[go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
VIANA, D. L. (2008). Cidade Africana – condição de indefinição: potencialidades urbanas emergentes. In Milão, S. (Coord.). Vinte e Um por Vinte e Um – Arquitetura, Cultura e Território: Creative City | Multiplicity (4). Porto, Portugal: Escola Superior Artística do Porto, pp. 74-88 ESAP REVISTA 21X21 | Nº4 Fevereiro 2008 | David Leite Viana | Artigo: CIDADE AFRICANA: CONDIÇÃO DE INDEFINIÇÃO Potencialidades urbanas emergentes …Cidade Africana… ESAP – Revista 21x21 | Nº4 1 As motivações para este artigo, que surge do convite da Directora-Comissária do Nº4 da Revista 21x211, resultam –utilizando as palavras de Rodrigues [2006:13/14]– do pensamento complexo e sistémico, recusando paradigmas metafísicos (idealistas ou materialistas), feito de busca reflexiva em que o ‘caminho’ é a via. Percurso que se revela no caminhar. O ‘viajar’, o ‘encontro’ e o ‘desencontro’, a ‘chegada’ e a ‘partida’ são a vivência de estratégias que se consolidam ou rejeitam. Deste ‘processo’, procura de lucidez contra a cegueira, não se esperam revelações finais – antes perplexidades e nunca certezas. NOTAS PRÉVIAS: situação actual A pós-modernidade derrubou o mito da acção urbana absoluta e dogmática: “la regularización-formalización debe formar parte de una estrategia conjunta que debe partir de la propia ciudad. Que la ciudad descansa sobre unos engranajes que son los valedores” [Piñón 2001:38], em última instancia, do seu correcto funcionamento. Cedendo à evidência da realidade global e reconhecendo aquilo que realmente é –que de facto existe, com limitações e fragilidades inerentes– “o pensamento arquitectónico contemporâneo deixa de existir enquanto discurso isolado da Cidade. Assim, […]pelo exponencial crescimento das concentrações urbanas, a Cidade é actualmente o objecto de estudo central” [Saraiva (coord.) 2004:6], na actual cultura urbano-arquitectónica. Desde os ataques de 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos da América, que a dimensão do ‘informal’ vem ganhando contornos mais assumidos e exponenciados. Os conflitos bélicos tornam-se irregulares: as relações e alianças geoestratégicas são híbridas e voláteis; o comércio/negócio internacional reveste-se de constantes mutações –hoje está aqui, amanhã está ali– deslocando-se e adaptando-se rapidamente de/e para novos mercados; a mobilidade de pessoas, bens e serviços banaliza-se; assiste-se a uma mudança de paradigma –no sentido do informal– ao nível da ‘ordem mundial’. Neste contexto, o planeamento estratégico, expressão das sociedades pós-industriais (pós-modernas, voltadas para a produção do consumo) significa competir num mundo globalizado, promovendo imagens sedutoras. 1 Sendo o universo temático deste número da Revista 21x21 o da ‘cultura’, ‘cidade’, ‘criatividade’ e ‘património’, e tendo a Cidade Africana como sujeito deste artigo, pode-se estabelecer, de acordo com Morais e Raposo [2005], pontes e detectar semelhanças entre esta e outras de geografias distintas, mesmo em Portugal. Para isso são necessários ‘olhares’ sobre África que escapem à “cultura del exotismo y a la fascinación por el buen salvaje. […]África tiene una vida cultural, con rasgos propios y, en muchos aspectos, incorporada a los canales” [Ramoneda 2001] de grandes cidades internacionais. ESAP – Revista 21x21 | Nº4 2 ‘Marketing’ no sentido de tornar as cidades atraentes através de manipulações das formas e espaços urbanos, quer com a criação de urbanismo e edificações de porte, quer com a valorização do acervo patrimonial histórico –contando com o auxílio da publicidade2. Esta estratégia pressupõe altos investimentos e enfatiza espaços e equipamentos de interesses privados ou em parceria com recursos do Estado. Este é um tipo de actuação que começa a ser testado em contextos urbanos africanos. Veja-se o caso, por exemplo, da requalificação de espaços verdes públicos em Maputo, tais como o “Jardim dos Namorados”, o “Jardim dos Cronistas” e o “Jardim dos Professores”, entregues a parcerias com privados pela autoridade municipal. Mas, conforme Caro e Rivas [1985:170], “la ciudad como conjunto de interacciones complejas, no puede ser descrita desde esta práctica tipológica. […]La ciudad es algo vivido, en la que lo construido y lo social están en constante intercambio para eso