Resenhas
Sexualidades, nacionalidades e escolarização
Sexualidades e institución
escolar
EPSTEIN, D.; Johnson, R.
Madrid: Paideia; Ed. Morata, 2000. 232 p.
O que diferencia um livro de tantos outros
que lemos e nos leva a nominá-lo como um
livro especial? Essa pergunta talvez não tenha
sentido quando pensamos nas leituras que
fazemos com um prazer “que se constrói aos
poucos, à medida que se liga a palavra à frase,
ao que é dito”, leituras nas quais a história ou o
conteúdo, em si, quase que passam para o
segundo plano, já que passa a importar muito
mais “a maneira como esse narrado vai sendo
desenvolvido, num crescendo, tomando o leitor
por inteiro, prazer desfrutado pouco a pouco
até o prazer final, supremo deleite que se sente
ao fechar o livro e querer mais...”1
Mas faz todo o sentido tentar responder a
isso quando se trata de resenhar um livro,
exatamente porque temos, então, de fazer uma
análise e uma indicação -empreendimentos que
envolvem refletir sobre e narrar a nossa própria
experiência de leitor ou leitora. Corremos alguns
riscos nesse processo porque o modo como o
fazemos atravessa e demarca outras relações,
ainda inscritas no futuro, com o texto em pauta.
Pode-se argumentar que essa é, exatamente, a
finalidade de uma resenha e, portanto, a
atribuição do/a resenhista, de forma que resolvi
correr esses riscos pela primeira vez, para falar de
um livro que considero especial: Schooling
Sexualities, o livro de Debbie Epstein e Richard
Johnson, editado pela Open University Press em
1998 e que foi publicado em espanhol no ano
passado (2000), por iniciativa da Fundación
Paideia, no âmbito da Colección Educación
Crítica, dirigida por Jurjo Torres Santomé.
Não foi propriamente pelo tipo de prazer
acima referido, mas como doutoranda em fase
final de curso que fiz minha primeira leitura deste
livro de Epstein e Johnson, há quase três anos.
Estava envolvida com a escrita de minha tese e
essa leitura me foi apontada como um
“exemplo” de pesquisa pós-estruturalista, na qual
a construção de um referencial teóricometodológico complexo se fazia por dentro da
análise empírica, numa investigação que
envolvia procedimentos e dados extraídos de
fontes de natureza e amplitude bastante diversas.
E a autora e o autor faziam isso utilizando um
estilo de escrita que, com essas características
(ou apesar delas), conseguia reunir um (para
mim) conjunto expressivo de qualidades:
consistência,
acessibilidade,
clareza,
simplicidade e rigor.
Naquele momento, portanto, não me
aproximei do livro em função do tema nele
discutido, ou buscando a “aprendizagem” dos
referenciais teóricos e dos conceitos-chave ali
adotados. O que eu buscava, com a leitura,
era visualizar um jeito de analisar e articular dados
e conceitos e de narrar esse processo de
pesquisar. Um jeito que envolvesse: operar com
conceitos mais do que discorrer sobre eles;
possibilidades de fazer leituras significativas de
aspectos naturalizados ou banalizados do
cotidiano; construir um texto que expressasse a
conflitualidade e multidimensionalidade do
social e da cultura, explorando os efeitos da
articulação de gênero com outros marcadores
sociais tais como sexualidade e nacionalidade;
compor uma análise na qual se conectassem,
de forma visível, o olhar “interessado” reivindicado
pelos Estudos Feministas e Culturais com os efeitos
da virada lingüística, operada pelo pósestruturalismo de Foucault e Derrida.
ESTUDOS FEMINISTAS
609
2/2001
Não era pouca coisa que eu desejava
saberxencontrar ali! No entanto, encontrei muito
de tudo isso nesse livro, naquela ocasião. Isso me
salta aos olhos cada vez que me deparo com a
quantidade de marcações coloridas e com o teor
das anotações com as quais enchi as margens e
o corpo do texto nessa primeira leitura e sempre
que revejo o texto com que narro a trajetória
teórico-analítica que empreendi por dentro de
minha própria investigação2 .
Essa é, então, uma das importantes razões
pelas quais recomendo hoje, já como professora
de dois programas de pós-graduação na UFRGS,
a leitura do livro a estudantes e a minhas/meus
orientandas/os, quando estas/es se deparam
com o desafio de elaborar seus projetos e
dissertações ou teses dentro destas abordagens
teórico-metodológicas. O livro pode,
efetivamente, ser explorado como um bom
exemplo de pesquisa nestes campos teóricos.
Explorá-lo sob esta ótica, no entanto, exige do
leitor ou da leitora pesquisadora uma certa
intimidade com teorizações feministas e culturais
contemporâneas e com a obra de Michel
Foucault. Exatamente porque opera com estes
referenciais teóricos para analisar uma
problemática específica, sem a pretensão de
discuti-los exaustivamente, o texto de Epstein e
Johnson não deve ser buscado com o objetivo
-se nestes campos de estudo.
de introduzir
introduzir-se
Mas o livro pode e deve ser lido ainda por
outras razões, sobretudo por aquelas e aqueles
que tratam de discutir e problematizar as
complexas e conflituosas relações que se
estabelecem entre sexualidade, culturas
nacionais e instituição escolar nas sociedades
ocidentais contemporâneas.
Egressos do Departamento de Estudos
Culturais de Birminghan Inglaterra – onde este
campo de estudos de estruturou e consolidou
a partir dos anos 70, Debbie Epstein e Richard
Johnson são estudiosos culturais e feministas
que contabilizam uma extensa produção
intelectual. Debbie trabalha como professora
e orientadora na Faculdade de Educação da
Universidade de Londres e Richard Johnson na
U n i v e r s i d a d e Tr e n t d e N o t h i n g h a m . E m
consonância com as perspectivas teóricas e
políticas que assumem, a autora e o autor se
inscrevem dentro de sua investigação e, ao
fazê-lo, colocam em plano crítico processos
particularmente significativos de sua vida e de
sua formação em relação à sexualidade,
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2º SEMESTRE 2001
gênero, raça e nacionalidade. Para Debbie
la marginación y la estigmatización de
determinados grupos há sido tema de sus
estudios desde donde le alcanza el
recuerdo. Su origen y educación judios, de
sudafricana opuesta al segregacionismo,
partícipe de una tradición de socialismo
judio, fueran la clave de la temprana
formación de su identidad. [...] quando se
declaró lesbiana publicamente [...] se hizo,
tal vez, inevitable que más pronto o más
tarde su trabajo se centrara en los temas
de sexualidad y escuela (p. 20).
Já Richard Johnson refere que suas diversas
identidades não marcadas (homem branco, de
classe média e heterossexual) contribuíram para
que a sexualidade não se constituísse como uma
clave tan evidente de su vida personal. [..]
las preocupaciones por la sexualidad y la
escuela surgieron en parte de las
experiencias de sus intimos amigos
homossexuales y lesbianas. La influencia de
sus amigos y colegas feministas le llevaron
también a hacerse preguntas sobre la
heterosexualidad (p. 20).
É, pois, acerca das implicações das políticas
educacionais inglesas (fortemente marcadas
pelo tatcherismo, pelo neoliberalismo e pelo novo
trabalhismo dos anos 90) e de sua veiculação e
discussão na mídia, sobre o processo de
escolarização e sobre a produção de
identidades sexuais e de gênero que se efetiva
neste
espaço,
que
trata
o
livro.
Fundamentalmente, a autora e o autor procuram
explorar as relações entre sexualidades e escola,
nacionalidades e sexualidades e nacionalidades
e escola, e a discussão acerca destas relações
é apresentada, no livro, em duas grandes partes.
A primeira parte, intitulada Las sexualidades
en el ámbito público, analisa os processos pelos
quais a política, o governo formal e os meios de
comunicação produzem um determinado tipo de
“público nacional” que parece e pretende ser
universal. Nesta parte se explora e se exercita,
portanto, de forma ampla e consistente, uma das
grandes contribuições dos Estudos Culturais para
o campo da Educação: as noções de que
identidades são produzidas em múltiplas e
variadas instâncias do social e da cultura e de
que os meios de comunicação, em particular (e
a mídia em geral), se constituem como um locus
expressivo dessa produção, nas sociedades
contemporâneas. Estas noções remetem
educadores e educadoras para o conceito de
pedagogias culturais, o qual implica o
reconhecimento e a problematização da
importância educacional e cultural da imagem,
das novas tecnologias da informação, enfim, da
relação entre escolarização e cultura da mídia
nos processos de organização das relações
sociais e na produção das subjetividades.
Remetem também para um importante
deslocamento no âmbito da teorização
educacional, que desvincula e projeta o currículo
para além da escola, e isso impõe uma
reconceptualização das próprias noções de
escola, de currículo, de conhecimento escolar
válido, do ser professor e do ser aluno...
A segunda parte do livro, intitulada Las
sexualidades en la escuela, se fixa, como referem
os próprios autores, “com minuciosidad y de
forma analítica en la producción de las
identidades sexuales en este nivel escolar” (p.23).
Analisa-se, aí, com base em diários de campo e
depoimentos de professores/as e estudantes, não
apenas o currículo sexual formal, ou seja, as
propostas de educação sexual mas, sobretudo,
as culturas sexuais de docentes e estudantes, que
atravessam e constituem a dinâmica escolar, em
especial no que se refere aos mecanismos e às
estratégias de controle, resistência e
disciplinarização que aí se efetivam. O objetivo
desta análise é entender, fundamentalmente,
como é vivida e, por extensão, como poderia ser
vivida a escolarização por docentes e estudantes
gays e lésbicas. Isso, na perspectiva da autora e
do autor, permite pensar em como “se relacionan
sus experiencias com las estruturas más generales
de la desiguald y, en particular, sobre la forma
en que la heterosexualidad obligatoria es una
matriz organizativa destas” (p. 113). Em síntese,
trata-se, para eles, de buscar compreender as
complexas e múltiplas facetas dos processos
pelos quais sexualidade e escola se interferem
mutuamente.
Em seu conjunto, esta abordagem das
relações entre sexualidade e escolarização pode
ser bastante promissora para aqueles e aquelas
que, no Brasil, se envolvem com esta discussão,
em um contexto onde todos se movimentam com
muitas cautelas e grandes receios. Pensar as
práticas de orientação ou educação sexual, na
escola, ainda está reduzido a um exercício
apoiado, muito freqüentemente, em um
biologicismo estreito que naturaliza a sexualidade
e hierarquiza sujeitos e grupos em função de suas
práticas sexuais e cujos objetivos explícitos se
vinculam à promoção da saúde reprodutiva e à
prevenção de gravidez na adolescência e de
DST/AIDS. Nessa perspectiva, Debbie Epstein e
Richard Johnson, quando descrevem
mecanismos e estratégias que permitem
entender como a sexualidade é social e
culturalmente produzida, em meio a múltiplas e
complexas relações de poder que envolvem e
conformam os processos de escolarização, nos
possibilitam, com o seu estudo, repensar a nossa
prática e construir outras abordagens para essas
e muitas outras questões.
Enfim, um livro que vale a pena ser lido por
educadoras/es e pesquisadoras/es que desejam
exercitar aquilo que Foucault 3 chamou de
separar-se de si mesmo: separar-se, para olhar
de fora, como se não as conhecêssemos, teorias
e práticas que nos constituem tão profundamente
que nem as percebemos mais como aprendidas,
ou ainda, como sugere a metáfora
freqüentemente empregada por estudiosos
culturais, incorporar o olhar estrangeiro que, por
ser estrangeiro, ainda é capaz de exercitar o
estranhamento, a perplexidade e a descoberta
diante do próprio saber/fazer...
1
PAIXÃO, S. P. O prazer da aprendizagem. In: LISPECTOR,
C. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 17. ed.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. p. 5.
2
MEYER, D. Identidades traduzidas: cultura e docência
teuto-brasileiro-evangélica no Rio Grande do Sul. Santa
Cruz do Sul/RS: EDUNISC; Sinodal, 2000.
3
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos
prazeres. 8. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
DAGMAR ESTERMANN MEYER
ESTUDOS FEMINISTAS
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Um olhar feminino sobre o anarquismo?1
Entre a história e a liberdade:
Luce Fabbri e o anarquismo
contemporâneo
RAGO, Margareth.
São Paulo: UNESP, 2001. 368 p.
Historiadora conhecida do público
brasileiro, Margareth Rago tem publicado
trabalhos que focalizam a História das Mulheres
e das Relações de Gênero, dentro de uma
perspectiva foucaultiana e anarquista. Neste seu
último livro, Entre a História e a Liberdade: Luce
Fabbri e o anarquismo contemporâneo, a autora
utiliza eses mesmos referenciais para analisar a
vida e a obra de uma intelectual anarquista: Luce
Fabbri.
Através de uma escrita ágil e atraente, a
autora conta-nos, em 341 páginas, os 92 anos
de vida desta pensadora italiana. A maneira
como mistura a história da vida privada com a
obra intelectual da anarquista leva o leitor a se
enternecer, a amar e a viver, juntamente com a
autora, as experiências de vida e reflexões de
Luce Fabbri.
A partir das análises de autores como Michel
Foucault e Hannah Arendt, a autora compara a
vivência, os ditos e os escritos de Luce Fabbri,
mesmo que, por vezes, a própria Luce não se
reconheça – como a autora destaca – nestas
análises, aproximações e comparações que faz
da obra da anarquista italiana com a destes
autores.
Passado e presente entrecruzam-se nesta
obra. O resultado não é uma biografia, mas o
desenho de uma vida, construída como obra de
arte. Neste desenho, o pensamento anarquista
constitui a paisagem: o suporte é a memória. Esta
é, o tempo todo, tematizada e questionada.
O livro divide-se em cinco capítulos, os quais
reproduzem um percurso temporal: do
nascimento e da vida em Bolonha (Itália) à
adolescência e à juventude vividas em diversos
pontos do país. Simultaneamente, ficamos
conhecendo o momento em que Luce descobriuse anarquista e o cotidiano do surgimento do
ANO 9
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2º SEMESTRE 2001
fascismo na Itália. Este é um dos pontos fortes da
obra. As tensões do surgimento do fascismo são
vividas “por dentro”, e a narrativa de Luce é
instigante nesta parte.
A fuga da Itália e o exílio no Uruguai é um
outro momento forte do trabalho, no qual se
misturam emoções, história política e análise
teórica. A autora prende, aí, o leitor, envolvendoo nas tramas de uma história quase épica. O
Uruguai, descrito por Luce como lugar de
liberdade e acolhida, é pintado com as cores
da admiração, quase no limite da idealização,
especialmente quando se refere ao presidente
que governava este país àquela época: José
Batlle & Ordoñez.
