialético propriamente dito se dá, preferencialmente, embora não exclusivamente, em encontros entre questionador e respondente, isto é, em situações reais, ao vivo, de debate ou diálogo, na velha forma do dialégesthai. Assim, como dito antes, o fato de dialogantes ou debatedores não disporem de uma proposição verdadeira no momento do embate dialético (ou do diálogo) não significa que não existam asserções verdadeiras sobre o tema discutido, tais como aquelas alcançadas pelas ciências. Nesse sentido, inclusive, pode ocorrer que questionador e respondente tomem proposições ou afirmações oriundas de conhecimentos científicos, por exemplo, portanto mais próximas de serem verdadeiras, na condição de éndoxa. Tomemos a nós mesmos como exemplos: é muito comum, quando nos envolvemos em debates corriqueiros assim procedermos (como o próprio texto aristotélico aponta, o nosso Filósofo está pensando também em tais diálogos cotidianos, relativos a assuntos de interesse comum, ao descrever os debates dialéticos). Ou seja, na condição de leigos em relação a determinados conhecimentos científicos, tomamos asserções que, em sua origem, são científicas. Nós lançamos mão delas não como tais, isto é, asserções científicas em sua linguagem técnica, contexto teórico e rigor de provas e demonstrações, mas na simples condição de opiniões reputadas e de domínio comum. Sobretudo, aparentemente tais opiniões são reputadas porque confiamos na sua origem científica (ou seja, por serem autorizadas por ‘sábios’ – os sophoí), mesmo que não possamos dominar seu campo científico originário2. Logo no começo dos Tópicos (100b22-3), passagem que abordarei em maiores detalhes abaixo, Aristóteles chama atenção para esse fato: uma das origens das éndoxa é o que 2 76 Algumas passagens do capítulo 10 do Livro I dos Tópicos não deixam dúvida sobre isso, ou seja, o fato de que pessoas leigas em relação a determinados campos científicos ou técnicos possam ou devam acolher opiniões dos sábios (sophoí); e ao acolhê-las, os leigos só podem tomá-las na condição de éndoxa. Tal como em Tópicos I, 1 (100b21-4), também aqui, no capítulo 10, as éndoxa são descritas como opiniões aceitas ou por todos, ou pela maioria ou pelos sábios (dentre estes, todos, a maioria ou os mais reputados). Veja-se as seguintes passagens: Top. I, 10, 104a815; 104a33-7. Notas sobre dialética em Aristóteles se afigura credível “aos sábios” (toîs sophoîs), e, por consequência, para os leigos (os não-sábios), por confiarem nos sábios. Evidentemente, sob o termo sophoí, o Estagirita está se referindo a cientistas, a técnicos, a filósofos, enfim, a algum especialista autorizado em determinada área do conhecimento (cf. BERTI, 2010, p. 371). Parece, portanto, que o caráter endoxico, por assim dizer, de uma asserção ou proposição reside em sua razoabilidade e larga aceitabilidade, isto é, no fato de ser uma opinião razoável e de domínio comum, de um lado. Mas, de outro lado, há também o fato de que quem toma tal asserção, em um debate ou conversa, o faz tomando-a como éndoxon, ou seja, como uma opinião razoável e de domínio comum, mesmo que ela, na sua origem, não o seja – caso de muitas asserções, científicas em seu contexto original, mas que chegam ao domínio do senso comum na forma de opiniões razoáveis e passam a ser objeto de argumentações em debates e conversas. Portanto, há um forte traço de confiança (o emprego de tò dokoûn e tà dokoûnta, em Top. 104a11; 33, são indício suficiente disso), de crença depositada em uma opinião, que compõe a descrição aristotélica do que seja um éndoxon – e não me parece haver qualquer conotação negativa ou depreciativa nisso para Aristóteles. A partir disso tudo que acabo de expor, duas observações devem ser registradas, para posterior exame e aprofundamento. Primeiro, o caráter endoxal de uma asserção não parece dependente só de seu conteúdo, mas de sua aceitabilidade e da forma e contexto em que tal asserção é empregada, manejada, por assim dizer. Segundo, a dialética parece ser dependente de um debate, de uma disputa, de uma conversa, ao vivo ou não – quero dizer que o debate não necessariamente se dá em um encontro real entre pessoas; pode ocorrer por meio de textos escritos, por exemplo, embora a imensa maioria dos tópoi (lugares comuns de argumentação) tratados por Aristóteles nos Tópicos pareçam refletir embates argumentativos ao vivo, em encontros reais (no sentido de serem presenciais, fisicamente) entre pessoas. Retornemos ao silogismo dialético: Aristóteles o compreende como um procedimento argumentativo que, partindo de opiniões plausíveis, reputadas e de domínio comum, as éndoxa, permite-nos tratar de qualquer assunto, lidar com qualquer problema, sem nos enredarmos em contradição no discurso argumentativo construído ao longo do próprio debate 77 MarCio soares dialético. Estamos lidando, aqui, com a teoria aristotélica do silogismo, pois é no contraste entre diferentes tipos de silogismos que se esclarece o que é um raciocínio dialético. Daí também emergem pistas para pensarmos e compreendermos as próprias éndoxa, já que são elas as premissas de um silogismo dialético. Voltemo-nos, assim, para o começo dos Tópicos: O objectivo desta exposição é encontrar um método que permita raciocinar, sobre todo e qualquer problema proposto, a partir de proposições geralmente aceites (ex endóxon), e bem assim defender um argumento sem nada dizermos de contraditório (hypenantíon). Antes de mais, portanto, há que explicar o que é um raciocínio dedutivo (syllogismòs) e quais as suas variedades, a fim de determinar o que é um raciocínio dialéctico (dialektikòs syllogismós), pois é este último o que estudamos na presente exposição. (Top. 100a18-24)3 O final da passagem citada acima indica que o silogismo dialético (dialektikòs syllogismós) emerge, na condição de uma especificidade, no contexto maior dos silogismos possíveis e suas diferenças mútuas; evidentemente, trata-se de uma relação entre gênero – de todos os silogismos possíveis – e espécie – dos silogismos dialéticos. Por isso, afirma Aristóteles, é preciso começar pela descrição genérica sobre o que é um silogismo4, para só então destacar o que é próprio, específico, do silogismo dialético. De acordo com o Estagirita, o silogismo é um raciocínio (lógos) no qual, uma vez assentadas certas afirmações ou premissas, outras, distintas das primeiras, mas por causa e meio delas, necessariamente decorrem, na forma de uma conclusão (Top. 100a25-7). A título de mera ilustração disso, tal se dá como segue: se assentamos as premissas A e B, então delas extraímos, na forma de uma conclusão necessária, a proposição C. Essa última, C, apresenta conteúdo distinto das duas primeiras, A e B; mas tal conteúdo é uma consequência necessária, por força do raciocínio (portanto, de necessidade lógica), de conteúdos presentes em A e B. Em sentido bem específico, C é consequência lógica (de raciocínio) decorrente do encadeamento de A e B, que logicamente são causas. Em suma, o silogis3 4 78 Citarei sempre o texto dos Tópicos na tradução de J. A. S. e Campos (2007). Embora Campos (2007), nessa passagem (Top. 100a21-4), tenha optado pelas versões “raciocínio dedutivo” (syllogismós) e “raciocínio dialético” (dialektikòs syllogismós), o fato é que, no que diz respeito ao primeiro termo, só consta no texto grego a palavra syllogismós. Notas sobre dialética em Aristóteles mo é o tipo de raciocínio ou discurso (lógos) que, genericamente, se constrói no modelo < se A e B, então C >, ou [ A ˄ B → C ] – e nisso não há nada de novo para nós, hoje, após Aristóteles e séculos de lógica aristotélica, o que presumivelmente não era o caso dos alunos e leitores do Estagirita em seu próprio tempo. Desse modo, estabelecido o que é um silogismo, na condição de um gênero de raciocínios discursivos (lógoi), Aristóteles, na sequência do texto dos Tópicos, apresenta suas diferentes especificidades. A listagem de silogismos possíveis apresentada na sequência do texto aristotélico, contudo, não tem a pretensão de ser exaustiva; nem mesmo o tratamento de cada espécie de silogismo pretende ser exaustivo, como o próprio Filósofo deixa explícito no seu texto (Top. I, 1, 101a18-24). O primeiro silogismo mencionado é aquele que resulta em demonstração (apódeixis); nesse caso, as premissas do raciocínio, a partir das quais serão extraídas conclusões, ou são em si mesmas verdadeiras (alethôn) e primordiais (próton) ou são premissas cujo conhecimento é derivado de premissas verdadeiras e primordiais (Top. 100a27-30). E logo adiante, no mesmo texto, Aristóteles afirma: “São verdadeiras e primordiais aquelas proposições que merecem crédito (pístin), não por recurso a outras proposições, mas sim por si mesmas [...]” (Top. 100a30-b19). Ora, tais proposições ou premissas verdadeiras e primordiais são aquelas relacionadas ao conhecimento científico, as quais em si mesmas são dignas de crédito, sem depender de qualquer outra fonte de credibilidade, como o próprio Filósofo afirma na sequência imediata do seu texto: “[…] pois no que respeita aos princípios científicos (epistemonikaîs archaîs) não é pertinente perguntar porque são credíveis, uma vez que cada um desses princípios em si e por si deve ser credível (pistén)” (Top. 100b19-21). Cabe registrar, aqui, que Aristóteles, nessa passagem dos Tópicos, não restringe explicitamente a origem de proposições verdadeiras e primordiais ao conhecimento científico, embora apenas mencione esse como fonte de tais proposições que se tornam premissas em um silogismo demonstrativo. E no decorrer do mesmo texto, o tratamento dado pelo Estagirita às proposições verdadeiras e primordiais ou evocam diretamente o conhecimento científico ou dão a entendê-lo – por exemplo, logo adiante (Top. I, 1, 101a5-17), onde Aristóteles menciona os paralogismos (paralogismoí), que nada mais são do que distorções, falsidades ou erros em relação aos princípios de uma ciência, e cita o caso de tais ocorrências na geometria. 79 MarCio soares De modo que, ao que tudo indica, por tais proposições verdadeiras e primordiais Aristóteles compreende sempre aqueles princípios próprios das diversas ciências, o que parece ser muito adequado em se tratando de silogismos que resultam em demonstração (apódeixis), isto é, em conhecimento certo e verdadeiro. Contrasta com a primeira espécie de silogismo, descrita imediatamente acima, cujo raciocínio se constrói, direta ou indiretamente, a partir de premissas verdadeiras e primordiais, oriundas das ciências (segundo o que Aristóteles dá a entender nessa altura dos Tópicos), uma segunda espécie de silogismo, cujo raciocínio se constrói “[…] a partir de proposições geralmente aceites […]”, isto é, “ex endóxon” (Top. 100a29-30). Esse último, diz Aristóteles, é o silogismo dialético. Mas, se o que caracteriza as premissas verdadeiras e primordiais das ciências, v.g., é o fato de que elas são credíveis em si e por si mesmas, sem necessidade de recorrer-se a outras proposições que as justifique ou as fundamente, conforme vimos antes, o que caracteriza as éndoxa, por sua vez, é o fato de serem largamente aceites, de parecerem credíveis, de tornarem-se opinião de domínio comum (tà dokoûnta) “[…] a todos, ou à maioria ou aos sábios; ou ainda, de entre estes, a todos, à maioria ou aos mais conhecedores e reputados” (Top. 100b21-3). Em outros termos, talvez mais contemporâneos a nós, o contraste parece se dar entre a verdade assegurada no conteúdo das proposições primordiais e verdadeiras, oriundas das ciências, que se fazem premissas em um silogismo demonstrativo, de um lado, e a adesão de crença – de todos, da maioria ou dos mais sábios, e dentre esses últimos, de todos, da maioria ou dos mais reputados – às éndoxa que se fazem premissas de um silogismo dialético, de outro lado. O que quero apontar é: no caso dos silogismos demonstrativos, o conteúdo de suas premissas, por serem verdadeiras e primordiais (oriundas das ciências, tais como Aristóteles as compreendia, não como nós, contemporaneamente, as compreendemos), impõe a adesão a essas mesmas premissas e endossa o resultado lógico de tais silogismos – é bom lembrar que a verdade das premissas e da conclusão e a validade lógica do raciocínio permanecem propriedades distintas do silogismo. Já no caso dos silogismos dialéticos, é a adesão às éndoxa que sustenta, ainda que provisoriamente, o conteúdo das mesmas e o próprio resultado de tais silogismos – embora, tal como já frisei, não 80 Notas sobre dialética em Aristóteles sob o ponto de vista de sua validade lógica, pois essa permanece uma decorrência do raciocínio silogístico, independentemente da verdade de suas premissas. Em outras palavras, aceitas tais premissas, A e B, por exemplo, tem-se, por força do raciocínio (lógico), a conclusão C, mesmo no caso de silogismos dialéticos, os quais procedem “ex endóxon”. Portanto, o contraste entre os silogismos demonstrativo e dialético parece se dar nos seguintes termos: no primeiro (o demonstrativo), o conteúdo das premissas sustenta (por imposição da verdade) a adesão de crença a elas; no segundo (o dialético), ao contrário, é a adesão de crença de todos ou da maioria que sustenta o conteúdo das premissas – ainda que tal adesão esteja diretamente atrelada à aparente razoabilidade do próprio conteúdo das premissas. A diferença entre os dois não se verifica na estrutura lógica de ambos, que a rigor é idêntica e parece operar com os mesmos critérios formais de validade; a diferença entre tais silogismos se verifica no conteúdo de verdade de suas premissas. Nesse contexto, cabe ressaltar que um éndoxon só o é por ser de domínio comum; essa é uma de suas fontes de autoridade, sendo a outra sua própria razoabilidade de conteúdo. Evidentemente, aqui as coisas se complicam, sob o ponto de vista do que vem primeiro, já que um éndoxon parece ser reputado e de domínio comum por conter conteúdo razoável, que, por sua vez, é concomitantemente reconhecido na adesão comum de crença (de todos, da maioria ou de sábios) que a esse mesmo éndoxon se faz. Além disso, no debate dialético, tal éndoxon deve ser sustentado pelo respondente, ainda que provisoriamente, o que implica uma adesão do mesmo a esse éndoxon, ainda que tal adesão seja exclusivamente para os fins da discussão. Para todos os efeitos, de construção de silogismos dialéticos e de realização de discussões dialéticas, as éndoxa não existem exclusivamente pelo seu conteúdo; elas só existem quando há adesão a elas, seja de todos, da maioria ou de sábios (entre esses, de todos, da maioria ou dos mais reputados), conforme o texto dos Tópicos (100b21-3). É essa adesão comum, de caráter público (já que tais éndoxa são de conhecimento público), que embasa a própria adesão individual do respondente ou dialogante às éndoxa – mesmo que provisória e exclusivamente para os fins da discussão – em um debate tipicamente dialético. Em suma, o contraste entre os dois silogismos parece ser o seguinte: no silogismo demonstrativo, aquele que resulta em apódeixis (de- 81 MarCio soares monstração), basta a verdade desde sempre garantida do conteúdo das premissas; está garantida, assim, além da validade lógica do raciocínio (sempre distinta do conteúdo de verdade ou falsidade das premissas), a verdade de sua conclusão. Já no silogismo dialético, não há verdade desde sempre garantida nas premissas, mas adesão comum (em maior ou menor número de pessoas) a opiniões reputadas (as éndoxa) que são feitas suas premissas, sendo sua conclusão, positiva ou negativa, também um éndoxon (i.e., uma opinião reputável, cuja razoabilidade de conteúdo deriva da própria razoabilidade das premissas estabelecidas no silogismo)5. A diferença, portanto, não está na validade lógica dos dois silogismos contrastados, isto é, o demonstrativo e o dialético, já que ambos presumível e formalmente constroem-se segundo o modelo lógico de raciocínio < se A e B, então C >, ou [ A ˄ B → C ], mas na veracidade do conteúdo de suas premissas e, consequentemente, de suas conclusões: respectivamente, o primeiro silogismo parte desde premissas verdadeiras e obtém, como conclusão, uma verdade (ou uma apódeixis); o segundo, parte desde endóxon (opiniões reputadas) e obtém, como conclusão, um éndoxon. O ponto que quero mostrar, aqui, é que a razoabilidade do conteúdo das éndoxa, além de não ser em si mesmo composto de verdades como são as proposições científicas (sempre em sentido aristotélico), também se sustenta no quão elas são aceitas, no grau de adesão que se faz a elas. Isso ocorre mesmo quando se toma uma proposição de origem científica na condição de um éndoxon, já que tal proposição não é tomada e manejada, por assim dizer, no seu contexto científico originário, mas como opinião razoável e de domínio comum (i.e., na condição de um éndoxon); nesse caso, o ponto de apoio visivelmente parece deslocar-se do conteúdo para a aceitabilidade, para a adesão a tal proposição6. Indício de prova disso é um argumento de autoridade – como nós o qualificaríamos contemporaneamente, penso eu, sem muita discussão ou polêmica – presente na descrição aristotélica das éndoxa: elas o são por serem objeto de adesão de todos, ou da maioria, ou dos mais sábios; nesse último caso, de todos, 5 6 82 Sobre as condições de verdade em um silogismo dialético, especialmente a exigência de que um éndoxon alcançado na forma de conclusão de um raciocínio não deva conter mais conteúdo de verdade do que as premissas (que também são éndoxa) por meio das quais ele é extraído, ver: WLODARCZYK, 2000. Nesse sentido, talvez, E. Berti insiste na compreensão das éndoxa como “objetos de estima” ou “proposições estimadas” (BERTI, 2010, p. 279, nota 4). Notas sobre dialética em Aristóteles ou da maioria, ou dos mais reputados (Top. 100b21-3). A presença do argumento de autoridade, parece-me, é inegável, já que o conteúdo de um éndoxon é estimado, é objeto de crença, em função de quem adere a ele, da autoridade ou quantitativa (todos, a maioria) ou qualitativa (os sábios, os mais reputados) de quem adere a ele, para além da razoabilidade de seu próprio conteúdo. E aqui de novo emerge a questão sobre o que vem primeiro, em relação às éndoxa, se é a adesão a elas ou é a razoabilidade dos seus conteúdos – configurando-se em uma espécie de versão da conhecida e prosaica aporia sobre a origem primária do ovo ou da galinha. Em termos diretos, podemos perguntar: o conteúdo de um éndoxon é razoável porque todos, ou a maioria, ou os mais sábios (ou, dentre esses, os mais reputados) aderem a tal opinião? Ou o contrário: todos, ou a maioria, ou os mais sábios (ou, dentre esses, os mais reputados) aderem a um éndoxon porque ele é razoável nos termos do seu conteúdo? Ou, ainda, nenhuma dessas alternativas, mas simplesmente não faz sentido fazer essas perguntas e exigir qualquer prioridade em relação ou à adesão ou à razoabilidade de conteúdo de um éndoxon? Nessa última direção, talvez devamos considerar a possibilidade de que simplesmente não há relação entre razoabilidade de conteúdo (ou veracidade) de um éndoxon e sua respectiva aceitação – tratar-se-ia do fato de que um éndoxon é aceito, reputado, independentemente de seu conteúdo de verdade ser ou não razoável. Nesse sentido, cabe perguntarmos se Aristóteles admitiria um éndoxon cujo conteúdo não seja razoável, portanto sustentado apenas pela ampla adesão comum que a ele se faz – seria o caso de opiniões próximas ao que nós, contemporaneamente, chamamos largamente e em sentido comum de preconceitos, os quais também se caracterizam por serem de ampla aceitação e adesão, mas não por serem razoáveis. Por enquanto, permanecem as perguntas. Um outro ponto de interesse filosófico que emerge dessa exposição inicial de Aristóteles nos Tópicos, para além da própria teorização aristotélica aqui abordada, é relativo à eficácia de um silogismo, por sua vez, em convencer-nos sobre sua veracidade e validade lógica, e desse modo, por consequência, angariar nossa crença e nossa adesão ao seu conteúdo, especialmente na forma de sua conclusão. Esse ponto desdobra-se, didaticamente, em três frentes de exame: (1) uma tipificação dos silogismos possíveis e um exame detido sobre a eficácia – em termos de demonstra- 83 MarCio soares ção e convencimento, portanto lógica, mas também sobre o seu conteúdo veritativo – característica de cada tipo (ou espécie) de silogismo; (2) a possibilidade de haver elementos externos ao próprio raciocínio formal desenvolvido no silogismo, mas que colaboram ou influenciam diretamente no processo de convencimento sobre a veracidade e a validade lógica do conteúdo do silogismo – estou pensando, aqui, em possíveis elementos práticos não-formais próprios do embate dialético ou do desenvolvimento retórico de uma argumentação; (3) a tipificação e caracterização dos diferentes níveis e tipos de crença, de adesão, dispensadas pelos ouvintes (no caso de um discurso expositivo, de cunho retórico) ou debatedores (no caso de um embate dialético de perguntas e respostas ou de troca de argumentações) diante de um silogismo exposto. Os dois primeiros pontos (sobre os tipos de silogismo possíveis, sua eficácia em termos de demonstração e convencimento e os elementos formais e práticos não-formais envolvidos em tal convencimento), com certeza, são facilmente encontráveis entre os temas tratados nos próprios textos de Aristóteles. Seu tratamento, contudo, não se restringe aos Tópicos, longe disso, mas se estende, de forma espraiada, nos Analíticos Primeiros e Segundos, nas Refutações Sofísticas e na Retórica, pelo menos, configurando-se em amplo programa de pesquisa. Por fim, o terceiro ponto (relativo à tipificação dos diferentes níveis de crença e adesão dos ouvintes diante de um silogismo exposto), parece extrapolar os limites e os interesses do discurso filosófico aristotélico, talvez pelo fato de o Estagirita não estar diretamente vinculado, e até mesmo preso, a uma filosofia da subjetividade como nós estamos. Seria, nesse sentido, portanto, injusto cobrarmos de Aristóteles o tratamento de tais questões. De qualquer modo, fica registrada essa frente de investigação, tanto para a verificação de algum indício, por menor e rudimentar que seja, de seu tratamento nos tratados aristotélicos, quanto por ser uma questão de nosso interesse filosófico contemporâneo, mas de inspiração e motivação aristotélica, isto é, despertada e cultivada precisamente a partir da leitura dos próprios textos de Aristóteles. De volta à própria letra dos Tópicos (100b23), após a exposição sumária dos silogismos demonstrativo (que resulta em apódeixis) e dialético (dialektikós), Aristóteles expõe, também em termos breves, o silogismo erístico (eristikós). Esse é caracterizado em dois sentidos. Primeiro, no 84 Notas sobre dialética em Aristóteles caso em que o silogismo parte de premissas que parecem ser éndoxa, mas que efetivamente não o são. Segundo, no caso em que, ao partir seja de éndoxa seja de opiniões que apenas aparentam caráter endoxico, o próprio silogismo é mera aparência (phainómenos), isto é, não se constitui de fato em raciocínio silogístico – ou, em outros termos, o encadeamento lógico de suas premissas não resulta em silogismo (ou raciocínio) racionalmente (ou logicamente) válido. Além disso, sobre a própria natureza das éndoxa, acrescenta o Estagirita: “nem tudo o que parece ser um éndoxon é de fato um éndoxon” (ou gàr pân tò phainómenon éndoxon kaì éstin éndoxon – Top. 100b26). Ademais, “nem todas das chamadas opiniões reputadas (endóxon) tem a aparência (phantasían) de evidente, como tem ocorrido sobre os princípios dos raciocínios erísticos [...]”, cujo caráter falacioso (he toû pseúdous … phýsis) – desses últimos, os erísticos – torna-se evidente ou para aqueles que são capazes de reconhecê-lo nos seus pequenos pormenores ou até mesmo para aqueles que tem pequena capacidade de compreensão (Top. 100b26-101a1)7. Reparemos, aqui, que Aristóteles está fazendo um jogo de contraste entre o que é e o que não é, entre o que é de fato (ónton) e o que é apenas aparente (phainoménon). Mas a questão não é ontológica (como, apressadamente, se poderia pensar em vista do emprego das palavras óntos e phainómenos nessa passagem do texto aristotélico), e sim lógica. Trata-se de opiniões e raciocínios que parecem éndoxa e syllogismoí, respectivamente, mas não o são de fato. Nesse sentido, insisto, o aparecer sem ser, ou o ser de fato (realmente) quando é o caso, não se deve à natureza ontológica das éndoxa e dos syllogismoí, mas à sua natureza discursiva, lógica (de lógos). No fundo, o contraste entre aparência e realidade deve-se ao adequado uso lógico que se pode fazer ou não do discurso no caso dos silogismos, e da credibilidade, razoabilidade e aceitabilidade no caso 7 Toda essa passagem apresenta relativa dificuldade de tradução, mas sobretudo há uma dificuldade de compreensão. O ponto primordial que nos interessa aqui é: nem todas as éndoxa apresentam sua aparência com suficiente evidência (outhèn gàr tôn ... endóxon epipólaion échei pantelôs tèn phantasían – Top. 100b26-8); o contrário ocorre com as premissas dos silogismos erísticos, cuja falsidade se evidencia – e aqui está o maior ponto de divergência entre tradutores e especialistas – mesmo ou para aqueles que tem pequena capacidade de compreensão ou para aqueles que tem capacidade de compreender pequenos pormenores. O ponto de discórdia está na compreensão sobre a que se refere o termo mikrá (com sentido de pequeno), se é à capacidade de compreender ou aos detalhes (de um argumento) a serem compreendidos. 85 MarCio soares das opiniões (éndoxa) – nesse último caso, o das éndoxa, se a questão não é puramente lógica, como é razoável cogitar, é no máximo também epistemológica8. Nesse sentido, são propriedades lógicas, presentes no lógos, que tornam ou não um raciocínio (lógos) em um válido silogismo (sillogismós); é também no discurso (lógos) que reside a razoabilidade de um éndoxon, o que consequentemente embasa sua aceitabilidade e credibilidade (sendo essas duas últimas suas potenciais características epistemológicas)9. Em resumo, Aristóteles aponta o que caracteriza um silogismo erístico: (1) o raciocínio parte de opiniões que apenas aparentemente são éndoxa, quando na realidade não são; (2) mesmo sendo éndoxa as premissas de que parte o raciocínio, é o próprio ordenamento lógico do raciocínio que apenas parece ser um silogismo válido, sem de fato sê-lo. Em ambos os casos os raciocínios estão fundados em aparência (phaínetai, 101a4), em falsidade (pseúdous, 101a1), seja das éndoxa, seja do próprio caráter de validade lógica do sillogismós. No primeiro caso desses raciocínios erísticos (eristikôn syllogismôn), diz o Estagirita, podemos chamá-lo simplesmente de silogismo (syllogismós), uma vez que a falsidade não reside no encadeamento lógico das premissas, mas no aparente conteúdo endoxico delas. Já no segundo caso, insiste nosso Filósofo, devemos qualificá-lo de silogismo erístico (eristikòs syllogismós), haja vista que a aparência (que nesse caso é falsa) reside na própria validade lógica do raciocínio. Por fim, na sumária tipologia de silogismos apresentada por Aristóteles no primeiro capítulo dos Tópicos, constam os raciocínios que, embora baseados em premissas oriundas de determinadas ciências (perí tinas epistémas), constituem-se em erros de raciocínio, os quais o Estagirita, aqui, denomina paralogismos (paralogismoí)10. O exemplo nominado pelo nosso 8 9 10 86 Quero lembrar que há um enorme e intenso debate contemporâneo entre especialistas e comentadores da filosofia aristotélica sobre o possível caráter epistemológico das éndoxa. Sobre tal debate, ver: IRWIN, 1988; OWEN, 1967; BARNES, 1980 [2010]; BOLTON, 2010; BERTI, 2010. E. Berti (2010, p. 372) trata dessa distinção entre as éndoxa que o são de fato e aquelas que apenas aparentam sê-lo, mas que não o são (phainoménon endóxon mè ónton – cf. Top. 100b24-5), nos termos de distinção entre “éndoxa autênticos e éndoxa aparentes”. Berti aborda precisamente essa passagem dos Tópicos (100b23-101a1) para tratar da questão do “valor epistemológico dos éndoxa”, e ao final de seu argumento não hesita em sugerir que “[...] os éndoxa autênticos são, ao menos na sua maior parte, verdadeiros” (grifo meu). É curioso que no primeiro capítulo dos Tópicos Aristóteles empregue o termo paralogismo (paralogismós) exclusivamente em referência a raciocínios científicos equivocados, ou cujo conteú- Notas sobre dialética em Aristóteles Filósofo é a geometria (geometrías) e, em suas próprias palavras, ciências “aparentadas a essa” (tôn taútei synggenôn). Tal exemplo não é casual, uma vez que erros básicos de raciocínio cometidos em ciências formais, caso da geometria e das matemáticas em geral, explicitam muito claramente o que Aristóteles está apontando sob a denominação de paralogismos. É o que ocorre, para parafrasear o próprio Estagirita, quando alguém, ao proceder um raciocínio em geometria, parte de “desenhos equivocados”, os quais constituem-se em “falsas figuras” (pseudográphon); nesse caso, um tal autor de silogismos “[…] constrói o seu raciocínio a partir de premissas próprias da ciência referida [a geometria], mas não verdadeiras; ou seja, constrói um falso raciocínio, ou porque não desenha os semicírculos de forma correta, ou porque não traça algumas linhas tal como elas devem ser traçadas” (Top. 101a13-17). Em outras palavras, um paralogismo resulta de um erro básico, um desvio, um equívoco ao manejar-se os princípios tomados de uma ciência. E embora Aristóteles não detalhe este aspecto, podemos deduzir, pelo menos na condição de possibilidade (e dada nossa própria experiência em cometer erros em raciocínios matemáticos, v.g.), que o erro, fruto de equívoco, pode estar (1) no conteúdo das premissas ou (2) na construção do raciocínio – nesse último caso, embora tome-se corretamente o conteúdo dos princípios de uma ciência, os quais efetivamente são premissas do silogismo que resulta em paralogismo. A passagem em questão do texto dos Tópicos (101a5-17) dá a entender que, ao expor sumariamente o que é um paralogismo, Aristóteles está lidando apenas com a possibilidade (1), isto é, quando os conteúdos dos princípios são tomados equivocadamente na condição de premissas do silogismo. Nesse caso, diz o Estagirita, o autor do raciocínio não parte nem de premissas verdadeiras e primordiais (ex alethôn kaì próton), nem de éndoxa (ex endóxon). É digno de nota que Aristóteles faça questão, aqui, apesar da brevidade de sua exposição, de acentuar o fato de que as premissas de um paralogismo não podem ser consideradas éndoxa, já que não “[…] são aceites por todos, nem pela maioria, nem pelos sábios, nem, do das premissas contém erro ou o próprio desenvolvimento do raciocínio (silogismo) resulte em erro. Ao referir-se aos silogismos erísticos (eristikoì syllogismoí) antes (Top. 100b23-101a4), contudo, Aristóteles não os denominou paralogismos. Entretanto, logo na abertura das Refutações sofísticas (164a20-1), o Estagirita refere-se aos elénchoi sophistikoí, por ele lá qualificados de meramente aparentes (que apenas parecem ser raciocínios válidos, mas não o são), pela denominação de paralogismos. 87 MarCio soares de entre estes, por todos, ou pela maioria, ou pelos de maior reputação” (Top. 101a11-13). A sequência imediata do texto aristotélico não deixa dúvidas: premissas de um silogismo que resulta em paralogismo, embora, no seu contexto original sejam oriundas de princípios de uma ciência determinada, e que são de fato tomados equivocadamente, constituem-se em erro, portanto não são verdadeiras (101a14-8). A insistência de Aristóteles em ressaltar que tais premissas não podem ser consideradas éndoxa parece ter uma motivação: embora proposições de uma ciência possam ser tomadas na condição de éndoxa, quando extraídas de seu contexto científico específico11, conforme já abordei acima, nesses casos elas jamais se confundem com as premissas equivocadas – apesar de serem científicas – que geram paralogismos. Duas são as diferenças presumíveis entre uma ocorrência e outra, a saber: primeiro, quando tomamos premissas de uma ciência na condição de éndoxa, as extraímos de seu campo e contexto científicos originários – é exatamente o fato de não as manejarmos no contexto específico da ciência de origem que faz delas, agora, na forma como as tratamos, éndoxa. Diferentemente disso, os princípios de uma ciência, quando são premissas de um silogismo que resulta em paralogismo, são tomados no próprio campo e contexto científicos em questão. Isso quer dizer que um especialista em determinada ciência pode tomar seus princípios equivocadamente e cometer paralogismos. A segunda diferença diz respeito à presença do próprio erro, do equívoco de conteúdo: quando tomamos uma proposição, que em sua origem é científica, na condição de um éndoxon, não cometemos erro ou equívoco quanto ao seu conteúdo, apenas a extraímos de seu campo científico originário e a manejamos como opinião corrente e largamente aceita (i.e., um éndoxon) – o máximo que ocorre, parece-me, é uma simplificação do conteúdo da proposição em questão (especialmente no que diz respeito à linguagem empregada em seu manejo). O cientista, por sua vez, não extrai as proposições com que lida de seu campo científico originário, nem simplifica os seus conteúdos, mas os toma equivocadamente. Daí que Aristóteles, com toda a razão, faça questão de ressaltar que uma proposição ou princípio científico que, quando tomado em um raciocínio (que não pretende extrapolar o campo da própria ciência em questão), envolva um equívoco básico 11 88 Cf. Tópicos, I, 10, 104a8-15; 104a33-7. Ver também: BERTI, 2010, p. 371. Notas sobre dialética em Aristóteles de conteúdo e gere um paralogismo, exatamente por esse motivo, não possa ser considerado um éndoxon. Do começo dos Tópicos, fica evidente, pois, que a pedra fundamental do silogismo dialético é o conceito aristotélico de éndoxon. Dialética, segundo o Estagirita, é raciocinar e argumentar ex endóxon, e isso é diferente de demonstrações científicas, de argumentações sofísticas (ou erísticas) e até mesmo de simples erros de raciocínio (paralogismoí). Em síntese, para Aristóteles a dialética é uma técnica específica de argumentação e raciocínio, a qual é de grande utilidade para o exercício e a aprendizagem intelectuais e que inclusive pode estar a serviço das ciências, da filosofia e das conversações em geral (cf. Top. I, 2, 101a25-b4), desde que honestas – já que a dialética não se confunde nem com argumentações sofísticas nem com disputas erísticas; aliás, essas últimas parecem ser, para o nosso Filósofo, os dois lados de uma mesma moeda. Referências ARISTÓTELES. Tópicos. Introdução, tradução e notas de J. A. S. e Campos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007. ARISTOTELIS. Topica et Sophistici Elenchi. Recensuit brevique adnotatione critica instruxit W. D. Ross. Oxonii: E. Typographeo Clarendiano, 1958. [Oxford University Press]. ARISTOTLE. The complete works of Aristotle. The revised Oxford translation. Edited by J. Barnes. Princeton: Princeton University Press, 1995. 2 vols. BARNES, J. Aristotle and the methods of ethics. Revue Internationale de Philosophie, 133-134, 1980, p. 490-511. [Aristóteles e os métodos da ética. Trad. de R. de Souza. In: ZINGANO, M. (Org.). Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2010. P. 183-207] BERTI, E. 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Hegel mantém um lugar para a idealidade diante dos fenômenos materiais e da passagem do tempo, garantindo com isto uma fonte de sentido para os eventos históricos, sem que pensamento e história sejam dois âmbitos separados ou submissos um ao outro. Não há significação para objeto ou evento algum fora da relação entre materialidade (representado na lógica pela categoria de singular) e idealidade (representado pela categoria de universal). Da mesma forma, não há significação para eventos históricos fora da lógica e da idealidade que são, para Hegel, imanentes ao próprio processo histórico. De outro lado, o processo histórico é a manifestação mesma do pensamento e a realização da idealidade, sem podermos dizer, porém, que a idealidade predetermine a história, pois a história é o âmbito mesmo do pensar, sem o qual não restaria pensamento algum. Por isto a filosofia de Hegel torna-se frutífera também quando aplicada a áreas ou objetos particulares. É este o caso, como pretendo apresentar neste trabalho, da arte e da música. Por meio da filosofia da arte, Hegel busca o conceito de arte, que deve envolver seu papel enquanto universal (por meio da definição do Ideal, como manifestação sensível da Ideia), como particular (enquanto manifestação histórica de diferentes sentidos e graus de autoconsciência social revelados pela arte) e como singular (por meio do material utilizado para a manifestação artística). A arte constitui, assim, um todo, que por sua vez cumpre uma função na história geral do Geist e no Geist absoluto. A arte é uma das formas de autocompreensão cultural, em que subjetividade e objetividade social se encontram. A música, por sua vez, cons- 92 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 92-107, 2017. A historicidade da música em Hegel diante do dodecafonismo de Schoenberg titui uma das formas singulares de arte. Enquanto tal, podemos contrastar a análise de Hegel da música e das formas históricas de arte com a própria história da música. Como na parte específica, em que Hegel analisa a música enquanto arte singular, Hegel não explora de maneira explícita a questão da historicidade da música, quero neste trabalho pensar como poderíamos pensar a historicidade da música por meio do pensamento de Hegel. Temos, assim, a afirmação de que a música é uma forma de arte romântica, e que cumpre uma função específica para concretização dessa forma histórica. Também o processo imanente à forma romântica, da passagem de uma função religiosa para um momento secular e, finalmente, a superação da arte enquanto forma privilegiada de autocompreensão do Geist absoluto pela religião e pela filosofia, serão abordadas diante do que veio a se chamar de declaração do fim da arte em Hegel. Para contrastar a história da música com esta ideia supostamente hegeliana do fim da arte, farei o confrontamento da ideia de Hegel com um evento histórico que, em geral, é considerado relevante e constituinte de algo novo na história da música e, assim também, da história cultural: o dodecafonismo de Schoenberg, considerado aqui também como modelo de negação do sistema tonal em música. Neste trabalho busco situar a questão, tomando a música dodecafônica de Schoenberg como paradigma e indagando sobre o papel da música e sua história na formação sociocultural (ou, dito hegelianamente, no Geist absoluto), apesar do prosaísmo da modernidade e da superação da arte enquanto modo privilegiado de realização da Ideia no pensamento de Hegel. Divido, a partir daqui, a exposição em três partes, a saber: (1) a posição da arte diante do Geist absoluto e a analogia entre intuição, no Geist subjetivo, e arte; (2) uma exposição geral da arte nas Lições sobre filosofia da arte, situando a música enquanto arte singular; e (3) uma análise das características da música em Hegel, a avaliação da sua historicidade e a confrontação com o caso do dodecafonismo de Schoenberg. 2. Geist e arte Para que se compreenda o lugar da arte no pensamento de Hegel deve-se primeiro compreender seus conceitos mais básicos. Para isto, deve-se contextualizar a arte no seu âmbito próprio, que é o Geist absoluto. 93 adriano Bueno Kurle Por sua vez, para que se apresente uma compreensão do Geist absoluto, deve-se antes compreender minimamente a estrutura geral do pensamento de Hegel. O conceito de Geist se configura por meio da relação com a Ideia (lógica) e com a Natureza. O Geist caracteriza-se por ser aquele ponto onde o evento material gera formas de autorreconhecimento. Hegel divide esta etapa em três: o lado subjetivo, o lado objetivo e o lado absoluto (que não é um lado, mas a totalidade onde o subjetivo e o objetivo encontram-se unificados e em processo de autorreconhecimento desta unidade). Temos, no lado subjetivo, o momento de constituição da identidade individual e da consciência, processo este que é dividido por Hegel em três partes: a antropologia, a fenomenologia, e a psicologia. Do lado objetivo temos a constituição da relação entre essas consciências, que sabem já da liberdade da sua vontade e expressam sua consciência-de-si e sua vontade por meio das relações intersubjetivas e sociais. Essas expressões sofrem mediações que levam à concretização daquilo que Hegel chama “universal”, que até então era algo meramente abstrato, e torna-se por meio da relação social algo objetivo e instituído. Por meio da relação social o ser humano coloca a razão diante de si mesma, e a relação entre agentes conscientes de si permite que a razão (no sentindo amplo do termo) tanto se materialize quanto se reconheça, entre em autorrelação. No momento em que há o reconhecimento de uma unidade consciente de si entre as consciências, tem-se a passagem tanto para a história quanto para o Geist absoluto. Não se deve interpretar aqui como se o Geist objetivo devesse estar completo no seu processo para que o Geist absoluto pudesse aparecer. Deste modo, a noção de Estado surge apenas na modernidade, porém a autorrelação entre sociedade e subjetividade já acontece antes deste momento. Isto é, mesmo nas sociedades antigas podemos encontrar a história e o Geist absoluto. O momento do Geist absoluto é o que mais nos interessa aqui, pois é onde a arte se insere. Esse é o momento onde o subjetivo e o objetivo se encontram. Por conta disto, o Geist absoluto é considerado como o infinito, pois o Geist subjetivo e também o objetivo encontram-se em esferas separadas, limitando uma à outra – e portanto são finitos (de acordo com a concepção de Hegel de que toda alteridade é uma limitação e uma negação). O Geist absoluto é assim tanto o momento da realização da história 94 A historicidade da música em Hegel diante do dodecafonismo de Schoenberg da razão, posta na sua realização no tempo e na materialidade, quanto o processo de tornar subjetivo aquilo que até então era alheio à subjetividade e à idealidade. O Geist absoluto dá significação ideal à matéria e dá materialidade à ideia. Isso ocorre por três tipos de mediação: a arte, a religião, e a filosofia. Por sua vez, as formas de expressão do Geist absoluto possuem relação de analogia com as formas do Geist subjetivo, no nível da psicologia. Primeiro deve-se considerar a estrutura geral do Geist subjetivo: a antropologia refere-se àqueles momentos onde impulsos, paixões e sentimentos são postos e posteriormente conectados em uma unidade, ainda ao nível pré-consciente. No que Hegel chama de fenomenologia, se apresenta o fenômeno da consciência, primeiro enquanto consciência de objetos, depois enquanto consciência-de-si (oposta ao “outro” de modo geral) e por fim a razão, enquanto consciência da unidade entre Si [Selbst] e objetos (mundo, incluindo aí outras consciências de si). Na Enciclopédia este é o momento de entrada no que Hegel chamou de psicologia. Levando em consideração que este livro foi preparado para servir de esquema às suas aulas, também podemos considerar que na Fenomenologia do Espírito a passagem da consciência-de-si para a relação entre consciências-de-si marca a entrada do Geist1. No nível da psicologia tem-se já o saber de Si no mundo, sendo essa dividida em intuição, representação e pensar. Basicamente, a função lógica da intuição é trazer algo que se dá imediatamente, onde há unidade imediata entre o “fora” e o “dentro”, entre o “objeto” e o “sujeito”: é o caso do que poderíamos chamar de sensações e sentimentos. Hegel faz uma passagem entre a sensação (que também aparece na antropologia) e sentimentos para a atenção e a “intuição propriamente dita”2, em que há também o processo de distinção e nova síntese entre o sujeito que sente e a causa da sensação. A intuição está sempre ligada ao que é momentâneo e é a fonte sensível, ligada sempre à singularidade. A representação, de outro lado, traz a elevação do singular ao universal, fazendo com que os tipos singulares trazidos à intuição sejam comparados e conectados no 1 2 Cf. HEGEL, G. W. F. Werke 3: Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, pp. 144-145; HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução Paulo Meneses. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 142. Cf. HEGEL, G. W. F. Werke 10: Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften III. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, §445, p. 245. 95 adriano Bueno Kurle universal, trazendo a separação (característica essencial da representação) entre o singular e o universal. O pensar opera no nível universal e conecta a universalidade dessas singularidades por meio da unificação entre universais, singulares e particulares, operando por meio da atividade de categorização, do silogismo, da inferência e da consciência da unidade dessas categorizações e inferências. 3. O conceito de arte É importante notar que Hegel faz uma analogia entre as funções da arte, da religião e da filosofia, no Geist absoluto, e as funções da intuição, da representação e do pensar, no Geist subjetivo. Disto não se segue, porém, que a arte esteja presa apenas à atividade da intuição. Arte, religião e filosofia têm funções análogas às funções da intuição, representação e pensar. Mas são níveis de autocompreensão do Geist absoluto. Interpreto isto como sendo um nível de compreensão da identidade e unidade das mediações sociais entre subjetividades, que formam (na perspectiva de Hegel) uma unidade subjetiva maior que o indivíduo humano. A arte é análoga à intuição no sentido de que ela é a manifestação sensível da Ideia – que se regula pelo que Hegel chama de Ideal. A primeira forma de percepção deve ocorrer por meio da sensibilidade e da materialidade. No nível do Geist absoluto a criação desta causa sensível se dá por meio do próprio Geist absoluto. Assim a criação artística ocorre por meio da aparição sensível, mas a obra de arte e a própria atividade artística não se limitam a isto: a obra de arte traz uma intenção de significação. O que ela significa é a própria autoconcepção social em busca de uma identidade racional, que é a Ideia. Assim, a arte se desenvolve em três níveis: no nível universal, tem seu conceito determinado pela sua função no Geist absoluto e pela concepção de Ideal; no nível particular representa o nível de desenvolvimento histórico desta consciência-de-si social; e no nível singular é determinada pelo material e seus modos de expressão sensíveis. É com a distinção entre as diferentes maneiras de relacionar forma e conteúdo que Hegel desenvolve o que ele chama de “formas particulares de arte”, que são modos de expressão históricos da consciência artística. Esta depende do modo de concepção e manifestação do conteúdo (o Absoluto) e a maneira como se expressa ou se concebe na realidade material 96 A historicidade da música em Hegel diante do dodecafonismo de Schoenberg e natural (a forma). Hegel distingue entre três tipos de artes particulares: a arte simbólica, a arte clássica e a arte romântica. O desenvolvimento fenomenológico-histórico das artes, neste caminho de relacionar forma e conteúdo, forma uma totalidade das formas de arte, que seguem o percurso lógico do conceito de arte, orientado pelo Ideal, que é a manifestação sensível da ideia (ou o belo-na-arte) Segundo Hegel: Resumiremos estas breves considerações dizendo, pois, que a arte simbólica procura realizar a união entre a significação interna e a forma exterior, que a arte clássica realizou essa união na representação da individualidade substancial que se dirige à nossa sensibilidade, e que a arte romântica, espiritual por excelência, a ultrapassou3. As artes singulares são definidas pelo material (ligado ao sensível e à sensibilidade) em que a expressão artística está ligada. Hegel divide-as em cinco: arquitetura, escultura, pintura, música e poesia. Há uma passagem lógica progressiva de uma arte singular para a outra, de acordo com a regra histórica da particularização da arte: primeiro, as artes visuais que estão mais ligadas ao mundo físico, ao peso da matéria: a arquitetura e a escultura. Estas funcionam principalmente enquanto arte simbólica (no caso da arquitetura) e clássica (no caso tanto da arquitetura quanto da escultura). Já a pintura é a arte visual que passa já pelo processo de interiorização da imagem, e pertence à forma de arte romântica. Esta já se dá com maior liberdade de expressão subjetiva e em apenas duas dimensões. Quando a negação do espaço ocorre, e o movimento de vibração passa unidimensionalmente a representar as relações deste movimento de corpos vibrando, e o relacionamos com o fenômeno do som, chegamos à música. A música também é considerada uma arte romântica, e está presa à temporalidade e à interioridade subjetiva. A arte traz a “sensibilização” ou torna sensível o entendimento. Neste sentido, a música torna sensível uma estrutura histórico-racional e suas transformações – o fato de que esta estrutura racional se compõe de diversas maneiras, mas não apenas formalmente, mas também no jogo 3 HEGEL, G. W. F. Werke 13: Vorlesung über die Ästhetik I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, p. 392; HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 340. 97 adriano Bueno Kurle entre sua composição e sua recepção, o que se dá no contorno social no qual se insere. Por meio deste jogo é que se compõe sua significação (que está ligada a um Weltanshauung, ou visão de mundo). Podemos pensar com Platão sobre a influência da música na constituição e formação emocional e assim, também, de um grupo social. Já na República, Platão fazia a análise entre os modos musicais e a forma que esses afetavam o comportamento4. A partir de Hegel também podemos conceber a música como configurando sentimentos e, por outro lado, também como expressão objetiva destes. Deste modo, a configuração musical pode ser concebida como estrutura objetiva de emoções e suas conexões, de modo que cada música é um entrelaçamento de afecções que, em seu conjunto, formam um “ethos” da obra. O ethos expresso pelo conjunto dessas obras, pelas regras que as determinam (as escolas artísticas, os sistemas de regras – tonal, atonal etc.) e pela compreensão, recepção e discurso que elas geram, manifesta um tempo e uma configuração particular da racionalidade geral – portanto, é uma manifestação histórica. Hegel divide a formação estrutural da música em três partes, a saber: na sua relação com o tempo (temporalidade), enquanto duração, compasso e ritmo5; o segundo é a harmonia (som); e o terceiro a melodia (ou: a alma que anima os sons)6. Foco aqui a análise na harmonia, que é o ponto em que deve-se trabalhar a comparação com a música de Schoenberg. Hegel considera a harmonia como a diferença de altura e duração dos sons, como “sons que variam com as suas propriedades físicas [do corpo que vibra], assim como com a duração e o maior ou menor número das vibrações que ele executa durante um intervalo de tempo determinado [ou seja, altura] [...]7”. Hegel considera este elemento sonoro por meio de três pontos de vista: traduzindo seus termos, podemos dizer que Hegel considera o timbre, a altura e a relação entre as alturas e seus intervalos8. É neste ponto que podemos fazer algumas observações e posteriores 4 5 6 7 8 98 Cf. livros III e IV de PLATãO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém: EDUFPA, 2000. HEGEL, G. W. F. Werke 15: Vorlesung über die Ästhetik III. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990, p. 162. Ibid., pp. 162-163. Ibid., pp. 171-172. Ibid., pp. 171-172. A historicidade da música em Hegel diante do dodecafonismo de Schoenberg comparações no que tange à concepção de Hegel de quais são os elementos básicos para que algo seja música (assim como quais são os elementos mais adequados para a música) com relação a uma concepção específica que (como a própria história da música ocidental, assim como a música global e a antropologia musical mostram) podemos entender como limitada a uma concepção histórica (a saber, a música ocidental anterior ao século XX, ou do período da renascença ao final do romantismo). O ponto onde Hegel reproduz e naturaliza de maneira mais clara o sistema musical enquanto sistema tonal está ligado ao sistema de acordes. Aparentemente, ao tratar sobre música, Hegel se utilizou do conhecimento e das crenças da sua época, sem se questionar sobre o processo de constituição e transformação histórica da música. Sua análise traz alguns elementos filosóficos, como a organização dos elementos musicais a partir de deduções de elementos ainda extra-musicais (por exemplo, o ritmo partindo do tempo, a harmonia partindo do som, etc.), assim como também traz elementos filosóficos como a posição da música com relação à formação da subjetividade e da interioridade, a relação destes com o tempo e com as emoções, assim como uma reflexão crítica sobre como a música não expressa conteúdo claro, apesar do “invólucro” emocional que ela é capaz de dar aos conteúdos, fazendo uma reflexão neste ponto com relação à música de acompanhamento, acompanhada por palavras ou contextos (como a ópera) e a música independente, isto é, fora de qualquer contexto ou relação extra-musical (o que poderíamos chamar de “música instrumental”, mesmo que neste caso a própria voz possa servir de instrumento). Justamente aqui devemos analisar a relação de Hegel com a teoria da sua época, e nos questionarmos sobre o déficit de historicidade na análise de Hegel da música. A análise de Hegel parte dos acordes consonantes, que são definidos por ele como acordes compostos pela tônica, pela terça e pela quinta, e onde não há oposição ou contradição. Nestes acordes “a consonância completa permanece imperturbável9.” É aqui que o conceito de harmonia é “expresso na sua natureza geral do seu conceito10.” Este é o ponto “imediato”, para onde o movimento reflexivo retorna, sendo também o ponto 9 10 Ibid., p. 182. Ibid., p. 182. 99 adriano Bueno Kurle de partida das posteriores mediações. Estas mediações, porém, acontecem apenas por meio de um “distúrbio” da estabilidade representada sonoramente pela consonância, que obriga o movimento musical, espelhando a lógica dialético-especulativa, a retornar sobre si mesma como um movimento fenomenológico que desdobra sua estrutura de acordo com os juízos e as inferências possíveis para atingir o seu telos imanente. Para que possa haver o movimento reflexivo, deve haver a mediação, mediante a perturbação desta identidade imediata pela diferença específica11, que é caracterizada por Hegel pela dissonância, trazida principalmente pela adição de sétima maior ou menor às tríades nos acordes. Muito provavelmente Hegel estava se referindo ao grau V7, acorde que traz em si tanto a sensível melódica da tônica (ou seja, aquela nota que funciona como sétima maior da tônica, como o “si” em relação ao “dó” – supondo que o tom central da escala seja “dó”) assim como traz uma dissonância causada pelo intervalo de trítono entre a sua terça e a sétima menor no acorde (em uma escala de “dó maior”, o quinto grau é o “sol”, e o acorde dominante de “sol” é formado por “sol-si-ré-fá”, soando uma quinta diminuta, ou seja, o trítono, entre o si e o fá – e vice-versa, uma vez que esta relação é simétrica). O movimento musical deve espelhar a estrutura do conceito, e assim deve conter, em si, os três momentos lógicos do pensamento: o momento imediato do em si (tom, consonância), o para si ou a diferença específica (dissonância, mediação), e a resolução deste movimento por meio da sua resolução no retorno à tônica e à consonância (o momento em que a consonância se mostra como resolução necessária, mas que contém a dissonância, sendo agora ambos unidos através do conjunto desta mediação, o momento do em-si-e-para-si). As dissonâncias não podem manter-se, pois […] elas só dão ao ouvido a contradição, que clama por sua solução, para trazer a satisfação para o ouvido e para a mente. Com a oposição é dada imediatamente a necessidade [Notwendigkeit] da resolução [Auflösung] desta dissonância e um retorno à tríade. Este movimento como retorno da identidade sobre si é em geral o verdadeiro12. Este movimento está relacionado com uma necessidade imanente da relação entre os próprios sons e a sua lógica implícita, que, como 11 12 100 Cf. Ibid., p. 182. Ibid., p. 184. Grifos nossos. A historicidade da música em Hegel diante do dodecafonismo de Schoenberg vimos, deve resolver a contradição, sendo essa expressa musicalmente pela suposta perturbação causada pela dissonância. Sendo assim, o próprio encadeamento de acordes tem seu campo de relações delimitado por esta necessidade, que abre um campo de inferências (encadeamentos harmônicos e desenvolvimentos melódicos) possíveis, assim como torna inviável e proibido (ou, ainda, sem sentido ou contra a lógica) certas relações, visto que estas não podem ser simplesmente mediadas pelo arbítrio, mas “o movimento de um acorde para outro acorde deve tomar parte na natureza do acorde mesmo, da clave [Tonarten], no qual estas passagens estão baseadas13.” 4. Historicidade e o caso Schoenberg No início do século XX, passa-se por buscas de novos caminhos para a música, que podem, de modo simplificado, ser divididos em buscas de fuga do tonalismo por meio de busca por temas folclóricos (que têm ou teriam caráter modal) ou pela fuga sistemática do modelo tonal, mediante o atonalismo e sistematizações afins. Mesmo em movimentos mais contínuos ao tonalismo encontramos constantes suspensões e dissonâncias que, se comparadas com o modelo classicista tradicional (que pode ser entendido como representante “pleno” do modelo tonal), fogem das regras e tendências centrais. A música feita à margem do sistema tonal apenas toma significado e forma por meio do paradigma tonal – é construído nele. Diferentemente, o sistema que se lhe contrapõe é construído contra ele. Neste sentido, ambos estão em relação com o sistema tonal, mas um como lhe pertencendo imanentemente e outro extrinsecamente. É essa última a situação da música atonal de Schoenberg. Este novo modelo traz consigo novas formas de compreender a música e de perceber seus elementos fundamentais, como seus ritmos e seus intervalos – assim também a relação entre consonância e dissonância. Pode-se entender que a percepção musical não pode ser explicada apenas por uma relação entre natureza e homem, mas estas percepções mesmas são constituídas de acordo com a construção dos objetos que lhe estimulam. Considerar que alguns intervalos musicais ou algumas confi13 Ibid., p. 184. 101 adriano Bueno Kurle gurações de música são recorrentes pois são inatos à relação do homem com a natureza, ou são objetivos na natureza, ou são configurações inatas subjetivas, é um modo de pensar que desconsidera a variação da compreensibilidade humana e confunde limites de compreensão com ideia de perfeição. Ideias de perfeição são baseadas em construções históricas, e ainda que se pudesse almejar encontrar algum modo de configuração musical que pudesse de fato expressar uma espécie de perfeição, disto não se segue que a música e a sua compreensibilidade se reduzam à busca pela perfeição. Pela variedade dos significados e sensações que a música traz, pode-se relacionar as configurações musicais com algo de externo a ela: modelos de compreensão e racionalidade. Entende-se aqui que o termo “racionalidade” envolve expressões e configurações sociais que influenciam e são influenciados por emoções e sentimentos. O medo ou a tensão que uma determinada imagem ou intervalo sonoro cause pode estar ligado aos hábitos e ao imaginário de grupos sócio-históricos. Da mesma maneira, quando um modelo se repete até a exaustão e se esgota, mesmo aquilo que inicialmente seria rejeitado como “desagradável” passa a fazer sentido, pois a relação humana com a arte e com a música envolve não apenas a busca pelo prazer, mas a autocompreensão, a construção social e o desenvolvimento da diversidade racional e estética. Assim que podemos pensar que a música atonal, embora utilize intervalos tidos como desagradáveis e tenha uma sonoridade muitas vezes tensa, possa se tornar interessante em uma época em que um modelo musical chegou ao esgotamento (a saber, a música tonal). A incompreensão ou rejeição de certas produções artísticas pode também, em conjunto com a análise das razões de sua produção, expressar os modos de racionalidade do tempo e da sociedade em que acontece. Por isto a música atonal de Schoenberg e sua escola podem ser compreendidas como a necessidade da negação de um modelo específico de sistema de produção (o modelo tonal) e à falta de reconhecimento do esgotamento deste sistema mesmo. Enquanto a música tonal é constituída de acordo com a apropriação e sistematização de uma série de relações que, uma vez assimiladas por uma racionalidade social, passam a ser tendentes à reprodução (seja na produção, seja na reprodução), a música atonal deve buscar seu meio de 102 A historicidade da música em Hegel diante do dodecafonismo de Schoenberg negação por meio da compreensão do próprio sistema tonal. A música atonal se constitui por meio de uma análise interna do próprio sistema tonal, buscando seus pontos de fuga. Portanto, a música atonal é expressão dos “restos” sistematizados negativamente da própria música tonal. A forma particular de arte romântica, em Hegel, é o nível de consciência artística onde o conteúdo se prende à interioridade, à subjetividade e à liberdade dessa, que é posta enquanto o infinito (o bom infinito) do Geist, isto é, sua contínua capacidade de autotranscendência. A arte romântica se realiza em um estágio cultural onde a externalidade é posta como secundária e não essencial, sendo porém necessário o material externo para a expressão do conteúdo que esta arte manifesta, isto é, o interno não pode ser manifesto artisticamente senão através da externalidade, o infinito do Geist não pode ser manifesto artisticamente senão através da finitude da singularização. Ora, o limite desta possibilidade de autonomização do sujeito diante do material externo (e da suposta “naturalidade” da própria constituição da percepção artística subjetiva) é o que vai determinar como pode a filosofia da arte de Hegel se comportar diante do evento da música dodecafônica de Schoenberg. No momento que a arte atinge autonomia plena diante de seu material, tendo sua significação e suas possibilidades de expressão ido além dos limites impostos pela externalidade, teríamos que aceitar que a arte de Schoenberg se encaixa perfeitamente na concepção hegeliana de arte romântica (como, também, toda forma de música). A questão, aqui, é quando e onde – se no cume ou no estágio de decadência. Uma vez que questões como as ideias de consonância e dissonância, de tonalidade e toda a estrutura das relações entre melodia, harmonia e timbre são questionadas por Schoenberg, assim como a própria naturalização da percepção e da intuição artística, temos uma relação desta atitude com o espírito do que Hegel chamou de forma de arte romântica. De outro lado, a tendência do pensamento de Hegel é articular diferenciações para, ao fim, articular formas de reconciliação entre aqueles elementos que se colocam externos um ao outro. Aqui, ao fim, deveríamos encontrar na arte uma reconciliação do Geist consigo mesmo, assim como do Geist com a natureza. O que nos parece, porém, é que tanto o dodecafonismo de Schönberg (e, assim, a forma de razão da música atonal) quanto a forma de arte romântica não tem como finalidade e consequência nenhuma forma de reconciliação, a não ser que 103 adriano Bueno Kurle esta reconciliação seja entendida, em Hegel, como o caminho que leva da arte para a religião – ou que a própria forma da interioridade seja o meio da reconciliação entre subjetividade e substancialidade, entre infinito e finito, entre liberdade e dependência, entre Geist e natureza. Teria, porém, a arte chegado ao seu estágio de negação de sua substancialidade espiritual mediante uma espécie de forma niilista, que atestaria sua decadência? Ou, mais ainda, seria este niilismo mesmo uma expressão artística válida para expressar a forma e o conteúdo mesmo do Geist absoluto na primeira metade do século XX, sendo a suposta “reconciliação”, tão aclamada por Hegel, uma falsa promessa na história? Além disto: poderia a música dodecafônica ser considerada uma forma musical do niilismo? É a estrutura da razão atonal, manifesta na música enquanto forma particular da razão, uma estrutura que aponta para a negação do conteúdo, ou ela mesma é uma nova estruturação de um conteúdo positivo? Ou seria possível, por meio da estrutura atonal, pensar ainda a possibilidade de um novo conteúdo? 5. Conclusão Concluo deixando estas questões em aberto, apenas apontando para o caso de que há um paradoxo na relação entre a esperança de significação expressa na arte e a ideia hegeliana de que a arte não toma mais parte na geração de novos significados e níveis de autoconsciência após o advento da filosofia e da sociedade moderna. De outro lado, tanto a arte (em geral) quanto a música (em específico) demonstram, a partir do início do século XX, que existem novos caminhos a serem explorados, que suas técnicas e ferramentas estão ligadas à tentativa de trazer novas significações que estão ou estariam já presentes na vida cotidiana, e que precisam de novas formas de expressão para virem à luz. Em Hegel tem-se, porém, arte, religião e filosofia em uma relação em que uma não anula a outra: elas se complementam necessariamente. Apesar disto, há uma hierarquização. Se compreende-se, porém que há a possibilidade de tornar pensamentos intuitivos, em vez de apenas tornar intuições pensamentos, então temos uma possibilidade aberta para, em analogia, pensar uma relação de retroalimentação entre filosofia e arte. Para Hegel “A intuição é, pois, apenas o começo do conhecimento14.” E ainda 14 104 Enz., §449, Zusatz. A historicidade da música em Hegel diante do dodecafonismo de Schoenberg O conhecimento pleno só pertence ao puro pensar da razão conceituante; só quem se elevou a esse pensar possui uma intuição verdadeira, completamente determinada; nele a intuição constitui simplesmente a forma genuína em que seu conhecimento, plenamente desenvolvido, de novo se concentra15. Deve-se ainda considerar que No sentimento [Empfindung] está presente a razão toda – o material completo do Geist. A partir de nossa inteligência que sente se desenvolvem todas as nossas representações, pensamentos e conceitos sobre a natureza externa, o jurídico, o ético, e o conteúdo da religião; como também inversamente, depois que tiveram sua plena explicitação, se concentram na forma simples do sentimento. Por isso um antigo disse, com razão, que os homens formaram para si os seus deuses a partir de seus sentimentos e paixões. Mas esse desenvolvimento do Geist que parte do sentimento costuma entender-se como se a inteligência estivesse de todo vazia, e portanto recebesse todo o conteúdo de fora, como se ele fosse totalmente estranho. Isso é um erro. Com efeito, no que a inteligência parece acolher de fora, na verdade, não é outra coisa que o racional; por conseguinte, é idêntico ao Geist e imanente ao mesmo. A atividade do Geist, portanto, não tem outro fim que refutar, pela superação do aparente ser-exterior-a-si-mesmo do objeto [Objekt] em si racional, a aparência de que o objeto [Gegenstand] é algo de exterior ao Geist16. Poder-se-ia pensar que a filosofia de Hegel clama por um pico onde o pensar supera e deixa de lado o sentimento, que passa a ser apenas algo que traz o caminho ao pensar, mas que uma vez superado, não tem mais nenhuma função. De modo análogo pode-se pensar a relação entre arte e filosofia na cultura. Porém, isto não parece coerente com a proposta hegeliana. Um pensamento dialético mantém sempre a relação. Desta forma, pode-se pensar que há sempre novos conteúdos intuitivos, assim como o próprio pensar conceitual é capaz de elaborar tentativas de fazer-se intuitivo – uma vez que a mediação do pensar, ao fim, retorna a um modo intuitivo. Assim, poder-se-ia pensar que os novos conteúdos culturais trazidos no nível do Geist absoluto, ao longo da história, podem e devem ser 15 16 Enz., §449, Zusatz. Enz. §447, Zusatz. Grifos do autor. 105 adriano Bueno Kurle expressos pela arte no caminho de torná-los intuitivos. A função da arte, porém, não é mais, na modernidade, a mais elevada, e assim a arte deve sempre estar em relação com o pensar filosófico e conceitual. Por fim, uma vez que a música não trata de conteúdos objetuais, mas do próprio sentimento e das demais configurações interiores da subjetividade íntima, podemos compreender que a música, enquanto forma artística, traz a forma do sentimento interior de uma subjetividade social, uma forma de sentir e compreender os sons que se transforma ao longo do tempo – e que tem, portanto, história. Desta forma, o início do século XX, na música, revela com Schoenberg e outros compositores novas configurações desta subjetividade social. De outro lado, ainda se deve aprofundar a relação entre Ideia lógica e história, de forma a conceber qual o papel da arte e da música na contemporaneidade, mediante o pensamento de Hegel. Esta tarefa, porém, ainda deixo em aberto. 6. Referências BERTRAM, G. W. Kunst: Eine philosophische Einführung. Stuttgart: Philipp Reclam, 2011. CANDÉ, R. História Universal da Música. 2 volumes. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CARPEUX, Otto Maria. O Livro de Ouro da História da Música: Da Idade Média ao século XX. 5ª edição. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1996. HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O sistema das artes. Tradução de Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1997. HEGEL, G. W. F. Die Idee Und Das Ideal. Org. Georg Lasson. Leipzig: Meiner, 1931. HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio: 1830. 3 volumes. Tradução de José Machado e Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1997. 106 A historicidade da música em Hegel diante do dodecafonismo de Schoenberg HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução Paulo Meneses. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Kunst. Org. Annemarie Gethmann-Siefert. Hamburg: Meiner, 2003. HEGEL, G. W. F. Werke 3: Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989. HEGEL, G. W. F. Werke 8: Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. HEGEL, G. W. F. Werke 10: Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften III. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. HEGEL, G. W. F. Werke 13: Vorlesung über die Ästhetik I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989. HEGEL, G. W. F. Werke 14: Vorlesung über die Ästhetik II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990. HEGEL, G. W. F. Werke 15: Vorlesung über die Ästhetik III. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990. NOWAK, Adolf. Hegels Musikästhetik. Regensburg: Bosse, 1971. NOWAK, Adolf. Philosophische und ästhetische Annäherung an die Musik. In: Herbert Bruhn, Helmut Rösing (org.): Musikwissenschaft: Ein Grundkurs, Hamburg 1998, pp. 50-70. OLIVIER, Alain Patrick. Hegel et la Musique. Paris: Libraire Honoré Champion, 2003. PLATãO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém: EDUFPA, 2000. SCHOENBERG, A. Harmonielehre. 3ª ed. Wien: Universal-Edition, 1922. SCHOENBERG, A. Style and Idea. New York: Philosophical Library, 1950. 107 Excrever a multiplicidade: a “filosofia primeira” de Jean-Luc Nancy Carlos Cardozo Coelho1 (PUC-Rio) Vivemos na época dos fins: e a morte de Deus anunciada por Nietzsche é talvez a grande constatação deste tempo, ela abre terreno para toda uma época: a nossa. Depois de Deus morto o que nos resta a pensar? Neste mundo no qual não há mais segurança conferida por um Ser supremo, seria então o homem a medida de todas as coisas? Ou seria a pretensão de Verdade e objetividade da Ciência o fio restaurador de algum tipo de segurança ontológica? Podemos colocar diversos conceitos no lugar de Deus, mas é a própria ideia de centro que deve ser destruída. Freud, Saussure e Lévi-Strauss foram aqueles que receberam e continuaram a missão de Nietzsche, ambos pensaram como martelo e anunciaram, cada um a seu modo, a morte do homem, concluindo o trabalho desconstrutor iniciado por Nietzsche ao atacarem a compreensão de homem enquanto centro do universo, desconstruindo conceitos como “consciência”, “sujeito”, “sentido” etc. Seja o inconsciente pulsional de Freud, seja o inconsciente estrutural de Saussure e Lévi-Strauss o que está em jogo é um deslocamento, um novo paradigma de pensamento se instalando e contaminando a metafísica ocidental e o triplo monoteísmo. Como disse o antropólogo francês num debate público com o hermeneuta Paul Ricoeur em 1963: “o sentido resulta sempre da combinação de elementos que não são eles mesmos significantes. [...] na minha perspectiva, o sentido não é nunca um fenômeno primeiro: o sentido é sempre redutível. Dito de outra forma, por trás de todo sentido há um não-sentido, e o contrário não é verdadeiro”. (Esprit, nov. 1963, número spécial, p. 637). Ou seja, depois do fim de Deus, chegamos ao fim do homem e com ele o fim do sentido, ou ao menos, de uma certa concepção de sentido, o “fim do mundo do sentido” enquanto envio a uma transcendência, a um Fora do mundo. 1 Bolsista do CNPq; bolsista sanduíche pela CAPES em 2015. 108 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 108-115, 2017. Excrever a multiplicidade: a “filosofia primeira” de Jean-Luc Nancy Na esteira disto que chamamos de revolução estrutural, vieram os pensadores ditos “pós-estruturalistas”, sendo Foucault, Deleuze e Derrida os mais notáveis. O que estes três têm em comum é, não por acaso, além de uma crítica radical a ideia de sujeito e a metafísica tradicional, uma relação (em alguns casos mais conflituosa do que em outros) de herança primeiramente com Nietzsche, mas também com Freud, Marx, Saussure e Lévi-Strauss. Podemos dizer que os três deram continuidade, radicalizaram ou deslocaram, de maneira brilhante, esse novo continente de pensamento aberto pelos seus antigos mestres e é no interior deste campo conceitual que este texto encontra o seu solo, a sua terra para transitar. Depois da morte de Deus, do fim da arte, do fim do homem, do fim da história e de todos os fins que a nossa época apocalíptica se engaja e engendra o que nos resta a pensar, ou melhor, o que nos resta a findar? Eu diria que vivemos na época em que pensamos o “fim do mundo”, mais especificamente, o fim do “mundo do sentido”. O sentido não pode ser mais entendido como um envio unilateral a um mundo inerte e imutável, a um referente que se manteria passivo em relação a nossa linguagem, ou como envio a um Deus que o tenha criado, desta forma não podemos mais manter nosso conceito de mundo tal qual era apresentado. Repensar o próprio sentido nos incumbe e nos engaja no movimento de repensar também aquilo que compreendemos por mundo. Assim, o fim do “mundo do sentido” que vivemos atualmente é consequência da revolução estrutural e nos engaja, depois da desconstrução deles na reconstrução destes dois conceitos, a saber, o que é o sentido e o que é o mundo depois deste(s) fim(s)? Podemos ainda o dizer assim: enquanto o mundo estava essencialmente em relação com um outro (com um outro mundo ou com um autor do mundo), ele podia ter um sentido. Mas o fim do mundo, quer dizer que ele não tem mais esta relação essencial, e que ele não tem mais essencialmente (isto é, existencialmente) nada além que o mundo “ele mesmo”. Então o mundo não tem mais sentido, ele é o sentido. (NANCY, 1993, p. 19) Isto é, o sentido não vem de nenhum lugar outro que do próprio mundo, seja de Deus, seja do Homem, pensado como separado da natureza. Não há nenhuma transcendência distante que lhe garanta a existência e que lhe 109 Carlos Cardozo CoelHo seja doadora de sentido, pelo contrário, o mundo é o próprio sentido. Desta forma eu diria que hoje, mais do que nunca, podemos dizer com Marx que não se trata de interpretar o mundo, mas de transformá-lo. O que está em jogo não é mais nenhuma interpretação, exegese ou hermenêutica. A ideia de interpretação está ainda engajada naquilo que Derrida chamou de metafísica da presença e Deleuze de representação, na ideia de que existe algo fora da linguagem que é estéril e inerte, e que o que faríamos é dar nomes diferentes, ou nos relacionarmos de maneira diferente com essa mesma coisa, com a coisa mesma. Nesta concepção existiria uma pluralidade de olhares, mas apenas uma coisa a qual estes olhares se direcionariam. A ideia de multiculturalismo, por exemplo, está engajada na variação dos modos de existência dos homens e na variação de suas linguagens, mas na inércia e na passividade de uma natureza que não se altera e que suporta estas culturas e não é nada além que um suporte. Ao contrário, dizer que o sentido do mundo não está em nenhum outro lugar que no próprio mundo implica dizer que não há nada de fora do nosso mundo para nos remetermos, nós nos remetemos sempre ao mundo, mas no mundo, pois somos, nós mesmos, mundo. Esta argumentação implica numa coisa muito simples: mudar o sentido não quer dizer mudar de interpretação ou de olhar sobre uma mesma coisa, pelo contrário, mudar o sentido implica em mudar o mundo, mudar a natureza, mudar a estrutura existencial, em suma, implica em transformar! Esta é uma lição crucial para quem se filia no interior de uma tradição de pensamento a qual eu me engajo, a tradição estruturalista. 110 “Transformar” deve querer dizer “mudar o sentido do sentido”, seja, ainda uma vez, passar do ter ao ser. O que quer dizer que a transformação é uma praxis, não uma poiesis, uma ação que efetua o agente, e não a obra. O pensamento do sentido do mundo é um pensamento que devém ele mesmo, no curso de seu pensamento, indiscernível de sua praxis, que se perde tendencialmente como “pensamento” na sua própria exposição no mundo, ou que se excreve, que deixa o sentido lhe conduzir, sempre, um passo a mais, fora da significação e da interpretação. Um passo a mais, sempre, e na escritura do pensamento um traçado a mais que a escritura ela mesma. É isto também, e singularmente desde Marx e Nietzsche, o “fim da filosofia”: como o fim do mundo do sentido abre a praxis do sentido do mundo. (NANCY, 1993, p. 19) Excrever a multiplicidade: a “filosofia primeira” de Jean-Luc Nancy Antes de realizarmos qualquer juízo acerca do “fim da filosofia” devemos nos empenhar em compreender em que está engajada toda e qualquer filosofia, isto é, qual o seu traço distintivo? Eu diria, de maneira bem simplória e grosseira, utilizando apenas uma palavra: o incondicional, isto é, a busca por aquilo que é sem condições e que antecede qualquer cadeia existencial. Sem me prolongar eu diria que o “fim da filosofia” é o fim de um pensamento que busca a certeza em algo de imutável e primeiro, de uma verdade com V maiúsculo. Desta forma, com a morte de Deus e o fim dos grandes conceitos metafísicos que ocupariam o papel de fundamento e de origem, a filosofia acabaria junto? Para muitos colegas que se debruçam sobre esta temática e partilham comigo um certo campo conceitual, o fim dos grandes conceitos implica também no fim da filosofia e da ontologia, abrindo espaço para outros pensamentos como, por exemplo, o pensamento da poesia, ou da literatura, ou algo que sempre me pareceu estranho e confuso, como uma pós-filosofia. Eu diria a estes colegas, alias, lhes digo agora: não, o fim e a crítica aos grandes conceitos metafísicos não engendra necessariamente um fim da filosofia, ao menos não enquanto busca pelo incondicional. Pelo contrário, esta “crítica”, ou melhor, para usar o termo mais adequado, a desconstrução da metafísica da presença e do primado da Origem abriria espaço para pensar a existência de outra forma, abriria espaço para criarmos outra ontologia que suportaria uma pluralidade infinita de cosmologias – de origens –, partindo de uma ideia simples: a única coisa que há de incondicional é que não existem condições previamente dadas. Ou seja, na origem há a pluralidade, o mais de Um. Desta forma a filosofia se mantêm engajada na sua busca, no seu movimento mais próprio, nos possibilitando de repensar a nossa existência outramente. Nem a Filosofia redentora, nem o fim da filosofia enquanto especulação existencial, cabe a nós repensar o que é o sentido neste mundo sem condições dadas. Como disse Nancy, o fim do mundo do sentido abre espaço finalmente para pensarmo o próprio sentido do mundo não remetendo a uma transcendência distante e estéril, a um Fora que daria todo sentido a qualquer Dentro. Mas, como veremos, o fora só se efetua no interior de um mundo. 111 Carlos Cardozo CoelHo O sentido é o reenvio (a referência, a relação, o endereçamento, a recepção – a sensibilidade, o sentimento). Um mundo é a totalidade de reenvios, mas ele próprio não reenvia a nada de outro. Os mundos no interior do mundo – os mundos, por exemplo, do círculo polar ou da música indiana clássica, os mundos de Goya ou de Wittgenstein, das redes ou dos transistores – formam “o” mundo reenviando uns aos outros: mas “o” mundo não reenvia a nada. Não há outro mundo, não há além-mundo nem “além mundos” (Nietzsche). O que quer dizer que não há reenvio último para a rede de reenvios do mundo, e que não há portanto Sentido (último) do sentido ou dos sentidos. E continua Nancy, Não há sentido do sentido: não é, feitas as contas, uma proposição negativa. É a própria afirmação do sentido – sensibilidade, sentimento, significação: a afirmação de acordo com a qual existentes do mundo, reenviando uns aos outros, abrem para o inesgotável jogo dos reenvios – e para nenhuma espécie de apresamento a que se chamaria “sentido da vida”, “sentido da história”, ou ainda “salvação”, “felicidade”, “vida eterna”, como tão pouco para a imortalidade que seria a das obras, que não são elas mesmas senão formas e maneiras de reenvio. Em contrapartida, a verdadeira imortalidade – ou eternidade – que é a nossa, é precisamente dada pelo mundo enquanto lugar de reenvio mutuo infinito. (NANCY, 2014, pp. 26-27) Não há sentido do sentido quer dizer simplesmente isto: o sentido está aqui, ele é aqui, entre nós, de um a outro. O que Nancy faz aqui e o que no seu pensamento nos interessa é a torção do conceito de sentido, o sentido não designa e nos envia a nenhuma transcendência Fora do mundo, mas nos mostra que o sentido é sempre reenvio, isto é, ele não é um envio originário, nem envio ao Originário, mas ele é este jogo de remessas sem começo e sem fim dos existentes, Derrida chamaria isto de escritura – o jogo dos rastros. Eu me endereçando a vocês, vocês partilhando um espaço no mundo, aqui e agora, comigo, se endereçando a mim neste mundo que partilhamos, pois só há mundo no interior da partilha que nós somos. Dizer que não há um Fora absoluto não implica em dizer que não existam alteridades e fora(s), pelo contrário, é dizer que toda transcendência se efetua 112 Excrever a multiplicidade: a “filosofia primeira” de Jean-Luc Nancy no interior de um mundo, no interior de um plano no qual os entes se relacionam e fazem mundo. Nancy chama este movimento, o Fora acontecendo Dentro, de transimanência: o infinito só se efetua no interior do finito. Cada ente que compõe este mundo é finito e absolutamente singular, mas este finito não é o finito da privação, pois ele carrega em si o infinito, que é a sua abertura para todos os outros entes do mundo. O sentido nada mais é do que essa abertura para todos os outros entes, é estar no jogo de remessa que é a existência, é se abrir ao infinito que é o fora, mas este infinito só se manifesta e se efetua, vale insistir, no interior de um mundo e é nele que experienciamos qualquer coisa ou qualquer tipo de relação. “O sentido do mundo” não designa o mundo como algo a que nós viríamos a conferir um sentido. Neste caso o mundo seria fora do mundo […]. Este “fora do mundo” foi ocupado antigamente pelo Deus da ontoteologia. Este Deus, […], é o conceito de um lugar sem lugar, se o “fora do mundo” só pode ser fora da totalidade de lugares. Só o Deus de Spinoza, pela sua equivalência estrita com a “Natureza” escapa a esta contradição. […] Deus sive natura, não enuncia apenas, pelo sive, dois nomes para uma mesma coisa, mais do que isso ele enuncia que esta coisa mesma tem seu fora dentro. Por isso Spinoza é o primeiro pensador do mundo. (NANCY, 1993, p. 90) E continua o filósofo francês, Desde que a aparência de um fora do mundo é dissipada, o fora-de-lugar do sentido se abre no mundo – se há ainda sentido falar de um “dentro” – ele pertence a sua estrutura, ele escava isto que deveria se saber nomear melhor que a “transcendência” de sua “imanência” – sua transimanência, ou mais simplesmente e fortemente, sua existência e sua exposição.O infinito no finito. A finitude enquanto abertura ao infinito: nada mais está em jogo. (NANCY, 1993, p. 91) Até aqui podemos chegar a algumas conclusões: o sentido é sempre reenvio entre os entes e este reenvio entre os entes faz o mundo. Cada ente finito só tem o seu sentido na medida em que se relaciona com todos os entes do seu mundo, é assim que ele se singulariza, no interior da pluralidade. Um ente vale pela posição – pelo lugar – que ocupa em relação as outras posições dos outros entes. Se você desloca um ente de um mundo, você desloca o mundo inteiro, mas vale lembrar, há mais de um mundo, é 113 Carlos Cardozo CoelHo por isso que todo singular é sempre plural e todo plural é também singular. Duplo movimento da existência que é sempre comum. O comum não se associa nem dissocia, não rene nem separa, não é nem uma substncia nem um sujeito. O comum é que ns somos – este termo tomado no seu pleno teor ontológico – no reenvio de uns aos outros (ainda aqui, deixemos os outros existentes). O elemento deste reenvio é a linguagem. Esta endereça-nos uns aos outros e endereça-nos todos juntos ao que faz essencialmente surgir: o infinito de um sentido que nenhuma significação preenche, e que, diga-mo-lo desta vez, envolve com os homens a totalidade do mundo com todos os seus existentes. (NANCY, 2014, p. 14) Assim, O sentido do mundo não é nada de garantido, nem de antecipadamente perdido: joga-se inteiramente no reenvio comum que, de certo modo, nos é proposto. Não é “sentido” por tomar referências, axiomas ou semiologias fora do mundo. (NANCY, 2014, p. 15) Lembremos: a condição mínima para a existência é que exista mais de um e, entretanto, que exista menos do que o Um (com letra maiúscula). Isto é, não existe um que não seja definido antes por uma multiplicidade que o antecede e o determina, eu só sou algo como um “eu” pois existem diversos outros entes no mundo, por exemplo, eu aprendi a falar esta língua que me endereço a vocês no interior de uma relação com outros entes humanos, como a relação com a Tia Mônica, minha primeira professora que me ensinou a escrever, eu estou sempre em relação com um infinito fora de mim, que fazem comigo o mundo que habito. Da mesma forma, esta unidade que cremos existir como aquilo que me diferencia de todos os outros entes, pode ser dividida em infinitas outras unidades que cremos menores: eu sou este corpo que não cessa de se individuar, eu possuía dentes que me deixaram e passaram a não constituir mais minha unidade ficcional, eu tenho dois braços, um coração e carrego no meu inconsciente uma legião, carrego como lembrança tia Mônica, carrego meus pais, carrego o senhor de meia idade que me resgatou do mar quando tinha cerca de 7 anos, mas carrego também as ondas violentas que me fizeram não conseguir chegar a praia sozinho, carrego odores, paladares, copos com- 114 Excrever a multiplicidade: a “filosofia primeira” de Jean-Luc Nancy partilhados com amigos, em suma, somos sempre determinados pelo(s) outro(s) e não apenas o outro humano, mas pelo mundo que nos cerca. Em suma, a existência é mais de um e, entretanto, menos que um. Neste sentido, diante dos tempos, me perdoem pelo trocadilho, Temerosos em que vivemos, mais do que nunca precisamos combater e desconstruir o triplo monoteísmo e todas as filosofias que pensam a transcendência como foi pensada pela ontoteologia e acabar com a ficção que é o conceito de indivíduo, pois como já dissemos, todo existente só é/existe na medida em que se relaciona com os outros existentes, e assim lutar por outra ontologia – pois para outra politica que não a que governa nosso tempo mundial, precisamos antes (ou junto, para ser mais preciso) de outra ontologia. Assim, o que tentamos fazer aqui é combater o pensamento da transcendência e o individualismo – este atomismo sem clinâmen – afirmando o “mais de um”, afirmando a multiplicidade como origem do mundo. Enfim, eu encerro este texto com a resposta que um homem possuído por demônios deu a Jesus Cristo, o filho de Deus, ao ter sua identidade questionada: “Legião é o meu nome, porque somos muitos” (Marcos 5 1-20), após dizer isso, Jesus tocou neste homem e o fez voltar a ser Um, entretanto, contra este toque, acrescento ao que este homem disse: somos todos legião, e devemos destruir – desconstruir – o pensamento que denega o nosso nome. Desta forma, eu diria – contra os filósofos dogmáticos, contra o Fora absoluto e também contra este senhor que se chama Fora e cujo sobrenome é Temer – que a filosofia que proponho aqui é uma filosofia demoníaca, contra a identidade, afirmamos a legião que cada “eu” é. Referências Esprit, « La pensée sauvage et le sctructuralisme », exposés de J. Cuisenier, N. Ruwet, M. Gaboriau, P. Ricoeur suivis d’une discussion avec Cl. Lévi-Strauss (« Reponses à quelques questions »), Paris, nov. 1963, número spécial. NANCY, J-L. Adoração: Desconstrução do Cristianismo II. Trad. port. de Fernanda Bernardo. Coimbra: Pallimage, 2014. ______. Le sens du monde. Paris: Galilée, 1993b. 115 O conceito de afeto como critério filosófico Rafael Mófreita Saldanha (UFRJ) Self-consciousness is the lamp of the whole system of knowledge, but it casts its light ahead only, not behind. Schelling, System of transcendental philosophy Pode-se afirmar sem muito problema que, ao longo de toda a história da filosofia, não passou em branco o fato de que os homens eram atravessados por “estados”, “disposições” que não só os dominavam (isto é, eram incapazes de lutar contra eles) como muitas vezes os determinavam a tal ou tal posição (limitavam o seu escopo de ação ou reflexão) – deixando os homens distantes dos caminhos que a reta razão em tese ditaria. A raiva que cega, o amor que perdoa são, pois, apenas algumas das tópicas clássicas que acabarão por formar esse campo que trata dos afetos (ou paixões). Esse campo dirá respeito a esses fenômenos que supostamente perturbariam uma serenidade natural do homem podendo chegar ao ponto dele perder um domínio que ele teria sobre si mesmo. É o atravessamento do homem por algo que não só está fora do controle dele como pode acabar com todo e qualquer controle. É a formação da figura da paixão como oposta à razão. O retrato do homem virtuoso e racional desliza para aquele retrato do homem tranquilo, incapaz de ser dominado pelas paixões enquanto o homem passional assume as vestimentas do viciado, do incapaz de ser dominante. No entanto, nesse ponto é possível apontar uma diferença que se estabelece a partir da modernidade no que diz respeito aos afetos. Se em diversos momentos esboçou-se aquilo que a modernidade teria a dizer sobre os afetos de maneira dispersa, foi apenas a partir do momento que se procurou estabelecer uma ciência dos afetos, tal como buscaram Descartes e Espinosa, que se abriu as portas para uma pragmática dos afetos que abrisse mão dos fantasmas de uma antropologia racionalista, isto é, de uma antropologia que apontasse para um ideal de homem absolutamente racional. Com eles temos, porém, o começo de uma compreensão dos afetos não mais como vícios ou virtudes. Ao ten- 116 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 116-131, 2017. O conceito de afeto como critério filosófico tarem entender o funcionamento dos afetos e das paixões para além do campo moral, temos a possibilidade de começar a conceber novamente uma prática ético-política com os afetos mais efetiva (livre dos moralismos) e menos envergonhada. Tomar os afetos como experiência central para a reflexão sobre as nossas possibilidades ético-políticas não é um gesto totalmente arbitrário. Quero atentar aqui sobre como o conceito de afeto, tal como Bento de Espinosa, principalmente, o desenvolve, pode operar como uma espécie de alavanca arquimediana para os problemas com que estamos tentando lidar, ou seja, como compreender a prática filosófica como uma operação que visa produzir uma boa vida. Para isso será necessário estabelecer um critério para essa vida. O que se pretende fazer aqui é, portanto, uma experimentação, tentar entender o que se produz quando tomamos os afetos como critério, que sistema)) é criado a partir de tal junção e que efeitos ele produz na realidade. A operação realizada aqui se aproxima menos de uma descrição e mais de um como se, visto que a máquina filosófica só nos interessa na medida em que os efeitos que ela produz são férteis para nós. Gostaria de trabalhar no seguinte trabalho a importância dos afetos e seu valor enquanto critério para a filosofia a partir da filosofia de Bento de Espinosa. Quando falo de critério, falo de algo que poderia orientar a construção conceitual, que pode servir como um eixo estável para podermos filosofar. Para realizar tal empreitada, porém, é necessário nos atermos ao seu conceito de afecção, pois é nesse ponto que vemos como se dá toda e qualquer experiência se dá no pensamento de Espinosa. Se o nosso foco é o afeto, vemos rapidamente que qualquer tentativa de falar dele sem passar pelo conceito de afecção nos deixa sem muito para onde ir. Assim sendo, escolheu-se desenvolver de maneira mais clara esse ponto do pensamento espinosano, para que possamos estar mais bem equipados para uma investigação futura no campo dos afetos. Dito isso, iremos analisar nesse texto tanto o que são as afecções como os três gêneros de conhecimento delas e como esses três gêneros se relacionam entre si. * As afecções podem ser entendidas como o ponto em que somos determinados por outro corpo (ou a ideia de outro corpo), ou seja, em 117 rafael Mófreita saldanHa que um outro corpo (ou a ideia desse corpo) produz um efeito em nosso corpo (ou na ideia do nosso corpo)1. É dessa maneira que podemos compreender o que Espinosa fala quando diz que “a Mente humana percebe a natureza de muitíssimos corpos junto com a natureza do seu corpo.” (E II, 16 cor. 1, grifo meu) Esse junto é justamente o fato de que a afecção é o ponto em que somos de certa maneira indistinguíveis daquilo que nos determina. A afecção é, portanto, uma transformação que pode ser mais ou menos definitiva. Mas o que se chama de indistinguível tem aqui um sentido específico que é importante esclarecer. Vamos inicialmente focar no aspecto extensivo da questão. Se concebemos cada corpo como um conjunto de relações dispostos num sistema de retroalimentação (ou seja, as partes do corpo se organizam de tal maneira que elas tendem a permanecerem juntas), cada evento ou acontecimento externo que ocorre com esse corpo, caso não destrua esse corpo, acaba por entrar numa relação com esse corpo de modo a fazer parte desse corpo de alguma maneira – seja por tempo determinado ou indeterminado. Quando eu visto uma roupa, elemento que não faz parte daquilo que constitui o meu corpo físico, ela não deixa de compor com meu corpo físico uma terceira composição, que ainda que não seja tão durável como as partes dessa composição (“corpo do Rafael” + “roupa”), ainda assim é razoavelmente estável para se poder chamar de um corpo que seja mais que a soma das suas partes. Trata-se de uma afecção na medida em que “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o envolve” (E I, ax. 4) – a experiência que se tem dessa composição depende e envolve das partes que compõem (causam) o corpo “Rafael vestido”. Se vou conseguir separar os elementos e entender como eles compõem um todo que vai além das partes, isso dependerá do meu conhecimento adequado das causas. Mas mesmo na falta de um conhecimento adequado (isto é, um conhecimento que se dá pelas causas) o corpo será percebido de maneira a produzir uma indistinção – a diferença é que teremos uma experiência confusa no caso de um conhecimento não adequado. Dando uma sequência a esse exemplo, podemos inclusive pensar o caso em que visto uma 1 Não faz diferença se o sentido da operação for o inverso. Quando encosto em alguém, ou seja, quando produzo uma sensação tátil na pessoa em que eu toco, nem por isso deixo eu de sentir uma sensação da parte da pessoa que eu toco, nem por isso essa parte não produz em mim um efeito, ainda que eu tenha sido o agente da operação. 