que llamamos la estructura urbana”. As reformas que têm vindo a ser operadas em cidades africanas ao nível da reorientação política (transição de economias planificadas para de mercado; de centralismos democráticos para o pluralismo político) conduzem a incertezas quanto ao futuro de muitas destas cidades. …Cidade Africana – o legado colonial… 2 Despojadas de utopias sociais, as mais recentes estratégias para as cidades vêm assumindo, de acordo com Magnavital (2006), a conotação ‘mercadológica’: produção de bens de consumo, tanto materiais quanto simbólicos, cuja tónica é de competir e aferir lucros dos investimentos locados. Pressupõem a criação de imagens urbanas pontuais, sedutoras, singulares, de simulacro, promovendo diferentes níveis de fruição, contribuindo para potencializar processos de subjetivação individual e colectiva – estimulando o consumo das cidades. Penso que este não deverá ser o único e mais adequado caminho para o espaço urbano africano. ESAP – Revista 21x21 | Nº4 3 ESTADO DA ARTE: breve abordagem Os indícios de dualidade nas cidades africanas regurgitam-se em estruturas urbanas de costas voltadas e alheias às dinâmicas internas de cada uma delas. Parte das posturas urbanas legisladas (principalmente as de raiz colonial) possuíam contradições regulamentares e continham em si um sentido bicéfalo, padecendo de um handicap, espacialmente segregador: “urban functions were concentrated in the city cores and the shantytowns did not have basic water, sanitation, commercial or community services” [Pinsky 1983:8], o que contribuiu para o agravamento do distúrbio bipolar entre partes da cidade infraestruturadas e providas de serviços urbano-sociais e outras mais estéreis a este nível. Os sintomas de bipolarização urbana manifestam-se por via da entropia3, que contamina a condição da Cidade Africana e para a qual muitas vezes se defendem princípios para o seu espaço urbano demasiado inflexíveis, estratificados em layers4 e formalistas, com dificuldades para se adaptarem com criatividade às suas potencialidades urbanas emergentes. Nesta linha, a Cidade Africana é muitas vezes abordada também de uma forma dual: quer segundo uma perspectiva histórica e patrimonial (contribuindo para a construção da história do urbanismo e da arquitectura europeia em África, por exemplo) e tem interessado particularmente às universidades; quer debruçando-se sobre as periferias urbanas, que têm atraído a atenção de académicos e ONG’s nacionais e estrangeiras 5. Assim, os contributos de autores que se dedicam à investigação sobre os temas deste número da revista no contexto da Cidade Africana, fazem-no –na maior parte das vezes– de uma forma bipolar, ou seja, olhando exclusivamente para a cidade formal de raiz colonial, ou debruçando-se apenas sobre as questões da cidade informal: “más que de ningún otro lugar del mundo, de África solo queremos saber lo que nosotros hemos inventado y patentado como africanidad. Aceptar como realmente africanas la agitación, la tensión y la creatividad de las grandes ciudades del continente, las calles atestadas de coches, los paisajes llenos de plástico y de antenas, la chatarra que hay por todas partes? No, eso no. No es bastante africano. No es ‘auténtico’. 3 A entropia (do grego εντροπία, entropía) é uma grandeza associada ao grau de desordem. Está relacionada com o número de configurações (ou arranjos) da mesma energia que um dado sistema pode assumir (consulta: http://pt.wikipedia.org | Março 2007). 4 LAYER, s. estrato, camada, leito. Dicionários Académicos da Porto Editora –“Inglês/Português | Português/Inglês”– 1984, p.466. 5 Conforme Roberto Júnior, a problemática do ‘subúrbio’ é cada vez mais central nos debates sobre urbanização e nos processos culturais de representação da exclusão. No momento em que esta se torna mainstream, surge um contexto cultural que possibilita a difusão do modus vivendi do complexo espaço urbano de guetos e cortiços. ESAP – Revista 21x21 | Nº4 4 Porque esta negativa, este rechazo a percibir y reconocer todo lo que rompe con el tópico de una África esencialmente ’otra’, homogénea en su primitivismo, ajena a nuestra experiencia, a nuestra historia? Seguramente porque, creo, el África diaria, normal, urbana, nos haría pensar demasiado, precisamente, en nosotros mismos. En todo lo que preferimos ignorar de nosotros mismos. La idea […]no es ir a África buscar un nuevo ‘sujeto histórico’, un nuevo movimiento capaz de ofrecer soluciones universales. Para descubrir ‘la’ verdad, una nueva fórmula mágica con la cual sustituir remedios ya desacreditados” [Subirós (coord.) 