Dois outros personagens, além de Luce, são
muito focalizados na obra – certamente pela
força da narradora: o pai de Luce, Luigi Fabbri,
e o anarquista Errico Malatesta. A obra destes é
discutida em meio à narrativa das lutas na Itália,
da fuga da família Fabbri, passando antes por
Genebra e Paris e, finalmente, indo para o exílio
na América do Sul.
Outro ponto de destaque da obra é a
narrativa da Guerra Civil Espanhola, vivida por
Luce a partir do exílio no Uruguai. Esta guerra é
pensada como uma rica experiência anarquista.
A leitura que Luce faz, morando na América,
através das informações que chegam pelos
jornais, panfletos, cartas, informantes, é
impressionante. A Espanha desse tempo foi, para
Luce e para os demais anarquistas da época,
“uma grande esperança que se abre no horizonte
e, repentinamente, uma enorme frustação”.
Naqueles anos, Luce e os companheiros
pareciam ver, aí, todos os ideais anarquistas se
concretizarem: “vivemos mais na Espanha do que
aqui”. Eles organizaram comitês de ajuda,
divulgaram informações, atuaram em várias
frentes de propaganda. Muitos partiram para
lutar. Depois veio a dolorosa derrota pela falange
franquista. Luce salienta, especialmente, os
companheiros anarquistas mortos pelos
comunistas.
No balanço que o livro faz sobre o
anarquismo, são dissecadas as várias tendências
que o formam, os debates, as discussões do
momento atual e do passado. São muito ricas as
análises que a autora apresenta da obra da
intelectual anarquista. O socialismo libertário é
apresentado como a única utopia que “não foi
derrotada, no campo teórico, pelos
acontecimentos”.
O anarquismo de Luce dá continuidade ao
de Errico Malatesta; porém, diferente deste,
considera importantes as contribuições trazidas
pelo conhecimento científico sobre o homem e
a sociedade. Para Luce, “a idéia de liberdade
se amplia à medida que progride a ciência, a
qual produz uma liberdade sempre maior”.
Desconsiderando as tendências anárquicas
que partem de leis históricas, ou que constroem
utopias e, ainda, as que negam o mundo
presente, Luce afirma que a anarquia não tem
um programa delimitado, é uma concepção.
Mais do que “um ponto bem fixo, ao qual se deva
chegar”, a anarquia é “um caminho a seguir”.
Luce critica todo irracionalismo considerado
como predomínio do instinto sobre a razão e,
conseqüentemente, opressão dos semelhantes,
pois, de acordo com ela, os homens têm o instinto
do poder. Critica também os anarquistas
terroristas, os “expropriadores individualistas,
considerando-os danosos para o movimento
libertário como um todo. A vida de Luce mostra
que o anarquismo pode ser praticado de
diferentes maneiras. A autora mostra como a
pensadora constrói sua própria vida – espaço de
atuação pública e privada – como uma
experiência anarquista. Assim, antes de uma luta
política, trata-se “de uma questão ética, que
envolve a produção da subjetividade”. Neste
sentido, o caminho é mais importante do que a
finalidade.
Na narrativa de Luce, as reflexões sobre o
socialismo, a linguagem, a cultura, a liberdade
têm um peso maior do que a narrativa da vida
privada: a cronologia é marcada pela vida
política. É assim que, entremeando estas
discussões, ficamos sabendo de seu casamento,
do nascimento da filha, da morte do pai e da
mãe, do marido. A autora argumenta que não
encontrou, em Luce, o sentimento burguês de
intimidade, e atribui isso à sua timidez em falar
do privado.
Esta obra traz, assim, um retrospecto muito
importante do anarquismo contemporâneo;
mostra que não é possível pensá-lo sem as
contribuições de Luce Fabbri, mesmo que a
autora, por vezes, demonstre um grande fascínio
pela pensadora e afirme estar oferecendo um
“olhar feminino” sobre o anarquismo. No Brasil e
na América Latina, a história do anarquismo tem
sido contada à luz das experiências masculinas.
É, então, o envolvimento das mulheres que torna
o passado singular.
Luce apresenta uma narrativa estruturada
racionalmente, muito mais pública do que
privada, e reconhece ter tido dificuldades, até
1933, de aceitar as lutas feministas –
consideradas por ela como coisas da burguesia.
Na época das entrevistas que concedeu à
autora, ao referir-se às mulheres, dizia que elas
“podem revolucionar o mundo se não imitarem
os homens, já que são portadoras de uma cultura
própria, de outras formas de percepção, de
organização e de elaboração prática, estética
e mental”.
Negando que isso possa ser resultado de
uma essência biológica, diz que, até os dias
atuais, a maneira como homens e mulheres são
construídos diferenciadamente torna as mulheres
inexperientes para serem guerreiras,
comandantes e generais, no entanto muito mais
aptas para organizar a vida social. Esta posição,
defendida também pela autora, aproxima-se
daquela reivindicada pelo “feminismo da
diferença”, que, entretanto, a própria narrativa
da vida da pensadora anarquista parece negar.
Luce não viveu, em sua época, os
constrangimentos de seu gênero. Teve acesso a
lugares fechados para as mulheres comuns e foi
poupada – pela mãe e, depois, pelo marido –
das tarefas domésticas comumente atribuídas às
mulheres. Talvez por isso não reconheça – e isto
é explicitado no livro – que o fato de ser uma
mulher tenha a importância que a autora
pretende atribuir-lhe.
São, portanto, provocantes as questões que
este livro apresenta: o anarquismo como
combate às diferentes formas de autoritarismo;
o feminino como uma outra narrativa histórica, e
também como uma proposta de organização de
vida.
1
Esta resenha foi publicada em francês pela revista CLIO
– Histoire, Femmes et Sociétes.
JOANA MARIA PEDRO
ESTUDOS FEMINISTAS
613
2/2001
Discutindo Identidades: multiplicidades
políticas, culturais e de gênero
Identidades: estudos de cultura
e poder
FELDMAN-BIANCO, Bela; CAPINHA,
Graça (Orgs.).
São Paulo: Hucitec, 2000. 176 p.
A análise das fronteiras das identidades e
seus embates dentro de uma produção
contemporânea de políticas culturais e das
identidades como políticas, tendo por contexto
as reconfigurações do capitalismo global e seus
embricamentos com política e cultura, são
algumas das questões abordadas em
Identidades: estudos de cultura e poder.
Organizada por Bela Feldman-Bianco e Graça
Capinha, esta obra reúne cinco ensaios de
autores de Portugal, Estados Unidos e Brasil. Em
sua maioria, estes textos foram preparados para
apresentação na mesa-redonda “Globalização,
Estado e Embates de Identidades”, na Iª
Conferência Internacional sobre Identidade
Étnica e Relações Raciais da Reunião Bienal da
Associação Brasileira de Antropologia, realizada
em Salvador em abril de 1996. Foram escolhidas
pesquisas sobre “migrações internacionais e/ou
raça, que pudessem proporcionar subsídios
comparativos para se examinar criticamente: as
(re)imaginações de nação numa conjuntura
marcada por redefinições do papel dos Estadosnação; a emergência de novas políticas
nacionais de exclusão ou inclusão de população
desterritorializada; e as negociações,
contradições, conflitos e embates de identidade
em situações de transnacionalidade.”1 Apesar de
os ensaios reunidos nesta obra não estarem
centrados nas identidade de gênero(mesmo
trazendo os artigos de Mary Castro, que aborda
as identidades no feminismo, e de Ângela Gillian,
que a certa altura faz relações entre gênero e
etnia), suas discussões abrem-se para as diversas
categorias identitárias, permitindo que sejam
repensados e relidos velhos pressupostos a partir
da noção da redefinição de espaços, não só do
ANO 9
614
2º SEMESTRE 2001
Estado-nação transnacionalizado, mas também
dos indivíduos. Nesse sentido, o não-lugar, a
política de cotas e a dignidade humana, assim
como outros pontos de discussão, são de grande
interesse para os estudos feministas e nos
permitem repensar as inclusões, e suas
paradoxais exclusões, não apenas das
identidades étnicas, mas também das
identidades ou não-identidades de gênero.
Em “Por uma concepção multicultural de
direitos humanos”, Boaventura Sousa Santos
procura identificar as condições em que os
direitos humanos podem ser postos a serviço de
uma política progressista e emancipatória. Nesse
sentido, nos leva à discussão das tensões
dialéticas que atravessam a modernidade
ocidental na atualidade. É a partir dessas tensões,
entre regulação social e emancipação social,
entre Estado e sociedade civil e entre Estadonação e globalização, que Sousa Santos tece
um quadro analítico que reforça o potencial de
emancipação da política dos direitos humanos,
tanto no que se refere à fragmentação política e
cultural quanto à globalização. Para tanto, Sousa
Santos procura uma especificação sobre o que
é, ou como se define, a globalização.
Entendendo-a como geralmente centrada numa
definição econômica, o autor privilegia, em sua
análise, um conceito de globalização voltado
para as dimensões sociais, políticas e culturais.
Acertadamente, o autor define que o que
denominamos “globalização” é, antes de tudo e
fundamentalmente, um termo que deve ser
usado no plural. O termo “globalizações” define,
segundo ele, a multiplicidade de relações sociais
que estão envolvidas em todo esse processo. A
partir deste ponto, elabora o conceito de que
globalização “é o processo pelo qual
determinada condição ou entidade local
estende a sua influência a todo o globo e, ao
fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar
como local outra condição social ou entidade
rival.”2 Assim, explica ele, aquilo a que chamamos
globalização é sempre a globalização bemsucedida de determinado localismo. Partindo do
fato de que o “globalizado” traz em si conceitos
hegemônicos de um “vencedor”, Sousa Santos
procura justificar uma política progressista de
direitos humanos com âmbito global e
legitimidade local. Para tanto, e tendo
consciência de que os direitos humanos não são
universais como artefato cultural, propõe um
diálogo intercultural sobre a dignidade humana.
Esse diálogo intercultural dar-se-ia, no entanto,
entre diferentes culturas, saberes e universos de
sentido. Assim, somente um diálogo intercultural
intermediado por uma hermenêutica diatópica
levaria a uma concepção mestiça de direitos
humanos, organizada como constelação de
sentidos locais. Por hermenêutica diatópica,
entenda-se a discussão dos pressupostos de
dignidade humana em suas diferentes formas
culturais, tendo em vista suas carências e lacunas,
numa busca do maior preenchimento possível de
sentidos do que seria, definiria ou permitiria uma
política multicultural de direitos humanos o mais
completa, compreendida e aceita possível. Os
direitos humanos, dessa forma organizados,
fariam sentido em diferentes culturas. Sousa
Santos nos leva numa viagem para além dos
interesses hegemônicos e dos orgulhos culturais
exacerbados. Utópico, seu ensaio tem o mérito
de nos levar a pensar as possibilidades de
maturidade do conceito de dignidade humana.
Já em “Laços de sangue: os fundamentos
raciais do Estado-nação transnacional”, Nina
Glick Schiller e Georges Fouron nos levam a
perceber as configurações políticas que diversos
países exportadores de emigrantes estão
tomando, revitalizando o nacionalismo diante de
uma economia global e redefinindo o conceito
de Estado-nação como transnacional. Os autores
tomam por exemplo e base de pesquisa o Haiti,
onde, segundo eles, o nacionalismo tornou-se
uma forma de identidade racial. Assim, como
outros Estados exportadores de emigrantes, os
haitianos definem a nacionalidade pela
descendência e não pela partilha da história
política comum, língua, cultura ou território.
Nação e raça, num contexto de migração
transnacional, acabam definindo a identidade
nacional. Esta definição do Haiti como Estado sem
fronteiras permite a existência do território haitiano
como espaço social que pode-se manter dentro
dos limites legais de outros Estados-nação.
Segundo os autores, é por conceberem a
nação com base na raça e no sangue que, tanto
os emigrantes quanto os que permanecem nos
seus países, como os dirigentes políticos dos
países exportadores de imigrantes, criam
ideologias de um Estado-nação transnacional. Os
laços de sangue unem todos os haitianos, sendo
constantemente renovados pelas condições que
enfrentam dentro e fora do país. Como a
identidade se dá nas fronteiras, no embate
cultural, a construção social da cor branca nos
Estados Unidos, país receptor dos haitianos
analisados, reforça e reproduz os conceitos
haitianos de raça como nação. Pautar-se no
sangue ou na raça para legitimar nacionalismos
é, segundo penso, uma postura delicada e
desconfortável. Fazer uso de ideologias e
conceitos que historicamente foram e são usados
como pontos legitimadores de discriminação e
preconceito é, no mínimo, colocar-se ao sabor
do vento. E se ele soprar para o lado contrário
das posições desejadas, poderemos retomar
subposições. Além disso, como mostram os
autores, os haitianos que vivem nos Estados Unidos
acabam não se identificando com outros grupos,
pois ser haitiano, acima de tudo, é o que os
define.
Para além da raça e do sangue, a
etnicidade permite muito mais mobilidade aos
indivíduos. E, como sugerem os autores, para
podermos reagir à “nova ordem mundial”,
devemos agir coletivamente, indo além dos
limites ditados por sangue ou nação.
Assim como Nina Schiller e George Fouron,
Ângela Gillian apresenta uma discussão sobre a
atual reconstrução social do conceito de raça
no Brasil e nos Estados Unidos, partindo de uma
reflexão sobre as formas de erosão do princípio
da igualdade resultantes da dinâmica de
globalização econômica.
Em seu ensaio “Globalização, identidade e
os ataques à igualdade nos Estados Unidos:
esboço de uma perspectiva para o Brasil”, Gillian
aponta que as tensões que atravessam a questão
da identidade e, sobretudo, a identidade racial,
tanto na sociedade estadunidense quanto na
brasileira, têm por sintoma as diferentes
reformulações de que tem vindo a ser sujeito o
princípio da ação afirmativa na luta política dos
anos 90. A ação afirmativa como princípio
assenta no Movimento pelos Direitos Cívicos e
na Lei dos Direitos Cívicos de 1964 e visava
eliminar o desequilíbrio entre os sexos e a
discriminação racial no local de trabalho e na
escola nos Estados Unidos. Era um instrumento
para auxiliar a eliminar os preconceitos raciais,
de sexo e contra grupos minoritários em geral.
