ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v. 3, n. 2, p. 122-140, ago./dez. 2012 (ISSN 2179-3948 – online)
SILVA, L. H. O.; RAMOS JÚNIOR, D. V. Os sentidos da escola e da escolha da profissão docente...
OS SENTIDOS DA ESCOLA E DA ESCOLHA DA PROFISSÃO DOCENTE EM
RELATOS AUTOBIOGRÁFICOS DE PROFESSORES EM FORMAÇÃO:
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES ENTRE HISTÓRIA ORAL E SEMIÓTICA
DISCURSIVA
THE SCHOOL MEANINGS AND THE TEACHER PROFESSION CHOICE IN
AUTOBIOGRAPHICAL REPORTS OF UNDERGRADUATING TEACHERS:
INTERDISCIPLINARY DIALOGS BETWEEN ORAL HISTORY AND DISCURSIVE
SEMIOTICS
Luiza Helena Oliveira da Silva*
Dernival Venâncio Ramos Júnior**
Resumo: Este trabalho analisa relatos autobiográficos produzidos por professores em
processo de formação em História, inscritos no programa PARFOR desenvolvido junto à
UFT. Os relatos foram tomados como gêneros catalisadores, potencializando a reflexão dos
docentes sobre sua formação: informam sobre a complexidade das trajetórias de formação de
docentes no Norte/Nordeste do país e apontam para as especificidades que caracterizam sua
identidade profissional.
Palavras-chave: formação de professores; memória; semiótica discursiva.
Abstract: This article analyzes autobiographical narratives produced by teachers of History in
the process of their formation, and who are enrolled in PARFOR, a program developed by the
UFT. The reports were used as catalysing genres, motivating teachers' reflections about their
education. Such reports relate the complex paths of the formation of North and Northern
teachers of Brazil and point at the specificities which characterize their professional identity.
Key-words: teachers formation; memory; discursive semiotic.
Introdução
O presente trabalho traz análises de relatos de docentes que narram suas histórias de
vida e de formação. Nesses relatos, passado e presente se confrontam remetendo aos sentidos
que conferem à escolha profissional, ao exercício da profissão docente e às expectativas em
torno de uma nova etapa de escolarização. Inscritos num programa de formação de
*
Doutora em Letras pela UFF, atua como docente do Curso de Letras e do Programa de Pós-graduação em Ensino de Língua e Literatura da UFT, campus de Araguaína. E-mail: luiza.to@mail.uft.edu.br
**
Doutor em História pela UnB, é docente do Curso de História e do Programa de Pós-graduação em Ensino de
Língua e Literatura da UFT, campus de Araguaína. E-mail: dernivalramos@uft.edu.br
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professores promovido pelo MEC em parceria com universidades públicas e secretarias
municipais e estaduais de educação – PARFOR (Plano Nacional de Formação de Professores
da Educação Básica) –, esses docentes aqui tomados como sujeitos da pesquisa buscam
ampliar sua qualificação profissional, cursando a primeira ou a segunda licenciatura. Tendo
como objetivo formar cerca de 400 mil professores que atuam em disciplinas diferentes de sua
formação inicial ou ainda sem graduação, a ação do PARFOR está vinculada às discussões do
novo Plano Nacional de Educação, que prevê na sua meta 15 “que todos os professores da
educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de
licenciatura na área de conhecimento em que atuam” (BRASIL, 2010).
Mais especificamente, este trabalho consiste em reflexões trazidas por pesquisa de
caráter interdisciplinar envolvendo relatos autobiográficos de 13 professores matriculados
pelo PARFOR, em 2010, no curso de licenciatura em História, oferecido pela Universidade
Federal do Tocantins, campus de Araguaína (norte do Estado)1 em regime semipresencial.
Conversando com esses docentes na sala de aula ou em momentos informais, fomos
percebendo a especificidade de suas trajetórias profissionais a que se aliavam narrativas de
lutas e dificuldades que marcaram todo o seu processo de escolarização. A isso se somavam
seus relatos quanto à atuação profissional no presente: muitos são professores que lecionam
em escolas rurais, com dificuldade de acesso, todas situadas em pequenos municípios no norte
do Tocantins, a maior parte na região conhecida como Bico do Papagaio.
Comprometendo suas férias (no mês de julho) e períodos de recesso (janeiro), esses
professores nem sempre contam com apoio financeiro das secretarias de educação que lhes
garantam alguma comodidade ou auxílio na cobertura dos gastos com transporte, alimentação
e estada na cidade para a qual se deslocam em função das aulas presenciais.
Como docentes de algumas das disciplinas dos cursos oferecidos pela UFT, iniciamos
uma pesquisa sobre esse programa de formação, buscando dar voz aos sujeitos envolvidos no
processo a partir de seus relatos autobiográficos. Para tal, assumimos uma proposta
interdisciplinar, para a qual convergiram a semiótica discursiva (FIORIN, 1996; 2008),
reflexões fornecidas pela História Oral (MIGNOLO, 2002; ROUVEROL, 2000; THOMSON,
2002; THOMPSON, 1992) acerca da memória e da subjetividade, assim como pela História
de Vida (JOSSO, 2004, 2008 e 2009; ROLLEMBERG, 2003).
1
O Tocantins se constitui como o Estado mais novo do Brasil, situado na região Norte do país. Araguaína, onde
se localiza o campus da UFT a que nos referimos nesta pesquisa, encontra-se no que se compreende como
Amazônia Legal. Do mesmo modo, os sujeitos da pesquisa residem e trabalham nessa região.