2001:11]. Estas eloquentes palavras sintetizam parte da postura mainstream relativamente à cultura e património da Cidade Africana. Em décadas mais recentes, este estado de pensamento tem encontrado ‘brechas’, antevendo a emergência de protótipos urbanos alternativos – mais sistémicos e plurais. Assiste-se à transformação dos modelos com os quais se percepciona a forma da cidade e se equaciona o usufruto e sustentabilidade do seu espaço urbano – veja-se, por exemplo, o trabalho académico desenvolvido por Rem Koolhaas sobre Lagos, na Nígéria. Este autor afirma que “the African cities forces the reconceptualization of the city it self”. A [multipli]_cidade deste contexto geográfico apresenta variáveis determinantes e incontornáveis para o seu processo, tais como a multiculturalidade, a problemática da identidade/ideia de lugar versus global, a diversidade, entre outros. …Cidade Africana – a segregação sócio-espacial… ESAP – Revista 21x21 | Nº4 5 CIDADE AFRICANA: apontamentos de diagnóstico Para além de quaisquer outras características, considero a Cidade Africana tremendamente contraditória, que se encontra –conforme Subirós 2001:12– em pleno ‘salto sem rede’ da pré para a pós-modernidade, por vezes com processos de urbanização hiperacelerados, com todos os problemas mas também com todas as surpresas e aberturas possíveis que advêm deste salto. É necessário consolidar a consciência da condição de indefinição da Cidade Africana para, a partir daí, identificar as suas potencialidades urbanas emergentes. Henry Kissinger, com o seu “proverbial cinismo, […]dijo hace tiempo que África quedaba para el siglo XXI”6 se assim é, já cá estamos. Neste novo milénio, a cidade futura não pode ser só a dos países ricos. Cada vez mais na esfera das nações referenciadas como de ‘Terceiro Mundo’ “las bidonvilles y las favelas de Asia, África e América albergaran al menos al noventa por ciento de la nueva población urbana”7 nas próximas décadas. A expansão das cidades africanas enquadra-se no que refere Altvater [2005:51] – “a threetiered arrangement: the well-ordered quarter for the urban elite with income and good infrastructure; the extreme opposite is to be found in the ‘favelas’, the ‘bidonvilles’ or ‘slums’ of the poor and excluded”. Para este autor “the number of people living in cities increased. On average, nearly every second person moves into a city”. Em geral, “the planet is transforming into a ‘planet of slums’. Mike Davis calls an ‘urban involution’ and a ‘perverse’ development”8. Esta denominada “involução” urbana caracteriza-se por situações de exclusão, carências de transporte, emprego, serviços sociais, entre outros. Conjuntamente com a América Latina e Ásia, é já difícil fazer referências a uma só África: é urgente abordar as múltiplas ‘Áfricas’, cada uma delas com especificidades intrínsecas. Neste continente, mais concretamente na sua geografia Subsáariana, assiste-se a um “momento en el que se produce una colisión fértil entre tradición y modernidad, entre el ámbito local y el global”9 – logo ‘glocal’. Do global para o local, “entender a Cidade Africana de hoje é abarcar estas duas dimensões dicotómicas de forma sistémica e no diálogo que entre elas se estabelece: o centro de origem colonial, […]e a extensa periferia 6 ROYES, Manuel –“Áfricas. El artista y la ciudad. Un viaje y una exposición” (coord. Subirós)– Centre de Cultura Contemporánea de Barcelona | Institut d’Edicions de la Diputació de Barcelona, 2001. 7 PICCINATO, Giorgio –“Una ciudad. Muchas ciudades” (Traducción de Juan Calatrava)– No ciudad, Volumen 14-15 | Isleño, Variaciones sobre arte y pensamiento, 2003, p.83. 8 Cf. Altvater 2005, p.51. 