No entanto, o que Gillian demonstra é que a
lógica de mercado assumiu o “politicamente
correto”, deturpando o discurso da luta contra o
racismo e a opressão sexual e de classe. Dentro
ESTUDOS FEMINISTAS
615
2/2001
de uma política de que “todos são iguais sem
distinção”, eliminam-se e privatizam-se os
programas sociais de ajuda aos pobres ou
reorganiza-se a política de cotas nas
universidades.
No Brasil, a ação afirmativa é entendida
como sistema de cotas impostas, identificadas
como discriminação invertida ou, pelos
simpatizantes, discriminação positiva. Enquanto
nos Estados Unidos a ação afirmativa está quase
destruída pelas políticas econômicas que
promovem a privatização, no Brasil tem sido
proposta pelos setores que apóiam o
neoliberalismo. No Brasil, segundo Gillian, esse
programa se coloca como um paliativo
imperfeito e problemático que é oferecido pelo
Estado-nação. Trazendo ao lume as identidades
étnicas e suas relações e associações com as
identidades de gênero, Ângela Gillian discute a
persistência, na atualidade, de conceitos raciais
e de classe que exprimem preconceitos e
pressupostos de “miscigenação”, historicamente
ligados, por Gilberto Freyre, à formação racial do
Brasil no período colonial. Segundo Ângela Gillian,
a narrativa sexual, vista em Gilberto Freyre,
persiste no padrão histórico da mistura racial.
Assim, definir-se pela pele “morena”, “mulata” ou
“negra”, hoje, traz uma questão de debate sobre
militância, subalternidade ou servilismo sexual.
Nesse contexto de sexualidade racial
hierarquizada, “há uma erotização da
desigualdade estrutural entre os homens da elite
e as mulheres subalternas que sobrevive”. 3
Considerando historicamente a violência racial
e sexual como pináculos de uma cultura social,
feitorial e hierárquica, que sobrevive no Brasil,
Ângela Gillian nos leva a pensar as formas de se
negar a ser “objeto”, se negar a ser transformado
em “mercadoria descartável”, diante das
possíveis disputas raciais, étnicas ou de gênero
fomentadas por políticas econômicas de
mercados globalizados. Segundo ela, o processo
de construção da identidade, para negros e
mulheres, está na luta pela cidadania plena, no
esforço pelo reconhecimento da pluralidade e
na legitimação do direito e exercício da
liberdade. Tanto no Brasil quanto nos Estados
Unidos, há a incapacidade das elites de perceber
o racismo na perspectiva daqueles que o sofrem,
o que acarreta políticas sociais que aprisionam
os indivíduos em malhas restritoras de raça, classe
e diferença sexual. Negar as diferenças é,
segundo percebo, uma forma de tornar invisíveis
e mascarados os preconceitos e discriminações
ANO 9
616
2º SEMESTRE 2001
sociais. Políticas que privilegiam essa posição
tencionam a supressão do indivíduo, numa lógica
de mercado sabotadora de potencialidades
pessoais.
Acompanhando as discussões sobre
identidades, Graça Capinha, em seu ensaio “A
poesia dos emigrantes portugueses no Brasil:
ficções críveis no campo da(s) identidade(s)”,
analisa poemas escritos por emigrantes
por tugueses no Brasil, procurando as
ambigüidades e contradições de identidades
que se dão no confronto entre inclusão e
exclusão, assimilação e resistência, dominante e
dominado, num processo de diferenciação entre
o “nós”e o “eles”, colonizador e colonizado. Dessa
forma, a identidade portuguesa articula-se nas
fronteiras étnicas, num espaço materializado pela
língua escrita, sob a forma de poemas.
Reforçando um passado em comum em
detrimento do colonialismo, falando ora de
irmandade, ora de identidade luso-brasileira,
esses imigrantes tecem estratégias de
sobrevivência que os jogam entre o desejo de
assimilação e a resistência cultural. Essas
diferentes perspectivas variam conforme o “lugar”
de onde falam: “tornou-se claro, não só nas
referências à questão da discriminação nas
entrevistas e poemas, como no número de poetas
emigrantes a escrever, que existem diferenças
fundamentais entre o tecido étnico de São Paulo,
do Rio e de Salvador, e que essas diferenças se
fundem com a questão de classe quando se trata
de identificar o ‘português’”.4 Segundo ela, em
São Paulo, onde há maior número de outros
grupos étnicos europeus, maior é o número de
imigrantes portugueses a escrever, e foi
precisamente onde mais a questão da
discriminação e da resistência se colocou. Já no
Rio de Janeiro, Graça Capinha encontrou uma
situação que chama de intermediária, pois o
tecido social é claramente de descendência
portuguesa. Não houve de forma tão explícita,
quanto em São Paulo, a referência às
discriminações ou à necessidade de resistir.
Houve, no entanto, manifestações de um grande
sentimento de vergonha. O emigrante sente que
a situação econômica atual não faz jus a sua
memória de Portugal como centro. Ao mesmo
tempo, revela medo de que o “outro”, sabendo
desta situação, encontre condições de legitimar
discriminações de pobreza e ignorância contra
ele. Fica facilmente perceptível aqui o espaço
étnico enquanto possibilitador de confronto
cultural e, conseqüentemente, espaço de
“formação” de identidades. Na Bahia, entretanto,
não há produção poética dos imigrantes
portugueses que justifique uma referência. Assim,
Graça Capinha estipula que a afirmação da
identidade portuguesa, na Bahia, faz-se
precisamente pela ausência dessa afirmação.
Isso faz sentido quando pensamos que o discurso
de identidade não se constrói sozinho, dentro
apenas do grupo, pois as identidades definemse nas fronteiras étnicas, no embate cultural entre
os grupos. Essas fronteiras não são estáticas e sim
dinâmicas, e a dinamicidade é dada pela
característica relacional da etnicidade.
Graça Capinha aponta que a construção
identitária, quando resultado de interseção entre
duas línguas e culturas, será sempre múltipla e
plural. Da mesma forma múltiplas e plurais, as
falas poéticas dos imigrantes trazem no bojo o
que são e o que foram, numa duplicidade
identitária entre os dois tempos (passado e
presente) e os dois espaços (Portugal e Brasil).
Segundo ela, o espaço local é transnacionalizado
e é nesse sentido que o passado torna-se
presente.
Assim, nesse campo discursivo que é o
poema, não se encontra “uma identidade”, mas
sim mutáveis “configurações identitárias”. Logo,
em maior ou menor grau, variando conforme o
ajustamento ou embate com outros grupos
imigrantes e seus posicionamentos dentro do
contexto social local, os imigrantes portugueses
escreveram sobre suas saudades, medos e
esperanças e deixaram entrever os paradoxos e
dualidades de suas identidades na terra de
imigração.
Como último artigo, temos “Transidentidades
no local globalizado. Não-identidades, margens
e fronteiras: vozes de mulheres latinas nos E.U.A.”,
de Mary Garcia Castro. Partindo de trabalhos de
escritoras mexicanas, chicanas e porto-riquenhas
que moram nos Estados Unidos, Mary Castro em
“Transidentidades.....”examina espaço de trânsito
entre fronteiras identitárias. Através de seu nãolugar, de mulher em mundo de homem, de cor
escura em espaço branco, de nação
transterritorializada, essas escritoras permitem que
se vislumbrem as não-identidades, as
transidentidades, margens e fronteiras da
identidade. A partir delas, Mary Castro percebe
as reconfigurações de identidade na terra de
imigração. O ser estrangeiro permite que se
repensem, diante do outro e da terra do outro,
diferentes
representações
de
raça,
nacionalidade, etnicidade e diferença sexual. É
nesse sentido que a autora busca “sublinhar –
quanto à transnacionalidade e ao conceito de
estrangeiro – o fato de, na multiplicidade de
trânsitos, se vir a selecionar ou reler construtos
culturais de experiências nacionais”.5 As releituras
e seleções dariam, segundo a autora, subsídios
para lidar com poderes, assimetrias e
discriminações. Assim, Mary Castro nos leva numa
viagem onde o desejo de “ser” pode prevalecer
sobre noções homogeneizadoras de
experiências. Crítica, ela fica incomodada com
autores que buscam “enquadrar” os indivíduos
em padrões de identidade e representação précodificados e já aceitos dentro das noções de
“razão” da modernidade. Esses autores, agindo
assim, negam os impulsos do desejo e diferentes
configurações dos processos de singularização.
Negam-se, dessa forma, a ver que as
possibilidades de “norte” são muitas, permitindo
a existência de maneiras de recusar modos de
codificação preestabelecidos. Partindo desse
ponto, Mary Castro reflete que, no que se refere
às especificidades culturais, conceitos como
“cultura global”, “cultura mundo” e “cultura
mundializada”, apesar de úteis para as
discussões sobre culturalismo, não dão conta da
criatividade de sentidos e singularidades no
processo de relações globais, nem das tensões
entre identidades impostas em relações de
subalternidade ou da angústia do trânsito nas
fronteiras e margens, em processos de
“desidentidades” ou “não-identidades”. Dessa
forma, o “não-lugar”, percebido como espaço
de identidades fronteiriças e/ou marginais,
permite a reanálise do “lugar”. Dentro desse
contexto de possibilidades de subjetivações,
identitárias ou não, que escapam do controle
enquadrador de uma cultura racional e
homogenizadora, essas mulheres latinas sugerem
que se repensem os processos de exclusão
econômica ou cultural, para impedir que as
inclusões sejam sempre seletivas quanto a sujeitos
e identidades. Dentro disso, a autora busca fazer
reflexões críticas à tendência, em certos
movimentos sociais, como o movimento negro e
o feminismo, de se fixar em identidades.
O que podemos, por fim, observar no
conjunto de Identidades: estudos de cultura e
poder é a preocupação com a discussão não
só das identidades, seus significados e embates
fronteiriços, mas também das desidentidades, os
não-lugares, as múltiplas e possíveis formulações
de identidades, entre fronteiras de gênero, classe,
raça e nação. Tudo isso margeado por um
ESTUDOS FEMINISTAS
617
2/2001
contexto de Estados-nação, transnacionais ou
não, devidamente hierarquizados no sistema
econômico global. No mais, é evidente a
preocupação com a dignidade humana em suas
multifacetadas possibilidades, e é apontada
como uma possível margem de apoio uma
política multicultural de direitos humanos. Além
disso, esta obra permite que repensemos certos
conceitos e políticas sociais criados e sustentados
por outras nações dentro de seus contextos de
história e cultura, que muitas vezes são importados
e ajustados às nossas necessidades, mas não nos
explicam nem nos ajudam a explicar nada, pois
não se adaptam às nossas especificidades
... caracteriza-se assim
culturais. Identidades...
como uma obra que se abre para a discussão
dos significados e limites da política identitária,
numa postura contra-hegemônica das
possibilidades de “ser” na atualidade.
1
FELDMAN-BIANCO, Bela e CAPINHA, Graça (Orgs).
Identidades: estudos de cultura e poder. São Paulo:
Hucitec, 2000. p. 13.
2
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção
multicultural de direitos humanos. In: FELDMAN-BIANCO,
Bela e CAPINHA, Graça (Orgs). Identidades: estudos de
cultura e poder. São Paulo: Hucitec, 2000. p.22
3
GILLIAN, Ângela. Globalização, identidade e os
ataques à igualdade nos Estados Unidos: esboço de
uma perspectiva para o Brasil. In: FELDMAN-BIANCO, Bela
e CAPINHA, Graça (Orgs). Identidades: estudos de
cultura e poder. São Paulo: Hucitec, 2000. p. 97.
4
CAPINHA, Graça. A poesia dos emigrantes portugueses
no Brasil: ficções críveis no campo da(s) identidade(s).
In: FELDMAN-BIANCO, Bela e CAPINHA, Graça (Orgs).
Identidades: estudos de cultura e poder. São Paulo:
Hucitec, 2000. p. 119.
5
CASTRO, Mary Garcia. Transidentidades no local
globalizado. Não-identidades, margens e fronteiras:
vozes de mulheres latinas nos E.U.A. In: FELDMAN-BIANCO,
Bela e CAPINHA, Graça (Orgs). Identidades: estudos de
cultura e poder. São Paulo: Hucitec, 2000. p. 152.
LILIANE EDIRA FERREIRA CARVALHO
Feminismo e psicanálise, ainda...
Para além do falo: uma crítica a
Lacan do ponto de vista da
mulher
BRENNAN, Teresa (Org.).
Rio de Janeiro: Record/Rosa dos
Tempos, 1997. (Coleção Gênero, v. 4).
360 p.
Inicialmente, ressaltaria a importância da
tradução desta coletânea pela Editora Rosa dos
Tempos, aproximando-nos de autoras que são
pouco traduzidas no Brasil. São textos densos,
reveladores dos níveis de aprofundamento
teórico que marcam, nos países europeus, as
trocas fecundas e não isentas de tensões, entre
estudos feministas e psicanálise.
A tradução brasileira do título original da
edição inglesa Between Feminism and
Psychoanalysis, no entanto, coloca-nos algumas
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618
2º SEMESTRE 2001
questões. Primeiro, o recurso à categoria mulher
nas formas essencializadas que o conceito e os
estudos de gênero vêm discutindo e
complexificando há pelo menos duas décadas
(e a Rosa dos Tempos não esteve alheia a esta
ebulição, já que se constituiu neste campo e para
ele tem contribuído, trazendo a público
numerosas obras). Além disso, a ênfase na
oposição entre psicanálise e estudos feministas,
com um caráter linear e definitivo, o que os
próprios textos desta coletânea se encarregam
de desmentir.
Estas questões não são novas. Já haviam
ocorrido com a edição, em 1990, do livro da
americana Nancy Chodorow, com o título original
The Reproduction of Mothering: Psychoanalysis
and the Sociology of Gender, traduzido pela Rosa
dos Tempos como Psicanálise da Maternidade:
uma crítica a Freud a partir da mulher.
Será que este apelo a uma tensão
irreconciliável, uma clivagem entre psicanálise e
feminismo promove a venda de livros? Penso que,
ao contrário, o encontro (tenso e fértil) entre os
campos atingiria um público mais amplo de
feministas ou de psicanalistas que usualmente
não estão voltados para as discussões sobre
gênero.
Quem é esta “mulher” com um ponto de
vista homogêneo que critica Freud (no subtítulo
de Chodorow) e Lacan (no desta coletânea),
jogando fora a criança com a água do banho?
Certamente, para a editora, é brasileira, já que
as feministas européias e americanas estão
discutindo séria e profundamente os encontros e
oposições entre psicanálise e feminismo, há várias
décadas, conforme este livro vem demonstrar.