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Partimos do pressuposto de que “as narrativas operam na construção e produção de
nossas histórias e de quem somos para nós e para nossos interlocutores”, constituindo-se,
pois, como formas de agir no mundo (ROLLEMBERG, 2003, p. 253). Em outras palavras, ao
significar seu passado e seu presente, os sujeitos buscam significar a si mesmos, a suas
experiências e, desse modo, “iluminam processos sociais mais amplos” (SIGNORINI, 2006,
p. 56), na medida em que fornecem modos de compreensão sobre histórias que trazem tantos
traços comuns, a ponto de podermos pensar numa macronarrativa: no cruzamento das
narrativas de formação, os elementos em comum vão se traduzindo numa história coletiva,
num destino compartilhado que nos propomos a interpretar (RAMOS JR & SILVA, 2011).
Muito se fala sobre o professor, situando-o como “objeto” do dizer, tomando-o,
portanto, como “referente”, situado num “não aqui”. A ele se atribui tantas vezes a tarefa de
edificação do futuro, sendo senso comum que todo progresso de uma sociedade está
condicionado ao sucesso da educação. Contraditoriamente, porém, há uma série de discursos
que circulam socialmente e que constroem uma imagem disfórica de professor e educação,
remetendo à noção de incompetência e fracasso. A escola figurativizada como sempre a
mesma e, por isso mesmo, anacrônica, vai se constituindo nos discursos como lócus de atraso,
sendo os sujeitos os únicos responsabilizados por tal estado de coisas. À centralidade
conferida aos professores em alguns discursos que os edificam como sujeitos de
transformações sociais na “sociedade do conhecimento” (o que pode fazer) corresponde a
marginalidade em outros, deslegitimados enquanto “produtores de saberes” (não saber fazer)
(NÓVOA, 1999, p. 14, 15).
Este trabalho busca conferir centralidade ao docente como sujeito do dizer, o que não
confunde com o exercício de confirmar o discurso que lhe prevê um papel de sujeito do fazer
das mudanças sociais solicitadas num dado momento histórico e, nesse sentido, também
responsabilizando-o pelos sucessos não produzidos. Essa centralidade aqui se traduz como
tomar a fala do professor como ponto de partida, na medida em que este pode oferecer
perspectivas e nuances que se podem e devem ouvir. Dialogando com outras vozes sociais,
esse dizer trazido em relatos autobiográficos é ao mesmo tempo único enquanto arranjo
expressivo e registro de vivências e percepções singulares, mas ao mesmo tempo social e
atravessado por outros dizeres. O docente que toma a palavra pode falar de si, de suas
angústias, de seu percurso individual de sujeito, mas também vai expressar valores que
compartilha socialmente, remetendo, pois, ao âmbito da história e da historicidade do dizer.
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1. Memória e discurso: a perspectiva interdisciplinar
Nosso trabalho de investigação assume a perspectiva interdisciplinar ao convergir para as
reflexões sobre a memória as contribuições da História Oral, da História de Vida e da
semiótica discursiva. Conforme Silva & Pinto (2009), há uma tradição científica que se valeu
durante muito tempo da fragmentação como estratégia para a interpretação da realidade.
Diante da impossibilidade de abarcar o todo e em nome do rigor científico, as teorias se
organizaram a partir de exclusões, o que em muitos sentidos resultou na precariedade dos
procedimentos e insuficiência dos resultados. Neste trabalho, ao assumir o diálogo entre
disciplinas como uma possibilidade teórico-metodológica, não pretendemos alcançar a
totalidade, exaurindo a compreensão do real, mas relacionar teorias e metodologias que
favoreçam a compreensão de objetos complexos. Reunir história e discurso vai implicar
deslizamentos e ressignificações e, assim, representar:
a) que todo dizer se acha atravessado pela historicidade e, portanto, o dizer não se faz no
vazio, tem história, submetendo-se às coerções de seu tempo e inscrevendo-se na
relação com uma tradição de sentidos, com uma memória discursiva (ORLANDI,
1999).
b) que a história não é contexto dado, mas sentido(s) inscrito(s) nos discursos, como
exterioridade constitutiva dos textos enunciados, uma vez que, conforme Landowski,
“tudo que faz sentido é construído” (LANDOWSKI, 1992, p. 11), ou ainda, conforme
o semioticista, “um discurso só adquire sentido enquanto reconstrói significativametne
como situação de interlocução, o próprio contexto no interior do qual se inscreve
empiricamente sua produção ou sua apreensão” (LANDOWSKI, 2002, p. 166).
c) que a historicidade do dizer remete à heterogeneidade (AUTHIER-REVUZ, 1998), a
um dialogismo constitutivo, isto é, todo dizer é atravessado pelo dizer do outro, “todos
os enunciados constituem-se a partir de outros” (FIORIN, 2008);
d) que a história não pode ser reconstituída como uma verdade unívoca sobre o passado,
uma vez que vai ser lida (construída) a partir de versões, conflitos, luta de classes,
embates entre sujeitos e sentidos que buscam legitimação, pressupondo sempre poder,
lacunas, silêncios e censuras.