9 RAMONEDA, Josep –“África, visiones de futuro”– Catálogo da exposição: Africas. El artista y la ciudad. Un viaje y una exposición (coord. Subirós), Centre de Cultura Contemporánea de Barcelona/Institut d’Edicions de la Diputació de Barcelona, 2001. ESAP – Revista 21x21 | Nº4 6 urbana africana”10, resultante de problemas relacionados com altas taxas de crescimento urbano. Em África, estas são agudizadas pela grande concentração populacional nas maiores áreas metropolitanas, porque são os principais pólos de desenvolvimento e actuam como centros de atracção de migrantes das áreas rurais [Araújo 1997]. A Cidade Africana revela-se crescentemente complexa, conformando totalidades segmentarias: noção que pressupõe heterogéneas relações de subjetivação no processo urbano. As realidades morfológicas em contextos africanos interpenetram-se: os centros urbanizados ganham terreno aos subúrbios – mas deixam-se por eles absorver. Carecem de uma articulação mais adequada e sustentável do ‘urbano-clandestino’ no domínio da cidade planeada: que mareia entre uma modernidade idealista e um pragmatismo intervencionista, consolidados em acções globais de transformação e de realizações em série de obras isoladas. Enquanto na cidade ordenada, regular, ocorre a recuperação e ampliação dos seus serviços, na periferia, estes e as ”infra-estruturas urbanas básicas – instalações escolares e de saúde, abastecimento de água, saneamento e energia, e também, iluminação pública, rede viária, transportes colectivos, recolha de lixo– continuam muito [Oppenheimer e insuficientes Raposo e deteriorados 2002:40], ou são consubstanciando inacessíveis processos de aos pobres” dissolução, fragmentação e privatização do espaço urbano – entendido “como uma sociedad de estancias, donde resulta bello aprender, trabajar y vivir” [Caro e Rivas 1985:27]. Na Cidade Africana podem ser ainda diagnosticados sintomas de: esvaziamento do seu significado e reconhecimento; inadaptabilidade territorial; inadequação aos recursos disponíveis, redundância operativa; descontinuidades lineares; entre outras fragilidades que provocam mal-estar urbano aos citadinos. O reconhecimento dos assentamentos clandestinos, continuamente emergentes, sua morfologia e integração na estrutura da cidade, no âmbito de um processo urbano amplamente participado e gerador de desenvolvimento social e urbano11, exige a articulação entre o centro urbanizado e as franjas periféricas ‘informais’. A desagregação e fragmentação do espaço urbano africano impõem uma abordagem abrangente, mas ‘glocal’: que perspective a cidade como um todo, mas igualmente atenta às características dos seus lugares – marcados pela imprevisibildade. A suburbanização que marca a Cidade Africana pode ser ultrapassada por uma mais consistente cidadania participativa e de coesão cívica, por oposição à estigmatização, individualismo e isolacionismo urbano e social. 10 MORAIS, João Sousa; RAPOSO, Isabel –“Da cidade colonial às novas urbes africanas: notas exploratórias”– Cadernos da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, nº5, 2005, p.90. 11 Adaptado da AMDU – Associação Moçambicana para o Desenvolvimento Urbano, 2005. ESAP – Revista 21x21 | Nº4 7 Muitas das cidades africanas espelham a pobreza generalizada dos seus habitantes, resultante da falta de capacidade de operação e manutenção das infra-estruturas e serviços necessários para a vida urbana, incluindo a gestão do ambiente e dos recursos naturais. Neste contexto, quer com o desflorestamento provocado pela produção de combustíveis lenhosos, quer com a ocupação urbana e a sobre-exploração dos solos agrícolas, verifica-se uma contínua e crescente erosão dos recursos, rompendo os ciclos ecológicos locais e específicos da paisagem africana – agravados pela fome e insegurança, por vezes generalizada. Por exemplo, em 1975 apenas 9% da população de Moçambique vivia em áreas urbanas. Três décadas depois cerca de um terço da população vive agora em meio urbano ou suburbano, estimando-se um agravamento nos próximos vinte e cinco anos: “em apenas duas gerações o modo de produção, consumo e vida camponesa, base tradicional da sociedade moçambicana, será substituída por uma economia baseada na cidade”12. Desenvolveu-se uma “classe de consumidores sem possibilidade de satisfação” 13 que acentuou não só o “contraste entre uma sociedade industrializada e uma sociedade do Terceiro Mundo, com expectativas e hábitos de consumo de país industrializado” [Forjaz 1999:101], como também agravou o despovoamento dos campos 14. A Cidade Africana constitui-se em mosaicos plurais, com diversas partes. Estas já não se encaixam exclusivamente na relação centro/periferia, na medida em que ocorrem dinâmicas