A coletânea teve por base uma série de
quinze seminários realizados na Universidade de
Cambridge, no King’s College e na faculdade de
Ciências Sociais e Políticas, entre janeiro e julho
de 1987, conforme explicita Teresa Brennan em
seu prefácio, acrescentando que as mulheres
que os apresentaram, provenientes da Índia, dos
Estados Unidos, da França e da própria Inglaterra,
identificadas com posições distintas e muitas
vezes opostas, eram principalmente teóricas da
literatura (apenas duas tendo antecedentes nas
ciências sociais). Informando sobre as questões
em torno das quais se fizeram os debates, a
organizadora dos seminários e da coletânea
ressalta como ponto comum entre psicanálise e
feminismo, a preocupação com a transformação
social.
A introdução do livro, escrita também por
Brennan, tem partes distintas. Nas páginas iniciais
e no item “Os textos” (p. 27 a 36), em que produz
a resenha perfeita da coletânea, ela apresenta
os artigos, caracterizando-os de forma sucinta,
contextualizando -os nas seis partes que
compõem a estrutura do livro, cada uma
contendo dois ou três textos articulados em torno
dos temas privilegiados nos seminários.
Enfatizando que a psicanálise é uma
entidade inteiramente política, a autora ensina
que “o livro se refere a quatro questões que
ficaram estagnadas no pensamento psicanalítico
feminista: o estatuto do ‘simbólico’ lacaniano, a
diferença e o conhecimento sexuais, influência
do essencialismo sobre a política feminista e a
relação entre a realidade psíquica e o social” (p.
10). Questões cujas reflexões, no seu entender,
levam a um impasse por terem sido ignorados
seus contextos político ou psicanalítico. É disso
que ela vai tratar na outra parte de seu artigo,
referenciando-se fortemente nas demais autoras
da coletânea.
Estes encontros ocorreram na Inglaterra,
país que acolheu Freud, quando precisou sair da
Áustria invadida pelos nazistas, o país de Ernest
Jones, seu biógrafo, de Robert Strachey, tradutor,
comentador e editor de sua obra em inglês,
língua a partir da qual ela se difundiu para
inúmeras outras línguas. País de Melanie Klein,
cuja contribuição à teoria e à clínica
psicanalíticas foi de extrema importância e
levantou temas fundamentais para as teorias
feministas, nas discussões sobre a fase préedipiana e a ênfase no papel da relação mãe–
filho no desenvolvimento emocional da criança.
Os seminários se realizaram em diálogo com
psicanalistas feministas da França, país de
Jacques Lacan, o teórico do retorno a Freud pela
releitura de sua obra à luz dos avanços da ciência
lingüística, e cuja contribuição à teoria e à prática
psicanalíticas tem sido responsável pelo diálogo
da psicanálise com os paradigmas e movimentos
das últimas décadas e da virada do século.
Destes seminários emergem as figuras de
psicanalistas cujas teorizações se fazem no
encontro entre psicanálise e feminismo. A
importância da edição desta coletânea está
justamente aí, onde se discutem e aprofundam
os olhares sobre as obras de autoras, como as
francesas, pouco traduzidas entre nós, pelo
menos nos textos que dialogam com o feminismo
(o caso de Júlia Kristeva, por exemplo). Assim, os
seminários destacam as contribuições de Luce
Irigaray, que deles também participou, de Hélène
Cisoux e Júlia Kristeva, pela França, de Juliet
Mitchell e Jacqueline Rose pela Inglaterra. Se as
francesas se destacam por sua oposição a
Lacan, quando se trata de pensar sobre a
feminilidade em relação ao significante fálico,
Mitchell e Rose destacam as contribuições da
psicanálise freudo-lacaniana ao pensamento
feminista (não contra ele).
As autoras que participaram dos seminários
discutiram especialmente as contribuições de
uma nova geração de psicanalistas, póslacanianas, às teorias feministas. Foi lembrada
também a americana Nancy Chodorow,
naturalmente a mais conhecida entre nós, via
influência dos Estados Unidos sobre nosso sistema
acadêmico, a partir dos anos 60. Acredito, no
entanto, que a articulista Toril Moi conseguiu
definir bem a importância relativa de Chodorow
com respeito à psicanálise kleiniana das relações
de objeto, com a qual ela costuma ser
identificada, quando a caracterizou como mais
próxima das psicologias do ego americanas,
versões da psicanálise que Lacan coloca fora do
campo freudiano, na medida em que minimizam
a concepção de inconsciente.
ESTUDOS FEMINISTAS
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2/2001
No primeiro capítulo da coletânea Jane
Gallop, professora de língua inglesa na
Universidade de Wisconsin, estranha a parceria
entre feminismo e psicanálise lacaniana, através
da crítica aos escritos psicanalíticos de Juliet
Mitchell. Autora, entre outros livros, de Feminism
and Psychoanalysis: the daughter’s seduction e
Reading Lacan, ela esclarece que seu artigo se
constitui numa versão revista de Juliet Mitchell e
as “ciências humanas”, que seria publicado em
um volume intitulado Lacan and the Human
Sciences.
Gallop traça o percurso de Mitchell, do
marxismo a Althusser e deste a Lacan.
Comentando vários textos da autora, Gallop
ressalta os dilemas com os quais ela se debate:
natureza x cultura, humano x biológico.
Analisando a forma como Mitchell utiliza o termo
histórico adjetivando invariavelmente o simbólico
lacaniano, Gallop procura demonstrar que são
as questões da autora, como feminista marxista
procurando juntar feminismo e psicanálise nos
anos 60, que orientam sua leitura particular de
Lacan. Este artigo é de muito interesse, já que
Mitchell é uma das psicanalistas feministas
traduzidas no Brasil (Interlivros, de Belo Horizonte,
1979, e Campus, Rio de Janeiro, 1988).
O artigo de Rachel Bowlby, autora de livros
e conferencista de língua inglesa na Universidade
de Essex, refere-se às dificuldades das traduções
de teorias. Analisa a difícil relação entre feminismo
e psicanálise na Inglaterra como marcada pela
reinterpretação, na tradução para o inglês, dos
termos com que Freud teorizou a questão da
feminilidade, os enigmas e negações do feminino,
em especial o repúdio ao feminino.
Bowlby, fazendo analogia com a tríplice
encruzilhada que se antepõe entre a menina e a
feminilidade, retoma os diferentes termos
utilizados por Freud (verwerfen, ablehnen e
weisen), traduzidos por Strachey como repúdio,
apenas. Fala do repúdio das feministas inglesas
à psicanálise, as acusações de parte a parte
sobre quem está do lado do masculino
(patriarcal) e quem faz o resgate do feminino,
repetindo, como numa relação/ruptura amorosa,
quem exerce o direito jurídico (masculino) de
repudiar o outro (a mulher). Voltando à tradução
de Freud, a autora se pergunta qual é realmente
o usurpador: Strachey, que, talvez por
ingenuidade e não por incompetência, unificou,
simplificando e radicalizando, os termos
empregados pelo autor, ou Lacan, que, no seu
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620
2º SEMESTRE 2001
entender, desdobrou os sentidos dos conceitos
para além de Freud, reivindicando a releitura do
autor?
Nos capítulos seguintes, as autoras tratam
de aspectos da história institucional das relações
entre feminismo e psicanálise.
Lisa Jardine, autora de vários livros sobre
filosofia da ciência e mulher e literatura,
professora visitante em Cambridge, fala da
aceitação da teoria psicanalítica feminista nas
universidades, o que, no entanto, não se fez
acompanhar de qualquer alteração nas relações
de poder entre homens e mulheres nas
administrações institucionais. Ela reflete sobre a
autorização das falas femininas e masculinas nas
instituições analisando um trecho de Deus e o
gozo da mulher, do Livro 20 d’O Seminário de
Lacan (p. 99-101, na edição brasileira da Jorge
Zahar), em que o autor fala da mulher não toda
e sua “juissance” suplementar, “um gozo para
além do falo”, do qual, por mais que se lhes
suplique (às psicanalistas mulheres), elas nada
têm a dizer.
Jardine contrapõe este discurso de Lacan,
que classifica como pedagógico, “o discurso da
autoridade, a hierarquia da instituição
acadêmica” (p. 93), ao de “Speculum, l’autre
femme”, de Luce Irigaray, em que esta abandona
Lacan e começa a produzir seu modelo teórico
de um imaginário feminino alternativo. A articulista
reconhece que este discurso dentro do discurso
psicanalítico tem a capacidade de nele se
introduzir para desancorar o discurso masculino
da teoria, deslocando seu falocentrismo. Neste
sentido, é um discurso político, desestabilizador.
A autora, no entanto, refere-se ao desconforto
que ele causou a ela e a muitas feministas, pela
reintrodução de partes do corpo feminino no
discurso, quando o corpo tem sido
tradicionalmente identificado pelo feminismo
como o lugar da opressão das mulheres.
Alice Jardine, professora de línguas e
literaturas românicas na Universidade de Harvard,
autora e editora de livros sobre feminismo, reflete
sobre a psicanálise na universidade e, em sua
condição de feminista ensinando na academia,
sobre a prática de duas gerações de professoras,
explícita e politicamente feministas, na instituição
acadêmica (as doutoradas entre 1968 e 1978 e
as doutoradas após 1978). Comparando-as com
as primeiras psicanalistas, ela analisa o percurso
percorrido pelas mulheres, da voz à escrita, do
privado ao público, estabelecendo analogia
destes com o fetichismo e a paranóia.
A autora compara as duas gerações de
feministas psicanalistas da academia às três
gerações de psicanalistas referidas por Júlia
Kristeva em Les temps des femmes. Enquanto as
primeiras gerações de feministas e psicanalistas
acadêmicas combinavam sedução e resistência
aos discursos feminista e psicanalista, as
segundas gerações pareciam fazer plena
transferência com os dois discursos. Enquanto as
primeiras gerações se enquadravam na
categoria de mulheres que postulavam um lugar
na história linear, ou daquelas que afirmavam um
tempo diferente para as mulheres, fora da história
dos homens, as mulheres da segunda geração
lutavam por um lugar na história masculina,
apenas para afirmar suas diferenças singulares
e radicais, procurando confundir público e
privado. Ela acredita que, cruzando as gerações,
as mulheres feministas possam livrar-se da
paranóia e seus públicos, do fetichismo e seus
privados e, ainda, do próprio conceito de
geração.
Iniciando as partes da coletânea intituladas
“Por outro simbólico”, as primeiras autoras
discutem “A coisa essencial”. Rosi Braidotti,
professora de estudos da mulher na Universidade
de Utrecht, chama a atenção para o conceito
de diferença que tem ocupado a agenda
ocidental desde Nietzsche e Freud, minando a
concepção de sujeito conhecedor, derivada do
homem da razão. Ela se refere à psicanálise como
teoria que representa a mudança histórica que
abre a modernidade para a crise da visão
clássica do sujeito e para a proliferação das
imagens do outro como signo da diferença.
Analisa psicanálise e feminismo nos seus
encontros e discordâncias, refletindo sobre as
concepções de sujeito, diferença, identidade,
subjetividade, sexo, gênero.
Considerando mulher e feminismo como
metáforas privilegiadas da diferença e da crise
dos valores racionais masculinos, Braidotti idealiza
uma ontologia feminista, em que as mulheres se
responsabilizem por todas as definições que têm
sido feitas sobre a mulher como essência histórica
(p. 140). A autora retoma a questão do corpo e
do essencialismo, reportando-se a Irigaray e seu
projeto de um simbólico feminino. Tomando o
essencialismo como uma diferença e afirmando
que “a mulher teórica feminista que está
interessada em pensar sobre a diferença sexual
e o feminismo hoje não pode se dar ao luxo de
não ser uma essencialista” (p. 128), ela se
posiciona por um outro essencialismo, que não
abra mão do jogo de representação da mulher,
ou da ligação entre o simbólico, ou discursivo e
o corporal, ou material (p. 140).
Margaret Whitford, conferencista sobre
língua francesa no Queen Mary College, em
Londres, autora e editora de livros sobre filosofia
e feminismo, propõe uma releitura de Luce
Irigaray. Analisando as críticas e leituras da
feminista psicanalista francesa por feministas
radicais e feministas psicanalistas de língua
inglesa, a autora argumenta que estas não dão
conta da complexidade das concepções da
francesa. Whitford sintetiza as críticas a ela em
dois grandes grupos: o primeiro ressalta que
Irigaray é uma essencialista biológica que
proclama uma feminilidade constituída pela
biologia; o outro grupo é formado pelas críticas
de psicanalistas lacanianas que a acusam de
essencialista psíquica, que distorce as
implicações da teoria de Lacan.
A articulista ressalta a erudição filosófica dos
escritos de Irigaray, o que em certas
circunstâncias tem alimentado as críticas contra
ela, procurando esclarecer em que consiste seu
projeto. Analisa diferentes textos da autora para
contra-argumentar com seus críticos de língua
inglesa. Whitford afirma que a escrita de Irigaray,
jamais simples ou livre de contradições, contribui
para os entendimentos distorcidos de suas idéias.
Contra as leituras que considera equivocadas da
autora, ela ressalta que a reafirmação da
diferença anterior ao Édipo entre homens e
mulheres, a recuperação da centralidade da
relação mãe/filha como base da diferença, não
torna Irigaray uma essencialista biológica linear.
Whitford entende que a argumentação da
autora, quando caracteriza a relação mãe/filha
como não simbolizada, é uma argumentação
construída sobre o simbólico, postulando por um
simbólico feminino e um imaginário feminino.
Lembra que Irigaray não é uma pré-lacaniana,
mas uma pós-lacaniana que se confronta com
as implicações da obra de Lacan, ressaltando
que a ordem simbólica está amarrada a uma
estrutura metafísica masculina, fundada num
imaginário masculino, que precisaria ser
subvertida.
Pelos argumentos de Whitford sobre ela,
pode-se entender que o projeto de Irigaray se
desenvolve no sentido de buscar um significante
feminino que represente a mulher na ordem do
simbólico. Exatamente o que sugere Lacan com
o axioma “A mulher não existe”, ressaltando que
não há um significante simbólico que represente
ESTUDOS FEMINISTAS
621
2/2001
a mulher, já que ela se diferencia, como o
homem, em torno do significante masculino, o
falo.