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Assumimos, portanto, a relatividade dos sentidos sobre o passado, ou seja,
privilegiamos deliberadamente neste trabalho a perspectiva de determinados sujeitos, nesse
caso, professores do Norte do país, em suas narrativas de dificuldades e exclusão (RAMOS
JR. & SILVA, 2011). Ao mesmo tempo, reiteramos a necessidade de incluir a dimensão da
subjetividade para a compreensão da ordem da história (SALVATICI, 2005), sem que
pensemos a relação individual(subjetivo)/coletivo(objetivo, social) como oposições que se
negam mutuamente. Muito pelo contrário, ao recuperar o particular e o subjetivo remetemos
dialeticamente à ordem da história:
O trabalho de pesquisa a partir da narração das histórias de vida ou, melhor,
dizendo, de histórias centradas na formação, efetuado na perspectiva de evidenciar e
questionar as heranças, a continuidade e a ruptura, os projetos de vida, os múltiplos
recursos ligados à aquisição da experiência etc., esse trabalho de reflexão a partir da
narrativa da formação de si (pensando, sensibilizando-se, imaginando,
emocionando-se, apreciando, amando) permite estabelecer a medida das mutações
sociais e culturais nas vidas singulares e relacioná-las com a evolução dos conteúdos
de vida profissional e social. (JOSSO, 2009, p. 414)
Convergindo as perspectivas da História Oral e da semiótica do discurso,
consideramos aqui memória como construção, como trabalho, e não reconstituição fiel ao
passado vivido e experimentado: “compomos nossas memórias para dar sentido à nossa vida
passada e presente”; “construímos memórias usando a linguagem e significados públicos da
nossa cultura”; e, finalmente, segundo Thomson, “compomos memórias que nos ajudem a nos
sentirmos relativamente confortáveis com nossas vidas e que nos dêem um sentimento de
serenidade” (THOMSON, 2001, p. 86).
Conforme a autora, memória é trabalho e não registro passivo capaz de remeter à
reconstituição de um passado inequívoco. Pressupõe engajamento do sujeito, ao mesmo
tempo em que remete à noção de negociação, seja com relação a uma memória produzida
coletivamente – como a que resulta no mito –, seja com relação ao que se quer recortar do
vivido. Nesse esforço, presente e passado se imbricam, uma vez que o que dá sentido à
memória, recortando o que vai ser lido como fundamental ou acessório, o que vai ser
esquecido e silenciado ou ganhará destaque e evidência vai ser sempre o resultado das
escolhas (in)conscientes do sujeito, de seu movimento em relação ao passado e suas traduções
na linguagem.
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1.1.
Figuras, tempos, escolhas
Em “As astúcias da enunciação”, Fiorin discorre sobre o tempo como categoria da
linguagem, remetendo inicialmente a reflexões de Agostinho para quem a memória é o
“presente das coisas passadas”:
Para Agostinho, é inexato dizer que temos três tempos, passado, presente e
futuro, pois o que temos, na verdade, são três modalidades de presente, o
passado, que é a memória, o do presente, que é o olhar, a visão, e o do futuro, que
é a espera e, portanto, transfere para eles a idéia de comprimento do futuro e do
passado. Esses três presentes estão no espírito. (FIORIN, 1996, p. 132)
Seguindo o raciocínio de Agostinho exposto por Fiorin, temos, portanto, o passado
como produto da memória e a memória como uma produção do presente, movimento de
lançar-se em direção ao vivido. É trabalho sobre os sentidos, interpretação, compreendendo-se
o esforço de uma subjetividade que busca significação.
O passado, contudo, pode ser compreendido como um mero continuum, sucessão de
instantes que se indissociam e, portanto, instalam-se na esfera do sem sentido. Para lembrar, é
necessário recortar, estabelecer uma descontinuidade, retomar o que ressurge como elemento
de tonicidade diante da atonia, tal como explica Zilberberg: “Por definição, aquilo que
sobreveio não pode ser atualizado, ou seja, previsto a tal e tal hora e em tal lugar. No entanto,
sua convocação, por assim dizer, é ser relembrado enquanto permanece vívida a ambivalência
da tonicidade” (ZILBERBERG, 2011, p. 174).
No conto “Funes, o memorioso”, Borges narra a vida angustiada do sujeito que, depois
de acidente, passa a lembrar “tudo”. Sem conseguir estabelecer a distinção entre o que deve
ser ou não digno de lembrança, o personagem sucumbe, declarando que sua memória é “como
despejadouro de lixo” (BORGES, 2001, p. 135). Lembrar pressupõe, assim, esquecer, para
que o sujeito possa existir no sentido.
Remetendo a Kant, Zilberberg esclarece que há uma direção que se impõe ao vivido,
considerando as experiências tidas como significativas pelo sujeito. Essa direção, seguindo
um estilo descendente, é determinada pelo fato de que “a estesia se encaminha
inexoravelmente para a anestesia” (ZILBERBERG, 2011, p. 17), a tonicidade apontando para
a atonia. Relembrar, assim, é retomar aquilo que de certo modo ainda não se encontra
totalmente anestesiado, o que é da ordem do guardado com certo apreço, que ainda faz ser o
sentido e faz ser o sujeito, remetendo a sua experiência de estar no mundo. Como o sujeito
não pode conferir sentido ao agora, o instante em que experencia o “acontecimento”
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(inesperado vivido como máxima tonicidade), desapropriando-o da posição do sujeito diante
do “assomo” (ZILBERBERG, 2011), tudo o que resta ao sujeito é reconstituir-se no não
agora, num depois, quanto o acontecimento é da ordem do já vivido (memória) e pode ser
transformado em discurso. Conforme o semioticista, a tonicidade do acontecimento, vivido
como experiência do inesperado, afeta o sujeito de tal modo na sua integralidade que este se
encontra destituído da própria condição de sujeito: “Para essa semiose fulgurante, o
acontecimento, quando digno desse nome, absorve todo o agir e de momento deixa ao sujeito
estupefato apenas o sofrer” (2011, p. 171). O presente é, pois, instante do sofrer (e não poder
dar sentido) e do lembrar (e dar sentido ao que não é, ao que já foi) e, fugindo à maldição que
o destino impôs a Funes, esquecer.