de diversidade nas franjas com características de suburbanidade, ou periurbanidade, que requerem um olhar mais global sobre o seu espaço e respectivos mecanismos de transformação: “a cidade desde sempre se organizou por partes. Inúmeras vezes estes espaços foram fruto de uma sociedade marcada e estratificada sobre a exclusão social. A cidade raramente funcionou como pólo urbano aglutinador de todos os habitantes” [Santiago 2007:115]. Para além deste aspecto, grosso modo, as suas fragilidades são: deterioração do património imobiliário; degradação e insuficiência dos serviços urbanos (infra-estruturas e equipamentos); reforço da dualidade centro/periferia; ocupação descontrolada e clandestina nos subúrbios; ocupação descontrolada nos espaços reservados ou non-edificandi das áreas centrais. 12 MEDEIROS, Eduardo –“O desenvolvimento em Moçambique. A questão do legado histórico dos últimos 25 anos”, www.cadernoseconomia.com.pt/ce60/eduardo_medeiros.pdf; p.43 | consulta Julho 2003. 13 14 Cf. Forjaz 1999, p.101. A industrialização urbana em África precisou tanto de infra-estruturas como de um constante fluxo de imigrantes rurais. O desenvolvimento económico e industrial das cidades africanas tornaram inevitável quer o despovoamento rural, quer a saturação, desordem e desagregação da própria cidade (ao nível físico/material, manutenção da lei e da ordem, reestruturação familiar, protecção e promoção social, económicos, entre outros). ESAP – Revista 21x21 | Nº4 8 …Cidade Africana – a procura de sobrevivência na “informalidade”… CONDIÇÃO DE INDEFINIÇÃO: enquadramento síntese A condição de indefinição da Cidade Africana traduz-se no âmbito da equação entre ‘sobrevivência’ e ‘ruptura’. Sobrevivência porque é disso que se trata, de sobreviver dia-adia, e ruptura porque, conforme Forjaz [1999:31], “necessitamos de uma nova estratégia para resolver a inevitável ruptura com as tradições técnicas e formais e com o legado colonial, pois que ambos esses sistemas não respondem agora às novas ambições culturais e materiais dos povos da nossa região”. A prática corrente e acrítica do tipo de planeamento integrado e estratégico detêm um denominador comum: o ‘capital especulativo’ – que promove aumento da inflação, desemprego, desigualdades sociais, entre outros indicadores, particularmente em países periféricos e em vias de desenvolvimento. ESAP – Revista 21x21 | Nº4 9 Urge um pensamento projectivo15 para o espaço urbano africano, na medida em que “the present-day city calls for a profound reorientation in the manner in which we study it”. As potencialidades emergentes na Cidade Africana requerem princípios urbanos que operem “at the intersections of the individual and the collective”16, perspectivando a multiplicidade de compromissos inclusivos e complementares, e –adaptando Lerup17– reinterpretando-as e filtrando-as da “matéria inútil” (dross) à luz das suas fragilidades. As estratégias –próactivas– para a Cidade Africana devem estar apoiadas em metodologias operativas que actuem sobre os seus interstícios de raiz espontânea, articulando-os e impregnando-os de significados sociais, sustentados numa rede de referências e serviços colectivos. O espaço urbano africano deve tornar-se não só mais vivível para os seus habitantes, como também ecológica e urbanamente mais sustentável. Mais do que qualquer nova estratégia urbana simplista, como por exemplo avulsos e redutores liftings urbanos, são antes necessários sistemas que respondam com criatividade (e não de uma maneira formatada) à pluralidade das ambições culturais e materiais da comunidade urbana africana: existe hoje uma “‘otra’ realidad […]urbana en África”, que reclama uma ‘outra’ consciência, a de que “estas realidades no se corresponden com aquello que los tópicos y los estereotipos nos han querido hacer ver como única realidade de África” [Royes 2001]. Os princípios assim emanados têm que objectivar processos que perspectivem a transição para um modelo de desenvolvimento da Cidade Africana assente no pluralismo urbano, consolidando a urbanização progressiva dos subúrbios: condição primeira para se assegurar a mudança da cidade dual para a plural, da exclusão para a inclusão18. 15 Conceito desenvolvido pelo francês Gaston Berger e cuja definição aproximada será a seguinte: acção planificada sobre a situação presente, a partir de uma imagem preestabelecida do futuro desejável [Gavíria 1983]. 