Luce Irigaray, psicanalista praticante,
pesquisadora e autora de muitos livros, foi a
feminista francesa convidada para os seminários
que resultaram nesta coletânea. Seu artigo
procura recuperar a importância do gesto na
cena psicanalítica, obliterada pela importância
atribuída à linguagem verbal. Voltando à famosa
cena do fort-da, analisada por Freud (e revista
por Lacan, por Derrida), em que seu neto Ernest,
brincando com um carretel preso a uma linha,
procura lidar com a ausência da mãe,
acompanhando os gestos de lançar e puxar o
carretel com os sons fort-da (longe-perto, lá-ici
em francês), Irigaray reflete sobre estes sons, suas
diferenças no alemão e no francês, onde se
produzem na boca, no palato, onde se prendem
ou se soltam – nos lábios, atrás dos dentes, os
sons que se projetam, aqueles que se incorporam.
Retoma a significação dos gestos de mãos e
braços de Ernest para lançar e trazer de volta
seu carretel e procura diferenciar os gestos de
meninos e meninas diante da ausência da mãe.
Ressalta o fato de que Ernest era menino para
argumentar que a criança do fort-da não
poderia ser uma menina.
Relembrando gestos femininos na análise e
em análises de meninas, a autora descreve
possibilidades gestuais de as meninas lidarem
com a ausência da mãe (sem o controle do
objeto externo) e postula uma diferenciação
sexual anterior ao Édipo, que se revelaria em
outros sons, em cantilenas com os lábios
fechados, e outros gestos, circulares, centrados
em si. Na parte final de seu artigo Irigaray
compara Dora e Schreber, “o casal das origens
da prática analítica” (p. 184), seus gestos,
movimentos, palavras, para defender sua
concepção de uma diferença sexual desde
sempre – sua concepção de que a criança
psicanalítica não é neutra, diante de uma
diferenciação que se irá produzir em um
momento estruturante posterior.
Nos capítulos seguintes, com subtítulo “Para
além do falo”, temos mais três autoras. Elizabeth
Wright, conferencista e visitante de língua alemã
em Cambridge, analisa a relação entre
feminismo e psicanálise concentrando-se na
crítica feminista, para a qual a questão
fundamental é como dar à mulher acesso ao
discurso: através da submissão à linguagem
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2º SEMESTRE 2001
pública do patriarcado, ou pela criação de uma
outra linguagem, que não alcança hegemonia,
mantendo-se às margens, estranhada. Wright
defende a construção de um espaço para a
mulher entre estas fronteiras, no contexto pósmoderno.
Ressaltando estar, em sua investigação
crítica da psicanálise, do feminismo e do pósmodernismo, “interessada em revelar os
fundamentos incertos de qualquer sistema
idealista que se considere baseado em dados
ontológicos” (p. 190), Wright sustenta que a crítica
feminista oferece a instância mais clara e visível
das dificuldades de tentar subverter ou reformar,
a partir de dentro, qualquer sistema. Assinala, no
entanto, a importância, para a pesquisa crítica,
de poder manter-se aberta a tal subversão. A
autora ressalta que a crítica literária, que
enfrentou a ortodoxia na instituição psicanalítica,
foi o campo onde floresceu a psicanálise-pelofeminismo, tornando a psicanálise mais política
do que já era para algumas feministas. A crítica
literária deu às mulheres acesso ao discurso como
escritoras e como críticas, o que elas não haviam
logrado obter na psicanálise ou na política. Wright
destaca, na relação entre psicanálise e gênero,
o fato de esta ter oferecido ao feminismo os
instrumentos conceituais para demonstrar que o
gênero é simbólico e não biológico, ao mesmo
tempo em que, paradoxalmente, construía a
mulher em torno do símbolo fálico. Afirmando
dever-se à teoria e à prática do lapso de
linguagem causado pelo desejo inconsciente o
fato de as feministas continuarem a abraçar Freud
e Lacan, a articulista discute algumas críticas de
feministas inglesas a Lacan. Através da leitura de
Toril Moi, ela retoma Júlia Kristeva, centrando-se
na questão pré-edipiana da relação da criança
com a mãe e na escritura desta relação. Cita
Suleiman, que, apontando para o fato de as
mães serem escritas, ao invés de escreverem,
solicita mais informações das próprias mães,
através de diários, ensaios, etc., instando-as a
falarem sobre si e suas relações com os filhos,
desconstruindo assim, talvez, o arcabouço
patriarcal que harmoniza a mulher com este
lugar-tarefa da maternagem.
Wright discute o percurso do feminismo que,
adotando a psicanálise, encampa o pósmodernismo, ambos interessados em estender
fronteiras para além das oposições binárias.
Discutindo a intersecção entre feminismo e pósmodernismo, o primeiro oferecendo ao segundo
uma política aos campos literário e artístico, Wright
procura destacar as principais linhas do debate
sobre o pós-modernismo, desde diferentes
posições, que analisa pela referência a vários
autores/as. Ela reflete também sobre o
rompimento das fronteiras dos discursos,
comentando a prática de uma escrita pósfeminista de escritoras influenciadas por Lacan,
como Kristeva e Hélène Cisoux. Ressaltando que
“o feminismo examina os processos pelos quais
se concede, ou se recusa, o acesso da mulher
ao discurso, e ao mesmo tempo inaugura um
novo modo de pensar, escrever, falar” (p. 201) e
as críticas feministas oferecem, junto com leituras
subversivas de textos tradicionais e modernos, um
contínuo desafio às estruturas de poder
dominantes com suas alegações de
imparcialidade, a autora destaca que não há
nada de imparcial sob o sol, nem o próprio
discurso feminista, que prospera com suas
diferenças internas (e por elas).
O artigo escrito por Morag Schiach,
conferencista sobre língua inglesa no Queen Mary
College, autora de livros, um dos quais sobre
Hélène Cisoux, tem como título uma citação desta
autora, tirada de seu texto “A risada da Medusa”:
“O ‘simbólico’ deles existe, detém poder – nós, as
semeadoras da desordem, o conhecemos bem
demais”.
Schiach analisa a obra de Cisoux, de quem
é tradutora para o inglês. Em seu entender, os
escritos desta autora permitem “analisar o que
definimos como teoria feminista ou crítica
feminista e considerar as implicações de uma
prática teórica que começa com uma política
articulada” (p. 205) já que o feminismo é um termo
político, um questionamento do poder e da
possibilidade de mudança. Para Schiach,
recorrendo aos termos da psicanálise, Cisoux está
constantemente minando-os. O simbólico é
descrito como o simbólico “deles”, um conceito
do qual as mulheres deveriam distanciar-se, na
possibilidade de articularem um novo simbólico,
“nosso”. Para a autora, Cisoux equacionou o
poder com o simbólico, equação que nem todos
aceitariam, mas fundamental para a escrita da
francesa, para quem “a organização da
linguagem, os duplos conjuntos hierarquizados
de oposição que estruturam o pensamento
filosófico e a linguagem narrativa, é o que produz
o fundamento lógico para, e os meios de, oprimir
a mulher” (p. 207). Poder ao qual ela antepõe a
possibilidade de recusa e desordem. Analisando
vários textos de Cisoux, Schiach procura mostrar
de que modo e até que ponto a autora interroga
os conhecimentos que estruturam as identidades
e as relações sociais femininas. Em sua opinião,
até os excessos de Cisoux, que se encontram e
são perpetuados nos textos filosóficos e de ficção,
devem ser compreendidos como parte de seu
compromisso de minar as representações da
“mulher”.
O argumento de Schiach é que os textos
em que a autora francesa analisa a obra de
Clarice Lispector, como também suas peças de
teatro, não devem ser lidos somente como parte
da construção de uma estética feminina, mas
devem ser colocados no contexto de um conjunto
de problemas teóricos sobre a natureza da
diferença (questão melhor articulada, segundo
Schiach, na obra de Derrida). Tomando o gênero
como um termo estruturante, na opressão oficial
e simbólica, Cisoux tenta desenvolver uma prática
de escrita para as e em benefício das mulheres,
já que é na escrita que ela vislumbra a
possibilidade de transformação.
No último capítulo destas considerações
“Por um outro simbólico”, Naomi Segal, professora
de línguas modernas no St. John’s College,
Cambridge, autora de livros sobre filosofia,
literatura e psicanálise, parte da interpretação
do mito de Narciso centrando-se na figura e no
papel de Eco na narrativa, para analisar algumas
obras do récit confessional francês dos séculos
XVIII e XIX. Todos textos escritos por homens, sobre
homens e, por implicação, segundo a autora,
para homens.
Segal ressalta como uma das semelhanças
entre os textos, na narrativa da vida fracassada
do protagonista, o fato de a mulher central, um
tanto mais velha que ele, servir de foco às
temáticas da morte da mãe no parto e do desejo
incestuoso. Narrativas em que as mulheres são
faladas pelos homens (narradores, protagonistas,
leitores) e lhes servem de espelho. Narrativas em
que, para que eles possam emergir ao simbólico
do pai, elas precisam ser abandonadas e mortas.
De acordo com Segal, “essa manobra coloca em
cena uma epistemofilia na qual o conhecimento
dele é buscado a expensas do dela” (p. 230). É
este o destino da maioria das mulheres nos récits
analisados. Mas, mortas as mulheres, os
protagonistas ficam sem o eco, o espelho que os
sustenta e os torna visíveis para si próprios. Para
a autora, a morte dos homens em conseqüência
de seu narcisismo aponta para uma alternativa,
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2/2001
uma leitura própria de mulheres, uma
comunicação entre mulheres, segundo uma
outra epistemologia.
A quinta parte da coletânea, intitulada
“Razão e revolução”, é composta por dois artigos.
No primeiro, Toril Moi, residindo na Inglaterra e
lecionando literatura na Noruega e nos Estados
Unidos, autora e editora de livros sobre feminismo
e literatura, escreve sobre “Pensamento patriarcal
e a pulsão do conhecimento”. Analisa a
produção de autoras como Evelyn Fox Keller e
Susan Bordo, em suas críticas a Descartes e à
filosofia e humanidades em geral. Keller classifica
a ciência como uma ideologia que divide o
mundo em duas partes, a que conhece (mente)
e a que é conhecida (natureza), dividindo sujeito
e objeto e atribuindo gêneros às partes
dicotomizadas. Segundo T. Moi, Keller se
fundamenta nas idéias de Chodorow sobre o
desenvolvimento das estruturas da personalidade
masculina e feminina para refletir sobre a ciência
masculina. Apontando esta inspiração comum
entre Keller e Bordo, a autora as coloca, com
Chodorow e Gilligan, como “expoentes de uma
variedade psicossocial do feminismo da
diferença” (p. 256), denunciando, em suas
posições, um essencialismo ao contrário –
culturalista.
Comentando os escritos de Michelle le
Doeuff sobre conhecimento, feminismo e
feminilidade, destaca a crítica desta autora à
filosofia
(ciência
masculina)
que,
paradoxalmente, busca a completude, achando
possível construir uma estrutura sem falhas,
quando o fator que a possibilita é a falta – o que
falta ser pensado. Ciência patriarcal que circula
a mulher como duplamente faltante: em relação
ao falo e em relação ao conhecimento. A falta
da mulher como falta errada, sendo sempre a
de um homem e não a falta de conhecimento,
condição para a filosofia, tornando-a incapaz,
assim, de filosofar, de pensar racionalmente. O
pensamento racional como emblema da autosuficiência narcísica masculina. A mulher como
símbolo da falta e da negatividade
fundamentando a própria filosofia ocidental – o
irracional, fora do discurso da razão, é o que na
verdade o confirma, por contraste. A feminilidade
como a sombra, o excluído, o inimigo interno que
opera dentro da filosofia, como suporte da
racionalidade.
Le Doeuff fala da importância de uma
ciência aberta, inacabada, capaz de refletir
sobre sua própria relação com a exclusão, na
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2º SEMESTRE 2001
medida em que possa abandonar qualquer
aspiração de lograr a um fechamento mágico,
imaginário. Esta autora relaciona o método clínico
de análise com uma nova forma de
conhecimento, que estabelece uma relação
diferente entre sujeito e objeto, não simplesmente
invertendo a relação, mas subvertendo-a,
ligando os dois pólos, tornando-os dependentes
na situação de análise, introduzindo aí um novo
termo – o inconsciente que, como Lacan ressalta,
não está só do lado do analisando, mas também
do analista, um ponto de encontro lingüístico,
significativo, que circula.
Para superar a separação entre razão e
emoção, em que incorre a própria Keller quando
critica, através de Descartes, a filosofia ocidental,
Toi utiliza
a concepção freudiana de
epistemofilia, ou pulsão do conhecimento, como
possibilidade de resposta ao feminismo, no
sentido em que desloca os dualismos razão/
emoção, mente/corpo. Argumenta que, usando
esta concepção, Freud destaca a implicação do
corpo, da sexualidade, em qualquer atividade
humana e na própria sublimação. Conforme
explicita, Toi pensa que uma filosofia da ciência
feminista e antiessencialista tem mais a ganhar
com Freud e Lacan do que com as psicologias
do ego americanas (p. 273).
Gayatri C. Spivak, autora de livros e artigos
sobre feminismo, desconstrução e crítica ao
imperialismo, professora de língua inglesa na
Universidade de Pittsburgh, é uma célebre
tradutora de Derrida para o inglês. O artigo de
Spivak inicia pelo comentário da introdução do
livro de Jacqueline Rose Sexuality in the Field of
Vision, em que esta rejeita Derrida como um certo
tipo de essencialista subjetivista. Spivak se
percebe como defendendo um tipo de Derrida
contra Rose defendendo um tipo de Lacan. A
questão tratada por Spivak, segundo suas
palavras, não é que a desconstrução não
consiga fundar uma política, enquanto outros
modelos de pensamento o conseguem, mas o
fato de a desconstrução contribuir para
denunciar os problemas implícitos dos programas
políticos, ao torná-los mais visíveis. “Agir não é,
portanto, ignorar a desconstrução, mas sim
transgredi-la ativamente sem dela abrir mão” (p.
277). Com este propósito, a autora se detém na
questão do nome mulher na filosofia de Nietzsche,
através da análise de Derrida e na concepção
elaborada por este de différance.
A respeito do sujeito feminino nos escritos
de Rose, Spivak procura marcar a distinção entre
epistemologia/ontologia, de um lado, e axiologia,
do outro, o que a seu ver está confundido nas
críticas de Rose ao sujeito descentrado de
Derrida. Discutindo várias formas de nomear
mulher no projeto político do feminismo (e
pensando sobre as mulheres que se sentem
excluídas das nomeações/representações
feministas), a autora aponta para a esperança,
por trás da vontade política, de que a própria
possibilidade do nome possa ser finalmente
apagada.
Joan Copjec, editora de revista em Nova
York, autora de artigos e livro sobre feminismo,
psicanálise e cinema, inaugura a última parte da
coletânea, ainda referida à “Diferença sexual”,
que trata do “Psíquico no social”. Preocupada
com a questão do real, que considera subsumida
nas análises contemporâneas da relação entre
psicanálise e política, sua tese é a de que “o real
é o que une o psíquico ao social”, e esta relação
é governada pela pulsão de morte (p. 305).
