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Rascunho de apresentação de livro com textos críticos de Ralph Waldo Emerson, a sair pela editora Carambaia.

Lendo Emerson Hoje Fabio Akcelrud Durão Departamento de Teoria Literária Unicamp “Este autor dispensa apresentações”: eis uma frase que não se aplica a Ralph Waldo Emerson, e por dois motivos básicos. Em primeiro lugar, trata-se de um ilustre desconhecido no Brasil, uma daquelas figuras de quem se ouve falar, da qual se tem alguma ideia, mas de quem se sabe praticamente nada Há várias maneira de se verificar isso. 1. É somente possível encontrar em catálogo hoje no país volumes da questionável Martin Claret e de editoras obscuras. 2. Também não há, por aqui, estudos monográficos disponíveis sobre o autor em livro. 3. Uma consulta ao banco de teses da Capes com as palavras-chave “Ralph Waldo Emerson” mostra apenas quatro trabalhos em que seu nome consta no título, nenhum dedicado a ele exclusivamente.. Some-se a isso, porém, que a obra de Emerson aparentemente envelheceu mal; várias de suas ideias centrais tornaram-se tão estranhas em nosso tempo, que necessitam de mediação para poderem minimamente falar ao presente. Uma introdução a Emerson poderia começar apontando para sua centralidade na literatura e cultura estadunidenses. Ela mostraria o papel do escritor como principal fonte teórica do transcendentalismo, uma versão norte-americana do romantismo, e que incluiu literatos tão dissimilares quanto Emily Dickinson, Henry David Thoreau e Margareth Fuller; enfatizaria que, em Emerson, Walt Whitman, o primeiro grande poeta moderno dos Estados Unidos, encontrou precioso apoio e inspiração; sublinharia que Emerson exerceu uma influência decisiva para uma importante veia da literatura norte-americana, que inclui Wallace Stevens, Robert Frost, Marianne Moore, Hart Crane, Charles Olson dentre outros; lembraria que foi igualmente uma referência incontornável para uma tradição filosófica estadunidense, que vai desde William James e George Santayana até Cornell West e Stanley Cavell; por fim, chamaria a atenção para o quanto a ideia emersoniana da autoconfiança (self-reliance) alimentou um tipo de crença no indivíduo que é marca registrada da cultura dos Estados Unidos, hoje exportada para todo o globo. Forçando um pouco a mão, é possível encontrar Emerson, via a desobediência civil de Thoreau, nos movimentos de contestação dos anos 60 e depois. Tais reivindicações de notoriedade e fama, no entanto, não casam com o espírito emersoniano, que aposta tudo no poder da experiência imediata, na abertura do sujeito para o mundo, e na liberdade de pensamento que é sua consequência. Nada mais distante da postura de Emerson do que a veneração da celebridade, o curvar-se diante daquilo que é simplesmente estabelecido, ou resultado da aprovação da maioria. É por isso que é necessário iniciar reconhecendo que o coração de seu pensamento está morto. Subjacente a todo o projeto emersoniano encontra-se uma imensa positividade, a afirmação do mundo em sua real potencialidade (não é à toa que Nietzsche o chamou de “uma alma irmã”): a perfeição é ser o que realmente se é. O lastro disso era a unidade fundamental do homem com a natureza, do mundo moral com o físico. O individualismo mais radical não significaria em absoluto atomismo e alienação, pois a alma do mundo e a de cada um comungariam Não é à toa que transcendentalismo encorajou experiências utópicas coletivas como a Brook Farm, um experimento de vida comunitária baseado em princípios cooperativistas, fundada pelo casal George e Sophia Ripley em 1841.. Embora Emerson tenha adotado diferentes posições políticas em sua vida, elas resultaram de sucessivas tentativas de conciliar tal credo monista com condições sociais dos EUA da época. Mas vejamos, nas próprias palavras do autor, como a máxima individuação e união com o todo implicam-se mutuamente. Primeiro a assertividade de cada um: Acreditar em seu próprio pensamento, acreditar que aquilo que é verdadeiro para você em seu coração privado é verdadeiro para todos os homens – eis o gênio. Fale sua convicção latente e ela será o sentido universal; pois o mais íntimo no devido tempo torna-se o mais externo, – e o nosso primeiro pensamento nos é transmitido de volta pelas trombetas do Último Julgamento. Por mais familiar que seja a voz da mente para cada um, o mérito maior que atribuímos a Moisés, Platão e Milton é não ter dado importância alguma para livros e tradições, ter falado, não o que os homens, mas o que eles mesmos pensavam. [...] Em toda obra de gênio reconhecemos nossos próprios pensamentos, refletidos: eles nos retornam