16 BRILLEMBOURG, Alfredo; KLUMPNER, Hubert –“Introduction-Things fall apart; the centre cannot hold”– Informal city. Caracas case | Edited by Alfredo Brillembourg, Kristin Feireiss, Hubert Klumpner, German Federal Cultural Foundation, Prestel, 2005, p.19. 17 Lars Lerup “introduziu o termo dross para caracterizar a paisagem alargada da cidade. Em Inglês, dross significa escória, as impurezas do metal fundido, mas a palavra também é usada no sentido da matéria inútil, por oposição à matéria útil. A maior parte da paisagem urbana contemporânea compõe-se de escória. Contudo, neste dross o que conta é o steam (vapor), e o steam é […]onde existe uma espécie de realidade […]de sub-séries onde as pessoas podem efectivamente participar. Lerup usa a palavra para designar lugares inesperados e frequentemente improváveis. Compelem as pessoas a circular através da paisagem de uma forma caótica e quase situacionista. Isto são tentativas feitas nos anos 50 e no princípio dos anos 60 do séc. XX para consagrar um modelo de cidade onde as pessoas […]criassem os seus próprios ambientes” [LOOTSMA, Bart –“A paisagem como Projecto”– Revista Prototypo 007 | Cidade em Performance, 2002, p.181]. 18 JÁUREGUI, Jorge Mário (op. cit.) –“Da cidade colonial às novas urbes africanas: notas exploratórias”– Cadernos da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, nº5, 2005, p.91. ESAP – Revista 21x21 | Nº4 10 A diversidade do espaço urbano africano não pode “ignorar la complejidad de los problemas económicos, sociales o culturales de la ciudad, o creer que la arquitectura puede por ella misma construir sola el espacio da la ciudad” [Rivas 1991:163], ou reconhecer em absoluto a sua materialidade e dimensão visível: razão da sua condição de indefinição. …Cidade Africana – entre o “caniço” e o cimento… POTENCIALIDADES URBANAS EMERGENTES: reflexões gerais A cidade, nas palavras de Forster [2007], é feita de “buracos”, que revelam o seu permanente estado de incompletude. Mas esses nichos apresentam-se, acima de tudo, como uma promessa, como uma fonte de possibilidades: origem de potencialidades urbanas emergentes19. O espaço urbano africano tem conseguido transformar-se, encontrando lugares para novas coisas e apagando outras. Assumiu morfologias híbridas, integrando o campo, levando-o até à paisagem urbana –ocorrendo a agricultura entre o tecido urbano– e esbateu as fronteiras entre cidade e campo 20. 19 A condição de indefinição da Cidade Africana possibilita a organização e estruturação da sua lógica assente em redes híbridas compostas por programas mistos, através de uma relação mais criativa e participativa entre cultura e cidade [Casabán 2004:11]. A matriz das correlações heterogéneas dos padrões do espaço urbano africano revela que –mesmo não desenhadas– as formas de ocupação urbana não previstas surgem apensas a elementos morfológicos ordenadores do território, nebulizando-se a partir deles, prefigurando tecidos urbanos organicamente ramificados. 20 Segundo Guallart [2004:9], “la ciudad se consideraba lo opuesto al campo. Las diferencias desaparecieron gradualmente com el excedente de la nueva ciudad en aglomeraciones heterogéneas. Ha llegado el momento de ESAP – Revista 21x21 | Nº4 11 A emergência de novas potencialidades urbanas sugere a aceitação de operações que se estruturem em regras que permitam modificações sobre a Cidade Africana através de leituras múltiplas e cruzadas das suas subunidades internas, perspectivando formas derivadas das mesmas. Esta metodologia transformacional aborda o morfologicamente arbitrário e indiscriminado, com graus elevados de variabilidade, procurando nas suas idiossincrasias urbanas configurações possíveis mas ainda inexistentes. Para o efeito é necessário uma capacidade descritiva e relacional que torne possível a distinção entre as formas existentes e as possíveis. Os processos de ocupação descontrolada e clandestina em áreas com características de subúrbio e em zonas non-edificandi centrais promoveu configurações da Cidade Africana libertas de formas estanques – as quais se contrapõem às retículas geometrizadas de origem colonial. As multiformas urbanas assim geradas são “primarily synesthetic and rooted in a constellation of concrete events […]and not intended