Baseia-se nos escritos de Freud O Mal Estar
na Civilização e Para Além do Princípio do Prazer
para elaborar suas reflexões sobre o princípio da
realidade e o social, o princípio do prazer, as
pulsões de vida e morte. Compara escritos de
Freud e Bergson, de Bergson e Lacan. Analisa a
questão da causa, pela referência a Lacan e
Aristóteles, chegando à questão do sujeito e do
sujeito do feminismo. No interesse de evitar a
eliminação da realidade psíquica ou da
realidade social nas análises, ela afirma que o
conceito de causa precisa ser recuperado e
repensado no sentido de possibilitar a
compreensão da relação entre a ordem social e
a existência psíquica, especialmente para a
análise feminista, que depende da existência de
uma semi-independência psíquica em relação
às estruturas patriarcais.
Parveen Adams, conferencista sobre
psicanálise de Brunel, co-fundadora e co-editora
da publicação feminista m/f, escreve um ensaio
sobre o lesbianismo sado-masoquista,
diferenciando-o do masoquismo clínico,
caracterizado como patológico.
De acordo com ela, no sentido de centrarse fora da ordem do social e familiar e recusando
as formas de patologia feminina organizadas
dentro do campo fálico, a lésbica sadomasoquista resolve seu problema de entrada no
desejo sem qualquer coisa que possa ser
caracterizada como gozo feminino. Como uma
sexualidade transgressora que só pode associarse a uma realidade psíquica numa relação
complexa com alguma porção muito nova da
realidade externa, o lesbianismo sadomasoquista consegue lograr, segundo a autora,
a separação radical entre gênero e sexo.
Como se pode perceber, esta é uma
coletânea de muito interesse, tanto para os
estudos de gênero quanto para outras áreas,
como a crítica literária e a psicanálise. Traz
discussões densas, atuais, com enfoques
variados, que não caberiam “no ponto de vista
da mulher”, sugerido no subtítulo da edição
brasileira. Ela mostra justamente o oposto: a
riqueza e diversidade de concepções de
mulheres reunidas para discutirem suas reflexões
em torno de temas relevantes para os estudos
feministas e de gênero.
MARA COELHO DE SOUZA LAGO
ESTUDOS FEMINISTAS
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Mulheres em Santa Catarina: com quantos
modos de faz uma História?
História das mulheres de Santa
Catarina.
MORGA, Antonio (Org.).
Florianópolis: Letras Contemporâneas;
Chapecó: Argos, 2001. 285 p.
Os onze trabalhos que compõem História
das mulheres em Santa Catarina são parte de
um movimento historiográfico mais amplo, em
que os modos de pensar e viver das mulheres,
seus sentimentos, lutas e ações passaram a ser
abordados e analisados em sua historicidade. Faz
parte de uma História que assumiu a intersecção
de variados e múltiplos ritmos de tempo,
diversificando e ampliando as suas possibilidades
interpretativas. Ao fazê-lo, foi construindo
diferentes caminhos analíticos e denotando uma
acurada preocupação em propor suportes
teóricos e metodológicos, que propiciassem
resultados em que a visibilidade da ação das
mulheres também pudesse ultrapassar o
momento em que se pautava por uma narrativa
simplesmente descritiva. Assim, tais estudos
visaram a compreender e explicar a experiência
feminina em contextos específicos, sem descuidar
de sua coerência e compromisso com o
adensamento dos referenciais teóricos envolvidos
na análise. Movidas por essas preocupações,
vemos desfiar-se as diversas tematizações e
problematizações que os vários autores deste
livro propuseram para as ‘mulheres de Santa
Catarina’. É nesse sentido que se procura dar a
conhecer as suas formas de expressão e
manifestação em variadas dimensões sócioculturais e espaciais. São parteiras, professoras,
estudantes, jornalistas, prostitutas, mineiras,
agricultoras, donas-de-casa etc. Vivem no
campo e/ou na cidade ou vilas, nas casas, nas
ruas, festas, minas, salões e casebres; realizam
travessias entre o campo e a cidade e por
oceanos, interligando espaços e culturas
distantes. A compreensão de como viveram e do
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2º SEMESTRE 2001
que fizeram de suas vidas é buscada, em grande
parte dos artigos, através do trabalho com a
memória e do uso de relatos orais. Em muitos
casos, também se recorre aos escritos mais
íntimos, como cadernos pessoais e de
recordação, à imprensa e aos processos judiciais,
isto é, aos possíveis lugares em que possam ser
encontrados os registros de todos aqueles que
sempre viveram à margem da História e, até há
pouco, também às margens das preocupações
dos historiadores.
Em “Personagens à beira de um porto:
mulheres de Itajaí”, Marlene de Fáveri apresenta
o conjunto de mulheres que compunham aquela
cidade portuária, as quais, convivendo com as
idealizações e expectativas que eram construídas
para as suas vidas, experimentaram, de forma
diversa, os desafios presentes em sua
cotidianeidade. Às representações da doçura, do
comportamento exemplar e da boa dona-decasa, segundo o ideal proposto para a mulher
alemã e mais abastada, a autora não apenas
contrapõe a coexistência de outras identidades
étnicas, como as contrasta com a presença das
mulheres pobres e/ou às margens de tal modelo:
comerciantes, solteironas, meretrizes, lavadeiras,
doceiras, vendedoras ambulantes, mendigas,
loucas etc. Perscrutando arquivos de jornais,
escritos memorialísticos e contos, a autora analisa
como essas mulheres produziram práticas
reveladoras de um esforço de autonomia e
resistência, diante das injunções sócio-culturais
a que estiveram submetidas.
São outras, porém, as configurações de
classe, etnia e gênero que implicam a
conformação das experiências, das lutas e
formas de resistência das mulheres que são
abordadas por Carlos Renato Carola, em “As
trabalhadoras das minas de carvão de Santa
Catarina”. O cotidiano do trabalho dessas
mulheres, que ultrapassa os limites da casa e do
labor doméstico, é enfatizado em sua dimensão
política: trata-se das relações de poder e dos
modos de sociabilidade experimentados pelas
mulheres mineiras em seu espaço de trabalho.
As múltiplas faces de suas ações diante dos
conflitos e dos processos de controle e
exploração a que foram submetidas são
discutidas pelo autor, que as remete à
diversidade de funções e às diferentes formas de
reação diante da diversidade de funções e
trabalhos que exerceram, inclusive aqueles
extremamente “pesados”. Tanto as brigas,
suspensões, desobediências e faltas, como a
obediência, conversas, risos, músicas e
brincadeiras são vistas como interfaces de um
mesmo processo, em que dominação e
resistência se engendram mutuamente. Nesse
sentido, as mulheres não são interpretadas
simplesmente como vítimas, mas, sim, como
atores sociais de jogos que permitem um
questionamento e recusa dos discursos que
afirmam a docilidade, a fragilidade e a
submissão femininas, legitimando e sustentando
as hierarquias de gênero.
Janine Gomes da Silva, em ““Lugares do
recôndito, espaços de sociabilidade: história das
mulheres imigrantes de Joinville”, destaca como
as vivências cotidianas de mulheres que
compuseram a elite germânica que emigrou
para a cidade de Joinville, a partir de 1851, foram
permeadas pelas tensões entre brasileiros,
alemães e demais grupos étnicos, num processo
em que a cultura do grupo dominante procurou
se impor sobre a cidade, constituindo espaços
de sociabilidade restritos e excludentes dos
demais grupos. É compondo e constituindo esse
cenário que se podem entender as ações e
formas de sociabilidade de várias mulheres
alemãs. Além de indicar as suas diferentes
trajetórias sociais e espaciais, Silva discute como
muitas delas construíram o seu presente, em
novas terras, a partir da reconstrução dos laços
de sociabilidade, que se sustentaram em práticas
de suas próprias memórias. Estas se encontravam
expressas em velhos álbuns de recordações, que
traziam registrados os laços de amizade que
precisaram deixar nos lugares por onde
passaram, seja na Europa, seja no Brasil.
Entrecruzando desejos de felicidade, de fé e
bondade com evocações de saudades e de
recordação, tais álbuns podem ser considerados
como elementos emblemáticos do modo como
ressignificaram as suas tradições, estabelecendo
vínculos entre o passado e o presente.
Com outro enfoque, Arlene Renk,, em
“Mulheres camponesas: experiências de
geração”, procura reconhecer o modo como a
memória e a cultura operam os vínculos entre
passado e presente, ao tratar das variações nas
experiências sociais em torno de trajetórias
espaciais e culturais na vida de camponesas,
descendentes de imigrantes alemães, italianos e
poloneses, no oeste catarinense. É bastante
interessante o modo como a autora relaciona as
mudanças geracionais e, especialmente, de
faixa etária com a forma como as colonas
perceberam e sentiram as transformações no
mundo rural e os seus deslocamentos físicos por
outros espaços e territórios. Sem se descuidar das
diferenças étnicas e culturais dessas mulheres,
Arlene Renk faz uma análise que acompanha um
processo, permeado por tensões, em que a
autoridade paterna e limites étnicos e
confessionais restringiam qualquer possibilidade
de autodeterminação feminina. Ao acompanhar
o deslocamento dessas camponesas para o
mundo urbano, a autora redimensiona e
temporaliza o processo de “encolhimento do
mundo rural” e de redefinição das fronteiras entre
cidade e campo. Os significados das mudanças
nas formas de sociabilidade e das mobilidades
sociais, espaciais, econômicas e culturais são
reinterpretados sob a perspectiva das
reavaliações que as mulheres fizeram de seus
percursos de vida e dos sonhos, desejos,
expectativas e práticas que expressaram, sob a
perspectiva de uma outra geração e faixa etária.
Através do estudo de várias trajetórias individuais
de vida, vemos emergirem individualidades que
rompem, mesmo que de forma relativa, com as
rígidas relações familiares e comunitárias
anteriormente vividas. Nesse processo, as
mulheres passam a ganhar visibilidade política,
deslocando-se por novos espaços e assumindo
novos papéis em movimentos sociais,
cooperativas, sindicatos, partidos políticos,
associações filantrópicas e religiosas e, mesmo,
na Assembléia Legislativa. Além disso, ao mesmo
tempo em que a velhice é percebida em sua
imposição de limites, pois algumas se referem ao
corpo como “estragado” e “carroça velha”, em
seus enunciados também transparece uma
grande satisfação, aliada a um sentimento de
maior liberdade, em poder, agora, “viver a vida”.
Nesse sentido, é fundamental o valor que
atribuem aos recursos da aposentadoria, a qual
ainda permite o tempo livre e a possibilidade de
viver outros espaços de sociabilidade a que antes
não tinham acesso: bailes, viagens em excursões
etc.
A reconstrução dos modos de vida e de
socialização de mulheres imigrantes teutobrasileiras da Colônia Blumenau é também objeto
dos estudos de Cristina Scheibe Wolf,, em “Como
se forma uma “boa dona de casa”: a educação
de mulheres teuto-brasileiras na Colônia
ESTUDOS FEMINISTAS
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2/2001
Blumenau (1850-1900)”. Utilizando-se de jornais,
cartas e memórias, a autora nos apresenta uma
análise atenta e rigorosa, sob a forma de um texto
extremamente prazeroso de ser lido, em que logo
sinaliza para o papel fundamental que era
atribuído às mulheres na reconstituição e
organização social da vida dos imigrantes. Assim,
no processo em que estes procuraram forjar uma
identidade étnica teuto-brasileira, é que foram
reafirmando as suas expectativas e idealizações
acerca de um certo modelo de mulher. Para isso,
contrapuseram a imagem da mulher brasileira
“fútil, ociosa e desleixada” à da mulher alemã
“boa dona-de casa, ordeira e trabalhadora”.
Sem perder de vista as formas diferenciadas e
conflituosas em que ocorriam esses processos de
socialização – mediados pelas intersecções entre
gênero, classe e local de moradia –, a autora
também procura reconstituir toda a sua
complexidade, considerando o embricamento
entre os diversos modos e lugares em que se
realizam: nos âmbitos familiares, religiosos e
escolares. Os valores morais e os hábitos de
conduta da “boa dona-de casa” são aqui
analisados tendo em vista uma certa “cultura do
trabalho” que foi sendo constituída/reconstituída
em torno de determinadas necessidades,
interesses e sentimentos. Estes eram marcados
pelos valores da solidariedade, generosidade e
afetividade, oriundos de um estilo de vida
tradicional, que se mesclavam àqueles
preconizados pelos reformadores religiosos
católicos e protestantes: diligência, ordem,
economia etc.
Buscando trilhas que permitam conhecer os
processos em que se constituíram as
subjetividades de mulheres que viveram em um
outro tempo e lugar, Maria Teresa Santos Cunha
procura compreender as “Práticas de leitura entre
professores primários (1950-1960)” em
Florianópolis. Aqui, tais práticas são entendidas
enquanto uma das estratégias que formaram as
sensibilidades, o gosto e os sentimentos,
constituindo visões de mundo e modelando
condutas, normas e valores que deveriam
compor o “ser mulher”. Porém, o processo de
leitura também é percebido em uma outra
dimensão, qual seja, enquanto uma prática
criadora de sentidos múltiplos e singulares, o que
implica a compreensão de que os assentimentos
e/ou
dissentimentos
costumam
ser
experimentados de forma contraditória, pois se
encontram sempre referidos às vivências
particulares que cada sujeito experimenta.
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2º SEMESTRE 2001
Através de um trabalho criterioso e revelador de
uma fina acuidade e sensibilidade, a autora
percorreu um caminho em que levantou os
acervos das bibliotecas escolares, a circulação
e veiculação de livros pelos jornais e chegou às
estratégias que foram desenvolvidas para a
apropriação do lido, através não somente de
testemunhos pessoais das leitoras, como também
dos registros manuscritos de suas impressões
sobre as leitura, feitas durante o período em que
se formavam professoras.
Se o romance, tipo de literatura chamada
“cor-de-rosa” e aprovada pela Igreja Católica,
foi reconhecido por esta autora como o principal
tipo de leitura realizada por leitoras de meados
do século XX, em Florianópolis, é neste mesmo
lugar, mas em outro tempo, que Antonio Morga,
em “Espaços de visibilidade feminina: Nossa
Senhora do Desterro no século XIX”, também
identifica a literatura romântica e o drama como
divulgadores de uma pedagogia das condutas
que visou a um controle sobre as formas de
sociabilidade e as práticas afetivas das mulheres.