118 O conceito de afeto como critério filosófico roupa que confunde as pessoas que me veem ao maquiar certos aspectos do meu corpo que eu possa não gostar, como no caso das roupas que podem engordar ou emagrecer alguém. Como a pessoa não compreende adequadamente como certas disposições gráficas da roupa podem gerar tal ou tal efeito, muitas vezes elas acabam achando que o próprio corpo físico da pessoa que usa a roupa é mais ou menos magro. Pode-se dizer, portanto, que no que diz respeito à extensão (aos corpos), a afecção é uma transformação que ocorre quando dois corpos (dois conjuntos de complexos de movimentos e repousos) distintos se determinam2. No que diz respeito ao atributo do pensamento, Espinosa é bem claro: “A ideia de cada maneira como o Corpo humano é afetado por corpos externos deve envolver a natureza do Corpo humano e simultaneamente a natureza do corpo externo.” (E II, P16) Isso não quer dizer que a ideia da afecção é uma simples soma (ideia do corpo A + ideia do corpo B). Quer dizer que ela é justamente uma mistura (razoavelmente) estável dessas ideias – o que temos é um terceiro complexo de distinções (diferenças) a partir maneira como se estabilizam as distinções de um primeiro complexo com um segundo3. Daí a ideia espinosana que se nós (nossa mente) somos “uma ideia de um corpo” e “o que quer que aconteça no objeto da ideia que constitui a Mente humana deve ser percebido pela mente humana, ou seja, dessa coisa será dada necessariamente na mente a ideia” (E II, P12), então não temos como perceber (isto é, operar as distinções) direito nem “a ideia que constitui a mente humana” e nem aquilo que a afeta, já que o que nós experimentamos é sempre já uma afecção (ainda que mínima, ainda que imperceptível4). Somos sempre já a nossa mente em um constante processo de individuação de uma terceira composição 2 3 4 Sobre esse ponto seria interessante ler E II, 17 dem., que trata justamente desse processo de determinação que é a afecção com referência à física da extensão esboçada por Espinosa anteriormente. Não tenho gabarito para me estender nessa comparação, mas me parece próximo demais de uma reação química. A questão da perceptibilidade, creio, é sempre uma questão de escala. Aquilo que pode ser aparentemente imperceptível para o meu corpo físico em sua totalidade não necessariamente o é para as partes que o compõem. Certamente não estou ciente de todas as trilhões de operações que acontecem em meu corpo num nível celular, mas nem por isso elas deixam de acontecer até formarem eventos que sejam mais perceptíveis na minha escala. Pois como diz Espinosa: “Os indivíduos componentes do Corpo humano, e consequentemente o próprio Corpo humano, são afetados pelos corpos externos de múltiplas maneiras” (E II, 13 post. 3) 119 rafael Mófreita saldanHa que sempre pressupõe a nossa mente (a nossa ideia de corpo) e a ideia de outros objetos, sem que consigamos ter a experiência de cada um desses elementos de forma “pura”. Pode-se então dizer que “a mente humana não conhece o próprio Corpo humano nem sabe que ele existe senão pelas ideias das afecções pelas quais o Corpo é afetado” (E II, P19), mas também que, igualmente, “as ideias que temos dos corpos externos indicam mais a constituição do nosso corpo que a natureza dos corpos externos” (E II, 16 cor. 2). Somos aqui obrigados a fazer mais um desvio pelo problema do conhecimento que ficou evidente nas citações acima, ou seja, a impressão que estaríamos sempre reféns de um conhecimento parcial. * No início da segunda parte Espinosa diz que “por ideia adequada entendo a ideia que, enquanto é considerada em si, sem relação ao objeto, tem todas as propriedades ou denominações intrínsecas da ideia verdadeira” (E II, def. 4). Ou seja, uma ideia é adequada – logo, verdadeira – não porque ela convêm com um objeto, mas é na medida em que ela é verdadeira que ela acaba por convir. Como a mente humana – essa ideia do corpo, ou seja, essa sensação do corpo, ou seja, esse complexo de distinções – nunca se dá fora de um afecção, ou seja, como ela só é “sentida” já enquanto efeito de uma individuação/transformação da ideia que ela é “em si”5. Essa sensação que somos, na medida em que somos uma mente, é, portanto, sempre algo de outro que nós mesmos, uma versão transformada do que somos. Não se pode dizer, portanto, que conhecemos a nós mesmos, embora a nossa mente esteja envolvida naquilo que sentimos. A justificativa para isso está bem exposto na E II, 19 dem.: 5 A Mente humana, com efeito, é a própria ideia, ou seja, o conhecimento do Corpo humano (…), a qual (…) certamente está em deus enquanto considerado afetado por uma outra ideia de coisa singular; ou ainda, porque (…) o Corpo humano precisa de muitíssimos corpos pelos quais é continuamente como que regenerado, e a ordem e a conexão das ideias é (…) a mesma que a ordem e a conexão das causas, aquela ideia estará em Deus enquanto considerado afetado Se é que se pode falar de um “em si”, considerando o caráter composto de virtualmente todas as ideias. 120 O conceito de afeto como critério filosófico por ideias de muitíssimas coisas singulares. Assim, Deus tem a ideia do Corpo humano, ou seja, conhece o Corpo humano, enquanto é afetado por muitíssimas outras ideias, e não enquanto constitui a natureza da Mente humana, isto é (…), a Mente humana não conhece o corpo humano. Mas as ideias das afecções do Corpo estão em Deus enquanto constitui a natureza da Mente humana, ou seja, a Mente humana percebe essas afecções (…) e, consequentemente (…), o próprio Corpo humano, e este (…) como existente em ato; logo, a Mente humana percebe o Corpo humano apenas nesta medida. (E II, 19 dem., grifo meu)6 Para termos um conhecimento adequado do corpo teríamos que ter também a ideia daquilo que nos produz, ou seja, teríamos que ter ideia daquilo que é anterior à experiência que nós sentimos. Teríamos que ter um conhecimento claro e distinto daquilo próprio que nos produz. Isso gera um problema de recuo infinito, já que seríamos obrigados a pegar a nossa própria sombra7. Se o que experimentamos é sempre já uma transformação sobre um fundo prévio ficamos relativamente cegos para aquilo que nos compõem. A ideia que temos da nossa mente é, portanto, apenas um conhecimento não-adequado desse efeito, pois apesar de envolver e depender daquilo que o compõem, esses elementos não são conhecidos de maneira adequada (isto é, não são conhecidos pelas suas causas). O raciocínio para o desconhecimento dos elementos externo segue de maneira similar, pois “a ideia de uma afecção do Corpo humano envolve 6 7 Cf. tb E II, 23 dem. (no que diz respeito ao conhecimento da própria mente de si mesma) e E II, 24 dem.: “As partes que compõem o Corpo humano não pertencem à essência do próprio Corpo senão enquanto comunicam seus movimentos umas às outras numa proporção certa (…), e não enquanto podem ser consideradas indivíduos, sem relação com o Corpo humano. Com efeito, as partes do Corpo humano são (…) Indivíduos assaz compostos, cujas partes (…) podem ser separadas do Corpo humano, conservada totalmente a natureza e a forma dele, e comunicar seus movimentos (…) a outros corpos numa outra proporção; e por isso (…) a ideia ou conhecimento de qualquer parte estará em Deus, e precisamente (…), enquanto considerado afetado por uma outra ideia de coisa singular, a qual coisa singular é anterior, na ordem da natureza, àquela parte (…). Ademais, o mesmo deve ser dito também de qualquer parte do próprio Indivíduo que compõe o Corpo humano; dessa maneira, o conhecimento de cada parte que compõe o Corpo está em deus enquanto é afetado por muitíssimas ideias de coisas, e não enquanto tem apenas a ideia do Corpo humano, isto é (…), a ideia que constitui a natureza da mente humana; sendo assim (…) a Mente humana não envolve o conhecimento adequado das partes que compõem o Corpo humano. (E II, 24 dem., grifo meu) Sobre esse problema, conferir o vídeo de Iain Hamilton Grant: https://www.youtube.com/ watch?v=cMoTh3HpO0E 121 rafael Mófreita saldanHa a natureza do corpo externo apenas enquanto o corpo externo determina o próprio Corpo humano de maneira certa.” (E II, 25 dem., grifo meu). Nós conhecemos o corpo apenas na medida em que ele nos afeta, e não em si. De novo ficamos cegos para aquilo que produz o efeito que nós somos. Esse tipo de conhecimento mutilado será aquilo que o Espinosa chamará de imaginação (conhecimento do primeiro gênero), ou seja, aquele que não é adequado por não dar conta das relações de produção das ideias completamente. É uma ordem do conhecimento que lida apenas com imagens8, ou seja, com “as afecções do Corpo humano cujas ideias representam os Corpos externos como que presentes a nós, ainda que não reproduzam as figuras das coisas.” (E II, 17 escol.) A imaginação consiste portanto na contemplação da ideia desse corpo externo não como ele é, mas a partir da afecção, ou seja, a partir da mistura. Não se trata, como Espinosa esclarece em seguida de crer que a imaginação, o conhecimento do primeiro gênero, é necessariamente um conhecimento errado, pois “as imaginações da mente, consideradas em si mesmas, nada contêm de erro” (E II, 17 escol.). O ponto é antes que, na ausência de um caráter positivo da falsidade (E II, P33), “a falsidade consiste na privação de conhecimento que as ideias inadequadas, ou seja, mutiladas e confusas, envolvem.” (E II, P35). O erro, quando há, estaria não nas ideias em si, mas no encadeamento que elas realizam, ou seja, na maneira como as distinções se organizam. Isso fica ainda mais clara quando Espinosa diz que “nenhuma [ideia] é inadequada nem confusa a não ser enquanto referida à Mente singular de alguém” (E II, 36 dem.) Pode-se dizer dessa forma que o que guia a imaginação, o que organiza esse processo é antes a noção de memória. Mas se a memória é a própria concatenação, veremos, a partir da explicação do Espinosa, que o próprio processo de encadeamento pode ser concebido a partir da noção de hábito. 8 122 Com efeito, não é nada outro que alguma concatenação de ideias que envolvem a natureza das coisas que estão fora do corpo humano, a qual ocorre na mente e segundo a ordem e a concatenação das afecções do Corpo humano. Digo, primeiro, que a concatenação é apenas daquelas ideias que envolvem a natureza das coisas que estão fora do Corpo humano, e não das ideias que explicam a natureza dessas mesmas coisas. Pois, em verdade, são (…) ideias de afecções Sobre como imagens são antes corpos que ideias, cf. VINCIGUERRA, 2005. O conceito de afeto como critério filosófico do Corpo humano, que envolvem tanto a natureza dele quanto a dos corpos externos. Digo, segundo, que essa concatenação ocorre conforme a ordem e a concatenação das afecções do Corpo humano, para distingui-la da concatenação de ideias que ocorre segundo a ordem do intelecto, pela qual a mente percebe as coisas por suas causas primeiras e que é a mesma em todos os homens. (E II, 18 escol., grifo meu) A imaginação é pois um encadeamento de ideias que se ordena e concatena a partir da ordem das próprias afecções. Mas apesar de esse encadeamento não ser feito segundo a ordem do intelecto, ou seja, segundo a ordem de produção das coisas, nem por isso ele é necessariamente inadequado. A questão é que ele se faz não se pela razão, mas pelo hábito, pelo processo de contração das afecções. O hábito sendo justamente esse processo de ligação entre diferentes afecções, por qual “cada um conforme costumou juntar e concatenar as imagens das coisas desta ou daquela maneira, a partir de um pensamento incidirá em tal ou tal outro” (E II, 18 escol., grifo meu), forma nesses movimentos de contrações sucessivas uma cadeia de sentido. Daí o exemplo que Espinosa insere no final desse escólio ao falar da leitura diferente que um soldado e um camponês fazem do mesmo vestígio de um cavalo na areia. A maneira como cada um desses dois irá ler aquele vestígio (trata-se de algo relacionado à guerra ou ao arado) depende da maneira como está encadeado as causas, ou seja, depende justamente das contrações anteriores, dos hábitos adquiridos por meio de sucessivos encontros. Essa cadeia, como dissemos, não necessariamente corresponde à ordem de produção das coisas, mas nem por isso ela deixa de ter qualquer valor ou é necessariamente não adequada. A maneira como organizamos o mundo pode ser bem efetivo ainda que seja um encadeamento dependente das nossas afecções. Pensemos por exemplo no caso histórico da duração da física aristotélico-ptolomaica. Ainda que hoje saibamos que a Terra não é o centro do universo e que somos nós que giramos em torno do sol e não o inverso, nem por isso essa física não teve sua utilidade por mais de mil e quinhentos anos. Isso pode ser pensado também numa escala menor: como no fato de que não há a menor diferença se lavo a minha mão por saber que o sabão irá retirar a gordura que está presente na minha mão ao operar uma reação química ou simplesmente pelo costume de ser obrigado a lavar minhas mãos por meus pais durante toda uma infância. Ambas as ações serão igualmente 123 rafael Mófreita saldanHa efetivas nesse caso, ainda que a segunda ação não seja fundada em nenhuma compreensão dos elementos envolvidos nesse ato de lavar as mãos. Os conhecimentos do primeiro gênero podem ser considerados como efetivos desde que não se deparem com situações que travam o seu encadeamento ou que apontem problemas ao longo do encadeamento, ameaçando tal organização das ideias. Retomando uma hipótese de Rodrigo Nunes, é possível especular que num futuro infinitamente distante mesmo que consigamos finalmente produzir um saber filosófico-científico que dê conta de todas as questões, todos os problemas, todos os acontecimentos do nosso universo, ainda assim é possível que esse saber não se adeque à “verdade do universo”. Queremos dizer com isso que em muitas situações o conhecimento imaginativo tem uma potência enorme, visto que ele, por estar refém das afecções, acaba estando invariavelmente atado a questões e problemas concretos que surjam na realidade. Mas se “o conhecimento do primeiro gênero é a única causa da falsidade, o do segundo e do terceiro, por outro lado, é necessariamente verdadeiro.” (E II, P41) Vamos tentar entender o que são esses dois outros gêneros do conhecimento. O conhecimento de segundo gênero é aquele que será o conhecimento das coisas comuns. O conhecimento do segundo gênero tem, porém, um elemento estranho. Pois ainda que esse conhecimento seja “necessariamente verdadeiro”, ainda assim ele não dirá respeito às coisas, já que “o que é comum a todas as coisas (…) e está igualmente na parte e no todo não constitui a essência de nenhuma coisa singular.” (E II, P37) Esse tipo de conhecimento se funda, pelo contrário, no lema 2 da Ética, que diz que “todos os corpos convêm em alguma coisa” (E II, lem. 2), pois todas as coisas que pertencem a um mesmo atributo invariavelmente compartilham algo, nem que seja um elemento extremamente geral e, por isso mesmo, relativamente inútil. A verdade do conhecimento comum está no fato de que quando dois corpos se determinam a partir de uma propriedade em comum, a ideia dessa afecção necessariamente irá envolver a propriedade comum sem que seja necessário nenhuma outra coisa para pensar essa propriedade em si — a propriedade em comum é portanto concebida intrinsicamente sem precisar de nenhum elemento externo para compô-la.9 No que diz respeito a essa propriedade, ao me9 Isso se verifica pois para Espinosa “todas as ideias, enquanto referidas a Deus, são verdadeiras” (E II, P32). Assim sendo, explica-se um pouco adiante a maneira como as coisas comuns são 124 O conceito de afeto como critério filosófico nos, haverá um conhecimento adequado.10 Nesse sentido pode-se compreender as coisas comuns como aspectos compartilhados por diversos corpos quando postos em comparação mas que não dizem respeito à sua essncia. Pode-se dizer então que as coisas comuns tem dois tempos. Elas são num primeiro tempo condição de contato, já que sem elas, ou seja, sem algo em comum (mesmo algo extremamente geral, como o fato de ser um corpo composto por movimento e repouso), não seria possível qualquer relação. No segundo momento elas são o efeito de um contato; como diz Deleuze, “ela exprime as relações de convenincia ou de composição dos corpos existentes.”11 Mas elas também são o prprio princípio de um conhecimento mais estável (segundo a razão) por não se apoiar na concatenação das afecções, mas no que as coisas tem em comum. É com isso em mente que Espinosa irá dizer que a ideia “é determinada internamente, a partir da contemplação de muitas coisas em simultneo, a entender as convenincias, diferenças e oposições entre elas; com efeito, toda vez que é internamente disposta desta ou daquela maneira, então contempla as coisas clara e distintamente” (E II 29 escol.). O elemento estranho, portanto, é o fato de que se a coisa comum é a relação entre as coisas concebida de maneira adequada, essa coisa não é uma propriedade de algo singular. Ela é sempre algo que é dependente de uma comparação, já que essa coisa comum é um elemento generalizável entre dois corpos. Como a comparação não se finca em nenhuma propriedade singular, o elemento generalizável de uma relação (fora as relações 10 11 referidas a Deus: “Seja A o que é comum e próprio ao Corpo humano e a alguns corpos externos e, por fim, igualmente na parte de qualquer desses corpos externos e no todo. A ideia adequada do próprio A será dada em Deus (…) tanto quanto tem a ideia do Corpo humano como enquanto tem as ideias dos corpos externos supostos. Suponha-se agora que o Corpo humano é afetado por um corpo externo mediante o que tem em comum com ele, isto é, por A; e por isso (…) a ideia desta afecção, enquanto envolve a propriedade A, será adequada em Deus enquanto afetado pela ideia do Corpo humano, isto é (…), enquanto constitui a natureza da Mente humana; e por isso (…) esta ideia é adequada também na Mente humana.” (E 39 dem.) Sobre o caráter dessa coisa comum, é interessante ler as observações de Zourabichvili, 2014, pp. 164-168 e mais especificamente esse trecho: “Mas existe tal ideia separada em Deus? A resposta é não (...). As propriedades comuns só existem na natureza (ou no entendimento infinito) no estado envolvido. Não se as confundirá com essas propriedades da natureza pensante que são as ideias, nem com as propriedades dessas últimas, que também são ideias, na medida em que são partes componentes (assim, por exemplo, a ideia de braço, como propriedade deduzível da ideia do corpo humano). (ZOURABICHVILI, 2014, p. 167, tradução minha) DELEUZE, Gilles. Espinosa – filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002, p. 99. 125 rafael Mófreita saldanHa mais gerais) pode sempre acabar por se desfazer caso o ponto de vista seja alterado. O caso clássico da gestalt do pato-coelho é exemplar nesse ponto. Não podemos comparar a imagem do coelho com outros coelhos em nossa mente no momento em que olhamos essa imagem enxergando um pato (o inverso também sendo verdadeiro). Ver nessa imagem um pato exclui os coelhos, ver um coelho exclui os patos. (Figura 1) Além disso, não se poderá ter acesso à essa coisa comum de maneira absoluta (primeiramente porque ela não é “algo”), pois se ela é quem condiciona a relação entre os corpos, ela fica sempre razoavelmente encoberta. Na verdade, pode ser vista como a própria condição para “conveniências, diferenças e oposições” que podem ter agora um fundo para dele se destacar. O conhecimento comparativo do segundo gênero, não parece, dessa forma, se opor ao conhecimento imaginativo. Em certo sentido é possível inclusive supor que o conhecimento imaginativo é condicionado de antemão por coisas comuns, já que não é possível afecções que não tenham nem as propriedades mais gerais de todos os indivíduos (como aquela exposta na física da extensão). Devemos também lembrar que as contrações habituais acabam, na construção dos encadeamentos, apresentando possi- 126 O conceito de afeto como critério filosófico bilidades de semelhança que poderiam não haver antes. Podemos pensar evidentemente nos vestígios de um cavalo que são encontradas na areia. O soldado enxergará um cavalo de guerra, pois os hábitos e as experiências anteriores levaram-no a pensar nisso com mais frequência. Mas nem por isso deixa de existir uma semelhança entre os vestígios de cavalo e o cavalo que ele tem em sua memória. Se podemos, porém, dizer que o conhecimento comparativo é mais estável, é no sentido em que ele funciona como um solo firme para os encadeamentos das ideias, a comparação. Dessa maneira é possível dizer que o conhecimento de segundo gênero é um que têm a sua solidez na medida em que ele funciona, na medida em que ele não é desfeito por algum giro de perspectiva que faz com que aquele solo se dissolva ao desmontar uma comparação em nome de outra.12 Resta, por fim, o conhecimento de terceiro gênero.13 Esse gênero que Espinosa nomeou ciência intuitiva uma larga história de incompreensões na sua recepção. Não são poucas as pessoas que buscam nesse conhecimento a abertura para alguma intuição mística vaga que você antes sente do que entende. Quero acreditar que há uma concepção mais desinflada da ciência intuitiva. É o que tentarei expor aqui. Começamos pela própria descrição que Espinosa dá desse gênero: “este gênero de conhecimento procede da ideia adequada da essência formal de alguns atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas.” (E II, 40 escol.)14 Essa descrição breve é pouco clara 12 13 14 E quando dizemos que ele “não funciona” não estamos querendo dizer que ele se tornou falso. O ponto aqui tem a ver com uma certa noção de funcionalidade. Isso talvez fique claro com um exemplo: É inegável que bem antes do homem conseguir construir um avião ou um balão, o sonho de voar era algo presente no imaginário humano. Mas durante grande parte desse tempo, antes de inventarem ele, o homem colecionou uma série de fracassos. É possível especular que parte desse fracasso estava relacionado a uma comparação infrutífera, isto é, as asas dos pássaros. Os modelos de máquinas ou vestimentas tentavam imitar os mecanismos de vôo dos pássaros. Só no momento em que se mudou de perspectiva e se deixou de ter esse tipo de vôo como modelo é que o homem conseguiu desenvolver o avião tal como conhecemos hoje em dia. Ou seja, aquela relação de semelhança entre as tentativas fracassadas de voar e o voo dos pássaros não desapareceu, apenas se tornou algo inócuo. Nenhuma das discussões aqui presentes sobre o conhecimento de terceiro gênero seria possível sem as intermináveis conversas que tive com Pedro Gomlevsky tentando dar um sentido para esse tipo de conhecimento sem que resvalássemos no misticismo barato que assombra esse tema. Mais adiante, na quinta parte, encontraremos essa descrição similar: “O terceiro gênero do conhecimento procede da ideia adequada de alguns atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas” (E V, 25 dem.). 127 rafael Mófreita saldanHa no que ela quer dizer. O passo primeiro para compreendê-lo é, portanto, tentar entender a passagem do conhecimento do segundo gênero para o do terceiro. É preciso lembrar dois pontos em que esses dois conhecimentos convergem. Primeiramente, ambos esses conhecimentos são necessariamente verdadeiros. Ou seja, esses tipos de conhecimento são sempre adequados e por causa disso só vão produzir conhecimentos adequados15. Dessa maneira é apenas a partir desses dois conhecimentos que “nos ensina[m] a distinguir o verdadeiro do falso” (E II, P42). O segundo aspecto compartilhado é aquilo mesmo que garante a verdade desses conhecimentos, ou seja, o fato de que tomam as coisas sempre do ponto de vista da necessidade ou, nos termos do Espinosa, “é da natureza da razão perceber as coisas sob algum aspecto de eternidade” (E II, 44 cor. 2). A partir dessa semelhança pode-se entender melhor como se produz o salto entre esses conhecimentos. É preciso lembrar que em certo sentido, assim como o conhecimento imaginativo depende da existência de coisas comuns, o fato de termos coisas comuns depende por sua vez de uma univocidade em cada atributo. Para que haja esse tipo de conhecimento do segundo gênero, para que ele seja possível, é preciso que exista alguma comunicabilidade entre as coisas de um dado atributo. Ou seja, o fato de todas as modificações compartilharem das propriedades do atributo no qual são expressas (movimento e repouso no caso dos modos que se exprimem segundo o atributo da extensão) é condição necessária para a existência de propriedades comuns, para que possa haver qualquer comparabilidade. Só podemos especular sobre essa justificativa, porém, a posteriori – a partir da experiência de coisas comuns. Os atributos devem, para que faça algum sentido esse tipo de conhecimento, existir tal como se deduz eles na primeira parte da Ética. É essa experiência que vai fazer com que Espinosa aponte sobre como o conhecimento do segundo gênero nos direciona para a ciência intuitiva: “O esforço ou Desejo de conhecer as coisas pelo terceiro gênero de conhecimento não pode originar-se do primeiro, mas certamente do segundo gênero do conhecimento” (E V, P 28). Não somos impulsionados do segundo gênero para o terceiro, mas para o esforço em direção a ele. De certa forma, a tentativa de compreender o funcionamento do conhecimento do segundo gênero nos encaminha para o terceiro. Trata15 128 Cf. E II, 40 dem.) O conceito de afeto como critério filosófico -se de uma especulação sobre o meta-conhecimento que busca entender a condição metafísica que sustenta o segundo gênero. Nesse sentido, pode-se dizer que o processo de dedução (ou, para sair da terminologia espinosana, o processo de invenção) dos conceitos de Deus, de substância, atributo, modo; da dinâmica das suas relações nos movimento de expressão e de complicatio-explicatio etc. é o próprio movimento do terceiro gênero16. Estamos aqui bem longe do misticismo barato que se atribui facilmente ao Espinosa. O conhecimento do terceiro gênero acaba sendo condição para que o conhecimento de segundo gênero, pois sem o fundo metafísico das coisas comuns, não é possível que ele se dê. As proposições do Espinosa na quinta parte que mais esclarecem o terceiro gênero parecem apenas confirmar aquilo que falamos. Num primeiro momento ele destaca o aspecto, que já mencionamos, da eternidade que é inerente à ciência intuitiva: “Tudo que a mente entende sob o aspecto da eternidade, ela não o entende por conceber a existência atual do presente do Corpo, mas por conceber a essência do Corpo sob o aspecto da eternidade” (E V, P29). Em seguida dirá que “nossa mente, enquanto conhece a si e ao Corpo sob o aspecto da eternidade, tem necessariamente o conhecimento de Deus e sabe que é em Deus e é concebida por Deus” (E V, P30). Nossa mente entende que enquanto conhece a si e ao corpo sob o aspecto da eternidade, ela terá necessariamente um conhecimento de Deus, pois conhecer segundo a eternidade é conhecer segundo a ordem de produção necessária. O conhecimento adequado não precisa dar conta, portanto, de todos os aspectos específicos que compõem o meu corpo, mas sim a compreensão de como se dá a passagem do infinitamente infinito que é a substância até o modo finito. Como nos lembra Zourabichvili, 16 Diremos então que o conceito de ciência intuitiva é justamente um segundo esquema de definição genética real? “Este gênero de conhecimento se estende da ideia adequada da essência formal de alguns atributos de Deus ao conhecimento adequado da essência das coisas” [E II, 40 escol.] Mas se é verdade que Deus é causa próxima de todas as coisas singulares, é de todas as coisas de uma só vez! (…) O conhecimento é intuitivo em cada nível, no sentido da síntese operada pela definição genética; mas se vê bem que as singularidades obtidas são relativas ao nível em que se opera a síntese, e Cf. ZOURABICHVILI, 2014, p. 187. 129 rafael Mófreita saldanHa aparecem como universais desde que se desça um nível, de modo que segundo e terceiro gênero do conhecimento não são mais que uma questão de ponto de vista.17 O terceiro gênero, sendo, evidentemente, algo que diz respeito às coisas eternas, logo necessárias, é o conhecimento do processo de produção das diversas instâncias da realidade. Talvez isso seja estender um pouco demais as coisas, mas creio que seja possível partir daí para a posição de que a ciência intuitiva é uma que lida com os processos de individuação, sem que precise dar conta de todos os aspectos reais que compõem tal ou tal indivíduo.18 Se no caso do Espinosa isso se daria num processo de dedução, preferimos nos ater à uma palavra mais profana: especulação. Creio que tomá-la, a ciência intuitiva, como o local de investigações metafísicas/ontológicas, acaba desinflando suficientemente o conhecimento de terceiro gênero e, no mesmo movimento, criando espaço para uma relevância ética desse tipo de empreitada.19 Após essa análise das afecções e dos três gêneros do conhecimento podemos ter uma melhor visão de como eles se relacionam entre si. Se na ordem da experiência passamos do primeiro para o segundo e do segundo para o terceiro, no plano ontológico o movimento é o inverso. Em outras palavras, as verdades da ciência intuitiva condicionam o conhecimento das coisas comuns que, cujas verdades, por sua vez, condicionam a imaginação. As afecções que experimentamos já seriam, portanto um movimento que sobe e desce nessa escada dos conhecimentos, como se fosse preciso, inclusive, já ter ela em mente para que pudéssemos descrevê-las. Não custa pois repetir, uma última vez, as palavras de Schelling: Self-consciousness is the lamp of the whole system of knowledge, but it casts its light ahead only, not behind” (SCHELLING, 1978, p. 18). 17 18 19 ZOURABICHVILI, 2014, pp. 181-182. Fosse esse o caso, a ciência intuitiva consistiria na coleção e descrição de todos os processos causais. Esse ponto será explorado mais adiante na tese. 130 O conceito de afeto como critério filosófico Bibliografia DELEUZE, Gilles. Espinosa – filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. ESPINOSA, Bento de. Ética. São Paulo: EDUSP, 2015. SCHELLING, F. W. J.. System of transcendental idealism. Charlottesville: University of Virginia Press, 1978. VINCIGUERRA, Lorenzo. Spinoza et le signe. Paris: Vrin, 2005. ZOURABICHVILI, François. Spinoza – una física del pensamiento. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2014. 131 Esboço de uma nova definição para propriedades naturais Renato Mendes Rocha (UFSC/UFCA) Introdução Neste capítulo apresento o esboço de uma nova definição para propriedades naturais. Na minha tese de doutorado (ROCHA, 2017) defendo que na metafísica de mundos possíveis de Lewis, a noção de propriedade natural desempenha um papel central. As propriedades naturais podem ser esclarecidas de pelo menos dois modos. Um deles é buscar uma definição que seja suficiente e necessária para a sua classificação. O segundo modo é elucidar o papel desempenhado por elas não pela definição apenas, mas a partir de sua aplicação filosófica. Na minha tese, eu abordo estas duas estratégias. Neste texto ainda que mencione elementos da segunda estratégia, vou focar a discussão na primeira estratégia. Definições de propriedade natural O ponto de partida são as definições encontradas na discussão contemporânea sobre ontologia de propriedades. A primeira definição encontrada é a de Quinton (1957, p. 36) na qual ele afirma que “uma classe desse tipo [natural] seriam as classes cujas partes seriam de um modo representativa do todo da classe”.1 Essa caracterização surge no contexto do debate entre realistas e nominalistas sobre o problema dos universais. As classes de propriedades naturais parecem ser um modo de introduzir a relação de semelhança na defesa da posição conhecida como nominalismo de semelhanças, uma vez que uma classe formada a partir de uma relação de semelhança pode ser definida em termos de propriedade natural e propriedade natural também pode ser definida em termos de classes de semelhança. 1 “A class of this kind, whose parts are in this way representative of the whole, is what I mean by a natural class.” Esta e as seguintes traduções são de minha autoria. 132 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 132-142, 2017. Esboço de uma nova definição para propriedades naturais Há pelo menos um problema naquela definição de Quinton: ela afirma que um elemento da classe pode ser representativo de toda a classe. Isto parece ser falso pela seguinte razão. Cada elemento de uma classe pode ser representativo de cada um dos outros elementos daquela classe e não da classe como um todo. Para esclarecer considere, por exemplo, uma classe D formada por dez moedas que estão no meu bolso direito.2 Cada elemento desta classe (uma moeda individual) é apenas representativo de outros elementos desta classe, quando tomados individualmente, e não representativo da classe como um todo. Uma moeda representa uma outra moeda e não outras dez moedas ao mesmo tempo. Apesar desta imprecisão, a definição de Quinton apresenta pelo menos uma virtude: o uso da noção de representatividade que desempenha um papel importante nas aplicações filosóficas das propriedades naturais. A segunda definição propriedades naturais é aquela apresentada por Lewis (1983, p. 347): “propriedades naturais seriam aquelas cujo o fato de dois particulares a compartilharem torna estes particulares semelhantes, além disso devem ser relevantes para explicar poderes causais”.3 Lewis defende uma teoria conhecida como inegualitarismo entre propriedades. Ele sustenta que dentre todas as propriedades possíveis e existentes, há uma pequena elite minoritária de propriedades que são as propriedades naturais. Ele distingue as propriedades naturais das propriedades não naturais sobretudo por causa de suas aplicações. A maior parte destas aplicações está relacionada à segunda cláusula da definição apresentada: explicar os poderes causais. Esta capacidade em parte se dá por um outro poder mágico das propriedades naturais: a capacidade de trinchar corretamente a natureza em suas as articulações. Correta no sentido das articulações (junções) existentes própria natureza e não apenas considerando uma perspectiva humana (e subjetiva) de trinchar. Este tipo de classificação de propriedades é defendido por Lewis a partir do seu critério metodológico de escolha de teorias baseado na análise do custo-benefício. Os papéis desempenhados pelas propriedades naturais podem ser classificados basicamente em dois papéis: o papel da raciona2 3 Por moeda aqui, entendo, um objeto físico geralmente de formato arrendodado feito de algum metal e dotado de algum valor monetário, cujo sistema sistema financeiro ao qual ela pertence é irrelevante para os propósitos deste exemplo. “Natural properties would be the ones whose sharing makes for resemblance, and the ones relevant to causal powers.” 133 renato Mendes roCHa lidade e o papel da fundamentação. Ao primeiro papel estão relacionadas soluções ao paradoxo de Goodman, o paradoxo de Kripkenstein e o paradoxo de Putnam, problemas que permearam boa parte das discussões da filosofia analítica da segunda metade do século XX. Ao segundo papel pertencem os usos das propriedades naturais na explicação dos itens que compõem o pacote nomológico, ou seja, dos conceitos ligados à definição regularista de leis da natureza de Lewis, tais como duplicado, evento, causalidade, contrafactual e que vão influenciar, por exemplo, uma definição de determinismo que é importante na discussão sobre o livre-arbítrio. Esboço de uma nova definição Voltando para o esboço da definição a ser apresentada. A virtude da definição de Lewis é considerar a relação de semelhança entre os termos de uma classe natural. No entanto, ela parece vaga quando menciona os poderes causais que podem se tornar mais claro ao se deparar com as definições dos itens pacote nomológico. Então, a partir da combinação de elementos das definições de Quinton (1957) e Lewis (1983), eu proponho a seguinte nova definição: • Propriedade natural =df uma propriedade é natural se, e somente se, cada elemento da classe definida pela propriedade for suficientemente semelhante aos outros elementos desta classe e cada elemento da classe for representativo de outros elementos desta mesma classe. Uma primeira objeção que pode ser feita a esta definição é a redundância entre semelhança e representatividade.4 No entanto, uma distinção sutil entre estes dois aspectos pode ser traçada do seguinte modo. Por um lado, a semelhança parece ser uma propriedade objetiva do mundo, uma relação presente (ou ausente), entre dois objetos quaisquer independentemente de estes objetos serem observados. Por outro lado, a noção de representatividade parece envolver um agente que capaz de estar em um dos lados da relação de representação. Embora distintas, estas noções estão estreitamente conectadas, pois se dois objetos possuem um elevado 4 134 Agradeço ao prof. Guido Imaguire por apontar este problema. Esboço de uma nova definição para propriedades naturais grau de semelhança entre si, há uma alta probabilidade de um objeto ser tomado como representativo do outro, por algum agente capaz de perceber esta semelhança. Acredito que esta minha proposta de definição tenha as seguintes vantagens sobre as anteriores: i) ela evita a fraqueza da definição de Quinton, mencionada na seção anterior; e, ii) por ser uma definição conjuntiva acrescenta uma exigência inexistente na caracterização de Lewis, aquela que diz que cada elemento precisa ser representativo dos outros elementos desta classe. Ao propor uma intersecção entre a extensão das relações de semelhança e a representação, permite não considerar, por exemplo, apenas a semelhança ou, apenas a representatividade, para uma propriedade candidata a propriedade natural ser, de fato, considerada uma propriedade natural. Segundo esta proposta de definição, os elementos de sua classe precisam ser semelhantes e representativos. Algo a ser desenvolvido para tornar a proposta mais atraente e filosoficamente mais robusta é um esclarecimento a respeito dos termos as quais a objeção do parágrafo se direcionam: semelhança e representatividade. No que diz respeito à representatividade é preciso encontrar uma caracterização que seja objetiva e compatível com os realismos metafísico e científico que compõem o pano de fundo desta discussão na ontologia contemporânea.5 Na seção seguinte ofereço um sumário de algumas destas teorias sobre a semelhança encontradas tanto na literatura filosóficas quanto científicas. Três teorias da semelhança Há pelo menos três teorias que podem ser utilizadas para explicar a noção de semelhança encontrada na proposta de definição de propriedade natural apresentada na seção anterior. Teorias da semelhança são enriquecidas quando elaboradas a partir de um ponto de vista interdisciplinar. As abordagens filosóficas são enriquecidas quando acrescentadas de dados empíricos fornecidos por exemplo, pela psicologia, ou ainda da biologia ou da neurociência. Estas teorias procuram estabelecer critérios empíricos e/ou formais para atribuir semelhança a um grupo de objetos em análise, ou ainda estabelecer relações de semelhança entre classes de 5 Tenho aqui em vista a retomada da discussão sobre o problema dos universais entre filósofos australianos a partir da publicação de Armstrong, D. (1978) Universals and Scientific Realism. 135 renato Mendes roCHa objetos distintos. Por exemplo, critérios para afirmar que uma determinada classe A é mais semelhante à classe B que a determinada classe C. Teorias como esta seriam úteis, por exemplo, ao se querer defender a atribuição de graus de naturalidade. Uma das teorias que procuram explicar a semelhança é baseada na neurociência e, se for bem-sucedida, seria uma boa candidata para a tese de que a semelhança (ou pelo menos a nossa capacidade de identificar semelhança) é uma característica objetiva do mundo. Segundo esta teoria, a semelhança objetiva pode ser detectada ao observar um certo padrão no comportamento de células do sistema nervoso quando um indivíduo identifica semelhanças entre objetos numericamente distintos. Segue por esta linha a teoria neurosemântica baseada no modelo SINBAD do córtex cerebral.6 Basicamente, esta teoria afirma que seria uma função biológica das redes neurais de se estruturarem de maneira isomórfica ao ambiente. Esta característica defende Ryder (2004, p. 212), significa que estas redes modelam, ou representam o ambiente. Um aspecto interessante desta teoria é que ela associa correlações causais não apenas entre pares de propriedade, mas considera pares de funções complexas definidas entre propriedades (RYDER, 2004, p. 219). Por exemplo, enquanto o par de propriedade [ser-amarelo] e [ter-o-formato-banana] não obteriam uma relação causal forte, a função formada pelo par [ser-amarelo] e [ter-o-formato-banana], e pelo par [ser-descascável] e [vir-em-cachos] obteria mais correlação causal. Uma outra teoria que procura explicar a semelhança é a análise de similaridade comparada apresentada por Lewis (1973, p. 48) como parte de sua semântica para contrafatuais. Esta teoria estabelece um ordenamento de mundos possíveis a partir da semelhança entre eles. Este ordenamento é representado por um sistema de esferas concêntrico, na qual o mundo atual, ou outro mundo em questão estariam localizados em seu centro. Quanto mais distante for a esfera do mundo possível de seu centro, menos semelhante é aquele mundo do mundo do centro da esfera. 6 Abreviação para Conjunto de Dendritos de Interação Retroativa [Set of INteracting BAckpropagating Dendrites] 136 Esboço de uma nova definição para propriedades naturais Figura 1 - Sistema de esferas de mundos possíveis Esta representação diagramática oferece uma poderosa ferramenta para analisar o valor de verdade de sentenças contrafatuais. A análise é feita a partir do posicionamento do antecedente e do consequente do contrafatual nestas esferas. Linhas curvas são traçadas para delimitar os mundos em que cada proposição é verdadeira ou falsa. Se houver intersecções entre segmentos de esferas em que o antecedente e o consequente sejam verdadeiros, então o contrafatual pode ser considerado verdadeiro. No entanto, se há um mundo possível mais próximo ao mundo atual em que o antecedente for verdadeiro, o consequente for falso, então o contrafatual é falso no mundo atual. Quanto mais próximo estiver o mundo possível que torna o antecedente verdadeiro, maiores serão as chances daquele condicional ser considerado verdadeiro. Em termos formais, o ordenamento de mundos possíveis a partir da semelhança é introduzido a partir das seguintes notações, considerando j, k e i como mundos possíveis: j ≤i k e j <i k A primeira fórmula afirma que o mundo i é tão semelhante ao mundo j quanto ao mundo k. A segunda notação quer dizer que o mundo i é 137 renato Mendes roCHa mais semelhante ao mundo j do que ao mundo k. A partir desta notação Lewis (1973, p. 48) estabelece um sistema (centrado) de similaridade comparada baseado no estabelecimento de seis condições: transitividade, conexão forte, auto acessibilidade, similaridade minimal, similaridade maximal e uma sexta que estabelece que mundos acessíveis são mais semelhantes que mundos inacessíveis. Esse sistema de esferas é fundamental para viabilizar a semântica contrafactual de Lewis. No entanto, seria viável para analisar semelhança entre conjuntos de propriedades? Se substituirmos simplesmente as variáveis j, k e i que neste sistema representam mundos possíveis por classes que designam propriedades, teríamos um sistema de ordenamento entre propriedades a partir da semelhança entre elas. Todavia, isso não seria suficiente para explicar por que uma propriedade A é mais semelhante a uma propriedade B do que uma propriedade C. Apenas forneceria um ordenamento. Talvez a lição a se obter do sistema de esferas lewisiano é que explicações deste tipo exigiria algo como um critério quantitativo para comparar semelhança entre mundos ou propriedades. Estas medidas quantitativas de análise se semelhança seriam análogas às medidas de distância espacial, no qual é possível imaginar um espaço preenchido por mundos possíveis em que a distância entre estes mundos representaria o grau de semelhança entre eles. A partir, por exemplo, de um conjunto de mundos possíveis, poderia se estabelecer números para cada grau de semelhança entre dois mundos. Os dois mundos mais semelhantes deste conjunto receberiam um número que representaria seu elevado grau de semelhança, por exemplo, 0.9 (enquanto 1.0 seria a semelhança completa, em que cada mundo possui apenas consigo mesmo) e os mundos menos semelhantes receberiam números menores. Lewis (1973, p. 51) apresenta algumas ressalvas quanto a um critério quantitativo deste tipo. Segundo ele, a adoção de um critério quantitativo exigiria uma indesejável simetria entre relações de semelhança, por exemplo, se afirmo que i é semelhante a j, implicaria que (numericamente) j é semelhante à i. No entanto, aceitar a simetria implicaria em impor uma restrição a este ordenamento numérico. Esta restrição seria quanto a selecionar qual aspecto de um conjunto de mundos é mais importante para uma determinada comparação. Pois, se i é mais semelhante a j do que a k (j <i k) e, j é mais semelhante a k do que a i (k <j i), então k seria mais semelhante a j do que a i (j <k i). O que nem sempre parece ser o caso, uma vez que, em algum aspecto k poderia ser mais semelhante a i do que 138 Esboço de uma nova definição para propriedades naturais a j. Lewis cita o exemplo das propriedades relacionadas a cores, que em certos mundos pode ter uma relevância maior do que em outros mundos, por exemplo, em um mundo as cores aparecem entre as leis físicas fundamentais, enquanto em outros mundos as cores poderiam ser aleatórias e alternantes. Alguém teria que aceitar uma restrição injustificada quanto a fatos sobre um mundo i e quais aspectos deste mundo são relevantes para compará-lo com outros mundos. Se afirmo que: [(� <� �) ∧ (� <� �)] → (� <� �) ou seja, se i é mais semelhante a j do que a k e j é mais semelhante a k do que a i, então k seria mais semelhante a j do que a i. Isto evita estabelecer critérios quantitativos de comparação entre propriedades. Ressalvas similares quanto a teorias quantitativas para análise de semelhança também são apresentadas por Tversky (1977, p. 329). Um dos exemplos citado por ele e que pode ser usado para explicar o problema com o esquema anteriormente apresentado. Considere a comparação entre três países distintos: Rússia, Jamaica e Cuba. Para o autor, há uma semelhança tanto entre Jamaica e Cuba, por estarem localizados no mesmo continente, como há uma semelhança entre Cuba e Rússia, que apesar da distância geográfica, houve uma associação política entre os dois países do qual o primeiro se beneficiava de subsídios econômicos recebidos do segundo. Pelos critérios considerados, parece não haver semelhança alguma entre Rússia e a Jamaica. Substituindo as variáveis i, j, e k anteriores pelo nome dos países se obteria algo como: se a Rússia é mais semelhante a Cuba do que a Jamaica e a Jamaica é mais semelhante a Cuba do que a Rússia, então Cuba seria mais semelhante a Jamaica do que a Rússia. O consequente deste condicional não pode ser afirmado, ao menos que se estabeleça sobre qual critério de comparação ele está sendo afirmado. Taylor (2004, p. 248) também percebeu esse problema na avaliação de critérios de semelhança e concluiu que: “a justificação de julgamentos de similaridade é relativa a atitude cognitiva do juiz (crenças) e também às suas avaliações (objetivos)”.7 A terceira teoria da semelhança é a lógica de primeira ordem para semelhança comparada apresentada por Williamson (1988). Diferente de 7 The warrantedness of similarity judgements is relative to the cognitive attitude of the judge (beliefs) as well as to their evaluative ones (goals) 139 renato Mendes roCHa Lewis, Williamson apresenta um operador tetrádico para semelhança e argumenta que incluir uma variável a mais no operador evita problemas encontrados na notação triádica de Lewis. Williamson apresenta a sua lógica da similaridade como se fosse um desenvolvimento daquele operador triádico de Lewis, além dos avanços no seu novo sistema lógico, ele discute vantagens filosóficas da adoção de um sistema tetrádico ao invés do sistema triádico. Segundo ele, a inclusão de mais um termo no operador é feito apenas para tornar explícita uma relação que é considerada implícita na notação de Lewis. Além do mais, o poder expressivo das fórmulas seria mais adequado para dar conta da complexidade envolvida nas operações de similaridade comparativa. Por conseguinte, nota-se que aspectos importantes desta nova definição podem se apoiar em teorias já existentes. Um passo adicional seria melhorar a nova definição ao incorporar aspectos destas teorias mencionadas. Antes disso, vale a pena refletir se este caminho de busca de uma definição que seja necessária e suficiente para uma determinada noção seja ele mesmo, do ponto de vista metodológico, adequado. Talvez mais importante que definir seja consolidar a noção considerando a sua utilidade teórica.8 Considerações finais A busca por uma definição que seja necessária e suficiente para propriedades naturais parece ser algo ambicioso considerando as inúmeras dificuldades enfrentadas por aqueles que se colocaram nesta empreitada. Esta é uma opinião de Sider (1993, p. 25) que ao discutir as noções de propriedade natural, intrinsicalidade e duplicação afirma que a maioria das tentativas de definição encontradas possuem falhas consideráveis. Dada essa dificuldade em definir, ele prefere tratar propriedade natural como uma noção primitiva e, portanto, não analisável em termos de condições suficientes e necessárias. Sider procura apenas um esclarecimento para a naturalidade e defende que o fato de uma propriedade ser natural é uma questão objetiva e independente de nós. Penso que essa característica eminente é que tornam as propriedades naturais tão especiais. Dado 8 Agradeço ao prof. Daniel Stoljar (Australian National University) por trazer minha atenção para este ponto em conversa pessoal. 140 Esboço de uma nova definição para propriedades naturais o poder mágico atribuído a elas: encontrar as articulações corretas existentes na natureza, ou seja, o modo mais adequado de obter uma classificação do mundo natural e humano; e que essa classificação seja correta em virtude da realidade e não do homem. Afirmações deste tipo possuem pelo menos dois pressupostos filosóficos que precisam ser explicitados. O primeiro deles é o realismo metafísico, uma perspectiva que parece ser assumida como pano de fundo sem a necessidade de discussão extra pela maioria dos filósofos australianos. A citação seguinte Heil (1989, p. 65) explicita de forma bem-humorada esse pano de fundo assumido: David Armstrong tem (levemente) sugerido que a forte luz solar e a severa paisagem marrom da Austrália forçam a realidade sobre nós. Ao contrário, na Europa, a neblina e as paisagens verdes enfraquecem o efeito da realidade.9 Assim, para concluir levando em consideração que um determinado conceito pode ser melhor compreendido tendo em vista as suas aplicações filosóficas do que a exibição de sua mera definição. Espero que o esboço da proposta de uma nova definição de propriedade natural tenha sido apresentado de forma em que o contexto da discussão tenha ficado claro também. Uma análise pormenorizada das aplicações das propriedades naturais na filosofia serão objeto investigação em trabalhos posteriores10. Bibliografia HEIL, J. Recent Work in Realism and anti-realism. Philosophical Books, Blackwell Publishing Ltd, v. 30, n. 2, p. 65-73, 1989. ISSN 1468-0149 LEWIS, D. (1973) Counterfactuals. [S.l.]: Blackwell Publishers, 1973. ________. (1983) New Work for a Theory of Universals. Australasian Journal of Philosophy, v. 61, n. 4, pp. 343-377, 1983. ISSN 0004-8402 9 10 David Armstrong has suggested (lightly) that the strong sunlight and harsh brown landscape of Australia force reality upon us. In contrast, the mists and gentle green landscape of Europe weaken the grip on reality. Sou grato aos colegas do GT Ontologias Contemporânea pela discussão após a minha apresentação e à Pró-reitoria de Pesquisa e Inovação (PRPI) da U*FCA pelo apoio financeiro para esta apresentação por meio do edital 09/2016. 141 renato Mendes roCHa QUINTON, A. (1957) Properties and Classes. Proceedings of the Aristotelian Society, Wiley-Blackwell, v. 58, n. n/a, pp. 33-58, 1957. Disponível em: <http://www. jstor.org/ stable/4544588>. ROCHA, R. M. (2017) Mundos possíveis, propriedades naturais e mereologia: tópicos na filosofia de David Lewis. Tese (Doutorado em Filosofia). Universidade Federal de Santa Catarina, 2017. RYDER, D. SINBAD (2004) Neurosemantics: A Theory of Mental Representation. Mind and Language, v. 19, n. 2, pp. 211-240, 2004. ISSN 02681064. SIDER, T. (1993) Naturalness, Intrinsicality, and Duplication. Tese (Doutorado) — University of Massachusetts, 1993. TAYLOR, B. Transworld similarity and transworld belief. In: JACKSON, F.; PRIEST, G. (Ed.). Lewisian Themes: The Philosophy of David K. Lewis. [S.l.]: Oxford University Press, 2004, (Clarendon Press), cap. 19, p. 296. TVERSKY, A. Features of SImilarity. Psychological review, v. 84, n. 4, pp. 327-352, 1977. WILLIAMSON, T. First-order logics for comparative similarity. Notre Dame Journal of Formal Logic, v. 29, n. 4, pp. 457-481, 1988. 142 Desaxiomatizar a natureza, tarefa da ecologia política Alyne de Castro Costa (PUC-Rio) No último dia 29 de agosto, um grupo de cientistas apresentou, no Congresso Geológico Internacional, a recomendação, baseada na proposta formulada em 2000 por Paul Crutzen e Eugene Stoermer (2010), de que se reconheça que o planeta adentrou nos últimos anos uma nova época geológica – o Antropoceno –, em decorrência dos impactos significativos que a atividade humana vem causando sobre diversos processos biogeoquímicos e biogeofísicos da Terra. Em que pese a grande repercussão nas mais diversas áreas de conhecimento a respeito da escolha do termo “Antropoceno”, ele designa a época em que “estratos geológicos são dominados por remanescentes de origem humana recente” (ANGUS, 2015), e as alterações ecológicas que caracteriza incluem: 1 Notável aceleração nas taxas de erosão e sedimentação, perturbações químicas de larga escala nos ciclos do carbono, nitrogênio, fósforo e outros elementos, o início de mudanças significativas no clima e nível do mar globais e alterações bióticas, como os níveis sem precedentes de espécies invasoras em toda a Terra. Muitas dessas mudanças são de longa duração geológica, e muitas delas são de fato irreversíveis. Esses e outros processos correlatos deixaram uma série de sinais nos estratos geológicos recentes, incluindo plástico, alumínio e partículas de concreto, radionuclídeos artificiais, mudanças nos padrões dos isótopos de carbono e nitrogênio, partículas de cinzas volantes, e uma variedade de resíduos biológicos fossilizáveis. Muitos destes sinais deixarão uma marca permanente nos estratos geológicos da Terra (WORKING GROUP ON THE ANTHROPOCENE, 2016, tradução minha).1 “[...E]rosion and sediment transport associated with a variety of anthropogenic processes, including colonisation, agriculture, urbanisation and global warming; the chemical composition of the atmosphere, oceans and soils, with significant anthropogenic perturbations of the cycles of elements such as carbon, nitrogen, phosphorus and various metals; environmental conditions generated by these perturbations – these include global warming, ocean acidification and spreading oceanic ‚dead zones’; the biosphere both on land and in the sea, as a result of habitat loss, predation, species invasions and the physical and chemical changes noted above”. Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 143-159, 2017. 143 alyne de Castro Costa Segundo o grupo responsável pela recomendação, o Antropoceno teria começado por volta de 1945, com a chamada “Grande Aceleração” ocorrida no período pós-guerra:2 se bem a atividade humana venha deixando marcas no registro estratigráfico há milhares de anos (mesmo antes da época geológica precedente, o Holoceno), foi a partir de meados do século XX – período de intenso crescimento econômico e populacional, acompanhado do aumento exponencial da atividade industrial em escala mundial – que alterações ecológicas substanciais e praticamente sincrônicas em termos globais se intensificaram. Porém, por mais que os efeitos desastrosos dessa aceleração sejam cada vez mais evidentes – o que se confirma dia após dia com a escalada de notícias alarmantes dando a saber, por exemplo, dos sucessivos recordes de aumento da temperatura global (2016, tudo indica, será o ano mais quente já registrado),3 causado pela massiva emissão de dióxido de carbono na atmosfera, sem precedentes nos últimos 66 milhões de anos –4, ainda é absolutamente insuficiente a ação política com vistas a, se não deter a degradação ambiental, ao menos amenizar suas consequências. É sob efeito do aturdimento provocado pelo ritmo acelerado adquirido recentemente pela “natureza” – não só no que diz respeito à mudança climática, mas também às inúmeras (e muitas delas, já irreversíveis)5 alterações drásticas nos processos ecológicos da Terra6 – que se desenvolve minha pesquisa; é a consternação causada pela degradação em escala planetária e o iminente colapso das condições materiais necessárias à existência7 que motiva meu trabalho na pós-graduação em filosofia. Meu interesse é, sobretudo, investigar possíveis maneiras de fazer frente à ameaça imposta pelo colapso ambiental, sejam elas no campo da prática teórica – abrindo caminho para novos imaginários que expressem outras formas de vida, produção e relação com os “seres-da-terra”, para 2 3 4 5 6 7 Cf. “Great Acceleration” (IGBP, 2015): <http://www.igbp.net/globalchange/greatacceleration.4.1b8ae20512db692f2a680001630.html>. Cf. THE GUARDIAN. O recorde anterior era o ano de 2015, e, antes dele, 2014. Cf. ZEEBE; RIDGWELL; ZACHOS, 2016. Cf. JAMAIL, 2016; DENAYER, 2016 e ARCHER, 2009. Sobre uma visão geral das alterações planetárias, cf. ROCKSTRÖM et al., 2009; IPCC, 2013; e HANSEN et. al., 2016. Refiro-me aos parâmetros biológicos, geológicos, físicos e químicos que sustentam não apenas toda e qualquer produção econômica e social humanas, mas também a possibilidade de vida na Terra. 144 Desaxiomatizar a natureza, tarefa da ecologia política falar como Marisol de La Cadena (2010)8 –, sejam no da prática política,9 a qual se dá com os movimentos de desobediência civil, com as oposições a projetos governamentais e empresariais extrativistas e poluidores, com as experiências concretas, que não param de proliferar, de novos modos de existência nos quais os outros-que-humanos10 exercem um papel bastante diverso, e muito mais interessante politicamente, do que aquele que a racionalidade moderna ocidental lhes havia concedido – a saber, grosso modo, o de mera paisagem para o desenrolar das ações humanas, meros recursos a serem explorados para o “nosso” desenvolvimento e o progresso de “nossa” sociedade. A partir do conceito cunhado por Isabelle Stengers (2004; 2011), chamo tais experimentações de resistências cosmopolíticas. Elas constituem uma forma de fazer política descentrada do “humano”; mais precisamente, desvinculada dos valores humanistas supostamente universais – porém sabidamente situados, na medida em que expressam uma determinada tradição do pensamento, a europeia, e historicamente serviram (e ainda servem) a determinados propósitos de dominação e subjugação, 8 9 10 A partir de seus estudos das cosmopolíticas indígenas nos Andes, Cadena chama “seres-da-terra” (earth-beings) as entidades que constituem o domínio que ocidentalmente chamamos de “natural” – sejam elas animais, montanhas, plantas, rios, a chuva ou o vento, por exemplo – e que não podem ser compreendidas simplesmente segundo a ideia ocidental de “não-humanos”: trata-se de seres sencientes capazes de agir e participar da conformação e manutenção do espaço dinâmico que eles integram. Opto por usar essa expressão no presente texto porque ela capta bem a agência (cosmo)política dos seres outros-que-humanos que precisa ser reconhecida no contexto da crise ecológica que marca nosso tempo. Mais sobre a noção de “cosmopolítica” a seguir. Essa organização das resistências como teóricas ou políticas é uma apropriação um tanto selvagem da concepção althusseriana de “prática social”, que reuniria a prática econômica, ideológica, política e teórica (esta última correspondendo à produção científica e filosófica). Cf. ALTHUSSER, 1969. Em inglês, other-than-humans, expressão proposta por Marisol de la Cadena (2010; 2014) em substituição à expressão “não-humanos”, de emprego corrente. Isto porque, nesta última, o “humano” é pressuposto como o termo definido e definidor, já que todos os outros seres são pensados apenas a partir dele, como seus negativos. Segundo a autora, “outros-que-humanos” indica, assim, o “excesso ontológico” desses seres em relação à passiva, restrita e um tanto equivocada categorização como não-humanos – na medida em que estes são tradicionalmente pensados como privados de agência e intenção (idem, 2014, p. 256). Eduardo Viveiros de Castro manifestou incômodo semelhante em uma palestra recente, empregando a expressão “extra-humanos” (2015, comunicação verbal). Por concordar com esses autores que a forma como nos referimos a estes seres também é uma atitude política, optei por adotar o termo usado por Cadena no presente texto e na tese. 145 alyne de Castro Costa que se expressa(ra)m por meio das inúmeras formas de colonialismo, incluindo sua versão contemporânea, o desenvolvimentismo neoliberal. Isto porque tais valores pressupõem como legítima a preponderância dos interesses de determinados humanos (grosso modo, os herdeiros e/ou beneficiários da tradição europeia de pensamento) sobre os dos demais seres, além de sobre os povos que não compartilham sua visão de mundo, os ditos não-ocidentais. Descentrar a política do “humano” implica, assim, a capacidade de reconhecer que outros atores que não apenas os humanos (seres naturais e sobrenaturais, bem entendido) podem integrar o corpo político e social; implica também reconhecer como legítimas outras formas do fazer político que não a ocidental, centrada no discurso e na produção de consenso e desqualificando como não tendo nada a propor aqueles que não podem, ou que se negam a, participar nos termos que lhes são impostos. Assim, num esforço de estabelecer os critérios segundo os quais tais experimentações cosmopolíticas podem constituir resistências à sanha devastadora capitalista, especialmente em sua configuração neoliberal atual, nesta comunicação pretendo lançar mão do conceito de “axiomática” que Gilles Deleuze e Félix Guattari empregam para descrever o funcionamento do capitalismo, e da noção de “máquina de guerra” enunciada pelos mesmos autores, de modo a examinar em que medida a noção de “natureza” estabelecida ao longo da modernidade serviu, e ainda serve, como elemento operativo para sua expansão contínua; a partir daí, pretendo apontar, mesmo que de forma inconclusiva, que tipo de rupturas e conexões tais resistências precisam suscitar para escapar do jugo axiomático do capital. Vejamos. *** Segundo a leitura que Deleuze e Guattari fazem d’O Capital, de Marx, o capitalismo pode ser pensado como uma conjunção singular e contingente de pelo menos dois fluxos sociais descodificados – a saber, fluxo de trabalhadores desterritorializados (isto é, destituídos de terra e dos meios de retirar dela seu sustento) que passam a vender sua força de trabalho e fluxo de “dinheiro descodificado, devindo capital” (oriundo de uma acumulação primitiva, da qual tratarei em instantes) capaz de com- 146 Desaxiomatizar a natureza, tarefa da ecologia política prar essa força de trabalho (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 298)11 – que passam a ser regidos pela lógica de um “equivalente geral”, o capital ou o mercado: “o capitalismo se forma quando o fluxo de riqueza não qualificado encontra o fluxo de trabalho não qualificado e se conjuga com ele”, dizem os autores, acrescentando: “É o mesmo que dizer que o capitalismo se forma com uma axiomática geral dos fluxos descodificados” (idem, 2012, pp. 161-162). O termo “axiomática”, tomado emprestado do domínio das ciências, é empregado para destacar que, no capitalismo, o capital funciona como um mecanismo de produção de uma equivalência geral que permite aferir e comparar o “valor” de objetos e relações pertencentes originalmente a campos distintos. Ele é, portanto, um modelo lógico abstrato (o do mercado capitalista) por meio do qual os movimentos concretos da vida social, todos os fluxos heterogêneos são “reduzidos à sua referência ao capital, ou seja, são descodificados – compreendidos fora de seu código particular” (ROQUE, no prelo) – para serem conjugados sob um sistema de comparabilidade valorativa. Nas palavras de Tatiana Roque, 11 12 a axiomática faz com que os fluxos descodificados sejam colocados à disposição de uma conversão, de uma conversibilidade, de uma traduzibilidade e de uma equivalência geral que é a condição de possibilidade da monetização. E isso em todas as relações sociais, não apenas naquelas mais claramente capitalistas, como as relações mercantis, as finanças etc. [...] Cria-se uma coisa, um novo discurso, enunciados, uma certa estética: em seguida são imediatamente transformados em t-shirt e vendidos – e isso das maneiras mais sutis. Não há nada de conspirador, de exterior, como a ideia de apropriação ou de recuperação faria crer. Trata-se de uma combinação que segue leis imanentes do capitalismo, e que produz o produto. Um pensamento novo, uma convocação à ação política, um slogan saído de uma mobilização é imediatamente convertido, tornado traduzível em termos de likes ou pontos nos indicadores de avaliação (ibidem, tradução minha).12 Bernardo Santos destaca outros fluxos que também contribuíram para a conformação da axiomática capitalista: o de mercadorias descodificadas de sua utilidade em favor de seu valor de troca circulando num mercado ainda embrionário, mas em expansão, e uma descodificação da técnica, que, com a máquina a vapor, se desassocia de problemas específicos e passa a servir a um aumento da produtividade em geral (SANTOS, 2010, pp. 281-282). “L’axiomatique fait que les flux décodés sont mis à disposition d’une conversion, d’une conver- 147 alyne de Castro Costa Os fluxos descodificados conjugados por meio desta axiomática não obedecem a uma ordem ou código transcendente: é por essa razão que é possível para o capitalismo ir modificando, acrescentando ou retirando os axiomas sobre os quais se sustenta conforme se depara com possíveis limites, estendendo continuamente suas próprias fronteiras.13 Axiomas não são princípios, proposições teóricas, tampouco discursos ou fórmulas ideológicas: eles são enunciados operatórios que encarnam modos de vida, afetos e hábitos que interferem diretamente na prática social. Assim, diante de uma crise ou na passagem de um modelo de acumulação de capital a outro, axiomas podem ser modificados, acrescentados ou retirados para promover rearranjos nas relações produtivas e no uso dos modos de produção, permitindo ao capitalismo absorver aquilo que, antes, constituía uma ameaça. Por essa razão, gostaria de examinar, começando pelo momento da acumulação primitiva pré-capitalista e chegando aos modelos de acumulação de capital vigentes atualmente, se a exploração da “natureza”, conforme pensada desde a modernidade, pode ser considerada um axioma que propiciou a consolidação e expansão dos limites do capitalismo. Dito de outro modo, pretendo analisar o processo de acumulação capitalista sob o ponto de vista da exploração dos seres-da-terra que a torna possível, considerando o papel que a ideia mesma de “natureza” desempenhou nesse processo. Não cabe, aqui, traçar uma genealogia da noção de “natureza”, descrevendo a trajetória deste conceito ao longo da história ou precisando as causas do estabelecimento do abismo ontológico separando humanos de outros que-humanos e da consequente objetivação destes últimos. De todo modo, podemos afirmar com alguma tranquilidade, e seguindo Bru- 13 tibilité, d’une traductibilité ou d’une équivalence générale qui est la condition de possibilité de la monétisation. Et cela dans tous les rapports sociaux, pas seulement ceux qui sont plus nettement capitalistes, comme les rapports d’achat, les finances etc. […] On crée une chose, un discours nouveau, des énoncés, une certaine esthétique ; et puis c’est tout de suite transformé en t-shirt et vendu – et cela avec des manières les plus subtiles qui soient. Il n’y a là rien de conspirateur, d’extérieur, comme l’idée d’appropriation, ou de récupération, ferait croire. C’est une combinatoire qui suit des lois immanentes du capitalisme, et qui produit le produit. Une pensée nouvelle, une convocation à l’action politique, un slogan issu d’une mobilisation est tout de suite converti, devient traductible en termes de Likes ou de points dans les mesures d’évaluation.” Por exemplo, o Estado de Bem-Estar Social pode ser compreendido como a incorporação de um axioma em resposta à crise econômica mundial e à revolução russa que constituíam uma ameaça ao capitalismo no início do século passado. 148 Desaxiomatizar a natureza, tarefa da ecologia política no Latour (1994), que é ao longo da modernidade que se estabelece a noção de “natureza” como o domínio que abriga exclusivamente os outros-que-humanos, os quais seriam desprovidos de qualquer agência ou intencionalidade, pura res extensa ou, na melhor das hipóteses, meros autômatos servindo à observação, estudo, manipulação, uso e exploração para proveito dos humanos, os entes que compõem o polo oposto (também pensado como “a cultura”, “a sociedade”, “a humanidade”). Além disso, como bem observa Latour, essa Grande Divisão é o que permite aos modernos distinguirem-se dos povos ditos “primitivos” e de seu passado: a confiança na separação abissal entre natureza e cultura fornece aos ocidentais a audácia de mobilizar humanos e outros-humanos em sua produção social; lhes falta a prudência dos não-modernos que não pensam ser possível mudar a ordem social sem modificar a ordem natural e vice-versa (LATOUR, 1994, p. 45). Autorizam-se a explorar porque a terra e seus seres, desanimados, deixaram de oferecer perigo de retaliação. De uma só tacada, assim, seres-da-terra viram recursos, matérias-primas, e “povos primitivos” se tornam uma espécie de humanos de segunda categoria, porque próximos demais do polo da “natureza”; ambos passíveis de exploração, colonização, de intervenções brutais. Configura-se, assim, um processo duplo de colonização, de pensamentos e de corpos: a confiança na universalidade da bipartição do mundo entre política e natureza não pode ser dissociada da operação de erradicação cultural e social, empreendida em nome da civilização e da razão, pelos modernos em outras partes do mundo (STENGERS, 2012). Isto dito, se pudermos recontar a história da acumulação primitiva de capital sob a perspectiva da relação com a terra e os seres-da-terra, não é difícil reconhecer, por exemplo, nos cercamentos14 e nas pilhagens coloniais do Novo Mundo (atividade mineradora e extrativista nas Américas, empregando como mão-de-obra povos escravizados) – dois dos fatores citados por Marx n’O capital para essa acumulação – o papel crucial que a ideia de uma natureza explorável ilimitadamente desempenhou nos processos de enriquecimento pré-capitalista. A desterritorialização das relações com a terra no Velho e no Novo Mundo, portanto, é um dos 14 Enclosures, em inglês; movimentos de expropriação das terras que antes pertenciam aos camponeses para transformar a lavoura em pastagem para as ovelhas que forneceriam algodão para a indústria têxtil em expansão, que tiveram lugar na Europa a partir do século XVII. 149 alyne de Castro Costa fatores preponderantes para a liberação dos fluxos de trabalho abstrato e de dinheiro tornado equivalente geral abstrato, de cuja combinação o capitalismo surgiu. Em todas as fases da acumulação capitalista, a exploração dos seres-da-terra em escala cada vez mais gigantesca, sem a qual não poderia haver agronegócio e mercado de commodities, fabricação de ferramentas, construção de aparatos tecnológicos e produção de mercadorias – exploração que ocorre, via de regra, em concomitância com a destruição das relações de outros povos e determinados grupos sociais com estes seres – se deu como recurso mais imediato para a expansão do capital, mesmo que sua contribuição não tenha sido reconhecida explicitamente pela economia política.15 A inserção da “natureza” enquanto axioma capitalista se dá, justamente, pela assunção de sua instrumentalização ilimitada e da decodificação de toda e qualquer relação para com os seres-da-terra em capital; e mesmo num momento como o atual, quando a depleção dos processos biogeoquímicos do planeta mostra que, como Deleuze e Guattari haviam dito, o capitalismo está em vias de “se chocar com o limite extremos dos recursos e das energias” (2012, p. 178) e começa-se a reconhecer a demência de tal frenesi devastador, vemos a transformação do axioma da exploração da natureza em propostas pretensamente mais palatáveis, como a noção de economia verde, que vem a ser a adaptação dos processos produtivos para gerar mais benefícios e menos impactos sociais e ambientais; a invenção dos chamados “serviços de ecossistemas” (isto é, a precificação das funções do ecossistema que são “úteis” aos seres humanos, a tradução do valor da natureza em termos de mercado); a criação dos mercados de crédito de carbono, por meio do qual os países desenvolvidos pagam pelo direito de poluir; entre outras iniciativas celebradas como inovadoras e “sustentáveis”. Isso considerando as correntes liberais mais progressistas; se formos mencionar a investida neoliberal como ela vem se desenrolando especialmente no Brasil, o que constatamos é a retirada de axiomas nessa esfera, como é o caso recente das tentativas de vi15 Caso semelhante ao do trabalho reprodutivo e da atividade doméstica que permitem a reprodução da força de trabalho, mas que historicamente eram considerados um “não-trabalho”, algo feito por amor – situação denunciada por Silvia Federici e outras autoras marxistas feministas desde a década de 1970. Pretendo desenvolver, na tese à qual a presente comunicação diz respeito, a extensão do conceito de reprodução também ao papel exercido pelos seres-da-terra nos processos de acumulação capitalista. 150 Desaxiomatizar a natureza, tarefa da ecologia política lipendiar a legislação ambiental – o retrocesso que significou a revisão do Código Florestal, a flexibilização do licenciamento ambiental para novas instalações e empreendimentos industriais, a aprovação da Lei da Biodiversidade (que facilita a apropriação do patrimônio genético do país e do conhecimento tradicional e indígena pelo setor empresarial) etc. De todo modo, seja em sua manifestação “sustentável” ou neoliberal – na primeira os limites ecológicos até são reconhecidos, mas tentam ser empurrados mais para adiante; na segunda nem reconhecidos; mas em ambas a economia parece submeter a ecologia (BONNEIL; FRESSOZ, 2013) –, o capitalismo segue superando seus limites às custas da exploração obstinada dos entes outros-que-humanos considerados apenas recursos disponíveis. Esse é o axioma mais elementar do processo capitalista; nesse sentido, o universalismo humanista que, desde a modernidade, dá a tônica da produção teórica e da prática política, econômica e social no chamado Ocidente constitui, como afirmam Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, um “autêntico estado de exceção ontológico” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 43), que se alimenta da guerra perpétua que o capitalismo faz reinar e possui profundas implicações políticas. Na metafísica dos modernos e seus herdeiros, tudo se passa como se pudesse haver “humano” sem os outros seres que compõem com ele a realidade que habitamos; como se fosse possível saber o que é “próprio” do humano, o que garante nossa existência enquanto humanos, sem considerar as inúmeras conexões com os demais seres que a sustentam. A entrada do planeta no Antropoceno, ou a intrusão de Gaia em nossas vidas, torna evidente aquilo que o espírito humanista se recusa a aceitar: não há humano sem os seres que fazem do humano humano e que fazem do mundo mundo; não há humanos sem Terra, tampouco há escape da Terra... e o que, aliás, se tornarão os humanos quando a Terra se tornar algo completamente diferente do que vinha sendo há milhares de anos? *** Se pretendemos oferecer resistência à tendência axiomatizante do capital, é preciso, como sustenta Tatiana Roque, pensar a criação dos axiomas como terreno de luta (ROQUE, op. cit.): se a axiomatização é um processo de extensão dos limites capitalistas, as resistências vão 151 alyne de Castro Costa lutar para que os diversos fluxos heterogêneos que atravessam o socius não sejam convertidos em axiomas. Nesse sentido, para pensar o potencial desestabilização das resistências cosmopolíticas, pode ser interessante recorrer às noções de “ruptura de subjetividade” e “máquina de guerra” também como tratados por Deleuze e Guattari. N’O Anti-Édipo, os autores apresentam três tipos de investimentos subjetivos capazes de provocar rupturas políticas: os investimentos pré-conscientes que constituem os interesses de classe (que correspondem aos grandes “objetivos sociais” que constituem a posição dos partidos, sindicatos etc.); os investimentos subjetivos que apontam para as condições de possibilidade de um novo socius, mas mantêm a luta no nível molar (isto é, condicionando os novos possíveis às estruturas de soberania existentes); e os investimentos revolucionários inconscientes que operam no nível molecular e provocam uma “ruptura de causalidade que força a reescrever a história no próprio real e produz esse momento estranhamente plurívoco em que tudo é possível” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 501). Assim, uma transformação revolucionária demanda não apenas o engajamento nas lutas socialmente estabelecidas, mas também a capacidade de constituir novas subjetividades não (completamente) submetidas à normatividade capitalista-estatal. Nesse sentido, conceitos como o de “Gaia” de Bruno Latour e Isabelle Stengers; a noção de “geontologia” e a crítica ao “imaginário do carbono” de Elizabeth Povinelli; as ideias de “Chtlhuceno” e “staying with the trouble” de Donna Haraway, entre outras produções teóricas contemporâneas a respeito da catástrofe ecológica;16 mas também iniciativas como o projeto Dark Mountain, rede de artistas e pensadores que desejam construir um imaginário mais adequado à situação de colapso ecológico que estamos adentrando; ou mesmo as inúmeras experiências recentes daquilo que Stengers chama de reclaiming (reapropriação, recuperação, reaprendizagem de outras formas de pensar, ser e agir na Terra, como as iniciativas de agroecologia, permacultura, slow food, entre outras) abrem espaço no socius para outras subjetividades que não as formatadas ou parasitadas pelo capitalismo – as quais corresponderiam ao que Eduardo 16 Para uma visão geral desses conceitos, cf. os textos disponíveis no site do Colóquio Internacional Os Mil Nomes de Gaia: <https://osmilnomesdegaia.eco.br/>. 152 Desaxiomatizar a natureza, tarefa da ecologia política Viveiros de Castro chamou de “descolonização do pensamento”, 17 ou ao que Stengers denominou “desintoxicação da noção de “humanidade” e das “narrativas que nos fizeram esquecer que a Terra não é nossa, [que não está] a serviço de nossa História” (STENGERS, 2009, p. 199) – na medida em que fazem emergir outras concepções das relações entre humanos e outros-que-humanos, “impossíveis segundo as causas e determinações do capitalismo”, criando, assim, “novos universos de referência, um outro mundo para a subjetividade” (ROQUE; LAZZARATTO, no prelo). Porém, nada garante que tais experiências de resistência produzam efeitos para além da ruptura de subjetividade, isto é, necessariamente ressoem nas relações sociais, chegando a abalar o axioma da “natureza ontologicamente objetificada” capitalista. Se o capitalismo se expande realizando movimentos de “alisamento do espaço” em escala mundial com vistas a “cercar e enclausurar a terra”, lançando mão de um “equivalente geral” que aplaina (ou submete) todos os outros valores e modos de valoração, Deleuze e Guattari chamam de “máquinas de guerra” as linhas de fuga que não param de constituir “possibilidades de revides inesperados, de iniciativas imprevistas que determinam máquinas mutantes, minoritárias, populares, revolucionárias” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, pp. 116-118). Nesse sentido, as resistências precisam estabelecer outros agenciamentos entre humanos e outros-que-humanos para bloquear a axiomatização, impedindo a inserção das relações com os seres-da-terra na lógica capitalista que os reduz a meros recursos naturais: recusar o jogo sedutor da economia verde e suas promessas de conciliação entre desenvolvimento e sustentabilidade; rejeitar as “alternativas infernais” (STENGERS, 2009) oferecidas pelo capitalismo e experimentar outras formas de convivência com a terra e seus seres; identificar possibilidades de alianças que, mesmo sem aspirar ao consenso, constituam uma recusa à normatização imposta pelo capitalismo e permitam a criação de novas 17 Segundo Viveiros de Castro, a “descolonização do pensamento” trata de operar “uma dupla descolonização: assumir o estatuto integral do pensamento alheio enquanto pensamento e descolonizar o próprio pensamento. Deixar de ser o colonialista de si mesmo, subordinado às ideias mestras, às ideias-chave de sujeito, autoridade, origem, verdade. A descolonização envolve esse duplo movimento, o reconhecimento da descolonização histórica, sociopolítica do mundo, e os efeitos que isso tem sobre a descolonização do pensamento” (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 255). 153 alyne de Castro Costa re-existências18 capazes de liberar uma “multiplicidade de engajamentos e uma proliferação de maneiras de se comportar com/sobre a Terra” (LATOUR, 2013, ligeiramente modificado). É justamente na capacidade de produção e proliferação de plurivocidades que reside a potência das resistências cosmopolíticas; por compreenderem a política como uma forma de fazer proliferar as divergências que caracterizam os modos próprios de existir dos diversos coletivos que povoam o mundo, elas interrompem o fluxo desenfreado de desterritorialização capitalista das relações existentes e sua conseguinte reterritorialização em valor de capital, ao afirmar o valor próprio destas relações em seus contextos (na medida em que os envolvidos nestas resistências sabem que os termos não preexistem às relações), valorizando as associações entre humanos e outros-que-humanos que compõem determinadas redes de sociabilidade sem as submeter aos termos universalistas e homogeneizantes da precificação de mercado. Como explica Stengers, a invenção de axiomas é a antítese da cosmopolítica, na medida em que a função daqueles é “substituir imperativos inegociáveis pela negociação de um problema” (STENGERS, 2011, p. 408). Isso não significa a exaltação de uma absoluta intransigência, como se o mundo e suas relações não se produzissem por meio de constantes traduções; significa que o que é ou não negociável não pode ser decidido unilateralmente e de antemão por nenhuma das partes interessadas em determinada questão, muito menos por alguma suposta entidade englobante (a máquina capitalista, as leis do mercado, às quais a grande maioria das práticas modernas, como a ciência e a economia, serve) capaz de estabelecer uma medida comum para a valoração de todos os diferentes modos de existir na Terra. A função das traduções que as resistências cosmopolítcas evidenciam não é mais, portanto, estabelecer equivalências, como acontece no capitalismo, mas sim deixar emergir as diferenças imanentes a cada modo de existir, produzir e se relacionar; a equivocação, prossegue Maniglier, é o modo de existência próprio das multiplicidades (MANIGLIER, 2015).19 18 19 Neologismo proposto por Eduardo Viveiros de Castro (2015, comunicação verbal): em vez de ser entendida apenas como oposição ou reação àquilo que se deseja, me interessa pensar a resistência por sua potência criativa que permite dar lugar a outras possibilidades de existir, criar e se relacionar com os demais seres que habitam o mundo. Como propõe Maniglier, talvez a questão filosófica mais importante hoje não seja como fazer reivindicações universalmente válidas, mas sim como colocar em relação formas de coletividade (togetherness) que são incompatíveis (MANIGLIER, 2015). 154 Desaxiomatizar a natureza, tarefa da ecologia política Se, como afirma Stengers, “desacelerar a razão” (slowing down reasoning) é essencial para deixar emergir as multiplicidades que compõem o mundo (STENGERS, 2004), paradoxalmente tal desaceleração pode constituir um outro tipo de aceleração, uma velocidade intensiva que, por não seguir as mesmas coordenadas do capitalismo, pode instituir “um poder inventivo capaz de resistir a seu poder axiomático” (idem, 2003, p. 413). É dessa forma que Stengers sugere interpretar a famosa e controversa passagem da obra Mil Platôs, na qual Deleuze e Guattari afirmam que “talvez os fluxos ainda não estejam suficientemente desterritorializados e suficientemente descodificados” e que é preciso, para combater o capitalismo, “não retirar-se do processo [de desterritorialização], mas ir mais longe, ‘acelerar o processo’”, pois “a esse respeito, nós ainda não vimos nada” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 318). São as possibilidades, sempre infinitas e presentes, de constituir resistências à axiomatização do “mundo natural”, de forma a fazer frente à calamidade ecológica engendrada por ela, que me interessam nesta pesquisa; a capacidade de constituir linhas de fuga em direção a outras práticas e imaginários que permitam estabelecer novas configurações de mundo, possivelmente mais condizentes com as dinâmicas relacionais que permitem sua existência. Se tais conceitos podem constituir operadores tão eficazes dessa análise é porque, longe de tomarem como pressuposto a bipartição ontológica que determinou sentidos fixos e pré-determinados aos diversos existentes (o homem, o animal, a terra, o capital, o Estado...), eles evocam o reconhecimento do papel das inúmeras interferências e agenciamentos entre seres e forças heterogêneos na configuração do mundo em que vivemos. Na medida em que não se deixam subordinar e que se empenham na fabricação de outras configurações de mundo, tais resistências trazem em si uma força revolucionária e criadora, capaz de liberar vetores de desterritorialização que abrem novas possibilidades de agenciamentos e produções de sentidos, permitindo-nos atualizar novas formas de pensar e agir nessa terra que, apesar de seus mil nomes, chamarei aqui de Gaia. 155 alyne de Castro Costa Referências ALTHUSSER, L. (1969). For Marx. Tradução de Ben Brewster. Allen Lane, The Penguin Press. ANGUS, I. 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A incomensurabilidade ontológica absoluta entre o homem e o cosmo – inaugurada na modernidade – nos leva a diversos problemas sociais, éticos, ambientais e políticos na medida em que serve como justificativa teórica e prática para a devastação do meio ambiente. Por outro lado, o dualismo natureza e cultura é análogo a disjunção parte-todo que dominou o pensamento sociológico até o século passado, sendo esta igualmente problemática na medida em que, por um lado, o predomínio do Todo nos leva a posturas fascistizantes e, pelo outro, uma postura centrada no predomínio absoluto do indivíduo nos leva ao neoliberalismo. Em ambos, temos o predomínio dos termos sobre as relações, sendo a disjunção colocada como um a priori intransponível. O que pretendemos é uma análise social que supere estes binarismos: primeiramente, através de uma continuidade entre o homem e a natureza, e, em segundo lugar, pela destituição da disjunção parte-todo. Sendo assim, nos voltamos para o pensamento de Gilbert Simondon e Gabriel Tarde, procurando articulá-los em uma metafísica do social que exclua a dicotomia entre parte e todo e natureza e cultura. Simondon realiza um percurso da física à sociedade humana, estabelecendo um contínuo entre eles na sua teoria da individuação; Tarde, por outro lado, expande o conceito de sociedade para toda a natureza, realizando o movimento oposto ao de Simondon. Trata-se de uma via de mão dupla, cuja complementariedade será o objeto do presente trabalho. 160 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 160-173, 2017. O Social e o Metafísico: Tarde e Simodon 2. A sociologia metafísica de Gabriel Tarde Na tentativa de pensar o social a partir de uma perspectiva que supera os binarismos natureza-cultura, interior e exterior, o pensamento de Gabriel Tarde nos parece fundamental. Tarde nos escreve do berço mesmo da sociologia, à época embrionária de disputas, na qual o método estava por se consolidar, e que o próprio campo sociológico ainda estava em vias de se aplainar. Neste sentido, vemo-nos inseridos nos debates que sucederam a Auguste Comte e a Herbert Spencer, autores cuja influência em Tarde é nítida, por maiores que sejam suas críticas a ambos. Para Tarde, o social não é de modo algum um domínio humano, um extrato a parte da natureza – em contradição direta a visão sociológica dominante. O pensamento de Gabriel Tarde se propõe, primeiramente, um pensamento do social. No entanto, o conceito de social na sua obra não se dá em um regime antropocêntrico, remetendo tão somente a interação entre humanos, mas, contrariamente, opera em todos os domínios da natureza. O social para Tarde é um conceito ontológico, e não apenas sociológico. Um sistema planetário é uma sociedade de planetas, uma galáxia, uma sociedade de estrelas, do mesmo modo que um organismo é uma sociedade de células; onde quer que haja integração, associação, agenciamentos, temos uma sociedade: “toda coisa é uma sociedade, todo fenômeno é um fato social.’’1 Mais profundamente, qualquer ente individuado já em si uma sociedade; em Tarde, da mesma forma que o social é ontológico, a ontologia será social, pois cada ente já é um composto de uma multiplicidade de outros, integrados e associados – em um regime, nos seus termos, de “mútua possessão.” Possessão aqui, de forma bem esquemática, significa relação; relação de mútua determinação, relação de participação e de comunicação, pela qual a ação das partes sobre si mesmas determinam a emergência, performaticamente e em ato, de uma totalidade provisória, i.e., uma sociedade qualquer. Deste modo, ele define a sociedade como “a possessão recíproca, sob formas extremamente variadas, de todos por cada um.”2 Esta orientação metafisica do trabalho de Tarde, diferentemente do que se pensa a uma primeira vista, vai em direção oposta a uma totalização. A sociologia de Tarde é uma sociologia do infinitesimal; com efeito, 1 2 TARDE, 2012, p. 81. Ibidem, p. 112. 161 ÁdaMo Bouças esCossia da veiga sua grande disputa intelectual foi com Émile Durkheim, cuja concepção do social acabou por imperar nos anos que se seguiram a sua morte. Para Durkheim, a sociedade é, em primeira instância, dada por fatos sociais, entendidos como estruturas totais e coercitivas que operam sobre o indivíduo determinando-o.3 Em Tarde tudo se passa diferentemente: não há objeto total, essência ou substância. Uma sociedade não é uma totalidade, mas uma multiplicidade de agentes atuando uns sobre os outros em um regime de causalidade recíproca. Nenhum composto, nenhum todo, existe verdadeiramente se não na ação das suas partes, não constituindo uma essência ou uma estrutura, mas uma teia de relações. Estes agentes são, por sua vez, infinitesimais. O infinitesimal, diferentemente de uma parte mínima, é uma tendência a zero que nunca o alcança. Ele é intensivo antes de ser uma parte primordial. Para Tarde, aquilo que determina a história, a sociedade e qualquer coisa, será a variação infinitesimal destes pequenos agentes, que ele chamará de mônadas. É neste sentido que Tarde se volta para Leibniz. A sociologia de Tarde é uma monadologia. Mas com uma diferença fundamental em relação ao autor moderno. Em Leibniz, as mônadas, as substâncias simples e fractais do qual todo aggregatum é composto, são fechadas, sem portas ou janelas, o que o leva a introdução de Deus para explicar a interação causal entre elas – “pois tudo que muda, muda por partes, e sendo elas as substancias simples, por consequência, sem partes, como poderiam mudar?”4 Deus, no momento da criação, pré-estabeleceu a harmonia de todo o universo de tal modo que tudo que se passasse como se houvesse de fato interação entre as mônadas. O devir é apenas uma aparência assegurada pela permanência da vontade divina no desenvolver-se da criação. Assim, há um princípio transcendente – a harmonia divina – em relação às mônadas e ao mundo. A solução de Tarde é, ao contrário, abrir as mônadas, reportando a causalidade e a extensão a um princípio imanente à relação das mônadas entre si. Escreve ele sobre Leibniz: 3 4 162 Como complemento de suas mônadas fechadas, Leibniz faz de cada uma delas uma câmara escura em que o universo inteiro das outras mônadas vem se inscrever em escala reduzida e sobre e sob um ângulo especial; além disso, ele teve que imaginar a harmonia DURKHEIM, 2016. LEIBINIZ, 1983, p. 105. O Social e o Metafísico: Tarde e Simodon pré-estabelecida, do mesmo modo que, como complemento de seus átomos errantes e cegos, os materialistas devem evocar as leis universais ou fórmula única que conteria todas estas leis, espécie de mandamento místico ao qual todos os seres obedeceriam e que não emana de nenhum ser, espécie de verbo inefável e ininteligível que, sem nunca ter sido pronunciado por ninguém, entretanto seria escutado em toda parte e sempre.5 Nos dois exemplos do trecho acima aquilo que Tarde crítica é, implicitamente, a necessidade de introdução de uma transcendência para explicar as interações entre as mônadas/átomos e a individuação dos seres. Para Tarde, as mônadas nada mais são do que feixes de força em interação. São ações, um princípio de propagação e repetição de si mesmo: cada elemento material “outrora visto como um ponto, torna-se uma esfera de ação indefinidamente ampliada.”6 Para Tarde, as mônadas são singularidades, não extensas, mas intensivas. Assim, tudo que é, é na medida em que age; não há uma substância ou uma essência como suporte para atributos ou invariável condicionante. Há apenas forças sobtr forças. A solução da abertura das mônadas leva a ideia de que elas se determinam mutuamente ao infinito em um movimento de guerra e paz entre si. A harmonia deriva das ações das mônadas umas sobre as outras; não é pré-estabelecida, mas um estabelecer-se contínuo. Elas, enquanto feixe de ações, se prolongam de cada parte ínfima do universo até onde podem, aspirando a absorvê-lo por inteiro. Sucede-se que estes diferentes feixes se chocam, limitando-se uns aos outros, somando-se ou aniquilando-se; é a partir disso que temos a homogeneidade a partir da heterogeneidade, o extenso do intensivo. A individuação monadológica é consequência deste movimento; harmonias nascem desta integração de diferenciais, destas somas e subtrações de feixes de ações. Tudo se passa entre mônadas em um jogo sem árbitro, sem que deus se faça necessário. Esta ontologia quando aplicada, nos revela a continuidade metafísica entre os diferentes estratos da natureza. Dela derivam três leis sociais que, pelo conceito de social acima exposto, não são apenas aplicáveis ao humano. A repetição remete ao esforço de expansão indefinida de cada mônada; a oposição ao necessário conflito que ocorre entre estas diversas 5 6 TARDE, 2012, p. 179. Ibidem, p. 147. 163 ÁdaMo Bouças esCossia da veiga linhas de expansão; a adaptação, por sua vez, remete a individuação, a gênese de uma sociedade enquanto regime de mútua possessão. No domínio físico, a repetição se expressa, sobremaneira, na irradiação luminosa; no biológico, na reprodução hereditária; no social humano, na imitação. A oposição expressa-se no choque no domínio físico. na competição no domínio vital, e no humano, tanto pela guerra quanto pela concorrência comercial. A adaptação, sendo a mais importante das três leis, corresponde ao arranjo que estrutura de modo determinado um ente físico, a mútua adaptação e aliança de diversos organismos em um ser multicelular no domínio biológico, e no humano, a adaptação torna-se invenção – a gênese de uma nova ideia, técnica, comportamento, a partir da interação, conflitiva e individuante, de diferentes linhas de propagação imitativa. 