to be the literal generators of form”21, surgindo antes como “by-products of the process of event diagramming”22, na medida em que não pretendem ser “the primary results of the process”23. Uma análise ao processo da Cidade Africana revela conformações de matriz orgânica, de sequenciação complexa (ora linear, ora por sobreposição) e espacialmente com características de mistura – constituindo-se organismos em metamorfose que tendem a se tornar em rizomas, combinando sensações de múltiplas tensões e dimensões na mesma superfície: “a rhizome has no beginning or end; it is always in the middle, between things, interbeing, intermezzo” [Deleuze, Guattari 1994]24. Na Cidade Africana traduzemse acções urbanas de: adição; afixação; composição; conversão; modificação; permutação; repetição; sobreposição; substituição; subtracção. Segmentar esta realidade urbana complexa conduz à delimitação das suas unidades mínimas de forma e significado constante. Esta identificação permite isolar as secções indivisíveis da cidade (forma), e as que não se compartem (significado). Neste processo fica explícita a natureza regular e/ou irregular das partes da cidade, bem como as combinações e variantes –endógenas ou exógenas– que entre elas se estabelecem. responder a esta cuestión ofensivamente, y no ver la ciudad sólo como paisaje metafórico, sino adoptar además concretamente la agricultura en la estructura urbana”, perspectivando a melhoria da capacidade organizativa e de gestão, o reforço institucional, a ampliação dos mecanismos de arrecadação de receitas locais para satisfazer a demanda de serviços e a ampliação dos dispositivos de participação dos citadinos na gestão da cidade. 21 SANAGALA, Mahesh; DUTTA, Madhu C. –“Rhizogramming: A Synesthetic Approach to Design Process”– Comunicação ao 20th EAAE CONFERENCE, Stockholm-Helsinki | School of architecture, University of Texas at San Antonio, 2003. 22 Ibidem 2003. 23 Ibidem 2003. 24 Referenciados por Sanagala e Dutta (2003). ESAP – Revista 21x21 | Nº4 12 O espaço da Cidade Africana ramifica-se organicamente em organismos urbanos capilares, estruturados em desenvolvimentos lineares da sua textura labiríntica, consubstanciando-se enquanto hipertexto (conceito referenciado de Françoi Archer). Neste contexto, é necessário ampliar o espectro do urbano para além de seus aspectos materiais e técnicos, procurando ter em linha de conta outras dimensões (económica, social, ecológica, histórica, abstracta), de modo a perspectivar morfologias subjectivas resultantes de processos urbanos de subjetivação. Estes superam a relação binária sujeito/objecto da fenomenologia reducionista clássica/moderna/estruturalista, assumindo antes o sentido de produção – processo construtivo de diferentes conotações e subjectividade. Não são suficientes exposições da Cidade Africana por via de grelhas exclusivamente etnocentradas: se a “experiência longínqua nos ensinou a descentrar o nosso olhar, devemos tirar partido dessa experiência. Teremos de reaprender a pensar o espaço” [Augé 2005:34] urbano verificando os condicionalismos do seu processo de formação e transformação. O modelo funcionalista/formalista mostra-se desprovido de aptidões instrumentais e operativas suficientemente dinâmicas para articularem com criatividade a diversidade e complexidade da conformações estruturalistas e Cidade Africana, na racionalistas medida em estereotipadas: que materializa “diferenciação e homogeneização, unidade e complexidade, são pólos expressivos co-presentes em toda a intervenção. A leitura de forte unidade ou associativismo que se afirma através de uma grelha urbana, […]arriscará por hipótese, reduzir a possibilidade de conferir significados a locais para que sejam identificáveis” [Portas 2007:126]. Pelo contrário, operando sobre a base urbana da Cidade Africana, observando as suas [ir]regularidades nos seus distintos aspectos, isolando o estrutural do complementar, é possível redefinir componentes morfológicos que permitam criar realidades citadinas ainda vinculadas a significados e formas já existentes nas suas subunidades. Este tipo de morfologia urbana –derivativa, que actua sobre o processo urbano de maneira derivacional e criativa– admite a organização da Cidade Africana em sequências de contrastes, cruzando as suas especificidades e tornando-as propriedades do mosaico urbano. A aptidão irregular e informal de parte do espaço urbano africano, apesar das carências e debilidades infraestruturais e físicas, torna-o receptivo e disponível para a adaptação de morfologias de pendor mais ‘ecológico’, que explorem a sua condição de complexidade – na qual continuamente ocorrem sobreposições e justaposições de padrões. Estes devem intersectarem-se ou evoluírem para mutações morfológicas mais inesperadas, mas adaptativas, sustentadas na flexibilidade e desaguando em hipóteses de modelos de desenvolvimento urbano mais orgânicos e híbridos25. 