Se a isso somarmos o que declara Thompson (2001, p. 95), vemos ainda a memória
relacionada à instabilidade uma vez que pode ser reconfigurada, ressignificada. Ao discutir o
caso de um ex-combatente de guerra, a autora vai mostrando como, na medida em que o
sujeito adquire uma nova compreensão política, vai sendo capaz de enfatizar diferentes
percepções de sua experiência como soldado. Se o sujeito não é sempre o mesmo, de igual
modo sua memória também não será. O passado, assim, não é o dado, mas que nos chega
pelos caminhos da memória, que é sempre trabalho sobre o sentido.
Desse modo, o exercício do relato autobiográfico potencializa a possibilidade de
refletir sobre a experiência; é efetivamente trabalho que engaja o sujeito no presente. Ao
escrever sobre o passado, organizando no papel suas memórias, o sujeito se põe, portanto,
efetivamente em movimento, produzindo gestos de significação.
Ao privilegiarmos nas narrativas dos docentes aqui analisadas as histórias de
formação, buscamos identificar especificidades que marcam essas trajetórias, o que pode fazer
aclarar as dificuldades que todo projeto de qualificação de abrangência nacional deva
necessariamente levar em questão. Se existe um dizer que declara não ter o professor a
qualificação necessária, exigida pela lógica da dita sociedade do conhecimento, isso pode
aparecer declarado na própria fala do docente, assumindo como seu o que lhe foi ensinado.
Mas o discurso não é tão somente lugar da repetição e, desse modo, o que vemos nesses
fragmentos de memória pode nos aclarar sobre a formação de professores em regiões onde a
escolarização oferecida ainda sofre com percalços de diferentes naturezas. Longe de apontar
para as certezas de um discurso homogeneizante, os relatos nos põem em suspenso,
provocando-nos a retomar suas leituras, a tentar compreender o que dizem no modo como o
dizem.
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Para efeito de análise, utilizaremos aqui as categorias da semiótica relativas ao nível
discursivo. Pressupondo um percurso gerativo de sentido do plano do conteúdo, que vai de
relações mais simples e abstratas a conexões mais superficiais e complexas, o nível discursivo
corresponde ao nível da superfície, estruturando-se em uma sintaxe e uma semântica.
A sintaxe discursiva remete à esfera enunciação e as escolhas “conscientes” do sujeito
com vistas à persuasão, mas que sofrem, ao mesmo tempo, as coerções do próprio gênero em
questão. No relato autobiográfico, há uma série de elementos que apontam para o efeito de
verdade e objetividade para o que se diz, como a ancoragem ao se precisarem nomes, datas e
lugares e, diante disso, o sujeito pode escolher o que revelar, o que silenciar, o que servirá ou
não aos propósitos do parecer verdadeiro o que se diz. Ao mesmo tempo, identificam-se
marcas da subjetividade, haja vista que deve predominar o emprego da 1ª. pessoa (eu)
(debreagem actancial enunciativa): trata-se de um “eu” que fala das suas experiências no
passado e a elas dá sentido.
Também se insere no âmbito da sintaxe discursiva a negociação das vozes, isto é,
pode-se optar pelo discurso direto (debreagem de segundo grau) ou indireto ao se reportar ao
dizer do outro. Esse inserir a voz do outro no meu dizer constitui o que Bakhtin designa como
evidência de polifonia pelo “dialogismo marcado” (FIORIN, 2008) e Authier-Revuz (1998)
traduziria como “heterogeneidade marcada”. No âmbito, portanto, das escolhas conscientes,
ao utilizar o discurso direto, cria-se o efeito de verdade (o sujeito teria dito X com tais
palavras), efeito que não se produz com o discurso indireto que remete à ideia de que o dizer
possa ter sido reconfigurado. É importante, contudo, que, tanto na concepção bakhtiniana de
discurso quanto na sua apropriação por Authier-Revuz, o dialogismo é constitutivo da
linguagem, isto é, todos os enunciados se constituem a partir de outros, sendo uma réplica de
outro enunciado (FIORIN, 2008).
Em relação à semântica discursiva, estamos diante de dois processos, o da
figurativização e o da tematização, através dos quais se manifestam as formações discursivas.
Para a semiótica, o tema corresponde ao “elemento semântico que designa um elemento nãopresente no mundo natural, mas que exerce o papel de categoria ordenadora dos fatos
observáveis” (FIORIN, 1990, p. 24). Já as figuras são elementos semânticos que remetem a
algo presente no mundo natural: “é todo conteúdo de qualquer língua natural ou de qualquer
sistema de representação que tem um correspondente perceptível no mundo natural”
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(FIORIN, 1992, p. 65)2. Mediante a maior ou menor ocorrência da presença de temas ou
figuras, encontramos, respectivamente, textos predominantemente temáticos, com sua função
predicativa ou interpretativa, ou figurativos, que possuem uma função descritiva ou
representativa. Nos textos predominantemente não-figurativos, a ideologia manifesta-se
explicitamente no nível dos temas; nos textos figurativos, a ideologia ocorre na relação
estabelecida entre temas e figuras (FIORIN, 1992). No caso dos relatos, cabe ao analista
estabelecer as relações de sentido produzidas por esse modo de relação, identificando os
temas subjacentes às figuras. Tematização e figurativização consistem, pois, em dois níveis de
concretização do sentido por meio dos quais se evidencia a filiação ideológica do dizer. Nesse
sentido, estamos diante da expressão daquilo que escapa ao nível da manipulação/escolha
consciente por parte do sujeito. Nos relatos autobiográficos, as figuras remetem ao nível da
experiência sensível, concretizando lugares (escola, casa, cidade, região etc.), e personagens
(professores, pais etc.), enquanto que os temas apontam para a leitura que se atribui ao vivido,
explicitando o modo como julga o experimentado, o que a memória restitui. Esse modo de
descrever, narrar e julgar filia o dizer a formações discursivas, que materializam formações
ideológicas. É aqui que se situa o que é da ordem social e histórica do dizer.