3. A sociologia metafísica de Gilbert Simondon O pensamento de Simondon se inicia como uma ontologia que concede à relação um estatuto ontológico independente. Para ele, a tradição metafísica falhou em pensar a individuação dos seres, pois se limitava a pensá-lo com uma essência ou uma substância, a partir da sua estabilidade e imutabilidade. A tradição teria pensado a individuação a partir dos seres individuados, e não os seres individuados a partir da individuação A individualidade de um ser ou outro em particular não deriva de sua essência transcendental ou do encontro entre uma forma pura e uma matéria inerte, mas sim, do processo relacional e dinâmico que o constitui ao mesmo tempo que constitui aquilo que lhe é exterior. Se a metafísica se perdeu em binarismos – mente/corpo, forma/matéria – foi por não se ater ao ponto de passagem entre um e outro, a indiscernibilidade através da qual se dá esta passagem. Trata-se de substituir os binarismos por uma operação transdutiva, operação definida como aquela na qual os termos não preexistem à relação, mas são definidos por ela reciprocamente.7 Nas suas palavras: 7 164 A diferença entre o estudo clássico da individuação e o que nós apresentamos é essa: a individuação não será considerada unicamente sobre a perspectiva do indivíduo individuado; será captada, SIMONDON, 2008. O Social e o Metafísico: Tarde e Simodon ou pelo menos deverá ser captada, antes e durante a gênese do indivíduo separado; a individuação é um acontecimento e uma operação no centro de uma realidade mais rica que o indivíduo que resulta dela.8 Segundo o autor, carecia a metafísica um conceito inventado pela termodinâmica: a metaestabilidade. Um sistema metaestável é aquele que ainda não alcançou seu grau máximo de estabilidade, e assim, mediante um aporte de energia externo ou algum evento interno, muda de fase, se transforma, passando para um estado mais estável (ou ainda metaestável ou instável). Em última instância, o estado mais estável corresponde um índice máximo de entropia, uma indisponibilidade de conversão de energia em trabalho, ou seja, a incapacidade de sofrer qualquer transformação, a morte. A individualidade não provém do encontro de uma forma pura com uma matéria inerte, mas de uma operação em curso. Em um nível mais amplo, o próprio Ser, como entendido por ele, corresponde a um estado metaestável. Ele chama de pré-individual a fase “primeira” do Ser, na qual ele só possui uma única fase; contudo, ele não é Único, nem anterior aos seres individuados. O que o define é justamente a sua diferença em relação a si mesmo, a sua disparidade interna, a sua instabilidade. O ser pré-individual é pura tensão, pura energia; é um estado problemático, rico de potenciais, em desiquilíbrio. Em oposição à tese parmenídica, o Ser não é aquilo que é imutável, eterno, uno; ele é justamente o disparate que permite mudança, o excesso que o defasa em relação a si fazendo-o mudar de fase, fazendo-o não ser único. Se ele pode assim pode ser chamado, não é no sentido de um Todo maior ou anterior às partes, mas apenas no sentido de que não possui ainda nenhuma individualidade. Ele é único só na medida em que se sobressai a si mesmo, permitindo a genêse de estruturas individuadas como solução do seu desequilíbrio. Desta forma, ele não é de fato anterior ao processo de individuação, mas contemporâneo a ele. O pré-individual corresponde a diferença de cada ser consigo mesmo, naquilo que nele permite uma mudança de fase. 8 O ser não se reduz ao que ele é; está acumulado sobre si mesmo, potencializado. Existe como ser e também como energia, é a cada vez estrutura e energia; a estrutura mesma não é apenas estrutura, Ibidem, p. 83. 165 ÁdaMo Bouças esCossia da veiga pois se sobrepõem diversas ordens de magnitude; a cada estrutura corresponde um certo estado energético que pode aparecer nas transformações posteriores e que forma parte da metaestabilidade do ser.(...) É este conjunto estrutura-energia aquilo que pode se chamar der ser.9 Podemos distinguir até agora, dois caracteres principais no processo de individuação: por um lado, uma defasagem, um desiquilíbrio energético, e por outro, um estrutura material. Porém, a disparidade nem sempre é profícua, e pode ser que determinado coeficiente energético não seja bem sucedido na estruturação de uma matéria.10 É necessária a intervenção de um fator acontecimental para que isso ocorra; se tomarmos o exemplo da formação cristalina, perceberemos como um aporte de energia externo ou uma defasagem interna no estado amorfo leva as moléculas inorganizadas a começarem a se estruturar em padrões geométricos idênticos a partir da entrada em cena de uma molécula previamente estruturada, se disseminam por toda a matéria, só se interrompendo pela resistência do meio exterior. O regime acontecimental corresponde a esta molécula. Consiste, sobretudo, em um gérmen estrutural, pois é através da sua ressonância no sistema que a matéria seguirá tomando forma. Ele conjuga a energética com a materialidade, permitindo a atualização da última na primeira. Ele aponta a direção desta atualização, “definindo a interioridade mútua de uma estrutura e de uma energia potencial no interior de uma singularidade”11 Ele é o momento da mudança de fase, o limiar ambíguo entra a quantidade e a qualidade. É isto que Simondon chamará de informação – a integração de uma disparidade que, quando significada, estrutura o meio. O modelo descrito é, primordialmente, o da individuação de um ente físico. No entanto, será a partir desta que a ontologia de Simondon será estruturada. No que tange ao indivíduo vivo, a principal diferença será que a individuação se mantém contínua. O ser físico se individua de uma única vez; o vivente, através de operações diversas como a nutrição, o catabolismo, o anabolismo e etc., prolongando esta individuação ao mesmo tempo em que constitui uma verdadeira interioridade e, em 9 10 11 166 Ibidem, p. 48. Ibidem. p. 48. Ibidem, p. 122. O Social e o Metafísico: Tarde e Simodon contraste, uma exterioridade associada. Esta estruturação contínua, na medida em que passa por uma atualização permanente de energia em estrutura e vice-versa, faz com que o vivente tenha sua cronologia e sua topologia associadas. É por este motivo, que diferentemente do indivíduo físico, ele terá uma verdadeira interioridade; a membrana, enquanto forma orgânica primitiva é nada mais do que um regulador entre cronologia e topologia desenvolvendo, na sua atividade seletiva em relação ao meio, uma divisão atual entre interior e exterior. A região interior, produzida pela membrana, é o passado na medida em que ele se presentifica atualmente no indivíduo. O passado assume a forma de elementos incorporados, internalizados, que permanecem ativos na constituição do indivíduo como condição de sua metaestabilidade. O nutriente é um bom exemplo; a sua incorporação constitui um passado que define ativamente o presente na medida em que oferece as condições energéticas para a manutenção da individualidade metaestável do vivente. Por outro lado, os elementos a serem absorvidos implicam uma direção temporal inversa; são o futuro do vivente, aquilo que nele poderá se integrar vindo a constituir um passado. Estas duas dimensões cronológicas integram-se à topologia do vivente, dando a ele um verdadeiro presente. A membrana enquanto polarização ativa e seletiva é, assim, uma individuação continuada que, deste modo, produz o presente. Ela é a atividade operatória que individua o presente na sua topologia, criando tanto passado, quanto futuro, exterior e interior. Neste sentido, que podemos dizer que o ser vivo recebe diversos aportes de informação. Ele possui uma comunicação ativa, verdadeira troca informacional, enquanto se constitui atualmente em relação ao meio. O ser físico não possui propriamente esta troca, e, por consequência, sua topologia e cronologia não coincidem. Porém, a metaestabilidade orgânica chega ao seu termo, como demonstra o processo natural de envelhecimento. Intervém aí, então, a individuação psíquica como solução para permanência da metaestabilidade.12O psiquismo surge quando o vivente “mergulha” novamente no pré-individual, adquirindo uma nova individualidade em uma outra dimensão, que não exclui a primeira, nem é meramente complementar a ela. Toda individualidade tem associada a si uma “carga de natureza”, rica de potenciais e de funções organizáveis; nela, o pré-individual engendra o psiquismo 12 Ibidem. 167 ÁdaMo Bouças esCossia da veiga sobre o vital, em uma “dilatação, uma expansão precoce da individuação vital”.13 O ponto mais relevante nesta nova individuação é que a psíquica não se dá sobre os limites do vivente. Dado que a realidade pré-individual, enquanto campo intensivo associado ao indivíduo, não está sobre os seus limites, a individuação que os recobrirá não está igualmente associada aos limites do seu corpo orgânico. Não se trata de uma “mente” individual, isolada das outras e dotada de uma individualidade própria. Supor no psiquismo uma identidade pessoal é um erro apontado para ele nas teorias psicológicas e mesmo na psicanálise. O psiquismo não se dá em uma intraindividualidade. É da natureza desta nova individuação ter como campo associado outros psiquismos em uma relação transdutiva. Não se trata de uma relação entre termos individuados, mas de uma relação que institui ambos os termos como extremos: “a problemática psíquica não pode resolver-se de maneira intraindividual”14. Esta tensão nova posta ao vivente é a da disparidade entre os processos catabólicos e anabólicos15, entre o crescimento e a velhice. A metaestabilidade do vivente se degrada e, após um pico na maturidade, decresce até a morte, independentemente de qualquer ação externa. Há uma incompatibilidade entre a sua ontogênese e a sua degradação que se expressa em uma defasagem do presente vivo na medida em que este não consegue mais condensar o passado através do anabolismo, nem se prolongar em futuro em razão do progresso do catabolismo. O coletivo surge, aqui, como um presente mais vasto que os presentes individuais, que os põe em comunicação em uma nova individuação. Ele é uma permanência de metaestabilidade nascida desta incompatibilidade individual. Como diz Simondon: “a única e definitiva metaestabilidade é a do coletivo porque se perpetua sem envelhecer através das individuações sucessivas”16. 13 14 15 16 Ibidem, p. 243. Ibidem, p. 234. Os dois processos remetem à capacidade do organismo de produzir ou degradar. O anabolismo é produção, enquanto o catabolismo é a degradação. O metabolismo consiste em um equilíbrio entre os dois, entre produção de tecidos a partir da degradação de nutrientes e a sua consequente liberação de energia. No envelhecimento, a capacidade anabólica se deteriora em relação à capacidade catabólica, e o indivíduo vivente não consegue mais produzir a partir da degradação. Ibidem, p. 324. 168 O Social e o Metafísico: Tarde e Simodon O coletivo é uma “afirmação de permanência”17 e “um modo de presença mais completa que a presença do indivíduo sozinho”.18 O coletivo condensará, do mesmo modo que no vivente, o passado enquanto interioridade incorporada e o futuro enquanto exterioridade incorporável. A interioridade de um grupo é a analogia transdutiva dos passados individuais e das projeções sobre o futuro. O futuro aparecerá ao indivíduo como planos, fins, expectativas às quais ele tenderá a atender enquanto se integra ao coletivo, e o passado coletivo lhe será aportado na forma de um modo de se portar socialmente, de um conjunto de hábitos e de crenças instituídas, de mitos e histórias que serão referenciais em relação a sua ação. Estes dois aspectos são articulados no presente coletivo, no qual o passado informa o futuro, e este o informa reciprocamente. A partir da condensação de diversos passados individuais e da condensação de diversas expectativas individuais – condensação esta que será transdutiva e não sintética – é que o coletivo se presentifica. Esta condensação situa o individuo em relação a um passado coletivo e a um futuro de expectativas compartilhadas, constituindo-o temporalmente enquanto transdução. Apenas tornando-se parte de uma realidade mais durável (tanto em relação ao passado, quanto ao futuro), apenas tornando-se informação em um sistema de informação, é que ele pode sobreviver à sua degradação. O coletivo é o que “supera o indivíduo ao mesmo tempo em que o prolonga”.19 A partir da carga de natureza associada (pré-individual) aportada pelos indivíduos na forma desta disparidade entre cronologia e topologia não resolvida no nível vivente é que o coletivo-social terá sua gênese através de uma propagação transdutiva. Podemos dizer que o social se erige contra a morte, constituindo uma espiritualidade que não é uma vida após a morte, mas uma resistência contra a degradação na forma de uma presentificação, que, como vimos, é o que define a vida em seu nível mais essencial. O coletivo é resistência à estabilidade, é a continuação da metaestabilidade em um nível mais amplo de individuação. A partir disso, Simondon irá criticar, nas Ciências Sociais, a presença do mesmo erro da tradição metafísica. Elas substancializam indivíduo e sociedade (coletivo) como termos prontos a serem postos em relação, 17 18 19 Ibidem, p. 437. Idem. Ibidem, p. 437. 169 ÁdaMo Bouças esCossia da veiga furtando-se a observar a relação ontogenética que constitui ambos. Por um lado, “tomar a realidade dos grupos como um fato, segundo a atitude da objetividade sociológica, é chegar depois da individuação que funda o coletivo”20, e, por outro lado, se pensarmos apenas em termos de relações interpessoais, entre indivíduos já formados, como fazem as abordagens psicologizantes do social (microssociologia e interpsicologia), nos colocaríamos antes da individuação, perdendo, igualmente, o seu acontecimento em ato. Toma-se o indivíduo e o social em uma relação de oposição que corresponde tão somente a um preconceito substancialista. O social verdadeiro, por sua vez, “não é algo da ordem do substancial, pois não é um termo de relação; é sistema de relações, sistema que implica uma relação e a alimenta”21. A sociedade, para Simondon, não é substância, mas condicionamento recíproco e constituinte: é ressonância interna. Escreve ele: O coletivo é a significação obtida pela superposição em um sistema único de seres que são díspares um a um; é um encontro de formas edificadas em um sistema, uma significação realizada, que exige a passagem a um nível superior, advento do coletivo como sistema unificado de seres recíprocos.22 Esta comunicação entre a indeterminação de cada indivíduo é o que ele chama, no nível social, de transindividual; é a operação de fundação em ato, nunca terminada, do coletivo. Não temos aqui nem social puro, nem indivíduo fechado; mas, sim, a relação transdutiva de gênese que forma tanto um quanto o outro. Deste modo “o social puro e o individual puro existem por relação à realidade transindividual, como termos extremos de toda a extensão do pré-individual”.23 Ele distingue-se da mera interindividualidade, pois “esta é um intercâmbio entre realidades individuadas que permanecem em seu mesmo nível de individuação”.24 Neste caso, não há outra individuação na medida em que os termos permanecem exteriores a si em relações independentes de auto-constituição. A sua crítica ao atomismo substancialista ecoa aqui: os átomos se 20 21 22 23 24 170 Ibidem, p. 466. Ibidem, p. 469. Ibidem, p. 445. Ibidem, p. 470. Ibidem, p. 245. O Social e o Metafísico: Tarde e Simodon relacionam apenas de modo interindividual, sendo o composto explicado pelas suas propriedades intrínsecas (mais o acaso do encontro fortuito), sem que o todo interfira nestas propriedades. Por outro lado, o todo não possui verdadeira individualidade, pois é apenas o agregado, a sobreposição das partes. Já no transindividual, estas propriedades intrínsecas só existem a partir da relação extrínseca com as outras partes componentes; e, por outro lado, o composto não é um mero agregado, mas um “sistema de relações” que o efetua em ato através da relação imanente das partes entre si. Ressonância interna, nas palavras do autor: A relação transindividual vai de indivíduo a indivíduo; não penetra nos indivíduos; a ação transindividual é aquela que faz que os indivíduos existam juntos como os elementos de um sistema que comporta potenciais e metaestabilidade, expectativa e tensão, logo descobrimento de uma estrutura e de uma organização funcional que integram e resolvem esta problemática de imanência incorporada. 25 O transindividual não se dá por uma disjunção entre o eu e o outro, nem que seja em um momento posterior à individuação. Ele é, como coloca Morfino, “trama de relações que atravessa e constitui os indivíduos e a sociedade, interditando metodologicamente a substancialização daqueles ou desta”26. A gênese de ambos se dá sob um fundo comum, não individualizado, que é a sua própria carga de indeterminação. Não faz mais sentido falar de indivíduos ou de sociedade. Tanto um quanto o outro são termos extremados de uma relação que os constrói mutuamente, estabelecendo tanto sua interioridade, quanto exterioridade. O indivíduo é simultaneamente estranho e pertencente ao social, interior e exterior. Sua personalidade individual é individual enquanto coletiva; o seu presente, como vimos, é ele mesmo coletivo. A relação do indivíduo com o social é como a do elétron com a onda; é simultaneamente discreto enquanto corpúsculo, e contínuo enquanto onda. Conclusão A partir do que foi antes exposto, vemos como o transindividual pode ser aplicado ao pensamento da individuação monadológica em Tar25 26 Ibidem, p. 450. MORFINO, 2007, p. 7. 171 ÁdaMo Bouças esCossia da veiga de, em todos os níveis da natureza. O transindividual remete a todo tipo de relação que antecede ontologicamente a distinção entre exterioridade e interioridade do mesmo como opera a possessão em Tarde, na medida em que esta exprime a atividade relacional e genética das interações mútuas das mônadas intensivas. Deste modo, podemos manter a afirmação de Tarde de que tudo é uma sociedade na medida em que toda relação é transindividual. O que não quer dizer, de modo algum, que tudo seja a mesma sociedade. A articulação de uma maior ou menor sociabilidade a partir das formas muito variadas possessão recíproca nos permite definir escalas, graus distintos de individuação social. Assim, podemos, no escopo de um projeto de sócio-metafísica, definir a sociedade como sendo um equilíbrio metaestável assegurado por uma ressonância interna de informação a partir da comunicação da carga de natureza associada (pré-individual) de diferentes mônadas em uma relação transindividual na qual cada componente, assim como a totalidade dos componentes, não preexistem à relação que os funda na sua interioridade e exterioridade. O infinitesimal é o campo pré-individual no qual há apenas singularidades intensivas (mônadas), repartição de potenciais, a partir dos quais teremos sociedades em múltiplos graus, mantendo-se o infinitesimal coextensivo ao finito na forma de uma permanência de metaestabilidade. Dificilmente, temos casos de uma estabilidade ou instabilidade absoluta, sendo que o vivente – enquanto operação de permanência de metaestabilidade – o é apenas na medida em que se pretende manter em um patamar determinado de estabilidade relativa, não se distinguindo, então, se não por grau e não por natureza, de um ser não-vivente. Os graus extremamente variados de possessão de Tarde são correlatos à capacidade de um sistema de receber múltiplos aportes de informação e integrá-los em ressonância interna significativa. Deste modo, os diferentes estratos se caracterizariam por diferentes regimes de possessão ou informação: o físico, possui um grau relativamente baixo deste tipo de integração enquanto o vivente e o social-humano o teriam em nível mais alto. Não há aqui cisão ontológica, mas continuidade metafísica a partir da descrita ontologia de base. Por fim, esperamos a partir deste trabalho termos, por pouco que seja, contribuído para a um novo pensamento social que não se dê mais por uma disjunção entre homem e natureza, sociedade e indivíduo, mas 172 O Social e o Metafísico: Tarde e Simodon que os encare a partir da sua continuidade. Esperamos que as conclusões apresentadas acima possam vir a servir, mesmo que ainda sejam provisórias e esboçadas, como princípios teóricos a uma sóciometafísica a ser desenvolvida. Bibliografia DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2014. LEIBNIZ, Gottfried. Monadologia. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989. MORFINO, Vittorio. Transindividualide a partir de Leibiniz e Spinoza. Tradução de Herivelto Pereira de Souza. Cadernos Espinozanos. V. 17. São Paulo; 2007. TARDE, Gabriel. As Leis Sociais. Trad. Francisco Fuchs Niterói: Editora da UFF, 2012. ______. Monadologia e Sociologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2007. SIMONDON, Gilbert. La individuación a la luz de las nociones de forma y información. Trad. de Pablo Esteban Rodriguéz. Cactus: Buenos Aires, 2009. 173 O mundo como rede de forças: contribuições para uma ontologia da relação Diogo Bogéa (UERJ) 1. A virada especulativa A coletânea A virada especulativa, aponta para o que seria uma nova tendência na Filosofia contemporânea: nas obras ligadas àquilo que descrevemos como “Virada Especulativa”, podemos detectar indícios de algo novo. Contrastando com o repetitivo foco continental em textos, discurso, práticas sociais e a finitude humana, essa nova safra de pensadores está se voltando novamente para a própria realidade. Embora seja difícil encontrar posições explícitas comuns a todos os pensadores reunidos nesse volume, todos certamente rejeitaram o foco tradicional na crítica textual. (…) todos eles, de uma maneira ou de outra, começaram a especular uma vez mais sobre a natureza da realidade independentemente do pensamento e, mais genericamente, da humanidade (BRYANT, HARMAN, SRNICEK, 2011, p. 7). Os autores indicam como ponto comum entre essas diversas tendências especulativas, a crítica ao antropocentrismo correlacionista, tal como definido por Meillassoux. Em Depois da Finitude, Meillassoux denuncia a prevalência do antropocentrismo ontoepistemológico na filosofia contemporânea. Antropocentrismo que se expressa na firme convicção segundo a qual os meios de que dispomos para perceber e/ou conhecer o mundo – o pensamento, os sentidos, a consciência, a linguagem – não podem “escapar à sua própria sombra” para nos fornecer um acesso direto ao que seria o mundo em-si, limitando nossa “experiência possível” ao que é o mundo “para-nós”. O pensamento não pode “sair de si mesmo para comparar o mundo ‘em si’ e o mundo ‘para nós’, e então discriminar o que se deve à nossa re- 174 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 174-186, 2017. O mundo como rede de forças: contribuições para uma ontologia da relação lação com o mundo e o que somente pertence ao mundo”1. Esta convicção, que claramente remete à primeira crítica kantiana, estabelece o primado daquilo que Meillassoux chama de correlacionismo: “a ideia segundo a qual só temos acesso à correlação entre pensamento e ser, e nunca a algum destes termos considerados isoladamente”2. O antropocentrismo correlacionista inaugurado por Kant, reverbera nas tradições filosóficas que o sucederam determinando a centralidade – bastante evidente ao longo do século XX – de temas como “linguagem”, “simbólico”, “consciência”, “cultura” e “sentido”, os quais são elevados ao primeiro plano justamente enquanto meios privilegiados da correlação humano-mundo. Mundo, é sempre mundo para o humano, e o humano se vê irremediavelmente aprisionado na “jaula transparente” dos seus próprios meios de percepção do mundo. Destacando o caráter antropocêntrico dessa visão de mundo, Meillassoux caracteriza a “Revolução Copernicana” kantiana como “Revanche Ptolomaica”. A “revolução científica” de Galileu e Copérnico não promove apenas o descentramento astronômico que Freud chamou de “ferida narcísica”. Promove ainda uma “ferida” muito mais profunda pela matematização geral do universo, que tem como implicação o desvelamento de um mundo absolutamente indiferente ao humano: “um mundo glacial se desvela então diante dos modernos, e nele já não há nem acima nem abaixo, nem centro nem periferia, nem nada que faça dele um mundo destinado ao humano”3. A revolução científica põe em cena “a capacidade paradoxal do pensamento para pensar o que pode existir” para além de si mesmo, “haja ou não pensamento”4, e torna o mundo “mais indiferente que nunca à existência humana, e por conseguinte, ao próprio conhecimento que o humano possa ter dele”5. Diante disso, o gesto kantiano, ao restituir a centralidade do sujeito humano no processo de conhecimento, se afigura como uma verdadeira “contrarrevolução ptolomaica”6. Gostaríamos de chamar a atenção para algumas experiências de pensamento realizadas por Nietzsche, já no século XIX, nas quais ele 1 2 3 4 5 6 MEILLASSOUX, 2015, p. 27. MEILLASSOUX, 2015, p. 29. MEILLASSOUX, 2015, p. 184. MEILLASSOUX, 2015, p. 185. MEILLASSOUX, 2015, p. 185. MEILLASSOUX, 2015, p. 188. 175 diogo Bogéa aponta limites da crítica kantiana, construindo uma metafísica da vontade de poder, a qual exige a formulação de uma ontologia da relação. Talvez uma leitura atenta dessas experiências de pensamento possa nos ajudar a enfrentar questões que se colocam para qualquer pensador que pretenda pensar ontologias, realismos, materialismos e metafísicas depois de Kant. 2. Nietzsche e a metafísica tradicional Com muita perspicácia, Nietzsche identifica a essência da metafísica tradicional como binarismo fundamental caracterizado pela postulação de um “mundo verdade” (qualquer mundo verdade) e o concomitante estabelecimento do seu “outro”, um “mundo aparente” (qualquer mundo aparente). Assim, supor algo “em si” é estar no registro da metafísica tradicional, pois o “em si” é in-condicionado (livre de qualquer condicionamento), ab-soluto (livre de qualquer limitação) e, portanto, constitui necessariamente um “mundo verdade”. Embora o “Hiperurânio” de Platão seja o caso mais paradigmático de “mundo verdade”, qualquer suposição de um “em si” constitui um “mundo verdade”: o theion aristotélico, o “Deus” cristão, o “sujeito” cartesiano a “objetividade” científica, a “razão” iluminista, o “sentido da História” único, dado, teleológico e racionalmente compreensível de Hegel e Marx. Todas figurações de um “mundo verdade” que já se constitui em oposição a algum “mundo aparente”. O conteúdo desse “mundo verdade” funda, sustenta, legitima uma série de oposições binárias e, necessariamente hierárquicas, porque um dos polos, aquele supostamente mais próximo da origem e da verdade, prevalece sobre o outro. O “mundo verdade”, qualquer que seja, constitui um parâmetro absoluto, um critério universal pelo qual os conflitos particulares são medidos. O “em si”, qualquer que seja, constituirá sempre uma “sombra de Deus”, por já sempre necessariamente configurar um ab-soluto, isto é, uma instância supostamente livre e desligada de qualquer relação, determinação ou condicionamento. Também a Filosofia de Kant não resiste a essa acusação: 176 Todos os filósofos têm em comum o defeito de partir do homem atual e acreditar que, analisando-o, alcançam seu objetivo. Involuntariamente imaginam “o homem” como uma aeterna veritas, como O mundo como rede de forças: contribuições para uma ontologia da relação uma constante em todo o redemoinho, uma medida segura das coisas. Mas tudo o que o filósofo declara sobre o homem, no fundo, não passa de testemunho sobre o homem de um espaço de tempo bem limitado. Falta de sentido histórico é o defeito hereditário de todos os filósofos; inadvertidamente, muitos chegam a tomar a configuração mais recente do homem, tal como surgiu sob a pressão de certas religiões e mesmo de certos eventos políticos, como a forma fixa de que se deve partir. Não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser; enquanto alguns deles querem inclusive que o mundo inteiro seja tecido e derivado dessa faculdade de cognição. —Mas tudo o que é essencial na evolução humana se realizou em tempos primitivos, antes desses quatro mil anos que conhecemos aproximadamente; nestes o homem já não deve ter se alterado muito. O filósofo, porém, vê “instintos” no homem atual e supõe que estejam entre os fatos inalteráveis do homem, e que possam então fornecer uma chave para a compreensão do mundo em geral: toda a teleologia se baseia no fato de se tratar o homem dos últimos quatro milênios como um ser eterno, para o qual se dirigem naturalmente todas as coisas do mundo, desde o seu início. Mas tudo veio a ser; não existem fatos eternos; assim como não existem verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante necessário, e com ele a virtude da modéstia.7 Esta importantíssima passagem indica importantes limitações do projeto crítico kantiano. Poucos filósofos modernos – e mesmo muitos contemporâneos – resistiriam à crítica presente nessa passagem: o humano essencialmente caracterizado pela “razão”, pela “consciência”, pelo “pensamento”, pela “liberdade”, pela “responsabilidade”, ou mesmo pela “linguagem”, pela “compreensão”, pela “simbolização” e pelo âmbito do “sentido”, expressa apenas, em cada um desses casos, a des-historcização do humano tomando-se por base tão somente as últimas épocas do seu desenvolvimento, forjando ainda uma absolutização dessas pretensas qualidades universais humanas como se fossem dadas em si e por si mesmas. 3. Metafísica da vontade de poder e ontologia da relação Embora Nietzsche muitas vezes caracterize seu projeto de pensamento como anti-metafísico, reconhecemos em sua obra algo mais que 7 HH, § 2. 177 diogo Bogéa uma postura destrutiva, que nega e “supera” a metafísica através da “dureza” implacável do “martelo” destruidor de ídolos. Nietzsche constrói uma “outra metafísica”, para utilizar uma expressão de Pierre Montebello. Uma metafísica com pressupostos e implicações radicalmente diferentes da metafísica tradicional – e aqui nos distanciamos também da interpretação heideggeriana, para quem a metafísica de Nietzsche tem os mesmos pressupostos e implicações da metafísica tradicional. A metafísica de Nietzsche responde ao modo de operação binário da metafísica tradicional através de um duplo movimento: por um lado, ela realiza uma unificação do real através do estabelecimento de uma mesma dinâmica que atravessa todos os processos existentes. Por outro lado, contra qualquer tipo de unidade substancial ou identitária, ela afirma a própria multiplicidade de relações como princípio de constituição da realidade. Nietzsche consolida esse duplo movimento através de uma reinterpretação do conceito físico de “força”. Em um famoso fragmento póstumo de 1885, Nietzsche descreve o mundo como “força em toda parte”, “jogo de forças e ondas de força”, “ao mesmo tempo uno e vário”8. Sabemos que Nietzsche toma contato com o conceito de força através do matemático e “cientista da natureza” Roger Boscovich – ou ao menos, sabemos que considerava sua formulação para o conceito de força como a mais precisa. Segundo Nietzsche, Boscovich teria nos obrigado a abjurar a crença na “matéria” e nas “partículas elementares da matéria”, os “átomos”, através de uma original teoria da “força”, que procura solucionar o problema da “ação à distância”, muito discutido na época. Para Boscovich os entes materiais não são “algo” “em si”, mas são “engendrados” pelas “ações recíprocas” entre os “pontos de força” ou “átomos imateriais”. Nietzsche ressignifica a teoria de Boscovich pela introdução da vontade de poder como lógica determinante das “ações recíprocas” entre forças. “Atração” e “repulsão” passam a ser interpretados como “a vontade de apoderar-se de uma coisa ou de defender-se de seu poder e de repeli-la”9. O próprio conceito de “força” torna-se excessivamente automático e consequentemente vazio, se não se atribui às “forças” um caráter pulsional: 8 9 178 NF/FP 38[12] de junho-julho de 1885. NF/FP 2[83] do outono de 1885 – outono de 1886. O mundo como rede de forças: contribuições para uma ontologia da relação O conceito vitorioso, ‘força’, com o qual nossos físicos criaram Deus e o mundo, necessita ainda ser completado: há de ser-lhe atribuído um mundo interno que designo como ‘vontade de poder’, isto é, como insaciável ansiar por mostrar poder; ou emprego, exercício de poder, pulsão criadora, etc.10 Em fragmento póstumo de 1888, Nietzsche define “Toda força pulsante” como “vontade de poder” e afirma: “não há nenhuma força física, dinâmica ou psíquica além daquela”11. O fragmento reafirma uma passagem de Além do Bem e do Mal na qual Nietzsche opera uma ousada unificação da biologia (então regida pelo evolucionismo darwinista), da física (então regida pela mecânica newtoniana) e das “ciências do espírito”. Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa vida instintiva como a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade – a vontade de poder, como é minha tese –; supondo que se pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de poder, e nela se encontrasse também a solução para o problema da geração e nutrição – é um só problema –, então se obteria o direito de definir toda força atuante, inequivocamente, como vontade de poder.12 Dessa forma, a totalidade do real pode ser compreendida em termos de “forças pulsantes”. O mundo psíquico, o mundo orgânico, o mundo mecânico, todos passam a ser compreendidos como expressões de forças atuantes, as quais, por sua “atuação recíproca” engendram todos os entes “materiais” ou “imateriais”. O mundo único de Nietzsche, porquanto não admite a possibilidade do “em si” nem a recaída na divisão “verdade” do uno x aparência do múltiplo, deve se dar como “mundo-relação”. Se não há nada “em si” que sustente por si mesmo uma existência independente, é necessário admitir que todas as coisas estejam em relação umas com as outras. O mundo-relação regido pela lógica da vontade de poder não tem nenhum “além” – nenhum “antes”, nenhum “sobre”, nenhum “sob”, nenhum “depois” –, nenhum “em si”, pois as relações são essenciais e as essências relacionais. O 10 11 12 NF/FP 36[31] de junho-julho de 1885. NF/FP 14[121] da primavera de 1888. BM, § 136. 179 diogo Bogéa mundo constitui um “todo” – como diz Nietzsche: “não existe nada fora do todo!” – um todo que “não é uma unidade nem como sensorium nem como ‘espírito’”13. Isto é, não há um substrato material ou espiritual que constitua a unidade do mundo. O “todo” aparece como uma malha de relações atravessadas pela vontade de poder. A metafísica da vontade de poder funda uma ontologia da relação: na boa definição de Pierre Montebello: “nenhuma força existe isoladamente, não há senão relações de força, e nessas relações cada força é determinada imediatamente e afetivamente pela relação que ela tem com as outras forças”14. Nas palavras de Nietzsche: “Não há nenhum ‘ser em si’, as relações constituem primeiro os seres”15, nenhuma “coisa em si”: “A ‘coisa em si’ é um contrassenso. Se deixo de pensar em todas as relações, em todas as ‘propriedades’, em todas as ‘atividades’ de uma coisa, então não sobra a coisa”16. E com isso, temos a configuração de um “mundo-relação”, um mundo não substancial, mas relacional: O mundo (...) não existe como mundo “em si”; ele é, essencialmente, mundo-relação: tem, segundo as circunstâncias, a partir de cada ponto, sua face diferente: o seu ser é essencialmente, em cada ponto, outro: ele pressiona em cada ponto, cada ponto lhe resiste17. E toda “força” somente vem a ser a partir de uma rede relacional de forças. Se não há “entes em si”, mas apenas efeitos da ação recíproca entre forças, as forças também não podem ser compreendidas como unidades dadas em si, como “átomos” ou “pontos” de força. Há apenas “quantidades dinâmicas, em uma proporção de tensão em relação a todas as outras quantidades dinâmicas: seu ser consiste em sua proporção de relação a todas as outras quantidades, em seu ‘atuar’ sobre as mesmas”18. 13 14 15 16 17 18 180 CI, VI, § 8. MONTEBELLO, P., La volonté de puissance, p. 24. NF/FP 14[122] da primavera de 1888. NF/FP 1-[202] do outono de 1887. NF/FP 9[61] do outono de 1887. NF/FP 14[79] da primavera de 1888. O mundo como rede de forças: contribuições para uma ontologia da relação Portanto, não podemos pensar as relações entre forças segundo o esquema de um “átomo de força” ou de uma “força” isolada que age sobre “algo” e causa assim um efeito. Trata-se de um tipo diferente de causalidade, uma causalidade complexa em termos de múltiplas interações interdependentes e interconstitutivas. É o que Nietzsche esboça nesse fragmento póstumo de 1885-1886: “todo deslocamento de poder para qualquer lugar condiciona todo o sistema – portanto, junto com a causalidade de um após o outro, dar-se ia uma dependência de um junto ao outro e de um com o outro”19. No entanto, há que se compreender que as relações entre forças também não se dão por puro acaso, ou por puros processos mecânicos de atração e repulsão. Todos os níveis dessa rede complexa de forças são atravessados e constituídos por uma espécie de dinâmica universal que Nietzsche chama de vontade de poder. Nietzsche intercambia a palavra “poder” com “domínio”, “assenhoreamento”, “mando”, “apropriação”, “agir sobre”, “resistir a”, “ambição despótica” de “cada pulsão” que “gostaria de impor” sua “perspectiva” “como norma para todas as outras”20. Domínio, assenhoreamento, mando, apropriação, ação sobre, resistência e imposição são todos termos relacionais. Essas relações se estabelecem entre forças – no sentido amplo que Nietzsche atribui ao conceito de “força”, englobando tanto os impulsos e desejos quanto as forças mecânicas, os instintos biológicos, os valores culturais, as instituições sociais etc. Poderíamos, então, pensar o “mundo-relação” de Nietzsche como uma rede de forças, que, em seu movimento relacional, constituem sistemas complexos e auto-organizados, em que novos níveis de ordenação emergem conforme aumenta a complexidade hierárquica. Sistemas cujos padrões de comportamento são imprevisíveis a longo prazo, mas que, enquanto mantém uma organização hierárquica, sustentam regularidades e estabilidades. Essa enorme rede de relações – em que não há “unidades” últimas, mas apenas redes dentro de redes – é o próprio fundo e a estrutura constitutivos de todo e qualquer “ente” material ou imaterial. Ou seja, não há diferenças de essência dadas “a priori” entre quaisquer “entes”. Tudo é relacional, tudo está em relação ou, para dizer o mínimo, não há nada que não seja relacionável. 19 20 NF/FP 2[143] do outono de 1885 – outono de 1886. NF/ FP 7[60] do final de 1886 – primavera de 1887. 181 diogo Bogéa Em cada nível da hierarquização sistêmica, todas as forças estão inseridas em relações de poder. As forças constitutivas de um mesmo nível de organização lutam entre si por poder, mas há luta também entre os níveis hierárquicos distintos do sistema e entre o sistema hierarquicamente organizado e outros sistemas. Nem sempre a luta se desenvolve de maneira escancarada. Aspirando por poder, as forças estabelecem relações mútuas de dominação, resistência, negociação, alianças mútuas são firmadas em torno de objetivos comuns. Seja pela via da dominação, da negociação ou da aliança temporária, sistemas hierárquicos multinivelados e complexos se organizam. Há sempre tensão nas relações mútuas internas e externas ao sistema: cada corpo específico anseia por tornar-se senhor de todo espaço, por estender sua força (-sua vontade de poder:) e repelir tudo que obsta à sua expansão. Mas ele se depara continuamente com o mesmo ansiar de outros corpos e termina por arranjar-se (‘unificar’-se) com aqueles que lhes são aparentados o bastante: – assim eles conspiram, então, juntos, pelo poder. E o processo segue adiante...21 4. Ontologia da relação como “ferida narcísica” Com isso, Nietzsche nega a possibilidade não apenas do acesso, mas da própria existência de qualquer dado “em si”. No entanto, a metafísica de Nietzsche não é “correlacionista”. O mundo não é mundo para-nós. O mundo não aparece como fenômeno estruturado por meios de apreensão constitutivos do sujeito humano. Aqueles que são considerados os meios privilegiados de acesso humano ao mundo: pensamento, linguagem, consciência, sentido, simbólico, são também eles configurados como efeito de uma rede multinivelada de forças, de relações de poder. São de certa forma superficiais e fazem parte de um processo mais geral de ação e reação que Nietzsche chama de interpretação. Não se trata aqui, de maneira nenhuma, de um antropocentrismo. Por mais que se possa afirmar que a concepção de mundo de Nietzsche é “antropomórfica”, ao projetar na totalidade do real conceitos como vontade e poder, bem como por estender a todos os seres existentes a capacidade de interpretação e a constituição de uma perspectiva, conceitos 21 182 NF/FP 14[186] da primavera de 1888. O mundo como rede de forças: contribuições para uma ontologia da relação tradicionalmente utilizados para se referir ao mundo humano, de forma nenhuma isso constitui um antropocentrismo. O humano não está no centro do mundo, não é o único que estabelece uma relação significativa com o mundo, não é o único que interpreta o mundo, não é o único encarnado numa “perspectiva”. Em cada situação, há uma “rede de atores”22 naturais e culturais, materiais e imateriais, agindo e reagindo uns sobre os outros e dando origem a configurações emergentes complexas. Pensar, sentir, querer, conhecer, retraduzidos sob a lógica do processo que Nietzsche chama de interpretação não são exclusividade humana. Interpretar é agir e reagir, dominar, resistir, impor formas, negociar. O modo específico de agir e reagir de cada configuração de forças constitui uma perspectiva a partir da qual o próprio mundo é essencialmente diferente. Cada centro de força tem sua perspectiva para todo o resto, isto é, sua valoração inteiramente determinada, sua espécie de ação, sua espécie de resistência. O ‘mundo aparente’ reduz-se, pois, a uma espécie determinada de ação sobre o mundo, partindo de um centro. Ora, não há nenhum outro tipo de ação: e o “mundo” é apenas uma palavra para o jogo conjunto dessas ações. A realidade consiste exatamente nessa ação particular e reação particular de cada indivíduo em relação ao todo...23” “Cada centro de força – e não somente o homem – constrói a partir de si todo o mundo restante, isto é, mede, apalpa, forma pela sua força.”24 Por isso o mundo enquanto mundo-relação “tem, segundo as circunstâncias, a partir de cada ponto, sua face diferente: o seu ser é essencialmente, em cada ponto, outro: ele pressiona em cada ponto, cada ponto lhe resiste”25. Temos aqui uma espécie de “multinaturalismo” nietzschiano, à medida que, como na definição de Viveiros de Castro “todos os seres veem (…) o mundo da mesma maneira – o que muda é o mundo que eles vêem”26. Essa “mesma maneira”, nesse caso, é a vontade de poder, é o agir e resistir em relação a toda outra configuração de forças, buscando a cada vez o máximo de poder possível. Assim, a perspectiva não é uma “representa22 23 24 25 26 Referência à Teoria-Ator-Rede desenvolvida por Bruno Latour. NF/FP 14 [184]. NF/ FP 14 [186]. NF/FP 9[61] do outono de 1887. CASTRO, E. V., 2002, p. 378. 183 diogo Bogéa ção” do real, mas a encarnação de uma maneira específica de agir e reagir sobre todas as outras configurações de forças, determinando seu “ser” a cada vez, de maneira diferente. As implicações de uma ontologia da relação são altamente perturbadoras. Quando partimos não do ser, mas da relação, quer dizer que não sabemos bem o que nós mesmos somos, nem sabemos bem o que fazemos. O que chamamos de “eu” e o que chamamos de “humano” não são estabilidades autoidênticas, dadas, subsistentes em si e por si mesmas, mas nódulos formados pelo entrelaçamento dos fios relacionais dinâmicos. Nossos critérios habituais de avaliação ficam comprometidos, pois já não dispomos de uma lógica binária, opositiva e excludente, na qual um A e um B autoidênticos e fechados sobre si mesmos, separados por uma fronteira rígida e bem definida, nos indicam de antemão como avaliar e como proceder. O que chamamos de “liberdade”, “ética” e “política”, sem a presença de um sujeito autônomo, racional, consciente e responsável capaz de agir apenas por sua própria autodeterminação, são noções que tem que ser radicalmente repensadas. Os sentidos da história não nos são dados por uma ciência positiva, mas estão em constante disputa num jogo conflituoso de reinterpretações. Os sentidos das nossas vidas estão sempre em construção. Não dispomos de nenhum juiz externo ao jogo ao qual possamos recorrer em momentos de dificuldades. Não dispomos de nenhuma estabilidade absoluta sobre a qual possamos repousar tranquilamente. Talvez se trate de uma imagem muito fria e cinzenta do mundo, que parece não ter nenhuma função senão nos levar a um irremediável niilismo e à melancolia. Talvez se trate de uma concepção muito destrutiva que muito pouco tem a acrescentar e nada ajuda a construir. Talvez. Mas a arrogância humana e um fundo narcísico que dá indícios de ser imune a qualquer ferida, parecem sempre dispostos a vender e comprar valores supostamente absolutos que atribuem à nossa existência um significado tão especial que seus adeptos se mostram dispostos a matar e morrer por eles. E, por outro lado, a tendência a constituir fechamentos identitários em torno de valores supostamente absolutos que determinam de antemão quem somos e quais são nossas possibilidades de pensamento e ação, parece nunca sair de moda. O problema é que, uma vez que nos julgamos de posse de valores absolutos, não tarda muito até que todas as outras formas de vida deixem de nos parecer apenas diferentes, e sejam 184 O mundo como rede de forças: contribuições para uma ontologia da relação tomadas como “forças inimigas” que devem ser convertidas, dominadas, excluídas ou eliminadas. Esses valores supostamente absolutos, monopolizando nossas possibilidades de pensamento e ação, nos privam da singularidade absoluta que somos, enquanto configuração única – irrepetível – de forças que, enquanto tal, tem em cada momento sua própria maneira de existir. Parece nunca ser demais, portanto, investir em concepções de mundo que atuem de maneira crítica, desconstrutiva ou mesmo destrutiva em relação a valores supostamente absolutos que legitimam a cada vez os privilégios imaginários da humanidade. Valores supostamente absolutos que, diga-se de passagem, sempre se fazem acompanhar de belos discursos sobre a verdade, a justiça e a moral e têm ao seu lado em todos os tempos a “boa consciência” dos “cidadãos de bem”, enquanto as concepções de mundo que nos atingem com “feridas narcísicas” são consideradas muito duras, frias e “desumanas” e sempre despertam nossa desconfiança. Talvez uma ontologia da relação não tenha nada mais a nos oferecer senão abalos e incertezas, mas talvez, dependendo do contexto, abalos e incertezas sejam mais produtivos e proveitosos do que convicções. Referências BRYANT, L; HARMAN, G; SRNICEK, N. The Speculative Turn. Melbourne: Re-press, 2011. CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2013. LATOUR, Bruno. Investigación sobre los modos de existencia. Buenos Aires: Paidós, 2013. MEILLASSOUX, Q. Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Seuil, 2006. MEILLASSOUX, Q. Después de la finitud. 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Rio de Janeiro: Contraponto, 2008 (NF/FP). 186 Ontologia do limite Raquel de Azevedo (PUC-Rio) Nem bem haviam se completado 50 anos do início da colonização europeia em território americano e um mito colhido entre os Tupinambá por André Thevet, a quem Lévi-Strauss atribui, ao lado de Jean de Léry, as origens da disciplina de Antropologia Social, revelaria que os índios já haviam incorporado o motivo do homem branco às suas narrativas. O evento catastrófico da chegada dos europeus havia sido assimilado na condição de termo da estrutura de pensamento ameríndia. Na hipótese de Lévi-Strauss, isso se deve ao fato de serem os mitos uma forma de ordenação progressiva dos seres e das coisas em uma série de bipartições, de modo que as partes resultantes em cada etapa se revelam sempre desiguais. É do desequilíbrio dinâmico presente no interior das dualidades (tais como o criador e a criatura, os índios e os brancos, os concidadãos e os inimigos, os bons e os maus, os fortes e os fracos) que o pensamento ameríndio retira seu modo de funcionamento. O que os mitos dizem, argumenta Lévi-Strauss em História de Lince, é que os pólos em que se organizam os fenômenos nunca poderão ser gêmeos e são as distâncias diferenciais em sequência “que colocam em movimento a máquina do universo”1. Ora, nenhum desequilíbrio poderia parecer mais profundo aos índios do que aquele entre eles e os brancos. Nesse sentido, tudo se passa como se o lugar dos brancos estivesse marcado em vazio em um sistema de pensamento que opera com um estreitamento progressivo das oposições. De uma oposição entre contraditórios passa-se a uma oposição entre contrários e, então, a uma diferença de grau. Ou seja, “[d]e uma oposição inicial entre humano e não humano passar-se-á, por transformação, àquela entre humano e animal, depois para uma outra, ainda mais fraca, entre graus desiguais de humanidade (ou de animalidade)”2. O grau mínimo da diferença é, para Lévi-Strauss, 1 2 LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 66. Ibid., p. 172. Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 187-194, 2017. 187 raquel de azevedo o caso dos gêmeos e o índio e o branco são uma das formas da gemelaridade impossível da mitologia ameríndia. A pergunta a que este trabalho se propõe, no entanto, é uma inversão do problema lévi-straussiano, ou seja, trata-se de investigar de que modo o pensamento ocidental incorpora o processo catastrófico de colonização do continente americano. A resposta a essa pergunta passa, segundo minha hipótese, pela estrutura de pensamento que a Utopia de Thomas More inaugura com a descrição da ilha pelo navegante Hitlodeu – palavra de origem grega que significa “mercador de disparates”. À diferença da república ideal de Platão que se caracteriza por um aspecto diacrônico, a Utopia de More, publicada em 1516 sob influência direta dos relatos de viagem de Américo Vespúcio, é uma experiência sincrônica. A ilha de Utopia não é um estado futuro das sociedades europeias, é um espaço concomitante a elas. Estamos diante de uma operação lógica que cria, pela ficção, uma ordenação social através de um deslocamento espacial e não temporal. Utopia é a espacialização daquilo que nos tratados políticos sobre a república ideal se dá no tempo. A própria divisão interna do livro sugere que a ilha surge como um enclave no interior da Inglaterra do século XVI, ou seja, enquanto o Livro I se dedica a identificar os desdobramentos de um processo histórico de expropriação dos produtores diretos, de dissolução da propriedade privada baseada no trabalho individual, o Livro 2 apresenta uma sociedade constituída a partir de uma bricolagem entre elementos da pólis grega, dos monastérios medievais, da Reforma e do modo de produção inca, segundo Fredric Jamenson em Archaelogies of the future. A relação entre os dois livros parece nos remeter a uma oposição entre aquilo que é realmente existente e sua variação possível, ainda que, ironicamente, o Livro I, pólo associado ao real, se valha de uma estrutura clássica às narrativas distópicas, a inversão entre o homem e o animal, ao descrever a transformação social da região rural inglesa através da imagem de ovelhas que devoram os homens. Por outro lado, o Livro 2 investiga, nos termos de Christopher Kendrick no artigo More’s Utopia and uneven development, uma combinação imaginária de modos de produção, cuja emergência está associada à visão caleidoscópica de uma classe privada de seus meios de vida. Ou seja, o Livro 2 traz a marca da utopia, segundo Roland Barthes, na medida em que narra uma forma de organização da vida cotidiana, e o 188 Ontologia do limite Livro 1 se vale de um enredo usual em distopias para descrever o processo de acumulação primitiva. Mas o problema associado aos dois segmentos em que se divide a Utopia de More é o da transformação de um em outro. Como o processo histórico de cercamento dos campos, que consiste no fim da propriedade segundo a qual o trabalhador mantém controle de todo processo produtivo e do produto de seu trabalho, se comunica com a solução estética que tanto se assemelha, segundo Jameson, à escrita de constituições e de manifestos? Ou, dito de outra forma, como o mundo se comunica com seu enclave? A própria ilha traz a marca dessa separação geopolítica do espaço na medida em que a primeira ordem do rei Utopos após a conquista da península fora a construção de um canal que desligasse o território utópico do continente. Se é possível conceber nessa geografia imaginária mais do que uma sátira à Inglaterra, mas um esforço de construção de um objeto autônomo e auto-referencial, “a universe that doesn’t fall apart two days later”, como diria Philip K. Dick, o canal que separa a ilha utópica do continente, o Livro 2 do Livro 1, é uma variação no regime de propriedade. Para dar conta dessa modificação, o esforço sincrônico da Utopia exige a elaboração de uma representação totalizante, ao contrário dos Estados não-existentes cujo surgimento está associado a um desenvolvimento diacrônico das condições atuais. É nesse sentido que Thomas More combina, na descrição do modo de vida da ilha, o modelo inca de um sistema de poder central em uma república igualitária aos monastérios medievais, os quais funcionavam como um enclave em relação à sociedade agrícola feudal. Trata-se de uma bricolagem de instituições decadentes, visto que tanto o império inca quanto o monastério estão em processo de dissolução na época de More. A imaginação utópica parece, assim, medir o grau de entropia de uma organização social, ou seja, o recurso a instituições como o monastério e as terras comuns é um indicativo da irreversibilidade (que não se confunde com necessidade) das transformações associadas à chamada acumulação primitiva. O esforço associado à imaginação da ilha de Utopia seria um fenômeno dissipativo e a bricolagem que o caracteriza se faz exatamente com as relações sociais perdidas. O pensamento utópico surge, portanto, da torção de um elemento da realidade realmente existente, o regime de propriedade, de modo que a sincronia entre os dois mundos, um real e o outro possível, parece co- 189 raquel de azevedo locá-los num mesmo plano, o do livro de Thomas More. Minha hipótese é que a estrutura lógica em que se organizam as duas partes da Utopia é um caso particular da teoria de Leibniz acerca dos infinitos mundos possíveis, em que não apenas uma, mas infinitas variações se opõem à sequência de contingências que compõe o mundo existente, sendo todas inferiores em perfeição, em essência e em diversidade em relação ao mundo atual. A Utopia seria, assim, um caso particular das distopias com que se caracterizam os mundos preteridos por Deus, menos ricos em fenômenos. Com sua tendência ao nivelamento e à violação do princípio dos indiscerníveis, segundo o qual não podem existir duas coisas que difiram apenas numericamente, as utopias figurariam nos níveis mais baixos da pirâmide com que Leibniz exprime a ordenação dos infinitos mundos possíveis tais como são concebidos no intelecto divino. Entre os §§ 405 e 417 dos Essais de Théodicée, Leibniz cria um experimento ficcional em que descreve a disposição desses mundos em cômodos do palácio de Júpiter. No palácio dos destinos, o visitante conduzido por Palas Atena, filha de Júpiter, veria uma sequência de mundos que contém todos os casos obtidos pela variação de determinadas circunstâncias e de suas consequências. Mas não só. Mais do que abraçar a totalidade dos mundos possíveis, a sabedoria de Deus penetra-os, compara-os, pesa-os uns contra os outros para estimar os diferentes graus de perfeição das infinitas séries possíveis do universo. O mais perfeito dos mundos possíveis se localiza no pico da pirâmide e sua base se estende ao infinito. Tal configuração explicita que há uma prioridade de natureza nessas operações do intelecto divino, ou seja, há uma ordem entre todas as combinações possíveis, mas não há nelas qualquer prioridade de tempo. Deus vê de uma só vez todas as sequências de mundo possíveis. O palácio dos destinos se caracteriza, portanto, pela sincronia e pela variação infinitesimal de um cômodo para outro. Minha hipótese é que a ordenação dos infinitos mundos possíveis na narrativa leibniziana tem a mesma estrutura do cálculo diferencial, ou, dito de outra forma, a biblioteca de distopias que encontramos no palácio de Júpiter é uma expressão ficcional da derivada. Mas o que, de fato, significa comparar o mundo atual e os infinitos possíveis a ele associados ao comportamento de uma curva no plano cartesiano? Significa dizer que as retas tangentes de uma curva qualquer são análogas às cenas de um mundo em que Judas 190 Ontologia do limite não trai, Adão não peca ou César não atravessa o Rubicão, isto é, cenas de um mundo de proposições contraditórias com o mundo em que Judas trai, Adão peca ou César atravessa o Rubicão, respectivamente. Pode-se dizer que as tangentes são a representação bidimensional das distopias, ou, o que parece ser o intento leibniziano com o palácio dos destinos, os infinitos mundos possíveis são a ordenação tridimensional do cálculo infinitesimal das diferenças que Leibniz elabora na década de 1670. A transformação que o cálculo diferencial representa em relação ao método de exaustão de Arquimedes passa fundamentalmente pela capacidade de operação com os infinitesimais, os zeros relativos, como Leibniz os denominava. A geometria grega não possuía definições precisas de comprimento, área e volume, de modo que o significado dessas quantidades era expresso através de relações de proporção. Isso significa que em vez de se perguntar qual a área de um círculo, Eudoxo, que antecedeu Arquimedes, investiga a razão entre as áreas de dois círculos através de quadrados de mesmo diâmetro, explica Carl Boyer em The history of the calculus and ist conceptual development. O método da analogia revela toda sua potência no procedimento de inscrição de um polígono regular no interior de um círculo e de divisão sucessiva de seus lados, a fim de que se obtenha uma figura que coincida com o círculo e que possa, assim, exaurir sua área. Nessa operação, o conceito de limite é puramente geométrico e não numérico, algo que só seria possível a partir do estudo dos números irracionais. Tendo como fundamento as noções de continuidade do espaço, o método de exaustão se depara com a dificuldade de o polígono inscrito poder se aproximar do círculo o quanto se queira sem jamais coincidir com ele, o que implicaria um termo final no processo de subdivisão de seus lados. No estudo da área de um segmento parabólico, Arquimedes mostraria, a partir de um argumento baseado na reductio ad absurdum, que uma razão maior ou menor do que a equivalência entre o polígono e o segmento de curva era inconsistente com o princípio de que a diferença poderia ser tão pequena quanto se desejasse. Dado que a geometria grega se interessava mais pela forma do que pela variação, não há na matemática antiga a ideia de correspondência entre curva e função ou tampouco a definição da tangente através do conceito de limite. A ideia de construção mecânica de uma curva ocorreria a Leibniz através do estudo das propriedades do triângulo aritmético de 191 raquel de azevedo Pascal. Seu desafio foi transpor as diferenças finitas entre os elementos do triângulo para as diferenças infinitesimais entre as ordenadas de uma curva. O resultado é a definição da tangente como a razão de diferenças das ordenadas e das abscissas à medida que se tornam infinitamente pequenas, enquanto a integral é dada pela soma das ordenadas para intervalos infinitesimais nas abscissas. Leibniz mantém a propriedade do triângulo de Pascal de serem as operações de soma e diferenciação mutuamente inversas, mas a diferenciação se torna o caso mais fundamental e a integral, sua posição invertida. Se seguimos a hipótese de que o cálculo da tangente de uma curva é análogo à disposição dos infinitos mundos possíveis no palácio de Júpiter, vemos que o que garante no interior de cada mundo a própria condição de mundo, ainda que nunca venha a se realizar, é essa forma muito específica de operar com o infinitesimal, não mais pelo acréscimo indefinido de partes cada vez menores, mas pela transformação do infinitamente pequeno em um termo operacional. Ou seja, a relação entre o Livro 1 e o Livro 2 da Utopia de Thomas More pode ser pensada como uma relação diferencial, em que uma mínima variação gera um máximo desvio. É nesse sentido estrito que a distopia é uma experiência mental limite: o limite matemático que está na definição do cálculo da tangente de uma curva é aquilo que faz da distopia um mundo. Há, porém, outra hipótese acerca da coincidência entre uma curva qualquer e a série de elementos contingentes que compõe um mundo, uma hipótese que toma essa curva como uma lente ou um espelho que gera focos de perspectiva fora dela, ou, como diria Gilles Deleuze em A dobra, que considera um ponto não como um ponto de inflexão da curva, mas como um lugar, uma posição, um foco fora da curva em que se encontram as retas perpendiculares às tangentes. Este lugar é o ponto de vista, uma posição que permite seriar a variação, ordenar os diferentes casos. Um exemplo de ponto de vista sobre a variação é o das cônicas. A ponta de um cone é o ponto de vista ao qual são reportados o círculo, a elipse, a parábola, a hipérbole e a reta, conforme o plano de corte do cone. Significa dizer que o que um ponto de vista fornece é sempre uma variante, ou, nas palavras de Deleuze, que em um mundo que perdeu todo centro, o objeto só existe através de suas metamorfoses. Passa-se, assim, da curvatura variável ao foco da curvatura, ou, como diz Deleuze, da inflexão à inclusão. 192 Ontologia do limite Ou seja, a série infinita das curvaturas ou inflexões é o mundo e o mundo inteiro está incluído na alma sob um ponto de vista. A pergunta que se faz Deleuze a respeito da passagem da curva ao seu foco de perspectiva é saber por que é preciso partir do mundo ou da série, por que se vai das inflexões às inclusões no sujeito. Como seria essa operação possível se o mundo só existe nos sujeitos que o incluem? O mundo está na mônada, cada mônada inclui toda série de estados do mundo, mas nenhuma contém a razão da série, a lei das curvaturas da qual todas elas resultam e que lhes permanece exterior como princípio de seu acordo. Passa-se do mundo ao sujeito, diz Deleuze, “ao preço de uma torção que faz com que o mundo só exista atualmente nos sujeitos, mas que faz também com que todos os sujeitos sejam reportados a esse mundo como à virtualidade que eles atualizam”3. O jogo no país dos possíveis que é o intelecto divino se daria em torno dos modos de se preencher um espaço deixando o mínimo de vazios possíveis e com o máximo de figuras possíveis. O espaço, no entanto, não pode ser tomado como um receptáculo preexistente que recebe um mundo. A cada mundo pertencem um espaço, um tempo e uma extensão e não o inverso. Nas palavras de Deleuze, o jogo leibniziano interioriza os jogadores e a própria mesa em que se joga. Para compreender a relação entre os dois segmentos em que se divide a Utopia de More, passamos do problema geopolítico da separação do território de Utopia do continente ao problema do cálculo diferencial e ao ponto de vista sobre a variação. Trata-se aqui de pensar o deslocamento espacial que caracteriza o pensamento distópico a partir da afirmação de Leibniz, no § 6 do Discurso de metafísica, de que o mundo escolhido por Deus entre os infinitos possíveis se assemelha a uma curva. Se o traço dessa curva não exprime uma evolução no tempo, mas o contorno do mundo, suas inflexões permitem pensar o mundo atual a partir das tangentes a que correspondem os possíveis, no cálculo diferencial, ou a partir das anamorfoses que se oferecem a um ponto de vista diante da curvatura de uma lente ou de um espelho, conforme os conceitos da óptica. Os massacres e as pilhagens que caracterizam o processo de colonização do continente americano encontrariam, assim, uma forma de expressão no movimento radical de espacialização em que consiste a construção mecâ- 3 DELEUZE, 2012, p. 50. 193 raquel de azevedo nica de uma curva. Mary Shelley, H. G. Wells e Philip K. Dick são herdeiros do que poderíamos chamar de mitologia dos brancos acerca da gemelaridade impossível. Referências BOYER, C. The history of the calculus and ist conceptual development. Nova Iorque: Dover Publications, 1949. DELEUZE, G. A dobra: Leibniz e o barroco. 6. ed. Campinas: Papirus, 2012. JAMESON, F. Archaelogies of the future: the desire called Utopia and other science fictions. Londres ; Nova Iorque: Verso, 2005. KENDRICK, C. More’s Utopia and uneven development. boundary 2, v. 13, n. 2, p. 233-266, 1985. LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica e outros textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004b. ______. Essais de Théodicée: sur la bonté de Dieu, la liberté de l’homme et l’origine du mal. Paris: GF Flammarion, 1969. LÉVI-STRAUSS, C. História de Lince. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. MORE, T. Utopia. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. 194 O caminho da eficácia: discurso e organização política Maikel da Silveira (PUC-RJ) “Não são poucos os camaradas que realizam trabalho de inspeção, assim como líderes de guerrilha e quatros partidários com funções recém-atribuídas, que gostam de fazer pronunciamentos políticos no momento em que chegam a algum lugar e que se pavoneiam, criticando isso e condenando aquilo, tendo visto apenas a superfície das coisas ou detalhes menores. Essa conversa boba puramente subjetiva é na verdade detestável. Essas pessoas estão destinadas a criar confusão, perder a confiança das massas e mostrar-se incapazes de resolver qualquer problema”. Mao Tsé-Tung “Os chineses são incorrigivelmente concretos” Wu Kuang-ming Fenômenos recentes (Trump, Brexit, Marine Le Pen, pra citar os mais emblemáticos) parecem indicar uma subida no tom dos discursos conservadores, nacionalistas, xenófobos, “negacionistas” no espaço público contemporâneo. Ao mesmo tempo, observa-se uma incapacidade crescente nas organizações e movimentos políticos de esquerda, no sentido lato, para lidar com essa situação. O proletário, o grande sujeito da história no materialismo científico, não parece muito interessado em unir-se para derrubar o capitalismo. Parece mais disposto a lutar para preservar o seu quinhão (por menor que seja) da ameaça de mexicanos, imigrantes, refugiados ou “comunistas”. Sentir-se chocado diante desse cenário, não parece ser uma tática de resistência muito efetiva. Muito menos lamentar suposta ignorância ou falta de consciência política do vulgo. Há algo que precisa ser melhor compreendido nesse comportamento das pessoas. Não se pode simplesmente atribuir a escolha delas à “burrice”. Como aponta Ives Cittón, que nos últimos tem se ocupado de estudar a Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 195-207, 2017. 195 MaiKel da silveira importância das narrativas (nas palavras dele, do storytelling) na política, “(…) nenhuma política verdadeiramente progressista pode ser construída sobre o pressuposto da estupides individual dos membros da multidão”. A negação do que as pessoas efetivamente sentem pavimenta o caminho para as recuperações demagógicas. Quando você diz pras pessoas que elas estão erradas em se preocupar com crime, insegurança, desemprego, aumento de impostos, vizinhos falando em línguas estrangeiras e realizando práticas estranhas – você está errado: dizer a eles que isso não tem importância não vai fazê-las parar de sentir que isso importa. Eles vão procurar alguém que vai (fingir que) escuta e provê-los com a forma mais básica de acordo preliminar (e respeito): sim, eu entendo o que você sente e vou tentar responder a isso (em vez de tentar negar seus afetos). Além da mera educação ou de um jogo de manipulação, esse tipo de resposta precisa se apoiar num postulado fundamental: na maioria dos casos, há um bom motivo para as pessoas sentirem o que sentem – mesmo quando eles falham em suas tentativas de encarar isso de frente ou não são capazes de justificar esses sentimentos de maneira satisfatória. (CITTÓN, 2011) Neste artigo, que se insere no âmbito de minha pesquisa de mestrado, onde me ocupo de investigar o papel dos afetos coletivos na constituição de corpos políticos, procuro caminhos teóricos para sair desse aparente imobilismo do pensamento de esquerda, por meio de uma aproximação entre as ideias de Ernesto Laclau e George Lakoff e alguns conceitos extraídos dos estudos de sinólogos como Marcel Granet e François Jullien sobre a China antiga, com ênfase na concepção chinesa de eficácia. 1. Discurso, metáfora e política 1.1. A concepção de discurso na obra de Ernesto Laclau A concepção laclauniana de discurso é tributária do conceito de jogos de linguagem em Wittgenstein, que nos diz, em linhas gerais, que não é possível separar a linguagem da realidade objetiva. Para Laclau, as fundações da vida em sociedade são retóricas e figuras de linguagem, tropos retóricos como metonímia, metáfora, sinédoque ou catacrese não são meras ferramentas úteis para nos ajudar a dizer da realidade, mas operações que a estruturam objetivamente. Quando fala em discurso, o autor se re- 196 O caminho da eficácia: discurso e organização política fere a toda prática significante, que pra ele “(...) é equivalente a toda produção social de sentido” (LACLAU, 2010, p. 64). Não dá pra separar aí o sentido da ação, porque toda ação implica significação. Não há, tampouco, separação entre significação e efeito. “Como nos ‘jogos de linguagem’ de Wittgenstein, palavras e ações (às quais acrescentamos os efeitos) são parte de uma rede interdependente” (Idem, p. 66). Dessa perspectiva, categorias linguísticas como significante e significado, sintagma e paradigma, não estariam mais restritas ao estudo da linguagem, mas permitiriam definir relações que operam no campo da “ontologia geral” (Ibidem)1. 1.2. Em busca do tempo perdido: relação metáfora-metonímia É com base nessa concepção do discurso como algo indissociável da ação que Laclau recorre (LACLAU, 2010) ao uso combinado e complementar da metonímia e da metáfora na produção da coerência, ou do efeito de totalidade, na narrativa proustiana de Em Busca do Tempo Perdido, a fim de iluminar sua teoria da hegemonia. O argentino se apoia nos estudos de Gerard Genette sobre a obra do romancista francês, onde esse autor defende que as metáforas proustianas aparecem sempre ligadas a uma cadeia de metonímias, que lhes conferem o que tomo a liberdade de chamar aqui de materialidade. De modo breve, o que ele diz é que a relação espacial de contiguidade, característica da operação metonímica, “(...) é a fonte dos efeitos analógicos da metáfora” (LACLAU, 2010, p. 54). Em outras palavras, é o que faz a analogia fazer sentido. Isso porque metonímia e metáfora sustentam-se mutuamente no ponto de tensão produzido nesse encontro. Recorrendo a uma série de exemplos, extraídos da obra proustiana, Genette sugere que a mútua implicação dessas duas figuras de linguagem é que confere “(...) unidade ao espaço discursivo” (Ibidem) à narrativa de Em busca do tempo perdido, que, sem o recurso 1 Em minha pesquisa, tenho procurado explorar detidamente a trilha de investigação aberta por essa abordagem da relação entre a linguagem e a configuração do espaço sócio-político contemporâneo a partir dos estudos de George Lakoff, sobre a relação do conjunto de palavras, imagens e narrativas por meio da qual se engendram os discursos políticos contemporâneos e as descobertas da ciência cognitiva. Isso é parte importante no esforço de tentar compreender de o papel e os efeitos da construção do discurso na transmissão, na disseminação, na “viralização” – pra usar uma palavra da moda – dos afetos políticos e, por sua vez, o papel desses afetos coletivizados na constituição dos corpos políticos. O mesmo interesse me levou aos estudos de Jullien sobre o conceito de eficácia na China. 197 MaiKel da silveira às metonímias, seria mera sucessão de momentos líricos temporalmente não encadeados (não seria, portanto, uma novela): “(...) é o cruzamento de metáfora e metonímia que garante que exista uma narrativa” (Ibidem). Na explicação de Laclau, é como se dois eixos estivessem em jogo: um vertical, a metáfora, outro horizontal, a metonímia. No ponto de encontro entre eles é que se produziria a coerência ou o efeito totalizador mencionado acima. Sem a metonímia, a metáfora perde o chão. Essa interdependência aparece de modo mais evidente na maneira como a memória involuntária, as reminiscências emergem de repente, no texto proustiano, como puras metáforas cujas origens só podem ser compreendidas retrospectivamente, diacronicamente. É só de maneira retrospectiva que se torna possível reconhecer a origem metonímica que dá consistência à analogia que nos aparece, primeiramente, isolada de suas causas. A “verdadeira experiência”. nas palavras de Genette, não começa na compreensão de uma “identidade de sensação” entre a reminiscência e um objeto, um lugar, um tempo, mas mum sentimento repentino de prazer ou felicidade (num afeto): “Essa primeira explosão é sempre acompanhada (...) necessariamente por uma reação em cadeia que procede, não por analogia, mas por contiguidade”(GENETTE apud LACLAU, 2010, p. 55), é nesse momento que se dá o “(...) contagio metonímico”(Ibidem), ou aquilo que Proust denomina “irradiação”, que resulta, por fim, na substituição metafórica. Há aí uma espécie de movimento pendular que vai da metáfora à metonímia e da metonímia de volta à metáfora2 para produzir a “verdadeira experiência”3. É com base na compreensão desse mecanismo de interdependência que Laclau argumenta que: 2 3 (...) pode-se dizer que a metáfora é o telos da metonímia, o momento em que a transgressão das regras de combinação alcança seu ponto de não retorno: uma nova entidade passa a existir e nos faz esquecer as práticas transgressivas na quais se fundamenta. Mas sem essas práticas transgressivas, que são essencialmente metonímicas, uma nova entidade metafórica não teria emergido. Como Como aponta Genette, a metáfora, em Proust, é em geral pontuada pela expressão “como se” (comme si), que anuncia a comparação, a analogia. Já metonímia seria anunciada pela expressão “perto de mim” (près de moi) Apoiando-se na aproximação que Roman Jakobson faz da metonímia à prosa e da metáfora à poesia, Genette vê na obra proustiana a tentativa mais extrema de fundar esses dois eixos para produzir uma poesia em prosa ou uma prosa poética. 198 O caminho da eficácia: discurso e organização política mostra Genette, no caso de Proust, a analogia está sempre fundada numa contiguidade originária”. (LACLAU, 2010, p. 62) É nisso que consiste a operação hegemônica na teoria laclauniana4, cuja dimensão ontológica estaria precisamente nesse “(...) movimento que vai da metonímia à metáfora , da articulação contingente ao pertencimento essencial” (Idem, 63)5. 4 5 O nome – de um movimento social, de uma ideologia, de uma insti- Compreender esse mecanismo da nomeação é um aspecto essencial para compreender a teoria da hegemonia em Laclau, que se apoia na fórmula diferença = identidade, emprestada à linguística de Saussure, na qual a língua é descrita como um sistema de diferenças onde cada ato isolado de significação envolve sempre a totalidade do sistema linguístico. As identidades linguísticas são relacionais, ou seja, os elementos de um sistema não possuem valor em si, mas somente em relação aos demais elementos do conjunto. Se essas diferenças não constituem um sistema, a significação não é possível. A mesma lógica opera quando se quer pensar a identidade do sistema em si. Também ela tem caráter relacional, só que sua relação é com um fora: pensar os limites de um sistema é pensar o que está para além dele. É enquanto diferentes do que está excluído do sistema que os elementos internos a ele se tornam equivalentes. O limite do sistema se apresenta, assim, como uma negatividade. É essa negatividade que precisa ser nomeada para se manifestar. Para Laclau, a esfera institucional se organiza em torno da lógica da diferença e, por isso, só é capaz de processar as demandas diferenciais que emergem no interior do sistema. A política, efetivamente, opera de acordo com a lógica da equivalência, que consiste em conferir densidade à negatividade acumulada fora do sistema para, desse modo, irromper dentro dele. Para Laclau, ainda, a lógica da diferença operaria em períodos de estabilidade e a da equivalência entraria em ação em períodos turbulentos. Na teoria laclauniana da hegemonia, essa cadeia de equivalências só pode ser constituir em torno de um significante vazio: um significante do puro cancelamento de toda diferença. O que está em jogo aí é uma tentativa de significação do Real, no sentido lacaniano: não há outro modo de fazê-lo, a não ser por meio da subversão do próprio processo de significação: “(...) o que não é diretamente representável – o inconsciente – só pode encontrar meio de representação na subversão do processo de significação” (LACLAU, 2011, p. 71). O sistema apresenta-se aí como puro ser, mas “(...) o ser ou a sistematicidade do sistema representado por meio de significantes vazios não é um ser que tenha efetivamente se realizado, mas que é constitutivamente inacessível” (LACLAU, 2011, p. 72). Trata-se, no entender de Laclau, de uma falta constitutiva, um objeto impossível, do objeto a lacaniano. A relação na qual um conteúdo diferencial particular – uma parte do conjunto social – se torna o significante da plenitude comunitária ausente é precisamente o que Laclau denomina relação hegemônica. A presença de significantes vazios é, para Laclau, portanto, uma condição indispensável para a construção da hegemonia. Daí a importância que o ato de nomear – um movimento social, uma ideologia, um movimento político – desempenha nesse processo. Para Laclau, contiguidade e analogia constituem dois polos de um contínuo, o que ele defende recorrendo a um exemplo que aparece, em outros textos, em seus estudos da hegemonia: um bairro, às voltas com a casos de violência racial, encontra nos sindicatos da região a única força capaz de confrontar os grupos racistas. A princípio, combater o racismo não é um papel dos sindicatos. A assunção desse papel deriva de uma relação de contiguidade, de vizinhança, ou seja, essa é uma operação de natureza metonímica. Quando o sindicato, na falta de outras forças, ocupar esse papel por demasiado tempo, essa contingencia inicial tende a se apagar e a metonímia que lhe deu origem tende a dar lugar à metáfora. 199 MaiKel da silveira tuição política – é sempre uma cristalização metafórica dos conteúdos cujas relações analógicas resultam do ocultamento da contiguidade contingencial de suas origens metonímicas. (Ibidem) 1.3. De Laclau a Lakoff Gostaria de sugerir agora uma contiguidade conceitual entre esse mecanismo descrito por Laclau e o funcionamento do cérebro, de nosso mecanismo cognitivo, conforme descrito nos estudos de George Lakoff. Por caminhos diversos, lendo bibliografias diversas, os dois autores chegaram a uma concepção muito semelhante sobre a interdependência entre palavras e ações, além de partilharem do interesse pela compreensão do papel da metáfora nesse processo. Para Lakoff, as metáforas têm um fundamento material, são experiências físicas (espaciais, visuais, sensoriais) traduzidas em palavras, imagens e conceitos que, uma vez criados ou evocados mentalmente, modificam fisicamente o cérebro, criando trilhas e vínculos neuronais capazes de determinar, em maior ou menor grau, nossas experiências futuras. Dessa perspectiva, não apenas o entendimento entre as pessoas depende da capacidade e do esforço de cada um para traduzir experiências pessoais ou coletivas em metáforas compreensíveis para o seu interlocutor, bem como o autoconhecimento exige negociar e renegociar constantemente o significado de nossas experiências. “Isso envolve a construção constante de novas coerências em nossa vida, coerências que deem novo significado às velhas experiências” (LAKOFF & JOHNSON, 2013, p. 233). Parece-me que é precisamente nisso que consiste, para Laclau, a tentativa de reconstituição da cadeia metonímica – da contiguidade, das zonas de vizinhança entre pessoas, lugares, coisas e, claro, também entre palavras, imagens e conceitos –, que nos permite dar sentido a determinadas experiências, mas cujas relações são ocultadas quando esse quiasma metonímico cristaliza-se em metáfora. Isso faz todo sentido no âmbito de suas preocupações teóricas, que giram em torno da recuperação do potencial emancipador das teorias marxistas, enfatizando, sobretudo a partir de Gramsci, o aspecto contingencial das construções hegemônicas, em detrimento do determinismo histórico do materialismo científico. Essa formulação, no entanto, parece abrir outra trilha de investigação, que embora antevista, parece-me pouco explorada nas obras do filósofo argentino. Trata-se precisamente do processo de formação disso que chamei 200 O caminho da eficácia: discurso e organização política acima de quiasma metonímico, que de uma perspectiva política parece emergir como pré-condição para a eficácia discurso hegemônico, como fator determinante do potencial de um discurso contra-hegemônico para vingar. De modo breve: o que me interessa compreender é por que determinados discursos simplesmente “colam” (mobilizam afetos, produzem efeitos, estimulam a agir) e outros, não. Creio que essa é uma necessidade urgente para qualquer contra-hegemonia, mas principalmente para aquelas cujos modestos objetivos são resistir à razão neoliberal, destruir o capitalismo ou interromper o avanço do aquecimento global... 2. Em busca da eficácia 2.1. A linguagem e conversão da conduta Assim como Laclau e Lakoff, os chineses, à sua maneira, não colocavam palavras e ações em compartimentos distintos. Como aponta Marcel Granet, a língua chinesa, na sua forma, no seu ritmo, nas imagens que evoca e suscita, é voltada para a ação, visa ter um efeito, preocupa-se menos em “(...) informar com clareza do que nortear a conduta” (GRANET, 2016, p. 34): (...) a língua chinesa não parece organizar-se para exprimir conceitos. Aos signos abstratos que podem ajudar a especificar as ideias, ela prefere símbolos ricos em sugestões práticas; estes, em vez de uma acepção definida, possuem uma eficácia indeterminada: não visam a permitir identificações precisas, mas sim, acompanhando uma adesão global do pensamento, uma espécie de conversão total da conduta. (GRANET, 2016, p. 15) Diferentemente das metáforas para Lakoff e Laclau, nas quais os fundamentos na experiência material (as cadeias metonímicas) às vezes são difíceis de localizar, nos emblemas chineses esse vínculo tende a ser mais evidente, pois os signos para eles não são meras notações de conceitos, nem noções gerais e abstratas cujo papel é definir e fixar significados. Eles evocam “(...) um complexo indefinido de imagens particulares, primeiro fazendo surgir a mais ativa dentre elas” (GRANET, 2016, p. 34). Muito do esforço de Lakoff para destacar o papel da retórica e da narrativa na configuração morfológica do cérebro e da sociedade é algo que 201 MaiKel da silveira parece estar presente na constituição mesma da língua chinesa. “O chinês”, como escreve Granet, “(...) possui uma força admirável para comunicar um impacto sentimental, para convidar a tomar partido” (GRANET, 2016, p. 33). Trata-se de uma língua forjada no embate de “vontades ardilosas” onde: Pouco importava exprimir claramente as ideias. Desejava-se, antes de mais nada, conseguir (de maneira discreta e, ao mesmo tempo, imperativa) transmitir a própria vontade. (GRANET, 2016, p. 33) Se entendermos essa vontade como uma visão de mundo, uma moral, estaremos precisamente no campo de interesse de Lakoff, em cujas principais obras o autor se ocupa de entender por que raios a visão de mundo conservadora tem conquistado os “corações e mentes” dos norte-americanos – como diria Margaret Thatcher. Para Lakoff, a política é uma questão de valores morais e o que está em disputa nos confronto de discursos políticos é sempre uma perspectiva sobre o que é certo ou errado, perspectiva essa que corresponde a um enquadramento (frame) e é acionada por um conjunto de metáforas que formam narrativas e mobilizam “(...) um complexo indefinido de imagens particulares”. Para Lakoff, a linguagem se adequa à realidade na medida em que se adequa à nossa estrutura cognitiva e o poder das palavras reside em ativar nosso processo de interpretação – que combina enquadramentos, metáforas, narrativas e imagens para produzir sentimentos que nos afetam fisicamente6. Essa preocupação não difere muito daquela que está em jogo no conceito de hegemonia em Laclau e do papel que o discurso populista nele desempenha: trata-se, no fim das contas, de transmitir uma vontade, disseminar uma visão de mundo, fazer da parte o todo, fazer da plebs, populus. 2.2. Uma sabedoria com fins políticos Como aponta Granet, “(...) toda a sabedoria chinesa tem fins políticos” (GRANET, 2016, p. 20). Os conceitos, entre os chineses, não têm valor enquanto puros conceitos, até porque (...) o pensamento chinês recusou-se a distinguir o lógico e o real” (GRANET, 2016, p. 25). 6 “Se ouvimos a mesma linguagem repetidas vezes, passamos a pensar cada vez mais nos termos dos enquadramentos e metáforas ativados por ela. Não importa se são palavras negativas ou questionamentos, os mesmos enquadramentos e metáforas serão ativados e, portanto fortalecidos” (LAKOFF, 2009, p. 15). 202 O caminho da eficácia: discurso e organização política As ideias a que os chineses atribuem uma função de categorias dependem, em essência, dos princípios em que repousa a organização da sociedade: representam uma espécie de base institucional do pensamento chinês, e sua análise se confunde (...) com um estudo da morfologia social. (GRANET, 2016, p. 25) Compreender isso é essencial para compreender a concepção chinesa de eficácia. Porque diferentemente do que acontece no pensamento ocidental, no qual ela aparece em geral associada à realização prática de um plano ideal (relação teoria-prática), no pensamento chinês a eficácia de uma ação depende acima de tudo da capacidade de prestar atenção ao curso das coisas, para identificar nesse curso a coerência e para poder aproveitar-se de sua evolução, de seu desenvolvimento, beneficiar-se da transformação. (...) em vez de construir uma forma ideal que se projeta nas coisas, dedicar-se a detectar os fatores favoráveis à obra na sua configuração; em vez, pois, de fixar um fim à sua ação, deixar-se levar pela propensão; numa palavra, em vez de impor seu plano ao mundo, apoiar-se no potencial da situação. (JULLIEN, 1996, p. 32) 2.3. Tempo e Espaço: Ocasião e Sítio A noção de potencial de situação é tributária das concepções chinesas de tempo – que entre eles não corresponde a uma duração monótona de momentos qualitativamente semelhantes que se sucedem – e de espaço – que não se trata meramente de uma extensão “resultante da sobreposição de elementos heterogêneos” (GRANET, 2016, p. 65). O tempo chinês corresponde a um conjunto de eras, formadas de estações e épocas. O espaço é sempre um complexo de domínios, com climas e pontos cardeais característicos. “Em cada ponto cardeal, a extensão se singulariza e adquire atributos particulares de um clima ou de um domínio” (GRANET, 2016, p. 65). O Tempo e o Espaço nunca são concebidos independentemente das ações concretas que exercem como complexos de emblemas solidários, ou independentemente das ações que é possível exercer sobre eles por meio de emblemas convocados para singularizá-los. As palavras shi e fang aplicam-se, a primeira, a todas as porções da duração, e a segunda, a todas as partes da extensão, mas sem- 203 MaiKel da silveira pre encaradas, tanto estas como aquelas, sob um aspecto singular. Esses termos não evocam nem o Espaço em si nem o Tempo em si. Shi evoca a ideia de circunstância, a ideia de ocasião (propícia ou não para uma certa ação); fang, a ideia de orientação, de local (favorável ou não para determinado caso particular). Formando um complexo de condições emblemáticas, a um tempo determinantes e determinadas, o Tempo e o Espaço são sempre imaginados como um conjunto de grupos concretos e diversos, de sítios e ocasiões. (GRANET, 2016, p. 67) Os chineses, afirma Julien, não concebem uma atividade contemplativa, que seja puro conhecimento. Afirmação corroborada por Granet, para quem, na China, (...) a especulação filosófica sempre partiu – se é que não se limitou a isso – de um saber cujo objetivo é classificar, com vistas à ação e em razão de suas eficácias particulares, os sítios e as ocasiões (GRANET, 2016, p. 67). 2.4. A criação do momento oportuno É em relação a sítios e ocasiões, espaços e tempos, que o potencial de situação se manifesta circunstancialmente. É a tais circunstâncias que o estrategista, ou o sábio, deve estar atento e saber investigar. É isso que permite antecipar as transformações, as mudanças, as mutações, identificá-las no início, quando começam a tomar forma e, por isso, são mais flexíveis. Não se trata de ter um plano pronto e esperar o caos, a desordem, a crise para pô-lo em prática, para agir, com as bênçãos da “fortuna” e apoiando-se na “virtú” maquiavélicas, conceitos que no ocidente se movem, segundo Jullien, tendo a ontologia como pano de fundo “(...) opondo o ser ao tornar-se, o ‘estável’ ao ‘movente’” (JULLIEN, 1996, p. 91) e “(...) é para adaptar a regra à instabilidade das coisas (...) que se ‘espera’ a ocasião” (Idem). O tempo oportuno, na China, é sempre um pouco antes, a ocasião não é algo que simplesmente aparece, mas algo que deve ser previamente concebido: “(...) o potencial de situação é como armar uma besta e o momento oportuno é como desencadear o seu mecanismo” (JULLIEN, 1996, p. 91). Na ótica da transformação, a ocasião não é mais que o resultado de um desenvolvimento, e a duração preparou-a; de onde, longe de sobrevir de improviso, ela é fruto de uma evolução que é preciso agarrar no seu ponto de partida, logo que se manifesta. (JULLIEN, 1996) 204 O caminho da eficácia: discurso e organização política A eficácia, na guerra ou na diplomacia (ou seja, na política) consiste em saber intervir em dois momentos cruciais: à montante, no ponto de partida dos processos estabelecidos, quando o desenvolvimento tem início e, no fim, quando devemos cair sobre o inimigo com o máximo de intensidade. Tal como no seu estádio terminal a ocasião tornou-se tão flagrante, também no seu estádio inicial ela é dificilmente perceptível; mas é esta primeira demarcação que é decisiva, uma vez que é nela que começa a capacidade de efeito e de que a ocasião final não é, no fim de contas, mais do que consequência. (JULLIEN, 1996, p. 92) Essas aproximações e clivagens dos pensamentos ocidental e chinês poderiam seguir por páginas a fio, mas me detenho neste ponto, que considero o mais relevante para o que me propus a discutir neste artigo: a questão da eficácia da ação política. 3. Conclusão Meu interesse pelas ideias de Ernesto Laclau tem relação com o tema que me levou a esta pesquisa de mestrado: as manifestações de junho de 2013 no Brasil. Encontrei, então, no conceito no conceito de significante vazio um operador importante para entender o papel que certos slogans e palavras de ordem eram capazes de exercer sobre multidões que foram às ruas naquela época; e sobre as quais incidia, sobretudo da parte da esquerda organizada (partidos, sindicatos e outros movimentos sociais) uma crítica constante, relativa à ausência de demandas claras, propostas, pautas. Compreendi, com Laclau, que o significante vazio podia exercer sobre demandas as mais diversas uma força centrípeta que lhes conferia unidade, constituindo uma cadeia de equivalências; e compreendi que eles podiam não apenas ser vazios, mas também flutuantes, servindo para mobilizar em torno si de demandas, interesses e correntes políticas contraditórias. Desde então, tenho recorrido a outros autores a fim de tentar compreender o que determina a eficácia de um significante vazio. Por que em todo movimento popular – em toda multidão – muitas bandeiras, muitos slogans, muitas palavras de ordem emergem, mas nem 205 MaiKel da silveira todas pegam, colam, vingam, nem todas realizam a sinédoque que permite à parte representar o todo, pra usar a terminologia de Laclau. Em Laclau, essa investigação se dá, sobretudo, a partir do referencial da psicanálise. Algo me impelia, no entanto, a tentar compreender melhor a relação disso com os commons7. Queria investigar em que medida a organização do espaço (urbano ou rural, central ou periférico, oriental ou ocidental), a disposição das coisas e dos seres vivos no espaço contribuía para dar aderência aos discursos políticos, ou para criá-los. Não se tratava de ignorar os outros fatores, muito menos de subestimar importância daquilo que Deleuze e Guattari chamavam de fluxos descodificados no capitalismo, mas de aprender a identificar instâncias de codificação circunstanciais – “montantes” – que levassem em conta o papel o “sítio e da ocasião” desse processo e me ajudassem a avançar na direção de uma política pensada como química ou manipulação, sendo a manipulação compreendida aí como: (...) a arte da disposição que torna possível tirar vantagem da propensão de cada coisa, ‘dobrá-las’ de tal maneira que elas ‘espontaneamente’ atinjam o que o artista, o homem de guerra ou o político quer. Longe de qualquer oposição entre submissão e liberdade: um pensamento focado na eficácia. (STENGERS, 2005, p. 10) É nesse sentido que os insights suscitados por esse diálogo com a China antiga, desenvolvido por autores como Jullien e Granet, podem ser úteis para repensarmos as práticas de resistência e emancipação na contemporaneidade. Suspeito que vivemos um momento em que mais importante do que gritar palavras de ordem, é descobrir maneiras de prestar atenção ao curso das coisas. Menos do que entrar em disputas retóricas com metáforas, imagens e palavras que só encontram ouvidos moucos, talvez este seja um momento de ouvir, ver e investigar com o máximo de atenção. De estar atento aos ruídos, às trepidações, aos estalos da engrenagem transformadora quando ela começar, muito lentamente, a se mover. Essa talvez não seja lá uma postura muito heroica. Talvez não faça avançar aquele enredo clássico – e às vezes trágico, afeito aos sacrifícios 7 Questão que sempre me pareceu um aspecto melhor desenvolvido, por exemplo, na obra solo de Chantal Mouffe, companheira de Laclau e parceira sua em diversas obras, do que nas obras do argentino 206 O caminho da eficácia: discurso e organização política – tão caro à narrativa ocidental. Mas talvez seja esse o caminho do sábio, que anda pelas vicinais, que contorna obstáculos, que é como a água: acumula potencial de um lado enquanto todos olham para o outro. E que, no momento certo, desfere, com o mínimo esforço, o golpe perfeito. Bibliografia CITTÓN, Y. (2011). Populism and the empowering circulation of miths. (N. Publishers, Ed.) Open 20: The Populist Imagination On The Role Of Myth, Storytelling And Imaginary In Politics. GRANET, M. (2016). O Pensamento Chinês. Rio De Janeiro: Contraponto. JULLIEN, F. (1996). Tratado da Eficácia. Lisboa: Instituto Piaget. LACLAU, E. (2013). A razão populista. São Paulo, Sp: Três Estrelas. LACLAU, E. (2010). The retorical foundations of society. Londres: Verso. LAKOFF, G. (2009). The Political Mind: why you can’t understand a 21st-century politics with a 18th century brain. Nova York: Penguin Books. LAKOFF, G., & JOHNSON, M. (2013). Metaphors we live by. Chicago: Chicago University Press. STENGERS, I. (2005). A cosmopolitical proposal. In: LATOUR, B., & WEIBEL, P. Making Things Public: Atmospheres Of Democracy. Mit Press. TSÉ-TUNG, M. (2008). Sobre prática e a contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 207 Consciência, plasticidade neural e o estado ilusório da matéria Charles Borges (PUCRS) Há toda uma tradição filosófica que se estabelece a partir do desinteresse ou mesmo pela negação da possibilidade de existirem outras mentes. Para esta tradição, cujas raízes podem ser encontradas no positivismo lógico e no behaviorismo, as outras mentes não existem. Minha proposta neste trabalho é retomar este fio condutor e apresentar um argumento pelo ceticismo em relação à questão da existência das outras mentes e aplicá-lo à consciência em geral. Como é sabido, o problema é formulado da seguinte maneira (CHURCHLAND, 1998, pp. 116-117): É, naturalmente, pela observação do comportamento de uma criatura, inclusive seu comportamento verbal, que a julgamos pensante e consciente – que ela é uma ‹outra mente›. Isso quer dizer que é por indução que atribuímos a “mente” a outras criaturas. Entretanto, ao contrário do que ocorre com a indução aplicada aos eventos naturais (do tipo: se há fumaça, há fogo), a aplicada às outras criaturas consiste em mera crença em relação à causa (se há comportamento, há mente), ou seja, se tudo o que podemos observar é tão somente uma das metades da conexão afirmada (o comportamento da criatura) é, portanto, no mínimo temerário afirmar que estamos justificados em “acreditar que nossas generalizações psicológico-comportamentais são verdadeiras no caso de outras criaturas” (CHURCHLAND, 1998, p. 117). A hipótese que pretendo trabalhar é que a “mente” ou a “consciência” é uma ilusão: se só podemos ter acesso às outras mentes de forma indireta, o fato de não termos certeza acerca da existência das outras mentes como portadoras de experiência sensível induz à conclusão de que nossa própria mente não existe. Por qual razão, afinal, nossa consciência 208 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 208-217, 2017. Consciência, plasticidade neural e o estado ilusório da matéria seria privilegiada em relação às demais? Nossa consciência é, assim, uma ilusão. É preciso, entretanto, atentar para a etimologia do termo. Quando afirmo o caráter ilusório da consciência não quero, com isso, fazer referência ao uso ordinário do termo, como quando falamos em “ilusão de ótica”, por exemplo. Conforme emprego o termo aqui, o sentido é similar ao conceito de imanência aberto pela filosofia crítica, como restará claro. Meu objetivo é comprovar que o conceito de “consciência” depende de seu caráter ilusório quando se refere aos estados fenomenológicos. Proponho utilizar o termo ilusão (denotando ao mesmo tempo “diversão”, “elusão” e “intervalo”). Chamarei este estado de “estado ilusório da matéria” referindo ao fato de que todo o sistema homeostático desenvolve (ou tem potencialidade de desenvolvimento de) um certo grau de estados ilusórios que, inadvertidamente, denominamos “consciência”. 