25 Por exemplo, para franjas com propriedades urbanas mais debilitadas (resultantes da sua separação física e ESAP – Revista 21x21 | Nº4 13 …Cidade Africana – o problema da habitação… ANOTAÇÃO FINAL: perspectivas para o futuro Segundo Quammen (2005), as particularidades africanas merecem atenção especial por aparte do resto do mundo. Isto porque, conforme se depreende da leitura dos trabalhos de investigação que Koolhaas tem vindo a desenvolver em África (particularmente na Nigéria, concentrando-se na sua capital – Lagos), o continente africano amplifica o teor dos problemas generalizados que se vão sentindo um pouco por todo o resto do mundo. A reverberação da sua «caixa de ressonância» pode ser de tal forma potente que, de acordo com o mesmo autor, é quase como se estivéssemos a auscultar o futuro das nossas próprias cidades. Com este pensamento, advogo também para a Cidade Africana processos urbanos flexíveis e regenerativos, sensíveis e adaptados ao contexto (entendido no sentido lato do termo: social; ambiental; económico; territorial), assentes também numa produção minimalista – não no sentido da sofisticação tipológica, tecnológica ou material, mas sim no da intervenção pontual, específica, circunscrita e equilibrada, de pequena escala, com poucos recursos, de compromisso, recorrendo a eco-operações de upgrade. cultural da cidade infraestruturada e com oferta de serviços urbanos), Álvaro Domingues defende a ideia de “agrafos urbanos” (em substituição do cerzir, cozer) – ‘agrafá-las’ através de morfologias-rótula que perspectivem a requalificação física das suas áreas suburbanizadas que –adaptando Fadigas [2007:141]– se desenvolveram com “ausência de regras, dando origem a territórios desestruturados, ambientalmente frágeis e funcionalmente limitados”. ESAP – Revista 21x21 | Nº4 14 Minimalista, ainda, não só na vertente da sua adequação urbano-social e ambiental, mas igualmente na gestão e consumo de recursos financeiros e energéticos disponíveis. A abordagem deverá ser de complemento e apoio, na procura de uma maior qualidade da vida urbana e de potencialização de infra-estruturas básicas e de pequenos equipamentos que tornem possível espaços urbanos mais ecológicos. Será necessário redefinir processos incisivos com vista à sustentabilidade da urbanização progressiva dos subúrbios e suprir insuficiências detectadas, tal como a perpetuação de estratégias urbanas progressivamente desqualificadas, mareando entre o elitismo segregador e o clandestino desapoiado. Valorizar a cultura, diversidade, criatividade e património das cidades africanas significa negar estratégias totalizadoras e herméticas. Pelo contrário, devem-se consolidar princípios apoiados em padrões-base abertos à interacção e combinando-os entre si de modo a favorecer o seu reconhecimento e aplicabilidade in situ. Assim, defendo para a Cidade Africana, adaptando Magnavital [2006], um pensamento que adopte a “Lógica da Multiplicidade” – uma das vertentes do Pós-estruturalismo. Este instrumento conceptual privilegia premissas como: multiplicidade; diferença; repetição; totalidade segmentaria; heterogeneidade; descontinuidade (ruptura a-significante); evolução aparalela (não linear); corpo sem órgãos; rizoma; caos; acontecimento. Procura retirar a hegemonia de conceitos que o pensamento moderno ainda exerce nos discursos que se formulam sobre a problemática urbana, a saber: unidade; identidade; totalidade; homogeneidade; continuidade; organismo; evolução; ordem. Termino esta breve exegese com Marcel Proust – “a verdadeira viagem da descoberta não implica partir para novos lugares, mas sim inventar um olhar novo…”. …Cidade Africana – “urbanização” (infra)estruturalmente fragilizada… ESAP – Revista 21x21 | Nº4 15