com certa majestade alienada. “To believe your own thought, to believe that what is true for you in your private heart is true for all men, – that is genius. Speak your latent conviction, and it shall be the universal sense; for the inmost in due time becomes the outmost, – and our first thought is rendered back to us by the trumpets of the Last Judgment Familiar as the voice of the mind is to each, the highest merit we ascribe to Moses, Plato, and Milton is, that they set at naught books and traditions, and spoke not what men but what they thought. [...] In every work of genius we recognize our own reflected thoughts: they come back to us with a certain alienated majesty.” “Self-Reliance”, in Emerson, Essays and Lectures. Ed. Joel Porte. New York: Library of America, 1981, p. 239. Agora, a ideia do todo: O Crítico Supremo dos erros do passado e do presente, e o profeta único do que deve ser, é essa grande natureza sobre a qual repousamos, assim como a terra jaz nos suaves braços da atmosfera; essa Unidade, essa Supra-Alma, dentro da qual o ser de cada homem particular está contido e feito um todo outro; esse coração comum, do qual toda conversa sincera é a adoração, ao qual toda ação correta é submissão; essa realidade sobrepujante que confunde nossos truques e talentos, e compele a cada um a passar pelo que é, e a falar a partir de seu caráter, e não de sua língua, e que sempre tende a passar para nosso pensamento e mão, e tornar-se sabedoria, e virtude, e poder, e beleza. Vivemos em sucessão, em divisão, em partes, em partículas. Enquanto isso dentro do homem está a alma do todo; o sábio silêncio; a beleza universal, para a qual cada parte e partícula encontra-se igualmente relacionada; o eterno UM. E esse poder profundo no qual existimos, e cuja beatitude nos é toda acessível, é não apenas autossuficiente e perfeita a toda hora, mas o ato de ver e a coisa vista, o observador e o espetáculo, sujeito e objeto, são um. “The Supreme Critic on the errors of the past and the present, and the only prophet of that which must be, is that great nature in which we rest, as the earth lies in the soft arms of the atmosphere; that Unity, that Over-soul, within which every man’s particular being is contained and made one with all other; that common heart, of which all sincere conversation is the worship, to which all right action is submission; that overpowering reality which confutes our tricks and talents, and constrains every one to pass for what he is, and to speak from his character, and not from his tongue, and which evermore tends to pass into our thought and hand, and become wisdom, and virtue, and power, and beauty. We live in succession, in division, in parts, in particles. Meantime within man is the soul of the whole; the wise silence; the universal beauty, to which every part and particle is equally related; the eternal ONE. And this deep power in which we exist, and whose beatitude is all accessible to us, is not only self-sufficing and perfect in every hour, but the act of seeing and the thing seen, the seer and the spectacle, the subject and the object, are one.” “The Over-Soul”, in Emerson, op. cit. p. 385-386. Ora, se essa visão otimista e esperançosa foi vítima de crítica já no século dezenove, o vinte parece uma sucessão ininterrupta de provas de seu contrário. Como é possível falar de uma natureza humana depois de tantos genocídios, dos quais Auschwitz é somente o mais emblemático? Como pensar na força criadora do Todo em sua unidade mística com o sujeito, quando o imaginar da destruição e da dominação mostrou-se tão imensamente mais forte? Gostaria de sugerir que, para se ler Emerson no século vinte e um é necessário lidar com a supra-alma como uma ficção, com sua filosofia como literatura. Desprovida da necessidade de ser verdade, ela passa a poder ser vista sob diversos ângulos, e a prestar-se a outros usos. Como sintoma, testemunha o advento da modernização nos EUA, a formação de grandes cidades e o anonimato e isolamento que geram; como artifício retórico, é aquilo que permite a Emerson carregar a sua prosa, enchendo-a de veemência e persuasão, o que ajuda a explicar o prazer de sua leitura; como objetivo a ser alcançado, auxilia na construção de uma identidade estadunidense e no desenvolvimento de uma cultura nativa, sem complexo de inferioridade em relação à Europa; como horizonte utópico, pode nortear uma prática política de não-conformismo (como a desobediência civil, de Thoreau); por fim, como parâmetro crítico, faz a literatura surgir como um objeto excepcional. *** Dificilmente um autor forte como Emerson escreve sobre outros escritores de modo