1. O Conceito de Mente Para ilustrar a definição de mente vou me permitir apelar para um exemplo extraído da ficção. No episódio Be Right Back da série Black Mirror, Martha e Ash são um jovem casal que se muda para uma casa no campo. Ash é um viciado em mídia social que está o tempo interagindo na rede. Um dia depois de se mudar para a nova casa, Ash morre em um acidente quando está indo devolver van que havia alugado para transportar a mobília. No funeral, Sarah, uma amiga de Martha, menciona um novo serviço online que permite que as pessoas estabeleçam uma espécie de “contato com os mortos”. Usando todos os seus dados de comunicações online e perfis de mídia social, é possível criar um novo “Ash”. Martha rejeita a ideia de imediato, mas Sarah mesmo assim cria um perfil, sem lhe dizer. Quando Martha recebe um e-mail deste “novo Ash”, fica furiosa com Sarah, entretanto, após a descoberta de que está grávida, resolve responder ao e-mail do “Ash artificial”. O próximo passo é Martha começar a carregar vídeos e fotos de Ash na base de dados do serviço que, por sua vez, simula a voz de Ash e passa a conversar com Martha por telefone. A comunicação pelas mídias sociais entre ambos é intensa e ininterrupta, até o Ash artificial contar que existe uma próxima fase do serviço, que ainda está em experimentação: um corpo feito de carne sintética no qual pode ser feito o download do “software Ash”. 209 CHarles Borges Martha compra o serviço. O resultado final é um clone que parece quase exatamente como Ash, faltando apenas características menores, como uma marca de nascença em seu pescoço, por exemplo. A partir do momento em que o clone é ativado, Martha sente-se frustrada por ele apresentar uma conduta submissa e uma a ausência de emoções espontâneas (apenas expressa emoções quando ela diz-lhe para fazê-lo), além da ausência de certos hábitos e traços de personalidade do Ash real (certas informações indisponíveis para o serviço de download). Depois de uma discussão, Martha decide que deve se livrar do clone e ordena que ele se jogue de um penhasco. O clone concorda em fazê-lo, mas Martha fica furioso, dizendo que o verdadeiro Ash jamais teria concordado em saltar. O clone responde implorando por sua própria vida, fazendo com que Martha perceba que não pode simplesmente se livrar dele. A cena corta para vários anos mais tarde. Martha, sua filha e o clone habitam a mesma casa. Entretanto, o “novo Ash” é mantido trancado no sótão. O aspecto principal nessa narrativa é intuitivo. O novo Ash não manifesta aquilo que Espinosa, seguido por Damásio, denomina emoções e sentimentos. O novo Ash não fica triste, não se irrita, não se sente contrariado, não antagoniza – é, de certo modo, indiferente. Este comportamento, com o passar do tempo, torna-se insuportável na medida em que, na visão de Martha – assim como na da grande maioria das pessoas, uma personalidade que não responde às interações sociais utilizando adequadamente a completude do repertório de emoções e sentimentos disponível, tem algo de “estranho”, “incômodo” e “inconveniente”. Em resumo: a definição de consciência que extraímos daqui é comportamental. Esperamos que uma consciência apresente um repertório de respostas a determinados estímulos. Este repertório, por sua vez, deve ser caracterizado pela coerência de uma unidade narrativa, uma individualidade, e isso nos basta. O que incomoda Martha é o descompasso entre a narrativa do novo Ash em relação à narrativa do antigo Ash – pois uma certa frequência autoral é tudo que ela conhece sobre Ash. 2. O Estatuto Epistemológico do Conceito de Mente A maioria da literatura tende a caracterizar a “mente” como um sistema de resposta ao meio. Pressupõe a existência de uma realidade objetiva que afeta a mente (através do corpo) que, por sua vez, processa 210 Consciência, plasticidade neural e o estado ilusório da matéria a informação e responde aos estímulos externos. Para estas teorias que utilizam o “modelo sanduíche” (a mente como recheio de input e output), a consciência define-se primeiramente como uma resposta teórica ou, quando muito, perceptiva aos estímulos externos. A mobilização de todo um sistema de ação se justifica em razão da emergência de uma mente “teórica” ou “perceptiva”. Além disso, em linhas gerais, a literatura pode até assumir que existe uma autonomia da mente, ou seja, assumir que a mente pode agir espontaneamente, sem a presença de um estímulo externo, entretanto tal fato só pode ocorrer “dentro” de um corpo – como os teóricos descendentes da autopoiese gostam de dizer “a mente é corporificada” (NOË, 2004; THOMPSON, 2010) – como “reação teórica” aos estados do corpo. Entretanto, sendo a mente algo “dentro” de um corpo, não há como ter acesso aos estados mentais teóricos e/ou perceptivos que acompanham o sistema de ação. Quando muito, posso ter acesso aos estados físicos (por fMRI, por exemplo) sem que com isso seja possível afirmar, com 100% de certeza, a existência de correlação específica entre ambos (mente e neurônios). Eis o problema: se podemos deixar de ser céticos em relação à atividade das redes neurais (todas as pessoas que tiverem seus cérebros escaneados terão comprovada sua atividade neural), o mesmo não se dá com os estados mentais: só posso postular e nunca afirmar que as outras pessoas têm estados mentais, ou seja, no fundo, tenho que ser cético no que diz respeito à existência da correlação. O ceticismo se agudiza quando passamos aos estados fenomenológicos. Se não posso ter certeza acerca dos estados mentais (ou psicofísicos), tenho mais razões para duvidar que outras mentes têm sensações e sentimentos. O que me resta é o behaviorismo ou, com muito otimismo, o funcionalismo que, no limite, não passam de modelos ou mapas teóricos sobre como as outras mentes funcionam. Estes modelos não dizem nada, entretanto, sobre a perspectiva (primeira pessoa), sobre a sensação. O cético radical pode chegar à seguinte constatação paradoxal: se não há como ter certeza sobre as outras mentes e sobre as outras consciências, por qual razão, mutatis mutandis, eu, cético, teria que inferir que a minha própria mente existe? Seria ela uma exceção? As propostas de Descartes e Kant para uma saída do ceticismo, em que pese sua elegância, 211 CHarles Borges não solucionam satisfatoriamente a questão. Postular a existência de um “eu” unitário que interage com a máquina corporal (através da “glândula pineal”) não avança muito a tese de que “eu existo enquanto ser pensante”, ou seja, que existo enquanto participo da substância pensante. De onde vem este “eu penso” e por que um “eu penso” tem que acompanhar necessariamente cada experiência? A mesma questão emerge da análise da “unidade transcendental da apercepção” proposta por Kant: um “eu transcendental” que acompanha e unifica a multiplicidade e é condição para a sensação é um mero postulado sem qualquer explicitação empírica.1 A consciência (a minha incluída), se entendida como aquilo que condiciona a unificação das sensações, não passa de ilusão – acreditamos que um “eu penso” acompanha e unifica a experiência, mas não temos qualquer justificação para isso que não seja a própria crença de que um “eu penso” unifica a experiência. 3. Não Há Problema com a Ilusão A ilusão é o que há. Não há nada além da ilusão. Quer se trate das outras “mentes”, quer se trate da minha própria mente, não há problema com a ilusão. Em que sentido afirmo isso? Partindo da premissa ontológica segundo a qual a matéria é intensiva antes de quantitativa e extensiva, ou seja, que por trás do caráter extensivo da matéria, encontramos intensidades, transições fásicas, dinamismos espaço-temporais que apontam para a elasticidade e para a plasticidade da mesma. Neste sentido, o mundo atual, das quantidades e das qualidades não existe enquanto ponto de partida, mas sim como produto de sistemas metaestáveis (ou longe do equilíbrio) que decorrem da segunda lei da termodinâmica (CHURCHLAND, 2004, pp. 260-267). Aprofundar o ceticismo em relação à “mente” não significa aderir ao ceticismo geral. Dizer que o mundo atual (que supostamente serviria de âncora para a mente) não existe como ponto de partida, não significa afirmar que nada existe, ou que “tudo é uma ilusão” (no sentido ordinário do termo). Significa dizer que aquilo que julgamos como sendo comportamento, percepção, estados mentais, são o funcionamento de um sistema de acoplamento (ou simplesmente ilusão), um dinamismo espaço-tem1 212 Para uma crítica às teorias não redutivistas de Descartes e de Kant, ver PRINZ, 2012, pp. 215-220. Consciência, plasticidade neural e o estado ilusório da matéria poral: organismos são sistemas de relações metaestáveis que emergem da plasticidade da matéria. Tanto perceptos quanto funções (ou Ideias) são estabilizações corporais (alguns autores a chamam de homeostase), ou seja, não há sensação, memória, imaginação ou conceito que não seja material, que não seja uma repetição de acoplamentos. Devemos a Kant o dispositivo das intuições puras. Como sabido, as formas do espaço e do tempo são intuições puras, a parte formal da sensação que condiciona a apreensão dos objetos – “disposição formal do [sujeito] de ser afetado” (KANT, 1999, p. 75). Para Kant, temos uma espécie de intuição ativa do espaço puro euclidiano que, pelo esquematismo da imaginação, possibilita a formação de totalidades, graças ao complemento de intuição formal, passiva e interna do tempo (KANT, 1999, pp. 78-80). A apreensão e os juízos são condicionados por estas coordenadas espaço-temporais. Essa tese kantiana tem dois problemas: 1. A topologia moderna formulou as teorias das N dimensões que praticamente sepultam a ideia de espaço euclidiano como uma intuição externa; 2. a física desenvolveu a ideia de temporalidade dinâmica, ou seja, a ideia de que o tempo é objetivo, é uma dimensão da realidade ao lado do espaço – que, por sua vez, sepulta a ideia de temporalidade como intuição interna. Isso significa que, se não quisermos renunciar ao aspecto transcendental da filosofia kantiana, teremos que admitir a objetividade de um dinamismo espaço-temporal por trás das categorias de quantidade e qualidade que supostamente seriam o fundamento formal do pensamento. É a partir da N-dimensionalidade do espaço e da objetividade do tempo que podemos formular a ideia de que as sensações, memórias, imaginações e pensamentos, i.e, aquilo que a psicologia popular chama de “consciência”, são estabilizações de um dinamismo espaço-temporal que não diferem, do ponto de vista relacional, das estabilizações que ocorrem nos mais variados sistemas no mundo físico (há uma diferença importante entre os sistemas estáveis e os metaestáveis, mas não há tempo para detalhes aqui). O importante a ser ressaltado é que os sistemas metaestáveis, além da emergência de um interior e de um exterior (meio), formam uma sistemática de permeabilidade entre ambos (uma regulação constante em razão de uma “abertura” para exterior). Neste sentido “consciência” é uma complexificação evolutiva. 213 CHarles Borges É neste sentido específico que a mente é uma ilusão. O termo ilusão aqui empregado ressalta a tese de que não devemos procurar numa instância “extrafísica” qualquer explicação para aquilo que chamamos “estados fenomenológicos”. Deste modo, os qualia (CHALMERS, 1996; NAGEL, 1979), por exemplo, não são algo “apartado” de um sistema-de-acoplamento. Isso não significa negar a existência dos qualia ou da experiência, mas sim afirmar que, se existe algo como a sensação (what-is-it-like-to-be), tal existência não tem qualquer coisa de “extramaterial”, entendida como um “eu penso” ou qualquer espécie de instância unificadora: experiência não é nada além da matéria cavando um distanciamento, um intervalo num sistema de ações recíprocas. Um intervalo que vai da emergência de um sistema nervoso periférico, passa pela formação de um sistema nervoso central (medula), forma um cérebro que, constituindo feixes de sensação, se estende no mundo – como diversão e elusão a-centradas ou inconscientes voltadas para a ação. O cérebro, portanto, é um sistema de faculdades (ou módulos) voltadas para a ação. É a relação entre estes módulos (ao mesmo tempo diversificados e elusivos) que possibilita centralizações momentâneas. É todo um sistema de “esforço” que constitui sensações, percepções, pensamentos, unidades narrativas, na forma de uma perspectiva. Para recapitular: A sensibilidade é um sistema de acoplamento que decorre do caráter plástico da matéria. Matéria deve ser entendida como puro fluxo que forma sistemas de acoplamento. A matéria é a objetividade de um dinamismo espaço-temporal intensivo. Feixes de sensação se formam como sistemas de autoria ou agência (PRINZ, 2012, pp. 233-235), voltadas para e sofrendo a ação da coordenação espaço-temporal. É a plasticidade no nível neural – acoplamento de populações de neurônios em sistema de ressonância – que dá vazão às faculdades. As faculdades, conforme afirma Deleuze seguindo Husserl, são sínteses passivas. Sínteses passivas são dispositivos ou capacidades de experimentar afecções num nível inconsciente (eludindo a consciência) que não se submetem a qualquer regra categórica ou conceitual, são pré-conceituais ou pré-predicativas. (podemos falar aqui numa mereologia das faculdades). 214 Consciência, plasticidade neural e o estado ilusório da matéria As sínteses passivas são sistemas de expectativa que ocorrem no nível das ressonâncias neurais e constituem uma temporalidade discreta ou perceptiva – o “momento”.2 A partir daí, qualquer ideia de “eu” tem que ser perspectivista: Jesse Prinz utiliza o conceito de autoria para situar o perspectivismo. Autoria é o sentimento de ser o autor de atos físicos e mentais. A autoria (ou agência) é associada ao sentimento de controle. “Experimento alguns pensamentos e algumas ações como partindo de mim.” (PRINZ, 2012, p. 233). Envolve uma espécie de possessividade (prefiro falar “possessão”): os atos que controlo são “meus”. É uma forma ativa de possessão. Não é receptiva. Na agência ativa um “self” parece emergir essencialmente como experiência sem sujeito. Há uma estrutura da subjetividade que, conforme Prinz, possibilita a “sensação” de um self a partir de sua própria ausência (substancial): 1. pela experiência do mundo a partir de uma perspectiva (ponto de vista local); 2. pelo limiar das sensações, ou seja, a própria existência de um limite para a experiência é que se constitui uma perspectiva; 3. pelo caráter ativo/constitutivo do aparato sensorial: as qualidades da experiência dependem da ação deste aparato. Esta ação impõe uma certa “ordem” no mundo. “Uma ordem que seria invisível se fôssemos diferente tipo de criaturas”, diz Prinz (2012, p. 240), ecoando Hume. Paradoxalmente, esta “presença que se dá pela ausência”, constituída pela perspectiva, só é possível a partir da cultura (Bildung). A única maneira de “mergulhar no nosso self” e de interpretar as outras “mentes” é fazendo uso de um sistema comum de signos. Sistema construído pela pragmática da totalidade aberta das perspectivas em ação. 4. Considerações Finais Posso concluir voltando ao “Ash artificial”. Não estamos diante de uma perspectiva? Não estamos diante de um sistema dinâmico que expressa um ponto de vista? Não estamos diante de uma agência? A perplexidade de Martha diante do “novo Ash” ocorre somente em razão de um preconceito (a pré-concepção decorrente da sua história construída ao lado do Ash original). Martha rejeita o Ash artificial pelo fato de 2 Sobre o ritmo e os aspectos sincrônico e diacrônico da percepção ver PRINZ, 2012, pp. 250-262. 215 CHarles Borges que ele não corresponde ao sistema de signos construído anteriormente junto ao Ash original. Martha não aceita essa nova “versão” de Ash e procura eliminá-la. No entanto, Martha, de uma forma um tanto quanto grotesca, percebe que está diante de uma perspectiva, uma outra perspectiva que não a do Ash original. Uma perspectiva que, agora, habita o sótão. Referências CHALMERS, David J. “Panpsychism and Panprotopsychism.” The Amherst Lecture in Philosophy 8 (2013): 1–35. <http://www.amherstlecture.org/chalmers2013/>. ______. Philosophy of Mind. Classical and Contemporary Readings. USA: Oxford University Press, 2002. 675p. ______. The Conscious Mind. In Search of a Fundamental Theory. UK: Oxford University Press, 1996. 414p. CHURCHLAND, Paul M. Matéria e Consciência. Uma introdução contemporânea à filosofia da mente. São Paulo: Editora Unesp, 2004. 286p. DAMÁSIO, António. O Erro de Descartes. Emoção, Razão e o Cérebro Humano. 3ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 259p. ______. Em Busca de Espinosa: Prazer e Dor na Ciência dos Sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 358p. DELEUZE, Gilles. Difference and Repetition. New York: Continuum, 2001. 350 p. DESCARTES, René. Meditations on First Philosophy. With Selections from the Objections and Replies. UK: Oxford University Press, 2008. 279p. ESPINOSA, Benedictus De. Ética. Edição bilingue latim-português. 3ªedição. São Paulo: Autêntica, 2010, 423p. HUSSERL, Edmund. Collected Works Vol. 9. Analyses Concerning Passive and Active Synthesis. Lectures on transcendental logic. Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 2001. 659p. 216 Consciência, plasticidade neural e o estado ilusório da matéria KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. 2ªed. São Paulo: Forense Universitária, 2008. 381p. ______. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 511p. NAGEL, Thomas. Mortal Questions. USA: Cambridge University Press, 1979. 214p. NOË, Alva. Action in Perception. USA: The MIT Press, 2004. 277p. PRINZ, Jesse J. The Conscious Brain. How attention engenders experience. USA: Oxford University Press, 2012. 396p. THOMPSON, Evan. Mind in Life. Biology, Phenomenology, and the Sciences of Mind. USA: Harvard University Press, 2010. 543p. 217 Grafemática e Plasticidade: diálogos entre Derrida e Malabou Moysés Pinto Neto (ULBRA) 1. A noção de “escritura”, apesar da numerosa produção em torno, continua sendo amplamente subestimada na literatura sobre Jacques Derrida. O motivo é que, apesar das advertências do autor, continua sendo tomada no sentido literal ou, no máximo, metafórico. Minha hipótese, no entanto, é que o papel da escritura em Derrida é metonínimo e designa a estrutura formal da realidade, isto é, como tudo que existe se inscreve no mundo. A relação entre forma e superfície – grafema, plasticidade e mundo – será o objeto da presente investigação, colocando em diálogo o pensamento de Derrida e Catherine Malabou. 2. O pensamento de Derrida nasceu no contexto do formalismo estruturalista e do projeto de ontologia formal enquanto mathesis universalis husserliana. Por ele, ingressamos em uma teoria que, embora formal, é “não-metafísica”. O signo, conceito do qual parte a gramatologia, está na linha intermediária entre real e ideal, inteligível e sensível, e por isso apaga a linha platônica que separava os dois mundos, configurando algo que penetra dos dois lados da oposição como condição de possibilidade para ambos. Mas seria necessário pensar um signo que não dependesse do significado transcendental nem o respectivo privilégio fônico-espiritual. Isso só é possível cancelando a própria ideia de signo, que não sobrevive sequer com a inversão do valor entre significante e significado (DERRIDA, 1967b, p. 73). Um signo sem nome próprio seria um gramma, grafema, traço ou rastro (trace). O grafema, “átomo não-simples” da escritura, é aquilo que ocupa o lugar antes reservado ao signo pelo estruturalismo. O grafema é uma condensação da dupla face do signo em um único traço infinitamente divisível cuja polidimensionalidade é superficial, mas infinita. É o movimento que, após inverter a hierarquia da escritura diante da linguagem, abre a possibilidade da arquiescritura, da qual a linguagem é 218 A., Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 218-230, 2017. Grafemática e Plasticidade: diálogos entre Derrida e Malabou apenas um caso. A escritura desliza do sentido metafórico (a era do Livro, lembre-se, é a era da teologia, da metafísica e da metáfora) para o sentido metonímico, tomando o lugar do logos. Ideal com materialidade, real sem substância. Esse ponto de encontro é exatamente o topos que permite ultrapassar a cisão de mundos que a própria lógica hilemórfica procurou desenvolver. Significa pensar aquilo que permite suturar a fronteira entre o formal e o material. O grafema enquanto átomo não-simples não pode ser algo sem forma (materialismo atomista-substancialista), nem pode ser submetido por uma forma externa a ele (idealismo hilemórfico). O grafema é uma forma divisível e relacional. Se a tradição sempre pensou a forma como inteligível, opondo à matéria sensível, tratar-se-á de subverter a própria dualidade, infiltrando no processo de formação da forma a temporalidade que desconstrói as nossas próprias categorias de pensamento (DERRIDA, 1967b, p. 92). A grafemática – ciência da escritura – é uma hipótese que permite pensar formal e material, empírico e transcendental de uma só vez. Para ela, o que existe se inscreve, constituindo, por isso, um grafema. O grafema não é um átomo, mas um corpo de relações infinitamente divisíveis. Seu processo de individuação não se dá, portanto, a partir de uma essência (como pensava a velha metafísica), mas é imanente à própria inscrição, ao seu traçado enquanto economia da dyferença. O grafema remete, portanto, a um “passado que nunca foi presente”, uma condição transcendental que não se expressa em termos categoriais, mas apenas sob efeito retroativo, uma vez já materializada. Por isso, essa dyferença [différance] é nada; ela não existe, não se corporaliza, é a possibilidade de toda corporeidade. Esse efeito é que leva à timpanização ou ao “efeito de viseira”, a partir do qual um espectro somente pode ser visto obliquamente, nunca encarado, visto frente-a-frente como uma presença. A condição do aparecer, portanto, é ela própria invisível. Somente se deixa ver – e tudo que é visto é visto em razão dela – a partir de seu efeito diagonal (DERRIDA, 1995, pp. 24 e 35; 1991, pp. 72-74). 3. Incorporando o chamado “efeito de superfície” que Deleuze identificava no estruturalismo, Derrida encontra na “Khora” (figura que Platão utiliza no Timeu e excede o próprio “platonismo”) uma imagem para desenhar a superfície na qual se inscrevem os grafemas, ou seja, o antigo “mun- 219 Moysés Pinto neto do” (DERRIDA, 1995, pp. 30 e 61-63). Como o Deus da teologia negativa, Khora não é, é um excedente do ser. Se ela existisse, estaria limitada. Seria um espaço topologicamente determinado que traduziria a ideia de totalidade e por isso de um “quadro” no qual as coisas se inscreveriam “dentro”. Esse lugar, diz o filósofo, “nada tem de objetivo, nem de terrestre. Ele não diz respeito a nenhuma geografia, geometria ou geofísica. Não é isso dentro do qual se encontram um sujeito ou um objeto” (DERRIDA, 1995a, pp. 2223; 1995b, p. 39). À medida que o “enquadramento” da totalidade geraria o paradoxo de que ela precisa estar contida em uma totalidade maior para ser pensada (e isso ao infinito), é necessário substituir essa imagem por outra topologia. Ela portanto não pode estar dada. Mas tampouco equivale ao Deus da teologia negativa, porque, mesmo que a teologia negativa seja nada, espécie de “desmoronamento sem fundo” ou “desertificação sem fim da linguagem”, ela salva o nome, mantendo portanto uma relação com a divindade como inefável, sagrada (DERRIDA, 1995b, p. 10, 37, 51-55; 1967a, pp. 432-433). Khora, ao contrário, segue a lógica do bastardo, contaminado, impuro, híbrido. Não se trata de um inefável, mas de uma superfície sem fundo cujas inscrições se produzem sem que com ela se confundam totalmente. Como a película do bloco mágico, é uma espécie de “sobreimpressão sem fundo” (DERRIDA, 1995a, p. 10, 35 e 70-71). Contrariando portanto a velha lógica da profundidade, Khora é uma abertura abissal. Ela provoca uma mise en abyme, é uma “cratera sem fundo”, como afirma o tradutor brasileiro (1995a, p. 32), ou, como diz Derrida, “figura o lugar de inscrição de tudo aquilo que no mundo se marca” (1995a, p. 37). Lugar? A topologia desse topos perturba nossas próprias representações de espaço. Se de um lado Khora remete a um lugar habitado, um território, de outro ela não se deixa confundir com aquilo que a ocupa. Ela representa a dificuldade de se pensar no mesmo gesto um espaço que nunca está vazio, como um espaço geométrico, e se deixa marcar como lugar movediço. Espaço neutro, Khora é uma espécie de “lugar sem lugar”, uma superfície imanente na qual as coisas se inscreveriam sem que pudessem se confundir, mas igualmente sem que essa superfície exista fora das coisas. Espécie de condição de inscrição que excede a própria divisão entre sensível e inteligível, empírico e transcendental, na medida em que ambos precisam dessa superfície para serem escritos (1995a, pp. 38-45 e 68-72). 220 Grafemática e Plasticidade: diálogos entre Derrida e Malabou Khora, portanto e simplificando um pouco, é espécie de superfície transcendental que possibilita se pensar o espaço de inscrição dos grafemas. Partindo da dyferença espectrológica o grafema se inscreve enquanto corpo de relações divisíveis na khora, receptáculo infinito que não excede o próprio inscrito, imanência aberta que perturba a própria representação entre dentro e fora à medida que é infinitamente deformável em seu espaço (DERRIDA, 1998, pp. 110-114). Essa inscrição excede o próprio passivo e ativo, na medida em que seu processo não é comandado por nenhuma intencionalidade, antes é sua condição de possibilidade (1991, p. 175). É desse jogo entre passividade e atividade, essa plasticidade, que emerge a própria ideia de intencionalidade. Mas, não custa repetir, Khora não é uma totalidade, um “quadro” no qual as coisas se inscreveriam “dentro”. Ela própria é plástica, infinitamente deformável e transformável, e portanto aberta à experiência que, enquanto experiência, é sempre uma experiência do acontecimento e, por isso, do outro. 4. Malabou situa-se no espaço pós-desconstrutivo, no sentido de que já tenta pensar a partir do “círculo de fogo” que Derrida traçou. Não se trata, portanto, de objeções frontais, mas de abertura de novos espaços e de reconsiderações, releituras, transcriações daquilo que a desconstrução já dissolveu (MALABOU, 2005, pp. 57-58). Malabou tem razão quando afirma que Derrida poucas vezes explicitou seu pensamento em termos de forma (MALABOU, 2005, pp. 87-90 e 97-106). O motivo para isso, como ela própria afirma, pode estar no modo como o próprio Husserl articulou a questão. O eidos e morphé serão conceitos que em Husserl irão receber nova coloração fenomenológica distinta daquelas que Platão e Aristóteles haviam lhe concebido. Husserl buscaria, com isso, determinar “o presente vivo (lebendige Gegenwart) como a ‘forma’ última, universal, absoluta, da experiência transcendental em geral” (DERRIDA, 1991, p. 198). A experiência transcendental se dá numa esfera sem expressividade (silenciosa), cuja tentativa de fazer dizer é sempre errante em relação ao “querer-dizer” perfeito. Há, portanto, uma “camada pré-linguística” que se refere a um âmbito não-discursivo (DERRIDA, 1991, p. 201; 1967a, p. 23; 1972b, pp. 34-52 e 70-71). Husserl põe de lado a face sensível da linguagem, seu “corpo próprio”, uma vez que a expressão supõe uma intenção de “querer-dizer”. Ou seja, o filósofo 221 Moysés Pinto neto alemão apenas repete a lógica hilemórfica do significado transcendental em termos de “querer-dizer” associando-o ao eidos. A questão da superfície seria para Husserl simplesmente irrelevante, “o meio que recebe o empréstimo seria neutro”, um “médium sem cor própria, sem opacidade determinada, sem poder de refração” (DERRIDA, 1991, p. 206). Não apenas essa compreensão da linguagem passa por uma ideia de transparência do meio, ou seja, o dito apenas espelha o que é referido, como também pressupõe, “do outro lado”, ser o que é dito presente, ou seja, uma metafísica da presença. O pensamento da forma fica de algum modo sujeito a esse constraint husserliano na sua associação ao eidos (presença), criando uma polaridade entre forma e espectro que faz surgir o “quase-transcendental” (MALABOU, 2005, pp. 90-91). Por essa razão, Malabou parece constantemente afastar gráfica e plasticidade. A plasticidade seria aquilo que apareceria “ao anoitecer da escritura”, como um movimento que parte da desconstrução para pensar o aparelho conceitual da tradição sem logocentrismo. Seu privilégio enquanto “esquema-motor” sobre o motivo da escritura estaria gradualmente se impondo a partir, por exemplo, da transição da cibernética e biologia molecular para as neurociências e novos modelos biológicos baseados em estruturas populacionais, formações em redes, emergência de imagens. A plasticidade, por isso, já seria um suplemento da escritura. Vejamos a objeção que Malabou realiza para, sob o efeito palintrópico desses próprios escritos, reequacionar esse balanço. 5. O cerne da crítica pode ser expresso na relação entre forma e impressão. O fato de ter tomado Husserl como modelo da forma enquanto eidos imaterial teria feito Derrida privilegiar seu oposto, a ideia de impressão. A modificação dos conceitos na “dupla escritura” seria por isso uma “reinscrição”. Mas Malabou prefere nesse caso falar de deformação, e não reinscrição, dos conceitos: a metamorfose ou a morfogênese, por exemplo, fazem parte da própria maneira como Derrida rearticulava em novas dobras a linguagem, provocando a plurivocidade, não-linearidade, dissimetria. Essa possibilidade imanente do grafema de transformação é exatamente sua plasticidade, de modo que sua retranscrição excederia o “esquema-motor” gráfico que a biologia molecular teria legado em conjunto com a cibernética. A deformação geraria uma ideia não-gráfica de 222 Grafemática e Plasticidade: diálogos entre Derrida e Malabou escritura (MALABOU, 2010, p. 439). Em outro texto, Mabalou sugere uma dialética que complementaria a desconstrução, à medida que aquela possibilitaria justamente a deformação e por isso transformação dos velhos conceitos executada por esta (MALABOU, 2005, p. 47). A ideia fica mais clara em um dos últimos textos publicados pela filósofa, chamado “Like a sleeping animal”, no qual compara três modelos de reação ao trauma. O modelo hegeliano, imagem perfeita da metafísica da presença, seria o modelo da fênix. Segundo ele, “o espírito se recupera sem cicatrizes”. Trata-se do movimento que foi trabalhado como ascensão falocêntrica na direção sublimatória, cujo modelo espiritualista acabaria mitificando-se ao apagar as próprias marcas do trabalho sem o qual não teria chegado ao telos visado. O modelo derridiano contraporia a isso a imagem do “tecido”, abrangendo com a palavra tanto o sentido biológico quanto o genérico. Com esse modelo, Derrida expõe as cicatrizes produzidas pelos sulcamentos, mostrando as inscrições que percorrem o corpo dilacerado pela escritura. Finalmente, Malabou propõe seu próprio modelo chamando-o de “modelo da salamandra”: para este, trata-se de uma recuperação sem cicatrizes que não envolve igualmente uma ressurreição. A salamandra pode se recuperar sem precisar passar pela cicatrização, mas essa recuperação nada tem de espiritual. Ela é simplesmente uma possibilidade do seu corpo que aparece, segundo se especula, exatamente porque não há cicatrização. A medicina contemporânea estaria cogitando exatamente que é a própria cicatriz, enquanto forma mais rápida de cura, que inibiu a regeneração comum aos répteis. Sem se confundir com a fênix hegeliana ou com o tecido derridiano, a salamandra forja um modelo transdiferencial que escapa tanto da Aufhebung quanto do rastro (MALABOU, 2011, pp. 3-8; 2007). 6. A forma de se responder à questão é perceber um desequilíbrio econômico entre as posições de Derrida e Malabou. Malabou não está apenas interessada na diferença que produz a forma, mas também na forma que toma a diferença (MALABOU, 2005, p. 16). Em outros termos, ela está interessada no que poderia ter sido a grafemática se tivesse sido levada adiante por Derrida, transformando-a em “plasticologia”. Este, por sua vez, parece ter perdido o interesse no desenvolvimento de um equilíbrio entre forma e diferença, migrando para a direção mais próxima da eco- 223 Moysés Pinto neto nomia geral (a “desconstrução”). Assim, a forma para Derrida é mínima, seguindo a lógica do espectro, a partir da qual se trata da inscrição de um ynexistente. A transição da grafemática enquanto teoria que precede a própria cisão entre empírico e transcendental, forma e matéria, para a imagem de um quase-transcendental espectral cujos contornos são bem pouco nítidos, uma vez que muito próximos da inconsistência, acabou encaminhando Derrida para a desconstrução enquanto performance textual e dos indesconstruíveis. Sua filosofia, por isso, permanece no virtual. Malabou, por outro lado, parece buscar menos a dyferença na sua modalidade espectral que o continente da forma em equilíbrio (metaestável) com a identidade, abrindo a possibilidade imanente, contudo, dessa identidade se reconfigurar permanentemente a partir da plasticidade (inclusive em uma metamorfose total) (MALABOU, 2009, pp. 9-13). A “plasticologia”, assim, é uma economia entre a indeterminação da espectrologia e a programação da grafemática. Entre o negativo desconstrutivo do espectro e a violência do sulcamento está a forma em movimento plástico. Não se deixe pensar, contudo, que esse “entre” queira dizer “no meio” de uma linha. Uma das características mais interessantes das salamandras é exatamente apagar o rastro, isto é, apagar a ferida e a cicatriz. Com isso, ela transforma a inscrição (MALABOU, 2009). 7. No entanto, apesar das diferenças entre sulcamento e plasticidade, existe uma possível dobradiça entre eles. Malabou equaciona a questão gráfica a partir das tendências da biologia dos anos 60 e 70, relacionando-a com a apropriação da noção de programa em Da Gramatologia. François Jacob e André Leroi-Gourhan, influências da grafemática, mostrariam como a ideia de programa permite um equilíbrio entre contingência e necessidade, permitindo a existência de antecipações e heranças sem a necessidade de um telos. A plasticidade de Malabou, por outro lado, funcionaria como desequilíbrio, situando-se em permanente excesso em relação a qualquer modalidade de programação. Em outros termos, a plasticidade acaba aprofundando o movimento de desconstrução, fazendo com que a própria ideia de programa acabe secundária em relação a esse modelo mais dinâmico e que não recorre a uma metafísica da presença. Não apenas Malabou tem razão acerca da tendência da biologia contemporânea em privilegiar a plasticidade em relação ao “genocentrismo” 224 Grafemática e Plasticidade: diálogos entre Derrida e Malabou como inclusive biólogos como Giuseppe Longo criticam a associação dos anos 60 entre as tecnologias de informação e os fenômenos biológicos, especialmente no conceito de programa. Aliás, Malabou elogia um trabalho de Daniel Dennett exatamente por desfazer a associação entre cérebro e máquina, mostrando como as metáforas de programação hoje explicam pouco do funcionamento do cérebro. A tendência, diz ela seguindo Dennett, é justamente a inversão (MALABOU, 2011, pp. 97-105). Sem discordar em nada desse movimento guiado pelas tendências da biologia contemporânea, em nível transcendental parece não ser intenção nem de Malabou nem de Dennett – e tampouco era de Derrida – de criar uma particularidade que torne o “biológico” impregnado de uma substância inatingível ao “artificial”. O que parece ser o ponto aqui é menos uma incomensurabilidade que uma inversão de modelos. Enquanto a biologia dos anos 60 e 70 usava os códigos da escritura para pensar os fenômenos orgânicos, hoje parece nítido que o cérebro, por exemplo, é muito mais complexo que a simplória “Máquina de Turing”. Assim, a própria ideia de programação perde espaço para outras – p. ex., a plasticidade – em face de um dinamismo que esses quadros teóricos ainda estão apenas começando a decifrar. O próprio Derrida afirmava, em De que amanhã..., essa defasagem: O que me incomoda em certos cientificistas aos quais a senhora alude é que seus modelos mecânicos nem sempre estão à altura da hipercomplexidade das máquinas, reais ou virtuais, produzidas pelos homens (o que é atestado, por exemplo, por todas as aporias ou os ”im-possíveis” que ocupam a “desconstrução” ali mesmo onde ela põe à prova, na linguagem, as mais poderosas máquinas de formalizar; não para desqualificar a “máquina” em geral, muito pelo contrário, mas para “pensá”-la de outra forma, pensar de outra forma seu acontecimento e historicidade). A meu ver, o pensamento mais “livre” é aquele que transige o tempo todo com efeitos de máquina (DERRIDA & ROUDINESCO, 2004, p. 64). Relacionando Derrida com a cibernética e a biologia a partir da “Máquina de Turing”, Malabou encontra uma dobradiça entre gráfica e programa a partir da ideia de cálculo. O programa, funcionando como antecipação que segue instruções gravadas em um suporte físico, segue a lógica calculatória. Isso tornaria a grafemática pobre e a espectrologia de- 225 Moysés Pinto neto masiado indeterminada diante dos desafios da biologia atual que a plasticidade coloca. Porém existe a alternativa de pensar outra dobradiça, desta vez entre gráfica e plasticidade: o desenho. O ponto de torção nesse caso se revelaria por exemplo nas artes plásticas, cuja relação com a forma excede os quadros metafísicos tradicionais e não se deixa reduzir pela programação (DERRIDA, 1998, p. 33). Não por acaso contemporaneamente o modo privilegiado no tratamento da forma é o design. O design é a articulação que permite dar plasticidade ao grafema, possibilitando sua deformação e transformação. Ele configura o grafema sem recorrer a uma forma que não opere no mundo concreto em que é executada. Não restrito às artes pictóricas ou ao desenho industrial, o design projeta-se sobre diversos campos, entre os quais a própria escultura, cujo movimento é uma das fontes da própria ideia de plasticidade. A preponderância do design mostra que a realidade é formalizável, mas essa formalização não esgota as virtualidades dos objetos e nem cai sobre eles sem consideração do próprio material moldado. Joga entre ambos, está no espaço intervalar que a tradição metafísica separou. A forma está em permanente movimento plástico, processo de deformação, transformação, metamorfose. Por isso, a comparação da natureza com nosso aparato computacional ainda é pobre. Os esforços para o desenvolvimento de novas ciências da formalização (matemática inconsistente, geometria fractal etc.) apontam para a necessidade de que o privilégio da simetria enquanto herança grega seja questionado. As nervuras das formas naturais são infinitamente mais ricas e complexas que as linhas retas das formalizações computacionais (compare-se, p. ex., os sistemas nervosos mais complexos e o repertório de um computador) (MALABOU, 2007, p. 35). O “biológico” ou “orgânico” é infinitamente mais criativo que o inorgânico não em virtude de uma ruptura ontológica, mas porque suas dobras, articulações e bordas são muito mais sutis que as ciências formais de hoje em dia podem considerar, especialmente porque ainda devedoras de uma concepção metafísica (simétrica, linear, exata) da forma. A Khora da natureza, mais extensa e intensa, produz mais que qualquer inteligência possa produzir. Não se trata de desacreditar as matemáticas ou as lógicas (tradicionais e não-tradicionais), mas de perceber que as matemáticas não estão atrás da realidade, sendo programações finitas que permitem um certo grau de antecipação de acordo com a capacidade de traduzir a sutileza das formas 226 Grafemática e Plasticidade: diálogos entre Derrida e Malabou do mundo. Os trabalhos de M. C. Escher ou a “Grande Onda” de Kanagawa indicam que o modo como as artes plásticas – dobradiça entre o gráfico e o plástico – apontam para uma nova concepção da design que excede as simetrias da abordagem tradicional e exige novos modelos de pensamento. Trata-se de perceber, portanto, que a arte não está separada do mundo, como o modelo consagrador da museificação promove, mas ela é, em si mesma, uma experimentação desse mundo. 8. Os concretistas brasileiros, atentos à materialidade dos grafemas, procuraram mostrar no próprio corpo do poema como esse jogo não-metafísico da forma opera. Não por acaso Haroldo de Campos se viu fascinado pela filosofia de Jacques Derrida e vice-versa. Para Derrida, a linguagem é o campo experimental por excelência. Seu estilo, embora às vezes cause motivada irritação, encontrava justificativa como demonstração daquilo que seus filosofemas trabalhavam, na plurivocidade das palavras (inclusive em jogos fônicos e anagramáticos que excedem a etimologia), na sua tipografia (uso de colunas, desenhos, tatuagens) e na sua própria performance, sempre apontando para a multidimensionalidade que qualquer grafema carrega. Reduzir o trabalho textual para se adequar às regras usuais discursivas era, para Derrida, um retrocesso na sua forma de equacionar os problemas filosóficos a partir da própria linguagem nos textos, em uma prova imanente daquilo que era afirmado. Diferentemente dos modos de abordagem tradicionais, que cotejam afirmações gerais com exemplos, Derrida estabeleceu uma nova economia de escrita, na qual o conceito já é, na sua própria forma de enunciação, a prova daquilo que afirma. Aos tradutores em sentido amplo – intérpretes da obra – cabe desdobrar e decifrar o texto a fim de transformá-lo a uma dimensão mais expositiva, explorando os jogos que ali estão colocados. O experimento não podia perder tempo, pois o tempo é finito, já estamos em luto por saber que o pensamento não é infinito e é um pensamento da vida, no genitivo subjetivo. Cabe então lançar a conjectura do porquê de à primeira geração dos concretistas brasileiros (Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari), mais “geométrica” e “formal”, ter se sucedido a segunda (Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape), mais “energética” e “visceral” (sem que isso signifique uma ruptura ou oposição entre ambas) (AGUILAR, 2005, 227 Moysés Pinto neto pp. 66-69, 72-73, 144-149). Assim como no movimento que descrevemos, trata-se de perceber que a linguagem como corpo encontra sua plurivocidade no próprio corpo, de modo que as formas orgânicas mostram-se sempre mais ricas que as simetrias artificiais (CERA, 2012, p. 7-11)1. Lembre-se que Lévi-Strauss já afirmava que era necessário configurar um inventário das práticas corporais por meio da antropologia cultural, de modo que testemunharíamos a plasticidade do corpo em níveis que nem poderíamos imaginar (LÉVI-STRAUSS, 2001, pp. 10-12). E o próprio Derrida, na Gramatologia, afirmara que o conceito de escritura não se restringiria à marca sobre um papel, mas por exemplo às práticas pictóricas, esculturais, coreográficas, cinematográficas e até musicais, todas as modalidades de possíveis de situações das quais a idealização é apenas um resultado (1967b, p. 140). Em síntese, o design visceral é mais poderoso que o mais sofisticado formalismo. Bibliografia mencionada AGUILAR, Gonzala. Poesia Concreta Brasileira. São Paulo: UNESP, 2005. CERA, Flávia. Arte-Vida-Corpo-Mundo, segundo Hélio Oiticica. Tese de doutorado. Florianópolis: UFSC, 2012. DERRIDA, Jacques. Introduction. In: L’Origine de la géométrie, de E. Husserl. Paris: PUF, 1962. ______. L’écriture et la différence. Paris: Editions du Seuil, 1967a. ______. De la Grammatologie. Paris: Les éditions de Minuit, 1967b. ______. La voix et le phénomene: introduction au problème du signe dans la phénoménologie de Husserl. Paris: PUF, 1972b. 1 Flávia Cera cita Restany na seguinte passagem: “o hapenning se situa na encruzilhada e na saída da pintura, da escultura, da arquitetura interior e exterior, da decoração, do teatro, da dança, da pantomima, da música, da reportagem jornalística e do cinema. Constitui de certa forma a síntese plástica de nossa época” (2012, p. 21, grifo no original). Mário Pedrosa afirma que a “arte ambiental” de Oiticica não se baseia em “valores propriamente plásticos”, mas na “plasticidade das estruturas perceptivas e situacionais” (apud AGUILAR, 2005, p. 145). 228 Grafemática e Plasticidade: diálogos entre Derrida e Malabou ______. Marges de la philosophie. Paris: Les editions de minuit, 1972a. ______. Margens da Filosofia. Trad. Joaquim Costa e Antonio Magalhães. Campinas: Papirus, 1991. ______. A Farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. ______. Economimesis. In: Mimesis des Articulations. Paris: Flammarion, 1975. ______. Limited Inc. Tradução de Constança César. Campinas: Papirus, 1991. ______. Enlouquecendo o Subjétil [com BERGSTEIN, Lena (pinturas, desenhos e recortes textuais)]. Trad. Geraldo de Souza. São Paulo: UNESP, 1998. ______. Donner le temps: la fausse monnaie. Paris: Galilée, 1991. ______. Khôra. Trad. Nícia Bonatti. Campinas: Papirus, 1995. ______. Salvo o Nome. São Paulo: Papirus, 1995. ______. Paixões. Trad. L. Machado. São Paulo: Papirus, 1995. ______. & MALABOU, Catherine. La contre-allée. Voyager avec Jacques Derrida. La Quinzaine Littéraire/Louis Vuitton, 1999. ______. & ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã... diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à Obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. Trad. António Marques. Lisboa: Edições 70, 2001. MALABOU, Catherine. The future of Hegel: plasticity, temporality and dialectic. Trad. Lisabeth During. London/New York? Routledge, 2005. ______. Le change Heidegger: du fantastique en philosophie. Paris: Léo Scheer, 2004. ______. La plasticité au soir de l’écriture: dialetique, destruction, déconstruction. Paris: Éditions Léo Scheer, 2005. ______. Les nouveaux blessés: de Freud à la neurologie, penser les traumatismes contemporains. Paris: Bayard, 2007. 229 Moysés Pinto neto ______. Ontologie de l’accident: essai sur la plasticité destructice. Paris: Éditions Léo Scheer, 2009. ______. Que faire de notre cerveau? Paris: Bayard, 2011. ______. Like a sleeping animal: philosophy between presence and absence. Inaesthetics (2), pp. 79-89. ______. The end of writing? Gramatology and plasticity. The European Legacy: towards new paradigms. 12:4, 431-444, 2010. ______. Again: ‘the wound of the Spirit heal, and leave no scars behind’. Mosaic 40/2. June 2007. 230 Michel Foucault e Pierre Hadot: um diálogo contemporâneo sobre a concepção estoica do si mesmo Cassiana Lopes Stephan (UFPR) 1. O diálogo interrompido entre Michel Foucault e Pierre Hadot A partir da consideração das críticas empreendidas por Pierre Hadot no texto “Réflexions sur la notion de ‘culture de soi’” (HADOT, 1993, pp. 323-332), apresentado em janeiro de 1988 por ocasião do encontro internacional Michel Foucault philosophe, este texto pretende confrontar a concepção hadotiana acerca dos exercícios espirituais com a análise foucaultiana concernente à estética da existência, através da caracterização da maneira pela qual os dois autores interpretaram o significado da transformação filosófica do si mesmo no estoicismo. De fato, além da comunicação apresentada em 1988, Hadot possui outro texto declaradamente consagrado a Michel Foucault, a saber, “Un dialogue interrompu avec Michel Foucault: Convergences et Divergences”, publicado na edição de 1993 da obra Exercices spirituels et philosophie antique (HADOT, 1993, pp. 305-311). Por meio destes dois escritos, Pierre Hadot almejava dar continuidade a um diálogo que havia sido iniciado por Foucault quando este começara a desenvolver seus estudos sobre as asceses filosóficas da Antiguidade greco-romana. As críticas hadotianas relativas às interpretações de Michel Foucault acerca da filosofia antiga se sucederam em relação às leituras que o próprio Hadot empreendera da introdução ao Uso dos Prazeres (FOUCAULT, 2012, pp. 7-43), do livro O Cuidado de si, que corresponde ao terceiro volume da História da Sexualidade (FOUCAULT, 2011b), do resumo do curso A Hermenêutica do Sujeito (FOUCAULT, 2010, pp. 441-454), do artigo “L’écriture de soi” (FOUCAULT, 2001, pp. 1234-1249) e, sobretudo, do texCorreia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 231-245, 2017. 231 Cassiana loPes stePHan to “Qu’est-ce que les Lumières?” (FOUCAULT, 2001, pp. 1381-1397). Deveras, existem duas versões do comentário de Foucault ao opúsculo kantiano Was heisst Aufklärung?: uma delas se refere à aula apresentada em 5 de Janeiro de 1983 no Collège de France (FOUCAULT, 2011c, pp. 3-39), cujo conteúdo foi concisamente reproduzido em 1984 na revista Magazine Littéraire com o título “Qu’est-ce que les Lumières?” (FOUCAULT, 2001, pp. 1498-1507), enquanto a outra concerne ao texto originalmente publicado sob o título “What is Enlighthenment?” para uma obra organizada por Paul Rabinow, The Foucault Reader. Provavelmente, quando concebe que a estética da existência concerniria a uma nova versão do dandismo, Hadot faz alusão à segunda versão do texto “Qu’est-ce que les Lumières?”, pois neste artigo Foucault interpreta a noção kantiana de crítica a partir da análise referente à forma pela qual Charles Baudelaire compreendera a Modernidade na obra O Pintor da Vida Moderna (BAUDELAIRE, 2010). Ademais, faz-se importante ressaltar que o interesse de Michel Foucault em relação aos exercícios espirituais de Hadot é despertado na ocasião de seu estudo do artigo “Epistrophé et metánoia dans l’histoire de la philosophie”, mas também em razão da leitura do célebre livro de Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique, o qual é citado por Foucault no capítulo “A cultura de si”, do último volume da História da Sexualidade (FOUCAULT, 2011b, p. 49, nota 3). Com efeito, a presente reflexão busca retomar os liames de um debate contemporâneo acerca da Antiguidade filosófica, ampliando o escopo da discussão para além dos escritos de Hadot interpretados por Foucault e dos textos de Foucault analisados por Hadot. Nesse sentido, nosso objetivo não é simplesmente retomar o diálogo interrompido entre Pierre Hadot e Michel Foucault. Trata-se também de recontextualizá-lo através de sua reinserção em um quadro conceitual mais amplo, o qual nos permitirá compreender a fecundidade filosófica inerente a uma conversa que emergiu em relação a dois modos de percorrer a história da filosofia, desde os antigos até a Modernidade, e a duas maneiras de conceber a transformação ética do si mesmo, tanto no que tange ao alcance estético desta modificação, quanto no que se refere à relevância política do ato moral. Portanto, neste texto redimensionamos o debate entre Michel Foucault e Pierre Hadot no que concerne ao estatuto prático da filosofia quando, por um lado, extrapolamos a bibliografia que encetou o interes- 232 Michel Foucault e Pierre Hadot: um diálogo contemporâneo sobre a concepção estoica do si mesmo se e a influência filosófica de um autor pelo o outro e, por outro lado, quando ampliamos o campo argumentativo desenrolado nos textos que Hadot dedicou a Foucault. A este respeito, articulamos a interpretação da concepção estoica do si mesmo à análise do aspecto estético referente à transformação ética dos indivíduos e à incidência política daqueles que se voltam à prática filosófica. Nossa hipótese é que estes filósofos mantêm uma relação paradoxal, a qual torna bastante complexa a delimitação de suas convergências e divergências no que tange às práticas filosóficas da Antiguidade greco-romana. Mais precisamente, supomos que Hadot e Foucault se aproximam ao atribuírem à filosofia um apanágio prático, mas simultaneamente se afastam quando dão ensejo à significação da antiga definição que vincula filosofia e estilo de vida. Em outras palavras, supomos que as congruências entre Hadot e Foucault se limitariam mais à forma da definição que atrela filosofia e modo de vida do que ao conteúdo filosófico desta acepção, já que ambos parecem se relacionar diferentemente tanto com a história da filosofia quanto com o exercício da própria filosofia, de sorte que suas discordâncias de conteúdo filosófico repousariam sobre a maneira pela qual Pierre Hadot e Michel Foucault articulariam as concepções de estética, ética e política em suas obras. 2. Foucault: um dândi? Pierre Hadot reconhece que as leituras de Foucault sobre a Antiguidade não se reduzem a retratos histórico-filológicos das diferentes doutrinas que concernem às asceses gregas, helenísticas e romanas. De acordo com Hadot, a intenção de Foucault é mais ousada, na medida em que corresponde à elaboração de um projeto ético que reverberaria sobre a forma como os homens se conduzem na atualidade. De fato, Hadot aponta que esta atitude em relação ao presente diz respeito a um interesse que também percorre seus próprios estudos sobre os exercícios espirituais. Todavia, diferentemente de Michel Foucault, Pierre Hadot afirma que pretende reatualizar o antigo modelo de sabedoria, o qual incita ao esforço em torno de práticas capazes de desencadear a consciência relativa ao si mesmo e ao mundo por meio da ascensão à Natureza ou à Razão Universal. Conforme Hadot, o modelo ético implicitamente proposto por 233 Cassiana loPes stePHan Michel Foucault através da estética da existência desconsideraria a principal característica das asceses antigas, a saber, a dimensão cósmica que é fundamental à figura do sábio na Antiguidade. Segundo Hadot, ao interpretar as antigas práticas filosóficas como uma cultura de si, Foucault desenvolveria um projeto ético extremamente “restrito e insuficiente”, e que correria o risco de se tornar “uma nova versão do dandismo” (HADOT, 1993, p. 345, tradução nossa). Isso quer dizer que, do ponto de vista de Hadot, a estética da existência foucaultiana seria um conjunto de exercícios que restringem a aplicação da filosofia a um si mesmo dedicado à abundância do prazer e à fútil estilização da vida. Neste sentido o projeto de Foucault seria insuficiente, já que estaria atrelado à intensificação do individualismo. Talvez possamos afirmar que, de acordo com Pierre Hadot, o projeto de Foucault seria pretensamente, mas não efetivamente ético, pois a estética da existência não estaria engajada no antigo paradigma do bem moral, mas sim num erotismo moderno próprio ao modelo de vida do dândi1, o qual, segundo Hadot, sobrepõe a toalete ao ideal de beleza e o prazer à felicidade. Diz Hadot: 1 Eu hesitaria em falar com M. Foucault de “estética da existência”, tanto a propósito da Antiguidade quanto da tarefa do filósofo em geral. M. Foucault, nós o vimos, compreende essa expressão no sentido de que nossa própria vida consiste na obra que devemos criar. A palavra “estética” evoca, com efeito, para nós modernos, ressonâncias muito diferentes daquelas que a palavra “beleza” (kalon, kallos) O dandismo diz respeito a um fenômeno artístico do final do séc. XVIII e início do séc. XIX que se expressa, sobretudo, por meio da literatura e da pintura, tendo como principais referências o pintor Constantin Guys e os famosos literatos Honoré de Balzac, Charles Baudelaire, Jules Barbey d’Aurevilly e Oscar Wilde. O dandismo consiste em um movimento que possui alcance sócio-político, já que todos os envolvidos nele estavam engajados em um estilo de vida muito peculiar, o qual se opunha aos códigos e condutas burgueses, impregnados no cotidiano dos indivíduos. Sobre o dandismo Baudelaire nos explica, em O Pintor da Vida Moderna: “O dandismo, uma instituição à margem das leis, tem leis rigorosas a que estão estritamente submetidos todos os seus súditos, quaisquer que sejam, aliás, a impetuosidade e a independência próprias de seu caráter. (...) O dandismo não é nem mesmo, como muitas pessoas pouco sensatas parecem acreditar, um gosto imoderado pela toalete e pela elegância material. Essas coisas não são, para o perfeito dândi, senão um símbolo da superioridade aristocrática de seu espírito. Assim, a seus olhos, obcecado, acima de tudo, por distinção, a perfeição da toalete está na simplicidade absoluta que é, de fato, a melhor maneira de se distinguir. (...) É uma espécie de culto de si mesmo, que pode sobreviver à busca da felicidade a ser encontrada em outrem (...). Vê-se que, sob certos aspectos, o dandismo confina com o espiritualismo e com o estoicismo” (BAUDELAIRE, 2010, pp. 62-63). 234 Michel Foucault e Pierre Hadot: um diálogo contemporâneo sobre a concepção estoica do si mesmo tinha na Antiguidade. (...) É por isso que no lugar de falar de “cultura de si” seria melhor falar de transformação, de transfiguração e de “ultrapassagem de si” (HADOT, 1993, p. 308, tradução nossa). Conforme Hadot, por meio da estética da existência Foucault desarticularia a moralidade do conceito de beleza, ou seja, estabeleceria a independência da bela vida em relação à boa condução de si mesmo. Desse modo, o projeto pretensamente ético de Foucault corresponderia simplesmente a uma estética moderna cujo sentido ordinário deve e pode ser combatido através da recuperação do aspecto universal próprio ao ideal de beleza na Antiguidade. De modo geral, para Hadot a estética moderna recai no individualismo na medida em que (1) o ideal de sabedoria perde as características divinas relativas à perfeição moral ou epistêmica, e (2) a ideia de beleza se desvincula do modelo de sabedoria, cujo apanágio se torna demasiadamente humano e puramente científico. A sabedoria antiga, seja ela platônica, aristotélica, estoica ou epicurista, estava talvez intimamente ligada a uma relação com o mundo, mas essa visão antiga do mundo não expirou? O universo quantitativo da ciência moderna é totalmente irrepresentável e o indivíduo se sente, doravante, como isolado, como perdido. A natureza, para nós, não é nada mais do que o “ambiente” do homem, ela se tornou um problema puramente humano, um problema de propriedade industrial. A ideia da razão universal não tem mais muito sentido. O projeto de Foucault não é, por conseguinte, a única chance que resta à moral (HADOT, 1993, p. 345, tradução nossa). Segundo Pierre Hadot, Foucault elabora o preceito concernente à estética da existência com o intuito de ressaltar que a finalidade da exercitação filosófica consiste na aquisição de uma vida bela. Entretanto, Hadot sugere que a interpretação de Foucault acerca do fim da atividade filosófica na Antiguidade é inexata, já que a finalidade que incitava ao desenvolvimento filosófico, no que se refere às diferentes doutrinas greco-romanas, era a sabedoria, a qual constituía um modelo que desencadeava a consciência da relação de identidade entre o si mesmo e o Todo. De acordo com Hadot, diferentemente da noção de “estética da existência”, o conceito “exercícios espirituais” seria capaz de revelar a dimensão universal da sabedoria e da moral dos antigos. Sendo assim, exercitar o si 235 Cassiana loPes stePHan mesmo nada mais seria do que ultrapassar os limites da individualidade através da percepção especulativa e contemplativa da natureza do Todo. Para Hadot, as leituras de Foucault sobre as práticas de si da Antiguidade estariam demasiado concentradas na constituição de uma individualidade bela. Desse modo, Hadot insinua que Foucault descontextualizaria os antigos, já que os interpretaria por meio de categorias modernas: “eu reprovo um pouco Foucault no que concerne àquilo que eu chamei de seu ‘dandismo’. Os grandes homens de Foucault são frequentemente os dândis, como Baudelaire – as pessoas que procuraram, em primeiro lugar, possuir uma bela existência” (HADOT, 1993, p. 390, tradução nossa). 3. Vida de artista Ao contrário do que pensa Hadot, Foucault atribui mais importância ao desenvolvimento dos antigos procedimentos ascético-filosóficos do que ao resultado dessas exercitações. Mais precisamente, a noção “estética da existência” é compilada por Michel Foucault em vista do seu interesse pelo processo criativo que constitui a exercitação filosófica da Antiguidade. Ao privilegiar o aspecto estético da filosofia dos antigos, Foucault nos permite observar as características de uma rigorosa austeridade moral que articula suas proibições e permissões éticas à escolha pessoal, isto é, ao exercício da autarquia. O conceito “estética da existência” diz respeito ao fio condutor das análises de Foucault sobre os antigos porque essa noção condensa (1) o seu interesse pelo processo criativo de autotransformação de si inerente à filosofia na Antiguidade e (2) a sua preocupação com a atual crise da instituição moral em suas bases rigidamente codificadas (FOUCAULT, “Une esthétique de l’existence”, 2001, pp. 1550-1551). A estética da existência destaca o aspecto criativo da transformação da vida daquele que se dedica à filosofia, pois, segundo Foucault, a ação joga um papel preponderante no que tange à antiga fórmula ascética que articula ação, prazer e desejo. De modo geral, isso significa que as asceses greco-romanas são caracterizadas, sobretudo, pelo esforço decorrente das atividades que visam à constituição do si mesmo (FOUCAULT, “À propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail en cours”, 2001, p. 1219). A ética antiga possui um caráter estético, ou seja, a criação crítica do si mesmo determina a boa conduta. Como explica Lorenzini: 236 Michel Foucault e Pierre Hadot: um diálogo contemporâneo sobre a concepção estoica do si mesmo A estética da existência, segundo Foucault, é uma estética nietzschiana que coloca o acento sobre a criação e sobre seu trabalho de moldar (o bíos), mais do que sobre o espectador e sobre a noção estética do “belo” (como o faz Kant). Em todo caso, Foucault jamais sugeriu que a estética da existência consistiria em um domínio autônomo em relação à ética ou à moral: ao contrário, historicamente, ela foi uma maneira de praticar a ética como um trabalho permanente e árduo de estilização (estético-moral) de seu próprio bíos (LORENZINI, 2014, p. 312-313, tradução nossa). Dessa maneira, torna-se possível vislumbrar as sutilezas que constituem as diferenças de perspectiva entre Hadot e Foucault no que concerne à estética antiga e à reverberação histórico-política de suas respectivas análises sobre o estatuto prático da filosofia greco-romana. Pierre Hadot acentua o aspecto teleológico e transcendental da estética na Antiguidade, já que se preocupa em caracterizar a importância do antigo modelo de sabedoria cuja decifração permite acessar as ideias do bem, do belo e do verdadeiro, fundamentais para o aperfeiçoamento racional do si mesmo. A estética, de acordo com Pierre Hadot, vincula-se acima de tudo à contemplação dos espetáculos da Natureza, sejam eles adoráveis ou terrificantes. Contemplar esteticamente o cosmos significa tomar consciência da sabedoria, isto é, desvendar a essencialidade da identificação entre o si mesmo e o Todo: “Assim, revelam-se aos amantes da sabedoria, fundamentalmente em um único e mesmo movimento, o mundo, percebido na consciência do sábio, e a consciência do sábio submersa na totalidade do mundo” (HADOT, 1993, p. 360, tradução nossa). Por conseguinte, a articulação entre ética e estética se deve à importância que o modelo de sabedoria exerce sobre a moralidade. O modelo de sabedoria é marcado pelas perfeições divinas, isto é, pela beleza, bondade e verdade universais. Nesse sentido, a sabedoria consiste em um arquétipo para a moral humana, ou melhor, ela é o paradigma que prescreve a concordância entre as ações humanas e a razão universal, que fundamenta a ordem cósmica e define a natureza dos homens. A percepção estética garante o acesso às ideias universais e, consequentemente, o desenvolvimento de uma teoria dos deveres cuja prática depende de sua regulação e aplicação político-institucional: Essa figura ideal do sábio, o filósofo estoico entende que ele jamais poderá realizá-la, contudo, ela exerce sobre o filósofo sua atração, 237 Cassiana loPes stePHan provoca nele o entusiasmo e o amor, faz com que ele compreenda o apelo para viver melhor, com que tome consciência da perfeição que ele se esforça em atingir (...). É para esse filósofo, engajado na vida cotidiana, cidadão da cidade terrestre, que já os antigos estoicos, e não somente os estoicos tardios, como se pensa algumas vezes, elaboraram a teoria dos deveres ou das funções, a qual prescreve o que é razoável fazer nas relações com os deuses, com os homens e consigo mesmo (HADOT, 2010, pp. 245-246, tradução nossa). Com base nessas constatações somos capazes de indicar a diferença de estatuto entre o projeto moral que Hadot pretende elaborar, por meio da ênfase no antigo modelo de sabedoria, e o interesse ético de Michel Foucault em relação à atualidade, o qual se exprime através da proeminência da criação de uma existência bela. Hadot parece recorrer aos antigos com o intuito de redescobrir e recuperar a substancialidade do homem, a qual deixou de ser tema filosófico a partir do momento em que certas correntes do pensamento moderno colocaram a universalidade da razão entre parênteses: “segundo uma tendência quase geral do pensamento moderno, tendência talvez mais instintiva do que refletida, as noções de ‘Razão Universal’ e de ‘natureza universal’ não têm mais hodiernamente muito sentido” (HADOT, 1993, pp. 325-326, tradução nossa). As pesquisas de Pierre Hadot visam estabelecer continuidades entre as diferentes doutrinas filosóficas e religiosas do Ocidente, pois seu intuito é o de encontrar, em meio a distinções teoréticas e circunstanciais, uma atitude universal que lhe permita desvendar a verdade sobre a condição humana. Sendo assim, talvez seja possível afirmar que o estatuto do projeto político-moral de Pierre Hadot é ontológico, já que o caráter estético da filosofia se articula, sobretudo, à percepção da “Razão universal, interna a todos os homens e ao cosmos em si mesmo” (HADOT, 1993, p. 325, tradução nossa). Distintamente, as leituras de Foucault sobre os antigos privilegiam o aspecto artesanal da estética, ou seja, a transformação do bíos se deve à criação crítica do si mesmo. Foucault recorre à história dos antigos com o intuito de vislumbrar as diferentes maneiras pelas quais os indivíduos se imputaram, de forma autárquica, proibições e permissões que incitaram à construção de condutas cuja criticidade se exprime por meio da insu- 238 Michel Foucault e Pierre Hadot: um diálogo contemporâneo sobre a concepção estoica do si mesmo bordinação em relação às então vigentes instituições morais e políticas.2 Assim, Foucault não recorre à história dos antigos para descobrir a substancialidade do homem, isto é, o fundamento da moral e da política, capaz de justificar a aplicação compulsória dos deveres e a aquiescência a uma mesma e única instância governamental. A estética e a ética antigas não se definiriam por meio da teleologia do belo e do bem. Foucault não está preocupado em caracterizar os ideais transcendentais que corresponderiam ao modelo de sabedoria, os quais, no contexto das leituras de Pierre Hadot, garantem as condições de possibilidade e a eficácia de um projeto político-moral. Por esse motivo, Hadot concebe que o projeto ético de Foucault é radicalmente individualista e, sendo assim, politicamente imperfeito. Contudo, a partir dessas considerações se torna interessante questionar: (1) em que medida estamos habilitados a admitir que a estética da existência pretende constituir um projeto moral com dimensões político-institucionais? (2) Qual seria o estatuto de um projeto ético que não se vincularia a qualquer teleologia moral ou política?3 2 3 De acordo com Daniele Lorenzini: “(...) a ideia que está no coração da estética da existência foucaultiana é a de que não existe um “si” como essência ou substância atemporal, mas que a relação que o indivíduo estabelece consigo mesmo é fruto de uma construção, e mais precisamente da complexa interação entre técnicas de poder e técnicas de si. Em definitivo, é essa ideia que Hadot não quer e não pode aceitar” (LORENZINI, 2014, p. 314, tradução nossa). Cabe aqui uma breve alusão ao jogo entre as terminologias “político-moral”, que atribuímos a Pierre Hadot, e “ético-político”, que vinculamos a Michel Foucault. Tal distinção entre moral e ética repousa sobre a análise que Foucault desenvolveu no prefácio ao Uso dos Prazeres, quando refletiu acerca da articulação entre a moral e a ascese. De modo geral, para Foucault a moral comporta dois sentidos, a saber, um se refere à codificação e outro à constituição de si mesmo ou à ética: “(...) é necessário também admitir que em certas morais a importância é dada sobretudo ao código, à sua sistematicidade e riqueza, à sua capacidade de ajustar-se a todos os casos possíveis, e a cobrir todos os campos de comportamento; em tais morais a importância deve ser procurada ao lado das instâncias de autoridade que fazem valer esse código, que o impõem à aprendizagem e à observação, que sancionam as infrações; nessas condições, a subjetivação se efetua, no essencial, de uma forma quase jurídica, em que o sujeito moral se refere a uma lei ou a um conjunto de leis às quais ele deve se submeter sob pena de incorrer em faltas que o expõem a um castigo. (...) Em compensação, pode-se muito bem conceber morais cujo elemento forte e dinâmico deve ser procurado do lado das formas de subjetivação e das práticas de si. Nesse caso, o sistema dos códigos e das regras de comportamento pode ser bem rudimentar. (...) a ênfase é dada, então, às formas das relações consigo, aos procedimentos e às técnicas pelas quais são elaboradas, aos exercícios pelos quais o próprio sujeito se dá como objeto a conhecer, e às práticas que permitem transformar seu próprio modo de ser. Essas morais ‘orientadas para a ética’ (e que não coincidem, forçosamente, com as morais daquilo que se chama renúncia ascética) foram muito importantes no cristianismo ao lado das morais ‘orientadas para o código’: entre elas houve justaposições, por vezes, rivalidades e conflitos, e por vezes composição. Ora, parece, pelo menos em uma primeira abordagem, que as reflexões morais na Antiguidade grega ou greco-romana foram muito mais orientadas para as práticas 239 Cassiana loPes stePHan Deste modo, supomos que a ética tal como concebida por Pierre Hadot possuiria uma característica mais institucional e codificadora, que parece ser evitada por Foucault. A moral inerente aos exercícios espirituais, na medida em que orientada à fundamentação universal dos deveres e à aplicação institucional destes, parece dar mais importância ao código, isto é, à sua formulação, ajuste e administração. Diferentemente, a ética que se vincula à estética da existência parece se voltar, sobretudo, às formas de subjetivação e às práticas de si, ou melhor, seu interesse estaria direcionado às técnicas através das quais os sujeitos são capazes de se constituir a si mesmos. Por certo, Foucault privilegia os exercícios de auto-subjetivação, os quais manifestam a relação entre criticidade e autarquia, ao interpretar a filosofia antiga por meio da estética da existência. Entretanto, isso não significa que Foucault teria desconsiderado a importância do cosmos para os exercícios filosóficos e, assim, como supõe Hadot, transformado o próprio si mesmo em fundamento ético. Pelo contrário, Foucault parece destinar especial atenção à articulação helenístico-romana entre o si mesmo e o cosmos justamente porque percebe a dimensão social do conhecimento cosmológico no cinismo e no estoicismo, pois, para estas filosofias, a sociabilidade permite que o indivíduo adquira uma perspectiva mais detalhada do seu lugar no mundo. Talvez seja possível afirmar que através de sua análise do cosmopolitismo helenístico-romano, Foucault se afaste das interpretações que unem e diluem o si na totalidade, as quais estariam atreladas às conversões do cuidado de si platônico, neoplatônico e cristão.4 De acordo com Foucault, no pe- 4 de si, e para a questão da askesis, do que que para as codificações de condutas e para a definição estrita do permitido e do proibido.” (FOUCAULT, 2012, pp. 38-39) Em virtude disto, designamos em certas ocasiões a ética do código como “moral”, enquanto a ética da exercitação autárquica de si mesmo será denominada como “ética”. Para Foucault, a conversão platônica ou neoplatônica é um ato de reminiscência transcendental e circular: “(...) ter acesso à verdade é ter acesso ao próprio ser, acesso este em que o ser ao qual se tem acesso será, ao mesmo tempo e em contraponto, o agente da transformação daquele a que ele tem acesso. É este o círculo platônico ou, em todo caso, o círculo neoplatônico: conhecendo a mim mesmo, acedo a um ser que é a verdade, e cuja verdade transforma o ser que eu sou, assimilando-me a Deus. A homoíosis tô theô aí está presente” (FOUCAULT, 2010, p. 173). A conversão cristã consiste em um ato de retorno a si cuja finalidade é a renúncia de si mesmo: “a renúncia a si é um dos eixos fundamentais do ascetismo cristão. Quanto à mística cristã, sabemos que também ela, se não inteiramente comandada, absorvida, é pelo menos atravessada pelo tema do eu que se aniquila em Deus, perdendo sua identidade, sua individualidade, sua subjetividade em forma de eu, por uma relação privilegiada e imediata com Deus” (FOUCAULT, 2010, p. 224). 240 Michel Foucault e Pierre Hadot: um diálogo contemporâneo sobre a concepção estoica do si mesmo ríodo helenístico-romano o cuidado de si “constituiu, assim, uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e, até mesmo, a instituições” (FOUCAULT, 2011b, p. 50). Por conseguinte, parece que Foucault compreende a dimensão social dos exercícios cínicos e estoicos como uma maneira de percorrer o cosmos e de realizar a vida conforme a natureza. Se o conhecimento da natureza for assim interpretado por Foucault, então o acesso ao cosmos, por oposição a Pierre Hadot, não corresponderá a uma atividade transcendental. Desse modo, talvez seja possível afirmar que Foucault, ao se afastar da cosmologia unitiva e divinizadora desenvolvida por Hadot, nos conduz, a partir do acesso social ao cosmos, a uma percepção plural da totalidade. De modo geral, no caso de Foucault a relação com o outro decorreria da criação de vínculos distintos, complexos e múltiplos, com os demais entes que participam do mundo. Para Foucault, a exercitação do cuidado de si provoca e é provocada pelo amor à diferença e à distância do outro com o qual nos relacionamos de múltiplas maneiras, bem como pela distinção concernente à constituição da própria vida, cujo caráter estético se deve à tentativa de elaborar estilos de vida resistentes ao modo de vida vigorante. Diversamente, conforme Pierre Hadot o amor pelo universo, o qual é desencadeado na ocasião da percepção estética, condiciona o afeto pelos demais seres que participam do mundo, principalmente pelos outros homens, pois o acesso ao ideal transcendental do divino permite que o fundamento da humanidade seja desvelado. Nesse sentido, a descoberta da natureza humana desencadeia vínculos igualitários, simples e unitivos; ou seja, as alianças afetivas se estabelecem em vista da igualdade e da proximidade entre o si mesmo e o outro. Por conseguinte, podemos formular a hipótese de que para Hadot o amor pelo outro seria despertado em razão da identidade ou identificação entre o si e o outro; ao passo que para Foucault o amor pelo outro seria excitado em virtude da diferença que constantemente aproxima e distancia o si do outro, pois toda tentativa de aproximação do si mesmo em relação ao outro os transforma de modo a restabelecer a distância entre eles. Isso significa que para Foucault o amor não se caracterizaria, como em Hadot, pela fusão entre o si e o outro, mas pelo paradoxo relativo à proximidade que distancia, a qual complexifica as relações na medida em que as multiplica, ao invés de reduzi-las à unidade da Razão. 241 Cassiana loPes stePHan Com base nisso, acreditamos que essa investigação nos permite interrogar a maneira pela qual Foucault e Hadot articulam a experiência estética do amor ou da amizade à ética e à política e, desse modo, como ambos compreendem a relação entre os indivíduos e a comunidade social. E isso, não só no que tange aos antigos, mas também no que se refere às implicações filosóficas da estética da existência e dos exercícios espirituais na hodiernidade. Logo, levando em consideração as implicações contemporâneas das reflexões de Hadot e de Foucault sobre a filosofia dos antigos, fidelidadeiscutirFoucault sobre a xplicar essa ideia de heterotopia que jrefertorno daPermanente. Do contr 2016)mentar?ilidadepretendemos em pesquisas futuras discutir a hipótese de que (1) a Razão Universal corresponderia, no caso de Pierre Hadot, ao fundamento moral de uma comunidade operante, organizada e mantida por meio de poderes cuja autoridade é consagrada à legitimidade institucional de saberes sobre a condição humana; e de que (2) a autarquia estética, no caso de Michel Foucault, poderia ensejar a constituição de diversas e fugidias coexistências sociais, estimuladas pela experiência ético-política de amizades ou de amores anárquicos, isto é, de vínculos afetivos que se pretendem resistentes à operância institucional e normalizadora dos poderes, os quais se exercem em articulação a saberes que esperam consolidar cabalmente a verdade sobre a natureza humana. Nesse sentido, gostaríamos de problematizar as diferenças entre duas perspectivas acerca da convivência social para, subsequentemente, interrogar o teor das tensões políticas que estas concepções desencadeariam no âmbito de sua efetividade prática. Com efeito, trata-se de indagar, doravante, em que medida as distintas compreensões de Pierre Hadot e de Michel Foucault acerca da estética da amizade seriam capazes de nos conduzir à percepção de uma história concernente às relações agonísticas entre a política dos deveres e a ética do cuidado de si. Referências BAUDELAIRE, C. O Pintor da Vida Moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. CHEVALLIER, P. “O Baudelaire de Foucault: uma silhueta furtiva e paradoxal”. Florianópolis, Anuário de Literatura da UFSC. 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Praticamente todas as vertentes do pensamento social e filosófico desde então proclamaram o fragmento e o contexto como entidades fundamentais do acontecer e do pensar humanos. Peter Sloterdijk é uma voz e uma escrita dissonantes em meio aos discursos pós-modernos e pós-estruturalistas sobre a história singular e polissêmica. Em toda a trajetória de seu pensamento desde a “Crítica da Razão Cínica” até o ensaio “Palácio de Cristal” é tema recorrente a crítica às conhecidas meta-narrativas (cristã, liberal, marxista e fascista) por impedirem uma compreensão adequada da complexidade do real e por legitimarem equivocados sistemas políticos. Porém, o fato de que essas narrações terem incorrido em graves erros não quer dizer que a ferramenta filosófica e metodológica da apreensão do fugidio e do múltiplo pelo geral seja de todo desqualificada ou mesmo posta no obscuro arquivo dos “pecados” da recente história. Para ele: “A miséria das grandes narrativas de feitura tradicional não reside de maneira nenhuma em serem demasiado grandes, mas sim, em não serem suficientemente grandes” (SLOTERDIJK, 2008:15). Com Deleuze, Sloterdijk deseja pensar o demasiadamente grande, o desmedido da totalidade caótica do real. 1 Bolsista PNPD/CAPES. 246 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 241-263, 2017. “Palácio de Cristal”: globalização e capitalismo na perspectiva de Peter Sloterdijk É com base na teoria da imersão e do desmedido da realidade que dá continuidade a seu “Projeto Esferas” (Tomo I, II e II2) com o ensaio “Palácio de Cristal”. Neste pretende aprofundar a narração abrangente do processo de constituição do motivo das esferas, em particular da esfera eletronicamente globalizada da era atual. Para Sloterdijk, a confecção da globalização não é, como pensa a maioria, acontecimento recente demarcado em torno ou das primeiras investidas de Cristovão Colombo para ampliação do território europeu ou da extensão do alcance geo-político do sistema capitalista. Assim que o homem sai do útero materno onde é segurado e acolhido para o mundo frio e desconhecido de fora, começa a empreender a sua auto-criação simbólica e a criação de espaços de auto-proteção contra as intempéries do cosmos. O primeiro acontecimento da globalização encontra seu motivo na esfera celeste; os antigos fundamentavam sua segurança ontológica nas imagens de mundo míticas e divinas. O segundo é quando os modernos retiram do céu seu poder segurador e o transfere para às condições de vida propiciadas pela terra; neste recém-descoberto globo, o homem dedica-se ao aprimoramento de suas capacidades técnicas e à domesticação de seus próprios corpos por meio da construção de instituições técnico-sociais como o Estado moderno e o capitalismo a fim de se constituírem viveiros de proteção contra os ataques externos. Esse acontecimento é superado pelo advento técnico e ontológico do “espaço interior do capital” ou amplos viveiros de conforto e consumo, como os palácios de cristal, bem como pelo domínio emergente das telecomunicações e da conquista da atmosfera. O terceiro acontecimento da globalização funciona, nesse sentido, quase como despacialização do mundo em que desaparece o sentido das distâncias e se instala a relação de proximidade ou de densidade entre os seres humanos. Essas fases da globalização são extensamente analisadas na obra “Esferas I, II, II”, respectivamente, como globalização metafísico-cosmológica, marítimo-terrestre e globalização eletrônica. No ensaio “Palácio de Cristal”, Sloterdijk discute de forma mais aprofundada e específica as teses 2 Sloterdijk publicou uma triologia chamada Sphären, em português, Esferas. Em 1998, o primeiro Tomo publicado, Sphären I – Blasen (Esferas I – Bolha), no ano seguinte Sphären II – Globen (Esferas II – Globo), apenas em 2004 publicou o último volume, Sphären III – Shäume (Esferas III – Espuma) 247 edilene Maria de CarvalHo leal interconectadas da ação desinibida e da estrutura dos sistemas de imunidade, a partir de suas consequências político-sociais, como a emergência da tensão entre os perdedores da história e as nações que vivem da abundância do capitalismo. É a motivação para esse estado de tensão contemporânea que nos interessa apreender nessa “Conferência” de Sloterdijk. A ação que promoveu a condição atual de tensão entre culturas, para Sloterdijk, teve início com as descobertas marítimas e simbólicas dos modernos. A partir do século XVI Cristóvão Colombo, seus compatriotas e outros tantos expansionistas que se seguiram a ele lançam-se ao mundo, com o intuito já delimitado de se apoderarem de sua extensão recentemente descoberta. Mas essa ação tão fundamental para a globalização terrestre não foi decidida ao sabor meramente dos desejos de Colombo de ampliar seus horizontes, mas mediante uma técnica informal de motivação para a Ekstasis náuticas. Isto é, para projetar-se para fora em direção ao globo efetivando a Ekstasis, como o Dasein heideggeriano condiciona-se a projetar-se, os conquistadores recebem informações especiais do outro lado terrestre, já que modernos que são não podem mais ser informados pelo “lá em cima celeste”. Quem ou o que os motivou a praticar a Ekstasis náuticas é a emergência moderna de um novíssimo modo de estar-no-mundo que se convencionou chamar de subjetividade. No entender de Sloterdijk, a subjetividade moderna caracterizou-se pela capacidade para passar da teoria à prática, isto é, quando o agente se vale de um motivo para libertar-se de qualquer coisa que o inibe. A autonomia, nesse caso, frente a qualquer senhor que impeça a ação desinibida é inseparável de um treino apreendido pelo indivíduo. Este se convence que age segundo sua própria liberdade, obedece apenas a si mesmo e dá a si mesmo o motivo para a desinibição. Nesse sentido, Sloterdijk deixa claro que rejeita a compreensão da teoria crítica segundo a qual a subjetividade moderna caracterizaria pela “agência de controle de si mesma”. Sua interpretação se ocupa de uma histerização do sujeito em que a forma de sua ação é dada pelo exercício constante e específico do autoconselho e da autopersuasão. Se se trata de um exercício, a hesitação do sujeito moderno quanto a agir desinidamente ou não, é apenas uma hesitação astuciosa em que pesa a desconfiança de que pode está sendo levado por entidades exteriores a agir. Para Sloterdijk, não existem subjetividades modernas decidindo em 248 “Palácio de Cristal”: globalização e capitalismo na perspectiva de Peter Sloterdijk fórum íntimo sua ação; senhores externos desde os primeiros sujeitos modernos, os jesuítas, passando pelos comunistas até os americanos de hoje, tomam parte fundamental no processo da desinibição. Estes senhores se autolegitimam como representantes, consultores, instrutores, abnegados de interesses próprios daqueles desafortunados que não conseguem tomar para si o leme da própria existência ou mesmo da história. Os jesuítas, do lado cristão-católico, representaram a autoridade básica da formação de si mesmo que caracterizou o processo civilizatório ocidental. A subjetividade jesuítica apresentava-se como a mais completa disponibilidade e a mais elevada motivação para realizar a ação. Com base nisso, toda e qualquer ação era justificável diante da missão de educar aos infelizes entregues à barbárie de seus próprios costumes. O cultivo de si pressupõe renúncia e pena para se tornar “dono e senhor dos seus próprios sofrimentos”. A necessidade cristã dos jesuítas de passar pelo caminho extenuante das mortificações até chegar à desinibição propriamente dita, é sumamente afastada pelas subjetividades mais técnica e simbolicamente equipadas para motivar a ação desinibida. Com subjetividades como Kant e Marx, do lado da racionalidade moderna, é possível falar em termos mais diretos da passagem da teoria à prática em que os sujeitos dão para si mesmos razões racionais suficientes para uma ação bem sucedida. A fina ironia de Sloterdijk lembra-nos que os sujeitos têm ouvidos surdos para a razão e esta, por seu turno, não consegue fornecer instruções tão claras quanto o Papa romano, por isso recorrem aos motivadores mais ágeis para ajudá-los no salto para a ação. Esses motivadores estão por todo parte desde a modernidade, mudando apenas sua configuração básica. Sloterdijk escreve sobre a “legião de filósofos da liberdade” que se perfila a partir dos acontecimentos políticos de 1793 até 1968 que se apóia nas subjetividades frágeis e indigentes para ocupar o lugar do senhor incompetente. Mas esses motivadores também estão entre os ideólogos do liberalismo que defenderam com altivez uma ação ofensiva em prol do mais perfeito sentido para a história: as conquistas individuais mercantis. Sem essa base ideológica – as ideologias perderam seu poder de influir nas ações do homem atual –, o que temos hoje são os consultores, em geral menos ofensivos porque a rigor não existem inimigos somente concorrentes. 