Contudo, ambos os autores remetem a
temporalidades históricas e a enfoques teóricos
e metodológicos distintos. Morga se refere a
literatura, música e peças teatrais, veiculadas
pelos romances, pela imprensa, por sociedades
dramáticas e por diversos manuais para orientar
o contato entre homens e mulheres e para manter
os códigos de sedução dentro das normas de
sociabilidade preconizadas. Procura identificar os
discursos do e sobre o teatro e as diversas formas
de expressão do romantismo, incluindo os
sentimentos que suscita o “compartilhamento das
lágrimas”, com o discurso médico-higienista e
com as distinções sociais que a burguesia em
ascensão busca produzir, ao normatizar formas
de requinte e modos de comportamento diante
de si e do outro.
Por outro lado, ao encontrar registros de
práticas sociais de mulheres, naquele período,
depara com figuras diversificadas e
contraditórias. Os viajantes descreviam a polidez,
urbanidade, luxo no trajar-se e boas maneiras da
mulher desterrense. A imprensa, grande
veiculadora, em tons românticos, de modelos
para a conduta feminina, opunha as figuras da
mulher esposa, filha e mãe às da namoradeira,
sedutora e vaidosa; além disso, também se
referia, de forma anônima, aos casos daquelas
desviantes da norma. Em seu texto, para além
de objetivar ou conseguir definir um determinado
perfil para as mulheres de elite de Desterro –
comparando suas práticas com as clivagens
sociais que sofreram suas condutas e
subjetividades – o autor conseguiu conferir àquele
contexto histórico determinado um olhar sobre o
modo como a construção daquela dada
sociedade e de seus laços de sociabilidade foi
também permeado pelas preocupações que as
práticas e comportamentos de mulheres
suscitavam. Além disso, tal estudo também
permite dar maior visibilidade às formas como as
mulheres fizeram parte dos processos sob os quais
as relações de poder e as tensões sociais
emergiram.
É também sobre Florianópolis, entre os
períodos estudados por Cunha e Morga, que se
debruçou o olhar de Karla Leonora Dahse Nunes.
Procurou reconstituir, em “Antonieta de Barros:
uma história”, o campo sócio-cultural
determinado em que se inscreveram as ações
dessa personagem e, ao mesmo tempo, analisar
as suas possibilidades, mesmo que relativas, de
ação autônoma especialmente na condição de
jornalista, em que foi modelada e também
ajudou a modelar formas de agir. Não se
descuida, portanto, do fato de que as suas ações
estiveram determinadas pelos limites de um
tempo – trata-se da década de 1930 – em que
ganhavam relevância os padrões de exigência
estética conferidos à modernidade e onde se
manifestava o “desejo de controle político de
gestos,
olhares,
lugares,
sabores,
comportamentos, padrões”. Porém, o que se
destaca neste estudo é o modo particular com
que “Maria da Ilha” (pseudônimo de Antonieta)
denotou uma percepção e sensibilidade crítica
e contundente sobre vários dos fatores que
implicavam a submissão e exclusão das
mulheres. Nunes faz notar a maneira como a
experiência e as condições específicas de vida
de uma mulher negra e provinda de uma classe
social menos privilegiada, que foi professora,
jornalista e chegou a ser deputada estadual,
marcaram as formas com que expressou os seus
modos de ver e sentir as questões de seu tempo.
Carmen Suzana Tornquist, com “A mão e a
luva: processo de medicalização do parto e o
corpo feminino em Florianópolis”, e Karen Cristina
Réchia, com “Das senhoras dos “repolhos” e das
“roças”: ou de como nasciam os bebês”,
tematizam os saberes das mulheres e das
parteiras em torno da prática do parto e a rede
de sociabilidades, as esferas de poder e prestígio
que se constituíam em torno desse fato. Ambas
se referem a um período quase similar, que se
estende até a década de 1950-1960 e às
cidades de Florianópolis e Treze de Maio,
respectivamente. O modo como significam a
importância e o sentido dos relatos orais, dos
quais se servem para a pesquisa, determina os
rumos dos conhecimentos que produzem. Para
compreender os elementos que compunham a
cultura e o contexto histórico de que tais práticas
fizeram parte, Réchia procurou distinguir o que
era recorrente nas lembranças das parteiras, a
forma como elas se lembravam e como atribuíam
significações para a gravidez, para os rituais em
torno do parto, para o resguardo e para o “ser
parteira”.
Também atribuindo grande
importância para o modo como as mulheres
lembram, Torquinst chama a atenção para a
“per formance narrativa”
presente nos
testemunhos de mulheres não letradas que
estiveram envolvidas com tais práticas: parteiras,
parturientes, filhas de parteiras. Tanto quanto o
discurso verbal, o discurso corporal que o
acompanha é um elemento essencial na
interpretação operada pelo pesquisador. Os
saberes e poderes femininos relativos aos
cuidados com o corpo, a saúde e as crianças
são entendidos como constituídos e constituintes
de uma dada experiência e cultura. Denotam
uma prática de trabalho que é atravessada por
outras categorias de valor: necessidades de
sobrevivência, solidariedade, prestígio e
autonomia. Revelam territórios de maior
liberdade de deslocamento espacial das
mulheres, relativizam territórios de poder, prestígio
e autoridade em sociedades onde as diferenças
e hierarquias de gênero, classe e etnia são
bastante demarcadas. Os trabalhos, por fim,
abordam o estabelecimento do discurso médicocientífico e a medicalização das parteiras,
processo que, segundo Tornquist, faz irromper ao
lado dos saberes, anteriormente compartilhados,
uma multiplicidade de práticas que “rompem
com a idéia de irmandade/unicidade entre as
mulheres”, revelando “nuances bastante
complexas nas interfaces entre gênero, classe e
profissionalização”.
Em seu conjunto, todos os textos deste livro
que puderam recorrer ao uso do trabalho com
a memória, visando a reencontrar as
experiências de personagens femininas
escondidas pelo tempo e desconhecidas pelas
caminhos da pesquisa historiográfica, também
se preocuparam em situar/explicar as
implicações metodológicas da opção por tal
caminho. É o caso do empenho rigoroso de
ESTUDOS FEMINISTAS
629
2/2001
Maria Bernadete Ramos Flores, em “Trabalho da
memória/memória do trabalho/trabalho e festa”.
Ao mesmo tempo em que a autora vai explicando
e tecendo os fios das lembranças sobre festas
que as mulheres do interior da Ilha de Santa
Catarina relataram, também as vai referindo aos
valores, crenças e experiências que foram
forjadas no cotidiano de suas experiências
coletivas de vida. Assim, entrelaçam-se história
do cotidiano e história e memória de mulheres,
reconstituindo-se um cotidiano politizado e
complexo, que ultrapassa os limites do doméstico
e do interior da casa e em que se entrosam o
lúdico, o trabalho e o religioso. Desta perspectiva,
observam-se processos sociais antes não visíveis
e que revelam múltiplas e diversificadas vivências,
as quais, por sua vez, denotam o caráter histórico
do entrecruzamento de temporalidades e
espacialidades múltiplas.
História das mulheres em Santa Catarina
demonstra o esforço em redimensionar e
particularizar os objetos da produção
historiográfica brasileira e, ao mesmo tempo,
revela um esforço rumo à necessidade de
descentralizar os tradicionais pólos de
divulgação da produção científica no país. Com
a apresentação dos diversos enfoques,
problematizações e rumos das pequisas dos
diversos trabalhos, contidos neste livro, nesta
resenha, puderam ser indicados os diversos
caminhos de pesquisa que permitem descontruir
estereotipias de gênero e, ao mesmo tempo,
compreender a ação das mulheres como
engendrada, também, pelas suas origens
nacionais e étnicas, pelas suas relações de classe
e trabalho, religiosas, geracionais, etárias etc. Tais
caminhos e resultados de investigação
possibilitam, portanto, romper com categorias
abstratas e idealidades universais, como as de
“condição feminina” ou “cultura feminina”.
Vemos emergir experiências múltiplas e
contraditórias realizadas na trama de um
cotidiano complexo e politizado, sempre remetido
a conjunturas concretas e provisórias. Ao se
atribuir visibilidade e explicação à ação das
mulheres, redimensiona-se a compreensão dos
processos sócio-históricos, ao mesmo tempo em
que as teorias e metodologias que dão suporte
ao fazer historiográfico são também revistas,
redimensionadas e ressignificadas.
MARIA DE FÁTIMA SALUM MOREIRA
Traduzindo identidades
Identidades traduzidas: cultura e
docência teuto-brasileiroevangélica no Rio Grande do Sul
MEYER, Dagmar Elisabeth Estermann
Santa Cruz do Sul: EDUNISC; São
Leopoldo: Editora Sinodal, 2000. 242 p.
Mobilizando um invejável e alentado
confortos do distanciamento” (p. 8), a pesquisa
teve uma história que aponta a inserção da
autora, Dagmar, em três contextos bem distintos
e definidos: uma família de imigrantes alemães,
um Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
ANO 9
630
2º SEMESTRE 2001
e Gênero (GEERGE) e a docência na Faculdade
de Educação (FACED/UFRGS). Estas pertinências,
muito bem tramadas, não caíram em qualquer
tom confessional mas evidenciaram, sim, que as
investigações são sempre interessadas, uma vez
que elas se desenvolvem em torno de
questionamentos feitos por alguém que começa
e consegue formular determinadas perguntas a
partir de um lugar e em um tempo específico.
Os dados, além de sustentarem análises
engenhosas, são discutidos quanto à
procedência, fidedignidade, modo de coletar e
de usar, ou seja, ela discute como chegou aos
dados e como estes chegaram ao livro, sem
descuidar em nenhum momento da elegância
da escrita: justa escolha das palavras, frases
ordenadas, controle dos parágrafos, o que só
vem assegurar, mais uma vez, a qualidade do
estilo em que o texto é construído.
A opção por desnaturalizar/desconstruir
idéias e conceitos já arraigados, os ditos “lugarescomuns”, foi realizada com pleno êxito, sempre
historicizados, isto é, sempre colocados na ordem
do histórico, portanto, do mutável, como se
encontra na passagem descrita à página 38: “os
imigrantes alemães não compunham, então, um
grupo homogêneo, sob muitos aspectos: eram
oriundos de diferentes Estados e regiões, muitos
eram camponeses e servos, outros tantos
marginalizados urbanos, alguns podiam ser
intelectuais em exílio político”. De igual maneira,
a passagem que se encontra à página 115
quando a autora reafirma “a impossibilidade de
se falar, no contexto sócio-histórico alemão,
acerca da escola, da formação de professores
e professoras ou do exercício do magistério no
singular, o que, por extensão, mina também a
idéia de uma concepção homogênea e
amplamente compartilhada de escolarização
que passaria a ser apresentada como sendo uma
característica (ou tradição cultural) desses
imigrantes no Brasil”.
Essas citações remetem, igualmente, à
questão do método utilizado. Ele foi construído/
tramado a partir de uma salutar e bem-sucedida
abertura epistemológica (anunciada à página
28) que lhe deu legitimidade, abandonando
corajosamente o modelo dogmático e, por vezes,
ortodoxo ainda presentes em certos setores da
pesquisa em Educação, em que as situações já
estão definidas por antecipação, cabendo às/
aos estudiosas/estudiosos apenas comprová-las.
Ao invés disso, a profundidade sem afetação, a
flexibilidade interpretativa e os diálogos fecundos
com os campos de Estudos Culturais e Estudos
Feministas mostraram a História e suas formações
discursivas como uma representação do passado
que caminha através do relacional das disputas,
das hipóteses em confronto, sem a ansiedade
cartesiana de causa e efeito encadeados em
uma seqüência fatal de conclusões.
Detetivescamente, como convém a uma
pesquisadora, a autora perseguiu evidências,
pistas, e esta perseguição foi realizada por ações
relacionais e diversificadas, sistematizadas ao
longo do livro e expressas por ações como
“selecionei”, “organizei dados”, “analisei”,
“reorganizei a pesquisa”, “fui induzida a buscar”,
“percorri caminhos investigativos”. E foi na
totalidade dessas dimensões que, para além das
análises que empregam gênero como categoria
útil, Dagmar buscou a compreensão dos papéis
ou dos destinos de mulheres e homens,
humanizando um passado que não foi tão certo
e preciso quanto algumas teorias criadas para
entendê-lo.
Ao longo dos três capítulos do livro, a autora
problematiza as representações em torno de uma
cultura teuto-brasileiro-evangélica, mostrando as
representações culturais e a produção de
identidades culturais; analisa a Escola e a
Docência como uma arquitetura de um regime
de representação cultural; e aborda, no terceiro
capítulo, uma identidade docente entre a
tradição e a tradução cultural. Tudo isto
apresentado em análises sofisticadas que
interligam conceitos como nação, religião,
gênero e raça/etnia.
Sem dúvida, um outro grande mérito deste
livro reside na sutileza, no detalhamento e no
cuidado com que a autora se debruça sobre a
questão da cultura, como frisou na Apresentação
a professora doutora Guacira Lopes Louro
(UFRGS), para quem “as representações de
escola e de docência, inscritas no interior de um
determinado contexto cultural, são analisadas
como resultantes e, ao mesmo tempo,
constituidoras desse projeto cultural específico”
(p. 9).
Ao final, a certeza de que as Identidades
foram traduzidas e revelaram outras
possibilidades de puxar o fio da História da
Educação, na perspectiva dos Estudos Culturais
e Feministas, além, é claro, do barthesiano prazer
de ler.
MARIA TERESA SANTOS CUNHA
ESTUDOS FEMINISTAS
631
2/2001
Paternidades e masculinidades em contextos
diversos
Paternidades en América Latina.
Fuller, Norma (Ed.).
Lima: Pontificia Universidad Católica del
Perú, Fondo Editorial, 2000. 418 p.
Tem sido possível pontuar uma mudança de
enfoque nos estudos de gênero, particularmente
a partir de 1994, pós-Conferência Internacional
sobre População e Desevolvimento, no Cairo, e
pós-Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing,
1995), que direcionaram sua atenção para a
participação masculina e a responsabilidade dos
homens nas questões que afetam o cuidado com
os filhos e as decisões com relação à reprodução
e à sexualidade. Ao se acompanhar o fluxo da
produção sobre identidade masculina e
paternidade percebe-se que nos anos 90 o tema
ganha um fôlego especial, aglutinando boa
parte das pesquisas desenvolvidas no campo dos
estudos de gênero no Brasil. É também nesse
período que o tema da masculinidade aparece
com maior ênfase em outros países da América
Latina. Até então, nos estudos sobre a vida
privada, a fala de mulheres de diferentes
camadas sociais era predominante. Sobre a
subjetividade masculina pairava um quase
silêncio, quebrado apenas por alguns
pesquisadores/psicólogos que chamavam a
atenção para uma suposta “crise da
masculinidade”.