objetivo ou mesmo isento; ao abordar as mais diversas obras, submete-as ao crivo de sua própria forma de pensamento. Em certa medida, no gesto de comentar alguém, estará sempre falando de si, utilizando o texto em questão para expor, ainda que indiretamente, sua própria visão de mundo. Para ser emersoniano: isso não se dá devido a algum cálculo, uma estratégia sub-reptícia em mais um capítulo da política cultural de imagens Como o crítico que viu no silêncio de Raduan Nassar uma artimanha, a da construção da imagem pública do ermitão. Nada mais anti-emersoniano do que essa preocupação com o olhar do outro.; pelo contrário, deve ser visto como um exercício natural de apropriação, uma expansão do sujeito, que estaria sendo infiel a si mesmo caso agisse de outro modo (Whitman levará tal dilatação do “eu” a seu limite máximo). E há muito o que ver na crítica de Emerson. Em primeiro lugar, um tipo de composição que, na contramão do romantismo, tem na retórica o seu cerne. De formação religiosa, oriundo de uma família de várias gerações de pastores, Emerson encharca a cadência de suas frases com a verve do púlpito. Mesmo em gêneros intimistas como o diário e a carta é possível perceber que a escrita expressiva do “eu” é regida pela atenção ao destinatário (mesmo que este seja o próprio autor), visando a persuasão. Não se trata de obedecer ao olhar do outro, mas pelo contrário mobilizá-lo, interpelá-lo enquanto parece descrever obras alheias. De um ponto de vista histórico, é admirável o impulso heroico-democrático de Emerson, que veementemente rejeita qualquer hierarquia representacional, acolhendo a voz popular sem qualquer indício de populismo. Eis, por exemplo, o que diz do poeta escocês Robert Burns (1759-1796): “He had that secret of genius to draw from the bottom of society the strength of its speech, and astonish the ears of polite society with these artless words, better than art, and filtered of all offence through his beauty. [...] Burns knew how to take from fairs and gypsies, blacksmiths and drovers, the speech of the market and street and clothe it with melody.” (p. 189) Com isso, não apenas sepulta a antiga ideia de adequação da linguagem à camada social (elevada e trágica para os nobres, baixa e cômica para o povo), Erich Auerbach, descreve o longo processo de dissolução desse decoro representativo em Mímesis. Trad. Georg B. Sperber. 5a. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015, [1946]. como também abre espaço para o surgimento de uma voz literária norte-americana desprovida de qualquer sentimento de inferioridade. Some-se a isso, que a poética crítica emersoniana não foge diante do mutável e transitório. A história é bem-vinda, pois a natureza, como um organismo, passa por diversas fases, deixando o antigo e sem vida para trás. O passado não tem prerrogativa alguma sobre o presente, e deve ser impiedosamente absorvido. Isso vale não somente para a arte, mas para o próprio pensamento: Each new mind we approah seems to require an abdication of all our past and present possessions. A new doctrine seems at first a subversion of all our opinions, tastes, and manner of living. Such has Swedenborg, such has Kant, such has Coleridge, such has Hegel or his interpreter Cousin seems to many young men in this country. Take thankfully and heartily all they can give. Exhaust them, wrestle with them, let them not go until their blessing be won, and after a short season the dismay will be overpast, the excess of influence withdrawn, and they will be no longer an alarming meteor, but one more bright star shining serenely in you heaven and blending its light with all your day. (p. 68) Na filosofia emersoniana, o Poeta é uma peça central. Ele é capaz de captar a voz da coletividade, de falar por todos, ao mesmo tempo em que atua como ponto de contato entre o mundo físico-natural e o moral-humano. Tal permeabilidade é aquilo que, para Emerson, faz com que a literatura possa ser um veículo de verdade, além, é claro, de fonte de prazer. Isso leva a uma última, e decisiva questão: a reivindicação de excepcionalidade para a arte. Nos textos a seguir é impossível não perceber o extremo rigor exigido, a imensa demanda feita às obras literárias; poucas são as que estão à altura de si mesmas. Sempre parece haver algum senão, e nem Shakespeare, autor máximo para Emerson, é simplesmente perfeito. Eis que surge então uma imagem profícua para o presente: extirpado o lastro fornecido pela comunhão com a natureza, o ardor da escrita, a aspiração de liberdade, e a configuração da literatura como quase de outro mundo falam alto ao nosso tempo, talvez mais do que no do autor. 6