249 edilene Maria de CarvalHo leal De qualquer maneira, o que marca todo o processo de globalização ocidental até a conjuntura atual é a relação entre subjetividade e ofensividade. Animados pela legitimação simbólica de sua ação e pela cumplicidade de grupo, as responsabilidades daí decorrentes são deslocadas de ator para uma entidade “mediúnica”. Não existem responsáveis para os quais se imputaria delitos como: violência, destruição, massacre, barbárie etc., utilizados como meios para o saciamento da “fome agressiva de mundo” das subjetividades racionais do mundo burguês. Isso porque o motivo para a ação expansiva-ofensiva é puramente metafísico. Os europeus supuseram que tinham o direito legítimo de ser grande e, por conseguinte, de praticar a captura unilateral do mundo através de forças mercantis expansionistas. Sloterdijk recorre à concepção de Heidegger de que a modernidade entende o mundo como uma imagem que se pode deter como algo representado ou conquistado. Não é fortuito que a era das expedições encontrava na palavra descobrimento o cerne de seu fazer histórico. Convencidos de sua verdade de “povo eleito” se lançam aos territórios da Terra ainda não representados para “instalar imagens no lugar das não-imagens anteriores”. O sentido disso é a negação de qualquer espaço que seja exterior ao europeu médio. Para cada imagem do mundo descoberto, o europeu se sentia mais seguro com a inscrição de sua insígnia especial e com a pressuposição de excluir tudo que lhe fosse exterior. Assim, Sloterdijk desacredita da compreensão segundo a qual os conquistadores em espaço globalizado foram penetrados por suas singularidades, tornando elementos do exterior interiores. Não existia relação de proximidade porque os expansionistas não habitavam o lugar “tomado”; era “seu espaço interior”, a casa do europeu, que era construída e tornada o único lugar habitável. O principal resultado dessa ofensiva europeia foi a interconexão entre dois grandes acontecimentos: a implementação do sistema mundial (capitalismo e Estado Nação) e a mudança nas estruturas imunitárias. A globalização terrestre significou, em larga medida, a emergência do fenômeno novo e homogêneo da globalização econômica e tecnológica. A ação desinibida da expansão européia levou aos quatro cantos do mundo o aperfeiçoamento técnico como meio de produzir cada vez mais lucro e consumo capitalista. Para tanto, estava respaldada, politicamente, na cons- 250 “Palácio de Cristal”: globalização e capitalismo na perspectiva de Peter Sloterdijk tituição de um outro fenômeno igualmente importante, os Estados Nacionais, como redes de defesa dos ideais de liberdade e igualdade para todos. Diante disso, o sistema de seguro da era da globalização celeste em que a segurança era assunto divino, não faz mais sentido. Os modernos criam sistemas simbólicos de imunidades mais adequados a sua nova condição de existência, cuja estrutura é dada pelas conquistas econômicas, técnicas e políticas. A característica primordial dos sistemas de imunidade está na idéia de que o homem se aprimora tecnicamente para construir auto-defesa contra os perigos externos e as intempéries que sua atual condição de ser vivo entre outros seres vivos habitando uma esfera que não é mais o centro do universo, lhe reserva. Com os sistemas, o homem moderno ocidental (e o atual) acredita está protegido contra a exterioridade, por isso exclui a exterioridade na construção de espaços interiores com todos os benefícios materiais do capital. Essa “agressiva fome de mundo” e de seguros da era moderna durou vários séculos, mas encontrou a partir de 1945, uma satisfação conduzida por uma série de motivos, mas principalmente o estabelecimento de um novo padrão de convivência no mundo globalizado, denominada densidade, a qual analisaremos a seguir. Antes, porém, é importante frisar que a época atual, para Sloterdijk (2008:20), é caracterizada, sobretudo, pela crescente primazia da ação inibida frente à ação desinibida de processos anteriores. A prática da “globalização terrestre como unilateralidade em ação” que entrou nos livros de história como “história mundial”, é atualmente considerada um registro lamentável da apropriação assimétrica da Terra consumada pela arrogância do europeu moderno. Segundo Sloterdijk, um dos mais fundamentais motivos que levaram a derrocada da ação desinibida foi dado pelo próprio avanço do processo de globalização, com a emergência ontológica da densificação. O mundo que se seguiu ao moderno, da “terceira onda da globalização”, é o mundo da fluidificação do capital e da sincronização das relações. Para melhor especificar nossa condição atual, utiliza-se do conceito de desterritorialização como um processo de descentramento a partir do qual se produz a interconexão entre o simbólico, o disciplinar e o geográfico. Os elementos do mundo foram retiradas (desteritorializadas) do seu suposto lugar para penetrar numa relação intercambiante segundo a qual as fronteiras que antes os separavam se tornam móveis a depender da 251 edilene Maria de CarvalHo leal fluidez do capital. Isso é possível graças aos avanços da tecnologia e dos meios de comunicação, cuja expressão mais marcante é a internet que coloca todos numa atualidade permanente, ou seja, vivemos sempre num “penetrante imperativo do dia”. Esse processo define os contornos elementares da existência no mundo de hoje porque promove a forma de convivência da densificação. O aumento substancial da densidade implica a possibilidade crescente de que os agentes, independentemente do lugar ou da cultura de origem, se encontrarem para estabelecer relações as mais variadas, como transações comerciais ou colisões casuais. Todos se esbarram com todos porque a globalização teleguiada da nossa Era, “força” um estado de vizinhança incontornável. Por conseguinte, Sloterdijk recusa o romantismo de filósofos que defendem a condição ontológica do ser humano como aquele que espontaneamente se aproxima do outro. São as condições externas que coagem a situação de convivência que, de qualquer modo, é instável e frágil. Nesse sentido, as telecomunicações definem um modus operandi em que os agentes acreditam compreenderem os jogos da sociedade e assim compreenderem uns aos outros, de modo a promover uma horizontalidade desenfreada da sociedade. A “telepatia” informativa ou actio in distans garante a todos a ilusão de que nada os transcende e de que nada vem de cima, mas ao contrário, vivem a providência de um mundo racionalizado. Não existe mais um parâmetro a partir do qual um indivíduo poderia se distinguir dos demais em função da sua capacidade de unificar em si mesmo a sua época e sua coletividade. Desaparece, assim, com a horizontalização do mundo a época do “grande homem”, ao invés disso surgem atores igualmente fortes e inteligentes e mutuamente cooperativos entre si. A marca dessa cooperação e dessa plena igualdade é um processo de aprendizado que os lembra sempre que os outros constituem obstáculos ao alcance de seus interesses pessoais. Por isso, o estado atual de densidade promove a inibição recíproca (SLOTERDIJK, 2008: 193). Esse anúncio de uma época mais propícia à ação inibitória sugere que vivemos sob perspectivas efetivas de cooperação ou, nos termos de Sloterdijk, de uma “civilização pós-histórica”, em que um acordo negociado entre nações do mundo impede levantes desinibitórios. Contudo, as coisas não estão assim tão pacificamente arrumadas. Paradoxalmente, a nova condição de vida colocada pela terceira globalização caracteriza-se 252 “Palácio de Cristal”: globalização e capitalismo na perspectiva de Peter Sloterdijk pela mudança nas configurações das estruturas imunitárias garantidas pelos Estados-nação da modernidade e pela instalação de um estado de tensão política e moral com o exacerbamento das desigualdades entre ricos e pobres. A globalização perpetrada pelos modernos tinha na institucionalização dos Estados-nação a grande fonte que alimentava os sistemas imunitários. Não se tratava apenas de uma segurança simbólica em que todos convergiam para uma identidade e para um lugar, mesmo que enquanto co-participantes de uma suposta “comunidade imaginária”. Mas também, com os Estados-Nação se convertendo em Estados-providência em fins do século XIX, os indivíduos passaram a dispor de redes reais de seguro: aposentadoria, seguro-desemprego, assistência médica, etc. Providências sociais que contribuíam para dirimir ou pelo menos velar as diferenças econômicas que a sociedade da expansão capitalista constrói desde o início. Todavia, o fenômeno atual das sociedades móveis implica tanto a flexibilização de suas relações com o lugar porque incontáveis grupos se apropriam e se desapropriam continuadamente do lugar com o qual mantêm relações, quanto a variabilidade de lugares com os quais os grupos travam relações, impede que os indivíduos os habitem. Tal não é mais o caso das sociedades atuais. Nestas, a identidade vive em pleno deserto, é um eu sem lugar; mesmo porque este último é o centro comercial, aeroporto, rua, praça, etc., feito para passar e não para habitar. Além disso, os sistemas imunitários coletivos anteriores se transmutaram em sistemas individuais já que os indivíduos parecem ter as competências necessárias para se autoprotegerem. Para o autor, os EUA são a nação que mais cedo e mais veementemente promoveram a primazia imunológica individual sobre a coletiva: “(...) em nenhum país da Terra, em nenhuma população, em nenhuma cultura, as pessoas se dedicam tanto ao cuidado de si biológico, psicotécnico e religióide, ao mesmo tempo que se abstêm crescentemente da participação política” (2008: 166). Com isso, Sloterdijk afirma que ao invés de paredes fortes que impediam o estressamento das relações entre nações e entre grupos sociais das sociedades nacionais, corremos para um mundo de “sociedades de paredes finas e heteróclitas”. Na medida em que o formato atual do mundo globalizado pressupõe mais ou menos essa estruturação acima descrita é também próprio à globalização compor resistências imunitárias 253 edilene Maria de CarvalHo leal locais contra invasões externas, sempre numa relação de reciprocidade. Por conseguinte, a possibilidade de contestação e de resistência é não apenas possível, mas verificável na prática das sociedades hodiernas na qual emergem influxos desinibitórios. Desta vez entre aqueles que sempre estiveram do lado do sofrimento: os perdedores da história. Sloterdijk localiza nas práticas neo-liberais dos Estados os principais fatores desencadeantes desse contexto desinibitório. Isso porque faz muito deixaram de exercer sua função específica de constituir consensos para requererem para si a função de redistribuição das riquezas e de acesso ao conforto. Os Estados neo-liberais se esmeram, prioritariamente, na “democratização do luxo”, isto é, acentua o desejo ontológico do ser humano pelo conforto. O que é inaudito nesse momento moderno é tão somente a tentativa paradoxal de horizontalizar esse processo, de pressupor que todos podem tornar-se mimados, confortáveis e luxuosamente refinados. Compreende-se porque Fausto e Mefistófeles, personagens de Goethe, tornaram-se as figuras fundamentais da modernidade: o primeiro é aquele que alcança o topos de luxo sem a caminhada tortuosa do trabalho, o segundo oferece os meios técnicos mesmo que “técnico-diabólicos” necessários para o “novo homem” como Fausto realizar seu desejo. Assim, Sloterdijk deixa entrever como a corrida moderna para a realização supostamente horizontal do desejo de luxo implicou em uma reflexão metamoral sobre os fatos morais; o que para a moralidade anterior ao século XX era considerado pecado mortal neutraliza-se em fator de produção e consumo: desejar o supérfluo, o inessencial, os bens mundanos. O fato de que a modernidade se caracterizou pela expansão do mimo, mais exatamente pelos discursos de democratização do mimo, não significa dizer que os seres humanos estão livres dessa tensão constitutiva: vencidos e vencedores são os oponentes da guerra pelo controle dos espaços e dos produtos. Todos são muitos, e os bens, são escassos; os produtos não comportam o volume da demanda. É nesse contexto que Sloterdijk discute o que considera ser um dos maiores paradoxos desde a modernidade: o engajamento na luta pelo reconhecimento do outro implica em ter esse outro como “companheiro e rival”, já que se trata de abrir-lhe o campo de acesso ao mimo que já lhe foi liberado. Isso acontece porque a conquista moderna do luxo vem acompanhada pelo forte embasamento de uma moral de cunho 254 “Palácio de Cristal”: globalização e capitalismo na perspectiva de Peter Sloterdijk liberal-cristão que dita o texto dos discursos dos atores do sistema de bem estar: valores como justiça, generosidade e liberdade somente têm sentido como, respectivamente, acesso de todos ao sistema de conforto, ressentimento com as desigualdades na repartição das vantagens do mimo e assentimento ao egoísmo do outro. Essa suposta “justiça infinita” demanda uma situação impossível de luxo interminável. Dessa forma, apenas se tenta encobrir, primeiro, o conflito entre os já agraciados com o mimo e os pretendentes a este; segundo, a confirmação e aumento da posse dos que já alcançaram o topo do sistema de bem estar. Nos termos do autor: “esse é o modus operandi do apatheid universal, por um lado o fato de tornar invisível a pobreza nas zonas de prosperidade, e por outro, a segregação dos ricos nas zonas de esperança zero” (SLOTERDIJK, 2008: 209). A sustentação das sociedades atuais depende dessa farsa de que todos podem ter tudo, ou seja, de que todos podem consumir o que quiserem. Por outro lado, e ai está a ironia desse discurso e seu estandarte, “a muito suportável leveza do ser” somente se atualiza enquanto outros trabalhem. A condição para que alguns poucos desfrutem do conforto produzido pelas práticas técnicas dos homens ao longo de sua história depende de que uma grande parte fique de fora dela. “Por que quem quer seriamente ajudar aos demais a se converterem em competidores do gozo de bens escassos?” (SLOTERDIJK, 2009: 607). Para dar conta desse paradoxo e da situação de improbabilidade dele decorrente, os indivíduos criam uma forma de ver e de experimentar a realidade a partir da “extrapolação e do estranhamento estético”. Isto é, a sociedade atual é constituída pela criação de amplos, climatizados e luxuosos espaços envolventes que o visitante, a princípio, sabe que é diferente do “normal-real”. Mas depois são rapidamente atraídos pela visibilidade do conforto de suas instalações. Entram como visitantes, mas se tornam habitantes que compartilham desejos em comum, assimiláveis assim que se encantam por eles, os consomem e os realizam estético-artificialmente. Para Sloterdijk: “O que é ‘o capitalismo’, ‘o Ocidente’ ou ‘o mundo de bem estar’ se experimenta visitando, por exemplo, a Clínica dos Sonhos de Ilya Kabakow; uma estadia em Eurodisney (...) (Idem, 616). A imagem mais característica e pungente dessas instalações é dada pelo “palácio de cristal”. A partir da metáfora “palácio de cristal” – empres- 255 edilene Maria de CarvalHo leal tada de “Memórias do Subsolo (1864-2000)” de Dostoievski referindo-se ao suntuoso espaço de “Exposição Universal de Londres”, construído em 1851 -, Sloterdijk empreende uma análise do modo como o capitalismo construído pela ação desinibitória dos modernos decide resguardar-se num imenso espaço com interior climatizado, confortável e seguro. A transparência do cristal tem função “masoquista” de produzir a ilusão entre os excluídos de seu espaço de que podem cohabitá-lo. O palácio se mostra como o ideal de desenvolvimento e de cobiça para os perdedores da história, mas cada vez mais fortalece suas fronteiras e inviabiliza a invasão de elementos exteriores. Segundo Sloterdijk, Walter Benjamim perdeu momentaneamente “sua admirável capacidade fisionômica” quando viu o palácio de cristal londrino apenas como a versão ampliada de uma paisagem representativa do capitalismo moderno. Não percebeu, com Dostoievski, que sua estrutura arquitetônica permitia (pois ele já foi implodido em 1991) uma visão integral do capitalismo como nenhuma outra imagem de suas ambições visuais. Nenhuma paisagem de Paris ou descrição da conduta de seus passantes ou suas figuras típicas comporta tanta riqueza metafórica e visual para entender os viveiros de proteção das sociedades atuais quanto o palácio de cristal. Isso explica o aparecimento de outras construções suntuosas, construídas nos mais diversos lugares do mundo (China, Japão, Itália, Espanha, EUA) com cristal ou materiais substitutos do cristal como “polietileno, plástico e PVC” para garantir a permeabilidade da luz e dotar o espaço da transparência necessária para ser visto, visitado e desejado. É um espaço fechado, mas aparentemente ao alcance de todos. Também são assim os modelos arquitetônicos do século XXI, que Sloterdijk chama de ilhas absolutas ou verdadeiros viveiros de proteção cuja fusão do exterior no interior, caracteriza os tipos de zonas habitáveis atuais. Esses espaços são: “centros comerciais, recintos de festas, estádios, espaços lúdicos cobertos, estações orbitais e gated communities” (2004b: 13). Também são assim os mais modernos condomínios fechados de casas e apartamentos nos quais o conforto e luxo são tão visíveis que parecem sob a luz do tangível, qualquer um se desejar poderia a princípio habitar seu espaço, pelo menos assim propagandeia o capitalismo globalizado de hoje. A transparência dos espaços revela muito do tipo de ser humano e ser-no-mundo que os habitam. Por um lado, uma atitude voyeurista; 256 “Palácio de Cristal”: globalização e capitalismo na perspectiva de Peter Sloterdijk por outro, um “tédio normativo generalizado”. Heidegger já havia dito, e Sloterdijk sabe-o bem, que o mundo moderno é o mundo das imagens, o ser-no-mundo absorve a realidade desde suas condições artificialmente estudadas. E essa absorção é feita a partir de uma atitude entediada com o mundo em que diante da vitória ou da realização sobrevém necessariamente o tédio com o realizado. Schopenhauer advertira para o sofrimento ontológico decorrente da realização da vontade segundo um ciclo sem fim: a ansiedade de uma vontade por realizar, a realização consumada e o tédio aterrador que se demora até que sobrevenha uma nova vontade. O que torna possível o entediar-se atual é a conquista do mimo. Segundo Sloterdijk, mimo “designa os reflexos psicofísicos e semânticos do movimento de desoneração inerente desde início ao processo de civilização, mas que só pôde amadurecer e adquiri a sua plena visibilidade a partir do momento em que os bens deixaram radicalmente de ser raros (2008: 227). Apenas porque a modernidade cumpriu sua promessa de uma maior democratização do luxo é que é possível um maior número experimentar o tédio da existência confortável: poder experimentar o estado de vigília enquanto estado ausente de tensões é privilégio recente. Do ser-no-mundo como aquele que tem tempo livre porque goza do privilégio da conquista do luxo e porque goza da “tranqüilidade, vazio, simplificação e sentimentos autênticos” num continum de paz, resulta na imersão do ser humano na morbidez e na epidemia do negativismo. Escreve: O conceito de “tédio” exposto por Dostoiévski e Heidegger mostrou de forma pregnante a que conseqüências psicossemânticas leva a estada no éter confortável da grande estufa. Na sua presença difusa aparece o reflexo de humor profundo de uma existência que encontra no seu meio a paz permanente, a aprovisionamento permanente, o divertimento permanente – embora uma agitação constante no sentido contrário, a qual põe em jogo temas de stress e de competição que tonificam o coletivo, assegure um certo equilíbrio (SLOTERDIJK, 2008: 227). Essas alternâncias de humor no “espaço interior do capital” promove um clima permanente de tensão segundo o qual o tédio é o humor difuso do desonerado de todo trabalho e sacrifício, e o stress indica a irritação específica diante da obrigação de desonerar-se cada vez mais. Existem degraus até alcançar o topo mais elevado da existência mimada, desde 257 edilene Maria de CarvalHo leal aquele que está no primeiro degrau ao habitante do topo, e a competição desenfreada por maior desoneração redunda em stressamento generalizado. Poder consumir e poder gabar-se de sua própria condição e de sua própria competência assumem um encantamento sem precedentes na história, segundo Sloterdijk. O seu personagem ideal apresenta-se sob os traços do desportista que pratica um fitness absurdo durante a sua fase de alto desempenho – regra geral às expensas de todos os outros aspectos de seu “potencial humano”: a fim de passar pelo mais competente, não hesita a recorrer a substâncias dopantes, pois todos os outros fazem o mesmo, de forma que o doping se torna inevitável no interesse da igualdade de oportunidade 2008: 236). Com isso, Sloterdijk quer nos dizer que os seres humanos atuais fazem qualquer coisa para atingir os ideais de vida mimada propagados pelas telecomunicações. Se não se pode ter esta vida qualquer outra não vale a pena; por isso a disposição para onerar-se ou para entregar-se às ações duras e agressivas cresce de forma incontrolável no mundo atual. E embora seus habitantes afortunados acreditem estar imunes às invasões externas, a história recente mostrou que o telhado do palácio capitalista do mundo é de vidro: “(...) as torres de Nova Iorque ruíram no interior do palácio de vidro”. Esse acontecimento demonstra não exatamente que “o mal chegou até Manhattan”, como repetiram sem cessar os folhetins da época, mas que o contexto de inibição recíproca promovido pela elevação da densidade tem sofrido sérios abalados. “Globalização da criminalidade” é como chama Sloterdijk ao levante desinibitório do lado, principalmente não-Ocidental, que experimenta as delícias da era expansionista e unilateral do europeu. Contudo, como não há mais terra a descobrir e ocupar, os atores terroristas islâmicos, basicamente, se apropriam grandemente do espaço aberto da mídia mundial. São as redes de comunicação espalhados pelo mundo que, no entender de Sloterdijk, na corrida desenfreada pela produção de informações novas, alimenta ação agressiva do terrorismo. Aparentemente, o terrorismo em si mesmo, para Sloterdijk, não teria essa ascensão tão impactante e destrutiva na atualidade se não fosse sustentado pela mídia e pelo tédio dos habitantes do palácio. 258 “Palácio de Cristal”: globalização e capitalismo na perspectiva de Peter Sloterdijk A particularidade dos terroristas face aos outros promotores de shows é sua aguda percepção para o caráter hipercomunicativo da esfera social do Ocidente. Mediante invasões desordenadas e esparsadas, estes atores da agressão pós-histórica conseguem penetrar em todo o seu sistema social e fragiliza o já debilitado sistema nervoso dos seus cidadãos. Sloterdijk está seguro de que a medida mais eficaz contra o terrorismo, “o silêncio absoluto dos media”, seria uma prática frustrante porque os protagonistas da comunicação reclamariam seu dever absoluto de informar. Esse dever pode ser traduzido como impulso descontrolado e paranóico para consumir o terror. Com essa manobra e esse reforço precioso dos medias, os terroristas islâmicos penetraram facilmente na mente das massas e se tornam seus produtores prediletos de “emoções temáticas”. Esse acesso ao mundo dos que cantam a “música da desinibição” pelos terroristas é compartilhado pela energia expansionista dos atores neoliberais. Ambos ditam um texto articulado no qual se inscreve com sangue frases como: “A liberdade de avançar é a essência da verdade”. Nesse sentido, o movimento virulento para a expansão unilateral pode ser percebido em ambos os lados: daqueles que perderam a corrida para a conquista assimétrica do espaço, os terroristas islâmicos, e daqueles que querem retomar a sua ação histórica desinibida, os ocidentais habitantes do palácio de cristal. A ação agressiva do 11 de Setembro não tinha um projeto minimamente arquitetado para dominar o mundo ocidental, apenas se pretendia uma demonstração da fragilidade do palácio de cristal; um ato que deveria se esgotar em si mesmo. Contudo, seguiu-se a ele a configuração prática e midiática do estado de “advertência armada” que se traduziu em um motivo para que a cultura ocidental retome a política do “momento hobbesiano”. Isto é, se o Estado atual tem condições de proteger seus cidadãos das ameaças e invasões externas. Quando se refere ao Estado Sloterdijk é ainda mais cético do que é com os comunicadores das medias, pois além do Estado ser um consumidor do terror como todas as outras entidades sociais, abandonou definitvamente suas funções hobbesianas para esmerar-se na nas prestações de acesso ao conforto. Assim: “O clima de angústia cuidadosamente alimentado no espaço midiático garante que a grande maioria dos consumidores de segurança mimados do Ocidente se verga à comédia do inelutá- 259 edilene Maria de CarvalHo leal vel. E isto leva a quê? Os viajantes têm disso um antegosto quando, depois do 11 de Setembro, têm de sacrificar às exigências da limitação do risco nos transportes aéreos os corta-unhas que levam na bagagem de mão”. Ora, na reconstituição sloterdijkiana do processo civilizatório ocidental percebemos uma profunda dimensão crítica visível na tentativa de desnaturalização desse processo, mostrando como, por que e para quê foi forjado; e em que se tornou no espaço e tempo da modernidade. Isso é visível na sua análise crítica das teses interconectadas da ação desinibida e da estrutura dos sistemas de imunidade, a partir de suas consequências político-sociais; tal como a emergência da tensão entre os perdedores da história (aqueles grupos que perderam a luta por privilégios e pelo poder) e os grupos que, obviamente, saíram-se vitoriosos e vivem da abundância da economia de mercado. Interessa-nos particularmente nesse Ensaio a motivação para essa tensão contemporânea entre esses grupos e como esse estado de coisas afeta sobremaneira sua própria concepção de processo civilizador. Pois, é nesse intervalo que vamos encontrar Sloterdijk operando com a desnaturalização do processo civilizatório moderno, mas apenas quando este imprime ao mundo – globaliza-se, torna-se um só para os cinco cantos do mundo –, uma versão entre domesticada, consumista e ressentida. Posto que, respectivamente, todos são convidados pela própria estrutura de atuação do Estado a submeter-se às novas virtudes modernas do igualitarismo; mas também às práticas do consumismo; por fim o que resulta disso é a emergência da vingança dos ressentidos, isto é, daquelas maiorias que não participam das benesses materiais e simbólicas prometidas pelo Estado e que são impedidas pelos limites estruturais do sistema da economia de mercado. Por isso pergunta: O que motivou os modernos para as conquistas culturais e civilizatórias? Ora, a motivação para projetar-se em direção ao globo – Sloterdijk parafraseia Heidegger chamando-a Ekstasis náuticas (SLOTERDIJK, 2008: 23) – é dada pela emergência moderna de um novíssimo estar-no-mundo que se convencionou chamar de subjetividade. Sua interpretação (SLOTERDIJK, 2008: 65-6) se ocupa de uma “histerização” do sujeito em que a forma de sua ação é dada pelo exercício constante e específico do autoconselho e da autopersuasão. Certos grupos europeus – particularmente franceses, ingleses, espanhóis, dentre outros –, animados pela legitimação simbólica de sua ação e pela 260 “Palácio de Cristal”: globalização e capitalismo na perspectiva de Peter Sloterdijk cumplicidade de grupo, não se consideravam responsáveis por consequências daí decorrentes, estas são deslocadas de atores para uma entidade “mediúnica”. Não existem responsáveis para os quais se imputaria delitos como: violência, destruição, massacre, barbárie etc., utilizados como meios para o saciamento da “fome agressiva de mundo” das subjetividades racionais do mundo burguês. Isso porque o motivo para a ação expansiva-ofensiva é puramente metafísico. Esses grupos europeus supuseram que tinham o direito legítimo de ser grande e, por conseguinte, de praticar a captura unilateral do mundo através de forças mercantis expansionistas (SLOTERDIJK, 2008: 113-4). Existem passagens nesse texto, “Palácio de Cristal” (2008: 114), bem com em outros textos nos quais Sloterdijk endossa, curiosamente, alguns importantes elementos dos Estudos Culturais e do Multiculturalismo. Para começar, essa especificação destacada acima, a respeito de quais sociedades europeias teriam operado com a ação expansiva-ofensiva não aparece no texto, essa é uma tentativa em grande parte externa ao texto sloterdijkiano. Pois, assevera que – numa crítica generalista que soaria exorbitante em autores como Stuart Hall preocupado com as diferenças culturais, inclusive de como cada cultura singularmente praticou o expansionismo –, as nações europeias expansionistas estavam convencidas de sua verdade de “povo eleito” para dominar todos os territórios da Terra. Esse resumo da situação geral do processo civilizador ocidental oferece-nos a oportunidade de entender como Sloterdijk lida com o procedimento crítico desnaturalizador da formação civilizatória das sociedades europeias à medida que revela como a racionalidade moderna atualizou certa autoimagem de si e certo ideal do globo, mas simultaneamente, reclama a perda da condição existencial de ser humano, primordialmente, voltada à conquista do Grande, à autossuperação de si mesmo, à busca disciplinada pela distinção; virtudes e/ou caracteres perdidos no domínio crescente das sociedades de massa, do Estado da democratização do luxo, da domesticação da thimótica. Quando pensamos que examinará a relação desse estado de coisas com as dificuldades atuais de se defender a “naturalização” do processo que o tornou possível, eis que reclama exatamente que as práticas institucionais modernas desenvolveram a ideia de que todos podem ter acesso aos privilégios do mimo, da levitação, do distinto, etc. Esse é um passo na argumentação de Sloterdijk que não se 261 edilene Maria de CarvalHo leal pode chamar simplesmente de contraditório, uma vez que a qualidade e a profundidade de sua análise não permitem tal explicação. Trata-se, na verdade, de uma compreensão claramente normativa de civilização que reverbera nos seus textos de maneira tão envolvente a ponto de postulações teóricas requentadas passarem por opções políticas e culturais necessárias: um acordo multicivilizatório sob as premissas do projeto civilizatório ocidental e um reforço pragmático do ideal aristocrático de civilização ocidental. Essas ofertas, entre si mesmas contraditórias, não apenas não resolvem os profundos problemas da fragilidade das relações civilizatórias entre as sociedades, mas, paradoxalmente, não podem simplesmente ser apresentadas como ofertas civilizatórias, uma vez que negam o próprio significado de civilização. Posto que, o que entendemos por civilização ao menos em seu sentido ético, é o que resulta de práticas de vida individual ou de vida coletiva mediante as quais a relação, a pressuposição e, principalmente, o cuidado com o outro as animam e lhes dão significado; mas também, a possibilidade aberta de refazer situações ou mesmo estruturas que impossibilitam que essas práticas possam realizar-se, ou seja, a possibilidade aberta de constituir maneiras diferentes de vida social. Ainda que se possa reconhecer, nessas práticas sociais diferenciadas e muitas vezes irredutíveis uma a outra, elementos ético-civilizatórios em comum. Bibliografia SLOTERDIJK, P. (2003) Esferas II. Madrid: Siruela. SLOTERDIJK, P. (2004) Esferas III. Madrid: Siruela, 2009. SLOTERDIJK, P. (1983) Crítica de la Razón Cínica. Madrid: Taurus, 1989. SLOTERDIJK, P. (2005) Palácio de Cristal: Conferência. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2008. SLOTERDIJK, P (1999) Regras para o Parque Humano. São Paulo, 2000. 262 “Palácio de Cristal”: globalização e capitalismo na perspectiva de Peter Sloterdijk SLOTERDIJK, P. (2000) O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. São Paulo: Liberdade, 2002. SLOTERDIJK, P & HEINRICHS, Hans-Jürgen. (2001) El Sol y la Muerte. Madrid: Siruela, 2004. DOSTOIÉSVSKI, F. Memórias do subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000. DELEUZE, G. Proust et les Signes. Paris: Quadrige/Puf, 2007. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, (Vol.2). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. ELIAS, Norbert. (1939) O processo civilizador (2 volumes). Rio de Janeiro: Zahar, 1994. FOUCAULT, M. (1966) Les mots e les choses. Paris: Gallimard. HEIDEGGER, M. (1927) Ser e Tempo. Petrópolis, RJ: Vozes. BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. IN: Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989. SCHOPENHAUER, A. Mundo como Vontade e Representação. Porto: Editora Rés. 263 Educação e instrução do homem agente Adaleuton de Queiroz Soares (UECE) Marly Carvalho Soares (UECE) Introdução Nesse trabalho apresentaremos uma perspectiva de educação do homem que tem o papel de educador agente dentro de sua comunidade, e nesse sentido o homem para Weil tem a função de educador dos outros homens, aquele que já captou a lei natural que foi universalizada pela reflexão razoável tem o papel moral de educar os outros homens para viverem a lei de uma maneira espontânea: quando o homem é bem-educado ele não necessita de um objeto regulador do estado para forçá-lo a viver a lei natural que se universalizou. Ele aprende a viver no mundo empírico controlando suas paixões com meios da própria paixão que foi educada para servir ao homem dando-lhe impulso para viver a vida moral. Weil parte da tese que todos os homens, mesmo os da reflexão, agem movidos pelo que têm de mal, pelo fato que o homem é um ser particular, mas é verdade que ele se submete a universalidade da lei positiva, sendo que o mesmo só é submetido a essa lei para garantir seus interesses ou para evitarem o que eles temem, isto é, a violência. “O bem está, pois, indissoluvelmente ligado ao mal, um mal que não pode ser desenraizado, apenas transformado” (WEIL, 1990. p. 58), esse mal é motor da ação que pode ser transformada em bem, que não é possível só pela força do bem porque a força se encontra do lado do mal, por isso não seria possível um homem inteiramente bom justamente porque ele não teria força para agir. “Se pois, o bem deve ser realizado, ele só poderá sê-lo através do mal” (WEIL, 1990, p. 58). Cabe ao pensador moral distinguir o mal e o bem para combater o mal e fazer com que o mal seja transformado em bem e que a comunidade saiba viver o bem. 264 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 264-278, 2017. Educação e instrução do homem agente 1. O papel do homem educador O filósofo educador além de saber fazer a distinção entre o bem e o mal tem que saber combater o mal, para que esse mal passe a ser bem. Por isso a função dele é combater a violência gerada pelo mal através do discurso coerente que educa o homem. Ora, o pensador moral saber o que é o bem. Mas exatamente, saber qual é o mal a ser combatido e vencido, a fim de que o bem passa tornar-se real: a paixão, a violência do homem natural, aquilo que ele chama de seu interesse pessoal, sua vontade natural. O pensador moral é tanto mais consciente disso quanto mais a luta contra a paixão é o conteúdo da sua vida própria vida moral. Mas ele acaba compreendendo que não basta lutar em si mesmo e consigo mesmo, se quer (e é preciso destacar este se quer) que a moral atue no mundo. (WEIL, 1990, p. 58) Não basta o pensador consciente identificar o mal e agir sobre ele, para que ele se transforme em bem, é necessário ter como missão fazer com que todo ser consciente seja tocado pelo seu discurso com uma ação coerente que vai fazer o homem ser capaz de ser educado. “Com efeito, o único plano sobre o qual a educação pode e deve ser considerado como problema de nosso tempo é a moral” (PERINE, 2004, p. 46). O problema da falta de moral, não tem sido levado em conta pelos planos educacionais de nosso tempo. Esses não têm levado em consideração que a educação precisa fazer do homem um ser moral domesticando o animal que existe dentro dele, transformando-o em um ser razoável. Weil não concebe uma Moral Reflexiva, segundo ele só o conceito de Moral reflexiva é insuficiente para o filósofo que quer conhecer e compreender as realidades históricas do homem. O objetivo do filósofo é superar a violência por meio do discurso que dever ser compreendido até mesmo o discurso violento tem que ser compreendido. Para o filósofo não é suficiente apenas compreender, ele tem que buscar o sentido de todos os discursos e de todas as coisas. “Porém, do ponto de vista da filosofia, basta olhar mais de perto esses discursos “esclarecidos” para ver que seus autores falam, inevitavelmente, do bem da comunidade, das relações convenientes entre os homens” (WEIL, 1990, p. 59). A Moral existe enquanto uma ação mediadora para as relações dos homens, a Moral não 265 adaleuton de queiroz soares Marly CarvalHo soares é algo permanente ela pode ser substituída por outras formas de Moral, conforme as necessidades das contingências históricas. Em sua luta contra o mal o homem deve se preparar para viver o bem, ele vai estar na comunidade eternamente vivendo um movimento de um polo a outro, do mal ao bem. O mal que constantemente tem que ser transformado em bem e daí nasce à questão “o homem é moral porque é imoral, ele possui a consciência do mal porque possui aquela do bem” (PERINE, 1987, pp. 240-241). Mas o homem moral opta pela moral e realiza uma vida voltada para a moral negando a violência, e nesse momento aparece a figura do filósofo que faz a opção pela razoabilidade e a função do filósofo é fazer com que todos façam a opção pela razoabilidade, para que todos os homens venham a ser filósofos, homens que negam a violência, ou seja, que estão preparados para viver o discurso razoável. É verdade, enfim que o homem violento (empírico) não ouve a voz da razão por puro amor ao bem – se o fizesse, ele não seria homem violento – contudo, a voz da razão não é um flatus vocis, pois o homem que vive na violência pode conhecê-la, erguer-se contra ela e combatê-la. (WEIL, 1990, p. 60). É bem verdade que o homem poderia ser só violento, mas como vimos ele se revolta razoavelmente contra a violência na medida em que está aberto para uma reflexão moral. Nesse momento, que o homem procura negar o que nele é violento para se tornar um indivíduo razoável é onde ele faz uma tomada de atitude em sua vida que se dá na realidade histórica. O mundo não compreendido torna-se um mundo sem sentido, o mundo que não é compreendido perecerá em uma violência que engole tudo que encontra pela frente – assim como uma onda gigante – é por isso que o homem não pode abandonar a filosofia e se voltar só para violência por que assim o homem estaria negando a filosofia, sendo assim estaria negando a si mesmo. O filósofo tem a missão de enfrentar a violência de um mundo não compreendido, ele como o homem da reflexão e do sentido que vai ter condições de compreender a violência do mundo sem sentido e sem compreensão. Não se pode negar que o filósofo tem de enfrentar a violência, mas ele ainda não é o sábio; poderá ser em vários momentos, mas nem 266 Educação e instrução do homem agente sempre, pois também nele permanecem restos da natureza. Ele vive em constante alerta e disputa contra esse ser animal que também é ele. Não pode esquecer sua originalidade: homem filósofo, violento. E esse ser violento sempre o impedirá de ser um sábio, porem “ele decide morrer antes que sacrificar a razão”. (SOARES, 1998, p. 31) O homem filósofo deve superar suas aspirações naturais na busca de se tornar sábio, esse tem de retirar de dentro de si a natureza violenta para se tornar sábio. Todo homem sábio é filósofo, mas nem todo filósofo é sábio. E como sábio o homem deve educar todos os indivíduos da comunidade para que esses também venham a ser sábios. Aquele que é sábio consegue controlar a violência natural que existe no homem, sabe transformar o mal em bem. “É o bem que o homem moral quer realizar na história, uma vez que ele aceito as condições da ação positiva, mas os meios para o bem não procedem só do bem” (PERINE, 1994, p. 47). O bem é também proveniente do mal, sem a existência dele não existira a possibilidade do bem – assim como não existiria luz sem escuridão – um só é possível por intermédio do outro. Uma moral desvinculada da vida seria moralismo, várias ideias sobre moral, mas sem nem uma ligação com a vida dos homens em suas comunidades de agentes, sem fazer parte da história do homem. A violência não é apenas física, ela é também uma violência do homem contra o próprio homem que não controla sua natureza e se revolta contra suas paixões, essas o conduz a violência e ele precisa ser educado para vencer a violência dele contra ele mesmo controlando suas paixões. Dado que a individualidade define-se pela paixão, o único meio de educá-lo é a própria paixão. A medida do emprego das paixões empíricas agradáveis ou das sensações dolorosas a serviço da educação depende, por um lado, de cada caso individual, por outro, da moral da época, com seus usos e costumes. Para nós, a escolha entre as paixões é menos importante que a escolha da paixão como meio. (WEIL, 1990, p. 62) O educador deve formar o homem para fazer com que este controle suas paixões, ele deve ser conduzido para que suas ações o leve a sempre considerar o bem universal e a observação da lei universal, e que na sociedade o individuo saiba optar por uma vida com sentido, uma vida que nega 267 adaleuton de queiroz soares Marly CarvalHo soares a natureza particular para afirmar uma razoabilidade universal. “Assim a educação e a domesticação do animal no homem” (WEIL, 1990, p. 62). A domesticação do homem é diferente da domesticação – de um gato – por que diferentemente do gato o homem tem a faculdade da razão, e depois de domesticado irá agir com autonomia sem a necessidade de supervisão, enquanto que qualquer outro animal mesmo domesticado irá sempre depender de supervisão, pois nele a natureza vai sempre falar mais alto, ele não consegue sair do reino da natureza. “A educação do indivíduo humano é uma domesticação, cujo fim último é fazer do educado um educador, de si mesmo tanto quanto de todos os que têm necessidade de educação” (WEIL, 1990, p. 62). A educação faz do homem um indivíduo autônomo capaz de direcionar suas atitudes para a razoabilidade e também ajudar a outros homens a vencerem a violência natural, ele percebe que tem que agir com violência contra a violência para se torna educador e passar da idade juvenil para a idade adulta deixando a personagem de educando e assumindo sua nova personagem de homem adulto agora educador. Violência contra violência, ação sobre o passional por meio da paixão, a educação que o homem moral visa, propõe e se obriga a realizar quer que os homens se submetam por si mesmos à lei universal, fazendo com que eles se tornem educadores de si mesmos tanto quanto de todos os que precisam ser educados. Passar ao papel de educador de si mesmo é franquear propileus da moral [...](PERINE, 2004, p. 47). O início da moral é a educação, não é possível um ser moral sem que ele tenha passado por um processo de dominação do mal e da violência, “nada de humano se faz, de humano jamais se fez sem educação” (WEIL, 1990, p. 63) a educação é pra fazer o humano ser mais humano e retirar de dentro do humano o ser natural para plantar um ser racional, mas como Weil não acredita ser possível um homem inteiramente racional, ele então pensa em um homem razoável que continua não sendo inteiramente passional, mas controla a violência natural que existe dentro de si para viver em uma sociedade que negue as particularidades da lei natural e viva a lei universal. A grande problemática do moralismo abstrato segundo Weil é a problemática da luta contra a natureza que para os moralistas parecia 268 Educação e instrução do homem agente ser inferior ou menos importante que a luta contra a natureza exterior e contra o conformismo, ambas geram na vida dos homens violência. É descompensado pensar que uma natureza ou outra seria menos ou mais prejudicial, compreender a natureza nessa perspectiva de dois polos uma sendo superior a outra é ser um mal educado, “[...] a vida deve ser construída na sua totalidade” (WEIL, 1990, p. 63). O educador não pode educar só uma das naturezas do homem, ele tem que educá-lo para vencer ambas as violências. 2. Distinção entre educação e instrução No mundo contemporâneo é inegável o grande valor da instrução e não podemos negar a importância que ela tem para a vida do homem, pois é por meio dela que o indivíduo contribuir com sua comunidade ao ser inserido no mundo do trabalho, porém essa dimensão da educação não pode ser pensada como a única ou mais importante instância de educação, mas o homem tem que ser educado para vencer todas as paixões e para isso antes de tudo ele tem que aprender a ser moral. Pois se isso não for possível, se ele não soube viver em comunidade a sua instrução passa a ser insuficiente para sua vida na comunidade, saber viver em grupo nesse mundo é tão importante quanto domina a técnica. É certo que a instrução aqui enquanto tal possui um notável valor educativo. Ela é o meio mais fácil, mais direto, para que o indivíduo aprenda quão pouco valem suas paixões, seus desejos, suas preferências, quando se trata do que é e do que é verdadeiro: uma data histórica é o que é, a solução de uma equação é correta ou não, uma tradução é exata e elegante ou não o é. Os especialistas de uma ciência ou de uma técnica equivalem-se no ponto de partida, mas distinguem-se no final segundo o valor objetivo e verificado do seu trabalho. (WEIL, 1990, p. 64) Os conhecimentos obtidos por uma educação instrutiva vão ser bastante úteis no mundo do trabalho, mas ela não é suficiente para o homem viver na sociedade civil e ter uma objetividade universal. É a educação moral que vai mostrar para o homem o caratê universal da lei das normas morais que conduz o homem a uma vida boa na comunidade. 269 adaleuton de queiroz soares Marly CarvalHo soares O homem segundo Weil não pode ser só adestrado a elaborar e a cumprir tarefas, ele tem que ter a oportunidade de ser instruído por que a instrução da mais oportunidade de liberdade na medida que ela faz do homem um ser que contribui com sua comunidade. “A instrução está a serviço da educação, esta não pode nunca ser a serva daquela” (WEIL, 1990, p. 64) o homem não pode ser privado de ser instruído e nem privado de ser educado moralmente. Ele não pode vencer o discurso violento, estando privado de instrução estará privado do trabalho e o homem sem trabalho está incapacitado de suprir suas necessidades materiais e tendo o seu direito natural de ter violado o homem se torna violento. A sociedade moderna vem dando cada vez mais valor ao adestramento do homem. Vivemos a era das especializações, onde os indivíduos não são mais educados para conhecer o todo o importante para nossa sociedade e que o homem conheça os pedaços, e essa especialização vai desde um operário da fábrica que só tem conhecimento de como produzir uma parte de um determinado produto, como também nas áreas mais especializadas como, por exemplo, na academia dificilmente encontramos um professor universitário que domine todo o conhecimento de sua área. Mas não podemos negar a importância dos conhecimentos técnicos “Todos esses conhecimentos são indispensáveis para quem quer participar do trabalho social de maneira útil, a única exigência é aprender o método é essa aptidão que torna o homem instruído” (SOARES, 2008, p. 187). O homem só possa ser educado por meio da vivencia dentro de sua comunidade com o homem agente onde ele que aprende distinguir as coisas e os conceitos. Uma opinião tão injusta quanto sem fundamento (e que reserva a melhor parte para os seus autores) consiste em supor que os homens são aptos só para serem adestrados a determinadas funções, como um pedaço de aço que pode ser forjado como roda ou como alavanca, mas não para desempenhar ora uma função, ora outra, sem perder a sua identidade. (WEIL, 1990, p. 64) Os programas educacionais da modernidade desde as nações menos desenvolvidas tecnicamente e até as mais desenvolvidas percebemos, que todas elas mantêm programas que estão mais preocupados em implantar no homem a educação instrutiva, por que nossa visão de progres- 270 Educação e instrução do homem agente so está intimamente ligada com a produção técnica. O reflexo disso está na ideia de desenvolvimento um pais é considerado desenvolvido quando ele é tecnicamente bem estruturado e quando ele tem a maior quantidade de homens tecnicamente bem formados ou bem instruídos. Segundo (WEIL, 1957, p. 49 apud SOARES, 2008, p. 187) ao comentar afirma “[...] no século XIX e XVIII – a preocupação era mais com a “educação popular” – uma vez que partiam do pressuposto que os iletrados seriam sempre pessoas violentas, não saberiam pensar nem discernir seus próprios interesses”. Sem educação esses indivíduos não teriam jamais a oportunidade de se tornarem membros integrantes da vida moderna estariam eternamente condenados a viverem no reino da violência. A instrução passa a ser o meio mais importante para o desenvolvimento e para o progresso e as pessoas não têm ascensão em suas vidas por falta da instrução, “[...] as pessoas são pobres porque lhes falta instrução sobre os meios e recursos de uma sociedade moderna, industrial e racional e isto lhes falta porque são pobres” (WEIL, 1982, p. 300 apud SOARES, 2008, p. 188). No entanto sabemos que muitas pessoas em suas comunidades estão à margem do progresso técnico e ao longo do tempo elas vêm pagando o preço, por não estarem tecnicamente instruídas permanecendo em uma miséria continua, e com isso provocando violência na vida das pessoas, pois sem um grau mínimo de instrução a pessoa não atinge o seu direito de ter o mínimo para viver sua liberdade. A instrução sem uma educação moral ou a falta de instrução torna-se causadora de violência: a instrução que fez do homem um ser técnico faz com que ele perca o sentido de seu trabalho, passando a si vê somente como um operador adestrado e não reconhece seu trabalho como contribuição para a comunidade. Por outro lado, àquele que não tem instrução se revolta por não ter tido a oportunidade de se beneficiar dos meios técnicos que a instrução proporciona. Isso leva o homem ao aborrecimento e a uma falta de sentido sem precedentes na história da humanidade, ele passa a perder aptidão pelas relações, vida em comunidade, religião e por uma vida moral. [...] a violência tornou-se o retrato da humanidade; e o que é mais triste é que o retrato da humanidade; e o que é mais triste é que o aborrecimento engendra também a violência que se revolta contra o próprio sujeito: o suicídio, a droga, a promiscuidade sexual e es- 271 adaleuton de queiroz soares Marly CarvalHo soares tranhas regiões que alimentam mais e mais o aborrecimento numa ascendência de nausear-se de si e até da própria morte. A questão é angustiante, porém é um fato. (SOARES, 2008, p. 190) A sociedade hoje vive o grande problema da falta de sentido. Um dos grandes empreendimentos da filosofia de Weil era compreender o sentido da vida do homem, embora o que observamos atualmente quando o indivíduo perde o sentido de sua vida e se torna violento, a sociedade o reprime o indivíduo e mostra o mal que ele causa a sociedade. Isso não tem sido suficiente para que esse homem violento capte o sentido de sua vida e que supere toda a violência que há nele para assim ter uma vida harmoniosa e feliz com sua comunidade. O limite da instrução quando apresentada como única forma de educação é ela que diz como o homem deve executar funções no mundo do trabalho, mas por outro lado não prepara o homem para viver na sociedade civil e dessa forma o homem perde o referencial, ficando em meio a uma liberdade fictícia, porque a instrumentalização o faz perder a consciência de si ele fica sem o bem mais precioso do homem que é sua liberdade. 3. O desafio de educar o homem integralmente A educação deve preparar o homem para viver bem em sua comunidade optando por atitudes corretas em suas relações, não basta só conhecer a técnica, o homem tem que ser educado para viver a virtude1 em que ele deve “estabelecer um acordo razoável consigo mesmo” (WEIL, 1990, p. 65). Para viver bem em sua comunidade o homem deve saber controlar sua natureza violenta e viver um agir coerente preenchido de sentido. Weil (1990, p. 65) afirma que “Ora, a educação visa precisamente à aptidão do indivíduo para agir convenientemente na comunidade histórica”. A virtude não é algo que este em um mundo reflexivo que só exista no mundo do conceito, ela se manifesta no agir efetivo do homem, em suas relações com sua comunidade agente, vai ser esse agir virtuoso praticado nas relações que vai definir se o indivíduo teve ou não uma educação valorosa. 1 Para Weil o termo virtude é perigoso por que a história ocidental carrego-o de um significado que quando se fala de virtude se pensa logo em que o individuo faz, mas em suas intenções, o que para ele não condiz com o que o terno dever realmente representa que é um agir coerente do homem. 272 Educação e instrução do homem agente A educação não pode ser vista como algo farisaico e para que isso não aconteça ela não pode ficar só no formalismo categórico, ela tem que se realizar na vida dos indivíduos da comunidade agente. O homem que viver no mundo da instrução também deve viver uma educação efetiva na sua forma de agir, e é isso que um indivíduo educado tem que ensinar para seus educandos, porque o homem se julga é julgado pelo valor de suas ações e é o seu agir correto perante a sua comunidade que o faz um homem moral. Por exemplo, não procuraríamos um professor de filosofia que não dominasse e que não ensinasse filosofia ficasse só na vontade ou no querer ensinar e não atingisse ao seu objetivo que é ensinar filosofia aos seus alunos Logo os seus alunos procurariam outro para alcançarem esse objetivo, ele poderia até ser admirado como homem moral, mas não como professor de filosofia. Assim é o homem, se ele não vive e não age educadamente, sua educação será farisaica, pois ele não estará agindo conforme ele foi educado. Não é a imposição de modos de comportamentos e costumes que faz do homem um ser moralmente educado. Reprovar a educação por não impor a moral ao individuo, por não impor o que, tratando-se de liberdade, só se pode propor é desconhecer a educação e a moral. O que a educação oferece ao individuo, impondo-lhes costumes, modos de comportar-se, toda uma maneira de viver com os outros, é o fato de conduzi-lo ao inicio de uma reflexão moral pessoal sobre a autoridade exclusiva da razão. A educação não é, certamente, o quer há de mais elevado; mas não se vê como seria possível, no plano da formação do homem, chegar ao cume partir da base. (WEIL, 1990, p. 66) A educação é uma proposta, o homem deve fazer uma escolha livre pela educação, seria contraditório se ela fosse uma imposição já que a mesma é um meio para o homem ser livre, não seria coerente uma educação imposta. Em matéria de educação tudo tem quer ser uma proposta, tanto a educação instrutiva como a educação moral. Cabe ao homem optar livremente pela moral, sabemos que o homem é um ser essencialmente violento, mas sua liberdade não pode sob hipótese alguma ser violada. “[...] o problema da educação à liberdade vem em primeiro plano e este problema já foi detectado como a questão central da filosofia grega” (SOARES, 2008, p. 192). 273 adaleuton de queiroz soares Marly CarvalHo soares A filosofia antiga na figura de Sócrates já primava pela liberdade tanto que ele não ensinava nada, deixava seus discípulos caminharem livremente em direção a sabedoria. Isso era uma escolha livre sem interferências exteriores. Sócrates é o que melhor representa a educação para a liberdade. Posteriormente Platão e Aristóteles conduzem seu pensamento colocando o homem como um ser para a liberdade. Weil coloca que desde Hegel a virtude é apresentada como honestidade, mas segundo ele só isso não basta para um ideal de educação integral, o homem deve toma atitudes mais amplas para ser considerado educado. A honestidade constitui uma parte da educação, no entanto só a honestidade não basta para que o homem seja educado, por exemplo, posso honrar com os meus compromissos e não ser instruído para contribuir com a comunidade e com isso ser mesquinho e imoral nas minhas relações. Nesse ponto a educação deve expulsar do homem dos seus polos extremos. A atitude correta que a educação oferece é a que faz o individuo agir no seu lugar como nele convém. Se o indivíduo é educado, a ação não será um problema moral para a sua reflexão: sua educação mostra-se no fato de agir sem pôr-se questões além das que se referem à técnica da execução. O que se chama conflito moral não se apresenta nesse plano (se é que alguma vez se apresenta: o homem da moral da reflexão está em conflito com o seu próprio caráter empírico, mas é um conflito do ser i-moral que, graças à moral, quer chegar ao acordo consigo mesmo): o homem educado age convenientemente. (WEIL, 1990, p. 67) O homem deve ser conduzido livremente sem conflito entre a natureza e a razão. Ele deve aprender a controlar sua natureza por meio da razão, vencendo as paixões de uma maneira que não exista conflito entre as dimensões da educação. Se isso acontecer implicará que o homem não está inteiramente educado, e ainda permanece no plano das paixões, se está havendo conflito entre deveres e valores é porque a violência natural ainda não foi vencida dentro do homem e a educação não é uma realidade efetiva em sua vida. Segundo Weil quando o homem vive um conflito entre deveres e valores, “ou o mundo no qual nasce tal sentimento está fora dos gozos e não conhece mais nenhuma educação, ou o indivíduo que sofre esse conflito não está educado” (WEIL, 1990, p. 67). Para o autor a primeira situação é 274 Educação e instrução do homem agente compreendida na política e a segunda é a revolta contra a universalidade da educação, que vai fazer com que o homem anule sua animalidade e viva que há nele. Nesse momento se manifesta no homem a revolta, que faz aflorar no homem o instinto que tenta sobrepor à razão. O homem deve tomar o cuidado de não cair nas garras da revolta ao ponto de dar mais valor ao homem criminoso do que aquele que tem uma vida correta e cumpre seus deveres junto à comunidade agente. É nesse momento que o educador não pode esquecer que ele tem que educar o homem para o mesmo seja razoável. Jamais ele pode colocar um criminoso no lugar de um homem nobre, isso seria negar toda a razoabilidade do homem o que faria dele um ser natural e violento e, portanto, isso seria o fracasso da educação, a violência se sobrepondo a discussão e declarando a morte violenta do filósofo. É certo que na vida cotidiana o homem carrega consigo grandes qualidades e grandes defeitos e ambos podem conviver juntos, contudo defeitos não vão deixar de serem defeitos, e vale “lembrar ao educador que se trata de educar o homem violento à razão, e que há razão se não para o homem violento” (WEIL, 1990, pp. 68-69), se o homem fosse perfeito e passional não caberia a necessidade da educação só existe educação porque antes existe violência no homem para ser domada, para que ele deixe de ser do particular para se tornar universal. Para a universalidade; mostra, portanto, que a educação não pode ser uniforme, mas exige a vontade que de compreender o indivíduo na sua individualidade determinada; mostra enfim, que um certo tipo de educador pode fracassar na educação de um certo tipo de educando. É verdade que a violência é um dado, ela não é nem para ser admirada nem provocada, mas transformada, e o problema é sempre o da universalização do indivíduo. (WEIL, 1990, p. 69) Em meio a uma educação que não atenda o homem integralmente e permaneça apenas no moralismo reflexivo, pode fazer com que o homem se revolte contra esse tipo de educação e isso é positivo na medida em que faz o indivíduo buscar forças para alcançar uma educação que o conduza a universalização de seus talentos. Esses ao serem colocados em benefício da comunidade o fará um homem reconhecido, mas o homem só encontrará a felicidade em sua comunidade por meio de seu esforço 275 adaleuton de queiroz soares Marly CarvalHo soares por alcançá-la. “A educação deve ser real, isto é, encarar a individualidade da pessoa. Caso contrário pode ocultar talentos reais em prejuízo do indivíduo” (SOARES, 2008, p. 198) que em seguida se tornará prejuízo para toda a comunidade. A educação não pode ser em sua totalidade uma moral da reflexão, não podemos esquecer que ela é o fundamento da educação, tirar a moral da reflexão da educação é deixá-la sem vida, em um esvaziamento de sentido é fazer uma educação inconsistente se o educador esquecer esse fundamento ele se tornará um “pedante que transmite um saber morto, ou o instrutor que inculca aptidões e atitudes parciais e particulares” (WEIL, 1990, p. 70). Dessa forma o educador perde sua razão de ser, pois deixa de ser um personagem da razão e passa a não cumprir seu papel na comunidade, tornando-se violento. É fácil, rápido e prático só despejar informações sem sentido nas cabeças de crianças e adultos, se preocupando apenas com a utilidade prática e técnica que essas informações têm na vida dos indivíduos, sem buscar um sentido mais profundo que o faça refletir sobre o mundo, sobre sua vida e sobre suas relações em sua comunidade. Vale lembrar que o universo humano não é apenas técnico utilitarista também faz parte de nosso ser à reflexão sobre a nossa capacidade racional de vê o mundo como uma possibilidade transcendente as outras atitudes que não seja só a técnica. A “educação, portanto, que pretende formar homens capazes de decidir e agir razoavelmente no seu lugar no mundo, vale dizer, segundo as exigências do universal na situação concreta, sabendo o que e porque o fazem” (WEIL, 1990, pp. 70-71) e assim a educação deve fazer o homem compreender a sua realidade, aquilo que lhe diz respeito, em sua sociedade cumprindo o seu papel universal. O educador não pode se satisfazer somente em preparar o homem para o mundo do trabalho. O homem dever ser educado para também se tornar um educador, primeiro de si mesmo posteriormente dos outros, e isso não é possível se o homem for apenas domesticado por meio da repressão e pela ameaça. Para que isso não aconteça é necessário que o educador reflita sobre o seu papel. 276 Só o educador que pensa o seu papel, em vez de apenas desempenhá-lo imitando os que o compreenderam, poderá evitar erros que tornariam impossível o cumprimento de sua tarefa, embora não Educação e instrução do homem agente seja suficiente evitar esses erros para que a tarefa tenha sucesso. (WEIL, 1999, pp. 71-72) É bem verdade que só isso não é suficiente para o educador tenha sucesso. E não fazer da educação algo mecânico programático faz com que a tarefa de educar seja mais eficiente na medida que ela estará formando o homem em todas as suas dimensões. Considerações Finais O homem educado influi sobre os outros, na medida em que ele já tem um discurso coerente e isso traz uma influência positiva em sua comunidade e na relação com os outros indivíduos. Assim a realidade histórica passa a ser modificada pelo discurso do homem educado. Assim o objetivo da educação é alcançado, que é fazer o homem observar as leis universais da comunidade, visando à liberdade razoável, instruindo o homem a uma profissão, e tendo essas realidades educacionais efetivada em sua vida o homem desempenha seu papel na comunidade livremente. Referências Obras do autor WEIL, E. Filosofia Moral. São Paulo: Editoras Realizações, 2011. ______. Filosofia Política. São Paulo: Edições Loyola, 1990. Obras sobre o autor ALVES, M. G. F. B. Violência e educação. Dissertação (Mestrado em Filosofia da Educação Faculdade de Letras da universidade do porto). Porto, 1999. ASSIS, A. Educação e moral de Eric Weil. Tese (Doutorado em Filosofia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP). São Paulo, 2011. 277 adaleuton de queiroz soares Marly CarvalHo soares BERNARDO, L. M. A. V. Moral, Educação e Sentido: uma leitura da Philosophie Morale. Eric Weil, N. LVII. Lisboa, 2011, pp. 3-40. CAMARGO, S. S. Breves considerações sobre a ideia de Primeira Filosofia na Lógica da Filosofia de Eric Weil. v.2. In: Revista Poros. Uberlândia, 2010, pp. 37-48. COSTESKI, E. Atitude, violência e estado mundial democrático, sobre a filosofia de Eric Weil. Fortaleza: Editora UNISINOS e UFC, 2009. PERINE, M. Eric Weil e a compreensão do nosso tempo. São Paulo: Editora Loyola, 2004. ______. Filosofia e Violência: Sentido e intenção da Filosofia de Éric Weil. São Paulo: Loyola, 1987. ROBINET, J. F. Tempo no pensamento. São Paulo: Editora Paulus, 2004. SOARES, M. C. O filósofo e o Político. São Paulo: Editora Loyola, 1998. ______. O papel do Filósofo como Educador. v.5 N. 9. In: Revista Kalagatos. Fortaleza, 2008, pp. 183-206. 278 Educação e instrução na filosofia de Éric Weil Aparecido de Assis (UNEMAT) Introdução Aqui iremos tratar de dois aspectos fundamentais sobre a educação e a instrução. Em sua essência uma tem conexão com a outra. Por outro lado, deve-se destacar que a educação proposta por Weil, deve ir além do que se convencionou a chamar de instrução. A educação não deve se resumir tão somente na instrução. Ela precisa, acima de tudo, trabalhar no sentido que o homem se torne um sujeito moral. Um sujeito capaz de ser educador de si mesmo, capaz de vencer o animal que se encontra nele em favor da humanidade. Já a instrução, não deixa de ter sua importância para o domínio da técnica e do conhecimento de um modo geral. No entanto, a educação não deve se restringir apenas na instrução. Para o desenvolvimento desta reflexão faz-se o seguinte questionamento: Qual a compreensão de Éric Weil sobre educação e instrução, e que importância elas têm para a formação humana? Educação e instrução Para Weil, inicialmente, é necessário distinguir entre educação e instrução. Ele afirma que “é certo que a instrução enquanto tal possui um notável valor educativo” (WEIL, 1990, pp. 63-64). Ela pode ser considerada o meio mais fácil e mais direto para o indivíduo reconhecer o pouco valor de suas paixões. Porém, “é preciso notar que esse valor educativo da instrução não consiste na posse de conhecimentos úteis, mas em subverter o caráter à objetividade e à universalidade do juízo” (WEIL, 1990, p. 64). De acordo com Camargo (2000), Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 279-287, 2017. 279 aPareCido de assis a instrução há de fornecer os meios da liberdade, mas não permite colocar a questão do fim último da educação – do uso sensato da liberdade – que é o de dar a virtude ao educando. Contudo, a educação tem a empresa de evidenciar a importância do pensar, do uso da liberdade razoável, do refletir acerca do sentido. Isso significa também que a educação deve levar os homens a construírem por eles mesmos os seus próprios pensamentos [...] (p. 91). A instrução trabalha a habilidade do conhecimento do aluno, que não deixa de ser importante para a sua vida e para a sociedade. Contudo, não basta ao aluno apenas a habilidade do conhecimento. Ele precisa aprender a conviver em sociedade, respeitar as leis, ser honesto e responsável, noutros termos, ser moral. Mas qual o valor que a sociedade atribui para uma educação moral e acima de tudo humanista? Normalmente, a sociedade apresenta uma visão utilitarista, quando valoriza o ser humano apenas pela sua capacidade de cumprimento de uma determinada função. Nesse sentido, a formação de especialistas e técnicos tem sua importância porque estes contribuem para o desenvolvimento científico e tecnológico da própria sociedade. Mas será que uma educação que tem como fim a formação de especialistas e técnicos é o melhor para a sociedade? Como ficam as relações humanas? Para Weil, os conhecimentos científicos e técnicos dos especialistas “são indispensáveis para quem quer participar do trabalho social de maneira útil” (WEIL, 1990, p. 64). A educação, com base apenas nos conhecimentos científicos e técnicos, tem como função “formar homens capazes de orientar e de discernir o verdadeiro do falso, valorizar mais a qualidade da sua obra do que a sua utilidade, julgar os homens segundo o seu valor e não segundo o seu encanto” (WEIL, 1990, p. 64). Weil não despreza a importância da instrução. Ela é importante, mas não suficiente quando se trata das relações humanas na sociedade. Nesse sentido, a educação pode ter como base a instrução, mas ela necessita vir aliada à formação moral do ser humano. Para Weil, há uma opinião injusta e sem fundamento que consiste em supor que os homens são aptos e treinados para determinadas funções, como um pedaço de aço que pode ser forjado como toda roda ou como alavanca, mas não para desempenhar ora uma função ora outra, sem perder a sua identidade (WEIL, 1990, p. 64). Neste caso, a instrução 280 Educação e instrução na filosofia de Éric Weil pode ter apenas um sentido utilitarista na formação de técnicos para uma determinada função. E isso, apesar de ter um lado importante para a sociedade, por outro lado pode formar indivíduos escravos, incapazes de pensar por si mesmos e incapazes de agir como seres razoáveis em liberdade. Esses indivíduos escravos não são livres, porque se encontram presos a uma obediência passiva, obediência aos seus superiores sem o uso do senso crítico, tornando-se inúteis no sentido humano. Weil considera que a instrução necessita seguir outro caminho. Ela deve estar a serviço da educação e nunca ser a serva daquela (WEIL, 1990, p. 64). Nesse entendimento, a instrução assume um aspecto positivo e fundamental para a educação. A instrução deixa de ser entendida como aquela que vê o homem como um objeto. Ao contrário, o educando passa a ser visto como “sujeito do processo educativo” e nunca como objeto. Portanto, na visão de Weil, a instrução deve assumir um lado positivo e estar a serviço da educação. Num texto em que Éric Weil trata da “L´éducation en tant que problème de notre temps”1, ele dedica ao tema Educação e Instrução. Há uma questão fundamental: “De que se trata em educação?” (WEIL, 1982, p. 298). Esta questão é muito relevante, porque procura saber de que a educação se ocupa ou deve se ocupar. Para Weil, o século XIX tinha uma resposta que consistia em considerar a educação com a tarefa de instruir o educando. Nos países como a Inglaterra, a França e a Alemanha, o ensinamento elementar que era a leitura, a escrita e o aprender a contar já eram considerados como suficientes. Entretanto, o ideal da educação pela instrução não foi uma realização para grande parte da humanidade contemporânea. Segundo Weil, um grande número de europeus dos séculos XVIII e XIX, não teve acesso à instrução. Em contrapartida, havia a crença de que os iletrados seriam sempre seres violentos e que não poderiam se tornar membros úteis e prósperos de uma sociedade moderna, industrial e próspera. Assim, os trabalhadores, os camponeses, as classes médias e superiores, achavam que ninguém podia resistir ao progresso. Eles pensavam que a mudança era inevitável. Afirma Weil que “todos, do alto a baixo da 1 Cf. WEIL, DEC, pp. 296-309. 281 aPareCido de assis escala, deviam colaborar ao grande empreendimento que tinha nome: progresso; e cada um, nesse sentido, devia se considerar como um trabalhador. A instrução era o meio, o progresso, o fim” (WEIL, 1982, p. 299). Segundo Patrice Canivez, a sociedade moderna caracteriza-se pelo fato de que nela o trabalho é progressivo. Não se trata mais apenas de defender-se contra a natureza, mas de dominá-la com a ajuda de técnicas em constante evolução. O modo de divisão das tarefas em constante evolução. O modo de divisão das tarefas é consciente e racionalmente organizado, em vista de uma eficácia crescente. Ao mesmo tempo, essa sociedade considera o trabalho e o progresso como valores centrais (CANIVEZ, 1991, p. 64). Ainda segundo Canivez, essas sociedades estão em situação de competição ‘econômica’. Esta as leva a racionalizar sempre mais a organização da produção e a favorecer a evolução das técnicas. Essa busca de eficácia crescente, sob a pressão da competição, tem duas consequências. A primeira é que as sociedades modernas têm um interesse objetivo no crescimento do nível de instrução e de educação dos indivíduos. Donde o princípio de igualdade de oportunidades na aquisição do saber e das competências: cada indivíduo deve poder prosseguir ao máximo seus estudos. A segunda é que elas estão igualmente interessadas na mobilidade social: a exploração máxima dos recursos humanos exige que os indivíduos mais competentes cheguem às funções que eles estão aptos a desempenhar. Cada um deve, pois, poder ocupar a função que deseja, contanto que prove sua capacidade (CANIVEZ, 1991, p. 65). Tudo devia ter como fim o desenvolvimento do progresso. A instrução fazia parte do ensino escolar e superior que tinha como meta contribuir com o conhecimento científico e técnico para o desenvolvimento do progresso. Isso colocava a instrução como “uma das tarefas essenciais do nosso tempo” (WEIL, 1982, p. 300). Essenciais, porque, na visão do progresso, as pessoas são pobres, porque lhes falta à instrução como meio de progredirem em direção a uma sociedade moderna, industrial e racional. Nas comunidades ocidentais, tudo o que contribuiu para o progresso nas últimas três ou quatro gerações, devia servir de modelo para o res- 282 Educação e instrução na filosofia de Éric Weil tante da humanidade. As comunidades atrasadas queriam se beneficiar dos frutos da tecnologia moderna para “edificar uma indústria, formar os trabalhadores, os engenheiros, os professores de ciências, os administradores, os funcionários” (WEIL, 1982, p. 300). Todos, sem exceção, queriam tirar proveito dos frutos do progresso, mas nem todos conseguiam ter acesso a ele. Apenas as sociedades mais avançadas da Europa conseguiram tirar melhor vantagem sobre o progresso da ciência e da técnica. Para Weil, as nações que conseguiram colocar a educação como prioridade, melhorando e aperfeiçoando o sistema de instrução, deram um passo maior em direção ao progresso. Isso leva a crer que nem todas as nações conseguiram e ainda não conseguem progredir. De qualquer modo, as civilizações modernas de todo o mundo tendem a assumir o caminho do progresso. Mas é bem sabido que toda essa comodidade da vida moderna ainda está restrita às nações mais avançadas, enquanto as nações mais pobres não usufruem dessa comodidade trazida pelo próprio progresso. Para Weil, a educação deve ter como único fim “dar ao homem a oportunidade de conduzir uma vida que, precisamente, o satisfaça enquanto ser razoável” (WEIL, 1982, p. 304). A busca pela satisfação leva em conta que ninguém impeça o outro de fazer o mesmo. Se a educação é uma questão de oportunidade, como prevê o texto, “bem poucos parecem ter a oportunidade de aproveitá-la” (WEIL, 1982, p. 304). A instrução desde então se tornou necessária porque “sem ela não haveria o material de construção, nem o tempo, nem a vontade de construir” (WEIL, 1982, p. 305). A instrução ensina como desenvolver o trabalho, mas não indica como será a obra. A instrução tem o papel de ensinar, mas não dá tudo pronto ao educando. “Seria ‘natural’ dizer que o remédio consiste em instruir os homens no uso de sua liberdade” (WEIL, 1982, p. 306). A instrução, no sentido positivo, tem o papel de ensinar o educando a pensar por sua própria conta, porque ele terá que construir seu próprio pensamento. Com isso, o educando verá que a educação possui um sentido para ele e que ela não é vista apenas como um valor comercializável (WEIL, 1982, p. 307). Weil tinha a convicção de que a educação poderia tornar a sociedade mais eficiente extirpando dela a insegurança fundamental e a violência oculta que a caracterizam. A educação, na perspectiva da instrução, teria assim um importante papel de reduzir as tensões sociais e internacionais. 283 aPareCido de assis Com isso, a instrução torna-se necessária “porque a sociedade deve progredir e oferecer a mais pessoas a oportunidade de conquistar a liberdade e de fazer uso dela” (WEIL, 1982, p. 307). E esse progresso do qual Weil fala deve ser estendido a todas as sociedades sem exceção. A instrução não deixa de ser o meio para o desenvolvimento do progresso, no entanto, ela deve primar por uma educação moral e humana. Ela precisa ter os valores humanos como prioridade em que o homem deixa de ser objeto e passa a ser sujeito no processo de transformação social. Assim, a instrução deve carregar junto de si os valores morais e humanos, privando o homem da violência e transformando-o em ser razoável. A educação deve estar centrada no homem. Ela deve ter como base de formação o ser humano inserido numa comunidade. A educação precisa trabalhar o indivíduo na perspectiva de socialização, de convivência com os demais. Ela não só leva em conta os desejos históricos da comunidade, mas mantêm vivos esses desejos (WEIL, 1990, p. 106) e deve ter a importante tarefa de conduzir o indivíduo à razão e ao universal razoável. Concluindo, Weil considera a educação como algo radicalmente diferente da instrução. A educação não seria positiva, mas sim negativa. Ela não mostra onde reside o sentido, mas onde o sentido não pode estar. Ela poderia tornar a sociedade moderna mais eficiente extirpando a insegurança e a violência oculta que a caracterizam. Ela poderia reduzir as tensões sociais e internacionais (WEIL, 1982, p. 307). Mas ninguém acredita que isso possa ser feito sem a instrução. Segundo Weil em si mesma a instrução é destituída de valor e a educação é possível sem ela. No entanto, a instrução torna-se necessária porque a sociedade deve progredir e oferecer a muita gente a oportunidade de aceitar a liberdade e fazer uso da liberdade. Só a instrução pode dar a experiência da verdade objetiva, o respeito à universalidade dos direitos, dos deveres e dos valores, a modéstia intelectual [...] (WEIL, 1982, p. 307). A instrução e o progresso material são condições indispensáveis (WEIL, 1982, p. 308). O perigo não é iminente, desde quando o progresso não nivelou as diferenças existentes entre os níveis de vida das comunidades avançadas e atrasadas, desde quando as tarefas urgentes levam ao avanço técnico, da instrução positiva, da organização racional. Mas os choques e os conflitos internacionais, por impressionantes que sejam não são os perigos 284 Educação e instrução na filosofia de Éric Weil mais graves. O perigo poderia ocultar uma ameaça maior: o perigo de uma humanidade libertada da necessidade e da coação exterior, mas não preparada a dar um conteúdo à sua liberdade. Nesse sentido, não seria exagero afirmar que não há progresso mais importante, mais urgente que a da educação (WEIL, 1982, p. 309). Considerações finais Todo indivíduo humano precisa ter a consciência de que não vive sozinho, mas em comunidades. Essa consciência se torna necessária para que, na sociedade, reine o espírito solidário entre as pessoas e não o individualismo, que gera a violência. Assim, Weil propõe não apenas ao filósofo, mas a todo educador, que eles assumam a importante missão, em suas tarefas educativas, de fazer com que o educando se torne educador de si mesmo. Isto é, que o educando tenha a capacidade de pensar por si mesmo de forma autônoma, de refletir de maneira crítica sobre os problemas sociais e de ser capaz de propor soluções. No entanto, constata-se a dificuldade para que esse tipo de formação se torne realidade nos dias de hoje. Na parte que trata sobre a educação humanista, Weil insiste sobre a importância de uma educação que não se preocupe em apenas instruir o aluno, mas em fazer com que ele seja capaz de se relacionar com os demais no contexto social. A dificuldade de relacionamento humano talvez esteja em crise nos dias de hoje, justamente porque se prioriza um tipo de educação mais tecnicista, baseada na aquisição de conhecimentos, cuja única preocupação é que o aluno consiga um bom emprego e se dê bem economicamente. As escolas em grande parte, tanto a pública quanto a particular, visam mais esse tipo de educação tecnicista, porque a sociedade moderna deu muita importância ao progresso científico e tecnológico2, com o objetivo de um desenvolvimento social e econômico das cidades. Até parece que se preocupar com questões ligadas ao ser humano, e a forma como ele se relaciona no meio social, se tornou algo sem valor. Discutir os problemas morais que afetam a sociedade não faz parte da cartilha da escola 2 Para Weil, a sociedade moderna considerou o “progresso” como um fim a se atingir e a instrução como um meio. Todos, de alto a baixo da pirâmide, deveriam trabalhar pelo desenvolvimento do “progresso” (Cf. WEIL, 1982, p. 299). 285 aPareCido de assis e menos dos cursos universitários. Há uma tendência em subtrair a educação humanista do meio universitário. Tal tendência torna-se visível quando a sociedade desqualifica os estudos humanistas. Os profissionais da área humana são os menos remunerados3 e isso faz com que um grande número de estudantes procure mais os cursos de bacharelados que os de licenciaturas. Mas o que fazer? Qual o papel do educador diante de uma visão negativa da sociedade em relação aos estudos humanistas? Como trabalhar o contexto de uma educação menos técnica e mais humana? Esse é o desafio que Weil propõe como tarefa ao filósofo, de trabalhar uma educação numa perspectiva moral. A proposta de Weil é muito válida para o mundo atual. No entanto, Weil não se coloca como um pessimista que não vê solução para os problemas sociais e educacionais. Pelo contrário, ele pretende, por meio de uma educação moral, promover uma transformação na vida humana. Entretanto, ele não propõe um livro de receitas de como melhorar a vida das pessoas. Portanto, o educador não irá encontrar nele nenhum método pedagógico de como se deve ensinar. Weil se apresenta como um filósofo que quer refletir sobre a realidade humana e vê, nessa condição, a possibilidade de uma transformação na consciência humana. Para ele, é necessário que o homem compreenda que sua escolha pelo razoável é o melhor caminho. Mas, para que essa escolha possa ser feita, é necessário que o homem seja educado, ou seja, que ele tenha acesso à educação. Esse é o primeiro passo, que todos possam ter condições de ser educado. O segundo passo é que a educação em si não esteja voltada exclusivamente para o tecnicismo, mas que tenha em seu quadro uma educação pautada nos valores da pessoa humana. Referências BARREIRA, I. de J. Pensamento educacional de Kant. Revista portuguesa de filosofia, 39 (1993) 205-218. 3 Um típico exemplo da má remuneração são a dos profissionais da educação. Quanto a isso, Weil foi bem crítico em afirmar: “Dê bons salários e vos tereis bons professores; e, que nossos dirigentes sociais e políticos precisam começar a compreender este ponto [...]” (WEIL, 1992, p. 301). 286 Educação e instrução na filosofia de Éric Weil CAMARGO, Sérgio de Siqueira. Filosofia e política em Éric Weil: Um estudo sobre a ideia de cidadania na filosofia política de Éric Weil. São Paulo: Loyola, 2014. CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? Tradução Estela dos Santos Abreu, Claudio Santoro. Campinas, SP: Papirus, 1991. (Coleção filosofar no presente). KIRSCHER, G. La philosophie d´Éric Weil. Systématicité et ouverture. Paris: PUF, 1989. PERINE, Marcelo. Filosofia e violência: Sentido e intenção da Filosofia de Eric Weil. São Paulo: Loyola, 1987. (Coleção Filosofia – 6). WEIL, E. Philosophie et réalité. Derniers essais et conférences. Paris: VRIN, 1982. WEIL, E. Filosofia Política. Tradução Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1990. (Coleção Filosofia – 12). 287 O que torna o mundo da ação tão vulnerável?1 Luís Manuel A. V. Bernardo (FCSH/NOVA-UAc) A categoria da ação é a última das categorias substantivas prevista por Eric Weil na sua Lógica da Filosofia. Ainda que, como o autor defende, todas as categorias estejam presentes em cada momento da História (LF, p. 604), há uma que, à vez, assume o protagonismo de constituir o centro discursivo que confere um sentido à existência, em função do qual as outras visões do mundo se articulam, e antecipa um tipo de sabedoria como forma da realização desse sentido (LF, p. 605). De acordo com o filósofo, cabe à ação ser o núcleo categorial da nossa época, cuja configuração histórica apresenta determinadas caraterísticas que lhe são consentâneas e nos permitem identificar uma certa atitude afim com o essencial desse programa. Essa situação significa que o nosso tempo deveria corresponder ao fim da História, idealizado pela filosofia, pela coincidência do sentido e da sabedoria, do pensamento da satisfação concebida e do sentimento da satisfação vivida, num processo de mútua presença. Sobre determinada pela consciência dos limites das outras categorias, “o que a ação quer? A satisfação do homem revoltado, isto é, a realização de um mundo tal que, nele, a revolta não apenas seja não razoável [...], mas se torne impossível, humanamente impossível...” (LF, pp. 560-561). Percebe-se, então, que esse fim deverá corresponder a um princípio: ocaso da história dominada pela violência, alvor da história de uma liberdade efectiva. Ora, sem prejuízo das muitas melhorias, esta equação não só tarda em concretizar-se, como a nossa época se afigura cada vez mais marcada por uma violência incontrolada e incontrolável. Como compreender este estado de coisas? A hipótese que pretendemos defender é a de que a ação pressupõe um conjunto de condições para a sua concretização que a tornam particularmente vulnerável quer à compreensão generalizada dos seus fins, quer à intervenção de outros discursos categoriais com as suas mundividências alternativas. Para o efeito, procuraremos reler o texto da 1 This paper/article/book had the support of CHAM (FCSH/NOVA-UAc), through the strategic projected sponsored by FCT (UID/HIS/04666/2013). 288 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 288-304, 2017. O que torna o mundo da ação tão vulnerável? Lógica da Filosofia, propondo uma interpretação que tem a expectativa de constituir um contributo para a compreensão do nosso tempo. Duas circunstâncias determinam, estruturalmente, a complexidade desta categoria/atitude, uma advinda da sua posição na Lógica da Filosofia, correspondendo à ótica do filósofo que quer assentar a respetiva coerência, a outra resultando do seu íntimo compromisso com a práxis, em virtude do qual se convoca o ponto de vista político, orientado para fazer valer, a par do discurso, a relação intrínseca com o concreto da situação, ínsita na exigência de efectuação histórica. Nesta dualidade reflecte-se, assim, a consistência profundamente dialética da ação, à vez “discurso agente” e “ação razoável”, bem como a tensão entre filosofia e política que a atravessa, obrigando constantemente à ponderação de razões oriundas dos dois campos. Por sua vez, sendo a última das categorias materiais, de acordo com a sequência lógica, pressupõe que a violência e o discurso “tenham atingido a sua forma extrema” (LF, p. 579), quer enquanto atitudes (totalitarismos, terrorismos, esclavagismos vários, individualismos extremos, etc.), quer enquanto categorias (defesa do discurso ou do silêncio, nas suas formas absolutas, como única satisfação possível para o homem): “é assim que se encontram, na ação […], todas as categorias da reflexão, juntamente com as do Absoluto e da revolta absoluta” (LF, p. 584). O que se oferece decisivo nesta inclusão, é que, se ela corresponde, de algum modo, a uma subsunção dialéctica de tipo hegeliano, uma vez que, na ação, se procura resolver as indeterminações relativas de todas as outras categorias/atitudes, essa Aufhebung assume a forma, não de uma recolecção das várias figuras categoriais precedentes ou de uma resolução superior, do ponto de vista da razão, mas de uma exigência antropológica nova: “o contentamento na liberdade” (LF, p. 591). Tal significa, desde logo, que o programa da ação deverá ser aceite por qualquer indivíduo livremente – não em virtude de uma crença, melhor ou pior fundada, numa necessidade metafísica, seja ela relativa ao divino, ao curso da história ou a um padrão apriorístico de racionalidade –, em função da própria liberdade almejada. A categoria/atitude da ação, portanto, diferencia-se de todas as outras, a este respeito, pelo modo como se relaciona com o requisito do sentido. Não é bastante que tenha sentido, por si, mas é indispensável que faça sentido para os homens, não 289 luís Manuel a. v. Bernardo só para aqueles que já equacionam a sua busca de satisfação em termos de razoabilidade, como para todos aqueles que deverão, mais tarde ou mais cedo, tendo em vista a dimensão de universalidade que lhe corresponde, vir a reconhecê-la como aquela que tanto está apta a “revelar a insuficiência do mundo […], porque esse mundo é um mundo da necessidade e da violência”, quanto “não abre um caminho para o contentamento no discurso, mas apenas pelo discurso” (LF, p. 601), deixando, por conseguinte, espaço para o sentimento e a inventividade de percursos concretos complementares. Como sintetiza Patrice Canivez, “o problema da ação é a transformação do mundo social e político de tal modo que o indivíduo nele possa procurar livremente a satisfação. Não só o mínimo de satisfação material, sem o qual não há uma vida decente, mas a satisfação de uma existência que faça sentido para ele”2. Desta feita, o que nos outros discursos categoriais se oferece como uma compreensão acabada, idealizada e resolutiva das respetivas atitudes, adquire aqui a figura de uma racionalidade aberta ao devir e ao porvir da realidade, projeção de um contentamento efectivo, que não meramente enunciado, cuja incompletude não indicia uma falha de cientificidade filosófica, como se lhe poderia imputar, a partir da conceção hegeliana, mas a compreensão de que o discurso deve concretizar-se democraticamente na situação, ou seja, deve servir as expectativas legítimas do homem, aqui e agora, sem pretender convertê-lo num mero sequaz de um absoluto pensado, de uma obra mítica ou do mundo mercantil da condição laboral. Esta abertura, porém, não é indeterminada, pois ela encontra-se orientada sistematicamente por uma finalidade imanente, sem estar dependente de fins predefinidos, nem de um fecho transcendente: “o homem não estabelece para si um fim mais elevado que sua liberdade na realidade de sua vida, que uma vida com vistas a uma realidade livre, com vistas à unidade entre discurso coerente e realidade coerente, mais elevado que uma ação consciente e razoável, livre e não arbitrária, em vista de um futuro que seja presença na liberdade do sentimento” (LF, p. 583). A finalidade da ação é, por conseguinte, a ação finalizada, isto é, a liberdade efectiva do homem, num mundo que esteja estruturado em função de um princípio formal de sensatez, não só para viabilizar a ideia 2 290 CANIVEZ, P., Weil, p. 75. O que torna o mundo da ação tão vulnerável? de uma vida com sentido, mas igualmente para possibilitar a diversidade de maneiras de coexistir sensatamente, avançadas pelas outras categorias/atitudes. Nas palavras do próprio autor: “Não se trata de encontrar um fim na realidade, mas de encontrar um fim para a realidade” (LF, p. 561). Esta é a razão profunda pela qual a categoria da ação leva diretamente à descoberta da categoria formal do sentido, a qual, dessa feita, se torna reconhecível em ação em todas as outras. A estrutura constitutiva da ação é, por conseguinte, a de uma substancialidade formal, assente em procedimentos prático-discursivos de tipo argumentativo, destinados a implementar e a validar a recondução da sabedoria, isto é, da vida idealizada como boa, à dimensão processual do sentido, ou seja, de uma vida como infinita “reconquista da espontaneidade” da linguagem, no e pelo discurso (LF, p. 598). Consequentemente, ao invés das outras categorias/atitudes materiais, para as quais a filosofia é sempre um caminho em direção a uma sabedoria substantiva, na qual se transcende, como num outro de si (objecto, moralidade, Deus, verdade, etc.), a ação preconiza a satisfação numa existência plasmada no exercício do filosofar, ou seja, uma sabedoria puramente formal: “Proposto como resultado ao homem razoável, o sentido pensado formalmente pelo homem concreto: o termo sabedoria assume, assim, um significado com relação ao qual os significados concretos sob as outras categorias se revelam como retomadas, com o carácter preciso e especial que as retomadas do sentido possuíam” (LF, pp. 614-615). A ação é a última categoria/atitude da e para a filosofia, porque nela a filosofia quer-se a si própria, de tal modo que a sabedoria que propõe à humanidade é a da liberdade proporcionada pelo filosofar, aquela que advém da coincidência entre a busca do(s) sentido(s) e a presença do sentido nessa mesma investigação. A tensão entre a filosofia e a política, que constitui, como indicámos, a dinâmica da ação, adquire, assim, uma expressão mais clara, se bem que com uma tonalidade potencialmente trágica. É que só uma filosofia política e uma política filosófica estão à altura do que é aventado pela categoria, porquanto cabe à política a realização de um mundo organizado de tal modo que não só possibilite a liberdade de procurar o sentido, mas instaure essa liberdade como o tipo da sabedoria, de qualquer sabedoria. Dessa proposição não estão, portanto, excluídas as outras conceções 291 luís Manuel a. v. Bernardo sensatas de sabedoria, ao contrário do que acontece em todas as outras categorias/atitudes, mesmo na do Absoluto, porquanto a dialética, por inclusiva, não deixa de supor a subsunção das várias figuras num saber absoluto do absoluto que é a verdade decisiva de todas elas. O que ocorre é a respetiva transição do estatuto de centros discursivos ao de retomadas, isto é, de núcleos de discursividade geradores de enunciações saturadas de sentido e de sabedoria, irredutíveis entre si, a enunciações compossíveis, porque já, em si mesmas, ultrapassadas, ainda que continuem a vigorar para os indivíduos que só conseguem compreender a novidade da ação nos termos dessas perspectivas anteriores (LF, pp. 122-123), subordinadas, agora, à unidade formal do sentido, buscado enquanto tal, e só num segundo momento, eventualmente encontrado numa dessas mundividências concretas. Em consequência, as categorias/atitudes nela incluídas acabam subsumidas nesse tipo de racionalidade, marcadamente processual, que a todas compreende porque em todas encontra um sentido para o seu agir, um pretexto, simultaneamente negativo e positivo, para a exigência da acção: “é de se esperar, portanto, que a nova atitude procure unir o discurso coerente com a condição em uma obra satisfatória para o ser finito, no risco de sua finitude […]. O problema para ela é desenvolver um discurso coerente sem se fechar, e que prometa tornar coerente a realidade, definida pela condição no que tange à situação, pela revolta no que concerne ao indivíduo” (LF, p. 560). A maior dificuldade que a ação acarreta, como se depreende, é a de fazer valer, face às outras possibilidades categoriais, o sentido, como “o esquema, para empregar o termo kantiano” (LF, p. 606) do mundo, isto é, não apenas da compreensão do mundo ou da lógica dessa compreensão, mas da própria organização histórica da coexistência social e política. Dito de outro modo, à ação cabe tornar a realidade social e política sensata, não por lhe impor um sentido material único, uma conceção determinada do mundo e um mundo estruturado em função de tal visão, mas por ordená-la, precisamente, como “um não-mundo do sentido e da presença” (LF, p. 601), retirando-lhe a violência que a aparenta a uma segunda natureza, mormente, por causa do jogo dos interesses em conflito, e substituindo-lhe o paradoxo do “interesse na realização de um mundo sem interesse” (LF, p. 601). O procedimento previsto pelas outras categorias/atitudes para a redução da violência consistia em opor-lhe a violência de uma alternativa 292 O que torna o mundo da ação tão vulnerável? resolutiva, fosse por negação, fosse por excesso. A ação, em contrapartida, reconhece o que há de profundamente violento nessa maneira de proceder, nomeadamente, para os indivíduos, que são colocados perante uma binariedade, entre a violência da realidade de que fazem parte e a violência de uma realidade que lhes é apresentada como ideal, mas carente do processo racional da sua apropriação. O que a ação percebe é que “à razão separada da vida se opõe a vida que recusa a razão” (LF, p. 559), pelo que a única solução efectiva é incorporar uma lógica de racionalidade no trânsito da existência humana. A sua maneira peculiar de lidar com a violência não é, por conseguinte, como a sua designação leva a supor, agonística, nem se fundamenta na prática instituidora de uma utopia da não-violência, mas consiste na construção de um mundo no qual a violência, enquanto tal, deixe de fazer sentido. Como explicita Canivez: “Não se trata portanto de tornar os povos felizes pois um tal empreendimento anula a liberdade. Nesse sentido, a ação não é positiva: ela não consiste em realizar um modelo mais ou menos utópico de sociedade. Voltar-se-ia nesse caso ao totalitarismo, à obra que molda o mundo em função de uma imagem ou de um mito. A ação é ao contrário puramente negativa”3. Ora, essa desrazão da violência, esse desinteresse do permanente conflito, a par do empenho alternativo na invenção de um universo de interações firmadas na negociação de sentidos, têm de ser reconhecidos pelos indivíduos, quer no que diz respeito ao campo das suas existências particulares, quer no que concerne à organização da vivência comum, pois são eles que falam, que discutem, que agem. O que a ação contrapõe à violência instalada “não é, portanto, outro mundo nem outra contradição particular, mas a contradição dos sentimentos individuais” (LF, p. 601). Dito de outro modo, a ação visa levar os indivíduos a identificarem a lógica do sentido como a forma da satisfação, a única susceptível de harmonizar as diferentes posições em confronto, de tal modo que eles passem a lidar com todas as contradições, internas e externas, em termos da sua respetiva sensatez ou insensatez, ou seja racionalmente, fazendo-o com a mesma espontaneidade do sentimento. O sentido no quotidiano, portanto, de que a interacção argumentativa é o símbolo manifesto na política, por se oferecer como o processo colectivo de estabelecer princípios e modos consensuais de pensar. O que a ação preconiza é, nem mais, nem menos, 3 CANIVEZ, P., op. cit., p. 75. 293 luís Manuel a. v. Bernardo do que uma racionalidade alternativa para a política, processual, plástica, inventiva, que corresponde, segundo o autor, àquela que Kant explanou na sua terceira Crítica: “A judiciária assume assim nova tarefa. […] Ela deixa de ser determinante e se faz reflexiva. […] quer compreender os fatos dotados de sentido, não só os fatos destituídos de sentido, mas organizados pela ciência, não só no plano da razão prática, um sentido sempre postulado e eternamente separado dos fatos (…); agora, o sentido é um fato, os fatos possuem um sentido, eis a posição fundamental da última Crítica”4. A racionalidade que lhe é própria não é determinante, uma vez que a ação não tem uma ciência independente daquela que é produzida a partir da categoria/atitude da condição, quer em relação à natureza ambiente, quer relativamente à natureza da sociedade, o que se revela pela sua “teoria materialista e dialéctica” (LF, p. 575). Pela necessidade de transformar a própria maneira de pensar dos homens, mais do que a realidade em que eles se inserem, a ação tem não só de conhecer muito bem essa realidade, a do trabalho, como, sobretudo, compreender perfeitamente o modo como os indivíduos se relacionam com essa mundividência, segundo a qual “o homem se encontra em uma natureza que o condiciona e é condicionada por ele” (LF, p. 291), para interpretarem o mundo e a sua situação no mesmo, de modo a modificá-lo do interior. Dessa feita, o homem da ação não adota a crítica da conceção científica e técnica, que alimenta a categoria/atitude do finito, levando-a a opor a inautenticidade da condição à autenticidade de um projecto que deveria ser construído fora da condição, mas pretende fazer reverter, não negar, essa condição para o plano do sentido, de tal forma que “o mundo seja para o homem e não o homem para o mundo” (LF, p. 565). Para tal desígnio, como se percebe, importa possuir uma filosofia diferente, não uma outra ciência. Do mesmo modo, a racionalidade visada pela ação não é normativa, nem no sentido de uma adequação a princípios de justeza formais independentes da facticidade, nem no sentido de um compromisso com uma versão da “vida boa”, que, como já vimos, a ser necessária, terá de ser buscada pela retomada de outras categorias/atitudes. Tal não significa que a ação possa prescindir de uma filosofia moral. Bem pelo contrário, esta é-lhe essencial, mas, como fica demonstrado pela relativa convencionalidade da substância da Filosofia Moral, escrita pelo próprio, na qual se encontram sucessivas retomadas das éticas e das morais consagradas, o 4 294 WEIL, E., Problemas Kantianos, pp. 62-63. O que torna o mundo da ação tão vulnerável? que nela é decisivo é o modo como conduz o indivíduo, subjectivamente, à lógica da filosofia, isto é, a uma forma de pensar e de viver em que a reflexividade seja o procedimento normal. Não se trata, assim, de levar a cabo o jogo entre a exigência de fundamentação metafísica da regra e o consequente processo de aplicação, mas de suscitar o esquema da inventividade, essa potencialidade produtiva de se comprometer com os processos consentidos, porque com sentido, e de agir em conformidade. É a procura de realizar no âmbito da política este tipo de racionalidade reflexiva, intersubjectiva, orientada para o mútuo entendimento sobre argumentos reconhecidos como válidos pelas partes, menos por serem verdadeiros ou ajustados a um padrão normativo que por se afigurarem sensatos, que constituí, assim, a identidade do programa da ação, não aquela violência intermédia a que o político recorre para instalar as condições mínimas para a realização da verdadeira intencionalidade, por ter compreendido que a ação, “para ser universal, ela deve ser pensada universalmente e deve ser empreendida universalmente” (LF, p. 567). Importa ter presente, a este respeito, que é, também, esse carácter transitório, meramente estratégico, em direcção à progressiva criação das condições para o que designaríamos como a democracia da sensatez, que distingue, precisamente, a violência admissível da ação da violência gratuita e, logo, inaceitável, da categoria/atitude da obra.5 5 A proximidade desta perspetiva com a teoria do agir comunicativo, proposta por Jürgen Habermas, é demasiado evidente para poder deixar de ser aqui referida, mais que não seja por comprovar o carácter compreensivo da categorização avançada por Eric Weil e denotar o facto de ambas constituírem modelos privilegiados para lidar com o que, por via da filosofia, deveio uma expectativa histórica, de que a «viragem linguística» representa a expressão hodierna, mais acabada: “o que caracteriza a nossa tradição, é que ela não se satisfez em afastar a violência da vida comum por uma violência superior, a de um senhor ou de um grupo, mas que quis obter esse resultado por via de um acordo entre os adversários, e não graças a uma decisão imposta de cima por uma força simplesmente maior que a das partes em conflito” (WEIL, E., Essai sur la nature, l’histoire et la politique, p. 83). Esta mesma aproximação, porém, patenteia uma divergência crucial, no que respeita ao entendimento sobre os requisitos do acordo discursivo visado, que contribui, outrossim, para um melhor esclarecimento da originalidade da ação, face ao que será, eventualmente, uma sua retomada nos termos da discussão: ao passo que, na lógica da discussão, seguindo o princípio “D”, é o acordo de todos os envolvidos que valida a norma (HABERMAS, Erläuterungen zur Diskursethik), pelo que a condição imposta aos enunciados é a de serem suscetíveis de resposta na forma de “sim” ou “não”, na ação é a lógica do sentido que se afigura susceptível de gerar e justificar a validade da norma, o que obriga a argumentação a tornar-se mais substantiva, nomeadamente, pelo recurso às retomadas. Para outras pontes entre os dois filósofos: BERNARDO, L. M. A. V., Linguagem e Discurso: uma hipótese hermenêutica sobre a filosofia de Eric Weil, Lisboa, INCM, 2003. 