2. A produção dos relatos
Os relatos aqui analisados foram produzidos a partir de proposta apresentada aos
cursistas por professor responsável pela disciplina História da América II durante as aulas
presenciais. Os docentes foram informados de que a produção escrita desses relatos não
possuía caráter avaliativo e, posteriormente, que serviriam para pesquisa em fase inicial. Num
segundo momento, parte dos cursistas da mesma turma aceitou gravar depoimentos orais para
a referida pesquisa. Nesse sentido, a seleção dos 13 textos privilegiou as produções dos
docentes que aceitaram conceder os depoimentos orais, os quais serão também analisados em
etapa seguinte da pesquisa.
A extensão dos textos produzidos é variada, tendo ficado os autores à vontade para
determinar o número de laudas. Foram dadas, contudo, algumas orientações para nortear essa
produção, as quais não foram seguidas de forma rígida, como aconteceria nas respostas a um
2
A representação não implica semelhança com o mundo natural. A semiótica não identifica na linguagem a
relação de similitude com a realidade, mas investiga os códigos culturais que definem o caráter veridictório
(efeito de realidade) atribuído a textos e imagens a partir da iconicidade, resultante da saturação de elementos
figurativos. A iconicidade produz, assim, efeito de conotação veridictória.
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questionário. Exemplo disso é que nem todos os relatos fornecem indicações sobre data e
local de nascimento, tendo os autores privilegiado outros aspectos de suas biografias. Na
medida em que seguem de modo mais ou menos livre um roteiro um tanto aberto, é possível
identificar a abordagem de questões comuns: a trajetória de escolarização, o apoio dos pais
aos estudos, a opção profissional, a atuação como docente, as razões para optar pela
graduação em História pelo programa PARFOR e as contribuições da disciplina História da
América para sua formação docente.
Para garantirmos a confidencialidade dos autores dos relatos, optamos por empregar
pseudônimos e, em relação à transcrição dos relatos, será mantida a redação original, sem
apontar para possíveis incorreções em relação à norma padrão. Na análise qualitativa dos
relatos, privilegiamos as reflexões que mais diretamente dissessem respeito a suas trajetórias
de formação.
3. Figuras da escola: “A escola era meu único refúgio e consolo”
Nos relatos autobiográficos, a escola é figurativizada como um lugar central na
memória dos professores, sendo a educação escolar revestida de capacidades salvadoras. Não
se trata tão somente de um lugar apenas destinado aos estudos, para onde o sujeito se dirige na
busca de conhecimentos sistematizados e socialmente valorizados. Vivendo em pequenos
municípios no que é o hoje o interior do norte do Tocantins, a escola se apresenta nos relatos
como um lugar de sociabilidade fundamental, somada à promessa redentora de ser elemento
capaz de garantir a ascensão social. A escolarização não se dissocia, portanto, de um discurso
de legitimação, conferindo-lhe sentidos que ultrapassam a ideia de um lugar para aquisição de
conhecimentos teóricos.
(1) Arlindo
“a minha relação com a escola acho que foi mais ou menos até por que sempre gostava de ir para a
escola, devido morar numa comunidade que tinha (não) tinha muita oportunidade de diversão então a
escola acabava se tornando um dos melhores lugar par se ir, então assim a escola terminava sendo uma
espécie de obrigação e também de prazer”
(2) Severino
“o que mais recordo e tenho grande saudade é dos amigos e alguns professores da época, porque nós
tínhamos uma relação bem saudável e amigável onde um defendia o outro e não existia egoísmo
individual, como também era na escola (...) a escola passou a ser um local de prazer onde eu sentia-me
bem.”
(3) Ivanda
“Sempre gostei de estudar, de ir a escola apesar de vários problemas familiares, a escola era meu único
refúgio e consolo pois estudando e trabalhando junto com meus colegas esquecia tudo que estava
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SILVA, L. H. O.; RAMOS JÚNIOR, D. V. Os sentidos da escola e da escolha da profissão docente...
passando, entrava em outro mundo, uma outra vida, deixava tudo para trás e me envolvia só com o que
estava fazendo no momento.”
Como podemos ver nos relatos de Arlindo (1), Severino (2) e Ivanda (3), a escola que
constroem em seus relatos surge idealizada, contrapondo-se a uma realidade sofrida da qual
buscavam fugir: problemas familiares, o árduo trabalho na roça e, como lemos em outros
relatos, a pobreza. Trata-se de um lugar de “refúgio e consolo”, “prazer”, “onde não havia
egoísmo”, acentuando-se aspectos que conferem afetividade a esse lugar. Estudar, portanto,
vai sendo sinônimo de prazer, acentuando-se o gosto de “ir para a escola”, espécie de ilha que
emerge num oceano de dificuldades.