A constatação de que muitas demandas
colocadas pelo movimento feminista ainda não
haviam sido equacionadas redefiniu, por outro
lado, uma agenda de pesquisa e intervenção,
sobretudo com questões relativas à saúde e aos
direitos sexuais e reprodutivos. Não surpreende,
portanto, que a década de 1990 tenha como
referência um interesse específico pela
construção social da masculinidade como objeto
de pesquisa, sobretudo entre pesquisadores do
campo da saúde reprodutiva e da sexualidade.
Ainda que a noção de gênero aponte para o
caráter implicitamente relacional do feminino e
ANO 9
632
2º SEMESTRE 2001
masculino, até então os estudos de gênero
vinham privilegiando pesquisas sobre a condição
das mulheres na família, no trabalho, nos
diferentes espaços de poder. Os movimentos
feminista, gay e lésbico tiveram papel
fundamental ao alertar para as desigualdades
de gênero, para os direitos sexuais e reprodutivos.
A evidência das diferenças de sexo e de como
estas diferenças constroem as desigualdades de
gênero e as relações de subordinação constitui,
por tanto, a base para o crescimento de
pesquisas focalizando os homens e a construção
das masculinidades.
Na América Latina, incluindo o Brasil, o
interesse está relacionado, no âmbito mais geral,
às mudanças nas relações de gênero e à
inadequação dos paradigmas explicativos
diante da complexidade da dinâmica social; no
âmbito mais restrito, político até, relaciona-se à
constatação de que a compreensão das práticas
masculinas, por exemplo, pode contribuir para
melhorar os resultados de programas voltados
para a saúde das crianças, para a prevenção
de doenças sexualmente transmissíveis e para as
decisões de planejamento familiar. Em parte, essa
temática surge como reflexo do desenvolvimento
que os estudos feministas e de gênero
alcançaram desde a década de 1970 e que
demonstravam a necessidade de novas e
diferentes estratégias para maior eqüidade entre
homens e mulheres, bem como para expressão
das sexualidades e culturas sexuais. Os modelos
hegemônicos de masculinidade e feminilidade
heterossexuais como via única na conformação
das identidades sexuais e dos comportamentos
são colocados em questionamento.
Este preâmbulo nos ajuda a dimensionar a
importância de uma coletânea como
Paternidades en América Latina, organizada por
Norma Fuller. Os/as autores/as reunidos/as neste
livro passam a ser, na atualidade, fonte básica
para novos estudos sobre masculinidade e
paternidade. Mara Viveros, José Olavarria, Benno
de Keijzer, Teresa Valdés, Ondina Fachel Leal e a
própria Norma Fuller, entre outros, versam em seus
textos sobre o significado que a paternidade tem
para os homens, para o seu projeto de vida,
problematizando as dificuldades que os homens
enfrentam e o impacto das transformações
conjugais para o exercício da paternidade.
Os artigos resultaram da Conferência
Paternidades na América, organizado pelo
Departamento de Ciências Sociais da PUC do
Peru. Por isso, além dos textos, que permitem uma
leitura comparativa das análises e das
informações colhidas em pesquisas em diferentes
países, é possível acompanhar o debate
subjacente à temática, em geral privilégio
apenas daqueles que estiveram fisicamente
presentes ao evento. O debate assim explicitado
acaba contribuindo, juntamente com as
pesquisas apresentadas, para o delineamento de
metodologias de trabalho e políticas públicas
voltadas para a população masculina e para as
demandas desta.
Apesar das perspectivas teóricas e
analíticas distintas, os textos coincidem ao
expressar a paternidade como uma dimensão
fundamental na vida dos homens, sejam eles dos
segmentos populares, sejam dos médios, para
os quais o exercício da paternidade está
relacionado a fatores específicos que precisam
ser considerados quando se for estudar esse
assunto. Entre os fatores que influenciam a
construção social da paternidade está a relação
familiar (com o pai, com a mãe e depois com a
própria mulher ou mãe de seu filho); as condições
sociais e econômicas; a relação com o grupo
de pares. Também a estrutura sociocultural de
uma dada sociedade marca a vida de homens
(e de mulheres) e por conseqüência exerce efeito
sobre a paternidade, até mesmo na
disponibilidade de tempo que os homens têm
para se dedicar aos filhos e à família. Algumas
tarefas com relação aos filhos e à casa
demandam mais tempo do que outras,
influenciando a divisão social e sexual do
trabalho, da mesma forma que certos valores e
costumes estabelecem expectativas com relação
à masculinidade e à paternidade.
A paternidade, assim como a maternidade,
é um momento de transformação, marcada,
sobretudo na sociedade latino-americana, pela
assunção da responsabilidade (de prover, de
cuidar, de proteger). Essa relação aparece em
quase todos os artigos que compõem a
coletânea. A precarização do trabalho
remunerado entre os homens, por exemplo, tem
afetado sobremaneira a identidade masculina,
ao colocar em risco o lugar de provedores
econômicos do grupo familiar, outro aspecto
discutido pelos/as autores/as. Mara Viveros
argumenta que as novas exigências das mulheres
e as crescentes demandas afetivas dos filhos têm
aumentado, em muitos casos, os sentimentos de
frustração dos homens, por não conseguirem
mais sustentar o ideal de provedores e de modelo
paterno para seus filhos. Esses temores podem
resultar muitas vezes em situações de violência
familiar. Ao ler os relatos descritos nos artigos,
percebe-se claramente um questionamento dos
homens pesquisados sobre a forma como têm
vivenciado a paternidade. Numa atitude
claramente reflexiva, esses homens percebem as
contradições sobre como têm exercido sua
paternidade e nem sempre as expectativas por
eles mesmos criadas têm sido alcançadas (Este
é outro ponto em comum nos artigos: há um
modelo de paternidade ideal que tanto permeia
o imaginário social dos homens pesquisados
como o dos/as pesquisadores/as.).
O encontro de pesquisadores com
diferentes pontos de vista, que adotam
procedimentos analíticos e teóricos distintos,
como é o caso desta coletânea, resulta num
panorama das principais questões ainda em
aberto, clamando por serem investigadas.
Algumas delas puderam ser pinçadas durante a
leitura, tais como o impacto do divórcio e dos
pais separados de seus filhos nas relações
familiares e de gênero; casais homossexuais e o
estabelecimento de relações familiares e de
filiação; a jornada de trabalho e as implicações
na articulação família/filhos/trabalho, e o efeito
disso nas atribuições paternas e maternas; o
impacto das novas tecnologias reprodutivas na
definição de parentalidade; a equação
autoridade/poder relacionada à paternidade e
aos novos arranjos familiares; o lugar masculino
na saúde reprodutiva e no planejamento familiar,
incluindo a decisão por eventual aborto etc. O
livro suscita estes e outros temas, mas sobretudo
permite cotejar hipóteses para as pesquisas sobre
famílias e relações de gênero.
SANDRA UNBEHAUN
ESTUDOS FEMINISTAS
633
2/2001
Um roteiro da construção social da “violência
de gênero”: conflitos interpessoais e
judiciarização
Violência, gênero e crime no
Distrito Federal.
SUÁREZ,Mireya e BANDEIRA, Lourdes
(Orgs.).
Brasília: Paralelo 15;Editora da
Universidade de Brasília, 1999. 536 p.
O livro organizado por Mireya Suárez e
Lourdes Bandeira é fruto de um trabalho coletivo
no sentido forte do termo. Trata-se da publicação
dos resultados de projetos de pesquisa voltados
para o estudo das “violências contra as mulheres”
e articulados em torno do convênio do Núcleo
de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (NEPeM) da
Universidade de Brasília com a Secretaria de
Segurança Pública do Distrito Federal. É obra de
equipe, composta de 12 capítulos assinados por
várias pesquisadoras que, sem perder
especificidade nem autonomia, mantêm uma
interlocução entre si que demonstra a base
cooperativa sobre a qual foi realizado o trabalho
como um todo. Assim, supera-se a simples
justaposição de trabalhos, ampliando-se o
alcance dos resultados de cada um
isoladamente. O diálogo entre os capítulos é
peça fundamental para a realização do tour
d’horizon sobre a complexa temática recortada
no livro. A meu ver, o mérito primeiro de Violência,
gênero e crime no Distrito Federal é o efeito de
conjunto, ou melhor, a complementaridade de
perspectivas.
Para se ter uma idéia da extensão do
campo coberto pela obra, convém destacar que
os 12 capítulos estão organizados em quatro
partes: “Discursos sobre a violência”; “Narrativa
da violência”; “Reflexões teóricas sobre o estupro”
e ; “Uma análise dos dados sobre a violência”. A
primeira parte engloba os seguintes capítulos: “A
noção de crime sexual” (Mireya Suárez, Danielli
Jatobá França e Renata Weber); “O discurso
ANO 9
634
2º SEMESTRE 2001
policial comentado” (Mireya Suárez); “Notícias de
violência: uma leitura” (Tânia Montoro); e
“Violência contra mulheres na mídia impressa”
(Adriana Carvalho Lopes). Na segunda parte: “Pai
e avô: o caso de estupro incestuoso do pastor”
(Lourdes Bandeira e Tânia Mara Campos de
Almeida); “Violência conjugal: os espelhos e as
marcas” (Lia Zanotta Machado e Maria Tereza
Bossi de Magalhães); “Uma reflexão sobre a casa
como lugar de violência inocente” (Tânia Mara
Campos de Almeida); e “Retóricas sobre o crime”
(Danielli Jatobá França). A terceira parte é
composta por: “Sexo, estupro e purificação” (Lia
Zanotta Machado); “Violência sexual, imaginário
de gênero e narcisismo” (Lourdes Bandeira); e “A
estrutura de gênero e a injunção do estupro” (Rita
Laura Segato). Na última parte, um capítulo único
intitulado “Um recorrido pelas estatísticas da
violência” (Lourdes Bandeira). Destaca-se
também a interessante introdução assinada por
Mireya Suárez e Lourdes Bandeira.
A complexidade do campo em que se situa
a obra está marcada pela transversalidade dos
fenômenos abordados, bem como pela sua
persistência. Ela tem colocado em questão, nos
últimos anos, a capacidade analítica dos
modelos clássicos e as políticas de intervenção
neles baseadas. Nas últimas décadas essa
temática tem sido motivo de inquietação em
países tão diferentes quanto Estados Unidos da
América, França, Canadá ou Brasil, e atravessa,
em cada um deles, o conjunto dos seus
segmentos sociais. Desse modo, os movimentos
sociais que lutam contra a impunidade nos casos
de “violência contra mulheres” são, ao mesmo
tempo, fenômeno local e global, e os modelos
interpretativos e propositivos resultam de
complexo amálgama desses dois campos. Há
que se considerar ainda que a expressão
violência contra a mulher reagrupa toda uma
gama de fenômenos, razão pela qual pode ser
considerada como um conjunto heterogêneo de
experiências sociais. A homogeneização que
resulta dessa expressão é problema teórico, mas
também tem implicações na definição de
políticas sociais de intervenção.
Os enormes avanços realizados no
conhecimento empírico das relações
interpessoais, sobretudo no âmbito da
conjugalidade e das práticas institucionais
correlatas, nos convidam para mais um
movimento que deve ser o da dúvida teórica
radical. Porém, uma dúvida teórica que envolva
a percepção social dos fenômenos estudado e
dialogue diretamente com ela. Nesse sentido,
entendo que o livro Violência, gênero e crime no
Distrito Federal responde a uma demanda, supre
uma carência, da maior atualidade para as
ciências sociais: uma releitura teórica e empírica
da construção social da “violência de gênero”
no Brasil.
Na obra cruzam-se discussões teóricas,
análise de dados e a construção simbólica da
“violência” na mídia, resultando uma visão mais
profunda e abrangente dos temas abordados.
Assim, temos uma leitura teórica que desloca o
centro da análise para fenômenos concretos,
afastando-se da homogeneização contida na
noção de “violência”, o que contribui para
desmitificar o alarmismo de um crescente e
inelutável aumento da “violência”, que, ao invés
de nos despertar para a ação, pode inibir nossa
capacidade de agir. Neste livro, nos capítulos
sobre estupro, incesto e “crimes sexuais”, por
exemplo, a discussão teórica torna-se mais
refinada e abre perspectivas para modelos
interpretativos específicos e para o
desenvolvimento de ações concretas de
prevenção e promoção de políticas públicas
alternativas. Seus capítulos se alinham num fluxo
comum, compondo um mosaico de
questionamentos teóricos em diálogo com a sua
base empírica, o que é a segunda, mas
igualmente importante, qualidade desta obra.
Uma terceira característica, mais sutil, resulta
do cruzamento das duas anteriores: o resgate
da polifonia presente nas práticas sociais
analisadas pelas pesquisadoras. De fato, ao
longo dos 12 capítulos estão presentes as vozes
das mulheres, mas também da mídia, dos
agressores, além das falas dos policiais e dos
discursos dos teóricos. Pode-se afirmar, portanto,
que estamos diante de uma obra rara, cuja
raridade aponta para uma trajetória, um roteiro
de pesquisa, ao mesmo tempo “engajada” como se dizia no jargão militante - e
contemporânea, por mostrar cenários em
constante remontagem.
As três marcas que pontuaram a minha
leitura da obra fazem pensar na importância
desse tipo de trabalho, no seu alcance como
instrumento para a elaboração de políticas
públicas e, sobretudo, na virtude de apresentar
as múltiplas trilhas percorridas para a construção
social da “violência de gênero”. Isso me leva a
identificar na obra uma proposta de pesquisa
que deve ser seriamente discutida, porque nos
permite refletir para além da generalidade do
objeto “violência”, especificando-se na
complexidade dos conflitos interpessoais e na
transformação da intimidade, para usar a fórmula
consagrada. O que acredito poderá, no limite,
refletir-se nas políticas sociais, especialmente no
questionamento da posição privilegiada, senão
exclusiva, dos processos de judiciarização. Afinal,
precisamos de novos modelos interpretativos que
nos permitam ultrapassar os limites dos territórios
conceituais que mostraram a sua força fazendonos ver a invisibilidade da “violência contra a
mulher”, mas que agora nos prendem aos seus
próprios avanços.
THEOPHILOS RIFIOTIS
ESTUDOS FEMINISTAS
635
2/2001