295 luís Manuel a. v. Bernardo Na medida em que a ação não se satisfaz com a simples enunciação de um modelo, mas visa a sua concretização histórica, ela encontra-se, igualmente, a braços com a transformação do quadro social e político, de forma a resolver, a contento de todos, a oposição, dominante na esfera política, entre senhores e servos, ou tal como essa relação deveio contemporaneamente, segundo o autor, entre indivíduos históricos e massas. Trata-se, desde logo, de nivelar as diferenças, em particular aquelas que obstam à sua finalidade, a qual, bem compreendida, consiste em “encontrar o termo do progresso” (LF, p. 561), esse ponto em que a ação, enquanto processo, deixaria de ser necessária, não por ter sido realizada, mas por ser a realidade do e para o homem, e de encurtar o espaço entre a “satisfação alcançada” e a “satisfação por alcançar” (LF, p. 586). Significativamente, esta figura dialética do reconhecimento, que Hegel situara no início da Fenomenologia do Espírito e que Weil introduzira na categoria da discussão, ressurge aqui, no final, sugerindo uma leitura inequivocamente política da mesma que, por conseguinte, só adquire o seu sentido efectivo a partir da intencionalidade que preside à categoria/ atitude da ação. É que, compreendida no âmbito desta categoria/atitude, ela perde a característica antiga de uma luta heróica entre dois opostos, mediada por um terceiro termo abstracto, ou aquela exigência resolutiva do marxismo, não menos heróica e agonística, de uma inversão total do sistema social e político, para assumir a feição moderna de um programa de governo a ser levado a cabo no seio do Estado, por via de sucessivas mediações, com as quais se procura conciliar os interesses e as expectativas legítimas de uma maioria crescente. Como explicita o autor, “a força do homem de acção é enxergar isso: não se trata, para ele, de abandonar o discurso, os discursos dos homens que, senhores parciais, estavam perfeitamente satisfeitos. Não se trata de renunciar ao que eles criaram, ao que eles forçaram os outros a criar; trata-se, ao contrário, de perfazer o que eles empreenderam e não souberam, não puderam levar a bom termo, ao seu fim natural no contentamento de todos” (LF, p. 564). Tal não deixa de implicar que, para instaurar essas condições transitórias, a ação assuma uma vertente política revolucionária, que vem complementar a revolução filosófica, preconizada ao nível da racionalidade, mas uma tal revolução deve ser equacionada como um processo consentâneo com o sentido da própria ação. Por mais paradoxal que possa 296 O que torna o mundo da ação tão vulnerável? parecer e sem prejuízo da manifesta utilização pelo autor de uma terminologia a que a convivência com os marxismos nos habituou, a revolução que está em causa não é a do proletariado, mesmo que, com ela, também se vise o acesso dos bens materiais e culturais às massas, mas a da democratização do sentido, isto é, do tipo de satisfação que detêm os homens razoáveis, pelo modo como praticam o discurso. Decerto por antecipar essa fácil recondução do intuito revolucionário, que é constitutivo da dinâmica da categoria/atitude pura, à sua ideação no âmbito do marxismo, a qual, de acordo com a própria maneira como Weil prevê a articulação entre a sequência categorial e a sucessão histórica, só pode resultar de uma retomada da categoria por outras, Weil introduz, numa das poucas notas que pontuam o livro, um esclarecimento cabal: “o termo “revolução” não indica aqui a revolução “popular”, exclusivamente. Designa a dominação da “teoria” sobre a “realidade” e abarca tanto a “revolução” platónica dos filósofos […], quanto a dos funcionários públicos da filosofia do direito hegeliana […] e, enfim, a revolução de Marx…” (LF, p. 567). É, aliás, o que decorre da própria caracterização do processo revolucionário: “ela é revolução, mas revolução empreendida por e para os homens razoáveis contra a dominação dos homens destituídos de razão” (LF, p. 567). Revolução em nome da lógica da filosofia, portanto, ou seja, da filosofia que, por se ter reflectido, acedeu ao sentido dos sentidos, da qual o homem de acção, da acção, que não apenas o filósofo, “é, no plano da história, o herdeiro” (LF, p. 571). O revolucionário contemporâneo, mais do que qualquer outro, consequente com tal herança, duplamente firmada, pela leitura da história, em relação quer aos efeitos avassaladores do embate entre a atitude do absoluto, indiferente às singularidades dos indivíduos, em nome da coerência do discurso verdadeiro, e a atitude da obra, que canaliza a revolta dos indivíduos para impor um empreendimento totalitário, no qual eles assumem um nível de alienação nunca antes praticado, quer às virtualidades da organização moderna do trabalho para subtraírem o homem do jugo da luta quotidiana pela sobrevivência, esse revolucionário “age, porque a acção é objectivamente possível, historicamente necessária, se o homem quiser ser homem” (LF, p. 571). O que o norteia é, portanto, um desígnio antropológico, o que, aliás, não nos deve surpreender se nos recordarmos de que a ação não visa a im- 297 luís Manuel a. v. Bernardo posição de mais uma versão mundana, mas a formação de um tipo de racionalidade cuja prática resultará numa efectiva humanização. A condição enunciada no fim da passagem citada constitui a chave do que está em causa, pelo que carece de uma interpretação adequada, tanto mais quanto parece revestir-se do carácter de evidência, lida com o filtro de outros discursos categoriais. “Se o homem quiser ser homem” pode sugerir uma exigência ético-metafísica, face a um ideal, que corresponde à realização plena do primeiro termo no segundo, equivalendo, assim, a “se a destinação do homem for devidamente considerada e logo a sua realização visada”. Esta versão, porém, afigura-se-nos muito mais próxima da constelação nocional da categoria do finito, ou da retomada desta pela categoria da consciência, do que da da ação. Para esta, é o verbo querer que se torna relevante, numa dupla acepção: “se quiser” significa, desde logo, que pode não querer, escolhendo, em função de outras mundividências, encarnar noutras figuras (sábio, santo, trabalhador, poeta, etc.), todas elas configurando uma personagem qualificada discursivamente para representar um tipo de existência, bem como o processo de aí chegar ou permanecer, pelo que a adoção do ponto de vista da ação resulta, como acontece no caso de todas as categorias/atitudes, de uma decisão livre, um salto epistémico-existencial que só é susceptível de se justificar a posteriori; “se quiser” implica, num segundo momento, que ao querer-se a ação, quer-se essa possibilidade que é ser homem, de modo que a revolução mais profunda não é a da construção de um mundo em que a necessidade não persista como um obstáculo à humanização, o que cabe à organização socioeconómica da condição assegurar, e, por isso, será sempre condição necessária, mas também, sempre condição insuficiente, nem a da gestão dos danos colaterais desse mundo mercantilista, materialista, mecanicista e utilitarista, de acordo com uma visão mais ou menos difusa de alguns traços de humanidade em vias de extinção, buscados em retomadas de categorias ultrapassadas, senão mesmo incompatíveis com o programa da ação, mas a de conseguir que cada indivíduo queira participar ativamente no processo revolucionário, para se tornar nesse homem que quer ser homem. Dito de outro modo, a ação requer que cada indivíduo não só queira o que ela propõe, mas que saiba que o quer, e que, por sabê-lo, se empenhe na sua realização. Também aqui, portanto, o homem tem de participar 298 O que torna o mundo da ação tão vulnerável? na revolução, porque reconhece o seu sentido e porque reconhece nesse sentido o sentido que quer para si. As alternativas não são viáveis, uma vez que consistiriam em reduzir a ação à factualidade coartada de sentido ou em supor um sentido em si da ação, que não seria percecionado como sentido pelos e para os participantes. Ora, esta condição necessária pressupõe um amplo e constante debate entre os intervenientes, com um intuito assumidamente apologético e pedagógico, tanto mais exigente quanto a política se exerce num mundo que se interpreta a si mesmo num estado de crise permanente, no qual tem de lidar com grupos massificados, congregação que não representa uma unidade de perspectivas, de interesses ou de valores, mas uma certa atitude de acomodamento e de passividade. A revolução efectiva não é, portanto, a material, nem a social, nem a institucional, todas elas, contudo, indispensáveis para a realidade histórica e mundana da ação, mas a revolução educativa, a qual tem de dobrar todas as outras com a demanda do sentido do agir, como Weil deixa patente na sua Filosofia Política. Educação para o sentido e para o sentido do sentido, cuja ausência corre o risco de deixar os sucessos alcançados nos outros planos num pântano de indiferença existencial, favorecendo outrossim os movimentos de violência colectiva e organizada, os quais, ao abrigo de retomadas de outras categorias, ameaçam a universalidade da ação com a brutalidade arbitrária de posições particulares, ao mesmo tempo que permite que cada vez mais indivíduos se entranhem nessas zonas profundas da violência individual – a revolta, o desespero e o tédio –, todas elas expressões de uma vida carente de significação, aquelas às quais a ação está mais vulnerável, por serem, como vimos, aquelas que ela se propõe resolver. Educação constante e persistente, em função do carácter processual da racionalidade de que depende. Educação omnipresente, a ser levada a cabo de modo sistemático e intencional, em todos os fora da esfera pública, que não apenas nas instituições escolares, porquanto, não só nenhum deles está ao abrigo da exigência de razoabilidade, como, em cada um deles, esse quesito tem de se ver pertinazmente confirmado. Em suma, enquanto a ação não for universal e permanecer uma possibilidade, não uma realidade, para a maioria dos indivíduos (resta, obviamente, ponderar se, na sua efectividade histórica, haveria qualquer viabilidade de que a ação fosse mais do que processo infinito), ocorre um trabalho indispensável, não só de exercitação e de consolidação do 299 luís Manuel a. v. Bernardo procedimento argumentativo, na acepção lata que lhe demos, em termos de um padrão de razoabilidade, mas, também, de justificação do que torna a ação na categoria mais interessante e, logo, naquela que deve ser preferida em relação as todas as outras categorias/atitudes. Há, assim, uma componente propagandística que faz parte desse processo educativo alargado, que, por ser uma das condições que possibilitam a adesão ao programa da ação, não é descartável, mormente quando o que este tem a propor é, como vimos, estruturante, processual, negativo, neutro, para permitir a efectividade desse valor antropologicamente supremo, a liberdade, mas que, na concretude da realidade quotidiana, perde facilmente o brilho e acaba, com idêntica facilidade, por ser desmerecido em prol de outros projetos de relevância muito mais duvidosa. Ora, esta dependência imperiosa de uma dobra de educabilidade patenteia o que Francis Guibal chama, com total adequação, uma “racionalidade frágil”6, presa na lógica das condições mundanas e da expressão da liberdade, obrigada a lidar com as manifestações nostálgicas de uma racionalidade tida por forte, na medida em que assenta numa ontologia substantiva, e a fazer valer, em contraposição, o sentido de uma “indecisão”, para viabilizar uma decisão livre, de um “não-interesse”, para tornar possível uma pluralidade de interesses, de uma “não-posição”, axiologicamente determinada, para firmar a tolerabilidade de diferentes perspectivas, de um “não-mundo”, para construir um mundo alternativo, no qual todos possam coabitar livremente, a que se acresce a vulnerabilidade e a transitoriedade que advêm do processo de constante transformação que constitui o agir da ação. Como esperar, então, que os indivíduos adiram espontaneamente a uma tal série de paradoxos ou que neles reconheçam, sem mediação, o seu próprio interesse? Como imaginar que tais fragilidades, ainda que, do ponto de vista da categoria, sejam as suas forças, não devam ser apoiadas obrigatoriamente por um discurso justificativo, pensado para ser eficaz, isto é, para se revelar eloquente junto daqueles que se impõe convencer? Tal significa que o homem da ação tem de estar constantemente a falar da ação aos outros homens, não nos termos do discurso categorial puro, mas em função do que eles possam compreender. Como aponta Kirscher, “a 6 300 GUIBAL, F., Le sens de la réalité, p. 34. O que torna o mundo da ação tão vulnerável? tradução está inscrita nesse discurso enquanto tal”7. Tradução que supõe um duplo movimento: versão do discurso coerente num discurso susceptível de ir ao encontro da compreensão alheia; retroversão dos pontos de vista heterogéneos à coerência da categoria/atitude da ação. Se “o resultado é a demonstração da necessidade da revolução – se o homem quiser ser livre – demonstração não filosófica, mas científica” (LF, p. 572), a tarefa, característica do verdadeiro político, afigura-se de extrema dificuldade, já que não se trata de produzir uma enunciação meramente demagógica, com a qual não se faria justiça ao homem cuja atenção se quer captar, ainda que haja que contar com um traço incontornável de demagogia, nem uma simples exposição retórica das virtudes da ação, nem um banal encómio da relevância da mesma para a existência individual. Na verdade, mais do que ir ao encontro das expectativas mundanas do público, esse discurso deve gerar nele a vontade de aderir à ação, o que equivale a dizer que o homem da ação, em vez de se limitar a reconhecer o status quo, tem como missão provocar uma transformação desse posicionamento de partida. Ora, desta necessidade de tradução decorre uma das maiores fragilidades da racionalidade específica da ação, como Guibal, parcialmente, também anteviu8, suscetível, ao que cremos, de desvirtuar completamente o seu alcance: o recurso obrigatório às retomadas. É que, na ausência de uma versão substantiva própria, para falar sobre si de modo compreensível, o político depende dos discursos das outras categorias, que terá de retomar constantemente, não por neles acreditar, mas por estar ciente de que é com eles que os outros homens constituem as suas mundividências: “essas retomadas são portanto úteis” (LF, p. 585) e é, como tais, que ele as põe intencionalmente a vigorar. Dessa feita, terá de discorrer sobre a ação nos termos das categorias da condição ou da obra, quando se refere à sua relação com o mundo do trabalho ou quando aponta a sua dimensão projetante; nos termos das categorias de deus, da consciência ou do absoluto, quando pretende galvanizar, moralizar ou apelar a um sacrifício maior, etc. Na medida em que não pode prescindir de tais retomadas de justificação, para se dirigir aos outros homens e levar a cabo a atividade política, “as retomadas não são acidentais, mas tecnicamente necessárias” (LF, p. 572). 7 8 KIRSCHER, G., La philosophie d’Eric Weil, p. 345. GUIBAL, F., op. cit., p. 177. 301 luís Manuel a. v. Bernardo O que, então, pode ocorrer é uma espécie de descontrole dos efeitos dessa utilização técnica e estratégica, quando os discursos assim construídos passam para a realidade, o que não deve espantar, porquanto essas retomadas estão já a circular nos discursos dos outros. Como Weil explicita, “as retomadas implicam justamente esse perigo, de que na forma que elas impõem à categoria-atitude, ambas se separam e a ação já não se pensa, mas é pensada como livre atitude no sentido vago desse termo, algo no género dos interesses vagos da interpretação” (LF, p. 584). Um tal recurso constante a retomadas de justificação tende, por conseguinte, a potenciar as apropriações individuais da categoria/atitude da ação, a partir das outras categorias/atitudes, senão mesmo a consolidá-las em seu nome, em vez de reconduzir progressivamente essas leituras espúrias ao seu verdadeiro sentido. No limite, suscita o retorno, pela porta grande, da revolta, do desespero e do tédio, com a violência inerente, por não conseguir firmar-se como efectivamente diferente de outras categorias/atitudes, rejeitadas, em seu nome, pelos indivíduos que nela depositaram as suas esperanças relativamente a uma coexistência mais satisfatória. Em tal desilusão poderá pesar, muito particularmente, a sua dependência de retomadas da condição, pelo que esta categoria/atitude implica de redutor do que é ressentido como o mais humano no homem. O perigo, por conseguinte, reside na eventualidade de que, em vez de subsumir as várias alternativas categoriais, o mundo que deveria ser o da ação acabe por ser totalmente colonizado pela miscigenação sincrética de retomadas de retomadas, numa deriva sucessiva da sua propriedade programática. Este risco de descaracterização resulta seriamente potenciado pelas retomadas de apreciação. É que, como Weil indica a propósito da categoria/atitude da obra, as retomadas distinguem-se entre as que servem para validar e as que servem para ajuizar sobre o valor do que foi justificado (LF, p. 514). Assim, o recurso às retomadas não tem apenas como implicação que a ação seja compreendida e justificada, nos termos das conceções retomadas, mas acarreta, também, que ela seja apreciada à luz dessas retomadas, em função dos critérios que são relevantes na e para a respectiva mundividência. Ora, como assinala Patrice Canivez, “na maior parte dos casos, esta compreensão e este juízo são distorcidos, precisa- 302 O que torna o mundo da ação tão vulnerável? mente, pelo fato de a atitude ser compreendida – quer dizer retomada – no quadro dum discurso que não lhe pertence”9. Não será, assim, improvável que, na ausência de uma profunda reflexão sobre as condições específicas da ação, as suas fragilidades constitutivas e a educabilidade que requer, a utilização estratégica das retomadas, ainda que tendo em vista a redução da violência, incluindo aquela que inere ao carácter de novidade de uma categoria/atitude, acabe por gerar mais violência; ainda que tendo em vista a promoção da universalidade, incite à sobrevivência do regime das particularidades; ainda que tendo em vista honrar a promessa da política, de acordo com a expressão de Arendt, acabe por torná-la desinteressante, senão mesmo improcedente; ainda que tendo em vista a defesa da liberdade, acabe por servir de justificação a novas formas de servidão; ainda que tendo em vista recuperar a inventividade, redunde numa consagração dos tradicionalismos; ainda que tendo em vista uma existência orientada pelo sentido, seja pretexto para reforçar os sempre disponíveis focos de obscurantismo. Se não cabe contestar a tese weiliana de que “as retomadas são a realidade viva do homem no mundo” (LF, p. 603), quando estas se oferecem, igualmente, como condição técnica, impõe-se ponderar, nomeadamente para a compreensão do nosso tempo, no que nele se quer vinculado a um programa de razoabilidade entre eficácia e justiça, atinente ao da ação, e do que nele corresponde aos efeitos disruptivos da progressiva prevalência de certas retomadas, como seja a da obra, como mostrámos num texto recente,10 que há retomadas e retomadas e, não menos relevante, que há formas e formas de retomar. Referências WEIL, Eric. Lógica da Filosofia. São Paulo: É Realizações Editora, 2012. 9 10 CANIVEZ, P., “La notion de reprise et ses applications”, Luís Manuel A. V. Bernardo, Patrice Canivez, Evanildo Costeski (dir.), “A Retomada na Filosofia de Eric Weil”, Vila Nova de Famalicão, Cultura-Revista de História e Teoria das Ideias, II série, volume 31, CHC/Húmus, 2013, p. 20. BERNARDO, L. M. A. V., “O Estado à Prova dos Novos Discursos da Obra”, PERINE, Marcelo e COSTESKI, Evanildo, Violência, Educação e Globalização – Compreender o nosso tempo com Eric Weil, pp. 103-139. 303 luís Manuel a. v. Bernardo WEIL, Eric. Problemas Kantianos. São Paulo: É Realizações Editora, 2012. WEIL, Eric. Essai sur la nature, l’histoire et la politique: Lille: PUL, 1999. BERNARDO, Luís Manuel A. V. Linguagem e Discurso: uma hipótese hermenêutica sobre a filosofia de Eric Weil. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. BERNARDO, Luís Manuel A. V., CANIVEZ, Patrice, COSTESKI, Evanildo (dir.), “A Retomada na Filosofia de Eric Weil”, Vila Nova de Famalicão, Cultura-Revista de História e Teoria das Ideias, II série, volume 31, CHC/Húmus, 2013. SIQUEIRA, Sérgio Camargo. Filosofia e Política em Eric Weil. São Paulo: Loyola, 2014. CANIVEZ, Patrice. Weil. Paris: Les Belles-Lettres, 2009. COSTESKI, Evanildo. Atitude, Violência e Estado Mundial. Fortaleza, Unisinos, 2009. 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Embora digamos que a linguagem determine o mundo e por meio desta o homem se constitua, não significa dizer que esta determinação e constituição sejam conclusivas ou definitivas. E por este motivo a linguagem há de ser compreendida por uma epistemologia da aproximação, portanto em devir. A linguagem lança o investigador a uma epistemologia da aproximação por mais que se esforce e acredite na conclusão do conceito. Esta vertente fica bem clara nas palavras de Clímacus quando da sua crítica à objetividade, e se levarmos em consideração que linguagem e pensamento co-existem, a linguagem enquanto queda e paradoxo é o pressuposto da crítica de Climacus2: Para mim, ao contrário, não importa mostrar se tenho saber ou não. Segundo minha maneira de ver, é mais importante que a gente compreenda e que se lembre que, mesmo com a perseverança e a eru- 1 2 Este artigo é parte de um tópico da dissertação “O problema da linguagem em S. Kierkeggard” defendida no Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC) no ano de 2009, sob a orientação do Dr. Evanildo Costeski. O pseudônimo Johannes Clímacus além da sua trajetória existencial e filosófica narradas no opúsculo É preciso duvidar de tudo, é o autor das Migalhas Filosóficas e de Postcriptum não-filosófico não-conclusivo às migalhas filosóficas que considerado por Kierkegaard a obra que divide toda a sua produção intelectual. Pelo próprio titulo da obra em questão percebemos o tom irônico do pensador dinamarquês. Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 305-313, 2017. 305 franKlin roosevelt Martins de Castro dição a mais admirável e mesmo que a cabeça de todos os críticos estivesse numa cabeça, não se vai jamais além de uma aproximação e que, entre este interesse do investigador e aquele de qualquer pessoa que está individualmente e infinitamente interessada em sua beatitude eterna, há uma diferença de natureza essencial (grifo nosso) (KIERKEGAARD, 1978, p. 208). Ainda que em face do paradoxo da linguagem, o pensamento em voltas com o desejo de unidade estabelece uma concordância que só pode ser sustentada por uma ilusão ou imaginação. Neste caso, pela imaginação, o pensamento abstrai o que há de diferença e conflitante em si, a fim de estabelecer o conceito e, portanto, a abstração. Pois é a imaginação3, nas palavras de Anti-Climacus, o agente da infinitização, não é uma faculdade como as outras, mas a origem das categorias, ou seja, é um poder em que todas as faculdades se refletem (KIERKEGAARD, 1979, p. 208). Desse modo, pela imaginação é possível tudo se projetar e estabelecer especulações e abstrações. Pela imaginação tudo é possível. O homem ao projeta-se sobre o écran da imaginação se depara com o infinito do possível (KIERKEGAARD, 1979, p. 212). Assim, a imaginação tanto carece do finito e da necessidade a fim de não se evaporar e se distanciar em suas possibilidades. A imaginação possibilita a infinitização do sentimento, do conhecimento e da vontade. Assim pode tanto o poeta como o filósofo infinitizar o seu discurso, ou ao menos acreditar nesta possibilidade, pois é justamente neste ponto que reside a ambiguidade da imaginação. Ainda que se possa projetar o infinito no conhecimento, o meio pelo qual é realizada esta projeção é a linguagem, que como já aceitamos, é paradoxo; portanto, finito e infinito, possibilidade e necessidade. Desse modo, a palavra por sua relação dialética limita e refreia a imaginação quando esta aparece no discurso do poeta e do filósofo. Por outro lado, também não se deve cair na sua negação, porque daí teríamos a carência do infinito e da possibilidade. A relação da imaginação com a linguagem coloca em pauta a filosofia e a poética. Como é possível filosofar se entendemos a filosofia na 3 Sobre as reflexões em torno da imaginação nos valemos dos escritos de Anti-Climacus na sua obra Doença para morte (1849) especificamente no capítulo em que se analisa o desespero sob o ponto de vista das categorias do finito e infinito, do possível e da necessidade. 306 Os impasses da linguagem: sistema ou existência em Kierkegaard esteira da objetividade? Como pode um sistema filosófico se legitimar se o que diz corre os riscos de ser apenas mais uma possibilidade da linguagem dada pela imaginação? A filosofia, então se depara com o problema da objetividade e da conceituação. Por outro lado, a poética ao contrário aceita a imaginação como a sua propulsora, visto que tudo o que cria é apenas uma possibilidade, de tal modo que aquilo que pareceria absurdo para a lógica, trata-se apenas de um jogo realizado pela imaginação. Se aproximarmos a filosofia e a poética pela imaginação, a sua diferença estará nas pretensões de objetividade do discurso. Sendo a poética mais honesta e menos hipócrita que a filosofia. Logo, diante destas questões, cabe à filosofia enquanto objetividade e especulação sistemática rever o seu modus operandi aceitando a sua condição de discurso, portanto de paradoxo e linguagem. Que fique claro, que se a filosofia se propuser à objetividade e à sistematização, ainda assim ela o pode, porque a imaginação permanece consigo neste afã pelo infinito. No entanto, esta tarefa não passa de uma quimera, conforme as implicações das palavras de Climacus. Se na tentativa de conceituação, o pensar se percebe diante das sutilezas da imaginação não podendo concluir e objetivar seu propósito; como se pode pensar a existência se pensamento e linguagem co-existem? Desse modo, pensar a existência é simultaneamente determiná-la, ao mesmo tempo em que não podemos executar tal tarefa, pois a existência é algo que não se deixa pensar, visto que a existência está no devir (KIERKEGAARD, 1978, p. 227). Na medida em que compreendemos o homem no devir de sua determinação pela linguagem co-existente ao pensamento, não podemos abstraí-lo do mundo da concretude, ou seja, da realidade. Se o homem se apartar da realidade, afirmando que pode se determinar sem esta, o que afirma é na verdade uma abstração. E se, por outro lado, acreditar conseguir conceituar a realidade, também o faz como abstração, pois em ambos os polos estão postos o paradoxo e o devir. Tal dificuldade se apresenta porque o homem ignora a esfera conflitante que perpassa o pensamento e a própria linguagem a qual constantemente se vê entre o finito e o infinito, a necessidade e a possibilidade, de tal maneira que se torna mais conveniente ao pensamento abstrair toda a 307 franKlin roosevelt Martins de Castro dimensão contingente em detrimento da linguagem lógica que é abstração. Por outros termos, estamos a dizer que o sujeito pensante não é capaz de se abstrair e se separar da sua existência por mais que desenvolva e estabeleça uma linguagem lógica. Mesmo que o pensador elabore conceitos coerentes logicamente com pretensões de universalidade e legitimidade, ainda assim é um pensador existente, que é síntese entre o psíquico e o corpóreo, e que sua via de universalização e conceituação é a linguagem. Como é possível então um pensador que é existente legitimar um sistema que se pretende universal? Como passar do contingente para o necessário? Como já apresentamos anteriormente, talvez esta seja uma das críticas mais pertinentes do pensador dinamarquês à filosofia sistemática que acaba se embaraçando nas malhas do purismo da razão. O pensar lógico quando em face da existência se depara com o paradoxo, ainda que no campo conceitual busque resolver os conflitos. É concebível que um pensador compreenda o sistema embora não se compreenda, porque à linguagem da abstração isto é permitido visto que a existência foi separada do devir (KIERKEGAARD, 1978, p. 226). A co-existência entre existência e pensamento nos faz admitir que a linguagem é quem perpassa esta relação, na medida em que torna possível a determinação e a compreensão de si e do outro. Desse modo, só faz sentido o homem se determinar se houver o pressuposto dessa possibilidade que é consciência de si dada pela linguagem. Por assim dizer, o homem só pode existir na realidade que é o lugar do seu devir existencial; é a esfera em que a dialética do possível e do necessário, do finito e do infinito de fato se estabelecem; caso contrário, o homem habitaria a esfera da abstração ou a esfera da pura imaginação, sem o outro polo da relação o homem não existiria. Mas é bem verdade, para Climacus, que estando o homem na realidade, não significa que este exista de fato, pode ser como o cocheiro bêbado que dorme enquanto os cavalos estão entregues a si mesmos (KIERKEGAARD, 1978, p. 229). Existir, nestes termos, é ter consciência de si, interesse em se constituir na realidade do devir. O indivíduo é justamente aquele que tem o interesse de se estabelecer na interioridade, que mantém um diálogo interior, que silencia. 308 Os impasses da linguagem: sistema ou existência em Kierkegaard Ao contrário do outro indivíduo que se identifica com a falácia da multidão, ele é o que a multidão determina, ou seja, fala e proclama. O indivíduo que se volta para a multidão não estabelece uma interioridade porque não conversa consigo mesmo, teme escutar-se e inquietar-se, é-lhe mais conveniente aceitar o discurso e a oratória da maioria, pois deste modo não têm nenhuma responsabilidade do que é proferido. Este caminho torna compreensível e complexo o entendimento sobre o indivíduo, pois pela linguagem, é aquele que rompe com a lógica da instituição, do estado, da igreja ou qualquer forma de discurso institucionalizado, se lembrarmos de que a instituição almeja, sobretudo a objetividade. Assim, estabelecer-se como indivíduo, ou seja, se auto-determinar, significa romper com o discurso institucionalizado da multidão (KIERKEGAARD, 1986, pp. 96-103). Desse modo, o indivíduo se estabelece enquanto exceção o que nos deixa em uma situação conflitante quando olhamos para a dimensão ética da existência. Neste sentido, o indivíduo em relação à multidão e às instituições, é o polemista, o irônico, o iconoclasta aquele que subverte a lógica do discurso institucionalizado que determina e rotula os indivíduos em mera quantidade, apenas um número. No percalço deste ínterim, ser acusado, rechaçado e condenado, é ao mesmo tempo a genuína tarefa do indivíduo que fala uma linguagem que não é compreendida por todos. Chegamos a esta reflexão quando indagamos sobre os homens que existem sem terem consciência de si, portanto, de fato não existem, tornando-se apenas um número na multidão, ao contrário do indivíduo que se estabelece no silêncio da interioridade. Mas eis que nesta reflexão nos deparamos com o impasse do indivíduo diante da realidade. Como ser indivíduo na sociedade? Como ser indivíduo e ainda assim ser ético? Pois se trata aqui da extrema complexidade da linguagem que ao mesmo tempo em que é o medium da determinação do indivíduo, é também a objetividade da ética. O discurso institucionalizado na vida ética põe o indivíduo em conflito com o seu devir, pois é do anseio da ética buscar a objetividade. Por outro lado, o homem ético sente-se em uma esfera segura, visto que a angústia é suspensa pelas leis e deveres da ética os quais determinam a ação do homem. 309 franKlin roosevelt Martins de Castro Desse modo, na ética a interioridade é transformada em exterioridade, e o seu pathos está na ação. Na esfera do agir é que se estabelece a compreensão do bem e do mal, como já disse anteriormente Haufniensis. O problema está em quem ou que será a referência de tal julgamento. Se for o indivíduo, cai-se no relativismo. Se for o coletivo, cai-se na abstração da multidão. Em outros termos, a linguagem nem pode ser totalmente individual e solipsista pela impossibilidade da comunicação, nem também inteiramente coletiva, porque é por meio dela que o homem se determina, e neste caso, ele só seria o que a linguagem coletiva o permitisse se tornar. Portanto, a linguagem é ao mesmo tempo individual e coletiva, o que garante o lamento do herói trágico em que pode dizer dos sofrimentos pelos quais passou (KIERKEGAARD, 1978, p. 233). O sofrimento do herói trágico é individual, particular, mas por ser o herói tem a necessidade do reconhecimento da coletividade que compreende e legitima o pathos do herói trágico. Assim, o pathos da ética é a ação que se manifesta em um discurso institucionalizado. Por este ínterim, o homem acredita preservar a sua individualidade tentando legitimar a sua determinação no discurso institucionalizado. Pode-se deduzir então, que aquilo que não for legitimado pelo discurso institucional está nas vias da loucura, do absurdo ou da ignorância, o que a ética chama de louco, fanático e místico. Na esfera da ação, ou da vida ética, o homem se depara com a liberdade em sua esfera real, e sua escolha moral está entre seguir a exterioridade ou a interioridade, ainda sabendo que toda a sua existência está no movimento do devir. Qual das duas esferas será o seu referencial? E novamente a angústia se manifesta em forma de escolha, entre ser a exceção ou numérico. Se escolhe a exceção, a sua ação é incompreendida, pois suspende a ética, tornando-se o polemista. Se decide pelo numérico, a sua única possibilidade de salvar a sua individualidade é pela ironia. A sua ação tem de ser irônica, visto que aquilo que faz realmente não é aquilo que faria. A ironia o salva, porque ele está consciente do fracasso e limitação da instituição ética. Então, pode rir-se de si mesmo, e ocultar os seus autênticos propósitos na ironia. Este modo preserva a natureza contraditória da linguagem, e nisto a ética se apresenta irônica porque não pode negar a liberdade e o devir. 310 Os impasses da linguagem: sistema ou existência em Kierkegaard Mas caso o homem não realize a dialética do agir, ele permanecerá e se determinará como um sujeito ético, um cidadão, um marido, ou seja, ele se determinará em sua função social, que nada mais é do que um discurso institucionalizante: Se o indivíduo é dialético nele mesmo para o interior na afirmação de si mesmo, de sorte, pois que sua última base não se torna dialética em si, já que o “si” (de “si mesmo”) que está na base é empregado para se sobrepujar e afirmar-se a si mesmo: temos a concepção ética (KIERKEGAARD, 1978, p. 235). Todavia, aquele que realiza o movimento para a interioridade, no afã de tornar-se indivíduo, não está preso em um solipsismo ou egoísmo, há um dever para com os outros, visto que o individuo é o religioso que diante de Deus aceita o paradoxo, e por isto se compromete com cada homem particular. Esta é a distinção entre religioso e o político, ambos conhecem a condição humana e os movimentos da exterioridade. Ambos também possuem o domínio do discurso, sabem usar as palavras. Entretanto, enquanto o político, e neste mesmo patamar todas as outras funções institucionalizadas, tem como foco a manipulação da multidão, tornando os indivíduos em números e em rebanhos, o religioso é aquele que fala a cada um isoladamente (KIERKEGAARD, 1986, p. 100). Desse modo, a linguagem põe em questão não apenas o que se diz e como se diz, mas aquele que diz e seus propósitos. Ainda que se fale no amor e na justiça, dependendo de quem os diga, não passará de manobra e persuasão, em outros termos, de retórica vazia. Novamente Kierkegaard, pela linguagem expõem o indivíduo, pois não é possível que ele se esconda atrás de um discurso sistemático e persuasivo, e ainda que isto possa ocorrer, ao ouvinte é edificante atentar para quem está lhe falando. Desse modo, a categoria de quem seja o mestre, é definida pela interioridade, pois na esfera da exterioridade a palavra em forma de discurso pode ter a mesma forma, diferenciando-se apenas por que a profere. Aqui, talvez, coloquemo-nos no problema da verdade do discurso e na sua coerência. Como saber se que o que o outro fala, de fato é verdadeiro? Podemos confiar no que escutamos? É um dever falar a verdade? E 311 franKlin roosevelt Martins de Castro assim, a linguagem, na esfera da vida prática coloca os indivíduos entre a verdade, a ironia e o silêncio. Referências FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. 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Para tanto, elabora uma proposta filosófica com características antropológicas: características estas, que direcionam sua proposta de maneira a salientar e especificar a necessidade de uma explicação sobre o que é a essência humana, quais seus atributos e ainda o porquê de ser necessário tratar da essência humana. Visto isto, o que se apresenta como fundamental neste momento é a discussão em torno da definição sobre essência humana. Neste sentido, o que se pretende na proposta feuerbachiana é justamente a compreensão, ou até mesmo uma tentativa de explicação, sobre o que é de fato o homem, o que o compõe, o que o estrutura. A preocupação filosófica de Feuerbach está direcionada à compreensão da estruturação do homem integral e completo, que é aquilo que ele define como ser em gênero e, em contrapartida, também se preocupa em definir o que é aquilo que distancia o homem desta sua integridade que se define por essência. Assim sendo, a discussão que o autor desenvolve se direciona à fundamentação daquilo que é compreendido como essência humana, uma vez que esta mesma essência deve estar fundamentada na própria concepção de homem real constante e material. O que se apresenta como objetivo nesta proposição é, de fato, a necessidade de uma posição materialista e antropológica sobre a compreensão de homem completo, integral e, por conseguinte, o motivo da cisão com essa integridade. Consequentemente a tal proposta, Feuerbach desenvolve sua concepção de ser humano como uma crítica a posição hegeliana do homem. Ele, em contrapartida a uma proposta do homem completo e integral, projeta uma análise sobre o homem dentro da realidade a qual este mesmo é agente reconhecedor de sua capacidade de agir, e de reconhecedor 314 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 314-336, 2017. O conceito de essência humana em Feuerbach da capacidade de ser o humano. Cabe neste momento ressaltar que Feuerbach tem como objetivo inicial de sua proposta filosófica apresentar um contra-argumento frente à explicação hegeliana da produção da consciência. O que Feuerbach tem por objetivo é, de fato, salientar que a produção da consciência tem sua fonte no real, no material ou, melhor dizendo, para o nosso pensador, a preocupação circula o fato de que, segundo ele, a consciência tem seu fundamento na própria realidade humana. Isto é posto em contrapartida a posição dialética de Hegel – não reconhecida pelo nosso autor como ponte para a explicação filosófica. A dialética hegeliana, para nosso autor, representa um erro da parte de Hegel justamente porque o mesmo produz um movimento dialético e uma explicação do mesmo no sentido da negação e contradição, de maneira a produzir uma explicação da então consciência fundamentada no processo especulativo do idealismo alemão. O que Feuerbach critica na posição hegeliana de dialética é o caráter contraditório, que não produz na visão do nosso autor, um posicionamento suficiente para a compreensão da estruturação e da explicação da consciência humana. Para Feuerbach a dialética tem como motor a autotransformação reflexiva de maneira prática e não puramente especulativa, assim como ele denuncia acontecer por parte de Hegel. Feuerbach tem por objetivo a contrariedade frente ao seu mestre em um sentido de apresentar que a fonte da consciência está no próprio humano. Neste sentido, o comentador Gooch Todd específica, em um de seus textos, qual a postura que Feuerbach assume para sua proposta filosófica acerca da explicitação do homem e da sua essência e, por conseguinte, porque o mesmo pensador assume uma proposta divergente da de Hegel: O que Feuerbach, ao contrário de Strauss, nunca aceitou é a caracterização do Cristianismo de Hegel como a religião consumada é clara a partir do conteúdo de uma carta que ele enviou para Hegel, juntamente com a sua dissertação em 1828. Nesta carta, ele identificou a tarefa histórica que permanece na esteira de realização filosófica de Hegel a ser o estabelecimento da ‘única soberania da razão’ em um ‘reino da idéia’ que iria inaugurar uma nova dispensação espiritual. Prenunciando argumentos apresentados em seu primeiro livro, Feuerbach passou nesta carta para enfatizar a necessidade de ‘o eu, o auto em geral, que especialmente desde o início da era cris- 315 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva tã, tem governado o mundo e tem o pensamento de si como a único espírito que existe em tudo, derrubado do seu trono real.’ Este, ele propôs, exigiria maneiras prevalecente de pensar sobre o tempo, a morte, neste mundo e no além, a individualidade, personalidade e Deus para ser radicalmente transformado dentro e fora das paredes da academia (GOOCH, 2013) (tradução nossa). A necessidade que Feuerbach identifica, de propor uma crítica frente à filosofia de Hegel, e posteriormente este distanciamento que ocorre entre os dois, está fundamentada na questão que Feuerbach define como a falta de uma postura propriamente material por parte de Hegel. O que fortalece o distanciamento, e a consequente formulação de uma teoria autêntica por parte de Feuerbach, é a condição exposta pelo mesmo pensador sobre a postura tomada por Hegel na condição do idealismo. Hegel chega a postular uma análise essencial do homem, o problema, indica Feuerbach, é que Hegel acaba por fazer isso de forma especulativa e não de maneira efetiva e temporal. Feuerbach declara que a proposta hegeliana, acerca daquilo que o próprio Hegel intitula espírito, é uma proposta, por conseguinte, que não passa por uma efetivação uma vez que o espírito não se reconhece dentro de uma condição real – de tal maneira evidenciado que o mesmo Feuerbach assim comenta em um de seus textos, intitulado Para a crítica da filosofia de Hegel: O espírito de Hegel é lógico, determinado, (sit venia verbo [se me é assim permitido]) um espírito entomológico, isto é, um espírito que só encontra o seu local apropriado num corpo com muitos membros salientes, com incisões e segmentações profundas. Esse espírito revela-se principalmente na sua intuição e tratamento da história. Hegel fixa e expõe unicamente as diferenças mais salientes das diversas religiões, filosofias, épocas e povos, e fá-lo apenas numa progressão ascendente; o comum, o igual é inteiramente relegado para segundo plano. A própria forma de sua intuição e método é apenas o tempo exclusivista, e não simultaneamente o espaço tolerante; o seu sistema só reconhece subordinação e sucessão, mas desconhece coordenação e coexistência (2012, p. 24). Esta intuição, que faz parte do método hegeliano, que aparece claramente nas suas primeiras e principais obras – a saber Ciência da Lógica e Fenomenologia do Espírito –, destaca o caráter puramente idealista do 316 O conceito de essência humana em Feuerbach espírito, de maneira a salientar apenas a concepção de um espírito determinado e de maneira alguma uma concepção de espírito essencial. O que Feuerbach aponta como sendo o erro de Hegel é o tratamento meramente histórico dado a construção do espírito, sem levar em consideração aquilo que Feuerbach reconhece como parte estruturante e fundamental da construção daquilo que o mesmo identifica como essência, esta parte estruturante seria a condição de material sentimental e sagrado. A produção histórica do ser, ou ainda, da essência, acontece para Feuerbach não em um aspecto puramente contemplativo, como em Hegel, mas acontece contrariamente de maneira real e dialética, esta dialética podendo ser entendida pela forma socrático-platônica de diálogo, algo a ser elucidado adiante. Feuerbach não reconhece a contrariedade dialética como fonte da existência e da essência, uma vez que a contrariedade que a mesma propõe não fundamenta para Feuerbach a identidade do ser em gênero. Por sua vez, o comentador Eduardo Chagas salienta muito bem na apresentação da obra “Para a crítica da filosofia de Hegel” de Feuerbach: Feuerbach nega aqui, em sua crítica a Hegel, essa identidade lógica de ser e pensar, pois, para ele, apenas o ser concreto, real, sensível, é ser, porquanto em seu conceito está já implícito o conceito de existência, de determinidade de realidade e/ou objetividade (FEUERBACH, 2012, p. 14). Isto posto, cabe ressaltar que a contrariedade frente à produção hegeliana se apresenta no sentido de justificar o porquê de o idealismo propriamente de Hegel, com sua proposta lógica, não completar a explicação de homem completo, pois, por sua vez, isto só pode acontecer quando se pensa um ser concreto e puramente sensível, dotado de atribuições completamente sensíveis. Todavia, o nosso pensador acaba por não desconsiderar a prática dialética, mas sim desconsidera a teoria hegeliana dialética. Nesse sentido, o comentador Marx Wartofsky, assim postula no Prefácio de sua obra intitulada Feuerbach: Feuerbach rejeitou a teoria dialética de Hegel. Na crítica sua a seu mestre Feuerbach descobriu o que tinha visto como a confusão básica na aplicação de Hegel. Mas Feuerbach não rejeitou a prática da dialética. De fato, alguém pode dizer que o próprio curso e desenvolvimento de Feuerbach nos fornece não somente com sua própria 317 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva descrição da dialética da consciência, mas com uma descrição da dialética de sua própria consciência, o que igualmente deslumbrante. Para o desenvolvimento de Feuerbach proceder como uma série de auto-rejeições e reconstruções. Faz, no entanto, não um monólogo interno, mais um diálogo. Feuerbach se descobre no curso de sua crítica à religião e a filosofia. E assim que nós o descobrimos também no detalhe esforço de seu pensamento emergente (1982, p. 7) (tradução nossa). Nesse contexto, salienta-se a postura assumida por Feuerbach sobre uma concepção prática de homem, contrária à posição idealista. A postura assumida por Feuerbach se apresenta, por conseguinte, como a condição de reconhecer para si um movimento que se identifica por dialética. A dialética feuerbachiana se afirma como um diálogo dentro da reconstrução da essência humana, que se salienta a partir do diálogo, diálogo este que segundo nosso autor acontece por parte da consciência. A consciência tem, por sua vez, a condição de postular sua própria identificação, que é algo que só acontece no fundamentar deste diálogo. Este diálogo é algo que acontece de maneira a despertar no homem, essa conversa consigo mesmo, na tentativa de auto reconhecimento. A dialética feuerbachiana, que se transforma em um realismo e materialismo frente ao idealismo, se transforma na contrapartida de uma posição de Hegel, que desconsidera a condição do humana enquanto ser real. Para Feuerbach, o processo dialético ocorre justamente na composição deste diálogo interno, que propõe um reconectar por parte do humano, consigo mesmo – de tal forma que a dialética em Feuerbach se assemelha a dialética marxista, quando a mesma tem por objetivo explicar a consciência, ressaltando que isso em nosso autor acontece de maneira a produzir um processo, muitas vezes, interno de descoberta e redescoberta. Cabe ressaltar que em Feuerbach este diálogo não é apenas interno, mas também se constrói de modo externo, algo que será explanado posteriormente. Assim sendo, coloca-se para nosso autor a seguinte afirmação: O método de Hegel vangloria-se de seguir o curso da natureza; ele inspira-se certamente na natureza, mas falta à cópia a vida do original. Sem dúvida que a natureza fez do homem o senhor dos animais, só que não lhe deu apenas mãos para domar os animais; deu-lhe também olhos e ouvidos para os admirar. A autonomia que a mão 318 O conceito de essência humana em Feuerbach cruel rouba ao animal volta a ser-lhe restituída pelos olhos e ouvidos compadecidos (2012, p. 24). O que se evidencia em tal afirmação é que, embora a postura e método hegeliano se apresentem enraizados na natureza, ou mesmo no seu curso, a crítica postulada em toda a produção feuerbachiana é justamente o fato de existirem falhas nesse método. As falhas destacadas por esse posicionamento são, por conseguinte, as questões do não reconhecimento de uma estrutura de essência fundamentadas no próprio homem, e o fato de Hegel dar importância em demasia à imediaticidade da natureza, dada a natureza de caráter estruturante na teoria hegeliana. Para Feuerbach, a natureza não é algo imediato, e sim algo que se constrói e se apresenta na constituição do real e material, que, por sua vez, é algo que acontece efetivamente com a correlação coexistente entre homem e natureza. Para tanto, esta relação do homem com a natureza, acontece de modo a proporcionar no homem uma superação das condições meramente naturais e existenciais imediatistas, esta superação é a prática da consciência1, esta prática sendo o motor do humano, enquanto capacidade de produzir o mesmo de forma real e completa – de tal maneira que Feuerbach assim afirma: Na natureza, os graus de desenvolvimento não têm, por isso, um significado exclusivamente histórico; são sem dúvida momentos, mas momentos da totalidade simultânea da natureza, e não de uma totalidade particular, individual, que é por sua vez apenas um momento do universo, isto é, da totalidade da natureza (2012, p. 25). O que se demonstra na natureza não é um grau de desenvolvimento, onde o homem só tem sua participação garantida em uma fase deste processo. Os momentos históricos são construídos, porém esta construção acontece em concomitância com a totalidade do universo, que é esta produção da natureza em totalidade. Em outras palavras, a natureza se constrói e se fundamenta em sua totalidade material e não de maneira 1 Esta consciência é algo que se explica em Feuerbach, como sendo a condição humana do auto reconhecimento, e ainda de como condição de auto identificação da essência. Esta consciência é a condição humana que torna possível justamente o entendimento de essência humana para o próprio homem, ou seja, aquilo que o homem necessita para seu auto entendimento. Porém, tal explicação sobre a consciência apresentar-se-á de forma mais completa na sequência do deste texto. 319 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva ideal. O que por sua vez acaba por configurar uma posição imediatista da natureza, visto que a natureza em Feuerbach, é parte integrante do humano e não a condição constituinte do humano. Vale ressaltar que esta natureza, enquanto constituinte do humano, se configura desta forma na condição de relação do homem com seu produto essencial, e não a natureza como condição física material. O que Feuerbach discute ao longo de sua produção filosófica é o que se configura como essência humana, que é, por sua vez, pensar o real desmistificado desta condição de interiorização. A proposta do mesmo é o fato de como esta essência deve orientar o reconhecimento do humano, e por fim como a mesma necessita ser entendida pelo mesmo homem enquanto sua essência e não algo cindido dele mesmo, ao passo que apenas com ela ou com seu despertar, ou mesmo ainda com o reconquistar desta essência. Essa é a superação da alienação causada pela externalização da mesma essência, sendo isto posto quando o homem na criação de um ser controlador e perfeito – a saber Deus –, Feuerbach desenvolve tal discussão, visto a importância do homem em recuperar esta essência, uma vez que, como o pensador identifica a essência do homem está em sua crença no próprio humano, contanto que as capacidades humanas – a saber vontade, amor e razão – que tornam possível a consciência, sejam reconhecidas por ela mesma de forma totalizante. A essência humana consiste, por conseguinte, na capacidade do humano de reconhecer talvez de forma até mesmo incompleta, mas é justamente este entendimento que o homem necessita recuperar, pois só quando este ser entende essa religião é o mesmo que a crença no próprio homem que é aquilo que orienta o humano em sua completude. Feuerbach afirma que esta crença em si move a história e justifica existência deste ser em gênero que é o homem, assim sendo interpretar o homem parte do próprio homem, de maneira que possibilite a percepção dos atributos do homem enquanto atributos humanos e não atributos divinos e exteriores, como então se apresenta na explicação da fonte da essência humana. Trata-se do fato de identificar esta essência enquanto consciência, sendo esta a consciência do gênero ou da humanidade, que se configura justamente como entendimento do humano enquanto humano, ou seja, a essência encontra-se no limiar do reconectar-se do homem com ele próprio que se caracteriza como o reconectar-se com a humanidade – de tal 320 O conceito de essência humana em Feuerbach modo esta consciência é a capacidade de reconhecimento do homem enquanto homem para que o mesmo entenda a realidade a partir da realidade, sendo ela a humana. Isto posto, a fonte da essência humana encontra-se dentro do homem em gênero, que é então, ao que afirma Feuerbach, o objeto de si mesmo, uma vez que é o humano que sente, o humano que ama, e o humano que pensa e se identifica dentro deste ciclo que se completa quando o humano entende que o ponto central da consciência, é o que torna possível o despertar do entendimento da essência. A consciência do infinito é a autoconservação a auto-realização, que acontece ao reconectar-se com a realidade humana, que é justamente esta realidade acessível ao homem, que supera esta infantilidade e inocência de se perceber como ser falho e sem atributos, e em contrapartida religar-se com aqueles atributos externalizados e conferidos a um ser eterno e infinito – a saber Deus – reconhecendo-os como atributos e qualidades estritamente humanas e reais. Assim afirma Feuerbach: Na relação com os objetos sensíveis é a consciência do objeto facilmente discernível da consciência de si mesmo, mas no objeto religioso a consciência coincide imediatamente com a consciência de si mesmo. O objeto sensorial está fora do homem, o religioso está nele, é mesmo íntimo. Por isso, a consciência que o homem tem de si mesmo (FEUERBACH in ZILLES, 2015). O objeto religioso, estando dentro do homem, é então aquilo que se configura, portanto, como a essência que se encontra em si e no reconhecer-se enquanto recobrar da consciência, que é algo que se evidencia na discussão entre homem e ser genérico, sendo esta discussão uma ação que parte do próprio homem, que é este ser munido de sua tríade amor, razão e vontade. E desta maneira, entendendo-se como este ser real que encontra o entendimento de si dentro de si, dentro do outro e dentro da realidade sensível e de maneira alguma em uma realidade suprassensível e metafísica composta de seres metafísicos. Isto apresentado, a primeira preocupação que se tem é identificar o que é esta consciência que torna possível o resgate desta essência humana, o que é este homem em gênero, o que faz do mesmo um ser completo e ainda se preocupa neste momento em esclarecer a necessidade de se pen- 321 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva sar este homem dentro da dualidade eu e tu, que se configura como dualidade do eu com o outro eu, do eu com o outro e do eu com a realidade. 1.1 O que é a consciência O motivo de tal questionamento é, por conseguinte, a necessidade de explicar em que consiste a consciência. O homem é o único ser dotado de consciência, ou seja, o único dotado da percepção dele mesmo e, sendo assim, o único capaz de produzir relação dele com o outro de forma dialética eu e tu. Mas o que de fato é esta consciência e como ela acontece no homem? Feuerbach vai afirmar que a consciência é a religião ou seja a crença do homem real que se vê no mundo e que produz sua existência e domina sua essência a partir da dominação ou do apoderamento desta consciência. Ele ainda destaca em um de seus textos – a saber, Necessidade de uma Reforma da Filosofia – a seguinte afirmação: “Na origem, a religião é fogo, energia, verdade; toda religião começa por ser estrita e incondicionalmente religiosa mas, com o tempo, esgota-se, torna-se infiel a si mesma, indiferente, submete-se à lei do acto” (2002, p. 15), justamente para destacar que este caráter de fogo que queima, queima como fonte de combustão que orienta o homem em sua trajetória rumo a essência, tal fogo deve ser levado em consideração, uma vez que o mesmo pode ser entendido como fonte da consciência, ou propriamente a consciência em si. O problema, por sua vez, consiste em entender esta religião apenas como essa energia, sendo que a condição e percepção da consciência, está ligada diretamente a percepção do homem enquanto ser finito, e de maneira alguma ligada a percepção de um ser infinito que nos concede tal consciência. O próprio Feuerbach afirma: “um ser finito não possui a mínima ideia, e muito menos ciência, de que seja um ser infinito, porque a limitação do ser é também a limitação da consciência” (FEUERBACH, 2013), salientando que a capacidade de reconhecimento é uma qualidade especificamente humana, e que ainda isso deve ser feito por parte da consciência. A consciência deve ser aquilo capaz de fazer com que o homem se perceba no mundo como um ser em gênero, como um ser integral e sagra- 322 O conceito de essência humana em Feuerbach do2. Este ser em gênero, deve ser um ser que percebe a tríade humana – a saber: amor, razão e vontade – uma vez que o homem é um ser que sente, que pensa, e que quer; por sua vez a consciência ou percepção de si deve ser estruturada neste ser completo e não eu um ser exteriorizado que não entende as qualidades humanas como sendo humanas, mas sim qualidades advindas de fora. O ser consciente deve ser aquele capaz de perceber a infinitude dentro de si, esta infinitude entendida como essência humana ou homem completo entendido como homem em gênero – de tal maneira que se apresenta esta necessidade de reconhecimento da essência em Feuerbach, que os comentadores Benedicto Arthur Sampaio e Celso Frederico, assim afirmam: Em suma, segundo Feuerbach, a vida subjetiva do homem pode ser entendida como a presença do objeto universal natural específico no interior do indivíduo, visto que a consciência, para ele é essencialmente universal e infinita (2009, p. 65). A consciência é, em Feuerbach, o significado do homem, pois é aquilo que explica homem, visto que o homem não é um ser cindido. O objeto da consciência do homem que deve ser o predicado ou objeto dele próprio deve estar fundado em si mesmo, uma vez que Feuerbach reconhece que o reconhecimento do humano está no próprio humano – no ser em gênero. A consciência é a alma humana que se define como alma que pensa, que sente e que ama a partir de sua própria realidade e sua relação do eu e o tu, que se fundamenta a partir desta de sua realidade, evidenciado nos respectivos comentadores: “É o homem, enquanto alma humana, não só o único critério, mas também a única identidade, a única mediação da realidade, a sede onde se situa a infinitude dos seres finitos e reais” (SAMPAIO, FREDERICO, 2009, p. 64). Esta realidade deve ser entendida como uma consciência que se define especificamente por ser universal, isto significando que não existe uma negação da consciência e, por conseguinte, 2 A idéia de sagrado, embora não seja tratada propriamente por Feuerbach, fundamenta-se aqui na condição naturalista que defende a posição de que o homem possui uma santidade em si, que, por sua vez, é aquela qualidade única do homem. Aqui, sendo aquilo que tratamos por essência humana, que por conseguinte é o reconhecimento do ser em gênero, que é justamente este ser munido dos atributos humanos, os quais despertam a consciência e possibilitam o reconectar com a essência. 323 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva um vir-a-ser, mas sim um reconhecimento real e constante do humano a partir do humano. Para tanto, essa consciência é tanto exterior quanto interior, uma vez que a mesma se produz, de tal maneira, a partir do reconhecimento do humano com ele mesmo e a partir da relação com a carne, por isso não há uma negação porque depende em certa medida do entendimento de ser enquanto ser material e enquanto ser espírito. Afirma Benedicto Arthur Sampaio: [...] a espécie humana, o gênero natural do homem, é o horizonte de onde a ciência e a verdade; que fica implicitamente proposta uma gnosiologia fundada na ordem natural do ser humano e, por isso, muito a gosto de um certo naturalismo classificatório em Feuerbach, mas já naquela época ultrapassado por outro mais dinâmico (basta lembrar Goethe, Lamarck etc.); que a vida subjetiva, genérica, é somente humana, pois só o homem é capaz de se relacionar com sua espécie sem a presença exterior de outro espécime; que o homem nunca está sozinho porque é ao mesmo tempo um e outro enquanto tem o geral no interior de si mesmo (SAMPAIO, FREDERICO, 2009, p. 65). Este reconhecimento do homem enquanto humano parte, inclusive, desta relação com o tu, mas este tu é um tu inclusive interior, pois o homem é esse ser capaz de se perceber na sua singularidade, e ainda capaz de se perceber como outro como um ser que se objetiva que se lança na realidade e que ainda se percebe através desta sua presença na mesma realidade. Dessa maneira, Feuerbach acaba que por salientar o que é a fonte da consciência enquanto a forma como ela trabalha e funciona como estando fundamentada na condição do real e material, apresentando por sua vez que a abstração proposta pelo idealismo não existe, uma vez que a proposta idealista de conexão com a essência humana está fundamentada na condição ideal e não concreta. O que se apresenta na posição de Feuerbach acerca daquilo que pode ser entendido enquanto realização da consciência, e, enquanto entendimento de essência, é, portanto, que tal acontecimento acontece e se fundamenta na condição e na estrutura do real, e que aquela dialética proposta pelo idealismo como forma de reconhecimento desta, então, essência não acontece em uma realidade ideal, que tem por fonte a ideia, mas sim que 324 O conceito de essência humana em Feuerbach acontece em uma realidade real que tem por fonte o material, a saber este material é a própria realidade humana. Esta percepção de si parte, então, em certa medida inclusive da relação com o outro homem, uma vez que se toma a produção da consciência e ainda o reconhecimento da essência dentro da realidade real material, e de maneira alguma a produção desta essência, ou mesmo que seja a percepção desta essência deve acontecer de maneira reflexiva, que por sua vez acaba que por anular o dado aparente, ficando apenas com a relação Idealista. Esta abstração questionada e superada por Feuerbach acontece, uma vez que o mesmo não percebe no ato reflexivo apenas a possibilidade de produção ou mesmo de identificação da consciência do próprio humano. Para tanto esta abstração que corresponde a uma ação efetivamente psicológica, não brota da ação filosófica e por conseguinte não funciona partindo da mesma abstração como ponto de referência ou ainda como ponto de partida para a produção da mesma consciência ou percepção do homem em gênero que corresponde respectivamente ao humano real dotado de sua essência completa ou, por assim dizer, munido em totalidade de sua percepção de ser real e ativo dotado de uma razão, uma vontade e um sentir que fazem de homem este ser consciente no sentido de identidade. Isto posto, a função da Filosofia em Feuerbach é justamente a de proporcionar este despertar da consciência que só pode acontecer em contato com a realidade. De tal forma que o papel da Filosofia deve ser o de assumir a consciência do ser em gênero, tomando como papel este articular do humano com o “eu e o tu”, com o “eu e a realidade”, com o “eu e o outro” – de forma a apresentar a consolidação do exercício consciente do homem em gênero, utilizando-se de uma relação total com o empírico, sendo este empírico usado como fonte da correlação existente entre esta esfera do ser humano em gênero com a sua realidade exterior e interior. Assim sendo, afirma Benedicto Arthur Sampaio: “A ‘redenção do homem’ não significa, por conseguinte, o reatamento da aliança com Deus, mas antes o reatamento da aliança entre homens, aquela que deve ter vigorado no Éden antes da ‘queda’” (SAMPAIO, FREDERICO, 2009, p. 65). Metáfora feita, o que o autor afirma ou tenta elucidar é aquela percepção que Adão possuía no paraíso, onde o mesmo se concebia como ser total sem nenhuma exterioridade que o torna um ser minorizado. 325 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva Ainda relacionado à metáfora, o mesmo não entendia essa relação com Deus como algo de superioridade ou mesmo de estranheza, visto que ele comungava constantemente desta percepção de si em totalidade dentro dos moldes da criação. Na sequência ainda temos a seguinte afirmação: “A essência do cristianismo, o enigma revelado de Cristo é o homem, não é Deus” (SAMPAIO, FREDERICO, 2009, p. 65). Para tanto, a essência e explicação sobre o próprio homem estão nele próprio, e não em algo exteriorizado a ele – a saber, Deus. Sendo assim, a produção da consciência parte do humano real e constante e de maneira alguma pode partir de uma realidade superior que é, por sua vez, irreconhecível pelo humano e ainda incabível de reconhecimento visto que o mesmo não entende tal realidade. Esta essência está presente no homem concreto dentro desta universalidade com o interior de si, ou seja, o entendimento e reconhecimento do humano parte da universalidade e da totalidade da tomar ciência de seus atributos que, por conseguinte, o constituem com um homem em gênero. Neste sentido, esta então abstração que propõem o idealismo, ou ainda a dualidade homem e exterioridade de si ou essência cindida, promove a perda ou até mesmo a não percepção de sua consciência, uma vez que esta dependência proposta pelo idealismo desse absoluto não promove no humano a capacidade de conhecer ou mesmo identificar esta consciência a partir de si e de uma realidade que parte do humano – uma vez que a consciência se produz e se torna identificável resultante da relação sujeito-objeto, visto que este objeto é a primeira instância o próprio sujeito que se identifica em sua totalidade justamente por existir esta relação de eu e o eu, do eu e o tu, e do eu com o tu e com a realidade. O homem é a manifestação da consciência enquanto predicado do próprio humano, o humano é, portanto, a essência manifesta desta consciência. Esta consciência parte do evidenciar deste predicado deste ser real e material que revela e toma conhecimento de si enquanto ser completo partindo de si, do outro e da realidade como um todo e nada exteriorizado, o próprio Feuerbach assim proclama: “‘[...] só é absolutamente homem aquele que não exclui de si nada essencialmente humano. Homo sum, humani nihil a me alienum puto (humano sou, nada humano considero alheio a mim)’” (FEUERBACH, in SAMPAIO, FREDERICO, 2009, p. 77). Assim, afirma-se o que Feuerbach compreende por genérico, ou homem 326 O conceito de essência humana em Feuerbach em gênero este ser completo que se realiza e se afirma, a partir desta própria consciência de si que se produz com base neste relacionar-se consigo, e deste relacionar-se com o real, e não como esta abstração que parte, segundo o idealismo, da proposta que tal consciência ou mesmo esta autoconsciência, como intitula Hegel, está exteriorizada e é necessário para tanto este relacionar com o objeto para alcançar tal autoconsciência, que é no que lhe concerne a realização suprema do idealismo abstrato, se tornando possível o alcance desta autoconsciência apenas de forma exterior, para a qual o humano não poderá se reconhecer. Isto posto, este homem em gênero se satisfaz e se realiza partindo da pura percepção deste humano, isso se caracteriza, portanto, como o “absoluto” em Feuerbach, visto que isto se configura como o alcance da universalidade do homem ser genérico, que é em instância consciente o auto-esclarecimento, partindo deste ser real que é o humano. Neste sentido, toda modificação – sendo ela de qualquer princípio – só pode ocorrer na atividade exclusiva da consciência humana, de maneira que só se torna possível qualquer ação partindo do entendimento dos atributos humanos que são acessíveis por meio da consciência, que só é algo possível partindo das virtudes humana razão, amor e vontade. O entendimento para tanto se configura a partir do próprio sujeito em relação consigo e com o outro, ou seja, o entendimento desta produção humana enquanto capacidade estritamente humana se identifica enquanto consciência. Assim sendo isto se configura enquanto homem em gênero, que é este ser completo ou que alcança completude por meio do recuperar a essência, que é o que se segue a discussão. 1.1.1 O homem em gênero O homem em gênero, ou o ser genérico, é aquele ser capaz de, por meio efetivo da consciência, recobrar a essência humana e ainda capaz de identificar a fonte da mesma essência, ou seja, o homem genérico é o ser que se reafirma a partir do recobrar da realidade humana enquanto puramente humana, uma vez que esta realidade só pode ser entendida em Feuerbach quando se postula que para ele a realidade só pode ser apreendida pelo homem de tal forma que quando o mesmo não se percebe enquanto ser real e completo – a saber, em gênero – o mesmo não constrói realidade e não apreende a mesma existente, sendo que, portanto, a realidade perde seu papel. 327 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva O que se pretende do homem em gênero na obra de Feuerbach é que o homem seja capaz de resgatar ou até mesmo de identificar sua consciência como fonte da realidade humana, sendo que a consciência propõe e deve propor a realidade, pois é na mesma e neste relacionar-se que acontece a então realidade. Urbano Zilles assim comenta: Feuerbach admite a unidade do infinito e do finito. Mas ao contrário de Hegel, põe o infinito no homem e não no absoluto. E o homem, para Feuerbach, é ‘corpo consciente’, não puro pensamento. [...] Com isso, o secundário torna-se o primeiro, absolutizando-se a consciência em relação ao ser, subordinando o método dialético ao sistema; em vez de tomar a realidade (a natureza) como critério para a filosofia, esta torna-se critério para a realidade (ZILLES, 2015, p. 104). Para tanto discute-se este corpo consciente, que é por conseguinte este ser em gênero que se estrutura e fecunda-se na realidade. Este ser que se propõe de fato é a explanação deste homem em gênero, que parte da condição deste então corpo consciente que é capaz de fazer uso de sua própria realidade ou natureza por parte da capacidade crítica que ele mesmo desenvolve, quando busca se reconectar com este infinito que era então pensamento. Por consequência, a ação, ou ainda, a unidade que possibilita o desvelar da consciência do ser parte ou está contida dentro do próprio ser, e de maneira alguma exteriorizada seja ela em forma de pensamento enquanto qualidade do absoluto, seja enquanto morfologização de um ser com atributos divinos perfeitos e infinitos. Este ser em gênero que propõe Feuerbach é um ser que se torna capaz de estabelecer o resgate de sua condição humana, que é, por coincidência, o resgate dos atributos simplesmente humanos que lhe foram retirados por conta da perda de consciência que ocorre ao longo da existência humana, de tal forma que Feuerbach assim defende: O homem singular por si não possui em si a essência do homem nem enquanto ser moral, nem enquanto ser pensante. A essência do homem está contida apenas na comunidade, na unidade do homem com o homem – uma unidade que, porém, se funda apenas na realidade da distinção do eu e do tu”. [...] A solidão é finitude e limitação, a comunidade é liberdade e infinidade. O homem para 328 O conceito de essência humana em Feuerbach si é um homem (no sentido habitual). o homem com o homem – a unidade do eu e do tu – é Deus (FEUERBACH, 2002, p. 98). A tal ponto se reconhece, então, que o que se discute por ser em gênero é o homem dentro daquilo que pode ser explicado como realidade humana, sendo por sua vez um ser capaz de estabelecer a relação de comunidade, uma comunidade não com os outros ou melhor não só com os outros, mas sim uma relação que começa neste diálogo do eu comigo mesmo que é onde reside a essência humana, ou seja, a fonte do genérico é o próprio interior deste ser, que aí então por sua vontade amor e razão consegue acesso à consciência e desvela o ser completo. O que se discute propriamente é a demonstração dos atributos que se configuram nesta trindade divina, como especificidades humanas e seja o que for que o homem se põe, ele faz isso para ele mesmo e só o faz à medida que consegue perceber as excelências que lhe são suas e apenas suas – de tal maneira que Alice Aleixo assim comenta: A especificidade humana reside na capacidade que o homem tem de ser consciente de si, ou seja, de ter como objecto o seu próprio gênero. O homem é um eu e um tu e é na consciencialização da intersubjetividade que o homem se apreende como membro da espécie. Enquanto no animal a vida interior coincide com a vida exterior, no homem elas são distintas. A vida interior é a relação que o homem estabelece com a sua essência universal. Sabemos que a tríade clássica que define a essência humana é constituída pela unidade da vontade, da razão e do coração. Mas esta unidade, além de definir a verdadeira essência do homem, é também o fundamento da sua existência. Querer, pensar, amar, são os propósitos que movem o homem; [em linguagem fenomenológica diríamos que são as intencionalidades possíveis da consciência, tomada em sentido lato]. Mas se eu vivo para agir pensar e amar, é porque posso agir, posso pensar e posso amar, ou seja a minha essência determina a existência. Isto significa que o fim último do ser é também o seu verdadeiro fundamento. Então podemos dizer que a vontade, a razão e o sentimento, numa palavra, a essência humana existe em função de si. Ora o que existe em função de si é verdadeiro, perfeito e divino (2009, pp. 9-10). A configuração, então, do genérico deve reconhecer-se enquanto fonte ou melhor dizendo como princípio para o acessar da essência hu- 329 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva mana, pois, uma vez posto tal acesso, o recuperar e resgatar dessa essência deve acontecer de maneira a possibilitar a comunidade do homem com a realidade humana. Assim completa Urbano Zilles: Mas Feuerbach não para na contemplação do eu pelo tu. A essência do homem não só se atualiza no encontro do eu com o tu, mas na totalidade da humanidade, da espécie humana: o outro é o representante da espécie. Através do tu o olhar se abre para a humanidade, pois no outro tenho a consciência da humanidade. A espécie é, para Feuerbach, o homem pleno. Por isso a medida da espécie é a medida absoluta, lei e critério do homem (ZILLES, 2015, p. 106). O homem pleno em Feuerbach é este ser que se identifica enquanto espécie, sendo por conseguinte o homem em gênero, que se realiza nesta comunidade entre o eu e o tu, entre o homem e sua humanidade, para tanto a essência se concebe enquanto ação humana que é proposta de forma ativa e real e de maneira alguma de forma idealizada e puramente pensada. A configuração deste genérico constitui-se por parte em primeira instância do resgatar dos atributos humanos, porém, em uma relação de complementação com o outro, uma vez que este outro pode se configurar enquanto reconciliação consigo mesmo, com a sua realidade e com a sua humanidade que é a síntese final deste processo de recuperação ou resgate da essência humana. 1.1.2 A Consciência de Si A consciência de si é um processo que acontece dentro das relações de humanidade do homem com a própria realidade ao passo que o mesmo alcança a capacidade de reflexão. O que Feuerbach vai discutir ao longo de sua produção filosófica é como acontece o desenvolvimento da consciência de si e ainda como este recobrar da consciência de si é fundamental para a realização do homem em gênero, salientando, portanto, que este processo de reconhecimento que deve acontecer para proporcionar este recobrar da consciência tem como responsável a então Filosofia, que é por sua vez uma reflexão desenvolvida pelo homem ao longo da história para proporcionar o entendimento do mesmo dentro da realidade. O homem nada é e não se realiza enquanto não se percebe como humano dentro de sua humanidade, para tanto o que Feuerbach discu- 330 O conceito de essência humana em Feuerbach te dentro de sua produção antropológica acerca da essência do ser tem como primazia o despertar da consciência primeiramente de si, por mais que este realizar da consciência se completa na relação com o tu, tal proposta só pode acontecer quando o entendimento de si e de seus atributos já tenha ocorrido. O resgate desta consciência deve ser o ponto de partida para a formulação do homem genérico em Feuerbach uma vez que o mesmo não reconhece, ou ainda faz crítica ferrenha às limitações que são impostas ao próprio homem, sendo que essas limitações que o mesmo homem se impõe acabam por produzir um retroceder e um atrofiar das capacidades humanas, que devem ser encaradas como tal, ou seja são capacidades da humanidade, do humano. A consciência de si, é uma forma de produção de consciência do infinito porém este infinito deve ser entendido não como algo metafísico como a exteriorização dos atributos divinos para Deus, mas como faculdade do homem de se perceber dentro de sua humanidade. A percepção da humanidade nada mais é que o resgate da essência do homem que reside nele mesmo – o homem. Assim afirma Alice Aleixo: Se, enquanto indivíduo, me reconheço como limitada, tal só é possível porque justamente tenho como objecto a perfeição. Atribuir as limitações à espécie é, para Feuerbach, uma ilusão injuriosa, que resulta da identificação imediata entre o indivíduo e o gênero. A humilhação pelo reconhecimento das minhas imperfeições individuais leva o entendimento a considerá-las como imperfeições genéricas. Com esta transferência, do individual para o genérico, não só apago a vergonha que sinto pelas minhas limitações, como também as justifico (2009, p. 12). A consciência de si deve acontecer neste processo de superação destas então imperfeições que tornam o homem um ser que se humilha frente a sua essência, justamente por não perceber que isto que ele em si adora, nada mais é do que seus próprios atributos humanos que se configuram como uma qualidade que lhe é sua, uma qualidade humanizada. A grande capacidade que deve ser discutida, afirma Feuerbach, é a condição que o ser para se tornar genérico precisa se impor para produzir o então reconhecimento. De tal forma, o filósofo salienta que as capacidades ou estes atributos que são faculdades do homem nada são sem o contato com o humano, neste sentido o desenvolver desta então consciência de si 331 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva funciona como o processo de efetivação desses atributos ou faculdades, que em tal grau só existem e tem sua clara efetividade se estão em consonância com o humano. Assim aponta Feuerbach: “Consciência é o ser-objeto-de-si-mesmo de um ser; por isso não é nada especial, nada diferente do ser que é consciente de si mesmo” (FEUERBACH, 2013, p. 39), assim sendo o pontapé inicial deste resgatar-se acaba sendo aquilo que em última instância nada mais é que a necessidade que o humano se impõem para que a produção do entendimento sobre a própria essência aconteça. O que se põe é que qualquer discussão que aconteça a partir deste princípio de se discutir e propor um entendimento e explicação sobre a essência humana passa pela proposição do uso de um objeto de reflexão, que por sua vez é este objeto a então consciência, que em tal proposta discute-se sobre o reflexo da recobrada de consciência e estabelece um elo com a consciência do outro. A comentadora Alice Aleixo ainda ressalva: Mas este mecanismo de defesa, se assim lhe podemos chamar, assenta numa ilusão. Aquilo que a essência afirma não pode ser negado pelo entendimento que é ele próprio uma determinação ontológica dessa essência. Até onde vai o entendimento vai também a tomada de consciência das capacidades ilimitadas da essência, ou seja do Deus que, na medida em que é através de nós, é também cada um de nós (2009, p. 12). Este mecanismo, entendido com a consciência de si, trabalha no sentido da tomada desta mesma, para com o neste caso ser genérico que se realize e se identifica como propriamente o eu, como um ser real com atribuições reais e que possibilitam em contrapartida o desenvolvimento desta disposição que é o reconhecer-se dentro destas então especificações puramente da essência humana. Visto isto a proposição que se estabelece a partir deste reconexão com a consciência de si é o paradoxo da consciência de si enquanto em si e no outro, este outro sendo entendido enquanto outro eu no paradoxo do diálogo comigo mesmo, e ainda sendo entendido como o outro humano que estabelece relação de humanidade real, consequentemente propondo aqui uma dualidade a dualidade entre consciência de si e do outro. 332 O conceito de essência humana em Feuerbach 1.1.3 A Dualidade entre Consciência de Si e do Outro Tal proposta se configura em Feuerbach como uma interação necessária para estabelecer a essência do homem enquanto aquilo que foi chamado de “corpo consciente”. Esta dualidade que se apresenta, ou que pode ser entendida como um paradoxo, funciona como que um dos alicerces daquilo que pode ser atribuído por essência humana em Feuerbach. A consciência de si acontece ao dialogar com o outro, porém, nem sempre esse outro é o outro homem – embora esta relação também se configure como uma máxima na representação da essência. Este dialogar acontece de maneira que o homem completo busca neste relacionar consigo ou como afirma Feuerbach “A vida interior do homem é a vida relacionada com seu gênero, com sua essência. O homem pensa, i.e., ele conversa, fala consigo mesmo” (FEUERBACH, 2013, p. 35), isto é o que homem deve buscar seu reconectar-se dentro de si, em um processo de resgatar-se de identificar de assumir sua qualidade humana que reside dentro deste “corpo consciente” munido de sua tríade do gênero que são amor, vontade e razão, qualidades humanas que tornam possível o despertar da consciência do homem que se auto determina na realidade puramente humana. Mais adiante, Feuerbach complementa: O animal não pode exercer nenhuma função de gênero sem um outro indivíduo fora dele; mas o homem pode exercer a função de gênero do pensar, do falar (porque pensar e falar são legítimas funções de gênero) sem necessidade de um outro. O homem é para si ao mesmo tempo eu e tu; ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência, não somente a sua individualidade, é para ele objeto (2013, p. 35). Isso para confirmar este dualismo que existe dentro do próprio homem do eu e do tu, o que se põem nesta afirmação é a capacidade que o homem possui de discutir com ele mesmo. O homem deve ser capaz de refletir de discutir com seus próprios pensamentos, e é dotado de atributos que possibilitam tal ação, uma vez que como bem ressaltado os pensamentos do homem não são apenas assuntos que apresentam o homem na sua individualidade de realidade, estes pensamentos, este pensar é em primeira instância objeto da própria reflexão do homem. Posto de outra maneira, o homem só consegue alcançar a capacidade do diálogo com o 333 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva outro fora dele, quando o mesmo já alcançou esta capacidade internamente, ou ainda de outra forma a se apresentar o homem só consegue refletir sobre a realidade, primeiramente porque percebe em si a capacidade de pensar sobre a mesma, e posteriormente porque qualquer análise feita da realidade é feita em primazia dentro do indivíduo. O que se coloca até o momento é que o homem só consegue ser este ser capaz de exercer seus atributos propriamente humanos na realidade, porque ele já faz primeiramente este exercício internamente. A questão da dualidade entre o eu e o tu ser algo de alguma complexidade, é que para que o completar do homem em gênero aconteça efetivamente dentro da realidade puramente humana, este completar deve acontecer primeiramente, e com maior grau de importância, com reconhecimento e objetivação da própria essência, que é de fato o eu exteriorizado de maneira não a perder o contato, mas como forma de análise da mesma essência, o próprio Feuerbach afirma: “O homem nada é sem objeto.[...] Mas o objeto com o qual o sujeito se relaciona essencial e necessariamente nada mais é que a essência própria, objetiva deste sujeito” (FEUERBACH, 2013, p. 35). O que se afirma com a questão da dualidade entre o eu e o tu é a condição de reconhecimento do homem em gênero que por sua vez acontece na relação do homem com sua essência e o uso dos atributos humanos para estabelecer esta conexão, o que, por conseguinte, se configura pelo uso da consciência que acontece pela ativação deste embate de reconhecimento do eu no tu. Assim complementa Urbano Zilles em sua exposição sobre o pensamento feuerbachaquiano: Valoriza-se o homem não só em relação ao tu, mas em relação à humanidade. O homem é o eu e o tu em sua reciprocidade. O outro representa o gênero humano, a espécie, que é o homem perfeito e o critério do homem e da verdade. A espécie humana, é o critério de todas as coisas (2015, p 107). A reciprocidade, entendida com este processo de reconectar o homem com sua humanidade em um sentido a possibilitar este retroceder constante, este conflito com o outro eu – conflito no sentido de discussão com o outro ao ponto de reencontrar a essência – possibilita, por sua vez, o entendimento de humanidade, este ato recíproco do eu com o outro eu configura o entendimento de humanidade, uma vez que não se há per- 334 O conceito de essência humana em Feuerbach da mais nesta então dualidade, mas pelo contrário só há ganho visto que o homem então desvenda em si mesmo a espécie, aquilo que Feuerbach intitula gênero, que é, por sua vez, a realização do homem perfeito do homem completo. O que se realiza neste processo para tanto é a possibilidade de entendimento de ser em gênero uma vez que a consciência de si só é tal consciência quando desenvolve este exercício e reciprocidade como a outra consciência de si com o tu. Visto isso, a completude da explicação sobre o processo de reconhecimento do ser em gênero, ou mais propriamente do reconhecimento da essência humana, se completa com a explicação do que são os atributos humanos – tão citados ao longo do texto –, e como os mesmos funcionam e interagem neste processo. Evidenciam-se aqui, neste momento do texto, os atributos que Feuerbach chama de tríade da essência, que são amor, vontade e razão – destacando que amor como capacidade de sentir do homem, vontade como capacidade de querer, e razão como capacidade de pensar, só podem ser elementos integrantes da constituição e fundamentação da consciência e posteriormente da essência humana, quando se encontram em processo de relação e correlação. De tal modo que explicar estes atributos, e, por conseguinte, esta relação entre eles, tornam-se a preocupação deste texto nesse momento. Referências ALEIXO, A. Ludwig Feuerbach. Um Manifesto Antropológico. Artigos LUSOSOFIA. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/aleixo_alice_feuerbach.pdf. Acesso em 01 de junho de 2016. FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo. 4 ed. Trad. José da Silva Brandão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. ______. Para a Crítica da Filosofia de Hegel. Trad. Adriana Veríssimo Serrão. São Paulo, SP: LiberArs, 2012. ______. Princípios da Filosofia do Futuro. Trad. Arthur Morão. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2002. 335 Jéfferson luiz sCHafransKi da silva GOOCH, Todd. “Ludwig Andreas Feuerbach”. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition). Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: http://plato. stanford.edu/archives/win2016/entries/ludwig-feuerbach/. Acesso em 23 de novembro de 2016. SAMPAIO, B. A.; FREDERICO, C. Dialética e materialismo: Marx entre Hegel e Feuerbach. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. WARTOFSKY, M. W. Feuerbach. New York: Cambridge University Press, 1977. ZILLES, U. Filosofia da Religião. 6ª ed., São Paulo: Paulus, 2015. 336 Para além da dialética: da contemplação ao perigo da experiência estética Renan Pavini (PUCPR/UEM) Agamben, ao nos lembrar do embate que chega até Platão entre filosofia e poesia, coloca – em linhas gerais – um segundo momento desse divórcio (é sua expressão): “é provável que o segundo evento fundamental, depois do banimento platônico, deveria ser identificado naquilo que Hegel escreve sobre a arte na primeira parte das suas Lições de estética” (AGAMBEN, 2012, p. 93). O autor retoma, grosso modo, as ambiguidades hegelianas em relação à arte, definindo ora como tendo um “alto posto”, ora “como coisa do passado”. É como se Hegel, na aurora do século XIX, retomasse aqui – tal como Platão o fez – a separação entre filosofia e poesia e, por fim, na busca do verdadeiro conhecimento, esse conhecimento absoluto do espírito, só pudesse ser alcançada pela filosofia e não pela arte (como a poesia, no caso platônico).1 Sobre esse evento, Agamben (2012, p. 94) ainda escreve: “é comum esquivar esse juízo de Hegel, objetando que desde a época escrevia seu elogio fúnebre, a arte produziu inumeráveis obras-primas e assistimos ao nascimento de outros tantos movimentos estéticos”, e ainda, ao lembrar que Heidegger retomou os problemas entre arte e filosofia, afirma que não deveríamos tomar a reflexão hegeliana sobre a arte de maneira superficial. Essa superficialidade consiste justamente em não lembrar que Hegel nunca pronunciou a noção de “fim da arte” 2 – declinando de sua po1 2 Hegel (2001, I, p. 283) não só escreve que a “filosofia não é necessária” para o artista e que pensar filosoficamente é uma atividade oposta à arte, bem como já no prefácio de A fenomenologia do espírito o próprio autor admite: “não é difícil ver em nosso tempo é um tempo de nascimento e transito para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de transformação. Certamente o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para frente” (HEGEL, 2005, p. 31). Nesta citação já se observa o valor que Hegel atribuiu à filosofia em seu tempo para elevar o espírito e colocá-lo em processo de sua auto-realização, sendo que o tempo da religião e da arte já se passou. A expressão nunca foi efetivamente utilizada por Hegel em seus cursos, tendo seu nome batizado pelos comentadores de Hegel. Apenas podemos identifica-la a partir de algumas afirmações de Hegel. Vamos rastrear essas afirmações e pensá-las mais adiante. Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 337-350, 2017. 337 renan Pavini sição acima – e, portanto, que o filósofo alemão não institui a morte da arte mas, ao contrário, pensou a arte de modo mais elevado possível, “a partir da sua autossuperação”. Agamben (2012, p. 95) escreve que o juízo de Hegel não é “um puro e simples elogio fúnebre, mas uma meditação sobre o problema da arte no limite extremo do seu destino, quando ela se desprende de si mesma para se mover no puro nada, suspensa em um tipo de limbo diáfano entre o não-ser-mais e o seu não-ser-mais-ainda”. Agamben, para dar conta dessa autossuperação da qual Hegel faz menção em seus cursos, nos dá sua leitura particular de Hegel e, por isso, a tomamos aqui apenas como ponto de partida. 3 O que Agamben deixou de comentar é que antes mesmo de Nietzsche ter submetido Kant a sua crítica radical no que diz respeito à arte desinteressada, Hegel já tinha observado a falência da arte interessada através da Crítica da Faculdade do Juízo e, o próprio Hegel, vendo que em sua época a arte já não mais representa o interesse do espírito, afirma em seus Cursos de estética (2001, I, p. 35): Seja como for, o fato é que a arte não mais proporciona aquela satisfação das necessidades espirituais que épocas e povos do passado nela procuravam e só nela encontravam; uma satisfação que se mostrava intimamente associada à arte, pelo menos no tocante à religião. Os belos dias da arte grega assim como a época de ouro da Baixa Idade Média passaram. A cultura [bildung] da reflexão, própria de nossa vida contemporânea, faz com que nossa carência esteja, ao mesmo tempo, em manter pontos de vistas universais e em regular o particular segundo eles, seja no que se refere à vontade seja no que se refere ao juízo, de tal modo que, para nós, as For- 3 Sobre a questão da superação, basta lembramos o que o próprio Hegel (2014, II, p. 342): “Por fim, o humor superou novamente a fusão do conteúdo com tal caráter limitado específico, humor que soube fazer valer vacilar e solucionar toda determinidade e, desse modo, deixou a arte ultrapassar sobre si mesma. Nesse ultrapassar da arte sobre si mesma, todavia, ela é igualmente um recuar do ser humano sobre si mesmo”. Aqui Hegel dispara sua crítica o humor subjetivo, que, segundo o mesmo, esta “autossuperação” nada mais é do que um “recuar”, e o humor pode então se avizinhar da arte simbólica (que, para Hegel, é entendida como pré-arte): “o humorístico por assim dizer retorna ao simbólico, onde igualmente o significado e a forma estão separados; com a ressalva de que agora é a subjetividade do poeta que dispõe da matéria e do significado, e os alinha numa ordem estranha” (HEGEL, 2014, II, pp. 336-337). Desta forma, é insustentável colocar que Hegel, nesse limiar do que podemos entender por “fim da arte”, encontrou aí seu aspecto mais elevado. Essa manifestação artística que o próprio Hegel está a combater contraria mesmo seu entendimento histórico metafísico. 338 Para além da dialética: da contemplação ao perigo da experiência estética mas, leis, deveres, direitos e máximas, enquanto universais, devem valer como razões de determinação e ser o principal governante. Mas para o interesse artístico bem como para a produção de obras de arte exige-se antes, em termos gerais, uma vitalidade, na qual a universalidade não está presente como norma e máxima; pelo contrário, age em uníssono com o ânimo e o sentimento. É o mesmo que ocorre com a fantasia, que contém o universal e o racional unidos com um fenômeno concreto sensível. Por esta razão, o estado de coisas da nossa época não é favorável à arte. Mesmo o artista mais experiente não escapa desta situação. Ele não é apenas induzido e incitado a introduzir mais pensamentos em seus trabalhos mediante reflexões que em torno dele se manifestam e pelo hábito universal de enunciar opiniões e juízos sobre a arte. Pelo contrário, a natureza de toda a cultura [Bildung] espiritual faz com que esteja justamente no centro desse mundo reflexivo e de suas relações. Ele não poderia abstraí-lo por vontade e decisão pessoais; nem por meio de uma educação específica ou de um distanciamento das relações humanas fabricar e formar uma solidão particular, restauradora do que se perdeu (grifo nosso). Ante esta citação, basta lembrarmos brevemente do § 8 da Crítica da Faculdade do Juízo para entendermos então as críticas endereçadas a Kant – uma vez que Hegel se abstém de citá-lo diretamente aqui. Kant, ao considerar possíveis juízos universais estéticos, remete-se ao juízo de gosto da reflexão. Este se opõe tanto à universalidade lógica quanto à validade universal determinante, uma vez que os juízos estéticos reflexionantes têm validade universal subjetiva e não são fundados em conceitos ou em juízos sintéticos a priori, mas através do sentido de prazer desinteressado que, enquanto um juízo reflexionante em que nada é postulado, “crê ter em seu favor uma voz universal e reivindica a adesão a qualquer um” (KANT, 2012, p. 53). Voz universal com vista ao desinteresse e sem mediação de conceito. Como isto é possível? Logo abaixo, Kant (2012, p. 53) nós traz um esclarecimento: “a voz universal é, portanto, somente uma ideia (em que ela se baseia não será ainda investigado aqui)”. Evidencia-se que Kant não nos responde quanto ao fundamento da ideia de beleza, uma vez que se abstém de investigar. Entretanto, mais do que isso, o que nos interessada é observar que no que compete à arte é a visão kantiana que cada vez mais começa a ganhar corpo e, para 339 renan Pavini Hegel, a arte, ao perder sua vitalidade de outras épocas, só se tornou desinteressada porque se tornou objeto de reflexão e de especulação filosófica. Hegel não pode deixar de notar que, em sua época, e graças a uma mentalidade a partir da estética kantiana, a arte já não encontra mais aquela vitalidade de outrora, a saber, “a arte é e permanecerá para nós, do ponto de vista de sua destinação suprema, algo do passado” (HEGEL, 2001, p. 35, grifo nosso). Com a decaída a vitalidade da arte, Hegel entende que ela não se destina mais as necessidades espirituais, ou seja, a arte não mais se encontra na alta posição que eleva o espírito em sua caminhada história, necessária e lógica, para sua efetivação, ao contrário, a arte agora nos abre uma carência. A carência que se remete Hegel é justamente a carência artística que ficou relegada à cultura da reflexão, própria da tentativa kantiana de universalidade a partir dos juízos estéticos reflexionantes. Ora, é o próprio Hegel que afirma, na citação acima exposta, que em sua época o interesse artístico perdeu sua vitalidade e “mesmo o artista mais experiente não escapa desta situação”, desta cultura da reflexão sobre a arte. Percebe-se com que tamanha consciência o próprio Hegel já observou, antes mesmo de Nietzsche, a mudança de uma arte interessada, com uma vitalidade tal que era tratada como um bem supremo na medida em que brotava do próprio espírito, de sua verdade e de sua liberdade, configurando-se numa marcha rumo ao espírito absoluto e, em sua contemporaneidade, onde realiza o diagnóstico que “o pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte” (HEGEL, 2001, p. 34). Isto, em termos hegelianos, significa dizer que a arte, para a humanidade, para sua época, para seu povo, não mais contribuirá para a elevação e efetivação do espírito na história. E eis que o próprio Hegel, ao fazer tamanho diagnostico, só pode mergulhar mais ainda nele e, paradoxalmente, acompanhar a empreitada já criticada de Kant, dar passos largos à cultura da reflexão. Isto se confirma quando Hegel específica o seu interesse para com a arte: “A arte nos convida a contemplá-la por meio do pensamento e, na verdade, não para que possa retomar seu antigo lugar, mas para que seja conhecido cientificamente o que é a arte”. Agora a arte não é possível a partir de sua vitalidade, mas só é possível a partir de uma reflexão que lhe é exterior. A necessidade de elaborar uma ciência da arte (ou filosofia da arte) não pode nos passar despercebida, uma vez que Hegel se coloca na posi- 340 Para além da dialética: da contemplação ao perigo da experiência estética ção de filósofo e, de forma inafiançável, opõe arte e filosofia: “A Filosofia [para o artista] não lhe é necessária, e se ele pensa de modo filosófico realiza uma atividade justamente oposta à arte, no que se refere à Forma do saber” (HEGEL, 2001, p. 283). Aqui se percebe duas coisas importantes: a) para a arte ter sua vitalidade própria, o artista não precisa da filosofia (cultura da reflexão); b) uma vez separadas, a crítica a cultura da reflexão sobre a arte, tendo seu grande represente Kant, se prolonga com o próprio Hegel, no momento mesmo em que está disposto e empreender uma leitura científica da arte. Se não é mais possível a arte enquanto manifestação suprema do espírito, se ela está relegada ao passado, então o que nos restaria senão uma reflexão sobre a arte de quando ela detinha seu mais alto grau, de quando ela estava vinculada com a sua mais alta realização metafísica e, ainda, uma reflexão sobre seu destino mesmo, isto é, seu próprio declínio e, portanto, seu próprio limiar. Se é verdade que um dos pontos levantados por Hegel sobre “o fim da arte” está ligado ao surgimento de uma cultura da reflexão, não é menos verdade que outro ponto essencial é a questão da ironia romântica que nada mais é, para Hegel, do que a própria decadência da arte. Antes de entrarmos na posição de Hegel sobre esta ironia, é necessário entender como o filósofo compreendeu e definiu a arte romântica.4 No segundo tomo de seus Cursos de estética, Hegel, depois de tratar detidamente das formas de arte simbólica5 e clássica6, se reteve nas for4 5 6 Arte romântica aqui que não pode ser confundido com o romantismo alemão, como se verá. Grosso modo, podemos entender o simbólico nos Cursos de estética reduzido à arte simbólica ou a arte do oriente. Hegel a entende como aparição inferior e, portanto, não bela, em oposição à bela arte clássica dos gregos. Para o filósofo, a arte simbólica traz tanto uma inadequação entre forma e conteúdo, quanto uma apreensão imediata do objeto simbólico apenas em sua exterioridade, o que causa uma exacerbada objetividade, uma materialidade sensível sobre a interioridade do significado. Esta objetividade leva Hegel definir a arte simbólica como uma forma imperfeita, uma vez que ela se mostra uma forma muito elevada de imediatidade e contingencia. Sobre o desenvolvimento de simbólico no pensamento de Hegel, cf. Jeong-Im KNOW. “Die metamorphosen der ‘symbolischen kunstform’”. In Annemarie Gethmann-Siefert. Phänomen versus System. Bonn: Beiheft 34, 1992. Sobre a diferença entre o conceito hegeliano e o conceito romântico de simbólico (Solger, Goethe, Schelling, Schlegel), cf. Márcia Cristina Ferreira GONÇALVES. “A idealização imperfeita do sensível pela arte simbólica”. In. O belo e o destino. São Paulo: Loyola, 2001. “O ponto central da arte é constituído pela união, que é fechada em si mesma para a totalidade livre, entre o Conteúdo e a forma simplesmente adequada a ele. Esta realidade coincidente com o conceito do belo, à qual em vão aspirava a Forma de arte simbólica, conduz primeiramente a arte clássica à aparição [Erscheinung]” (HEGEL, 2014, II, p. 157). É assim que Hegel define, sumariamente, a arte clássica, como aquela que há um equilíbrio perfeito entre conteúdo e forma e, 341 renan Pavini mas de arte romântica. Há um claro deslocamento perecível no que diz respeito à arte romântica, uma vez que Hegel primeiro apresenta a arte romântica em seu apogeu como círculo religioso, depois como cavalaria e, por fim, como autonomia formal das particularidades individuais. Se Hegel entende a arte enquanto subjetividade no círculo religioso, essa subjetividade livre e infinita só pode assim se realizar por ainda estar ligada a um plano superior, metafísico, valorativo, em suma, estar ligada a Deus e a toda a temática religiosa que de certa forma justifique, sustente e conduza essa liberdade subjetiva: “na medida em que é Deus – igualmente em si mesmo universal – que aparece na existência humana, esta realidade não está limitada à existência singular, imediata na forma de Cristo, mas se desdobra na totalidade da humanidade, na qual o espírito de Deus se faz presente e permanece nesta efetividade em unidade consigo mesmo” (HEGEL, 2014, II, p. 256). Para Hegel, o que garante a verdade da obra de arte, bem como sua própria aparição e efetivação, é a passagem do individual para o universal, a própria negatividade da noção de homem enquanto corpo transitório, efêmero e perene, para espírito eterno, absoluto e infinito. Nesse caminho, Hegel traça que a verdade só pode advir através de Deus, não como exterior, mas como interior no próprio espírito, a consciência de um ser-em-si mesmo ou um intuir-se a si mesmo. Todo o processo dialético perpassa então uma recusa de si mesmo enquanto ser finito, e essa recusa, este sacrifício de si mesmo, em síntese, faz surgir a verdadeira efetividade, pois assim como Deus inicialmente elimina de si mesmo a efetividade finita, também o ser humano finito, que começa a partir de si fora do reino divino, recebe a tarefa de se elevar a Deus, de afastar de si o finito, de livrar-se da nulidade e, por meio desta morte de sua efetividade imediata, tornar-se o que Deus fez objetivamente em sua aparição, enquanto ser humano, como a verdadeira efetividade (HEGEL, 2014, I, p. 257). assim, a arte alcançou sua completude e um grau elevado, pois o espiritual atravessa aqui completamente seu fenômeno exterior, idealizando o natural e tornando-o adequado ao espírito. Hegel (2014, II, p. 351), desta forma, coloca a arte clássica no mais alto posto por sua harmonia e união: “a arte clássica foi a exposição do ideal mais adequada ao conceito, a completude do reino da beleza. Algo mais belo não pode haver e não haverá mais”. Vê aqui, nas palavras do filósofo, o início da decadência da arte, que irá se instaurar no desenvolvimento da arte romântica. 