A essas imagens quase que essencialmente positivas fornecidas pelos relatos
associam-se as expectativas redentoras que se lançam sobre a escola e encontram fundamento
nas condições históricas e discursos que se produzem a partir de movimentos em prol da
escolarização das massas. Esses professores cresceram num contexto histórico, a partir de
1970, quando a educação foi universalizada no Brasil e em vários países do chamado Terceiro
Mundo (HOBSBAWM, 1995), constituindo-se como o momento no qual as escolas passaram
a receber os filhos das camadas subalternas. Assim, ao mesmo tempo em que os relatos dos
professores estão marcados por histórias de privação e de dificuldade econômica desses
sujeitos oriundos de grupos sociais subalternos, encontramos a crença partilhada de que a
escola passa a ser um caminho quase que exclusivo de ascensão social e de melhora de
condições econômicas, o que vai justificar o esforço dos pais e mães de colocar e manter os
filhos na escola:
(4) João
“a minha família sempre me apoiou e me deu bastante incentivo na minha vida escolar, pois
acreditavam que eu poderia conseguir algo de bom através dos estudos”.
Semelhante ao relato de João (4), temos as narrativas de Luciana (5), Severino (6),
Arlindo (7). Os pais que não frenquentaram os banco escolares, que não conheceram a escola,
esforçaram-se por garantir a escolarização de seus filhos:
(5) Luciana
“Pelo simples fato de meus pais não terem tudo a oportunidade de estudar e todos os dias, eles nos
contava histórias de suas vidas sem estudo. Então, o espaço escolar tornara-se desta forma, o ideal a ser
seguido. Sem dúvida para minha família o espaço escolar não dava só oportunidade de um futuro
melhor, mais um crescimento de ensinamentos transformadores de uma sociedade melhor”.
(6) Severino
“...os meus pais percebia a escola como uma grande importância para o futuro da minha vida”.
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SILVA, L. H. O.; RAMOS JÚNIOR, D. V. Os sentidos da escola e da escolha da profissão docente...
(7) Arlindo
“Apesar de ser filho de pais pobres sempre tive o privilégio de estudar, porque como meu pai é
analfabeto sempre teve sonhos que seus filhos estudassem e podessem ter boas profissões na vida”.
Não poucas vezes, os pais, que se inserem na primeira geração a ser afetada pelos
discursos da importância da educação que passaram existir naquele contexto, não tiveram
oportunidade de acessar a educação formal. Segundo os relatos, essa falta de oportunidade os
levou a investir seus esforços na educação dos filhos, lutando por ela. Num momento em que
o Brasil presenciava, como mostra Menezes (2007), a produção de uma série de enunciados
sobre o futuro, a educação começou a figurar como um elemento capaz de mudar a sociedade
nacional, inserindo-a na modernidade. Nesse sentido, os relatos fazem coro ao discurso de um
dado contexto histórico em que a educação é edificada como um dos elementos
transformadores da sociedade nacional e da vida individual dos brasileiros.
Os professores sujeitos de nossa pesquisa fazem parte das primeiras gerações afetadas,
no atual Tocantins, pela massificação do ensino e pelas promessas que ele trazia de mudança
social e individual. Por isso mesmo, a escola passou a ser um lugar de grande importância
simbólica, catalisador de esperanças de mudança social, o que fica marcado na memória dos
autores dos relatos estudados. Assim, a escola, dentro dos seus relatos autobiográficos, surge
como um lugar que catalisa memória, como um espaço de construção da esperança individual
e coletiva (“sociedade melhor”, como depoimento de Luciana), servindo a autobiografia para
produzir momentos de articulação do que Reinhart Koselleck (2006) chama de espaço de
experiência e horizonte de expectativa.
Contudo, entre esses dois tempos, o da experiência da entrada na escola como aluno e
das expectativas ali produzidas e o tempo de uma outra vivência, agora como professor,
parece haver uma espécie de abismo, marcando uma descontinuidade entre modos de
representação. Os professores foram ensinados por seus pais e pela sociedade nacional a
respeito do quanto a escola, a educação e o professor seriam importantes para o projeto
nacional então em voga, para um projeto de futuro e de progresso. Essa escola do passado
surge, portanto, idealizada, construída euforicamente tanto pelo modo como a memória a
traduz no presente, como pelas esperanças que orientaram os investimentos na escolarização.
No entanto, no momento em que educação caminha em direção à universalização, a profissão
docente começa a sofrer um processo de desvalorização e precarização, frustrando as
expectativas produzidas na infância. Assim, as imagens da escola e da educação do passado
comparadas às imagens do presente são profundamente antagônicas: a realidade da qual a
escola parecia ser “refúgio”, como nos dizia Ivanda (3), invadiu o espaço escolar.
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Nos relatos, identificamos, portanto, uma oposição entre os temas da esperança e da
promessa (vinculadas à escola no passado, a da memória) e a desilusão (relativa às vivências
do presente). Nessa oposição, podemos observar as distinções que se produzem na
explicitação das vozes do discurso. As referências às expectativas redentoras da escola
(passado) são trazidas pelo emprego do discurso indireto, caracterizando a heterogeneidade e
o dialogismo mostrados (AUTHIER-REVUZ, 1998; FIORIN, 2008). Exemplo disso vemos
em Luciana (5), que remete às narrativas contadas pelo pai sem estudo acerca do sofrimento
que teria vivenciado, antevendo em suas narrativas dias melhores para a filha que estava tendo
acesso à escolarização. Os relatos trazem, assim, o discurso salvacionista da escola como
discurso aprendido no diálogo com os familiares, que os levam a crer na possibilidade de um
futuro melhor a partir da escolarização. É, portanto, a fala do outro, evidenciada como tal,
explicitada pelas referências aos pais.