342 Para além da dialética: da contemplação ao perigo da experiência estética A subjetividade abarca aqui todo o infinito sofrimento desse processo e desse sacrifício. Que a subjetividade parte da finitude é apenas o primeiro passo para a universalidade e verdade. Ao se reconhecer como finito, a subjetividade deve apagar esse ser finito imediato e logo encontrar em si mesmo Deus, que garante a objetividade e universalidade do espírito. A temática da morte no círculo religioso acaba tendo o significado da negatividade, a saber, a morte é a própria negação do que é negativo. Ao negar o negativo, a morte se transforma justamente na afirmação – ou, como quer Hegel, ressurreição – do espírito absoluto, afastando-se da mera naturalidade e finitude que lhe é inadequada. É por meio da morte da existência [Existenz] negativa que o espírito pode aparecer em toda sua liberdade, felicidade e em sua satisfação, em sua existência [Dasein] afirmativa e reconciliadora. Conquistado esse mundo absoluto, o espírito pode então tomar como Conteúdo de sua reflexão tanto sobre a finitude como sobre a natureza, mas apenas lhe sendo exterior e negativo. Eis o núcleo ordenador do círculo religioso da obra de arte romântica. Se no círculo religioso o conteúdo gira em torno da infinitude de Deus, na Cavalaria o sujeito é pleno por si mesmo enquanto singularidade em si mesma infinita e o conteúdo da arte não se encontra tão somente na esfera religiosa, mas em valores universais mundanos: honra subjetiva, amor e fidelidade. Por ser a cavalaria uma transição entre o círculo religioso e a autonomia formal das particularidades individuais, Hegel (2014, II, p. 289) afirma que ela se encontra no centro livre, “entre o conteúdo absoluto das representações religiosas em si mesmas firmes e a particularidade variegada e o caráter limitado da finitude e da mundanidade”. Aqui a liberdade do espírito se encontra no mundano, sendo afirmativa de si mesma, diferentemente do religioso, que o indivíduo é livre apenas enquanto sujeito que se nega absolutamente em sua mundanidade. Por fim, sobre o último momento da arte trabalhado por Hegel (2014, II, p. 342), lemos: Nesse ultrapassar da arte sobre si mesma, todavia, ela é igualmente um recuar do ser humano em si mesmo, uma descida em seu próprio peito, pelo que a arte se despe de toda limitação firme em um círculo determinado do conteúdo e da apreensão, faz do humanus seu novo santo (HEGEL, 2014, II, p. 342). 343 renan Pavini Há um deslocamento de conteúdo da obra de arte: no lugar dos deuses e Deus, agora o que se impõe o humanus, o próprio homem. E nesse sentido, o ultrapassar sobre si mesma é um recuar, no sentido que agora o homem se volta sobre si Sobre esse deslocamento, Werle (2011, p. 71) escreve que “a centralização no humano gera paradoxalmente uma crise do próprio modo do ser do homem, pois o homem, voltando-se a si mesmo, impinge-se um peso que não é tão fácil de sustentar e carregar”. E, ainda, complementa: Há, portanto, duas acepções da subjetividade como as quais opera Hegel nos Cursos de estética. Uma é tomada em sentido restrito como manifestação particular do ponto de vista do sujeito, em oposição a uma objetividade. Essa subjetividade via de regra afirma a perspectiva de uma imaginação ilimitada ou se refugia no terreno da ironia. Falta-lhe a consciência de que o sujeito é apenas um momento de um transcurso maior. A outra acepção de subjetividade é acolhida de modo positivo por Hegel, pois trata da manifestação inequívoca de uma tendência de todo o mundo cristão: trata-se do princípio da subjetividade livre. A diferença dessa subjetividade “infinita” diante da outra “finita” é que ela resulta de um processo histórico e objetivo, possui um conteúdo nela mesma e, portanto, uma legitimação própria (WERLE, 2011, pp. 96-97). Esta citação de Werle nos traz pontos importantes de investigação: a) uma subjetividade irônica fechada em si mesma, sem consciência de um transcurso maior da qual faz parte; b) uma subjetividade objetiva que tem consciência de si mesma, uma vez que se percebe como parte de um transcurso maior da qual faz parte; c) observa-se que essa oposição pode ser traduzida em subjetividade infinita e subjetividade finita. Se isso é verdade, então não podemos desconsiderar duas tendências da subjetividade na arte que ganham um ajuizamento oposto: uma positiva e outra negativa. É notório que ambas as subjetividades não partilham da dialética histórica, uma vez que só pertence à dialética a subjetividade objetiva, que tem consciência que pertence a apenas um momento de um transcurso maior. Para esclarecermos esse ponto, é necessário retomarmos, mesmo grosso modo, a crítica hegeliana sobre ironia romântica, tal como esta estabelece seu fundamento na filosofia de Fichte.7 Para Hegel, Fichte, ao 7 Hegel irá trabalhar duas ramificações da ironia a partir da filosofia de Fichte: “Tanto Friedrich von Schlegel quanto Schelling partira do ponto de vista fichteano; este para ultrapassá-lo completamente e o primeiro para dele se libertar ao tratá-lo de um modo peculiar” (HEGEL, 2001, I, p. 81). 344 Para além da dialética: da contemplação ao perigo da experiência estética estabelecer o eu como eu total e constantemente abstrato e formal, como princípio absoluto de todo saber, de todo o conhecimento e razão, impõe que todo o conteúdo que deve valer para o eu é por ele próprio reconhecido e estabelecido. Sobre o eu fichtiniano, Hegel (2001, I, p. 81) escreve que “se, porém, ficarmos presos a essas formas totalmente vazias que têm sua origem no caráter absoluto do eu abstrato, nada é considerado em si e para si e em si dotado de valor, mas somente enquanto produzido pela subjetividade do eu”. Para Hegel, ao tomar esse eu abstrato e simples como senhor de tudo o que existe, tudo o que existe ou deixa de existir está submetido a esse mesmo eu, a saber, o eu pode tanto estabelecer quanto destruir as esferas da ética, do direito, do humano e do divino. É a essa egologia e suas implicações que Hegel (2001, I, p. 82) descredencia em Fichte por sua face paradoxal: “tudo o que é em-si-e-para-si é apenas uma aparência e não é verdadeiro e efetivo devido a si mesmo e por meio de si mesmo, mas um mero aparecer por meio do eu que, com violência e arbitrariedade, dispõe livremente de tudo o que é em-si-e-para-si. Atribuir valor a algo [Geltenlassen] ou superá-lo depende totalmente do bel-prazer do eu que, enquanto eu, já é absoluto em si mesmo”. As consequências disso para Hegel é que tudo se resume ao formalismo do eu, e que a vida perde em essência e conteúdo, sendo mera aparência – resume-se a uma forma que fica submetida ao poder do eu. Tendo isto em vista, o eu do artista estabelece tudo a partir de si mesmo e o desfaz de forma que lhe convir, sem qualquer seriedade, uma vez que aqui não se encontra nenhum conteúdo absoluto, mas apenas aparência feita pelo eu mesmo e possível de ser destruída. É a isso que Hegel (2001, I, p. 82) chama de uma vida irônica e artística: “Essa virtuosidade de uma vida irônica e artística se concebe, pois, como genialidade divina, para a qual tudo e todos são apenas uma criação sem essência, na qual o criador livre, que se sabe desvencilhado e livre de tudo, não se prende, pode tanto destruí-la quanto criá-la”. Ora, o que Hegel nos apresenta aqui é a definição daquilo que ele entende por uma genialidade irônica divina, onde reina a ironia do artista em relação com o mundo, um mundo que é visto a partir do Eu e que não emana de nada profundo, essencial, universal ou divino, mas apenas está ali porque o Eu o quis. 345 renan Pavini É esta ironia que Hegel atribui a Friedrich von Schlegel, uma Forma negativa da arte irônica que tem a vaidade de tudo o que é em si mesmo pleno de Conteúdo, a saber, traz a própria nulidade do conteúdo e do sentido. Ao se voltar a ironia de Schlegel, Hegel dirige sua crítica ao projeto romântico cujo nascimento carrega uma dúvida e uma insuficiência ou ausência de um princípio a partir do qual se possa entender a unidade e coerência do saber. Claramente o que incomoda Hegel aqui é que a filosofia do fragmento, com seu caráter assistemático, que é o limite de sua própria filosofia, por ser incompatível com sua dialética e sua história lógica e necessária. Em Schlegel, os fragmentos são “a verdadeira forma da filosofia universal” (SCHLEGEL, 1997, p. 94) que rompem com o caráter sistemático da filosofia transcendental. Márcio Suzuki (1997, p. 12) comenta: No caráter assistemático da reflexão schlegeliana já se evidenciam os principais elementos deflagradores da “crise do idealismo”, cujo desfecho será a filosofia de vida do próprio Schlegel e a filosofia positiva do último Schilling. Seria possível, assim, refazer com rigor e pertinência o percurso do idealismo à margem daquilo que se conhece como sua trajetória lógica. O caso de Schlegel é tanto mais interessante, porque desde o início já se mostra reticente quanto ao ideal de sistematicidade pelo qual a filosofia pretende adquirir foros de ciência. O projeto romântico, nas palavras de Novalis, pode esclarecer a inversão com o entendimento de Hegel sobre a arte e como este, diante deste projeto, só pode considerar o romantismo alemão não só como a própria recusa do idealismo, mas como a própria inversão do que ele entendeu por arte elevada, a arte em seu círculo religioso. Citamos Novalis (2001, p. 142): O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido orig[inário]. Romantizar nada é, senão uma potenciação quilit[ativa]. Essa operação é ainda totalmente desconhecida. Na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspecto misterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilho infinito, eu o romantizo – Inversa é a operação para o superior, desconhecido, místico, inifinito – através dessa conexão este é logaritmizado – Adquire uma expressão corriqueira. 346 Para além da dialética: da contemplação ao perigo da experiência estética Novalis aqui projeta uma filosofia em constante devir, mas diferente do devir hegeliano, a filosofia não tem aqui que expor nada a não ser sua busca mesma, um eterno oscilar entre pensamentos. Contra o dogma do pensamento, que impõe uma forma única de pensar, Novalis entende que toda a verdade é remota e “o ato filosófico genuíno é o suicídio” (NOVALIS, 2001, p. 31). Aqui a arte não mais significa o espírito de um povo (Volksgeist), sua totalidade; ao contrário, se impõe ao sujeito uma pluralidade de interpretações, um caminhar eterno onde a descoberta de um sistema, fechado, acabado, nada mais seria senão o próprio fim do conhecimento, a própria impossibilidade do saber. Neste sentido, ao levarmos em consideração a dupla acepção de subjetividade proposta por Werle, diríamos que a subjetividade positiva é aquela onde o espírito caminha para sua realização, partilhando da historia dialética, manifestando, em sua obra de arte, o espírito de um povo (Volksgeist).8 Por outro lado, a subjetividade negativa começa a se formar assistemática, fragmentária, rompendo com a elevação suprema do espírito, com a significação totalizante de um povo e impondo, aos olhos de Hegel, uma dúvida sobre o próprio sujeito, em sua incompletude e em suas incertezas. A subjetividade positiva e infinita está sustentada pela consciência que o espírito tem de algo maior em seu interior, partilhando a totalidade na qual está inserido e usufruindo de sua liberdade adquirida pela consciência de sua posição nesta totalidade e unidade. Por outro lado, a subjetividade finita, esta que Hegel não viu com bons olhos, abre-se para uma liberdade múltipla a partir do desprendimento da sustentação 8 Essa é uma noção que acompanha Hegel desde seus escritos de juventude. Jean Hyppolite (1995, p. 17), o comentar sobre estes, escreve: “O indivíduo, para Hegel, não passa – reduzido a si mesmo – de uma abstração. É por isso que a verdadeira unidade orgânica e o universal concreto serão para ele o povo. Enquanto Schelling é na produção da obra de arte a intuição absoluta, que concilia o subjetivo e o objetivo, o consciente e o inconsciente. Hegel, em Iena, escreve o Sytem der Sittlichkeit, onde substituiu a obra de arte como expressão do absoluto, pelo organismo concreto da vida de um povo. A sua primeira filosofia do espírito de um povo (Volksgeist) será a descrição da organização social desde as bases – as necessidades concretas dos homens – até ao topo – o Estado e a religião do povo, grandeza espiritual original, ao mesmo tempo subjetiva e objetiva. Mas, como entende Bras (1990, pp. 43-44), em os Cursos de estética, Hegel retoma a expressão de espírito de um povo (Volksgeist) em sua relação com a obra de arte, ao relacionar a arte com a filosofia e a religião: “Ao situar a arte como momento do Espírito absoluto, [Hegel] entende que ela encerra uma dimensão de universalidade. Com a religião e a filosofia, a arte contribui para revelar o sentido profundo do momento histórico. Ela o ultrapassa, portanto, assim como a reflexão sobre o que é feito ultrapassa a ação espontânea e ingênua”. 347 renan Pavini na qual a subjetividade infinita partilha. O poder de criação aqui é livre, múltiplo e plural, uma vez que o conteúdo não esta ligada ao Volksgeist, mas está livre em sua própria finitude, livre até mesmo para denunciar uma limitação do infinito e mostrar a infinidade do finito. É sintomático, para Gérard Bras (1990, p. 102), “que a arte nunca tenha, em Hegel, função crítica: ela revela somente a existência de uma negação que o momento ulterior virá superar” – fruto de sua noção dialética e sua noção de autossuperação. Para confirmarmos isso, basta nos remetermos o que Hegel (2001, I, p. 266) escreve em seus Cursos: “Mas por mais que a obra de arte também possa formar um mundo em si mesmo concordante e acabado, ela mesma não é, porém, enquanto objeto efetivo e singularizado, para si, e sim para nós, para um público que a contempla [anschaut] e a desfruta”. Aqui se vê a destinação da arte e, para compreendê-la no campo que a compete, a noção de obra parece indissociável. A subjetividade do artista está ligada a representação efetiva do exterior, a saber, da cultura e de um povo – por mais que essa cultura traga elementos interiores. Destarte, para Hegel (2001, I, 267), todo o artista “pertence à sua própria época, vive em seus costumes, modos de intuir e representações” e “o poeta cria para um público e inicialmente para seu povo e sua época, que têm o direito de exigir a compreensão da obra de arte e nela se sentirem em casa”. Como nos alerta Werle (2011, p. 71), a noção de obra aqui não é apenas um objeto plasmado e figurado, “mas possui um significado clássico (e hegeliano) de expressão de uma realidade histórica, de uma unidade ética e coletiva e de um sentido unificador”. É a essa noção de obra que o século XIX, no que compete a uma nascente experiência estética, não mais abrigará. O que começa a sucumbir para Hegel a partir do século XIX é uma certa arte cuja verdade é a religião e cuja a manifestação é a totalização de uma cultura. Se isso é verdade, e se o conteúdo da arte por excelência para Hegel é o espírito enquanto humanidade, enquanto ethos, unidade ética, espírito que se encontra ligado à totalidade sustentada pelo conceito de Deus, então podemos conjecturar que o “fim da arte” na modernidade é não somente a superação do exterior pelo interior, de uma subjetividade ligada a uma universalidade para uma subjetividade pautada na individualidade, mas está ligada a um rompimento do próprio espírito em seu conteúdo, um espírito que não mais se satisfaz com os valores unificadores da religião ou com os valores unitários da moral. 348 Para além da dialética: da contemplação ao perigo da experiência estética Se consideramos isso, teremos algumas implicações no que dizem respeito à estética hegeliana: a noção de que a arte espelha o espírito de um povo (Volksgeist) se dissolve e se esvai na aurora do século XIX, sendo a arte agora manifestação da individualidade dispersa e fragmentária, tal como em Schlegel. Portanto, o artista não impõe mais uma verdade que lhe é exterior, a priori, mas, à maneira de Nietzsche, cria um mundo a partir de si. Nesse enfrentamento, há que se levar em conta uma certa experiência estética altamente combativa, marginal, cujo sentido supremo não é só transgredir o estatuto social, metafísico, científico ou político, mas transgredir aquilo mesmo que nos torna o que somos: experiência limite. A arte, nesta época, deixa para traz as noções de totalização e harmonia, para instaurar as noções de transgressões e contestações – eis o que poderíamos admitir como um descompasso entre a ciência da arte hegeliana e uma experiência estética perigosa que começa a se instaurar no final do século XVIII. Em suma, Hegel, já tão taxiado pela cultura da reflexão sobre a arte, não conseguiu pousá-la em solo firme, já que a arte que lhe foi coetânea deu sinais de uma nova vitalidade, deu sinais de uma liberdade múltipla sem precedentes. O filósofo, que havia criticado a falta de vitalidade da arte em sua época, uma vez que a cultura de reflexão estava instaurada, não conseguiu, concomitantemente, entender que a arte que começara a brotar em sua contemporaneidade – a qual ele criticava – trazia consigo a mais alta vitalidade, o mais alto interesse, de forma a se desprender-se dos universais impostos pelos juízos reflexionantes e também se desprender da história dialética – não só uma arte antiplatônica e antiaristotélica como sugeriu Foucault (La courage de la verité) e Rancière (Le partage du sensible), mas também antikantiana, antihegeliana na qual a poesia de Baudelaire será apenas um testemunho. Bibliografia ARTAUD, Antonin. Œuvres Complètes. tome IV. Paris: Gallimard, 1978. AGAMBEN, Giorgio. O Homem Sem Conteúdo. Trad. de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. 349 renan Pavini BRAS, Gérard. Hegel e a arte. Uma apresentação à estética. Trad. de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. HEGEL, G. W. F. Cursos de estética (vol. I). Trad. de Marco Aurélio Werle. São Paulo: EDUSP, 2001. ______. Cursos de estética (vol. II). Trad. de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: EDUSP, 2014. GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo. Trad. de Celeste Aida Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. HYPPOLITE, Jean. Introdução à filosofia da história de Hegel. Trad. de José Marcos Lima. Rio de Janeiro: Elfos; Lisboa: Edições 70, 1995. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Trad. de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. NOVALIS. Pólen. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Iluminuras, 2001. SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. Trad. de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 2013. SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997. SUZUKI, Márcio. “A gênese do fragmento”. In. SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997. WERLE, Marco Aurélio. A questão do fim da arte em Hegel. São Paulo: Hedra, 2011. 350 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor Rogerio Foschiera (IFRS) 1 Apresentação A busca por encontra a expressão mais adequada é típica da linguagem humana. E o ser humano adquire a linguagem quando entra na perspectiva linguística. Charles Taylor busca em Herder a clareza de que a linguagem humana é o veículo da consciência reflexiva. A reflexão é uma capacidade que se realiza somente no discurso, já que a linguagem precisa ser pensada com discurso e esse como atividade e não como algo já realizado. A vida é vista também sob as categorias da expressão, como encarnação autêntica do potencial. A linguagem é uma atividade com a qual se realiza certa forma de ser, que acontece contra um pano de fundo, num contexto de práticas linguísticas, e como ação expressiva que se cria e amplia em seu exercício e onde o ser humano é tanto construtor como construído. Novas modalidades de expressão nos capacita a ter novos sentimentos. A linguagem se modela e cresce na vida da comunidade discursiva, por isso ela funda um espaço público e faz do homem um animal moral. Para Taylor, os contemporâneos são atraídos por duas exigências metafísicas contraditórias: a da claridade e do controle e a da natureza intrínseca irredutível da expressão. O crescimento, a produtividade e o bem-estar são de fundamental importância; porém as pessoas experimentam as coisas em termos de expressão: à experiência privada deve ser proporcionada a realização expressiva. Mas, trata-se da busca pelo princípio da melhor descrição. Taylor propõe uma leitura da noção moderna de autonomia, de vez que ela adquire um significado mais amplo que por isso se expressa melhor na noção de autenticidade. Os homens se tornam agentes humanos plenos, capazes de compreender a si próprios e de definir sua identidade por meio da aquisição de ricas linguagens de expressão humana. A elas se é introduzido por outros significantes, daí Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 351-370, 2017. 351 rogerio fosCHiera que a mente humana se constitui dialogicamente e não monologicamente. Em Taylor, a língua expressa, no sentido forte do termo, a vida interna psíquica do sujeito e suas possibilidades de relações intersubjetivas. O paradigma expressivista, em Taylor, assume: exigência de unidade e totalidade; ideia de liberdade como expressão de si; nova forma de unidade com a natureza e comunhão com os demais seres humanos. 2 A importância de Herder Charles Taylor mostra que, diferentemente do animal, para quem a correção do sinal é definida pelo sucesso numa tarefa, numa relação unidimensional; na linguagem humana há uma espécie de “encontrar a expressão exata”: verdade, adequação descritiva ou riqueza de evocação. Nas palavras do autor: Não podemos definir a justeza das palavras em termos de tarefa sem definir a tarefa em termos da justeza das palavras. Uma criatura opera na dimensão linguística quando pode usar signos – e a eles responder – em termos de sua verdade, ou justeza descritiva [...] Ser uma criatura linguística é ser sensível a questões irredutíveis de justeza [...] simplesmente falamos e entendemos. [...] Dessa perspectiva, uma criatura adquire a linguagem no sentido humano quando entra na perspectiva linguística. [...] Os usuários da linguagem humana dispõem em seu repertório de uma grande variedade de forças ilocucionárias. Porque isso exige de nós o estabelecimento de uma distinção entre significado linguístico e ação praticada, distinguindo-os ainda, em conjunto, do resultado envolvido (o efeito perlocucionário, na terminologia de Austin1), distinções que de modo nenhum se fazem presentes no caso do grito do pássaro (TAYLOR, 2000, pp. 98-101). Herder utiliza o termo “reflexão” (Besonnenheit) para falar dessa consciência e o considera inseparável da linguagem. E assim resume Taylor: language is not just a set of words which designate things; it is the vehicle of this kind of reflective awareness. This reflection is a capacity we 1 John L. AUSTIN (1911-1960): enunciados constatativos (descrevem coisas) e enunciados performativos (fazem coisas) – atos locucionários (o significado da fala), atos ilocucionários (a força presente na fala) e atos perlocucionários (o que a fala faz). 352 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor only realize in speech. (TAYLOR, 1985a, pp. 228-229).2 O ser que não pode falar, no sentido humano, também não pode ter essa consciência reflexiva. Trata-se, segundo Taylor, de uma teoria expressiva da linguagem e não mais diante de uma teoria expressiva do cosmos ou das ideias de Deus. A teoria herderiana expressiva da linguagem é constitutiva, isto é, “reflective consciousness only comes to exist in its expression” (TAYLOR, 1985a, p. 229).3 Esta nova perspectiva está presente também na arte do período romântico, ou seja, a arte deixa de ser mimesis, ou imitação do real, para ser uma expressão criativa, uma imitação do autor da natureza. Nisso “language is no longer an assemblage of words, but the capacity to speak (express/realize) the reflective awareness implicit in using words to say something” (TAYLOR, 1985a, p. 230).4 Herder percebe que o fundamental para que as crianças aprendam a tomar seus gritos como palavras é que elas passem a operar na dimensão linguística. Esta é a noção herderiana de Besonnenheit (reflexão), a que capacita os usuários da língua. É possível concentrar-se nos objetos por meio de um reconhecimento deles, o que cria, por assim dizer, um novo espaço ao nosso redor. Ou seja: Em vez de ser afogados pelo ‘oceano de sensações’ enquanto os objetos passam por nós, podemos distinguir uma onda e contemplá-la com atenção calma e clara. É esse novo espaço de atenção, de distanciamento da significação instintual imediata das coisas, que Herder deseja denominar reflexão (TAYLOR, 2000, p. 102). Desenvolver a autenticidade significa colocar-se dentro dessa perspectiva herderiana da reflexão e, hoje, reunir esforços críticos para conter a influência das teorias designativas. Taylor continua dizendo: A reificação promovida pela epistemologia moderna a partir de Descartes e de Locke, isto é, o impulso de objetificação de nossos pensamentos e conteúdos mentais, tornou-o mais grave. Atribuiu- 2 3 4 A linguagem não é só uma série de palavras que designam coisas; é o veículo desse tipo de consciência reflexiva. Esta reflexão é uma capacidade que se realiza exclusivamente no discurso (tradução própria). A consciência só chega a existir na sua expressão (tradução própria). A linguagem já não é uma montagem de palavras, mas a capacidade de falar (expressar/realizar) a consciência reflexiva implícita no uso das palavras para dizer algo (tradução própria). 353 rogerio fosCHiera -se aos conteúdos da mente uma existência reificada, algo que os objetos poderiam ter independentemente de qualquer pano de fundo. A oclusão do pano de fundo preparou o caminho para a elisão total nas modernas teorias comportamentalistas que tentam explicar o pensamento e a linguagem estritamente do ponto de vista do observador externo. As associações de ideias semelhantes a coisas foram transpostas com facilidade para as conexões estímulo-resposta do comportamentalismo clássico. Corre uma evidente linha de filiação de Locke a Watson e Skinner, passando por Helvécio (TAYLOR, 2000, p. 104). A autenticidade provoca para numa atitude de participação, implicação e referência ao conjunto. O autêntico é o concebível para o ser humano. Por isso a importância da forma como Taylor caracteriza a perspectiva expressivista: Language is not an assemblage of separable instruments, which lie as it were transparently to hand, and which can be used to marshal ideas, this use being something we can fully control and oversee. Rather it is something in the nature of a web, and to complicate the image, is present as a whole in any one of its parts. To speak is to touch a bit of the web, and this is to make the whole resonate. Because the words we use now only have sense through their place in the whole web, we can never in principle have a clear oversight of the implications of what we say at any moment. Our language is always more than we can encompass; it is in a sense inexhaustible. (TAYLOR, 1985a, p. 231).5 Outro aspecto importante da linguagem, destacado por Taylor e em referência a Humboldt, é que sua capacidade representativa se realiza no discurso, ou seja, a linguagem precisa ser pensada como discurso e esse 5 A linguagem não é a montagem de instrumentos separáveis que, por assim dizer, estão ao alcance da mão de uma maneira transparente e podem ser utilizadas para governar as ideias, com um uso que somos plenamente capazes de controlar e supervisionar. Trata-se, antes, de algo que tem a natureza de uma rede e, para complicar a imagem, está presente como uma totalidade em qualquer de suas partes. Falar é tocar um fragmento da rede, e o fato de fazê-lo tem repercussões sobre o conjunto. Como as palavras que empregamos só têm sentido por seu lugar na totalidade da rede, em princípio nunca podemos exercer uma vigilância irrepreensível sobre as implicações do que dizemos em qualquer dado momento. Nossa linguagem sempre é mais do que podemos abarcar; em certo sentido, é inesgotável (tradução própria). 354 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor como atividade e não como algo já realizado, isto é, como energeia (energia) e não como ergon (obra acabada). Nas palavras de Taylor: “Human speakers resemble the sailors in Neurath’s image of the philosopher, who have to remake their ship in the open sea, and cannot build it from the base in a dry-dock” (TAYLOR, 1985a, p. 232).6 Segundo Costa (2001), em Herder e na tradição, para cuja inauguração ele contribui, há um vínculo fundante entre linguagem e pensamento. A atividade reflexiva, para Herder, está necessariamente encarnada numa linguagem, naquela distância entre indivíduo e mundo que a existência da linguagem garante a seu modo. Neste sentido, a linguagem é a encarnação constitutiva do universo de pensamento: em sentido próprio, é um mundo. Isto manifesta, necessariamente, os traços de uma totalidade holística onde cada significado pressupõe a inteira rede de significados possíveis: é rede inexaurível, porque sempre potencialmente presente. É esta, obviamente, a ideia humboldtiana da linguagem como energeia e non ergon, como atividade e não como obra acabada. A linguagem é, com efeito, a exemplificação por excelência daquela ideia de totalidade orgânica e expressiva pela qual estava plenamente dominado o pensamento romântico. Uma linguagem natural é vista aqui como a expressão concreta de uma inteira cultura, de um modo de olhar o mundo; isso são, ao mesmo tempo, os bastidores e o primeiro plano, langue e parole, estrutura e singular ato linguístico, num emaranhado que se revela inextrincável. A força criativa que ali se exprime é uma força capaz de plasmar um mundo e, em particular, aquele mundo interior de sentimentos e preferências inarticuladas que acompanham indefectivelmente a experiência diária do mundo. 3 Decorrências da perspectiva expressivista Para Taylor, a linguagem é uma atividade com a qual se expressa e se realiza certa forma de ser, um modelo de atividade que só pode acontecer contra um pano de fundo que nunca se pode dominar totalmente, mas que tampouco pode dominar totalmente a pessoa. E aprofunda Taylor: 6 Os falantes humanos se parecem aos marinheiros da parábola de Neurath sobre a imagem do filósofo, que devem consertar seu barco no mar aberto e não podem fazê-lo num dique seco (tradução própria). 355 rogerio fosCHiera The expressive theory opens a new dimension. If language serves to express/realize a new king of awareness; then it may not only make possible a new awareness of things, an ability to describe them; but also new ways of feeling, or responding to things. If in expressing our thoughts about things, we can come to have new thoughts; then in expressing our thoughts about things, we can come to have new thoughts; then in expressing our feelings, we can come to have transformed feelings. [...] The language user can feel not only anger but indignation, not only love but admiration. [...] Language realizes man’s humanity. Man completes himself in expression (TAYLOR, 1985a, pp. 232-233).7 Para o filósofo canadense, Herder é uma figura revolucionária na contra-corrente que busca recuperar o pano de fundo. Esse contra-impulso se traduz em duas direções. A primeira consiste em articular o pano de fundo de maneira tal que o fato de a pessoa se apoiar nele quando pensa, percebe, vivencia ou compreende a linguagem, se torna claro e inegável. Esse tipo de argumentação está presente em Heidegger, Wittgenstein e Meleau-Ponty, sendo, contudo, Kant o pioneiro. “A segunda direção principal de argumentação do contra-impulso ao cartesianismo-empirismo tem sido a tentativa de situar nosso pensamento no contexto de nossa forma de vida.” (TAYLOR, 2000, p. 105). Herder enfatiza que se tem que entender a razão e a linguagem humanas como parte integrante da própria forma de vida. No dizer de Taylor, precisamente porque Herder não pode julgar a linguagem um mero acréscimo à natureza animal, ele é levado a perguntar que tipo de transformação da vida psíquica assiste ao surgimento da linguagem. Para essa questão a “reflexão” é a resposta. E Taylor destaca três intuições fundamentais de Herder: A primeira intuição de Herder foi ver que a expressão constitui a dimensão da linguística. Ou seja: 7 A teoria expressiva dá acesso a uma nova dimensão. Se a linguagem serve pare expressar/realizar um novo tipo de consciência, pode tornar possível não só uma nova consciência das coisas, uma aptidão para descrevê-las, mas também novas maneiras de sentir, de responder a elas. Se ao expressar nossos pensamentos sobre as coisas conseguimos ter novos pensamentos, o resultado da expressão de nossos sentimentos é a aquisição de sentimentos modificados. [...] O usuário da linguagem pode sentir não só ira, mas indignação, não só amor, mas admiração. [...] A linguagem realiza a humanidade do homem. O homem se completa na expressão (tradução própria). 356 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor A reflexão surge numa forma animal que já está lidando com o mundo que o cerca. A linguagem emerge como uma atitude nova, de caráter reflexivo, com relação às coisas. Ela aflora entre nossas atitudes anteriores para com os objetos de desejo ou de medo, para com as coisas que figuram como obstáculos, suportes e coisas desse gênero. Nossas atitudes são literalmente atitudes ou ações corporais sobre objetos ou com relação a eles. A nova atitude não pode estar, em sua origem, inteiramente desvinculada da postura ou da ação corporais. Mas não pode ser uma ação semelhante às outras, visto que estas são definidas fora da dimensão linguística. Ela tem de ser vista antes como ação expressiva, ato que tanto atualiza essa atitude de reflexão como a apresenta aos outros no espaço público [...] A ação que exprime e atualiza essa nova atitude é a fala. A fala é a expressão do pensamento [...] Ela é constitutiva do pensamento (linguístico) reflexivo, do pensamento que lida com seus objetos na dimensão linguística (TAYLOR, 2000, pp. 106-107). 2. A segunda intuição de Herder, segundo Taylor, foi a descoberta de certo holismo de significados. “Uma palavra só tem significado no âmbito de um léxico e de um contexto de práticas linguísticas, que se acham embutidas em última análise numa forma de vida” (TAYLOR, 2000, p. 108). Enquanto o rato aprende a andar pela porta com o triângulo vermelho, posso usar a palavra triângulo. Isso se dá no contraste com outras coisas que não são triângulo. A linguagem não pode ser construída com uma palavra de cada vez. A capacidade linguística madura supõe um todo de linguagem que dê plena força à palavra e a situe num gesto expressivo. Condillac e a perspectiva da concepção designativa ignoram o pano de fundo necessário, como se fosse possível um léxico de uma só palavra. Segundo Taylor, o holismo de significado foi incorporado por Humboldt em sua imagem da linguagem como rede; influencia o celebrado princípio de Saussure de que na linguagem um termo só adquire sentido no campo de seus contrastes; e recebe aplicação na última obra de Wittgenstein na sua devastadora refutação da teoria designativa de Agostinho, falando que as palavras só têm o significado que têm no interior dos “jogos de linguagem”. 3. E a terceira intuição herderiana, segundo Taylor, advém da combinação do papel constitutivo da expressão e do holismo do significado. Ou seja: as palavras que se usam só têm sentido na rede total; nunca se pode ter uma visão clara das implicações daquilo que se diz; a linguagem é inexaurível; no dizer de Humboldt ela tem de ser vista como ativida- 357 rogerio fosCHiera de da fala, é criada na fala, sendo uma realidade continuamente recriada, ampliada, alterada, remodelada; no que se refere à linguagem, o ser humano é tanto construtor como construído. Taylor continua concluindo dessa terceira intuição de Herder: A idéia revolucionária implícita em Herder foi à de que o desenvolvimento de novas modalidades de expressão nos capacita a ter novos sentimentos, mais potentes ou mais aprimorados, e por certo mais autoconscientes. Ao sermos capazes de exprimir nossos sentimentos, damos-lhes uma dimensão reflexiva que os transforma (TAYLOR, 2000, p. 112). Isso significa que as emoções essencialmente humanas são vivenciadas, não ao descrevê-las, mas ao exprimi-las. A linguagem serve à expressão/realização de sentimentos que não são identificadas nem descritas. Dado que falar sobre é apenas uma das províncias que constitui a fala, a emoção humana é outra; por isso, alguns usos da prosa se assemelham à poesia, à música e à arte. E por fim, a linguagem se desenvolve no diálogo, na comunidade de fala. Fala-se juntos, uns para os outros. Nas palavras de Taylor: A língua que falo, a rede que jamais posso dominar e controlar, nunca pode ser apenas minha língua; ela é sempre nossa língua [...] não só a comunidade de fala molda e cria a linguagem como também a linguagem constitui e sustenta a comunidade de fala (TAYLOR, 2000, p. 113). A autenticidade, dessa forma, levanta uma série de questionamentos sobre a forma como se aprende e se ensina as pessoas a utilizarem os signos oficiais da linguagem escrita e oral. O que tem que ser considerado é que se tratam de formas de vida e não de adestramento ou condicionamento. Os seres humanos aprendem a linguagem porque são e querem ser mais humanos, mais de acordo com os humanos que os amam e que eles amam. Antes de qualquer relação pedagógica ou formalmente educativa, há uma relação amorosa, um investimento afetivo que cria vínculos e que possibilita orientar as vidas em perspectivas comunitárias, éticas e universais. Como diz Taylor: […] the primary locus of speech is in conversation. Men speak together, to each other. Language is fashioned and grows 358 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor not principally in monologue, but in dialogue, or better, in the life of the speech community (TAYLOR, 1985a, p. 234).8 Com isso Taylor assinala para uma nova concepção de sujeito. Sendo a linguagem essencialmente uma atividade de conversação, ela acontece na vida de uma comunidade discursiva que, por sua vez precisa dela para se constituir. Por isso “language has become central to our understanding of man (TAYLOR, 1985a, p. 234).9 E ainda, a origem da própria humanidade está no seu poder de expressão, através do qual se constitui a linguagem. Ou seja: We are all inducted into language by an existing language community. We learn to talk not only in that the words age given to us by our parents and others, but also in that they talk to us, and hence give us the status of interlocutors. This is what is involved in the centrally important fact that we are given a name. In being given a name we are made into beings that one addresses, and we are inducted into the community whose speaking continually remakes the language. As interlocutors, we learn to say “I” of ourselves, one of the key stages in our becoming language users (TAYLOR, 1985a, p. 237).10 Na interpretação de Costa (2001), para Taylor não só pensamentos, linguagem e ação constituem os traços essenciais da humanidade do homem, mas eles se pertencem reciprocamente de maneira original. Os homens pensam, falam e agem, mas, sobretudo se expressam. E não só no sentido de emprestar a voz aos próprios pensamentos expressam sua singularidade e unicidade, mas enquanto trazem à luz o que há de mais fundamental: seu vínculo com o existente, com a comunidade, com a própria natureza, interna e externa. A linguagem outra coisa não é senão a expres8 9 10 [...] o âmbito principal do discurso é na conversação. Os homens falam juntos e se falam uns aos outros. A linguagem se modela e cresce, em primeiro lugar, não no monólogo, mas no diálogo ou, melhor, na vida da comunidade discursiva (tradução própria). A linguagem se tornou elemento central para nossa compreensão do homem (tradução própria). Todos nós nos incorporamos à linguagem por obra de uma comunidade linguística existente. Aprendemos a falar não só pelo fato de que nossos pais e outras pessoas nos dão as palavras, mas também porque nos falam e, portanto, nos concedem o status de interlocutores. Isso é o que implica o fato, de importância fundamental, de que nos deem um nome. Ao recebê-lo, nos convertemos em seres aos quais é possível dirigir-se e nos inscrevemos na comunidade cujo discurso refaz constantemente a linguagem. Como interlocutores, aprendemos a dizer “eu” de nós mesmos, uma das etapas-chave de nosso desenvolvimento como usuários da linguagem (tradução própria). 359 rogerio fosCHiera são mais direta desta potencialidade tipicamente humana. A linguagem articula (e, portanto, põe no foco), funda um espaço público onde os indivíduos se encontram e, finalmente, faz do homem um animal moral, um ser de quem distinções de valor não são contingentes, mas possuem uma específica razão de ser. Em suma, a linguagem descortina um mundo, e é esta sua propriedade intrínseca que faz que “the Wittgensteinian slogan turns out to be completely true: to understand a language, you have to understand a form of life” (TAYLOR, 1985a, p. 291).11 A autenticidade a partir da teoria expressiva da linguagem supõe, em primeiro lugar, considerar que para adquirir a linguagem o passo central não é adquirir uma capacidade mental de ligar signo e idéia, mas se engajar na atividade explícita da fala. Segundo, a conversação é o lócus primeiro e inescapável da linguagem. A linguagem envolve certos tipos de vínculos com o outro. Cria-se um espaço em comum. E terceiro, a linguagem vai além da descritiva e além da fala em todas as suas formas, atingindo coisas como o gesto e a atitude. Por isso a linguagem introduz nas emoções propriamente humanas, em determinadas relações humanas e na perspectiva do valor forte. E esses elementos se vinculam a três níveis da forma expressiva: o projetivo, o simbólico (em obras de arte) e o descritivo. Nas palavras de Taylor: Exprimimos nossas emoções, estabelecemos nossas relações e articulamos nossos valores em nossa linguagem, nosso estilo e nossa retórica corporais; mas também podemos articulá-los a todos na poesia, nos romances, na dança, na música, da mesma forma como podemos levá-los todos à articulação descritiva, em que nomeamos os sentimentos, as relações e os valores, assim como os descrevemos e discutimos sobre eles (TAYLOR, 2000, p. 126). Costa recorda que o termo “expressivismo” apareceu, pela primeira vez, nos escritos do filósofo canadense num breve ensaio de 1973, Socialism and weltanschauung. Nele Taylor diz: Contro la nozione di uomo come soggetto individuale de desiderio, che manipola il mondo circostante al fine del proprio 11 O slogan wittgensteiniano se revele plenamente verdadeiro: para compreender uma língua, é preciso compreender uma forma de vida (tradução própria). 360 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor 12 soddisfacimento il periodo romantico sviluppò una concezione dell’uomo che vorrei chiamare (sulla scia di un’espressione utilizzata da Isaiah Berlin) ‘espressivista’. La vita umana è vista qui come l’espressione esterna del potenziale di un uomo. Questa concezione, che vediamo dispiegarsi in Rousseau, Herder, nel romanticismo, in Hegel, Marx e infine, attraverso Mill, contagiare anche la tradizione utilitarista, non ritorna a modelli premoderni di uomo. Il potenziale che un uomo esprime è assulutamente suo; si dispiega da lui e non è definito da una relazione di armonia con un ordine più vasto. Ma, al contempo, la concezione espressivista non si limita al calcolo consequenzialista del desiderio e del suo soddisfacimento. La vita è infatti vista anche sotto le categorie dell’espressione, come un’incarnazione autentica (true embodiment) del potenziale, oppure come un mascheramento che comprime ciò che gli uomini in veritá sono. Per lo stesso motivo la realizione degli uomini col mondo circostante non è vista semplicemente come manipolatoria. La concezione espressivista sviluppò un ideale di comunione tra gli uomini e tra gli uomini e la natura che divenne uno dei grandi temi dell’epoca romantica. Gli uomini cercarono di recuperare un rapporto con la natura in quanto concepivano anche lei come espressione – dello spirito, della forza vitale o che altro – con cui le loro vite, in quanto espressione, si accordavano. In questo modo abbiamo, a partire dal periodo romantico, qualcosa che ricorda le nozioni premoderne dell’uomo come parte di un ordine più vasto, ma con la differenza essenziale che nelle precedenti concezione l’uomo poteva ritrovare se stesso scoprendo la giusta relazione con l’ordine più vasto, mentre ora gli uomini raggiungono la comunione con la natura scoprendo ciò che hanno davvero in sé da esprimere (TAYLOR Apud COSTA, 2001, pp. 70-71).12 Contra a noção de homem como sujeito individual de desejo, que manipula o mundo circunstante com o objetivo do próprio prazer, o período romântico desenvolveu um conceito do homem que gostaria de chamar (na esteira de uma expressão usada por Isaías Berlin) de “expressivista”. A vida humana é vista aqui como a expressão exterior do potencial de um homem. Este conceito, que descobrimos em Rousseau, Herder, no romantismo, em Hegel, Marx e, por fim, através de Mill, contagiar também a tradição utilitarista, não volta a modelos pré-modernos do homem. O potencial que um homem expressa é absolutamente dele; parte dele e não se define por uma relação de harmonia com uma ordem mais ampla. Mas, ao mesmo tempo, o conceito expressivista não se limita a cálculo consequencialista do desejo e de sua satisfação. A vida é vista também sob as categorias da expressão, como encarnação autêntica (true embodiment) do potencial, ou como máscara que comprime o que são de fato os homens. [...] Pela mesma razão, a relação dos homens com o mundo circundante não é vista simplesmente como manipuladora. O conceito expressivista desenvolveu um ideal de comunhão entre os homens e entre os homens e a natureza 361 rogerio fosCHiera Costa (2001) vê nessa citação uma síntese eficiente, onde Taylor reassume todos os aspectos essenciais do paradigma expressivista: a) propõe-se como alternativa, no tocante ao conceito instrumental e dualista da relação sujeito-mundo típica da reflexão iluminista e pós-cartesiana; b) o caráter de retomada radicalmente moderna da exigência antiga de ver conciliados significado e ser (aquele que o próprio Taylor chama de ideal de um logos óntico); c) seu vínculo crucial com as noções de potencialidade e de atividade; d) recuperação do sentido de autenticidade implícito nos conceitos românticos de homem e de natureza; e) a constante referência a uma noção de totalidade orgânica (que compreende tanto a idéia da unidade profunda entre homem e natureza, quanto à de solidariedade primária entre os diferentes indivíduos de uma mesma comunidade lingüística); f) o caráter constitutivo e não só expressivo da relação entre o que leva a manifestação e o que é levado à manifestação. Por isso a autenticidade, à luz do paradigma expressivista, supõe: uma postura crítica diante do iluminismo; associar significado e ser, ou seja, linguagem e forma de vida; dar condições para que a potencialidade humana encontre expressão e se torne ato; valorização do ideal da autenticidade; resgate de valores ligados à ecologia, à solidariedade e à busca permanente de paz, diálogo e de consensos universais; compreender que considerar a fala é considerar a pessoa e que ignorar a expressão é ignorar o que é expresso e quem o expressa. 4 Possibilidades contemporâneas da linguagem Passo agora a considerar brevemente algumas questões contemporâneas a respeito da linguagem e suas decorrências para a autenticidade. Aqui não se trata de uma análise exaustiva de autores ou de perspectivas. Isso iria muito além do meu propósito. Continuo, isto sim, atento à postuque se tornou um dos grandes temas da época romântica. Os homens procuraram recuperar a relação com a natureza enquanto a concebiam como expressão – do espírito, da força vital ou outra – com que suas vidas, enquanto expressão, concordavam. Desta forma, temos, a partir do período romântico, algo que lembra as noções pré-modernas do homem como parte de uma ordem mais ampla, mas com a diferença essencial que nos conceitos anteriores o homem podia encontrar a si próprio, descobrindo a justa relação com a ordem mais ampla, enquanto agora os homens comungam com a natureza descobrindo realmente em si o que têm de exprimir (tradução própria, do italiano). 362 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor ra de Taylor diante de algumas questões, o que poderá situar o contexto contemporâneo e clarear ainda mais a leitura tayloriana deste. Segundo o raciocínio de Taylor (2000), Heidegger é um teórico constitutivo. Ele se enquadra na tradição de Herder, mas enquanto Herder, ao inaugurar a visão constitutiva, ainda fala em termos de “reflexão”, que soa como uma forma de consciência, Heidegger revira claramente a questão e vê a linguagem como aquilo que dá acesso aos significados. A linguagem desvela. A linguagem é essencial ao Lichtung, o trazer-à-luz. O desvelamento não é intrapsíquico, mas ocorre no espaço entre seres humanos. E Heidegger vai além ao dizer que não são os seres humanos que falam, mas a língua. É por meio da linguagem que ocorre o desvelamento aos seres humanos. Pensando como Hegel, segundo Taylor, a expressão é trazer algo à manifestação e poderia ser o self, cuja atividade essencial seria a auto expressão; ou algo que transcende o self, no caso de Hegel o espírito ou o processo cósmico. Outra possibilidade é ver a expressão como um trazer-à-existência. O espaço é algo que fazemos. O aparecimento é parte da potencialidade daquilo que vem à luz, essa criação também é considerada como trazendo essa realidade à completude. Para Taylor (2000), os principais proponentes da concepção radical, “criacionista”, são hoje os desconstrucionistas, particularmente Derrida. Por fim, a perspectiva humboldtiana nos mostra que todos os falantes, ao entrarem em conversação a partir da infância, vêem sua identidade moldada por suas relações no âmbito de um espaço preexistente de expressão. São criaturas desse espaço, mas à medida que se tornam membros plenos da conversação, podem, por sua vez, contribuir para moldar esse espaço, de modo que nenhuma relação simples e unilateral de dependência pode capturar a realidade dos falantes e da linguagem. Taylor (2000) observa que: o que emerge com Heidegger é uma nova posição, sendo difícil imaginá-la antes de ele começar a pôr as questões da filosofia à sua própria maneira peculiar. A essência humana não é derivada, no caso de Heidegger, do exame ôntico de uma espécie particular de macaco não peludo que por acaso usa a linguagem. Não derivamos isso da natureza do “animal racional”. Derivamo-lo, pelo contrário, puramente do modo de ser do trazer-à-luz ao atentar para a maneira como a linguagem instaura um trazer-à-luz. Não se trata de algo que cada um 363 rogerio fosCHiera realiza, deve existir como contexto necessário para o agir e o fazer. Daí que o sentido da vida tenha de ao menos incluir como elemento central o papel que cada qual desempenha no vir-a-ser do trazer-à-luz. O agente humano é o “pastor do Ser”. Já Ferdinand de Saussure ressalta que a questão individual se define na relação com os demais, ao mesmo tempo em que reconhece a importância da atividade discursiva para a linguagem, como destaca Taylor ao afirmar que “language as a code (Saussure’s langue) can be seen as a kind of precipitate of speech (Saussure’s parole)” (TAYLOR, 1985a, p. 240).13 Taylor também concorda com Chomsky ao admitir que a atividade lingüística suponha mecanismos dos quais não se é plenamente consciente, ou seja, a uma estrutura superficial se relaciona uma “estrutura profunda”. “The task is now to give an objective account of this depth structure and its operation, which underlies the activity of language we observe.” (TAYLOR, 1985a, pp. 240-241).14 Para Taylor, as estruturas profundas elaboradas por Freud e Marx devem muito às teorias românticas, porém eles buscam uma explicação objetiva e nisso seguem o caminho das ciências “duras” da natureza. Afirma: 13 14 15 Freud recognizes symbolic expression, in our symptoms as well as in what he calls symbols. But these are explained in terms of desires, which are not themselves desires for symbolic expression, nor do they involve such expression in their proper fulfillment. On the contrary, the symptom proliferation results from their blocking or inhibition. [...] Moreover these desires should ultimately be explicable physiologically; hence Freud’s electrical and hydraulic languages. [...] With Marx, we also have a recognition of symbolic expression in ideological consciousness: religion, for instance, gives us a distorted expression of the human social condition of its age. With the liberation of classes society, and the victory of scientific over ideological consciousness, such symbolic forms of awareness are swept aside (TAYLOR, 1985a, p. 243).15 a linguagem como código (a langue de Saussure) pode ser vista como uma espécie de lançar-se do discurso (a parole saussuriana). A tarefa consiste agora em propor uma explicação objetiva dessa estrutura profunda e seu funcionamento, subjacente à atividade da linguagem que observamos (tradução própria). Freud reconhece a expressão simbólica tanto em nossos sintomas como no que denomina símbolos. Porém, esses se explicam em termos de desejos, que não são desejos de expressão simbólica nem implicam em uma realização propriamente dita. Ao contrário, a proliferação simbólica 364 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor Ambas as doutrinas, segundo Taylor, conseguem um bom desenvolvimento, principalmente através do estruturalismo francês contemporâneo com Lacan, Lévi-Strauss, Barthes e Althusser. O estruturalismo passa a entender o homem como um animal de linguagem e essa passa a ocupar um lugar central, uma maneira de ser especificamente humana. Mas, segundo Taylor (1985a), apesar da influência dos filósofos expressivistas, seguem com uma intenção objetivista ou “científica”. Para o filósofo canadense, os contemporâneos são atraídos por duas exigências metafísicas contraditórias: a da claridade e do controle e a da natureza intrínseca irredutível da expressão. Isto é: In our scientific understanding, we tend to be men of the Enlightenment, and we accept the predominance of Enlightenment – one might say, utilitarian – value in setting the parameters of public policy. Growth, productivity, welfare are of fundamental importance. But [...] people experience things in expressive terms: [...] private experience must be given its expressive fulfilment (TAYLOR, 1985a, p. 247).16 Mas isso tem gerado muitas confusões, segundo Taylor, e tem combinado um cientificismo crasso e formas subjetivistas de expressivismo. O que se faz necessário é “a contemporary expressivism which tries to go beyond subjectivism in discovering and articulating what is expressed” (TAYLOR, 1985a, p. 247).17 Segundo Taylor (2000), é preciso compreender a vida como uma narrativa. Para ter um sentido de si mesmo, é necessário dispor de uma noção 16 17 é a resultante de seu bloqueio ou inibição. [...] Por outra parte, esses desejos deveriam ser, em última instância, explicáveis desde um ponto de vista fisiológico; daí o recurso de Freud à linguagem da eletricidade e da hidráulica. [...] Em Marx também temos o reconhecimento da expressão simbólica na consciência ideológica: a religião, por exemplo, nos dá uma expressão distorcida da condição social humana de sua época. Com a liberação trazida pela sociedade sem classes e a vitória da consciência científica sobre a ideologia, tais formas de consciência simbólica serão deixadas de lado (tradução própria). No nosso entendimento científico, tendemos a ser homens de Ilustração e aceitamos o predomínio dos valores do Iluminismo – pode se dizer utilitários – quando se trata de estabelecer os parâmetros das políticas públicas. O crescimento, a produtividade e o bem-estar são de fundamental importância. Porém [...] as pessoas experimentam as coisas em termos expressivos: [...] à experiência privada deve ser proporcionada a realização expressiva (tradução própria). Um expressivismo contemporâneo que tenta ir além do subjetivismo descobrindo e articulando o que se expressa (tradução própria). 365 rogerio fosCHiera de como se veio a ser e de aonde se está indo. Enquanto ser que evolui e se torna, a pessoa só pode conhecer a si mesma por meio da história de suas mutações e regressões, triunfos e fracassos. Sua auto compreensão tem necessariamente profundidade temporal e incorpora a narrativa. Existe uma espécie de unidade apriorística de uma vida humana ao longo de toda a sua duração. Visto não poder deixar de se orientar para o bem e, desse modo, determinar sua posição em relação a ele, a pessoa tem inevitavelmente de compreender sua vida em forma narrativa, como uma busca. Em termos taylorianos, o resultado dessa busca é a melhor descrição – princípio MD – que se pode dar a qualquer dado momento, e nenhuma consideração epistemológica ou metafísica de um tipo mais geral acerca da ciência ou da natureza pode justificar a exclusão disso. E é claro que os termos da melhor descrição nunca vão figurar numa teoria física do universo. Por isso, assim como a ciência física já não é antropocêntrica, a ciência humana já não pode apoiar-se nos termos da física. Os termos valorativos têm o propósito de fornecer elementos sobre o que é viver no universo como ser humano, coisa bem distinta daquilo que a ciência física afirma revelar e explicar. Com a autenticidade, a partir de Taylor (2000), pensar sobre questões morais sempre significa pensar com alguém. Dispõe-se de um interlocutor, e parte-se de onde essa pessoa se situa, ou da diferença real entre ambos. Não se pensa de baixo para cima, como se se estivesse falando com alguém que não reconhece exigência moral alguma. É impossível discutir sobre o que é bem e o que é mal com uma pessoa que não aceita exigências morais. Assim também é impossível discutir sobre questões empíricas com uma pessoa que se nega a aceitar o mundo da percepção que a rodeia. Está claro que se está discutindo com pessoas que vivem na cultura contemporânea da autenticidade. E isto significa que tratam de configurar suas vidas à luz deste ideal. Não basta vê-las somente com suas preferências. Partindo do ideal se pode perguntar: quais são as condições da vida humana para realizar um ideal desse tipo? E a que apela o ideal adequadamente entendido? Estes dois tipos de perguntas se entrelaçam e se fundam entre si. No segundo caso, trata-se de definir em que consiste o ideal. Com o primeiro, se querem destacar certos traços gerais da vida humana que condicionam a realização deste ou aquele ideal. 366 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor A perspectiva da autenticidade de Taylor (1994) evoca um traço central da vida humana, seu caráter fundamentalmente dialógico. Os homens se convertem em agentes humanos plenos, capazes de compreender a si próprios e de definir sua identidade por meio da aquisição de ricas linguagens de expressão humana. O autor toma a linguagem em seu mais amplo sentido, que abarca não apenas as palavras, mas também outros modos de expressão pelos quais as pessoas se definem a si próprias, incluindo as linguagens da arte, do gesto, do amor, e similares. A elas se é introduzido no intercâmbio com os outros. Ninguém adquire por si mesmo as linguagens necessárias para a auto definição. Cada um é introduzido nelas com os outros que têm importância para ele, aqueles aos quais George Herbert Mead chamava os outros significantes. A gênesis da mente humana é, neste sentido não monológica, e não constitui algo que cada qual atinja por si mesmo, mas é dialógica. E mais, segundo Taylor (1994), não se trata apenas de algo que acontece na gênesis e que pode ser ignorado posteriormente. Não se trata simplesmente de que se aprendam as linguagens com o diálogo e se possa depois utilizá-las sem o diálogo. Naturalmente espera-se que se desenvolvam consideravelmente as próprias opiniões, pontos de vista e atitudes com relação às coisas mediante a reflexão solitária. A identidade, porém, fica definida sempre em diálogo, e, às vezes, na luta com as identidades que os outros significantes querem reconhecer. E mesmo quando se viram as costas para alguns – como pais, por exemplo – e estes desaparecem da vida concreta, a conversação com eles continua dentro de cada um durante toda a vida. 5 Considerações finais A autenticidade precisa considerar que o legado dos outros significantes, mesmo sendo no princípio da existência, continua por toda a vida. Não é possível libertar-se nunca, por completo, daqueles de cujo amor e atenção se é objeto muito cedo na vida. Cada um, porém, deve esforçar-se em definir-se por si próprio o mais plenamente possível, para que possa conseguir certo controle sobre a influência exercida pelos pais, evitando cair em qualquer forma de dependência deles. Mas o que Taylor propõe é uma leitura da noção moderna de autonomia, de vez que ela adquire 367 rogerio fosCHiera um significado mais amplo que por isso se expressa melhor na noção de autenticidade. Costa (2001) diz que, ao aderir ao paradigma expressivista Taylor assume: 1) uma apaixonada exigência de unidade e totalidade (wholeness), que carrega uma forte tensão para superar todos os dualismos herdados da tradição epistemológica moderna; 2) uma idéia de liberdade carregada de referências à necessidade de sentido e de expressão do homem e não só ao estímulo do domínio de si e ao controle da natureza; 3) desejo de nova forma de unidade com a natureza; 4) ideal de comunhão com os demais homens que vá além do modelo atomístico e associativista do contrato moderno. Para Costa (2001), o que mais que qualquer outra coisa fascina Taylor, no projeto hegeliano, é a clareza com que o filósofo alemão soube colher a matriz profundamente moderna destas duas divergentes aspirações à afirmação do princípio da subjetividade e, consequentemente, a tentativa de sintetizar, de um lado, a necessidade do homem moderno de ver afirmada a própria autonomia como ser racional e, por outro lado, a exigência também irrenunciável de encontrar uma raiz comum de pensamento e ser, de significado e mundo, de natureza e fim. Também Souza (2000) ressalta em Taylor a valorização da contribuição da idéia contra-iluminista do romantismo e da concepção da língua como “expressivista”, ou seja, como expressão do eu profundo e não meramente designativa e descritiva. Diferentemente de Hegel, que ao unir a idéia romântica de auto-expressão com o ideal kantiano de autonomia, cria a metafísica do espírito que se objetiva em fases sucessivas, Taylor percebe que somente a língua poderá substituir a função do espírito objetivo, nas condições pós-metafísicas do mundo moderno. Nas palavras de Souza (2000, p. 102): A língua “expressa”, no sentido forte do termo, tanto a vida interna psíquica do sujeito como suas possibilidades de relações intersubjetivas, permitindo a constituição de parâmetros valorativos capazes de guiar sua vida pública e privada. Pessoas só existem em “redes de interlocução” (webs off interlocution). Em Taylor, segundo Souza, a língua é constitutiva do sujeito e da sociedade na medida em que possibilita expressão e auto-esclarecimento 368 Autenticidade e expressivismo em Charles Taylor de vivências e experiências. Taylor trabalha com a ideia da anterioridade da língua, ou seja, Os sujeitos não podem ser percebidos como anteriores às relações comunicativas que os definem enquanto tais e constituem o horizonte ético e situacional que confere o contexto inextricável para a construção das suas identidades e, portanto, da suas ações no mundo (SOUZA, 2000, p. 102). Contudo, nos diz Souza que Taylor percebe uma alternativa ao naturalismo, é o que ele chama de “expressivismo”. Conforme o autor: Taylor percebe a gênese dessa fonte alternativa de autoridade moral primeiro em Montaigne e depois em Rousseau. Montaigne é visto como o pioneiro de toda uma tradição que, precisamente contra a tendência da tradição do self desprendido capaz de se moldar segundo uma lógica generalizável, irá procurar ressaltar a originalidade de cada pessoa. [...] Rousseau leva o subjetivismo da compreensão moral moderna um passo à frente ao definir a voz interior de meus próprios sentimentos como instância definidora do bem. [...] O que há de revolucionário no expressivismo é a idéia de uma individuação mais completa e original. Cada indivíduo é único e deve viver de acordo com essa unicidade (SOUZA, 2000, pp. 110-111). Souza (2000) nos diz que individualismo instrumental e expressivismo são irreconciliáveis. Nisso Taylor, baseando-se em Georg Herbert Mead, vai defender que nossa identidade se define no diálogo com “outros significativos”. Individualismo será a luta por dignidade e autenticidade, rompendo com a determinação dos próprios “desejos” e, por outro lado, com a determinação de papéis sociais preestabelecidos. Neste ponto Taylor defende o que Gadamer chama de “fusão de horizontes”. Ou seja: Aprendemos a nos movimentar num horizonte mais amplo em que aquilo que antes tínhamos por certo como a base da valoração pode ser situada como uma possibilidade ao lado da base diferente da cultura desconhecida. A fusão de horizontes opera por meio do desenvolvimento de novos vocabulários de comparação voltados para articular esses novos elementos (SOUZA, 2000, p. 270). 369 rogerio fosCHiera Tudo isso não significa que se perca a objetividade ou que se tenha que cair num paternalismo ou numa condescendência. Segundo Souza (2000, p. 273), para Taylor “tem de haver algum meio-termo entre a exigência inautêntica e homogeneizante de reconhecimento de igual valor, de um lado, e o autofechamento em padrões etnocêntricos do outro”. Referências COSTA, Paolo. Verso un´ontologia dell´umano. Antropologia filosófica e filosofia política in Charles Taylor. Milano: Edizioni Unicopli, 2001. 255p. SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000. 276p. TAYLOR, Charles. Human agency and language: Philosophical papers I. Cambridge: Cambridge University Press, 1985a. 294p. ______. La ética de la autenticidad. Barcelona: Paidos, 1994. 146p. ______. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. 311p. 370 O Risco do Relativismo Moral no Liberalismo Radical de Robert Nozick Rafael Müller (UCS) Robert Nozick, filósofo americano conhecido por seus trabalhos em Filosofia Política, escreveu em 1974 o livro “Anarquia, Estado e Utopia”, de viés libertário (ou, como chamo por opção pessoal no título desta comunicação, de viés liberalista radical, de raiz) dissertando que visões políticas com viés utilitarista ferem direitos invioláveis (leia-se liberdade e o direito a propriedades privadas), e que qualquer ação que venha a ser realizada só poderá sê-lo se respeitadas certas restrições concernentes aos direitos dos indivíduos que venham a ser afetados. Para Nozick, direitos não devem ser tratados como objetivos/finalidades que podem ser otimizadas e maximizadas num âmbito social, em moldes utilitaristas, mas sim tratados através do que ele chama de restrições indiretas. O indivíduo não pode ser utilizado para outros fins sem seu consentimento. Da mesma forma, no decorrer da obra busca dissertar sobre que forma de Estado seria moralmente possível contemplar, visto que aqueles que desconsideram tais direitos individuais e pequem pelo desrespeito às propriedades privadas, e desconsideram que os indivíduos possuem existência separadas umas das outras são imorais. Em outras palavras, Nozick considera imoral um estado que, por exemplo, confisque algo de um indivíduo para fins de redistribuição para, consequentemente, aumentar a “felicidade geral” da sociedade. Nozick também considera que certas coisas não devem ser feitas a indivíduos mesmo que estas tragam benefícios à sociedade. Posto que, por natureza, o indivíduo possui fins e objetivos próprios aos quais se dedica racionalmente, é esperado que outros indivíduos respeitem tal liberdade e não os tratem como meros meios para atingir outros fins. Nozick é categórico na primeira frase do prefácio de sua obra, ao afirmar que “indivíduos têm direitos, e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo poderá fazer (sem lhes violar os direitos)”. Tais direitos são conceiCorreia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 371-375, 2017. 371 rafael Müller tuados pelo autor não só como invioláveis, mas também como naturais. Ou seja, eles precedem quaisquer normas de outros indivíduos, grupos e instituições (políticas ou legais). Pode-se dizer que direitos naturais são aqueles que não são criados ou conferidos voluntariamente, existindo independentemente da ação humana. Assim sendo, teoriza nos primeiros capítulos da obra “Anarquia, Estado e Utopia” que nada poderia ser feito a estes indivíduos e nenhum sacrifício pode ser imposto, salvo sua concordância. Desta forma, cada indivíduo possui um direito natural rigoroso de agir livremente, como bem entender, sem interferência de outros, desde que ele não viole os direitos iguais de qualquer outro indivíduo. Toda e qualquer interação que envolva alguma espécie de dano (seja físico, de propriedade ou cerceamento de liberdade) só poderá ocorrer mediante contrato entre as partes, sob o risco de a parte ofensora ser obrigada a reparar o dano realizado para a parte prejudicada. As considerações Nozickianas de direitos naturais convergem de certa forma com John Locke, visto que Nozick explicitamente segue Locke nos primeiros capítulos de seu livro. Locke, na obra “Segundo Tratado sobre o Governo”, considera que os seres humanos são naturalmente livres, iguais e independentes. Também considera que mesmo no estado de natureza existem limites para o que os indivíduos podem fazer, limites estes postos pela lei natural, que também é a lei da razão. De acordo com Jonathan Wolff, no livro Robert Nozick – Property, Justice, and the Minimal State, Locke argumenta que a lei natural garante o direito à vida e à liberdade e que, também, os indivíduos deveriam respeitar a vida e a liberdade uns dos outros. No entanto, para Wolff, o fundamento teórico de Nozick para os direitos naturais não se deposita somente em Locke por dois motivos. Em primeiro lugar, Locke deposita sua teoria em autoridades bíblicas. Em segundo, a teoria lockiana aparenta visar a preservação da humanidade, o que geraria direitos positivos de sobrevivência que tenderiam a uma visão próxima a um “utilitarismo de direitos”, incompatível com as crítica de Nozick a teorias utilitaristas. Assim sendo, Wolff aponta que existem diversas pistas de que as bases para os direitos naturais em Nozick são ao menos parcialmente inspiradas em Kant, quiçá fidedignamente Kantianas, visto que Nozick toma 372 O Risco do Relativismo Moral no Liberalismo Radical de Robert Nozick para si a segunda formulação do imperativo categórico (“Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio”). Conforme Nozick, “restrições indiretas à ação refletem o princípio kantiano básico de que indivíduos são fins e não apenas meios; eles não podem ser sacrificados ou usados para consecução de outros fins sem seu consentimento”. Para explicar de forma mais precisa os direitos naturais que Nozick relaciona a cada indivíduo, podemos separar os direitos em liberdades e reivindicações. A liberdade é considerada ausência de obrigação. Você tem a liberdade de coçar o seu olho desde que não esteja sendo obrigado por alguém. Os direitos reivindicatórios são morais, e são aqueles que você pode requerer dos outros (e obrigá-los) para que não ajam de certa forma. No nosso exemplo, isto significa que você possui o direito de reivindicar que o outro não interfira no seu ato de coçar o olho se e somente se os outros possuem uma obrigação compulsória para não interferirem nas suas ações. Normalmente, quando se fala em direitos, nos referimos a um composto de liberdades e obrigações. Retornando ao nosso exemplo, seu direito de coçar o olho consiste em não ser obrigado a não coçar e outros indivíduos possuírem uma restrição indireta (que toma forma de obrigação compulsória) de não interferirem neste seu direito. Em suma, sua liberdade moral de coçar o olho está moralmente protegida pela sua habilidade de poder reivindicar a obrigatoriedade do outro a não interferir no seu ato de coçar o olho. Outro exemplo, mas prático, é dizer que você possui o direito de não estar sujeito a ser assassinado sem motivo algum. Logo, na mesma proporção, os outros possuem a restrição indireta de não poderem matar você sem motivo algum. Já que todas as obrigações no estado da natureza (que são correlacionadas a direitos e, logo, passíveis de cobrança) são negativas, no estado da natureza os indivíduos estão livres para agir dentro de qualquer conduta que não transgrida os direitos reivindicatórios de outros. Logo, a proclamação inicial de Nozick em seu magnum opus afirma cada direito individual relacionado à liberdade – liberdade de obrigações, especialmente obrigações positivas – que é sistematicamente protegido contra interferência por direitos reivindicatórios morais. 373 rafael Müller Deve-se mencionar que estes direitos naturais estão sujeitos a contrações ou expansões de acordo com as ações e interações dos indivíduos. Por exemplo: embora todo indivíduo tenha o direito de não levar um soco em seu próprio olho, cada um tem a escolha de abrir mão deste direito ao concordar em participar de um evento de luta esportiva, e o outro indivíduo envolvido, então, adquire o direito de acertar o olho deste em uma espécie de contrato relacionado exclusivamente a este evento. Agora que demonstramos suficientemente a dinâmica dos direitos naturais conforme elaborados por Robert Nozick, nossa questão detém-se exatamente neste “contrair e expandir” voluntário, em que um indivíduo abre mão de parte de suas liberdades enquanto outro toma para si o direito de realizar algo que, naturalmente, seria dado como agressão. Isto posto, pode parecer que qualquer contrato realizado com o consentimento de ambas as partes, independente do âmbito ou extensão deste contrato, será considerado válido enquanto não houver quebra de acordo, independente de questões morais que sejam observadas por terceiros. Ou seja, poder-se-ia entender que, nestes parâmetros, seria possível que estes indivíduos entrassem num acordo contratual onde um cedesse sua própria liberdade (ou mesmo a própria vida) ao outro, irrestritamente, sem que nada possa ser feito por terceiros. Ao contemplar o âmbito que pode ser alcançado por esta tese que parece fomentar uma liberdade irrestrita no acordo entre as partes, inclusive a de arruinar-se, surge uma interrogação: há o risco de uma defesa radical das liberdades individuais, especialmente aquelas defendidas por Robert Nozick, fomentar metaeticamente um relativismo moral normativo, de tal forma que o convívio em sociedade dos indivíduos venha a ser enormemente prejudicado? Ou seja, será que, considerando os fundamentos expostos anteriormente, há o risco de que os juízos morais e suas justificativas quanto ao libertarianismo Nozickano submetam-se tão somente à tradição de respeitar incondicionalmente acordos realizados entre duas partes, e quaisquer as consequências tomar como moralmente válido o agir de um indivíduo sobre o outro somente porque houve ali consentimento? Se tomarmos como fundamento para os direitos naturais e restrições indiretas em Nozick a segunda formulação do imperativo categórico Kantiano, de caráter universalista, podemos seguramente responder que, 374 O Risco do Relativismo Moral no Liberalismo Radical de Robert Nozick no âmbito filosófico, não nos parece possível afirmar que tal risco existe. Ao considerarmos que, em todo acordo entre as partes num universo libertário Nozickiano a ação dos indivíduos seja agir de tal forma que a humanidade das partes seja sempre respeitada e tratada como um fim e não simplesmente como meio, o risco de um relativismo moral que venha a tolerar, por exemplo, trabalho escravo voluntário, pelo simples fato de haver um acordo aparentemente racional entre as partes. Porém, cabe para reflexão: no trânsito da ética filosófica para a ética vivida, do senso comum, perde-se a segurança de existir um formalismo que garanta o respeito à humanidade alheia. E, com isso, em outros âmbitos que não o puramente filosófico, a preocupação com tais riscos volta a ser justificada. 375 John Rawls: imparcialidade e não neutralidade na justiça como equidade Elnora Gondim (UFPI) Introdução O tema de tal texto é JOHN RAWLS: IMPARCIALIDADE E NãO NEUTRALIDADE NA JUSTIÇA COMO EQUIDADE. Para definirmos os termos como neutralidade e imparcialidade, iremos utilizar a teoria do filósofo australiano Hugh Lacey, PhD em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Indiana (USA), Professor Titular do Departamento de Filosofia do Swarthmore College e nos anos de 1969 a 1971 foi professor do Departamento de Filosofia da USP. Ele tem muitos artigos e livros relativos ao tema em questão. No plano teórico, Lacey rejeita tanto aqueles que contestam a influência de valores na atividade científica, quanto os que negam a distinção entre os valores cognitivos e os valores éticos e sociais. É baseado na parte da teoria de Lacey, a qual define os termos pertinentes à imparcialidade e neutralidade, que tentaremos apontar de que forma a doutrina da justiça como equidade pode ser considerada imparcial e não neutra partindo, inicialmente, do recurso que Rawls faz frente às características da racionalidade e da razoabilidade para, em seguida, mostrarmos como o método do equilíbrio reflexivo corrobora para tanto, I- Teoria de Hugh Lacey: imparcialidade e neutralidade. Lacey, no livro Valores e Atividade Científica/1998, desenvolveu um modelo de interação entre valores e práticas científicas, para tanto, ele constata que diferentes métodos científicos afirmam que a ciência deve ser autônoma, neutra e imparcial. “”a ciência atualmente institucionalizada representa um estágio da tradição da ciência moderna enraizada em um com- 376 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 376-385, 2017. John Rawls: imparcialidade e não neutralidade na justiça como equidade plexo de valores, composto por certos ideais: imparcialidade, neutralidade (...) autonomia.”1 No entanto, o epistemólogo Lacey afirma que: analisa a racionalidade em termos de um conjunto de valores (“valores cognitivos”), e não em termos de um conjunto de regras, e propõe que os juízos científicos corretos são feitos por meio de um diálogo entre os membros da comunidade científica acerca do nível de manifestação de tais valores por uma teoria, ou por teorias rivais, em vez de por meio da aplicação de um algoritmo ideal por cientistas individuais.2 Ele mostra as mais variadas funções, relacionadas com os ideais acima mencionados, que os valores éticos, sociais, políticos, cognitivos etc. desempenham junto às atividades científicas. Nessa perspectiva, somente, a imparcialidade pode ser garantida. E Lacey argumenta: Deve-se fornecer apoio à pesquisa desenvolvida a partir de um conjunto apropriado de estratégias concebidas com o intuito de assegurar que o fenômeno possa ser adequadamente investigado através de um modo que seja sensível ao ideal da imparcialidade.3 Endossando o argumento da imparcialidade e contrapondo-se à característica da neutralidade, Lacey afirma: As atividades científicas não são inteligíveis quando separadas de suas situações sócio-históricas, dos valores incorporados nelas, e dos seus lugares no mundo da vida, isto é, o mundo como encontrado, sentido, com o qual interagimos, descrito em linguagem, representado e transformado em arte, comunicado e avaliado no curso da vida diária. No mundo da vida, os agentes humanos podem explorar, avaliar e deliberar sobre as possibilidades futuras e contribuir causalmente para quais delas serão realizadas, e (caracteristicamente) as suas ações são explicadas em termos de suas crenças, deliberações, fins, desejos, valores e outros estados intencionais, todos os quais são ininteligíveis quando separados da não existem instituições e dos ecossistemas que são os constituintes principais 1 2 3 LACEY & MARICONDA O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. LACEY, Hugh, Valores e Atividade Científica, p. 61. LACEY, Hugh, Pluralismo metodológico, incomensurabilidade e o status científico do conhecimento tradicional, p. 443. 377 Elnora Gondim de suas situações sócio-históricas. Além disso, os objetos do mundo da vida são simultaneamente de vários tipos – objetos físicos, químicos e biológicos, por exemplo, são também objetos ecológicos, sociais, históricos, culturais e econômicos – e eles têm impacto causal em virtude de todos os tipos de coisas que eles são.4 Em outras palavras, isso significa que na atividade científica não há neutralidade, porquanto as teorias imbricam valores. Embora grande parte da comunidade científica defenda tal ideal, isso se deve ao seguinte fato: Para esses interesses é importante definir a ciência como “pesquisa conduzida dentro da abordagem descontextualizada”, e definir a neutralidade em termos da carência das implicações lógicas no domínio dos valores, mas a consequência disso é que a ciência não pode ser relevante para todas as questões sobre a legitimidade, embora (de acordo com esses interesses) essas questões devam ser resolvidas por recurso à “ciência bem feita”5. No entanto, quando se trata sobre a questão da imparcialidade, ele afirma que essa diz respeito aos meios em que teorias são escolhidas ou priorizadas em detrimento de outras. E que “O ideal de imparcialidade permanece sem desafio. (...) A ciência não necessita da dicotomia entre fato e valor para manter o ideal da imparcialidade: uma análise nuançada da sua imbricação6 é suficiente”.7 Nessa perspectiva, Lacey define os três valores (imparcialidade, neutralidade e autonomia) como se segue: a imparcialidade relaciona-se às formas em que teorias científicas são escolhidas ou priorizadas em detrimento de outras. Essa seleção de teorias é feita através de um método bem definido, que elege uma série de critérios e que esses são a base da seleção das teorias. Como todas as hipóteses e teorias devem se enquadrar a este método e satisfazer seus critérios, o processo torna-se imparcial. A neutralidade, por sua vez, refere-se aos valores externos ao método 4 5 6 7 LACEY & MARICONDA, O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. LACEY, Hugh, A imparcialidade da ciência e as responsabilidades dos cientistas, p. 498. “O termo ‘implicatura’ foi introduzido, mais ou menos há quarenta anos, pelo filósofo inglês, Paul Grice, para referir às inferências não-dedutivas, que (pelo menos na linguagem comum)são normalmente consideradas legítimas. A inferência no texto, de uma afirmação fatual a um juízo de valor, é uma implicatura exemplar. LACEY, Relações entre fato e valor, p. 255. LACEY, Hugh, Relações entre fato e valor, p. 253. 378 John Rawls: imparcialidade e não neutralidade na justiça como equidade científico. Valores sociais e morais, por exemplo, não deveriam afetar as ações da ciência. Uma descoberta científica ou uma pesquisa qualquer não deve beneficiar interesses e valores. Lacey faz referência a três sentidos de ‘neutro’: (1) um resultado é neutro, se não tiver juízos de valor entre as suas consequências lógicas; (2) um resultado é neutro, se não tiver implicaturas no domínio de juízos de valor; e (3) os resultados científicos, considerados como uma totalidade, são aplicáveis equitativamente para todas as perspectivas éticas atualmente viáveis. No texto citado ele usa ‘neutro’ no segundo sentido.8 Por fim, Lacey afirma: Sempre há tensão entre os dois lados, entre, de um lado, as atividades de investigação e os produtos obtidos pelos cientistas no interior de instituições reconhecidas como “científicas” e, de outro lado, os valores que mudam com os desdobramentos da tradição e com as flutuações do contexto social das instituições. Contudo, sem a consideração dos valores, faltam critérios para avaliar essas atividades e produtos, motivando (quando apropriado) mudanças e, principalmente, para defender a ciência de ameaças a sua integridade, estima e autoridade. Enfim, utilizaremos, também, tal definição para neutralidade e, quanto á imparcialidade, empregaremos tal termo relacionado à certo tipo de implicatura. II- Teoria rawlsiana: não neutralidade e imparcialidade Conforme o acima exposto, constatamos que há na teoria rawlsiana o caráter da imparcialidade em prejuízo da neutralidade, porquanto a ideia do racional e a concepção do razoável constituem fortes argumentos para se considerar o caráter impessoal e não neutro da mesma, porque a ideia do racional, enquanto relacionada às concepções do bem, assegura a não neutralidade da teoria rawlsiana. A razoabilidade, em contrapartida, como a capacidade de senso de justiça, onde o justo, é prioritário em relação ao bem, garante a imparcialidade se levarmos em consideração que tal termo diz respeito aos meios em que teorias são escolhidas ou priorizadas em detrimento de outras. É conveniente apontar que as ideias do 8 LACEY, Hugh, A Controvérsia sobre os Transgênicos: questões científicas e éticas, pp. 12-14. 379 Elnora Gondim racional e do razoável operam juntas e estão inseridas na noção de cooperação equitativa. A racionalidade e a razoabilidade conectam-se com faculdades distintas – respectivamente, com a capacidade de ter uma concepção do bem e com a disposição para se ter senso de justiça. O razoável e o racional são inseparáveis enquanto ideias complementares. Tanto a ideia do razoável quanto a do racional mantêm características peculiares: o razoável tem uma forma de público e o racional não a tem. Por meio do razoável os indivíduos são iguais no mundo público dos outros e podem propor aceitar e dispor termos equitativos de cooperação entre eles. O razoável não é sinônimo de neutralidade, pois a sociedade razoável não é uma sociedade de santos. É a parte do nosso mundo humano comum que contém as concepções de bem e de justo de cada um. Tal sociedade razoável não é formada por um mundo que julgamos ter tanta virtude que acabamos por considerá-lo fora do nosso alcance9. Cabe lembrar que se houver uma defesa do ideal de neutralidade na justiça como equidade, nesse sentido, pode-se argumentar que os princípios de justiça devem ser considerados neutros no que tange às diversas concepções sobre o bem. Assim, pode-se, plausivelmente, afirmar que Rawls defenderá a neutralidade de sua teoria como algo que não favorece nenhuma doutrina abrangente em particular (2005, p. 194). No entanto, mesmo com tal argumento, a defesa da neutralidade não se sustenta, porquanto levando em consideração que, para Rawls, “não existe instância exterior à perspectiva própria dos parceiros que os limites em nome de princípios anteriores e independentes para julgar as questões de justiça que se pode apresentar para eles enquanto membros de uma determinada sociedade”.10. Portanto, as faculdades estão subjacentes à capacidade de propor, ou de aceitar, e, depois, de motivar-se a agir, são virtudes sociais e as mesmas garantem a imparcialidade e não a neutralidade na teoria da justiça como equidade, porquanto, embora as partes nada sabem sobre os desejos que terão, elas escolherão uma estrutura básica baseada em desejos de bens primários que são certos direitos e liberdades, oportunidades, poderes, rendimentos, riqueza e o auto-respeito. As partes, então, perseguem seus objetivos como algo que querem para si e para os outros, ou seja, nenhuma parte pode se deixar influenciar, por exemplo, pela inveja no momento da es9 10 380 RAWLS, O Liberalismo Político, p. 95. RAWLS, Justiça e Democracia, p. 59. John Rawls: imparcialidade e não neutralidade na justiça como equidade colha. Mesmo o mecanismo do véu da ignorância (ignorance of veil) que “implica que as pessoas sejam representadas unicamente como pessoas morais, e não como pessoas beneficiadas ou prejudicadas pelas contingências de sua posição social, pela distribuição das aptidões naturais ou pelo acaso”11 não garante a neutralidade da teoria rawlsiana, porquanto se todas a pessoas estão em posição de equidade, isto é, há algo que elas têm que se pautar para tanto, porquanto equidade não é igualitarismo. Ela requer algum critério. Essa seleção de teorias é feita através de um método bem definido, que elege uma série de critérios e que esses são a base da seleção das teorias. Logo, isso é mais relacionado à questão da imparcialidade do que da neutralidade. Lembrando Layce que a imparcialidade relaciona-se às formas em que teorias científicas são escolhidas ou priorizadas em detrimento de outras. Portanto, a equidade é responsável pela imparcialidade na teoria rawlsiana. Ela é garantida pelo fato de que as partes têm conhecimento em relação aos fatos gerais e, ao mesmo tempo, estão sob um véu de ignorância, isto é, ignoram certos fatos particulares, embora conheçam aqueles aspectos que afetam a escolha dos princípios de justiça. As partes, que escolhem os princípios de justiça, são indivíduos racionais, razoáveis que têm qualidades subjetivas e sentimentos. Em consequência, no momento da deliberação dos princípios de justiça, há algo que elas se pautam, isso garante a imparcialidade e não a neutralidade. Outro argumento para corroborar com tal afirmação, é que na justiça como equidade há a presença de um método bem definido: o equilíbrio reflexivo. O método do equilíbrio reflexivo é um artifício que objetiva a justificação relacionada entre os juízos e os princípios morais no interior da posição original. Ele é um procedimento de justificação que requer a condição de publicidade às partes em posição original. O equilíbrio reflexivo, em LP, é o ponto-chave para toda a teoria, porquanto a justiça como equidade é constituída como uma argumentação prática que, por meio de um processo dinâmico, reconstrói a moralidade política nas sociedades bem-ordenadas, extraindo essa justificação da razão pública, donde a concepção normativa de pessoa é o seu ponto de partida. Nessa perspectiva, em Justiça como Equidade: uma reformulação, Rawls ressalta a importância do equilíbrio reflexivo amplo e afirma: 11 RAWLS, Justiça e Democracia, p. 67. 381 Elnora Gondim Lembremos que uma sociedade bem-ordenada é uma sociedade efetivamente regida por uma concepção pública de justiça. Pensemos que cada cidadão numa sociedade dessas como alguém que alcançou um equilíbrio reflexivo amplo (e não restrito). Uma vez que os cidadãos reconhecem que afirmam a mesma concepção pública de justiça política, o equilíbrio reflexivo é geral: a mesma concepção é afirmada nos juízos refletidos de todos. Portanto, os cidadãos atingiram um equilíbrio reflexivo amplo e geral, ou, ainda, pleno. (reservemos o adjetivo “pleno” para os aspectos que se realizam numa sociedade bem-ordenada). Numa sociedade assim, existe um ponto de vista público a partir do qual todos os cidadãos podem arbitrar suas pretensões, como também todos reconhecem que esse ponto de vista é afirmado por eles em pleno equilíbrio reflexivo.12 Assim, em linhas gerais, pode-se afirmar que o equilíbrio reflexivo rawlsiano é uma forma de organizar as intuições morais relacionadas à política, tornando-as consistentes e coerentes em um movimento de construção. Desse modo, assim sendo, a ideia do equilíbrio reflexivo de Rawls é que as teorias são justificadas em um processo de deliberação no qual se considera um conjunto amplo de crenças e julgamentos em um sistema coerente. Este modelo evita a consideração kantiana de que as teorias morais podem ser estabelecidas incondicionalmente e, contrário a isso, assegura que as crenças emergem do processo do equilíbrio reflexivo, no entanto elas não são consideradas como axiomas. Assim sendo, Rawls, ao mesmo tempo em que concede forças às intuições, não crê em fatos morais como algo dado de uma forma puramente intelectual. Antes de tudo, o procedimento do equilíbrio reflexivo tende a construir fatos morais, em um sistema coerente de crenças, que são os princípios de justiça e, nessa perspectiva, a justiça como equidade não defende nem rejeita nenhuma doutrina moral abrangente, põe de lado as controvérsias geradas por tais doutrinas e faz uso da justificação pública, moderando conflitos políticos, tentando alcançar uma cooperação social equitativa entre cidadãos, onde isso é feito a partir das ideias implícitas na cultura política. Partindo daí, elabora-se uma base pública de justificação que todos os cidadãos razoáveis e racionais podem endossar, mesmo eles tendo as suas doutrinas abrangentes. Dessa forma, tem-se um consenso justaposto alcançado por meio de equilíbrio reflexivo, gerando, assim, uma justificação pública na 12 382 RAWLS, Justiça como Equidade, p. 43. John Rawls: imparcialidade e não neutralidade na justiça como equidade qual esta é algo mais que um simples acordo. Nessa perspectiva, a concepção política de justiça tem como objetivo formular princípios de justiça em que os cidadãos possam endossar, depois de cuidadosa reflexão e, dessa forma, chegar a um acordo sobre os problemas constitucionais essenciais e às questões de justiça, assim satisfazendo os critérios razoáveis da reflexão crítica. Por esse motivo, a necessidade do equilíbrio reflexivo surge quando se detecta que os juízos ponderados estão sujeitos às controvérsias e distorções. Assim sendo, pode-se fornecer uma melhor explicação para o senso de justiça de uma pessoa, por exemplo, quando ela avaliou várias concepções propostas e decidiu ou revisar seus juízos ou manter firmemente suas próprias convicções iniciais. Destarte, pode-se afirmar que os seus juízos estão em equilíbrio reflexivo. Trata-se, dessa forma, de um equilíbrio, porque os seus princípios e as suas opiniões coincidem e é reflexivo porquanto a pessoa tem boas razões para saber com quais princípios o seu julgamento se conforma. No entanto, esse equilíbrio não é necessariamente estável. Ele tem a possibilidade de ser alterado por outro exame, porque, em se tratando de uma concepção política de justiça, os princípios, alcançados por meio de equilíbrio reflexivo, não podem ser verdades necessárias, como também não são derivados de premissas axiomáticas, ao contrário, sua justificativa ocorre por meio de corroboração mútua de muitas considerações e do ajuste de todas as partes em uma única visão coerente. Sob esta ótica, em linhas gerais, a ideia do equilíbrio reflexivo de Rawls é que as teorias morais são justificadas em um processo de deliberação no qual se considera um conjunto amplo de crenças e julgamentos em um sistema coerente. Portanto, por ser um método eleito para a deliberação dos princípios de justiça como, também, como carregam consigo as suas crenças de maneira razoável, não se pode conceber o aspecto da neutralidade em se tratando da teoria rawlsiana. No entanto, quanto à imparcialidade, os recursos aos julgamentos considerados, referentes ao método do equilíbrio reflexivo, asseguram tal ideal. Considerações finais A presença do equilíbrio reflexivo wide na teoria da justiça como equidade garante a imparcialidade da teoria, se levarmos em consideração que trata-se de um método bem definido e que tal procedimento tem 383 Elnora Gondim base as intuições presentes nas sociedades democráticas, onde as partes que deliberam são portadores de características morais tais como um senso de justiça e concepções do bem. Portanto, aí reside a constatação de que no momento da construção e deliberação dos princípios de justiça a característica da neutralidade não se sustenta tendo vista que, em tal momento, as pessoas carregam consigo qualidades e valores que são exteriores ao método aplicado como exemplo, a ênfase na liberdade individual e na igualdade de todos os cidadãos. Isso, visto nos dois princípios de justiça rawlsianos, faz com que a justiça como equidade efetue uma articulação entre a liberdade individual e a coletiva explicitamente vista nas duas faculdades morais contidas na concepção de pessoa da teoria rawlsiana, isto é, na ideia de racionalidade e na concepção de razoabilidade. Portanto, dessa maneira, Rawls elabora uma articulação entre o público e o privado inserindo, assim, na justiça como eqüidade tanto a tradição antiga de liberdade quanto a moderna. Para tanto, vê-se que na teoria rawlsiana, a utilização do método do equilíbrio reflexivo, o conceito normativo de pessoa, o procedimentalismo da posição original, a ordem lexicográfica atribuída ao primeiro princípio, isso tudo mostra que Rawls considera a neutralidade como algo impraticável, porquanto, no momento da deliberação dos princípios de justiça estão presentes fatores extrapolíticos. Contudo, pelos motivos acima elencados, constata-se que, embora não neutro, o procedimento na justiça como equidade é imparcial. Porquanto, para Rawls, os agentes são livres às restrições que apontam para a liberdade deles e, embora considere a cultura política pública, ao mesmo tempo mantém que para uma concepção política da justiça ser aceita, esta deve estar de acordo com convicções bem ponderadas depois de uma cuidadosa reflexão. Dessa forma, embora seja de real importância o engajamento dos cidadãos na vida política, isso deve ser feito mediante uma escolha deles próprios. Com isto, o que Rawls afirma é uma conjugação entre liberdade e igualdade, pois a justiça como equidade não aceita nenhum acordo que viole as liberdades básicas, assegurando, então, que há um direito natural à liberdade. Nesse sentido, os princípios de justiça seguem uma ordem lexicográfica, onde as liberdades básicas têm prioridades sobre o princípio da diferença. Assim sendo, Rawls protege a autonomia individual e a defesa das liberdades deve ser à base de toda justiça. Portanto, Rawls garante a imparcialidade na justiça como equidade ao 384 John Rawls: imparcialidade e não neutralidade na justiça como equidade afirmar um consenso pluralista entre pessoas razoáveis e racionais, que não abrem mão de suas concepções de bem, mas não as impõem e, por meio de um processo de construção, atingem a um consenso sobreposto. Referências LACEY, Hugh. Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial, 1998. LACEY & MARICONDA. O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores, Vol. 12, N. 04,2014./Disponível: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1678-31662014000400643&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt LACEY, Hugh. Pluralismo metodológico, incomensurabilidade e o status científico do conhecimento tradicional, Revista Scientia e Studia, Vol. 10, No. 3, 2012. Disponível http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662012000300002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt LACEY & MARICONDA. O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores, Vol. 12, N. 04,2014. Disponível: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662014000400643&lng=pt&nrm=iso&tl ng=pt LACEY, Hugh. A imparcialidade da ciência e as responsabilidades dos cientistas. Sci. stud., São Paulo, v. 9, n. 3, 2011. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1678-1662011000300003&lng=en&nrm=iso>. LACEY, Hugh. A Controvérsia sobre os Transgênicos; questões científicas e éticas. Aparecida, SP: Editora Ideias e Letras, 2006. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. RAWLS, John. Justiça como Equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. RAWLS, John. O Liberalismo Político. São Paulo: Ática, 2000. 385 Aprimoramento biotecnológico: Um prelúdio a era pós-humana? Keoma Ferreira Antonio (UFRN) Em face de uma análise do desenvolvimento da filosofia, defrontamo-nos hodiernamente com uma crise na fundamentação da moral. O homem pós-moderno, diagnosticado já por Freud e Bauman, vive em uma crise do bem-viver, uma tripla ruptura com as referências do agir moral: O telos dos gregos, a missão dada por Deus como referência dos medievais e por último, a razão humana – a crença de que nossa elucubração inelutavelmente apontaria soluções no que concerne ao convívio – como fundamentação da moral na modernidade. Vivemos, alguns dirão, num momento de incerteza, numa realidade constituída por laços voláteis, numa profunda degeneração no que concerne à convivência. Talvez estejamos paulatinamente perdendo a capacidade de viver a vida como ela é. Talvez, com a ultraconsolidação do mundo tecnológico, com o pragmatismo desmesuradamente enraizado em nossas vísceras, a sabedoria que os gregos tanto ovacionavam, o discernimento pautado na vida boa, a abstração pautada nas práticas do cotidiano, tenha se metamorfoseado em utopias. Construímos uma sociedade tecnológica fascinante, não obstante, o efeito colateral do capitalismo, da lógica da imediatez, dos resultados, nos pesa de tal forma que se torna difícil manter-se em pé. Muletas metafísicas e muletas químicas nos são oferecidos, das formas mais diversas, para que possamos sustentar a nós mesmos. Entorpecemo-nos, seja com estupefacientes, com auto-ajudas ou com crenças salvadoras. Este é o mundo pós-moderno: as pessoas claudicantes, enfraquecidas pelo mundo que entristece, se refugiam num mundo transcendente, legitimando toda vida medíocre, toda submissão, todo o esvaziamento de momentos alegradores, em razão da promessa nefasta de que as pessoas que aqui se deram mal se darão bem no reino dos céus. Talvez não sejamos mais capazes de criar piruetas metafísicas para fundamentar a maneira pela qual devamos agir de modo a garantir bom convívio e quiçá a educação, tal como a co- 386 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 386-392, 2017. Aprimoramento biotecnológico: Um prelúdio a era pós-humana? nhecemos, para alguns, mero aparelho ideológico do estado, não dê conta disto. É neste contexto, semelhante ao Admirável Mundo Novo, que se emerge a discussão do aprimoramento, momento este de eleição de uma nova referência, uma nova muleta: O mundo high-tech. Uma crença na possibilidade de que, por meio da alta tecnologia, possamos metamorfosear o próprio ser humano, aprimora-lo no afã de torná-lo melhor, seja no que concerne à cognição, às habilidades físicas ou até mesmo a moralidade. O avanço tecnocientífico ganha caráter demiúrgico na medida em que, exemplifico, possibilita alteração ou mesmo criação de novas formas de vida por meio da tecnologia CRISPR, conhecida como edição de genoma.1 É neste contexto que manifestações transhumanistas e pós-humanistas ganham alento, dispostas em consonância aos avanços tecnocientíficos; e as proposições do aprimoramento, situadas, como defendo, inequivocamente em ambos os movimentos, tornam-se progressivamente mais distantes da ficção. Diante da sociologia de Hermínio Martins2 tais proposições exprimem um rompimento com o que ele nomeia de projeto prometéico (estrutura tecnocientífica movida pela ideia de que por meio da razão podemos modificar o mundo para algo melhor, cujo ponto de culminância é o Humanismo), cedendo espaço, de algum modo, ao projeto tecnocientífico Fáustico. Como elucida Sibília: Claramente, a meta do atual projeto tecnocientífico não consiste na melhoraria das ainda miseráveis condições de vida da maioria dos homens: ele está norteado por um impulso insaciável e “infinitista”, sem os limites que constrangiam o projeto científico prometéico: um “impulso cego para o domínio sem fim”, para a apropriação ilimitada da natureza, tanto exterior quanto interior ao corpo humano. Assim, sai de cena o velho Prometeu, cedendo seu lugar ao ambicioso Fausto. (2001: 6) O projeto Fáustico exprime um caráter desmesurado, descomedido, uma hybris oriunda da megalomania humana, na medida em que o homem deseja não só suplantar as prerrogativas divinas, como também tornar-se um deus. Se os avanços tecnocientíficos conferirem ao homem o poder da criação, a distinção dicotômica clássica ‘natural/artificial’ po1 2 http://www.bbc.com/news/health-36439260 MARTINS, Hermínio, Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição humana. 387 KeoMa ferreira antonio derá se dissipar. Tentemos entender melhor o motivo pelo qual essa dicotomia tem perdido nitidez. ‘Natural’ é tudo aquilo que é oriundo da natureza. Busquemos, neste caso, o significado de ‘natureza’. Como diz Nielsen (2011: 22), há três significados presentes na discussão e no contexto da biotecnologia: ‘Natureza’ entendida substantivamente onde representa o mundo como um todo, no sentido de que tudo que existe e ou a ordem ou o sistema com o qual tudo que existe, é ou interage. ‘Natureza’ entendida como a essência dos seres vivos ou de um sistema de processos biológicos, isto é, animais e humanos são referidos como tendo uma natureza que implica suas espécies específicas ou em alguns casos uma personalidade específica. ‘Natureza representa aquilo ao qual é em si mesmo e é intocável pelo homem. Portanto, ‘natural’ é o que é oposto a artificial. 3 Se observarmos a terceira definição supramencionada constataremos que o natural é definido contrariamente a artificial. A ideia de artificialidade só se dá por meio da exclusão do homem da natureza. Embora o homem seja um animal mamífero, um antropoide, há, com efeito, um deslocamento deste da natureza. Sua presença no mundo é natural, mas sua interação se artificializa. Ainda que pensemos diferentemente hoje, no que concerne a racionalidade, de algum modo ainda, um gato faminto morreria de fome ao lado de um 1kg de alpiste e um pássaro também sucumbiria ao lado de um filé mignon, inexoráveis que são, como explica Rousseau4. Portanto, parece plausível ainda, não obstante afirmemos a presença da racionalidade em outras espécies, deslocar o homem da natureza. Embora Darwin tenha nos tirado do pódio, nos pondo na mesma condição da capivara e do tucunaré, o contexto ao qual estamos imersos nos insere um passo à frente mais uma vez, na medida em que não estamos mais sujeitos à seleção natural, havendo um horizonte definível ao sabor de nossa deliberação. Até mesmo a natureza humana, única intersecção com o natural, se transforma em um artifício, uma vez que por meio da biotecnologia, em especial a engenharia genética, podemos selecionar genes no afã de criar homens aprimorados ou até mesmo espécies 3 4 388 NIELSEN, Lisbeth Witthøfft, The Concept of Nature and the Enhancement Technologies Debate. ROUSSEAU, Jean-Jacques, A origem da desigualdade entre os homens, p. 37. Aprimoramento biotecnológico: Um prelúdio a era pós-humana? absolutamente dispares das existentes. Mas como pode a natureza ser artificial? Estamos diante de um oximoro? Talvez não, diante das possibilidades que a ciência nos apresenta. Mesmo depois de mais de 150 anos da primeira edição de A Origem das Espécies é possível constatar que a teoria da evolução, um dos maiores insights científicos dos últimos séculos, tem implicações e relevância que ainda não foram compreendidos em toda sua profundidade. Não é possível pensar o homem contemporaneamente sem ao menos considerar sua obra. Como aponta Sorgner e Grimm (2013: 11) no que tange a investigação do homem a partir da ciência e de outras áreas do conhecimento, há certamente três premissas que dificilmente são recusadas, oriundas do pensamento de Darwin: - (i) Seres humanos e grandes primatas tem ancestrais em comum e são seres naturais que nem sempre existiram, mas que vieram a existir em consequência da seleção natural. - (ii) Não há nada no mundo naturalista que não seja sujeito a mudança e, portanto, parece altamente provável que esses seres humanos desaparecerão eventualmente e/ou se desenvolverão em diferentes espécies. - (iii) Parece provável que os seres humanos nem são os maiores nem os melhores seres na Terra, nem são o fim da cadeia evolutiva.5 Olhemos atentamente para as premissas supramencionadas. F.M. Esfandiary (que mudou seu nome para F.M. 2030) é geralmente conhecido como o principal progenitor filosófico do transhumanismo. Ele foi um dos primeiros a usar os termos ‘ transhumano’ e ‘pós humano’ em um curso acerca dos impactos da tecnologia nos seres humanos na The New School em Nova Iorque. Em seu livro Up Wingers: A Futurist Manifesto, FM 2030 defendeu a ideia de que a evolução da humanidade está acelerando em virtude da tecnologia. Segundo ele superaremos a velhice e a morte, viveremos para além do planeta Terra, nos aprimoraremos geneticamente, de forma resumida, superaremos o homo sapiens (SIRIUS, 2015: 77). O termo Transhumanismo pode ser entendido de duas maneiras, sendo o transhumano a transição entre o homo sapiens e o pós-humano – FM 2030, exemplifico, defende que o homem hodierno já se configura como 5 SORGNER, S. L., GRIMM, N. Evolution today. 389 KeoMa ferreira antonio um transhumano, em virtude da nossa indestrinçável conexão com a tecnologia. O termo ‘transhumanista’, por sua vez, exprime a ideia da defesa dos efeitos salutíferos do avanço tecnológico. Noutras palavras, transhumanista, tal como Savulescu, Bostrom, Sorgner e FM 2030, são pensadores que apostam na plausibilidade da intervenção biotecnológica em nossa própria constituição. Retomemos agora as premissas supracitadas. Inobstante a segunda se mantenha, dado que o metamorfoseamento ao qual estamos nos submetendo reforça o dinamismo da vida e anuncia o surgimento de uma nova espécie, o pós-humano, o mesmo não ocorre com as demais premissas. Todos os seres vivos do planeta são oriundos de um processo de seleção natural. Enunciado axiomático para muitos. Contudo, é bem provável que em pouco tempo haja o surgimento de novas espécies absolutamente independentes do processo de seleção natural. Noutras palavras, não mais estamos sujeitos ao lento e randômico processo de seleção natural darwiniano. Ademais, quando nos deparamos com expressões como ‘homem pós-orgânico’ ou ‘homem pós-biológico’, que há poucos anos seriam uma espécie de contradição de termos ou simplesmente careciam de sentido, notamos, ao constatarmos a evolução da tecnociência, a gradual ‘desanimalização’ ao qual o homem está submetido. Investiguemos agora o que, de fato, se entende por ‘pós-humano’ A palavra pós-humano é poli-semântica. Podemos discutir três definições apresentadas por Pepperell (2002: IV): A primeira é usada para marcar o fim do período de desenvolvimento social conhecido como humanismo, e neste sentido, significa ‘ depois do humanismo’. O segundo se refere ao fato de que nossa visão tradicional do que constitui um ser humano está agora submetido a uma profunda transformação. É discutido que nós não podemos mais pensar o ser humano da mesma forma que fazíamos. Terceiro, o termo se refere a geral convergência da biologia e tecnologia para o ponto onde elas estão progressivamente se tornando indistinguíveis. O prelúdio do pós-humano é conferido não pela negação da organicidade que nos é constituinte, mas sim pela constatação de sua obsolescência diante da pretensão que temos e da construção material para esta realização onírica, portanto constituinte de um projeto fáustico. O primeiro passo marcador da obsolescência do corpo orgânico é a pretensão de melhorá-lo, aprimorá-lo. O homem ganha condições de supressão da fraqueza, da vulnerabilidade, da claudicância, por meio da biotecnologia. 390 Aprimoramento biotecnológico: Um prelúdio a era pós-humana? Temos a impressão cotidianamente que presenciamos um momento de exaltação ao corpo, uma ultra valorização da estética corpórea em concomitância ao controle nutricional, traduzido em linhaças e sucos detox. No entanto, defendemos que esta ultra valorização do corpo exuberante implica na negação da naturalidade. Estabelecemos metas tão elevadas que, no intuito de nos aproximarmos destas, no que concerne a beleza corporal, tem se tornado inelutável a recorrência a intervenções de fármacos ou cirurgias plásticas. Vemos nisso um elemento do projeto de superação da organicidade corporal, ou na forma mais extremada, na superação do corpo biológico. Noutras palavras, o descontentamento com a naturalidade do corpóreo tem seu primeiro estágio marcado pelo ideal de aprimoramento, e segundo pela maquinazação do homem. Destarte, acreditamos que a substancialização do aprimoramento humano biotecnológico, em suas mais variadas formas, como o cognitivo e o físico em suas diversas nuances nos coloca de fato, como defendem alguns, no âmbito de transhumanos: uma transição entre o humano e o pós-humano. O aprimoramento solidifica a tecnophilia e erige o tecnoteísmo, consolidando o impacto e a relevância do projeto pós-humanista/ transhumanista. O aprimoramento, destarte, se configura como a primeira manifestação concreta de tais projetos. Referências MARTINS, Hermínio. Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição humana. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. NIELSEN, Lisbeth Witthøfft. The Concept of Nature and the Enhancement Technologies Debate. IN SAVULESCU, Julian. MEULEN, Ruud ter, and KAHANE, Guy (editors). Enhancing human capacities. Wiley-Blackwell, 2011. PEPPERELL, Robert. The Posthuman Condition: Consciousness beyond the brain. Cromwell Press, Wiltshire, 2003. ROUSSEAU, Jean-Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Editora Escala, 2007. 391 KeoMa ferreira antonio SAVULESCU, Julian. MEULEN, Ruud Ter, and KAHANE, Guy (editors). Enhancing human capacities. Wiley-Blackwell, 2011. SHARON, Tamar. Human Nature in an Age of Biotechnology: The Case for Mediated Posthumanism. Springer, 2014. SIBÍLIA, Paula. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. SIBÍLIA, Paula. Rumo à imortalidade e à virtualidade: A construção científico-tecnológica do homem pós-orgânico. Campo Grande, 2001. SORGNER, S. L., GRIMM, N. Evolution today, In SORGNER, S. L., JOVANOVIC B. R. Evolution and the future: Anthropology, Beyond humanism: trans- and posthumanism. Peter Lang, 2013. SIRIUS, R.U., CORNELL, Jay. Transcendence: The Disinformation encyclopedia of Transhumanism and the Singularity. Red Wheel/Weiser, LLC, 2015 WOLFE, Cary. What is posthumanism? University of Minnesota Press, 2010. 392 Sentidos da transformação do humano na contemporaneidade: entre o transumanismo e o bioludismo Rafael Nogueira Furtado (PUC-SP) Introdução Desde o último século, o pensamento ocidental vê-se às voltas com a problemática da superação do humano, mediante o uso da tecnologia contemporânea. Autores vinculados a distintas tradições filosóficas e literárias buscaram refletir sobre os efeitos da ciência e da técnica. De John Haldane, ao atual movimento transumanista, passando por Aldous Huxley, C. S. Lewis e Stanislaw Lem, pensadores reuniram-se em torno do temor e da esperança de que o saber científico transforme de modo radical a existência dos homens. No contexto destas reflexões, emerge o tema do pós-humanismo. Ele consiste na percepção da condição humana como sendo mutável e transitória, sujeita a reconfigurações, a partir da convergência entre organismos naturais e artefatos técnicos. Conforme Santaella (2003, p. 192), o pós-humanismo “representa a construção do corpo como parte de um circuito integrado de informação e matéria que inclui componentes humanos e não-humanos, tanto chips de silício quanto tecidos orgânicos”. Esta convergência seria efetuada pela robótica, inteligência artificial, nanotecnologia, manipulação genética, protética, tecnologias da comunicação, realidade virtual, entre outros recursos (SANTAELLA, 2003). A transformação da condição humana pela tecnologia desperta reações distintas nos autores que se dedicam a discuti-la. Duas correntes de pensamento assumem forma, caracterizando-se pela exaltação ou crítica desta transformação: de um lado, os autores denominados transumanistas, e de outro, os bioludistas. Eles distinguem-se em razão dos riscos e Correia, A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 393-407, 2017. 393 rafael nogueira furtado benefícios que identificam na tecnociência, e pela avaliação das implicações políticas de um futuro pós-humano. O transumanismo designa um movimento intelectual e cultural heterogêneo, cuja preocupação comum refere-se à busca pela “continuação e aceleração da evolução da vida inteligente, para além de sua forma e limitação humanas, através da ciência e da tecnologia, guiadas por valores e princípio promotores da vida” (MORE, 2013, p. 3). Autores transumanistas refletem sobre as possibilidades e os desafios do melhoramento das capacidades físicas e cognitivas de humanos, considerando nossa espécie apenas um estágio inicial do desenvolvimento evolutivo. Max More (2013) e Nick Bostrom (2005) reconhecem no transumanismo um desdobramento do humanismo clássico, do qual deriva em parte. No entanto, enquanto o último exalta o aperfeiçoamento pela educação e cultura, os referidos autores acreditam poder radicalizar este processo, com o auxilio da tecnologia, ultrapassando as fronteiras de nossa humanidade. Advogam a favor da autonomia e liberdade de sujeitos transformarem a si mesmos, em consonância a seus valores individuais. Entre os principais teóricos que se denominam transumanistas estão Nick Bostrom, Max More e James Hughes. Na outra extremidade do espectro biopolítico encontram-se autores como Leon Kass, Francis Fukuyama e Bill McKibben. Seus trabalhos destacam o caráter abusivo da tecnociência, entendida como impulso fáustico capaz de violar a dignidade humana, ameaçando a vida de indivíduos e o meio ambiente. O ambientalista McKibben convoca o público a dar as costas para o progresso tecnológico e reconhecer as virtudes de nossa natureza. Para ele, ainda que não sejamos perfeitos como espécies, somos suficientemente bons, “não precisamos nos tornar pós-humanos” (MCKIBBEN apud HUGHES, 2004, p. 115). Ao contrário, “precisamos aceitar algumas imperfeições em nós mesmos, em troca de certas satisfações” (MCKIBBEN apud HUGHES, 2004, p. 115). O argumento encontra ressonância no discurso de conservadores religiosos, que compreendem a natureza como sagrada, buscando traçar uma fronteira que proíba alterações em nossa biologia. Para Kass (2003, p. 20), ex-líder do Conselho de Bioética do presidente Bush, “necessitamos consideração e respeito pelo presente especial que consiste na própria natureza que nos foi dada”. Em alusão ao cenário retratado por Aldous 394 Sentidos da transformação do humano na contemporaneidade: entre o transumanismo e o bioludismo Huxley, em Admirável mundo novo, o teórico declara: “homogeneização mediocridade, pacificação, contentamento induzido por drogas, degradação do gosto, almas sem amores e aspirações – estes são os resultados inevitáveis de fazer da essência humana o último projeto da maestria técnica” (KASS, 2002, p. 48). Deste modo, analisa-se neste artigo a noção de pós-humanismo, discutindo os efeitos do desenvolvimento tecnológico. Busca-se evidenciar a discussão entre autores denominados transumanistas e bioludistas, explicitando a tradição de pensamento em que eles se inserem. O estudo objetiva compreender o problema da superação do humano na contemporaneidade, para além da dicotomia que marca a filosofia e as ciências sociais, responsável por produzir análises ora ufanistas, ora distópicas. 1. O homem está morto A consciência da transitoriedade da condição humana, característica do pensamento do século XX, encontra-se já presente em autores anteriores ao período, como Nietzsche. Obras como Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral (1873), Assim falou Zaratustra (1883-1885), Genealogia da moral (1887), destacam a precariedade do homem e a sua derrocada. Em uma irônica anedota, o filósofo descreve ter havido “em algum remoto recanto do universo cintilante que se deságua fulgurantemente em inumeráveis sistemas solares” (NIETZSCHE, 2007, p. 25), um astro habitado por seres inteligentes. Porém, passado algum tempo, este astro e os seres que nele viviam, congelaram-se, extinguindo-se inevitavelmente. “Foi o minuto mais audacioso e hipócrita da ‘história universal’: mas, no fim das contas, foi apenas um minuto” (NIETZSCHE, 2007, p. 25). Nietzsche aprofundará estas considerações em Assim falou Zaratustra. A obra, composta por aforismos, anuncia a chegada de um novo tempo sobre a terra. Trata-se do advento do super-homem, decorrente do declínio da humanidade (NIETZSCHE, 2011). O super-homem representa uma alternativa ao estado de decadência que assola a civilização ocidental, cuja origem se encontraria na negação da vontade de potência. O homem, forjado no interior de uma moral niilista que recusa a vida em nome de uma realidade ultramundana, deverá sucumbir, operando-se a chamada “transvaloração de todos os valores” (NIETZSCHE, 2009, p. 146). 395 rafael nogueira furtado Entretanto, se Nietzsche vislumbra a superação do homem, este gesto não se daria através da tecnologia e do saber científico. O filósofo alemão compreende a ciência e sua vontade de verdade como parte da moral niilista europeia a ser combatida (ARALDI, 1998). O projeto filosófico proposto pelo autor corresponde a uma mudança de ordem ética e estética, em que o homem tome a si mesmo como fundamento da produção de novos valores. Conforme Sloterdijk (2013, p. 112), o super-homem nietzschiano “não implica em um programa biológico”, mas sim em “treinamento, educação, disciplina e autodesign”. Por sua vez, o progresso vertiginoso da ciência e a presença crescente da tecnologia nos diversos domínios da existência humana alimentará o imaginário de filósofos, sociólogos e escritores posteriores, levando a reflexões sobre o mundo contemporâneo, no qual a técnica selaria de modo definitivo o futuro da humanidade. Nestas reflexões vemos emergir a noção de pós-humanidade. Santaella (2009) afirma que o termo tem origem nas discussões sobre o pós-modernismo, fenômeno referente a mudanças culturais ocorridas a partir do final da década de 1950. Tal fenômeno de ruptura manifesta-se, de início, na arquitetura, difundindo-se então para outros campos como a fotografia, o cinema, a filosofia e as ciências humanas. Suas bases teóricas seriam abordadas por trabalhos como A condição pós-moderna (1979), de Jean-François Lyotard, A modernidade: um projeto inacabado (1983), de Jürgen Habermas, e Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (1984), de Fredric Jameson (SANTAELLA, 2009). Lyortard (2010) define como a principal característica da pós-modernidade o desaparecimento das metanarrativas, grandes relatos que unificam os diversos domínios do conhecimento e da cultura. Narrativas atemporais e universais se tornam objeto de descrença e o saber passa a ser percebido como jogos de linguagem, cujo valor de verdade reside não em sua capacidade de explicação metafísica, mas nas relações de poder que o legitimam (LYOTARD, 2010). A fragmentação pós-moderna dos discursos afeta também a noção de humanidade. Nas últimas décadas do século XX, trabalhos serão publicados, nos quais com frequência encontramos expressões como “pós-humanismo”, “pós-biológico” e “pós-evolucionismo” (SANTAELLA, 2009). 396 Sentidos da transformação do humano na contemporaneidade: entre o transumanismo e o bioludismo De acordo com Dow e Wright (2010) e Ferrando (2013), o termo pós-humano surge inicialmente com Ihab Hassan, em seu artigo Prometheus as performer: toward a posthumanist culture? (1977). Nele, o autor constata que “a forma humana – incluindo o desejo humano e todas as suas representações externas – pode estar mudando radicalmente, e chegando ao seu fim, conforme o humanismo transforma-se em algo que devemos, desamparadamente, chamar de pós-humano” (HASSAN, 1977, p. 205). A partir de Hassan, outros teóricos e artistas se apropriarão desta noção, como Hans Moravec, Stelarc, Jeffrey Deitch, Gareth Branwyn, para os quais a superação do humano decorreria da associação íntima entre corpos e máquinas (SANTAELLA, 2009). Neste sentido, a condição pós-humana seria indissociável da imagem do ciborgue. Neologismo cunhado por Manfred Clynes e Nathan Kline (1995, p. 31), o ciborgue “incorpora deliberadamente componentes exógenos que ampliam a função auto-regulatória de controle do organismo”. Assim, nesse novo horizonte que começa a se abrir, a tecnologia permitiria ao homem transcender suas limitações, gerando formas de vida “pós-orgânicas” e alterando os processos biológicos a que as espécies estão sujeitas (SIBILIA, 2002). A engenharia genética, amparada em técnicas de recombinação do DNA, torna possível reprogramar seres vivos, cuja natureza agora se oferece à manipulação. Entre o corpo e a máquina haveria apenas diferenças superficiais, sendo compostos de uma mesma matéria, compreendida pela ciência em termos de dados e informação. O corpo pós-humano não se submete às mutações aleatórias, determinadas pela seleção natural, pois o novo homem toma em suas mãos o destino da sua própria evolução. Inserindo-se nos primórdios de um debate que atravessará toda a história da filosofia posterior, Protágoras declarou (apud GUTHRIE, 1995, p. 161), antes da era cristã, que “o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são o que são, e das coisas que não são o que elas não são”. Opondo-se à tradição socrática que identificava no supramundo o fundamento último de noções como o bem e a verdade, o sofista elegia o homem como critério definitivo de todo juízo moral e epistemológico. Na contemporaneidade, o princípio de Protágoras ver-se-á novamente questionado. Desta vez, não pelo pensamento socrático, mas pelos desdobramentos do humanismo, que ele mesmo ajudou a forjar. 397 rafael nogueira furtado 2. A utopia transumanista Autores como Nick Bostrom, Max More e James Hughes saúdam a possiblidade de superar a condição humana, aperfeiçoando-se as capacidades da espécie, por meio de tecnologias que eliminem o envelhecimento, aumentem a resistência a doenças e potencializem habilidades cognitivas e físicas. Eles integram o movimento transumanista, advogando a favor do melhoramento de humanos e dedicando-se a pensar modos de efetiva-lo e solucionar os impasses éticos e sociais que o acompanham. Para o transumanismo, a natureza humana não consiste em um fim em si mesmo. Devem-se criar condições para promover o “progresso perpétuo” da humanidade, na direção de um “estado permanente” de transformação, em que se busca “mais inteligência, sabedoria, eficácia, longevidade indefinida e a remoção de limites políticos, culturais, biológicos e psicológicos que bloqueiam o contínuo desenvolvimento” (MORE, 2013, p. 5). Princípios como secularismo, autonomia e abertura social são centrais a esta filosofia. Os autores rejeitam estruturas autoritárias de poder e o obscurantismo, incompatíveis com a defesa feita por eles da racionalidade, da liberdade e do método científico. Como afirma More (2013, p. 5), transumanistas opõem-se ao “controle social autoritário e desnecessária hierarquia, em prol do estado de direito e da descentralização do poder e da responsabilidade”, bem como valorizam “a razão, em detrimento da fé cega, e o questionamento, em detrimento de dogmas”. O melhoramento permitiria à humanidade vivenciar experiências até o momento inacessíveis à espécie, dadas as suas limitações. Níveis superiores de consciência, formas mais intensas de prazer, maior capacidade de criação e contemplação estética, maturidade emocional elevada, vigor físico permanente, tudo isto se estendendo indefinidamente no tempo – estas são algumas das benesses que a existência pós-humana nos proporcionaria (BOSTROM, 2003). Algumas das tecnologias necessárias para a modificação da condição humana já se encontram disponíveis ou em estado de pesquisa. Como por exemplo: realidade virtual; diagnóstico genético pré-implantação; engenharia genética; smart drugs; cirurgias plástica e de mudança de sexo; biopróteses; medicina anti-envelhecimento e interfaces cérebro-com- 398 Sentidos da transformação do humano na contemporaneidade: entre o transumanismo e o bioludismo putador (BOSTROM, 2005). Pode-se imaginar intervenções tecnológicas mais radicais, existentes apenas hipoteticamente, tais como: a nanotecnologia molecular, capaz de modificar arranjos de átomos, reconfigurando a matéria; e o uploading mental, pelo qual se transferiria a mente humana para um computador, separando-a do corpo biológico (BOSTROM, 2005). O projeto transumanista insere-se em uma longa tradição de pensamento. “O desejo humano de adquirir novas capacidades é tão antigo quanto nossa própria espécie” (BOSTROM, 2005, p. 1). Desde a antiguidade, este desejo pode ser identificado em epopeias como a de Gilgamesh e sua busca pela imortalidade ou em mitos como o de Prometeu e Ícaro. Com a chegada da era moderna, estas discussões se multiplicam. Discurso sobre a dignidade do homem (1486), de Pico della Mirandola, O homem máquina (1748), de La Mettrie e Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano (1795), de Condorcet, atestam esta tendência (BOSTROM, 2005; MORE, 2013). Todavia, será a partir do século XX, no âmbito da literatura de ficção científica, que as análises sobre o futuro pós-humano terão seu apogeu. Em Daedalus; or, science and the future, publicado em 1923, Haldane vislumbra uma sociedade rica e sustentável, na qual o conhecimento avançado em genética permite produzir crianças saudáveis, altas e inteligentes, gestadas em úteros artificiais. Estas conquistas decorreriam do controle biológico da natureza, considerado blasfémia ou perversão, pelo público não familiarizado com a ciência (HALDANE, 1995). O escrito de Haldane influenciaria outros trabalhos, como o ensaio de John Bernal The world, the flesh and the devil, de 1929, em que se discute o melhoramento mental, o uso de próteses biônicas e a colonização do espaço, superando assim os limites do corpo e abrindo o caminho para o progresso. Por outro lado, como contraponto a Haldane, Bertrand Russell publica em 1924, Icarus: the future of science. O autor alerta para o risco de a ciência ser usada como força de opressão das massas, caso a sociedade não tenha passado por uma suficiente reforma ética (BOSTROM, 2005). Deste período data o aparecimento do termo transumanismo. Conforme Hughes (2004), ele foi aparentemente utilizado pela primeira vez por Julian Huxley. Em seu texto de 1927, Religion without revelation, o autor declara que “a espécie humana pode, se desejar, transcender a si mesma”, e com isto “precisamos de um nome para essa nova crença. Tal- 399 rafael nogueira furtado vez transumanismo sirva: o homem permanecendo homem, mas transcendendo a si mesmo pela realização de novas possibilidades de sua natureza humana” (HUXLEY apud HUGHES, 2004, p. 158). Na segunda metade do século XX, os escritos I, robot (1950), de Isaac Asimov, Cyberiada (1967), de Stanislaw Lem e 2001: a space odyssey (1968), de Arthur C. Clarke, popularizarão temas como inteligência artificial e o universo da robótica (HUGHES, 2004). As discussões presentes na literatura possuem paralelo com desenvolvimentos no campo das ciências, como a publicação de Computing machinery and intelligence (1950), por Alan Turing e a elaboração da teoria cibernética por Wiener, Neumann e Bertalanffy (BOSTROM, 2005; MORACA, 2013). O progresso acelerado da tecnologia deixaria em alguns teóricos a impressão de estarmos nos aproximando de “uma singularidade na história da espécie, para além da qual as questões humanas, como as conhecemos, não podem continuar” (ULAM apud BOSTROM, 2005, p. 8). A hipótese da singularidade consiste na identificação de um momento de ruptura no futuro, em que, devido ao crescimento exponencial do poder tecnológico, a cognição humana seria superada pela inteligência das máquinas. As projeções deste crescimento decorrem da “lei de Moore”. Segundo ela, a capacidade de processamento de informação de computadores dobrará a cada intervalo de tempo que varia de dezoito meses a dois anos (NAAM, 2010). A confiança neste potencial ilimitado levará à publicação, entre as décadas de 1960 e 1980, de importantes obras para a história do transumanismo. Robert Ettinger, considerado “o pai da criogenia” (MORE, 2013, p. 15), escreve, neste ínterim, sobre técnicas de preservação e reanimação de corpos após a morte, analisando as implicações da criação de homens imortais. F. M. Esfandiary, autor de Are you a transhuman? (1989), estabelece o grupo UpWingers, tornando-se um participante ativo nos estudos futuristas (MORE, 2013). Em 1992 é fundado, por Max More e Tom Morrow, o Extropy Institute, e em 1998, o instituto The World Transhumanist Association, por Nick Bostrom e David Pearce (BOSTROM, 2005; MORE, 2013). Eles consistirão nas principais instituições transumanistas, definindo as diretrizes do movimento. As conquistas que se acumularão no campo da biotecnologia, da biomedicina e da computação, farão do novo milênio o momento de consolidação deste pensamento. Um número crescente de autores, dentro e 400 Sentidos da transformação do humano na contemporaneidade: entre o transumanismo e o bioludismo fora do movimento transumanista, se posicionará em defensa da transformação e melhoramento da espécie. Allen Buchanan, John Harris e Julian Savulescu destacam-se como referência em debates bioéticos, procurando responder às críticas de bioconservadores como Leon Kass, Michel Sandel e Francis Fukuyama. 3. O conservadorismo tecnológico Se, por um lado, o século XX viu multiplicarem-se utopias pós-humanistas, por outro, não faltaram análises críticas à ciência e à tecnologia. Estas análises advêm de distintas matrizes discursivas e políticas, aproximando autores tão distantes quanto a Escola de Frankfurt e a direita religiosa norte-americana. James Hughes (2004) discute a percepção da técnica pelo pensamento ocidental contemporâneo e reconhece a emergência de um bloco ideológico chamado por ele de bioludismo. O termo alude ao movimento ludista, surgido no início da década de 1810. Ele compunha-se de tecelões ingleses que invadiam fábricas e destruíam maquinarias, declarando-se inspirados na figura lendária de Ned Ludd (HUGHES, 2004). Os trabalhadores responsabilizavam as máquinas pelo desemprego, fome e agruras sofridas. Se espalhando pelo norte da Inglaterra, o fenômeno ocorreria posteriormente em cidades alemãs e em Praga, vindo a ser conhecido como “o movimento dos Maschinenstürmer” (BRÜSEKE, 1998, p. 6). De acordo com Hughes (2004, p. 109), o bioludismo difere politica e filosoficamente dos destruidores de máquinas do passado, porém “o impulso permanece o mesmo – culpar a tecnologia pelo assombro da modernidade”. Brüseke (1998, p. 5, grifo do autor) afirma que “a crítica da técnica moderna está inseparavelmente ligada com a experiência negativa da técnica”, identificando esta última à Primeira e à Segunda Guerras Mundiais. Até então, teóricos do século XIX, incluindo-se Marx e Engels, demonstravam entusiasmo pelo desenvolvimento das forças produtivas, sobre as quais o progresso social se apoiaria. Os problemas que a sociedade capitalista enfrentava deviam-se, nesta perspectiva, não às forças produtivas em si, mas às relações de produção (BRÜSEKE, 1998). Os dois conflitos militares sepultariam, porém, a crença no progresso tecnológico, evidenciando a barbárie como um estado intrínseco da modernidade. 401 rafael nogueira furtado Os anos 30 e 40 legaram à história escritos distópicos, tanto no âmbito da literatura quanto da filosofia. No primeiro caso, destacam-se Brave new world (1932), uma resposta de Aldous Huxley a Haldane e The abolition of man (1943), de C. S. Lewis. Huxley apresenta-nos um Estado Mundial dividido em regiões administrativas, cuja população se organiza em castas. Os sujeitos são gerados artificialmente, manipulados geneticamente, a fim de assumirem traços físicos e de caráter adequados às funções sociais a que foram designados. Sentimentos de tristeza, vazio ou descontentamentos estão ausentes nesta sociedade, que transcorre feliz sob a divisa “Comunidade, Estabilidade e Identidade” (HUXLEY, 2001, p. 33). O futuro que a ciência nos concederá não é menos sombrio, para C. S. Lewis. O autor reflete sobre os perigos da dissociação entre a prática científica e os valores morais fundados na lei natural. O domínio da natureza pela técnica, aliado à eliminação da tradição, colocaria em risco a preservação de nossa espécie, resultando na abolição do homem pelo próprio homem (SANTOS, 2008). Estas considerações provocarão ressonâncias na década seguinte, em pensadores como Günther Anders. Ele cunha a expressão “obsolescência do homem” (SANTOS, 2008, p. 49), ao descrever o sentimento humano moderno de impotência face à tecnologia. Confrontado com as façanhas da máquina, o sujeito se perceberia como “limitado, defasado e anacrônico” (SANTOS, 2008, p. 49). No contexto da reflexão filosófica, Adorno e Horkheimer (1985) oferecem em A dialética do esclarecimento (1947), uma interpretação do processo de civilização como um gesto de dominação da natureza pelo homem, uma forma de violência que se voltaria, na atualidade, contra a humanidade. Ao invés de promover a emancipação, a ciência e a técnica alienaram o homem, tornando-o vítima de seu próprio poder. As esperanças do iluminismo acabaram por assim conduzir ao assujeitamento que desejariam eliminar (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). As críticas de Adorno e Horkheimer serão aprofundadas por outros membros da Escola de Frankfurt, como faz Habermas, a partir da década 60. Ainda que o filósofo insista no caráter alienador da ciência e da técnica modernas, ele busca modos de recuperar “os recursos da razão esclarecedora” (BRÜSEKE, 1998, p. 33). Habermas oferece como saída possível dos impasses da racionalidade ocidental, uma teoria que separa, de um lado, a esfera do mundo do trabalho e, de outro, a esfera do mundo vivido, em 402 Sentidos da transformação do humano na contemporaneidade: entre o transumanismo e o bioludismo que vigora a chamada ação comunicativa. Trata-se, para ele, de proteger esta última esfera, da “colonização pela razão instrumental” (BRÜSEKE, 1998, p. 32), colocando-se novamente para a sociedade, a possibilidade de emancipação. O impacto da tecnologia sobre a vida humana e sua penetração em todos os campos da prática social, em especial os cuidados com a saúde, contribuiu para o surgimento de um campo autônomo e interdisciplinar do saber: a bioética. Considera-se marco simbólico de seu nascimento, os trabalhos de Van Rensselaer Potter em Wisconsin e Andre Hellegers, em Washington, no início dos anos de 1970 (DINIZ; GUILHEM, 2002). James Hughes afirma que o aparecimento deste novo campo auxiliou a criação de aparatos éticos e legais de proteção aos afetados pela tecnologia e a ciência. Todavia, “bioeticistas profissionais ganharam mais atenção por exacerbar as ansiedades públicas ludistas, do que por amenizá-las”, tornando-se “propagandistas do choque do futuro” (HUGHES, 2004, p. 62). Entre os autores bioludistas influentes podem-se citar Francis Fukuyama, George Annas, Bill McKibben, e Leon Kass, sendo este último o ex-líder do Conselho de Bioética do presidente norte-americano George W. Bush, governante que vetou o financiamento federal para pesquisas com células-tronco, em 2006 (BBCBRASIL, 2006). Bioludistas sustentam que a modificação da chamada natureza humana solaparia direitos fundamentais e a dignidade de que gozam as pessoas. Como consequência, conclamam moratórias e buscam banir práticas “contra naturam” (FUKUYAMA, 2003, p. 143, grifo do autor). O elemento definidor de nossa humanidade, para Fukuyama, não se refere a traços acidentais como aparência física, gênero ou posição social – tais traços são contingentes e mudam de pessoa para pessoa. Ao contrário, o elemento refere-se a uma essência universal e invariável, a qual o autor diz só poder nomear pelo termo “Fator X”. “O Fator X é a essência humana, o significado mais básico do que é ser humano” (FUKUYAMA, 2003, p. 159). Este fator distintivo salvaguarda todos os indivíduos como um cordão protetor, garantindo que sejam tratados com respeito e igualdade, e impedindo sua objetificação como coisa ou instrumento. A transformação pós-humanista que a tecnologia ameaça realizar, destruiria este fator e, por conseguinte, qualquer dignidade ou proteção ética em se apoia a humanidade (FUKUYAMA, 2003). 403 rafael nogueira furtado Para além da ruptura na esfera dos direitos de que fala Fukuyama, o bioeticista George Annas alerta para o risco material oferecido pelo pós-humanismo à nossa espécie. Nas palavras do autor e colegas, “a nova espécie, ou ‘pós-humanos’, verão provavelmente os velhos humanos ‘normais’, como inferiores, ou ainda como selvagens, disponíveis para a escravidão ou massacre” (ANNAS; ANDREWS; ISASI, 2002, p. 162). Em contrapartida, conscientes deste risco, os humanos “normais” atacariam preventivamente seus rivais, desencadeando assim um genocídio de grande proporção. Bioludistas não advogam a favor de um retorno a um estado pré-tecnológico da civilização, ou ainda, da destruição simbólica das maquinarias modernas. Defendem a necessidade de conservação das características que nos definem como humanos, reservando à ciência e à tecnologia a função de manter o corpo e a saúde nos limites da curva de normalidade que nos qualifica como uma mesma espécie. Considerações finais Este trabalho buscou refletir a respeito dos efeitos da tecnologia contemporânea sobre o homem e a possibilidade de advento do pós-humanismo. Técnicas biomédicas e da informação permitem a transformação radical de traços físicos e cognitivos de indivíduos, provocando debates acerca de suas implicações éticas e sociais. Duas correntes de pensamento, surgidas ao longo do século XX, posicionam-se de modo distinto em face deste poder tecnológico. Por um lado, o transumanismo defende a modificação dos traços característicos da espécie, considerando legítima a intervenção no curso da evolução, aperfeiçoando capacidades como a cognição, a longevidade e o desempenho físico. Este aperfeiçoamento deve ser realizado em consonância a princípios liberais, não-autoritários, e baseado no conhecimento cientificamente informado. Em contrapartida, autores denominados bioludistas ressaltam os riscos sociais e morais da tecnologia, opondo-se à transformação da natureza humana. A modificação de nossa natureza revela um impulso de dominação e soberba, ameaçando a dignidade dos homens e sua convivência pacífica. Devemos recusar o desejo de perfeição, reconhecendo a condição humana como suficientemente boa. 404 Sentidos da transformação do humano na contemporaneidade: entre o transumanismo e o bioludismo Cumpre, no entanto, diante dos desafios colocados pelo desenvolvimento científico, recusar a dicotomia existente entre o ufanismo pós-humanista e o conservadorismo tecnológico. Bioludistas equivocam-se ao compreenderem a natureza humana como estática, ignorando seu caráter dinâmico e mutável. Por sua vez, transumanistas mostram-se pouco atentos aos perigos subjacentes à técnica e à ciência, dos quais a história do último século foi testemunha. Desta maneira, ao conduzirmos uma análise abrangente das formas contemporâneas de saber e poder, trata-se de realizar um balanço de riscos e benefícios que contemple tanto a abertura biológica da espécie, quanto a necessidade de regulação ética da tecnologia. Referências ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Tradução: Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ANNAS, G.; ANDREWS, L.; ISASI, R. Protecting the endangered human: toward an international treaty prohibiting cloning and inheritable alterations. American journal of law and medicine, v. 28, n. 2 e 3, 2002, pp. 151-178. ARALDI, C. L. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche. Cadernos Nietzsche, v. 5, pp. 75-94, 1998. BBCBRASIL. Bush veta pesquisas com células-tronco. 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Para a realização desta proposta considerou-se os procedimentos metodológicos essenciais de uma pesquisa filosófica que, em grande parte, consistem na leitura do referencial teórico, a obra base principal, neste caso, Autrement qu’être ou au-delà de l’essence (1974)1 de Emmanuel Lévinas. Outramente que ser A obra Autrement Qu’être se destaca em meio aos escritos de Lévinas, por ser uma de suas maiores obras e quiçá a que melhor representou o ápice de sua maturidade filosófica. Pode-se afirmar que o objetivo e tese principal dessa obra consiste em apontar o sujeito como um refém e a subjetividade como substituição deste mesmo, em prol de uma ruptura com a essência do Ser. 1 Titulo original em francês, porém utilizaremos a tradução De outro modo que ser o más Allá de La essencia, feita por Antonio Pinto Ramos nas citações em destaque no texto para melhor compreensão. Lembrando que o “de outro modo que ser” da tradução espanhola será aqui modificado e deverá ser lido sempre que aparecer como outramente que ser para corresponder com mais fidelidade à proposta levinasiana. 408 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 408-417, 2017. O mais além da essência: a radicalidade presente no outramente que ser Dessa maneira, não interessará ser de outro modo senão outramente que ser, numa espécie de ascensão da subjetividade e da alteridade em completa superação e separação da essência. Ou seja, só é possível afirmar a radicalidade presente no outramente que ser a partir da admissão (ou reconhecimento) do aquém do Outro (do ser). Nesse sentido não se trata, apenas, de uma evasão de si mesmo. Analisar o processo de constituição do outro do ser é o primeiro passo em direção à compreensão desta figura ética apresentada por Lévinas. Passar a lo otro que el ser , de outro modo que ser. No ser de otro modo, sino de otro modo que ser. Tampoco – y menos aún – no ser. Pasar no equivale aquí a morir. El ser y el no-ser se esclarecen mutuamente y desarrollan uma dialéctica especulativa, la cual es una determinación del ser. En ella la negatividad que pretende rechazar el ser es también ella submergida por el ser. El vacío que se abre se rellena inmediatamente con el sordo y anônimo ruído del gay, del mismo modo qy el puesto que deja vacante El moribundo es ocupado por lós murmullos de lós que rezan. El esse del ser domina el no-ser mismo.2 Aqui o projeto de Lévinas parece assumir o outramente que ser como uma das possíveis figuras (o órfão, a viúva, o estrangeiro e o pobre) em que já se apresentou o outro nos seus escritos. Contudo, esta nova figura não representaria apenas a negação de sua condição como existente e suas súplicas, mas sim a ruptura com o mesmo, à medida que desdiz e nega toda soberania do ser. A busca pelo outro do ser simbolizaria dessa forma, o abandono completo da totalidade e assim, o outramente que não é não-ser, pelo simples fato de que a negatividade não dá conta da diferença, se sustentaria em sua radicalidade inalcançável. Dizer e dito Dos elementos que contribuem para a compreensão desta proposta, dois são imprescindíveis, os termos dizer e dito, como bases de uma linguagem fora dos padrões da tradição, apresentam aqui uma linguagem inédita e visionária, capaz de estar aquém e além das próprias palavras, 2 AE, pp. 45-46. 409 valéria dos santos silva uma linguagem do inaudito, indispensável na busca deste mais além da essência. Assim, o outramente que ser enunciado num dizer que sempre se renova, evitaria a manutenção dos ditos que mantém o sujeito aprisionado apenas no ser de outro modo. Mover-se na direção do outro do ser, sugere uma transcendência. A questão é: como é possível chegar ao outro do ser negando a essência? A resposta para tanto ainda parece distante, porém os enunciados “do outro que o ser” e “do outro modo que ser” sugerem um dizer sobre uma diferença que não se trata da diferença entre o ser e o nada, mas notadamente da diferença do mais além, da transcendência para que se possa chegar de fato ao outro. A essência dificulta a tarefa da transcendência. “Esse es interesse”.3 O interesse do ser mascara-se na essência, parecendo-lhe algo natural, porém está repleto de egoísmo e nada lhe impossibilita de inundar-se de si. Isso é o que acaba atestando o êxito e não a queda do ser. Sendo assim, é necessário que se busque um sentido para o mais além da essência, um sentido para além do interesse. Nesse momento, Lévinas traz os termos dizer e dito para impulsionar na direção deste novo sentido. Termos que possibilitarão uma nova significação à essência, capazes de dinamizar as formas de sentir e viver do sujeito para além da pura compreensão do todo. Dentro do novo contexto, a subjetividade estaria mais propensa a sustentar-se em uma nova realidade, onde seria possível uma aproximação com as coisas exteriores a si numa abertura mais imediata, tanto em relação ao mundo quanto em relação a outros diferentes. Dessa forma, Lévinas rompe com o sistema montado pela tradição ocidental filosófica que mantinha a ideia de que toda realidade e vivência humana estariam submetidas à ação do ser que pensa e desloca tudo para o seu domínio de compreensão. Por esse motivo, apenas uma linguagem original ou pré-originária seria capaz de superar essa estrutura usual que permaneceu durante séculos, e é no ato do Dizer que esta linguagem original se encontraria. O jogo verbal em que se encerra à essência não é capaz de reduzir o ato do dizer ao mesmo. “Precisamente el decir no es um juego”.4 O dizer 3 4 410 AE, p. 46. AE, p. 48. O mais além da essência: a radicalidade presente no outramente que ser para Lévinas está aquém e além de todo sistema linguístico e suas multiplicidades, pois não se encerra em si mesmo, ao contrário, permite a emancipação do sentido desse dizer, escapando do sentido cristalizado do dito, possibilitando, nas palavras de Lévinas, “proximidad de un a otro, compromiso del acercamiento, uno para el otro, la significación misma de la significación”.5 A partir disso, nota-se que a relação do ser com o mundo e com os outros, não depende mais do seu interessamento para aproximação, mas sim o contrário, seu desinteressamento transforma-se em responsabilidade, e seu compromisso desfaz-se de todo sentido egoísta para encher-se de obrigação, obrigação para, onde se vive para, e se é para outrem.6 À vista disso, Lévinas nos deixa a mercê de uma série reflexões a serem feitas, além de questões a serem respondidas no decorrer deste trabalho. Dentre elas, essa anunciação advinda do verbo dizer em junção à proximidade de um para o outro, do desinteressamento, da responsabilidade de um pelo outro e do grau máximo de doação em uma relação que é ética, nunca antes pensada, no sentido de substituição de um pelo outro.7 Ou na indagação única, mas cheia de sentido, feita pelo próprio Lévinas: “Esta gravedad em la que el esse del ser se coloca al revés no remite acaso a ese lenguaje pré-original, a la responsabilidad de uno para com el otro, a la substituición de uno por el otro y a la condición (o a la falta de condiciones) de rehén que así se perfila?”8 Por consequência desse dizer original, que se movimenta na linguagem, é impossível que não se faça uma correlação entre o dizer e o dito, onde aquele depende sim deste. Esse elo entre dizer e dito, onde um representa originariedade, mas, ao mesmo tempo, depende do outro que remete a sistemas linguísticos e ontológicos, demonstrará adiante à ambiguidade contida no dito. Segundo Lévinas: 5 6 7 8 AE, p. 48. Esse sentido de substituição/responsabilidade apresenta-se aqui de modo ainda imaturo, sendo contudo essencial à passagem ao outramente que ser. Tal sentido na obra exigiria uma investigação dedicada noutra oportunidade. Todas estas novas formulações surgem a partir dessa linguagem pré-originária proposta por Lévinas e se justificarão adiante nesta tentativa de ir mais além da essência. AE, p. 48. 411 valéria dos santos silva En el lenguaje como dicho todo se traduce ante nosotros, aunque fuese al precio de uma traición. Lenguaje esclavo y, sin embargo, indispensable. Lenguaje que en este mismo momento sirve para una investigación orientada hacia el esclarecimientos de lo de otro modo que ser o lo otro que el ser, lejos de los temas em los que ellos se muestran ya, de modo infiel, como esencia del ser, pero em lós cuales se muestram. Lenguaje que permite decir – aun cuando fuese traicionándolo – ese fuera del ser, esta ex-cepción al ser como si lo otro que el ser fuese acontecimiento de ser. El ser, su conocimiento y ló dicho en que se muestra significan en medio de um decir que, com relación al ser, se constituye em excepicón; pero es en lo dicho donde se muestran tanto esta excepción como el nacimiento del conocimiento. Mas el hecho de que la ex-cepción se muestre y se torne verdad en lo dicho no es pretexto suficiente para convertir en absoluta la peripecia apofántica del Decir, sea éste esclavo o angélico.9 Dito de modo mais claro, ou para já demonstrar esta interação entre dizer e dito, exercita-se, pois aqui a relação entre ambos. Todo dizer anseia um dito, e todo dito teme um dizer. Assim, o caráter original do dizer está em dizer sempre, garantindo a renovação do discurso e evitando a manutenção deste no dito, evitando verdades em que a realidade já fora dita como se não existisse mais o que se dizer sobre ela. Contudo, o fato da essência apoiar-se em ditos, conceitos e pensamentos captados ao seu interesse não é suficiente para declarar o fracasso do dizer. Ao passo que tais suportes (ditos, conceitos e pensamentos) estabeleceram-se a partir de um dizer originário que fora em seguida traído. De todo modo, o dizer não se encerra nesta traição, e por isto mesmo, assume lugar nessa linguagem original. Ele presume que esta linguagem seja capaz de responder, justificar e se responsabilizar por outrem, “y la gravedad de esta respuesta no se mide por el ser.”10 Muito menos, pela quadratura do dito. O outramente que ser se expressa, portanto, em um dizer que deve desdizer-se para assim validar-se, escapando ao dito onde ele não significaria nada além de pura essência. Assim sendo, como superar então uma possível coexistência de dizer e dito, sem que o dizer se perca na essência do dito? 9 10 412 AE, p. 49. AE, p. 49. O mais além da essência: a radicalidade presente no outramente que ser Cito Lévinas: De hecho, exigir tal simultaneidad significa ya referir lo otro que el ser al ser y al no-ser. Aquí debemos mantenernos em la situación extrema de un pensamiento diacrónico. El esceptismo traducía y traicionaba en los albores de la filosofía la diacronía de esta traducción y de esta traición. Pensar lo de otro modo que ser exige quizás tanta audacia como la que se atribuye al esceptismo, el cual no se arredraba ante la afirmación de la impossibilidad del enuciado atreviéndose, al mismo tiempo, a realizar semejante imposibilidad a través del mismo enunciado de tal impossibilidad. Si, después de las innumerables refutaciones – irrefutables – que el pensamiento lógico le enfrenta, el escepticismo tiene la capacidad de retornar (y retorna siempre como hijo legítimo de la filosofía), ello significa que a la contradicción que el pensamiento lógico detecta em él le falta el – al mismo tiempo – propio de las proposiones contradictorias; ello significa que una diacronía secreta guía esse hablar ambiguo o enigmático y que, de um modo general, la sificación significa más allá de la sincronia, más allá de la esencia.11 Dessa forma, após estabelecer-se tal diacronia no pensamento, têm-se o dito preso ao plano consciente no presente, enquanto o dizer reafirma-se anterior a linguagem e ao passado valendo-se de um tempo original e diacrônico que prevalece. Nesse sentido, o tempo não deve mais ser pensado como essência em inércia, mas sim como dizer em movimento. Ou seja, a temporalidade do tempo aqui não representa mais essência e sincronia, vai além dessa estrutura ontológica, anuncia uma espécie transcendência num tempo diacrônico considerando o mais além da essência, assim, “es necesario que la temporalización recuperable, sin tiempo perdido, sin tiempo que perder y donde se desenvuelve el ser de la substancia se señale un lapso de tiempo sin retorno, uma diacronia refractaria a toda sincronización, uma diacronia transcendente.”12 Dessa maneira, por mais que a essência complete o sentido do dito, ela não conseguirá envolver o dizer neste mesmo contexto, pois este escapa ao seu domínio. Por isso mesmo, o dizer atesta sua condição inalienável e transcendente. A consequência disso, dirá Lévinas, evidencia o porquê de 11 12 AE, pp. 50-51. AE, p. 53. 413 valéria dos santos silva ser “la subjetividad es precisamente el nudo y el desanudamiento: el nudo y el desanudamiento de la esencia y lo outro que la esencia.”13 Sendo assim, é a subjetividade o lugar em que se configura o traumatismo da essência e também o lugar da transcendência e do desenrolar do outramente que ser. O excesso levinasiano Assim, quando há abertura no tempo da essência e do dito, ecoa o dizer responsivo à esta transcendência e à esta diacronia, que o permite se movimentar entre passado e presente, dando significado à um sentido de responsabilidade que atestará um não lugar da subjetividade. Esse dizer responsivo, se assim pode-se dizer, converte-se agora em responsabilidade do sujeito, de um sujeito que responde e se justifica. E é por que essa subjetividade é propriamente fundada aqui como resposta e justificativa, que ao responder a outrem, acaba tematizando a sua própria aparição e consequentemente a sua traição, aquela mesma inscrita no dito a partir do dizer, e que, novamente não corresponde a um que de infinito. Nesse primeiro momento, em que a subjetividade vaga nesse tempo diacrônico sem controle dele e completamente fora do seu domínio fixando-se em um não lugar, o sentido de transcendência, do qual nos falava Lévinas, passa a ter outra significação. A diacronia que se estabelece, portanto, faz com que a subjetividade recuse conceitos e limitações a serem adquiridos, não por impotência, mas por que não cabe conceituação naquilo que não pode ser compreendido e encerrado, dessa forma, ela própria (diacronia) simboliza, “lo no-totalizable y en este preciso sentido Infinito.”14 Essa transição da subjetividade, além da essência, noutra significação, traz responsabilidades, que não cessam, diga-se de passagem. (...) responsabilidad que, fuera de la esencia, traduce el Infinito inviertiendo las relaciones y los principios, revocando el orden del interés; en la misma medida em que las responsablidades se toman, se multiplican. No se trata de um sollen [deber] ordenando la persecución de un ideal hasta el infitinito. La finitud del infinito vive a contrapelo. La deuda se acrecienta en la misma medida en que se cancela (...).15 13 14 15 414 AE, p. 53. AE, p. 55. AE, p. 56. O mais além da essência: a radicalidade presente no outramente que ser Assim sendo, o infinito converte-se em responsabilidade na relação do sujeito com outrem, na sua aproximação e nas suas tentativas de responder a esse infinito inalcançável, impossível de ser compreendido. Perceber o sentido dessa responsabilidade infinita é perceber o excesso na proposta de Lévinas, como se esta responsabilidade não necessitasse de pedidos para se cumprir como tal, como se as demandas de outrem devessem ser atendidas antes mesmo que este faça exigência. Aqui a subjetividade é levada mais aquém e mais além da pura essência, o Infinito a excede, exterioriza-a. Considerações finais Estas novas formulações: mais aquém e mais além da essência, nova significação e tendência da subjetividade à substituição e a uma eterna expiação de outrem, condição de refém onde não há prisão e o sentido de responsabilidade é infinito e se sobrepõe à interesses egoístas; são, elas mesmas, representação da ruptura da essência, e aqui “la ruptura de la esencia es ética”.16 A passagem do Moi Pur na sua passividade à constituição de sua condição de sujeito é o que atesta o valor ético nessa circunstância. O sujeito se percebe na sua condição de diferente e dessa maneira, essa condição não parece mais exclusiva apenas de outrem. Essa ruptura no ser que adquire nova significação (no sentido de substituição) demonstra a vulnerabilidade à qual a subjetividade agora está exposta. Ou em outras palavras, “sensibilidad como la subjetividad del sujeito: substitución del otro (un en lugar del otro), expiación”.17 O lugar e o não lugar onde ocorre esse distanciamento da essência, ou seja, na própria subjetividade, expõe toda a sua passividade, e o que ressoa nela é sensibilidade, desinteresse e responsabilidade em relação aos outros. Essa responsabilidade se traduz em exposição ao outro, exposição que nada absorve, exposição da exposição, que é pura sensibilidade, que se identifica com um dizer, para além de toda manutenção de um dito, um dizer que se distancia de uma cristalização. Assim, esse excesso na substituição, segundo Lévinas: “desemboca em el Decir, en la donación de signo, 16 17 AE, p. 59. AE, pp. 59-60. 415 valéria dos santos silva entregando un signo de esta donación de signo al expresarse.”.18 Ou seja, proximidade de um ao outro como dizer, dizer aquém de toda linguagem. O estudo feito por Lévinas em Autrement Qu’être, segundo o próprio, pretendia “no pensar la proximidad en función del ser: lo de otro modo que ser, que ciertamente se extiende en el ser, difiere absolutamente de la esencia, no tiene género común con ella y solo se nombra en el ahogo que pronuncia el extra-ordinario vocablo de más allá.”19 Contudo, o filósofo alerta sobre a necessidade de se entender o ser a partir do outramente que ser, pois a intenção do seu propósito não é de desconsiderar ou desprezar o ser, mas sim de ir contra e além de uma filosofia que se reduz à totalidade e usa da linguagem do dito unicamente para seus interesses. Trata-se, portanto, de re-inventar o sentido do ser a partir de sua proximidade com o outro além de si. Lo más allá del ser al mostrarse en lo dicho se muestra siempre enigmáticamente, es decir, aparece ya traicionado. Su resistencia a la reunificación, a la conjunción y a la coyuntura, a la contemporaneidad, a la inmanencia, al presente de la manifestación significa la diacronía de la responsabilidad para con el otro y de un profundo “antes”, más antiguo que toda libertad que él dirige, si bien se sincroniza em el presente enunciado. Tal diacronía es ella misma un enigma: lo más allá del ser que retorna y no retorna a la ontología; en cuanto enunciado, lo más allá, el infinito se convierte y no se convierte em sentido del ser.20 É certo, pois que pensar o outramente que ser nos mesmos parâmetros em que se manteve o ceticismo como uma das correntes mais fortes da tradição filosófica requer grande esforço e certamente é tarefa a ser cumprida por Lévinas no decorrer de sua obra. Ao que nos interessa, a ambiguidade que valida essa corrente pode ser comparada àquela presente no dito que trai ao dizer, mas que não se sustenta infinitamente nessa traição. Essa ambiguidade, presente em quase toda obra de Lévinas é o que atesta sua relevância, além de demonstrar a necessidade do caráter diacrônico na compreensão dos diversos conceitos utilizados por ele na sua tentativa de dizer sobre a necessidade da transcendência inscrita nes18 19 20 416 AE, p. 60. AE, p. 61. AE, p. 64. O mais além da essência: a radicalidade presente no outramente que ser te mais além da essência e nos exageros à que se submete o outramente que ser em sua radicalidade. Referências COSTA, Márcio Luis. Lévinas: uma introdução. Tradução de J. Thomaz Filho. Petropólis, RJ: Vozes, 2000. LÉVINAS, Emmanuel. Autrement qu’être ou Au-delá de l’Essence. La Haye, Martinus Nijhoff, 1974. Reimpressão em: Biblio Essais. Le livre de Poche, 1991. ______. De otro modo que ser o Más allá de la esencia. Ediciones Sígueme, 1987. 3ª. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1999. 417 O sopro demoníaco: do daímon grego ao lugar da ética na arte contemporânea Juliana de Moraes Monteiro (PUC-Rio) Daimon, um significante trágico: jogando nos dois tabuleiros O fragmento 119 de Heráclito êthos ánthropos dáimon1 é traduzido de maneira geral como “o caráter é para o homem o demônio”. Essa tradução deixa de lado um caráter fundamental a respeito da filosofia heraclitiana, isto é, o fato de, como Nietzsche muito bem observou, ser uma filosofia trágica por excelência. Aqui, temos que entender o que estava em jogo no termo demônio, palavra na qual a tradição judaico-cristã operou uma mudança radical, tornando-a inseparável de uma figura diametralmente oposta a Deus. Situar o pensador pré-socrático no bojo da veia trágica é alertar para a experiência própria na qual se constituia esse gênero original, marcada por uma lógica permeada de tensões e ambiguidades inconciliáveis. Como salienta Jean-Pierre Vernant em Mito e tragédia na Grécia Antiga: Mas a lógica da tragédia consiste em jogar nos dois tabuleiros, em deslizar de um sentido para outro, tomando, é claro, a consciência de sua oposição, mas sem jamais renunciar a nenhum deles.2 Esse deslizamento do sentido carcateriza o que se chama efeito trágico. É através de uma armadilha colocada no plano do significante que o herói da trama trágica sucumbe. Na tragédia, as palavras são termos imprecisos calcados por uma mutação de sentidos. Ora dizem uma coisa, ora dizem opostamente outra. Essa tensão nunca é totalmente assimilada, mas tampouco chega a ser suprimida. O efeito trágico advém justamente 1 2 OS PENSADORES ORIGINÁRIOS: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. VERNANT, Jean Pierre; VIDAL NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga, p. 15. 418 A.; Nunes, R. G.; Utteiche, L. C.; Valdério, F.; Williges, F. Ceticismo, Dialética e Filosofia Correia, Contemporânea. Coleção XVII Encontro ANPOF: ANPOF, p. 418-430, 2017. O sopro demoníaco: do daímon grego ao lugar da ética na arte contemporânea desse espaço limítrofe, uma linha tesa como uma corda bamba, na qual os personagens transitam sempre à beira de despencarem. Assim, a proximidade histórica de Heráclito e do florescimento da tragédia nos permite pensar aqui como nesse fragmento a tradução corrente implica uma série de problemas. Para entendermos o que está em questão nessa associação entre ethos enquanto ética, palavra dotada de uma conotação positiva, e daímon, o demônio ou demoníaco, enquanto uma potência que engendra o caráter humano, nos reportaremos mais à frente à interpretação agambeniana dessa passagem. Por ora, reiteramos como essas duas palavras implicam a própria constituição do mundo trágico, que não tomamos aqui como um período acabado no tempo. Ao contrário, existe uma força a-histórica da tragédia que nos ultrapassa e não cessa de operar no modo como nos compreendemos, e uma força histórica que sempre requer uma atualização de leitura. Como coloca Alberto Pucheu, lidar com a tragédia dessa forma é reconhecer que a tragédia reside, enquanto abertura, no fundamento de nossa trajetória vivida e de uma alternativa possível ainda por viver. A partir dela, construímos um caminho que parece exaurido; a partir dela, abrindo uma porta com a chave proposta, retomamos um novo percurso, para além do anteriormente estabelecido.3 Sendo assim, ao fazer esse reconhecimento, entendemos que mesmo em uma esfera distante historicamente ou aparentemente sem relação com qualquer perspectiva trágica como é o caso da arte contemporânea, campo que interessa a esse artigo, podemos abrir uma via teórica esclarecedora ao buscar nesse gênero elementos que podem nos conduzir a novas interpretações. Aqui, trata-se de uma preocupação específica com a questão da relação entre significante e significado, que encontramos complexificada na tragédia. Com relação ao fragmento de Heráclito que justapõe as palavras ética e demônio, vemos como a sentença é incompreensível se assumirmos para ela uma única tradução. É a partir de uma compreensão de que a existência de uma ética demoníaca pode ser situada apenas dentro de uma lógica na qual as palavras assumem signifcados obscuros e enigmáti3 PUCHEU, Alberto. Giorgio Agamben: poesia, filosofia, crítica. 419 Juliana de Moraes Monteiro cos que o teórico Jean-Pierre Vernant entende a mesma passagem supracitada. Como coloca Vernant: Ethos-Daimon, é nessa distância que o homem trágico se constitui. Suprimindo um desses dois termos, ele desaparece. Parafraseando uma observação pertinente de R. P. Winnington Ingram, poder-se-ia dizer que a tragédia repousa sobre uma leitura dupla da famosa fórmula de Heráclito (ethos anthropos daimon). Desde que deixa de ser possível lê-la tanto num sentido quanto no outro ( como a simetria sintática permite) a fórmula perde seu caráter enigmático, sua ambiguidade e não há mais consciência trágica porque, para que haja tragédia, o texto deve significar ao mesmo tempo: no homem, o que se chama daimon é o seu caráter e inversamente: no homem, o que se chama caráter é realmente um demônio.4 O que nos interessa a partir dessa consideração de Vernant é pensar segundo um ponto de vista no qual a função da linguagem não seja a trasmissão de uma mensagem, mas, ao contrário, seja a de salvaguardar no seio dela mesma uma zona de opacidade, que resiste violentamente ao sentido. Esse aspecto intrincado da linguagem teve que ser solapado de alguma forma para que pudesse existir algo como a filosofia e é só a partir do século XX com o surgimento de dois campos do saber, a Psicanálise e a Semiologia, que esse problema foi recolocado. Ao isolar o daimon enquanto uma palavra fundamental para pensar a relação entre signficante e signficado na contemporaneidade, buscamos na tragédia o fundamento da instauração de uma questão. Segundo Cláudio Oliveira a respeito desse termo: 4 420 Daímon é igualmente uma palavra de difícil tradução. Traduzido por demônio ou demoníaco indica que se trata de algo entre os homens e os deuses, algo que passa de um campo para outro. É nesse sentido que Diotima ensina a Sócrates, no Banquete, que Éros não é um deus [theós], mas um daímon. Na fronteira, ou no litoral, diria Lacan,entre deuses e homens, algo passa, e isso, os gregos o chamam de daímon. Segundo Heráclito – aquele que Nietzche considerava um dos filósofos trágicos por excelência –, é precisamente nesse ponto de passagem e de fronteira que se institui o campo do ético:êthos ánthropos dáimon, “o êthos do homem é o daímon” VERNANT, Jean Pierre; VIDAL NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga, p. 15. O sopro demoníaco: do daímon grego ao lugar da ética na arte contemporânea (frag. 119), uma sentença que seria incompreensível, se não pudéssemos situá-la a partir do campo do trágico.5 Desse modo, temos uma consideração essencial no que diz respeito a esse termo. O daímon sobre o qual Heráclito se refere seria algo situado entre o campo dos deuses e o campo dos homens. Essa noção de que o daimon ocuparia um espaço fronteiriço, um lugar de passagem, se mostrará em Agamben definitiva. De fato, Agamben talvez herde sua interpretação do pensamento de Heidegger sobre o mesmo fragmento, mas confere a ele um outro estatuto, porque avançará a partir do fragmento de Heráclito sobre as relações entre significante e significado, que não estava presente na interpretação heideggeriana, como veremos a seguir. Em Cartas sobre o humanismo, Heidegger traduzirá a palavra ethos por morada, lugar onde algo habita. E o daimon de Heidegger é, ele mesmo, um deus. Segundo o filósofo alemão: Ethos significa morada, lugar onde morar. A palavra nomeia o âmbito aberto, no qual mora o homem. O aberto de sua morada permite a manifestação do que advém à essência do homem, ou seja, o que, advindo, se estabelece em sua proximidade. A morada do homem contém e guarda o advento daquilo ao que pertence o homem em sua essência. Segundo as palavras de Heráclito, isto é o daimon, o deus. A sentença diz: o homem, enquanto homem, mora nas cercanias de deus.6 De certa forma, a tradução do fragmento por Heidegger implica pensar uma experiência do limite também. O homem que vive nas cercanias do divino é um homem que vive à deriva, em um lugar indeterminado. Fazer uma experiência demoníaca significa, para Heidegger, ser convocado a se instalar nesse lugar de vizinhança aos deuses, entre o deus e o homem. Assim, ao unir a tradução de Heidegger à interpretação de Vernant sobre o fato do homem trágico estar localizado em um ethos-daimon, é que proponho a análise agambeniana do sentido do demoníaco. Para Vernant, a tragédia traz um problema de linguagem genuíno. O texto trágico oferece uma resistência à significação como seu lugar mais próprio. Como assinala Vernant: 5 6 OLIVEIRA, Cláudio. Lacan e o campo do trágico ou os significantes gregos de Medéia. HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho, p. 37. 421 Juliana de Moraes Monteiro As palavras trocadas no espaço cênico têm, portanto, menos a função de estabelecer a comunicação entre as diversas personagens que a de marcar os bloqueios, as barreiras, a impermeabilidade do espírito, a de discernir os pontos de conflito (...) Mas o que a mensagem trágica comunica, quando comprrendida, é precisamente que, nas palavras trocadas pelos homens existem zonas de opacidade e de incomunicabilidade. No próprio momento em que vê os protagonistas aderirem exclusivamente a um sentido e, nessa cegueira, dilacerarem -se ou perderem -se, o espectador deve compreender que há dois ou mais sentidos possíveis.7 Em Agamben, a questão do daimon é justamente um problema de significação da linguagem e é justamente no mitologema de Édipo, a partir do episódio da Esfinge, que o filósofo italiano lançará as bases para a proposição de uma outra semiologia. Ao se mostrar como um autor tributário do pensamento heideggeriano, Agamben relê a mesma sentença oferecendo uma outra tradução: A tradução corrente deste fragmento é: O caráter é para o homem o demônio. Mas ethos indica originariamente o que é próprio, no sentido de morada habitual, hábito. Quanto ao termon daimon, ele não indica simplesmente uma figura divina, tampouco aquele que fixa um destino. Pensado segundo seu étimo( que o reconduz ao verbo daiomai, lacero, divido), daimon significa: o que dilacera, o que divide e cinde. (Também em Ésquilo Agamenon, 1472 1473 o daimon, dilacerador do coração kardiodekton , está sentado como uma fera sobre o cadáver do morto).8 Seguindo a tradução do filósofo italiano, o daimon é pensado aqui como aquilo que divide algo, que dilacera. É nesse sentido que pretendo articular nosso próximo ponto: a relação do demoníaco com a arte, a partir da proposição de uma nova semiologia. Agamben e a distorção demoníaca Ao final de Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental, Agamben propõe uma semiologia que ele define como semiologia do pon7 8 422 VERNANT, Jean Pierre; VIDAL NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga, p. 19 20. AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento: ensaios e conferências, p. 149. O sopro demoníaco: do daímon grego ao lugar da ética na arte contemporânea to de vista da Esfinge. Nessa leitura inovadora, o o filósofo italiano reinterpreta o mito de Édipo a partir do episódio da resolução do enigma da Esfinge. Agamben afirmará a ideia de que Édipo legou para a cultura ocidental uma perspectiva na qual vem à luz a imposição de um saber frente ao desconhecido. Enquanto decifrador de enigmas, Édipo une o significante velado ao seu significado transparente, fazendo com que o monstro se atirasse do penhasco e a cidade fosse liberta da peste. Como já sabemos o resultado do desenvolvimento do mito, para Agamben, não é tanto o incesto ou o parrícidio, mas uma hybris diante do saber que condena Édipo ao seu fim trágico. Nesse sentido, Agamben aponta como toda semiologia moderna foi calcada em uma tradição metafísica que trata as formas simbólicas como uma reunião não problemática entre signficante e significado. Para o autor italiano, é, ao contrário, pensando a partir de uma fratura original entre esses dois campos, em uma espécie de primazia esfíngica do enigmático e do obscuro, de um elemento resistente à significação, que uma nova semiologia pode ser fundada. Ao eleger Aby Warburg como um historiador que contemplava a potência demoníaca da imagem, através do seus conceitos que operavam com as sobrevivências, com os retornos de conteúdos recalcados no tempo e com uma patologia intrínseca em cuja natureza estava inscrita os registros simbólicos, Agamben classifica de distorção demoníaca a relação que se estabelece entre cada forma significante e seu significado. Segundo o autor: Os estudos que, no sulco aberto por Aby Warburg, fizeram dele,mais de uma vez, o próprio objeto privilegiado, não só deixaram de contribuir para torná-la9 mais familiar, mas inclusive a tornou mais estranha, se isso é possível: o que, neste caso, se escondia no detalhe não era o bom deus, mas o espaço vertiginoso daquilo que, enquanto não fosse tirado o véu que desfigurava sua fisionomia, devia necessariamente aparecer como uma queda luciferina da inteligência e como uma distorção demoníaca do nexo que une cada criatura à própria forma, cada significante ao próprio significado.10 9 10 Agamben se refere à expressão usada na sentenção anterior: intenção emblemática. AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantsasma na cultura ocidental, p. 217 218. 423 Juliana de Moraes Monteiro Toda a reflexão ocidental sobre o significar teria esquecido o elemento que Agamben nomeia de demoníaco, o qual governa toda relação de significação. Nesse sentido, é pensando sobre a tradução agambeniana da sentença de Heráclito que podemos vislumbrar a possibilidade de interpretar a estrutura de significação como demoníaca. O daímon, para o filósofo italiano, seria justamente aquilo que dilacera, divide e marca em seu lugar uma cisão. Ou seja, todo significante é colocado em relação ao significado por aquilo que os gregos chamaram de daímon: o espaço ocupado por uma linha de fratura. Assim, prossegue Agamben: O simbólico, o ato de reconhecimento que reúne o que está dividido, é também o diabólico, que continuamente transgride e denuncia a verdade deste conhecimento. O fundamento desta ambiguidade do significar reside naquela fratura original da presença, que é inseparável da experiência ocidental do ser, e pela qual tudo que vem à presença, vem à presença como um lugar de diferimento e de uma exclusão, no sentido de que o seu manifestar -se é também um esconder-se , o seu estar presente, um faltar. (...) Durante algum tempo, contudo, tal fratura ficou afastada e ocultada, mediante a sua interpretação metafísica como relação entre ser mais verdadeiro e ser menos verdadeiro, entre paradigma e cópia, entre signficado latente e manifestação sensível. (...) Segundo tal concepção, que encontrou na estética a sua cristalização exemplar, a relação mais elevada entre o significado e a forma, e aquela à qual tende em geral todo significar, é aquela na qual a aparência sensível se identifica sem resíduos com o significado.11 A despeito de seu vocabulário influenciado por Heidegger, Agamben, nesta compilação de trechos de uma longa passagem, deixa claro o ponto que nos interessa investigar, isto é, as implicações nas relações de significação que se estabelecem nas obras de arte. A partir da formulação de Agamben de que o problema que tratamos neste artigo tem sua cristalização no campo estético, podemos avançar para interrogar como a arte contemporânea, enquanto um momento histórico de resistência às perspectivas estéticas, pode forjar uma novo tipo de semiologia, a qual Agamben entende como uma semiologia do ponto de vista da Esfinge, como já falado anteriormente. 11 424 Ibidem, p. 219 220. O sopro demoníaco: do daímon grego ao lugar da ética na arte contemporânea É partindo desta breve consideração de Agamben com relação à Estética que pretendo compreender como a arte contemporânea, através da proposição do demoníaco enquanto um conceito profícuo, engendra um percurso inaugural para a teoria da arte, na medida em que nos convoca a localizar a obra de arte como uma significante que repele a significação e resiste permanentemente à tirania do sentido. A meu ver, é a partir da introdução de uma gama de experiências que rompem com as categorias familiares do campo da arte que o século XX recebe o sopro demoníaco do seu tempo e nos lança no abismo vertiginoso da mesma peste que assolava Tebas: a peste enigmática do não saber. Arte contemporânea contra a estética: por uma ética demoníaca Chegamos agora, nesta sessão final, ao momento de articular como o demoníaco pode ser pensado enquanto um conceito potente para lidar com as questões engendradas nas experiências artísticas contemporâneas. Retomando a leitura de Agamben, o demoníaco é aquilo que marca o ponto de cisão entre uma coisa e outra. Nesse sentido, o demoníaco aponta tanto para uma barreira quanto para um lugar litorâneo enquanto um espaço por onde algo passa. Ao compreendermos a obra de arte dentro de uma relação travada entre significante e significado, como assinala Agamben ao afirmar que a estética é a esfera na qual isso se cristaliza, incorporamos a noção de que a obra se porta como uma espécie de cifra que demanda um sentido. Sendo assim, ao nos depararmos com uma experiência artística já nos situamos como possíveis intérpretes de uma linguagem velada que deve, por conseguinte, significar algo. É seguindo a linha crítica agambeniana a partir da proposição de uma outra semiologia, que implica uma relação inaugural com os signos artísticos, que busco conceber o demoníaco enquanto uma forma de salvaguardar para a arte o espaço de um dilaceramento radical. Entre forma e conteúdo, há uma relação dissenssual constitutiva. Desse modo, cada obra de arte engendra uma certa impossibilidade de sentido. Ela se encongtra sob a égide da renúncia à significação. Até o século XX, as experiência artísticas operavam em um regime familiar ao espectador. As formas artísticas eram facilmente localizáveis 425 Juliana de Moraes Monteiro ao serem legitimadas enquanto tais. Se por ventura causassem horror ou espanto, não faziam com que os espelhos se quebrassem em pedaços, como sentenciou Picasso a respeito do seu próprio tempo. De certa forma, isso se dava porque a obra se encerrava em formas reconhecidas pelos sujeitos enquanto formas artísticas. O ponto de virada dessa perspectiva se dá quando Marcel Duchamp produz o primeiro readymade, em 1913: Roda de bicicleta. Ao justapor dois objetos banais do cotidiano e assinar enquanto uma obra, Duchamp perturbou todo o sistema da arte, erigido a partir de conceitos estéticos que orientavam artistas e espectadores, e fez ruir as bases de um canône que teria que ser reformulado a cada gesto artístico inaugural que se espraiou ao longo do século XX e XXI. Ao classificar a obra de arte como demoníaca, busco chamar atenção para um elemento constitutivo da própria arte, isto é, o fato de ser uma experiência que abriga o lugar do enigmático e do obscuro e que, por isso mesmo, flutua entre uma suposta promessa de sentido e o não-sentido. De certa maneira, recuperar a etimologia da palavra demoníaco a partir do daímon grego nos serve para entender como esse significante, ao operar dentro da lógica trágica, ou seja, de deslizamento do sentido, nos fornece um modo de compreensão da contemporaneidade enquanto um tempo histórico no qual o estatuto privilegiado do significado deve ser questionado justamente por um esgotamento desse modelo legado para a cultura ocidental pela figura edípica da busca pelo saber. Se ao final da tragédia o herói padecia em sofrimento, isso se dava por meio de um significante desvelado dentro dessa cadeia complexa de ambiguidades e imprecisões. Dessa forma, podemos dizer que as experiências artísticas se apresentam como estranhas e inquietantes porque jogam nos dois tabuleiros, para usar a expressão de Vernant, e colocam no plano da arte não tanto a primazia do significante sobre o significado, mas se situam no limiar entreposto entre um e outro. Como analisa Agamben: 426 O que podemos fazer é reconhecer a situação originária da linguagem, este entrelaçamento de diferenças etrnamente negativas, na barreira resistente à significação, cujo acesso nos foi fechado pela remoção edípica. O núcleo originário do significar não reside nem no significante e nem no significado, nem na escritura e nem na voz, O sopro demoníaco: do daímon grego ao lugar da ética na arte contemporânea mas na dobra da presença sobre o qual eles se fundam: o logos, que carcateriza o homem como zoon logon echon, é esta dobra que recolhe e divide cada coisa na conjunção da presença. E o humano é, exatamente esta fratura da presença, que abre um mundo e sobre o qual se sustenta a linguagem.12 Nesse sentido, na topologia agambeniana o lugar ocupado pelo homem é um assentamento na barreira, em um lugar de divisão, como pensava Heráclito a respeito do daímon enquanto morada do humano, espaço ético. E assim, aqui fica patente a influência da psicanálise de Lacan, ao conceber o sujeito como um sujeito barrado, no pensamento do autor italiano. Não obstante, temos uma quase simultaneidade entre o marco inicial da arte contemporânea e o advento da psicanálise, esfera no qual a questão do significante é radicalizada ao extremo. Como explicita Lacan: Há, por um lado, o exercício do significante, com a liberdade que leva ao máximo sua possibilidade de ambiguidade fundamental. Trocando em miúdos, encontramos aí o caráter primitivo do significante em relação ao sentido, a polivalência essencial e a função criadora que ele tem em relação a este último, o toque de arbitrariedade que ele traz para o sentido.13 De forma análoga, o campo expandido que delimitamos como arte contemporânea coloca a questão de uma laceração fundamental ao se erigir como um espaço voltado contra a estética, esfera na qual Agamben vê uma harmonia entre manifestação sensível e significado. Ao contrário, o que se viu ao longo do século XX a partir da legitimação do readymade enquanto uma autêntica forma de arte foi um contramovimento estético, na medida em que, pela primeira vez na história da arte ocidental, a primazia do olhar era questionada com a crítica do artista francês à arte que ele chamou de retiniana. Duchamp, ao convidar o espectador para adentrar “regiões mais verbais”, deflagaria o que seria conhecido no século XX como arte conceitual, arte calcada na força da palavra, em uma problematização constante do estatuto da linguagem, das relações que se interpenetram entre significante e significado. 12 13 AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental, p. 248. LACAN, Jacques. O seminário, livro cinco: as formações do inconsciente, p. 89. 427 Juliana de Moraes Monteiro Assim, a arte passa a ocupar um outro espaço, não mais estético, mas ético e político. Esta formulação encontra eco dentro da teoria de Agamben, um filósofo que, na esteira do pensamento heideggeriano, milita por uma superação da estética enquanto campo privilegiado para compreensão da arte. Para o autor italiano, a arte não é uma atividade de ordem estética, ela é constitutivamente política. Desse modo, ao retormamos a filosofia de Aristóteles na qual definimos o homem como um ser político porque habita o logos, a linguagem, podemos inferir que toda questão envolvendo o espaço da pólis, na qual a arte finca sua morada, é, por conseguinte, um problema linguístico. Aqui tem-se uma associação entre arte, ética e linguagem e embora não tenhamos tempo para desenvolver melhor nossas considerações, busco encontrar no seio da obra agambeniana o elo no qual esses domínios se conectam. Para Agamben, a ética é o lugar no qual não há normas prescritivas, é um espaço livre do ordenamento jurídico, isento de ações ou deveres a serem cumpridos. No âmbito da ética, vige apenas uma potência puramente indeterminada. Como coloca o filósofo: O fato do qual deve partir todo discurso sobre a ética é que o homem não é nem há de ser ou realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico. Somente por isso algo como uma ética pode existir:pois é claro que se o homem ou tivesse que ser esta ou aquela substância, este ou aquele destino, não haveria nenhuma experiência ética possível: haveria apenas tarefas a realizar.14 Essa ausência de normas ou regras que orientem as atividades humanas é o terreno pelo qual se movimenta as práticas artísticas contemporâneas. Até a época moderna, a Estética, enquanto um campo autônomo de reflexão sobre a arte que tem em Kant sua mais acabada formulação, operava com elementos reconhecíveis e familiares. É a partir do surgimento das vanguardas que uma certa estranheza vai sendo incorporada aos poucos ao meio artístico e o readymade é o significante que marca o ponto de virada para um novo paradigma. 14 428 AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem, p. 45. O sopro demoníaco: do daímon grego ao lugar da ética na arte contemporânea Por sua vez, é em um ensaio chamado “Walter Benjamin e o demônico”15 que Agamben associa a palavra ética, que ele compreende dentro do pensamento benjaminiano, com o demoníaco: No entanto, ética significa aqui, no sentido, que a palavra tinha quando se deu seu aparecimento nas escolas filosóficas gregas doutrina da felicidade. Para os gregos, a relação entre demônico(daimonion) e felicidade era evidente pelo próprio termo com que eles designavam a felicidade: eudaimonia.16 Dentro do corpus filosófico agambeniano, a palavra felicidade não é sinônimo de bem estar social, e infelizmente não temos tempo de discorrer sobre ela aqui. O que gostaria de assinalar é que, para Agamben, a felicidade só existe fora do âmbito do direito, quando os sujeitos assumem efetivamente uma ética, para além de qualquer vocação biológica ou de imperativos de produtividade e eficácia. Uma ética feliz é, segundo a palavra demonstra etimologicamente, uma ética demoníaca. Ao nos apropriarmos desse conceito para lidar com as manifestações artísticas contemporâneas, deflagradas por Marcel Duchamp, defendemos a teoria segundo a qual é na arte do nosso tempo que a linguagem é questionada no sentido de abrir com isso um espaço de cisão, através da problematização da barreira que divide significante e significado. Entendendo a obra de arte enquanto algo localizado nesse ponto de laceração, nos propusemos a forjar uma outra semiologia, fundada não na primazia do significado, como postula a estética moderna, mas na divisão entre ambas as esferas. Com isso, situo a obra de arte contemporânea no espaço privilegiado de um mundo ético-político, campo onde vige o sopro de um elemento demoníaco que são, como Aby Warburg optaria por definir, os efeitos devastadores do nosso próprio tempo17. Receber esse sopro é, antes de tudo, assumir uma postura ética, na qual nada está definido ou prescrito, habitar esse lugar limítrofe onde podemos sempre jogar nos dois tabuleiros. 15 16 17 Cabe ressaltar que no texto original demônico refere se à palavra italiana demonico, que tanto pode ser tarduzida por demoníaco ou demõnico, tendo o tradutor optado por demônico. No livro A comunidade que vem, temos o mesmo termo traduzido por demoníaco, por exemplo. AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento: ensaios e conferências, p. 185 18. Cf. DIDI HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, p. 119. 429 Juliana de Moraes Monteiro Referências AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. ______. A potência do pensamento: ensaios e conferências. Trad. António Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. ______. Estâncias: a palavra e o fantsasma na cultura ocidental. Trad. José Selvino Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. DIDI HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Trad. Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. LACAN, Jacques. O seminário, livro cinco: as formações do inconsciente. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. OLIVEIRA, Cláudio. Lacan e o campo do trágico ou os significantes gregos de Medéia. Revista Viso – Cadernos de Estética Aplicada [on line]. Edição 2. Rio de Janeiro, 2007, UFF, mai-ago/2007. Disponível na internet http://www.revistaviso. com.br/pdf/Viso_2_ClaudioOliveira.pdf ISSN 1981-4062 OS PENSADORES ORIGINÁRIOS: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Introdução de Emmanuel Carneiro Leão. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. PUCHEU, Alberto. Giorgio Agamben: poesia, filosofia, crítica. Rio de janeiro: Azougue Editorial, 2010. VERNANT, Jean Pierre; VIDAL NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2011. 430