De forma distinta, nas referências ao presente, não se encontra mais essa explicitação
do discurso do outro, desse atravessamento do dizer: a heterogeneidade (dialogismo),
constitutivo(a), é diluída, não marcada, não percebida na superfície do discurso (AUTHIERREVUZ, 1998). O sujeito que escreve produz no texto a ilusão de que o faz a partir do que
seria sua própria percepção da realidade, sem pretender se deixar permear por dizeres que o
afastem do real. A escola ideal, a que seria produzida figurativamente pelo olhar do outro,
essa escola do passado, não existe mais. A “vida” que ela lhes prometeu não foi alcançada.
4. Polifonia: Nunca quis ser professora
Que vou ser quando crescer?Sou obrigado a?
Posso escolher?Não dá para entender. Não vou ser. Não
quero ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser Esquecer.
Carlos Drummond de Andrade
No poema “Verbo Ser”, Carlos Drummond de Andrade brinca com os
questionamentos tão comumente feitos às crianças sobre seu futuro profissional. O enunciador
apresenta-se aí na perspectiva de quem se exaspera com a pergunta frequentemente formulada
pelos adultos, pondo-se a questionar sobre o que é efetivamente “ser”, resistindo a uma
resposta simplista. O sujeito estranha a pergunta inicial, levanta outras, todas servindo para
complexificar os sentidos de “ser”. Quando se principia a ser? O sujeito só começa a ser
quando cresce? É possível escolher o que se vai ser? No questionamento trazido pelos adultos,
está pressuposta a possibilidade da escolha e ao mesmo tempo uma descontinuidade. O sujeito
pode decidir o que “quer ser” e pode ainda tornar-se um sujeito distinto daquele do presente.
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Ser um outro, a partir de uma escolha, de um momento inaugural no qual se principia a ser
esse diferente, moldado pelo querer.
Partindo dos versos do poeta mineiro, retornemos aos relatos autobiográficos dos
docentes considerando um primeiro recorte: declarações que envolvem suas escolhas
profissionais. Quando o sujeito “escolheu” ser professor? Esse sujeito escolheu, de fato, ou a
“opção” profissional foi determinada de antemão? Como o sujeito discursiviza essa escolha?
Quando principia sua história na escola e para a escola? Como se marca a modalização pelo
querer (ou dever) ser?
Em dez dos treze relatos, ressaltamos como ponto comum a fala de que a docência não
foi resultante necessariamente de uma opção profissional, uma vez que o ingresso no
magistério se deveu em muitos casos por ser a única qualificação disponível em suas cidades:
(8) Sueli
“...não tinha sonho de ser professora mas a vida nos reserva muitas surpresas, bem fui mora em uma
cidade do interior, surgiu a oportunidade de estudar o magisterio, algum tempo depois veio a
oportunidade de cursar um nível superior, quando surge também a chance de um concurso público fui
abençoada passei”
(9) Pedro
“A minha profissão se deu pela necessidade de estar empregado e na oportunidade que apareceu
aproveitei, já que tinha o magistério, habilitação exigida para tal função na época. É lógico que não
escolheria esta profissão se tivesse tido uma melhor oportunidade, então posso dizer que esta escolha foi
um produto do acaso”
Ao remeter ao passado, Sueli (7) expressa que a entrada no magistério não foi
resultante de “um sonho”, ou seja, de algo que esperava alcançar, mobilizando o seu querer. O
modo como o diz, fazendo uso da negação, instaura a polifonia, isto é, a negação pressupõe
uma afirmação que vai ser refutada. Sueli, assim, remete ao discurso de que as escolhas
profissionais são feitas como concretização de “sonho”, de um querer ser, tal como aparece no
poema drummondiano.
Ainda tomando o relato de Sueli (7), considerando as construções verbais do ponto de
vista sintático, identificamos três situações nas quais o enunciador se apresenta na condição
de sujeito da oração: “não tinha sonho”, “fui mora” e “fui abençoada” (eu elíptico, nos três
casos), observando-se que nesta última construção a oração se apresenta na voz passiva. Nas
demais orações, os sujeitos vida, oportunidade e chance aparecem como sujeitos pospostos
aos verbos e remetem aos elementos determinantes dos rumos profissionais de Sueli: a vida, a
oportunidade e a chance fizeram com que Sueli fosse professora, contando ainda para isso
com a mudança (“fui mora”) e a bênção recebida (“fui abençoada”). Pelas escolhas lexicais e
sintáticas, fica reiterada a ideia anterior de que ser professor não foi algo que Sueli quis para
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sua vida, mas efeito de um contexto (mudança de cidade), de uma dada conjuntura (que
definiram um quadro de chances e oportunidades) que a conduziu e, desse modo,
submetendo-a. Pelo modo como diz, portanto, Sueli (7) reitera a sua condição de
assujeitamento.
Em Pedro (8), de novo temos a decisão de ser professor condicionada às circunstâncias
do contexto: a necessidade de estar empregado, a oportunidade que deveria ser aproveitada.
Diante da urgência do emprego e da única área ofertada para formação, Pedro “aproveita” a
chance que se lhe apresentou, pondo-se, desse modo, como sujeito que é capaz de tomar
atitudes que respondem ativa e positivamente às circunstâncias contextuais. Na frase seguinte,
contudo, Pedro declara que “é lógico que” não decidiria pela docência, o que remete a uma
espécie de ponto de senso comum ou ao menos um ponto de vista pretensamente
compartilhado pelo seu interlocutor, leitor do relato, aí também evidenciando o efeito de
polifonia. Haveria, assim, uma “lógica” (e um outro dizer) compartilhada pelos sujeitos a
qual prevê que a docência não seja uma escolha plausível, racional, consequente e é essa
lógica (esse dizer) que é refutado. O modo como faz para dizer que não se tratou de uma
escolha efetiva, nem lógica, evidencia o quanto a escolha profissional passou longe de uma
determinação pessoal, o que é reiterado mais adiante com declaração de que foi “obra do
acaso”. Se a ideia de acaso remete a possibilidades e combinações aleatórias e imprevistas, na
narrativa de Pedro a expressão parece ser bem pouco apropriada, produzindo-se aí uma
aparente contradição. Pedro interpreta como “acaso” o que poderia ler, a partir de suas
próprias declarações, como resultante de uma determinação histórica e contextual. Como se
estivesse num jogo com cartas marcadas, Pedro aproveita as oportunidades, mas não tem
como fugir às regras do jogo: os caminhos que trilha seriam de antemão traçados. Não se trata
de acaso.
A pergunta que poderia ser feita é por que, se não escolheram ser professores, abdicam
de suas férias e do convívio familiar, enfrentam privações de toda sorte para se formarem
professores nesse projeto PARFOR? Por que ainda investir uma vez mais em algo para o qual
não se espera retorno financeiro ou reconhecimento social? Por que dizem que alcançar a
licenciatura é um “sonho”?
A contradição pode ser uma leitura, mas podemos também considerar a perspectiva da
coexistência de mais de um sentido, da possibilidade de mais de uma interpretação ou daquilo
que se pode denominar como “multivalência”, quando a história narrada “implica polifonia e,
simultaneamente, contém múltiplas tramas e perspectivas” (ROUVEROL, 2000, p. 195).
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Pelos relatos, esses docentes declaram o gosto pela busca do conhecimento, afastando-se da
imagem de uma escola redentora no sentido de poder transformar radicalmente suas vidas. A
supervalorização da escolarização, como vimos, remete ao discurso do outro, num processo
de heterogeneidade marcada e a uma perspectiva do passado reconstituído pela memória,
“sonho” de outrora; discurso da alteridade.
No presente, o “sonho” de estudar adquire
contornos mais pragmáticos, remete à dimensão de um projeto exequível, para o qual esses
docentes mobilizam esforços e desejo. O que os professores talvez nos informem é que na
vida, cabem muitos sentidos para o sonho e, de um ou outro modo, a graduação é sonho para
poucos no Brasil. Assim, continuam revestindo a educação de positividade, negociando
sentidos e possibilidades.
5. Os negociadores ou das considerações finais
As teorias do discurso têm se preocupado, nos últimos anos, da revisão de algumas
posições no que diz respeito à relação entre sujeito e discurso. Os relatos autobiográficos são,
como gêneros catalisadores, momentos nos quais os sujeitos vão negociando com discursos
estabelecidos, conjunturas históricas e circunstâncias cotidianas no jogo vital da produção de
significação para si e para o mundo. Os relatos aqui descritos mostram as negociações entre
sujeitos e discursos em circunstâncias pelas quais estão passando tendo em vista um processo
de avaliação e reelaboração de seus percursos escolares e de vida, para o que convergem os
momentos de formação.
Pelo que nos revelam seus relatos, apesar dos esforços familiares e de um projeto
nacional de universalização escolar, os docentes apontam para a descontinuidade de sua
trajetória de formação, o que remete a particularidades que caracterizam a escola e a
escolarização nas regiões Norte e Nordeste do país, sobretudo pela grande área rural e a
problemática do acesso à escola nessas localidades, o que vai evidenciar a relevância de
programas de formação de professores como o PARFOR.
Conforme nos relatam os docentes, essa descontinuidade de sua formação se deu por
uma série de justificativas: casamento e criação dos filhos interrompendo os estudos (Sueli,
Severino); evasão escolar por dificuldade de aprendizagem ou conflitos com professores
(Valdir, Vilma), falta de professores (Otávio); ausência de escola ou precariedade da escola na
zona rural (Osmarina, João, Ivanda, Otávio); pobreza extrema levando à desnutrição (Ivanda);
mudanças constantes da família em busca de trabalho (Pedro), isto é, estudar nunca foi algo
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tranqüilo para suas vidas, mas sempre teve o sentido da necessidade e o sentido da esperança.
Necessidade e esperança parecem continuar orientando esses sujeitos do ensino e da
aprendizagem. Ora como quem ensina, ora como quem ainda estuda, encontramos sujeitos
atravessados pelos discursos da precariedade e da falta que caracterizam a educação, mas
também investindo ainda em movimentos de busca de dias melhores pelas vias de acesso ao
conhecimento. Luciana declara em verbo no pretérito imperfeito sobre um passado
aparentemente superado: “acreditávamos que podíamos mudar o mundo”, apontando para o
fim de uma crença. A educação, afinal, não mudou o mundo, embora tenha marcado
definitivamente suas trajetórias individuais. Esses sujeitos de escolarização descontínua
inscrevem-se num movimento de ir e vir, sem jamais abandonar definitivamente a escola.
Continuam estudando, insistindo. São sujeitos que ainda sonham.
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Artigo recebido em agosto de 2012.
Aceito em setembro de 2012.
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